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IMAGENS DO SAGRADO

Fernando de Tacca é fotógrafo, O livro trata do embate midiático de


doutor em antropologia pela USP e IMAGENS DO SAGRADO imagens de candomblé realizadas na
professor livre-docente no Instituto Imagens do sagrado — Entre Paris Match e O Cru- cidade de Salvador (BA) publicadas
de Artes da Unicamp. Foi professor zeiro nos traz uma significativa contribuição para Fernando de Tacca nas revistas O Cruzeiro e Paris Match
visitante na Universidade de Estudos a construção de uma metodologia de trabalho que em 1951. Importantes personagens
Estrangeiros de Osaka, Japão (1995- alia técnicas de reportagem jornalística às melhores ligados às áreas de jornalismo, an-
1997), e assumiu a cátedra de tropologia, fotografia e cinema se
práticas de pesquisa de campo da antropologia.
estudos brasileiros na Universidade envolveram nos fatos, entre eles
de Buenos Aires (2004). Foi contem- Partindo de um conflito de interesses e de disputas José Medeiros, Henri-Georges
plado no I Concurso Marc Ferrez de jornalísticas que abrangeram tanto questões éticas Clouzot, Roger Bastide, Alberto
Fotografia (Funarte, 1984) e com a quanto comerciais, Fernando de Tacca colocou na Cavalcanti, Pierre Verger, Odorico
Bolsa Vitae de Artes (2002). Em boca de cena, com status de atores principais, per- Tavares, entre outros. O fato impli-
2006 ganhou o Prêmio Pierre Verger sonagens que até então funcionavam apenas como cou forte polêmica no meio religioso
de Fotografia da Associação Bra- e entre a intelectualidade brasileira, e
objetos de curiosidade. De seres exóticos, esses per-
sileira de Antropologia e o Prêmio de teve conseqüências para a mãe-de-
Reconhecimento Acadêmico Zeferi- sonagens e, por meio deles, o próprio culto passaram santo Riso da Plataforma. A partir
no Vaz (Unicamp). Publicou o livro A a sujeitos e interlocutores graças às entrevistas e, de fontes documentais, pesquisa de

Fernando de Tacca
imagética da Comissão Rondon e sobretudo, à leitura acurada das imagens publicadas. campo das memórias vivas, levanta-
inúmeros artigos sobre fotografia, mento de material iconográfico e bi-
cinema e antropologia visual. Rea- Milton Guran bliografia original e inédita, a pesqui-
lizou várias exposições fotográficas sa analisa o fato midiático do enfren-
no Brasil e no exterior. É o criador e o tamento entre as duas revistas em
editor da revista Studium. relação à documentação fotográfi-
ca do ritual de iniciação no candom-
blé dos vários pontos de vista de
seus atores.

Editora da Unicamp Imprensa Oficial

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IMAGENS DO SAGRADO

Fernando de Tacca

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ficha catalográfica elaborada pelo
sistema de bibliotecas da unicamp
diretoria de tratamento da informação
Tacca, Fernando Cury de.
T116i Imagens do sagrado: entre a Paris Match e O Cruzeiro / Fernando Cury de Tacca.
– Campinas, sp: editora da unicamp, Imprensa Oficial do estado de São
Paulo, 2009.
200p. - il.

isbn 978-85-268-0848-5
e-isbn 978-85-268-1172-0 (editora unicamp)
isbn 978-85-7060-747-8 (Imprensa Oficial)

1. Fotografia. 2. Candomblé. 3. Antropologia visual. 4. Fotojornalismo. I. Título.

cdd 770
299.6
390
778.53807

Índices para catálogo sistemático:

1. Fotografia 770
2. Candomblé 299.6
3. Antropologia visual 390
4. Fotojornalismo 778.53807

Copyright © by Fernando Cury de Tacca


Copyright © 2009 by editora da unicamp

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ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.
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IMAGENS DO SAGRADO
entre paris match e o cruzeiro

Fernando de Tacca

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Não há Cruzeiro que pague tanto Riso...

A Micênio Carlos Lopes dos Santos, in memoriam

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Agradecimentos

Ao povo de Mãe Riso do Bairro da Plataforma e de Nilópolis, pelos de-


poimentos aqui publicados, especialmente a Janíldece Barroso da Silva, que nos
acolheu desde a primeira vez que chegamos de surpresa em sua casa e se tornou
nosso principal contato no Bairro da Plataforma em Salvador, Bahia, e a Mari-
lene da Silva Reis, pela paciência com nossas indagações. Agradeço a todas as
pessoas cujos depoimentos constam neste livro.
Agradeço a algumas pessoas e entidades que foram muito importantes para
esta pesquisa:
Micênio Carlos Lopes dos Santos, meu companheiro de trabalho, que acom-
panhou todas as etapas e esteve comigo em Salvador, em julho de 2003;
José Medeiros, que me recebeu em sua casa no Rio de Janeiro, em 1988,
quando iniciava minha pesquisa;
Milton Guran, amigo e incentivador deste estudo;
Cláudio da Cruz David, assistente de pesquisa, sempre atento aos dados;
Susana Sel, sempre presente e acompanhando nosso trabalho;
Luiz Eduardo R. Achutti, Cláudia Possa, Emanoel Castro Oliveira , Vagner
Gonçalves e Jéromê Souty, pelas preciosas informações e contribuições;
Angela Lühning e Alex Baradel, da Fundação Pierre Verger;
Casa de Cultura de Teresina, pelas informações da Coleção Fotográfica José
Medeiros;
Lygia Nery, pelas traduções e amizade, e Eduardo Covas, pelas transcrições
dos depoimentos.
Meus alunos de graduação e pós-graduação, sempre atentos ao desenvolvi-
mento da pesquisa, e meus colegas do Departamento de Multimeios, Mídia &
Comunicação, do Instituto de Artes da Unicamp;
Fundação Vitae, pela Bolsa Vitae de Artes — 2002.

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Sumário

Apresentação 13
Introdução 17
Encontro com memórias e histórias recontadas 29
O contraponto de Pierre Verger 71
Clouzot no Brasil, o caso Paris Match 87
O Cruzeiro e José Medeiros 123
A fricção ritualística 159
Bibliografia 163
Candomblé — José Medeiros 165

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Apresentação

á foi dito que o jornalismo — o palco onde se desenrola a polêmica


J central deste livro — é um delicioso passeio pela superfície das coisas.
De fato, cabe-lhe proceder a um inventário dos acontecimentos em geral.
Entretanto, ao fazê-lo, o jornalismo produz, também, um registro mais ou
menos minucioso dos diferentes interesses e mentalidades que permeiam
a sociedade enfocada num determinado momento.
Às ciências sociais, por sua vez, cabe reunir, sistematizar e problemati-
zar todo esse material — que constitui parte do seu campo de trabalho —,
buscando produzir uma reflexão sobre como os indivíduos e os grupos so-
ciais organizam e classificam suas experiências enquanto seres sociais.
São tarefas distintas, mas contíguas, por assim dizer. Normalmente, são
desempenhadas por profissionais diferentes, cada um com uma formação
específica e com propósitos diversos. Aqui, no entanto, encontramos o
fotógrafo, com sua experiência de repórter-fotográfico, que se junta com
o antropólogo para transformar aquele delicioso passeio pela superfície
em uma apaixonante viagem pelas profundezas do mundo do candomblé,
das suas dimensões sagrada, mediática e ética.
A partir da própria polêmica gerada pela sua exposição jornalística,
são apresentados e analisados os preconceitos que o candomblé desper-
tava naquela época no Brasil e no exterior, como também os interesses
menores dos seus adeptos ao lado de toda a sua dimensão humana e
força social. Bastam os títulos das reportagens em questão para se ter
uma idéia da problemática que essa polêmica pôs em evidência. De um
lado, a revista francesa Paris Match publica “Les possédées de Bahia”,
reportagem marcada pelo sensacionalismo do exótico. De outro, ferida
em seus brios de líder inconteste do mercado editorial brasileiro e
exemplo mais bem sucedido das revistas ilustradas na América Latina,

APRESENTAÇÃO 13

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O Cruzeiro contra-ataca com “As noivas dos deuses sanguinários”, le-
vando ao extremo o equívoco e o preconceito que marcavam a primeira
reportagem.
A revista O Cruzeiro tinha um impacto na sociedade brasileira de
norte a sul somente comparável ao das grandes cadeias de televisão de
hoje. A sua reportagem, mais do que a da revista francesa, mexeu pro-
fundamente com a representação do candomblé enquanto culto religioso
e agitou perigosamente seus seguidores, principalmente em Salvador. E
como ficaram os adeptos nessa polêmica? Como se produziram essas
reportagens, que interesses representavam, dentro e fora dos terreiros de
culto? Quem eram os protagonistas, e por que colaboraram com essas
reportagens? Eis algumas das perguntas que este livro responde, e aí
reside um dos seus méritos.
Fernando de Tacca levantou as fontes originais dos jornais da épo-
ca e foi procurar os seus protagonistas, diretos e indiretos, no próprio
Bairro da Plataforma. Ouviu quem carregava ainda as lembranças da
polêmica pelo seu lado de dentro, como Sissi, da Fundação Pierre Ver-
ger, e Mãe Cutu, da Casa Branca. Encontrou as mesmas imagens que
foram sentidas como pejorativas agora habitando o universo das iaôs,
ressignificadas em álbuns familiares. Aqui aparece, de volta, a persona-
gem central de Mãe Riso, mãe-de-santo da periferia, de tradição banto,
que foi duramente rechaçada pelo candomblé, mas que teve uma vida
inteira dedicada somente a essa religião. Sua história de vida, por si só,
enriquece enormemente a releitura desses fatos. Essa polêmica, natu-
ralmente, envolveu a intelectualidade da época e aqui estão, também,
Pierre Verger, Édison Carneiro, Paulo Duarte, Alberto Cavalcanti, Leão
Gondim, Accioly Netto, Odorico Tavares e Roger Bastide (inclusive
com o artigo específico sobre a revista O Cruzeiro, excluído dos seus
compêndios), entre outros.

Imagens do sagrado — Entre Paris Match e O Cruzeiro nos traz, ainda,


uma significativa contribuição para a construção de uma metodologia
de trabalho que alia técnicas de reportagem jornalística às melhores
práticas de pesquisa de campo da antropologia. Partindo de um conflito
de interesses e disputas jornalísticas que abrangeram tanto questões
éticas quanto comerciais, Fernando de Tacca colocou na boca da cena,
com status de atores principais, personagens que até então funcionavam

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apenas como objetos de curiosidade. De seres exóticos, esses personagens
e, através deles, o próprio culto passaram a sujeitos e interlocutores graças
às entrevistas e, sobretudo, à leitura acurada das imagens publicadas.

milton guran

INTRODUÇÃO 15

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Introdução

primeira vez em que as fotografias sobre rituais afro-brasileiros de


AJosé Medeiros estiveram diante do meu olhar corria o ano de 1984,
quando me foi apresentado o livro Candomblé, publicado em 1957 pela
Editora O Cruzeiro. Elementos inatingíveis pelo olhar leigo, espaços e
temporalidades da liminaridade, detalhes do sagrado, impenetráveis ao
olhar de um não-iniciado, eram explicitados pela fotografia e mostravam
imagens nunca antes vistas, em recortes detalhistas de todo o conjunto de
cerimônias que envolvem os ritos de iniciação no candomblé. Na ocasião,
estava em Goiânia fazendo o primeiro curso no Brasil que tratava das
questões de antropologia e imagem, seus usos e suas significações. Um
curso no qual pude encontrar pessoas muito importantes para minha vida
pessoal e profissional: Milton Guran, Kim-Ir-Sem Pires Leal, Micênio
Carlos Lopes dos Santos, Luis Eduardo Jorge. O curso de especialização
chamado de Recursos Audiovisuais em Etnologia foi realizado dentro de
uma instituição sem nenhuma tradição imagética, mas com importante
parte do acervo brasileiro do cineasta e fotógrafo Jesco von Puttkamer.
Alguns professores foram importantes na aproximação com o conteúdo
do curso, mas especificamente somente Cláudia Menezes tinha uma
inserção real na área, já havia realizado um filme etnográfico sobre os
pancararus e tinha alguma bibliografia básica para nos indicar. Um cur-
so era uma idéia “fora de lugar”, pois o interesse era somente chamar a
atenção para o acervo e buscar saber o que fazer com ele.
Nessa situação, ainda um neófito na área chamada antropologia visual,
que começava a encontrar seus primeiros caminhos no Brasil como área
do conhecimento, estive com essas imagens pela primeira vez. Entretanto,
eu vinha de uma experiência pessoal de pesquisa em alguns textos do
periódico Studies in Visual Communications, que encontrei uma parte na
biblioteca da Fflch-USP e outra na biblioteca da ECA-USP, e com uma

INTRODUÇÃO 17

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prática fotográfica na documentação do cotidiano de pescadores da Ilha
de Boipeba, Bahia, com cultura e conhecimento fotográficos. Assim, com
essa formação, tive a primeira relação com as imagens de José Medei-
ros. O livro pertencia a Micênio Carlos Lopes dos Santos, também um
antropólogo em formação com muita inserção no universo religioso dos
cultos afro-brasileiros, com o qual travei as primeiras questões sobre as
imagens e o contexto da cerimônia de iniciação no candomblé.
As imagens de José Medeiros imediatamente saltaram aos meus olhos
iniciantes na compreensão da relação entre antropologia e imagem. Ima-
gens nunca vistas por mim e com certeza tampouco por muitos pes-
quisadores nas áreas da antropologia e da fotografia, e, como fotógrafo,
percebi que estava diante de um fotógrafo especial, com aguçado senso
plástico para as condições dadas de um ritual e suas dificuldades de do-
cumentação. Percebi que estava perante uma documentação autêntica e
original. Já conhecia a importância da fotografia de José Medeiros, mas
sua obra era inacessível, somente algumas imagens suas tinham sido
publicadas até então, fora as publicações da revista O Cruzeiro, também
de difícil acesso. O que me atraiu de imediato no conjunto de 60 foto-
grafias foi o olhar inserido na complexidade do ritual e a forma como
o fotógrafo realizou as imagens, com proximidade e consentimento. A
objetividade no enquadramento com contextualização dos momentos
importantes do ritual condensa, principalmente, os detalhes sobre o
corpo como suporte ritualístico. Desde o primeiro instante em que meu
olhar percorreu o conjunto das imagens, identifiquei-as como uma docu-
mentação original e de forte valor etnográfico. O texto jornalístico que
acompanha as imagens não compromete pelo seu caráter meramente
descritivo, com detalhamento para ações, cantos, nomeação de objetos,
e certa dramaticidade narrativa do evento. O texto e as legendas não
identificam o local e as pessoas fotografadas, somente havia a indicação
da cidade de Salvador, Bahia. Pensei ingenuamente tratar-se de uma
forma de preservação das pessoas que se deixaram fotografar, mas fui
percebendo, conforme a pesquisa se desenvolvia, que tenha sido talvez
um caso de simples omissão.
Instigado então pelas imagens que ficariam retidas na minha memória,
encontrei-me com o fotógrafo José Medeiros em seu apartamento no
Rio de Janeiro, em 1988. Ele me concedeu, na ocasião, uma entrevista
na qual relatou os fatos aqui apresentados. Eu tinha interesse específico
em saber a motivação da reportagem, sua inserção no meio religioso,

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as relações que propiciaram a feitura das imagens, as conseqüências da
publicação e outras informações que ele tivesse sobre o assunto. José
Medeiros, amável e simpático, foi solícito e conversamos por duas horas.
Na conversa, indicou-me caminhos importantes com informações que
somente ele podia fornecer-me naquele momento. Disse ele que em
1951, sentindo-se importunado e incomodado em decorrência das ima-
gens sobre candomblé publicadas por um estrangeiro, resolveu fazer uma
reportagem mostrando os aspectos inacessíveis ao olhar leigo dos rituais
de iniciação dessa religião afro-brasileira. Segundo ele, a reportagem es-
trangeira não mostrava o “verdadeiro candomblé”. Como era costume no
processo de decisão de pauta na revista O Cruzeiro, os fotógrafos tinham
autonomia para propor e conduzir uma reportagem. Os enfrentamentos
com revistas estrangeiras eram um ponto importante de afirmação para
O Cruzeiro como produto de um jornalismo autêntico e nacional. O caso
Flávio publicado na revista Life é um deles. Medeiros partiu então com
o jornalista Arlindo Silva para a Bahia para tentar uma documentação
original dos rituais secretos do candomblé. A dificuldade de aproximação
nos terreiros tradicionais levou-os a procurar alternativas, e um guia in-
dicou-lhes uma casa não-tradicional onde três iaôs1 estavam em reclusão
e em processo de iniciação.
Medeiros relatou-nos que teve uma experiência desagradável quando
freqüentava os terreiros tradicionais tentando as primeiras aproximações
com o intuito de fotografar, e logo em um deles, mesmo sem portar o
equipamento fotográfico, foi questionado por uma mãe-de-santo em
transe, que se dirigiu diretamente a ele e falou: “Você veio aqui para
fotografar, mas não vai não!”. Medeiros contou-nos essa passagem com
um ar de espanto místico, mas, como um fotojornalista exemplar, refletiu
internamente e decidiu que não iria desistir de mostrar o “verdadeiro
candomblé” e voltar para a redação sem o material prometido. Assim,
mesmo fora dos terreiros tradicionais já se sabia de seus objetivos, afinal,
a chegada de um fotógrafo e de um jornalista da revista O Cruzeiro era
assunto em qualquer cidade na época. No depoimento mais informativo
de sua vida, Medeiros fala sobre sua sensação de ser um fotógrafo da
revista O Cruzeiro: “Um fotógrafo da revista era tão famoso quanto é

1 Termo que designa as pessoas que estão em processo de iniciação no candomblé.

INTRODUÇÃO 19

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hoje um galã da Globo, cheguei a dar autógrafos na rua. O pessoal ficava
vidrado pelo fato de o cara ser d’O Cruzeiro”.2
Assim, ele encontrou um guia que o conduziu a um terreiro na peri-
feria, no qual estariam sendo iniciadas as três iaôs: o Terreiro de Oxóssi,
da mãe-de-santo Mãe Riso da Plataforma. Na conversa com Medeiros,
pela primeira vez ouvi o nome da mãe-de-santo que se deixou fotografar,
um dado importante para a pesquisa de campo realizada em 2002, pois
pude ir diretamente para o local, o Bairro da Plataforma, em Salvador, e
encontrar as memórias vivas dos acontecimentos nas pessoas que tiveram
alguma relação com o evento ou que foram fotografadas por Medeiros.
Somente no final da pesquisa, por meio de conversas com Arlindo Silva,
tivemos a informação de como chegaram até o terreiro de Mãe Riso. O
também fotógrafo Gervásio Batista apresentou-os a um motorista de
táxi, chamado de Sessenta, que era freqüentador da casa de Riso e sabia
da reclusão de três iaôs, e, por intermédio de Sessenta, chegaram até o
Bairro da Ilha Amarela onde ficava o terreiro. Localizado no subúrbio
ferroviário, o local era ainda zona rural com poucas casas e um trajeto
muito longo e difícil, passando pela Ribeira e pela Plataforma, muito
distante do centro de Salvador.
Contou-nos Medeiros que “pagou” a mãe-de-santo para fotografar
as três iaôs dentro de sua reclusão, as etapas do ritual de iniciação e a
festa de saída. Com a carga mística envolvendo sua fala e o fato de estar
documentando procedimentos ritualísticos não veiculados pela mídia
brasileira até então, falou-nos com forte ar de mistério que ainda teve
problemas com seu equipamento, pois o cabo de sincronismo do flash
rompeu-se. Como o ambiente era muito escuro, fez as fotos com sua
Rolleiflex usando B no anel do obturador.3 Assim, acionando e segurando
o disparador na posição B, disparou a luz do flash e imprimiu imagens
com ótima qualidade tonal no material fotossensível, demonstrando sua
capacidade técnica de trabalhar em condições adversas.
A reportagem resultante foi publicada no dia 15 de novembro de 1951
na revista O Cruzeiro com o título “As noivas dos deuses sanguinários”,
contendo 38 fotografias. Algumas dessas fotografias de Medeiros, poucas

2 Depoimento no catálogo da exposição José Medeiros — 50 anos de fotografia. Rio de Janeiro:


Funarte, 1986, p. 15.
3 Dispositivo que permite sensibilizar a película por quanto tempo desejar o fotógrafo: enquanto
estiver apertando o botão disparador, o filme está sendo exposto à luz.

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e raras, foram publicadas depois da reportagem e do livro, e foram sendo
citadas em catálogos e artigos nos anos subseqüentes com erros de datas
e falsas informações, mas sempre de uma forma ufanista sobre a impor-
tância desse material fotográfico na história do jornalismo brasileiro, e de
modo superficial, pois, quando citado, nunca veio acompanhado de uma
análise mais profunda, nem ao menos se discutiu o próprio campo ético
do jornalismo, propício nesse caso. Accioly Netto, diretor de redação da
revista por mais de 40 anos, deixou uma série de escritos memorialistas
dos fatos, dos personagens e dos profissionais com quem conviveu e que
seu filho fez publicar no livro O Império de Papel — Os bastidores de O
Cruzeiro. Accioly Netto, mesmo estando próximo de José Medeiros,
cometeu o erro grave de indicar o tradicional Terreiro do Gantois como
o local de origem das fotos e acentua as dificuldades da reportagem,
aumentando assim a mística em torno dela. Diz ele:

A atração pelo mistério levou José Medeiros também aos terreiros de can-
domblé em Salvador, Bahia, muitas vezes arriscando-se na tentativa de tirar
fotos, que na época eram proibidas. Certa vez conseguiu documentar um
ritual de iniciação das filhas-de-santo no terreiro do Gantois, com fotos
impressionantes das mulheres de cabeça raspada e marcadas de sangue, que
foram publicadas com grande sucesso em O Cruzeiro. (Accioly Netto, 1998,
p. 120, grifo nosso)

No catálogo da exposição “José Medeiros”, Instituto Itaú Cultural,


1997, com curadoria de Rubens Fernandes Júnior, uma das fotos reite-
radas vezes publicada depois da reportagem em O Cruzeiro em 1951
aparece com a seguinte legenda: “Candomblé — Iniciação de filha-de-
santo, Salvador, 1957”. A confusão com datas nesse caso deve-se às duas
publicações: da reportagem e do livro. Esse mesmo erro aparece na edi-
ção comemorativa dos 50 anos da Editora Abril, em 2000, com o livro
A revista no Brasil, com a publicação de uma das fotos com os seguintes
dizeres: “[...] O Cruzeiro — revista em que outro mestre, José Medeiros,
publicou em 1957 um notável ensaio sobre o candomblé na Bahia”. Pa-
rece que todos insistem em datar as imagens pela data da edição do livro
e não pela data original da reportagem. Mesmo a mais cuidadosa publi-
cação sobre Medeiros, com um depoimento elucidador de sua trajetória,
José Medeiros — 50 anos de fotografia, que acompanhava uma exposição
retrospectiva na Funarte-RJ, em 1987, insiste na data de 1957. Nadja

INTRODUÇÃO 21

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Peregrino, que fez a curadoria dessa exposição e do catálogo, juntamen-
te com Ângela Magalhães, publica alguns anos depois o livro O Cruzei-
ro — A revolução da fotorreportagem, em 1991, em que analisa, agora di-
retamente na fonte, a reportagem “As noivas dos deuses sanguinários”,
creditando a data correta das fotografias e publicando uma reprodução
de uma página da revista. Sua análise é formal e prende-se somente ao
aspecto da diagramação, não abordando o conteúdo da reportagem ou a
análise das imagens. Não se sabe quem são as pessoas fotografadas, como
a reportagem foi feita, como Medeiros conseguiu fazer as imagens, ou
suas motivações. Reforça-se aqui o desconhecimento relativo a informa-
ções sobre o conjunto de imagens publicado no livro e na revista por
parte de uma pessoa que também esteve muito próxima de Medeiros . A
mim, que perseguia essa história, parecia que nunca chegaria a entrar no
mundo mágico e religioso fotografado por Medeiros; as imagens e a
própria reportagem tangiam-se de uma aura intransponível.
Os remissivos erros em questões banais de datas facilmente pesquisá-
veis acompanhados por falsas informações, como a de Accioly Netto, são
parte de um grande equívoco em relação à publicação da reportagem e
do livro, do qual são cúmplices o mundo jornalístico, próximo e distante
de José Medeiros, que nunca estabeleceu uma relação analítica com a
reportagem para discutir as conseqüências éticas de invasão do universo
religioso, como também o meio religioso dos cultos afro-brasileiros, que
fomentou uma série de versões sobre o caso. Esse grande equívoco dura
mais de 50 anos!
Luiz Maklouf Carvalho, no seu livro Cobras criadas — David Nasser
e O Cruzeiro, traz um extenso volume de informações sobre a revis-
ta, dedicando apenas um parágrafo para a reportagem, e nos relata de
maneira mais próxima dos acontecimentos a matéria de José Medeiros
e Arlindo Silva: “[...] uma impressionante reportagem sobre a iniciação
ritualística das filhas-de-santo em um terreiro da Bahia — ‘As noivas
dos deuses sanguinários’ — de 19 de setembro de 1951. Medeiros foto-
grafou a raspagem da cabeça das iaôs e o batismo com o sangue dos
animais — fotos depois reproduzidas no livro Candomblé. Arlindo conta
que a mãe-de-santo foi perseguida por ter permitido o acesso dos repór-
teres ao ritual secreto” (Carvalho, 2001, p. 236). Pela primeira vez aparece
nos escritos sobre a reportagem, mesmo que somente como um dado e
50 anos, portanto, depois da publicação da reportagem, um relato sobre
as conseqüências impostas à Mãe Riso da Plataforma, que nunca teve

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seu nome mencionado nas publicações. Para todos os protagonistas, esse
anonimato imposto por José Medeiros e por Arlindo Silva nunca foi inte-
resse de investigação, nem tampouco todas as decorrências da publicação.
Maklouf somente erra na data da revista, compreensível para o volume
de dados de seu trabalho e que não compromete as informações precisas
sobre a reportagem, mas novamente a importância sobre a reportagem
passa despercebida.
No meio antropológico, o acontecimento único de uma reportagem
dessa importância ter acontecido, e naquele momento, simplesmente foi
ignorado e desprezado como uma possibilidade de estudar as relações da
fotografia com o mundo religioso. Segundo Medeiros, a publicação das
imagens que mostravam cenas de sacrifício de animais, cenas internas
da reclusão e detalhes do processo ritualístico causou muita polêmica no
meio do candomblé na Bahia. Ainda, segundo ele, devido à reportagem, as
iaôs não tiveram sua iniciação reconhecida e assim ficaram marginalizadas
dentro da religião, com conseqüências graves para elas, uma suicidou-se
anos depois e outra foi internada em um hospital psiquiátrico. Essas in-
formações ele obteve quando esteve outras vezes em Salvador, de pessoas
que encontrava e que tinham relações com o mundo religioso. Medeiros
hospedava-se com nome falso para que não fosse identificado como o
fotógrafo que fez as fotografias d’O Cruzeiro, disse-me que tinha medo de
ebó. Segundo ele, a mãe-de-santo teria sido assassinada um ano depois,
mas não sabia as causas do fato. Esses dados foram sendo desmontados
no decorrer da pesquisa, assim como muitas versões locais, em Salvador,
e que repercutiram e foram alimentados no meio religioso sobre a figura
de Mãe Riso da Plataforma.

O impacto em Salvador

Uma série de publicações nos jornais antecedeu a chegada da revista


em Salvador e produziu um impacto muito maior do que imaginávamos
no começo da pesquisa. O jornal A Tarde, de Salvador, fez publicar no
mesmo dia da capa da revista uma chamada de primeira página (um boxe
de dimensões consideráveis), no alto, à esquerda, anunciando a reportagem
e a chegada nos próximos dias dessa edição na cidade: “Ritual Secreto
do Candomblé. Iniciação de Filhas-de-santo na Bahia. Hoje em todas as
bancas, chegado via aérea, o novo número da Revista O Cruzeiro”.

INTRODUÇÃO 23

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Tal chamada se repetiu
também no jornal Diário de
Notícias, pertencente aos
Diários Associados, com
boxe anunciando a chegada
da revista por cinco dias
consecutivos, quatro deles
na primeira página, com os
dizeres: “Hoje em todas as
bancas, chegado, por via aé-
rea, o novo número da re-
vista ‘O Cruzeiro’ — com a
sensacional reportagem de
José Medeiros e Arlindo Silva
sobre a Iniciação das ‘Fi-
lhas-de-santo’, na Bahia —
em todas as bancas ao preço
comum de quatro cruzei-
ros”. No dia 14 de setembro
de 1951, um dia antes da
data de capa da revista, o
jornal publicou uma das
fotografias da reportagem,
criando uma expectativa
ainda mais tensa sobre o
conteúdo da matéria. A fo-
tografia publicada na con-
tracapa do jornal mostra
uma cena muito forte a um
olhar leigo, do sacrifício de um animal na cabeça de uma iaô, e a chama-
da do boxe em destaque é agressivamente apelativa: “O Deus tem sede
de sangue”, e segue uma parte do texto de Arlindo Silva contextualizan-
do a imagem, trecho literal da longa descrição publicada na revista. Pela
primeira vez, um jornal publicava uma fotografia de uma iniciação no
candomblé, o que demonstra o forte impacto da chegada da revista, pois
outros dois veículos de comunicação de massa prepararam e acentuaram
o conteúdo da reportagem. Reforçando ainda mais a reportagem, nesse
mesmo dia (14/9/1951) o jornal O Estado da Bahia também publicou em

24 IMAGENS DO SAGRADO

01 OLHO- APRES-INTRODUCAO.indd 24 2/7/2009 12:39:26


primeira página um boxe
exatamente igual aos pu-
blicados pelo Diário de
Notícias. Assim, todos os
principais jornais de Sal-
vador anunciaram a che-
gada da revista para que
nenhum leitor passasse
despercebido e incólume
pela revista O Cruzeiro.
Diz o texto do jornal
Diário de Notícias do dia
14 de setembro de 1951,
acompanhado da fotogra-
fia de sacrifício de animais
retratado por José Medei-
ros com o título apelativo
envolvendo divindades
africanas e sua “sede de
sangue”:

Esta fotografia é uma das muitas que ilustram, de maneira sensacional e


inédita, a reportagem que traz o último número de “O Cruzeiro”, já à venda
nesta capital. Refere-se às cerimônias da iniciação da filhas-de-santo em toda
a sua crueza espetacular e primitiva. Em resumo, trata-se de um autêntico e
audacioso “furo” jornalístico.
O repórter-fotográfico José Medeiros e o repórter Arlindo Silva foram os
autores da sensacional façanha. Durante longas semanas, insistiram, até con-
seguir o objetivo.

Eis um dos trechos da impressionante história:

Como a raspagem da cabeça, o ritual de flagelação foi repetido com as outras


duas “iaôs”, sempre na cadeira. Durante mais de uma hora, assistimos a esse
dilacerar de carnes ali na “camarinha”. A navalha não parava. O cheiro de
sangue se misturava com o cheiro de suor, as “filhas-de-santo” entoavam lá
fora os seus cânticos sacros, e o atabaque era um gemido rouco dentro da
noite. A “mãe-de-santo” revelava minúcia em suas incisões. A navalha feria
e o sangue brotava, quente, palpitando de vida. Por fim, a última incisão foi

INTRODUÇÃO 25

01 OLHO- APRES-INTRODUCAO.indd 25 2/7/2009 12:40:34


feita, e as três iaôs se prostraram sobre as esteiras em atitude de oração.
Víamos, diante de nós aqueles 3 corpos humanos retalhados e ofegantes, e
não entendíamos uma só palavra da prece que arrancavam de dentro de si
como roncos. De repente, a “mãe-de-santo” agitou por três vezes uma toalha
branca, e de novo os “erês” se apossaram das três mulheres, cessando a atua-
ção dos “santos”. O cerimonial servira para “fechar o corpo” das “iaôs”, li-
vrando-as do mal, e agora a porta da “camarinha” se cerraria até a madruga-
da, quando a cerimônia da “iniciação” deveria continuar. Em silêncio,
deixamos o recinto em companhia da “mãe-de-santo” e da “mãe-pequena”.
Lá fora, o atabaque já não soava. Era mais de meia-noite.

A importância e o impacto da reportagem da revista O Cruzeiro no


meio religioso do candomblé baiano podem ser compreendidos também
pelo anúncio que a Federação Baiana de Cultos Afro-Brasileiros fez pu-
blicar no dia 22 de novembro de 1951, no jornal A Tarde, quase dois meses
depois, confirmando uma temporalidade expressiva desse impacto:

A Federação Bahiana de Culto Afro-Brasileiro tem a grata satisfação de


convidar todos os terreiros, os simpatizantes do culto, a imprensa e o povo,
em geral, para assistirem à assembléia geral extraordinária, a realizar-se no
Domingo, 25 do corrente, às 14:00 horas, 1o andar, defronte à entrada do
Cinema Liceu, a fim de especialmente julgar conveniente as publicações que
foram feitas nas revistas “Paris Match” e “O Cruzeiro”, a respeito do culto
africano na Bahia.

Surpreendentemente, pela primeira vez, desde minha conversa com


José Medeiros em 1988, quando ele citou que a motivação para a repor-
tagem surgiu após ter visto uma publicação estrangeira sobre candomblé,
pude encontrar um elo perdido das informações na Paris Match. Ime-
diatamente, contatei amigos na França e consegui um exemplar ainda
em estoque nos arquivos da Paris Match, datado de 12 de maio de 1951,
que mostrava uma reportagem de Henri-Georges Clouzot na Bahia. A
reportagem intitulada “Les possédées de Bahia” (As possuídas da Bahia)
tornou-se então o encontro com a motivação fotográfica responsável
pela ida de José Medeiros para a Bahia e com o empenho desafiador em
relação a uma importante publicação estrangeira. A publicação na qual a
Federação Baiana de Cultos Afro-Brasileiros clama por uma “audiência
pública” demonstra ainda mais que nesse período existiu uma grande
polêmica animada pelos jornais baianos sobre a documentação e a pu-

26 IMAGENS DO SAGRADO

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blicação de imagens de candomblé. Recortes de jornais encontrados nos
arquivos de Pierre Verger mostram que essa acirrada discussão pública se
deu também em torno da Paris Match, e revela principalmente o fato de
que o famoso fotógrafo e etnólogo estava muito bem informado do que
acontecia, apesar de manter-se em silêncio público sobre os acontecimen-
tos. Mais à frente irei deter-me em Pierre Verger, como um contraponto
imagético e ético, e também na análise da revista Paris Match.
Seis anos então depois da publicação da reportagem de 1951, a mesma
editora da revista O Cruzeiro publicou o livro Candomblé, em 1957, com
todas as fotografias veiculadas na revista, com um acréscimo considerável
de mais algumas escolhidas por Medeiros, totalizando 60 imagens, 22
fotografias a mais. A nova forma de publicação colocou as mesmas ima-
gens em outro formato e em outra valorização. Se na revista o artifício
jornalístico era o sensacionalismo para atingir um formato popular direto
e ofensivo à religião, no livro, como indica o próprio título, as imagens
passaram a ser um material etnográfico precioso e único.
O material fotográfico coletado por José Medeiros transforma-se de
uma primeira publicação marcada por um fotojornalismo sensacionalista
em um documento etnográfico na apresentação gráfica e nas marcações
das legendas no formato livro. Meu objetivo nesta pesquisa é, inicial-
mente, discutir as mudanças de significação do material exposto acima,
aprofundando a análise das narrativas nos meios impressos em que fo-
ram publicadas. Na primeira versão temos uma profanação do espaço
do sagrado, permitido somente para os iniciados, ao torná-lo visível ao
olhar, um olhar leigo massificado pela importância da revista O Cruzeiro
na opinião pública da época. Na segunda versão, temos as mesmas ima-
gens sem o tratamento sensacionalista, mas com uma abordagem que
transparece uma aparente neutralidade na explicitação visual do ritual,
transformando-as em documento etnográfico ou “científico”, coroando-
as com uma nova aura para o sagrado profanado. No segundo momento,
apresentamos detalhadamente o foco de tensão e revolta de um senti-
mento nacional posterior à publicação da revista Paris Match, criando um
campo propício para a revista O Cruzeiro dar sua resposta. Em seguida,
percorro o território espacial e cultural no qual José Medeiros e Arlindo
Silva estiveram, na periferia de Salvador, para encontrar os resquícios
memoriais dos personagens fotografados, principalmente de Mãe Riso
da Plataforma. Pierre Verger surge em seguida como um contracampo
a esse exercício ético do fazer jornalístico e documental sobre minorias

INTRODUÇÃO 27

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étnicas. O deslocamento contextual encontra a gênese da fotografia como
realidades múltiplas, permitindo, dessa forma, significações diferenciadas,
sagradas ou profanas, conformando o que expomos conceitualmente como
fricção ritualística, em capítulo teórico final.
Os formatos de apresentação de material etnográfico nos meios de
comunicação de massa e suas conseqüências com a invasão do olhar leigo,
voyeur e massificado, muitas vezes preconceituoso e induzido pela mídia
em relação às cerimônias e rituais tradicionais de culturas locais não
globalizadas, produzem significações descontextualizadas, muitas vezes
pejorativas e elevadas ao campo do exótico e da humilhação. Entretan-
to, as mesmas imagens de cunho sensacionalista veiculadas por mídias
populares, quando descoladas do contexto jornalístico, reencontram seu
referente vivificado no seu intrínseco valor etnográfico: porém as conse-
qüências desastrosas da primeira publicação se mantêm.

28 IMAGENS DO SAGRADO

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ENCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS
ENTRE SALVADOR, SÃO PAULO E NILÓPOLIS

Casa de Jorlando1

Micênio Carlos Lopes dos Santos, antropólogo e iniciado no can-


domblé, filho de Olga do Alaketo, esteve presente nesta pesquisa desde
seu início. Mais do que um assistente de pesquisa nessa etapa da Bahia,
Micênio sempre foi um partícipe, e mesmo um parceiro com o qual
troquei diuturnamente observações, análises, estratégias e caminhos. Sua

1 Jorlando de Obaluaê, Bairro do Uruguai, Salvador (BA).

ENCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 29

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presença justifica-se pela sua inserção religiosa, sua formação antropo-
lógica e também por ter sido por seu intermédio que tive a primeira
oportunidade de ver essas imagens em 1983, e por sua sempre estimulante
sugestão de que eu fizesse esta pesquisa. Nossa estada foi um reencontro
pessoal e profissional, dois amigos, compadres e antropólogos em campo,
mesmo nos momentos de lazer nas praias de Salvador ou comendo um
acarajé pela noite no Rio Vermelho, as conversas eram os acontecimentos
do dia, as relações possíveis com as versões ou ainda as expectativas do
outro dia.
Em nossas conversas por telefone, eu sempre reiterava o nome de
Riso da Plataforma, e em um dos nossos momentos de diálogo, logo no
início de nossa estada em Salvador, Micênio, estranhando, pergunta-me:
“Placafor ou Plataforma?”. Existe um bairro em Salvador conhecido por
ter tido no passado uma grande placa da Ford que se tornou referência
espacial, e com o tempo passou a ser denominado Placafor. Micênio
pensava que Riso era de Placafor e não da Plataforma, pequenos ruídos
de comunicação, que podem mudar tudo. Imediatamente ele se lembrou
de seu amigo pai-de-santo Jorlando de Obaluaê do Bairro do Uruguai.
Jorlando viajou muito para Brasília e para o Pará, onde era convidado
para rituais e cerimônias importantes do candomblé, e ainda o é. Como
teve muita inserção no Bairro da Plataforma, achamos que seria a pessoa
ideal para começarmos a pesquisa na Bahia, principalmente para tentar
chegar diretamente às fontes primárias de informação, ou seja, pessoas
que tiveram contato com Mãe Riso, antes de tentar outras pessoas, como
a Federação Baiana de Cultos Afro-Brasileiros, que será tema de uma
visita especial depois de uma série de pesquisas, para exatamente checar
possíveis fontes fidedignas. Decidi não procurar os antropólogos baia-
nos, pois nada foi encontrado em seus escritos sobre o caso Mãe Riso,
demonstrando uma omissão em relação a esse fato ou mesmo uma forma
de interdito; assim não considerei necessária essa investigação, pois, como
afirmei, nada consta nos estudos antropológicos, em parte pelo tabu em
relação ao tema, em parte pelo fato de a área de antropologia e imagem
começar a desenvolver-se no Brasil efetivamente a partir da década de
80, afirmando-se como área da antropologia e da comunicação na década
de 90. A decisão de partir para o encontro memorial de pessoas íntimas
ou fotografadas por Medeiros foi uma opção muito feliz para a pesquisa,
encontramos uma rede viva das relações de Mãe Riso.

