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Formas de audição, relações sociais e aprendizagem entre pares na cultura digital:

um olhar para práticas culturais de licenciandos em música

Resumo: Este artigo apresenta parte dos resultados de uma tese concluída (Colabardini, 2021),
que teve como objetivo identificar, analisar e compreender como se dá a utilização de recursos
tecnológicos digitais por estudantes e professores de um curso de Licenciatura em Música,
discutindo a formação discente para e pelas tecnologias. Foi também interesse da referida
pesquisa compreender como os discentes, que cursam as etapas finais de suas graduações,
enxergam as possibilidades de aprendizagem na Web e como esses conhecimentos são
articulados com a formação no curso em questão. Foi seguida uma abordagem qualitativa,
descritiva e analítica. Em relação a coleta de dados, foram utilizados os instrumentos
questionário e entrevista semiestruturada. Os resultados trouxeram informações significativas
sobre as relações estabelecidas entre os estudantes e as TDIC, dentro e fora do ambiente
universitário, sendo possível constatar um grande impacto das tecnologias digitais no processo
de formação dos sujeitos investigados.
Palavras-chave: Educação Musical; Tecnologias Digitais; Formação de Professores;

Introdução
As tecnologias que permitiram a gravação e a reprodução sonora surgiram no
final do século dezenove e desde então continuam em um processo que culminou com
a digitalização do som e sua posterior propagação via Web. Há tempos a tecnologia é
empregada como auxílio nos processos de ensino e aprendizagem musical, através de
recursos como discos, áudios e vídeos. Porém, com o avanço das comunicações
mediadas pela internet temos um novo cenário. Dentre as reflexões propostas pelos
estudos tanto na área da educação como educação musical, é comum a discussão
sobre as diferentes formas de assimilação e apropriação do conhecimento
oportunizado na contemporaneidade pelo ciberespaço.
Nesse contexto se mostra relevante a ideia de uma formação para as mídias, tal
preocupação perpassa a promoção do uso responsável e cidadão das tecnologias. Essa
visão acerca das mídias dialoga com Setton (2011) quando toma como princípio que
elas são “espaços educativos na medida em que são responsáveis pela produção de
uma série de informações e valores que ajudam os indivíduos a organizar suas vidas e
suas ideias” (SETTON, 2011, p.7).
Trata-se de discutir os formatos de participação que são mediados pelas
tecnologias, transcendendo as funcionalidades das interfaces e ferramentas. Para uma
educação para as mídias faz-se necessário ir além da distribuição de tecnologias nos
espaços formativos, o que contribuiria apenas para ampliar o acesso às tecnologias.
Isso porque, "enquanto o foco permanecer no acesso, a reforma permanecerá
concentrada nas tecnologias; assim que começarmos a falar em participação, a ênfase
se deslocará para os protocolos e práticas culturais." (JENKINS, 2006, p. 52.)
Jenkins defende uma reforma nos sistemas de ensino e em seus currículos e
aponta que a formação de professores, além de questões referentes a gestão
educacional e infraestrutura, é o caminho para a construção de uma educação para as
mídias e de uma cultura participativa.
Torna-se evidente a importância das interações ocorridas nos espaços online,
dando origem a diversas questões como: Quais são os percursos formativos
vivenciados por estudantes no século XXI e como a tecnologia impactou suas
trajetórias e impacta seus processos de construção, ampliação e atualização de
conhecimentos? Como as tecnologias disponíveis na contemporaneidade podem ser
utilizadas na formação de professores de música e nas práticas pedagógico-musicais
em diferentes contextos?
Neste cenário, o interesse deste artigo está voltado para práticas culturais de
estudantes de um curso de Licenciatura em Música, discutindo formas de audição,
relações sociais mediadas por tecnologias bem como para compreender como os
discentes, que cursam as etapas finais de suas graduações, envolvidos com produção e
compartilhamento de música online, enxergam as possibilidades de aprendizagem
nesses espaços e como esses conhecimentos são articulados com a formação no curso
em questão.

