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Pediatria em destaque

Opinião sobre as ações básicas da saúde de criança e adolescente e da clínica pediátrica

O PAPEL DO PEDIATRA NA ASSISTÊNCIA INTEGRAL


THE ROLE OF A PEDIATRICIAN ON INTEGRAL ASSISTANCE

Maria Haydée Augusto Brito

Pediatra Neonatologista. Mestre em Saúde da Criança e do Adolescente pela Universidade Estadual do Ceará
(UECE). Doutora em Pediatria pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Desenvolvimento Infantil pela
Universidade Federal do Ceará (UFC). Formanda em Psicanálise pela International Psychoanalytical Association
(IPA).

Resumo Abstract

Nos últimos anos, a clínica pediátrica vem supe- In recent years, pediatric clinics has been on its
rando a prática antiga, cujo objetivo parecia res- way to overcoming the old practice, which see-
trito aos aspectos orgânicos e à medicalização. med to be restricted to organic aspects and to me-
Do mesmo modo, a puericultura, que se limitava à dicalization. Child care has likewise gone beyond
transmissão de noções e técnicas sobre cuidados the simple teaching of notions and techniques re-
de higiene e nutrição da criança, passou a abran- garding child hygiene and nutrition to include ac-
ger ações voltadas para a promoção da saúde e tions aiming promotion of health and integral as-
para a assistência integral. Hoje as rotinas pediátri- sistance. Modern pediatric procedures emphasize
cas enfatizam, além do tratamento e da prevenção not only disease prevention and treatment, but
das doenças, a promoção de melhor crescimento also promotion of better growth and more appro-
e desenvolvimento mais apropriado. A individua- priate development. Individualization of care and
lização do cuidado e a preocupação com a saúde attention to mental health complete the pediatric
mental completam a abordagem pediátrica. approach.

Palavras-chave: Assistência Ambulatorial, Pedia- Keywords: Ambulatory Care, Pediatric, Health


tria, Promoção da Saúde. Promotion.

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Brito MHA

A clínica pediátrica vem apresentando mudanças crônicas e/ou que cursam com deficiências, ne-
em seu paradigma tradicional e adotando um mo- gligência, maus tratos e abuso sexual, gravidez
delo de atenção em que o processo saúde-doença na adolescência, alcoolismo, uso de drogas, de-
na criança está deixando de ser tratado com foco pressão, isolamento, suicídio e tantas outras que
exclusivamente nos problemas orgânicos e pas- podem vir a interferir no crescimento e no desen-
sando a ser visto como fenômeno complexo que volvimento.
resulta da interação de aspectos biológicos, psi-
coafetivos, sociológicos, ambientais e culturais. Tais condições se constituem como desafios para
os quais urge que se criem estratégias de manejo
Tal tendência pode ser percebida quando se ob- e prevenção, pois como o crescimento e o de-
servam, por exemplo, as ações em prol do alei- senvolvimento humanos dependem das relações
tamento materno que, cada vez mais, se funda- entre múltiplos fatores interdependentes, o pedia-
mentam em abordagens compreensivas, ao invés tra deve tomar para seu âmbito de interesse tudo
de se basear em argumentos meramente explica- aquilo que favorece ou que entrava a adequação
tivos. Ou, em outro exemplo, a normatização feita de tais processos.
pelo Ministério da Saúde para a atenção humani-
zada ao recém-nascido de baixo peso1, na qual se A sociedade humana exige cuidado e o significado
pode ver, de forma consistente, a idéia de assistir desse termo, compreendido e trazido ao âmbito
a criança inserida em seu ambiente e em sua his- do cuidado com a saúde da criança, implica em
tória, com ênfase na individualização do cuidado atitude de ocupação, de preocupação, de respon-
e na subjetividade. sabilização e de envolvimento afetivo com o ou-
tro4; em outras palavras: a sociedade exige que se
As consequências dessas mudanças favorecem promova a saúde em seu conceito mais pleno.
os pacientes pediátricos que, como se sabe, ex-
perienciam seus problemas em todos os níveis de Na tarefa do pediatra encontra-se o ponto fun-
sua realidade, a saber: o corpo, a mente, o espí- damental da promoção da saúde que é cuidar
rito e a sociedade à qual pertencem. E, como to- do crescimento e do desenvolvimento humanos.
dos esses níveis estão impregnados por valores, Com incursões que começam na vida intra-uterina
crenças e pré-juízos, impõe-se que o pediatra co- e vão até a maturidade, a promoção da saúde é
nheça os mais diversos aspectos implicados nas inerente à atividade pediátrica. Para Marcondes5,
situações em que se encontram as crianças e os o pediatra tem como característica essencial uma
adolescentes os quais assiste2. profunda identificação com as ações preventivas,
sem a qual não é pediatra.
O papel do pediatra consiste em acompanhar a
saúde da criança e do adolescente, de modo a Promover saúde significa assistir a criança e o
ajudar cada paciente a superar os problemas com adolescente em todas as dimensões e isso con-
os quais se depara na vida e a contribuir para que duz a uma redefinição da prática pediátrica que,
o potencial trazido ao mundo por cada criança de acordo com Leite6, passa pela aquisição de
possa se expressar da maneira mais completa e atributos intelectuais, técnicos e psicoafetivos,
harmônica que seja possível. capazes de compor um instrumental que permita
ao pediatra compreender sua atividade no contex-
As condições mórbidas que podem atingir a crian- to social e histórico em que a desempenha.
ça envolvem, além das doenças em si, situações
como dificuldades de aprendizagem, sequelas de Uma aplicação de tal compreensão pode ser vista
câncer ou de tratamento intensivo, enfermidades quando Martinez7, ao discutir o problema do baixo