30 IMAGENS DO SAGRADO

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Depois de contato telefônico com Jorlando, marcamos um dia para
visitá-lo, e, ao telefone, quando citei que era amigo de Micênio, tudo
ficou muito mais fácil, principalmente quando este assumiu o telefone-
ma. Fomos muito bem recebidos, principalmente porque Micênio já o
conhecia de Brasília, como também conhecia sua trajetória dentro do
candomblé. Assim, muito da conversa inicial entre eles foi relembrar
casos e atualizar informações sobre pessoas conhecidas do candomblé,
inclusive filhos-de-santo iniciados por Jorlando, muitos renegados por
ele. Fiquei sem saber do que falavam, de quem, quando, e ainda me era
difícil entender o próprio Jorlando, pela maneira rápida de falar e também
pelo uso do vocabulário do candomblé, que não é minha área de estudo.
Vi-me rodeado por muitos termos específicos e situações importantes
que entravam pela primeira vez em minha vida por intermédio da energia
de um encontro solidário e amistoso entre Micênio e Jorlando: desde o
início o grau de afetividade entre eles era muito intenso.
Minha intenção era tentar refazer e compreender as várias versões
dessa história da revista O Cruzeiro e de Mãe Riso, das relações entre o
sagrado e o profano, quando esses campos foram interpolados pela fo-
tografia. Tive a oportunidade de ver logo na minha chegada, no terreiro
de Jorlando, um iaô na reclusão, situação que não poderia acontecer pois
não sou um iniciado, mas como a casa estava em reforma para a come-
moração dos 45 anos de iniciação de Jorlando, chegamos exatamente
quando ainda ocorriam reformas no quarto de reclusão e o iniciado estava
em um outro cômodo isolado dentro da casa, elegido como a camarinha
temporária. Micênio cumprimentou-o de forma tradicional, sendo cor-
respondido. Mais tarde, Jorlando confessou-nos em voz baixa, depois de
várias cervejas festivas do encontro, que iria passar a casa para esse novo
iniciado e que ninguém sabia ainda dessa sua decisão, e que suas filhas
e filhos-de-santo iriam ficar desgostosos, e que haveria muito polêmica
sobre isso em Salvador, segundo ele. Ele não deu uma explicação para
essa escolha, mas disse que seria melhor assim, com um recém-iniciado,
para não causar problemas com os mais velhos.
Logo em seguida fomos apresentados às pessoas que moravam na casa
e a freqüentavam, entre eles dois surdos-mudos que foram iniciados por
Jorlando. Viviam aí em virtude das atividades do terreiro, provavelmente
não teriam teto e comida fora dali. Moravam 18 pessoas no terreiro,
que era construído verticalmente. Na entrada do terreiro ficava o salão
amplo das festas e, em seguida, no fundo, alguns quartos de santo e a

ENCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 31

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camarinha. No primeiro andar estavam a grande cozinha do terreiro e os
quartos dos moradores; no segundo andar, ficava a parte de uso privativo
do casal, onde também existia uma cozinha mais familiar e os quartos do
casal e dos dois filhos. Jorlando é casado há dez anos com Mercia, bem
mais nova que ele, e com a qual tem dois filhos pequenos. Disse-me ele
que tinha 11 filhos, na Bahia e no Pará, tendo que sustentar também sua
ex-mulher que mora em frente, com seus três filhos. No último andar
ficavam os assentamentos dos santos. Portanto, a tradicional arquitetura
dos terreiros da Bahia, com amplos espaços para as casas dos santos,
algumas árvores sagradas e ervas, revelava-se opositiva com o terreiro de
Jorlando. A conversa, que se estendeu das 11 até as 18 horas, foi regada
a cerveja e muita música tocando em volume alto no aparelho de som,
e as músicas eram todas nacionais, variando do pagode ao samba, com
inserções de músicas românticas e de raiz.
Depois da longa fase de conversas entre Micênio e Jorlando, pudemos
entrar na temática e mostrei as fotos da revista para ele. Aparentemente
ele não as tinha visto antes, porque tinha somente 3 anos na ocasião
(nasceu em 1949). Mas com a presença de uma senhora que freqüen-
tava sua casa conseguiu relembrar-se de filhas de Mãe Riso que ainda
estavam vivas. Como Jorlando teve terreiro na Plataforma durante anos
e foi, segundo ele, um dos fundadores do bairro, disse que conhecia todo
o povo do candomblé da Plataforma, e que iria fazer contatos para que
pudéssemos fazer uma visita direcionada na Plataforma. Foi combinada
uma visita à Plataforma dois dias depois, para que ele pudesse ultimar es-
ses preparativos. Somente depois de algum tempo percebi que as cervejas
eram bancadas por Micênio, que a toda hora dava um jeito de colocar 10
reais na mão de Jorlando para que ele as mandasse comprar. No meio da
conversa e do convite sempre insistente para que Micênio participasse
das comemorações de seus 45 anos de candomblé, que seria no dia 17 de
agosto, este deixou escapar que ajudaria na festa e perguntou o que ele
queria, e logo recebeu de volta a proposta de bancar os bichos que seriam
sacrificados para Xangô (disse ele: “então me dá a comida de Xangô”),
orixá de Micênio, e também orixá patrono da casa, o que, comecei a per-
ceber, deveria ficar muito caro. Micênio não esperava tal proposta e não
pôde recusar-se a essa ajuda, e isso me pareceu também uma espécie de
pagamento-troca pela ajuda que ele nos iria dar para localizar as pessoas
ligadas à Mãe Riso que ainda viviam na Plataforma. O dinheiro serviu
para comprar a comida de Xangô: um carneiro, cinco galos, um “coquem”

32 IMAGENS DO SAGRADO

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(galinha d’angola), dois patos e dois pombos. Conversando depois com
Micênio, ele concordou que poderia estar correta a minha versão e que eu
mesmo deveria passar para Jorlando esse montante. De qualquer forma,
eu iria ajudá-lo, pois talvez ele ficasse dois dias inteiros conosco, perdendo
clientes que o procuravam para consultas, e cada dia ausente do terreiro
significa menos entrada de suprimentos.
Quando perguntei a Jorlando se eu poderia fotografar todo o processo
de iniciação no seu terreiro, fui surpreendido com sua resposta positiva,
e pareceu-me claro que tudo dependeria de um acordo financeiro, em
relação aos custos de um ritual. Acho que a situação aparenta ser a mesma
vivenciada por José Medeiros, que não conseguiu ou não teve chances de
propor isso nas casas tradicionais: pareceu-me que eu poderia conseguir
fazer as fotografias em uma casa não-tradicional; fiquei fortemente com
essa impressão, mas não era minha intenção no momento desta pesquisa,
quem sabe em outra ocasião. Em todo caso, eu queria saber como seria
uma proposta nesse sentido nos dias de hoje.

Casa de Jane, filha de Perrucha2

Chegamos à casa do babalorixá Jorlando, no Ilê Axé de Ajusin, como


combinado, por volta das 10 horas da manhã. Ele estava atendendo uma

2 Waldemira Oliveira Barroso (Perrucha); Janíldece Barroso da Silva ( Jane, filha de Perrucha).

ENCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 33

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pessoa e fazendo consulta, o que nos atrasou por uma hora. Segundo ele,
iríamos na casa de uma filha-de-santo que fez cabeça com ele, pois ela
mora na Plataforma há muito tempo e deveria saber algo sobre a histó-
ria de Mãe Riso. Chegamos à casa de Vicélia, mas ela não estava, e um
sobrinho seu saiu procurando-a. Depois de certo tempo, 40 minutos, ela
chegou e logo Jorlando perguntou pelo assunto e ela disse que Perrucha
havia falecido há pouco tempo. Micênio e eu entreolhamo-nos, ainda
não sabíamos quem era Perrucha, e com a conversa a identificamos como
uma das três iaôs fotografadas, o que nos deixou muito ansiosos para
irmos à casa de uma de suas filhas de sangue. O bairro, Terezinha do
Rio Sena, fica próximo de Plataforma, já quase área rural, ou nos limites
da cidade. No caminho, Vicélia falou que a filha de Perrucha tinha a re-
vista O Cruzeiro na qual saíra a reportagem de Riso, e a fala era de uma
naturalidade muito grande, com certa intimidade com o assunto, parecia
que a história de 50 anos atrás ainda estava presente na vida daquelas
pessoas. Depois de entrarmos em um beco de 30 metros, que se origina
na rua principal do bairro, passando por vielas de terra onde não entram
carros, chegamos, e Vicélia foi logo chamando por Jane ( Janíldece Bar-
roso da Silva, 37 anos), filha de Perrucha (Waldemira Oliveira Barroso).

34 IMAGENS DO SAGRADO

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Jane recebeu-nos um pouco assustada, mas com a presença de Vicélia,
sua conhecida, e de Jorlando, que ela não conhecia pessoalmente mas
sabia que era pai-de-santo respeitado na região, ficou mais à vontade.
Logo lhe foi colocado que procurávamos por informações sobre Mãe
Riso e sobre sua mãe, Perrucha. Ela buscou a revista O Cruzeiro guardada
durante 50 anos e mostrou-nos, indicando quais das fotografias eram de
sua mãe. A revista foi guardada por sua mãe durante 50 anos, com todo
o cuidado, e era considerada uma preciosidade revelada a pouquíssimas
pessoas. Fiquei emocionado, pois, apesar de ter tido outras ocasiões para
ver a revista, somente tinha em meu poder uma cópia xerox enviada pelo
setor de pesquisa da Biblioteca Nacional. Era a primeira vez que meu
olhar tinha acesso direto à revista e nas mãos da filha de uma das iaôs
fotografadas! Mesmo tendo outras duas oportunidades de ver a revista
no Museu da Comunicação Hipólito da Costa, em Porto Alegre, e na
Biblioteca Pública dos Barris, em Salvador, o destino fez com que esse
exemplar especial fosse o primeiro a se mostrar aos meus olhos.
As imagens de Perrucha foram sendo identificadas. Waldemira Oli-
veira Barroso, nascida no dia 13 de julho de 1936, portanto com 15 anos
na época das fotos, era uma das imagens mais divulgadas do trabalho de
José Medeiros. Em seguida, mostrei-lhe o livro publicado em 1957. Em
clima de muita emoção, ela chorou ao saber da dimensão que haviam
tomado aquelas imagens, para ela tudo ainda era relacionado somente à
reportagem de 1951. Mostrei-lhe um folder publicado por ocasião de uma
exposição de José Medeiros no Itaú Cultural e ela disse que a imagem
era de outra iaô e não de sua mãe.
Perrucha teve seis filhos, cinco mulheres e um homem. Ficamos sa-
bendo que morrera somente há oito meses e ainda era para a filha um
momento forte de lembranças, a qual acentuou ter tido, no dia anterior,
uma recordação muito marcada de sua mãe, sentindo sua presença. Na
conversa, outras informações foram aparecendo, entre elas a de que sua
mãe se tornou mãe-de-santo e as outras duas iaôs tinham falecido, uma
logo depois da reportagem, e outra depois de se tornar alcoólatra e ser
ajudada muito tempo por sua mãe, Perrucha. Assim, caía a versão de que
teriam sido execradas e de que não tinham tido a iniciação reconhecida,
para não falar do testemunho de que morreram de morte natural sem
terem sido internadas em manicômio.
As muitas versões do caso caíram no campo do imaginário popular
pela fonte fidedigna de informações. Como eu havia previsto, revelou-se

ENCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 35

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a importância de ter procurado as pessoas que tinham de alguma forma
participado do fato, e de ter agido com precisão ao não procurar outras
fontes em Salvador antes de ir direto a essas pessoas. As versões que
haviam sido construídas nesses 50 anos podem, de certa forma, ser enten-
didas como criações populares e talvez até mesmo ter sido incentivadas
pelos adeptos do candomblé para justificar possíveis punições atribuídas
magicamente ao evento. A versão de assassinato de Riso também não se
sustentou, pois ficamos sabendo que seu terreiro teria sido “destruído”
em virtude da publicação das fotos e ela “teria fugido” para o Rio de
Janeiro, provavelmente para a região da Baixada Fluminense, segundo
informações do meio religioso.
Algumas fontes mencionaram que ela voltava de vez em quando para
Salvador, mas teríamos de checar essas informações, uma delas, vinda de
Jorlando, de que ela tinha “tirado a mão” com o mesmo pai-de-santo que
ele (“tirar a mão” é um ritual que se cumpre depois da morte da pessoa,
mãe-de-santo ou pai-de-santo, que raspou a cabeça).
Jane, preocupada e tensa, perguntou-nos se iríamos “falar mal de sua
mãe”. Havia ainda uma lembrança das provações e provocações que Riso
e suas iaôs passaram depois da publicação da revista, como também de
pessoas que tiveram participação na feitura das imagens. Jane informou-
nos que uma irmã de sangue de Riso ainda estava viva, e marcamos uma
visita para depois do almoço. Tentei fotografar Jane com a revista O Cru-
zeiro nas mãos, mas ela disse que não estava “preparada” para as fotos e
que eu poderia fazê-lo pela tarde, ela lavava roupas quando chegamos, e
tinha um turbante muito colorido e bonito na cabeça.
Logo em seguida Jane trouxe-nos um álbum familiar. Uma sobrinha
de Perrucha recortara todas as imagens de uma revista O Cruzeiro em
que aparecia a tia e fez uma espécie de álbum de recordações, com o tí-
tulo “Lembrança de minha Epilação, editada da Revista O Cruzeiro, de
setembro de 1951”, descontextualizando dessa forma a reportagem e re-
significando as imagens no âmbito familiar. Surpreendentemente aparece
no final do álbum seu reconhecimento religioso pela Federação Baiana
de Cultos Afro-Brasileiros, com sua ficha de inscrição e sua carteirinha
de associada. A migração das imagens publicadas, recortadas e deslocadas
para o âmbito familiar, introduzia uma aproximação memorialista com
o evento religioso em si, como o próprio título do álbum sugeria, e sem
colocá-lo à parte do contexto midiático, pois as imagens mantinham o
padrão gráfico de uma publicação e o título fazia referência à revista.

36 IMAGENS DO SAGRADO

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Portanto, nesse momento, a epilação de Perrucha aparecia como uma
recordação familiar de um evento midiático, mas sem as referências sen-
sacionalistas do título da reportagem.
Jane também nos mostrou fotografias de sua mãe vestida de mãe-de-
santo em vários eventos religiosos. Essa reconstrução da história de uma
das iaôs é muito importante para compreendermos histórias pessoais
ligadas diretamente às imagens publicadas, e acredito que surpreenderá
o meio religioso do candomblé, pois, apesar de toda a polêmica sobre
as imagens e as várias versões superpostas sobre estas, Perrucha conti-
nuou imersa no mundo religioso do candomblé, sendo mãe-de-santo
reconhecida no bairro até 2002, quando morreu. O candomblé popular
tem uma dinâmica muito própria e cria redes de relação duradouras que
muitas vezes não são atingíveis pelas organizações religiosas e mesmo
pelos estudiosos.
O babalorixá Jorlando, em certo momento, perguntou-lhe se tinha
telefone e ela tristemente disse que fora “cortado” por falta de pagamento.
Ele perguntou o valor e pediu-lhe para buscar as contas atrasadas, e quan-
do ela lhe entregou, imediatamente, ele disse que tudo já estava resolvido
(senti que eu teria de pagar as contas atrasadas dela!!). Com certa ênfase
na afirmativa de que tudo estava resolvido, essa questão elevou-se para
o plano mágico e ele, Jorlando, soube muito bem conduzi-la para esse
plano, e, como eu previa, assumi a dívida dela, já em “dívida” com Jorlando,
mas agora seria ela que passaria a estar em dívida com ele. Na saída, co-
mentei com Jorlando que não gostaria que acontecesse dessa forma, e ele
calmamente me passou as contas e disse que tudo estava normal. Como
estávamos atrapalhando as atividades cotidianas de Jane, combinamos
de voltar depois do almoço para que ela nos acompanhasse até a casa de
Leleta (Angioleta Silva dos Santos), irmã de Riso.
Fomos para o terreiro de Jorlando, um pouco distante, no Bairro do
Uruguai, para almoçarmos, e ali nos esperava um verdadeiro banquete:
bode assado, caruru, galinha de xinxim e arroz. Tivemos lugar à mesa no
terceiro andar, uma mesa farta, enquanto Jorlando servia os pratos para
todas as pessoas de sua casa, uma a uma, para que a divisão fosse equânime.
Nós fomos privilegiados com uma mesa especial, acompanhada sempre
de muita cerveja; e, para não fazer desfeita, eu bebia, mas com moderação
pois ainda tinha trabalho pela tarde.
Por volta das 15h30, fomos nos encontrar com Jane, que estava arru-
mada com roupas de passeio, maquiada etc. Fomos para a casa de Leleta,

38 IMAGENS DO SAGRADO

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não muito longe, e enquanto íamos caminhando ela cumprimentava a
todos, parecia que conhecia muitas pessoas na rua, o que nos credenciava
a entrar nas vielas sem sermos incomodados ou chamar muito a atenção.
É surpreendente que, depois de tantos anos da reportagem, a rede de
relações continuava forte e as pessoas dessa rede sabiam umas das outras.
A chegada à casa de Leleta foi como a visita à casa de Jane, com intimi-
dade, pois ela foi logo entrando e chamando pelas pessoas. Chamando
Leleta por “tia Leleta”, pois era irmã de Riso, mãe-de-santo de sua mãe
Perrucha, entrou sem cerimônias pela casa afora, subindo escadas que
iam para uma casa de fundos, grande e espaçosa.
Fomos bem recebidos, iniciamos a conversa já com a perspectiva de
voltarmos outro dia, pois estávamos atrapalhando um pouco o cotidiano
da casa, era hora de uma sopa do jantar, e uma criança interrompia muito
nossa conversa. Mas algumas informações já fluíam, como a confirmação
de uma “quebra” do terreiro de Mãe Riso, com a chegada de viatura poli-
cial para prendê-la; ainda não obtivemos a fonte dessa denúncia, porém
pareceu-nos conseqüência da reportagem, e Leleta fez questão de afirmar
que Riso se recusou a entrar na viatura policial. Disse que não se lembrava
de algumas coisas e que tinha uma filha natural morando perto de São
Paulo, que tinha sido raspada por Riso, no Rio. Obtive então pela primeira
vez, depois de quase 20 anos atrás de informações, o nome completo de
Riso: Risolina Eleonita da Silva.
Leleta confirmou a saída de Riso para o Rio de Janeiro, e o fato de
que ela vivera por muitos anos e mantivera um terreiro em Nilópolis. E
ainda que sua filha, Loura, tinha mais informações sobre Riso, inclusive
com recortes de jornal por ocasião de sua morte. Percebi que a pesquisa
sobre a vida de Riso depois de sua saída de Salvador seria, necessaria-
mente, por intermédio dessa sua sobrinha. Como estava tarde, combina-
mos de voltar com calma, por sugestão de uma filha de Leleta presente.
Depois do almoço, sem a presença da criança, poderíamos ter uma con-
versa mais longa. Combinamos com Jane para que estivesse junto, pois
entendia que sua presença iria ajudar e muito nas lembranças dos detalhes,
já que, mesmo que Jane ainda não tivesse nascido quando da publicação
das fotografias (nasceu 14 anos depois), alguns detalhes ainda estavam
presentes em sua memória, mantendo viva essa história, no seu caso com
uma ressignificação das imagens.
Leleta mostrou-nos em que direção se localizava o terreiro que fora de
Mãe Riso, agora um supermercado. Para completar a mística da pesquisa,

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fomos convidados por Jane para beber cerveja em um novo bar, aberto
naqueles dias, e, ao chegarmos, perguntei a Jane: “Onde ficava o terreiro de
Riso?”. Jane apontou para a nossa frente, estávamos exatamente diante do
lugar onde ficara o terreiro, agora ocupado por um grande supermercado,
“Bom-Preço da Plataforma”, o que foi um motivo para comemorarmos
o andamento da pesquisa. Combinamos de voltar à casa de Leleta então
no dia 15 de julho, segunda. Levei meu laptop e um scanner para copiar
toda a documentação e as fotografias relevantes para a pesquisa.

Mariinha, mãe-pequena do barco das três iaôs

Tomamos a decisão de ir ao encontro de Mariinha, Maria José dos


Santos, que foi a mãe-pequena3 do barco das três iaôs; ela e Leleta eram
as duas únicas testemunhas vivas do que aconteceu com a chegada do
fotógrafo José Medeiros e do jornalista Arlindo Silva e das conseqüên-
cias imediatas da publicação da reportagem. Mariinha era a pessoa mais
próxima de Riso devido a seu cargo no terreiro de Riso, e eu acreditava
que ela saberia muitos detalhes.
Fomos recebidos com atenção na casa de dona Mariinha, principal-
mente pela presença de Jane, que se tornou uma informante preciosa e
não se cansava de estar conosco, partilhando de nossas expectativas, e
também ela obtendo assim novas informações sobre o caso. Como Jane
mantém um contato estreito com todos da casa, demonstrando que a
rede estabelecida na época ainda é muito forte e relevante, nossa entrada
foi tranqüila, e dona Mariinha, sentada na sala, recebeu-nos com muita
atenção, mas, como havia dito Jane, ela convertera-se à Igreja Assembléia
de Deus há dois anos, depois de 63 anos de cabeça raspada, e isso pode-
ria dificultar que ela falasse do passado de candomblé. De idade muito
avançada, disse-nos que não enxergava bem sentada, o que nos impos-
sibilitou de mostrar as imagens e assim tentar obter uma resposta emo-
cional no contato visual com as imagens da revista O Cruzeiro. Sentimos
logo no início que a conversa teria interditos motivados pela nova con-
cepção de vida religiosa adotada por Mariinha, pois disse ela que esse

3 Mãe-pequena ou pai-pequeno são pessoas muito próximas da mãe-de-santo que cuidam das
iaôs quando elas estão na reclusão, levando comida, ajudando nos banhos e nas trocas de roupas,
entre outras atividades cerimoniais.

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assunto era esquecido e a conversão a fez esquecer esse passado. Entre-
tanto, depois de alguma conversa, trouxe-nos sua carteira de filiação à
Federação Baiana de Cultos Afro-Brasileiros, onde consta que seu nome
é Maria José dos Santos, nascida em 18 de julho de 1918, portanto com
84 anos; seu terreiro chamava-se Oiá de Umzambe, nação Angola, situa-
do à rua R. Gervásio Cerqueira, 75, Itacaranha, Salvador, Bahia, matrí-
cula 099. Pudemos notar que a carteira da Federação estava guardada
embaixo do colchão de seu quarto, onde dorme. Mesmo estando fre-
qüentando uma religião que faz as pessoas abandonarem o passado, ela
mantinha uma relação forte com o candomblé por meio de uma forma-
lidade concreta. Essa janela com o passado, guardado, escondido, preser-
vado, na proximidade de seu corpo, na sua intimidade mais protegida,
abriu-se para algumas recordações.
Apesar dos interditos religiosos, de um lado a dificuldade de falar sobre
esse passado ainda presente na rede que se estabeleceu a partir de Mãe
Riso e a recém-conversão de outro, algumas informações fluíram.
Disse ela que o terreiro não fora quebrado e que houvera uma inti-
midação da polícia para ela ir à delegacia, confirmando a versão de Le-
leta, e Mariinha disse que não acontecera nada com Riso, pois havia um
tenente, de nome Edmundo, que freqüentava sua casa e intercedera por
ela. Não ficamos sabendo de onde veio a intimidação nem o porquê, mas
é claro que suspeitamos que fosse decorrência da reportagem. Mesmo
dizendo que não houvera o quebra-quebra no terreiro de Riso, acentuou
que Riso era hostilizada na rua, rodeada por mulheres portando navalhas,
e por pessoas ligadas ao candomblé, inclusive com ameaça de morte,
todos dizendo que houve muito ebó dos mais variados pais-de-santo e
mães-de-santo de Salvador.
Disse ainda que Riso fora enganada por José Medeiros, pois não sabia
que ele iria publicar as fotos nem que iriam fotografar tudo, evidenciando
uma contradição no seu depoimento, pois Medeiros só poderia fazer as
fotos com o consentimento de Riso, e Mariinha, como mãe-pequena,
havia acompanhado tudo de muito perto, como podemos constatar no
texto de Arlindo Silva, o que demonstra ainda alguma interdição ou
preservação da imagem, dela e de Riso, talvez um pacto de silêncio.
Afirmou que Riso não recebeu dinheiro para deixar fazer as fotos,
numa tentativa de preservar a si e Riso, pois Medeiros afirmou para mim,
taxativamente, que houve um tipo de pagamento, e essa afirmação de
Medeiros não lhe traria nenhuma vantagem, ao contrário, demonstrou

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sinceridade no depoimento. Não que Mariinha tenha sido insincera, mas
poderia estar preservando a imagem das duas, pois houve muito boato
sobre um “enriquecimento” de Riso depois da publicação da reportagem.
Afirmou também que Riso não saiu corrida de Salvador, mas por con-
vite de uma filha-de-santo, chamada Berenice, que morava no Rio de
Janeiro.
A entrevista foi muito entrecortada pelos motivos religiosos de sua
conversão, e acreditava que poderíamos ainda ter uma conversa provei-
tosa, pois não lhe tinha apresentado as imagens do livro, nas quais ela
aparece. Procurei em outra ocasião tentar nova conversa com Mariinha,
mas ela não qui nos receber, mandando dizer que não queria mais falar
sobre candomblé.
Apesar de todos os interditos e silêncios de Mariinha, suas infor-
mações davam mais corpo para encontrarmos o campo próprio dos acon-
tecimentos, longe das versões de uma atitude politicamente correta ou
mesmo religiosa, de penalizações, esquecimento e renegação de Riso.

Nova visita à casa de Jane

Em seguida à visita à casa de Mariinha, fomos para a casa de Jane e


copiamos o álbum preparado a partir da revista O Cruzeiro, destacan-
do a sua mãe. Jane apresentou-nos também cinco álbuns pequenos de
recordações de festas de sua mãe, e escolhemos dez fotos dessas festas
e rituais, as quais digitalizamos com as referências devidas: “Obrigação
de Obaluaê e Iansã”, “Festa do caboclo”, “Confirmação de equede”, e o
“Último candomblé”, um mês antes de ela morrer, uma obrigação de três
anos de Oxum de um filho-de-santo de Perrucha.
Passados dois dias, voltei a telefonar para Marilene (Loura), filha
de Leleta, para ter uma resposta sobre nossa entrevista com sua mãe e
ela. Mesmo sendo cordial, pediu-me para ligar em outro número e falar
com um certo doutor Paulo, e não ficou claro qual seria a relação dessa
pessoa com Marilene, se era um cliente ligado a seu terreiro, seu patrão
ou vizinho. Liguei imediatamente e conversei com doutor Paulo, que
se apresentou como advogado e amigo da família, e disse-me que eram
pessoas simples e ele se dispusera a saber melhor o que queríamos. A
conversa fluiu bem e ele pareceu-me convencido de nossas intenções e

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disse que ligaria para Marilene. Liguei duas vezes para Marilene e não
obtive a autorização para entrevistar sua mãe.
Durante a espera da confirmação do depoimento de Leleta em Salva-
dor, almoçamos com Jane na feira São Joaquim e combinamos “um feijão”
baiano em sua casa. Como ela está desempregada, dei-lhe R$ 20,00 para
fazer as compras, que me pareceu uma feira para além do feijão; devido
a sua disposição em comprar ingredientes, saiu com uma sacola cheia e
pesada de carnes (o feijão servido dias depois estava delicioso); combi-
namos também uma conversa nesse dia com ela e sua irmã conhecida
por Mosquito, apelido que teve desde o nascimento, por ter sido muito
pequena. Essa conversa com Mosquito acabou não acontecendo.

Visita à Federação Baiana dos Cultos Afro-Brasileiros4

A Federação fica localizada agora no Pelourinho, e na sua entrada


fomos recebidos por uma pessoa com certo ar de segurança. Identifica-
mo-nos e tivemos de aguardar na calçada. Ele subiu uma longa escadaria
para nos anunciar e em seguida fomos autorizados a subir. Esperamos
por pouco tempo em uma sala de onde podíamos observar que várias
pessoas trabalhavam: parecia um pouco com uma repartição pública não
modernizada, algum ar de burocracia antiga, móveis velhos, retratos na
parede e certo clima de assistencialismo. Entre as imagens na parede da
sala de espera havia um retrato de Antônio Carlos Magalhães. Fomos
recebidos pelo senhor Antoniel Ataíde dos Santos, que nos informou
sobre o funcionamento da instituição, o número de associados (3 mil) e
o número aproximado de terreiros existentes na Bahia (7 mil somente
em Salvador). A conversa concentrou-se sobre fundamentos religiosos
do candomblé, principalmente depois da apresentação de Micênio como
sendo oriundo de uma casa tradicional da Bahia. Sobre possíveis infor-
mações documentais, a visita foi frustrante, pois eles não tinham essa
documentação antiga, que não era sistematizada, e disse que somente uma
pessoa, um dos fundadores da Federação, senhor Esmeraldo Emetério de
Santana, ainda vivo, poderia ter algum documento da década de 50. A

4 A Federação Baiana dos Cultos Afro-Brasileiros mudou seu nome para Federação Nacional
dos Cultos Afro-Brasileiros.

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Federação foi fundada em 1946 com a intenção de descriminar a prática
dos cultos afro-brasileiros, que estavam sujeitos à Delegacia de Jogos e
Costumes, e exigia muitos procedimentos burocráticos para autorizar o
funcionamento de um terreiro. Disse-nos ainda que era comum aparecer
nos quadros de marginais da delegacia a presença de retratos de pais-de-
santo. Assim, as primeiras gestões da Federação tiveram o objetivo de,
segundo ele, retirar os cultos afro-brasileiros do foco policial. Pareceu-
nos, então, que uma das primeiras assertivas públicas da Federação sobre
fundamentos religiosos e sua prática se deu exatamente sobre o caso das
fotografias das revistas O Cruzeiro e Paris Match.
Sobre documentação, mostrou-nos um prontuário recente, que come-
çava na década de 80, de uma mãe-de-santo, no qual se podia verificar
um cadastro de todos os cerimoniais, da iniciação ao rito funerário de
uma pessoa dentro de um candomblé, mas isso podia não ter efeito, pois
teríamos de cruzar muitas das obrigações com outros terreiros, pois elas
podiam ser realizadas por diferentes pais-de-santo. De qualquer forma,
não deixava de ser um registro importante, ainda que embrionário, pois
todos os pais-de-santo e mães-de-santo teriam de informar todos os seus
passos, o que me parece muito improvável, talvez os livros próprios dos
terreiros sejam mais confiáveis, ou pelo menos contenham mais dados.
Quando falei das imagens sobre as quais estava procurando infor-
mações, ele talvez não tivesse entendido direito e passou a falar que o
candomblé não tinha uma iconografia ou culto a imagens, o que me
pareceu contraditório, com a forte presença de signos visuais da religião
e sua própria origem sincrética com as imagens do catolicismo. Acho
que ele estava se referindo diretamente aos procedimentos ritualísticos.
Percebendo que não estávamos falando do mesmo assunto, resolvi mos-
trar-lhe as imagens de Medeiros e pudemos verificar que ele não as
conhecia, e novamente se referiu ao senhor Esmeraldo, conhecido por
Benzinho, como a pessoa indicada para falar sobre elas. Antes disso,
referiu-se ele a certa imagem fotográfica de uma pessoa em uma bacia
com o corpo coberto de sangue, não sendo a primeira vez que essa ima-
gem era citada em entrevistas. Tal fato nos chamou a atenção para um
caso que estava sendo de certa forma renegado. Antes da viagem para
Salvador, nos preparativos e no planejamento, e nos contatos telefônicos,
apareceu nas histórias do candomblé certa pessoa chamada Lulu (Ebo-
me Lulu), que achávamos que seria uma das iaôs fotografadas por Me-
deiros. Lulu viveria à margem de um terreiro tradicional e seria susten-

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tada por uma famosa mãe-de-santo. Entretanto, com as várias entrevistas
de pessoas diretamente envolvidas nas imagens de Medeiros, pudemos
identificar as três iaôs fotografadas por ele, e não constava nenhuma
Ebome Lulu. Outra referência que tínhamos era um guia, chamado de
Chico Monalê, que teria levado Medeiros até o terreiro de Riso, que
também não apareceu em nenhuma das entrevistas. Por várias vezes o
nome de Chico Monalê apareceu como o guia de Medeiros. Esses dois
fatos nos permitiram formular a hipótese de que as fotos da Paris Match
seriam as imagens que as pessoas do meio religioso citam como simu-
lação do ritual ao qual esses personagens estariam diretamente vincula-
dos. Nesse momento da pesquisa, a chegada da revista em minha casa
em Campinas era eminente, e talvez elucidasse um elo importante des-
sa história. Caso fosse confirmada essa hipótese, ainda mais com a fala
de Medeiros de que foram essas imagens e essa reportagem que o mo-
tivaram a revelar o que chamou de verdadeiro candomblé, a pesquisa fe-
charia seu ciclo, ou seja, poderíamos entender todo o processo. Como
não conhecia as imagens e o teor da reportagem, fazia-se necessário que
isso acontecesse exatamente nesse momento importante do trabalho de
campo. Outra questão que talvez Seu Benzinho pudesse esclarecer é
sobre como a Federação tomou conhecimento da reportagem da Paris
Match, pois, em relação a O Cruzeiro, era possível compreender o seu
acesso à reportagem, já que a revista tinha importância nacional e tam-
bém pela prévia divulgação que pudemos constatar nos dois jornais mais
importantes de Salvador, A Tarde e Diário de Notícias, inclusive com a
publicação da fotografia da iniciação e das várias chamadas sobre o as-
sunto, como vimos no início.
Abriu-se uma nova frente importante na pesquisa, pois a relação entre
as duas reportagens nas diferentes revistas estava na motivação inicial de
Medeiros e no cerne das discussões no meio religioso, e podemos ainda
ter a discussão de uma contraposição entre verdade jornalística na docu-
mentação de Medeiros e na simulação da Paris Match.
Fechando a entrevista com o secretário da Federação, perguntei-lhe
o que faria a Federação caso imagens semelhantes fossem publicadas em
um jornal ou em uma revista de âmbito nacional. Ele nos respondeu que
o pai-de-santo, ou mãe-de-santo, seria chamado para uma conversa com
a presidência e poderia ser penalizado até com a expulsão, se o caso fosse
para o Conselho Sacerdotal da instituição. Aparentemente, a posição da
Federação seria muito mais branda do que a expressada em 1951, talvez

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em virtude de outras dinâmicas da própria Federação, como sua partici-
pação no plano político-partidário.

Entrevista de Leleta5

Depois de vários telefonemas para sua filha natural Marilene — cha-


mada de Loura — que morava em São Paulo, fizemos uma entrevista
gravada com dona Leleta, irmã de Riso. A fala de Leleta tornou-se o de-
poimento mais importante de todos. Loura, por outro lado, seria elemento
vital para obtermos informações sobre sua vivência no Rio de Janeiro,
pois foi com apenas 7 anos morar com sua tia Riso, em Nilópolis, e fez
cabeça com ela aos 8 anos. Fomos muito bem recebidos por dona Leleta

e pudemos ter uma entrevista agora legitimada pelos vários interlocuto-


res intermediários da conversa, e ela estava muito tranqüila e à vontade.
Seguem os principais trechos de seu depoimento, no qual não quis fazer
muitas alterações para manter a autenticidade das informações:

5 Angioleta Silva dos Santos, irmã de sangue de Riso.

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Riso revelou o que nenhum pai-de-santo quis revelar... então, quando eles
[ José Medeiros e Arlindo Silva] chegaram lá na casa dela... foi na casa daquela
mãe-de-santo de lá... Astera... Astera, então informou a minha irmã Riso
sobre os jornalistas... então Riso aceitou... eles levaram na base de uns oito dias
lá, sem sair de lá para nada, todos passos que Riso dava, eles também davam
atrás para poder escrever tudo, para registrar tudo, até para ir para dentro do
quarto do santo, que não se entra quando se tem “recardoria” [reclusão], eles
entraram para ver tudo como era, e Riso disse tudo, tudo, tudo... então foi por
isso a revolta dos pais-de-santo, porque ninguém revelava, parecia um bicho-
de-sete-cabeças que não era, não é? Aí ela revelou, então os pais-de-santo
ficaram tudo com raiva... tentaram matar ela... porque, naquele tempo, isso
aqui não tinha pista, daqui para ir lá na Ilha Amarela era mato, só tinha um
caminho, era um caminho só, não tinha transporte nada, e Riso morava lá, aí
eles [os pais-de-santo] ficavam no caminho para ver se tentava emboscar ela,
mas nunca conseguiram... ela só sabia que estava sendo ameaçada, e eles, os
pais-de-santo, deram queixa na 1a Delegacia de Polícia... aí veio uma viatura
da polícia buscar ela, aí ela disse: “eu vou mas primeiro vou trocar de roupa...”,
entrou dentro do quarto do santo dela, depois foi na casa de Exu, porque ela
tinha santo de nascença, aí quando ela voltou eles disseram: “nós não vamos
levar você aqui dentro, depois você vai em outro carro”, depois que eles foram
embora, ela pegou outro carro e foi para a delegacia... quando chegou lá, eles
não fizeram nada porque o delegado só recebia telefonema que dizia para não
tocar nela, não fizesse nada contra ela, então ele não podia fazer uma pergunta
porque era só telefone tocando. Ele então disse: “a senhora vai embora porque
a senhora é tão querida que é um tanto de telefonema para não tocar a mula
e não fazer nada com a senhora, agora o dinheiro que a senhora pegou é tão
pouco que se a senhora precisar de advogado o dinheiro não dá”. Naquele
tempo foi besteira, naquele tempo dava na base de R$ 60,00 [Cr$ 60,00
na época] então ela vendeu lá [o terreiro] da Ilha Amarela e comprou uma
roça aqui, que é o lugar da pista hoje na Plataforma, comprou um terreno
enorme e fez uma casa de candomblé ali [apontando para o supermercado
Paes Mendonça]. Naquele tempo não tinha pista, era mato, isso tudo em
1951 era mato... aí eles [os policiais] perguntaram quando tinha festa lá no
candomblé, ela respondeu: “se o senhor puder ir, sábado estou fazendo uma
festa”, ela então preparou uma festa com tudo, e quando foi no sábado da
mesma semana eles chegaram com umas três viaturas, cheia de polícia para
apreciar o candomblé e comer, depois disseram a ela: “quando tiver festa me
convide que estou aqui”, isso lá ainda na casa antiga da Ilha Amarela, então
com a polícia acabou o problema. Os pais-de-santo não puderam fazer nada
contra ela porque ela tinha santo, tudo acalmou... ela foi ameaçada porque
achavam que tinham descoberto o segredo [...] ela decidiu ir para o Rio depois

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de muitos anos, ela ficou aqui, e ela tinha um irmão de criação que tinha lá,
ela resolveu ir para o Rio [...] abriu uma casa e eu fiquei morando na casa, a
casa dela aqui... [no terreiro da Plataforma] quando veio passar essa rodagem,
a casa era bem na pista, então ela foi indenizada, Riso veio para receber os
papéis, receber a indenização e foi embora de novo para o Rio.

Assim, a versão de que o terreiro de Riso fora “derrubado”,“quebrado”,


na verdade foi uma simples decisão estratégica de traçado de vias ur-
banas.

[...] Riso dizia que não tinha medo sobre toda essa história, não tinha feito
nada demais, que o santo não tem mais segredo... ela fez aquilo com autori-
zação do santo, porque ela tinha santo mesmo, porque se ela fizesse alguma
coisa que o santo não quisesse... uma vez ele [o santo] deixou ela muda! Ela
não falava de jeito nenhum... ela voltou a falar depois de muito tempo... ela
só fazia o que o santo quisesse... então o santo autorizou fotografar... ela fez
com autorização dos orixás dela... depois que ela foi para o Rio, lá ela abriu
casa, tinha bastante prestígio... aqui ela tinha muito filho-de-santo porque
ela era famosa mesmo [...] Riso não teve prejuízo nenhum, aqui ela não teve
e lá no Rio ela também não teve, tinha muito filho-de-santo, tinha de tudo
dentro de casa, não precisava trabalhar...

A fala de Leleta demonstra que Riso não teve “prejuízos” com a pu-
blicação das fotos, mas foi muito hostilizada, e afirmou que é “mentira”
que a casa dela foi quebrada.

[...] depois que ela quis ir para o Rio porque tinha o irmão de criação lá, e
eu mesmo fiquei na casa dela aqui em Salvador, eu mesmo que desmanchei
o quarto de santo porque ela não ia voltar mais, chamei os filhos-de-santo,
entreguei o de cada um... porque eu vivi dentro da casa de candomblé desde
menina, como ela, mas não sou de candomblé, embora tenha um bocado de
filho, tudo de candomblé [...]. Quando ela foi para o Rio, ela deixou tudo aí,
o terreiro... e quando ela se deu bem e deu para ela por lá ficar... então ela só
me deixa ficar tomando conta da casa [...]. Ela desde menina que era muito
perturbada com esses negócios [Riso tinha visões] e minha mãe detestava,
ela ia para casa desse irmão de criação dela e de lá ela ia para a casa de uma
mãe-de-santo de São Caetano, Idalisse da Ilha Amarela, minha mãe não
sabia. Idalisse foi a mãe-de-santo dela... então, quando foi um dia, minha
mãe foi para a cidade, e veio um rapaz que tava com Riso, mas Riso não
veio... ele disse que ela tinha bolado e que ela tava lá [no terreiro de Idalisse]

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e o santo não queria levantar, e ela tinha bolado nessa casa pelo menos umas
três vezes e mamãe não sabia, ela era de Oxóssi, então ela fez o santo, minha
mãe nunca foi lá porque não gostava, só meu pai que ia às vezes... antes de
fazer o santo ela via mesmo, mamãe levava ela para o caminho e ela não
queria seguir adiante, dizia: “não pode passar, não pode passar...”. Ela via um
cavaleiro, dizia que tinha um cavaleiro na sua frente que não a deixava pas-
sar... isso com uns 13 a 14 anos, ela tinha vidência, aí mamãe voltava, chegou
a fazer promessa para Santo Antônio para ela não entrar nisso [...]. Ela
trabalhou muito novinha na fábrica na União Fabril de São Brás, ainda não
era de candomblé [ainda não tinha terreiro]. Aqui na Plataforma mesmo, a
fábrica está desativada agora... com menos de 15 anos, naquela época era
fácil se empregar [...]. Riso não casou, teve um filho, que já morreu, ele
morreu num mês de novembro, quando foi o dia 1o de janeiro ela morreu,
ela estava doente, diabética, então a paixão que era o filho único... o filho
morava com ela ... nasceu aqui justamente na obrigação daquela moça que
veio do Rio, teve de suspender a obrigação que ia começar pois Riso estava
barriguda, aí adiou a obrigação, nasceu no dia 4 de dezembro... ela tá com
sete anos de morta.

Pela primeira vez pudemos ter a confirmação da morte natural de


Riso.
Perguntada sobre o fato de dizerem que Riso teria sido assassinada,
Leleta disse:

Isso é uma confusão porque Loura viveu muitos anos com a mãe-pequena
dela e a mãe-pequena é que foi assassinada, por uma filha-de-santo... lá em
São Paulo [...]. Se você for para São Paulo e procurar minha filha, Loura,
ela tem tudo, tem fita, foto, lá da casa do Rio, tem tudo... tem o jornal com o
enterro dela com 600 filhas-de-santo, todas de alvo... ela [Loura] foi para lá
com 8 anos de idade, na casa de Riso, ela é gêmea de Marinalva, a Morena...
ela com 6-7 anos era uma menina que se assombrava muito, quando era de
noite ela ficava assombrada, via um velho com um cachorro, então quando
minha irmã, Riso, veio do Rio, passear, naquele tempo era de navio, aí eu
disse “leva a Loura porque ela puxou a você, ela não puxou a mim, porque
aqui eu não vou metê-la no candomblé”, ela chegou e levou. Aí mais de oito
meses ela não sentia nada, me escreveu uma carta dizendo que ela ia voltar
porque não sentia nada lá... eu disse a Riso: “é porque você foi de navio e o
santo dela vai a pé...”. Aí quando Riso foi recolher um barco de seis pessoas,
quando viu, o santo dela baixou, e fez o santo com 8 anos de idade.

