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Uma conversa franca com um gênio do humor sobre sua intimidade,

seus casamentos, sua namorada, suas facas e revólveres, Brizola

e Mastroianni, a arte de fazer graça e quanto, afinal, ele ganha.

Quando José Eugênio Soares desistiu de fazer concurso no Instituto Rio Branco, trinta anos
atrás, o Itamaraty perdeu o que poderia ter sido um magnifico diplomata. Afinal, José
Eugênio já aos 18 anos falava cinco idiomas além do português, fora educado em Lausanne,
na Suíça, e tinha sido aprovado nos rigorosos exames de seleção da Universidade de
Cambridge, na Inglaterra. Se o Itamaraty saiu perdendo, o Brasil inteiro, em compensação,
ganhou Jô Soares, esse campeão do bom humor, do bom gosto e da alegria de viver. Um
dos maiores ibopes da televisão brasileira e um extraordinário showman que, entre outras
proezas, detém o recorde provavelmente mundial de ter feito sozinho no palco mais de mil
vezes um único espetáculo — Viva o Gordo e Abaixo o Regime — em apenas duas cidades,
Rio e São Paulo, entre 1978 e 1983. Seu espetáculo atual, Um Gordoidão no País da Inflação,
o seu quarto one man show, segue a mesma trilha: depois de um ano e meio de sucesso no
Rio e outro tanto em São Paulo, começa este mês, pelo interior de São Paulo, uma sucessão
de temporadas que se estenderá a Brasília, ao Estado do Rio e às principais capitais
brasileiras ao longo de 1987.

Mas não é só: com o Viva o Gordo brilhando como sempre na tela da Globo, ele já começa
a bolar novos quadros e personagens para o programa do ano que vem, ao lado de seus
amigos e colegas de criação humorística Max Nunes e Hilton Marques. Depois de dezoito
anos, Jô voltou a pintar e expôs, semanas atrás, com sucesso, na Galeria Ipanema, no Rio.
Ele planeja ainda uma exposição em São Paulo e comete periodicamente artigos de humor
na imprensa. Entre um comercial e outro que consegue encaixar em sua trepidante agen-
da — ele fez este ano campanhas para os televisores Philips e tintas Suvinil e tem
programada outra para os molhos Pomarola — Jô já programa o próximo show, que quer
estrear em janeiro de 1988, no Rio. E, como se tudo isso não bastasse, animado com o
computador pessoal que passou recentemente a usar para redigir e armazenar ideias, anda
flertando de novo com um antigo projeto: escrever um romance, tendo como tema a cidade
de São Paulo e alguns de seus personagens.

Não é de estranhar, assim, que sua namorada e paixão há dois anos e meio, a estudante de
Comunicação Visual na PUC carioca Flávia Maria Gusmão Junqueira Pedras, a Flavinha ou
"Bitica", como é tratada por Jó, diga: "Tenho 22 anos, o Jô tem 48 — mas muitas vezes eu
não aguento o pique dele". É esse pique que faz Jô ler ou pelo menos correr os olhos em
sete ou cinco jornais diários, dependendo de estar em seu belo apartamento de cobertura
na Lagoa, no Rio, ou sua confortabilíssima casa no Jardim Paulista, em São Paulo. Ele
também é leitor regular de PLAYBOY, devora religiosamente Veja aos domingos, folheia e
xereta várias outras publicações e nunca dorme sem ler livros — de Rubem Fonseca a Kurt
Vonnegut Jr., do contista "marginal" americano Frederick Well aos clássicos franceses. Seu
interesse parece inesgotável. Ele é capaz de interromper por instantes a gravação de um
comercial para mandar Pepê, supersecretário há oito anos, ir para casa gravar um capítulo

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de uma mini-série da televisão a que ele assistirá de madrugada. Ou, então, de alugar dois
filmes para ver durante uma viagem Rio-São Paulo feita a bordo de sua nova e bela picape
F-1000 cabine dupla, que tem TV, videocassete, geladeira e uma mini-despensa. "Estradas
são sempre perigosas", diz Jô. "Então eu queria uma coisa grande, sólida, e como não tem
tanque de guerra à venda, a não ser para o exterior...", brinca ele. (Seus outros carros são
um Monza SR Branco, em São Paulo, e, no Rio, um fusquinha para serviços gerais e uma
réplica brasileira de Porsche, conversível, vermelha, que ele brinca ser "uma Brasília
enfeitada". A picape e o Monza ele comprou com o produto da venda de uma jóia
esplêndida que enfeitava sua garagem e suas incursões noturnas: uma Mercedes-Benz
verde metálico 1978.)

É essa ligação constante com o que está acontecendo que permite a Jô recriar a cada nova
apresentação seu show no teatro, e gravar, diariamente, seu comentário-relâmpago no
Jornal da Globo. Toda essa frenética atividade não impede que ele seja um namorado
dedicado e romântico, um amigo dos amigos — "às vezes subo à sala do Boni [seu amigo há
26 anos] na Globo só pra dar um beijo nele, dizer `tô morrendo de saudades' " —, um pai
terno e orgulhoso de Rafael, 22 anos, que vive no Rio com a mãe, a atriz Thereza
Austregésilo, primeira mulher de Jô, sua sócia e amiga até hoje. "Rafinha" nasceu uma
criança-problema, mas é um rapaz criativo, executor de Bach e Beethoven ao piano — foi
ele, aliás, quem compôs a música de abertura de Viva o Gordo e Abaixo o Regime.

Irrequieto e irreverente, Jô sempre foi — desde o tempo em que, filho único e morando
com os pais na cobertura do anexo do Copacabana Palace, no Rio, vestia uma capa e fingia
que ia se atirar lá de cima na piscina. "Os turistas americanos gritavam, apavorados, 'Please,
don't do it"; diverte-se ele ainda hoje. Foram justamente pessoas de teatro e show business
que o conheciam da piscina do Copa, como o dramaturgo e homem de TV Silveira Sampaio,
já falecido, que, atraídos pelas brincadeiras e números inventados por Jô, acabaram por
levá-lo a redator de programas na antiga TV Rio. Nessa época, por volta de 1957, ele
conheceu Tônia Carrero, Paulo Autran e Adolfo Celi — e foi "mais ou menos por aí";
segundo ele próprio avalia, que tudo começou.

Foi, como se sabe, uma trajetória riquíssima. Além de seus próprios shows, Jô fez ou
participou de quase duas dezenas de programas de sucesso na televisão, do Simonetti Show
na antiga Excelsior (onde substituiu Boni como redator) à inesquecível Família Trapo na
Record, ou ao criativo Planeta dos Homens, na Globo. Fez cinema, inclusive como diretor (O
Pai do Povo, de 1978— "filme quase secreto, ninguém viu", brinca), no teatro dirigiu de
Shakespeare a Dürrenmatt, de Millôr Fernandes a Neil Simon. Além de tudo, toca bongô e
piston, é exímio atirador — com revólver 38 ou pistola Magnum —, é altamente político
sem ser partidário, brinca com a religião mas é devoto de Santa Rita de Cássia, e entende de
futebol com a autoridade de quem assistiu in loco à Copa de 1954, torce com fanatismo
pelo Fluminense e tem enorme ternura pelo Corinthians. "Oiô é inesgotável': decreta seu
grande amigo Roberto Colossi, que trabalha com ele há 24 anos e é seu empresário
exclusivo há doze. Para entrevistar este personagem riquíssimo do mundo brasileiro dos
espetáculos, PLAYBOY designou o editor especial Ricardo A. Setti. Seu relato:

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"Para mim, foi uma missão muito especial desde o início. Pudera: quem começou a
entrevistar Jô para PLAYBOY foi Thomaz Souto Corrêa, que além de seu amigo pessoal há 26
anos é não apenas um experiente jornalista como também o diretor da divisão da Editora
Abril a que a revista está subordinada. Eu tinha, então, a responsabilidade de manter a
qualidade que Thomaz imprimira às primeiras duas horas de gravação.

"A tarefa, contudo, tornou-se duplamente especial pela figura que Jô Soares é. Depois de
acompanhá-lo durante oito dias, eu o definiria como um furacão carinhoso. Estive com ele
nos bastidores de seu show, em São Paulo, durante a feitura de Viva o Gordo no Teatro
Fênix da Rede Globo, no Rio, assisti á filmagem de quatro diferentes comerciais seus na
Lynxfilm, em São Paulo, e vi Jô gravar seus flashes para o Jornal da Globo na sede da
emissora, também em São Paulo. Gravamos um pouco nos intervalos desse frenético corre-
corre, mas a maior parte da entrevista foi feita em sua bela casa paulistana de dois andares,
piscina, árvores frondosas, lareira e vasta biblioteca, próxima ao Parque do Ibirapuera,
cuidada pelo casal de caseiros Francisco e Salete. A primeira sessão em sua casa começou à
meia-noite de um dia em que Jô tinha filmado por dez horas seguidas no tórrido estúdio da
Lynxfilm. Na noite anterior, depois de trabalhar durante catorze horas em Viva o Gordo, ele
só dormira três — e posso jurar que estava lépido como quem acabou de acordar e tomou
um bom banho.

"Com Jô, o velho chavão de que humorista é sisudo na vida pessoal desaba
fragorosamente. Ele brinca o tempo todo, contando piadas, improvisando trocadilhos,
inventando apelidos, gozando a si mesmo — a um ponto tal que certos quadros do Viva o
Gordo n.° 210, a que assisti durante seis horas, tiveram que ser refeitos porque o clima de
bom humor a sua volta às vezes faz as pessoas rirem na hora errada. 'A equipe tem que
achar graça para dar certo', diz Francisco Milani, diretor do programa. `O astral dele é lá em
cima', atesta Cecil Thiré, antecessor de Milani no posto. Depois de conviver tão
intensamente com Jô, eu assinaria embaixo.

"Terminada a entrevista, com doze horas gravadas, ele me convidou para uma sessão de
queijos e vinhos junto a Flávia, sua namorada. Coma lareira acesa — fazia um frio de 10
graus — conversamos até de madrugada, às vezes coma presença de Jaime, um de seus
buldogues. (O outro, Eurico estava no Rio.) Na hora de me despedir, ocorreu-me fazer uma
última pergunta: 'Jô você é feliz?' Imediatamente me dei conta de que era uma pergunta
desnecessária.

