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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

CAROLINA FABIAN SATO GAVINO

A MODA COMO IMAGEM ONÍRICA


Uma análise benjaminiana da revista Harper‟s Bazaar

SÃO PAULO
2016
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

CAROLINA FABIAN SATO GAVINO

A MODA COMO IMAGEM ONÍRICA


Uma análise benjaminiana da revista Harper‟s Bazaar

Dissertação apresentada à Banca Examinadora


da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de MESTRE em Comunicação e
Semiótica da área de concentração Signo e
significação nos Processos Comunicacionais,
sob a orientação do Prof. Dr. Oscar Angel
Cesarotto.

SÃO PAULO
2016
Banca examinadora:

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A meu filho Daniel
AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço aos meus pais, Fabio e Marcia, apoiadores e exemplos de amor. Sem
o auxílio e cuidado deles não seria possível realizar esta pesquisa.

Ao orientador e amigo, Oscar Angel Cesarotto, por sua competência e respeito com que
conduziu a pesquisa.

Aos que de alguma forma contribuíram, seja com palavras afetuosas, ouvidos e conselhos: as
meninas Flávia Suzue, Eliane Diógenes, Renata Cuch e Magu Mitre, colegas de curso e
amigas; Elcio Basilio, amigo querido e incentivador; Lissa Zurita e Carlos Dias, que tanto
estimo e que me apoiaram na fase final de meu trabalho.

Às professoras Leda Tenório da Motta e Lúcia Santaella, que contribuíram gentilmente em


minha banca de qualificação ao conceder conselhos, ideias e estímulos para que eu pudesse
dar continuidade em meu trabalho.

À Cida Bueno, secretária do Programa, que sempre prestou auxílio prontamente em todas
nossas dificuldades e dúvidas.

A Capes pela concessão de bolsa de mestrado que possibilitou a realização desta pesquisa.
A moda como imagem onírica: Uma análise benjaminiana da revista Harper‟s Bazaar

RESUMO
A presente pesquisa destinou-se a percepção da revista Harper‟s Bazaar no Brasil como
imagem onírica e dialética de nosso tempo. O objetivo central da dissertação foi observar
como a moda apresentada na revista se fez como fetiche da mercadoria e fantasmagoria desde
a sua fundação até hoje. Para tanto, nos apoiamos sobre os estudos de Walter Benjamin
contidos no Trabalho das Passagens e suas Obras Escolhidas. Levantamos para tal o
contexto histórico do período que antecedeu o lançamento da revista de origem norte-
americana em 1867, o nascimento do capitalismo industrial e a ascensão da classe burguesa
no seio da sociedade. Deste modo, destrinchamos o início da moda de Alta Costura e da
imprensa de moda na Europa e Estados Unidos. O estudo de Adorno e Horkheimer (1996)
sobre o conceito de Iluminismo foi convocado neste trecho de nosso trabalho para a
elucidação sobre o modo de pensar do homem burguês do século XIX. O segundo capítulo da
pesquisa fez préstimo aos escritos de Benjamin em seu Trabalho das Passagens. As análises
de Susan Buck-Morrs (2002) e Willi Bolle (2000), que configuram parte importante do estado
da arte sobre o Trabalho das Passagens, foram consultadas para tecer nossas conclusões
acerca da moda e da revista Bazaar como imagem onírica. No terceiro capítulo, verificamos a
possível presença aurática em torno da publicação editorial de moda no Brasil como objeto
histórico e como suporte da fotografia de moda. Tomamos como base teórica as observações
de Trivinho (2012) sobre o Glocal e os ensaios de Benjamin sobre a aura A Obra de Arte na
Era da Reprodutibilidade Técnica e Pequena História da Fotografia. A relevância dessa
pesquisa se deve à brevidade da revista Harper‟s Bazaar brasileira, lançada somente em 2011,
e por se tratar de uma das mais antigas revistas de moda da América. Além disso, destacamos
a ausência de uma análise do veículo em questão no campo da Comunicação e da Semiótica.

Palavras-chave: Harper‟s Bazaar, modernidade, imagem onírica, moda


Fashion as image dream: a Benjamin analysis in Harper's Bazaar magazine

ABSTRACT
This research assigns the perception of Harper‟s Bazaar magazine in Brazil as a bold and
dialectic image of our time. The main objective of the dissertation is to track how fashion is
represented on the magazine made itself as merchandise and phantasmagoria fetish since its
foundation until today. In order to validate it, we use support in the Walter Benjamin‟s studies
inserted in The Arcades Project and Selected Writings. According to the historical context of
the time period preceding the North American magazine debut in 1867, birth of industrial
capitalism and rise of bourgeoisie class in the heart of society. In that way expanding the
beginning of Haute Couture and media in the fashion industry in Europe and United States.
Adorno‟s and Horkheimer‟s study about the concept of Iluminism was summoned in this
section of our work for elucidation of how the 19th century upper class men thinks. The
second chapter of this investigation trusts Benjamin‟s writings in The Arcades Project. Susan
Buck-Morrs (2002) and Willi Bolle (2000) analysis that set up a significant part of the state of
art about The Arcade Project, were consulted to develop conclusions about fashion and
Bazaar‟s magazine as dream imagery. In the third chapter, it is possible to add up the
existence of fashion editorial and photography support as a historical object in Brazil. For
theoretical guidance, we employ Trivinho (2012) analysis about Glocal and Benjamin‟s
rehearsal about aura The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction. This is
research importance is due to the fact that the brazilian Harper‟s Bazaar was short-lived,
launched only in 2011, even so it is one of the most dated American fashion magazine.
Furthermore, we highlight the absence of a review of this type of media in the field of
communication and semiotics.

Keywords: Harper's Bazaar, modernity, dream image, fashion


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Ilustração mostra a presença de uma criada negra junto a mulheres burguesas e uma
criança....................................................................................................................................... 29
Figura 2 Ilustração de capa mostra senhoras burguesas reunidas em torno de criança. ........... 33
Figura 3 Diagrama D. ............................................................................................................... 37
Figura 4: Capa da edição nº1 da revista Harper's Bazaar no Brasil com a top model Gisele
Bündchen. ................................................................................................................................. 65
Figura 5: Capa de edição comemorativa da revista por seus quatro anos no Brasil................. 68
Figura 6: Destaque para chamada principal de capa "Tudo Novo" e "Em nome do look:
estilistas buscam na religião referências para as coleções" ...................................................... 82
Figura 7: Modelo alemã Toni Garrn ilustra capa de edição brasileira da Bazaar. ................... 91
SUMÁRIO
RESUMO................................................................................................................................... 6
ABSTRACT................................................................................................................................ 7
LISTA DE ILUSTRAÇÕES .................................................................................................... 8
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
1 A MODERNIDADE COMO ELEMENTO CRIADOR DA HARPER’S BAZAAR...... 15
1.2 O LUXO COMO ELEMENTO CRIADOR DA HARPER‟S BAZAAR ................................. 23
2 A MODA SOB ALGUMAS INTERPRETAÇÕES .......................................................... 36
2.1 MODA E TEMPO ......................................................................................................... 43
2.2 MODA E SONHO......................................................................................................... 49
2.3 MODA E MIMESIS ...................................................................................................... 57
3 HARPER’S BAZAAR NO BRASIL: O GLOCAL E A AURA ........................................ 63
3.1 CONCEITUAÇÃO DE AURA POR WALTER BENJAMIN ............................................. 74
3.2 A AURA DO LUXO ..................................................................................................... 79
3.3 O GLOCAL E A AURA ................................................................................................ 84
CONCLUSÕES....................................................................................................................... 93
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 98
ANEXO I – TRANSCRIÇÃO DE ENTREVISTAS ......................................................... 101
ENTREVISTA 1 .............................................................................................................. 101
ENTREVISTA 2 .............................................................................................................. 103
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INTRODUÇÃO

O encantamento produzido pela moda esteve presente desde o projeto inicial da


pesquisa de dissertação, mas não sabíamos ao certo sob qual aspecto o assunto seria
destrinchado. O estudo sobre a moda poderia ser aprofundado em diversos prismas, porém,
tínhamos como intuito estudar sua forma de comunicação. Foi então que surgiu a ideia de
estudar a revista de moda de luxo Harper‟s Bazaar, principalmente pela ausência de
pesquisas acadêmicas sobre tal publicação, devido ao recente lançamento em âmbito nacional.
A revista em sua edição brasileira foi lançada em novembro de 2011, enquanto a edição
americana foi fundada em 1867 em Nova Iorque. Consideramos como possível caminho para
a pesquisa a grande lacuna de 144 anos da inserção da revista no Brasil, tardiamente em
comparação com a revista também de luxo Vogue, igualmente americana, porém presente no
país desde a década de 1970. Não havia, porém, argumentos sólidos que pudessem justificar
tal atraso temporal. A princípio, a ideia era a de analisar as imagens fotográficas dos editoriais
de moda da Harper‟s Bazaar no Brasil. No entanto, a que propósito essa análise de imagens
se daria? Em quais aspectos as fotografias seriam analisadas? E em qual período? Decidimos,
portanto, tomar a revista como a imagem de seu tempo em vez de analisarmos cada imagem
da revista, seus significados e significantes. Não se incorreu, inicialmente, relacionar a moda
com os escritos de Walter Benjamin, levantados como o maior arcabouço teórico de nossa
pesquisa. Benjamin surgiu como principal referencial durante o estudo, casualmente, de outro
notável crítico da imagem: Aby Warburg e o seu pathosformel. O conceito de pathosformel
emergido por Aby Warburg em seus estudos sobre o Renascimento demonstrou que as
imagens romperam com a cronologia e apresentaram um determinado mecanismo de
repetição. O historiador de arte percebeu que esse padrão sugeria um apaixonamento por
imagens, a chamada fórmula de pathos, que seria antes de tudo a presença da antiguidade
pagã no renascimento. A primeira vez que Aby Warburg inseriu esse termo em seus escritos
foi em seu ensaio “Dürer e a antiguidade italiana”, de 1905, no qual compara a “Morte de
Orfeu” em desenhos distintos, uma feita por Albert Dürer e a outra por um anônimo
(WARBURG, 2012). A partir daí, o chamado apaixonamento de imagem de Warburg
condensou-se com as passagens parisienses, descritas no Trabalho das Passagens de Walter
Benjamin. O objetivo principal estava formado: o estudo da Harper‟s Bazaar como objeto
histórico e como imagem onírica e dialética, temas tratados por Benjamin, que se encantava
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com as passagens pelas quais caminhava no tempo de estudo em Paris. No tocante ao


Trabalho das Passagens, Susan Buck-Morrs nos expõe de modo enfático as primeiras notas
de Benjamin:

Nenhuma sequência especial os ordena: Arcadas, moda, tédio, kitsch, figuras de


cera, suvenires, luz de gás, panoramas, construções de ferro, fotografia, prostituição,
flâneur, colecionador, apostas, ruas, caixas, lojas, metrôs, estradas de ferro, sinais de
trânsito, perspectiva, espelhos, catacumbas, interiores, tempo, exposições mundiais,
portais, arquitetura, haxixe, Marx, Haussmann, Saint-Simon, Grandville, Wiertz,
Redon, Sue, Baudelaire, Proust. Conceitos metodológicos centrais também estão
presentes nas notas: imagens de sonho, casas de sonho, sonho coletivo, ur-história,
agora-do-reconhecimento, imagem dialética (BUCK-MORRS, 2002, p. 59).

As palavras-tópicos do Trabalho das Passagens não possuem lógica de ordenamento,


apenas expressam para Benjamin momentos que o autor tenta apreender por meio de
fragmentos que possam trazê-los à tona novamente, tal como as imagens de moda da Bazaar
nos indicam algo sobre o presente para nós. A modernidade iniciou a fragmentação da
sociedade e seus elementos. Para Buck-Morrs (2002, p. 47), os formatos periódicos dos meios
de comunicação de massa refletem tal fragmentação: “o efeito da tecnologia, na metrópole
moderna, tanto no trabalho como no ócio, tinha sido o de estilhaçar a experiência em
fragmentos”. Para buscar reconectar esses fragmentos, Benjamin buscou expô-los de tal
maneira para criar um retrato da modernidade e as passagens como imagem onírica de seu
tempo. Embasamo-nos para analisar a fundação da revista Harper‟s Bazaar no Brasil,
sobretudo, na estrutura dada por Benjamin e na mitificação da mercadoria descrita por ele
como imagem onírica e dialética. Investigaremos, portanto como na revista Harper‟s Bazaar
se fazem imagens oníricas e dialéticas do nosso presente.
O primeiro capítulo da dissertação intitulado A modernidade como elemento criador
da Harper‟s Bazaar destinou-se a contextualizar historicamente o período de nascimento da
revista Harper‟s Bazaar nos Estados Unidos da América. Não tratamos, contudo, de uma
história da imprensa na América, ou menos ainda, da história da imprensa de moda. O
capítulo que nos abre a dissertação demonstra as condições que culminaram na criação da
revista americana Harper‟s Bazaar. A primeira condição apontada por nós foi o crescimento
populacional nas cidades europeias e o avanço do capitalismo industrial. A economia das
cidades na Europa por volta do século XIX não se baseava mais na agricultura e manufatura e
voltava-se a partir de então para a produção de bens de consumo em indústrias vendidos agora
no comércio de varejo. Os centros das cidades modernas Paris, Berlim e Londres, contavam
na metade do século XIX com lojas e uma nova multidão de compradores. O aristocrata já
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não era a figura social mais importante do momento e um novo agente eclodia: o burguês, que
assumia um novo papel na sociedade moderna. A fim de tecermos esse panorama buscamos
em nossa pesquisa as análises históricas de Robert Sennett (1989) e Eric Hobsbawm (2014).
A condição das cidades fazia nascer o Iluminismo burguês, descrito por Adorno e Horkheimer
(1996) na obra Dialética do Esclarecimento. Para os filósofos da Escola de Frankfurt, o
próprio Iluminismo, que fazia o homem buscar progressos através da razão, havia culminado
em uma nova alienação: o paraíso poderia ser aqui e agora, com o encantamento da
mercadoria. Para Adorno e Horkheimer, a criação de novos elementos míticos já havia
começado com as religiões da Grécia Antiga. Antes disso, as religiões anímicas acreditavam
que a própria natureza era o deus; os mitos gregos, no entanto, já previam a dominação dos
elementos da natureza com a ajuda dos deuses. A dominação da natureza e a racionalidade
desembocaram em um novo local de enfeitiçamento: a mercadoria, que pode ser fabricada,
medida, pesada, vista e provocar desejo. Outro ponto observado em nosso primeiro capítulo
nos foi apontado por Sennett (1989): a distinção entre as esferas pública e privada na
modernidade. O exterior era agora mais movimentado, cheio de pessoas andando pelas ruas,
mais agitado e barulhento. O interior era o local íntimo onde o homem se abrigava das
multidões. A roupa passou a servir à moda e deixou de ser uma simples proteção do corpo.
Ela era usada como meio de expressão das emoções e como indicador dos papeis sociais de
cada um na sociedade. No capítulo primeiro ainda recorremos à historiadora Elizabeth Wilson
(1985) a fim de conectar a moda com o tecido social e com a imprensa. Também se fez
necessário, no capítulo I, apresentar o nascimento da alta costura, com Worth, no final do
século XIX e que ocorria conjuntamente ao início da produção em massa de roupas. As
senhoras burguesas agora podiam se vestir tal como as aristocratas atendidas pelo costureiro
francês. Paris lançava a moda e esta era replicada por todo o mundo seja por meio das
Exposições Universais ou pelas revistas femininas. A historização da moda se deu em nossa
dissertação por meio de Grumbach (2009), Laver e Probert (2008), Lipovetsky (2005, 2009) e
Wilson (1985). A nova sociedade burguesa via nas facilidades da vida moderna e na
civilidade uma forma de luxo. O homem cercava-se de civilização e daquilo que considerava
belo: roupas, mobiliários, bons modos. O luxo era visto igualmente como ideia de conforto,
não somente mais como ostentação e símbolo de poder (ORTIZ, 1998). Em consonância ao
capitalismo industrial e a sociedade burguesa latente, a imprensa de moda ganha um lugar e
tempo propício para irromper. As primeiras revistas femininas são lançadas na Inglaterra e
França no século XVIII, no século XIX a Harper‟s Bazaar nos Estados Unidos. O nascimento
da revista Bazaar foi contextualizado em nossa dissertação por Mira (2001) e Buitoni (1981)
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e sobre a origem da revista Bazaar nos Estados Unidos consultamos Blum (1974) e Mott
(1938). O primeiro capítulo da dissertação se encerra remontando as condições que fizeram
ascender a Harper‟s Bazaar em Nova Iorque. Para Wilson (1985), se Paris foi a capital do
século XIX, Nova Iorque se tornou a capital do século XX. Os Estados Unidos da América,
sobretudo Nova Iorque, receberam no fim do século XIX um grande número de imigrantes, e
com eles, as cidades cresciam em estrutura e tamanho.
O capítulo II da dissertação se voltou à apresentação das principais ideias de Benjamin
sobre a imagem onírica e sua relação com a moda enquanto fetiche da mercadoria. Em
primeira instância, percebemos que a moda na modernidade serviu ao homem como elemento
de união de indivíduos fragmentados pelo capitalismo (WILSON, 1985). O capitalismo
industrial passou a exercer no homem o poder de mistificação e tanto a moda como os objetos
passaram a ter características humanas. A moda moderna era capaz de expressar o sentimento
de quem a vestia (SENNETT, 1989). Com os novos modos burgueses, surge a figura do
Flâneur e do Colecionador, apontados por Benjamin no Trabalho das Passagens. Enquanto o
Flâneur vagueia na esfera pública da cidade, observa a multidão e suas vitrines, o
Colecionador ajunta objetos em sua residência, na esfera íntima. A essa altura tomamos as
análises de Buck-Morrs (2002), Bolle (2000) e Konder (1988). A moda se faz como imagem
onírica, como expressão do sonho coletivo, e a interpretação deste sonho se dá pelo
historiador, este seria o despertar. Sustentamos o sonho como realização de um desejo a partir
do texto de Freud A Interpretação dos Sonhos e o Mal-estar na Civilização. A moda de
acordo com a nossa análise é uma gratificação substitutiva que, como todos os outros
prazeres, nos proporciona apenas um bem-estar momentâneo, um “morno bem-estar”
(FREUD, 2011). Neste ponto da dissertação, adentramos a ideia nietzscheana do Eterno
Retorno do Mesmo, retrabalhada por Benjamin no Trabalho das Passagens. A moda é o
Eterno Retorno do Mesmo porque nunca consegue saciar o desejo do comprador, que busca
incessantemente a novidade. Busca-se eternamente a repetição daquilo que proporcionou
alegria e felicidade por um instante. Para a leitura do Eterno Retorno neste ponto da
dissertação nos auxiliamos por Pelbart (1998). Com base nessa análise, concluímos que a
moda é onde a mercadoria encontra a sua melhor forma fantasmagórica. A história se faz
então pelo tempo mítico, esvaziado de sentido (MATOS, 2015). Nesta perspectiva, coube-nos
o aprofundamento da noção de mito, com esclarecimentos de Adorno e Horkheimer (1996). O
capítulo II se encerra com uma análise da moda como mimesis, com base no estudo de Jeanne
Marie Gagnebin (1997) sobre os textos de Adorno e Benjamin.
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No último capítulo, abordamos a conjuntura do nascimento da revista Harper‟s


Bazaar no Brasil. Para tal fim, convocamos as noções do Glocal dadas por Trivinho (2012). A
glocalização é um fenômeno ocasionado pela evolução tecnológica dos aparatos mediáticos
que proporciona a existência em tempo real. Voltamos, portanto, a Benjamim para relacionar
o Glocal e a imagem onírica. Com a glocalização, tem-se a impressão de uma aura fictícia, já
que se perde o Aqui e o Agora que só a aura pode conferir aos objetos. Nosso objetivo com o
terceiro e último capítulo foi o de analisar a revista em sua edição brasileira como um objeto
histórico e também, se suas fotos apresentariam certo tipo de aura. Abordamos, desse modo, o
texto de Benjamin sobre a aura e a reprodutibilidade técnica para a discussão das fotografias
de moda. Para tanto, utilizou-se também o texto de Benjamin A Pequena História da
Fotografia.
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1 A MODERNIDADE COMO ELEMENTO CRIADOR DA HARPER’S BAZAAR