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Leleta conta que não registrou Loura e Riso fez o registro no Rio de
Janeiro com se fosse sua mãe, tornando-se ela [Loura] sua única herdeira
depois da morte do filho de Riso.

A Riso vinha muitas vezes passear aqui em Salvador, e não freqüentava outras
casas de candomblé aqui, só ia na casa de Mariinha... o povo que procurava
ela, quando tinha candomblé aqui, vinha muita gente mesmo, era muita gente
mesmo, era famosa mesmo, era o candomblé mais famoso da Plataforma [...]
Riso começou a olhar desde quatro anos de feita, ela não tomou logo o decá,
a Riso tomou o decá depois de velha... o candomblé agora tem valor.

Leleta conta que o cargo de Riso seria uma herança de seus avós afri-
canos, pois quando eles chegaram disseram que o cargo seria passado
para um parente distante e não para os filhos, e o cargo ficou para Riso.
Ao mostrar o livro de José Medeiros, mais uma vez ninguém ali o
conhecia, houve identificação das iaôs nas fotografias, como uma memória
muito viva ainda de um evento de 50 anos atrás, e, sem titubear, foram
identificando cada uma delas. Confirmou-se que não são diretamente
ligadas à iniciação, foram feitas em outro terreiro, e, vendo as imagens,
Leleta disse: “Não era conhecido pelas pessoas”, nunca souberam da
existência do livro. Houve identificação das iaôs, de alguns fundamentos
do candomblé, identificação de outras pessoas não importantes para a
pesquisa, confirmou-se que algumas fotos foram feitas em outro lugar e
não no terreiro de Riso.
Leleta fez comentários sobre fundamentos, já que, mesmo não sendo
iniciada, viveu muito tempo dentro do meio religioso, demonstrando
conhecimentos profundos sobre candomblé. Diz ela olhando para uma
foto de sua irmã: “Olha a atenção de Riso para raspar a cabeça, não é?...
Riso era bonita, não é?”.
Vendo um telhado que aparece em uma foto no livro, Leleta não o
reconhece como sendo do terreiro de Riso porque, segundo ela, os dois
terreiros eram cobertos de palha: “quando ia para o Rio e quis colocar
laje no barracão, o santo não deixou”.
Leleta conta de uma ida de Idalisse, mãe-de-santo de Riso, para o
Rio, quando houve um sacrifício de um boi para uma obrigação dela no
terreiro de Riso em Nilópolis. Ela colocou o boi com as patas para cima
e Riso o desvirou e fez logo outro trabalho porque o santo dela era forte.
Diz que “Idalisse não se conformava de Riso saber tanto, mas ela [Riso]

ENCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 51

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freqüentava candomblé desde pequena e desde os quatro anos de feita
que ela olhava e fazia trabalho, de nova no santo”.
Leleta diz que Riso não comentava muito sobre as fotos d’O Cruzeiro
e que Nieta, uma das iaôs, bebia muito, morou em sua casa quando se
mudou para o terreiro de Riso, e também morou na casa de Perrucha.

Conversa telefônica com Pai Benzinho

Conforme indicações do senhor Antoniel Ataide dos Santos, secre-


tário da Federação, tentamos entrar em contato com Pai Benzinho, Es-
meraldo Emetério de Santana, pelo telefone que nos passara, mas era
número errado e conseguimos seu telefone pelo Auxílio à Lista. Na pri-
meira tentativa, pediram-nos para ligar e falar diretamente com o filho
e somente na segunda tentativa, ainda com desconfiança, passaram o
número correto após explicações sobre nossas intenções.
Na conversa com Pai Benzinho, apresentei-me e tentei marcar uma
conversa, mas ele foi enfático em dizer que não conversa mais com “jornalis-
tas”, não dá entrevistas, pois muitas pessoas ganham com isso e ele somente
se desgasta. Ele está atualmente com 87 anos. Quando insisti no assunto
específico da pesquisa, as imagens da revista O Cruzeiro e uma revista es-
trangeira que publicara fotos de iniciação. Ele disse que estava velho para
se lembrar desses fatos acontecidos há muito tempo, e perguntei-lhe se
conhecia a Mãe Riso da Plataforma. Ele disse as seguintes palavras: “Essa
mulher aprontou o diabo, saiu fugida da Bahia para o Rio de Janeiro, não
sei se está viva ou morta, se estiver viva que o diabo a carregue”.
Essa explosão verbal demonstrou que a história ainda estava viva
em sua memória, mesmo ele não querendo mais falar de candomblé,
pois, segundo ele, estava aposentado e disse que teríamos de procurar a
Federação, acentuando a existência de um processo seu, um prontuário,
com toda a sua vida na Federação. Tudo indicava que ele tivera uma
participação direta nos acontecimentos, já que era uma das pessoas mais
importantes da Federação na época.

Visita ao terreiro de Mãe Cutu

Margarida Nayr da Anunciação, conhecida como Mãe Cutu, Ajicutu,


“aquela que acorda cedo”, ou que vê antes as coisas, teve origem em uma

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das casas mais tradicionais de Salvador, a Casa Branca, e em contato tele-
fônico disse que sabia de uma história relacionando um tal Chico Monalê
com Ebome Lulu, e que poderia estar ligada com as imagens das revistas,
pois a tão falada imagem da pessoa dentro da bacia novamente foi citada.
Fomos muito bem recebidos por ela no bairro da Mussuranga, periferia
de Salvador. Mãe Cutu não quis que a entrevista fosse gravada. Ela co-
nhecia muito bem Ebome Lulu, disse que não sabia notícias dela e que
perguntava para as próprias filhas de Lulu e elas não tinham informação
da mãe. Mãe Cutu contou detalhes da vida de Lulu desde sua infância, o
que demonstrava que a conhecia muito bem, sendo elas do mesmo barco,
assim, transmitiu-nos que tinha uma afeição muito grande por Lulu. Esse
fato relatado a credenciava a tentar reconhecer Lulu nas fotos.
Pensávamos que a imagem da bacia poderia ser uma das que foram
publicadas na Paris Match, pois em uma das fotos aparece uma bacia. Pois
bem, Mãe Cutu não reconheceu ninguém nas imagens, as quais também
não eram de seu conhecimento, nunca as tinha visto antes, o que eliminou
a hipótese de as imagens serem de Chico Monalê e Ebome Lulu, que
agora se tornaram menos importantes para a pesquisa, ainda mais porque
a imagem sempre citada da pessoa dentro de uma bacia com a cabeça
raspada não apareceu em nenhum momento dela.
Essas imagens acompanharam a pesquisa desde a preparação da via-
gem e agora se tornavam somente uma citação que muitos relacionam
com Riso, como vários acontecimentos desagradáveis do candomblé da
época são vistos dentro do imaginário popular como ligados às imagens
de O Cruzeiro e a Riso.

ENCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 53

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A revista Paris Match será analisada dentro de sua narrativa visual e
textual como elemento de motivação para Medeiros e também como
motivação para a discussão das imagens de iniciação de candomblé na
mídia impressa da época por parte da Federação.
Alguns detalhes importantes da conversa com Mãe Cutu:
1. Não reconheceu as pessoas da Paris Match.
2. Reconheceu Joana de Ogum em uma das fotografias, na qual quatro
pessoas estão levando um presente para Iemanjá. O presente de Joana
de Ogum era muito concorrido e famoso. Reconhece também o te-
lhado em uma das fotografias como sendo a casa de Joana de Ogum,
pois, como vimos na entrevista com Leleta, o telhado do terreiro de
Riso era de palha. Caracteriza-se então que Medeiros fotografou as
imagens complementares publicadas no livro de 1957 em Salvador
mesmo, provavelmente nas suas outras viagens posteriores à época
das fotos feitas para O Cruzeiro.
3. Em uma das únicas vezes que citou Riso, Mãe Cutu disse a seguinte
expressão: “Deus perdoa seus pecados, Riso!”, deixando que o perdão
aconteça no plano espiritual somente, e quando da afirmação de que
Riso teria consultado seu orixá, Oxóssi, disse ainda: “Não consultou
Oxóssi, não!”.
4. Mãe Cutu contou-nos uma passagem de sua vida relacionada direta-
mente com a revista O Cruzeiro, disse ela que era a primeira vez que
via a revista com calma e atenção, pois, quando era ainda pequena,
não iniciada, e freqüentava o terreiro onde raspou a cabeça, entrou
um dia no barracão do terreiro e viu uma revista em cima de uma
mesa. Começou a folhear, vendo algumas imagens. Estava sozinha
nesse momento, mas em seguida uma pessoa mais velha da casa
chegou e tomou-lhe a revista de sua mão de forma muito agressiva
dizendo que ela não poderia ver aquelas imagens, o que demonstra
uma interdição visual para não-iniciados, e também ela própria citou
os problemas que imagens de iniciação podem causar para os inicia-
dos após saírem da reclusão, pois nesse momento estão em transe e
não se lembram de nada do que se passou; alertou para problemas
de ordem pessoal e psicológica que podem surgir dessa situação.
5. Cantou-nos uma cantiga da época que está diretamente ligada a
Riso. Quando lhe dissemos o nome da mãe-de-santo de Riso, ela
cantou o seguinte:

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as muzenzas de Adalisse
nuas na frente do guarda,
as muzenzas de Adalisse
vão levar borrachada

“Muzenza” significa iaô, ou seja, “[...] as muzenzas de Idalisse” evoca


as iniciadas por Idalisse. Essa cantiga evidencia que Riso e, mais ainda,
sua própria mãe-de-santo se tornaram personagens de cantigas populares
em razão das imagens da revista O Cruzeiro, e pelo fato de que Riso teve
de ir para a delegacia prestar esclarecimentos, com denúncia provável
originada nas pessoas da Federação, como já citara Leleta.

6. Mãe Cutu disse que em sua casa de origem, Casa Branca, e na sua
própria, não deixava que as pessoas iniciadas utilizassem cadernos
de anotações durante o processo de iniciação, permitindo, assim, que
o aprendizado se realizasse por intermédio da comunicação oral,
como é tradição no candomblé. O caso da revista O Cruzeiro deve
ser considerado dentro desse mundo da oralidade, mas uma oralidade
paralela à tradição, fora do contexto religioso e dentro do cotidiano
da religião, fazendo com que muitas pessoas que não tiveram contado
direto com Mãe Riso lhe associem muitos fatos correlatos ou mesmo
trágicos e escandalosos do candomblé que aconteceram na época.
O caso de Joãozinho da Goméia, pai-de-santo muito questionado
naquela época por suas atuações e aparições na mídia, surgiu em
muitas citações como ligado ao caso da revista O Cruzeiro.

Segunda visita à Federação Baiana de Cultos Afro-Brasileiros

Com a chegada da revista Paris Match pelo correio e pela primeira


vez aos nossos olhos, retornamos à Federação Nacional dos Cultos Afro-
Brasileiros, antiga Federação Baiana dos Cultos Afro-Brasileiros, para
conversar com o secretário que havia também citado a tal fotografia da
bacia, mas ele não reconheceu as pessoas das fotografias, o que me levou
a acreditar na inexistência de tais imagens, e, como eu disse, alguns fatos
acabaram sendo relacionados a Riso pelo imaginário popular e religioso.
Também vimos o prontuário de Pai Benzinho, conforme ele nos indi-

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cara, mas somente constavam dados de seu itinerário pessoal dentro do
candomblé.
Fomos levados a conversar com outra pessoa dentro da Federação,
uma pessoa mais nova e com muita fluência que também não conseguiu
reconhecer as pessoas da Paris Match e via pela primeira vez todas as
imagens. Contou-nos que poderia haver uma pessoa chamada Lili entre
as imagens, que sabemos não ter sido identificada pelas pessoas mais
diretamente ligada às fotos da O Cruzeiro, e depois disse que Lili ficou
conhecida por um acontecimento nessa mesma época, dentro de sua casa
religiosa, quando algumas iaôs, incorporadas pelas entidades infantis,
fugiram da camarinha e acabaram realizando furtos com conseqüên-
cias trágicas para uma delas. Tal citação reafirma o imaginário popular e
religioso que tenderia a ligar Riso com várias passagens que de alguma
forma “sujam” a imagem pública do candomblé. O interessante é que,
mesmo sendo uma pessoa muito nova, sabia quem tinha sido Riso e o
que ela fizera. Como um jovem envolvido com as propostas da Federação
e também preocupado com a memória e a história do candomblé, sabia
da história de Mãe Riso e de sua principal filha-de-santo, Perrucha, que
ele disse ter conhecido, o que evidenciava que os fatos da década de 50
estavam tendo uma releitura pelos mais novos, e não manifestou também
nenhuma reprimenda em relação a Riso.
Interessante sua resposta à minha pergunta sobre a publicação nos
dias atuais de imagens semelhantes às publicadas pela O Cruzeiro em
1951. Disse ele que o problema hoje é o uso que essas imagens poderiam
ter por parte dos evangélicos, principalmente pela Igreja Universal do
Reino de Deus, ou seja, ele está mais preocupado com os ataques que o
candomblé sofreria da Igreja Universal do que com uma “revelação de
segredo”. E ainda disse que a publicação poderia levar muitos adeptos a
deixar o candomblé, que estaria perdendo influência devido exatamente
aos ataques e ao conseqüente crescimento dos evangélicos.

Conversa com Sissi, Nancy de Souza

Com 63 anos de idade, Sissi tinha na ocasião das imagens de O Cru-


zeiro somente 12 anos. Recebeu-nos na Fundação Pierre Verger, onde
trabalha, e contou-nos muitas histórias do candomblé e sobre seus fun-
damentos, revelando um vasto conhecimento sobre o assunto. Sua he-

56 IMAGENS DO SAGRADO

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rança espiritual e intelectual está diretamente ligada à história de Pierre
Verger, com quem viveu durante muitos anos, e a ele refere-se sempre
com muita reverência.
Ela conheceu Riso em 1962, no estado do Rio de Janeiro, quando
estava presente em um terreiro na Baixada Fluminense, para ver a saída
ou a Festa do Nome de uma iaô (nação Angola). Disse que Mãe Riso
chegou seguida de um séquito de pessoas e logo à sua chegada o pai-de-
santo da casa lhe perguntou: “Você conhece ela? Aquela que foi expulsa
da Bahia, que deixou o Cruzeiro fotografar?”.
Mais uma vez apareceu a fala sobre uma “expulsão” de Riso que não
somente correu a Bahia, mas o mundo do candomblé. Disse que ela che-
gou trajando uma saia justa, conhecida na época como “costume”, ves-
tindo uma camisa masculina listrada, com suas contas de Oxóssi, seu
orixá. Notou que ela tinha olhos esverdeados, como “olhos de gata”. Ti-
nha também um anel de ouro no dedo com a imagem de São Jorge, que
aparece em uma das imagens da revista O Cruzeiro. Sissi insinuou por
meio de um movimento de ombros a chegada de Riso no terreiro, indi-
cando sua preferência sexual, o que depois confirmou em fala baixa. Sa-
bia ela que Riso tinha uma história controversa, mas não deixou de pro-
ceder aos ritos de obediência hierárquica, mesmo sendo de uma casa
tradicional (Casa Branca), indo ao seu encontro para tomar bênção das
mãos de Riso. Esse fato demonstra que Riso superou qualquer dúvida
sobre sua história dentro do candomblé, confirmando as palavras de sua
irmã Leleta de que não foi prejudicada depois da publicação das imagens
na O Cruzeiro. Sissi ainda falou com muito respeito em relação a Riso,
dizendo que ela era uma mulher muito séria, e citou exatamente uma
fotografia publicada para comprovar suas idéias, comentando: “olha como
ela está atenta na raspagem da iaô”, detalhe que havíamos notado antes
e, é claro, por intermédio do perspicaz olhar fotográfico de Medeiros.
Mesmo assim, reafirmou a versão de que Riso teria saído “descarregada”
para o Rio depois que saiu a revista O Cruzeiro, citando até mesmo o
nome do navio em que ela teria embarcado, Comandante Capote. Sissi
informou-nos que não havia muitas relações entre os terreiros da cidade
alta com os terreiros da cidade baixa, assim, as redes de relações que se
estabeleceram foram autóctones, sem criar redes mais extensas; é o que
ainda predomina no candomblé. Dessa forma a rede estabelecida por
Riso não nutriu de informações a rede da cidade alta. Do meu ponto de
vista tal ocorrência facilitou a profusão de versões sobre os fatos da re-

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vista O Cruzeiro, pois, caso houvesse essa rede, se saberia que Riso não
tinha sido expulsa, que seu terreiro não fora quebrado e que também ela
tivera uma vida longa e profícua no meio religioso.
Sissi indicou-nos uma imagem que teria sido realizada no Brasil por
Pierre Verger, na mesma época, uma foto clássica de uma iniciação, na
qual aparece uma pessoa com a cabeça de um bode na boca. Disse Sissi
que a foto foi feita na casa de Pai Cosme, mas não aparecem muitas outras
imagens de Verger sobre esses ritos no Brasil, somente nas suas fotogra-
fias da África. Como o tempo estava muito curto para continuarmos a
conversa e ela prontificou-se a mostrar outras imagens de Verger sobre
a temática, achei melhor fazer uma visita mais demorada e verificar as
imagens do Terreiro de Pai Cosme em outra visita.
Sissi lembrou a participação de Joãozinho da Goméia nas filmagens
de Barravento de Glauber Rocha, como também a participação de uma
atriz argentina de nome Irma Alvarez em um filme chamado O cavalo
de Oxumaré, e tentou ligar algo a Riso, sem clareza, dizendo que teria
havido uma capa da revista O Cruzeiro com a argentina, ligando essa
história a Riso.
Sobre os limites entre o sagrado e o profano nas imagens da revista O
Cruzeiro, chamou a atenção para o lado psicológico da leitura posterior
das imagens pelos iniciados, assim como disse Mãe Cutu, comentando
que poderia haver prejuízos mentais para aqueles que estão em transe
nos procedimentos ritualísticos, já que não têm consciência dos detalhes
desses procedimentos pela própria postura corporal e pelo estado de
consciência alterado em que se encontram. Ela mesma disse que não
gostava de ver essas imagens e em alguns filmes sente-se mal. Em ne-
nhum momento referiu-se a uma revelação do segredo ou outro fato
que prejudicasse a religião com a publicação dessas imagens. Não me
pareceu producente mostrar as imagens da revista e ela disse não saber da
existência da reportagem da Paris Match, como também não se lembrou
de nenhum pai-de-santo chamado Nestor, que é citado nela. As dúvidas
sobre a existência desse pai-de-santo continuam, assim como a própria
veracidade das imagens coletadas por Clouzot. Posteriormente, mandou-
nos um recado dizendo que esse Nestor era um tal de Pai Rufino.
Perguntamos a Sissi se Pierre Verger se havia expressado alguma
vez sobre a reportagem de O Cruzeiro e ela disse que ele nunca havia
falado sobre o assunto, como também parece não ter nada escrito.
Em que pese a seu favor todo o seu trabalho de pesquisa e o uso diferen-

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ciado que dava para suas imagens, deixa um espaço para pensarmos sobre
o significado de seu silêncio, pois vivia ele na Bahia naquele momento
em que o candomblé se arvorou contra fotografias publicadas em revistas
e estava exatamente fotografando o candomblé, e trabalhando para a
sucursal da revista O Cruzeiro, em Salvador.

Entrevista com Loura6

O encontro com Loura aconteceu em São Paulo, na sede de uma


empresa de segurança vizinha ao seu terreiro na Vila Libanesa, Bairro da
Penha. Os motivos de ser esse o local do encontro são difusos, e podem
estar ligados ao fato de uma das pessoas da empresa ser sua cliente, mas
a preocupação de Lili com a “segurança” mostrou sua própria inseguran-
ça em relação ao assunto tratado. Não tivemos nenhuma situação similar
em toda a pesquisa.
Marilene nasceu quatro anos depois da publicação das fotos na revista
O Cruzeiro, mas sua trajetória de vida fez com que encontrasse sua tia
Riso no Rio de Janeiro, com a qual viveu alguns anos. Disse que sabe
pouco sobre o caso, que houve até intervenção da polícia e o assunto não
era tratado nas conversas. Assim como ocorreu com Riso, sua entrada
no candomblé deu-se quando ainda era criança, época em que se identi-
ficou sua inclinação para a mediunidade. Disse ela sobre esses primeiros
momentos (muito parecidos com a história de Riso):

Eu tinha 2 anos de idade, tinha saúde imensa, eu e minha irmã, que sou
gêmea, e minha mãe tinha mania de dar banho na gente e colocar a gente
no campo brincando, sentadinhas assim, e passou um velho, não me lembro,
minha mãe conta, depois desse dia é que eu fiquei doente, aí passou um
senhor de idade e passou a mão na cabeça de nós três, e falou assim: vocês
vão dormir que vocês vão ver, aí minha mãe pôs a gente pra dormir. Todas
as três dormiram, duas acordaram bem, e eu acordei mal. Dali por diante eu
comecei a passar muito mal, de 2 anos em diante até 7, até completar 7 anos,
e todo mundo dizia que era de santo e eu ia para o vizinho do lado, que era a
dona Mariinha, ficava boa, voltava pra casa ficava ruim, e minha mãe sempre
falando que não queria que eu entrasse na religião, que já tinha minha tia que

6 Marilene da Silva Reis, filha de Leleta.

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é a Mãe Riso, e não queria, não queria mas a minha vida ia ser realmente pra
fazer o santo, e fiquei até os 7 anos. Com 7 anos a Mãe Riso sempre estava
lá no barracão dela, que era do lado da casa da minha mãe, e falava que eu
tinha que fazer o santo, e minha mãe falava: ah, ela não vai fazer isso não, ela
vai fazer só se for com você, que meu pai e ela só confiava nela.

Marilene foi morar com Riso no Rio de Janeiro quando completou 7


anos, idade necessária na época para fazer iniciação. A fala de Marilene
revela que Riso tinha muitas atividades no Rio e manteve seu terreiro na
Plataforma, no qual Leleta morava e do qual cuidava. Ainda em Salva-
dor, Riso tinha muitos filhos-de-santo da região da Plataforma e da Ilha
Amarela, e freqüentava outros terreiros da região carregando Marilene
junto dela, e sempre Marilene “bolava” no santo nesses terreiros, acabava
em quartos de reclusão com todos os pais e mães-de-santo querendo
fazer sua iniciação, mas Riso dizia que ela iria ser iniciada em seu terreiro.
Como era pequena, frágil e doente, não poderia ser recolhida sozinha
e no terreiro de Riso havia outras pessoas para cuidarem dela. Com 7
anos foi embora de Salvador morar com Riso na Baixada Fluminense, e
lembrava-se de que a casa de Riso tinha cerimônia e rituais quase todos
os dias, era muito movimentada e freqüentada.
Assim ela contou sobre sua iniciação por Riso:

Aí fui embora pro Rio, cheguei lá tinha muitos filhos-de-santo, ela me apre-
sentava, levava pra me ver, eu ficava sempre dentro dum, não dum quarto de
santo, eu ficava sempre dentro de casa, que tinha... era doente, num queria
saber de nada, aí ela levava os filhos-de-santo dela, eram muito carinhosos
comigo, e me agradavam... daí começou o ritual, todo dia tinha, como é que
a gente fala: é adarrum! Pra poder ver se virá no santo, ver se bola, aí todo dia
tinha e todo mundo bolou, e eu não bolava, e ela não tinha aquele negócio
de você fingir, principalmente comigo. Antes de eu recolher, ela ia em mui-
tos candomblé e eu ia junto. Chegava na casa dos outro eu bolava, eu caía
e todo mundo queria me recolher porque eu era pequenininha, com 7 anos
era assim. Aí ela dizia: “não, pelo amor de Deus, se alguém pôr a mão nela,
minha irmã me mata, essa aí é comigo”. Eu acordava nos quartinhos que me
colocavam lá, ela me levava embora pra casa. Aí nesse dia, que recolheu tudo
pra fazer os negócios, nada de virar, nada de virar, antes de eu virar que tem
a história do santo que não ia, ela brincava. Antigamente num tinha negócio
de telefone, ela escrevia na carta para minha mãe em Salvador: “Ah! Aqui ela
tá boa, num tá dando nada nela”. E minha mãe Leleta escrevia: “Não, pode
deixar ela aí que vocês foram de navio e o santo tá indo a pé”.

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Marilena nos contou sua iniciação:

Aí começou aquilo tudo, eu deitei pra recolher, num ia virar no santo, aí no


dia do orô, que é a obrigação, e todo mundo virado, todo mundo fazendo
negócio, e eu deitei como a Obaluaê, que seria no mês de agosto, tanto que
eu fiz agora aniversário de santo no dia 22. Aí ela falava assim: não, ela é de
Obaluaê, porque todo lugar que eu caía, que eu bolava, eu ficava toda torta,
e tinha muita coceira, assim, feridas... aí ela falava: não, ela é de Obaluaê. Aí,
eu deitei pra fazer o Obaluaê, tanto que eu não ia virar, e eu virei... virei no
santo com 7 anos e na hora de fazer obrigação, só que meu santo Obaluaê
pegava branco e meu Xangô pega branco: Airá! Aí, na hora, na semana da
saída, eu virei, em vez de ser Obaluaê era Xangô. No dia do orô, aí ela pegou
e mudou para daí uma semana, pra poder... os bichos eram tudo igual, só o
assentamento que era diferente, daí saiu na outra semana. Eu era pra sair
no colo, ela se emocionou demais, ela via eu de santo, ela não acreditava
que eu ia virar no santo. O barco era “dofana”, era da frente, atrás vinha o
“chará”, e eu fiquei o tempo todo, o tempo que o santo dançou eu fiquei de
santo e de pezinha, ninguém me carregou no colo... fiquei um ano de saia
de santo, um ano de erê, normal, até eu ficar bem longe da minha mãe. E
ela se emocionou demais, enquanto todo mês tinha saídas de santo, tinha
muitos filhos-de-santo.

Marilene morou somente um ano com Riso, mudando-se para São


Paulo por problemas de saúde, com uma mãe-de-santo da casa de Riso.
Freqüentava mensalmente a casa de sua tia-mãe Riso (tia de sangue e
mãe-de-santo), para cuidar de seu assentamento e visitar sua família mais
próxima, que era somente Riso e seu filho Jorge. Riso tinha na época mais
de cem filhos-de-santo no Rio e sua morte produziu conflitos sobre a
herança de seu santo e o terreiro ficou parado, “sem tocar”, mais de ano.
Nesse período muitas coisas desaparecem do terreiro. Segundo Marilene,
Riso “tinha muitos herdeiros assim perante o povo, cada um queria uma
parte”, e como herdeira patrimonial disse “então deixando pra mim, que
era sobrinha, eu acho que seria o ideal, porque, se eu herdei uma casa, eu
tinha que herdar o santo também”.
Riso freqüentava muito Salvador, principalmente o terreiro de Ma-
riinha (mãe-pequena de sua casa na Ilha Amarela e na Plataforma) e de
Perrucha, quando havia iaôs recolhidos, como também freqüentava o
terreiro que Marilene abriu depois em São Paulo. Riso também abriu e
manteve um terreiro na cidade de Ribeirão Preto, no interior de São

ENCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 61

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Paulo, na década de 90, perto de sua morte. Riso nunca foi casada e teve
somente um filho chamado Jorge, cujo pai tem o nome de Antônio Ge-
raldo. Esse é o único relacionamento citado por parentes de Riso, e que
aconteceu ainda quando estava na Bahia e muito nova. O nome somen-
te foi lembrado por Marilene porque ela leu no atestado de óbito de seu
primo Jorge, pois Leleta não se lembrava desse nome, o que parece de-
monstrar que foi um relacionamento muito rápido de Riso.
Marilene lembrava-se de ter visto as fotografias da revista O Cruzeiro
quando ainda era cria, principalmente de que Riso tinha um exemplar do
livro Candomblé, e disse que ele ficava sempre muito escondido de todos.
Riso nunca comentou com ela as imagens do livro nem as da revista: “Era
dela... esse livro era dela; quando ela morreu foi a maior polêmica quando
eu peguei esse livro e essa fotografia [uma fotografia de Riso pintada à
mão]. E esse livro ninguém queria entregar, ninguém sabia onde tava,
eu encontrei ele debaixo... eu encontrei debaixo do colchão, embaixo de
um monte de coisa ”.
Riso manteve um exemplar do livro durante muitos anos e o guardou
de outros olhares, como um passado polêmico, talvez proibido. Provavel-
mente não quis expor-se mais do que os próprios fatos decorrentes das
imagens publicadas que a levaram a uma execração pública em Salvador.
Riso resguardava-se desse passado punitivo que lhe foi imposto por não
ter respeitado a tradição de preservar o segredo da religião. Como Leleta,
Marilene partilha da opinião de que Riso não foi prejudicada pela publi-
cação das imagens porque “ela era muito ciente do que ela fazia”.
Exemplificando sua maneira de agir, Marilene comenta:

Ela era um tipo de pessoa que... hoje tem muito curso, eu num faço curso
nenhum de negócio de candomblé, de espiritismo; eu não aprendi jogar búzio
fazendo curso, porque ela não adotaria, tudo dela era feito pelo orixá, o orixá
dava intuição pra ela, tanto que ela jogava búzio, o Ogum dela vinha, quando
ela tava jogando; ele ficava em pé e jogava pra ela, pra pessoa... quando eu falei
pra ela: “Mãe Riso, eu vou entrar no curso de búzio”, nossa, ela me deu uma
bronca. Ela falava que isso não se aprende assim, isso é o dom, o orixá traz
pra você... Ela era assim muito espontânea, ela não gostava de andar muito
elegante. Ela era assim simples. Se você chegasse na casa dela, ela tivesse
de calça e de chinelo, é a mesma pessoa. Nunca tava enfeitada. Ela recebia
as pessoas bem, ela era muito alegre, todo mundo conhecia ela, a gente ria,
que ela chamava as galinhas assobiando, né?! Ela tinha umas galinhas no
barracão, chamava assobiando. Era pombo, tudo ela puxava assobio, todo

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mundo conhecia ela por causa disso. Ela ia na venda do lado, ela era muito
assim, livre, se dava com todo mundo ali no bairro. Se ligasse lá, perguntasse
da dona Riso, todo mundo sabia quem era. Se chegasse na rua de lá: “onde
é a casa da dona Riso da Beija-Flor?”, todo mundo conhecia...Todo mundo
conhecia ela, era na quitanda... ela fazia quitanda na frente, ela era mulher
muito de negócio, ela gostava de vender as coisas assim, é... verdura, sabe?!
Ela punha quitanda, vendia às vezes até bebidinha, essas coisas, tudo, assim,
ela gostava. Ela mantinha a casa dela, nossa... ela morava lá sozinha com
eles... tinha filhos-de-santo que morava lá, mas todo dia era aquele panelão
de arroz, de feijão, né?! com carne, e muita coisa de mistura, e era cigarro, todo
mundo que tava lá ela mantinha. Morava essa, a Jacira, aí ela aproveitava, ela
colocou sobrinha, a prima, a irmã, morava todo mundo lá às custas dela. Ela
era assim... o jeito dela de ser era rude, né?! Rude assim, em termos, porque
gostava das coisas muito certas, porque na parte de santo ela era muito rigo-
rosa. Ela achava que era uma responsabilidade muito grande, pegar um ser
humano pra fazer uma obrigação ou qualquer coisa, um ebó, qualquer coisa
que fosse. Então, por ser minha mãe-de-santo e por ser a minha tia, eu achei
que ela trabalhava de um jeito muito certo. Se eu fosse fazer santo com outra
pessoa... olha, se eu te falar a verdade, hoje eu não tenho... não escolhi outro
pai-de-santo e não concordo. Eu falo que eu tenho ela até o resto da minha
vida. Eu nunca mais dei a cabeça pra ninguém... nunca mais.

Justificando sua vinda para São Paulo, Marilene disse que Riso es-
quecia muito dela por causa das atividades do terreiro e que precisava
de mais cuidados, mesmo tendo as filhas-de-santo que ajudam a manter
o terreiro e os agrados que recebia de sua clientela. Marilene não achou
importante procurar as filhas de Riso em Nilópolis, dizendo que elas
inventariam mentiras, o que demonstra que o processo depois da morte
de Riso foi conflituoso. Marilene ficou com alguns objetos de uso pessoal
de Riso, como um anel de búzios, mas o famoso anel de São Jorge não
se sabe com quem ficou: “[...] Esse aí sumiu, eu tenho do búzio, que ela
tinha em pequenininho, ela mandou ampliar, o anel parece que ela colocou
no assentamento do Oxum, e o grande ela mandou ampliar, é um búzio
grandão, o brinco ela usava, até quando ela tava doente, começou a ficar
leve, caindo, e no dia que ela faleceu, na hora, ela entregou: ‘entrega pra
minha sobrinha’”.
Riso vestia-se sempre de calça comprida, sempre de claro com turbante
na cabeça. Tinha muitos turbantes de crochê e o modo de ela colocar o
turbante na cabeça denotava seu estado de espírito, que era logo compreen-

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dido pelos freqüentadores de sua casa: “a gente falava: ‘carcará chegou,
carcará chegou...’, era quando ela bebia, que ela gostava de tomar uma,
quando não tava mexendo com preceito, aí ela entrava, quando ela entrava
sambando a gente falava: ‘carcará chegou...’, aí ela cantava: ‘Carcará, pega,
mata e come...’, aí a gente já sabia...”.
Riso ajudou Marilene a abrir seu terreiro em São Paulo no começo
dos anos 90, ficou mais de 40 dias na cidade nessa ocasião, e às vezes
passava semanas em momentos ritualísticos que necessitavam de uma
pessoa que conhecesse muito bem os preceitos da religião. Riso era uma
espécie de madrinha de Marilene, dando cobertura religiosa quando ela
precisou. E Marilene fez com ela as obrigações de 14 e 21 anos, no terreiro
de Nilópolis. Marilene esteve próxima de Riso quando aconteceram as
internações e sua morte em 1995.
Dado importante são as viagens que a mãe-de-santo de Riso, Idalisse
da Ilha Amarela, fazia de Salvador para o Rio, sendo presença constante
no terreiro de Riso em Nilópolis. Com as afirmações das viagens tam-
bém de Riso para Salvador, fica claro que ela manteve laços fortes com o
candomblé de sua origem e de seu território na área da Plataforma.

Em Nilópolis

O encontro com o terreiro de Riso

Resolvi ir a Nilópolis encontrar as pessoas ligadas a Riso, o povo de


Riso, no Rio de Janeiro. A única informação de que dispunha era o en-
dereço de seu terreiro e de sua casa, que constava no próprio atestado de
óbito, Rua Carlos Bernadete, 283, Cidade Nova, Nilópolis. O motivo do
empenho em encontrar pessoas ligadas a Riso e a seu terreiro foi tentar
elucidar seus passos no Rio de Janeiro, suas atividades e seu itinerário pes-
soal de vida. Era um dos últimos passos previstos na pesquisa e esperava
encontrar muitos detalhes de sua vida pós-Salvador. Já no ônibus, quando
perguntamos ao motorista pela rua, um senhor de idade disse que a conhe-
cia e uma garota disse que morava nessa rua. O senhor indagou-me qual
o motivo da visita e a quem procurava, e aproveitei perguntando se tinha
conhecido Mãe Riso, ele confirmou e disse que ela tinha falecido. Falou
com respeito, disse que ela era muito conhecida, e colocou-se à disposição
para ajudar. A garota que estava no ônibus acompanhou-nos e disse que

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ao lado de sua casa morava uma mãe-de-santo, chamada dona Marta,
indicando na chegada sua residência. Após apresentações e dizendo o
motivo da visita, dona Marta não quis falar sobre Riso, pois disse que,
sendo ela da nação Queto e Riso da Angola, não caberia falar de outro
povo, e não conhecia a reportagem da revista O Cruzeiro. Indicou-me o
caminho mais à frente como o do terreiro de Riso.
Chegando ao número de que dispunha, logo o identifiquei como sendo
o terreiro de Riso: um lindo São Jorge em azulejo reinava incrustado na
frente e no alto da casa. Nesse momento senti uma grande emoção de
estar ali defronte o terreiro de Riso, e ao mesmo tempo uma vontade
muito grande de tê-la conhecido. De alguma forma, senti sua presença
pela primeira vez, uma boa sensação. Como me haviam indicado, na casa
logo em frente morava uma família ligada a Riso, e, como eu esperava,
obtive, ao chegar ao local, informações da vizinhança, uma senhora disse-
me que procurasse Adalgiza, filha-de-santo de Riso.
Na casa de Adalgiza, também fomos muito bem recebidos. Quando
comecei a falar de Riso e das informações que tinha sobre ela, senti uma
simpatia muito grande por parte de Adalgiza, com 77 anos, e de João,
seu marido, com 67 anos. O verdadeiro nome de Adalgiza é Sebastiana
Stanziola Diniz, nascida na Itália em 1928. Foi uma das primeiras filhas-
de-santo de Riso no Rio de Janeiro, e sua “digina”7 é Mutalecy. Seu
marido era Oxogum na casa de Riso, o primeiro a ser confirmado por ela
no Rio, e tem a “digina” de Omonyle. Estava falando com uma das pes-
soas mais próximas de Riso em Nilópolis, o que se confirmou quando
disse que quase todas as filhas e filhos de Riso agora freqüentavam o
terreiro de Adalgiza, Terreiro São Miguel Arcanjo. Riso fazia parte do
Conselho Espiritual da casa, conforme o livro de registro. Adalgiza con-
tou-nos que Riso era muito exigente com os fundamentos, e as filhas-
de-santo mantinham um respeito muito ardoroso, não ultrapassando
nunca os limites, falando sempre com a cabeça abaixada, não entrando
no recinto onde ela estivesse a não ser com consentimento. Assim, infor-
mou que não mantinha conversas sobre a vida pessoal de Riso, nem sobre
o passado. Diniz confirmou todas as informações, enfatizando mais ain-
da o conhecimento de Riso sobre candomblé, e disse ainda que ela era
analfabeta.

7 Nome pelo qual as pessoas são reconhecidas dentro do candomblé.

ENCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 67

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A edição de O Cruzeiro não foi mencionada e, quando perguntei sobre
a revista, disseram inicialmente que nunca a tinham visto, que Riso não a
tinha e nunca comentou nada a respeito. Minhas informações sobre Riso
foram sendo transmitidas e iam surpreendendo-os, pois desconheciam
detalhes do passado de Riso, mesmo sendo pessoas próximas a ela. Sobre
a revista O Cruzeiro, disseram que ouviram falar vagamente, e Adalgiza
contou-nos que um dia, freqüentando um terreiro com Riso, a mãe-de-
santo pediu ajuda na pintura de uma iaô e Riso mandou Adalgiza fazê-lo.
Quando entrou na camarinha, encontrou a revista aberta e identificou
uma pessoa como sendo Riso. Foi somente esse contato rápido que teve
com a revista. Ela achava que as pessoas estavam vendo a pintura da iaô
na revista para fazer igual. Riso não trouxe um exemplar da revista O
Cruzeiro com ela da Bahia, ao que tudo indica não o tinha, e se tivesse
teria ficado com sua irmã Leleta. Mesmo tendo consigo um exemplar do
livro Candomblé, mantinha-o guardado longe de outros olhares. Riso não
comentava com ninguém a reportagem nem as polêmicas que causou na
Bahia. Para ela os minutos de glória de estar na revista O Cruzeiro como
destaque em 38 fotografias não tiveram importância, como também não
trouxeram uma herança negativa; parece que, simplesmente, ela ignorou
por completo a reportagem e preferiu colocá-la no passado quando che-
gou ao Rio de Janeiro.
As pessoas mais próximas de Riso em Salvador não conheciam o
livro, o que indica que Riso teve contato com ele no Rio de Janeiro,
quando o adquiriu ou ganhou de alguém. Ao manter o livro consigo,
embaixo de seu colchão, Riso trazia seu passado bem próximo de si; ao
mantê-lo longe de outros olhares, preservava-se publicamente desse
mesmo passado.
Riso disse que seria ela, Adalgiza, a fazer o seu axexê, ritual funerário
do candomblé. A morte violenta de seu filho Jorge deixou-a desconcertada
e amargurada. Mesmo sentindo que ainda não estivesse preparada para
fazer o axexê e não encontrando um pai-de-santo que quisesse proceder
a esse ritual fúnebre do candomblé, pois Riso morreu no dia primeiro do
ano e muitos estavam nas águas de Iemanjá, o que acabou dificultando
o contato, Adalgiza tomou-se de coragem e o fez, acompanhada pelo
marido, como Riso explicitou ainda em vida. A herança espiritual de Riso
concretizou-se com Adalgiza e seu terreiro, mesmo Marilene sendo sua
parente mais próxima e natural herdeira.

68 IMAGENS DO SAGRADO

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A sucessão de Riso foi confusa, pois Marilene (Loura) resolveu ven-
der a casa e o “povo de Riso” no Rio ficou indignado, querendo que os
assentamentos dos santos continuassem no lugar. Houve proposta para
aluguel da casa e assim manter os assentamentos dos filhos e filhas-de-
santo, mas não houve acordo e devagar foram sendo retirados, um a um.
João Diniz fez o despacho das coisas de Riso e disse que seu orixá, Oxóssi,
e Exu não quiseram sair da casa.
No Jornal de Nilópolis, um dia depois da morte de Riso (1o de janeiro
de 1993, segundo seu atestado de óbito), aparece a notícia:

Muita emoção no enterro de mãe-de-santo

Cerca de 600 pessoas, todas vestidas de branco, compareceram sábado à


tarde, no Cemitério de Ricardo de Albuquerque, para o enterro da babalorixá
Rizolina Heleonita da Silva, 73 anos, que recebia a entidade Oxóssi em seu
terreiro em Nilópolis. Riso de Oxóssi, como era bastante conhecida no Rio e na
Bahia, morreu de embolia pulmonar no Hospital Santa Maria, em Nilópolis.
Segundo Cleomídio da Silva, morador na Estrada dos Bandeirantes, 7.993,
Riocentro, mãe Riso de Oxóssi foi uma santa criatura. Durante anos ela se
dedicou a fazer o bem às pessoas necessitadas e sua passagem espiritual deixa
uma lacuna nos meios umbandistas.

