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RHUANN FERNANDES

Este é o primeiro livro sobre o tema


RHUANN FERNANDES no Brasil, fruto de monografia es-
crita para conclusão de gradua-
Rhuann Fernandes realiza uma etnografia sobre o ritual do

lobolo em Moçambique, contribuindo para as literaturas an-
tropológica e africanista. Apresenta a história do ritual no país
ção em Ciências Sociais, por meio
da qual o autor discute conjugali-
dades e relações amorosas no sul
e mostra como, nos tempos recentes, o lobolo incorporou ele-
de Moçambique, país localizado
mentos religiosos diversos, articulando as relações de paren-
no sudeste do continente africa-
tesco entre vivos e mortos. Vemos uma tradição que se rein-
venta a todo momento, contrapondo-se a imagens de uma no. Com esta pesquisa, Rhuann
África estática. Assim, Rhuann Fernandes traz para o público Fernandes foi agraciado com o II
brasileiro um estudo valioso que desconstrói estereótipos so- Prêmio Giralda Seyferth, de caráter
bre a África, valorizando as contribuições do sul global. ” nacional, atribuído no âmbito do IX
RHUANN FERNANDES Seminário de Alunos do Programa
é doutorando e mestre (2022) em Ciên-
cias Sociais no Programa de Pós-gra-
PROFA. DRA. CLAUDIA BARCELLOS REZENDE: docente do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS-UERJ)
CASAMENTO de Pós-Graduação em Antropo-
logia Social (SAPPGAS), do Museu

TRADICIONAL
duação em Ciências Sociais da Uni-
versidade do Estado do Rio de Janeiro Nacional, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ)

CASAMENTO TRADICIONAL BANTU


(PPCIS-UERJ). É pesquisador visitante na

BANTU
Bloco 4 Foundation - Research in Ac- e recebeu menção honrosa pela
tivism, Citizenship and Social Policies, Comissão de Jornadas Científicas
promovendo a construção de espaços
da Faculdade de Ciências Sociais
de pesquisa sobre ativismo, cidadania e
e Filosóficas da Universidade Peda-
políticas sociais em Moçambique. Além
disso, é integrante do grupo de pesqui-
gógica de Moçambique.
sa interinstitucional Áfricas: Política, So-
ciedade e Cultura (UERJ-UFRJ) e mem- Com a perspicácia de quem sabe aonde quer chegar,
O LOBOLO NO SUL DE
bro do grupo de pesquisa em Políticas,
Afetos e Sexualidades Não-Monogâmi-

Rhuann Fernandes leva-nos a conhecer a vida contemporâ-
nea de uma tradição milenar. O lobolo representa hoje modos
MOÇAMBIQUE
cas (UFJF). No momento, dedica-se às de solidariedade que contestam o puro liberalismo capitalis-
áreas de Estudos Africanos, Sociologia ta. Para além de cerimônia nupcial com distribuição de di-
das Relações Raciais e Sociologia das nheiro e presentes, o lobolo aparece aqui como uma potente 2 ª EDIÇÃO
Emoções, atuando principalmente nos afirmação de outros modos de viver a economia. Mais que REVISADA E
seguintes temas: cultura, subjetividade uma utopia, o livro apresenta a continuidade de uma tradição AMPLIADA
e emoções; relações amorosas e ar- que prova que toda troca econômica é um ato moral.”
ranjos conjugais contemporâneos; re-
lações raciais e identidade; espiritua- PROF. DR. MARCOS ALBUQUERQUE: docente do
lidade; família e parentesco; gênero e Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
sexualidade. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS-UERJ)
CONSELHO EDITORIAL

presidente

Thiago França

membros

Carlos Ziller
Eleonora Ziller Camenietzki
Rubens Barros Coelho
Maria Inês Delorme
Paulo Maia
RHUANN FERNANDES