“Nosso século não tem formas. Não imprimimos o sinete de nosso


tempo em nossas casas, nem em coisa alguma. Encontra-se, nas ruas,
pessoas com a barba talhada como no tempo de Henrique III, outras
com os cabelos penteados como o do retrato de Rafael, outras como
no tempo de Jesus Cristo. Os apartamentos ricos são gabinetes de
curiosidades: o antigo, o gótico, o gosto da Renascença, o de Luiz
XIII. Tudo é confusão. Enfim, temos coisas de todos os séculos, menos
do nosso, o que nunca se deu em outra época. O ecletismo é o nosso
gosto. Tomamos tudo que achamos, pela beleza, pela comodidade,
pela antiguidade e até pela fealdade. E assim vivemos somente de
destroços, como se o fim do mundo estivesse próximo.”
(Alfred de Musset)

Neste capítulo, resgatamos as condições sociais e históricas no momento de fundação


da revista Harper‟s Bazaar na América. Antes de iniciar a historização da revista Harper‟s
Bazaar e da imprensa de moda do século XIX, que é nosso objeto de estudo, é importante
trazer à tona algumas circunstâncias materiais do período em questão. A publicação Harper‟s
Bazaar é uma publicação americana, porém, também levantaremos alguns dados das capitais
da França e Inglaterra como ilustração, pois estas representam o nascimento do capitalismo
industrial no mundo. O primeiro ponto a ser destacado aqui é o crescimento populacional sem
precedentes das cidades do século XIX. De acordo com levantamento realizado por Sennett
(1989), a cidade de Paris tinha em 1801, 547.756 mil habitantes e em 1896, 2.536.834
milhões de habitantes. Já Londres apresentava 864.845 mil habitantes em 1801 e passou para
4.232.118 milhões de habitantes em 1891. O maior aumento se deu, no entanto, nas capitais,
que possuíam poucas indústrias de porte. De acordo com Hobsbawm (2014, p. 219), a grande
cidade consistia em povoamentos maiores do que 200 mil habitantes, as cidades
metropolitanas tinha pouco mais de meio milhão e não eram exatamente cidades industriais
embora houvesse nelas um punhado de fábricas, eram “mais precisamente um centro de
comércio, transporte, administração e uma multiplicidade de serviços que uma grande
concentração de pessoas atraía”. A população mais pobre das cidades europeias em grande
desenvolvimento, como Londres, Paris ou Berlim, não vivia nos centros, que eram destinados
ao comércio e negócios para a classe média. A economia dessas cidades ainda estava baseada
nas atividades que existiam no Antigo Regime, como o comércio, as finanças e a burocracia.
As indústrias existentes se voltavam ao comércio e à especialização de artigos de venda para o
varejo. “Com a população tão aumentada nas cidades, o comércio varejista se tornou mais
lucrativo do que nunca. A multidão de compradores inaugura uma nova forma de comércio,
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centralizada nas lojas de departamentos, à custa dos clássicos mercados ao ar livre”


(SENNETT, 1989, p. 167). De acordo com Konder (1988, p. 80), a burguesia que se irrompe
e transita pelas ruas e por entre as passagens “era anterior ao imperialismo, ostentava uma
convicção excessiva na nobreza e na universalidade de sua causa”. O período histórico em
questão era o do capitalismo industrial que crescia em ordem mundial e com ele as ideias da
razão, da ciência, do progresso e do liberalismo. Por fim, a burguesia europeia se fortalecia e
tinha que assumir um novo papel político público (HOBSBAWM, 2014).
Em face de tal perspectiva social e econômica, tomamos por base a análise marxista de
Adorno e Horkheimer para compreender o pensamento e as condições existentes para o
surgimento da moda moderna, a imprensa de moda e, por conseguinte, a revista Harper‟s
Bazaar na América. Com a Dialética do Esclarecimento ou a Dialética do Iluminismo,
Adorno e Horkheimer trataram de observar a cultura burguesa e capitalista, arcabouçados por
Marx e Freud. O ensaio foi escrito nos Estados Unidos em 1947, quando os filósofos da
Escola de Frankfurt já haviam se mudado em virtude do Nazismo e perseguições da Segunda
Guerra. Segundo a tradição Marxista, a história se constrói das práticas dos homens para com
a natureza, entre si e consigo mesmo e não de um fluxo de acontecimentos que se relacionam.
Diante disso, a teoria se forma com a prática e não o contrário, portanto, o pensamento de
uma época se dá em decorrência das práticas sociais, e destas seguem a concretização de
ideias. A dialética do esclarecimento, portanto, se trata de uma crítica aos sistemas de
produção e trabalho da época. O Iluminismo foi uma ideia do homem para pensar progressos,
com o objetivo de torna-los livres do medo e senhores da natureza. Sem os mitos, o homem
passaria a domar e a controlar a natureza. No entanto, a ideia do Iluminismo se converteu em
seu oposto, criando uma nova alienação, “a lógica formal foi a grande escola de
uniformização. Ela ofereceu aos iluministas o esquema da calculabilidade do mundo”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1996, p. 22). O mito e o espírito do Iluminismo, em análise por
Adorno e Horkheimer, se aproximaram à medida que os iluministas perceberam que, nos
mitos do período Clássico, os deuses tinham o domínio sobre os elementos da natureza, ao
contrário das religiões anímicas anteriores nas quais a natureza era o próprio deus. Já longe
dos mitos, o homem se apropria do pensamento racional e lógico, logo humano, e incorre em
uma nova mitologia: a crença no poder infinito da razão. Para Adorno e Horkheimer, os mitos
do período platônico eram resquícios das antigas religiões anímicas, dos deuses de seus
antepassados. Os mitos platônicos eram um produto do pensamento do homem sobre a
dominação da natureza, uma separação entre o logos e a realidade. Aqui já havia o nascimento
da dominação da natureza pelo homem.
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Adorno e Horkheimer (1996) apontam a filosofia de Francis Bacon como o


desdobramento da nova configuração da sociedade, com as transformações do sistema
econômico e seus novos contornos capitalistas. Para o filósofo inglês, que viveu entre os anos
de 1561 e 1626, a superioridade do homem encontrava-se no saber. No período de sua vida,
ocorria a transição entre a tradição escolástica/ aristotélica da Idade Média para o Iluminismo.
Como “pai da filosofia experimental”, que considerava a maior riqueza do homem, o saber,
deveria ser utilizado para dominar a natureza e para a busca do bem-estar. O “espírito da
ciência” previa o entendimento em detrimento da superstição, para que assim o homem
comandasse a natureza sem feitiços. Tal valorização do conhecimento humano coincide
justamente com a época em que a burguesia ascendia e buscava legitimação de poder sobre a
aristocracia. Para a nobreza, o valor não se concentrava na ciência, mas na valoração da
hereditariedade. “O saber é tão democrático quanto o sistema econômico justamente como
qual se desenvolve” (ADORNO; HORKHEIMER, 1996, p. 18), este era um dos objetivos da
filosofia de Bacon, conforme análise de Adorno e Horkheimer, o despojamento dos antigos
conceitos universais da filosofia clássica, que envolviam substância, qualidade, ação e paixão.
Os antigos conceitos ainda teriam relação com o “medo dos demônios, por meio de cujas
imagens os homens procuravam, no ritual mágico, influir na natureza” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1996, p. 20).
A busca pelo homem uno (si-mesmo-todo-poderoso) que tinha o poder sobre a
natureza foi resultado do homem anterior, o feiticeiro xamânico. O homem passa a tratar
então o mundo como universalidade e não permitir mais individualidades, apenas exemplares.
“A „confiança inabalável na possibilidade de dominação do mundo‟ que Freud
anacronicamente atribui à feitiçaria, só vem com uma dominação do mundo adaptada à
realidade, feita por meio de uma ciência mais astuta” (ADORNO; HORKHEIMER, 1996, p.
26). O Iluminismo, segundo a análise de Adorno e Horkheimer, é totalitário, pois não aceita a
universalização dos mitos em nenhuma hipótese. Enquanto abraça tudo o que existe, rechaça
o que se opõe a ele e assim se fortalece, usando a crítica como comprovação de seu poder.
“Assim como os mitos já são iluminismo, assim também o iluminismo se envolve em
mitologia a cada passo mais profundamente” (ADORNO; HORKHEIMER, 1996, p. 27).
Buck-Morrs (2002, p. 112) atribuiu ao Iluminismo burguês do século XVIII a ideia da
revolução industrial como a realização do paraíso terreno. Com a razão iluminista, o céu,
lugar de “redenção e bem-aventurança” poderia ser aqui e agora. “No século XIX, as capitais
da Europa, e em seguida as do mundo inteiro, se transformaram dramaticamente em brilhantes
espetáculos, expondo a promessa da nova indústria e da tecnologia como se caídas do céu”.
18

Destas, Paris era a mais brilhante. Antes do século XIX o luxo e a cidade brilhante já
existiam, porém, o acesso público a eles não. “O esplendor da cidade moderna podia ser
experimentado por quem quer que passeasse por seus bulevares e parques ou visitasse os seus
museus, as suas galerias de arte e os seus monumentos nacionais”. De acordo com Wilson
(1985, p. 84), o desenvolvimento econômico que se mostrava nas luzes da cidade e nas
vitrines era o reflexo da revolução industrial e, principalmente, refletiu na forma de pensar do
homem, “a revolução industrial consolidou a fé ocidental na racionalidade e reforçou a atitude
científica. O „real‟ era o que poderia ser visto, medido, pesado, e verificado e só os métodos
de investigação das ciências naturais pareciam corretos”. O Iluminismo deslocava o místico
da religião e o colocava em outras esferas da vida humana: “a magia, a religião e até os
empreendimentos artísticos, em comparação, pareciam coisas irracionais”. No século XIX,
houve o desenvolvimento das forças produtivas e como consequência, a preservação das
relações de produção e, como observado posteriormente no ensaio da Dialética do
Esclarecimento, o falso movimento de libertação do obscurantismo e seu próprio
aprisionamento. “O primeiro pólo (do desenvolvimento das forças produtivas) criava a
possibilidade de realização de uma utopia libertária; o segundo tendia a agravar as condições
em que os homens, frustrados, sonhavam com a libertação” (KONDER, 1988, p.80). Com o
crescimento do capital e das grandes cidades, foi refletida a observação do Iluminismo mítico
de Adorno e Horkheimer. Tanto a burguesia que detinha o capital e comandava fábricas e
negócios quanto seus trabalhadores acreditavam no próprio capital como sua libertação:

A insistência da burguesia na lealdade, disciplina e modesta satisfação não podia


realmente esconder que sua verdadeira percepção de que o que fazia os
trabalhadores trabalharem era algo bem diferente. Mas o que era então? Na teoria
eles deveriam trabalhar para deixar de serem trabalhadores logo que possível,
entrando então no universo burguês (HOBSBAWM, 2014, p. 225).

Em sua obra O Declínio do Homem Público, Sennet (1988, p. 34) faz apontamentos
sobre como as mudanças materiais do século XIX alteraram a relação do homem com a
sociedade. Para ele, três são as forças que atuavam sobre a vida pública e privada do homem
durante as mudanças do século XIX: o capitalismo industrial nas grandes cidades, a alteração
da percepção do homem acerca do desconhecido, uma reformulação do secularismo e
resquícios da organização da vida pública do Antigo Regime. A distinção entre a esfera
pública e a privada, certamente, foi uma das principais mudanças ocorridas na segunda
metade do século XIX. Com a maior circulação nas cidades, houve um novo significado no
modo de aparecer em público. “O contraste entre os interiores íntimos e as ruas barulhentas
19

era assinalado pelas roupas, que cada vez mais acentuavam a distinção entre o estar em casa e
o estar em público” (WILSON, 1985, p. 43). A moda em tal período ganhou expressão nunca
antes vista e nisto também é preciosa para compreender o momento, pois é preciso observar
os fenômenos mais superficiais capazes de revelar o mais profundo:

„As roupas fazem o homem‟, dizia um ditado alemão, e nenhuma época seguiu mais
a risca tal ideia do que a época em que a mobilidade social poderia de fato colocar
numerosas pessoas dentro de uma situação histórica inteiramente nova para
desempenhar papéis sociais novos (e superiores), e portanto, tendo que usar as
roupas apropriadas (HOBSBAWM, 2014, p. 237).

O descrito por Hobsbawm ilustra como a nova sociedade burguesa tomava o material
como sobreposição do mítico. A ascensão da burguesia frente às cidades tinha de se fazer de
modo concreto, assim como o pensamento racional se materializava com os modos de
produção. Tal como Adorno e Horkheimer, Sennett desponta a mistificação como uma das
características mais marcantes da cultura pública do século XIX. A mistificação é a presença
da mercadoria como fetiche1 e sua personalização é a moda, que passa a ser produzida e
distribuída em massa. “A produção em massa de roupas e o uso de padrões de produção em
massa para alfaiates ou costureiras significavam que diversos segmentos do público
cosmopolita começavam de um modo geral a adotar uma aparência semelhante [...]”. A
fabricação em massa das roupas uniformizada a aparência do homem público e tais
mercadorias produzidas pela máquina eram comercializadas em um local destinado ao
consumo de massa, “a loja de departamentos, teve êxito junto ao publico, não por intermédio
dos apelos à utilidade ou ao preço barato, mas ao capitalizar essa mistificação” (SENNETT,
1989, p. 35). Sobre o fetichismo da mercadoria e sua fantasmagoria iremos abordar mais
profundamente no segundo capítulo desta dissertação. A respeito da secularidade, Sennett
atribui a esse termo uma condição para toda a expressão do ser humano no século XIX. O
homem se distancia do sagrado e passa a acreditar somente no que é unidimensional e fixo.
Sennett (1989, p. 36-7) exemplifica: “A secularidade é a convicção, antes de morrermos, de
que as coisas são como são, uma convicção que cessará de ter importância por si mesma
assim que morrermos”. No século XIX, o secularismo ocupa a posição do imediato:

1
Na psicanálise, o fetiche é um substituto para o pênis. Para o menino, há a falta do pênis na mãe, que a criança
acredita ter se perdido (FREUD, 1996b). Ferrari (2007, p.178) explica que, como o objeto fálico é inacessível,
pois nunca existiu, “ele pode ser indefinidamente substituído sem que nunca seja possível sua presença efetiva”.
2
No original: “The venture prospered from the first number, and within ten years had a circulation of 80.000 -
„the most rapid success ever known in journalism‟, said its editor in an interview”.
3
Sobre tal, verificar Bretas (2008, p. 137).
4
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Prefacio. In: BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I: Magia e Técnica, Arte e
20

Sensações imediatas, fatos imediatos, sentimentos imediatos já não tinham que se


encaixar em um esquema preexistente para serem entendidos. O imanente, o
instante, o fato, eram realidade em si e por si mesmos. [...] Por volta de 1870,
parecia plausível estudar „uma emoção‟ como algo contendo um significado
independente, como se fosse possível descobrir todas as circunstâncias tangíveis nas
quais a „emoção‟ se tornaria manifesta. [...] Num mundo onde a imanência é o
princípio do conhecimento secular, tudo tem importância, porque tudo poderia ter
importância (SENNETT, 1989, p. 37).

A moda, portanto, seria o local onde a emoção seria manifesta em público. Não
pretendemos, entretanto, adentrar o caráter psicológico da moda, mas não poderíamos de
deixar de pontuar essa face da moda como uma importante mudança na vida do homem na
segunda metade do século XIX. “Qualquer aspecto visível da pessoa era de algum modo
verdadeiro, porque tangível”, a moda e seus acessórios era, de fato, a parte palpável que ser
personalizava com as mudanças na vida pública do homem, já que “fantasiar que objetos
físicos tinham dimensões psicológicas tornou-se lógico dentro dessa nova ordem secular”
(SENNETT, 1989, p. 37). As roupas e objetos que enfeitavam o lar eram mais do que simples
imposição do status de quem as vestia, “tinham valor em si mesmo como expressões de
personalidade, como sendo o programa e a realidade da vida burguesa, e mesmo como
transformadores do homem. No lar tudo isso era expresso e concentrado. Daí a sua grande
acumulação” (HOBSBAWM, 2014, p. 238).
A moda personalizou-se e na revista de moda passou a se aproximar do homem que
via a moda como expressão de sua emoção, expressão do fetiche da mercadoria. Para Wilson
(1985, p. 25), a moda é uma forma que o homem moderno encontra para se ligar ao social, é
“essencial para o mundo da modernidade, o mundo do espetáculo e da comunicação de
massas. Constitui uma espécie de tecido de ligação do nosso organismo cultural”. Ainda
segundo Wilson (1985, p. 42), as novas cidades que surgiam precisavam de novas formas de
comunicação rápidas, tais como o telefone, cinema, circulação de revistas e jornais. “O motor
do capitalismo fez girar tudo em volta do seu vórtice”. No tecido da modernidade, a
comunicação, principalmente a que trata sobre moda como a Harper‟s Bazaar, constitui uma
das fibras mais importantes.

1.1 O NASCIMENTO DA ALTA COSTURA

A moda acompanhou as transformações que a sociedade atravessava, diante do avanço


do capitalismo industrial e do secularismo. O modo de se vestir começou a antever, no século
21

XVIII, a industrialização do século XIX, sobretudo na Inglaterra, onde tudo iniciou. “A


aristocracia proprietária de terras e a nobreza já eram efetivamente de tipo capitalista rural e
foram as suas roupas cotidianas de trabalho que se transformaram no uniforme do século
XIX” (WILSON, 1985, p. 43). Porém, como pontua Sennett (1989, p. 38), tais transformações
não ocorreram de uma hora para outra, como alguns historiadores relatam, não houve um
divisor de águas. Para ele, as expressões “revolução industrial urbana” ou “metrópole
capitalista” sugerem que antes havia algo e que depois disso nos deparamos com uma cidade
totalmente diversa da anterior. “O erro é maior do que o de não ver como uma condição de
vida vai se infiltrando na outra; é o fracasso em entender a realidade na sobrevivência cultural
e os problemas que esse legado, com qualquer herança, cria uma nova geração”. A moda, por
sua vez, teve seu legado deixado pela corte e como herança, tivemos a alta costura com o
despontamento de estilistas e a sua reprodução em massa com as novas máquinas de costura.
Como apontou Wilson (1985), a moda, em sua origem, era só para os ricos, mas a produção
industrial proporcionou a produção em massa das roupas. Mesmo com a figura do estilista de
alta costura que surgia, os modelos exclusivos que eram oferecidos para a aristocracia podiam
ser logo copiados, replicados e vendidos nas lojas de departamentos, algo que não era possível
antes da industrialização e expansão do comércio nas cidades. O estilista, por sua vez, é uma
figura que toma o lugar das costureiras na era moderna: “O papel da costureira, operária em
domicílio, consiste em confeccionar um vestido encomendado por uma cliente, tendo esta
escolhido o tecido no armarinho. A originalidade da roupa é antes subordinada à escolha do
tecido que à forma em si” (GRUMBACH, 2009, p. 16). Essa era a forma de trabalho das
costureiras na sociedade que saía do Antigo Regime para a Idade Moderna. Grumbach aponta
Rose Bertin como “ministra da Moda”, os vestidos confeccionados em seu ateliê na Rue de
Richelieu, porém, não eram experimentados por ninguém antes que a própria imperatriz
Maria Luísa os fizesse. “Até finais do século dezoito o desenho das roupas femininas não
mudava muito de ano para ano; a diferença na moda consistia na escolha dos enfeites e
pormenores” (WILSON, 1985, p. 46). Posteriormente, Madame Roger cria um novo modelo
de negócios no qual utiliza os próprios tecidos que vendia para confeccionar vestidos,
podendo assim lucrar mais. Entretanto, a história da moda não seria a mesma sem o
nascimento de Charles Frédéric Worth. De origem inglesa, o costureiro mudou-se do Reino
Unido para a França com 20 anos de idade e “cinco libras no bolso”. Em Paris, até 1849,
Worth começa a trabalhar em um armarinho de variedades com tecidos e acessórios da moda.
Marie Vernet, que se tornará esposa de Worth posteriormente, serve como modelo de suas
primeiras criações que chamam a atenção dos clientes, e assim, Worth pede a seu patrão,
22

Gagelin, a instalação de um ateliê junto à loja. Gagelin resiste no primeiro momento, mas em
1850, o ateliê de Worth é finalmente instalado. As criações de Worth podem ser vistas
também na Grande Exposição Universal de 1851 (GRUMBACH, 2009, p. 17). A Grande
Exposição de 1851 ocorreu em Londres no Palácio de Cristal, “do mesmo ferro e do mesmo
vidro que haviam sido utilizados para as Passagens, mas de modo mais ousado, em
proporções monumentais. O teto, de cento e doze pés de altura, chegava a cobrir árvores
inteiras” (BUCK-MORRS, 2002, p. 115). A moda foi o grande triunfo do capitalismo e nas
exposições universais podia se exibir sob sua égide:

Se a Europa estivesse vivendo a era dos príncipes barrocos, teria então sido
soterrada por máscaras espetaculares, procissões e óperas distribuindo
representações alegóricas do triunfo econômico e progresso industrial aos pés de
seus governantes. De fato, o mundo triunfante do capitalismo teve seu equivalente.
A era de sua vitória global foi iniciada e pontilhada pelos gigantescos rituais de
autocongratulação, as grandes exibições internacionais, cada uma delas encaixada
num principesco monumento à riqueza e ao progresso técnico – o Palácio de Cristal
em Londres (1851), a Rotonda („maior que São Pedro em Roma‟) em Viena, cada
qual exibindo o número crescente e variado de manufaturas, cada uma delas atraindo
turistas nacionais e estrangeiros em quantidades astronômicas. Quatorze mil firmas
exibiram em Londres em 1851 – a moda tinha sido condignamente inaugurada no lar
do capitalismo – 24 mil em Paris, em 1855; 29 mil em Londres, em 1862; 50 mil em
Paris, em 1867 (HOBSBAWM, 2014, p. 48).