Três fotos são preciosas no baú de imagens de Adalgiza e elucidam o


trânsito Salvador–Nilópolis:

ENCONTRO COM MEMÓRIAS E HISTÓRIAS RECONTADAS 69

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Primeira foto: Riso logo na chegada ao Rio, em uma festa de seu
terreiro, tendo ao seu lado sua mãe-de-santo, Idalisse da Ilha Amarela,
aparecendo cortada da parte esquerda da foto.
Segunda foto: Riso com Adalgiza em Salvador, quando foi fazer o
decá de Idinha, sua cunhada. As duas fotos reafirmam visualmente as
informações de que havia um trânsito intenso do povo de Riso da Pla-
taforma entre Salvador e Rio de Janeiro ; como foi dito em Salvador,
Riso recebia muitas visitas de pessoas no Rio. Riso manteve então fortes
relações, além das familiares, com o candomblé baiano, e Adalgiza disse
que depois da morte de Idalisse Riso foi para Salvador tirar a mão com
Vicente da Casa Branca.
Terceira foto: Riso aparece sentada e encostada carinhosamente em
Adalgiza ao seu lado, em pé, ainda muito nova e usando o quelê de sua
recente iniciação. Nessa singela foto, anuncia-se o futuro dessas duas
pessoas ligadas espiritualmente pela crença nos orixás.

70 IMAGENS DO SAGRADO

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O CONTRACAMPO DE PIERRE VERGER

ierre Verger, um ícone das relações da imagem fotográfica com o


Pmundo religioso do candomblé e a cultura afro-brasileira, é elemento
primordial para a reflexão na área e um contracampo ao trabalho sensa-
cionalista realizado na época por Henri-Georges Clouzot, na Paris Match,
e por José Medeiros, n’O Cruzeiro.
Em visitas à Fundação Pierre Verger pudemos pesquisar a intensa
atividade de Verger na revista O Cruzeiro entre os anos de 1946 e 1958,
e surpreendentemente encontramos quatro reportagens com suas foto-
grafias na revista A Cigarra, e entre elas uma seqüência de imagens de
um ritual de iniciação do candomblé com texto de Roger Bastide (texto
publicado como anexo da segunda edição da clássica obra de Bastide: O
candomblé da Bahia — Rito nagô, mas não cita que o texto foi publicado
com imagens de Verger). Essa descoberta abriu ainda mais o campo refle-
xivo de imagens de candomblé e de seus ritos em meios de comunicação
de massa, pois a torna, até o momento, a primeira publicação conhecida
desse tipo de imagens. Em conversa com Angela Lühning, que conviveu
com Pierre Verger em seus últimos anos de vida, tivemos a declaração de
que ele lhe deu a revista O Cruzeiro, com a reportagem de José Medeiros
e Arlindo Silva, pois não queria tê-la consigo, confessando que desgostava
desse tipo de abordagem do culto, a ponto de a direção da revista já ter
pedido uma reportagem da mesma natureza e ele ter-se recusado a fazê-
la, dado confirmado por uma carta de Leão Gondim para José Medeiros,
que será analisada mais à frente.
Souty (2006, pp. 374-5) destaca algumas passagens dessa relação de
Pierre Verger com as reportagens nas trocas de correspondência com A.
Métraux, ou, ainda, por exemplo, na entrevista para Emmanuel Garrigues
(L’Ethnographie, 1991), da qual ressalta o trecho em que Verger critica o
caráter sensacionalista das fotos de Clouzot, e diz que suas imagens são

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de outra ordem. Souty ressalta também que Pierre Verger retira imagens
de sacrifícios de animais na preparação de seu livro Dieux d’Afrique, prin-
cipalmente pelo impacto das duas reportagens naquele momento.
A proximidade de Pierre Verger com Odorico Tavares e o fato de
terem feito juntos mais da metade de seus trabalhos n’O Cruzeiro co-
locaram Odorico também no campo da omissão, sugerida por Gondim
a Medeiros na Bahia. Entre as reportagens de Pierre Verger e Odorico
Tavares, destaca-se a série Roteiro de Canudos, com três reportagens, e
ainda, em dupla com Gilberto Freire, cinco matérias no Benin sobre
os ex-escravos que voltaram para a África depois de libertos no Brasil,
criando uma “cultura brasileira” no antigo Reino do Daomé. Nota-se
que Pierre Verger se manifestou apenas privadamente sobre o conteúdo
das reportagens da Paris Match e d’O Cruzeiro apesar de manter em seus
guardados toda a polêmica suscitada na imprensa brasileira sobre a Paris
Match, como veremos.
Pudemos pesquisar e ver nos arquivos digitalizados da Fundação,
além das imagens publicadas na revista A Cigarra, um ritual de inicia-
ção no terreiro de Pai Cosme, na década de 501. A seqüência com um
total de 111 imagens realizadas mostra imagens muito parecidas com as
fotografias de José Medeiros, e somente duas delas vão ser publicadas
no livro Orixás, em 1981, 20 anos depois, citando somente no final que
foram feitas no Brasil (“Bahia, Brasil”). A seqüência, além das próprias
imagens publicadas, revela o processo de escolha (edição) das imagens,
acentuando o fato de não serem imagens isoladas e sim uma grande e
significativa seqüência. Ao publicar somente duas dessas imagens, sem
referências explícitas do lugar e da data, e com fotos que não identificam
pessoas, Verger preserva o anonimato dos envolvidos de forma muito
diferente da que José Medeiros e Arlindo Silva quiseram ingenuamente
fazer ao não citar o nome de Riso. Nas duas únicas fotos publicadas de
Verger envolvendo sacrifícios de animais, não temos a possibilidade de
ver a seqüência enunciadora do evento fotografado, e como ele é citado
na carta de Gondim dizendo que não as publicaria naquele momento,
somente muito tempo depois de realizá-las é que ele as torna públicas,
mas fora do contexto de um de embate O Cruzeiro–Paris Match, empre-

1 Segundo Angela Lühning, da Fundação Pierre Verger, essa seqüência de imagens no terreiro
de Pai Cosme não foi realizada no mesmo dia e somente metade das imagens se refere ao ritual
de iniciação, incluindo o ritual do oruncó no barracão.

O CONTRAPONTO DE PIERRE VERGER 73

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sas de comunicação com conteúdo de um fotojornalístico muitas vezes
sensacionalista, e sim dentro de sua reflexão da ponte cultural religiosa
África–Brasil. Verger escapa conscientemente de uma manipulação de seu
trabalho pela direção da revista O Cruzeiro, interessada em contrapor-se à
matéria da Paris Match, para reafirmar-se no cenário midiático brasileiro
como instrumento genuíno de defesa dos temas nacionais. Esse desafio
e esse embate não pertenciam a Pierre Verger.
A Fundação Pierre Verger, na ótica atual, endossa e respeita a posi-
ção do fotógrafo de não apresentar a seqüência inteira, preservando a
imagem dos fotografados e acentuando a “proibição” de veiculação desse
tipo de imagens na mídia, de acordo com as posições originais de Pierre
Verger.

Relação de fotorreportagens de Pierre Verger


encontradas na Fundação

Revista A Cigarra

1) Adoradores de astros na várzea de Recife (3.1949), texto: Gonçalves


Fernandes
2) Roda de samba (4.1949), texto: Cláudio Tuiuti Tavares
3) Candomblé (6.1949), texto: Roger Bastide
Caroá, texto: José Leal

Revista O Cruzeiro

4) Cuzco — Cidade dos deuses (7.9.1946), texto: Vera Pacheco Jordão


5) Cuzco — Imperial e colonial (5.10.1946), texto: Vera Pacheco Jor-
dão
6) Saveiros do Recôncavo (30.11.1946), texto: Odorico Tavares
7) A aldeia festeja a Virgem do Carmo (14.12.1946), texto: Vera Pacheco
Jordão
8) A vitória do Rei Índio (04.1.1947), texto: Vera Pacheco Jordão
9) O mundo trágico da talha baiana (1.2.1947), texto: Godofredo
Filho
10) Itinerário das feiras da Bahia (15.2.1947), texto: Odorico Tavares
11) O ciclo do Bonfim (22.3.1947), texto: Odorico Tavares

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12) Maracatu (29.3.1947), texto: Odorico Tavares
13) Atlas carrega o seu mundo (5.4.1947), texto: Odorico Tavares
14) Frevo (19.4.1947), texto: Odorico Tavares
15) O reino de Iemanjá (26.4.1947), texto: Odorico Tavares
16) Caymmi na Bahia (17.5.1947), texto: Odorico Tavares
17) Conceição da Praia (31.5.1947), texto: Odorico Tavares
18) Roteiro de Canudos — (19.7.1947), texto: Odorico Tavares
I - O reduto de Antônio Conselheiro
II - O repórter Euclides da Cunha
III - Depoimento dos sobreviventes
19) A pesca do xaréu (18.10.1947), texto: Odorico Tavares
20) Bumba-meu-boi (13.12.1947), texto: Luiz Alípio de Barros
21) Mamulengo — A poesia do Nordeste (27.12.1947), texto: F. Balzoni
Filho
22) A vida de um circo (17.1.1948), texto: Guerra de Holanda
23) Cultura popular — ex-votos (31.1.1948), texto: Antônio R. Ban-
deira
24) O calvário dos sertões baianos (27.3.1948), texto: O. Tavares
25) Chiou, perdeu! (3.4.1948), texto: Fernando Lôbo
26) Vitalino e o mundo dos bonecos (10.4.1948), texto: Mário Leão
Ramos
27) Afoché — ritmo bárbaro da Bahia (29.5.1948), texto: Cláudio Tuiuti
Tavares
28) Tubarão (30.10.1948), texto: Franklin Oliveira
29) Baianas das saias rodadas (5.2.1949), texto: José Leal
30) Roteiro poético do Capibaribe (12.11.1949), texto: José Césio Costa
31) Pancetti (11.11.1950), texto: Odorico Tavares
32) Cosme e Damião — Os Santos Mabaças (18.11.1950), texto: Odorico
Tavares
33) Mataripe (25.11.1950), texto: Odorico Tavares
34) A cozinha da Bahia (2.12.1950), texto: Odorico Tavares
35) Rafael, o pintor (6.1.1951), texto: Odorico Tavares
36) N. S. da Boa-Morte das Negras de Cachoeira (13.1.1951), texto: Odo-
rico Tavares
37) A escultura afro-brasileira na Bahia (14.4.1951), texto: Odorico Ta-
vares
38) A casa do Tio Juca (14.4.1951), texto: Odorico Tavares

O CONTRAPONTO DE PIERRE VERGER 75

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39) Decadência e morte da lavagem do Bonfim (23.6.1951), texto: Odorico
Tavares
40) Revolução na Bahia — Artistas baianos (7.7.1951), texto: Odorico
Tavares
41) Acontece que são baianos (11.8.1951), texto: Gilberto Freire
42) Senhor do Bonf im domina a África (18.8.1951), texto: Gilberto
Freire
43) Casas brasileiras na África (25.8.1951), texto: Gilberto Freire
Brasileiros Grão-Senhores na África, texto: Gilberto Freire
44) A dinastia dos Xaxá de Souza (9.1951), texto: Gilberto Freire
45) Inflação de reis africanos (29.9.1951), texto: Odorico Tavares
46) Martírio e glória de Cosme e Damião (25.9.1954 — edição colorida),
texto: Franklin de Oliveira
47) El viejo y el mar (16.9.1957 — edição internacional), texto: Fernando
G. Campoamor
48) Así eran los astecas (1.1.1958 — edição internacional), texto: Mário
Dantino
49) La moda viene de África (1.7.1958 — edição internacional), texto:
Nora Toupet

A Cigarra

Antes mesmo de ir para a Bahia, que era sua vontade, depois de en-
contrar-se no primeiro dia que esteve em São Paulo com Roger Bastide,
vindo de Corumbá, por onde chegou ao Brasil, Verger é por este instigado
a continuar sua viagem para Salvador e falou-lhe da importância da in-
fluência africana nessa região. Verger diz em suas memórias que já tinha
lido em francês o livro Jubiabá, de Jorge Amado, e tinha noções dessa
influência. Verger descreve que, em sua passagem pelo Rio de Janeiro,
procurando Vera Pacheco Jordão, por indicação de seu amigo Alfred
Métraux2, quase que não é recebido por ela, pois “[...] a minha habitual
deselegância no vestir lhe fez crer que tinha a ver com um pedinte ou um
vendedor de aparelhos domésticos” (Verger, 1982, p. 239). Apresentando-

2 Nesse sentido, ver Alfred Métraux e Pierre Verger, Le pied à l’étrier — Correspondance 12 Mars
1946 — 5 Avril 1963. Paris: Jean Michel Place, 1994.

76 IMAGENS DO SAGRADO

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se como fotógrafo e necessitando ela de imagens do Peru para matérias
que tinha realizado, sugeriu que procurasse a redação da revista O Cruzeiro
e ofertasse-as para acompanhar o texto. As fotos foram aceitas para a
reportagem e, tendo uma história internacional no fotojornalismo, ele
foi convidado a fazer matérias sobre a Bahia, com contrato que oficiali-
zou sua permanência no Brasil, tornando-se assim fotógrafo da revista
O Cruzeiro em Salvador, realizando quase uma centena de reportagens,
muitas delas não publicadas.
Angela Lühning, que teve uma convivência bastante estreita com
Verger, assim se refere a sua chegada:

Uma data sempre lembrada por Verger foi a da sua chegada à Bahia, em
5 de agosto de 1946. Tratava-se não somente de um compromisso formal,
mas também de um interesse particular de Verger, já que amigos que havia
feito na década anterior nas Filipinas também residiam na “Boa Terra”, como
Salvador era chamada à época. Imediatamente após a sua chegada, dá iní-
cio às suas atividades profissionais, realizando reportagens fotográficas que
passarão a ser publicadas em O Cruzeiro. Verger mora temporariamente no
Hotel Chile, situado no Centro Histórico de Salvador, e é de lá que parte
para as suas diversas viagens pelo Nordeste para realizar as reportagens que
seriam enviadas para a revista. (Lühning, 2002, p. 13)

Grande parte das fotorreportagens de Pierre Verger publicadas na


revista O Cruzeiro aconteceu entre os anos de 1946 e 1951. Diz Verger
que fez mais de 80 reportagens e a maioria em dupla com Odorico Ta-
vares; estariam aí computadas as reportagens publicadas na revista A
Cigarra e aquelas enviadas e não publicadas. As reportagens mostravam
a exuberância cultural da Bahia, candomblé, festas populares, carnaval, e
aspectos da vida no Recôncavo. Então, nesse período publicou também
algumas matérias na revista A Cigarra, entre elas Candomblé, em parceria
com Roger Bastide, na edição de junho de 1949. A surpresa pelo encontro
dessa matéria deve-se ao perfil da própria revista, uma revista de varieda-
des, mais voltada para o público feminino, e a matéria de Pierre Verger e
Roger Bastide escapa da superficialidade generalizante presente na maior
parte dos assuntos tratados, embora muitos dos temas da revista fossem
de forte apelo nacional e sobre cultura regional brasileira.
Provavelmente essa reportagem foi realizada somente por Bastide,
pois Verger encontrava-se na África:

O CONTRAPONTO DE PIERRE VERGER 77

02 CAPITULO 1-2.indd 77 2/7/2009 13:18:55


[...] Durante a segunda estada de Bastide na Bahia, em 1949, Verger en-
contra-se na sua primeira grande viagem à África, após ter conhecido o
território baiano. Bastide passa algumas impressões para Verger; porém,
curiosamente, eles pouco conversam acerca da vivência baiana de Bastide”.
(Lühning, 2002, p. 14)

E também, como cita Lühning, a casa mais freqüentada por eles era
o Axé Apô Afonjá, de Mãe Senhora, onde participou pela primeira vez
de cultos, tendo-a como mãe-de-santo. Somente a partir de 1951 eles
começam a realizar juntos visitas a festas e cerimônias de candomblé.
A saída de iaô descrita por Bastide na revista A Cigarra foi vista, como
ele próprio diz no texto, na casa de Joãozinho da Goméia, e as fotos,
mesmo com a indicação da não-presença de Verger, foram confirmadas
por Sissi e constam no banco de imagens como sendo desse terreiro, mas
em nenhum momento Joãozinho da Goméia aparece explicitado como
um dos retratados.
Depois do primeiro encontro com Bastide no primeiro dia em São
Paulo, uma amizade de amplas dimensões vai fazer com que mantenham
um permanente contato através de cartas, visitas mútuas, visitas a can-
domblés, e acentua Verger:

Foi Roger Bastide quem revelou a África no Brasil, ou mais exatamente, a


influência da África na Região Nordeste deste país [...]. Aconselhou-me
vivamente a ir à Bahia, região sobre a qual o livro Jubiabá, de Jorge Amado,
havia-me dado uma primeira idéia. Bastide havia ido a essa região e escrevera
uma excelente obra intitulada “Imagens do ‘Nordeste místico em preto e
branco’”, que iria me servir de guia na região. Ele me confiou um certo número
de cartas de apresentação para os seus amigos da Bahia [...]. Isso se passou em
1946. Tive o privilégio, 12 anos mais tarde, de lhe mostrar, em contrapartida,
a influência do Brasil no Daomé e na Nigéria. (Lühning, 2002, p. 39)

Realizam então, juntos, uma longa viagem à África em 1958. Da tra-


jetória de três meses, desde a chegada de Bastide e seu encontro com
Verger em Porto Novo no Benin (de 13 de julho a 22 de setembro), que
imediatamente o levou para ver uma festividade, ao último dia, realizaram
uma série de reportagens para O Cruzeiro, mas não foram publicadas.
Para Verger, as viagens de Bastide para a África participando de colóquios
e congressos fizeram que ele somente encontrasse com muitos africanis-
tas e poucos africanos. Diz Bastide:

78 IMAGENS DO SAGRADO

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Quem viveu no Brasil não consegue esquecer o país. Procura-o em toda parte.
Não posso passar diante da Torre Eiffel sem ver se desenhar no céu a imagem
de Santos Dumont, nem diante do Bœuf sur le Toit sem escutar ressoarem
os sambas brasileiros. Foi essa vontade de rever o Brasil que me levou, nestas
férias, a ir ter com meu amigo Pierre Verger entre os “brasileiros” de Uidá,
em Porto Novo, e de Lagos, que ele conhece bem. E o Brasil — esse Brasil
importado para a terra africana pelos descendentes dos antigos escravos que
voltaram para lá com sua religião, a língua e os costumes do Brasil — mais
uma vez realizou meus desejos: no próprio dia em que desembarquei do
avião, sem ter tido tempo de desfazer as malas, de me instalar, Verger me
arrastou a Uidá para assistir a uma “Burrinha deliciosamente brasileira”.
(Lühning, 2002, p. 77)

Assim, Verger começou a mostrar o Brasil na África para Bastide.


Fluxo e refluxo de uma amizade consolidada na paixão abnegada de en-
tender o trânsito da cultura afro-brasileira no Atlântico. Foram oito tra-
balhos juntos, nos quais Verger não apenas fazia o papel de “fotógrafo
itinerante voltado para a etnografia”, como ele se autodenomina, mas
eram uma dupla de produção intelectual em campo, e Verger, como Lüh-
ning acentua em muitas passagens, mesmo fornecendo suas notas de
campo, preferia assinar as imagens, e seis delas são encaminhadas para a
redação da revista O Cruzeiro, infelizmente não publicadas, mas resgata-
das por Angela Lühning3. São as seguintes reportagens encaminhadas e
não publicadas:

– “Aidjan, São Paulo da África Ocidental francesa”;


– “Fretown, os créoles parecem sair de uma gravura da época da rainha
Vitória”;
– “A ‘Burrinha’ de Uidá”;
– “O mistério dos bronzes de Ifé e do Benin”;
– “A festa de Oxum, deusa do amor e da água doce”;
– “O ritual de iniciação das filhas de Xangô na África e no Brasil”

3 Angela Lühning (org.), “Verger/Bastide — Dimensões de uma amizade”. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2002. Também estão presentes na íntegra e com as respectivas imagens, como todos os
outros textos citados, os seguintes trabalhos da dupla Bastide-Verger: “Contribuição ao estudo
da adivinhação em Salvador”, “Pesca na Bahia (Xaréu)”, “Procissões e carnaval no Brasil”, e
outros.

O CONTRAPONTO DE PIERRE VERGER 79

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Ainda são resgatados textos mais profundos — também produzidos
na viagem — do que os textos preparados para a revista O Cruzeiro: “Uma
festa dos inhames novos em Pobé”, “Ogum Igbo-Igbo” e “Contribuição
ao estudo sociológico dos mercados nagôs do Baixo Daomé”.
Mesmo não estando juntos na visita ao terreiro de Joãozinho da
Goméia, a publicação do texto de Bastide com as fotografias de Verger
em A Cigarra anunciava um campo profícuo de trabalho conjunto. A
revista A Cigarra mostrava um Brasil diferenciado nos seus aspectos
regionais. Entre as reportagens destaca-se “Um rio imita o inferno”,
sobre o rio Parnaíba, com fotos de José Medeiros e texto de José Leal.
São 19 fotografias publicadas, dando-se uma preferência explícita à vi-
sualidade por intermédio da diagramação. Ainda nessa edição uma re-
portagem sobre um culto religioso em Recife demonstra o interesse de
Pierre Verger por essas manifestações culturais no Brasil. “Adoradores
de astros da várzea do Recife” mostra o culto a um homem chamado
Bento Milagroso, ou Bento do Beberibe. Uma das fotos indica uma
ovelha designada para o sacrifício, não mostrado nas fotografias de Ver-
ger. Nessas duas reportagens, em uma mesma edição da revista, a opção
pela imagem acentua-se quando são usadas quatro imagens em uma
mesma página, cada uma ocupando um quarto do espaço, com uma pe-
quena legenda centralizada. Outras reportagens seguem essa linha: “O
roteiro do agreste”, publicada na edição de abril de 1949, com texto de
José Conde e fotos de José Medeiros, e nesse mesmo número a matéria
“Rodas de samba”, que dá grande destaque para as fotos de Pierre
Verger com texto de Cláudio Tuiuti Tavares. Na chamada da primeira
página, seis retratos de sambistas abrem uma visualidade muito ca-
racterística de Verger, os retratos anônimos da Bahia. São 12 fotografias
publicadas no total e duas ocupam página inteira. Com os mesmos fo-
tógrafos e jornalistas da revista O Cruzeiro, a revista A Cigarra era de
menor formato, mensal e utilizava o mesmo padrão imagético crista-
lizado por Jean Mazon.
A amizade entre Verger e Medeiros vem dessa época e Verger, durante
sua viagem à África entre 1948 e 1949, envia uma carta carinhosa para
Medeiros com os seguintes dizeres4:

4 Memorial José Medeiros na Casa de Cultura de Teresina, Piauí.

80 IMAGENS DO SAGRADO

02 CAPITULO 1-2.indd 80 2/7/2009 13:18:55


20 dec 48
Meu caro José Medeiros
Cheguei por fim no Dahomey adonde vou ficar um ano.
Encontrei aqui coisas super-interessantes. Tanto Brasileiras com os “des-
cendentes” dos que voltaram aqui no último siglo com todas as tradições
brasileiras — Já vi “Bumba meu boi”, “Sambas” estilo de Bahia —, vou fazer a
festa do Bonfim em Janeiro com segunda-feira gorda como na “boa terra”.
Do lado Africano é estupendo — vi cerimônias incríveis.
Espero colher bom material e mostrar-lhe algum dia.
Resta-me saber si “o cruzeiro” publicou algumas fotos minhas e se “O diário
da Noite” publicou a coisa das “Bush Negras” de gueyara.
Amizades a família — e aos amigos do cruzeiro e do teatro de ensaio.
Axé logo e escreva.
pierre verger

A Cigarra teve uma história editorial anterior à revista O Cruzeiro. Foi


criada em 1914 e existiu até 1956 (adquirida por Assis Chateaubriand
em 1933); tornou-se uma irmã menor da revista O Cruzeiro, iniciada em
1928. Dirigida pelo seu sobrinho Frederico, filho do irmão mais velho
de Chatô, A Cigarra foi por algum tempo mais importante do que O
Cruzeiro, na década de 30, e muitos autores e fotógrafos que se tornaram
famosos trabalhando em O Cruzeiro começaram em A Cigarra, como
Millôr Fernandes e Ary Vasconcelos. Com o passar do tempo e a trans-
formação implementada por Jean Mazon, O Cruzeiro tornou-se o prin-
cipal órgão dos Diários Associados.

Freddy diz que A Cigarra começou a deslanchar, enquanto na sala em frente,


O Cruzeiro marcava passo. Cheio de gás, com a força do tio em ótimo faro
para talentos, começou a dar palpites. Aos poucos foi transferindo sua turmi-
nha para a revista de Accioly. Nem tinha nome no expediente, mas começou
a ocupar espaço. (Carvalho, 2001, p. 57)

A dupla francesa Verger-Bastide vai mostrar pela primeira vez ao


grande público brasileiro aspectos detalhados da religião afro-brasileira do
candomblé na reportagem publicada em junho de 1949. A profundidade
relativa do texto de Bastide, no contexto e no perfil da revista, e a força
das imagens de Verger tornam essa matéria uma primeira visualidade
positiva da religião nos meios de comunicação de massa no Brasil. Nesse
mesmo número de A Cigarra (junho de 1949), outra reportagem, “Caroá”,

O CONTRAPONTO DE PIERRE VERGER 81

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enfatiza as imagens de Verger e sua figura despojada, com texto de José
Leal. Assim começa o texto da matéria:

Pierre Verger é um espírito irrequieto, um homem apaixonado pelas aven-


turas arriscadas, um fotógrafo internacionalmente conhecido. Sei que ele é
francês mas nunca perguntei-lhe em que parte da França nasceu. Está entre
os quarenta e cinco anos de idade, já percorreu a maior parte do mundo, e sua
bagagem consta apenas de três blusões, três calças, um par de sapatos, roupa
interna, sua máquina fotográfica e um arquivo de negativos que constitui
um documentário riquíssimo. Alto, apressado, afável, bom companheiro, ele
pensa unicamente em viajar. Esteve no Brasil por mais de dois anos, morou na
Bahia e fez centenas de reportagens e agora está na África de onde escreveu
longa carta para José Medeiros. Certa vez encontrei com ele no interior do
Maranhão. “Oh, sua chegada foi muito oportuna. Eu estou querendo fazer
um passeio a Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Quer ir comigo
para fazer os textos das reportagens que pretendo fazer?” — Naquele mesmo
dia embarcamos num caminhão de carga, vencendo estradas perigosas, até
chegar em Campina Grande, na Paraíba. Nessa cidade tomamos um avião
que nos deixou no Recife. Mais tarde, Verger conseguiu o avião particular de
um amigo para sobrevoar o estado do Pernambuco. O mau tempo entretanto
impediu nossa viagem de observação. Os planos dele foram abaixo, e na
mesma semana Verger decidiu fazer uma reportagem sobre o caroá, planta
nativa cuja fibra resulta em cordas e tecidos, que enriqueceu um grande
número de nordestinos.

O texto de Leal coloca Verger no campo das decisões de sua própria


pauta, assim como acontecia com os fotógrafos em O Cruzeiro e A Cigarra.
Mas Verger, por estar deslocado do centro das decisões das revistas no Rio
de Janeiro, tinha plena autonomia para circular fotografando acompa-
nhado por um jornalista de texto, principalmente Odorico Tavares. Nesse
mesmo ano fez com Leal uma reportagem para O Cruzeiro: “Baianas das
saias rodadas”, publicada no dia 5 de fevereiro. A decisão sobre Verger
publicar em A Cigarra ou em O Cruzeiro ocorria no Rio de Janeiro pela
direção das revistas. “Caroá” tem um texto que apresenta o fotógrafo,
descreve superficialmente o contexto da produção do caroá, fazendo com
que a matéria se torne basicamente visual, com 11 fotografias publicadas
ocupando grandes espaços na diagramação.
Candomblé tem 11 imagens de Verger publicadas. As imagens mostram
cenas de uma cerimônia pública e Verger mantém-se a certa distância

82 IMAGENS DO SAGRADO

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respeitosa. A primeira imagem ocupa quase toda a página dupla, restando
uma pequena coluna para a introdução do texto de Bastide. Anuncia-se,
portanto, o candomblé por intermédio da imagem de uma divindade sen-
do reverenciada; dessa forma, a abertura imagética da reportagem acentua
os procedimentos ritualísticos. As imagens, quase todas de corpo inteiro,
sem uso de uma grande angular, acentuam o contexto. Não vemos uma
fotografia que poderia destacar-se das outras no sentido de identificar o
pai-de-santo ou a mãe-de-santo. Ao não personalizar as imagens com
referências ao nome e ao cargo, a edição reflete o próprio texto de Bastide,
que somente situa o terreiro de Joãozinho da Goméia, com poucas falas
sobre o principal mestre da casa, e apresenta o candomblé através de uma
visão mais genérica. As legendas também não nomeiam as pessoas, sendo
exaltações à origem africana, ao roteiro penoso dos navios negreiros, dos
quais se ouve o “rumor”, à dança do “Ballet Negro”, à confraternização
do “abraço litúrgico”.
O texto de Bastide alude, no início, à sua viagem no caminho do ter-
reiro de Joãozinho da Goméia, pelas estradas da Bahia, com “um grupo
de amigos”, para ver no espaço cerimonial a Festa do Nome: “A noite
caía sobre a estrada litorânea onde se defrontavam e se confundiam os
perfumes das árvores tropicais das florestas selvagens da terra e o odor
persistente de iodo e de maresia, vindo do mar próximo”. Mesmo citando
Arthur Ramos e Nina Rodrigues no parágrafo anterior, demonstrando seu
conhecimento da bibliografia, Bastide sabia que estava escrevendo para os
leitores da revista A Cigarra, envolvendo-os com o mistério e o exótico. E
o faz de forma poética, em doses equilibradas, entre o onírico e o etnográ-
fico. Antes de entrar nos aspectos mais descritivos da cerimônia, Bastide
diz que em ocasião próxima tinha visto iaôs em camarinhas com “os rostos
afogados na brancura da fazenda [...] semelhavam a humildes crisálidas
[...]” que aos banhos de ervas preparados pelo babalorixá abririam suas
cabeças e seus corpos para entrada do divino e assim “[...] desvencilharia
as asas das dançarinas dos deuses” (Bastide, 2001, p. 328).
Assim, Bastide cria com sutilezas que lhe são próprias a temporalidade
e a anterioridade da Festa do Nome, colocando para um leitor atento
que havia um percurso ritual para chegar ao nome religioso das jovens
iniciantes dali para frente. Depois dessa introdução, Bastide mergulha
na sua veia antropológica e o texto flui para as descrições da cerimônia,
para a análise do sincretismo e para particularidades do terreiro:

O CONTRAPONTO DE PIERRE VERGER 83

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Em nenhuma parte eu havia visto cerimônias iguais, em que os iaôs entrassem
enfileirados com as vestimentas dos orixás. Joãozinho, que é um admirável
maître de ballet, aqui, abandonou-se, certamente, à sua fantasia de criador
estético. A cena é grandiosa e os corpos negros pintalgados de branco são
como noites estreladas da África.

As imagens finais saltam aos nossos olhos pelos detalhes, uma foto
próxima de uma mão tocando um instrumento anuncia em tom dramático
“o agogô se agita e o ritmo se torna mais feroz”, antecipando uma imagem
que retrata partes de um boi em um altar, principalmente a cabeça e as
patas em posição sagrada, e os dizeres: “Enfim — a imolação”.
A imagem mostra as partes de um animal sacrificado para um orixá
ofertado em seu altar próprio, mas o sacrifício não é mostrado e sabemos
que aconteceu em cerimônia anterior à saída das iaôs. A imagem final, a
única na exterioridade do terreiro, realizada à luz do dia, anuncia o fim da
cerimônia: “ e quando desponta a madrugada os atabaques emudecem”.
O texto de Bastide não conduz a uma narrativa forte na qual o sacrifício
aparece com tom dramático, mas o final é uma interação entre texto e
imagem, quando Bastide diz que vai descer rumo à cidade adormecida,
no último bonde, a imagem final do altar nas cercanias do terreiro marca
a territorialidade sagrada de uma divindade que ficou emanada da energia
ritualística.
Diz Bastide no final do texto:

A festa está terminando. Segundo o costume, vou comer o resto do alimento


dos deuses. E depois, partirei só. Quero descer, rumo à cidade adormecida,
levando a cadência da música, que continua em minha memória. Tomarei
o último bonde que geme nos trilhos. Perto de mim, entre os passageiros,
alguma filha-de-santo, de novo em roupa triste de trabalho, ainda trará nos
olhos o brilho do amplexo dos deuses. (Bastide, 2001, p. 330)

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CLOUZOT NO BRASIL, O CASO PARIS MATCH

enri-Georges Clouzot, cineasta francês de grande importância na


Hcinematografia francesa e internacional, diretor de clássicos como Le
corbeau e Manon, chegou ao Brasil no começo de maio de 1950, acompa-
nhado por sua mulher brasileira, Vera Amado, filha do escritor Gilberto
Amado. A intenção de Clouzot era fazer um filme intitulado a princípio
de Le Brésil, com roteiro incerto, mais voltado para um diário de viagem,
segundo suas próprias palavras:

Não preparei nada. Será uma coisa impressionista, o enredo formado pelos
fatos à medida que se processarem. Só quero filmar o que sentir e não o que
me disserem, mas para sentir preciso ter conhecimento das coisas, estudá-
las. Antes de vir para cá não quis ler nada sobre o Brasil, a fim de não ter
opiniões já feitas e preservar a primeira impressão. Agora estou lendo muito,
já comecei Os sertões1.

Clouzot foi recebido com muita deferência, por onde passava a bur-
guesia nacional realizava reuniões com a intelectualidade local, assim foi
no Rio de Janeiro, em São Paulo e na Bahia, encontros nos quais todos
queriam fornecer informações pontuais importantes para suas pretensões,
e, dessa forma, foi coletando informações e histórias sobre o Brasil. Com
seu jeito franzino, agitado e querendo mais informações, foi colecionando
uma série de “primeiras impressões”, que já lhe permitia dizer: “Uma coisa
que muito me impressiona, aqui no Rio de Janeiro, é a ignorância dos
cariocas relativamente ao interior do Brasil. Acho que sei mais do que
muita gente carioca. Conto coisas que sei serem verdadeiras e as pessoas

1 “Clouzot quer mostrar o Brasil aos brasileiros”, entrevista ao Folha da Manhã, 11 jun., 1950.

CLOUZOT NO BRASIL, O CASO PARIS MATCH 87

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me olham desconfiadas”2. Sua formação de iniciante brazianist já lhe
permitia traçar suas primeiras observações sociológicas:

Seu país é um país heróico, isto é, até certo ponto ainda se encontra numa
idade heróica. Os sertanejos vivem numa luta constante contra inúmeras
dificuldades, especialmente a falta de comunicações. Ao lado de casos de es-
forços sobre-humanos, encontra-se também muita indolência e um estranho
desinteresse. Creio que, como resultado da herança indígena, ainda falta o
instinto de fixação: continuam nômades, plantam um pedaço de terra e feita
a colheita, mudam-se para outro lugar [...]3.

Sua entrevista para o jornal Folha da Manhã foi realizada em uma


reunião social no Rio de Janeiro, e ele afirma ainda que queria mais do
que mostrar a unidade do país, queria “prová-la”. Esse encontro deu-se
depois de sua primeira viagem ao interior do país rumo a Goiás. Queria
ele refazer o percurso dos bandeirantes, “do pior para o melhor”, partindo
de Goiás, até o rio da Prata, Minas Gerais e São Paulo. No Rio, já tinha
filmado os contrastes arquitetônicos entre as grandes obras e as favelas e,
dizendo que ficou impressionado com a rapidez da construção do Estádio
Municipal (que também filmou), continuou sua impressão sociológica
sobre o trabalhador brasileiro: “No entanto, os operários pareciam inativos,
e tive de pedir-lhes que fingissem trabalhar para a filmagem!”4. Clouzot
era muito ambicioso e generalizante com sua perspectiva de filmar o
Brasil, afirmando: “Pode ser que eu falhe, mas, se não falhar, terei obtido
uma coisa única na história do cinema. Um documentário que não é um
documentário. Algo que reúne o interesse humano, político, geográfico
e social. Conforme já disse, procurarei unificar na tela os aspectos hete-
rogêneos e a diversidade do Brasil”5.
Considerava o sujeito “Brasil” como uma entidade que pudesse ser
condensada em uma película, um olhar de estrangeiro voltado para o
exterior.
Parece que a passagem de Clouzot foi incentivada pela convivência
com sua linda mulher. Já em outra ocasião fala da relação fulminante com

2 Ibidem.
3 Ibidem.
4 Ibidem.
5 Ibidem.

88 IMAGENS DO SAGRADO

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Vera, quando da primeira vez que a viu e deixou sua mulher, Susi Delair,
e convidou-a a dançar uma música brasileira que tocava naquele momen-
to. A decisão pelo divórcio veio em questão de dias, segundo ele. Vera
seria o personagem principal de seu filme, que teria também o nome
Brasil — O diário de uma viagem: “[...] agora, felizmente casado com Vera,
nada melhor para provar o meu afeto por ela que prestar uma homenagem
merecida e sincera aos meus patrícios, fazendo um filme para o mundo,
a fim de levar ao estrangeiro a beleza desse país que também é o meu de
coração”6. Clouzot trouxe consigo 3 mil e 500 quilos de equipamento, e
os gastos seriam por sua conta no valor de mais de 70 milhões de francos;
as filmagens durariam um ano. Com ele veio uma equipe técnica, entre
eles o conhecido fotógrafo de cinema Armand Thirard.
Paulo Duarte escreveu um artigo na sua revista Anhembi7 sobre a
passagem de Clouzot pelo Brasil. No artigo publicado quase um ano
depois da passagem do cineasta francês, relata o malogro das filmagens.
Ressalta a excelência da equipe técnica nomeando-os8 e dizendo que
tinha apoio de “inteligentes capitalistas”, e o próprio capital de Clouzot
de Cr$ 5.000,00.
O artigo relata as dificuldades enfrentadas pela equipe para liberar seus
equipamentos, ficando dois meses sem filmar, envolvidos com a liberação
do material e as dificuldades de importar película virgem, solicitada “três
dias após o meu desembarque [...]. Exaltado como uma personalidade
[...] gente como Clouzot deveria ser recebida com todas as facilidades”,
ainda teve de contar com “advertências veladas da censura”, preocupada
com a temática e a opção naquele momento já explicitada por Clouzot
de filmar os usos e costumes religiosos da Bahia, “entre os quais cenas de
macumba e de magia primitiva, tão comum entre populações de origem
africana”, dizia o artigo.
O mesmo navio que trouxera a equipe técnica e o pesado equipamen-
to profissional retornou para a França levando-os depois da malograda

6 “Vencido pelo amor a uma carioca sob o som duma música brasileira”, entrevista ao Diário de
Notícias, 7 maio, 1950.
7 “Henri-Georges Clouzot e o Brasil”, Anhembi, n o 5, vol. II. São Paulo, abr., 1951,
pp. 396-8.
8 “[...] operadores Thirard, Pecqueux e Ducop, responsáveis pela fotografia das melhores películas
francesas atuais, algumas delas premiadas em vários festivais europeus; dois engenheiros de
som, Sivel e Bocher [...]”.

CLOUZOT NO BRASIL, O CASO PARIS MATCH 89

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tentativa de filme sem roteiro e produção, somente uma idéia aventurosa.
Clouzot e sua mulher Vera ficaram no Brasil interessados cada vez mais
pela Bahia e seus mistérios, aludindo a um outro projeto que causou
manifestações sobre a “desmoralização” do país depois de uma nota na
revista Paris Match na qual Clouzot indicava que queria fazer agora um
novo filme somente interpretado por atores negros. O artigo defende o
cineasta, apontando que os problemas brasileiros em relação ao aspecto
moral são de outra ordem, e indica a imprensa sensacionalista, os políticos
e os governantes como o fator desmoralizante:

Há em nossas incribilíssimas câmaras federais, estaduais e municipais, as


quais, para os seus deputados e vereadores, não passam de um escritório de
negócios, escusos na maioria das vezes... Há outras coisas muitíssimo mais
desmoralizantes por aí a passar em branca nuvem e que por vezes tornam o
Brasil motivo de pilhéria humilhante e ninguém se lembra de apelar para a
ação de “nossas autoridades”. Bastou, porém, que um cineasta do porte de
Clouzot escolhesse o Brasil para campo de uma experiência que só poderia
lisonjear o país, para que a patriotada e os catões de esquina surgissem em
defesa dos brios nacionais, profundamente lesados pela leviandade de um
artista francês, a tirar da Bahia motivos para realizar uma película inteira-
mente interpretada por negros e inteiramente vivida no ambiente caracte-
rístico desses negros.

Tal película, seu roteiro e seu argumento nunca vieram à tona; qual era
o filme que Clouzot queria fazer no Brasil, não sabemos até hoje.
Paulo Duarte exalta ainda mais as pretensões de Clouzot na Bahia, ao
dizer que o Brasil e a França teriam a lucrar com tal empreitada e de uma
forma colonizada termina: “O Brasil, porque verá inscrito, numa película
assinada por um grande artista, um pouco do folclore, dos costumes de
uma de suas regiões mais pitorescas e mais ricas em motivos cinemato-
gráficos. E a França, porque terá registrado em seu cinema uma curiosa
experiência impressionista, realizada por um de seus mais ilustres [...].
Mas, chegaremos a ver tudo isso?...”, termina o artigo.

90 IMAGENS DO SAGRADO

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Reportagem “As possuídas da Bahia”,
Paris Match, 12 de maio de 1951

Henri-Georges Clouzot traz do Brasil um extraordinário documento


etnográfico:

AS POSSUÍDAS DA BAHIA

Pela primeira vez um branco pode penetrar no santuário dos deuses negros onde
se praticam os ritos sangrentos de iniciação. É a primeira reportagem fotográfica
do grande diretor Clouzot e Paris-Match a publica com prioridade mundial.

