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Fernando de Tacca
imagética da Comissão Rondon e sobretudo, à leitura acurada das imagens publicadas. campo das memórias vivas, levanta-
inúmeros artigos sobre fotografia, mento de material iconográfico e bi-
cinema e antropologia visual. Rea- Milton Guran bliografia original e inédita, a pesqui-
lizou várias exposições fotográficas sa analisa o fato midiático do enfren-
no Brasil e no exterior. É o criador e o tamento entre as duas revistas em
editor da revista Studium. relação à documentação fotográfi-
ca do ritual de iniciação no candom-
blé dos vários pontos de vista de
seus atores.
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Fernando de Tacca
isbn 978-85-268-0848-5
e-isbn 978-85-268-1172-0 (editora unicamp)
isbn 978-85-7060-747-8 (Imprensa Oficial)
cdd 770
299.6
390
778.53807
1. Fotografia 770
2. Candomblé 299.6
3. Antropologia visual 390
4. Fotojornalismo 778.53807
Fernando de Tacca
Apresentação 13
Introdução 17
Encontro com memórias e histórias recontadas 29
O contraponto de Pierre Verger 71
Clouzot no Brasil, o caso Paris Match 87
O Cruzeiro e José Medeiros 123
A fricção ritualística 159
Bibliografia 163
Candomblé — José Medeiros 165
APRESENTAÇÃO 13
14 IMAGENS DO SAGRADO
milton guran
INTRODUÇÃO 15
INTRODUÇÃO 17
18 IMAGENS DO SAGRADO
INTRODUÇÃO 19
20 IMAGENS DO SAGRADO
A atração pelo mistério levou José Medeiros também aos terreiros de can-
domblé em Salvador, Bahia, muitas vezes arriscando-se na tentativa de tirar
fotos, que na época eram proibidas. Certa vez conseguiu documentar um
ritual de iniciação das filhas-de-santo no terreiro do Gantois, com fotos
impressionantes das mulheres de cabeça raspada e marcadas de sangue, que
foram publicadas com grande sucesso em O Cruzeiro. (Accioly Netto, 1998,
p. 120, grifo nosso)
INTRODUÇÃO 21
22 IMAGENS DO SAGRADO
O impacto em Salvador
INTRODUÇÃO 23
24 IMAGENS DO SAGRADO
INTRODUÇÃO 25
26 IMAGENS DO SAGRADO
INTRODUÇÃO 27
28 IMAGENS DO SAGRADO
Casa de Jorlando1
30 IMAGENS DO SAGRADO
32 IMAGENS DO SAGRADO
2 Waldemira Oliveira Barroso (Perrucha); Janíldece Barroso da Silva ( Jane, filha de Perrucha).
34 IMAGENS DO SAGRADO
36 IMAGENS DO SAGRADO
38 IMAGENS DO SAGRADO
3 Mãe-pequena ou pai-pequeno são pessoas muito próximas da mãe-de-santo que cuidam das
iaôs quando elas estão na reclusão, levando comida, ajudando nos banhos e nas trocas de roupas,
entre outras atividades cerimoniais.
42 IMAGENS DO SAGRADO
4 A Federação Baiana dos Cultos Afro-Brasileiros mudou seu nome para Federação Nacional
dos Cultos Afro-Brasileiros.
44 IMAGENS DO SAGRADO
46 IMAGENS DO SAGRADO
Entrevista de Leleta5
48 IMAGENS DO SAGRADO
[...] Riso dizia que não tinha medo sobre toda essa história, não tinha feito
nada demais, que o santo não tem mais segredo... ela fez aquilo com autori-
zação do santo, porque ela tinha santo mesmo, porque se ela fizesse alguma
coisa que o santo não quisesse... uma vez ele [o santo] deixou ela muda! Ela
não falava de jeito nenhum... ela voltou a falar depois de muito tempo... ela
só fazia o que o santo quisesse... então o santo autorizou fotografar... ela fez
com autorização dos orixás dela... depois que ela foi para o Rio, lá ela abriu
casa, tinha bastante prestígio... aqui ela tinha muito filho-de-santo porque
ela era famosa mesmo [...] Riso não teve prejuízo nenhum, aqui ela não teve
e lá no Rio ela também não teve, tinha muito filho-de-santo, tinha de tudo
dentro de casa, não precisava trabalhar...
A fala de Leleta demonstra que Riso não teve “prejuízos” com a pu-
blicação das fotos, mas foi muito hostilizada, e afirmou que é “mentira”
que a casa dela foi quebrada.
[...] depois que ela quis ir para o Rio porque tinha o irmão de criação lá, e
eu mesmo fiquei na casa dela aqui em Salvador, eu mesmo que desmanchei
o quarto de santo porque ela não ia voltar mais, chamei os filhos-de-santo,
entreguei o de cada um... porque eu vivi dentro da casa de candomblé desde
menina, como ela, mas não sou de candomblé, embora tenha um bocado de
filho, tudo de candomblé [...]. Quando ela foi para o Rio, ela deixou tudo aí,
o terreiro... e quando ela se deu bem e deu para ela por lá ficar... então ela só
me deixa ficar tomando conta da casa [...]. Ela desde menina que era muito
perturbada com esses negócios [Riso tinha visões] e minha mãe detestava,
ela ia para casa desse irmão de criação dela e de lá ela ia para a casa de uma
mãe-de-santo de São Caetano, Idalisse da Ilha Amarela, minha mãe não
sabia. Idalisse foi a mãe-de-santo dela... então, quando foi um dia, minha
mãe foi para a cidade, e veio um rapaz que tava com Riso, mas Riso não
veio... ele disse que ela tinha bolado e que ela tava lá [no terreiro de Idalisse]
Isso é uma confusão porque Loura viveu muitos anos com a mãe-pequena
dela e a mãe-pequena é que foi assassinada, por uma filha-de-santo... lá em
São Paulo [...]. Se você for para São Paulo e procurar minha filha, Loura,
ela tem tudo, tem fita, foto, lá da casa do Rio, tem tudo... tem o jornal com o
enterro dela com 600 filhas-de-santo, todas de alvo... ela [Loura] foi para lá
com 8 anos de idade, na casa de Riso, ela é gêmea de Marinalva, a Morena...
ela com 6-7 anos era uma menina que se assombrava muito, quando era de
noite ela ficava assombrada, via um velho com um cachorro, então quando
minha irmã, Riso, veio do Rio, passear, naquele tempo era de navio, aí eu
disse “leva a Loura porque ela puxou a você, ela não puxou a mim, porque
aqui eu não vou metê-la no candomblé”, ela chegou e levou. Aí mais de oito
meses ela não sentia nada, me escreveu uma carta dizendo que ela ia voltar
porque não sentia nada lá... eu disse a Riso: “é porque você foi de navio e o
santo dela vai a pé...”. Aí quando Riso foi recolher um barco de seis pessoas,
quando viu, o santo dela baixou, e fez o santo com 8 anos de idade.