Segundo Laver e Probert (2008), a década de 1840 foi marcada pela escassez,
enquanto o período que seguiu, após 1848, foi mais próspero, ano de revoluções por toda a
Europa. A Grande Exposição de 1851 mostrou a prosperidade dos negócios e do comércio.
Agora, mesmo os trabalhadores comuns podiam se vestir melhor. A década de 1850 foi
marcada também por uma grande mudança para a haute couture: “outono de 1857-inverno de
1858: Charles-Frédéric Worth funda, na rue de la Paix em Paris, sua própria casa, primeira da
linhagem do que um pouco mais tarde será chamado de Alta Costura”. (LIPOVETSKY, 2009,
p. 82). Worth fabricava modelos exclusivos que eram desfilados no salão de sua casa. Em
Paris, os estrangeiros compram esses modelos com a finalidade de reproduzir em seus países:
“Paris dita a moda; com a hegemonia da Alta Costura aparece uma moda hipercentralizada,
inteiramente elaborada em Paris e ao mesmo tempo internacional, seguido por todas as
mulheres up to date do mundo” (LIPOVETSKY, 2009, p. 83). O costureiro Charles-Frédéric
Worth lança o que conhecemos por moda moderna: além de revolucionar o processo de
criação das roupas, as coloca em exposição em mulheres jovens que desfilam, assim, a moda
“tornou-se uma empresa de criação, mas também de espetáculo publicitário” (LIPOVETSKY,
2009, p. 82). Sennett (1989, p. 204) destaca o ano de 1857, com a abertura do salão de Worth
em Paris, o início de transformações na produção em massa e na disseminação dessas roupas
23

no mundo da Alta Costura, reproduzidas graças às máquinas de costura mais avançadas.


“Worth usara tais máquinas em escala limitada para preparar os costumes de seus patrões
reais e aristocráticos”. Assim, a imitação das roupas e da moda por parte das camadas mais
baixas pôde ser possível, “as diferenças entre as aparências da classe alta e da classe média
passaram para outro terreno, mais sutil” (SENNETT, 1989, p. 205). Por isso, o estilista
precisava se diferenciar da produção de massa, da indústria do vestuário e, para tanto,
precisava ser um artista e se diferenciar da imitação vulgar. Worth revolucionou também a
dinâmica da relação entre a mulher e o estilista, este antes uma figura humilde, mas que agora,
fazia as mulheres irem a ele, com exceção de Eugênia e sua corte (LAVER; PROBERT,
2008). O sucesso de Charles Worth e o nascimento da haute couture, foi resultado,
principalmente, do anseio da distinção de classes numa sociedade de aristocratas e novos
ricos. O costureiro, por sua vez, poderia ser “um homem acima da moda, na corte, e acima da
luta entre as diferentes classes sociais; podia, por ser Artista e, consequentemente, „inspirado‟,
criar modas que os pintores, e mais tarde os fotógrafos, transformaram no símbolo ou na
assinatura de uma época” (WILSON, 1985, p. 48-9). Não só a mulher aristocrata que se vestia
à moda de Worth foi responsável pela disseminação da moda luxuosa, as atrizes e as mulheres
“em estado de mancebia” foram ainda mais importantes para a propaganda da alta costura do
que as mulheres “pilares da sociedade”. “Essas demi-mondaines, as grandes cocotes dos
meados do século dezenove em Paris, não tinham nome, nem família nem classe social [...]
Podiam, por isso, dar-se o luxo de usar os estilos mais escandalosos, pra causarem sensação”
(WILSON, 1985, p. 49). A mulher, mesmo em condição submissa e utilizada como meio para
demonstração de riqueza do homem que a sustentava, teve papel ativo para o nascimento da
imprensa feminina e para o desenvolvimento da indústria de alta costura.

1.2 O LUXO COMO ELEMENTO CRIADOR DA HARPER’S BAZAAR

Para Ortiz (1998, p.123), o luxo e a modernidade estão ligados por meio do
denominador comum, o consumo: “enquanto elemento estrutural da sociedade de corte, ele
integra um modo de vida que se julga „civilizado”. De acordo com a Enciclopédia de Diderot,
luxo é “o uso que se faz das riquezas da indústria para se procurar uma existência agradável”.
O luxo, bem-estar e cultura civilizatória, estão intimamente unidos, como ilustrado nas
chamadas originais da Harper‟s Bazaar: A repositor of Fashion, Pleasure and Instruction. O
luxo antes presente somente na esfera coletiva passa a ter caráter individual na modernidade
24

em que nascia a Harper‟s Bazaar. Ortiz (1998, p. 121) exemplifica com a religião para falar
sobre a individualização do luxo. “As procissões e as paradas militares estampavam o luxo de
uma sociedade pobre, e celebravam, em nome de Deus e dos grandes senhores, a ordem social
na sua totalidade”. A vida particular dispersa agora da religião tinha como regimento o prazer
e o gozo, demonstrados em todos os espaços da intimidade, como “móveis domésticos, nas
decorações, na maneira de dispor a comida sobre a mesa, e implica num processo de
refinamento do gosto”. Os modos não decorrem de uma natureza subjetiva, mas estão todos
ligados à ideia de civilidade que deu início nas cortes europeias do século XVI, visto que “o
conceito de civilização rege a uma multiplicidade de ações do mundo aristocrático,
prescrevendo uma prática social e uma héxis corporal particular” (ORTIZ, 1998, p.122). Se
antes os bons modos e o decoro era uma “pantomina”, ao longo das transformações da
sociedade, “a etiqueta passou a ter uma utilidade intrínseca, adquiriu um caráter sacramental,
independente, em grande parte, dos fatos que inicialmente prefigurava”. A boa educação no
homem moderno se tornou indispensável e aquele que a quebra é considerado indigno.
“Poucas coisas causam no homem moderno tanta revolta instintiva quanto uma quebra de
decoro [...] perdoa-se uma deslealdade, não uma falta de etiqueta. „As boas maneiras fazem o
homem‟” (VEBLEN, 1987, p. 26).
Para Lipovetsky e Roux (2005, p.117), “a sociedade moderna e seus valores
emergentes individualistas e hedonistas tornaram então o luxo necessário ao bem-estar
ordinário de uma vida material mais prática e mais funcional”, embora nem sempre tal luxo
necessário a uma vida mais prática poderia ser caracterizado como utilitário, como diz ainda
Ortiz (1998, p.158), que se propõe a explicar a relação entre as pessoas, suas compras e seus
valores de uso: “as necessidades deixam de ser unicamente básicas, racionais, para se
expressar enquanto fugacidade, „irracionalidade‟. Daí a importância de um meio que possa
estimulá-las e captá-las”. As passagens de Benjamin servem como ilustração do trecho
apresentado por Ortiz, mas podemos ainda apresentar outro meio como subterfúgio para a
compra, o da revista impressa.
De acordo com Ortiz (1998, p.137), “em 1892, do total de 3,5 milhões de francos de
exportação francesa, um terço é composto por bens de luxo - tecidos de seda, rendas, bibelôs,
modas, flores artificiais, vidros, cristais, joias, relógios etc.”, vemos, portanto, o luxo aliado à
utilidade como algo sintomático no fim do século XIX. Em seu estudo sobre a cultura e a
modernidade no século XIX, Ortiz explora a dualidade moral entre o “luxo bom” e o “luxo
mau”. Para o homem moderno, o luxo poderia se dispor a um grande número homens, e,
assim, movimentar a economia. Aquele que seria o mau serviria somente à inutilidade, a
25

apreciação de riquezas. Com a modernidade, o luxo passou a servir o bem-estar: “os grands
magasins, a energia elétrica, as estradas de ferro, os transportes, a alimentação, a construção
de casas, enfim, um conjunto de técnicas (materiais, comerciais, financeira) que têm uma
incidência direta sobre o bem-estar individual” (ORTIZ, 1998, p.138). Sobre luxo e bem-
estar, o autor pontua que, “o luxo, enquanto conforto, se apoia sobre uma máquina produzida
pela sociedade industrial”, assim, consegue relacionar conforto, com bem-estar e o luxo com a
evolução semântica da palavra conforto: “A palavra possuía no século XVIII outro
significado e se aplicava às situações nas quais desejava „reconfortar‟ alguém. Para se referir a
certas vantagens da vida cotidiana, os nobres franceses utilizavam o termo „comodidade‟,
oriundo do latim, mas ressemantizado pelos ingleses” (ORTIZ, 1998, p.140). O homem
moderno faz uso das novas utilidades domésticas e os novos luxos como tentativa de alcançar
o bem-estar por meio do conforto:

A „inutilidade‟ do luxo indica portanto a existência de um novo lugar, o espaço de


consumo. Por entrar em conflito com os valores clássicos do mundo burguês, ele é
muitas vezes condenado. Mas esta recusa evidencia o surgimento de uma nova ética.
Não há uma incompatibilidade visceral entre utilidade e inutilidade, trabalho e
divertimento, produção e consumo [...] Os grands magasins e as exposições
universais integram dimensões julgadas até então excludentes. Entretanto, não há
também um retorno ao passado, a promoção de uma pretensa ociosidade
aristocrática. A redefinição dos valores morais absorvem a ideia de lazer,
transformando-a em um elemento dinâmico que anuncia uma outra sociedade”
(ORTIZ, 1998, p. 179).

Sobre o nascimento do luxo e da modernidade, Lipovetsky e Roux (2005, p. 42)


indicam o caminho da Alta Costura, que foi onde a ideia de personalização exclusiva de se
vestir teve origem:

Tudo oscila com a modernidade. Nada ilustra melhor a nova lógica que se impõe do
que o surgimento da alta-costura, na segunda metade do século XIX, Charles
Frédéric Worth assenta-lhe os fundamentos ao estabelecer uma indústria de luxo
consagrada à criação de modelos frequentemente alterados e fabricados nas medidas
de cada cliente.

Vimos que o luxo útil era o conforto, que trazia melhoria para a vida das pessoas e
proporcionava o bem-estar. O luxo inútil, no entanto, era outra espécie de luxo mais
condenado. “O luxo inútil era o que se ligava à moda, com seus vestidos, chapéus, sapatos e
sombrinhas, irresistivelmente expostos nos grands magasins. A imagem da mulher tentada ela
serpente era recriada pela moralidade burguesa nos tempos modernos: as mercadorias são sua
nova tentação”. Este é o momento de nascimento da moda em grande escala: “Da fiação à
confecção da roupa, a moda, a revista e a mulher estarão ligadas desde o berço do sistema
26

capitalista ao setor têxtil”. No final do século XIX, ainda era clara a separação da moda de
Alta Costura e a para classes médias. A moda para as classes inferiores, diferente da feita sob
medida por estilistas, como a de Worth, por exemplo, passou a ser fabricada pelas indústrias
que produziam uniformes para operários. Essas novas modas começaram a ser oferecidas nas
grands magasins. “De seus folhetos propagandísticos deriva a palavra „magazine‟, que em
língua francesa e inglesa designa as revistas de grande circulação” (MIRA, 2001, p. 46).
A imprensa feminina surge em determinado momento da história da civilização
ocidental, quando a mulher ganhava mais visibilidade na sociedade e se descolava de seus
papeis no lar ou no convento, conjuntamente à evolução do capitalismo, que suscitava novas
vontades e necessidades a se satisfazerem. A partir do século XIX, o homem que adquiria
seus bens e vivia nos subúrbios elegantes esperava que sua esposa fosse um modelo de
virtudes domésticas e que não fizesse nada. “Aconteceu que o trabalho obviamente produtivo
era estranhamente pejorativo para as mulheres respeitáveis [...] A esfera feminina era no lar,
que ela tinha obrigação de embelezar e do qual deveria ser o adorno principal” (WILSON,
1985, p. 73). A ociosidade da mulher representava o status social do marido e as roupas
usadas na época refletiam o social. Como resultado de uma sociedade patriarcal, era esperado
que, com o desenvolvimento econômico das cidades, a mulher consumisse para demonstrar o
poder aquisitivo de seu esposo, e, a princípio, o vestuário feminino tinha essa função. Mesmo
com as convulsões sociais que culminaram no ano das revoluções, 1848, ainda era esperado
que a mulher não fizesse parte disso, portanto a postura apropriada ainda era a de submissa e
resignada. Por outro lado, as mulheres com menos condições ou imigrantes eram destinadas
ao trabalho nas fábricas têxteis, que contratava trabalhadores “não especializados e mal
pagos” (HOBSBAWM, 2014, p. 206). Baudelaire, enquanto apreciador da moda, a via como
a expressão do que os homens tinham por belo, e por esse motivo adorou a mulher adornada
em uma majestosa descrição a respeito da relação entre a moda e a mulher:

A mulher é, sem dúvida, uma luz, um olhar, um convite à felicidade, às vezes uma
palavra; mas ela é sobretudo uma harmonia geral, não somente no seu porte e no
movimento de seus membros, mas também nas musselinas, nas gazes, nas amplas e
reverberantes nuvens de tecidos com que se envolve, que são como que os atributos
e o pedestal de sua divindade; no metal e no mineral que lhe serpenteiam os braços e
o pescoço, que acrescentam suas centelhas ao fogo de seus olhares ou tilintam
delicadamente em suas orelhas (BAUDELAIRE, 1997, p. 25).

Aqui, Baudelaire descreve a figura de uma mulher como símbolo do luxo, da moda, da
felicidade, além de endeusar o elemento feminino, como o fez Zola, em O Paraíso das
Damas: “o elemento feminino surge assim como o núcleo em torno do qual giram as
27

estratégias de liberação e de domesticação dos desejos. Símbolo do luxo extravagante, ele


representa o lado da „inutilidade‟ tentadora” (ORTIZ, 1998, p. 167). Por meio de Zola, Ortiz
desenvolve o seu pensamento sobre a mulher enquanto um dos principais mecanismos da
atividade moderna. Para ele,

A mulher sempre esteve associada à discussão sobre o luxo [...] De fato, a mulher
aristocrata é um objeto privilegiado das imposições luxuosas. Ela é o núcleo da
conduta frívola, que se manifesta na toilette, na vestimenta, no modo de andar etc.
No entanto, a mulher não detém o monopólio desta superficialidade, ela
simplesmente a expressa melhor do que os homens (ORTIZ, 1998, p. 168).

De acordo com Wilson (1985), o papel da mulher nesse período resumia-se a afirmar o
poder aquisitivo do chefe de família.

Os saltos altos, a saia, o chapéu pouco prático, o espartilho e a ignorância


generalizada do conforto do utilizador, que é uma característica de todas as mulheres
civilizadas, são o testemunho de que, no sistema de vida civilizada moderna, a
mulher ainda está, em teoria, economicamente dependente do homem – que, talvez
num sentido altamente idealizado, ela ainda é a sua propriedade individual
(WILSON, 1985, p. 73, grifo nosso).

A moda do fim do século XIX vestia a mulher burguesa para ser uma lady, civilizada,
civilidade que a sociedade da época entendia por domínio e transformação do material e da
natureza pelo homem. A mulher burguesa que se vestia para demonstrar o poder do marido,
quando dominada, reproduzia a opressão sobre seus criados, permitindo que se dedicasse
exclusivamente ao próprio embelezamento: “entretanto, este ser atraente, ignorante e idiota
era requisitado para exercer também dominação; não sobre as crianças, cujo senhor era ainda
o pater famílias, mas sobre os criados, cuja presença distinguia os burgueses dos que lhes
eram socialmente inferiores” (HOBSBAWM, 2014, p. 245).
Baudelaire (1997, p. 62), como perfeito exemplo do homem burguês moderno, vê a
moda como algo essencial ao novo modelo de homem civilizado produto das condições de
sua época. Sendo assim, a moda é, pois, “sintoma do gosto pelo ideal que flutua no cérebro
humano acima de tudo o que a vida natural nele acumula de grosseiro, terrestre ou imundo,
como uma deformação sublime da natureza, ou melhor, como uma tentativa permanente e
sucessiva de correção da natureza”. Em determinado ponto, Baudelaire aproxima a moda do
conceito de Freud do prazer, já que é “uma aproximação qualquer a um ideal cujo desejo
lisonjeia incessantemente o espírito humano insatisfeito”. A moda afasta o homem moderno
do mal-estar presente na civilização e ainda tem por função personificá-lo. Segundo
Baudelaire (1997, p. 8), “a ideia que o homem tem do belo imprime-se em todo o seu
28

vestuário, torna sua roupa franzida ou rígida, arredonda seu gesto e inclusive impregna
sutilmente, com o passar do tempo, os traços de seu rosto. O homem acaba por se assemelhar
àquilo que gostaria de ser”. Ao se vestir do que toma por belo, o homem busca
inevitavelmente o prazer e ainda cria uma identidade para si, pois o vestuário acaba por criar
vida no corpo e fazer parte de todo o seu ser, inclusive de suas feições e trejeitos. Como dito,
não só em seu vestuário todavia o homem burguês se cerca de tudo aquilo que acredita ser
belo e lhe expressar, além de reafirmar a sua posição social e econômica:

A impressão mais imediata do interior burguês de meados do século é a de ser


demasiadamente repleto e oculto, uma massa de objetos, frequentemente escondidos
por cortinas, toldos, tecidos e papéis de parede, e sempre muito elaborados, fosse o
que fosse. Nenhum quadro sem uma rebuscada moldura, nenhuma cadeira sem
tecido de proteção, nenhuma peça de tecido sem borla, nenhuma peça de madeira
sem o toque do torno mecânico, nenhuma superfície sem algum tecido ou objeto
repousando em cima. Isto era sem dúvida um sinal de riqueza e status: a bela
austeridade dos interiores Biedermayer refletia mais a severidade das finanças
burguesas das províncias alemãs do que um gosto inato, e a mobília dos quartos dos
empregados, por seu lado, era deserta (HOBSBAWM, 2014, p. 238).

A segunda metade do século XIX ainda foi marcada pelo excesso de tecido sobre o
corpo da mulher, exceto para os decotes em vestidos de noite. Mas a situação claramente não
agradava a todas as mulheres, ao menos na França, onde havia a figura da Lionne, uma
mulher rica que atirava, fumava charutos, bebia champanhe e cavalgava como o seu marido,
sem deixar de lado o silhão. Mesmo cavalgando, a mulher não deixava sua saia extremamente
volumosa, que não poderia ser desmontada sem a ajuda de criados, o que deixava claro a
motivação inconsciente do traje, a de demonstrar status social (LAVER; PROBERT, 2008, p.
172). A imprensa para a mulher voltava-se na segunda metade do século XVIII para dois
grandes setores, para a moda e para as lutas feministas, já que no mesmo período iniciam-se
as lutas pelos direitos das mulheres (MIRA, 2001, p. 47). A imprensa feminina com assuntos
ditos femininos nasce com o fim de entreter, e em disposição secundária, funcionar como
utilidade prática ou didática (BUITONI, 1981). Mira (2001, p. 45) esclarece que a imprensa
feminina passou por dois grandes ciclos, a segunda metade do século XIX e o pós-guerra. No
primeiro momento, as mulheres emergem enquanto consumidoras, como sujeitos da história e
como leitoras. Na Europa, no final do século XVIII, era grande a porcentagem de mulheres
que já eram alfabetizadas, o que contribui também para a ascensão do romance. Outro fato
interessante sobre o nascimento da imprensa feminina é que a mulher passou a ser retratada
sem a figura masculina a seu lado. O homem começou a perder espaço nas publicações. “As
revistas substituem a figura do casal, retratado nas publicações do século XVIII, pela da
29

mulher, uma vez que a moda burguesa impõe a seriedade do terno preto ou cinza para os
homens” (MIRA, 2001, p. 47). Para Wilson (1985, p. 43), a moda se tornou prioritariamente
feminina porque a moda masculina passou a dar mais atenção ao corte invés do “adorno, da
cor e da exibição”.
Figura 1: Ilustração mostra uma criada negra junto a mulheres burguesas e uma criança.