Música, práticas culturais, aprendizagens e cultura digital

A formação musical da maioria dos indivíduos em sociedades modernas é


construída a partir de diversas fontes de informação e por diversos processos de
mediação. Recebemos informações através de diversos meios, sejam eles eletrônicos,
virtuais ou presenciais e, com elas, estabelecemos um processo de apropriação e
atribuição de sentidos. Em meio a todo fluxo de sistemas de signos que nos envolvem,
temos o meio digital.
Nesse contexto, é construída uma cultura, convencionalmente chamada de
cultura digital, a qual se constrói na forma como as pessoas interagem com as
informações a partir das possibilidades do tratamento digital de som, da imagem e do
texto de forma ativa na produção e veiculação de conteúdo (SANTAELLA, 2013). No
campo da música, “os meios eletrônicos tornam-se aparatos tecnológicos que auxiliam
e facilitam o processo de criação e produção musical”. Por meio deles, “a relação da
música e seus consumidores/produtores é repensada e apresenta-se cada vez mais de
uma forma interativa, na qual as pessoas buscam maneiras de participação,
compartilhamento e aprendizagem” (SOUZA e FREITAS, 2014, p. 60).
Dentre as possibilidades geradas pela web, muitas podem ser destacadas, tais
como situações em que recomendações de novas músicas acontecem. Tempos atrás
recebíamos esse tipo de sugestão exclusivamente de nossos professores, parentes e
amigos, porém, na atualidade, essa ação pode ser realizada por pessoas que nunca
vimos, que falam outro idioma, que vivem em países distantes ou até mesmo por
algoritmos de plataformas de streaming. Evidentemente, as indicações poderão ser
desinteressantes ou até mesmo falsas, e é importante citar que, a busca pela
individualização da experiência do usuário através de algoritmos, sugere conteúdos
com base em buscas anteriores, no perfil do usuário e de suas interações com outros
sujeitos online.
É necessário considerar que ao seguir, por exemplo, um link indicado, um
usuário da Internet está dirigindo sua atenção para novas experiências, e o julgamento
da validade e da qualidade desse ato irá depender de seus conhecimentos anteriores e
de esse usuário estar preparado para tal empreitada. Nesse contexto se mostra
relevante a ideia de uma formação para as mídias, tal preocupação perpassa a
promoção do uso responsável e cidadão das tecnologias.
Um exemplo musical que pode nos ajudar a compreender práticas culturais no
âmbito da cultura digital e participativa é o processo de criação/recriação que observei
a partir de um vídeo do contrabaixista camaronês Richard Bona.
Bona, foi filmado na sede da empresa Italiana Mark Bass Amps, tocando de
forma solo, em uma espécie de propaganda dos amplificadores da empresa -
https://youtu.be/X1OQaK89or8. Principalmente pela qualidade e espontaneidade da
performance e pela divulgação ampla da empresa Mark Bass, a partir de 23/07/2016,
data da postagem no Youtube, o vídeo chamou a atenção de muitos músicos por todo
o mundo.
A partir deste primeiro vídeo, um baterista Americano, chamado Patrick
Simard, decidiu criar uma espécie de colaboração ao primeiro vídeo, gravando a
bateria sobre o vídeo original de Richard Bona. O vídeo com a contribuição de Simard
foi divulgado em 18/10/2016, no canal do Youtube do próprio baterista -
https://youtu.be/i207hIrhIWQ.
O trabalho com a inserção da bateria trouxe novamente a atenção dos músicos,
dentre eles o acordeonista canadense Gaetan Larue, que em 18/02/2017 publicou um
vídeo onde inseriu sua performance juntamente com Simard e Bona -
https://youtu.be/eMN9b2Y53A0.
Outro músico que então resolveu criar sua própria colaboração ao vídeo foi o
violonista Italiano Davide Repele, que em 29/03/2017, criou sua própria versão de
colaboração com o vídeo inicial de Bona - https://youtu.be/a5C49L_Qsvk.
Por fim, o usuário sul-africano, com o nome Simple Tember, que se revela
pianista através de suas redes e de seu canal do Youtube, publicou em 22/06/2017 um
vídeo - https://youtu.be/GvoxNV6EUOk - que é uma edição dos três vídeos citados até
o momento somados com o vídeo inicial de Richard Bona, em uma espécie de
quarteto, intitulado no vídeo como Quartet that never met, que pode ser traduzido
como “Quarteto que nunca se encontrou”.
Simple Tember revela o desejo de realizar também sua contribuição ao Piano,
mas justifica a publicação do vídeo editado por entender que os quatro unidos formam
um ótimo quarteto, então, o usuário resolveu demonstrar sua musicalidade e dar sua
contribuição artística através da edição dos quatro músicos em uma única produção
audiovisual, atuando em ajustes sonoros de mixagem e trabalhando com transições
visuais.
É importante citar que as modificações feitas ao vídeo inicial de Bona foram
realizadas por músicos que não apresentam nenhuma conexão direta em atividades
profissionais com o contrabaixista e, aparentemente, ao que tudo indica, pelo acesso a
seus perfis online, nem mesmo entre si.
Outro ponto importante a se destacar é que, como não apresenta transcrição, a
música inicial tocada por Bona foi “tirada de ouvido” pelos músicos, que gravaram suas
versões com seus próprios recursos tecnológicos, possivelmente em seus estúdios
caseiros ou em possibilidades similares, tendo em vista os espaços físicos onde os
vídeos foram realizados.
Considerando o descrito, sinalizo a necessidade de compreender como as
pessoas envolvidas nos processos educacionais (professores, alunos e demais
participantes da gestão institucional) se relacionam com as práticas culturais que
emergem das transformações tecnológicas. Dessa forma, compreender o engajamento
musical criativo considerando a cultura participativa (Jenkins, 2006) e a cultura digital
na formação de professores; as possibilidades de ensinar/aprender música online; os
aspectos educativos da escuta móvel e compartilhada; os sentidos da música nas
comunidades virtuais, dentre outros temas, revelam a necessidade da área em
compreender as aprendizagens musicais que se constroem nas e pelas tecnologias,
bem como conhecer que tipos de práticas culturais surgem e/ou se modificam nesse
contexto, em processos de criação, compartilhamento e consumo de conteúdos
digitais.
Numa perspectiva de aprendizagem colaborativa, interdisciplinar e crítica em
relação às instituições formativas e a sociedade que desejamos, a utilização de
tecnologias e a mediação pedagógica podem abrir possibilidades de repensar a
educação de forma ampla e, consequentemente, redesenhar a formação nos mais
diferentes âmbitos, buscando o estabelecimento de metodologias que levem a uma
práxis educativa na cultura digital e que sirvam de base para concepções de educação
musical a serem desenvolvidas nos mais diversos espaços formativos, que não
obedeçam apenas aos interesses mercantilistas de exploração econômica mas
caminhem no sentido de uma educação musical ativa, crítica e libertadora.