PLAYBOY — Você já fez mais de 150 personagens diferentes até hoje. Qual foi a coisa mais
esquisita que teve que fazer para desempenhar um papel?

JÔ SOARES — Não foi nem no palco nem na televisão, foi num comercial de poupança em
que eu tinha que subir num elefante para mostrar um cofrinho [risos].

PLAYBOY — E como foi?

JÔ — Aí foi aquela história: onde é que tem a porra do elefante? Era lá em Campos, no
interior do Rio. Fazia um calor de 40 graus e eu entrei num circo pequeno, que tinha quatro
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elefantes e um domador alemão [risos]. Eu falei: "Ah, aí estão Os elefantes". E ele [imita o
sotaque, brincando]: "Nôn elefânde, é tudo elefanda. Elefânde hômen nôn deixa ninguém
montar, nôn. Elefânde de zirrrco é tudo mulher, nôn é hômen, nôn. Hômen fica lá na salva"
[risos]. Ele disse que eu podia escolher entre três. "Aquela quarta nôn pode, porque ela é
lôca" [risos].

PLAYBOY — Louca?

JÔ — Eu olhei pra ela e ela tinha um olho esbugalhado [risos]. E o alemão explicou: "Falta
de hômen" [risos]. Bem, eu montei numa elefanta que estava ao lado da maluca. Quando
montei, as elefantas acharam que era número de circo, começaram a levantara pata, a se
abaixar, e eu gritando: "Pára com esse negócio! Segura isso!" [Risos.] O alemão rolava no
chão de rir, dizia: "Ah! Ah! Elas pensam que estão na zirrrco! Ah! Ah!" E não tomava a
menor providência. Enquanto isso, a elefanta maluca me tentava pegar com a tromba. E eu
com o cofrinho na mão [gargalhada]. O mais maluco foi que depois de tudo isso o diretor do
filme disse: "Não ficou bom, não". Me mandou descer da elefanta, subir numa escada com o
cofrinho e aí filmou, porque tinha chegado à conclusão de que, do jeito que tinham feito, eu
e a elefanta não aparecíamos direito juntos no mesmo filme, a elefanta aparecia em outro
plano. Então, fui filmado na escada, deram um take inteiro da elefanta e ficou parecendo
que eu estava cavalgando um elefante. Ou seja, tudo aquilo de antes foi em vão [risos].

PLAYBOY — E qual foi a situação mais difícil que você viveu num palco?

JÔ — Só vivi uma situação extremamente difícil. Foi na peça Oscar [1961], que eu fiz com a
Cacilda [Becked] e o Walmor [Chagas] em São Paulo. O teatro tinha uma escada em espiral e
eu devia fazer uma entrada no meio do terceiro ato. Na hora, desci correndo e quebrei o pé.
Tive que fazer quase o ato todo com o pé quebrado. Doía que era uma loucura.

PLAYBOY — E platéia que não ri, já aconteceu?

JÔ — [Rindo] Graças a Deus, não. Mas uma vez num show sentou um sujeito na primeira
fila, no meio, e durante duas horas ele conseguiu não esboçar um único sorriso! E foi um
daqueles espetáculos quentes, as pessoas rindo barbaridade — mas o sujeito ficava assim
[fecha a cara]. Quando acabou, o público aplaudia de pé e ele nem esperou, foi logo saindo.
Agora eu me pergunto: por que foi que esse filho da puta fez questão de sentar na primeira
fila? [Gargalhada]

PLAYBOY — Como humorista e comediante, com o quê você gosta mais de brincar?

JÔ — Como ridículo, que vem justamente de riso, né? Com a seriedade, a austeridade, a
pompa, a hipocrisia.

PLAYBOY — Você se lembra da primeira vez em sua vida em que você fez sucesso, em que
montou alguma coisa e pensou: "Opa, me dei bem"?

JÔ — Acho que isso já aconteceu quando eu falei pela primeira vez. Pelo seguinte: até os 2
anos e pouco eu não falava. Meu avô dizia à minha mãe: "Que pena, Mercedes, você teve

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um filho aos 40 anos de idade e saiu um menino mudo" [risadas]. Eu ria muito, mas não
falava. Aí, um dia, mamãe estava sentada lendo ao lado do berço e eu brincava com latas de
talco vazias, que eram a coisa de que eu mais gostava. Eu pegava as latas de talco e jogava
no chão. Ela punha no berço de novo e dizia: "Menino, não faz mais isso". Aí eu pegava e
jogava de novo. Então, lá pela terceira ou quarta vez, ela disse: "Não faz mais isso que a
mamãe vai ficar zangada com você, vai fazer pam-pam em você". Ela se virou, e eu joguei de
novo. Ela ficou doida e, quando se voltou para mim, eu falei: "Caiu..."

PLAYBOY — Quer dizer que já da primeira vez que você falou foi, de certo modo, uma
piada...

JÔ — É, só falei quando houve necessidade, e já para fazer uma gracinha. Aí foi um corre-
corre. "Ele fala, ele fala!" [Gargalhada] Então eu vi que aquele negócio funcionava — e não
parei até hoje [risada].

PLAYBOY — Você tem medo de perder a graça?

JÔ — Graça é coisa que não se perde. O humorista só perde a graça se ficar reacionário, se
começar a ter preconceitos, a dizer: "Ah, esse assunto eu não abordo, com essa coisa eu
não brinco".

PLAYBOY — E você brinca com tudo?

JÔ — No meu primeiro show eu tinha um quadro que era a Última Ceia filmada pelo Actor's
Studio. Tinha o Marlon Brando de Cristo, a família era como se fosse assim tipo de filme de
gângster, e quem vinha cercar a casa era o tenente Pilatos. E eu fazia em inglês, ainda tinha
essa cara de pau! Dizia: "Muito bem. Chrát! Jogue os milagres pela janela e saia com as
mãos pra cima!" [Risos] Aí tinha um tiroteio, e ele se entregava para que seus discípulos
pudessem sair pelo mundo disseminando sua palavra. A mãe, a Virgem Maria, dizia pra ele,
com sotaque italiano: "My son, please, não se entregue". E o Cristo [voz de Marlon Brando]:
"I have togo, Mom" . E ela: "Você é tão teimoso! Puxou seu Pai" [risos]. Então, não existe
tema intocável para o humorista. Respeito é outra coisa.

PLAYBOY — Um de seus mais célebres personagens foi o dr. Sardinha, inspirado no ex-
ministro Delfim Netto. Como ele reagiu, na época, a esse quadro?

JÔ — Foi um quadro bolado quando o Delfim foi nomeado ministro da Agricultura e que,
como muitas coisas da Velha República, parecia um absurdo total: chamar um ex-ministro
da Fazenda para a Agricultura. Então o dr. Sardinha era o administrador de um
supermercado que, das finanças, tinha sido colocado para tratar das frutas e legumes. Foi
ideia do Max Nunes. Só que o Delfim, que é indiscutivelmente um sujeito inteligente,
aproveitou o personagem: quando perguntaram sua opinião, ele disse que achava fantás-
tico, que morria de rir.

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PLAYBOY — Como o Delfim se comportou no primeiro contato pessoal que teve com você?

JÔ — Foi numa entrevista feita pela revista Manchete, durante um almoço. Depois
propuseram tirar uma fotografia. Eu estava com um terno azul igual ao dele [risos], mas eu
estava como Jô, e disse: "Me dêem um tempinho pra eu fazer o dr. Sardinha". Entrei no
banheiro, molhei o cabelo, botei pra trás, pus óculos — porque na realidade só com isso é
que eu compunha o personagem — e saí. Ele me olhou e falou [faz expressão de espanto
divertido]: "Mas é terrível!" [Gargalhada] Porque de repente foi uma transmutação, né? E aí
tiramos uma fotografia segurando um abacaxi [risos].

PLAYBOY — Ele se comunicou outras vezes com você?

JÔ — Uma vez ele me mandou uma carta bem-humorada dizendo que já estavam surgindo
no cenário político brasileiro [risos] outras pessoas que eram bem mais engraçadas do que
ele [risos], e se não era possível também criticar outros um pouco mais. De todo modo, tem
pessoas que não têm [em relação aos personagens] esse nível de sutileza.

PLAYBOY — Quem, por exemplo?

JÔ — O Carlos Átila [porta-voz da Presidência durante o governo Figueiredo], que ficava


indignado com o personagem [chamado, justamente, "O Porta-Voz"] [risos].

PLAYBOY — O Porta Voz foi retirado do ar em maio de 1984. Você poderia reconstituir o
episódio?

JÔ — É impossível reconstituir esse episódio pelo seguinte: ele nega que tenha pedido para
tirar do ar [risos]. E, ao mesmo tempo, ele foi tirado do ar a pedido dele. Quer dizer, foi uma
coisa feita tão através de porta-vozes [risos], que fica impossível de se definir. Acho que, se
em vez de ser porta-voz ele fosse voz, e viesse a público dizer [mudando o tom] "eu acho
aquele porta-voz engraçado", ou "o que a gente sofre como porta-voz", você já pensou?
Porque o personagem não era propriamente contra ninguém, era um retrato do patético e

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do difícil de ser porta-voz [naquela época]. Mas o problema do porta-voz é que de repente
[ar irônico] ele assume tanto seu papel que ele vira a voz que ele não é.

PLAYBOY — A "voz" que o Carlos Átila portava parece que também não recebia as suas
gozações muito bem, não? Como foi seu encontro casual com o ex-presidente Figueiredo?