Fonte: Harper‟s Bazaar. Edição de 04/02/1871, da Hearst Corporation. Digitalizado pela Universidade de
Michigan, 2014.

As transformações proporcionadas pelo capitalismo latente provocaram a evolução


dos títulos editoriais por toda a Europa e América do Norte. A imprensa feminina, como
observou Buitoni (1981), é movida desde o seu nascimento pelo novo, não necessariamente
pelo atual, mas pela novidade, semelhantemente à moda, como veremos mais adiante em
30

nosso trabalho. A busca pela novidade, símbolo da modernidade, é expressa pela moda e pela
difusão de meios para sua difusão. Para Wilson (1985, p. 87), “a palavra „modernidade‟ tenta
captar a essência tanto da experiência cultural como da experiência subjetiva da sociedade
capitalista e de todas as suas contradições”. Sennett (1989) destaca os jornais ou “pranchas de
elegância” como o principal difusor das modas, onde a moda poderia circular em sua forma
original exata. O fato interessante aqui é que a existência dos jornais de moda fazia dispensar
a figura do vendedor para apresentar as modas, já que o consumidor já estava fito no que
gostaria de comprar. “Bonecas de moda eram ainda utilizadas no século XIX, mas haviam
perdido seu propósito: eram tratadas como objetos arcaicos, interessantes para se colecionar”.
A imprensa servia agora a movimentar o comércio das novas lojas de departamento: “as
origens da loja de departamento repousam num capitalismo de produção e massa e de
distribuição em massa” (SENNETT, 1989, p. 203). A mulher, que ensaiava sua independência
da figura do homem, encontrava também nos grandes armazéns um subterfúgio para ter sua
liberdade do lar. “Ele passou a ser o local onde as mulheres podiam se encontrar com as suas
amigas em segurança e com conforto, sem chaperons, e onde podiam se refugiar para
refrescarem e descansarem” (WILSON, 1985, p. 201).
De acordo com dados do La documentation Française, o primeiro veículo de
comunicação destinado ao público feminino foi o Lady‟s Mercury, do fim do século XVII,
editado na Grã-Bretanha em fevereiro de 1693. Na França, o primeiro periódico feminino
surge em 1758, o Courrier de la nouveauté, feuille hebdonaire à l‟usage des dames. Houve
também o Le Journal des Dames (1759-1778). Na França, os principais assuntos abordados
eram dicas de economia doméstica e medicina caseira, assim como na imprensa feminina em
outros locais. Em toda a Europa o jornalismo feminino foi se disseminando: Akademie der
Grazien (1774-1780) e Journal des Luxus und der Moden (1786) na Alemanha; Toilette
(1770), Biblioteca Galante (1775), Giornale delle Donne (1781), na Itália. Nos Estados
Unidos da América, uma das primeiras revistas foi American Magazine ou Ladie‟s Magazine
(1828) (BUITONI, 1981) (SVENDSEN, 2010). Conforme Svendsen (2010, p. 25), pode-se
concluir que a moda iniciou-se por volta de 1350, porém, em seu sentido moderno tal como a
conhecemos hoje, “só se tornou uma força real no século XVIII”. A classe burguesa, que
disputava o poder com a aristocracia feudal, fazia uso das roupas como forma de atestar o seu
status naquela sociedade. “As publicações de moda, voltadas para as elites no século XVIII,
democratizam-se durante todo o século seguinte. Esse duplo processo levará à substituição
progressiva nos títulos da palavra dames pela palavra femmes” (MIRA, 2001, p. 47).
31

Para Wilson (1985, p. 181), se Paris foi a capital do século XIX, Nova Iorque se
tornou a capital do século XX. “É um mundo no qual as necessidades e os ritmos da natureza
foram abolidos”. A cidade de Nova Iorque começava a apresentar seus “cumes de cimento, as
falésias fortificadas dos seus arranha-céus e as suas auto-estradas cheias de trânsito”. Para
ilustrar o crescimento populacional e desigualdade social da cidade de Nova Iorque na época,
Hobsbawm (2014, p. 220) lembra que, “o setor leste de Nova York era provavelmente o mais
populoso cortiço do mundo ocidental, com mais de 520 pessoas por acre. Ninguém construía
arranha-céus para eles: talvez para sorte deles”. No período, os Estados Unidos também
recebia um grande número de imigrantes vindos da Europa. Segundo Hobsbawm (2014, p.
203), “entre 1846 e 1875, uma quantidade bem superior a 9 milhões de pessoas deixou a
Europa, e a grande maioria seguiu para os Estados Unidos. Isto equivalia a mais de 4 vezes a
população de Londres”. A cada ano, a população estadunidense crescia mais com a chegada
dos imigrantes e assim, se urbanizava cada vez mais. “Na segunda metade do século XIX os
países mais associados a este processo (Estados Unidos, Austrália, Argentina) tinham uma
taxa de concentração urbana não superada em nenhum lugar, exceto na Inglaterra e partes
industrializadas da Alemanha” (HOBSBAWM, 2014, p. 205).
A cidade de Nova Iorque ganhava sua primeira grande loja em 1848, em Manhattan,
T. Stweart and Co., um palácio de cristal, que vendia modas na Broadway com Chambers, e
em 1862, foi transferida para outro prédio maior, com ferro fundido, envidraçado, que deixava
se iluminar e engrandecer ainda mais suas escadarias imponentes. Outra importante loja
surgiu em 1857, a Macy‟s, que iria se tornar o maior armazém do mundo. “Em todo o lado, o
grande armazém era a apoteose do consumo, na segunda metade do século dezenove; era em
grande parte o produto do período entre 1860 e 1910” (WILSON, 1985, p. 198). Igualmente
ao que ocorria nas metrópoles europeias do século XIX, os armazéns eram onde os burgueses
se reuniam para demonstrar o seu estilo de vida:

Não só ele era um reflexo da vida burguesa, como também a criava, porque as suas
montras apresentavam o lar perfeito e o vestuário correto, inventavam uma imagem
do que devia ser a vida burguesa, e educava sutilmente a sua clientela quanto a
novas formas, diferentes, de roupa e apetrechos para o lar, para todas as ocasiões e
horas do dia concebíveis (WILSON, 1985, p. 201).

De acordo com Frank Mott (1938), a revista americana Harper‟s Bazaar foi criada
logo após o término da Guerra Civil por Flecher Harper. Na época, os Estados Unidos
assistiam a um grande crescimento na produção de algodão, que marcava o desenvolvimento
da indústria têxtil: “o consumo de algodão na década de 1850 era cerca de 60% maior do que
32

na década de 1840, mas permaneceu estático na década de 1860 (porque a indústria tinha sido
paralisada pela Guerra Civil Americana) e cresceu por volta de 50% na década seguinte, de
1870” (HOBSBAWM, 2014, p. 57). A imprensa reflete os movimentos da sociedade e assim,
Harper levou a ideia de criação da revista a seus irmãos, a quem estava associado em uma das
maiores editoras de revistas dos Estados Unidos na época. A ideia de Fletcher Harper era a de
criar um periódico exclusivo para mulheres, chamada Harper‟s Bazar (inicialmente não havia
o segundo „a‟ em sua grafia), a exemplo da alemã Der Bazar, de Berlim. Como a editora
Harper‟s Brothers já contava com dois periódicos, os irmãos rejeitaram o novo projeto.
Então, Fletcher Harper decidiu criar a revista sem o apoio dos irmãos. No dia 2 de Novembro
de 1867 a nova revista surgiu, com a intenção de ser um guia de moda, prazer e informação.
Mary L. Booth, uma historiadora da cidade de Nova York, era editora da revista. "o mais
rápido sucesso já conheci no jornalismo", disse seu editor em uma entrevista” (MOTT, 1938,
p. 388, tradução nossa)2. O primeiro número da Harper‟s consistia em 16 páginas em uma
folha de papel pequena, com estampas, muitas xilogravuras de estilos e outros assuntos como
novelas e miscelâneas, com o preço de 4 dólares ao ano. De acordo com Buitoni (1990, p. 28),
“até a metade do século XIX, a imprensa feminina era um produto para elite” e somente as
damas da sociedade aristocrática sabiam ler e dispunham de tempo para isso. No entanto, “nos
EUA, a guerra civil, o crescimento industrial, e a evolução das editoras como negócio vêm
modificar o perfil da leitora”. Nos Estados Unidos as tiragens das revistas femininas como a
Mc Call‟s, Good Housekeeping, Cosmopolitan e as revistas de moda Harper‟s Bazaar e
Vogue superam os cinco milhões de exemplares até a metade do século XX (MIRA, 2001, p.
44). Para Hobsbawm (2014, p. 201), principalmente nos Estados Unidos as mulheres se
educavam para representar a civilidade, com “aprendizado através de livros, higiene, casas
„limpas‟ e mobília segundo o modelo e sobriedade da cidade. Os que empurravam os filhos
para serem „melhores do que eles mesmos‟ eram mais as mães do que os pais”. A revista
feminina que servia como esse repositório de beleza e bem-estar servia não só para estar em
dia com a moda, mas também para obter dicas domésticas de educação dos filhos e como
cuidar da casa.

2
No original: “The venture prospered from the first number, and within ten years had a circulation of 80.000 -
„the most rapid success ever known in journalism‟, said its editor in an interview”.
33

Figura 2 Ilustração de capa mostra senhoras burguesas reunidas em torno de criança.

Fonte: Harper‟s Bazaar. Edição de 28/01/1971, da Hearst Corporation. Digitalizado pela Universidade de
Michigan, 2014.

Para Blum (1974), a Harper‟s Bazaar foi a maior publicação de moda desde a sua
primeira publicação em 1867 até 1898, quando começou a perder em relevância para
publicações mais modernas como a Vogue, porém, em 1913 voltou a ganhar prestígio com a
34

direção de William Randolph Hearst. Sob a direção de Hearst, “dono de um império


jornalístico que usava frequentemente o sensacionalismo para aumentar as tiragens,
alcançando números fantásticos, lança em 1904 o Harper‟s Bazaar com moldes de inspiração
francesa” (BUITONI, 1990, p. 34). Para Blum, os exemplares da Harper‟s dentro desse
período permitem uma leitura da evolução da moda vitoriana e gostos. Com o fim da Guerra
Civil, os americanos buscavam atividades mais pacíficas, juntamente, as comunicações se
tornaram mais acessíveis bem como as facilidades para viajar, “a classe média alta ascendente
crescia mais sofisticada” (BLUM, 1974, p. 30). Além da chegada de revistas estrangeiras à
América, como a alemã Die Modenwelt, o ano de 1867 marcou a Exibição Internacional em
Paris, que atraiu muitos negociantes americanos com suas esposas e filhas, que voltaram da
França com muitos tesouros para seus guarda-roupas. Já a América, anos mais tarde, receberia
a maior exposição internacional já vista, a Feira do Centenário na Filadélfia, em 1876, “com a
presença do Imperador e da Imperatriz do Brasil – cabeças coroadas da época, curvadas diante
dos produtos da indústria – e de 130 mil cidadãos. Eles eram os primeiros dos dez milhões
que pagaram tributo naquela ocasião ao „progresso da época‟” (HOBSBAWM, 2014, p. 48).
Como disse Buitoni (1990, p. 14), a imprensa feminina é impulsionada pela moda e esta é
pela imprensa impulsionada. “O primeiro grande salto dos periódicos femininos em direção às
grandes tiragens aconteceu em torno da difusão de moldes de costura, nos EUA”.
Foi nessa era em que a América copiava os modos modernos da metrópole francesa
que a Harper‟s Bazaar lançou-se. Blum (1974) indica o lançamento da revista no dia 02 de
novembro de 1867, publicada em um sábado em Nova York pela editora Harper and
Brothers. Cada exemplar era vendido a dez centavos ou por 4 dólares pelo período de um ano.
O primeiro editorial da revista dizia que a publicação tinha por intenção combinar o funcional
com a beleza, direcionado especialmente às senhoras. Blum apurou em sua pesquisa sobre a
Harper‟s Bazaar que a revista também serviu a levar aos leitores americanos conteúdos novos
que saíam nas principais publicações europeias, como a alemã Der Bazar, ao mesmo tempo
em que eram publicadas em grandes cidades modernas, como Berlim e Paris. A Harper‟s
Bazaar nascia, como pontua Blum, como uma revista diferente das que existiam na América
“Godey‟s Lady‟s Book, Peterson‟s Magazine, Frank Leslie‟s Gazette of Fashion e outras
revistas não tão conhecidas”. As revistas francesas eram o oposto das americanas visto que
ignoravam os aspectos práticos da vida e mostravam a moda em ilustrações idealizadas,
delicadas e coloridas. Um detalhe importante é que as revistas americanas anteriores à
Harper‟s Bazaar eram geralmente um redesenho das francesas, mas impressas cerca de um
35

ano após sua aparição inicial. As diversas modas agora, a partir da Harper‟s Bazaar,
poderiam ser vistas ao mesmo tempo em que eram lançadas nas metrópoles europeias:

Durante séculos, as modas jamais foram objeto de uma descrição por si mesmas:
nada de revistas especializadas, nada de crônicas redigidas por profissionais [...]
Desde que a moda é mencionada, o gênero que domina é o satírico. Em suas
Memórias, os grandes senhores não se dignavam levar em conta as superfluidades,
do mesmo modo que a literatura elevada onde eles eram representados [...] Com os
primeiros periódicos ilustrados de moda no final do Antigo Regime, o tratamento
dado à moda muda; doravante, é regularmente descrita por ela mesma e oferecida ao
olhar: Le Magazin des modes françaises et anglaises, que aparece de 1786 a 1789,
tem por subtítulo: „Obra que dá um conhecimento exato e ágil dos trajes e adereços
novos‟. Sem dúvida, toda uma literatura crítica se manterá, e até o século XX,
fustigando os artifícios e a alienação das consciências nas pseudonecessidades, mas
sem comparação com a amplitude sociológica e midiática da nova tendência
„positiva‟ para fazer da moda um objeto a ser mostrado, analisado, registrado como
manifestação estética (LIPOVETSKY, 2009, p. 98).

O nascimento da revista Harper‟s Bazaar acompanha a disseminação dos discursos de


moda, inclusive na literatura, que se tornam cada vez mais numerosos, a exemplo de alguns
escritores como Balzac, Mallarmé, Maupassant e Baudelaire. Como pontua Lipovestky (2009,
p. 98), autores que “dão ao romance mundano uma dignidade literária e uma base de realidade
fazendo uma pintura minuciosa e exata da vida elegante, dos adornos do high life e seus
cenários delicados, refinados, luxuosos”. Vemos nos primeiros exemplares da Harper‟s
Bazaar a grande presença da literatura e ensinamentos domésticos que remontam o luxo e o
refinamento. Para Souza (1987, p. 20), “é a partir do Renascimento, quando as cidades se
expandem e a vida das cortes se organiza, que se acentua no ocidente o interesse pelo traje e
começa a acelerar-se o ritmo das mudanças”. Com o desenvolvimento da vida urbana surge “o
desejo de competir e o hábito de imitar”, isto é, competir entre os próprios integrantes da
classe burguesa, imitar as vestimentas da alta costura dos aristocratas e lançar moda nas
cidades movimentadas pelos negócios, comércio e opções de lazer. A revista era a
materialização da civilidade, beleza, bons modos, uma expressão da burguesa e da
modernidade que transformava a produção de bens em fetiches da mercadoria.
36

2 A MODA SOB ALGUMAS INTERPRETAÇÕES

“A cidade, eterno retorno


suporta o medo, do abandono
realidade, claridade súbita
lúdico objeto”
(Mercenárias)

Elizabeth Wilson (1985, p. 24), assim como uma série de outros pensadores, rejeita
uma concepção única para explicar o fenômeno da moda, como somente o enfoque
psicológico, antropológico, sociológico ou histórico. No entanto, aponta logo na introdução
de sua obra Enfeitada de Sonhos que a moda tem por função a identificação e união dos
indivíduos, fragmentados pelo capitalismo. A moda tal qual a conhecemos atualmente nasceu
com a fortificação do capitalismo nas cidades modernas, em meados do século XVIII e XIX,
sendo a Revolução Industrial o principal componente para dar ignição às mudanças constantes
que a caracterizam. Assim, diante “de uma perspectiva psicanalítica, podemos encarar o
vestuário da moda no mundo ocidental como um meio através do qual um eu sempre
fragmentário é unificado e aparenta uma certa identidade”. Ainda segundo a visão da autora, a
identidade é um problema da modernidade, período no qual “a moda faz transparecer uma
tensão entre a multidão e o indivíduo [...] O período industrial é muitas vezes, incorretamente,
chamado de a era do homem massificado”, contudo, “a modernidade cria a fragmentação, a
deslocação”. Somente neste único parágrafo, mesmo com a infinidade de perspectivas nas
quais a moda pode ser vista, foram abordadas duas possibilidades. A sociológica, numa visão
dialética marxista, e uma psicanalítica, na qual a moda serve para criar uma identidade no
novo indivíduo moderno. Essa abordagem profusa foi eleita por Walter Benjamin quando
escrevia a primeira versão do ensaio sobre Baudelaire, que foi causa de conflito entre ele e
Adorno pelo motivo de distinção analítica entre ambos, conforme apresentado por Jeanne
Marie Gagnebin (1997, p. 94-5): “Adorno recusa o manuscrito e pede uma reformulação do
texto. A sua crítica maior diz respeito ao método benjaminiano de estabelecer paralelos entre
características da obra de Baudelaire e fenômenos históricos contemporâneos”, ou seja,
Adorno criticava justamente a falta do materialismo dialético de Benjamin, como por
exemplo, a comparação entre “o choque dos transeuntes nas ruas obstruídas de Paris e o ritmo
marcado dos versos baudelairianos”. A visão de Adorno a respeito do maior volume
integrante do Trabalho das Passagens, o Konvolut J que leva o título de Baudelaire, era que
37

“a justaposição de imagens e comentários, à maneira da montagem (o próprio núcleo da


concepção de Benjamin) era infeliz” (BUCK-MORRS, 2002, p. 249).
O Trabalho das Passagens por Benjamin, que tem como base a justaposição de
fragmentos, foi diagramado visualmente por Buck-Morrs (2002, p. 255-6) como tentativa de
organizá-lo sob os polos de Hegel entre consciência e realidade como os eixos desse
diagrama. No eixo da realidade, colocou os termos de natureza petrificada e natureza
histórica, enquanto no eixo da consciência, o sonho e o despertar. No ponto de intersecção
desse diagrama, a mercadoria. Em cada um dos campos do diagrama, suas faces
contraditórias: o fóssil e o fetiche, a ruína e a imagem de desejo. Em nosso trabalho,
tomaremos tanto a moda como a revista Harper‟s Bazaar como ponto de intersecção desse
diagrama, ou seja, a mercadoria. A ideia de fóssil, para Benjamin, é associada ao rastro
(Spur), “a marca dos objetos particularmente visível nos interiores burgueses atapetados, ou o
forro aveludado de suas caixas”. Em fetiche, temos a mercadoria como imagem mítica, a
fantasmagoria, “a forma detida da história”. Nossas fantasmagorias em questão nasceram no
século XIX com as roupas de alta-costura, sua versão em massa e sua reprodução nas páginas
de revista. “Corresponde à forma coisificada da nova natureza, condenada ao Inferno
moderno do novo como o sempre-o-mesmo [...] a imagem do desejo é a forma onírica,
transitória, desse potencial. Nela, os significados arcaicos retornam antecipando a „dialética‟
do despertar”. O sempre-o-mesmo será analisado sob a forma de moda na revista. Os desejos
nunca satisfeitos, porque não há como satisfazê-los retornam em cada moda que surge como
novidade anunciada nas páginas da revista. “A ruína, intencionalmente criada na poesia
alegórica de Baudelaire, é a forma sob a qual imagens do desejo do século passado aparece
como escombros no presente”.