Caminhos da pesquisa

Foram focalizados nessa pesquisa discentes do curso de Licenciatura em Música


da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
As principais questões que nortearam esse estudo são: Como um curso de
Licenciatura em Música utiliza em suas disciplinas recursos tecnológicos digitais? Quais
são os percursos formativos vivenciados pelos discentes e como a tecnologia impactou
suas trajetórias e impacta seus processos de construção, ampliação e atualização de
conhecimentos? Como as tecnologias disponíveis na contemporaneidade podem ser
utilizadas na formação de professores de música e nas práticas pedagógico-musicais
em diferentes contextos?
Dois instrumentos foram utilizados para a coleta de dados nesta investigação:

• Questionário: Disponibilizados no Google Forms, formado por questões objetivas


e também por questões abertas.

• Entrevistas: Entrevistas semiestruturadas para a coleta de dados, que


objetivaram um maior aprofundamento além da etapa do questionário, bem
como preencher possíveis lacunas.

A identidade dos sujeitos não foi revelada, respeitando a individualidade de


cada participante. Os sujeitos participantes também concordaram com o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que autoriza a coleta de dados para fins
acadêmicos.
A escolha de estudantes que estivessem nos últimos períodos do curso
obedeceu ao sexto semestre como referência, a justificativa para tal escolha perpassa o
interesse de que o estudante já tenha vivenciado uma boa quantidade de disciplinas
obrigatórias do curso e tido a oportunidade de escolher disciplinas optativas de acordo
com suas preferências.
Vinte e sete estudantes, que se adequavam ao perfil descrito, foram contatados
via e-mail; destes, quinze responderam ao questionário e nove se dispuseram e
participaram da etapa de entrevistas.
A seguir, observando as falas dos sujeitos dessa pesquisa no questionário e
entrevistas abordarei práticas culturais, formas de audição e aprendizagens com a
utilização de recursos tecnológicos digitais dentro e fora do ambiente sociotécnico da
Internet.
Formas de audição, relações sociais e aprendizagem entre pares