2 ª EDIÇÃO REVISADA E AMPLIADA

GRU PO MULT I F O C O
Rio de Janeiro, 2022
Copyright © 2022 Rhuann Fernandes

direção editorial Grupo Multifoco


edição Dayana Xavier
preparação e revisão Vanusa de Melo e Abinelto Armando Bié

revisão técnica, revisão paritária ou parecer Dulcídio Manuel Albuquerque

Cossa (parecerista), Baltazar Mugabe (parecerista), Abinelto Armando Bié


(revisor paritário), Aurélio Miambo (parecerista) e Jonas Alberto Mahumane
(parecerista)

projeto gráficoCaroline Silva


capa Kátia Leonor Alves
impressão Gráfica Multifoco

direitos reservados a

GRUPO MULTIFOCO
Av. Mem de Sá, 126 - Centro
20230-152 / Rio de Janeiro, RJ
Tel.: (21) 2222-3034
contato@editoramultifoco.com.br
www.editoramultifoco.com.br

todos os direitos reservados .

Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer
meios existentes sem autorização por escrito dos editores e autores.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).

F363 Fernandes, Rhuann.


Casamento tradicional Bantu: o Lobolo no sul de
Moçambique/ Rhuann Fernandes. – 2 ed. rev. e ampl. –
Rio de Janeiro : Multifoco, 2022.
268 p.: il. ; 23 cm.

Inclui bibliografia
ISBN: 978-65-00-56151-7

1. Tradição 2. Casamento Bantu 3. Lobolo


I. Título

22-0114 CDD: 392.5

Fernanda Silvino – Bibliotecária – CRB-7 RJ-007230/O


Contar uma história significa levar
as mentes no voo da imaginação e
trazê-las de volta ao mundo da reflexão.
Paulina Chiziane, 2008.
Agradecimentos

Este livro é uma versão adaptada da monografia que escrevi para


conclusão da graduação em Ciências Sociais, defendida no final de
2019, no Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (ICS-UERJ), sob orientação da professora doutora
Cláudia Barcellos Rezende e coorientação do professor doutor Au-
rélio Miambo, da Universidade Pedagógica de Moçambique (UP).
Agradeço imensamente a esses dois antropólogos, pelo fato de acre-
ditarem em minha pesquisa desde o início. A paciência e a vontade
são virtudes que reverencio em ambos. Com vocês, desenvolvi mais
amor pela antropologia. Em cada encontro, em cada aula, meu en-
tusiasmo avançava e o meu prazer se materializava.
Não à toa, o trabalho de conclusão de curso que me conferiu o
bacharelado em Ciências Sociais recebeu dois prêmios: II Prêmio
Giralda Seyferth, de caráter nacional, atribuído no âmbito do IX Se-
minário de Alunos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social (SAPPGAS), do Museu Nacional, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ) e Menção Honrosa pela Co-
missão de Jornadas Científicas da Faculdade de Ciências Sociais e
Filosóficas da Universidade Pedagógica de Moçambique. Essas pre-
miações me encorajaram publicar a monografia, transformando-a no
presente livro.
Em minha trajetória intelectual, desenvolvi laços de afeto que
não se referem apenas ao contexto universitário. Na realidade, tenho
lembranças contagiantes daqueles que me fizeram mudar os rumos
de uma vida que carecia de sentido. A primeira pessoa que eu gostaria
de agradecer é Viviane Nascimento, pelo trabalho voluntário que