50 IMAGENS DO SAGRADO
A Riso vinha muitas vezes passear aqui em Salvador, e não freqüentava outras
casas de candomblé aqui, só ia na casa de Mariinha... o povo que procurava
ela, quando tinha candomblé aqui, vinha muita gente mesmo, era muita gente
mesmo, era famosa mesmo, era o candomblé mais famoso da Plataforma [...]
Riso começou a olhar desde quatro anos de feita, ela não tomou logo o decá,
a Riso tomou o decá depois de velha... o candomblé agora tem valor.
Leleta conta que o cargo de Riso seria uma herança de seus avós afri-
canos, pois quando eles chegaram disseram que o cargo seria passado
para um parente distante e não para os filhos, e o cargo ficou para Riso.
Ao mostrar o livro de José Medeiros, mais uma vez ninguém ali o
conhecia, houve identificação das iaôs nas fotografias, como uma memória
muito viva ainda de um evento de 50 anos atrás, e, sem titubear, foram
identificando cada uma delas. Confirmou-se que não são diretamente
ligadas à iniciação, foram feitas em outro terreiro, e, vendo as imagens,
Leleta disse: “Não era conhecido pelas pessoas”, nunca souberam da
existência do livro. Houve identificação das iaôs, de alguns fundamentos
do candomblé, identificação de outras pessoas não importantes para a
pesquisa, confirmou-se que algumas fotos foram feitas em outro lugar e
não no terreiro de Riso.
Leleta fez comentários sobre fundamentos, já que, mesmo não sendo
iniciada, viveu muito tempo dentro do meio religioso, demonstrando
conhecimentos profundos sobre candomblé. Diz ela olhando para uma
foto de sua irmã: “Olha a atenção de Riso para raspar a cabeça, não é?...
Riso era bonita, não é?”.
Vendo um telhado que aparece em uma foto no livro, Leleta não o
reconhece como sendo do terreiro de Riso porque, segundo ela, os dois
terreiros eram cobertos de palha: “quando ia para o Rio e quis colocar
laje no barracão, o santo não deixou”.
Leleta conta de uma ida de Idalisse, mãe-de-santo de Riso, para o
Rio, quando houve um sacrifício de um boi para uma obrigação dela no
terreiro de Riso em Nilópolis. Ela colocou o boi com as patas para cima
e Riso o desvirou e fez logo outro trabalho porque o santo dela era forte.
Diz que “Idalisse não se conformava de Riso saber tanto, mas ela [Riso]
52 IMAGENS DO SAGRADO
54 IMAGENS DO SAGRADO
6. Mãe Cutu disse que em sua casa de origem, Casa Branca, e na sua
própria, não deixava que as pessoas iniciadas utilizassem cadernos
de anotações durante o processo de iniciação, permitindo, assim, que
o aprendizado se realizasse por intermédio da comunicação oral,
como é tradição no candomblé. O caso da revista O Cruzeiro deve
ser considerado dentro desse mundo da oralidade, mas uma oralidade
paralela à tradição, fora do contexto religioso e dentro do cotidiano
da religião, fazendo com que muitas pessoas que não tiveram contado
direto com Mãe Riso lhe associem muitos fatos correlatos ou mesmo
trágicos e escandalosos do candomblé que aconteceram na época.
O caso de Joãozinho da Goméia, pai-de-santo muito questionado
naquela época por suas atuações e aparições na mídia, surgiu em
muitas citações como ligado ao caso da revista O Cruzeiro.
56 IMAGENS DO SAGRADO
58 IMAGENS DO SAGRADO
Eu tinha 2 anos de idade, tinha saúde imensa, eu e minha irmã, que sou
gêmea, e minha mãe tinha mania de dar banho na gente e colocar a gente
no campo brincando, sentadinhas assim, e passou um velho, não me lembro,
minha mãe conta, depois desse dia é que eu fiquei doente, aí passou um
senhor de idade e passou a mão na cabeça de nós três, e falou assim: vocês
vão dormir que vocês vão ver, aí minha mãe pôs a gente pra dormir. Todas
as três dormiram, duas acordaram bem, e eu acordei mal. Dali por diante eu
comecei a passar muito mal, de 2 anos em diante até 7, até completar 7 anos,
e todo mundo dizia que era de santo e eu ia para o vizinho do lado, que era a
dona Mariinha, ficava boa, voltava pra casa ficava ruim, e minha mãe sempre
falando que não queria que eu entrasse na religião, que já tinha minha tia que
Aí fui embora pro Rio, cheguei lá tinha muitos filhos-de-santo, ela me apre-
sentava, levava pra me ver, eu ficava sempre dentro dum, não dum quarto de
santo, eu ficava sempre dentro de casa, que tinha... era doente, num queria
saber de nada, aí ela levava os filhos-de-santo dela, eram muito carinhosos
comigo, e me agradavam... daí começou o ritual, todo dia tinha, como é que
a gente fala: é adarrum! Pra poder ver se virá no santo, ver se bola, aí todo dia
tinha e todo mundo bolou, e eu não bolava, e ela não tinha aquele negócio
de você fingir, principalmente comigo. Antes de eu recolher, ela ia em mui-
tos candomblé e eu ia junto. Chegava na casa dos outro eu bolava, eu caía
e todo mundo queria me recolher porque eu era pequenininha, com 7 anos
era assim. Aí ela dizia: “não, pelo amor de Deus, se alguém pôr a mão nela,
minha irmã me mata, essa aí é comigo”. Eu acordava nos quartinhos que me
colocavam lá, ela me levava embora pra casa. Aí nesse dia, que recolheu tudo
pra fazer os negócios, nada de virar, nada de virar, antes de eu virar que tem
a história do santo que não ia, ela brincava. Antigamente num tinha negócio
de telefone, ela escrevia na carta para minha mãe em Salvador: “Ah! Aqui ela
tá boa, num tá dando nada nela”. E minha mãe Leleta escrevia: “Não, pode
deixar ela aí que vocês foram de navio e o santo tá indo a pé”.