A utilização de tecnologias online pode ser um meio para o desenvolvimento do


pensamento crítico, abrindo possibilidades para o encontro de novas formas de
aprendizagem e desenvolvimento pessoal e profissional.
Interações e diálogos abertos via web podem trazer implicações consideráveis
para a formação do educador. Na perspectiva de desenvolvimento profissional e de
formação ao longo da vida surge a possibilidade de desenvolvimento em ambientes
suportados pela Internet. Essa formação e a troca de ideias entre pares através da rede
mundial de computadores foram destacadas pelos participantes dessa pesquisa, que
relatam experiências acerca da forma como ouvem e compartilham música e outros
materiais e vivências relacionadas ao universo musical, trazendo para análise a
dimensão da aprendizagem entre pares. Mesmo que não sejam intencionais, as trocas
musicais que realizam em rede revelam potenciais de aprendizagem. Podemos
abranger nesse sentido diferentes formatos de aprender coletivamente, seja entre
grupos de estudantes, seja entre grupos de professores e estudantes, e até mesmo
trocas com pessoas de outras salas de aulas, outros locais (via internet), cujos papéis
de quem ensina e quem aprende aparecem cada vez mais mesclados.
Ao serem questionados sobre formas de audição musical, dois canais utilizados
para ouvir música foram citados por todos os sujeitos. São eles o Youtube e o Spotify,
sendo o primeiro um site de compartilhamento de conteúdo audiovisual
prioritariamente e o segundo, um serviço de streaming para músicas e podcasts.
Outros sites e aplicativos também foram citados, mas com menor frequência, alguns
exemplos são Deezer, Apple Music, Sound Cloud, Vimeo e rádios online de forma geral.
Ao serem questionadas sobre padrões de escuta, as Estudantes B e O ainda afirmaram
buscar discografias completas para serem baixadas, sendo essa, porém, uma prática
cada vez menos comum em seus cotidianos.
Esses dados revelam muito sobre a forma como os sujeitos dessa pesquisa
ouvem música. Em diversas falas durante as entrevistas realizadas foi dado destaque à
audição móvel e a importância dessa prática para os estudantes, bem como a
compreensão de como as possibilidades tecnológicas impactaram esse processo.
Um exemplo está na fala da Estudante A:
Quando eu tô caminhando, ou dentro do ônibus, eu uso bastante,
pra ouvir música... Tem também uns aplicativos que eu baixei, pra
estimular a percepção, pra rítmica, pra esses momentos serem
momentos em que eu tô ouvindo música e estudando também.
(Estudante A)

É importante considerar que a escuta de reprodução de música gravada, de


forma individual, torna-se móvel, se desterritorializa, segundo Hosokawa (2012), com o
Walkman da Sony em 1979, não sendo assim um processo recente. O Walkman surge
como um novo artefato que aumenta as possibilidades espaciais de fruição musical, de
experiência de escuta com a música. Assim como o Discman, um tocador de MP3 ou o
celular tocando um arquivo de áudio ou através da internet com streaming.
Shuhei Hosokawa, no texto The Walkman Effect (HOSOKAWA, 2012), escrito
em 1984, foi o primeiro a relacionar o então novo dispositivo à vida urbana, discutindo
o Walkman como um equipamento que transita com o indivíduo pela cidade moderna.
Hosokawa discute conceitos como portabilidade, singularidade, autonomia e
construção/desconstrução de significado como fatores chave no desejo de isolamento
social. O autor esboça toda uma teoria musical sobre portabilidade, a musica mobilis,
levando em consideração muitas relações entre a fruição musical e as estruturas
urbanas.
Um comentarista mais recente de Hosokawa, Pieter Verstraete (2017), reflete
sobre as qualidades do Walkman para construir e desconstruir valores do dispositivo:
Este passeio de áudio (ou teatro) ativa a sensação ambígua de estar
no comando do ambiente e flerta com o voyeurismo, oferecido pelo
sigilo do equipamento móvel de música, que ajuda a pessoa a se
sentir segura enquanto olha descaradamente para os outros, que se
tornam parte de seu teatro secreto. (VERSTRAETE, 2017, p. 13)