JÔ — Eu estava indo para a gravação de um comercial em São Paulo e de repente, na Aveni-


da Brasil, apareceu um Landau preto, enorme, cheio de antenas. O [Roberto] Colossi ainda
brincou: "Será que tem uma autoridade ali dentro?" Eu, de pura gozação, disse: "Pelo
número de antenas, no mínimo deve ser o Figueiredo". Aí o carro do Colossi emparelhou
com o Landau e era mesmo o Figueiredo, já ex-presidente, junto com o [empresário e amigo
pessoal George] Gazale e uma terceira pessoa que não tenho certeza quem era, mas o Co-
lossi acha que era o [ex-ministro da Aeronáutica, brigadeiro] Delio Jardim de Mattos. Os dois
me cumprimentaram, rindo, e eu cumprimentei o Figueiredo também: "Oi, presidente, tudo
bem?" Ele olhou para mim [faz careta] , fez um muxoxo e virou o rosto pro outro lado
[gargalhada]. E acabou sendo engraçado, porque fechou o sinal e nosso carro logo ficou
cercado de gente pedindo autógrafo. O Colossi gritava assim: "Presidente, olha só o que é
popularidade" [gargalhada] .

PLAYBOY — E o vice de Figueiredo, o hoje ministro Aureliano Chaves, como reagia ao


personagem que você criou do Vice, o que nunca assumia?

JÔ — O Vice no começo não falava no Aureliano: era só a observação de que vice não
assumia, vice não era nada... Mas um dia o Aureliano deu uma declaração que ia contra o
Figueiredo — depois de o Figueiredo já ter dado mil desmentidos sobre coisas que dizia. E
foram perguntar ao Aureliano no dia seguinte se ele tinha algo a acrescentar, se era aquilo
mesmo, e o Aureliano: "Quando eu falo eu sei o que estou dizendo, não preciso dar
desmentido". Foi em pleno Jornal Nacional, uma porrada. A partir disso, no próximo quadro,
eu dizia: [Faz sotaque nordestino esganiçado] "Vice não é nada. Tirante Aureliano, que
fala — porque vocês viram, esse fala —, o resto, ó". E ele me telefonou para agradecer.

PLAYBOY — Telefonou?

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JÔ — É, e foi engraçado porque uma vez eu estava chegando na Globo e ele estava saindo
com o dr. Roberto [Marinho, presidente das Organizações Globo]. O dr. Roberto falou: "Ô,
Jô, como vai? Conhece aqui o vice-presidente?" Eu falei: "Sim, claro. E muito obrigado pelo
seu telefonema, dr. Aureliano, foi muito carinhoso", e tal. E aí o dr. Roberto ficou olhando
espantado, como se imaginasse: "O que será que o Aureliano telefonou pra ele, e pra quê?"
[Risos] Aí, o Aureliano foi embora e, quando subi no elevador com o dr. Roberto, contei o
caso para ele.

PLAYBOY — Falamos de vários de seus personagens até agora. Como é que eles morrem?
Quando é que você os mata?

JÔ — No caso de Viva o Gordo, a gente pára de fazer quando termina o ano. Então eles não
têm uma morte, ficam num estado de hibernação. Quando é possível voltar a usar um per-
sonagem antigo, a gente usa. Acho sempre melhor tirar personagem do ar deixando sau-
dades do que dizer: "Pô, esse já encheu".

PLAYBOY — Qual é o personagem que você mais gosta ou gostou de fazer?

JÔ — Eu não sei. Gosto muito de fazer todos. O Gardelón. Essa velhinha que estou fazendo
agora eu adoro. Eu gosto de fazer o Vira-Mão, aquele dr. Ariel que de repente é obrigado a
fingir que é bicha. Tinha um personagem que eu adorava fazer que era o Figurante, porque
acho figurante uma figura patética, extraordinária. Acho que figurante é padrão no mundo
inteiro, é sempre uma coisa surpreendente. Fui vero filme Sacco e Vanzetti, e de repente, na
cena em que estão levando os dois pra cadeira elétrica pelo corredor [risos], tem um guarda
que está na segunda fila que está chorando como um louco [gargalhada]. O figurante
assumiu aquela dor. Ele está sacudindo a cabeça [risos, e imitando] e chorando. O diretor
não percebeu, e depois deve ter dito: "Por que é que este filho da puta foi chorar?" É uma
coisa de segundos, mas eu tenho uma percepção visual muito grande. As pessoas podem

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pensar que meu sentido mais desenvolvido é o paladar, mas não é. E a visão [risos].

PLAYBOY — Depois de perguntar sobre morte de personagem, vale perguntar sobre o


surgimento. Por exemplo, o Gardelón, aquele argentino, um dos mais populares que você
criou, foi tirado da vida real?

JÔ — Foi inspirado num empresário argentino que já morreu, Luís Zapir, que também dizia
"muy amigo", só que em sentido diferente do que faz o personagem. Pra mostrar que era
um empresário por dentro, qualquer pessoa que você citava ele dizia: [faz a voz cava, rouca,
do personagem argentino] "Si, conozco, es muy amigo, muy amigo". Quando bolei pra fazer
o quadro, o Max Nunes — é aquele toque do gênio — disse: "Não, é melhor inverter. O cara
faz uma imensa sacanagem com ele e diz que é amigo dele. E ele então diz que sim, é `muy
amigo"'. Era para ser um bordão, uma coisa de 30 segundos, e acabou virando um quadro.
O personagem é muito rico.

PLAYBOY— Também muito popular era aquele português que dizia: "Q'rias, mas não t'os
dou". Existiu alguém assim?

JÔ — Sim. Era um português que conheci no Brasil, um comendador, que era uma figura
gozadíssima. Um nouveau riche, riquíssimo mas grosso, grosseiríssimo! Eu tinha 14 anos e
estava com meus pais em Montecattini, aquela estação de águas na Itália, e lá estava o
português. Um dia, a gente estava saindo do hotel — bem de estação de águas, aquela coisa
solene, de O Ano Passado em Marienbad [célebre filme do diretor francês Alain Resnais] —
com ele, e ia entrando uma mulher lindíssima, morena, alta, pele bem clara. Era uma
prostituta de luxo, e que foi pra cima dele xingando e reclamando: "Mascalzone! Sei un
mascalzone!" ("Salafrário! Você é um salafrario!") E ele, em português, respondia assim pra
ela: [Faz sotaque fortíssimo do personagem] "Não, não! Reclamas, mas não tens razão! Tu
querias 20 mil liras! Q'rias! Mas quanto vales? Vales zero! Dei-te 5 mil, lucraste 5 mil!" Todo
mundo no hall do hotel horrorizado, e meus pais e eu rindo às gargalhadas. Quando contei
essa história pro Max, ele disse: "É um quadro pronto. Vamos fazer". E o engraçado é que o
"q'rias" é um bordão que pegou inclusive em Portugal. O [jornalista e deputado] Sebastião

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Nery contou que estava num elevador de Lisboa, um dia, abriu a porta, o elevador cheio,
um cara de fora disse assim: "Mas eu queria descer". O elevador inteiro respondeu: "Q'ria,
mas não desces!" [Risos]

PLAYBOY — Mas esse novo personagem, o morador da fronteira Brasil-Uruguai que dentro
da própria casa tem que usar passaporte, certamente é imaginário.

JÔ — É criação totalmente abstrata. Mas o que a gente já recebeu de carta de Santana do


Livramento [cidade gaúcha na fronteira com o Uruguai] agradecendo aquele quadro! Um
senhor me escreveu pedindo que não citasse o nome dele mas dizendo que, na sua
juventude, tinha um bordei cuja casa ficava exatamente metade no Uruguai e metade no
Brasil. As moças cobravam ou em pesos ou em cruzeiros — ou mil-réis, sei lá. E era
engraçado, porque tinha sujeitos que diziam assim: "Então vamos transar lá no Brasil, que
aqui no Uruguai tá muito caro" [gargalhada] . Esse tipo de coisa já aconteceu várias vezes
comigo, mas ocorrer com um quadro surrealista desses é incrível, não? Ah! Dentro do
bordel ainda tinha um cara só para fazer câmbio, com uma caixinha e tudo!

PLAYBOY — Você tem inúmeros personagens femininos. Por quê?

JÔ — Todo comediante tem. O Chico [Anísio] tem uma porção, o Peter Sellers tinha uma
porrada, o Jerry Lewis. Todo comediante histriônico tem, porque é uma possibilidade a
mais. Da mesma forma que faço vários personagens com sotaque.

PLAYBOY — Mas não tem algo a ver com esse conceito tão contemporâneo de porção
mulher, do lado feminino?

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JÔ — Eu não sei se tenho. Mas acho que [se tiver] ponho pra fora muito bem, no sentido de
ser uma pessoa muito solta. Eu uso brinco, eu uso jóias, não tenho nenhum preconceito
nesse sentido, nenhuma rigidez.

PLAYBOY — Como surgiu a ideia de seu brinco?

JÔ — Acho que o brinco é quase uma fixação infantil, de filme de pirata que a gente vê, né?
Só que, na hora de você botar o brinco, você realmente não faz lembrar o pirata, mas a
mulher que usa brinco. Não tenho o menor problema nesse sentido. É evidente que,
quando uso um personagem feminino, uso todo um lado feminino que existe dentro de
todos nós... a não ser talvez no Rambo [risadas]. E no Ronald Reagan!

PLAYBOY — Proponho falarmos mesmo do lado masculino. Você é considerado um homem


bem-sucedido com as mulheres. Como é que começou? Quem foi sua primeira namorada?

JÔ — A minha primeira namorada — foi na Suíça, onde eu já estudava — era uma iraniana.
Lembro até hoje o nome: Omah Harieh. Eu tinha 13 anos.

PLAYBOY — E ela?

JÔ — Devia ter um ano a mais.

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PLAYBOY — Como é que era o namoro? Anos dourados?

JÔ — É, era certinho, tinha festinhas, a gente ia dançar. Namoro mesmo.

PLAYBOY — Uma forte paixão ou não? Você escrevia poesias para ela?

JÔ — Várias. Apaixonadíssimas.

PLAYBOY — Bonitinha?

JÔ — Era uma gracinha. Era bonitinha. A gente estudava na época com um rapaz chamado
Cyrus Sfandiari Bachtiari, que era primo da Soraya [ex-imperatriz do Irã].

PLAYBOY — Você era amigo do Aga Khan também, não?

JÔ — Conhecido. Amigo de frequentar e sair junto, não, porque havia uma rivalidade muito
grande entre nossas escolas: eu no Lycée Jacquard, o Karin no Rosey. Ele era um cara muito
bonito, um atleta extraordinário em todas as modalidades. E: era bem cê-dê-efe.