60 IMAGENS DO SAGRADO
Ela era um tipo de pessoa que... hoje tem muito curso, eu num faço curso
nenhum de negócio de candomblé, de espiritismo; eu não aprendi jogar búzio
fazendo curso, porque ela não adotaria, tudo dela era feito pelo orixá, o orixá
dava intuição pra ela, tanto que ela jogava búzio, o Ogum dela vinha, quando
ela tava jogando; ele ficava em pé e jogava pra ela, pra pessoa... quando eu falei
pra ela: “Mãe Riso, eu vou entrar no curso de búzio”, nossa, ela me deu uma
bronca. Ela falava que isso não se aprende assim, isso é o dom, o orixá traz
pra você... Ela era assim muito espontânea, ela não gostava de andar muito
elegante. Ela era assim simples. Se você chegasse na casa dela, ela tivesse
de calça e de chinelo, é a mesma pessoa. Nunca tava enfeitada. Ela recebia
as pessoas bem, ela era muito alegre, todo mundo conhecia ela, a gente ria,
que ela chamava as galinhas assobiando, né?! Ela tinha umas galinhas no
barracão, chamava assobiando. Era pombo, tudo ela puxava assobio, todo
62 IMAGENS DO SAGRADO
Justificando sua vinda para São Paulo, Marilene disse que Riso es-
quecia muito dela por causa das atividades do terreiro e que precisava
de mais cuidados, mesmo tendo as filhas-de-santo que ajudam a manter
o terreiro e os agrados que recebia de sua clientela. Marilene não achou
importante procurar as filhas de Riso em Nilópolis, dizendo que elas
inventariam mentiras, o que demonstra que o processo depois da morte
de Riso foi conflituoso. Marilene ficou com alguns objetos de uso pessoal
de Riso, como um anel de búzios, mas o famoso anel de São Jorge não
se sabe com quem ficou: “[...] Esse aí sumiu, eu tenho do búzio, que ela
tinha em pequenininho, ela mandou ampliar, o anel parece que ela colocou
no assentamento do Oxum, e o grande ela mandou ampliar, é um búzio
grandão, o brinco ela usava, até quando ela tava doente, começou a ficar
leve, caindo, e no dia que ela faleceu, na hora, ela entregou: ‘entrega pra
minha sobrinha’”.
Riso vestia-se sempre de calça comprida, sempre de claro com turbante
na cabeça. Tinha muitos turbantes de crochê e o modo de ela colocar o
turbante na cabeça denotava seu estado de espírito, que era logo compreen-
Em Nilópolis
64 IMAGENS DO SAGRADO
68 IMAGENS DO SAGRADO
70 IMAGENS DO SAGRADO
1 Segundo Angela Lühning, da Fundação Pierre Verger, essa seqüência de imagens no terreiro
de Pai Cosme não foi realizada no mesmo dia e somente metade das imagens se refere ao ritual
de iniciação, incluindo o ritual do oruncó no barracão.
Revista A Cigarra
Revista O Cruzeiro
74 IMAGENS DO SAGRADO
A Cigarra
Antes mesmo de ir para a Bahia, que era sua vontade, depois de en-
contrar-se no primeiro dia que esteve em São Paulo com Roger Bastide,
vindo de Corumbá, por onde chegou ao Brasil, Verger é por este instigado
a continuar sua viagem para Salvador e falou-lhe da importância da in-
fluência africana nessa região. Verger diz em suas memórias que já tinha
lido em francês o livro Jubiabá, de Jorge Amado, e tinha noções dessa
influência. Verger descreve que, em sua passagem pelo Rio de Janeiro,
procurando Vera Pacheco Jordão, por indicação de seu amigo Alfred
Métraux2, quase que não é recebido por ela, pois “[...] a minha habitual
deselegância no vestir lhe fez crer que tinha a ver com um pedinte ou um
vendedor de aparelhos domésticos” (Verger, 1982, p. 239). Apresentando-
2 Nesse sentido, ver Alfred Métraux e Pierre Verger, Le pied à l’étrier — Correspondance 12 Mars
1946 — 5 Avril 1963. Paris: Jean Michel Place, 1994.
76 IMAGENS DO SAGRADO
Uma data sempre lembrada por Verger foi a da sua chegada à Bahia, em
5 de agosto de 1946. Tratava-se não somente de um compromisso formal,
mas também de um interesse particular de Verger, já que amigos que havia
feito na década anterior nas Filipinas também residiam na “Boa Terra”, como
Salvador era chamada à época. Imediatamente após a sua chegada, dá iní-
cio às suas atividades profissionais, realizando reportagens fotográficas que
passarão a ser publicadas em O Cruzeiro. Verger mora temporariamente no
Hotel Chile, situado no Centro Histórico de Salvador, e é de lá que parte
para as suas diversas viagens pelo Nordeste para realizar as reportagens que
seriam enviadas para a revista. (Lühning, 2002, p. 13)
E também, como cita Lühning, a casa mais freqüentada por eles era
o Axé Apô Afonjá, de Mãe Senhora, onde participou pela primeira vez
de cultos, tendo-a como mãe-de-santo. Somente a partir de 1951 eles
começam a realizar juntos visitas a festas e cerimônias de candomblé.
A saída de iaô descrita por Bastide na revista A Cigarra foi vista, como
ele próprio diz no texto, na casa de Joãozinho da Goméia, e as fotos,
mesmo com a indicação da não-presença de Verger, foram confirmadas
por Sissi e constam no banco de imagens como sendo desse terreiro, mas
em nenhum momento Joãozinho da Goméia aparece explicitado como
um dos retratados.