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exercia em uma biblioteca comunitária na favela Jardim Catarina,
o meu lugar, que em uma determinada circunstância me ofereceu
um livro que mudou minha trajetória: Autobiografia de Malcolm X.
No mesmo período, tive contato com minha primeira professora ne-
gra no ensino médio, de sociologia, Juliana Rosas. Depois que entre-
guei um trabalho sobre Racionais Mc’s e desigualdades sociais, ela
disse que eu tinha potencial crítico e que não deveria me acomodar.
Serei eternamente grato por suas palavras. Por vezes, o que nos falta
é incentivo para acreditar em nossa capacidade.
O primeiro contato que tive com vestibular foi numa roda cul-
tural de rap, por intermédio de um amigo que tinha acabado de ser
aprovado para o curso de direito, na praça do Jardim Catarina. Era
um domingo à noite e ele expressou que negras e negros deveriam
ocupar mais espaços de poder, mas o que ele percebia é que falta-
va o básico: acesso à informação. Foi paciente e me explicou, em
uma hora, o que era a universidade pública. Wesley Matos, saiba que
você modificou inteiramente minha percepção do que “eu quero ser
quando crescer”, meus recursos eram limitados e você os expandiu.
Cronologicamente, há quatro pessoas que intervieram para fazer
com que canalizasse meu potencial e concretizasse meus sonhos e
objetivos. São as três mulheres de axé da minha vida, minhas rainhas/
guerreiras: minha avó, Maria; minha mãe, Tatiana, e minha tia, Ana
Paula. Além delas, meu pai, Julio César. Essas pessoas foram deci-
sivas e fundamentais pelo simples fato de acreditarem em mim e
fazerem todo esforço do mundo para angariar fundos e realizar inves-
timentos no meu percurso escolar.
Quero agradecer, especialmente, às pessoas da minha área que in-
telectualmente me inspiram e por quem tenho apreço descomunal:
Suzan Stanley, incansável na crítica por uma alternativa concreta
de conhecimento nas ciências sociais que saia dos parâmetros fin-
cados pelas clássicas percepções coloniais. Jonathan William, a
pessoa que me abraçou desde que ingressei na UERJ e me conce-
deu as orientações mais estratégicas possíveis para minha evolução,
compartilho com ele uma energia espiritual incalculável. Por fim,

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Romário Nelvo, paciente, seguro e enérgico na busca pelo conheci-
mento. Não se contenta com limites traçados previamente por moldes
paradigmáticos, ao contrário, busca, de modo incessante, as brechas
para rompê-los.
Não posso esquecer de minhas irmãs e meus irmãos da organi-
zação comunitária Nós por Nós, os quais me fazem crescer a cada
conversa e a cada ideia compartilhada. Sou grande pela grandeza de
vocês, poucos terão esse privilégio. É reconfortante olhar nos olhos
de cada um, pois os admiro pelas incansáveis lutas contra atrocidades
cotidianas que a população negra atravessa. Um salve para Nelson,
Marcy, Emerson, Carolina, Caroline, Samara, Alessandra, Suelen,
Liana, Stephane, Rhyan e Rayff. Amo vocês nas singularidades.
Este trabalho só foi possível por conta da força de vontade e apre-
ço de pessoas como Vanusa Maria de Melo e Kátia Leonor Alves, que
além de tudo, são incansáveis na luta pelos direitos humanos. Sou
orgulhoso por ter vocês por perto. Obrigado por acreditarem e por
estarem comigo nos momentos mais difíceis da tensão gerada pelo
ato de escrever. Me atenderam em vários horários e nas mais variadas
circunstâncias, em nenhum momento hesitaram em ajudar.
Quero demonstrar minha gratidão ao povo moçambicano que
me recebeu de braços abertos e pelas amizades que fiz no país, as
quais me auxiliaram na adaptação e compartilharam comigo vi-
vências indescritíveis. Abel, Horácio, Rinhas Bar, Napaz, Larissa,
Amanda, Rodrigo, Donia, Iria, Selso, Quitéria, Arlindo, Edmil-
son, Ulysses, Vania e Adriano são apenas alguns nomes da imensa
família que criei. Vocês são incríveis, foram momentos mágicos e
memoráveis. Agradeço também a alguns irmãos específicos com
quem ultimamente venho estreitando cada vez mais os laços.
A reciprocidade é característica marcante de nossas amizades: Macos-
sa, Edu, Anthony, Rodolfo, Mpenzi, Mariah, Bruno e Jean, saibam que
são espelhos.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 13

PREFÁCIO 16

LINHAS INTRODUTÓRIAS 19
Os caminhos da pesquisa 21

1. O LOBOLO E SUAS NARRATIVAS: IMPLICAÇÕES HISTÓRICAS E


SOCIAIS DE UM RITUAL VIVO 33
Lobolo: uma “tradição dinâmica”? 35
Os olhares antropológicos sobre o lobolo 39
A biografia de uma negação: colonialismo, violência
e práticas tradicionais no sul de Moçambique 53
O socialismo científico e o problema da tradição no
pós-independência 71
A revalorização da tradição e o lobolo contemporâneo 83