No meio do século XX, em 1950, um quarto dos 400 mil habitantes de uma
cidade moderna continua a celebrar Shango, o deus do trovão e dos raios. Em
Salvador, capital do estado brasileiro da Bahia, para 96 igrejas há 453 templos
fetichistas declarados à polícia, sem contar os clandestinos.
Tendo partido para o Brasil em 1950 para rodar um filme, o grande diretor
francês Henri-Georges Clouzot — autor do Corbeau (Corvo), de Manon, de
Miquette et sa Mère (Miquette e sua Mãe) — renunciou ao seu projeto para mer-
gulhar com Vera, sua mulher, no estudo dos ritos fantásticos que assombram as
noites da maior cidade negra da América do Sul.
A alucinante reportagem que ele traz de lá vai aparecer nas livrarias sob o
título O Cavalo dos Deuses. “Paris-Match” assegurou-se da exclusividade dos
documentos fotográficos que Clouzot realizou no curso das cerimônias secretas
onde ele foi excepcionalmente admitido após três meses de pesquisas e proce-
dimentos. O cineasta nunca tinha usado uma câmera fotográfica. Seu sucesso
surpreendeu a ele próprio.
O Brasil é uma terra de contrastes espantosos. Em São Paulo termina-se
um arranha-céu a cada quarto de hora, mas o policial negro da Bahia vai à noite
fardado às cerimônias fetichistas. A “Panair do Brasil” colocará em serviço, no
próximo ano sobre o Atlântico, aviões à jato, mas em Salvador, a cada ano, uma
procissão vai afogar um garanhão negro para que “Yemanja”, deusa do oceano,
possa cavalgar agradavelmente seu reino submarino.
“A canção que o barman assobia”, escreve Clouzot, “é um cântico africano em
homenagem a Oshun, que habita as águas doces, e o ascensorista do Palace usa
sob sua camisa o colar de Ogoun, que preside a guerra. No escritório do hotel você
pode ligar para Paris ou New York, só que a telefonista que fará a comunicação é

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uma iniciada. Ontem à noite, na festa secreta, Omolu, o deus da peste, baixou em
sua cabeça, ou talvez fosse Santa Bárbara ou Nossa Senhora do Rosário.”
Uma noite, Clouzot, após mil procedimentos, foi conduzido a uma cerimônia
fetichista nos subúrbios da Bahia. Assim que se aproximou, sob a tempestade, do
“lugar santo”, ele percebeu pela primeira vez a cadência misteriosa dos tambores
sagrados.
“Eu parei, levantei a cabeça. Vera também ouviu os tambores. As vibrações
tocam em nós qualquer coisa de mais profundo do que o que se pode exprimir.
Ainda mais implacável ou angustiante...”
Na sala semi-iluminada onde ocorre a cerimônia, jovens negras dançam.
Seus rostos estão tensos, seus olhos fechados, seus lábios tão apertados que
estão arroxeados. De vez em quando elas soltam grunhidos de animais. Elas estão
possuídas. Um “deus” que lhes entrou na cabeça dita seus gestos, suas palavras,
seus passos. Todo um povo de negros as segue com olhos fascinados. Às vezes,
na multidão, uma mulher levanta, perde o equilíbrio e, como que embriagada,
se deixa ir de um lado para outro da pista.
“A jovem, conta Clouzot, tampa os ouvidos, aperta os punhos e o maxilar.
Ela se debate com todas as suas forças contra um fantasma. Mas o maestro que
tem o maior dos tambores sagrados viu a cena: ele precipita o ritmo dos tam-
bores. Dessa vez a infeliz não escapará. Ela o sabe e se abandona ao tremor
terrível que a agita dos pés à cabeça. Seus pés não se movem no solo, mas a
cabeça balança a toda velocidade, da frente para trás e de trás para frente, sobre
um pescoço completamente desarticulado. Ela vai e vem sob uma chuva de
golpes invisíveis, como um punching-ball. Depois a dançarina se imobiliza e toma
a pose ritual, com suas duas mãos atrás das costas. A jovem possuída pelo de-
mônio começa a dançar. Certas “possuídas” dançam assim durante quarenta e
oito horas ininterruptas. Os negros as chamam de “filhas-de-santo”.
Toda a noite, a festa (o “Candomblé” no dialeto local) continua, com períodos
de paroxismo espantoso.
No Brasil, os raros intelectuais que se interessam por essas estranhas mani-
festações foram incapazes de fornecer a Clouzot a explicação dessas possessões
em cadeia, desses fenômenos de histeria fantástica.
O cineasta e sua jovem mulher resolveram penetrar mais fundo no mistério.
O relato de suas desventuras iluminam com algo de pitoresco sua “reportagem”
de pesadelo.
Desde a primeira noite, eles foram “carregados” (como o próprio Clouzot
confessa) por uma rabatteuse (pessoa que angaria clientes) que os conduziu por

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mil atalhos ao casebre de um “feiticeiro” de grande reputação local. Este lhes
extorquiu inicialmente 2.000 francos e propôs a Vera de lhe “ler a sorte”.
“Nunca houve necessidade”, nota Clouzot maliciosamente, “de insistir muito
junto a uma mulher para que ela tenha seu futuro adivinhado, sobretudo por
um feiticeiro negro.”
O adivinho, após intermináveis
caretas, pronunciou o seu oráculo:
— Você tem um mau olhado
contra você — disse para Vera.
Eu olhava Vera, ela estava cons-
ternada. Uma brasileira pode ter
sido educada no colégio de freiras,
falar cinco idiomas correntemente,
ter percorrido a Europa e as duas
Américas, conhecer a gíria de Saint-
Denis e ao mesmo tempo poder re-
citar vinte páginas de Claudel — ela
não deixará de ser a criança supers-
ticiosa que foi.
Quantas vezes eu vi Vera pular
da cama precipitadamente para des-
virar uma pantufa caída de cabeça
para baixo! Ainda me lembro do dia
em que ela me alertou pela primeira
vez contra as forças ocultas.
“— Você não acredita? Você
não acredita nas forças ocultas?
Puxa! Mas é loucura! E você fala
isso em alto e bom som! Você não
se dá conta de que está provocando?
Mon Dieu de la France (meu Deus),
proteja-o! Bata na madeira, rápido,
não, assim não, por baixo.”
Clouzot teve de romper relações
com o feiticeiro quando este pediu,
para iniciá-lo em outros mistérios,
3 galinhas — uma branca, uma preta e uma mestiça — um litro de óleo, 5 me-
tros de diferentes tecidos, 6 velas e 260 “cruzeiros”.

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A EMPREGADA DE CLOUZOT
ERA UMA FEITICEIRA

Para ter todo o dia sob as mãos um objeto de estudo, Clouzot decidiu contra-
tar como empregada uma “filha-de-santo”. Sua primeira empregada que possuía
esta mística qualidade chamava-se Petronília. Ela tinha dois filhos e tomava três
banhos por dia. Ela também roubava comida. Petronília passava por longos esta-
dos de embrutecimento total, durante os quais não se podia tirar nada dela.
Interrogada sobre suas possessões noturnas, ela declarou somente:
— Quando me dá isso, num sei que qui mi acontece. Eu sinto tudo zanzando
e dá dor de cabeça. E quando eu acordo, num lembro mais di nada.
“Petronília foi substituída”, conta Clouzot, “por uma espécie de monstro
pré-histórico que se chamava Anita.” Este diplodocus (gigantesco réptil dinos-
sauro fossilizado) que tinha dois ventres, um pela frente e outro por trás, se
acocorava em um canto da cozinha na hora do almoço para devorar bolotas de
farinha amassadas longamente entre seus dedos cheios de gordura. Anita não
falava. Ela se exprimia por grunhidos, por gestos, por onomatopéias. Ela chegava
raramente a pronunciar três palavras em seqüência. E elas ainda não faziam o
menor sentido.
— Anita — perguntava Vera — o que é que nós temos para almoçar hoje?
— Ahn... uhn...
— Para o almoço? Anita?
— Ahn... coisas.
— Tá... mas que coisas?
— eh... de comer.
— Claro... mas o que de comer?
— Ummmm... do bom...
Não se pode nunca tirar nada mais.
O diretor do hospício local não foi nem um pouco sutil.
— O “candomblé”? Não conheço.
Fui uma vez. Repugnante... Se fosse o delegado de polícia, fecharia tudo.
Os médicos não eram mais explícitos.
— 30% de simulação e de resto um pouco de tudo. Muita histeria, alguns
casos de esquizofrenia e excepcionalmente alguma coisa que não se reduz a nada
de patológico: nem neurose, nem psicose.
— O que, então?
Mas Clouzot não recebia em resposta senão gestos de ignorância. Ele des-
cobriu pouco a pouco que os verdadeiros iniciados nos segredos do candomblé
eram muito pouco numerosos.

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Vera propôs então heroicamente de se fazer “filha-de-santo”. O que a dis-
suadiu foi a idéia de que ela teria de deixar raspar sua cabeça.

SACERDOTE NESTOR ABRE


AS PORTAS DO MISTÉRIO

Clouzot marcou passo por longas semanas (“todas as noites ficava à espreita
do som dos tambores”, disse ele) antes de entrar em contato com um verda-
deiro “pai-de-santo”, o feiticeiro fetichista Nestor. A expressão “pai-de-santo”
designa o “pai” que inicia as jovens nos mistérios do rito e leva-as ao estado de
possessão por “um deus”. Elas tornam-se então “filhas de santo” e participam
dos “candomblés” organizados a cada noite nos lugares santos. “Fazer seu santo”
é sofrer sua primeira possessão.
Com Nestor, Clouzot entra enfim em pé de igualdade no mundo secreto
dos negros fetichistas.
Nestor consente em iniciar algumas jovens negras em presença de Clouzot,
que deve pagar o preço dessas cerimônias. Nestor pede 70 mil francos e um
lampião com bomba. Durante duas semanas as duas jovens ficam seqüestradas
em um cômodo nu, quase sem comida, mas empanturradas de infusões miste-
riosas. De vez em quando, Nestor entra no cubículo onde as infelizes criaturas
estão deitadas de bruços. Ele as ofende e humilha. As negras beijam suas mãos
tremendo. Elas estão reduzidas a um incrível grau de submissão.
— Vocês são animais, vocês não existem? — fala pausadamente o feiticeiro
na semi-obscuridade fétida da cela.
As jovens recebem também banhos de ervas, de uma composição secreta,
e devem submeter-se à inalação de substâncias entorpecentes. Elas caem logo
em um estado próximo à infância, chupam incessantemente seu polegar e só se
exprimem por onomatopéias como os bebês.
Clouzot e Vera foram obrigados a se submeter a curiosas cerimônias. Vera
teve que dançar e cantar nas cerimônias. Clouzot teve que “dar de comer à sua
cabeça”, quer dizer, colocar sobre seu crânio diversos alimentos.
O rito de iniciação das jovens toma pouco a pouco um aspecto horrível. Nes-
tor faz entrar as duas postulantes e tira de um caixote dois pombos brancos.
“Nestor está de pé”, conta Clouzot, “o pombo se debate na sua mão esquerda.
Com um golpe de polegar, ele faz saltar sua cabeça e antes que o sangue tenha
tempo de jorrar, ele introduz o pescoço do pombo na boca da jovem que avança
os lábios avidamente. E, eis que em um último espasmo, a vítima decapitada
põe-se a bater as asas. Suas penas brancas batem nas bochechas negras. É como

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um mecanismo que se aciona: o gosto do sangue desencadeia o “deus” e o “deus”
transmite seu delírio ao corpo da “possuída”, que se abandona aos seus impulsos
furiosos. Os transportes são assustadores. Pela primeira vez, Vera empalidece sob
seu bronzeado... As mulheres, iradas, balançam suas presas por todos os lados,
em um turbilhão de penugem. Elas apertam tão forte os maxilares que Nestor
precisará de muitos minutos para desapertar seus dentes e fazê-las soltar os
restos dos pássaros.”
As jovens, que foram previamente raspadas e pintadas em todo o corpo, são
então ungidas e molhadas com sangue de galinha.

RITOS SANGUINÁRIOS HERDADOS


DA IDADE DA PEDRA

Nestor pratica sobre seus braços, seu peito e sua língua incisões com lâmina
que as deixam praticamente insensíveis. Depois ele as inunda com sangue fresco
de um bode, em meio a um tumulto de cânticos e de convulsões. “Nós ficamos
abestalhados, mudos, paralisados. Era inútil recuar os limites da repugnância,
encontrava-se sempre um detalhe nojento para ultrapassar ainda mais esses
limites: as manchas vermelhas nas calças, a cabeça do bode que uma mulher
levava pela orelha entre seus dentes, as máscaras e trejeitos faciais atrás dos quais
não encontrávamos mais traços humanos, sob a crosta formada pelas penas e
coágulos diluídos no suor.”
Mas o horror desse espetáculo desperta também ressonâncias distantes. Muito
antes de Buda e Confúcio, o fetichismo reinou nas cavernas onde a humanidade
da idade da pedra tomava consciência dos mistérios da morte e do além.
“Nós nos sentíamos em presença de alguma coisa tão antiga, tão fora das
eras, que um estranho respeito nos fazia esquecer a nossa náusea.”
Clouzot também teve de beber, do pescoço recentemente cortado, o sangue
quente de um pombo.
“Assim”, concluiu o cineasta, “terminou-se essa experiência apaixonada”.
Alguns dias mais tarde ele reencontrava, longe dos deuses selvagens, a razoá-
vel Europa no clima pomposo do barco inglês que o levava de volta para a
França.
As conclusões que ele tirou da sua incursão no mundo proibido dos últimos
fetichistas não são menos extraordinárias que as aventuras que ele viveu.
Clouzot ficou surpreso com as semelhanças apresentadas pelo trabalho do
“pai-de-santo” com o do psicanalista. Lá e cá, leva-se o doente (ou o futuro ini-
ciado) a regressar até o estado infantil. É assim que as jovens negras, submetidas

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aos procedimentos de Nestor, falavam e agiam como bebês. Parece que as provas
do feiticeiro constituem um tratamento de certas neuroses, que, eliminando as
crises agudas, conservam essas neuroses e as fixam em certas formas regulares.
No curso das sessões de iniciação, os postulantes são autorizados a satisfazer
seu complexo de agressividade: os ritos sangrentos cumpririam esse objetivo.
Tratar-se-ia fundamentalmente de verdadeiras curas de “desrecalcamento”, de
redução dos complexos.
“Tudo isso”, acrescenta prudentemente Clouzot, “é infinitamente mais com-
plicado, mais incerto na realidade. Os fetichistas bahianos continuaram primiti-
vos; raciocinar logicamente com eles ou a propósito deles deturparia tudo, pois
isso seria introduzir um elemento estranho à sua consciência.”
De fato, nenhuma explicação científica ou filosófica pode conjurar o encan-
tamento das divindades negras africanas. Clouzot reencontrou o céu razoável
da Ile-de-France (região parisiense), mas confessa que, quando fecha os olhos,
lhe parece ouvir, em alguma parte, muito longe, como um eco, a pulsação dos
tambores gigantes, os gritos inumanos das “filhas-de-santo” que se debatem para
matar seus demônios.

Não esperavam todos os seus anfitriões brasileiros que tal passagem


conturbada de Clouzot pelo Brasil, não conseguindo fazer com que suas
idéias de um filme genérico sobre o país se concretizassem, causasse ainda
mais polêmica com essa reportagem e colocasse a todos que o receberam
em estado de indignação e revolta. Clouzot escreveu e lançou um livro na
França em 1951, Le cheval des dieux, e como uma espécie de marketing,
também é publicada na ocasião a matéria na revista Paris Match com ca-
ráter sensacionalista que vai causar manifestações de intelectuais e artistas
no Brasil, pela imprensa nacional.
Neste estudo um fato foi muito significativo. Quem fez a pesquisa
nos jornais da Bahia foi meu assistente, Cláudio David da Cruz, e quan-
do, ainda a distância, lhe solicitei que fizesse uma pesquisa sobre a revis-
ta O Cruzeiro, não tínhamos a informação sobre a reportagem da revista
francesa, e as matérias nos jornais baianos sobre essa reportagem passa-
ram despercebidas. Entretanto, como tínhamos Pierre Verger como um
contracampo imagético e ético, confirmado pelos depoimentos e pela
documentação, encontramos um farto material recolhido por ele e guar-

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dado entre seus pertences na Fundação que leva seu nome. Portanto,
Verger acompanhava os fatos e mantinha-se informado do que acontecia
na mídia, mas manteve silêncio nos seus escritos e mesmo com as pes-
soas próximas. Assim, não foi preciso voltar aos jornais novamente e
percorrer dia a dia as publicações para encontrar as possíveis manifesta-
ções sobre a revista francesa, felizmente Verger já o tinha feito, coletan-
do as matérias dos jornais e guardando-as em seus arquivos pessoais.
A reportagem publicada no dia 12 de maio de 1951 pela revista fran-
cesa Paris Match, com o título: “As possuídas da Bahia — Henri-Georges
Clouzot traz do Brasil um extraordinário documento etnográfico”, apre-
sentava uma série de fotografias, inclusive imagens de iniciação. Tal re-
portagem foi reproduzida na íntegra pelo jornal A Tarde, de Salvador,
em três dias seguidos, 10, 11 e 12 de julho de 1951, com a publicação de
fotografias de Clouzot, repercutindo ainda mais a publicação francesa
na capital da Bahia. Nessa altura da pesquisa, ficou clara a forma pela
qual os baianos tiveram acesso à reportagem estrangeira e também como
e quando quiseram discutir seu conteúdo, pois não tínhamos no início,
conforme a introdução, como saber a penetração da Paris Match além do
seleto grupo de intelectuais que tinham acesso às publicações estrangeiras.
A publicação de toda a reportagem em jornal da capital, e ainda por três
dias seguidos, tornou acessível a reportagem da revista francesa para o
público baiano. Com o título de chamada “Um francês em visita aos
candomblés”, ainda tinha dois subtítulos: “Pela primeira vez um branco
pode penetrar no santuário dos deuses negros onde se praticam os ritos
sangrentos da iniciação” e “Reportagem em Paris Match, do grande ci-
neasta Georges Clouzot, que esteve na Bahia no ano passado”.
O mesmo jornal publica anteriormente no dia 7 de julho de 1951 uma
reportagem na qual traz como título a opinião de um eminente pesqui-
sador: “Roger Bastide protesta contra as reportagens de Clouzot”.
Em passagem por Salvador, “[...] em viagem mais de passeio do que
de estudos”, o sociólogo francês acusa o cineasta de sensacionalismo que
não exprime a realidade do culto afro-brasileiro na Bahia. Bastide se diz
um admirador da “boa terra”, das tradições e dos costumes baianos e
aproveitará a viagem para recolher material folclórico, histórico e artístico,
e que, se houver festa em algum “terreiro”, irá assisti-la.
Indagado pela reportagem sobre a matéria de seu conterrâneo, Bastide
afirma que “[...] observa nessa reportagem apenas um cunho sensaciona-
lista, nela não se encontrando uma orientação científica”. Ainda questiona

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a fidelidade das imagens e das informações da reportagem retiradas da
fala de pais-de-santo que facilitam acesso a estranhos aos segredos do
candomblé, recebendo para isso remuneração, como o tal Nestor o fez
com Clouzot. Bastide tinha consigo um exemplar da revista Paris Match
e questiona a informação de Clouzot ter dito ser ele o primeiro branco a
penetrar na camarinha. Mesmo sem citar, Bastide já havia mencionado
que entrara na camarinha na reportagem publicada pela revista A Cigarra,
e mais, diz:

Isso não é verdadeiro. Antes dele outros brancos já entraram em tais recin-
tos. Basta dizer que nem todos os fetichistas são negros; há gente branca
entre eles, inclusive uma filha de espanhóis. Agora, que tenha sido ele um
dos primeiros a publicar fotografias de camarinhas e de algumas cenas mais
íntimas dos candomblés, não tenho dúvida e devo acrescentar que houve
aí espírito sensacionalista, dando-se à publicidade de segredos da religião
afro-brasileira.

Bastide ainda questiona a visão colonialista de Clouzot de não en-


xergar o caráter moderno de Salvador, criando uma imagem de “primiti-
vismo”, que estaria impressa em toda a cidade pela sua fala afirmativa de
que um terço da população era de “fetichistas”: “Acho que a civilização
africana está bem desenvolvida, mas como a Bahia, pela sua expressiva
maioria, professa outros costumes, está na civilização que adotamos na
Europa, escrevi artigos que serão publicados em São Paulo e em Paris,
protestando contra essas afirmações do meu patrício”.
O teor dessa reportagem foi noticiado também pelo jornal O Globo
de 18 de julho de 1950, com o título: “Caluniada em Paris a cidade de
Salvador. — A reportagem de Clouzot agita a sociedade baiana — O
sociólogo Roger Bastide contradiz seu patrício”. A reportagem reproduz
uma das imagens fortes de Clouzot (o sacrifício de uma pomba na cabeça
de uma iaô) e acrescenta: “Deixamos de reproduzir outras, a fim de não
ferirmos a sensibilidade dos nossos leitores”. Por meio de um telegrama
vindo da Bahia: “Por menos jornalístico que possa parecer, podemos
iniciar este telegrama com a famosa advertência de Apeles, avisando
que o sapateiro não deve passar dos sapatos [...]”, e segue reafirmando as
posições expressadas por Roger Bastide para o jornal A Tarde.
O jornal baiano Diário de Notícias, do dia 11 de julho de 1951, publica
um longo artigo assinado por José Valladares com o título: “Monsieur

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Clouzot — cineasta ou etnologista?”. No artigo, Valladares exalta a erudi-
ção e o conhecimento de Clouzot, e sua aventura cinematográfica na qual
queria o comprometimento e o apoio oficial em larga escala, e questiona
as relações deste com Hitler e Mussolini, pois Clouzot teria dito a um
baiano que nem esses ditadores o teriam feito esperar como as autoridades
brasileiras. Depois de suas tentativas frustradas de filmar, teria vindo à
Bahia “a conselho de amigos [...] onde se acreditava que a cor local, os
costumes regionais e a vida pacata da província podiam favorecer seu
trabalho”. Clouzot era uma figura inquieta e não respeitava os processos
de inserção e legitimidade das informações, “Queria saber de tudo, inclu-
sive daquilo que ninguém sabe”, e a culpa acaba no pai-de-santo que lhe
ofereceu uma iniciação, pois tinha, segundo Valladares, muito dinheiro
para tal, e queria desvendar [...]. Os segredos mais delicados da magia
negra figuravam-se-lhe essenciais para o desenvolvimento temático de
um filme em que a Bahia fosse aproveitada”.
De forma muito consciente, Valladares relaciona o livro de Clouzot
com a reportagem da Paris Match, acentuando o autor como um cronista
estrangeiro passando pela Bahia e traçando suas observações. Entretanto,
diz Valladares:

O que francamente nos parece lamentável quando se considera o valor de


Henri-Georges Clouzot como homem de cinema é que, de volta a Paris,
tenha vendido suas fotografias a uma revista sensacionalista, Paris Match,
que do texto do livro fez um resumo ainda mais sensacional, apresentando
o Brasil e com especialidade a Bahia em cores que não são de todo falsas,
porém que deixam de possuir a escusa da objetividade científica, uma vez
que aplicadas num retrato onde a intenção do escândalo e da propaganda
sobrepuja qualquer outra. Não adianta os editores da revista dizer-nos que
estamos em face de um Clouzot etnólogo e não do diretor de cinema. Não
obstante sua extraordinária cultura, sua etnologia é improvisada, de tudo
transpira claramente que seu principal interesse está em chamar atenção sobre
si mesmo. Mas será este o caminho mais adequado para uma personalidade
de sua grandeza?

Ainda o jornal A Tarde, na mesma semana em que reproduziu a re-


portagem da Paris Match, traz uma longa entrevista com o médico e
professor Estácio de Lima, catedrático de Medicina Legal da Escola de
Medicina da Bahia, com o título: “Turista no candomblé — Um novo
Colombo descobridor de tudo”. Estácio de Lima exalta uma tradição

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de pesquisa dos cultos afro-brasileiros com Nina Rodrigues e Arthur
Ramos, dizendo que sempre conduz uma aula no término do curso de
medicina com seus alunos em um terreiro, para introduzir-lhes a riqueza
cultural dos cultos afro-brasileiros: “[...] E então, me apraz mostrar aos
moços a multiplicidade de questões que, em si, se agitam. Estes de ordem
filológica, pois temos nunca menos de oito idiomas exóticos, cinco dos
quais desconhecemos, por completo, o emprego dos verbos”, e continua
ressaltando aspectos da mitologia e do panteão afro-brasileiro na cultura
popular, os mais variados aspectos coreográficos, a culinária, a escultura,
as artes etc. Lima reforça seus argumentos científicos com estatísticas do
Instituto Nina Rodrigues e diz que:

Sempre nossas investigações levadas a cabo à luz da psicologia clássica e


da psicanálise de Freud, dos seus discípulos e dissidentes. Para o mestre
vienense, haveria, no estado de santo, uma sublimação da sexualidade. Na
lição de Adler, seria resultante do complexo de inferioridade (receber o santo
equivaleria a engrandecer-se). Numa interpretação à Jung, teríamos, em jogo,
o inconsciente atávico. De qualquer maneira, todos sabemos o que é, o que
significa uma crise, distinguindo as simulações, que os leigos não distinguem,
os casos psiquiátricos e as reações normais da personalidade.

A reportagem tenta mostrar que existe uma tradição científica na


Bahia, citando nomes importantes da pesquisa passada e atual, os quais
Clouzot deixa no anonimato. Estácio de Lima identifica Clouzot com a
ingenuidade da visão de um turista na Bahia:

O turista, aportando em nossa terra, tão cheia de encanto e deslumbramento,


raramente foge à tentação de assistir a uma representação dos ritos afro-
baianos. Aí, o ambiente esquisito, a música tonitruante e a singularidade das
práticas religiosas conduzem comumente o espectador primário à crença de
que é um descobridor de tudo, um Colombo desse bizarro, nunca dantes
visto ou percorrido por outros [...].

Também o jornal A Tarde publica nesse dia uma carta raivosa e até
mesmo preconceituosa em relação ao próprio candomblé, de autoria do
“escritor e historiador” Gustavo Barroso. A carta publicada na íntegra re-
força a característica de “escândalo”, depois da reprodução da reportagem
da Paris Match por esse mesmo jornal. Barroso chama Clouzot de aven-
tureiro que se “apregoa cineasta”, publicando em uma “revista qualquer”,

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e com “barato sensacionalismo”, uma reportagem com fotografia de “ritos
bárbaros [...] apresentando a Bahia como um simples antro de feitiçaria
africana”. Segundo Barroso, desculpando os baianos de favorecerem o
estrangeiro pela sua generosidade, seria da falta de senso, de inteligência
e de probidade mental de Clouzot unicamente a responsabilidade: “Se ele
somente foi capaz de apreender aquilo que de mais baixo e aviltante pode
existir nas camadas inferiores da população, é que a sua alma se mede por
essa craveira, isso é o que agrada e alimenta a sua mentalidade”.
A carta reveste-se de uma atitude nacionalista e preconceituosa ao
aludir os cultos como “bárbaros” e situando os cultos afro-brasileiros nas
camadas “inferiores” da população. Questionando a visão colonialista
decadente européia, acaba propondo que as revistas nacionais publiquem a
miséria nas cidades européias para mostrar que também lá existe pobreza:
“[...] Há um meio excelente de responder a publicações da espécie dessa
tão comentada na Bahia e aqui. É darmos em troca nas nossas revistas
as cenas noturnas de miséria física e de miséria moral que se passam por
todos os cantos nas capitais européias... cá e lá fadas há”. A revista O
Cruzeiro irá fazê-lo dez anos depois com o caso Flávio.
A saga da imprensa nacional continua com a divulgação da opinião
de Édison Carneiro, um dos principais especialistas em religiões afro-
brasileiras.
O periódico O Jornal, do dia 19 de julho, traz uma reportagem sobre
a relação de Édison Carneiro com Clouzot, com a seguinte manchete:
“Sensacionalismo e nada mais a reportagem de Georges Clouzot — Édi-
son Carneiro aponta falsidades”.
O professor Édison Carneiro redigiu um guia turístico e várias cartas,
dirigidas a seus amigos baianos, recomendando-lhes o cineasta francês,
incluindo terreiros famosos da Bahia, com os quais Carneiro tinha re-
lações amistosas e respeitosas. O guia preparado pelo etnólogo baiano
apontava os verdadeiros pais-de-santo, a situação dos terreiros, condições
de facilidade para chegar até estes, e a natureza de seus cultos. Carneiro
foi uma espécie de padrinho e credenciou o passaporte de Clouzot para
sua incursão na Bahia.
No livro Les cheval de dieux, logo nas primeiras páginas, Clouzot men-
ciona que ignorava a existência do candomblé até conhecer Édison Car-
neiro, do qual não diz mais nada, nem menciona sua obra, e, segundo
Carneiro, Clouzot faz citações e traduções de trechos de seu livro Can-
domblés da Bahia, sem referências, e mesmo o glossário, elaborado por

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Carneiro, é plagiado com uma simples repetição do que já havia no seu
livro. Carneiro deduz que existe uma fotomontagem nas imagens, na qual
a mulher de Clouzot, em trajes tradicionais dos ritos, aparece com um
cachimbo na testa e com a legenda afirmando que ela teve de se disfarçar
de filha-de-santo para participar das cerimônias. Ao ser indagado sobre
o livro e a reportagem, Carneiro afirma:

Sensacionalismo, nada mais. Clouzot fez cinema com as letras. Não se trata
de um documento etnográfico, e muito menos extraordinário e intimamente
a gente dos candomblés, não consegui identificar muita coisa, tal a maneira
por que as experiências de Clouzot estão narradas. O pior é a “descoberta”
do candomblé que Clouzot pretende ter feito. Clouzot nasceu em 1907,
mas antes disso, em fins do século passado, Nina Rodrigues escrevia mais
profundamente sobre o candomblé e por coincidência em francês, em revistas
científicas de Paris; antes de Clouzot ter notícia de que havia candomblés
em alguma parte do mundo, os livros de Arthur Ramos eram traduzidos
em inglês, francês, alemão e espanhol [...]. A explicação da “possessão”, que
Clouzot diz que ninguém lhe soube explicar no Brasil, está em trabalhos de
Nina Rodrigues e Arthur Ramos. Por aí você vê a importância do documento
etnográfico que ele apresenta [...].

Credenciando Clouzot na sua incursão baiana, Carneiro generosa-


mente diz que não se arrepende de tal aproximação e favorecimento:
“Faria isso outra vez, se necessário. O candomblé não é privilégio de
ninguém, nem me julgo dono do assunto. Creio que todos têm liberdade
de dizer as bobagens que quiserem [...]”.

A carta de Alberto Cavalcanti

Alberto Cavalcanti, cineasta brasileiro com um importante histórico


dentro do cinema internacional, pela sua vivência no exterior, escreveu
uma carta dirigida a vários jornais que é considerada a primeira manifesta-
ção contrária à reportagem da Paris Match. Publicada na íntegra em vários
jornais nacionais na época (entre eles a A Folha da Noite, em São Paulo,
no dia 27 de julho), é também mencionada nas várias reportagens sobre
o assunto. Na publicação em terras baianas, no jornal Diário de Notícias,
de 18 de julho, a manchete diz: “Cavalcanti acusa Clouzot: amargura mal
digerida contra nosso país”.

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A carta teve até mesmo uma publicação tardia na revista Anhembi9, como uma
espécie de redenção ao artigo já mencionado anteriormente de exaltação da
presença do ilustre cineasta francês no Brasil e publicado pela mesma revista
em abril do mesmo ano. A carta de Cavalcanti é anunciada como parte de
uma “[...] tremenda onda de protestos em todo o Brasil pela leviandade e
má fé de Henri-Georges Clouzot, o cineasta francês que há questão de um
ano esteve no Brasil tentando realizar uma fita sobre o país”.

Alberto Cavalcanti morou na França na década de 20 do século XX,


onde participou da vanguarda francesa, produzindo, fazendo filmes ex-
perimentais e mais convencionais (Rein que les heures, Le train sans yeux).
Ainda na França integra os estúdios Paramount, na época estruturados
como uma indústria do cinema. Na Inglaterra, entra para a equipe do
General Post Office Film Unit, cuja produção revolucionou o documen-
tário social. Com sua intensa experiência no exterior, produzindo e di-
rigindo filmes na França e na Inglaterra, imprimia seu nome como o
mais conhecido diretor de cinema brasileiro no exterior. Entusiasmado
com as possibilidades da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, tor-
na-se produtor geral em 1950, depois rompe com os donos da empresa
e continua dirigindo filmes no Brasil. Alberto Cavalcanti tornou-se, na
época, o único cineasta com reconhecimento e trajetória internacional,
com mais de 20 filmes na França e na Inglaterra. No ano em que assumia
a produção geral da Vera Cruz, teve um encontro com Clouzot, que pas-
sava pelo Brasil para tentar fazer seu filme Brésil, encontro relatado em
sua carta. A legitimidade de Cavalcanti no cinema credenciava-o a falar
sobre o cineasta francês, de cineasta para cineasta, e sua carta, transcrita
a seguir, foi amplamente divulgada pela mídia brasileira:

Procuremos esquecer o senhor Clouzot

Durante a guerra, Clouzot dirigiu um filme extraído de uma história de Louis


Chavance, chamada Le corbeau (A sombra do pavor). Era uma história bastante
sórdida, que, infelizmente, os americanos acabam de filmar outra vez, com o
título de 13th Letter (Cartas venenosas).

9 Roger Bastide, “Ainda o caso Clouzot”, Anhembi, no 10, vol. IV. São Paulo, set., 1951.

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Quando eu voltei a Paris, no momento da Libertação como membro do exér-
cito inglês, havia certa desconfiança a respeito do diretor e do cenarista: os alemães
tinham divulgado o seu filme como sendo o retrato fiel dos costumes numa aldeia
francesa. Na excitação do momento, Clouzot e Chavance foram considerados
responsáveis por essa propaganda mal intencionada. A acusação era injusta.
Depois passou-se o tempo. O incidente foi esquecido. Clouzot fez muitos
filmes. Todos se lembraram de Quais des Orfevres (Crime em Paris), que é um
dos meus filmes preferidos, e de Manon (Anjo perverso), mais desigual, mas onde
há momentos admiráveis.
Clouzot veio ao Brasil e pode-se mesmo dizer que ele quis “fazer o Brasil”.
Recebi-o em minha casa, em São Bernardo do Campo. Lá, contou-me o ar-
gumento do filme que pretendia realizar. Nesse tempo eu era produtor numa
companhia de São Paulo, o que me possibilitou oferecer-lhe estúdios, técnicos
e a quantia que eu próprio tinha à minha disposição para os filmes que eu então
produzia e que me pareciam planejados dentro de orçamentos normais. Mas isso
não interessava a Henri Clouzot. Ele queria ser o produtor do seu filme brasileiro.
Ele me disse: “Exijo que me paguem soma idêntica à que me foi oferecida por
Hollywood”; Clouzot foi embora. Ao que parece, o tal oferecimento americano
não se concretizou.
Parece que Clouzot diz nos meios cinematográficos parisienses que ele filmou
oito mil metros no Brasil e que nossa censura impediu a saída desse material. O
Dr. Melo Barreto Filho, chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas, nos
informa que nunca filme algum foi vetado antes da exportação e muito menos
o de Clouzot, que nem sequer foi submetido à censura. Naturalmente, não quis
exibir a sua incursão no documentário. Mas a censura tem as costas largas!
No “Match”, revista muito popular aqui e conhecida como uma das de maior
tiragem em todo o mundo, Henri Clouzot publicou uma reportagem sobre sua
viagem. Esta reportagem chocou o público brasileiro. As fotografias escolhidas,
e, coisa curiosa, assinadas por Clouzot, que, todo mundo sabe, não é fotógrafo,
apresentam um pitoresco de uma violência excessiva. A macumba é apenas um
pequeno aspecto da verdadeira fisionomia do Brasil. Se se mostram as práticas de
magia negra ou branca tão comuns nas aldeias do coração da Inglaterra, isso não
tem importância. Todo mundo conhece a Inglaterra e todos sabem estabelecer a
justa proporção dos fatos. Mas mostrar os nossos negros domésticos lambuzados
de sangue e praticando rituais africanos como a única coisa vista por ele no
Brasil digna de ser mostrada é uma atitude um tanto esquisita. Por isso, venho
à presença de “Match”, para botar os pontos nos ii. É preciso explicar as causas
dessa escolha infeliz. Há no Brasil muita gente como eu que não é “patrioteira”

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e que absolutamente não se importa de que nos mostrem como nós somos. Para
nós dá no mesmo que os nossos visitantes nos mostrem como eles nos vêem.
Mas no caso Clouzot isso nos aborrece.
A nossa sorte é que outros franceses vieram cá antes e depois do sr. Clouzot!
Vieram o galante Villegagnon, o delicioso Debret e o “nosso” talentoso Taunay;
como eles, muitos outros nos compreenderam. Jamais os esqueceremos.
Procuremos pois esquecer o sr. Clouzot.
alberto cavalcanti

A reportagem de Odorico Tavares e Pierre Verger

Encontrada em meio dos arquivos de Pierre Verger, uma reportagem


preparada por Odorido Tavares e indicando fotos de Pierre Verger repro-
duz e sintetiza os vários momentos do caso Clouzot na sua estada baiana,
a repercussão na mídia e a “posição da Bahia” perante a reportagem da
Paris Match. A reportagem encontrada datilografada e com correções a
caneta e contendo ainda alguns erros não foi publicada pela revista O
Cruzeiro. Segue sua transcrição:

Resposta da Bahia a Clouzot

Texto de Odorico Tavares — fotos de Pierre Verger

Certa manhã, um amigo nos telefona e diz: “Acaba de chegar o Clouzot com
a esposa, estão hospedados no Palace Hotel, trazem recomendações para você”.
Tocamos incontinente para o hotel e lá estava o Diretor de “Manon” já cercado
de jornalistas e Diretores do Clube de Cinema local. Com seu ar espantadiço
de bicho acuado, parecia cansado, e sua bela e simpática esposa, Vera Clouzot,
atendia como podia as pessoas. Tanto quanto possível, queixaram-se ambos
da falta de cooperação das autoridades, da desistência do filme no Rio e que,
embora tivesse regressado a equipe que trouxera da França, estavam dispostos
a escrever o cenário de uma película passada na Bahia. Si tudo corresse bem a
equipe viria meses depois. Mas Clouzot já meio impaciente queria detalhes e
mais detalhes do candomblé. Estava com o bolso cheio de apresentações de

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Édison Carneiro e gostaria de tomar contato com mães e pais-de-santo. As
primeiras providências a respeito fracassaram: Clouzot desejava um candomblé
no dia que chegara e não era possível, pois candomblé não é espetáculo público
que se possa improvisar a qualquer momento.
Algumas reuniões sociais, em homenagem ao casal, alguns contatos com
escritores, durante os quais a obstinação de Clouzot mais se frisava: candomblé,
candomblé, candomblé. Fora de candomblé, não haverá acordo. Enfarado no
hotel, mudou-se para um casarão em Rio Vermelho e prosseguiu na sua caçada
ao candomblé. Este lhe daria margem para o filme, acentuava, e na conversa
sempre girava sobre o mesmo assunto: de todos inquiria e vinha a decepção.
Por que não se desvendava o “mistério” do candomblé? Queria “ferir de cheio o
mistério do candomblé”.
Sucede que o candomblé não é diversão, repitamos, e sim cerimônia religio-
sa dos negros baianos. Não tenhamos dúvida que grande parte dos negros da
Bahia participam dos seus ritos, dentro da maior ordem e do maior respeito. As
autoridades baianas reconhecem o livre direito de reunião e de liberdade reli-
giosa, não trazem embaraços à religião dos negros da Bahia. Apenas para con-
trole, tem registro dos “terreiros” e das solenidades que se vão ali realizar, em
determinadas épocas. Clouzot, na sua busca incessante e inquietadora do “mis-
tério” do candomblé, procurou pais e mães-de-santo, foi a diversos terreiros — e
ele próprio confessa no seu livro “Le Cheval des Dieux”.
Em face de tais propósitos de descobrir o “mistério”, foi recebido com reservas
naturais em alguns deles, sobretudo naqueles ortodoxos, onde não se pode inter-
ferir à larga, usando o suborno. A própria Tia Massi, do terreiro Engenho Velho,
recusou delicadamente recebe-lo pela segunda vez. Estava doente e cansada,
deixasse para outra oportunidade. Mas Clouzot não é homem para desanimar;
cada vez mais inquieto à procura do mistério que haveria de ser revelado para
gáudio seu. E um belo dia, soube-se que estava recolhido a um candomblé,
onde passaria dias, com Vera, assistindo e participando de todas as cerimônias
de iniciação de filhas-de-santo. Dias depois, ressurgia com uma forte gripe, que
pôs Vera em polvorosa, apavorada com a frágil saúde do marido.
Não era nada, não haveria recaída para a sua tuberculose curada. Por fim,
soube-se que iria dar o regresso de Clouzot, que acabara de escrever um diário
e o argumento do filme. Este teria adiada a sua execução mas seria realizado na
Bahia. Questão de meses e questão sobretudo de como Getúlio encararia sua
pessoa. Getúlio permitirá o filme? Getúlio eliminará as dificuldades? Não se
sabia, pois Getúlio ainda não tomara posse. Clouzot se foi, saciado, pois alegara
ter descoberto o “mistério” do candomblé. Que se aguardasse o seu livro.