Figura 3 Diagrama D. despertar

natureza
história natural:
histórica: ruína
fóssil (traço)
(alegoria)

natureza petrificada Mercadoria natureza transitória


história mítica: natureza mítica:
fetiche imagem do
(fantasmagoria) desejo (símbolo)

sonho
Fonte: Diagrama D In: Buck-Morrs, Susan. Dialética do Olhar: Walter Benjamin e o Projeto das Passagens. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2002. p.255
38

Para Sennett (1989), o capitalismo industrial do século XIX exercia sobre a vida
pública, além da mistificação, a mudança da natureza da privacidade e afetou o que era a
contrapartida do domínio público, mas ele pontua que, para que ocorresse tal mistificação, era
preciso que as pessoas acreditassem que os objetos possuíam atributos humanos. “Por volta de
1891, possuir o vestido certo, fosse ele produzido em massa e não muito bonito, leva uma
mulher a sentir-se casta ou sexy, uma vez que suas roupas „a‟ expressavam”, tal efeito era
uma consequência da propaganda industrial, que “se faz por um ato de desorientação, que
depende dessa superposição de imagens, que, por sua vez, depende tanto de um modo
distintivo de produção, quanto de uma crença distintiva sobre a presença universal do caráter
humano” (SENNETT, 1989, p. 186).
Com as esferas do público e do privado separadas, o homem moderno passou a montar
em sua residência uma espécie de universo particular, onde o burguês reuniria o longínquo e o
passado transformados em objetos. Bolle (2000, p. 378) suscita em sua leitura benjaminiana a
criação de uma cultura burguesa “que vai desde o estilo de morar até as atividades artísticas
[...] ligada à concepção de que o mundo é um espetáculo a ser assistido, o ócio encarna em
figuras como o Flâneur ou o Colecionador”. O Colecionador torna a moradia burguesa do
século XIX uma expressão do seu desejo de acumulação, se transformando em um Flâneur
congelado. “A moradia burguesa é um museu dos museus. Uma coleção de souvenirs que
proporciona a seus proprietários uma contemplação do mundo a partir da distância
confortável e segura das miniaturas” (BOLLE, 2000, p.379). Assim, tanto na esfera pública
com a figura do Flâneur quanto na esfera privada com o Colecionador, o homem cerca-se de
objetos que busca se identificar e encontrar uma alma para se ajustar. “O colecionador, aos
olhos de Benjamin, se caracterizava por uma paixão que o punha em contato com o caos das
lembranças. A coleção era o modo pelo qual ele tentava ordenar objetos marcados por
recordações” (KONDER, 1988, p.79). No seguinte trecho, descrito em Charles Baudelaire,
um lírico no auge do capitalismo, vemos a necessidade que a burguesia tinha de ajuntar
objetos como tentativa de impor o seu rastro:

Desde Luís Felipe, a burguesia se empenha em buscar uma compensação


pelo desaparecimento de vestígios da vida privada na cidade grande. Busca-a
entre suas quatro paredes. É como se fosse a questão de honra não deixar se
perder nos séculos, se não o rastro dos seus dias na Terra, ao menos o dos
seus artigos de consumo e acessórios. Sem descanso, tira o molde de uma
multidão de objetos; procura capas e estojos para chinelos e relógios de
bolso, para termômetros e porta-ovos, para talheres e guarda-chuvas
(BENJAMIN, 1989, p. 43).
39

Províncias transformadas em metrópoles e, com isso, um novo medo instaurado no


seio da burguesia capitalista do século XIX, conforme apontamento de Benjamin em destaque
acima: o de se perder no meio dos séculos e não deixar o rastro de seus dias na Terra. O
homem percebeu a “falta de naturalidade dos empreendimentos sociais humanos - que se
torna bastante clara na vida da cidade; ela (a moda) é uma afirmação da natureza arbitrária das
convenções e até da moral” (WILSON, 1985, p. 21). Diante da percepção da arbitrariedade
das normas morais que regem a sociedade, o indivíduo passa então a buscar algo que possa
amenizar a sensação permanente de mal-estar. “Se a mercadoria tivesse uma alma - com a
qual Marx, ocasionalmente faz graça -, essa seria a mais plena de empatia já encontrada no
reino das almas, pois deveria procurar em cada um o comprador a cuja mão e a cuja morada
se ajustar” (BENJAMIN, 1989, p. 51). A modernidade capitalista é o momento propício para
que o Flâneur solitário na multidão encontre na mercadoria algo que o complete e para o
Colecionador juntar objetos que lhe permitam rememorações. Benjamin relata que
Baudelaire, em visita a Bruxelas, ficou muito insatisfeito pela ausência de vitrines. Baudelaire
lamenta: “Nenhuma vitrine. A flânerie, que é amada pelos povos dotados de fantasia, não é
possível em Bruxelas. Não há nada para ver, e as ruas são inutilizáveis” (BENJAMIN, 1989,
p. 46). Em sua análise, Benjamin completa: “Baudelaire amava a solidão, mas a queria na
multidão”. Tomando Baudelaire como expoente simbólico da modernidade, vemos que esta
criou um homem solitário, que procura na moda transformada em mercadoria um refúgio para
o seu mal-estar, e assim, encontra seu lugar em meio à multidão. Para Bolle (2000, p.67), o
Flâneur é a personificação da imagem dialética de Benjamin porque é “ao mesmo tempo,
sonhador e produtor de imagens, pois representa também o literato moderno”. “O Flâneur é
um desenraizado, que pode ir a todos os lugares, mas não está „em casa‟ nem em sua própria
cidade, já que para ele ela é apenas um „mostruário‟” (KONDER, 1988, p. 85). Para Buck-
Morrs (2002, p. 256) em sua interpretação das figuras alegóricas de Benjamin, o Flâneur e o
Apostador transitam como expressão das imagens do desejo e do fetiche sob a forma
fantasmagórica, enquanto o Colecionador perambula sobre a ruína e o fóssil.
A moda, que ao mesmo tempo cria a identidade do homem moderno e também
imagem dialética, o faz se misturar com a massa, já que sonha e produz imagens. Wilson
(1985, p. 42) realça que “as cidades do Renascimento eram muito diferentes dos novos e
enormes infernos industriais, onde, na verdade, o estranho perde ou encontra uma nova
identidade, no anonimato das multidões”, entretanto figura uma dualidade, presente hoje em
todas as cidades metropolitanas do mundo:
40

A paisagem urbana criada pelo industrialismo poderá parecer infernal, quando o


fumo e os gazes saem das fábricas e os seres humanos são empurrados uns contra os
outros na imundície e na miséria, mas poderá parecer mágica como as fabulosas
construções - o Palácio de Cristal, a Torre Eiffel, o Empire State Building - que
desafiam a gravidade e a substância e se transformam literalmente em castelos no ar
da burguesia industrial (WILSON, 1985, p. 42).

A falta de identidade é parte de todos os sintomas que acompanham o homem na Era


Moderna. “Sabe-se, à luz dos humanistas, que a partir do Trecento intensificou-se o sentido da
fugacidade terrena; o pesar de envelhecer, a nostalgia da juventude, o sentido de iminência do
fim ganharam uma nova inflexão” (LIPOVESTKY, 2009, p. 71). Logo, o homem nasce da
“busca acelerada dos prazeres”. Como resume Matos (2015, p. 99), as massas desestruturadas
estão sempre em busca de um novo ópio, com as “novidades trazidas pela mudança
incessantes uma fuga imaginária da angústia pela perda do sentido do passado”. O prazer é
manifestado aqui na identificação com a mercadoria que se faz moda, que serve ainda como
passatempo para o novo homem, passatempo este que chega a inebriá-lo, deixando que “o
espetáculo da multidão agisse sobre ele. Contudo, o fascínio mais profundo desse espetáculo
consistia em não desviá-lo, apesar da ebriedade em que o colocava, da terrível realidade
social” (BENJAMIN, 1989, p. 55). O fascínio e identificação que o homem tem com a
mercadoria, não são percebidos por ele, porque o próprio homem é se coloca como
mercadoria ao oferecer sua força de trabalho. “Quanto mais consciente se faz do modo de
existir que lhe impõe a ordem produtiva, isto é, quanto mais se proletariza, tanto mais é
transpassado pelo frio sopro da economia mercantil, tanto menos se sente atraído a empatizar
com a mercadoria” (BENJAMIN, 1989, p. 54). A moda, como mercadoria que encanta e
inebria o homem, no entanto, não permite que ele se retire do sistema capitalista, bem como
todas as outras instituições da sociedade, que colaboram para a manutenção do status quo:

A moda reflete o capitalismo. O capitalismo mutila, mata, toma posse e desperdiça.


Ele também cria uma enorme riqueza e beleza, juntamente com um desejo de vida e
de oportunidades que estão além do nosso alcance. Ele constrói sonhos e imagens,
tal como constrói coisas, e a moda faz tanto parte desse mundo de sonhos do
capitalismo como da sua economia (WILSON, 1985, p. 27).

Ortiz (1998, p. 148) frisa que foi o século XIX que trouxe a construção em torno de
efemeridades, e ao mesmo tempo, um processo de “racionalização do supérfluo”, algo que
sustenta o próprio capitalismo: “um exemplo é o advento dos grands magasins, com suas
novas técnicas de gestão, venda e apresentação das mercadorias; eles introduzem uma
„instabilidade‟ na apropriação dos objetos, uma rotatividade e circulação dos produtos que
modifica a própria ideia de consumo”. Com essa grande rotatividade de produtos e tal
41

mudança na lógica do consumo, a moda encontra o ambiente mais fértil para se desenvolver,
como o autor conclui em seu parágrafo: “o debate sobre o luxo, a moda, a vestimenta,
expressa uma mudança de orientação no sistema de produção de bens materiais”. Para Sennett
(1989, p. 181), a criação dos grand boulevards facilitou o encontro da massa de consumidores
parisienses e ressalta ainda a criação do sistema de transportes em Paris, em 1838, e Chicago,
em 1871; o meio de transporte serviu à interpenetração das classes sociais e o transporte das
pessoas do trabalho para as lojas. De acordo com Bolle (2000, p.64), a modernidade é uma
expressão dos sonhos coletivos do século XIX, materializada nas “passagens, nas modas e na
produção de imagens” e cabe ao historiador decifrar esses sonhos em seu próprio presente,
posto que, “as imagens oníricas só se tornam legíveis na medida em que o presente é
percebido como um „despertar‟ num „agora da conhecebilidade, ao qual aqueles sonhos se
referem”. As passagens ou arcadas eram o ambiente perfeito para alojar a mercadoria e foram
as precursoras das lojas de departamentos. Surgiu em Paris durante o Segundo Império, onde
se ergueram como templos – até o seu formato era o de uma cruz – e inspiraram Benjamin a
falar sobre a imagem onírica materializada em forma-mercadoria. Como discorre Konder
(1988, p.45), “desde a adolescência, Benjamin se apaixonou pela cidade de Paris.
Impressionam-no, por exemplo, as numerosas superfícies espelhadas existentes na capital da
França”. As passagens parisienses, construções de ferro e recobertas por teto de vidro,
erguidas por volta de 1790 e 1860, chamaram a atenção de Benjamin, que decidiu começar a
escrever sobre essas galerias que “reuniam muitas lojas e as pessoas passavam por elas,
olhando fascinadas, as mercadorias expostas nas vitrinas, num clima de sonho, realçado pela
iluminação a gás”. Mesmo sendo uma propriedade privada, qualquer um podia passar por
entre a galeria e observar as mercadorias nas vitrines, essas imagens fantasmagóricas. Foi
durante o Segundo Império de Napoleão III que tal fantasmagoria se expandiu dos limites das
passagens e se espalhou pela cidade de Paris. As fantasmagorias das vitrines das passagens
habitariam agora também as exposições internacionais (BUCK-MORRS, 2002, p. 115). As
exposições internacionais já foram citadas nessa dissertação no primeiro capítulo, onde as
criações de Worth faziam sucesso entre compradores de todo o mundo. O Trabalho das
Passagens de Benjamin procurou elucidar e aprofundar “o exame das origens dos males
presentes”. Walter Benjamin era obrigado a percorrer a cidade cercada por passagens ao se
deslocar para a Biblioteca Nacional ou sair de lá, onde passava o tempo trabalhando.
Observava em seu dia a dia a Passagem Choiseul, Passagem Vivienne, Vero-Dodat e até
mesmo a Passagem dos Panoramas (KONDER, 1988, p. 80).
42

Freud (2011, p. 18) advertiu que “a vida, tal como nos coube, é muito difícil para nós,
traz demasiadas dores, decepções, tarefas insolúveis. Para suportá-la, não podemos dispensar
paliativos”. Destarte, para ele haveriam três formas para ultrapassar pela existência
remediando-a: “poderosas diversões, que nos permitem fazer pouco da nossa miséria,
gratificações substitutivas, que a diminuem, e substâncias inebriantes, que nos tornam
insensíveis a ela”. A moda, então, se adequaria a segunda categoria enumerada por Freud. A
predileção de Baudelaire pelos entorpecentes, como lembra Benjamin (1989, p.53), se
enquadraria também em uma destas classes de gratificações substitutivas dada pela
psicanálise freudiana. Assim, sob efeito de narcóticos, “passou-lhe despercebido um dos seus
efeitos sociais mais importantes. Trata-se do charme que os viciados manifestam sob a
influência da droga”. Aqui, o próprio sujeito é transformado nessa relação de ebriedade de seu
consumo, visto que “a massificação dos fregueses que, com efeito, forma o mercado que
transforma a mercadoria em mercadoria aumenta o encanto desta para o comprador mediano”.
Eis a dupla mão do capitalismo, na qual simultaneamente o sujeito acredita ter o poder e
liberdade de escolha, a mercadoria, “como almas errantes que buscam um corpo, penetra,
quando lhe apraz” (BENJAMIN, 1989, p. 52). Assim como o haxixe experimentado por
Benjamin, a mercadoria deixaria a multidão “inebriada e murmurante”.
O homem, diferente dos animais, busca entender qual é a finalidade da vida, e assim
segue procurando compreender tal questão. A busca pela felicidade se encontra no centro da
finalidade de vida, os homens “querem se tornar e permanecer felizes. Essa busca tem dois
lados, uma meta positiva e uma negativa; quer a ausência de dor e desprazer e, por outro lado,
a vivência de fortes prazeres” (FREUD, 2011, p. 19). A felicidade, então, é encontrada pelo
homem por meio da imposição do prazer, que tem início com o início de nossa vida, na qual
rejeitamos toda forma de desprazer ameaçador de nossa existência e tentamos formar um todo
com as coisas que nos proporcionam prazer, constituindo um “Eu de prazer”. O que Freud
observa, entretanto, é que essa procura insaciável pelo prazer, apesar de estar inscrita no
aparelho psíquico humano desde o início da vida e se adequar perfeitamente a ele, está em
“desacordo com o mundo inteiro, tanto no macrocosmo como o microcosmo. É absolutamente
inexequível, todo o arranjo do Universo o contraria; podemos dizer que a intenção de que o
homem seja „feliz‟ não se acha no plano da „Criação‟”. Desta forma, quando encontra um
objeto exterior que lhe proporciona prazer, por exemplo, a moda, esse prazer é momentâneo
como a “satisfação repentina de necessidades altamente represadas, e por sua natureza é
possível apenas como fenômeno episódico”, e mesmo quando esta situação provê um
43

desenrolar, isto se dá apenas em um “morno bem-estar; somos feitos de modo a poder fruir
intensamente só o contraste, muito pouco o estado” (FREUD, 2011, p. 20).
Aquilo que chamamos felicidade é composto por momentos frívolos, não por acaso a
moda, com suas mudanças a todo instante, traz um ideal de autossatisfação para alguns desde
a época moderna. O homem da aristocracia da idade moderna, que Lipovetsky (2009, p. 70)
apelida de “homo frivolus”, encontra na moda um de seus contentamentos momentâneos,
assim, “a moda é uma prática dos prazeres, é prazer de agradar, de surpreender, de ofuscar.
Prazer estimulado pelo estímulo da mudança, pela metamorfose das formas, de si e dos
outros”.

2.1 MODA E TEMPO

O tempo do homem moderno é o agora e é disso que se sustentam as modas


passageiras. No entanto, há aqui um paradoxo que poderia ser explicado com o Eterno
Retorno do Mesmo. Muitos estudiosos do tema Moda insistem em dizer na veneração da
moda ao presente, mas, como foi visto até o momento, nada pode ser criado sem que não
tenha sido visto antes, porventura sonhado por permear a memória ou ser fruto da mimesis
natural humana. O fato é que as modas novas aparecem como nunca antes vistas,
constituindo-se como valor de prestígio entre as elites e classe burguesa na modernidade. “A
radicalidade histórica da moda sustenta-se no fato de que ela institui um sistema social de
essência moderna, emancipado do domínio do passado; o antigo já não é considerado
venerável e „só o presente deve inspirar respeito‟” (LIPOVETSKY, 2009, p. 35). O autor
postula ainda como a nova paixão do Ocidente moderno o tempo presente e “a novidade
tornou-se fonte de valor mundano, marca de excelência social (...) o presente se impôs como o
eixo temporal que rege uma face superficial mas prestigiosa da vida das elites”
(LIPOVETSKY, 2009, p. 36). De acordo com Buitoni (1990, p. 13; 1981, p. 9), “a pedra de
toque da imprensa feminina é a novidade. A fim de parecer sempre atual, usa-se o novo. O
atual pressupõe uma relação de presença efetiva no mundo histórico”, ou ainda “o novo, o
moderno: eis a ilusão perseguida a qualquer custo pela imprensa feminina. A imprensa
feminina corre atrás do novo. Mas não é o novo da notícia. É um novo que lhe confere toda
uma ideologia, que faz parte de sua própria natureza”. Buitoni expõe a relação entre a
novidade e a revista de moda e diz que “a novidade é uma qualidade capaz de revestir
qualquer objeto. A ancoragem temporal desloca-se para uma relação mental: a revista (ou a
44

indústria, a publicidade) inventa um modismo que logo é apresentado como o que existe de
mais „atual‟” (BUITONI, 1990, p. 13)
Algumas novidades são tão veneradas e com tanta alegria representada por elas que
surge necessidade de sentir de novo, assim, “o eterno retorno é uma tentativa de unir os dois
princípios antinômicos da felicidade: ou seja, o da eternidade e o do „mais uma vez ainda‟. - A
ideia do eterno retorno faz surgir por encanto, da miséria do tempo, a ideia especulativa (ou a
fantasmagoria) da felicidade” (BENJAMIN, 1989, p. 174). A explanação de Benjamin nesse
diminuto trecho é elucidativa, pois trata do Eterno Retorno não como um tempo circular,
como uma simples repetição, mas como o retorno daquilo que gerou tanta alegria, tanto
prazer, que possui uma enorme vontade de potência para retornar. Somente uma repetição
simples de fatos e modas seria apenas um “morno prazer”, porém, essa apropriação do velho
pelo novo ocorre de forma a considerar as condições materiais e históricas de cada época.
Em uma análise simplória, a concepção de Nietzsche sobre a teoria do Eterno Retorno
do Mesmo pode ser equivocadamente interpretada a partir de uma visão cíclica do tempo,
como a concebida na Grécia Antiga, onde se havia uma ideia de tempo enquanto uma porta
giratória na qual os fatos se repetem segundo uma ordem de acontecimentos e sempre
retornam ao ponto de partida. Pelbart (1998), no entanto, lembra que Deleuze, ao rejeitar a
ideia de tempo cíclico, escreveria de modo exato conceito de eterno retorno tal como
Nietzsche o teria feito. A visão de tempo cíclico no qual o “mesmo” viria sempre como o
“novo” é um tanto simplória para Pelbart, que toma como referência Deleuze. Este, por sua
vez, rejeita o círculo hegeliano, ou seja, o tempo circular. Pelbart ainda mostra em seu texto
que o próprio Zaratustra se enfezou com os que compreenderam de forma errônea o eterno
retorno e cita o trecho proclamado pelo profeta nietzscheano: „não torne tudo tão leve para ti‟.
O Eterno Retorno pressupõe a ideia de ser como seleção e o não retorno do negativo,
“a partir daí é formulada a ideia de um eterno retorno do outro, concebido como ser do devir,
um do múltiplo, necessidade do acaso, em suma, retorno da diferença” (PELBART, 1998, p.
131). Assim, o novo seria a repetição do velho, este, porém, renovado, com alguma diferença
sobre aquele antigo, tal qual ocorre como a moda, que ressuscita itens do passado como se
fossem artigos retrôs mas como algo diferente. O artigo de moda ressuscitado é o positivo, o
que vale a pena ser renovado, lembrado, e assim é eternizado sendo o mesmo. O trecho a
seguir, elucidado por Pelbart, relaciona o eterno retorno do ser como uma afirmação da
vontade de potência: quanto maior a vontade de potência de um ser, mais ele terá a
capacidade de se renovar sendo o mesmo.
45

No plano do pensamento, o eterno retorno parodia o imperativo kantiano. „O que tu


quiseres, queira-o de tal modo que também queiras seu eterno retorno‟. O querer é
submetido à condição de uma infantilização temporal. Apenas subsiste e retorna
aquilo que se dispõe a retornar sempre. Aquilo que se quer apenas uma vez, uma
última vez e nunca mais, não passa de um meio-querer, um querer fraco. Este é
eliminado. Nesse sentido é o tempo (o infinito do eterno retorno) que pode fornecer
a medida do querer. Querer verdadeiramente é querer infinitamente, mas querer
infinitamente é querer sempre, querer para todo o sempre, querer que retorne
infinitamente esse mesmo querer, querê-lo absolutamente. Somente projetado ao
todo do tempo pode o querer dar prova de que atinge o seu limite, isto é, sua
potência máxima (PELBART, 1998, p. 134).