Cerca de quarenta anos após o Walkman, algumas tecnologias amadureceram


e convergiram para renovar a musica mobilis na cultura urbana, adotando um suporte
de fixação de áudio invisível, intangível, virtualizado. Como Jonathan Sterne explica em
seu livro Mp3: The Meaning of a Format (2012), a cultura da troca de músicas no final
do século XX e início do século XXI renasceu com novas formas de armazenar,
transportar e copiar música.
Uma discussão que me parece essencial nesse contexto é sobre espaço, tempo
e dispositivos para escuta, sendo que antes do streaming os momentos de audição
eram integrados apenas pelo ouvinte que acionava cada artefato (Walkman, vitrola,
televisão...) no momento propício. Agora, essa possibilidade se mantém, mas os
serviços de streaming são capazes de integrar dados extraídos a partir da monitoração
desses momentos. Ou seja, a digitalização dos artefatos e a comunicação destes em
rede possibilitam que a mesma plataforma seja utilizada para atender a diferentes
demandas de contextos de escuta.
O ouvinte acaba sendo também um construto da plataforma, que determina
um agrupamento de lacunas que são mapeadas a partir das interações do ouvinte com
a interface, para, com isso, o sistema saber o que apresentar ao ouvinte em sua
interface gráfica. A lógica de plataformas desse tipo é baseada em acesso, e não em
posse. São serviços que atuam como pontes para o consumo de dados digitais. Logo, as
informações do usuário são importantes para a definição de qual conteúdo é mais
importante ou interessante para o consumo daquele ouvinte.
Há uma relação de retroalimentação do usuário que responde aos estímulos da
interface das plataformas. Os sistemas de streaming mapeiam constantemente as
interações para, assim, apresentar conteúdo que o algoritmo de inteligência artificial
julgue mais atrativo para o usuário logado. Neste sentido, mais uma vez destacamos a
necessidade de uma educação para as mídias, no sentido de propor discussões
orientadoras e mediatizadoras em ambientes formativos, para que a relação entre
usuário/estudante e mídia seja crítica e ativa e não recaia sempre em mais do mesmo,
apesar de aparentes e superficiais novidades.
Para Jenkins (2006) comportamentos fundantes da convergência cultural se
apresentavam antes da digitalização dos meios de consumo. Durante a popularização
das mídias digitais e do streaming alguns desses padrões de consumo já existentes
foram reforçados.
Como, por exemplo, no passado fazer uma mixtape em k7 de 60 minutos era
um processo longo, entre trocar um disco por outro, escolher a faixa, apertar o play e
o rec. Além do esforço de obter as mídias físicas para as regravar ou esperar a música
tocar na rádio. Em uma plataforma como o Spotify, por exemplo, uma playlist do
mesmo tamanho pode ser feita em menos de cinco minutos e compartilhada na página
de perfil do usuário e entre seus colegas de redes sociais.
Se destacam também as possibilidades de aprendizagem móvel que estão
também presentes nas falas dos sujeitos.
Observemos, por exemplo, o relato da Estudante F:
Eu usei durante muito tempo esses aplicativos pra treinar percepção,
tipo o Perfect Ear, que me ajudou muito nas matérias de percepção e
de rítmica, eu estudava isso o tempo todo, uso o celular pra ouvir
música, mas eu também uso o celular pra ouvir podcast, já ouvi até
livro... (Estudante F)

A fala da Estudante F leva a refletir sobre as possibilidades de aprendizagem e


mobilidade, termos que nasceram separados, mas que podem se unir em tempos de
cultura digital. A concepção de aprendizagem móvel para o ensino pressupõe novos
usos e combinações pedagógicas que podem se integrar também aos fazeres docentes
e discentes em sala de aula.
Para Camacho (2011):
Os dispositivos móveis contam com uma série de características que
podem converter a plataforma em espaço ideal para complementar a
formação, fazer a gestão do conhecimento e apoiar o trabalhador nas
tarefas. A experiência de um usuário com este tipo de tela é muito
mais natural que com outros suportes tecnológicos. A possibilidade
de manipular com os dedos e tocar permite melhorar a
experimentação e a aprendizagem. A isso se soma o fato de contar
com algumas funções que permitem complementar a aprendizagem.
(GPS, bússola, câmera, etc.) (CAMACHO, 2011, p.43)