Depois do primeiro encontro com Bastide no primeiro dia em São
Paulo, uma amizade de amplas dimensões vai fazer com que mantenham
um permanente contato através de cartas, visitas mútuas, visitas a can-
domblés, e acentua Verger:
78 IMAGENS DO SAGRADO
3 Angela Lühning (org.), “Verger/Bastide — Dimensões de uma amizade”. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2002. Também estão presentes na íntegra e com as respectivas imagens, como todos os
outros textos citados, os seguintes trabalhos da dupla Bastide-Verger: “Contribuição ao estudo
da adivinhação em Salvador”, “Pesca na Bahia (Xaréu)”, “Procissões e carnaval no Brasil”, e
outros.
80 IMAGENS DO SAGRADO
82 IMAGENS DO SAGRADO
As imagens finais saltam aos nossos olhos pelos detalhes, uma foto
próxima de uma mão tocando um instrumento anuncia em tom dramático
“o agogô se agita e o ritmo se torna mais feroz”, antecipando uma imagem
que retrata partes de um boi em um altar, principalmente a cabeça e as
patas em posição sagrada, e os dizeres: “Enfim — a imolação”.
A imagem mostra as partes de um animal sacrificado para um orixá
ofertado em seu altar próprio, mas o sacrifício não é mostrado e sabemos
que aconteceu em cerimônia anterior à saída das iaôs. A imagem final, a
única na exterioridade do terreiro, realizada à luz do dia, anuncia o fim da
cerimônia: “ e quando desponta a madrugada os atabaques emudecem”.
O texto de Bastide não conduz a uma narrativa forte na qual o sacrifício
aparece com tom dramático, mas o final é uma interação entre texto e
imagem, quando Bastide diz que vai descer rumo à cidade adormecida,
no último bonde, a imagem final do altar nas cercanias do terreiro marca
a territorialidade sagrada de uma divindade que ficou emanada da energia
ritualística.
Diz Bastide no final do texto:
84 IMAGENS DO SAGRADO
Não preparei nada. Será uma coisa impressionista, o enredo formado pelos
fatos à medida que se processarem. Só quero filmar o que sentir e não o que
me disserem, mas para sentir preciso ter conhecimento das coisas, estudá-
las. Antes de vir para cá não quis ler nada sobre o Brasil, a fim de não ter
opiniões já feitas e preservar a primeira impressão. Agora estou lendo muito,
já comecei Os sertões1.
Clouzot foi recebido com muita deferência, por onde passava a bur-
guesia nacional realizava reuniões com a intelectualidade local, assim foi
no Rio de Janeiro, em São Paulo e na Bahia, encontros nos quais todos
queriam fornecer informações pontuais importantes para suas pretensões,
e, dessa forma, foi coletando informações e histórias sobre o Brasil. Com
seu jeito franzino, agitado e querendo mais informações, foi colecionando
uma série de “primeiras impressões”, que já lhe permitia dizer: “Uma coisa
que muito me impressiona, aqui no Rio de Janeiro, é a ignorância dos
cariocas relativamente ao interior do Brasil. Acho que sei mais do que
muita gente carioca. Conto coisas que sei serem verdadeiras e as pessoas
1 “Clouzot quer mostrar o Brasil aos brasileiros”, entrevista ao Folha da Manhã, 11 jun., 1950.
Seu país é um país heróico, isto é, até certo ponto ainda se encontra numa
idade heróica. Os sertanejos vivem numa luta constante contra inúmeras
dificuldades, especialmente a falta de comunicações. Ao lado de casos de es-
forços sobre-humanos, encontra-se também muita indolência e um estranho
desinteresse. Creio que, como resultado da herança indígena, ainda falta o
instinto de fixação: continuam nômades, plantam um pedaço de terra e feita
a colheita, mudam-se para outro lugar [...]3.
2 Ibidem.
3 Ibidem.
4 Ibidem.
5 Ibidem.
88 IMAGENS DO SAGRADO
6 “Vencido pelo amor a uma carioca sob o som duma música brasileira”, entrevista ao Diário de
Notícias, 7 maio, 1950.
7 “Henri-Georges Clouzot e o Brasil”, Anhembi, n o 5, vol. II. São Paulo, abr., 1951,
pp. 396-8.
8 “[...] operadores Thirard, Pecqueux e Ducop, responsáveis pela fotografia das melhores películas
francesas atuais, algumas delas premiadas em vários festivais europeus; dois engenheiros de
som, Sivel e Bocher [...]”.
Tal película, seu roteiro e seu argumento nunca vieram à tona; qual era
o filme que Clouzot queria fazer no Brasil, não sabemos até hoje.
Paulo Duarte exalta ainda mais as pretensões de Clouzot na Bahia, ao
dizer que o Brasil e a França teriam a lucrar com tal empreitada e de uma
forma colonizada termina: “O Brasil, porque verá inscrito, numa película
assinada por um grande artista, um pouco do folclore, dos costumes de
uma de suas regiões mais pitorescas e mais ricas em motivos cinemato-
gráficos. E a França, porque terá registrado em seu cinema uma curiosa
experiência impressionista, realizada por um de seus mais ilustres [...].
Mas, chegaremos a ver tudo isso?...”, termina o artigo.
90 IMAGENS DO SAGRADO
AS POSSUÍDAS DA BAHIA
Pela primeira vez um branco pode penetrar no santuário dos deuses negros onde
se praticam os ritos sangrentos de iniciação. É a primeira reportagem fotográfica
do grande diretor Clouzot e Paris-Match a publica com prioridade mundial.
No meio do século XX, em 1950, um quarto dos 400 mil habitantes de uma
cidade moderna continua a celebrar Shango, o deus do trovão e dos raios. Em
Salvador, capital do estado brasileiro da Bahia, para 96 igrejas há 453 templos
fetichistas declarados à polícia, sem contar os clandestinos.
Tendo partido para o Brasil em 1950 para rodar um filme, o grande diretor
francês Henri-Georges Clouzot — autor do Corbeau (Corvo), de Manon, de
Miquette et sa Mère (Miquette e sua Mãe) — renunciou ao seu projeto para mer-
gulhar com Vera, sua mulher, no estudo dos ritos fantásticos que assombram as
noites da maior cidade negra da América do Sul.