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peso ao nascimento, pondera sobre os avanços mento atualizados em um momento de fragilidade


obtidos na redução da morbimortalidade de bebês emocional da gravidez ou do período pós-parto
prematuros. Para o autor, a crescente sobrevivên- podem dificultar o contato intimo e direto da mãe
cia de bebês nascidos cada vez mais imaturos e com seu bebê. Podem atuar como fantasmas e
o fato de não haver redução significativa da inci- gerar violência na relação entre pais e filhos pe-
dência de muito baixo peso chamam atenção para quenos como foi descoberto em uma pesquisa,
a distinção a ser feita entre avanços científicos cujos resultados inauguraram a psicoterapia
e inovações tecnológicas, pois a incidência de pais-bebê nos Estados Unidos12.
partos pré-termos permanece entre 7 e 12%, há
trinta anos, nos países desenvolvidos, apesar dos Puccini e Bresolin13 estudaram dores recorrentes
progressos da obstetrícia moderna e da medicina na infância e, após registrarem baixa ocorrên-
fetal8. cia de causa orgânica para a queixa, verificada
em apenas 5% a 10% dos casos, sugeriram que
Talvez seja preciso buscar ângulos ainda não es- crianças e adolescentes com dores recorrentes
clarecidos da constituição desse fenômeno: Ha- sejam acompanhadas pelo pediatra em ambula-
veria a possibilidade do parto prematuro não ser tórios, unidades básicas de saúde ou consultó-
determinado, exclusivamente, como se crê, por rios privados. Para os autores, nesses serviços
causas orgânicas? Poderia haver uma dificuldade há mais condições para estabelecimento de vín-
prévia e inconsciente que contribuísse para de- culo afetivo na relação médico-paciente, permi-
sencadear o parto prematuro, como interroga Ma- tindo uma atenção integral à saúde. Recomen-
thelin9, enveredando por um viés psicanalítico? dam, ainda, que seja feito um esforço conjunto
no sentido de melhorar a qualidade de vida da
Não se pode considerar inusitada tal assertiva criança e consideram fundamental a realização
uma vez que o saber médico reconhece que es- de uma abordagem que apreenda não apenas as
tados e reações psíquicas manifestam-se como características da dor e de suas manifestações,
sintomas orgânicos quando aborda a questão dos mas que seja capaz de perceber a criança em
transtornos psicossomáticos. sua subjetividade.

No campo da pediatria, a ponte entre o psíquico Os fatores ambientais, de acordo com Halpern e
e o somático é muitas vezes enfocada, como se Figueiras14, têm um papel importante na gênese
faz notar quando se estuda a associação entre dos problemas emocionais da criança; enquanto
gravidez não planejada e/ou não desejada e maior outros autores afirmam que pensamentos, sen-
incidência de situações de alto risco para a mãe timentos e comportamentos imbricam-se com
e o bebê10. problemas orgânicos e repercutem na saúde físi-
ca e mental, como relatam Russek e Schwartz15
Ou quando se analisam os efeitos da separação ao provarem que o modo como a pessoa sente-
entre a mãe e o bebê11, apontando-se para pre- se em relação aos cuidados que lhe foram dis-
maturidade e para internação precoce e prolonga- pensados na infância associa-se às doenças que
da em UTI neonatal como determinantes de risco apresenta na meia-idade.
para distúrbios de crescimento e desenvolvimen-
to, ocorrência de negligência e abuso parental em Ansiedade e depressão desencadeiam altera-
relação à criança. ções das funções endócrinas e imunológicas e
aumentam a propensão a diversas enfermida-
Recordações da infância, experiências do passa- des orgânicas, como retardo na cicatrização de
do, ou padrões de pensamento e de comporta- feridas16, por exemplo, anunciando a existência