Neste mesmo sentido, recursos inovadores e até mesmo inusitados não param
de ser explorados. Em 2009, ocorreu a estreia do “Conjunto de Celular” da
Universidade de Michigan (REUTERS, 2009). Por meio de seus smartphones da Apple,
estudantes desenvolveram habilidades de projeção, criação e execução, tendo esses
aparelhos como “instrumentos musicais”.
Essas ações foram resultado da oferta de uma disciplina chamada “Construindo
um Conjunto Celular”, na qual o músico Georg Essl atua como docente. Para ele o
aparelho celular consiste em um interessante recurso para descobrir novas formas de
manifestar a performance musical (REUTERS, 2009).
Criswell (2012) averiguou entre especialistas da área da educação musical usos
pedagógico-musicais de aplicativos em dispositivos móveis e concorda que o uso de
tablets e smartphones nas escolas têm propiciado novas maneiras de enriquecimento
do processo educativo musical. Em seu levantamento, diversas formas de utilização
criativo-musical foram sugeridas pelos educadores musicais, e mencionados mais de
20 softwares ou apps para o uso na sala de aula, divididos por categorias em relação à
sua funcionalidade.
Entretanto, a possível incorporação da aprendizagem móvel à educação traz
uma série de desafios, como adaptações de conteúdos e didáticas a situações de
consumo e de vida dos mais diferentes indivíduos e dos atributos dos dispositivos a
serem utilizados, com a potencialização de jogos interativos e conteúdos multimídia.
Nas entrevistas e respostas dadas ao questionário, os entrevistados trazem
ainda outras experiências acerca da forma como ouvem e como compartilham música,
nos remetendo também à aprendizagem entre pares, uma das dimensões da cultura
participativa anunciada por Jenkins (2006). Mesmo que a aprendizagem não seja
intencional, as trocas musicais que realizam através de mensagens via Web revelam
potenciais de aprendizagem musical.
Nas respostas dadas ao questionário, treze, dos quinze sujeitos, afirmaram
compartilhar música na Internet de maneiras variadas. Oito afirmaram compartilhar
conteúdos produzidos por si mesmos e por outros, enquanto os cinco restantes
afirmaram compartilhar apenas conteúdos produzidos por outras pessoas.
A estudante B comenta:
Eu costumo compartilhar vídeos no Youtube, Facebook e Instagram
que considero bacanas, com músicos que trabalham comigo ou não...
E sempre compartilho o conteúdo de vídeos de música que tenho
produzido para o Instagram e Facebook. Eu acabo mandando
também os que acho mais legais para os meus amigos, pelo
WhatsApp ou pelo Face e eles também mandam pra mim. (Estudante
B)

Nessa fala é possível perceber formas de escuta musical, além de observar o


compartilhamento de conteúdos produzidos pela própria estudante. Compartilhar com
colegas aquilo que se está ouvindo permite demonstrar preferências e conhecer novas
músicas, entendendo as redes sociais e o WhatsApp como uma forma de também
ouvir música em conjunto. Neste depoimento, a estudante B demonstra compartilhar
e dialogar sobre o que pesquisa e ouve no âmbito musical por meio dessas
ferramentas.
Observemos também a fala da Estudante H:
Eu costumo produzir pequenos vídeos com interpretações pianísticas
explicando sobre a obra nos vídeos, mas compartilho só com amigos
e família. Compartilho músicas com meus amigos também, pra saber
o que estão ouvindo, a gente ouve, fala sobre, critica, troca músicas,
compara... (Estudante H)