O parágrafo em destaque acima ainda trata de uma questão imprescindível para a


moda na passagem em que diz „o tempo (o infinito do eterno retorno) que pode fornecer a
medida do querer‟. Quer-se a moda imediatamente, no agora e presente, como Simmel (2008,
p. 31) retrata: “Ela (a moda) tem o peculiar fascínio das fronteiras, o fascínio simultâneo
começo e fim, o encanto da novidade e, ao mesmo tempo, o da efemeridade”. Que as modas
são efêmeras já sabemos, mas somente se ela for resistente o bastante poderá voltar, como “o
pensamento do eterno retorno opera como uma prova. Porém, como se vê, não se trata apenas
de uma seleção eliminatória, mas também transmutadora. Não só elimina o que não resiste,
mas transmuta aquilo que resiste”. Desse modo, Pelbart (1998, p. 134) salienta que essa
seleção é o que cria, com a transmutação do mesmo. Já que o que se quer no instante é um
querer tão grande que se deseja que dure para sempre, “onde o infinito do querer no tempo
opera a seleção daquilo que volta - e só pode voltar aquilo que tem força de voltar sempre,
com o que já volta transmutado”. Simmel nos aponta no trecho que a moda é e não o é ao
mesmo tempo, à medida que se encontra entre o passado e o futuro: “a sua questão não é ser
ou não ser; ela é ao mesmo tempo ser e não ser, encontra-se sempre na divisão de águas entre
passado e futuro”. Segundo Deleuze, “a afirmação é ser, o ser é apenas a afirmação em todo o
seu poder” (DELEUZE apud PELBART, 1998, p. 135), então, dessa forma, a moda enquanto
afirmação do ser seleciona o que lhe é válido, enquanto o que não lhe é, o coloca em segundo
plano. No entanto, o que a moda rejeitou no momento pode vir a ser interessante em outro que
ainda virá, o que configura assim a moda como ser e não ser ao mesmo tempo. Quando
Simmel (2008, p. 31) declara que a moda “enquanto persiste no seu clímax dá-nos um
sentimento muito forte de presença, como só poucos fenômenos o conseguem”, vemos que a
expressão da moda é toda a sua afirmação enquanto ser, toda sua vontade de potência. “Na
imagem do Inferno como configuração da repetição, da novidade e da morte, Benjamin abriu
o fenômeno da moda que é específico da modernidade capitalista” (BUCK-MORRS, 2002, p.
131). Na moda, a mercadoria encontra sua melhor forma fantasmagórica. Como lembra Buck-
Morrs (2002, p. 132), no Hades, aqueles que bebiam as águas do rio Lethe esqueciam-se de
46

suas vidas anteriores. “Os ritos primaveris da moda celebram a novidade não a recorrência;
eles pediam não a lembrança, mas o esquecimento até do mais recente passado”. A moda,
com sede pela novidade, acaba por sofrer justamente esse efeito, o de esquecer e reproduzir
novamente, até mesmo o seu mais recente passado.
Talvez, em virtude da vontade de potência das modas, elas surgem como se
pretendessem viver eternamente. “Quem compra um mobiliário, que irá durar um quarto de
século, compra-o habitualmente segundo a moda mais recente e, em geral, deixa de ter em
conta a que predominava dois anos antes. E, no entanto, ao fim de outros dois anos, o encanto
da moda terá desertado desse mobiliário, como já acontecera com o anterior” (SIMMEL,
2008, p. 53). Nesse fragmento escrito por Simmel se expõe a maior diferença entre a obra de
arte e a moda. Mais uma vez, Benjamin destaca trecho de Valéry, poeta que apresenta com
exemplos concretos o que se espera de uma obra de arte:

Reconhecemos uma obra de arte quando nenhuma ideia suscitada, nenhuma forma
de comportamento sugerida por ela, pode esgotá-la ou liquidá-la. Pode-se cheirar
uma flor agradável ao olfato pelo tempo que se queira; não se pode esgotar esse
perfume, que desperta em nós o desejo, e nenhuma lembrança, nenhum pensamento
e nenhuma forma de comportamento desfaz seu efeito ou nos liberta do poder que
exerce sobre nós. Quem se propõe fazer uma obra de arte, persegue o mesmo
objetivo (VALÉRY APUD BENJAMIN, 1989, p. 138).

Enquanto editor da revista de moda La Dernière Mode, Stéphane Mallarmé não fez
questão de associar a moda com a eternidade, uma característica a ser perseguida pela obra de
arte como dito por Valéry. Ao contrário, Mallarmé, de acordo com Svendsen (2010, p. 29),
pensava que “a beleza na moda não deveria ser buscada na atração de algo eterno, e de
maneira nenhuma em qualquer funcionalidade, mas na pura temporalidade. Para a estética
moderna, a beleza reside no temporal, no transitório que é absolutamente contemporâneo”.
Quando se trata de luxo, no entanto, a concepção a respeito da eternidade pode ser
interpretada de outra perspectiva, diferente da de Mallarmé. Para Lipovestky e Roux (2005, p.
86), em uma sociedade que cada vez mais é desencadeada “a febre da renovação e da
obsolescência acelerada dos produtos e dos signos fazem surgir, por efeito de compensação
ou de reequilíbrio, uma exigência nova de intemporalidade, de perenidade, de bens que
escapem à impermanência e a tudo que é descartável”. O que os autores sugerem é que existe
um movimento dialético em que a própria efemeridade da moda faz surgir o gosto pelo que é
tradicional e eterno: “uma surda necessidade „espiritual‟ continua a sustentar, mesmo de
maneira ambígua, nossa relação com o luxo, a necessidade de subtrair-se à inconsistência do
efêmero e de tocar um solo firme, sedimentado, em que o presente recobre-se de referencial
47

duradouro”. No que tange as análises sobre vontade de potência ou eterno retorno, o luxo
seria uma forma de permanência do positivo e estaria presente como desejo de eternidade:

Bem poderia ser que, através das paixões do luxo ou ao menos de algumas delas,
exprima-se menos a pulsão de destruição que seu exorcismo: um luxo mais do lado
de Eros que de Tânatos, mais do lado da memória que do esquecimento. Talvez algo
de metafísico continue a habitar nossos desejos de gozar, como os deuses, as coisas
mais raras e mais belas (LIPOVETSKY; ROUX, 2005, p. 86).

Matos (2015) lembra que a ausência do continuum histórico e a ausência de uma


experiência acabam por transformar todo acontecimento em mito. Isso se dá pelo
preenchimento dos intervalos na razão, que ameaça o futuro, devido à escassez de
experiências. O homem se cerca então itens que apresentam simbolicamente o passado.
“Esses elementos antigos esculpidos nas construções recentes são a fabricação de „rastros‟ do
passado, pois já não têm nenhum significado no moderno que perde a capacidade da
experiência” (MATOS, 2015, p. 104). Em sua interpretação benjaminiana, Matos suscita que
o historicismo não nos apresenta uma memória compartilhada e está artificialmente travestido
de passado, encontrando-se desse modo como um vestígio, rastros e não reminiscências. No
Trabalho das Passagens, Benjamin discute a história enquanto um tempo mítico, do Eterno
Retorno, pois o historicismo cria um tempo esvaziado de sentido. “O coletivo que sonha
ignora a história. Para ele, os acontecimentos se desenrolam segundo um curso sempre
idêntico e sempre novo. Com efeito, a sensação do mais novo, do mais moderno, é tanto uma
forma onírica do acontecimento quanto o eterno retorno do sempre igual” (BENJAMIN,
2006, p. 937). O tempo, para Benjamin, é privado de qualidades e acontecimentos e acaba por
criar uma identificação com a mercadoria, ou seja, por isso a moda teve um papel de tanto
destaque no século XIX e mantém-se como tal. Em análise sobre o Sempre Igual, Matos
(2015, p. 105) conclui que “o trabalho esvaziado de sentido é vazio porque sem experiência e
irrecuperável para a memória histórica, o que converte acontecimentos em mito é a volta do
sempre igual”. Para Buck-Morrs (2002, p. 109), “no mito, a passagem do tempo toma a forma
de predeterminação. O curso dos acontecimentos se diz predestinado pelos deuses, escrito
pelas estrelas, anunciado pelos oráculos ou inscrito nos textos sagrados”. Assim sendo, o mito
afastaria o homem de influir no próprio acontecimento e da “responsabilidade moral e política
das pessoas como agentes conscientes para formar seu próprio destino”. O trecho a seguir nos
traz o sumo do Trabalho das Passagens de Benjamin resumido em poucas linhas:

No âmbito das passagens e do consumo, mito significa a realização alucinatória de


um desejo, no sentido em que a espera do futuro reativa arquétipos na tentativa de
48

integrá-los ao presente. As passagens são lugares modernos do mito, nos quais o


passado não passa e o futuro não chega, onde se permanece em vigília, prisioneiro
do sonho. E na consciência coletiva o tempo é apreendido como devaneio. Nas
passagens, o eterno retorno do sempre igual e o déjà vu constituem uma
compensação à acelerada e incessante mudança aos choques tão intoleráveis quanto
frequentes (MATOS, 2015, pp. 106-7).

Sobre o mito, Benjamin (2012, p. 249) traça um paralelo entre a história e moda. A
história é o tempo recheado de agora (Jetztzeit), não é “homogêneo e vazio” como o tempo do
mito, que não contém o continuum da história. Para Buck-Morrs (2002, p. 100), “quando os
referentes históricos são chamados de „naturais‟, afirmando-os acriticamente e identificando o
curso empírico do seu desenvolvimento com o progresso, o resultado é o mito”. Ocorre que, o
pensamento iluminista que criou as bases do secularismo do século XIX acabou por criar
também a imagem mítica que exige novidade e a sua repetição. Com a Crítica da Razão Pura,
Kant circunscreveu o círculo que deveria se limitar a ciência. No entanto, o positivismo
científico foi calcado em tudo que se apresenta materialmente e isso inclui a arte a as
produções da cultura de massa. “O que aparece como triunfo da racionalidade subjetiva, a
sujeição de todo ente ao formalismo lógico, é pago com a subordinação dócil da razão aos
achados imediatos”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1996, p. 44). Ao tentar se livrar do mítico
e do mágico com a manipulação da natureza e por meio do pensamento lógico e formal “o
iluminismo recai na mitologia, da qual nunca soube escapar [...] No semblante da imagem
mítica, bem como na clareza da fórmula científica, é ratificada a eternidade do fatual e a mera
existência é proclamada como sentido que o fatual obstrui” (ADORNO; HORKHEIMER,
1996, p. 45). O novo é sempre uma repetição do antigo.
A desmitificação do mito seria evocada no levantamento da natureza pré-histórica. O
exemplo da Roma antiga é suscitado por Benjamin como um momento carregado de tempo do
agora, tempo este que “fez explodir para o continuum da história”. A Revolução Francesa,
para Benjamin, “via-se como uma Roma ressurreta, Ela citava a Roma antiga como a moda
cita um vestuário do passado. A moda tem um faro para o atual, onde quer que ele se oculte
na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em direção ao passado”. O conceito de
mito e história também diz respeito para o homem em relação aquilo que o transcende.
“Enquanto a história possibilita o exercício da razão e liberdade, no mito os seres humanos
são impotentes para intervir na esfera do destino, portanto, impossibilitando a emergência do
novo” (CASTEL, 2015, p. 278). O tópico que abriremos a seguir tratará sobre as questões do
sonho em sua consciência coletiva.
49

2.2 MODA E SONHO

Walter Benjamin se arriscou ao fornecer um viés de interpretação freudiana ao


Trabalho das Passagens, visto sua formação dialética histórica e materialista. Tal
interpretação da realidade a partir da concepção do psicanalista vienense se deu após conselho
de Theodor Adorno a respeito dos manuscritos do trabalho das passagens. Benjamin abraçava
a consciência coletiva de Carl Jung, de cuja teoria Adorno procurava se distanciar3. Para
Adorno (2012), era válido para Benjamin o afastamento do arcaísmo de Jung e Klages. Ao
invés disso, a crítica individualista, porém dialética de Freud. Na imagem onírica de
Benjamin, a consciência coletiva produz imagens que mesclam o novo e o antigo em sonhos.
Ele explica que as imagens produzidas na vida onírica do coletivo “são imagens do desejo e
nelas o coletivo procura tanto superar quanto transfigurar as imperfeições do produto social,
bem como as deficiências da ordem social de produção” (BENJAMIN, 2007, p. 41). Com a
produção material e a tecnologia, o homem consegue dar ao objeto a expressão da imaginação
utópica, criando uma imagem de desejo personificada em mercadoria (BUCK-MORRS, 2002,
p. 150). Para Sfez (1994), estamos aprisionados a uma forma simbólica de modo que não
conseguimos percebê-la, como um "filtro do qual podemos considerar não apenas as relações
individuais e sociais como também nossas relações com o mundo construído". Esse quadro
simbólico aparece como algo que gera a única apreensão da realidade e passa a ser não mais
percebido como filtro. A imagem onírica é a forma simbólica do capitalismo e assim estamos
sonhando sem ao menos perceber.
Em seus escritos, Freud (1996a, p. 157) confirma a relevância dos sonhos ao dizer que
são “fenômenos psíquicos de inteira validade - realizações de desejos” e que, inclusive,
“podem ser inseridos na cadeia dos atos mentais inteligíveis de vigília”. Benjamin se apropria
então da ideia apontada por Freud de que os sonhos são a realização de um desejo quando
utiliza a metáfora do sonho coletivo. Castel (2015, p. 281) aponta que, para Benjamin, o
sonho do coletivo é o seu passado. “A função (do sonho) que para o indivíduo tem o
orgânico-natural, para o sujeito histórico-político é cumprida pelas manifestações culturais (a
técnica, a moda, a publicidade e especialmente a arquitetura)”. Sobre o sonho, o presente
ocupa o lugar da vigília e o despertar, à rememoração. Bolle (2000, p. 373) reitera que cabe ao
historiógrafo interpretar a experiência onírica, “por meio da „técnica do despertar‟, de tal
modo que ela se torne uma „configuração histórica‟ (geschichtliche Gestalt)”. O despertar
consiste, portanto, na interpretação das imagens oníricas que se mostram como imagens
3
Sobre tal, verificar Bretas (2008, p. 137).
50

dialéticas: “nas marcas deixadas pela história posterior do objeto, as condições de sua
decadência e a forma de sua transmissão cultural, as imagens utópicas dos objetos passados
podem ser lidas no presente com verdade” (BUCK-MORRS, 2002, p. 264). Svendsen (2010,
p. 130) explana o consumo de moda com base nos escritos de Colin Capbell ao dizer que
“como o hedonista tradicional, que se entregava a prazeres sensuais, se transformou num
hedonista moderno, romântico, que vive no imaginário e para o imaginário, transformando-se
por fim no consumidor moderno ou pós-moderno”. O papel do despertar foi descrito para
Benjamin como um exercício de rememoração do sonho, que seria revelador:

O „despertar‟ constitui uma „zona‟ privilegiada, na qual o sonho já não prevalecia e


no entanto continuava próximo, o sujeito podia aproveitá-lo, extrair dele
significações preciosas que se perderão em seguida, quando forem retomados os
hábitos da vida cotidiana, reassumidas as responsabilidades, pragmaticamente
organizada a consciência, para „funcionar‟ de maneira adequada. Em estado de
vigília, quando está plenamente acordado, o sujeito paga um preço muito alto de
eficácia: sua consciência se articula em moldes inevitavelmente utilitários, sua razão
tende a se enrijecer, perde algo da sua capacidade de rejuvenescer no contato com o
novo. O „despertar‟ é uma vigorosa experiência dialética: ele cria condições para que
a razão – astuciosamente – se renove e amplie seus horizontes (KONDER, 1988, p.
82).