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Antes do livro porém, chegou à Bahia a reportagem — digamos a sensacio-
nalíssima reportagem — do “Paris Match”, sobre a estada de Clouzot na Bahia.
E causou lamentável repercussão, sobretudo porque o problema foi pessima-
mente situado. Não se tratava de preconceitos: a Bahia tem orgulho tanto de
suas igrejas, de sua riqueza artística, de suas casas coloniais, de sua arquitetura
velha, como de suas feiras, de suas festas populares, de seus brancos e de seus
pretos. Somos a Cidade mais democrática do Brasil: não há aqui preconceitos,
nem limitações. Exatamente, o que irritou na reportagem de Clouzot foi o seu
preconceito de europeu em transformar numa novidade o que é velho de sécu-
los, o candomblé, conforme acentuou, muito bem, o Sr. Édison Carneiro, em
entrevista aos Diários Associados: “Tudo que Clouzot achou ser a revelação dos
mistérios está em estudos sérios e realizados por mestres honestos, como Nina
Rodrigues, Arthur Ramos, Édison Carneiro e um francês tão compreensivo aos
problemas do negro baiano, Sr. Roger Bastide. De toda a sua estada, no Brasil,
só se preocupou em fazer sensacionalismo com um detalhe muito limitado da
vida brasileira, a reportagem de Clouzot faz um mal terrível”.
“E um mal terrível aos candomblés e aos pretos baianos”, diz-nos o Sr.
Jorge Manuel da Rocha, presidente da Federação de Culto Afro-Brasileiro.
Trouxe contra nós um sensacionalismo ultrajante e que repelimos com toda
energia. Além disso, utilizou elemento que desonrou o seu terreiro, deixando-se
comprar pelo dinheiro miserável de um sensacionalista. Tanto Clouzot como
este pai-de-santo, que ele acoberta com o nome de Nestor, mas que se chama
Rufino, são do mesmo naipe.
A Federação vai tomar as medidas mais rigorosas contra o culpado local,
já que no que tange ao Sr. Clouzot, está ele recebendo a repulsa dos maiores
elementos dos mais culturais brasileiros, como o grande cineasta Cavalcanti,
professor José Valadares, o nosso Édison Carneiro e o professor Roger
Bastide, francês como ele mas um francês digno de uma grande pátria. Quero
acentuar que o professor Bastide, que conquistou a nossa confiança, tem um
livro e outros estudos onde o negro baiano e suas religiões são analisadas dentro
do maior respeito, sobretudo dentro daquilo que se chama respeito humano.
Quero dizer aos brasileiros, por intermédio de “O Cruzeiro”, que o candom-
blé pode ser tudo menos a palhaçada que o Sr. Clouzot descreve no seu livro ou
na sua reportagem. Tudo ele usou e utilizou-se de um homem fraco e que não
resiste aos dinheiros da traição. Usou, e ele confessa, até chaves falsas. Fracassando
o seu filme, ele desejava levar alguma coisa para suprir suas deficiências: levou
a reportagem graças ao conúbio Clouzot-Rufino, ou melhor, Georges-Nestor...
Não há nenhum mistério a revelar nos candomblés. Não temos nada a ocultar,

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nem somos mistificadores. A religião afro-brasileira é uma herança de nossos
antepassados africanos, vem de muitos séculos. É acatada por todos; às nossas
solenidades freqüentam, convidados ou não, pessoas de mais absoluto respeito:
visitantes ilustres, gente de todas as classes, como iniciados ou como simples
curiosos, e jamais se apresentou uma “aventura” como a de Clouzot-Rufino.
Nos meios intelectuais baianos que conviveram com Clouzot, a repulsa é
geral: não se justificava o seu sensacionalismo, nem tampouco as inverdades
trazidas no livro. Ele fala que todos os anos, no dia de Iemanjá, é jogado ao mar
um garanhão preto, de presente à deusa. É falso. Como são falsos e frágeis mui-
tos assuntos e conceitos emitidos, com uma firmeza de conhecedor, quando na
realidade ele apenas estava atrás de um ponto a visar: descobrir à França alguma
coisa que ele fosse o único a ver, mesmo utilizando os processos mais condenáveis.
O que ele viu, muitos o viram, a questão é que os demais não sensacionalizaram
nem deturparam os acontecimentos.
O primeiro protesto contra a reportagem de Clouzot, na Bahia e no Brasil,
partiu do professor José Valadares, crítico de arte do “Diário de Notícias” e
Diretor do Museu do Estado, salientando que o que Clouzot desejou foi chamar
atenção sobre si mesmo e não querer trazer qualquer contribuição honesta para o
problema do candomblé. O professor Roger Bastide, da Faculdade de Filosofia
de São Paulo, visitando mais uma vez a Bahia, disse à imprensa a respeito da
prioridade invocada por Clouzot, em entrar em recintos reservados.
— Isso não é verdadeiro. Antes dele outros brancos já entraram em tais
recintos. Basta dizer que nem todos os fetichistas são negros; há gente branca
entre eles, inclusive uma filha de espanhóis. Agora, que tenha sido ele um dos
primeiros a publicar fotografias de camarinhas e de algumas cenas mais íntimas
dos candomblés, não tenho dúvida e devo acrescentar que houve aí espírito sen-
sacionalista, dando-se à publicidade de segredos da religião afro-brasileira.
Além disso, o autor da reportagem não disse, no seu trabalho, como deveria
fazê-lo, que a Bahia é uma cidade civilizada e progressista, com inúmeras es-
colas e hospitais, cheia de tradições. Dizendo, por outro lado, que um terço da
população local é de fetichistas, com o que não concordo, deu a impressão aos
que não conhecem esta terra, de que aqui se vive em completo primitivismo.
Acho que a civilização africana está bem desenvolvida, mas como a Bahia, pela
sua expressiva maioria, professa outros costumes, está na civilização que adota-
mos na Europa, escrevi artigos que serão publicados em São Paulo e em Paris,
protestando contra essas afirmações do meu patrício.
Também, Édison Carneiro, autoridade no assunto assim se expressou em
entrevista à imprensa carioca:

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— Sensacionalismo, nada mais, Clouzot fez cinema com as letras. Não se
trata de um documento etnográfico, e muito menos extraordinário. Eu mesmo,
que conheço de perto e intimamente a gente dos candomblés, não consegui
identificar muita coisa, tal a maneira por que as experiências de Clouzot estão
narradas. O pior é a descoberta do candomblé que Clouzot pretende ter feito.
Clouzot nasceu em 1907, mas antes disso, em fins do século passado, Nina
Rodrigues escrevia mais profundamente sobre o candomblé e por coincidência
em francês, em revistas científicas de Paris; antes de Clouzot ter notícia de que
havia candomblés em alguma parte do mundo, os livros de Arthur Ramos
eram traduzidos em inglês, francês, alemão, espanhol... A explicação de posses-
são, que Clouzot diz que ninguém lhe soube dar no Brasil, está em trabalhos de
Nina Rodrigues e Arthur Ramos. Por aí você vê a importância do documento
etnográfico que ele apresenta...
Alberto Cavalcanti, grande cineasta como Clouzot, externou seu pro-
testo, mostrando que o Brasil não pode ser olhado por um pequeno aspecto de
sua fisionomia. Novos protestos vão surgindo, como o do professor Estácio de
Lima, da Faculdade de medicina da Bahia.
Outra figura de importância nos meios dos candomblés baianos adianta-nos:
“Não são as nossas ‘filhas-de-santo’ criaturas miseráveis e doentes, que se deixas-
sem reduzir a frangalhos humanos, degradadas e desequilibradas, como acentua
o Sr. Clouzot. As nossas mães-de-santo chegam à idade avançada queridas e
respeitadas por todos, como mães de família, como líderes de nossos ritos. Como
isso poderia acontecer, si fossem elas miseráveis meninas de que fala o Sr. Clouzot?
E dizer que haja em nosso meio quem tenha consentido na presença do cineasta
francês em cerimônias, para que ele nos achincalhasse desta maneira. Pode dizer
que não é somente a Bahia dos brancos que se revolta com a reportagem e o
livro de Clouzot. Somos sobretudo, nós, os pretos, ofendidos e ultrajados pela
sua escrita. Mas não faz mal: sabemos desprezar Clouzot e o seu conivente”.
Pois é assim que se reage na Bahia contra o que escreveu Georges Clouzot, o
admirável diretor de “Manon” e de “Le Corbeau”. Não há uma voz divergente:
todos lamentam a sua maneira de apresentar um problema de interesse étnico,
sociológico e portanto humano. De apresentar um país inteiro que o acolheu
como um grande artista, através de seus olhos penetrantes e mórbidos. E que os
franceses não queiram ver o Brasil, através da reportagem e do livro de Clouzot,
como os alemães tentaram inutilmente mostrar ao mundo, o caráter e os costumes
da França através de “Le Corbeau”. Erro fatal e inversão de visão.

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Roger Bastide e Henri-Georges Clouzot

O sociólogo francês foi mencionado em quase todas as matérias pu-


blicadas nos jornais, pois, como patrício e envolvido diretamente na pes-
quisa com os cultos afro-brasileiros, era constantemente assediado para
manifestar-se sobre o caso Clouzot-Paris Match. Suas opiniões de opo-
sição ao conteúdo e à forma de apresentação dos ritos de iniciação na
revista francesa levaram-me a pesquisar seu clássico livro O candomblé da
Bahia — Rito nagô. Publicado na sua primeira edição em 1958, imagi-
návamos encontrar alguma referência aos fatos pela viva participação de
Bastide na onda de protestos da qual fez parte. Nenhuma referência
havia sido encontrada até então sobre esse assunto em outros trabalhos
científicos de etnólogos brasileiros ou estrangeiros. Fazendo uma leitura
minuciosa no texto do livro de Bastide, encontramos muitas passagens
sobre o livro de Clouzot Le cheval de dieux, que consta em sua bibliogra-
fia. Tinha à mão uma edição recente, cujo exemplar ficou perto de mim
durante todo o tempo esperando a hora de lançar-me a ele, a hora tinha
chegado. E para minha surpresa essa nova edição tem vários anexos,
inclusive um compêndio da sua obra, na qual encontramos dois artigos
publicados na revista Anhembi.
O primeiro artigo, “A etnologia e o sensacionalismo ignorante”10, é
aberto com uma nota explicativa da editoria da revista que lembra sua
imparcialidade quando defendeu a proposta fílmica de Clouzot e suas
dificuldades com as autoridades brasileiras, principalmente da alfândega,
na edição de abril de 1951, já comentadas aqui. A nota diz:

[...] abrimos espaço às linhas que seguem, a fim de colocar na sua justa medida
o intuito sensacionalista de um cineasta, de alto valor na sua especialidade,
mas de uma lastimável ignorância sociológica. Um homem inteligente como
Clouzot não cairia nesse erro grosseiro, por ignorância apenas [...]. Temos
para nós que Clouzot se arriscou a comprometer a sua idoneidade intelec-
tual exclusivamente para exercer uma vingança contra o governo do Brasil
[...]. Com a mesma imparcialidade contra o gesto desarrazoado de nossas
autoridades, fazemos agora nossas as palavras serenas e lúcidas do professor
Roger Bastide, ao qual a cultura brasileira deve inestimáveis serviços.

10 Idem, Anhembi, no 9, vol. III. São Paulo, ago., 1951, pp. 580-3.

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Já havia sido publicada a carta de Alberto Cavalcanti na qual ele não
identifica uma ação da censura sobre o trabalho de Clouzot, mas unica-
mente nos parece ter havido problemas com a liberação do equipamen-
to cinematográfico e na importação de películas virgens, mas, se havia
problemas para brasileiros, qual a razão de termos facilitação para estran-
geiros? A revista tenta esquivar-se de suas atitudes anteriormente elo-
giosas e exaltadoras da capacidade do diretor francês e de suas futuras
contribuições à imagem do Brasil no exterior, o que inversamente ocor-
reu, e nada como contar agora com a fala de um contemporâneo com a
legitimidade de Bastide.
Bastide reafirma suas opiniões já amplamente públicas de localizar
no sensacionalismo a razão da matéria, e diz que o artigo não apresenta
interesses etnográficos como também não poderíamos esperar de sua
obra científica uma formatação jornalística, mas irá apontar um “desejo
sensacionalista duplamente injurioso para os meus amigos de cor e para
os meus amigos brancos da Bahia, em detrimento da verdade. É o que
não se pode tolerar”.
Para Bastide, Clouzot caiu na armadilha da escola do cinema italiano
que pede a participação de não-profissionais, na qual uma deformação
voluntária da realidade cria “uma estilização, seja no sentido de carregar
as cores, seja no de poetizá-las”. Mas quando um cineasta pretende es-
crever um “documento etnográfico”, não deve utilizar esses métodos de
documentação. Bastide diz que Clouzot foi vítima de um “candomblé para
turista”, e vítima de exploradores que lhe extorquiram quantias razoáveis
de dinheiro por duas vezes: “Clouzot saiu da aventura ridicularizado, se
realmente acredita que viu manifestações da religião afro-brasileira”.
Bastide enumera uma série de questionamentos sobre as informações
da reportagem. Não aceita, como já havia dito, Clouzot afirmar-se como
o primeiro branco a penetrar o espaço sagrado desses ritos. Diz que o
candomblé não tem preconceito de cor e vários imigrantes fazem parte
do culto. Cita um suíço francês que é “ministro de Xangô” e, em seguida,
Pierre Verger, que passou pelo mesmo ritual ao qual Clouzot faz refe-
rência — “dar comida à cabeça” — e, ainda, “contrariamente ao que
julga Clouzot, nada tem a ver com iniciação propriamente dita”. Mostra
a ignorância de Clouzot sobre a obra de Nina Rodrigues, que descreve
essas cerimônias, e o fato de terem sido objeto de artigo de Marcel Mauss.
Sobre esse tema, faz questão de reafirmar o desconhecimento de Clouzot
quando ele comenta não ter encontrado intelectuais no Brasil para ex-

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plicar as possessões em série e a “histeria fantástica”. Bastide diz que tal
informação cria uma imagem deformadora da ciência brasileira, pois,
além dos escritos de Nina Rodrigues e Arthur Ramos, amplamente co-
nhecidos do circuito acadêmico internacional, congressos sobre religiões
afro-brasileiras já haviam ocorrido em várias capitais brasileiras. Bastide
cita estudos que mostram que a histeria é uma doença de brancos, não
sendo encontrada em populações negras, e afirma que não podemos to-
mar o termo “possessão”, dentro do candomblé, no sentido médico e sim
sociológico: “[...] o transe místico afro-brasileiro nada tinha de realmen-
te patológico e não constituía uma entidade psiquiátrica”. Bastide ques-
tiona a participação de Clouzot na liminaridade do processo ritualístico,
pois não se podem tirar conclusões etnográficas em terreiros que permi-
tem a entrada de pessoas não iniciadas, pois isso não aconteceria em um
“verdadeiro candomblé tradicional”, e ele próprio diz que, quando intro-
duzido em uma camarinha, teve o cuidado de não generalizar o que viu.
Para Bastide, então, Clouzot “Tomou os gestos simbólicos do novo nas-
cimento por manifestações de esquizofrenia e as onomatopéias das fu-
turas iaôs por uma regressão ao estado de infância, quando tudo isso não
passa do rito sociológico da interdição da fala”.
Ainda sobre as questões médico-psiquiátricas, Bastide diz que Clou-
zot, ao comparar os candomblés com o cerimonial da psicanálise, “[...]
não compreendeu nem a terapêutica psicanalítica nem a iniciação afri-
cana”. Ao afirmar que o feiticeiro trata de fixar e tratar de neuroses que
se apresentam na possessão de erê (entidade infantil), Clouzot, segundo
Bastide, confunde-se, pois elas não existiriam no ritual e “porque se trata
apenas de sublimar a libido, e não de curar o doente”.
O sociólogo francês reafirma uma visão de Salvador como uma “cida-
de progressista”, mas que aparenta ser dominada pelos cultos fetichistas
conforme estatística primária e descontextualizada de Clouzot: “Esses
algarismos arriscam-se a dar aos estrangeiros uma idéia errônea do que
se passa na Bahia”. Bastide diz que uma pequena minoria freqüenta os
terreiros, que, apesar de um grande número de templos, “não têm mais
do que uma dúzia de adeptos”. E refuta a carga de fanatismo dos cultos
conforme texto de Clouzot.
Identifica um erro etnográfico no texto sobre o sacrifício de “um ga-
ranhão negro para que Iemanjá, deusa do oceano, possa cavalgar agrada-
velmente pelo seu reino submarino”, pois, segundo Bastide, trata-se de
um acontecimento histórico e singular do universo imaginário da cultura

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popular, e, se acontecia no passado, as festas de Iemanjá não comportam
mais sacrifícios de animais. Bastide identifica o mesmo erro em várias
outras descrições dessas cerimônias, que exageram na dramaticidade e
esquecem o elemento estético para encontrar explicações psicologizantes
na histeria, na hipnose etc. Erros que já foram formalizados em seus
escritos e de Herskovits. Sobre a embriaguez e o uso de álcool, Bastide
diz que essa ação é regulada e fiscalizada pela própria sociedade religio-
sa e “não apresenta nada de comum com a loucura estática, ou o paroxis-
mo assustador”.
Sobre a descrição do rito “dar comida à cabeça”, embora Bastide en-
contre elementos reais na narração, aparenta, segundo ele, “uma deforma-
ção turística” do ritual, e o que chama sua atenção é a ênfase na “náusea”
de Clouzot, “pois desnatura totalmente uma das coisas mais belas do
mundo”. Colocado dessa maneira, como “ritos sangrentos herdados da
idade da pedra”, não encontraremos um etnógrafo a aceitar os valores
da reportagem. Nesse sentido, Bastide ainda aprofunda a ignorância de
Clouzot ao contextualizar as origens desses rituais em civilizações muito
adiantadas como “a da Nigéria e do Dahomey, com fortes influências
egípcias e sem dúvida asiáticas”.
A falsa imagem do “verdadeiro candomblé” criada por Clouzot poderia
ser exposta também se escrevêssemos uma reportagem sensacionalista
sobre o catolicismo, diz Bastide no final do artigo, e ele se prontifica a
fazê-lo para a Paris Match, comentando um filme de Giraudoux, Anjo
perdido, sobre a honra da Igreja Católica. É mais uma provocação do
que uma verdadeira proposta, e, alterando o ponto de vista e a ordem
dos fatores, pergunta se um negro assistindo a essa película não poderia
escrever uma reportagem tão sensacionalista como a de Clouzot. Bastide
invoca os franceses a admirar a beleza litúrgica desse culto, pois lá “[...]
encontrarão um culto respeitoso, sincero, sem nada de histérico [...] mas
que tenham cuidado para não introduzir nele o seu erotismo ou o seu
sadismo pessoal: todos os elementos patológicos que se infiltraram em
certas seitas, foram levados pela imaginação mórbida e pelos preconceitos
dos brancos”, termina.
Bastide, do alto de sua legitimidade acadêmica e de sua cumplicidade
com os cultos afro-brasileiros, disseca a reportagem da revista Paris Match
como nenhum outro intelectual, jornalista ou cineasta havia feito, e co-
loca Clouzot no plano de sua total ignorância e arrogância colonizadora.
Dessa forma, distingue-se deste e caracteriza-o como um aventureiro,

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pela inoportuna matéria sem relevância etnográfica, afundando-o no
esquecimento, como queria Alberto Cavalcanti. Bastide aparentemente
joga a última pá de terra na sepultura de um “Clouzot etnógrafo”.

A redenção de Clouzot?

O mesmo Bastide que desconstrói a farsa da Paris Match faz ressurgir


das cinzas a passagem de Clouzot pelo Brasil. Apenas um mês depois de
publicar o artigo que coloca o cineasta francês no banco dos réus e como
um advogado sagaz o incrimina, escreve outro artigo na mesma revista
Anhembi11, com essas primeiras palavras:

Tendo sido, segundo me parece, o primeiro a protestar contra a reportagem


de “Match”, sinto-me na obrigação de ser o primeiro a reconhecer que o
livro de Clouzot, “Le cheval de dieux”, é infinitamente superior à reportagem
sensacionalista que dele tiraram para fazer publicidade. A maioria das críticas
que formulei caem por terra, e em particular a mais grave de todas, sobre a
cerimônia de “dar de comer à cabeça”, pois as fotografias incluíam apenas a
iniciação e o “bori” desse rito especial, e não o rito dos não-iniciados.

O artigo em questão muda o clima de denúncia anterior e encon-


tra um Clouzot que permite o diálogo etnográfico. Entretanto, mesmo
identificando caminhos possíveis de uma grande obra no livro, quando
Clouzot indica em suas lembranças ginasianas os estudos do politeísmo
grego e seus ritos, e Bastide vê esses estudos como porta de entrada para
a compreensão dos ritos de iniciação, diz que ele confundiu arcaico com
primitivo, e primitivo com selvagem, e por um “deleite sombrio” encontra
em toda parte “o sujo, o repugnante, o bárbaro”. E diz:

No fundo, eu não estava errado atacando-o através da “Match”, pois o ci-


neasta, que realizou as suas mais belas películas justamente pela pintura da
feiúra e do nauseabundo, prejudicou o etnógrafo. Clouzot viu tudo através
da sua sensibilidade masoquista ou sádica, de modo que, entre a sua pintura
dos candomblés e a realidade, vai a mesma distância que entre a vida real de

11 Idem, “O caso Clouzot e ‘Le cheval de dieux’”, Anhembi, no 10, vol. IV. São Paulo, set., 1951,
pp. 188-90.

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uma cidadezinha francesa e a película “Le Corbeau”. “Le Cheval des Dieux”
deve ser considerado uma obra da “série negra” e não uma visão exata do
mundo dos deuses.

A náusea e a repugnância em Clouzot estão ligadas a sua concepção


do sangue nos ritos religiosos, impedindo-o de compreender o sangue
místico no candomblé, o que até mesmo um cristão pode compreender,
diz Bastide.
Como muitos afoitos e iniciantes na observação dos cultos, Clouzot
procurava o segredo imediato, alcançável e visível, mas, ao fotografar
segredos, “o mistério permanece inteiro, pois o mistério é espiritual”,
afirma Bastide, e mesmo comprando um babalorixá “sacrílego” para fazer
fotos proibidas “[...] ou entrar com chaves falsas nos santuários vedados,
tudo o que se poderá encontrar serão fragmentos de segredos, mas nada
se descobrirá, pois ter-se-á deixado de lado o fundamento, a explicação
do segredo: o mistério, no sentido que Gabriel Marcel dá à palavra, e que
vale tanto para o candomblé como para o cristianismo”.
Clouzot diz em seu livro que assistiu à cerimônia dos eguns, ou à
materialização dos mortos, e em uma passagem faz pilhéria, dizendo que
o morto se esqueceu de tirar o relógio do pulso. Bastide, também escar-
necendo, pergunta: “Clouzot julgará realmente que os negros da Bahia
são tão bobos que não sabem que o papel do morto é representado por
um homem?”. Ao entrar na Casa dos Mortos e não encontrar o segredo,
Clouzot espera, de uma forma racionalista, encontrar traços visíveis e
palpáveis de uma concretude inexistente, que haveria somente na relação
indelével do sagrado com o profano, do natural com o sobrenatural, e para
isso necessitaria aceitar a “categoria do sagrado”, como o faz a sociologia,
diz Bastide, “A Casa dos Mortos é secreta porque é o lugar dos mistérios.
Mas o mistério é invisível”.
A prática desastrosa de Clouzot é identificada como o principal ele-
mento de um clima de falta de confiança em relação à mídia e aos pes-
quisadores que se instalou no meio do candomblé baiano, relação de
confiança e Bastide sente falta da paciência de um etnógrafo em Clouzot,
pois ele poderia ter acrescentado novas informações dos boris, mas como
ele não era um etnógrafo,“[...] por três ou quatro fotografias sensacionais,
tornou impossível qualquer pesquisa científica durante alguns anos. Digo,
pois, que o preço foi muito caro. Caro demais para a Ciência”.

118 IMAGENS DO SAGRADO

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Ao levantar uma possível pergunta sobre o seu próprio julgamento do
livro de Clouzot, Bastide aponta para um método condenável e pouco
moral. Sobre a veracidade das informações, aponta o mesmo erro de Clou-
zot, aludido em seu outro artigo, de confundir o símbolo com a realidade
quando ele se colocava em busca do segredo, pois “a iniciação não nos dá
a chave da vida mística”, completa. Assim, mesmo considerando que não
há erros graves em seu conjunto, a imagem construída do candomblé por
Clouzot permanece falsa, por procurar sempre “o grotesco, o nauseabun-
do, o ridículo [...] assim, desaparece o que há de lírico, de místico, e de
filosófico nessa religião, essa busca ardente do divino, essa participação
poética com as forças da natureza, essa fidelidade comovente com a África
ancestral [...]”. Clouzot carece de simpatia humana, finaliza Bastide, como
se novamente indicasse que devíamos esquecê-lo.

Clouzot, de volta das cinzas

Logo na Introdução do livro Candomblé da Bahia — Rito nagô, de


1958, Bastide chama uma primeira nota na qual completa informação
sobre a bibliografia comentada sobre o candomblé, reafirma algumas
colocações de seus artigos na revista Anhembi sobre Clouzot e faz uma
comparação entre os procedimentos utilizados por ele e os adotados por
Pierre Verger. Diz Bastide:

Já citamos as publicações feitas em francês por Nina Rodrigues e pelo padre


Brazil. Também nessa língua, acrescentemos às obras precedentes a do cine-
asta Clouzot, Le Cheval de Dieux (Paris, 1951), e o álbum Dieux d’Afrique
(Paris, 1955), de Pierre Verger, composto de fotografias comentadas. Embora
o livro de Clouzot não seja o de um etnógrafo, não contém erros muito
graves; pode até ser útil, fazendo-nos assistir à vida de alguns candomblés
e, desse ponto de vista, ocupa em nossa literatura lugar análogo ao livro de
Ruth Landes, A Cidade das Mulheres. Infelizmente, Clouzot nada compreen-
deu da mentalidade do negro baiano e apresenta uma noção engraçada do
“segredo”, que o faz desviar para falsas pistas, impedindo-o de ver o que há
de mais importante no culto. A leitura do livro revela todo o mal que a lite-
ratura sádica, pode trazer à pesquisa científica. Pierre Verger, ao contrário, é
o homem que mais bem conhece atualmente os candomblés, pois não só é
membro como ocupa neles posição oficial; sem dúvida, por isso mesmo está,
por sua vez, ligado pela lei do segredo e nunca poderá contar tudo que sabe;

CLOUZOT NO BRASIL, O CASO PARIS MATCH 119

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mas esperamos muito de seus conhecimentos, e particularmente a obra que
está agora preparando [...]. (Bastide, 2001, p. 267)

Em outra passagem, logo à frente, sobre a cerimônia chamada bori,


ou “dar de comer à cabeça”, Bastide alude à existência de alguns detalhes
dessa cerimônia encontrados na “reportagem” de Clouzot (Bastide, 2001,
p. 42). Note-se que Bastide usa o termo “reportagem”, mas a matéria
publicada na revista Paris Match não é citada em momento algum do
livro, e Bastide refere-se sempre ao livro de Clouzot nas suas notas e na
sua bibliografia. O detalhe que Bastide vai buscar em Clouzot aparece
na forma de nota, e explica o efum em um texto descritivo, mas Bastide
acentua: “Clouzot só se interessa pelos elementos dramáticos; mas se
nossa interpretação sociológica for exata, são ao contrário os elementos
simbólicos os mais importantes. Para nós, o efum individualiza a posses-
são” (Bastide, 2001, p. 270, grifos do autor).
Clouzot aparece de forma mais incisiva no livro de Bastide quando o
assunto é a iniciação. Bastide resume a passagem de Clouzot quando este
indaga sobre a alta incidência de doentes histéricos na Bahia, indicando
uma relação entre a possessão e a crise histérica (assunto já tratado por
ele em artigo na revista Anhembi). Para Clouzot, então, a administração
de ervas especiais para as iaôs funcionaria como drogas para colocá-las
em uma espécie de estado de atordoamento, mas sob uma dominação
hipnótica, em um estado de desagregação mental, criando uma associa-
ção da música com o transe e um conseqüente sugestionamento, que
ainda vai continuar também na passagem para o estado de vigília. Não
da mesma forma veemente, por meio da qual refuta essa justificativa de
Clouzot, Bastide diz agora que a atitude é mais flexível “[...] pois leva
em consideração ainda o fato de certas candidatas serem possuídas por
um santo bruto antes de terem sofrido as provas iniciáticas” (Bastide,
2001, p. 46).
Nesse sentido, uma passagem de Clouzot é citada para aludir uma
questão refutada anteriormente por Bastide sobre o “tratamento de neu-
roses”. Mais flexível também nos parece Bastide nesse momento, mesmo
questionando a argumentação de Clouzot de reconhecer a iniciação como
um fator de controle dessas crises, mas sem destruir o indivíduo, tornan-
do-o sugestionável: “No entanto, encara ainda o controle por meio da
medicina psiquiátrica. Dever-se-á encarar necessariamente as centenas
de filhas e filhos-de-santo que vivem na Bahia como outros tantos epi-

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lépticos, histéricos, paranóicos — numa palavra, neuróticos —, embora
nosso autor pareça de início rejeitar essa hipótese?”. Bastide retoma aqui
quase literalmente seu texto publicado na revista Anhembi, o qual não
é citado em suas notas nem na sua bibliografia. E continua dentro da
mesma perspectiva:

Mas o transe de possessão tem caráter antes sociológico do que patológico;


como Herskovits observa com muita razão, não devemos esquecer que esse
transe é um fenômeno ‘normal’ para certas civilizações como as da África
negra, imposto pelo meio e constituindo uma espécie de adaptação social a
certos ideais coletivos.

A pergunta que fica é: Por que razão não incluir o texto no qual ele
próprio já tinha dessa forma argüido anteriormente? Independentemen-
te de seus motivos, o que nos interessa é a volta de Clouzot como um
autor questionável em seus pontos de vista, mas agora passível de certa
flexibilidade.
Em alguns outros momentos menos importantes do livro, Clouzot
é lembrado, como na passagem em que Bastide relata um processo de
sucessão em um terreiro tradicional de Salvador e a disputa que se es-
tabeleceu com a morte da ialorixá, cujo protetor era Xangô. Durante os
sete anos regulares que se esperava para que a sociedade dos eguns da
ilha de Itaparica invocasse a alma da mãe-de-santo, a filha-de-santo mais
velha de terreiro ficou encarregada de cuidar da casa religiosa, mas como
era filha de Oxum, aconteceram conflitos até mesmo no plano místico
com os seguidores de Xangô, e Bastide diz: “Clouzot, aliás, que estava na
Bahia nessa época, faz a isso uma rápida alusão” (Bastide, 2001, p. 246).
Qual a importância de novamente citar Clouzot se suas observações não
são relevantes? As cinzas de Clouzot são constantemente reavivadas por
Bastide, legitimando sua passagem pelo Brasil. Assim, Clouzot não foi
esquecido como tanto queria Alberto Cavalcanti.

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O CRUZEIRO E JOSÉ MEDEIROS

De Leão Gondim para José Medeiros1

Anexo reportagem de Clouzot, se é que você


não a conhece, para inspiração. O “furo” é de
doer, caramba!
Endereço — Av. Copacabana 1386 – AP. 701
Rio, 2 de agosto

Caro Medeiros

Acabo de receber a reportagem das baleias — mandei fazer logo as provas


pequenas e pelo que pude olhar no laboratório está bôa. Poderia estar magnífica
se houvesse por aí uma teleobjetiva para focar cenas longínquas como as do har-
poamento. Estou providenciando para que em breves dias “O Cruzeiro” possúa
equipamentos especiais de fotografia para todas as emergencias.
Soube que você andou meio mal dos pulmões com qualquer cousa parecida
com peneumonia (o molestia do sono?) mas acredito que já esteja bom. O motivo
desta carta, como se pode prever, não é de saudades de tão insignificantes crea-
turas que vocês são, mas outro. Um motivo que deve ficar absolutamente
secreto.
Como você sabe aquela reportagem de Paris-Match sobre os “Pocessos da
Bahia” deixou nosso chefe com absoluta e gravissima dor de côrno — princi-
palmente porque sabe e viu que Verger possue fotografias tão sensacionais ou
mais sensacionais do que as do cineásta francez.Verger esteve aqui no Rio e foi
convenientemente cantado para ver se nos cedia tal material — fez promessas
vagas e agóra manda dizer que “em hipótese nenhuma os publicará agora”. Ora,

1 Correspondência reproduzida com a grafia da época e os grifos originais.

O CRUZEIRO E JOSÉ MEDEIROS 123

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meu caro Medeiros, se um francez chamado Verger conseguiu fotografar os
ritos secretos da Macumba, e quando outro francez chamado Clouzot conseguiu
também o mesmo, porque raios que os partam um fotografo brasileiro não poderá
fazer o mesmo? Estaremos tão avacalhados assim? Somos tão cretinos assim que
nos deixemos vencer em nossa própria terra por dois gringos?
O que há é o seguinte: o nosso chefe acredita que José Medeiros será o
unico fotografo brasileiro capaz de realizar uma façanha semelhan-
te — eu quasi que participo da mesma opinião, muito embóra os rapazes cá de
casa digam que também eles poderiam fazer o mesmo... Muito bem, você
será capaz de nos trazer uma reportagem ao menos semelhante ao de Clouzot?
Bem sei que agóra a cousa está mais difícil depois do escandalo de Paris-Match.
Mas nada existe de impossível quando há dinheiro para gastar, e vocês estão
autorizados a gastar o que for necessário para conseguir o que queremos. Para
lavar nossa cara tão duramente atingida pela reportagem de Clouzot
(“nossa cara” quer dizer, nossa honra de revista que realisa as melhores reporta-
gens do Brasil) Você é capaz negroide amigo? Pois então mãos á obra para
construir o maior cartaz da reportagem brasileira. Veja se Arlindo o auxilia, se
esse paulista peçonhento e prosa p’ra xuxú sabe fazer alguma cousa a não ser
descobrir tramas comunistas inexistentes...
Importantissimo — Desse plano ninguém deve saber, principalmente Ver-
ger e inclusive nosso amigo querido Odorico Tavares, que está com escrupulos de
abordar o assunto, de acordo com razões que possue e que respeitamos. Trabalhe
na moita, dizendo que quer fazer cousas diversas, documentação pessoal sobre
qualquer assunto, mas nunca que está procurando material para bater
Clouzot. Combinado?
Escreva com notícias. É preferível que para mim para que a carta não se perca
na Redação. Mandaremos o que vocês necessitarem. Lembranças ao Arlindo a
quem (aqui entre nós) muito admiro e estimo e abrace o amigo (não sei porque,
mas amigo) e chefe mirim.

leão gondim (chefe da Revista “O Cruzeiro”)

As informações dessa carta enviada por Leão Gondim para José Me-
deiros, quando ele e Arlindo Silva ainda estavam na Paraíba fazendo uma
reportagem sobre a pesca da baleia em Cabedelo, são elucidativas de todo

124 IMAGENS DO SAGRADO

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o processo de tomada de decisão para a realização da pauta que resultou
na reportagem “As noivas dos deuses sanguinários”. Datada do dia 2 de
agosto de 1951, a carta foi endereçada diretamente a José Medeiros.
A visão negativa sobre a presença de jornalistas no meio religioso
do candomblé depois de um mês de julho intenso de críticas públicas
à reportagem da Paris Match irão dar o tom da carta de Leão Gondim
para José Medeiros. A deturpação dos fundamentos e uma visão precon-
ceituosa por meio de um texto infeliz e de imagens sensacionalistas do
“segredo” do candomblé colocaram a comunidade religiosa, pelo menos os
terreiros tradicionais, em estado de desconfiança, como acentuou Roger
Bastide. Alguns dados merecem comentários e análises. O tratamento
dado na carta é de extrema intimidade com José Medeiros e coloca-o em
uma situação de desafio profissional, ou seja, demonstra que o interesse
principal da revista é conseguir um conjunto de fotografias com cunho
documental e jornalístico. Ao colocar o jornalista de texto em segundo
plano, valoriza-se a fotografia como principal elemento de comunicação
pretendida.
Logo no cabeçalho da carta, Leão Gondim diz que manda anexa a
reportagem publicada na Paris Match para que Medeiros se inspire, e a
importunação aparece de imediato com a frase: “O ‘furo’ é de doer, ca-
ramba!”. Instaura-se assim o teor corrente que terá a carta, o fato de um
estrangeiro abordar uma temática nunca explorada pela mídia nacional:
os segredos do candomblé.
No tratamento próximo, perguntando sobre a saúde de Medeiros, Leão
Gondim diz que escreve não de saudades de “insignificantes criaturas”,
mas enfatiza em letras maiúsculas: “um motivo que deve permanecer em
segredo absoluto”.
Cita que “nosso caro chefe”, no caso Fred Chateaubriand, ficou com
“absoluta e gravíssima dor de corno”, principalmente por ele saber da
existência de documentação fotográfica realizada por Pierre Verger fo-
calizando o ritual secreto de iniciação, e por Verger ter-se recusado a
publicá-la, sendo no início ambíguo quando de uma estada sua no Rio
de Janeiro, e enviando depois uma mensagem na qual declara que “em
hipótese alguma as publicará agora”.
A posição ética de Pierre Verger, como um cúmplice do candomblé,
coloca-o dentro da esfera da lei do segredo e, portanto, do invisível, ou da
preservação imagética desse universo. Dado o contexto, Chateaubriand
parte para o desafio com Medeiros, colocando-o como único fotógrafo

O CRUZEIRO E JOSÉ MEDEIROS 125

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brasileiro a poder fazer frente aos “dois gringos” que conseguiram ima-
gens dos rituais sagrados e ele ainda pergunta: “Será que estamos tão
avacalhados assim?”.
Colocado o desafio e a pauta sendo articulada na cúpula da revista
O Cruzeiro, e não como inicialmente pensávamos, como uma pauta do
próprio Medeiros, Leão Gondim reconhece que depois da Paris Match se
tornaria difícil entrar novamente em um terreiro para realizar reportagem
semelhante: “Mas nada existe de impossível quando há dinheiro para gas-
tar e vocês estão autorizados a gastar o que for necessário para conseguir
o que queremos”. O Cruzeiro coloca-se no mesmo plano de Clouzot, que
tinha também muito dinheiro para gastar e o fez pagando uma alta soma
para o tal Nestor, conhecido como Pai Rufino. Leão Gondim coloca para
Medeiros, dessa maneira, além do desafio pessoal de um fotógrafo em
relação a dois estrangeiros, a própria “honra” da revista O Cruzeiro, para
“lavar a cara” da “revista que realiza as melhores reportagens do Brasil”.
E pergunta em desafio direto: “Você é capaz, negróide amigo”? Arlindo
Silva, “paulista peçonhento e prosa p’ra xuxu”, é indicado como acompa-
nhante de Medeiros, reforçando o caráter imagético da pauta.
A última frase coloca novamente a importantíssima missão secreta
dos dois, pois pede que não falem nem com Pierre Verger, nem com
Odorico Tavares (chefe da sucursal da revista em Salvador). Ou seja,
orienta que digam mentiras para os dois, que não aceitariam uma outra
reportagem semelhante à de Clouzot, principalmente publicada por uma
revista brasileira. “Não diga nada para ninguém”, “trabalhe na moita”, diz
Leão Gondim. E ainda sugere a Medeiros que não mencione Clouzot em
suas conversas para não levantar suspeitas que dificultariam o trabalho.
A decisão de uma pauta secreta, e a carta endereçada para Medeiros
que nem mesmo foi mencionada por ele a seu companheiro de trabalho,
Arlindo Silva, coloca essa reportagem no âmbito de uma “missão secreta”
redentora da importância da revista O Cruzeiro com as temáticas nacio-
nais. Podemos imaginar a surpresa da intelectualidade baiana e brasileira
que se movimentou armada em críticas abertas em relação à reportagem
da Paris Match. Pouco se escreveu sobre a reportagem, e todos silenciaram
em uníssono, temendo talvez a força da revista e de seu dono. Talvez se
sentindo, alguns, magoados com a forma de conduzir a reportagem, mas
parece que todos se sentiram redimidos, menos, é claro, a parte mais fraca
do elo que se formou desde a publicação da Paris Match, a mãe-de-santo
Riso da Plataforma, para a qual toda a ira local foi deslocada.

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O embate da revista O Cruzeiro com a imprensa internacional sobre
temas brasileiros tomou uma dimensão de farsa no repique que a dire-
ção da revista quis fazer sobre uma reportagem publicada nos EUA em
1961. A história do menino Flávio da Silva foi publicada na revista Life
no dia 16 de junho de 1961. Gordon Parks, em viagem ao Brasil para
fazer uma reportagem sobre favelas no Rio de Janeiro, encontrou Flávio
no barraco de sua família com graves problemas de saúde. A foto que
mostra Flávio em sua cama, uma foto que dramatiza seu sofrimento pela
luz e pela expressão anunciada de uma morte próxima, sensibilizou cen-
tenas de pessoas nos EUA, que imediatamente encaminharam doações
que resultaram em US$ 30.000. O fundo criado pelo volume expressivo
das doações foi repartido entre a ajuda direta a Flávio e sua família e a
favela que morava, Catacumba. Simultaneamente a esse fato, a favela da
Catacumba tornou-se assim um piloto de um “projeto de progresso”,
como ressalta Parks em seu livro Flávio, publicado em 1978, como plei-
teava John Kennedy e sua ação na Aliança para o Progresso. Parks esteve
durante três meses em contato com Flávio e a família na sua estada no
Brasil. Diz Parks em seu livro:

Nada pareceu mais irritado do que a revista brasileira O Cruzeiro. Depois


da história de Flávio ser publicada em Life en Español, O Cruzeiro enviou
um de seus próprios fotógrafos para a cidade de Nova Iorque tentar fazer
uma reportagem similar no distrito de Wall Street onde moravam famílias
porto-riquenhas, e mostrou uma criança dormindo com baratas em sua face
e outra criança chorando de fome. A matéria acusava Life de fabricar toda a
história de Flávio e me acusava de comprar um caixão e colocar uma mulher
viva dentro dele (na verdade, a mulher estava realmente morta, com o atesta-
do de óbito para provar, e ela não estava em um caixão mas deitada em um
esquife provisório). Time Magazine descobriu, depois de investigações, que o
correspondente do O Cruzeiro fez uma foto armada com a criança dormindo,
tendo pego as baratas e colocando-as em seu rosto. Para fazer a outra criança
chorar, o fotógrafo ameaçou jogá-lo pela janela. (Parks, 1978, p. 91)

Parks diz que se surpreendeu, pois, se O Cruzeiro quisesse fazer uma


matéria semelhante, era somente ir ao Harlem ou ao sul de Chicago
que iria encontrar uma história genuinamente trágica como a história
de Flávio. E disse que, quando a Time publicou a matéria sobre a farsa,
a revista O Cruzeiro não respondeu. O caso Flávio publicado na Life
fez que uma onda de artigos de protesto aparecesse na mídia brasileira,

O CRUZEIRO E JOSÉ MEDEIROS 127

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principalmente nos jornais O Dia e Correio da Manhã. O Dia escreve que
não era necessário um estrangeiro para alertar-nos para as condições das
favelas, e que não se poderia culpar o povo brasileiro por essa situação,
mas, ao mesmo tempo, o Correio da Manhã dizia que as fotografias de
Parks falavam por si sós e falavam muito alto, e pergunta se os outros vi-
zinhos de Flávio poderiam esperar por outras reportagens e assim ganhar
também uma casa em lugar limpo e sadio. Com o dinheiro arrecadado
pela reportagem, doações espontâneas dos leitores de Life, Parks com-
prou uma nova casa para a família de Flávio em um bairro, Guadalupe, e
levou-o para tratamento nos EUA. Flávio sobreviveu e estudou durante
dois anos nos EUA, vivendo com uma família hispânica. Parks voltou ao
Brasil em 1977 e fotografou Flávio, já casado, e sua família; justapõem-se
no livro as fotos feitas em 1961 com as fotos de 1977, inclusive a foto do
casamento feita por um fotógrafo anônimo, provavelmente um fotógrafo
de casamento.
Segundo Arlindo Silva, o fotógrafo que a revista O Cruzeiro mandou
a Nova Iorque para fazer a reportagem sobre miséria em bairro porto-
riquenho foi o francês Henri Ballot. O embate Paris Match-Clouzot
repetiu-se de forma trágica para a revista no caso Life-Parks. A revista
perdeu credibilidade com o repique da Life desmontando a farsa de Henri
Ballot.