A alucinante reportagem que ele traz de lá vai aparecer nas livrarias sob o
título O Cavalo dos Deuses. “Paris-Match” assegurou-se da exclusividade dos
documentos fotográficos que Clouzot realizou no curso das cerimônias secretas
onde ele foi excepcionalmente admitido após três meses de pesquisas e proce-
dimentos. O cineasta nunca tinha usado uma câmera fotográfica. Seu sucesso
surpreendeu a ele próprio.
O Brasil é uma terra de contrastes espantosos. Em São Paulo termina-se
um arranha-céu a cada quarto de hora, mas o policial negro da Bahia vai à noite
fardado às cerimônias fetichistas. A “Panair do Brasil” colocará em serviço, no
próximo ano sobre o Atlântico, aviões à jato, mas em Salvador, a cada ano, uma
procissão vai afogar um garanhão negro para que “Yemanja”, deusa do oceano,
possa cavalgar agradavelmente seu reino submarino.
“A canção que o barman assobia”, escreve Clouzot, “é um cântico africano em
homenagem a Oshun, que habita as águas doces, e o ascensorista do Palace usa
sob sua camisa o colar de Ogoun, que preside a guerra. No escritório do hotel você
pode ligar para Paris ou New York, só que a telefonista que fará a comunicação é
92 IMAGENS DO SAGRADO
Para ter todo o dia sob as mãos um objeto de estudo, Clouzot decidiu contra-
tar como empregada uma “filha-de-santo”. Sua primeira empregada que possuía
esta mística qualidade chamava-se Petronília. Ela tinha dois filhos e tomava três
banhos por dia. Ela também roubava comida. Petronília passava por longos esta-
dos de embrutecimento total, durante os quais não se podia tirar nada dela.
Interrogada sobre suas possessões noturnas, ela declarou somente:
— Quando me dá isso, num sei que qui mi acontece. Eu sinto tudo zanzando
e dá dor de cabeça. E quando eu acordo, num lembro mais di nada.
“Petronília foi substituída”, conta Clouzot, “por uma espécie de monstro
pré-histórico que se chamava Anita.” Este diplodocus (gigantesco réptil dinos-
sauro fossilizado) que tinha dois ventres, um pela frente e outro por trás, se
acocorava em um canto da cozinha na hora do almoço para devorar bolotas de
farinha amassadas longamente entre seus dedos cheios de gordura. Anita não
falava. Ela se exprimia por grunhidos, por gestos, por onomatopéias. Ela chegava
raramente a pronunciar três palavras em seqüência. E elas ainda não faziam o
menor sentido.
— Anita — perguntava Vera — o que é que nós temos para almoçar hoje?
— Ahn... uhn...
— Para o almoço? Anita?
— Ahn... coisas.
— Tá... mas que coisas?
— eh... de comer.
— Claro... mas o que de comer?
— Ummmm... do bom...
Não se pode nunca tirar nada mais.
O diretor do hospício local não foi nem um pouco sutil.
— O “candomblé”? Não conheço.
Fui uma vez. Repugnante... Se fosse o delegado de polícia, fecharia tudo.
Os médicos não eram mais explícitos.
— 30% de simulação e de resto um pouco de tudo. Muita histeria, alguns
casos de esquizofrenia e excepcionalmente alguma coisa que não se reduz a nada
de patológico: nem neurose, nem psicose.
— O que, então?
Mas Clouzot não recebia em resposta senão gestos de ignorância. Ele des-
cobriu pouco a pouco que os verdadeiros iniciados nos segredos do candomblé
eram muito pouco numerosos.
94 IMAGENS DO SAGRADO
Clouzot marcou passo por longas semanas (“todas as noites ficava à espreita
do som dos tambores”, disse ele) antes de entrar em contato com um verda-
deiro “pai-de-santo”, o feiticeiro fetichista Nestor. A expressão “pai-de-santo”
designa o “pai” que inicia as jovens nos mistérios do rito e leva-as ao estado de
possessão por “um deus”. Elas tornam-se então “filhas de santo” e participam
dos “candomblés” organizados a cada noite nos lugares santos. “Fazer seu santo”
é sofrer sua primeira possessão.
Com Nestor, Clouzot entra enfim em pé de igualdade no mundo secreto
dos negros fetichistas.
Nestor consente em iniciar algumas jovens negras em presença de Clouzot,
que deve pagar o preço dessas cerimônias. Nestor pede 70 mil francos e um
lampião com bomba. Durante duas semanas as duas jovens ficam seqüestradas
em um cômodo nu, quase sem comida, mas empanturradas de infusões miste-
riosas. De vez em quando, Nestor entra no cubículo onde as infelizes criaturas
estão deitadas de bruços. Ele as ofende e humilha. As negras beijam suas mãos
tremendo. Elas estão reduzidas a um incrível grau de submissão.
— Vocês são animais, vocês não existem? — fala pausadamente o feiticeiro
na semi-obscuridade fétida da cela.
As jovens recebem também banhos de ervas, de uma composição secreta,
e devem submeter-se à inalação de substâncias entorpecentes. Elas caem logo
em um estado próximo à infância, chupam incessantemente seu polegar e só se
exprimem por onomatopéias como os bebês.
Clouzot e Vera foram obrigados a se submeter a curiosas cerimônias. Vera
teve que dançar e cantar nas cerimônias. Clouzot teve que “dar de comer à sua
cabeça”, quer dizer, colocar sobre seu crânio diversos alimentos.
O rito de iniciação das jovens toma pouco a pouco um aspecto horrível. Nes-
tor faz entrar as duas postulantes e tira de um caixote dois pombos brancos.
“Nestor está de pé”, conta Clouzot, “o pombo se debate na sua mão esquerda.