PLAYBOY — Paquerador?

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JÔ — Não, era uma pessoa super-sossegada.

PLAYBOY — Quanto tempo durou o namoro?

JÔ — Uns oito meses. Depois tive uma porção de namoradinhas assim de colégio. Mais tar-
de namorei uma moça que todo o colégio invejava, todo mundo achava lindíssima, uma
alemã filha de um magnata, a Angela Münemazin.

PLAYBOY — E como é que você conquistou a Angela?

JÔ — No charme. Muitas gracinhas, muito carinho. E uma coisa engraçada: fui passar um
mês na casa dela na Alemanha — coisa normal na Europa — e ela vinha me acordar às 10
horas para irmos à piscina. Mas eu levantava às 9h30, escovava os dentes, fazia a barba,
penteava o cabelo, trocava o pijama, botava um perfume, deitava e fingia que estava
dormindo. Aí ela dizia: "Você acorda de um jeito tão incrível!" [Risos]

PLAYBOY — E a descoberta do sexo, como foi?

JÔ — Bem, na adolescência a gente lê, vê revistas, vê mulher pelada. Eu me lembro de duas


coisas. Uma, no colégio São José, em Petrópolis, onde estudei mais ou menos dos 9 aos 12
anos. Tinha um aluno que escrevia livros eróticos, como se fosse um diário dele, e
emprestava pra todo mundo [risos]. Outra experiência maravilhosa foi quando a gente

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descobriu no colégio, na Suíça, que na casa em frente morava uma moça linda que ficava
pelada na janela. Isso dava para as janelas dos banheiros. Era uma fileira de binóculos [risos]
olhando para aquela moça tirando a roupa...

PLAYBOY — E a iniciação sexual com uma mulher?

JÔ — Tive uma iniciação sexual que, para um brasileiro, acho que foi tardia. Foi com 18
anos.

PLAYBOY — O fato de você ser um garoto gordo influiu ou era a questão do padrão
europeu, talvez uma dose maior de ingenuidade?

JÔ — Acho que é mais por aí. Não é que [as pessoas] fossem ingênuas, mas na minha época
de colégio, nos anos 50, a iniciação sexual na Europa era por volta dessa idade: 17, 18 anos.

PLAYBOY — Foi como? Com prostituta?

JÔ — É, foi um caminho meio ortodoxo [risos], já na volta ao Brasil. Claro que antes disso
eu tive relações amorosas com algumas namoradas na Europa que foram transas sexuais,
mas era uma coisa muito mais assim de se amassar, de se pegar e tal. Não no sentido clás-
sico do ato [risos]. Mas então foi dentro dos moldes mais machistas e mais profissionais
[risos] possíveis. Porque é uma coisa que fica na cabeça do homem, que ele tem que tran-
sar. Todo mundo mente, né, diz que já transou, acho que desde os 9 ou 10 anos de idade.
Aquilo já estava me deixando preocupadíssimo, alucinado [risos].

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PLAYBOY — Bem, mas todo mundo sabe que, depois, você parou de se preocupar. Você
inclusive adquiriu reputação como um cortejador, um homem galante. Como foi que você
conquistou Theresa, a sua primeira mulher?

JÔ — O que aconteceu foi o seguinte: o [jornalista] Ivan Lessa me convidou para assistir a
um Fluminense e Botafogo, que seria na noite seguinte. Como eu não tinha um tostão, ele
disse que compraria antes os ingressos e passaria pra me pegar. Mas ele me deu o cano. E aí
a única coisa que eu podia fazer de graça era ir ao teatro, porque eu já conhecia as pessoas
[do meio teatral]. A Theresa estava fazendo Pedro Mico, do Antonio Callado, com o Milton
Morais, no Teatro de Bolso, que pertencia na época ao [homem de teatro] Aurimar Rocha.
O Aurimar me conhecia de fazer números e brincadeiras em bares, de contar coisas, e me
apresentou à Theresa, já fazendo questão de que eu fizesse alguma coisa pra ela. Eu fiquei
encantado com a receptividade da Theresa. Depois ela me disse: "Vamos sair e você me
deixa em casa, eu moro aqui perto". A gente saiu e ela pegou a minha mão. Fiquei muito
tocado com aquilo. Aí fui ver a peça de novo, fui mais uma vez, fui outra, outra... Cada vez ia
levando uma rosa, um presente...

PLAYBOY — De rosa em rosa, você acabou casando.

JÔ — Por coincidência, o Aurimar, que produzia Pedro Mico, ia montar A Compadecida, do


Ariano Suassuna, e me convidou para fazer o papel do bispo. Foi em 1959, minha primeira
coisa em teatro, quase concomitante aos convites que vieram logo após para fazer tele-
visão. Eu tinha recusado muitos convites, e a Theresa me falou: "Você tem que começar por
alguma coisa, senão você não começa nunca". Então eu casei, e o engraçado é que no
começo quem sustentava a casa era a Theresa, porque eu não trabalhava, depois passei a
ganhar, mas pouquíssimo. Ela tinha um apartamento enorme, e tudo, e eu disse: "Dei o
golpe do baú".

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PLAYBOY — E como foi seu caso de amor com a Sílvia Bandeira?

JÔ — Eu já tinha convidado a Sílvia para uma peça que eu estava dirigindo, O Estranho
Casal, de Neil Simon, mas ela não fez. Anos depois, em 1980, eu a encontrei quando estava
preparando um espetáculo chamado Brasil, da Censura à Abertura e a Sílvia me disse que,
se eu voltasse a fazer um convite, ela aceitaria. Ela foi assistir ao meu show Viva o Gordo e
Abaixo o Regime e aí... Foi uma coisa assim, daquelas de paixão, foi uma coisa insegurável,
uma daquelas paixões que acontecem na sua vida e são irremediáveis. Tanto que eu
cheguei em casa — foi muito doído, não? — e falei para a Theresa: "Olha, eu me apaixonei".
Ao mesmo tempo foi uma coisa bonita porque foi muito aberto, um jogo limpo. Por isso é
que eu acho que continuo muito amigo da Theresa até hoje e vice-versa. Teve que ser uma
coisa fulminante para você romper um relacionamento de vinte anos, que obviamente é um
relacionamento que deu certo. Aliás, uma relação não precisa durar tanto pra dar certo. No
momento em que duas pessoas têm interesse em estar juntas, já deu certo. O tempo, aí, já
e uma questão de relatividade, como dizia o Einstein [risos].

PLAYBOY — E o processo de conquista ou sedução da Sílvia, como foi?

JÔ — Fiz coisas que, sei lá, são do meu estilo. Um dia, por exemplo, ela e eu estávamos em
São Paulo, eu para gravar um comercial, ela gravando para o Telecurso. Eu ainda só estava
cortejando, não tinha havido ainda nada com ela. Ela tinha que acordar cedo e pediu no
hotel o café para as 6 da manhã. Aí eu acordei antes, me arrumei, fui pra porta [do
apartamento dela] e quando o garçom chegou eu falei: "Deixa que eu entro". Pus flores
num vasinho, bati na porta, e entrei servindo o café: [Com voz animada de garçom eficiente]
"Bom dia! O seu café!" [Risos]

PLAYBOY — Depois que você se separou da Sílvia, li uma declaração sua comentando que
tinha ficado 43 anos, sem intervalo, como filho e marido. E aí finalmente se sentia como aos
18 anos, recebendo a chave da casa — só que com cartão de crédito e carro na garagem.

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JÔ — E sendo um cara conhecido...

PLAYBOY — Foi quando suas amigas na Globo o apelidaram carinhosamente de Gordo


Galinha. Segundo consta, você transou com metade da praça.

JÔ — [Risos] A Ísis [de Oliveira] dizia... Bem, não é bem assim.

PLAYBOY — Mas se trata de reconstituir esse período, não de saber o nome das mulheres
com quem você transou.

JÔ — [Malicioso] Mas isso, mesmo que você quisesse, eu também não falaria [risos], não só
por uma questão de discrição, mas por uma questão de respeito. Não é uma coisa muito
nesse sentido. É que eu de repente comecei a usufruir de uma independência que eu
tinha — não que eu fosse amarrado por causa dos meus dois casamentos —, mas de cujo
nível só tomei consciência quando fiquei solteiro.

PLAYBOY — E isso se materializava como?

JÔ — Até de uma maneira absolutamente boba, do Pepê perguntando: "Seu Jô, o que o sr.
quer jantar?" É o tipo de resposta que eu nunca dei na minha vida. Geralmente eu queria
jantar o que e na hora que minha mulher queria.

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PLAYBOY — E também a liberdade de pôr livro em cima da geladeira, ou deixar o paletó na
poltrona por três dias?

JÔ — Esse tipo de liberdade eu sempre tive. Só perdi um tipo de liberdade, que é uma coisa
absolutamente insignificante, na época em que fui casado com a Silvia: eu não conseguia ler
na cama, porque com qualquer luz, por menor que fosse, ela não conseguia dormir. Tive
que mudar meus horários [risos] de leitura.

PLAYBOY — Nesse período, como foi o seu namoro com a Cláudia Raia?

JÔ — Foi pouco antes de namorar a Flavinha. Aconteceu no trabalho. A Cláudia é uma moça
muito bonita. Foi uma coisa que aconteceu e que foi evidentemente muito divulgada pelo
fato de que se tratava de um namoro de pessoas conhecidas, mas que não teve a impor-
tância que certa imprensa sensacionalista deu.

PLAYBOY — Como a Flávia surgiu em sua vida?

JÔ — Fiquei encantado quando conheci a Flávia. Porque ela tem um astral — não gosto
dessa palavra, porque está tão desgastada, está se desgastando até como austral, já está
pintando inflação de novo na Argentina [risos]... Mas ela tem uma vibração, além de ser
bonita por dentro e por fora. E tem um riso avassalador. Foi assim: eu tenho um grande
amigo, o Ângelo de Aquino, pintor, que se separou quase na mesma época que eu [1982].
Passamos a sair juntos à beça, a namorar, saindo cada um com a sua garota, naquela coisa
assim de... namorar pouco tempo as pessoas, né, que é fruto desse sentido de
independência também. Um dia [no final de 1983] eu estava no teatro, liguei pro Angelo e,
ao invés de sair, ele ia fazer um jantar na casa dele para a Luciana Clark, filha do Walter

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Clark, muito amiga dele, e que iria com uma amiga. Eu disse: "Então eu vou pra aí".