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de uma trama entre o psíquico e o orgânico que Houve aumento na prevalência de depressão
desempenha um papel fundamental no processo na infância e adolescência e essa tendência vai
saúde/doença. acentuar-se nos próximos anos18, de modo que as
crianças estarão, cada vez mais, expostas a esse
De acordo com a Organização Mundial de Saú- risco. Isso torna essencial o desenvolvimento de
de (OMS)17, no início desse século, cerca de 450 abordagens não apenas preventivas, mas promo-
milhões de pessoas sofriam transtornos mentais toras da saúde mental, sendo função do pediatra
ou neurológicos ou tinham problemas psicosso- identificar e intervir precocemente nos fatores de
ciais como os relacionados com álcool e com risco para o desenvolvimento desses distúrbios.
uso indevido de drogas, sendo a depressão uma Cabe aos pediatras, como afirmava Winnicott
das principais causas de incapacidade em todo o (1999, p.20)21, o cuidado “com a riqueza da per-
mundo. sonalidade [...] e com a capacidade de ser feliz,
bem como com a capacidade de revolucionar e
Além disso, a OMS denunciou que os governos rebelar-se” de cada paciente.
e a comunidade de saúde pública têm sido ne-
gligentes no tocante à questão da saúde mental, Os resultados de estudos como esses sustentam
pois apesar da alta prevalência e da disponibili- a idéia de que o modelo clássico de puericultu-
dade de meios e conhecimentos científicos capa- ra, baseado em ações tradicionais como moni-
zes de ajudar as pessoas que apresentam esses toração do crescimento, orientação nutricional e
problemas, a abordagem à saúde mental não é imunizações, não realiza a atenção integral à faixa
satisfatória. etária pediátrica. É preciso incluir, na anamnese
tradicional, questões que investiguem linguagem,
Do mesmo modo não tem sido dada atenção à escolaridade, disciplina, sociabilidade, sexualida-
saúde mental durante a infância e a adolescência, de, rotina de vida, audição, visão, memória, racio-
embora os transtornos mentais também sejam cínio, ou seja, todas as condições que concorrem
frequentes nessas faixas etárias. O interesse cien- para o pleno desenvolvimento da pessoa.
tífico por doenças como depressão em crianças
e adolescentes tornou-se mais visível somente a A assistência à criança envolve tanto saúde físi-
partir da década de setenta18, pois até que o Ins- ca como saúde mental que se constituem como
tituto Nacional de Saúde Mental dos EUA (NIMH) aspectos interdependentes da saúde, cuja separa-
reconhecesse oficialmente, em 1975, a existência ção é teórica. Enfermidades mentais e orgânicas
da depressão em crianças e adolescentes, acre- distinguem-se apenas por serem expressões dife-
ditava-se que o transtorno fosse raro ou mesmo rentes do processo saúde-doença, mas derivam,
inexistente nessa faixa etária19. igualmente, de desequilíbrios na combinação de
fatores biológicos, psicológicos e sociais que se
Para Guédeney20, pobreza, separação precoce e interconectam por diversas vias.
prolongada entre a criança e seus cuidadores pri-
mários, alcoolismo e violência na família são as A assistência pediátrica deve ser de tal modo que
situações que, mais frequentemente, trazem esse garanta como vocação primordial que a aborda-
perigo de depressão, porque interferem na forma- gem da saúde da criança e do adolescente seja
ção do apego, ou seja, na vinculação que supre a integral, ou seja, que reúna tanto aspectos orgâ-
necessidade primária que a criança pequena tem nicos como aqueles concernentes ao psiquismo e
de proximidade e de sentimento de segurança em ao meio ambiente físico, social ou cultural.
relação aos pais.

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Conflito de Interesse: Não declarado CORRESPONDÊNCIA:

Maria Haydée Augusto Brito


E-mail: haydeebrito@gmail.com

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