Com um golpe de polegar, ele faz saltar sua cabeça e antes que o sangue tenha
tempo de jorrar, ele introduz o pescoço do pombo na boca da jovem que avança
os lábios avidamente. E, eis que em um último espasmo, a vítima decapitada
põe-se a bater as asas. Suas penas brancas batem nas bochechas negras. É como
96 IMAGENS DO SAGRADO
Nestor pratica sobre seus braços, seu peito e sua língua incisões com lâmina
que as deixam praticamente insensíveis. Depois ele as inunda com sangue fresco
de um bode, em meio a um tumulto de cânticos e de convulsões. “Nós ficamos
abestalhados, mudos, paralisados. Era inútil recuar os limites da repugnância,
encontrava-se sempre um detalhe nojento para ultrapassar ainda mais esses
limites: as manchas vermelhas nas calças, a cabeça do bode que uma mulher
levava pela orelha entre seus dentes, as máscaras e trejeitos faciais atrás dos quais
não encontrávamos mais traços humanos, sob a crosta formada pelas penas e
coágulos diluídos no suor.”
Mas o horror desse espetáculo desperta também ressonâncias distantes. Muito
antes de Buda e Confúcio, o fetichismo reinou nas cavernas onde a humanidade
da idade da pedra tomava consciência dos mistérios da morte e do além.
“Nós nos sentíamos em presença de alguma coisa tão antiga, tão fora das
eras, que um estranho respeito nos fazia esquecer a nossa náusea.”
Clouzot também teve de beber, do pescoço recentemente cortado, o sangue
quente de um pombo.
“Assim”, concluiu o cineasta, “terminou-se essa experiência apaixonada”.
Alguns dias mais tarde ele reencontrava, longe dos deuses selvagens, a razoá-
vel Europa no clima pomposo do barco inglês que o levava de volta para a
França.
As conclusões que ele tirou da sua incursão no mundo proibido dos últimos
fetichistas não são menos extraordinárias que as aventuras que ele viveu.
Clouzot ficou surpreso com as semelhanças apresentadas pelo trabalho do
“pai-de-santo” com o do psicanalista. Lá e cá, leva-se o doente (ou o futuro ini-
ciado) a regressar até o estado infantil. É assim que as jovens negras, submetidas
98 IMAGENS DO SAGRADO
Isso não é verdadeiro. Antes dele outros brancos já entraram em tais recin-
tos. Basta dizer que nem todos os fetichistas são negros; há gente branca
entre eles, inclusive uma filha de espanhóis. Agora, que tenha sido ele um
dos primeiros a publicar fotografias de camarinhas e de algumas cenas mais
íntimas dos candomblés, não tenho dúvida e devo acrescentar que houve
aí espírito sensacionalista, dando-se à publicidade de segredos da religião
afro-brasileira.
Também o jornal A Tarde publica nesse dia uma carta raivosa e até
mesmo preconceituosa em relação ao próprio candomblé, de autoria do
“escritor e historiador” Gustavo Barroso. A carta publicada na íntegra re-
força a característica de “escândalo”, depois da reprodução da reportagem
da Paris Match por esse mesmo jornal. Barroso chama Clouzot de aven-
tureiro que se “apregoa cineasta”, publicando em uma “revista qualquer”,
Sensacionalismo, nada mais. Clouzot fez cinema com as letras. Não se trata
de um documento etnográfico, e muito menos extraordinário e intimamente
a gente dos candomblés, não consegui identificar muita coisa, tal a maneira
por que as experiências de Clouzot estão narradas. O pior é a “descoberta”
do candomblé que Clouzot pretende ter feito. Clouzot nasceu em 1907,
mas antes disso, em fins do século passado, Nina Rodrigues escrevia mais
profundamente sobre o candomblé e por coincidência em francês, em revistas
científicas de Paris; antes de Clouzot ter notícia de que havia candomblés
em alguma parte do mundo, os livros de Arthur Ramos eram traduzidos
em inglês, francês, alemão e espanhol [...]. A explicação da “possessão”, que
Clouzot diz que ninguém lhe soube explicar no Brasil, está em trabalhos de
Nina Rodrigues e Arthur Ramos. Por aí você vê a importância do documento
etnográfico que ele apresenta [...].
9 Roger Bastide, “Ainda o caso Clouzot”, Anhembi, no 10, vol. IV. São Paulo, set., 1951.
Certa manhã, um amigo nos telefona e diz: “Acaba de chegar o Clouzot com
a esposa, estão hospedados no Palace Hotel, trazem recomendações para você”.
Tocamos incontinente para o hotel e lá estava o Diretor de “Manon” já cercado
de jornalistas e Diretores do Clube de Cinema local. Com seu ar espantadiço
de bicho acuado, parecia cansado, e sua bela e simpática esposa, Vera Clouzot,
atendia como podia as pessoas. Tanto quanto possível, queixaram-se ambos
da falta de cooperação das autoridades, da desistência do filme no Rio e que,
embora tivesse regressado a equipe que trouxera da França, estavam dispostos
a escrever o cenário de uma película passada na Bahia. Si tudo corresse bem a
equipe viria meses depois. Mas Clouzot já meio impaciente queria detalhes e
mais detalhes do candomblé. Estava com o bolso cheio de apresentações de
[...] abrimos espaço às linhas que seguem, a fim de colocar na sua justa medida
o intuito sensacionalista de um cineasta, de alto valor na sua especialidade,
mas de uma lastimável ignorância sociológica. Um homem inteligente como
Clouzot não cairia nesse erro grosseiro, por ignorância apenas [...]. Temos
para nós que Clouzot se arriscou a comprometer a sua idoneidade intelec-
tual exclusivamente para exercer uma vingança contra o governo do Brasil
[...]. Com a mesma imparcialidade contra o gesto desarrazoado de nossas
autoridades, fazemos agora nossas as palavras serenas e lúcidas do professor
Roger Bastide, ao qual a cultura brasileira deve inestimáveis serviços.
10 Idem, Anhembi, no 9, vol. III. São Paulo, ago., 1951, pp. 580-3.
A redenção de Clouzot?
11 Idem, “O caso Clouzot e ‘Le cheval de dieux’”, Anhembi, no 10, vol. IV. São Paulo, set., 1951,
pp. 188-90.
A pergunta que fica é: Por que razão não incluir o texto no qual ele
próprio já tinha dessa forma argüido anteriormente? Independentemen-
te de seus motivos, o que nos interessa é a volta de Clouzot como um
autor questionável em seus pontos de vista, mas agora passível de certa
flexibilidade.