PLAYBOY — Aí aconteceu.

JÔ — Conheci a Flávia e fiquei encantado. Conversamos, e ela dizia que era minha fã, minha
tiete, como ela diz. Quando era 1h30, era uma noite de verão lindíssima, eu convidei todos
para irem para a minha cobertura tomar champanhe no terraço. A conversa foi até as 4 da
manhã, papo mesmo. Eu, evidentemente, querendo namorar, mas no começo ela teve uma
resistência muito grande porque, poxa, uma moça de família tradicional, com 20 anos, eu
com 46 — ela tinha a idade do meu filho Rafael e eu a do pai dela, o Gabriel. No começo, eu
não tinha consciência de como era pra valer, como era sério. Ela telefonava pro Angelo,
conversava horas a fio, e eu disse pra ele: "Pra mim a Flávia não liga, estou sentido falta". E
isso levou dois meses! Apesar de não pintar nada, no fundo o que havia era um namoro
camuflado, porque ela ia muito a minha casa, a gente conversava, ficava no terraço ouvindo
música, era extremamente agradável.

PLAYBOY — Você fez algum kamikaze romântico para ela também?

JÔ — Fiz mil e um... Não me lembro direito. Mas quando já estávamos namorando teve um
momento inesquecível. Ela fez 21 anos e eu dei uma festa em minha casa. Ela estava toda
de branco, com uma gravatinha borboleta vermelha, uma graça — e o engraçado é que ela
tem hoje 22 anos mas tem cara de 15! [risos], de vez em quando era barrada na Ponte
Aérea... Mas aí, na hora de viro bolo, uns violinistas que eu conheço entraram tocando
Parabéns a Você no violino. Ela ficou vermelha! Consegui fazer com que ela sentisse uma
emoção de aniversário de 5 anos de idade. No aniversário seguinte também teve surpresa.
Fomos ao cinema e eu disse que o presente estava no bolso e eu daria mais tarde. Depois,
disse que estava brincando, tinha que pegar em casa. E quando a gente chegou em casa —
foi em São Paulo — e abriu a porta, tinha um Escort conversível embrulhado com um
laçarote imenso, um gravador tocava o Parabéns e o Pepê, o Chico e a Salete estavam
uniformizados no quintal, com as luzes acesas e um balde com champanhe.

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PLAYBOY — Se alguém lhe perguntasse o que é sua relação com a Flávia, você diria que é
seu terceiro casamento?

JÔ — Eu não chamaria de casamento, mas ao mesmo tempo ela é minha mulher-


namorada. Ela passa a maior parte do tempo comigo, embora no Rio more com o irmão.
Não quer dizer também que a gente não se case. Não há preocupação nesse sentido, há
ocupação com o relacionamento. A gente se curte. Por incrível que pareça, nós somos uma
pessoa de 48 anos e uma de 22 com uma afinidade enorme. Ela é uma pessoa de um
imenso senso de humor, muito inteligente, fascinante, companheira à beça e de uma
imensa integridade.

PLAYBOY — Os pais dela resistiram no início, por causa da diferença de idade ou outra
razão?

JÔ — A Beatriz, mãe dela, evidentemente resistiu, ficou assustada. Não foi uma resistência
agressiva, nada disso. O Gabriel não sei, mas ele disse uma coisa bonita pra Flávia quando
ela contou [sobre nós]: "Só espero que seja uma coisa mais séria". Mas tanto o pai quanto a
mãe dela são pessoas extraordinárias.

PLAYBOY — Você é basicamente monógamo? Como você administrou a questão da


fidelidade ao longo de sua vida?

JÔ — Nem sempre administrei muito bem [risos] essa monogamia. Mas acho que é o
caminho certo. Qualquer coisa que fuja dessa tendência é mais por insegurança, por
necessidade de afirmação — isso de conquistar uma mulher bonita, inclusive sendo gordo,

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porque o gordo geralmente tem que batalhar muito mais. Mas o caminho natural no fundo
leva à monogamia. Já aconteceu, no meu tempo de solteiro, de solteiríssimo, de namorar
três mulheres ao mesmo tempo, e aí fica um inferno, porque inclusive sua casa vira uma
peça de Feydeau [autor de comédias de vaudeville francesas]. Você tem que mudar o
cenário toda hora [risos]. "Ih, tem isso aqui, isso aqui não é dela. Epa, chegou a outra!" É
uma palhaçada.

PLAYBOY — Ao longo dessa entrevista, volta e meia surge o tema ser gordo, e não por
acaso: você é o gordo mais famoso do Brasil, e hoje tira esta circunstância de letra. Mas, no
começo, foi duro? Já li declaração sua de que era difícil tirar garotas para dançar, esse tipo
de coisa.

JÔ — Isso na época de criança, aí pelos 7 anos de idade. Depois, sempre transei


normalmente, porque sempre fui gordo.

PLAYBOY — Sempre foi? Já nasceu gordinho?

JÔ — Já nasci gordo. Acho que uma coisa leva à outra. Você é gordo porque come. E come
porque é gordo.

PLAYBOY — É verdade que você comeu um frango inteiro quando tinha 2 anos?

JÔ — Isso era o papai que falava, mas acho que era brincadeira, sacanagem dele [risada].

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PLAYBOY — Quanto você pesava quando tinha, digamos, 18 anos?

JÔ — Eu tinha uns 100 quilos. Com 15 anos, embora não pareça nas fotos, eu pesava 90.
Mesmo com uma altura como a minha atual, 1,70m, era gordo. Sempre fui, e transo o fato
com a maior naturalidade possível, sobretudo porque é um tipo de gordura meio exógena,
fica um pouco fora de mim, como se fosse um corpo que eu vestisse. Não sinto meu peso,
tenho uma agilidade meio fora do normal para um cara que pesa 115, 118 quilos, como
eu — às vezes peso 105, fico nessa variação.

PLAYBOY — E a saúde, como vai?

JÔ — Tenho uma vitalidade, um vigor físico muito grande. Meu eletro é ótimo. Não tenho
os problemas típicos de gordo.

PLAYBOY — Qual é sua pressão?

JÔ — Já cheguei limítrofe à hipertensão, 14 por 9. Hoje em dia é 12 por 8 [pressão normal,


quase de atleta].

PLAYBOY — O seu colesterol é normal?

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JÔ — Não. Abaixo do normal.

PLAYBOY — E os triglicérides?

JÔ — Tudo isso é abaixo do normal. E num teste que se faz de probabilidade de enfarte, a
minha média está junto à da dona de casa, que é a categoria mais baixa que tem.

PLAYBOY — E ser gordo ao longo de sua vida o atrapalhou em alguma coisa? Por exemplo,
essa coisa de inibição, de namoradas...

JÔ — Não, porque a gordura me acabou fazendo vencer a timidez. Sou uma pessoa muito
tímida, e então, para que essa gordura não ficasse um peso [risos], eu transformei isso em,
tentar aparecer de outra maneira, e não simplesmente pelo fato de ser gordo. Acho que foi
até um estímulo dentro da minha carreira, e para procurar ser sempre a pessoa mais leve
possível. Eu não sou aquele gordo de anedota. Tanto é que o que eu faço em humor
dificilmente é baseado na gordura. Todos os personagens que eu faço o Chico Anísio
poderia fazer. Só que aí eles iriam ser magros [risos].

PLAYBOY — Aquele seu famoso regime, em 1972, fez você baixar para 80 quilos...

JÔ — E foi para controlar peso, não para emagrecer. Tenho a impressão de que emagreci
tanto porque o objetivo do regime não era emagrecer, mas não engordar mais. Eu estava
com 160 quilos, que já não é peso, já é medida, já é sacanagem. E continuava engordando!
Aí, parei: "Pô, realmente..."

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PLAYBOY — Você até brincou num show que tinha perdido "um homem inteiro". Mas o que
houve depois? Porque você não manteve aquele peso? Você parece não ter se sentido bem
com aquele peso, com aquela figura.

JÔ — Porque eu sou o único gordo que emagreceu e que não teve estímulo. Todo mundo
dizia assim: "Ah, você fica tão melhor gordo!" [Risos]

PLAYBOY — E houve, naturalmente, quem achasse que você, magro, perdeu a graça, não é?
Como se fosse possível.

JÔ — Claro. Ao que eu respondia que, se gordura fosse engraçado, não precisava de


humorista. Você comprava 1 quilo de toucinho, pendurava aquilo na sala, na frente da
televisão, e ria o ano inteiro [risos].

PLAYBOY — Mas fisicamente houve algo? Você se sentiu flácido? Fraco?

JÔ — Nada, nada.

PLAYBOY — Houve algum problema de identidade, de não se sentir a mesma pessoa,


depois de uma vida inteira tendo um tipo de layout?

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JÔ — Não. O que aconteceu, mas que só percebi depois, foi que não que tivesse ficado me-
nos engraçado, tanto que meu show Ame um Gordo antes que Acabe fez grande sucesso. O
que aconteceu é que realmente perdi meu trade mark, o meu logotipo. Comecei a desleixar,
pela falta de estímulo. E outra coisa fantástica é que cheguei a 160 quilos e hoje tenho 115,
mas as pessoas acham que voltei a engordar tudo de novo...

PLAYBOY — O que você come hoje? Você ainda tem que se policiar?

JÔ — Ah, tenho. Como carnes, presunto, ovos, fritadas, saladas em geral, salada de ovo,
maionese... Porque minha dieta corta os carboidratos, não as calorias. Não posso comer
frutas, leite — graças a Deus, porque detesto leite puro —; massas, pão, arroz.

PLAYBOY — Se você hoje quiser perder 5 quilos, tem que fazer o quê?

JÔ — Basta não sair da minha dieta. Eu saio normalmente duas, três vezes por semana. E
também comer em horários certos.