Ao sonhar, o coletivo quer satisfazer um desejo, o que Benjamin revela a seguir como
uma vontade de se distanciar do que se tornou antiquado, ou seja, “do passado mais recente” e
buscar resoluções das “imperfeições do produto social”. Assim ocorre com a moda: a última
moda deseja se livrar da penúltima moda, como aponta Simmel (2008, p. 31), “cada expansão
sua impele-a para seu fim, porque ela ab-roga assim a possibilidade da diferença”. Vimos que,
para Benjamin, o sonho coletivo produz imagens de desejo, que buscam o novo. O filósofo
alemão antecipava o modo de consumo do pós-moderno, “que projeta um gozo idealizado
sobre produtos cada vez mais novos, uma vez que os velhos e bem conhecidos perdem pouco
a pouco sua capacidade de encantar” (SVENDSEN, 2010, p. 131). O coletivo deseja o novo e
sonha com a época seguinte, com a moda que virá, com a sociedade e todos os seus elementos
políticos e estéticos, como na seguinte passagem: “No sonho, em que diante dos olhos de cada
época surge em imagens a época seguinte, esta aparece associada a elementos da história
primeva, ou seja, de uma sociedade sem classes” (BENJAMIN, 2007, p. 41). Para Benjamin
(2008, p. 103), ainda, a moda teria a capacidade de antecipar a história, apresentando sinais do
que está por vir: “Cada estação da moda traz em suas mais novas criações alguns sinais
secretos das coisas vindouras. Quem os soubesse ler, saberia antecipadamente não só quais
seriam as novas tendências da arte, mas também a respeito de novas legislações, guerras e
revoluções”. O trecho anterior pertence ao Trabalho das Passagens, mas o pensamento sobre o
51

que se oculta sobre o seio do tempo, a leitura das estrelas e de outros signos do presente para
descobrir o que está por vir aparece também em outros textos escritos por Benjamin (2012, p.
232). Na análise desse trecho, Buck-Morrs (2002, p. 154) diz que, “quando Benjamin afirma
que essas imagens „pertencem‟ a uma „sociedade sem classes‟, é porque aquela qualidade de
conto-de-fadas do desejo de felicidade como eles expressam pressupõe um fim à escassez
material e ao trabalho explorador”, assim, as imagens oníricas que aparecem “diante dos olhos
de cada época” é uma tentativa de se libertar da estrutura de dominação de classe dada pelo
capitalismo, porém, na sociedade moderna e até hoje, se alimenta dele mesmo. Ao contrário
do que a primeira vista pode parecer, Benjamin não diz que o conteúdo mítico do passado seja
o plano para o futuro. As imagens têm o local de símbolo e não preveem o futuro, “elas
proporcionam motivação para a emancipação futura, que não será literalmente uma
restauração do passado, mas será baseada em formas novas que „apenas começamos a
vislumbrar‟” (BUCK-MORRS, 2002, p. 152).
A moda e o sonho estão interligadas, de acordo com as análises de Simmel e
Benjamin, visto que ambos buscam elementos novos e ao mesmo tempo remontam o passado
em um dado outro momento, porém sem a presença do “tempo de agora”. Tal como sonhamos
em repouso, elementos vivenciados em vigília ressurgem na nova moda, “se no momentâneo
auge de consciência social no ponto que ela caracteriza reside já o seu gérmen de morte, o seu
destino para a dissolução, ela não desclassifica totalmente esse passado, mas acrescenta aos
seus encantos outro novo” (SIMMEL, 2008, p. 32). Benjamin e Simmel concordam, então,
que mesmo com o encanto trazido pelo novo, não existe uma total renegação do passado,
embora a moda queira se distanciar do passado mais recente. A implicação real deste sonho
coletivo constituído de “imagens de desejo” é toda configuração da vida, como aponta
Benjamin (2008, p. 41) na sentença: “As experiências desta sociedade, que têm seu depósito
no inconsciente coletivo, geram, em interação com o novo, a utopia que deixou seu rastro em
mil configurações da vida, das construções duradouras até as modas passageiras”. A moda
como objeto de desejo na revista Harper‟s Bazaar está presente no sonho que permeia o
coletivo. Conforme apontado por Svendsen (2010, p. 131), Richard Avedon disse que “seu
papel como fotógrafo da Vogue consistia em „vender sonhos, não roupas‟”. A Harper‟s
Bazaar, assim como sua concorrente Vogue, vende sonhos impressos em fotografias de moda.
O desejo já visto outrora aparece na época seguinte e apesar de já ter sido vivido e
sonhado, retorna como algo completamente novo e ressignificado, de acordo com a “dialética
da produção de mercadorias: a novidade do produto adquire um significado até então
desconhecido; pela primeira vez, o sempre igual aparece de modo evidente na produção de
52

massa” (BENJAMIN, 1989, p. 172). Sobre isso, Buck-Morrs (2002, p. 151) argumenta que,
“o novo é mítico porque seu potencial ainda não foi cumprido; na consciência, o velho é
mítico porque os seus desejos nunca são realizados”. Aparentemente, o conteúdo inexistiu na
vida de vigília, no entanto, trata-se de um “sonho hipermnésico”: “o que se considera digno de
ser lembrado não é, como na vida de vigília, apenas o que é mais importante, mas, pelo
contrário, também o que é mais irrelevante e insignificante” (FREUD, 1996a, p. 55).
Memórias embutidas no âmago do coletivo vêm então à tona nos sonhos, já que tudo que é
apreendido por nossos sentidos muitas vezes não se faz percebido. “Os sonhos não produzem
mais do que fragmentos de reproduções; e isso constitui uma regra tão geral que nela é
possível basear conclusões teóricas”. Desta maneira, nada do que foi sonhado não foi vivido
anteriormente, e o que será vivido agora será sonhado posteriormente, como em um “eterno
retorno do mesmo”. Quando Freud nos diz que no sonho por vezes temos sonhos
hipermnesicos ocasionados pela memória absorta no meio de tantas outras captadas pela
nossa percepção, somos remetidos a mémoire involontaire suscitada por Marcel Proust no
célebre romance Em Busca do Tempo Perdido. O tracejo da chamada memória involuntária é
sugerido por Proust no momento em que o narrador prova um pedaço de bolo, deixando-o
alegre sem o conhecimento de sua causa. De acordo com Gagnebin4,“o golpe de gênio de
Proust está em não ter escrito „memórias‟, mas, justamente, uma „busca‟, uma „busca das
analogias e semelhanças entre o passado e o presente”. Assim, temos aqui a ligação entre
Proust, com a sua memória involuntária, Freud, com o sonho e Benjamin com a imagem
onírica/dialética. As imagens que passam velozes e efêmeras ficam gravadas de alguma
maneira e, ao nos depararmos com elas novamente, temos a impressão de um choque. Tal
dinâmica é possível graças às reproduções técnicas como a fotografia (MATOS, 2014).
No prefácio de Obras Escolhidas I de Walter Benjamin, Jeanne Marie Gagnebin
discorre a respeito da análise feita pelo filósofo alemão de parte da obra do escritor francês.
Gagnebin ressalta a noção engendrada sobre a “presença do passado no presente” dada por
Benjamin, na qual há “uma semelhança profunda, mais forte do que o tempo que passa e que
se esvai sem que possamos segurá-lo”. A invocação da memória involuntária ocorre por meio
de acontecimentos no presente em metáforas como a da madeleine de Proust ou em sonhos.
São imagens oníricas e dialéticas, tal como a moda, subtraída das “contingências do tempo em
uma metáfora”. A memória involuntária surge em imagens oníricas que se tornam imagens
dialéticas na vida de vigília, quando são postas em prática nos desenhos de estilistas e mais

4
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Prefacio. In: BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I: Magia e Técnica, Arte e
Política. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 15.
53

tarde, nas passarelas das semanas de moda. Destacamos ainda no prefácio de Gagnebin a
exortação deixada por Benjamin sob uma análise proustiana sobre o presente e o passado:

A mesma preocupação de salvar o passado no presente graças à percepção de uma


semelhança que os transforma a ambos: transforma o passado porque este assume
uma forma nova, que poderia ter desaparecido no esquecimento; transforma o
presente porque este se revela como sendo a realização possível dessa promessa
anterior que poderia ter-se perdido para sempre, que ainda pode se perder se não a
descobrirmos, inscrita nas linhas do atual (GAGNEBIN, 2012, p. 16).

Para Adorno (2002), os consumidores da cultura de massa se satisfazem com a


reprodução do sempre igual. Neste ponto, ainda, ressaltamos o fato de que os sonhos são
representações, ou seja, se constituem como semelhantes a um modelo estabelecido na vida de
vigília. Essa representação é criada pelo cérebro humano e é semelhante aos objetos vistos,
por isso, diz-se que as criações sejam elas de moda ou para qualquer outro fim são
semelhantes entre si. No sonho do estilista, por exemplo, há uma representação do que fora
visto, que é semelhante ao objeto de origem. Já em vigília, o estilista colocará em prática o
desenho representado do sonho, que por sua vez é uma representação de outro objeto visto a
partir dos olhos de quem os enxergou, no caso, o estilista, como neste belo fragmento de Paul
Valéry extraído por Benjamin: “quando digo: vejo isto aqui, com isto não foi estabelecida
qualquer equação entre mim e a coisa… No sonho, ao contrário, existe uma equação. As
coisas que vejo, me veem tanto quanto eu as vejo” (VALÉRY APUD BENJAMIN, 1989, p.
140).
Conforme apontamento observado por Bretas (2006, p. 44), o “contexto da lógica
„onirocapitalista‟ à qual Benjamin se reporta, a „novidade‟ é, portanto, a „forma
fantasmagórica‟ assumida pelo „sempre-igual‟ ao ingressar no circuito infernal da produção e
consumo de mercadorias”. Consequentemente, a moda, enquanto um sintoma da cultura em
que estamos inseridos se apresenta como esta novidade sempre-igual. “É possível que surja,
no conteúdo de um sonho, um material que, no estado de vigília, não reconheçamos como
parte de nosso conhecimento ou nossa experiência”, relata Freud (1996a, p. 49) ainda sobre os
sonhos hipermnésicos, “lembramo-nos, naturalmente, de ter sonhado com a coisa em questão,
mas não conseguimos lembrar se ou quando experimentamos na vida real”.
O fragmento a seguir nos coloca de frente com a conclusão de Freud a despeito do
conteúdo dos sonhos. Ele reforça que não há como criarmos imagens oníricas inéditas, sendo
estas recorrentes da memória, mesmo as mais profundas ou mesmo não relevantes à vida de
vigília:
54

Quaisquer que sejam os estranhos resultados que atinjam, eles nunca podem de fato
libertar-se do mundo real; e tanto suas estruturas mais sublimes como também as
mais ridículas devem sempre tomar de empréstimo seu material básico, seja do que
ocorreu perante nossos olhos no mundo dos sentidos, seja do que já encontrou lugar
em algum ponto do curso de nossos pensamentos de vigília - em outras palavras, do
que já experimentamos, externa ou internamente (FREUD, 1996a, p. 48).

Aqui, o psicanalista austríaco frisa que não é possível sonhar com algo novo, que
nunca tenha sido apreendido por nossos sentidos: “sentimo-nos tentados a crer que os sonhos
possuem uma capacidade de produção independente”, porém, o que ocorre é justamente a
reprodução de algo que fora vivenciado. Nos objetos e imagens colocadas a nossa frente, à luz
do dia, se acumulam o inconsciente e aquilo que está esquecido. Assim, podemos explicar
como objetos ou imagens podem guardar a memória e permitir o sonho coletivo:

Objetos são portadores de memória, individual e coletiva, garantidores de


permanência em meio ao devir inconstante do tempo e de valores, modos de vida e
de conhecimentos. Por isso, as passagens de Paris, „sonhos do coletivo‟ onde se
instalaram o comércio de luxo e a flânerie, as vitrines e vitrais multicoloridos, são
um convite para imaginar histórias [...] Os objetos de uma época extinta e seus
possuidores desaparecidos nos permitem reviver a vida de nossos pais e ancestrais
(MATOS, 2014, p. 8).

Embasado por Freud, Benjamin (2008, p. 48), chamou de imagem dialética o despertar
do sonho cujo conteúdo fora antes experimentado pelo coletivo. A interação do antigo com o
novo acontece na “modernidade, que cita a história primeva”, e essa conjunção aparece por
meio das “relações sociais e produtos dessa época”. Essa relação ambígua é caracterizada pela
manifestação da imagem na imobilidade: “Esta imobilidade é utopia e a imagem dialética,
portanto, imagem onírica”. De acordo com análise de Buck-Morrs (2002, p. 265), a
“apresentação do objeto histórico dentro do campo de forças carregado de passado e presente
que produz eletricidade política em um „flash luminoso‟ de verdade, é a imagem dialética”.
Como observou Bolle (2000, p.67), Adorno esperou que Benjamin diferenciasse seus
conceitos de imagem dialética e imagem onírica, no entanto, não foi o que ocorreu e houve
praticamente uma fusão dos conceitos. Para Adorno (apud Bolle, 2000, p.67), a imagem
coletiva não poderia se hospedar na consciência coletiva, que enquanto uma construção mítica
não suportaria o sujeito histórico e, em vez de “produtos sociais existiriam como
„constelações objetivas‟ do conhecimento”. Findo, Benjamin conclui que a manifestação de
ambas as imagens é representada pela mercadoria, que se torna um fetiche. Cabe aqui o
esclarecimento sobre o conceito de fetichismo da mercadoria, que consiste em uma relação
entre a mercadoria e o homem que nada a tem a ver com a natureza física: “É apenas uma
55

relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma
fantasmagórica de uma relação entre coisas” (MARX, 2013, p. 206). Tal “forma
fantasmagórica” será adotada por Benjamin para a discussão das novas relações do homem
moderno com as transformações da cidade e seus produtos, porém, este, acredita que a
fantasmagoria não era mecânica e reflexiva, como acreditava Marx, mas sim, mimética e
expressiva. Tal expressão era “fruto da interação entre o moderno e o antigo, entre o novo e o
sempre igual acumulado pela experiência destas sociedades em seu inconsciente coletivo”. O
Trabalho das Passagens e a fantasmagoria de Benjamin serviram para livrar a análise do
fetiche da mercadoria de uma concepção puramente racional e materialista como a de Marx
para levá-la a uma concepção mais subjetiva, a de formação de imagens do desejo coletivo.
“A fantasmagoria expressa uma repetição cíclica, o eterno retorno do mesmo, mascarados
ilusoriamente como novidade representada infatigavelmente pela moda, sua agente
infatigável” (DIAS, 2015, pp. 66-67). Nas lojas modernas do século XIX, as vendas estavam
garantidas pela desorientação do consumidor: “o estímulo à compra resultava de uma aura
temporária de estranhezas, de mistificações, que os objetos adquiriam” (SENNETT, 1989, p.
183). Buck-Morrs (2002, p. 112) faz apontamentos acerca dessa confusão e desorientação
causada pelas vitrines e mercadorias: “A Cidade dos Espelhos, onde a própria multidão se
torna espetáculo, refletia a imagem das pessoas como consumidores em lugar de produtores,
mantendo virtualmente invisíveis as relações de produção, do outro lado do espelho”. A
mercadoria que contém a imagem do desejo e produzida pelos novos meios de produção,
representa, materialmente e simbolicamente a evolução tecnológica, humana e social (BUCK-
MORRS, 2002, p. 153). Essa imagem serve ao desenvolvimento do capitalismo e da
sociedade moderna e contemporânea. De acordo com Konder (1988, p. 80), com o estudo das
Passagens, Benjamin pôde perceber que eram “miniaturas da cidade burguesa tal como ela
desejaria ser: cabia-lhes criar condições para que, em torno das mercadorias, ser realizassem
passeios deslumbrantes”.
É na moda, porém, que o fetiche da mercadoria encontra o seu lugar para ser adorado,
e onde o inorgânico ganha vida: “Ela acopla o corpo vivo ao mundo inorgânico. Face ao vivo,
ela faz viver os direitos do cadáver. O fetichismo que está assim submetido ao sex appeal do
inorgânico é seu nervo vital” (BENJAMIN, 2007, p. 58). Para Bolle (2000, p. 66), “os rituais
de adoração do fetiche Mercadoria são ditados pela Moda, secundada pela Publicidade,
enquanto arte de expor as mercadorias”. “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você
terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes. E nada haverá de novo nela”
(NIETZSCHE, 2003, p. 230). O Sempre Novo da moda é aliado da mulher moderna e com
56

ela, imita o manequim, ganhando características inorgânicas, enquanto a roupas, por sua vez,
ganham características orgânicas:

Em uma inversão macabra do sonho utópico de reconciliação entre humanidade e


natureza, a moda „inventa uma humanidade artificial‟. Os vestidos imitam a natureza
orgânica (as mangas se parecem com as asas de pinguim, as frutas e flores se
parecem com ornamentos para o cabelo, espinhas de peixe decoram chapéus, e
plumas não aparecem só nos chapéus, mas nos sapatos de noite e nos guarda-
chuvas) enquanto o corpo humano vivo imita o mundo inorgânico (através dos
cosméticos, a pele tenta conseguir a cor-de-rosa tafetá, saias de crinolina fazem as
mulheres virarem „triângulos‟ ou „sinos ambulantes‟ (BUCK-MORRS, 2002, p.
135).

A moda, deusa feiticeira de Barthes (2009), cria o corpo ideal, capaz de vencer a
morte e tornar o corpo eterno e mutável, porém, em decorrência a isso, se tem a repetição e o
Eterno Retorno do Mesmo. “A maneira, justamente, como a moda muda constantemente,
serve na realidade para fixar a ideia do corpo como sendo uma coisa imutável e eterna”
(WILSON, 1985, p. 83). Com o Eterno Retorno do Mesmo, Benjamin pontua o seu
pensamento: “O sonho coletivo não conhece história. Os eventos acontecem como se fossem
sempre idênticos e sempre novos”. Neste trecho, Benjamin ressalta a repetição dos fatos, tanto
os sonhados quanto os vividos, constituídos de lembranças às vezes de um passado remoto, os
sonhos e os desejos nele imbuídos parecem novos, mas na verdade não passam da repetição
do mesmo e, continua: “a sensação do mais novo e do mais moderno é, com efeito, somente
uma formação onírica de eventos como „o eterno retorno do mesmo‟” (BENJAMIN, 2007, p.
546). Como nem sabem que estão sonhando, os novos sonhos que são novos fetiches da
mercadoria se atualizam, visto que símbolos permanecem inconscientes. “Fetichização da
mercadoria e fetichização dos sonhos se tornam indistinguíveis” (BUCK-MORRS, 2002, p.
154).
Para Marx (apud MATOS, 2015), a imprensa e o telégrafo produzem em um só dia
mais mitos do que poderiam ter sido produzidos em um século. A revista de moda, portanto,
em uma só edição poderia criar quantos mitos os desejos de consumo de uma mulher gostaria
de realizar. Para Matos (2015, p. 107), “são mitos construídos pelo sistema de produção de
mercadorias que, espetacularizadas, transfiguram-se em fantasmagorias, pois são criações
cuja base - diversamente do capitalismo industrial - é, ao mesmo tempo, econômica e
tecnológica”. Tais fantasmagorias tomam o lugar da experiência perdida e se presentificam no
consumo, na moda, nas páginas da revista que estimula o desejo e ao mesmo tempo realiza-o.
Benjamin, no entanto, se utiliza da forma fantasmagórica de Marx, mas a interpreta sob uma
nova ótica, a da imagem desejo. O valor de troca e valor de uso da mercadoria passam a ser
57

ofuscados com as vitrines pela “mercadoria-em-exibição” e o objeto como algo “puramente


representacional”. “Todo o desejável, do sexo ao status social, podia ser transformado em
mercadorias como fetiches-em-exibição, mantendo a multidão subjugada, mesmo quando suas
posses pessoais estavam muito longe de alcançá-las” (BUCK-MORRS, 2002, p. 113, grifo
nosso). A revista de moda se alia muito bem à vitrine, pois nela também os objetos
simplesmente se exibem, mesmo que quem esteja os olhando não possua condições
financeiras para adquiri-los. O valor exposto em preços altíssimos fora do alcance, por outro
lado, só aumentaria a cobiça em admirá-los ou possui-los. Como salienta Buck-Morrs, a
novidade também se tornará o fetiche, que por sua vez transforma a história em expressão da
forma-mercadoria. Seja nas galerias ou nas feiras, o homem foi condicionado ao princípio da
publicidade, de olhar e não tocar, e ter prazer só de observar o espetáculo (BUCK-MORRS,
2002, p. 116). Com as passagens, “o sonho da burguesia se corporificava: o luxo do paraíso
encobria o inferno da exploração. Mas a burguesia, afinal, se expôs demais em seu sonho:
deixou nas „passagens‟ marcas indiscretas, reveladoras da ambiguidade do século que as viu
nascer” (KONDER, 1988, p. 80).
De acordo com o pensamento de Benjamin e sua interpretação da realidade a partir da
teoria de Freud, os momentos e as significações históricas se desenham para o sujeito coletivo
como um sonho e exige, portanto, uma interpretação para uma leitura crítica da história.
Enquanto tal interpretação deixa de acontecer, os acontecimentos vividos se tornam então
mitos ou destino. Diante de tal elucubração, a moda e outras produções culturais do homem
moderno (e em seguida na pós-modernidade) seriam, portanto, imagens oníricas e míticas.
Cabe ao historiador ou ao estudioso que se comprometem em desvendar o seu tempo
desmitificar “as diversas configurações em que se entrincheira o destino, despertando o
próprio sonho coletivo no qual possa estar imerso” (CASTEL, 2015, p. 285).