Em alguns outros momentos menos importantes do livro, Clouzot
é lembrado, como na passagem em que Bastide relata um processo de
sucessão em um terreiro tradicional de Salvador e a disputa que se es-
tabeleceu com a morte da ialorixá, cujo protetor era Xangô. Durante os
sete anos regulares que se esperava para que a sociedade dos eguns da
ilha de Itaparica invocasse a alma da mãe-de-santo, a filha-de-santo mais
velha de terreiro ficou encarregada de cuidar da casa religiosa, mas como
era filha de Oxum, aconteceram conflitos até mesmo no plano místico
com os seguidores de Xangô, e Bastide diz: “Clouzot, aliás, que estava na
Bahia nessa época, faz a isso uma rápida alusão” (Bastide, 2001, p. 246).
Qual a importância de novamente citar Clouzot se suas observações não
são relevantes? As cinzas de Clouzot são constantemente reavivadas por
Bastide, legitimando sua passagem pelo Brasil. Assim, Clouzot não foi
esquecido como tanto queria Alberto Cavalcanti.
Caro Medeiros
As informações dessa carta enviada por Leão Gondim para José Me-
deiros, quando ele e Arlindo Silva ainda estavam na Paraíba fazendo uma
reportagem sobre a pesca da baleia em Cabedelo, são elucidativas de todo
O próprio Odorico também foi contra essa reportagem, de nossa tentativa lá...
vocês vão quebrar... vocês não deviam fazer isso, esse Clouzot fez um mal, ele
fez um grande mal, porque contou coisas secretas, de coisas bonitas, coisas
dessa religião, e acho que vocês não deviam fazer isso, vocês vão quebrar o
encanto de muitas cerimônias que existem aí, do mundo secreto, religioso, é
muito bonito esse mundo secreto e tal...
2 Cláudia Possa me enviou em setembro de 2006 a carta completa, pois passou por Teresina e
teve acesso aos originais, e ficou estabelecida finalmente a autoria da carta, assinada por Leão
Gondim.
Riso sabia o que estava fazendo e tinha consciência de que eles eram
jornalistas da revista O Cruzeiro, pois dessa forma se apresentaram a ela:
[...] ela sabia que era para ser publicado na revista O Cruzeiro, a gente até
comentou nessa base de que um estrangeiro tinha publicado umas fotos de
Candomblé e tal, e a gente queria também fazer a mesma coisa e tal, e foi
assim a conversa. A gente tentou outros caminhos, e houve recusa de pessoas
que podiam nos ajudar, e sempre davam contra, era Odorico Tavares. Pierre
Verger nós não conversamos porque sabíamos que ele iria dar sumariamente
contra, outros jornalistas também, porque na Bahia, é engraçado, viu? Porque
na Bahia jornalistas, escritores, gente de cultura, gente que está habituada
com todos os dramas e problemas do mundo, do dia-a-dia, da pobreza e da
miséria do crime, eles respeitam o negócio, e acreditam no negócio, então não
foi muito fácil até aparecer o Gervásio Batista e o motorista Sessenta... porque
o Sessenta era acostumado a levar turista para ver os rituais públicos...
O Cruzeiro naquele tempo não tinha editoria, não tinha chefe de reportagem,
não tinha pauteiro, não tinha nada disso que hoje em dia tem. Os repórteres
em si eram donos das suas idéias, e quando eles partiam para uma reportagem,
eles traziam às vezes cinco ou seis, que iam surgindo no meio do caminho,
José Medeiros3
3 Baseado no depoimento de José Medeiros para Nadja Peregrino e Ângela Magalhães, José
Medeiros — 50 anos de fotografia. Rio de Janeiro: Funarte, 1986.
4 No início da carreira na revista O Cruzeiro, Medeiros foi influenciado pelo estilo de Jean Mazon
e fazia suas fotografias utilizando muitas luzes e cenas montadas.
Hoje os negros são livres e fazem soar apenas os seus atabaques ritualísticos
[...]. De repente, entre os espectadores, uma jovem negra é acometida de
movimentos convulsivos. A mãe-de-santo, suprema dignidade do rito, corre
a ampará-la. É uma negra alta, de cabeça grisalha, que chegou ao posto
em virtude dos seus conhecimentos do ritual e da pureza de sua linhagem
africana.
A reportagem de O Cruzeiro
Abrimos espaço para uma reportagem que se destina à mais ampla reper-
cussão dentro e fora do país. Ao entregá-la ao público, está certo o O Cruzeiro
de que se trata não só de uma grande realização jornalística, mas também de
uma documentação fotográfica inédita e tanto quanto possível completa sobre a
mais impressionante prática fetichista dos negros baianos: a iniciação das “filhas-
de-santo”. Não é difícil, pois, avaliar as enormes dificuldades que os repórteres
encontraram no cumprimento de sua audaciosa missão, levados que foram a
infringir uma severa norma sagrada que restringe às pessoas iniciadas a graça
de assistir aos cerimoniais secretos dos candomblés. Durante quatro semanas,
os repórteres permaneceram na Cidade de Salvador, entrando em contato com
os mais destacados chefes das agremiações negras da Bahia. Tudo, porém, só
corria bem até o momento em que se tocava no assunto principal da reporta-
gem: a iniciação das “filhas-de-santo”. Isso era o bastante para que os pais e
mães-de-santo se tornassem esquivos, enchendo-se de sombria e temerosa
desconfiança. Uma força, entretanto, atuava em favor de Arlindo Silva e José
Medeiros: a popularidade e o prestígio de O Cruzeiro em todas as camadas
sociais. Um dia, quando já estavam quase desfeitas todas as esperanças, chegou
a esta redação um lacônico telegrama: “Seguiremos amanhã com a reportagem
no bolso”. E é esta reportagem, que ora publicamos, realizada pelos dois únicos
jornalistas brasileiros que até hoje assistiram às práticas secretas da religião negra
professada na Bahia, que vem revelar, ao mundo civilizado, a estranha história
das noivas dos deuses sanguinários.