PLAYBOY — O que você curte comer?

JÔ — O que eu gosto mesmo?

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PLAYBOY — Sim, proibido ou não.

JÔ — Porcaria. Tudo quanto é porcaria: sanduíche, pastel, chocolate... Tudo que é lixo eu
adoro [risos]. Além de gostar também, quando viajo para o exterior por exemplo, de comer
o que há de melhor no mundo. Mas se for uma opção de sair da dieta por um dia, vou direto
ao lixo, porque acho que é fixação de criança que fica na gente.

PLAYBOY — Dê um exemplo de prato refinado, transado, de que você goste muito.

JÔ — Não tenho esse tipo de preferência. Sei que tenho um paladar infantil. Adoro Coca-
Cola, por exemplo [risos].

PLAYBOY — Por falar nisso, em matéria de drinques, de que você gosta?

JÔ — Coca-Cola [risos]. Adoro. E infelizmente não há Coca dietética no Brasil, porque é


proibido. Sempre peço a quem viaja pro exterior, se puder, pra me trazer latas de Diet Coke.
Aí é uma farra.

PLAYBOY — Mas bebida alcoólica, drinque mesmo?

JÔ — Gosto muito de vinho, tinto e branco. Quase só bebo quando estou no exterior.

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PLAYBOY — E em casa?

JÔ — Comecei a beber aos 40 anos, no show Viva o Gordo e Abaixo o Regime, porque eu
distribuía uísque para as pessoas e brindava com elas. Aí passei a curtir tomar um uisquinho,
mas nada de especial. Eu bebo o tempo todo é café.

PLAYBOY — Você gosta de fazer comida?

JÔ — [Gozador] Não. Eu gosto de esquentar comida pronta.

PLAYBOY — Você parece gostar muito de objetos: aqui na sua casa tem caixas de charutos
com belos Davidoffs dentro, cachimbos, espadas de samurais, facas, quadros, livros antigos,
que devem ter sido de seu pai...

JÔ — Do meu avô. Tem um Larousse do início do século que é uma obra-prima, porque
além de tudo é um elogio à imbecilidade do cientificismo. Tem verbetes assim: "Aviação:
mania de alguns idiotas que pensam [risos] que algo mais pesado que o ar poderá se elevar
do solo".

PLAYBOY — Você gosta de revólveres, não? Tem coleção?

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JÔ — Já tive. Tenho revólveres. Gosto de fazer tiro ao alvo.

PLAYBOY — E de onde veio isso?

JÔ — Ah, de criança. Uma das vantagens do ator é que ele pode continuar brincando de
bangue-bangue. Você acha que o Clint Eastwood não adora ficar brincando de cowboy e de
detetive?

PLAYBOY — Você fez curso de tiro?

JÔ — Ultimamente não tenho praticado, mas eu fazia no estande do Fluminense. Atirava de


38, sei atirar de Magnum, que é uma arma belíssima. Tive coleção de revólveres e me desfiz
porque não tenho apego às coisas, fui dando de presente. [Jô dá em seguida uma longa
explicação técnica sobre duas réplicas de revólveres Colt 38 e 45 usados no Velho Oeste
americano, que servem como enfeite na mesa de centro de seu confortável living em São
Paulo.]

PLAYBOY — E suas facas?

JÔ — [Apanhando facas em cima da lareira acesa e mostrando] Esta aqui, que parece mais
uma jóia, é a lame des Ardennes, francesa. Esta outra é a Bowie, inventada pelo David
Bowie — pena que esta entrevista não seja a cores... Esta outra é a faca-punhal dos
comandos de paraquedistas ingleses.

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PLAYBOY — E você foi comprando isso pelo mundo?

JÔ — Ah, é, eu vejo, compro. A Flávia, que viaja comigo, morre de rir porque eu fico
fazendo compra de criança, né? Revólver, cartucheira, faca... [Mostra uma faca enorme, de
cabo verde e serra muito cortante na parte superior da lâmina] Este é um presente da
Flávia, uma coisa carinhosíssima, que é [risos] a faca do Rambo. Feita no Brasil, feita a mão.
Foram fabricadas cem delas. Fui ver o filme e falava [faz voz de quem implora] "Eu queria
tanto essa faca do Rambo!" [risos] Foi o melhor presente de aniversário que já ganhei. As
espadas de samurai eu comprei em Nova York, que, é o grande empório do mundo.
Evidentemente, depois de ver os filmes do Kurosawa, que no fundo continuam toda a
tradição dos werstern, não há como não ficar fascinado pelas histórias de samurai. Mas
apesar disso sou a pessoa mais pacífica do mundo, porque acho que toda a violência que eu
teria se esgota nessas brincadeiras. Vira coisa lúdica. Sou incapaz de sair carregando uma
arma, apesar de saber atirar.

PLAYBOY— Como é sua relação com o dinheiro? Você gosta de gastar?

JÔ — Não sou um esbanjador, mas sou um gastador. Minha relação com o dinheiro é de
generosidade. Uma coisa certamente herdada de meu pai. Ele era realmente o chamado
mão-aberta, tanto que ganhava muito dinheiro e depois perdeu tudo. Eu tinha passado nos
exames para estudar em Cambridge e, como as coisas já não estavam indo muito bem, eu
voltei da Europa, mas a gente continuou ainda morando no anexo do Copacabana Palace
[para onde a família se mudara nove anos antes]. Dali algum tempo não deu mais. Meus
pais foram morar em Petrópolis num apartamento alugado que tinham, e depois não pintou
nem para o aluguel e eles foram morar num apartamento emprestado por uma tia minha.
Nessa ocasião eu me mudei, com minhas coisas levadas por um "burro sem rabo" — aque-
les caras que carregam aquele carrinho — para um quarto alugado na Rua Prado Júnior [na
época, rua onde viviam músicos de boate, artistas e boêmios, em Copacabana].

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PLAYBOY — E como você suportou esse baque?

JÔ — Numa boa, pelo seguinte: eu via meus pais numa boa, papai chegando em casa e
dizendo: "Dinheiro para amanhã já temos!" O último grande negócio que ele ia fechar na vi-
da, já quando estava financeiramente zerado, era uma concorrência para a construção da
hidrelétrica de Três Marias, no governo JK. Ele trouxe para participar da concorrência o
grupo suíço Greiff, e foi outro grupo que ganhou. Meu pai disse: "Ah, agora vou poder
dormir em paz, porque eu só andava pensando nesse dinheiro que ia entrar..." Foi a reação
mais saudável, sem nada de desespero.

PLAYBOY — Você já fez seu primeiro milhão de dólares?

JÔ — [Ar irônico] Não. Eu acho que já devo ter gasto isso [risos].

PLAYBOY — O que você tem?

JÔ — Essa casa [de São Paulo], uma coberturinha que é um estúdio na Rua General San
Martin [em Ipanema], e a minha cobertura [na Rua Baronesa de Pixoné, na Lagoa].

PLAYBOY — E investimentos?

JÔ — Como eu não entendo nada de investimento, patavina, o que ganho através da minha
firma, a Jô Soares Produções Artísticas, em vez de aplicar em ações, ou fundos ou isso ou

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aquilo, eu aplico em ouro. Que, é claro, fica tudo guardado em custódia num banco.

PLAYBOY — E quanto é que a Jô Soares Produções Artísticas ganha na Globo?

JÔ — Eu preferia não entrar em detalhes de salário até por discrição, timidez. Devo ser um
dos mais altos salários de ator da Globo, devo estar nivelado por cima a nível de salário. Eu
não acho que seja nem mal nem bem remunerado. Pelos padrões da TV brasileira, é de
forma correta. Evidentemente que num país como os Estados Unidos, se eu fizesse um
programa de televisão por semana, provavelmente em dois anos eu estaria rico. [Mais
tarde, em outra etapa de gravação, Jô revelaria seu salário na Globo: 174 000 cruzados
mensais]. Porque acho que o rico, nos moldes capitalistas, é o sujeito que pode parar de
trabalhar e viver de rendas.

PLAYBOY — E você não pode?

JÔ — [Negando peremptoriamente com a cabeça] Mas de forma nenhuma!

PLAYBOY — Pelo padrão de vida, pelas obrigações que tem ou por quê?

JÔ — Meu padrão de vida... Você viu que eu não tenho uma entourage enorme, nem nada.
Cinco empregados, e porque eu tenho duas casas. Não sou pessoa que tenha despesa
absolutamente especial nem nada. Mas naturalmente tenho despesas: com ex-mulher, com
filho, [enfático e divertido] comigo! — duas casas, muitas viagens, muita coisa.

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PLAYBOY — Quanto você fatura num comercial?

JÔ — Varia. Na campanha da Philips [Jô como Zé da Galera, sempre dizendo no final "Se
liga, Brasil!"] o faturamento total foi de 150 mil dólares, evidentemente ao câmbio oficial.
Mas é claro que é um número bruto: tem a comissão do meu empresário, tem outras
comissões, tem o próprio acerto com a Theresa depois que eu me separei.

PLAYBOY — Como foi?

JÔ — Como minha renda varia muito de mês a mês, achei que não era justo que ela tivesse
uma pensão ou uma mesada, fixada em ORTN ou o que fosse. Então ela tem uma
participação em tudo que eu ganho, tem a firma dela e continua como sócia na minha firma,
para poder ter acesso a ela, saber quando minha firma realmente fatura.

PLAYBOY — Você escreve, pinta, representa, toca instrumentos. Você se considera um ator,
um comediante, um jornalista, um showman ou o quê? Como é que você se classifica?

JÔ — Eu acho que sou basicamente um ator e um comediante. Ao mesmo tempo me


considero um autor: tudo que faço, mesmo a nível de interpretação, tem uma autoria muito
própria. Mas o que talvez mais me comova entre todas as coisas que faço, o que mais
admiro — não que eu admire em mim — é o ator. É uma coisa comovente, porque mantém
muito aquela criança viva dentro da gente, é um trabalho extremamente lúdico, de brincar.

PLAYBOY — Você já chegou até a dizer que não vai amadurecer nunca. Como é isso?