2. O LOBOLO DE IRIA VIANA MARTINS E SELSO AUGUSTO IASSINE


CUAIRA 93
Minha inserção no campo 95
Antecedentes do lobolo de Iria Viana Martins e
Selso Augusto Iassine Cuaira 98
A cerimônia de lobolo 103
O Casamento Islâmico e Civil 125
Xigiyani 132
O “churrascamento” 140

3. ETNOGRAFIA DE UM QUASE LOBOLO, MINHA VIAGEM PARA O


INTERIOR DO ESTADO DE GAZA: O CASAMENTO DE CANDIDO AFONSO
TUNE E FÁTIMA TUNE 145
Minha inserção no campo 147
Minha ida a Magumeto: a caminho do interior 150
A vez do engano 156
Da Igreja Zion ao salão de festas: atos representativos 164
A tradição mais incisiva? 177

4. LOBOLO E ESPIRITUALIDADE: A INTEGRAÇÃO DO MUNDO DOS


VIVOS E O MUNDO DOS MORTOS 179
Características da espiritualidade bantu 185
O contato com os antepassados no lobolo 192
Sincretismo religioso no lobolo 198
As instâncias intermediárias: os vanyamusoro, os vaphorofeti e
o lobolo 211

CONSIDERAÇÕES FINAIS 225

REFERÊNCIAS 231

APÊNDICE 247

ANEXO 263
Apresentação

Casamento tradicional bantu: o lobolo no sul de Moçambique, de


Rhuann Fernandes, é um convite à reflexão guiada pelos princípios
da afroperspectividade a partir do contexto moçambicano. Ou seja, é
uma abordagem científica pluralista, que reconhece a existência de
várias perspectivas, em que se utilizam como base conhecimentos
africanos e afrodiaspóricos. Nessa ótica, o autor quebra o paradigma
de estudos matrimoniais assentes numa visão “antropocidental” de
casamento, influenciada, por vezes, por uma visão ortodoxo-cristã
que prioriza comparações a partir de valores da colonialidade —
marcas/resquícios cotidianos do colonialismo que se expressam na
negação de direitos e de valores civilizatórios de povos tradicionais.
Apesar de o Brasil ter recebido incomensuráveis e substanciais
contribuições civilizatórias de povos africanos, em que se destacam
os bantu, temos pouco entendimento e aplicação das formas de orga-
nização social desses povos no cotidiano, em termos de suas institui-
ções, tal como o casamento. Este livro tem como propósito preencher
essa lacuna. O que o autor nos sugere aqui é uma viagem ao universo
sociocultural, político e econômico do sul de Moçambique — pen-
so ser essa sua a maior proeza — por intermédio do lobolo, numa
dimensão peculiar da vida espiritual, perpassando pelos planos que
atravessam o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Isso nos mostra
a complexa relação entre o mundo visível e o invisível presente no ca-
samento. Como pode o lobolo tornar concreta essa relação abstrata?
Rhuann Fernandes fornece algumas pistas sobre tal questão.
Ao abordar as dimensões da espiritualidade, Fernandes explora
a religiosidade imbricada no conjunto de crenças, práticas, festas