É noite na Cidade da Bahia. O cais está deserto, as luzes das ruas cintilam
ao longe. A cidade dorme no seu mundo de contrastes. Vem, dos arredores, o
rumor surdo dos atabaques. Agora, que emudeceram na noite os sinos das igrejas
centenárias, uma força misteriosa se desencadeia sobre a cidade mais religiosa
do Brasil. São negros baianos que invocam os seus deuses. Estão reunidos num
local afastado, em plena mata, onde construíram o pavilhão sagrado a que dão o
nome de barracão. Das paredes, tapadas com folhas de palmeiras, pendem ins-
crições numa mistura de português e nagô, e o teto é ornamentado com flâmulas
vermelhas, azuis e amarelas. Três negros continuam a fazer soar os atabaques. À
esquerda, sobre um estrado, estão colocadas as cadeiras dos sacerdotes. Em volta
Orixá ma bé
Todimá beberéré
Jacolô undó ma bé...
Uma onda de ruídos vem quebrar o silêncio que envolve o terreiro. Ouvem-se
grunhidos de porcos e berros de bode. Cantam galos e galinhas cacarejam. São os
animais que vão ser sacrificados dentro em poucos minutos, em holocausto aos
deuses negros da Bahia. Aproximamo-nos do cercado e contamos: dois bodes, um
porco, quatro galinhas, quatro galos, três patos, três cocás ou galinhas-d’angola.
De repente, vem juntar-se a esses ruídos o bater ritmado de um atabaque. É
que a mãe-de-santo já anunciou que está na hora da matança. Ao ouvir o som
Fala-éé bacunum
Fala-éé akikô...
Uma nova cerimônia tem lugar à tardinha desse mesmo dia. Uma grande paz
descera sobre o terreiro deserto, mas de repente os atabaques voltam a soar. A
mãe-de-santo se dirige apressadamente para a camarinha, e mais uma vez permite
que a acompanhemos, embora a cerimônia seja secreta. Ao entrarmos, vamos
encontrar as três iaôs nas suas esteiras. Elas se mostram como que privadas de
qualquer ação consciente. Embora o sol ainda brilhe lá fora, aqui no interior
da camarinha estamos com uma vela acessa. Dos corpos das três mulheres se
desprende um cheiro exótico e penetrante: não cessaram ainda os efeitos das
ervas aromáticas do banho sagrado. Lá fora, os tambores batem vagarosamente.
A mãe-de-santo, auxiliada sempre pela “mãe-pequena”, dá então início ao efum.
Desta vez, não se trata de nenhuma cerimônia sangrenta. A mãe-de-santo pinta
a cabeça das iniciantes, fazendo sobre elas vários círculos coloridos. As cores,
como os cânticos sagrados de outras práticas, variam de acordo com o santo:
para Iemanjá, branco; para Omolu, verde; e vermelho para Oxóssi. Também os pés
são pintados, mas com outro critério, em vez de círculos são riscos compridos
que obedecem à direção dos dedos. É uma cerimônia rápida e simples. Logo em
seguida, a mãe-de-santo deixa de novo a camarinha, onde as iaôs permanecerão
incomunicáveis durante mais algumas horas. Nessa noite, as iaôs, “feitas” filhas-
de-santo, revelarão publicamente os nomes dos “santos” que as possuem. No dia
seguinte, durante o banquete realizado especiamente para este fim, comerão todas
as partes dos animais recolhidas no vaso de oferendas na noite da matança: as
cabeças, os pés e os órgãos genitais. As despesas feitas com a iniciação somam
alguns milhares de cruzeiros. As que puderem pagar terão permissão para deixar
o candomblé logo depois da “feitura” do santo. As outras ficarão trabalhando
como escravas para a mãe-de-santo, até que tenham juntado dinheiro para sua
alforria. Todas elas, porém, se tornarão para sempre escravas do “santo” que
“baixou” sobre elas e lhes “entrou” no corpo. Esta é a lei do candomblé da Bahia
e os deuses negros assim o querem.
6 Anhembi, no 12, vol. IV. São Paulo, nov., 1951, pp. 563-4.
7 Gregory Bateson e Margaret Mead, Balinese character — A photography analysis. Nova Iorque:
Special Publications of the New York Academy of Sciences, 1942, vol. 2.
O neófito na liminaridade deve ser uma tábula rasa, uma lousa em branco, na
qual se inscreve o conhecimento e a sabedoria do grupo, nos aspectos perti-
nentes ao novo “status”. Os ordálios e humilhações, com freqüência de caráter
grosseiramente fisiológico, a que os neófitos são submetidos, representam em
parte, a têmpera da essência deles, a fim de prepará-los para enfrentar as novas
responsabilidades e refreá-los de antemão, para não abusarem de seus novos
privilégios. É preciso mostrar-lhes que, por si mesmos, são barro ou pó, simples
matéria, cuja forma lhes é impressa pela sociedade. (Turner, 1974, p. 127)
A nova magia não visa modificar o mundo lá fora, como faz a pré-história,
mas os nossos conceitos em relação ao mundo. É magia de segunda ordem:
feitiço abstrato. Tal diferença pode ser formulada da seguinte maneira: a
magia pré-histórica ritualiza determinados modelos, mitos. A magia atual
ritualiza outro tipo de modelo: programas. Mito não é elaborado no inte-
rior da transmissão, já que é elaborado por um “deus”. Programa é modelo
elaborado no interior mesmo da transmissão, por “funcionários”. A nova
magia é ritualização de programas, visando programar seus receptores para
um comportamento mágico programático. (Flusser, 1985, p. 22)
BIBLIOGRAFIA 163
JOSÉ MEDEIROS
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Gerência de Produtos
Editoriais e Institucionais Vera Lúcia Wey
Assistência editorial Berenice Abramo
Editoração Isabel Ferreira
Teresa Lucinda Ferreira de Andrade
Fernando de Tacca
imagética da Comissão Rondon e sobretudo, à leitura acurada das imagens publicadas. campo das memórias vivas, levanta-
inúmeros artigos sobre fotografia, mento de material iconográfico e bi-
cinema e antropologia visual. Rea- Milton Guran bliografia original e inédita, a pesqui-
lizou várias exposições fotográficas sa analisa o fato midiático do enfren-
no Brasil e no exterior. É o criador e o tamento entre as duas revistas em
editor da revista Studium. relação à documentação fotográfi-
ca do ritual de iniciação no candom-
blé dos vários pontos de vista de
seus atores.
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