É possível ressaltar a possibilidade de audição musical em conjunto


proporcionada pela troca de mensagens indicadas nas falas das estudantes. A escolha
do que compartilhar, os comentários, críticas e comparações carregam sentidos,
demandando uma forma de apreciação musical e, por consequência, um certo tipo de
aprendizagem, que ocorre nesse contexto, entre pares.
Outro tipo de prática ainda enfatizada nas falas dos sujeitos é a produção de
materiais para compartilhamento na rede.
O compartilhamento de produções na Internet pode assumir diferentes
perspectivas. Podem ser elas a conquista de muitos likes ou seguidores, a produção de
um vídeo “viral” ou o fato de se fazer apenas presente na rede. Independente dos
motivos, a divulgação de práticas musicais pelos entrevistados parece ter sempre
relação com o desejo de compartilhar experiências.
Entendo nesse cenário que, em rede, compartilhar músicas interpretadas por
outros, composições próprias ou mesmo interpretações produzidas a partir de músicas
de outros, conhecidas ou não, em busca de trocar experiências, ouvir novas músicas
ou roupagens, tecer e responder comentários, discutir sobre bandas, instrumentos,
teoria musical e outros tópicos livremente na Internet, estabelece um espaço rico para
interações, gerando discussões e possibilidades ricas para a aprendizagem musical.
O processo de compartilhar pode ser atrelado às possibilidades de aprender
com o outro, um processo que se nutre de várias ações nas quais os sujeitos ocupam
os lugares de produtores e consumidores, a depender do momento. O que se necessita
saber para criar, compartilhar e dialogar sobre música no ciberespaço pode ser
entendido como potencial para promover aprendizagens musicais.
A relação dos sujeitos da pesquisa com as TDIC mostra também aspectos
participativos e colaborativos que geram formas de aprender, seja através do
compartilhamento de uma música, do ato de assistir e compartilhar uma videoaula; há
muitas pistas da interação entre os estudantes e conteúdos presentes. Práticas nesse
sentido são discutidas por Tobias et al. (2015) quando trazem as possibilidades de
engajamento musical na cultura digital e participativa. Segundos os autores, em redes
virtuais é possível “desempenhar várias funções musicais como ouvir e discutir a
música em um site, criar e compartilhar listas de reprodução, ou ensinar aos outros
como executar a música, gravando e postando tutoriais em vídeo” (TOBIAS, et al.,
2015, p. 95-96). Esses são exemplos de engajamento musical na cultura digital e
tornam-se importantes elementos no contexto educacional contemporâneo, tendo em
vista uma educação musical comprometida com as diferentes práticas musicais dos
alunos.

Considerações Finais

Neste momento, buscarei agrupar algumas considerações vistas como mais


relevantes.
É importante destacar que os percursos de aprendizagem musical dos
participantes envolvem múltiplos contextos, mesclando diferentes tipos de
aprendizagem.
Os estudantes, sujeitos dessa pesquisa, pareceram compreender que a
utilização de tecnologias online pode ser um meio para o desenvolvimento do
pensamento crítico, abrindo possibilidades para o encontro de novas formas de
aprendizagem e desenvolvimento pessoal e profissional.
Foram citados muitos espaços virtuais onde é possível ter acesso aos mais
diversos tipos de conteúdo, em diferentes tipos de organização, que influem nas
aprendizagens e são espaços onde os próprios sujeitos também compartilham suas
próprias criações e materiais. Essas vivências online influenciam também as formas de
audição musical desses indivíduos, dando destaque à audição móvel, ao streaming, ao
compartilhamento de músicas e uma espécie de audição musical coletiva assíncrona,
bem como às conexões possíveis entre os processos de aprendizagem e mobilidade.
De forma geral, percebo que os estudantes compreendem que o uso da
internet e das TDIC proporciona condições para suas ações, principalmente as
relacionadas à forma como se comunicam, como criam e compartilham música e como
estudam. Para acessar a internet, é preciso um artefato físico, um computador, um
aparelho celular, um laptop ou um tablet. Essas tecnologias digitais estão imbricadas
de modo que quando se referem ao artefato tecnológico, a internet está inerente.
Em suas práticas sociais os estudantes parecem revelar que a Internet está se
tornando o lócus de todo ou qualquer tipo de pesquisa. Algumas soluções de filtragem
para todo o material disponível parecem emergir de alguns desses alunos, mas
discussões e estratégias para vivências da cultura digital nos parecem urgentes nos
ambientes formativos. É importante ressaltar que estudar e pesquisar nesse sentido
não estão sempre relacionados à construção de novos conhecimentos, mas, sim,
constantemente, à busca por informações, que, obviamente, nem sempre são precisas
ou mesmo verdadeiras, necessitando, assim, de filtros.
Por fim, é importante ainda considerar e compreender, que todos têm a
capacidade de autoria, tanto individual quanto coletivamente, o que é amplamente
difundido no meio musical e pode ser utilizado mais potencialmente com as TDIC,
tendo em vista práticas que emergem do que entendemos por cultura digital e
participativa. A perspectiva de uma educação mais autoral é facilitada pelas
tecnologias digitais devido à busca por informações ser mais fácil e rápida, mas
também ao compartilhamento e ao trabalho colaborativo.

Referências

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