Encontro com Arlindo Silva

Depois de várias tentativas durante todo o ano de 2002, consegui


agendar um dia para conversar com Arlindo Silva. Não sei a razão pela
qual ele adiou tantas vezes a entrevista, que acabou sendo muito impor-
tante para fechar o levantamento de dados da pesquisa. Muitas dúvidas
foram sanadas, principalmente em relação à identificação de uma carta
recebida por José Medeiros, datada de 2 de agosto de 1951, e às infor-
mações que deu sobre a relação estabelecida na ocasião com Mãe Riso
da Plataforma.
Em relação à carta, tive a informação de que a Casa de Cultura de
Teresina mantinha uma sala com alguns objetos pessoais de José Medeiros
e algumas cartas, entre elas uma que referenciava a sua ida para Salvador.
Gentilmente a carta foi digitalizada e enviada via Internet, e pude usá-la
na entrevista com Arlindo Silva. A cópia que me foi enviada pela Casa

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de Cultura estava sem assinatura, provavelmente deixaram de digitalizar
a última parte. Medeiros e Arlindo Silva a receberam na Paraíba quando
estavam fazendo uma reportagem sobre a pesca da baleia em Cabedelo.
A carta é elucidativa de vários aspectos da tomada de decisão de fazer
a reportagem sobre candomblé pela revista O Cruzeiro. Destinada dire-
tamente a Medeiros, pede-lhe que mantenha absoluto segredo do seu
conteúdo, e Arlindo Silva não sabia da sua existência. No encontro que
tivemos, ele pôde ler pela primeira vez, 51 anos depois, a tal misteriosa
carta que esclarece a decisão de fazer a reportagem, a motivação e as
circunstâncias ocultas da sua realização perante a dupla de inúmeras
reportagens no Nordeste: Pierre Verger e Odorico Tavares, esse último
então responsável pela sucursal de Salvador.
Arlindo Silva confirmou que a motivação da passagem pela Bahia,
junto com José Medeiros, foi a reportagem da Paris Match antes mesmo
de ver a carta enviada para José Medeiros, dizendo que Clouzot fez um
grande alarde da matéria, e eles colocaram então a reportagem de Salvador
como uma questão de honra, de brio profissional, pois a imprensa brasi-
leira comentara a polêmica da Paris Match, e disse que a decisão partiu
da redação da revista O Cruzeiro. Odorico Tavares era muito amigo de
José Medeiros e colocou-se contra a reportagem dos dois; Pierre Verger
não foi procurado. Segundo Arlindo Silva,

O próprio Odorico também foi contra essa reportagem, de nossa tentativa lá...
vocês vão quebrar... vocês não deviam fazer isso, esse Clouzot fez um mal, ele
fez um grande mal, porque contou coisas secretas, de coisas bonitas, coisas
dessa religião, e acho que vocês não deviam fazer isso, vocês vão quebrar o
encanto de muitas cerimônias que existem aí, do mundo secreto, religioso, é
muito bonito esse mundo secreto e tal...

Como eu estava com a carta incompleta na ocasião da entrevista com


Arlindo Silva (faltava a frase final e a assinatura), ele identificou a autoria
da carta como sendo de Antônio Accioly Netto pelo endereço que consta-
va no cabeçalho, pela forma jocosa como as pessoas eram tratadas na carta
e mesmo por um detalhe sobre equipamentos fotográficos que estariam
sendo providenciados pela revista: Accioly “me chamava de paulista”.
Por causa da confusão estabelecida pela falta da autoria da carta nessa
ocasião, Arlindo Silva identificou, equivocadamente, um chefe citado na
carta como sendo Leão Gondim, diretor responsável pela revista, que

O CRUZEIRO E JOSÉ MEDEIROS 129

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participava das idéias e das discussões das matérias. Ele “dava muito
palpite, e nesse caso ele se interessava muito e tal, porque a Paris Match
tinha feito essa coisa, então essa carta é do Accioly Netto, que era o diretor
responsável da revista, e pelo endereço aqui [...]”2.
Apesar da resistência de Odorico Tavares, Arlindo e Medeiros insis-
tiram na reportagem e a relação com Riso foi estabelecida por Gervásio
Batista, fotógrafo do Diário de Notícias, que fazia parte dos Diários As-
sociados, jornal em que Odorico Tavares era editor-chefe:

O Gervásio tinha um amigo motorista de praça, que o apelido dele era


Sessenta, então através dele nós chegamos até o terreiro, ele era amigo des-
se pessoal, pelo menos conhecia. Através do Sessenta encaminhamos uma
negociação com a mãe-de-santo do terreiro, ele intermediou a negociação,
foi lá, conversou com ela. Ela disse que o material era muito caro, bichos,
folhas etc... aí nós mandamos dizer, olha não queremos violentar a norma
da religião mas se ela quiser a gente pode comprar o material necessário,
podemos oferecer o material necessário.

Sessenta então se incumbiu da negociação com Mãe Riso, comprando


os bichos, e todo material necessário para finalizar a iniciação do barco
de três iaôs que estavam recolhidas, não havendo, portanto, uma soma
muito grande de dinheiro em espécie na relação com Riso, conforme se
alardeou rapidamente em Salvador depois que a reportagem foi publicada.
É possível que um pequeno montante tenha ficado com Riso, pois sua
irmã Leleta disse que ela usou esse dinheiro para completar a compra do
terreiro da Plataforma, depois da venda do terreiro da Ilha Amarela. Uma
semana depois eles estavam dentro do terreiro fotografando e anotando
todos os passos da mãe-de-santo. O local era considerado muito distante
da cidade, tendo de ser percorrida uma certa distância a pé. José Medeiros
e Arlindo Silva dormiram nos fundos do terreiro esperando as cerimônias
de sacrifício de animais para os orixás, e não tiveram nenhuma restrição
de circulação para fotografar ou observar todo o ritual. “Nós chegamos
lá de dia, à tarde, dormimos lá, dia seguinte tomamos café, comemos uns
bolinhos, aquela coisa toda, e não havia nenhum tipo de movimento de

2 Cláudia Possa me enviou em setembro de 2006 a carta completa, pois passou por Teresina e
teve acesso aos originais, e ficou estabelecida finalmente a autoria da carta, assinada por Leão
Gondim.

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cerimônia, só tinha lá essas moças, moças normais, ninguém dizia que
seriam iniciadas [...]”.
Sem pesquisar sobre candomblé anteriormente, e sem muitas pergun-
tas, Arlindo escreveu o texto da matéria de forma quase direta:

Durante a noite a mãe-de-santo começou a preparar o material, pra ver os


bichos, aquela coisa toda etc. e tal, e mais tarde, numa hora x, que ela come-
çou, acho que ela entrou em transe, quando ela começou a trabalhar, então
o Zé Medeiros começou a fotografar, e eu tomando rigorosamente nota, o
que estava acontecendo eu estava passando para o papel, aí a mãe-de-santo
pegou a moça e começou a raspar, cantando a música, eu sabia da música até
agora... veja você como é interessante, faz 50 anos e eu me lembro da música.
Então eu tinha tudo anotado ali, como se eu estivesse vendo e escrevendo,
fazendo uma narrativa ao vivo do que eu estava assistindo, senão seria depois
impossível escrever mais tarde, lembrar de tudo o que estava acontecendo,
então anotei “passou a navalha do lado de cá e tal, e os pêlos estão caindo
no chão, agora ela mudou de lado [...]”, tudo com detalhes, sem conversar
com ela, sem conversar, assistindo e escrevendo o que ela estava fazendo,
inclusive as reações das pessoas que estavam ao lado, as assistentes, auxiliar.
Foi escrito ao vivo ali, assistindo o fato e descrevendo o fato. Então ficamos lá
até de madrugada, e as moças ficaram lá ainda em transe, as iaôs estavam em
transe, entendeu? Estavam completamente tomadas. Houve vários santos que
baixaram, não me lembro quais os santos que baixaram nelas, então terminou
esse cerimonial, até quase raiar do dia seguinte, até quase a madrugada do
dia seguinte, quando terminou, nós fomos nos recolher.

Ao contrário de Medeiros, sem lembrar-se do nome da mãe-de-santo,


Arlindo Silva disse que não nomearam as pessoas no texto da reporta-
gem para preservar o anonimato, e ingenuamente não perceberam que
a rede do candomblé conhece a todos, e assim Riso da Plataforma foi
imediatamente reconhecida quando a revista chegou a Salvador. Arlindo
e Medeiros sabiam das conseqüências de sua reportagem:

A reportagem foi feita debaixo de muitos cuidados, e a própria mãe-de-


santo sabia que ela estava correndo algum risco, algum perigo... O Clouzot
fez aquela matéria pequena, e deu uma revolução, no Brasil inteiro a impren-
sa comunicou, comentou isso, deu uma enorme repercussão, na França, o
Clouzot tornou-se um nome faladíssimo por essa reportagem na Bahia,
então tornou-se uma coisa misteriosa, selvagem... e nós, por uma precaução,
conhecendo o problema da época, não iríamos citar o nome dela porque ela

O CRUZEIRO E JOSÉ MEDEIROS 131

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seria perseguida, como depois souberam, descobriram, em uma comunidade
tão pequena, e depois de muito tempo, conversando com o Gervásio Batis-
ta, soube desses fatos, porque depois ele saiu da Bahia e tornou-se fotógrafo
da revista Manchete, começamos a ter uma convivência maior, uma grande
amizade... eu soube que ela foi realmente perseguida, até que teve de sair da
Bahia, sair de Salvador [...].

Riso sabia o que estava fazendo e tinha consciência de que eles eram
jornalistas da revista O Cruzeiro, pois dessa forma se apresentaram a ela:

[...] ela sabia que era para ser publicado na revista O Cruzeiro, a gente até
comentou nessa base de que um estrangeiro tinha publicado umas fotos de
Candomblé e tal, e a gente queria também fazer a mesma coisa e tal, e foi
assim a conversa. A gente tentou outros caminhos, e houve recusa de pessoas
que podiam nos ajudar, e sempre davam contra, era Odorico Tavares. Pierre
Verger nós não conversamos porque sabíamos que ele iria dar sumariamente
contra, outros jornalistas também, porque na Bahia, é engraçado, viu? Porque
na Bahia jornalistas, escritores, gente de cultura, gente que está habituada
com todos os dramas e problemas do mundo, do dia-a-dia, da pobreza e da
miséria do crime, eles respeitam o negócio, e acreditam no negócio, então não
foi muito fácil até aparecer o Gervásio Batista e o motorista Sessenta... porque
o Sessenta era acostumado a levar turista para ver os rituais públicos...

A editoração da revista O Cruzeiro era “formatada” no calor do mo-


mento quando todos os grandes assuntos eram discutidos na sala da
paginação, e todos observavam e davam palpites, pois não era uma grande
equipe, e assim aqueles que estavam na redação nesse momento partici-
pavam das escolhas em relação ao que deveria ser destacado, qual imagem
deveria vir em página dupla ou em página inteira. As duplas saíam para
fazer uma reportagem e voltavam com cinco ou seis sobre assuntos que
encontravam pelo caminho, havia autonomia, pois não existia uma chefia
de reportagem. Quem mais encaminhava decisões de pauta eram Accioly
Netto e o próprio Leão Gondim, responsável pela revista e primo de
Chateaubriand, o dono da revista.

O Cruzeiro naquele tempo não tinha editoria, não tinha chefe de reportagem,
não tinha pauteiro, não tinha nada disso que hoje em dia tem. Os repórteres
em si eram donos das suas idéias, e quando eles partiam para uma reportagem,
eles traziam às vezes cinco ou seis, que iam surgindo no meio do caminho,

132 IMAGENS DO SAGRADO

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na viagem eles iam fazendo... essa daí, nosso destino era uma reportagem
sobre pesca da baleia, aí paramos na Bahia, atrás um pouco dessa coisa toda,
e ver da possibilidade de se fazer alguma coisa, né? Tanto é que depois nós
fomos fazer a reportagem das baleias [...].

Assim, o título da reportagem da Bahia foi decidido. O título inicial


proposto por Arlindo era “Os deuses sanguinários da Bahia” e acabou
virando “As noivas dos deuses sanguinários”, numa troca de idéias entre
Arlindo e o baiano Herberto Sales. Houve uma grande euforia com a
publicação, considerada um grande furo espetacular de reportagem, com
destaque fora da normalidade editorial, em um momento em que a revista
se encontrava em seu auge.

José Medeiros3

Medeiros teve, muito cedo, uma vivência no universo da fotografia,


estando envolvido desde a infância com a prática de seu pai, fotógrafo
amador; ganhou uma câmara de um parente aos 11 anos de idade. Modi-
ficando-a com lentes de óculos, fazia reproduções de imagens de artistas
de cinema para vendê-las. Seu pai vendeu-lhe a própria câmara com a
qual fotografava a família, numa espécie de financiamento: Medeiros teria
de pagar-lhe com trabalho de fotografias de eleitores para um político
do Piauí, seu estado natal, onde nasceu em 1921.
Medeiros mudou-se com a família para o Rio de Janeiro em 1939 e
tornou-se funcionário público, mas continuou fazendo fotografias, agora
retratos de artistas de teatro e do rádio. Começou como fotógrafo na re-
vista Tabu e na revista Rio, realizando trabalhos freelancer. Nessa ocasião,
em 1946, conheceu Jean Mazon, que estava montando a equipe da revista
O Cruzeiro, e somente um pequeno grupo operava a revista. Medeiros foi
então um dos primeiros fotógrafos da revolução jornalística, apoiada em
imagens, realizada pela O Cruzeiro, com influência direta das revistas Life e
Paris Match; era uma espécie de espelho dos mais importantes magazines
da época, mas teria uma roupagem própria, ao encontro de um Brasil
distante, regionalista, por um lado, e nacionalista, como principal veículo

3 Baseado no depoimento de José Medeiros para Nadja Peregrino e Ângela Magalhães, José
Medeiros — 50 anos de fotografia. Rio de Janeiro: Funarte, 1986.

O CRUZEIRO E JOSÉ MEDEIROS 133

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formador da opinião pública da época nos temas brasileiros. Logo outros
fotógrafos e jornalistas foram incorporados à equipe da revista, além de
Jean Mazon e David Nasser: nomes como Luciano Carneiro, Luis Carlos
Barreto, Indalécio Wanderley, José Leal, e depois Flávio Damm. Havia
um glamour de pertencer à revista, e onde estivessem eram procurados
pela população como “gente famosa”.
Medeiros mantinha uma relação umbilical com a imagem desde a
infância, como vimos, e assinava revistas internacionais de fotografia:
Modern Photography, Popular Photography, Animal Photography, Look e a
Life. Acentua que teve uma forte influência de fotógrafos como Walker
Evans, Paul Strand, Berenice Abbot, Eugene Smith e Henri Cartier-
Bresson. Medeiros estava em sintonia com a nata da fotografia interna-
cional, principalmente com aqueles que trabalhavam um novo olhar do
fotojornalismo: fotógrafos autorais. Como era um fotógrafo de ação, na
tradição da street photography, que procura suas imagens nos locais dos
acontecimentos, diferentemente da escola de Jean Mazon, que prepara
a luz com todos posando4, Medeiros achava sua câmara Rolleiflex, equi-
pamento oficial da revista, muito inapropriada para suas viagens e ações
mais ágeis. Assim, começou a usar uma Leica 35 mm, menor, mais leve e
flexível, mas a reação da direção foi de proibir-lhe o uso. Medeiros conti-
nuou a usar o formato 35 mm, porém entregava suas cópias no formato
quadrado, como na Rolleiflex, e suas fotos eram elogiadas e publicadas,
sem perceberem diferença. Jean Mazon criou um estilo formal e clássico
de iluminação, que será muito copiado, preparando uma imagem para
uma pauta já definida anteriormente. Entretanto, quebrando a lógica da
imagem posada, Mazon fez imagens memoráveis dos índios xavantes
atacando com flechas o avião no qual estava, em reportagem publicada em
1944, com repercussão internacional, abrindo o campo para a fotografia
instantânea, o “momento decisivo” na revista. Medeiros irá contrapor à
tradição de uma fotografia formal sua visão de autoria fotojornalística
para a qual também terá, como forte ponto de apoio e seguindo a mesma
proposta, as imagens enviadas por Pierre Verger da Bahia.
Medeiros saiu da revista depois de perder o interesse em trabalhar na
edição internacional de O Cruzeiro, para a qual foi designado, e porque,

4 No início da carreira na revista O Cruzeiro, Medeiros foi influenciado pelo estilo de Jean Mazon
e fazia suas fotografias utilizando muitas luzes e cenas montadas.

134 IMAGENS DO SAGRADO

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na ocasião da morte de um colega (Luciano Carneiro) em um desastre de
avião, a preocupação da direção era com um provável cheque que Luciano
Carneiro trazia para o Rio, vindo de Brasília. Depois disso, Medeiros irá
ter uma significativa participação no cinema nacional, sendo seu primeiro
trabalho a fotografia do filme A falecida, de Leon Hirszman, com Fer-
nanda Montenegro como atriz principal. Uma série de filmes conta com
sua luz brasileira, trabalhando com os principais diretores de cinema no
Brasil: A opinião pública (Arnaldo Jabor,1967), Vai trabalhar, vagabundo!
(Hugo Carvana,1973), A rainha diaba (Antônio Carlos Fontoura, 1973),
Xica da Silva (Carlos Diegues, 1976), Aleluia, Gretchen, República dos
guaranis, Guerra do Brasil (Sylvio Back, 1976, 1978, 1986), Morte e vida
severina (Zelito Viana, 1977). Como diretor, faz quatro filmes de curta-
metragem e um longa, Parceiros da aventura (1979).
A história pessoal de José Medeiros na revista O Cruzeiro colocou-o
estrategicamente no lugar certo, na hora certa. Como os acontecimentos
decorrentes da publicação da Paris Match foram acirrados no mês de julho,
Medeiros estava perto da Bahia para tentar contrapor a “visão brasileira”
do candomblé que a revista O Cruzeiro queria, e era ele o fotógrafo com o
perfil mais adequado para tal. A conjunção dos fatores levou-o à Bahia e
o embate editorial com a Paris Match tornou-se um desafio pessoal, con-
forme nos disse em 1988. Queria ele mostrar o “verdadeiro candomblé”, e
não o “candomblé para turista” de Clouzot. Assim, Medeiros recebe a carta
de Leão Gondim, em tom desafiador e de muito mistério, cobrando-lhe,
dessa maneira, uma atitude de desafio pessoal, profissional e de cunho
nacionalista, elevando-o à condição de um fotógrafo singular que pode-
ria contrapor seu olhar brasileiro à visão estrangeira sobre o candomblé.
Assumindo então uma atitude de enfrentar o tenso mundo religioso do
candomblé da Bahia pós-reportagem de Clouzot, Medeiros leva consigo
seu parceiro Arlindo Silva para um terreiro da periferia, longe dos terreiros
tradicionais, e produzem a matéria “As noivas dos deuses sanguinários”,
considerada como exemplo do fotojornalismo brasileiro.

Da reportagem para o livro, a redenção de Medeiros

A passagem da reportagem “As noivas dos deuses sanguinários”, pu-


blicada em 15 de setembro de 1951, para o livro Candomblé, em 1957,
transformou o fotojornalismo sensacionalista em uma documentação

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fotoetnográfica singular. A reportagem foi publicada com 38 fotografias,
proposta da reportagem ilustrada, clássica da revista O Cruzeiro, que era
fazer com que o olhar do leitor navegasse sobre um volume muito grande
de imagens. A diagramação da revista propiciava esse olhar narrativo de
imagem a imagem, na qual as legendas reforçariam um contexto imagético
preferencial. Nadja Peregrino5 faz uma análise da diagramação da revista
O Cruzeiro, utilizando como exemplo a própria reportagem em questão.
Para essa autora, a narrativa na revista é organizada como uma crônica
visual, tendo as fotografias como sua matéria-prima, na fusão do trabalho
do fotógrafo com as outras informações gráficas.
O seqüenciamento fotográfico é intercalado com certas intensidades
visuais pontuais. A disposição das imagens em página inteira acontece
em momentos fortes da seqüência, como a primeira e a última imagem.
Muitas vezes uma fotografia editada em página inteira apresenta em
destaque uma outra imagem menor sobreposta, criando tais intensidades
pontuais dentro da narrativa; são pulsões de ruptura da linearidade e
funcionam como pontos de passagem para o plano do imaginário do
leitor; escapam, portanto, de uma cadeia sintagmática, própria da fotor-
reportagem, colocando o olhar em situação ativa. A riqueza da diagra-
mação torna a leitura visual atrativa pela não-repetitividade de proce-
dimentos, surpreendendo o leitor a cada página. A clássica seqüência
de quatro imagens em uma mesma página, com cada uma ocupando um
quarto do espaço, é repetida na página ao lado, tornando a dupla página
um dos momentos mais fortes da narrativa. Um pequeno detalhe impos-
to pela diagramação nesse momento denuncia a intencionalidade sen-
sacionalista da reportagem. O final de uma frase de uma simples legenda
colocada em maiúsculas e em negrito escapa da parte inferior de uma
das imagens e continua na imagem ao lado, acentuando o caráter sensa-
cionalista já explicitado no próprio título da matéria: “Sacrifício a Ya-
manjá. As degolas tiveram início às duas e meia da madrugada, prolon-
gando-se até às quatro e meia. Esse ritual sangrento não é porém [grifos
nossos] UM ÍNDICE DE CRUELDADE. As divindades das religiões fetichistas
africanas banqueteiam-se com sangue. E o sangue lhes é oferecido assim
[...]”. Ao passar de uma página a outra e não de uma legenda a outra, o

5 Ver Nadja Peregrino, O Cruzeiro — A revolução da fotorreportagem. Rio de Janeiro: Dazibao,


1991.

136 IMAGENS DO SAGRADO

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leitor relaciona imediatamente o destaque citado com o título colocado
no alto e à esquerda da página dupla, “O sacrifício de aves e animais”,
descontextualizando o próprio texto de Arlindo Silva e conduzindo a
uma leitura equivocada do sentido da frase.
O texto incorre em expressões que adensam a dramaticidade do even-
to religioso, da mesma forma que em Roger Bastide, em outras vezes
acentua o caráter sensacionalista, mas sem comprometer no conjunto o
grau de detalhamento da cerimônia. Considerando a falta de familiaridade
de Arlindo Silva com o candomblé e os procedimentos ritualísticos e
com a linguagem própria do culto, associada ao pouco tempo que esti-
veram dentro do terreiro e ao fato de o texto não ter sido trabalhado
posteriormente para publicação, podemos dizer, à parte sua dramati-
cidades e alguns exageros lingüísticos, que o texto tem qualidades muitos
superiores ao da Paris Match. Clouzot prende-se a explicações psicana-
líticas e muitas de suas passagens são preconceituosas e pejorativas, prin-
cipalmente quando se refere a sua empregada doméstica, “seu objeto de
estudo próximo”, como portadora de uma natureza animalesca. Tal não
acontece com o texto de Arlindo Silva, que enobrece o ritual como uma
tradição africana no Brasil:

Hoje os negros são livres e fazem soar apenas os seus atabaques ritualísticos
[...]. De repente, entre os espectadores, uma jovem negra é acometida de
movimentos convulsivos. A mãe-de-santo, suprema dignidade do rito, corre
a ampará-la. É uma negra alta, de cabeça grisalha, que chegou ao posto
em virtude dos seus conhecimentos do ritual e da pureza de sua linhagem
africana.

Por quatro vezes o texto assinala o caráter “bárbaro” do ritual, no senti-


do de uma cerimônia “selvagem e primitiva”, como é enfatizado na intro-
dução à reportagem: “E é esta reportagem, que ora publicamos, realizada
pelos dois únicos jornalistas brasileiros que até hoje assistiram às práticas
secretas da religião negra professada na Bahia, que vem revelar, ao mundo
civilizado, a estranha história das noivas dos deuses sanguinários”. Esta-
vam, então, os repórteres, como mensageiros da civilização, criando uma
ponte com o mundo “estranho e sanguinário de uma cerimônia bárbara”.
E conseguiram tal feito porque ocorria “[...] a popularidade e o prestígio
de O Cruzeiro em todas as camadas sociais”. Clouzot e a revista Paris

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Match em nenhum momento são citados no texto, seria uma associação
implícita para os leitores privilegiados que acompanharam o caso.
Foram publicadas 62 fotografias no livro Candomblé, de 1957, das quais
apenas 23 são as mesmas das 38 publicadas na reportagem de O Cruzeiro
do dia 15 de setembro de 1951, ou seja, 39 fotografias são inéditas, o que
demonstra que a documentação feita por Medeiros era muito mais rica do
que a edição apresentada na revista. Medeiros é o autor do livro e, assim,
fez uma edição própria ao seu olhar, diferentemente da reportagem, na
qual muitos fatores influenciaram a edição das imagens.
Logo na introdução do livro, Medeiros cita os estudos de Nina Ro-
drigues e de Arthur Ramos como as primeiras pesquisas científicas do
candomblé como religião, mas diz que eles não “conseguiram desvendar
os rituais secretos da iniciação das filhas-de-santo”. Ao demonstrar o
conhecimento de tais trabalhos, Medeiros quer diferenciar e descolar a
edição do livro da reportagem. Cita ainda o clássico livro de Édison Car-
neiro, Candomblé da Bahia, e afirma haver neste somente uma passagem
rápida sobre o assunto e acentua o fato de o próprio autor não ter presen-
ciado tais cerimônias: “Confessou-me ele, aliás, que, durante os seus oito
anos de freqüência aos candomblés de sua terra, nunca lhe foi permitido
assistir a nenhum dos rituais secretos a que só figuras importantes da
própria seita é dado presenciar”. Medeiros cita que o material editado no
livro é acrescido de outras imagens colhidas posteriormente, mas em todo
o conjunto nunca são explicitados datas, nomes e eventos nos quais tais
imagens foram realizadas, comprometendo uma etnografia fotográfica.
O texto que acompanha as imagens é meramente descritivo, de muita
superficialidade, sem adjetivações e dramaticidades como os termos usa-
dos na reportagem. O texto aparece como um enxugamento do relato de
Arlindo Silva, mas com muito menos detalhes. Entretanto, o conjunto
fotográfico e a nova edição das imagens tornam a dinâmica da leitura
diferente da reportagem, pois não existe uma diagramação voltada para
a ilustração jornalística, e as imagens passam a ter autonomia. As foto-
grafias colhidas em outros candomblés intercalam-se com as imagens da
iniciação no terreiro de Mãe Riso. São imagens de festas públicas e prin-
cipalmente de representações de orixás com suas vestes, adornos e ins-
trumentos que lhes são próprios e os identificam. As imagens dos orixás
são quase todas posadas e feitas com luz natural, em ambiente externo,
contrastando com as imagens da iniciação realizadas em ambiente inter-
no sem iluminação e sensibilizadas com luz artificial. Medeiros tenta

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mostrar algumas diferenças ao incorporar imagens de candomblé de cabo-
clo, principalmente quanto às suas vestes e na relação com o indígena
brasileiro, mas o faz com muita superficialidade, não deixando ao leitor
ambigüidades em relação ao ritual fotografado de tradição angola. Entre
as imagens colhidas por Medeiros, e que fazem uma tentativa de contex-
tualização do ritual de iniciação como uma cerimônia mais longa do que
sua documentação, uma se destaca: é a foto na qual Joana de Egum foi
reconhecida por várias pessoas que viram o livro, no tradicional presente
que ela fazia a Iemanjá. Tal imagem não tem relação com a cerimônia de
iniciação e muito menos com o terreiro de Mãe Riso. Da mesma forma,
uma fotografia de um pai-de-santo ornamentado com colares e adornos
em posição de jogar os búzios para fazer adivinhação é descontextuali-
zada das imagens e não pertence à rede de Riso. Até mesmo o telhado
de um terreiro que aparece para ressaltar Ossãe não é do terreiro de Riso,
que seria coberto de palha, conforme sua irmã Leleta.
Ao não ter os elementos contextualizadores das imagens, ao não no-
mear as pessoas fotografadas, ao não identificar locais, datas e situações,
Medeiros faz por enfraquecer seu material original, pois tenta criar con-
textos falsos para as imagens originais realizadas em 1951 no terreiro
de Mãe Riso da Plataforma. Entretanto, a força das imagens e a sua
singularidade permitem que elas tenham autonomia estética, além de
constituírem uma documentação descritiva, tornando o conjunto fo-
tográfico da iniciação das três iaôs um marco nas relações entre mídia,
antropologia e imagem. Riso tinha consigo um exemplar do livro e não
um exemplar da revista, talvez por perceber algumas dessas diferenças
e por não querer levar consigo a carga negativa que a reportagem lhe
impôs, ausente na edição do livro. Medeiros, de certa forma, redimiu-se
ao publicar o livro.

A reportagem de O Cruzeiro

AS NOIVAS DOS DEUSES


SANGUINÁRIOS

Dois repórteres de “O Cruzeiro” desvendam mistérios do mundo ritualístico


e bárbaro dos candomblés da Bahia — A iniciação das “filhas-de-santo” — Ma-

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nifestação de uma divindade feminina — Cenas de um cerimonial secreto em
toda a sua grandeza primitiva.

Texto de Arlindo Silva


Fotos de José Medeiros

Abrimos espaço para uma reportagem que se destina à mais ampla reper-
cussão dentro e fora do país. Ao entregá-la ao público, está certo o O Cruzeiro
de que se trata não só de uma grande realização jornalística, mas também de
uma documentação fotográfica inédita e tanto quanto possível completa sobre a
mais impressionante prática fetichista dos negros baianos: a iniciação das “filhas-
de-santo”. Não é difícil, pois, avaliar as enormes dificuldades que os repórteres
encontraram no cumprimento de sua audaciosa missão, levados que foram a
infringir uma severa norma sagrada que restringe às pessoas iniciadas a graça
de assistir aos cerimoniais secretos dos candomblés. Durante quatro semanas,
os repórteres permaneceram na Cidade de Salvador, entrando em contato com
os mais destacados chefes das agremiações negras da Bahia. Tudo, porém, só
corria bem até o momento em que se tocava no assunto principal da reporta-
gem: a iniciação das “filhas-de-santo”. Isso era o bastante para que os pais e
mães-de-santo se tornassem esquivos, enchendo-se de sombria e temerosa
desconfiança. Uma força, entretanto, atuava em favor de Arlindo Silva e José
Medeiros: a popularidade e o prestígio de O Cruzeiro em todas as camadas
sociais. Um dia, quando já estavam quase desfeitas todas as esperanças, chegou
a esta redação um lacônico telegrama: “Seguiremos amanhã com a reportagem
no bolso”. E é esta reportagem, que ora publicamos, realizada pelos dois únicos
jornalistas brasileiros que até hoje assistiram às práticas secretas da religião negra
professada na Bahia, que vem revelar, ao mundo civilizado, a estranha história
das noivas dos deuses sanguinários.
É noite na Cidade da Bahia. O cais está deserto, as luzes das ruas cintilam
ao longe. A cidade dorme no seu mundo de contrastes. Vem, dos arredores, o
rumor surdo dos atabaques. Agora, que emudeceram na noite os sinos das igrejas
centenárias, uma força misteriosa se desencadeia sobre a cidade mais religiosa
do Brasil. São negros baianos que invocam os seus deuses. Estão reunidos num
local afastado, em plena mata, onde construíram o pavilhão sagrado a que dão o
nome de barracão. Das paredes, tapadas com folhas de palmeiras, pendem ins-
crições numa mistura de português e nagô, e o teto é ornamentado com flâmulas
vermelhas, azuis e amarelas. Três negros continuam a fazer soar os atabaques. À
esquerda, sobre um estrado, estão colocadas as cadeiras dos sacerdotes. Em volta

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da coluna central do barracão, as “filhas-de-santo” ou dançarinas cerimoniais
começam a dançar. Os atabaques entram num ritmo acelerado e vibrante. São
tambores de madeira, medindo cada um mais ou menos meio metro de diâmetro,
e formando um conjunto de três. O maior deles é o ilu e tem quase dois metros
de altura. Ao médio chamam rumpi e o menor tem nome de lé. Os negros batem
com as mãos sobre o couro esticado, mas os sons mais fortes são obtidos por meio
de baquetas. Na noite do candomblé já não se ouve o batá-cotó, o tambor guer-
reiro das insurreições de escravos. Hoje os negros são livres e fazem soar apenas
os seus atabaques ritualísticos. O rumor cresce dentro da noite, ensurdecedor,
anunciando os deuses que vão chegar. Outros instrumentos menores compõem
a orquestra bárbara, o bitonal agogô, o piano-de-cuia, que é uma grande cabaça
contendo pedrinhas e ornamentada com búzios importados da África, o caxixi
e o xaque-xaque, este último um instrumento oco de metal, contendo seixos
nas extremidades, e que produz, ao ser agitado, o ruído que lhe dá o nome. O
barracão é mal iluminado. Na noite quente, espalha-se no ar o cheiro de plantas
aromáticas e excitantes. A atmosfera do barracão é densa e abafada. Em volta,
toda uma assistência de fiéis se comprime para ver dançar as “filhas-de-santo”.
O bater ritmado dos tambores sagrados, o calor sufocante, o aroma das plantas
exóticas, a fisionomia impassível das imagens nos seus altares iluminados com
velas, tudo isso concorre para envolver a assistência numa onda de expectativa
depressiva. A tensão chega ao auge. De repente, entre os espectadores, uma
jovem negra é acometida de movimentos convulsivos. A mãe-de-santo, suprema
dignidade do rito, corre a ampará-la. É uma negra alta, de cabeça grisalha, que
chegou ao posto em virtude dos seus conhecimentos do ritual e da pureza de
sua linhagem africana. Logo em seguida, outra mulher entra em transe e se atira
ao chão. Nesse momento, os atabaques aceleram o ritmo, como se um frenesi
se apoderasse dos tocadores. A assistência, extasiada, vê sucessivamente mais
três mulheres “caírem no santo”. Elas se destacam da massa de espectadores e,
correndo para o centro do “terreiro”, param, de súbito, contraem firmemente os
músculos, fecham os olhos, emitem sons desarticulados, esbracejam, dançam,
batem com os pés, rodopiam à luz das velas, sob a coação mágica dos tambores
sagrados. A mãe-de-santo já não pode socorrer a todas. Vem, em seu auxílio, outra
dignidade do rito, a jibonam ou mãe-pequena, cuja função principal é ajudar às
dançarinas durante a execução das obrigações rituais. Estamos assistindo, nesse
instante, à “chegada” dos orixás ou deuses negros do culto gegê-nagô da Bahia.
Os ogans, pessoas credenciadas junto aos candomblés, mantém os espectadores
afastados do local das danças. Uma das mulheres não resiste e se deixa vencer
pela fadiga. O seu orixá é violento e a tortura, desferindo sobre ela como que

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consecutivos golpes de um chicote invisível. Ela tem o rosto coberto de suor,
os punhos cerrados, e seu corpo estrebucha no chão. Em meio ao rumor dos
atabaques, ouve-se, então, o seu grito de angústia: — Me dê água! É crença,
entre os fetichistas, de que um gole de água pode impedir que a divindade negra
entre no corpo. Essa mulher, com certeza, não está em condições de “receber o
santo”. As outras, porém, continuam a dançar. O ritmo dos atabaques é cada vez
mais frenético, e os tocadores trazem estampada no rosto uma incontida alegria,
porque os deuses estão, afinal, se manifestando. Entre os circunstantes, ouvem-se
expressões de entusiasmo quando alguém identifica, no corpo convulso de uma
das mulheres que dançam, a presença de Ogum, o poderoso deus da guerra. O
reconhecimento da divindade, porém, é feito pela mãe-de-santo. Agora a sua voz
se eleva, dentro do barracão, cantando um salmo sagrado. De acordo com o orixá
invocado, varia o toque dos atabaques. Uma das mulheres descreve uma volta
com o corpo, outra tem as mãos unidas atrás das costas, outra subitamente se
deita e, diante dos tambores, o corpo apoiado nas mãos e nos pés, toca a cabeça
no chão coberto de areia. Todas elas, tendo recebido espontaneamente os orixás,
serão iniciadas como “filhas-de-santo”: os deuses lhes concederam essa graça.
Em volta, e mantendo sempre os espectadores afastados do local das danças, os
ogans se conservam atentos. São estivadores e vendedores ambulantes, gente do
cais e das ruas da Bahia. Ouve-se, ao ritmo dos atabaques, às vezes monótono e
grave, um acompanhamento vocal constituído de frases curtas — sobrevivências
de cantigas trazidas no bojo dos navios negreiros. A mãe-de-santo está satisfeita:
o seu terreiro foi honrado com a manifestação de vários orixás que querem ser
“feitos” ali, e é necessário preparar os novos instrumentos de comunicação entre
as divindades e os homens — as “filhas-de-santo”. Para isso, terá que obter o
consentimento das respectivas famílias, embora ela saiba que ninguém ousará
contrariar a vontade dos deuses. A mulher que, depois da “visitação” do orixá,
fugir à iniciação do culto, por livre vontade ou por pressão dos parentes, atrairá
sobre si a ira do santo que nela se manifestou. Oxum a castigará com terríveis
dores no ventre. Omolu, o deus da bexiga e da peste, cobrirá de lepra o corpo
daquela que se recusar a servi-lo. Ogum a levará à loucura. No candomblé, todos
os deuses sabem castigar e ferir. De repente, a um sinal do agogô, os atabaques
de novo retumbam no pavilhão sagrado. Ao redor da mãe-de-santo, as mulhe-
res se debatem e retomam a dança com os mesmos movimentos convulsivos.
Ouvem-se gemidos trêmulos, latidos como os de um cachorro, gritos agudos e
desarticulados. Todo o barracão estremece. São três novas eleitas dos deuses que
surgem na noite negra da Bahia.

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OS MISTÉRIOS DA “CAMARINHA”

Para sagrar-se “filha-de-santo”, a iniciante, ou iaô, tem que se submeter a um


período de provações e sacrifícios, preparando-se para a missão de hospedeira das
divindades. Enclausuram-na numa pequena cela a que chamam camarinha, onde
ela permanece pelo espaço de dezesseis dias, antes de tomar parte na primeira
cerimônia. Voltando à camarinha, isolada de todo convívio, a iaô é internada por
um período que pode variar de seis meses a um ano. Aprende, então, os rituais
do culto, os cânticos sagrados e rudimentos de uma das línguas africanas: o nagô,
o jejê, o ijexá, o queto, o egbá ou o musurumi. É submetida a uma alimentação
especial e a banhos aromáticos ao ar livre, preparados com folhas que são colo-
cadas dentro do vaso pertencente ao santo. Durante o noviciado, a iaô se abstém
completamente de relações sexuais, sendo de notar que muitas delas são casadas.
Sua alimentação consiste de mingau de milho e de folhas. Por cama, lhe dão
uma esteira. Dentro da camarinha, que não tem janelas, a escuridão é total. Ali só
podem entrar a mãe-de-santo e a “mãe-pequena”, sua auxiliar. Antes, porém, tem
que “pedir licença”, o que fazem batendo palmas e dizendo: — Iaô onipaô.

AS NOIVAS DOS DEUSES SANGUINÁRIOS

Geralmente, durante o período de internamento na camarinha, as iaôs se


acham possuídas por “espíritos” inferiores, de índole infantil, a que dão o nome
de erês. Por esse motivo, ali se encontram vários brinquedos para distração dos
travessos “espíritos”: carrinhos de lata, pedrinhas coloridas, pincéis, tintas, lápis
de cor. Essa a razão pela qual as paredes da camarinha estão sempre cobertas de
garatujas, de desenhos idênticos aos que as crianças costumam fazer. De vez em
quando, os erês se tornam tão insuportáveis nas suas traquinagens, que precisam
ser castigados para se acomodarem. Então a mãe-de-santo vai à camarinha e, com
uma palmatória, espanca a iaô portadora do erê, acalmando assim o irriquieto
“espírito”. Não raro, em vez de bater com a palmatória, a mãe-de-santo esfrega
no corpo da iaô uma folha de urtiga a que chamam de cansanção. O “espírito”,
porém, é por demais travesso, e por vezes a iaô, impelida por ele, arromba a
murros a porta da camarinha, indo brincar ao ar livre. Para prevenir tais fugas,
a mãe-de-santo amarra xaraôs, ou chocalhos, nos tornozelos da iaô, podendo
assim localizá-la a distância. É necessário que as iaôs permaneçam encerradas
na camarinha, cumprindo rigorosamente o noviciado, e para isso a mãe-de-santo
se mantém vigilante. Por fim, desde que a iniciante se revele digna do seu santo,
as camarinhas se abrem para o mais secreto dos cerimoniais fetichistas.

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AS “FILHASDESANTO”

Uma nova noite envolve a Bahia bárbara e mística dos candomblés. Em


companhia da mãe-de-santo e de sua auxiliar, entramos na camarinha que vai
ser abandonada hoje. Mal nos pressentem, as iaôs se levantam das esteiras com
grande alarido. Estão possuídas pelos erês. Uma delas avança na nossa direção,
fazendo gestos confusos, e, por fim, agarra as nossas mãos para beijar. É uma
jovem negra de traços harmoniosos, tendo, em volta do pescoço, um colar de
búzios africanos. A outra se agita no fundo da camarinha mal iluminada e, como
se nos tomasse por dignidade do rito a ser celebrado dentro em pouco, nos pede
a bênção. A outra, a terceira, reintegrada no mundo infantil pela atuação do erê,
justamente a que está mais possuída, estende a mão e nos pede uma moeda de
tostão. De repente, todas três se entregam a grande algazarra, mas logo a mãe-
de-santo, fazendo soar o adjá, uma pequena sineta, afasta os “espíritos” infantis
que as perseguem. Tudo é rápido como num passe de mágica. À luz da única
vela que alumia o cômodo, vemos as três negras caírem em transe ao toque do
instrumento sagrado.