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JÔ — O ator está sempre amadurecendo, e não chega a um estado total de
amadurecimento porque aí seria perder um pouco essa característica de brincar. O adulto
[normalmente] perde a criança que tem dentro de si, e só volta a encontrá-la em situação
de carência ou de solidão. Então eu estou com 48 anos e não consigo me ver como um
adulto, nesse sentido. Acho que alguns dos planos mais sérios que a gente concebe na vida
é com 8, 9 anos de idade, quando não tem a menor competência de conhecimento lógico,
mas uma intuição enorme. Acho que tomamos certas decisões muito importantes nessa
idade. Eu mesmo, quando tinha 10 anos, decidi pessoalmente que não tinha condições de
ingressar no ginásio e resolvi repetir o quinto ano primário.

PLAYBOY — Para o ator que você é, você cultiva então essa criança?

JÔ — Não é que eu queira manter, é algo que independe da gente, porque senão você fica
um ribambito, quase um gagá, se fazendo de menino. É que, sem querer, você é um
menino. O francês é que usa, como eu costumo dizer sempre, a palavra certa para
interpretar: jouer un rôle, que é brincar de fazer um papel. O inglês também, to play. O
Paulo Autran, de Tartufo, está brincando de Tartufo, com 60 e poucos anos, e aquilo é um
grande barato. Vi agora em Paris o filme Macaroni, do Ettore Scola, com Marcello
Mastroianni e Jack Lemmon. Tinha visto também Ginger and Fred, com o Mastroianni e a
Giulietta Masina. Você chora à beça, não de tristeza, mas de emoção. E por acaso o
Mastroianni se hospeda sempre no mesmo hotel que eu em Paris, o Hôtel de l'Abbaye, em
Saint Germain, onde sempre ficam também a Liv Ullmann, o Jorge Amado, o Chico
Buarque...

PLAYBOY — Mas que guerra nas estrelas!

JÔ — Meu me apresentei a ele como um ator brasileiro, disse que seus dois últimos
trabalhos me haviam comovido imensamente. Ele agradeceu. Nasce uma cumplicidade

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imediata, não é? Porque você olha no olho e vê que ele sabe do que estou falando, e eu sei
que ele está entendendo. Conversamos e, no final, eu falei: "É impressionante como você se
supera em cada trabalho". E ele: [Imita a cara de Mastroianni fazendo gozação] "Pois é, nem
sei onde eu vou parar..." Brincadeira! É esse tipo de coisa que eu acho um barato. Depois,
na TV francesa, fizeram a ele uma pergunta séria, gravíssima, sobre se ele era parcial em
relação a certos trabalhos, e ele respondeu assim mesmo: "Não sou parcial. Faço o que
gosto, apesar de às vezes ter que fazer coisas chatas, como esta entrevista aqui. Isto é um
saco. Isto aqui é uma merda" [gargalhada]. É fantástico esse tipo de coisa. Muitas vezes, por
coisas assim, dizem "ah, é artista, é maluco". Não, ele é criança. O difícil é aliar as duas
coisas — ser uma criança com disciplina, obedecer horários, estudar, aplicar-se em seu
"brinquedo".

PLAYBOY — Aproveitando a deixa, em que consiste o aplicar-se em seu trabalho?

JÔ — Acho que se precisa da paciência para sempre estar observando o cotidiano, estar
ligado em todos os acontecimentos, não ter preconceitos, não abrir mão da irreverência. É
trabalho. Um espetáculo eu levo seis meses escrevendo e dois meses ensaiando. Nesses
dois meses, repito exaustivamente tudo aquilo até chegar ao que de melhor eu posso dar.
Quando eu escrevia meus shows com o Armando Costa — que morreu há dois anos, aos 50
anos, e me faz uma falta incrível, porque era um grande amigo íntimo — a gente escrevia
durante seis meses, nove horas por dia sem parar, mas rindo os dois como loucos. Então,
quando termina um espetáculo meu, ele tem cinco ou seis horas na primeira leitura. É
dessas seis horas que eu tiro uma hora e 50 minutos. Durante a apresentação, ainda gravo o
show diariamente para depois ver alguma coisa que eu improvisei e de que não me lembro
bem. Posso incorporá-la ao espetáculo, que está sempre variando, mas em cima dos
quadros básicos.

PLAYBOY— No caso do Viva o Gordo, como você e a equipe trabalham?

JÔ — No começo do ano, fazemos reuniões básicas em que se decidem quais os novos


personagens que vamos fazer. Participam o Max Nunes, o Hilton Marques [principais

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redatores, com Jô, do programa] e eu. As vezes também o [Francisco] Milani, [ator e] diretor
do programa. Daí se parte para escrever os textos, e pede-se a colaboração dos redatores
novos [na Globo, quase uma dezena]. O Max e o Hilton organizam. Na primeira gravação do
ano, temos quatro dias para fazer o primeiro programa [normalmente feito em um dia, no
resto do ano]. Gravamos dois programas, dois e meio, na verdade, e aí a gente seleciona o
que vai ao ar no primeiro e no segundo do ano.

PLAYBOY — Além da equipe, quem assiste esses programas iniciais para aprovação?

JÔ — O Walter Lacet, diretor da linha de shows, depois o Daniel Filho e, finalmente, o Boni.
Depois, semanalmente, quando o programa já está estruturado e indo para o ar, há uma
reunião de produção feita semanalmente, com quinze dias de antecedência [em relação à
data em que o programa vai passar], onde se decide o roteiro de gravação, o cenário, a
roupa. Além de nós, criadores, participam a produção, figurinista, sonoplastas, cenógrafos.
Gravado cada programa na segunda, fazemos uma reunião para ver se está montado na
ordem certa, como é que vai ser sonorizado etc.

PLAYBOY — O criador Jô Soares tem uma famosa gaveta de ideias. Como funciona?

JÔ — O meu arquivo era uma gaveta. Anotava ideias em tudo quanto era lugar,
guardanapos de restaurantes, papeizinhos e jogava tudo numa gaveta, ou em várias
gavetas, sem usar pasta nem nada. Veja você: meu show anterior ficou cinco anos em
cartaz, este já está há três, e durante esse tempo todo eu vou preparando o próximo show,
fazendo resumo de monólogos etc. — e tudo nas gavetas. Sou o desorganizado mais
organizado do mundo. Quando eu estava escrevendo como Manduca [Armando Costa] —
ou Funfum, que era como a gente se tratava e como ele chamava as pessoas mais
queridas — , eu dizia: "Porra, Funfum, eu sei que tal ideia está nas gavetas". Ele morria de
rir.

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PLAYBOY — Você falou que o arquivo "era" uma gaveta. Não é mais?

JÔ — É que agora eu tenho um computador, um PC-Paq da Microtec. Foi o Rubem Fonseca


quem me botou na cabeça de escrever com computador — inclusive o personagem do seu
livro Bufo & Spalanzani escreve com computador. Durante um jantar em que conheci
Rubem, eu disse: "Será que eu pego isso?" Ele falou: "Claro. Uma pessoa inteligente como
você pega num mês". Não devo ser tão inteligente, porque levei dois meses para aprender
[risos]. Tenho dois programas: o Framework, onde eu escrevo, e o D-Base III, onde uma
digitadora vai armazenar todo o meu arquivo, que eu vou ditar pra ela. Depois, as novas
ideias eu mesmo vou arquivar. Hoje, só escrevo nele, e na metade do tempo que eu gastava
antes.

PLAYBOY — Mesmo antes do computador, você sempre brincou muito em seus textos e
personagens com políticos e a política. Mas que político o cidadão Jô Soares gostaria, por
exemplo, de ver na Presidência da República?

JÔ — Posso dizer quem eu não gostaria de ver na Presidência, que é mais fácil: o Jânio —
inclusive porque votei nele em 1960 e já vi [risos] — , o Brizola e o Maluf.

PLAYBOY — Mas você votou no Brizola para governador em 1982.

JÔ — Votei. E quando disse que ia votar, ele tinha só 3 ou 4% nas pesquisas de opinião. Eu
estava no estúdio e de repente ele tocou no telefone: [Imita o sotaque gaúcho de Brizola]
"Soube que tu vais votar em mim. Queria agradecer. E olha, vamos ganhar". Aí eu pensei:
"Tou votando num maluco! Com 4% na pesquisa e acha que vai ganhar". Então ele
percorreu um caminho belíssimo, vindo de quinze anos de exílio, ganhando com tudo o que
ocorreu durante a eleição e nas apurações. Se ele tivesse então se dedicado a fazer um
governo extraordinário, seria coroar uma vida. Mas ele tem uma fixação enorme em ser

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presidente. Acho que ele não gosta de governar. Ele gosta é de se candidatar.

PLAYBOY — O Jânio também já telefonou e escreveu para você, não?

JÔ — A primeira vez foi uma brincadeira que fizemos no meu programa com um
personagem que era um misturador de gente, o professor Apocalipse. Tinha uma mistura
dele que era o Jaragão, mistura de Jânio com Renato Aragão. "O que é que ele faz?",
perguntavam para o professor. Eu dizia: "Pode fazer qualquer coisa, porque são dois
trapalhões juntos". E o Jânio me mandou um telegrama indignado mas engraçado, em que
ele falava. [imita Jânio com perfeição] em "insulto que repilo", em "brincadeira soez". Eu
respondi para ele dizendo que para mim "trapalhão" significava impetuoso, uma pessoa
capaz dos gestos mais bruscos nos momentos de emoção, que era brincadeira. Mas me
reservava o direito de continuar brincando com figura pública tão famosa e, como eu votei
nele em 1960, assinei: "Do seu eleitor mais engraçado, Jô Soares". Aí ele me mandou uma
carta carinhosíssima. E, entre outros telefonemas, uma vez ele me telefonou para dizer que
Dirce Maria, Tutu, sua filha, tinha um cachorrinho que não falava português, porque era
americano, mas estava escrevendo sua autobiografia. Lá pelas tantas da conversa, fiquei
aliviado por entender aquele papo: ela estava escrevendo um livro infantil que era a
autobiografia do cachorrinho, e o Jânio queria saber se eu podia ser fotografado ao lado do
cachorro, porque no livro o cão tinha vários amigos famosos, como o Tancredo, o Roberto
Carlos [risadas].