CAS A M E N TO T R A D I C I O N A L B A N T U 13
e rituais que constituem o cotidiano moçambicano e que, outrora,
foram brutalmente renegadas, oprimidas e desprezadas por uma
máquina desumanizadora: o colonialismo. Além disso, ao resgatar e
fazer uma análise minuciosa sobre os documentos (jornais e revistas)
do período pós-independência, o autor identifica como as práticas
tradicionais foram reexaminadas pelo Estado que se ergueu com for-
te identificação com o pensamento marxista. Assim, numa incansá-
vel leitura crítica, ele nos propõe quatro capítulos surpreendentes
pelos quais se pode compreender o lobolo no período pré-colonial,
colonial e pós-colonial.
Por meio de duas experiências de campo — um lobolo e o epi-
sódio que o autor denomina de “quase lobolo” — imergimos numa
etnografia profunda com uma descrição densa de fatos e situações so-
ciais. Isso revela que não estamos apenas diante de um estudo sobre o
casamento tradicional bantu, mas também diante de um instrumen-
to metodológico que tangencia e contempla múltiplas áreas das ciên-
cias humanas, desde a antropologia até as relações internacionais.
O fato de essas duas experiências serem vivenciadas em dois con-
textos distintos — urbano e rural — e com influências de religiosi-
dades diferentes, possibilita-nos compreender o lobolo por diversos
aspectos. Dentre várias interpretações possíveis, destaca-se o “sincre-
tismo religioso” presente no lobolo que, neste caso específico, nos
remete a outra categoria de análise: a compartimentação religiosa.
Portanto, este livro nos permite analisar o lobolo enquanto um ritual
simultaneamente sincrético e compartimentado. Nessa direção, ou-
tro elemento crucial é a forma como, por meio do lobolo, o autor
mobiliza uma discussão em torno da tradição e da modernidade, não
enquanto conceitos ou categorias opostas, mas entrelaçadas.
Por fim, este livro é, particularmente, uma grande contribuição
para os estudos antropológicos e sociológicos e seus variados temas,
como parentesco, economia das trocas simbólicas e performance.
Por ser a primeira obra no Brasil a tratar de um assunto tão im-
portante para nós, moçambicanos e moçambicanas, espero que se
consolide no mainstream universitário e se expanda para além dos

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muros das instituições de ensino superior, consolidando-se como
uma referência que aponta e explica uma das contribuições civili-
zatórias mais importantes de povos negro-africanos da África Austral.
Com isso, espero que as pessoas possam vislumbrar outra forma de
relação conjugal distinta dos parâmetros hegemônicos presentes
no Brasil.

Macia (Gaza), Moçambique, 14 de fevereiro de 2020.

Dulcidio Manuel Albuquerque Cossa (Nyimpini Khosa) é


doutor em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ) com a tese Ancestralidade, possessão e
feitiçaria: um estudo etnográfico entre os tsonga. Atualmen-
te, é professor na Faculdade de Ética e Ciências Humanas
da Universidade São Tomás de Moçambique (USTM) e na
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Aberta ISCED (UnISCED) - Moçambique.

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Prefácio

No início dos anos 2000, a antropóloga moçambicana Alcinda Hon-


wana publicou um livro do qual retenho uma parte do título: “espíri-
tos vivos, tradições modernas”. Ao fazer este enquadramento, preten-
do tornar compreensível que no livro Casamento tradicional bantu:
o lobolo no sul de Moçambique, Rhuann Fernandes oferece-nos uma
análise compreensiva e bem documentada que evidencia que o es-
pírito e a essência do lobolo continuam vivos e que a tradição que
marca esse tipo de casamento nunca parou de se modernizar e de
se adaptar às circunstâncias sociopolíticas de cada momento, o que
reforça o argumento do autor de que a cerimônia é uma das práticas
culturais mais importantes das sociedades do sul de Moçambique.
Neste livro, Rhuann associa-se a toda a produção científica que
versa sobre o lobolo e mostra que, mesmo com suas rupturas e conti-
nuidades, a prática está presente nas sociedades da região sul de Mo-
çambique há muito tempo. O autor sinaliza que essa cerimônia, que
corresponde a um casamento tradicional na sociedade moçambicana,
é uma instituição caracterizada por situações sociais multifacetadas e
de uma enorme variabilidade de significações, dentre elas algumas
com um sentido especialmente figurado e outras difíceis de decifrar,
mas se constitui como um espaço em que são renegociados estatutos,
alianças e descendência. Neste sentido, como qualquer outra prática
tradicional, o lobolo é dinâmico, evolui, transforma-se, reinventa-se,
por isso deve ser entendido como uma cerimônia que sofre variações
relacionadas aos interesses e motivações pelos quais é realizado.
O autor constrói a sua tese a partir da análise de dois casos des-
sa “significativa cerimônia”: o lobolo de Iria Viana Martins e Selso