Ia ter início a primeira fase do cerimonial secreto. Ajoelhando-se diante do


altar, a mãe-de-santo murmurou uma prece em língua africana. A sua auxiliar
alumiava o altar com a vela, e a luz incidia sobre as cabeças tosquiadas das três
negras sentadas à nossa frente. No santuário, viam-se os fetiches dos orixás: um
arco e flecha, uma frigideira de barro, uma concha do mar e piaçava com búzios.
De repente, a mãe-de-santo se ergueu e os seus olhos se dirigiram para as iaôs
que nós observávamos. Num gesto firme e decidido, abriu uma navalha e enca-
minhou-se para a primeira delas, a que ia ser “feita” em Oxóssi, o deus da caça.
A “mãe-pequena”, como se obedecesse a uma ordem secreta, trouxe a vela para
mais perto. Nesse momento, a mãe-de-santo fez correr a navalha sobre a cabeça
da iniciante, sentada em uma cadeira. Um ruído áspero, de metal raspando couro,
indicava o começo da epilação. A cabeça da negra tinha movimentos bruscos sob
a ação da navalha. Um doce canto nagô, que a mãe-de-santo começou a entoar,
veio, porém, transfigurar a cerimônia bárbara:

Indé bunecô, indé bunecô


Catualá junsun tira mokunã
Indé bunecô.

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Do lado de fora, as “filhas-de-santo” respondiam em voz baixa, batendo
palmas. Um leve toque de atabaque as acompanhava. Eram vozes litúrgicas que
se elevavam na noite, enquanto a navalha, no interior da camarinha, ia deixando
lisa como um ovo a cabeça da iaô. As outras duas permaneciam sentadas, imóveis,
sobre a esteira, com as mãos no quadril direito, como se estivessem sentindo uma
dor. Para amolecer o cabelo que raspava, a mãe-de-santo esfregava na cabeça da
iaô uma mecha de palha da Costa embebida em espuma de sabão também da
Costa africana. Assim que a cabeça da “filha” de Oxóssi ficou completamente
lisa, a cadeira foi ocupada pela “filha de Omolu”, o deus da varíola e da peste.
Mais uma vez, a mãe-de-santo recitou uma prece diante do altar, e, em seguida,
iniciou a nova epilação. Assistimos a um cerimonial em tudo parecido com o
primeiro, menos no canto ritualístico com que a mãe-de-santo fazia acompanhar
a raspagem da cabeça da iaô. Para Omolu o canto era diferente:

Orixá ma bé
Todimá beberéré
Jacolô undó ma bé...

Do lado de fora, como da vez anterior, as “filhas-de-santo” respondiam em


voz baixa, batendo palmas. E o mesmo leve toque de atabaque as acompanhava.
Finda a epilação, a “filha” de Omolu foi substituída na cadeira pela última das iaôs.
Esta ia ser “feita” em Iemanjá, a rainha do mar. Tudo se repetiu como das outras
vezes, variando apenas o canto. Antigamente, disse-nos mais tarde a mãe-de-santo,
eram raspadas todas as partes pilosas do corpo da iaô. Hoje, porém, a epilação se
restringe à cabeça. Este trabalho, sob as nossas vistas, durou aproximadamente
hora e meia. De repente, imaginamos que uma nova cerimônia se ia iniciar. Ras-
pada a cabeça da filha de Iemanjá, a mãe-de-santo a levou para a esteira, trazendo
de volta à cadeira a “filha” de Oxóssi. À luz de vela, a cabeça da iaô brilhava. Em
seguida, observamos que a mãe-de-santo tornava a empunhar a navalha. Que iria
ela mais raspar? O aço da navalha reluzia na mão da sacerdotiza negra. Vimo-la,
então, apoderar-se do braço direito da iaô e, desferindo uma sucessão de golpes
rápidos, fazer na carne moça da iniciante sete profundas incisões. A iaô, porém, se
mantinha imóvel, não contraía um só músculo. Tinha a fisionomia extática. Sob
as nossas vistas, o sangue grosso aflorava à pele e, depois de mais duas incisões
em forma de cruz, acima das sete primeiras, foi com dificuldade que pudemos
controlar os nervos: o braço da iaô estava completamente banhado em sangue.
Rápida, a mãe-de-santo tomou de um pires onde havia uma pasta feita de ervas
sagradas misturadas com óleo, e com ela untou todos os cortes. A flagelação,

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porém, ía continuar: ainda faltava o braço esquerdo. O mais impressionante,
entretanto, é que não parou aí: a navalha continuou o seu trabalho nas costas
da iaô, mais ou menos na altura da omoplata esquerda. Dessa região passou ao
peito e, por fim, empunhando sempre a navalha ensangüentada, a mãe-de-santo
fez mais duas incisões bem no centro da cabeça da iaô, em forma de cruz — a
navalha cortando num rangido o couro cabeludo.
Já então chamava a iaô de “santo”: — Abra a boca — mandou. — Bota a
língua pra fora.
E a língua foi coberta com o pó de ervas sagradas. Com a língua para fora,
a iaô era um instrumento passivo do seu “santo”. Foi quando a mãe-de-santo
apanhou uma garrafa de cachaça com uma cobra coral dentro. Pondo uma dose
num copo, fez com que a iaô bebesse e, bebendo, engolisse ao mesmo tempo o
pó que lhe dera. Como a raspagem da cabeça, o ritual da flagelação foi repetido
com as outras duas iaôs, sempre na cadeira. Durante mais de uma hora, assistimos
a esse dilacerar de carnes ali na camarinha. A navalha não parava. O cheiro de
sangue se misturava com o cheiro de suor, as “filhas-de-santo” entoavam lá fora os
seus cânticos sacros, e o atabaque era um gemido rouco dentro da noite. A mãe-
de-santo revelava minúcia nas suas incisões. A navalha feria e o sangue brotava,
quente, palpitando de vida. Por fim, a última incisão foi feita, e as três iaôs se
prostraram sobre as esteiras em atitude de oração. Víamos, diante de nós, aqueles
três corpos humanos retalhados e ofegantes, e não entendíamos uma só palavra
da prece que arrancavam de dentro de si como roncos. De repente, a mãe-de-santo
agitou por três vezes uma toalha branca, e de novo os erês se apossaram das três
mulheres, cessando a atuação dos “santos”. O cerimonial servira para “fechar o
corpo” das iaôs, livrando-as do mal, e agora a porta da camarinha se cerraria até
à madrugada, quando a cerimônia da “iniciação” deveria continuar. Em silêncio,
deixamos o recinto em companhia da mãe-de-santo e da “mãe-pequena”. Lá fora,
o atabaque já não soava. Era mais de meia-noite.

SANGUE NO ALTAR DOS DEUSES

Uma onda de ruídos vem quebrar o silêncio que envolve o terreiro. Ouvem-se
grunhidos de porcos e berros de bode. Cantam galos e galinhas cacarejam. São os
animais que vão ser sacrificados dentro em poucos minutos, em holocausto aos
deuses negros da Bahia. Aproximamo-nos do cercado e contamos: dois bodes, um
porco, quatro galinhas, quatro galos, três patos, três cocás ou galinhas-d’angola.
De repente, vem juntar-se a esses ruídos o bater ritmado de um atabaque. É
que a mãe-de-santo já anunciou que está na hora da matança. Ao ouvir o som

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do atabaque, os que se achavam dormindo se põem de pé, inclusive as três iaôs
recolhidas à camarinha. São quase três horas da madrugada. O atabaque conti-
nua a bater, chamando as “filhas-de-santo”. Elas não tardam a se reunir à mãe,
e todas se dirigem em seguida para a camarinha. Ao chegarem ali, um grande
pano branco, do tamanho de um lençol, é aberto à guisa de pálio. A porta da
camarinha se descerra. Surgem então, lentas, uma atrás da outra, as iaôs, e se
colocam sob o pálio. O cortejo desfila num ritmo processional. Algumas tochas
brilham na escuridão, clareando o caminho. Pendem dos pescoços das mulheres
longos colares de búzios vindos da África. Dentro em pouco, o cortejo chega à
porta de uma espécie de capela, que é o santuário negro ou peji. Os atabaques,
indispensáveis em todas as cerimônias, soam gravemente. No interior do peji,
porém, só penetram a mãe-de-santo, a “mãe-pequena” e as três iniciantes. O
pálio é recolhido e ficam do lado de fora as “filhas-de-santo” e os tocadores de
atabaques. Contudo, para auxílio do trabalho da matança, é ainda permitida a
entrada de dois ogans no santuário.
Diante do altar ornamentado com as insígnias e os fetiches dos orixás, as
iaôs se sentam. Em seguida, a mãe-de-santo fez soar o adjá e os “santos” baixam,
entrando na posse de suas “filhas”. Trazem o primeiro animal a ser sacrificado. É
um pequeno porco. Auxiliada pela “mãe-pequena” e pelos ogans, a mãe-de-santo
ergue o animal sobre a cabeça da “filha de Oxóssi” e, de um só golpe, corta-lhe a
garganta. O porco entra em movimentos desesperados, fazendo espirrar sangue
por toda parte. A iaô, porém, recebe na cabeça raspada a maior quantidade desse
sangue. Quando o animal entra em agonia, a mãe-de-santo o conduz para junto
do altar, deixando cair o resto do sangue na tigela de Oxóssi. Depois decepa a
cabeça do animal sacrificado, corta-lhe os pés e os órgãos genitais, depositando
também essas partes na tigela do santo. Depois trazem uma galinha. E a mãe-de-
santo procede da mesma maneira. Do peji, enquanto lá fora as “filhas-de-santo”
cantam, partem gritos de dor dos animais imolados. Agora a mãe-de-santo entoa
o hino sagrado em língua queto:

Ô Sanji bate la sauji


Ô Sanji atororô...

E as “filhas-de-santo” respondem em coro, acompanhadas por um leve toque


de atabaque. À medida que sacrifica cada novo animal, a mãe-de-santo canta
para o coro responder do lado de fora. Um galo agora é sangrado, e um jato de
líquido vermelho e quente vai cair sobre a cabeça raspada da iaô. O sacrifício do
galo é acompanhado por uma variante do cântico anterior.

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O pé pé bate o pé
Azazá atororô...

Como sempre, as “filhas-de-santo” respondem em coro e o atabaque soa de


leve. Trazem, depois, uma galinha-d’angola. A mão da sacerdotisa negra, tão hábil
em manejar a navalha, não o é menos ao vibrar a faca da matança sagrada. Basta
um só golpe, e a galinha-d’angola estrebucha entre os dedos da “mãe-pequena”,
fazendo jorrar sobre a yaô o seu sangue grosso. E vem o cântico especial:

Gindin atarará gingin


Oluandêêêêê...

E as “filhas-de-santo” mais uma vez respondem, secundadas pelo leve bater do


atabaque. Diante da mãe-de-santo, a filha de Oxóssi tem a cabeça e os membros
inundados de sangue. As penas da galinha-d’angola, atiradas sobre ela, aderem
à pele como estranhos ornatos. Fica, assim, terminada a mantança para Oxóssi.
Agora é a vez de Iemanjá. A cerimônia começa com a matança de um bode.
Por ser um animal de grande porte, dá muito trabalho mantê-lo erguido sobre
a cabeça da iaô. A mãe-de-santo é auxiliada pela “mãe-pequena” e pelos ogans
e, depois de muito lutar para conter o animal, pôde, enfim, atravessar-lhe a
garganta com a faca. A iaô recebe um verdadeiro banho de sangue — sangue
abundante e rubro que lhe escorre pelos membros e forma uma poça no chão.
Suspenso sobre a cabeça da iniciante, o bode berra, estrebucha violentamente.
Apanhando no altar o vaso de oferendas de Iemanjá, a mãe-de-santo recolhe nele
o resto do animal. Em seguida, secciona-lhe os pés, os órgãos genitais e a cabeça
com grandes chifres. Sucessivamente, são sacrificados um galo, uma galinha, um
pato e, finalmente, uma galinha-d’angola, cujas penas são também atiradas sobre
o corpo coberto de sangue da segunda iaô.
O holocausto a Omolu vem por último. Um novo bode é imolado, e depois
dele um galo, uma galinha, um pato, terminando o sacrifício igualmente com
a cerimônia das penas de galinha-d’angola. Um cântico especial acompanha o
último sacrifício;

Fala-éé bacunum
Fala-éé akikô...

Suando, as mãos ensangüentadas, a mãe-de-santo pousa finalmente a faca no


chão. Estão terminadas as núpcias sangrentas das iaôs com os deuses negros dos
candomblés da Bahia. À nossa frente, curvadas, exaustas, as novas “filhas-de-santo”

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constituem como que um grande, um imenso, um único coágulo de sangue no
chão do santuário bárbaro. Finalmente, a um sinal da mãe-de-santo, elas são levadas
a um cercado no fundo do quintal e despidas para a ablução ritualística, que é
feita com água perfumada com ervas sagradas. Depois do banho, a roupa usada
durante o batismo de sangue é dada para guardar e não lhe será mais devolvida.
Essa mesma roupa, reunida a objetos do culto que lhe pertenciam, é atirada ao
mar, depois de sua morte, para que as ondas levem tudo de volta à África.

ESCRAVAS DOS SANTOS

Uma nova cerimônia tem lugar à tardinha desse mesmo dia. Uma grande paz
descera sobre o terreiro deserto, mas de repente os atabaques voltam a soar. A
mãe-de-santo se dirige apressadamente para a camarinha, e mais uma vez permite
que a acompanhemos, embora a cerimônia seja secreta. Ao entrarmos, vamos
encontrar as três iaôs nas suas esteiras. Elas se mostram como que privadas de
qualquer ação consciente. Embora o sol ainda brilhe lá fora, aqui no interior
da camarinha estamos com uma vela acessa. Dos corpos das três mulheres se
desprende um cheiro exótico e penetrante: não cessaram ainda os efeitos das
ervas aromáticas do banho sagrado. Lá fora, os tambores batem vagarosamente.
A mãe-de-santo, auxiliada sempre pela “mãe-pequena”, dá então início ao efum.
Desta vez, não se trata de nenhuma cerimônia sangrenta. A mãe-de-santo pinta
a cabeça das iniciantes, fazendo sobre elas vários círculos coloridos. As cores,
como os cânticos sagrados de outras práticas, variam de acordo com o santo:
para Iemanjá, branco; para Omolu, verde; e vermelho para Oxóssi. Também os pés
são pintados, mas com outro critério, em vez de círculos são riscos compridos
que obedecem à direção dos dedos. É uma cerimônia rápida e simples. Logo em
seguida, a mãe-de-santo deixa de novo a camarinha, onde as iaôs permanecerão
incomunicáveis durante mais algumas horas. Nessa noite, as iaôs, “feitas” filhas-
de-santo, revelarão publicamente os nomes dos “santos” que as possuem. No dia
seguinte, durante o banquete realizado especiamente para este fim, comerão todas
as partes dos animais recolhidas no vaso de oferendas na noite da matança: as
cabeças, os pés e os órgãos genitais. As despesas feitas com a iniciação somam
alguns milhares de cruzeiros. As que puderem pagar terão permissão para deixar
o candomblé logo depois da “feitura” do santo. As outras ficarão trabalhando
como escravas para a mãe-de-santo, até que tenham juntado dinheiro para sua
alforria. Todas elas, porém, se tornarão para sempre escravas do “santo” que
“baixou” sobre elas e lhes “entrou” no corpo. Esta é a lei do candomblé da Bahia
e os deuses negros assim o querem.

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Novamente Bastide

Não encontramos nenhuma manifestação, contra ou a favor, sobre a


reportagem “As noivas dos deuses sanguinários”. Um silêncio sepulcral
abateu-se nos jornais e revistas. Esperávamos, depois da fúria incontida
contra o estrangeiro usurpador de nossa cultura, que ao menos os mesmos
jornalistas e intelectuais se manifestassem como fizeram com Clouzot.
Alguns caminhos podem ser explicativos. Medeiros era amigo de todos
eles, companheiro de trabalho de vários jornalistas, e uma pessoa muito
amável, como todos assim se referiam a ele. Já tinha na época uma admi-
ração profissional de seus próprios pares. Junte-se a esse aspecto afetivo,
de difícil resolução, a questão de colocar-se em oposição a um semanário
nacional da importância de O Cruzeiro, com a força devastadora de seu
dono, Assis Chateaubriand, e da rede dos Diários Associados. Todos si-
lenciaram, menos um, que não era brasileiro e pôde ter uma neutralidade
em relação aos fatos.
Na pesquisa dos dois textos relacionados na obra de Roger Bastide,
encontramos um terceiro artigo não mencionado e publicado pela mesma
revista Anhembi, com o título “Uma reportagem infeliz”6. O artigo co-
meça com Bastide lembrando ter sido ele “o primeiro a protestar” contra
a reportagem da Paris Match, e ainda acentua que na sua qualidade de
conterrâneo devia lançar-se à frente dos próprios “amigos brasileiros” na
denúncia do “[...] que havia de grave na publicação de certas fotografias”.
Bastide se refere acima às suas manifestações orais e escritas sobre as
imagens de Clouzot publicadas na Paris Match, e diz que eles comete-
ram o mesmo erro de Clouzot, mas como eram brasileiros, Bastide diz
que se calou esperando que os mesmos protestos irados contra a Paris
Match viessem à tona: “Fiquei à espera do protesto dos que se haviam
voltado contra Clouzot, a saber, os Cavalcanti, os Édison Carneiro e
outros. Porém, passam-se os dias e este prolongado silêncio me assusta...”
[reticências do autor].
Aludindo à existência de uma “moralidade jornalística”, coloca a re-
portagem de O Cruzeiro como um “crime” da mesma ordem da Paris
Match. Diz que conhece José Medeiros e o acha encantador, e que ele
não teria consciência das conseqüências da reportagem. Coloca-o dentro

6 Anhembi, no 12, vol. IV. São Paulo, nov., 1951, pp. 563-4.

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da lógica da busca obsessiva do furo jornalístico a qualquer preço. Ao
inocentar Medeiros alegando uma ingenuidade no seu próprio âmago, o
que a carta trazia claramente, ou seja, as dificuldades de obter as imagens
e as conseqüências que trariam, permitiu a Bastide encontrar outros cul-
pados. Diz ele: “Não estou, pois, atacando Medeiros pessoalmente, mas
a mentalidade jornalística que se criou na nossa época”.
A fotografia é vista por Bastide como uma mera ilustração de textos
científicos, e mesmo as imagens de rituais de iniciação, como é o caso de
Clouzot e Medeiros, “nem sempre seriam condenáveis”, desde que fossem
meramente ilustrativas de texto com cunho acadêmico e científico e com
circulação restrita para um publico “culto”. Então, Bastide desconhecia o
trabalho de Margaret Mead e Gregory Bateson realizado na década de
30 e publicado em 19427, pesquisa que encontra novos espaços enuncia-
tivos da fotografia na pesquisa antropológica. Ao restringir a circulação
de imagens do sagrado para um público considerado culto, encontramos
o argumento para localizar a profanação do sagrado pelas fotografias
quando de sua circulação nos meios de comunicação de massa, portanto,
fora de um contexto científico autorizador das mesmas imagens e dentro
do campo jornalístico, que nem é ético com seus retratados, pois, dife-
rente do pesquisador, o fotógrafo não precisa voltar constantemente para
encontrar seus objetos de estudos. Ou seja, se a comunidade religiosa não
tomar conhecimento das imagens e se elas não circularem na sociedade
midiática, o segredo será preservado; a caixa preta do segredo é a falta de
circulação das imagens. As fotografias de Medeiros poderiam então estar
dentro de um contexto científico, o que as justificaria, diz ele, mas, ao
serem publicadas em um veículo para o grande público, adquirem “uma
grande força malfazeja”.
Para Bastide, a reportagem de O Cruzeiro não pode ser considerada
etnografia, mesmo que ele identifique uma “simpatia humana” no texto
de Arlindo Silva, o que coloca o artigo em posição superior ao livro de
Clouzot; diz que não é um texto de especialista “pois contém contra-
sensos dos mais grosseiros”, e desse ponto de vista é inferior ao livro
de Clouzot. Bastide identifica uma confusão na descrição do bori por
Arlindo Silva, o qual afirma que a cerimônia serve para “fechar o corpo”,
quando se trata do contrário, ou seja, abri-lo para a descida do orixá, e

7 Gregory Bateson e Margaret Mead, Balinese character — A photography analysis. Nova Iorque:
Special Publications of the New York Academy of Sciences, 1942, vol. 2.

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diz: “De um modo geral, a descrição da iniciação é muito incompleta e
mal interpretada, seja por ignorância da mãe-de-santo que prestou as
informações, seja pela astúcia, para despistar o repórter”.
Entretanto, o texto de Arlindo Silva, considerado como mero texto
jornalístico, longe dos rigores científicos da boa descrição etnográfica,
aparece como uma fonte importante em seu livro Candomblé da Ba-
hia — Rito nagô. Na análise do estado de erê, Bastide lança mão da
descrição de Arlindo Silva: “Qual a peculiaridade desse estado, e que
nova contribuição pode trazer à nossa pesquisa sobre a filosofia africa-
na? É preciso, naturalmente, antes de responder à segunda pergunta, dar
uma descrição do estado de erê; para isso resumimos um artigo pouco
conhecido de Arlindo Silva”. Segue uma longa descrição recortada do
texto da reportagem ingênua e mal vista por ele no próprio artigo: “Ora,
a reportagem de ‘Cruzeiro’ não entra no quadro da etnografia”, como ele
mesmo acentuou.
Vamos encontrar uma saída metodológica para essa contradição em
uma nota do mesmo livro. Nessa nota, relativa às saídas da iaô da ca-
marinha, quando lhe é feito um pequeno orifício no crânio: “A terceira
saída, depois do banho de sangue e da abertura, no alto do crânio, do
caminho por onde passará daí por diante o orixá todas as vezes que quiser
se manifestar, chama-se ‘dar o nome’” (Bastide, 2001, p. 54). Na nota,
aparecem citados Clouzot e Medeiros. Em Clouzot, a nota remete-se
à numeração do livro e, em Medeiros, a uma reportagem com o título “A
purificação do sangue”, com data de 15 de agosto de 1951. Tal reportagem
de Medeiros não foi encontrada, pois inexiste uma revista O Cruzeiro com
essa data e com esse título. Pesquisamos também na revista A Cigarra e
não encontramos a reportagem citada por Bastide. O texto diz:

As duas reportagens, efetuadas por pessoas que assistiram a cerimônias proi-


bidas, que não podem ser vistas nem fotografadas, são interessantes como
documentos vivos. Mas infelizmente nada trazem de novo ao que já conhe-
cíamos por informações orais. Mesmo a abertura do orifício no crânio, de
que Clouzot não fala, mas a respeito da qual Medeiros insiste, como se fosse
algo inédito, já era conhecida. (Bastide, 2001, p. 271)

Novamente Bastide comete “ato falho” ao referir-se ao livro de Clou-


zot como reportagem, mas encontramos uma justificativa para o uso da
descrição de erê de Arlindo Silva; a reportagem seria, então, um “docu-
mento vivo”.

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Bastide pergunta se as censuras que foram feitas a Clouzot perderiam
sua razão perante a reportagem de O Cruzeiro, e indica, por um lado,
que a imagem do Brasil feita pelo e para o olhar estrangeiro pode ser
prejudicial à imagem dos brasileiros no exterior, como no caso da Paris
Match, e por outro lado, que a circulação de imagens de ritos sagrados no
Brasil podem prejudicar diretamente os fiéis do candomblé. Faz aqui voz
com a Federação dos Cultos Afro-Brasileiros, que denunciou Mãe Riso
da Plataforma para a polícia e criou uma hostilidade com características
agressivas e violentas contra ela em Salvador. Vê também prejuízos no
uso das imagens fora do próprio contexto jornalístico por “inimigos do
candomblé”, que poderiam usá-las como ferramenta para fechamento dos
terreiros, ou seja, as imagens alimentariam uma hostilidade já existente
contra a religião. Bastide extrapola: “Elas podem até tornar-se uma arma
de guerra civil”.
Novamente, quase ao final do artigo, Bastide inocenta os produtores
de imagens e joga a culpa de uma forma maniqueísta na mãe-de-santo
que se deixou fotografar: “Faço questão de proclamar que os fotógrafos
não são os principais responsáveis. A responsabilidade maior cabe ao
candomblé que permitiu que se tirassem fotografias dessa ordem”. Não
sei se essa afirmação livrou Medeiros de seus temores ao voltar à Bahia
e ter de enfrentar os ebós que teriam sido preparados para ele. Entre-
tanto, o sociólogo francês atenua a responsabilidade dos candomblés
ao ressaltar o fato de a maioria deles serem constituídos de pessoas
provenientes das classes pobres da sociedade e assim necessitarem de
dinheiro para suas cerimônias sempre muito custosas: “Eis o drama. É
a conseqüência da multiplicação abusiva dos candomblés. Os antigos
e os mais tradicionais são ricos, podem defender os seus segredos; mas
os mais novos que, por enquanto, têm apenas uma clientela restrita são
mais permeáveis às influências de desagregação moral, por falta de se-
gurança econômica”. O que ele quis dizer com “multiplicação abusiva”?
Nem parece que o grande sociólogo desconhece a dinâmica própria do
candomblé na qual não existe uma hierarquia burocrática que permite
abrir, fechar ou restringir cerimônias, e essa riqueza cultural prolifera
por toda a periferia de Salvador, longe das casas tradicionais. Coloca-se
nesse ponto de vista uma dicotomia muito utilizada entre os detentores
do saber dos terreiros mais antigos e os dos terreiros populares, sem
tradição. Talvez até mesmo entre cidade alta e cidade baixa! Redes de
candomblé que não se cruzam.

O CRUZEIRO E JOSÉ MEDEIROS 157

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No final do artigo, Bastide vê uma “crise moral” abatendo-se sobre o
candomblé em virtude das duas reportagens publicadas pela Paris Match
e por O Cruzeiro. Essa “crise moral”, da qual as reportagens seriam teste-
munhas, segundo ele, abate-se também sobre as casas tradicionais? Afinal
não foram elas que permitiram as imagens. Então, por que distinguir a
fonte do saber? E finaliza dizendo literalmente que “A única instituição
com autoridade para resolvê-la é a Federação das Seitas Afro-Brasileiras”.
A Federação tomou as providências no caso de Mãe Riso da Plataforma,
fez dela um caso de polícia! Mas, lembrando, Riso consultou seu orixá,
Oxóssi, e foi por ele autorizada a deixar-se fotografar. Como bem sabia
Roger Bastide, no candomblé os pais-de-santo e as mães-de-santo têm
acesso direto às divindades e não precisam para isso de autorização de
uma instituição burocrática como a Federação, nem mesmo de seus pares;
o canal místico é único e singular, o que torna ainda mais fascinante esse
mundo religioso. Quem então autoriza as fotografias?

158 IMAGENS DO SAGRADO

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A FRICÇÃO RITUALÍSTICA

s processos sociais nomeados como rituais de passagem (Van Gennep,


O1978; Turner, 1974; Leach, 1978) caracterizam uma zona marginal
na qual os iniciados em uma religião e em inúmeras outras situações
sociais, como acentua Van Gennep no próprio subtítulo de seu trabalho,
ficam isolados da marcação linear temporal da sociedade, vivendo um
tempo mágico e um estado social diferenciado. Os ritos de passagem são
marcados por cerimônias de separação (preliminares) e de agregação (pós-
liminares) que criam no seu interstício, muitas vezes de longa duração,
um estado de liminaridade acentuado, principalmente nos casos de ritos
de iniciação. As características da liminaridade às quais o neófito está
sujeito são: submissão, silêncio, ausência de sexualidade e anonímia. São
entidades em transição, em passagem, não tendo lugar e posição, pois
todos os atributos da ordem social são suspensos e as categorias e grupos
sociais dissolvem-se na morte social da liminaridade.
Assim Turner refere-se a esse estado do evento social nos ritos de
passagem:

O neófito na liminaridade deve ser uma tábula rasa, uma lousa em branco, na
qual se inscreve o conhecimento e a sabedoria do grupo, nos aspectos perti-
nentes ao novo “status”. Os ordálios e humilhações, com freqüência de caráter
grosseiramente fisiológico, a que os neófitos são submetidos, representam em
parte, a têmpera da essência deles, a fim de prepará-los para enfrentar as novas
responsabilidades e refreá-los de antemão, para não abusarem de seus novos
privilégios. É preciso mostrar-lhes que, por si mesmos, são barro ou pó, simples
matéria, cuja forma lhes é impressa pela sociedade. (Turner, 1974, p. 127)

Da mesma forma, utilizando os mesmos procedimentos conceituais,


a fotografia pode ser considerada como um ritual de passagem (Tomas,
1982; 1983; 1988). Tomas parte da estrutura proposta por esses autores

A FRICÇÃO RITUALÍSTICA 159

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para encontrar similitudes no processo entre o ato fotográfico em si,
no momento único de sua indicialidade, e seus procedimentos técnicos
no processamento da imagem como um ritual de passagem. De forma
sintética, para Tomas, o rito de separação na cerimônia fotográfica é des-
prendimento da materialidade através dos processos óticos de inversão
da realidade para um suporte bidimensional. A negatividade e a ausência
de luz significariam o momento da liminaridade, a imagem latente não
processada quimicamente e seu processo de formação de uma imagem
negativa da realidade. A agregação é a criação da condição de positivi-
dade da imagem e sua inserção no campo social. A morte simbólica por
intermédio da redução ótica e pela espacialidade do suporte bidimensional
transforma-se em “ponte de permanência” de uma cena ou de uma pessoa,
ou seja, a ligação entre o fotógrafo e o espectador da imagem criando um
“eterno presente”. Diz o autor:

O ritual fotográfico concedeu presença na ausência do objeto fotográfico;


processou a imagem de luz e a transpôs quimicamente. O objeto é agora es-
tável e permanente como imagem na sociedade. O ritual fotográfico funciona
para marcar simbolicamente a morte do objeto pela sua transformação óptica
e dimensional. Ademais, ele congela o objeto “não-estruturado” durante um
período de isolamento ritual e sagrado e, finalmente, marca a reintrodução
ou reencarnação do objeto na sociedade por meio de sua “reestruturação”, na
forma de um novo estado fotográfico da atemporalidade e da ilimitabilidade
social e simbólica. (Tomas, 1982, p. 9)

A similitude entre os processos que envolvem um ritual de passagem


na sua liminaridade e a imagem técnica da fotografia, também marcada
por um processo ritualizado que cria campos marginais com todas as
características dos ritos de passagem, transfere o rompimento da linea-
ridade do tempo social (e entenda-se aqui o espaço do sagrado nesses
rituais) para outra categoria liminar, agora no campo das imagens técni-
cas. A superposição das liminaridades justapõe a proibição da visão nas
reclusões dos iniciados e na imagem latente da película. A existência de
dois campos marginais, ou liminares, cria uma fricção ritualística en-
tre o sagrado contextualizado na cosmologia religiosa e os mecanismos
ideológicos no processamento da imagem técnica, ou seja, a metáfora de
Turner para a modelagem do barro pela matéria nuclear, a transformação
do pó, aplica-se à modelagem da luz pelos grãos de prata, uma construção
imagética social que lhes dá forma existencial além da primeira realidade.

160 IMAGENS DO SAGRADO

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A morte social encontra aqui similitude na morte da primeira realidade,
já que, prisioneira do recorte temporal e espacial do campo fotográfico,
ressurge na agregação como um conceito, uma imagem-conceito (Tacca,
2001, pp. 123-32).
Ao trazer ao olhar leigo o campo elegido da magia ou do contato
primordial com as divindades, o campo marginal da imagem fotográfica
assume e superpõe sua liminaridade ao campo religioso, uma nova magia
estabelece-se, alterando o conteúdo original do sagrado. Nas palavras de
Flusser:

A nova magia não visa modificar o mundo lá fora, como faz a pré-história,
mas os nossos conceitos em relação ao mundo. É magia de segunda ordem:
feitiço abstrato. Tal diferença pode ser formulada da seguinte maneira: a
magia pré-histórica ritualiza determinados modelos, mitos. A magia atual
ritualiza outro tipo de modelo: programas. Mito não é elaborado no inte-
rior da transmissão, já que é elaborado por um “deus”. Programa é modelo
elaborado no interior mesmo da transmissão, por “funcionários”. A nova
magia é ritualização de programas, visando programar seus receptores para
um comportamento mágico programático. (Flusser, 1985, p. 22)

Guardada na escuridão para preservar seu campo liminar, a imagem


latente não pode causar danos para o sagrado religioso, mantém-se invi-
sível na escuridão do sagrado fotográfico; temos então o sagrado super-
posto; entretanto, ao dar-se a ver, e de forma pública, se rompe a estrutura
própria do segundo campo liminar, expondo a liminaridade inicial, mas
ainda somente para os olhos individualizados do fotógrafo ou de seu
laboratorista, ou mesmo de algumas pessoas da redação. A publicação
das imagens decreta a profanação do sagrado. Aqui nos aproximamos
do que Van Gennep chamou de “rotação do sagrado”. A rotatividade do
sagrado, ou, como diz Da Mata, a “relatividade do sagrado”. Perde-se a
aura original do fechamento social da reclusão após se tornar imagem
massificada, mas cria-se no deslocamento original do profano uma nova
ordem sagrada, a ordem mágica e programática das imagens técnicas
(Flusser, 1985). O sagrado desloca-se de seu sítio apreendido na câmara
escura, guardiã dos segredos originais quando a imagem está ainda latente,
para concretizar-se em imagens visíveis. No relativismo do campo religio-
so do candomblé, cristaliza-se a profanação. No documento etnográfico
único, uma nova ordenação do sagrado está presente no campo imagético;
o fotógrafo torna-se feiticeiro ou, melhor dizendo, sacerdote de uma

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ordem superior da sociedade tecnológica, um embate de duas magias. O
fotógrafo-feiticeiro extrapola a “lógica da falácia do bruxo” (Leach, 1978,
pp. 37-40), pois, em vez de cometer o “erro” de transformar um símbolo
metafórico em signo metonímico, estará epistemologicamente sempre
dentro do campo da indicialidade, ou da existência por contigüidade física
(Dubois, 1994, p. 94); ou ainda, o processo de construção da significação
do signo fotográfico implica a superposição entre significante e referente
(Barthes, 1980, p. 18), mesmo que o operador seja simplesmente um mero
“funcionário do programa” (Flusser, 1985, p. 22).
Aprofundando a liminaridade fotográfica, lembramos o que dissemos
antes, ou seja, a técnica fotográfica manipulada por Medeiros propiciou
uma exposição longa, com tempo indefinido na posição B, que atua no
tempo extenso do obturador aberto no toque do dedo e na velocidade
intensa e rápida do flash para guardar a imagem latente em película e
levá-la em liminaridade para outros espaços, o laboratório, e depois a
visibilidade da publicação das imagens nos meios de comunicação. De
outro lado, pelo campo ético-religioso, as imagens de Pierre Verger ainda
adormecem na liminaridade do acervo e, lentamente, algumas escapam
em processo de agregação com uma realidade muito distante na qual foi
originado o ato fotográfico do sagrado.
O deslocamento do profano no roteiro revista-livro permite voltar a
Van Gennep e ao “deslocamento dos círculos mágicos”, os quais, conforme
uma posição ou outra na sociedade, mudam o lugar do indivíduo ou de seu
status: “Quem passa, no curso da vida, por estas alternativas encontra-se
no momento dado, pelo próprio jogo das concepções e das classificações,
girando sobre si mesmo e olhando para o sagrado em lugar de estar vol-
tado para o profano, ou inversamente” (Van Gennep, 1978, p. 32).
O referente aderido à imagem fotográfica perde sua carga mítica ori-
ginal ao descontextualizar o evento religioso, para transformar-se em
outra magia, uma magia contemporânea que não se propõe a modificar
o mundo, e sim nossos conceitos sobre o mundo (Flusser, 1985, p. 22),
ou o que esse autor chama de magia de segunda ordem, e, com essa carga
intencional, o sensacionalismo surge para os olhares maniqueístas da
cultura na categorização de um primitivismo religioso visto pejorativa-
mente pelos valores estabelecidos do “bem”, e dessa forma o fotógrafo
substitui com eficácia o feiticeiro-xamã-pai-de-santo, criando uma nova
ordem imagética e programática na sociedade de consumo de imagens
na qualidade de mercadorias simbólicas.

162 IMAGENS DO SAGRADO

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164 IMAGENS DO SAGRADO

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CANDOMBLÉ

JOSÉ MEDEIROS

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RITUAL DE INICIAÇÃO NO CANDOMBLÉ POR JOSÉ MEDEIROS

reportagem “As noivas dos deuses sanguinários”, na edição da revista O


ACruzeiro do dia 15 de setembro de 1951, com texto de Arlindo Silva,
publicou 37 fotografias de José Medeiros, todas realizadas durante um
ritual de iniciação de candomblé no Terreiro de Oxóssi, de Mãe Riso,
no Bairro da Plataforma.
O livro Candomblé (Edições O Cruzeiro, 1957), organizado por José
Medeiros, publicou 64 fotografias do ritual de iniciação, dentre elas 25
anteriormente presentes na reportagem da revista e outras fotografias
inéditas da cerimônia. As rápidas passagens no livro remetem ao texto
publicado na edição da revista, fato que deixou Arlindo Silva muito
chateado por não ter sido comunicado ou ao menos citado. Medeiros
inseriu também muitas fotografias não relacionadas ao ritual de iniciação
fotografado no terreiro de Mãe Riso da Plataforma, com o objetivo de
tornar o livro mais ilustrado.
Segundo o Instituto Moreira Salles, que detém o acervo de José Me-
deiros, foram encontrados somente 38 negativos em formato 6 cm x 6 cm,
resultado do uso por Medeiros da câmera Rolleiflex. Algumas fotografias
emblemáticas da reportagem e do livro infelizmente não fazem parte do
acervo adquirido pelo Instituto.
Para o portfólio aqui selecionado optamos por publicar 28 fotografias
a partir dos negativos originais, indicando sua veiculação na revista e/ou
no livro, incluindo uma foto inédita. As fotos aparecem sem cortes, o
que não aconteceu com várias delas, as quais tiveram somente algum
detalhe selecionado na ocasião das duas publicações dos anos 50. O en-
cadeamento das fotos busca a própria trajetória do olhar de Medeiros
dentro da temporalidade do ritual de iniciação nos dois dias que passou
no Terreiro de Mãe Riso da Plataforma, começando pela epilação das

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iaôs, os subseqüentes sacrifícios aos orixás e a Festa do Nome, quando as
iniciadas saem finalmente da camarinha para os olhares públicos.
Fotos publicadas na revista O Cruzeiro (15/9/1951): 2, 11, 17, 21, 28.
Fotos publicadas no livro Candomblé (1957): 1, 4, 6, 8, 10, 14, 16, 24,
25, 27.
Fotos publicadas na revista e no livro: 3, 5, 7, 9, 12, 15, 18, 19, 22, 26.
Foto inédita: 13.

Legenda para a seqüência de fotos a seguir:

Ritual de iniciação no candomblé (Terreiro de Oxóssi, Mãe Riso da Plataforma),


Salvador, Bahia, 1951.

Fotos de José Medeiros (acervo do Instituto Moreira Salles)

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Título Imagens do sagrado:
Entre Paris Match e O Cruzeiro

Autor Fernando de Tacca

Assistente técnico de direção José Emílio Maiorino


Coordenador editorial Ricardo Lima
Secretária editorial Eva Maria Maschio Morais
Secretário gráfico Ednilson Tristão
Preparação dos originais Juliana Bôa
Revisão Luis Dolhnikoff
Projeto gráfico e design de capa Isabel Carballo
Editoração eletrônica Silvia Helena P. C. Gonçalves

Gerência de Produtos
Editoriais e Institucionais Vera Lúcia Wey
Assistência editorial Berenice Abramo
Editoração Isabel Ferreira
Teresa Lucinda Ferreira de Andrade

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Formato 16 x 23 cm
Papel Offset 90 g/m2 – miolo
Cartão supremo 250 g/m2 – capa
Tipologia Garamond Premier Pro
Número de páginas 200

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Impresso nas oficinas gráficas da
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
julho de 2009

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IMAGENS DO SAGRADO
Fernando de Tacca é fotógrafo, O livro trata do embate midiático de
doutor em antropologia pela USP e IMAGENS DO SAGRADO imagens de candomblé realizadas na
professor livre-docente no Instituto Imagens do sagrado — Entre Paris Match e O Cru- cidade de Salvador (BA) publicadas
de Artes da Unicamp. Foi professor zeiro nos traz uma significativa contribuição para Fernando de Tacca nas revistas O Cruzeiro e Paris Match
visitante na Universidade de Estudos a construção de uma metodologia de trabalho que em 1951. Importantes personagens
Estrangeiros de Osaka, Japão (1995- alia técnicas de reportagem jornalística às melhores ligados às áreas de jornalismo, an-
1997), e assumiu a cátedra de tropologia, fotografia e cinema se
práticas de pesquisa de campo da antropologia.
estudos brasileiros na Universidade envolveram nos fatos, entre eles
de Buenos Aires (2004). Foi contem- Partindo de um conflito de interesses e de disputas José Medeiros, Henri-Georges
plado no I Concurso Marc Ferrez de jornalísticas que abrangeram tanto questões éticas Clouzot, Roger Bastide, Alberto
Fotografia (Funarte, 1984) e com a quanto comerciais, Fernando de Tacca colocou na Cavalcanti, Pierre Verger, Odorico
Bolsa Vitae de Artes (2002). Em boca de cena, com status de atores principais, per- Tavares, entre outros. O fato impli-
2006 ganhou o Prêmio Pierre Verger sonagens que até então funcionavam apenas como cou forte polêmica no meio religioso
de Fotografia da Associação Bra- e entre a intelectualidade brasileira, e
objetos de curiosidade. De seres exóticos, esses per-
sileira de Antropologia e o Prêmio de teve conseqüências para a mãe-de-
Reconhecimento Acadêmico Zeferi- sonagens e, por meio deles, o próprio culto passaram santo Riso da Plataforma. A partir
no Vaz (Unicamp). Publicou o livro A a sujeitos e interlocutores graças às entrevistas e, de fontes documentais, pesquisa de

Fernando de Tacca
imagética da Comissão Rondon e sobretudo, à leitura acurada das imagens publicadas. campo das memórias vivas, levanta-
inúmeros artigos sobre fotografia, mento de material iconográfico e bi-
cinema e antropologia visual. Rea- Milton Guran bliografia original e inédita, a pesqui-
lizou várias exposições fotográficas sa analisa o fato midiático do enfren-
no Brasil e no exterior. É o criador e o tamento entre as duas revistas em
editor da revista Studium. relação à documentação fotográfi-
ca do ritual de iniciação no candom-
blé dos vários pontos de vista de
seus atores.

Editora da Unicamp Imprensa Oficial

788570 607478

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