PLAYBOY — O PT seria uma opção para você? O que você acha do partido?

JÔ — Acho que o PT seria um partido extraordinário pela sua integridade. Só que [faz ar de
desalento] é um partido sem o menor senso de humor, e acho que não se faz nada sem
humor, nem política. Essa falta de jogo de cintura deu a eleição [para prefeito de São Paulo
em 1985] ao Jânio.

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PLAYBOY — Quem é um líder que você admira?

JÔ — O líder e uma coisa de momento, como no caso em que o Antonio Carlos Magalhães
[atual ministro das Comunicações] falou no Jornal Nacional, para milhões de pessoas, que
traidor era o brigadeiro Hélio, que apoiava um corrupto para a Presidência. Eu não acredito
em líder, não tenho líderes. Para mim o fundamental é ter a independência e a liberdade de
poder criticar, brincar com todos eles, porque minha posição é a de um anarquista —
anarquista no sentido de ver até numa cerimônia de sagração do novo Papa que ele entrou
com o sapato trocado, entende? Por isso é que não subo num palanque nunca, só por
causas como as eleições diretas. Mas eu tenho, é claro, admirações pessoais.

PLAYBOY — Era esse o sentido original da pergunta: figuras públicas que o comovem, que
você admira.

JÔ — Tem uma figura pública que me comove, que me emociona, que é o Funaro, porque é
um homem que está lutando para mexer em alguma coisa, mesmo.

PLAYBOY — Ele já foi ao seu camarim em São Paulo, não?

JÔ — Ele foi assistir ao meu espetáculo. A gente só soube na hora que ele estava na platéia,
nas últimas filas. Porque ele não pediu convite, não mandou nenhum assessor ligar, não
avisou coisa nenhuma. Parou lá no estacionamento, subiu a Rua Augusta a pé, foi na
bilheteria, comprou quatro ingressos — e estava com a mulher, o filho e a nora — e entrou.
Sem o menor aparato, sem a menor segurança — melhor dizendo, sem "o" menor
segurança, porque a segurança maior ele tinha, que era o apoio do povo. Quando falei que
ele estava na platéia ele foi ovacionado de pé. Até brinquei: "Assim não dá. Vocês estão

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aplaudindo ele mais do que eu" [risos].

PLAYBOY — E no camarim?

JÔ — Depois ele foi lá, e foi muito simpático, disse que agradecia qualquer colaboração que
a gente fazia pela divulgação do Plano [Cruzado], e que realmente tínhamos que transfor-
mar esse país, que era uma batalha, uma luta, mas tinha que ser conseguido. Não sei se
estou sendo indiscreto, mas ele também disse: "Pois é, Jô, isso é um primeiro passo. Porque
aí a gente vai poder mexer com tudo — os furos nas estatais, toda essa paralisação da
máquina do Estado — tendo o respaldo popular de que a gente precisa".

PLAYBOY — Ele não reclamou que seu show "Um Gordoidão" ainda seja "no país da
inflação"?

JÔ — Não, eu é que falei pra ele: "Olha, ministro, estou torcendo pra trocar o título". Eu já
tinha dito isso inclusive no jornal da Globo. Bem, depois fui fazer um show em Brasília onde
estava o [ministro da Educação] Jorge Bornhausen, assessores ministeriais e até o [ex-
ministro das Minas e Energia e senador biônico] César Cals [risos]. E fiz o show que faço, que
é muito político, e na hora em que digo que é preciso ter fé para mudar, fé na transição,
falei até em não mexer na Lei de Informática e na necessidade da reforma agrária e de o
Plano Cruzado dar certo mesmo. Quando cheguei ao Rio, tinha uma carta carinhosa dele, de
próprio punho, agradecendo a menção feita. Depois telefonei pra ele. Eu acho o Funaro um
homem de uma [emocionando-se] imensa coragem, acho que ele alia a ternura à bravura.

PLAYBOY — E aí você incluiria também a luta pessoal dele contra a doença?

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JÔ — Sim. Acho que é uma coisa que ele nem sabe, porque nunca foi dita por mim: ele é
um homem que venceu uma batalha muito maior do que qualquer outro interesse, e foi
uma batalha que eu também travei. Tive um problema não igual, mas semelhante ao dele, e
venci. Então acho que é uma pessoa que está jogando para a História. Acho o Funaro uma
pessoa incomprável.

PLAYBOY — Você então teve um problema de saúde desse tipo, um câncer?

JÔ — Eu nunca falei a esse respeito porque não queria que fosse utilizado o nível
sensacionalista. Eu tive um melanoma, que é um câncer considerado de alta periculosidade,
que pode matar em seis meses. E, graças a Deus e ao dr. Dráusio Varella [oncologista
paulista, pesquisador e especialista em melanoma] eu fiquei curado. Foi há mais de cinco
anos, e o prazo de periculosidade do melanoma depois de operado é de um ano, com dois
anos diminui mais, com três anos quase desaparece, com quatro anos some e com cinco
anos, então, você está inteiramente curado.

PLAYBOY — E como foi que você descobriu?

JÔ — É uma pintinha preta que aparece, uma berruguinha. Era nas costas. Eu notei e
mostrei pro Max Nunes, que além de ser um gênio do humor é médico cardiologista, e ele
achou que estava feia e eu devia tirar. Depois, em São Paulo, durante um almoço, eu peguei
uma rebarba de consulta como David Serson [conhecido cirurgião plástico], que olhou e
falou: "Vamos tirar". Para resumir: foi pro laboratório e deu positivo. Por um acaso, fiquei
sabendo do resultado no intervalo do primeiro para o segundo ato do meu show Viva o
Gordo e Abaixo o Regime, em São Paulo. Fiz um segundo ato sem saber o que estava
falando. E ainda tinha um jantar depois com uns amigos — eu estava casado com a Sílvia —
e só pude falar [sobre o problema] quando cheguei em casa. Liguei pro Max Nunes, que é
padrinho do meu primeiro casamento, às 2 e meia da manhã chorando como um doido:
"Padrinho, deu positivo". Fui fazer depois o rastreamento com anestesia local — uma
pesquisa com microscópio eletrônico numa área maior em volta da berruga — no Hospital
Albert Einstein. Não havia sinal nenhum de células afetadas ali. Me deu um alívio: peguei as

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mãos do dr. Guiduli, que conduziu o exame, e beijei. O David Serson, que abriu a área, foi
costurando, e no final disse: "Eu já operei até a minha mãe, mas essa foi a operação mais
emocionante que fiz na vida". A equipe toda chorou.

PLAYBOY — Que alívio!

JÔ — Mas depois o Serson me mandou procurar o Dráusio. Eu não queria. Dizia: "Já estou
livre". O medo é tão terrível que você não quer nem se aproximar de mais nada que se
assemelhe àquilo. O Colossi também insistia, e eu: "Que mania, não me encha o saco".
Passaram-se dez ou quinze dias e eu fui agradecer ao patologista do laboratório, o dr.
Gianotti, que é um craque: "Tive essa merda, graças a Deus não tenho mais". Aí ele também
disse: "Mas vai procurar o Dráusio". No meio da conversa entrou uma secretária e disse:
"Dr. Gianotti, sua mãe, na Dinamarca". E ele: "Diz pra ela que quando eu puder eu ligo de
volta. Estou falando de um assunto sério". E claro que eu acabei procurando o Dráusio. Só
mais tarde [risos] fiquei sabendo que a mãe dele não estava na Dinamarca, não, morava ali
perto mesmo. "Dinamarca" era o código da secretária para dizer que era uma ligação no
ramal "D" do PBX do laboratório [risadas]. Aí telefonei pro Dráusio tarde da noite — acho
que inconscientemente queria que ele estivesse dormindo, pra eu dizer que não o tinha en-
contrado — mas ele atendeu, e disse: "Eu vou te ver". Veio então aqui em casa aquela figu-
ra alta e bonita, me examinou. Eu comecei a tomar BCG do Butantã por via oral, numa do-
sagem especificada pelo Dráusio — todo o trabalho dele na luta pela vida, na pesquisa do
melanoma, é baseado no uso do BCG. O BCG aumenta as defesas imunológicas. E a partir
daí surgiu um caso de amor, de amizade. O Dráusio hoje é um dos meus grandes amigos
íntimos. Então, voltando ao Funaro, por isso é que eu acho que é um homem que joga pra
História, porque ele batalha com isso.

PLAYBOY — Do ministro Funaro para o presidente Sarney: você sabe o que ele acha da
"fiscal do Sarney"? Vocês conversaram sobre isso quando você recebeu a Ordem do Rio
Branco, em junho?

JÔ — Não, ali foi uma coisa muito simpática, mas meio rápida. Quando me vi de frente ao

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Marco Maciel, nós dois rimos muito, por motivos óbvios e pelo fato de a gente aparecer
junto na abertura do programa [graças à técnica do chroma-key, por superposição de
imagens lá aparece na abertura de Viva o Gordo numa recepção, em pé, rindo ao lado de
Sarney e Maciel]. Quando digo que não consigo me ver como adulto é que em minha
relação com as pessoas eu sou muito mais filho do que pai, sou muito carinhoso, beijo todo
mundo. Naquele dia, acho que quebrei o protocolo [risos], porque eu abracei o presidente e
dei um beijo na dona Marly.

PLAYBOY — O Jô homem de televisão e teatro, jornalista eventual, pintor bissexto parece


estar sempre de bem coma vida. O que falta você fazer?

JÔ — Tudo o que não fiz até agora [risos].

PLAYBOY — Então uma pergunta clássica para encerrar: se você ganhasse uma montanha
de dinheiro, uma fábula, o que faria?

JÔ — Se eu ganhasse sozinho um prêmio na quina da Loto que fosse um absurdo, aí, sim,
eu ia poder sossegar e fazer só o que eu gosto. Ou seja: eu faria um programa semanal de
televisão, um show no teatro, escreveria, pintaria um pouco e de vez em quando gravaria
um comercial [grande gargalhada].

POR RICARDO SETTI

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