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Augusto Iassine Cuaira e o casamento de Cândido Afonso Tune e
Fátima Tune. Ao longo da descrição, destacam-se vários traços e gra-
máticas sociais comuns nesses casos, dentre os quais, a consolidação
do laço matrimonial, a renovação e o aprofundamento de laços com
os espíritos bem como a valorização e a afirmação da identidade dos
sujeitos que o praticam.
A obra oferece uma experiência etnográfica marcante, com via-
gens pelo “Moçambique real”, o que demonstra a capacidade singu-
lar de Rhuann para produzir um corpus de dados robusto, superando
todos os problemas relacionados às condições sociais de pesquisa e os
constrangimentos de um terreno desconhecido, das línguas locais e
práticas culturais de uma complexidade assinaláveis.
O material etnográfico apresentado ao longo do livro, a autori-
dade como que aborda as diferentes situações sociais, a neutralidade
axiológica e a simplicidade da sua escrita mostram que este livro em
nada fica a dever aos trabalhos escritos sobre o lobolo, pois o tempo
de permanência em Moçambique, o trabalho bibliográfico extenso
e o contato com duas experiências de casamentos permitiram o apri-
moramento permanente do modo de operacionalizar o seu objeto
de estudo e de concretizar a sua pesquisa de forma muito particular,
observando o rigor e os desafios que a pesquisa etnográfica impõem.
O livro de Rhuann destaca-se, também, pela forma como discute
o lobolo, desde os elementos históricos pré-coloniais, aos tempos que
correm passando pelo período imediatamente a seguir à independên-
cia, quando esta prática cultural resiste a toda propaganda depreciati-
va e às tentativas de sua invisibilização postas em marcha pelos sujei-
tos políticos e dirigentes do recém-proclamado Estado moçambicano.
Uma das linhas teóricas defendidas pelo livro é a necessidade
de se estabelecer um diálogo com debates que ajudam a dissipar os
equívocos e mal-entendidos à volta da construção e reprodução da
consciência histórica e prática da identidade do lobolo, em que os
antepassados e a espiritualidade ocupam um lugar central.
Assim, o lobolo é prioridade, para a maioria das famílias, porque é
um meio pelo qual se adquire legitimidade no matrimônio e o equilí-

CAS A M E N TO T R A D I C I O N A L B A N T U 17
brio necessário com a espiritualidade, através do sincretismo religio-
so, da integração do mundo dos vivos e do mundo dos mortos, como
sinal de interdependência entre estes dois mundos. Deste modo,
persistir na retórica que associa esta prática com questões econômi-
cas, é uma leitura que revela que não se compreende o verdadeiro
significado da prática, é perder de vista aquilo que, verdadeiramente,
é mais importante na cerimônia: os aspectos simbólicos e sociologi-
camente relevantes para as famílias envolvidas.
Como se pode notar, devido à trajetória que contribuiu para a
elaboração deste livro, ao conteúdo que versa e à sua relevância e
atualidade para a sociedade moçambicana — e não só —, apraz-me
dizer que ele representa uma fonte de inspiração para todos os jo-
vens universitários que hoje estão na condição na qual se encontrava
Rhuann em 2018, primeiro como meu estudante e, depois, no mes-
trado, quando fui coorientador da sua dissertação. Por isso, recomen-
do sua leitura em duas perspetivas: (i) como material de consulta; e,
(ii) como um exemplo de renovação da confiança, do potencial e da
capacidade para que se desenvolva um pensamento livre, crítico e
reflexivo, do qual podem resultar novos trabalhos de referência para
outros estudantes, à semelhança desta obra.
Portanto, o livro Casamento tradicional bantu: o lobolo no sul de
Moçambique é um convite para os leitores refletirem sobre o signifi-
cado cultural dessa forma de união entre duas famílias, a pertinên-
cia social e os modelos de realização atualmente vigentes. Por tal
conjunto de fatores, para mim, este livro representa um contributo
assinalável no debate teórico em torno do lobolo.

Maputo, Moçambique, 25 de outubro de 2022.

Aurélio Augusto Miambo é doutor em Antropologia pela


Université Sorbonne Paris Cité (USPC) com a tese O proble-
ma dos refugiados e as modalidades de acesso ao direito de asi-
lo em Moçambique (1975-2017). Atualmente, é professor de
Antropologia na Universidade Pedagógica de Maputo (UP).

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