2.3 MODA E MIMESIS

Jeanne Marie Gagnebin é feliz ao nos apresentar a capacidade mimética da história em


Benjamin e evoca também a filosofia nietzschiana do Eterno Retorno do Mesmo ao mostrar
que as semelhanças entre as épocas ocorrem quando são ressignificadas conforme o
conhecimento humano dado até o momento histórico em questão. No artigo Do conceito de
mimesis no pensamento de Adorno e Benjamin, Gagnebin (1997, p. 98) escreve que “as
58

semelhanças não existem entre si, imutáveis e eternas, mas são descobertas e inventariadas
pelo conhecimento humano de maneira diferente, de acordo com as épocas”.
A imitação se faz presente na vida humana como algo natural, conforme apontamento
já feito por Aristóteles (1987, p. 203) na Poética: “o imitar é congênito no homem (e nisso
difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, aprende as
primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado”. As imagens reproduzidas podem
gerar mais prazer no homem do que as reais, como explica ainda Aristóteles, visto que “nós
contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com
repugnância, por exemplo, as representações de animais ferozes e de cadáveres”. O filósofo
atribui esse prazer à capacidade de reconhecimento e aprendizado que a apreciação de
imagens proporciona: “efetivamente, tal é o motivo por que se deleitam perante as imagens:
olhando-as, aprendem e discorrem sobre o que seja cada uma delas, e dirão, por exemplo,
„este é tal‟”. A imitação para Aristóteles “pergunta pela capacidade mimética do homem, pelo
mimeisthai no qual se enraíza a poietiké, entendida como criação de uma obra artística”
(GAGNEBIN, 1997, p. 84). Em Aristóteles, segundo Gagnebin, a obra artística não é uma
reprodução de um modelo, mas sim “seu desenvolvimento integral e harmonioso da faculdade
mimética”.
Benjamin carrega a mesma visão positiva de Aristóteles sobre a mimesis, enquanto
Adorno a critica veementemente, bem como Platão em A República. Gagnebin (1997) narra
tais discórdias e as explana de maneira clara ao fazer um paralelo entre o pensamento
platônico e Adorno e o aristotélico e Benjamin. Ela elucida que, em Platão, “a imagem
mimética é, primeiro definida na sua falta essencial do ser: em relação à ideia, à forma
primeira que os objetos concretos reproduzem inabilmente, a imagem poética ou plástica não
é mais que cópia”. Platão queria se distanciar da mimesis pela falta de ser e pelo
arrebatamento provocado pela imagem mimética. Gagnebin (1997, p. 83) completa sua
interpretação platônica com a sentença: “sua crítica da mimesis pertence a um projeto político
muito maior, que poderíamos chamar, hoje, de luta ideológica. Sabendo da força das imagens,
Platão tenta domar, controlar a produção dessas imagens, impondo-lhes normas éticas e
políticas”. Como apontado por Gagnebin (1997, p. 84), a visão de Platão contrapunha o
mythos ao logos, portanto “uma regressão das faculdades críticas e a uma certa passividade,
acometendo mais facilmente as crianças e as mulheres ignorantes, que se deixam seduzir pelo
falso brilho e são mais sensíveis ao maravilhoso e ao irracional” . Ademais, ainda de acordo
com a análise de Gagnebin, “a definição aristotélica ressalta, em oposição a Platão, o ganho
trazido pela mimesis ao conhecimento, pois o que é conhecido não é tanto o objeto
59

reproduzido enquanto tal [...] mas muito mais a relação entre a imagem e objeto”, ou seja, “no
reconhecimento de semelhanças”. A autora passa em seguinte a descrever o pensamento de
Adorno sobre a mimesis. Adorno, embasado pela visão de Freud e da etnologia, via a mimesis
como um comportamento regressivo, regressão essa que “remete à pulsão de morte, a este
misterioso desejo de dissolução do sujeito no nada”, destarte, “o comportamento mimético é
caracterizado como um comportamento regressivo de assimilação ao perigo, na tentativa de
desviá-lo” (GAGNEBIN, 1997, p. 87).
Gagnebin (1997) relata a discórdia de Adorno a respeito do trabalho de Benjamin
sobre Baudelaire, utilizado talvez como cerne na elaboração desta dissertação. Sobre o texto
de Benjamin, Adorno questiona a falta de argumentação dialética, que para ele remetia a um
lugar enfeitiçado. “A sua crítica maior diz respeito ao método benjaminiano de estabelecer
paralelos entre as características da obra de Baudelaire e fenômenos históricos
contemporâneos - por exemplo, os choques dos transeuntes nas ruas obstruídas de Paris e o
ritmo marcado dos versos baudelairianos” (GAGNEBIN, 1997, p. 95). Gagnebin (1997, p. 96)
ressalta ainda a principal crítica de Adorno a Benjamin: “as tendências miméticas do
pensamento benjaminiano apontam para a magia e para a aceitação do existente. Resumindo:
um pensamento crítico deve ser dialético, não pode ser mimético”. Na crítica adorniana, o
comportamento mimético reside na ideia de Platão sobre a imitação. Em Adorno, o
mimetismo provoca um retorno ao primitivo, que serviria de proteção aos predadores. Esta
mesma proteção caracterizaria o indivíduo que, por sua vez, perde sua identidade ao se fazer
semelhante ao meio em que se encontra, “renuncia a se diferenciar do outro que teme, para, ao
imitá-lo, aniquilar a distância que os separa, a distância que permite ao monstro reconhecê-lo
como vítima e devorá-lo. Para se salvar do perigo, o sujeito desiste de si mesmo e, portanto,
perde-se”. Ao querer se proteger, o sujeito se dissolve e desaparece, assim como a “borboleta
imóvel que tem as mesmas linhas marrons e verdes que a folha sobre a qual repousa, o
„primitivo‟ se cobre de folhagens para melhor desaparecer na floresta, para não ser visto pela
onça que caça” (GAGNEBIN, 1997, p. 87). Do mesmo modo, o “homem das multidões” quer
se homogeneizar e igualmente se destacar em meio a massa. As vestes que o caracterizam lhe
deixam similar aos outros indivíduos, seja para causar o pertencimento a um determinado
grupo social ou para destacá-lo em ambientes diversos, pois “a indústria cultural finalmente
absolutiza a imitação” (ADORNO, 2002, p. 22). Porém, na moda pode ocorrer o mesmo
mecanismo dado na natureza: aquilo que diversifica e traz a identificação pessoal inscreve-se
em sua “dissolução do sujeito no nada” pela perda de individuação. Gagnebin (1997) nos
explica que, para Adorno e Horkheimer, em A Dialética do Esclarecimento, a chamada
60

mimesis incontrolada, ou seja, o fato de o homem imitar o objeto de seu medo como tentativa
de domar a ameaça, só pode ser controlada com o início da racionalidade iluminista.
Transpondo para o nosso campo de estudo, que é a moda, podemos ver a mimesis enquanto a
dissolução do sujeito autônomo em meio à multidão, vestindo-se de moda como uma
reprodução em série. Em seus textos sobre Baudelaire, Benjamin (1989, p. 54), escreve que o
“isolamento insensível de cada indivíduo em seus interesses privados‟, só aparentemente
rompe-o Flâneur quando preenche o vazio, criado pelo seu próprio isolamento, com os
interesses, que toma emprestados, e inventa, de desconhecidos”. Deste modo, os interesses
emprestados de desconhecidos que o Flâneur toma para si o fazem pertencer a uma multidão
e o retira de um isolamento dentre seus próprios; em contrapartida, o homem da modernidade
narrado por Benjamin perde sua identidade ao inventar para si interesses que não são os seus.
Conforme Adorno e Horkheimer:

A identidade de tudo com tudo é paga com o não haver nada podendo ser ao mesmo
tempo idêntico de si mesmo [...] Os homens foram presenteados com um si-mesmo
próprio a cada um e distinto de todos os outros, só para que se torne, com mais
segurança, igual aos outros. Mas, como ele nunca se desfez totalmente, o
iluminismo, mesmo durante o período liberal, sempre simpatizou com a coação
social. A unidade do coletivo manipulado consiste na negação de qualquer
indivíduo, zomba-se de toda espécie de sociedade que pudesse querer fazer do
indivíduo um indivíduo (ADORNO; HORKHEIMER, 1996, p. 28).

Wilson (1985, p. 23) traz à tona o caráter imitativo da moda quando diz que “a moda
imita-se a si própria”, pois “ao elevar o efêmero ao estado de culto, ela troça, em última
instância, das muitas pretensões morais da cultura dominante, que, por sua vez, a denunciam
em razão da sua frivolidade superficial, não obstante secretamente sentirem a forma como ela
afeta toda a questão da moral”. Ainda sobre a mimesis recalcada, que faz o homem perder sua
identificação para se confundir com o meio, frisamos a visão de Simmel (2008, p. 30) que
“homens vestidos de modo semelhante comportam-se de modo relativamente semelhante”.
Porém, a imitação da moda se restringe com a sua expansão: quando mais uma moda se
expande, mais ela caminha para o seu fim, e portanto, uma nova moda é lançada pelas classes
dominantes. “A essência da moda consiste em que só uma parte do grupo a pratica, enquanto
a totalidade se encontra a caminho dela”, então, quanto mais pessoas a imitam uma mesma
moda, “já não se considera como moda” (SIMMEL, 2008, p. 31). A dissolução, no caso, não
ocorre com o indivíduo que busca imitar aos outros, porém, se manifesta na própria moda.
Para Buitoni (1990, p. 14), “a alta costura envolve em mistério seus lançamentos; jornais,
61

revistas e TV permitem ao público imitar o mais depressa a elite. Assim, a cultura de massa
efetua uma dialética de aristocratização e de democratização”.
Retomamos aqui a mimesis de Aristóteles como principal componente criativo do
homem para assim apontarmos que, “como Aristóteles na Poética, Benjamin distingue dois
momentos principais da atividade mimética especificamente humana: não apenas reconhecer,
mas também produzir semelhanças”. Assim, “o homem é capaz de produzir semelhanças
porque reage, segundo Benjamin, às semelhanças já existentes no mundo. De maneira
paradoxal, essas semelhanças não permaneceram as mesmas no decorrer dos séculos”. A
autora destaca “a originalidade da teoria benjaminiana” por “supor uma história da capacidade
mimética” (GAGNEBIN, 1997, p. 97). Em seu ensaio sobre a mimesis em Benjamin e
Adorno, Gagnebin enfatiza a capacidade mimética na teoria da linguagem de Benjamin e
também como importante aspecto da teoria histórica do autor alemão. “A verdadeira imagem
do passado passa voando. O passado só se deixa capturar como imagem que relampeja
irreversivelmente no momento de sua conhecibilidade” (BENJAMIN, 2012, p. 243). A
semelhança entre passado e presente não é dada por uma simples repetição de fatos, mas
como uma reconfiguração: “esta relação entre passado e presente não pode ser pensada,
segundo Benjamin, no modelo de uma cronologia linear, sucessão contínua de pontos
homogêneos [...] mas tampouco pode essa relação ser pensada como uma retomada do
passado na qual a ação política também consiste” (GAGNEBIN, 1997, p. 101). Portanto,
amarramos aqui a questão eterno retorno nietzscheano assinalada também no presente
trabalho. No arremate de Gagnebin sobre a semelhança em Benjamin, a autora se volta à
apreciação de Benjamin ao trabalho de Marcel Proust e salienta as imagens do sonho neste
último. De tal modo que a imagem do sonho é semelhante a que vemos em nossa vida de
vigília, as imagens do estado em vigília se assemelham do mesmo modo aos nossos sonhos,
como a interpretação sobre a obra de Proust feita por Benjamin:

A semelhança entre dois seres, a que estamos habituados e com que nos ocupamos
em estado de vigília, é apenas um reflexo impreciso da semelhança mais profunda
que reina no mundo dos sonhos, em que os acontecimentos não aparecem jamais
como idênticos, mas sempre como semelhantes: impenetravelmente semelhantes
entre si (BENJAMIN, 2012, p. 40).

“Se há uma retomada do passado, este nunca volta como era, na repetição de um
passado idêntico”. Neste ponto, a mimesis se dá com a replicação do passado com base em
suas similitudes, pois “ao ressurgir no presente, ele não é o mesmo, ele se mostra como
perdido e, ao mesmo tempo, como transformado por esse ressurgir” (GAGNEBIN, 1997, p.
62

102). A mimesis exerce o seu poder, portanto, em toda a configuração histórica, e a moda,
como sendo um conjunto de costumes de um determinado momento, é seu produto. A respeito
da mimesis recalcada que produz medo no homem perante o seu inimigo, “na última página
de Teoria Estética, esse arrepio mimético originário reaparece, mas sob sua figura
reconciliada: é o tremor do sujeito perante a beleza” (GAGNEBIN, 1997, p. 104).
63

3 HARPER’S BAZAAR NO BRASIL: O GLOCAL E A AURA

“A Eternidade anda apaixonada pelas produções do tempo”


(William Blake)

No último capítulo, exploramos o cenário do mercado editorial no Brasil à época de


lançamento da Harper‟s Bazaar no Brasil. Traçamos brevemente a linha histórica da
imprensa feminina de moda e comportamento no Brasil desde a era Imperial até o momento
de estreia da revista como tentativa de compreensão do contexto em que a Harper‟s Bazaar
fora lançada no país. Não se trata, entretanto, de tecer a história da imprensa feminina no
Brasil, assunto abordado em diversos outros trabalhos acadêmicos, mas de dar uma abertura
para o assunto, uma revista feminina americana, de moda e luxo, em solo brasileiro.
Se levarmos em conta que no Brasil, na virada do século XIX para o XX, quando a
primeira revista foi lançada e a imprensa nascia em nosso território, 84% da população
brasileira era analfabeta fica mais fácil entender por que revistas eram atreladas a um hábito
elitista. Tal porcentagem era o equivalente ao público alfabetizado em países como a França
ou Inglaterra no mesmo período. O público leitor no Brasil era formado por intelectuais,
homens de letras, estudantes, jornalistas, etc. Desde o seu início em meados do século XIX, a
revista e magazines ilustrados sofreram grande influência europeia, sobretudo francesa. A
cidade do Rio de Janeiro se modernizava inspirada na reforma de Paris no século XIX
inserindo-a na Belle Époque (MIRA, 2001).
Como vimos nos capítulos anteriores, o desenvolvimento da imprensa na Europa
acompanhou a instauração do capitalismo industrial. No Brasil, ocorreu de modo semelhante,
com a chegada da família imperial no Brasil. A corte, que fugia da guerra e de Napoleão,
havia permitido a imprensa no Brasil, que antes de sua vinda, era proibida. Segundo Scalzo
(2004), a primeira revista editada no país foi As Variedades ou Ensaios de Literatura, nascida
em 1812, em Salvador, na Bahia. A publicação tratava de costumes e virtudes morais e
sociais, novelas, história antiga e moderna, trechos de clássicos portugueses. No ano de 1827,
surge a primeira revista feminina nacional: o Espelho Diamantino, que continha “textos leves
e didáticos sobre política nacional e internacional, trechos de romances estrangeiros, críticas
de literatura, música, belas-artes, teatro e notícias sobre moda, além de crônicas e anedotas.
Tudo isso para deixar a mulher „à altura da civilização e dos seus progressos‟” (SCALZO,
2004, p. 28). Assim, vemos que a imprensa voltada a mulher nasce praticamente ao mesmo
tempo em que a imprensa nasceu no país. Na década de 1950, a imprensa feminina vive o
64

sucesso das fotonovelas. A esta altura a mulher não se preocupava em mudar sua posição na
sociedade. Surge em 1959 a revista Manequim, que continha moldes de roupas e, em 1961, a
revista Claudia que revolucionou a imprensa feminina no Brasil. Em seu início, a revista
parecia com as outras já existentes, com novelas, artigos de moda, beleza, receitas e
decoração, mas aos poucos a revista passou a trazer conteúdos diversos com consultas
jurídicas, saúde, orçamento doméstico e sexo. Com a Claudia se iniciou também a produção
fotográfica de moda no Brasil. (SCALZO, 2004; MIRA, 2001).
Mira (2001) destaca a década de 1960 no Brasil como momento de grandes
transformações sociais e culturais, com a consolidação da indústria cultural no Brasil. “Ao
chegar aos anos 60, a imprensa feminina já é mais que milionária. Toda essa experiência era
conhecida do casal Civita, que havia morado na Itália e nos EUA, e seria seu ponto de partida
para ingressar no mercado de publicações femininas” (MIRA, 2001, p. 50). Entre as décadas
de 1960 e 1970 houve uma expansão muito grande de toda a indústria cultural no Brasil,
mesmo em meio à ditadura militar. “Nos anos 70, o país torna-se o sexto mercado fonográfico
do mundo e o sétimo em publicidade [...] A indústria de revistas também dobra sua produção
entre 1960 e 1975, saltando de 104 para 202 milhões de exemplares” (MIRA, 2001, p. 38).
Foi no ano de 1975 que a Carta Editorial trouxe ao Brasil a revista Vogue, “a mais consagrada
no mundo”. A Carta Editorial era a responsável pela publicação da aclamada Vogue e deteve
os seus direitos no Brasil por 36 anos, quando Luis Carta, pai de Patrícia Carta, hoje diretora
da Carta Editorial, trouxe a revista ao Brasil em maio de 1975. A revista começou a ser
editada em meio à ditadura militar brasileira, em um período em que não havia publicações
para cobrir esse nicho editorial, a de brasileiros abastados que compravam as edições
americanas e francesas da Vogue. “Poucos, mas gente que comandava bancos, investidoras,
comércio, política, empresas de alto porte. E mulheres que buscavam a alta-costura parisiense,
ainda olhando com certo desdém para nossos incipientes estilistas” (KAZ, 2002, p. 32). Ao
remontar a história da revista Vogue no Brasil, Kaz ressalta que na década de 70 havia o início
da ideia de globalização no Brasil. Luis Carta, que havia saído da Editora Abril, a maior
encarregada pelo lançamento de importantes títulos femininos no Brasil, como a revista
Cláudia, foi o responsável por trazer o sucesso americano da sociedade burguesa e aristocrata
do final do século XIX ao Brasil.
A publicação Harper‟s Bazaar mantém redação editorial em 27 países e é distribuída
para outros 42, com uma estimativa de 11 milhões de leitores. Segundo sua direção global,
são vendidos 3 milhões de exemplares por mês. Apesar de ter sido fundada em 1867 nos
Estados Unidos, no Brasil está presente somente desde novembro de 2011. Sua tiragem é de
65

50 mil exemplares, em circulação nacional e vendida nas bancas ao preço de R$ 15,00. A


editora responsável pela publicação é a Carta Editorial, localizada na cidade de São Paulo. Em
sua primeira edição no Brasil, a Harper‟s Bazaar apresenta a modelo mundialmente famosa
Gisele Bündchen como garota da capa, fotografada por Terry Richardson. Como podemos ver
na imagem abaixo, a edição brasileira traz em sua chamada os dizeres: “a revista que há 144
anos faz moda no mundo agora para você”.

Figura 4: Capa da edição nº1 da revista Harper's Bazaar no Brasil com a top model Gisele Bündchen.

Fonte: Carta Editorial, nov/2011.


66

Em novembro de 2015 a revista Harper‟s Bazaar completou quatro anos de idade no


mercado editorial brasileiro sob a direção da Carta Editorial. No Brasil, ainda possui outras
revistas sob o guarda-chuva da Bazaar, como a Kids, Noiva e Art. No Media Kit da revista
produzido para o ano de 2015, a Carta Editorial denomina-se como uma empresa
multiplataforma que direciona os seus projetos para o público A. A Carta Editorial apresenta a
Harper‟s Bazaar como a “primeira revista de moda do mundo e a mais atual há quase 150
anos”, e posiciona-se como “autoridade em moda e bom gosto”, “sofisticada, elegante e
provocadora”, “fonte de inspiração para as mulheres que são as primeiras a comprar o melhor,
do casual à alta costura, que viajam e que conhecem o mundo” e “um verdadeiro guia de
moda, beleza e lifestyle”. Para reforçar sua autoridade, a Carta Editorial traz também números
da Harper‟s no mundo: são 36 publicações presentes em 46 países, com 11 milhões de
leitores e 3 milhões de exemplares vendidos mensalmente. A revista Harper‟s Bazaar, no
entanto, não foi a primeira “revista de luxo” no Brasil. Antes da Bazaar, a revista Vogue já era
publicada no Brasil pela Carta Editorial. Em 2011, a Vogue passou a ser publicada pela
editora Globo. O que se entende por isso é que com a perda do direito de publicação da
luxuosa Vogue, a Carta Editorial buscou outro título estrangeiro que pudesse suprir seu lugar.
A Harper‟s Bazaar passou então a ter sua versão nacional. Segundo Patrícia Carta5, a Bazaar
possui 90% de seu conteúdo produzido no Brasil e o restante provém do exterior.
O cenário do mercado de luxo no ano de lançamento da revista Harper‟s Bazaar era
bastante favorável no Brasil. De acordo com estudo dirigido pela MCF Consultoria (2012),
houve crescimento de 18% no mercado de luxo no Brasil no ano de 2011, com faturamento
esperado de R$ 18.54 bilhões. Para 2012, esperava-se um aumento ainda de 8% ou R$ 20,1
bilhões. No ano de 2011, 64% das marcas de luxo disseram ter faturamento maior do que o
previsto. A pesquisa apontou que 68% das marcas consultadas gostariam de investir em mão
de obra no Brasil. Quanto ao varejo, o mercado de luxo demonstrava interesse em investir R$
2 bilhões de reais no ano de 2012 em novas lojas. De acordo com dados da pesquisa Pyxis do
Ibope, em 2011, era esperado que a moda movimentasse R$ 136 bilhões de reais, sendo a
classe B responsável pelo consumo de R$ 56,3 bilhões ou 42% do total. A renda média
familiar dessa faixa, de acordo com índice Critério Brasil, representava 24% do total das
famílias residentes em áreas urbanas, com renda familiar entre R$ 3.000 e R$ 12.000. Já a
classe A, com renda média familiar acima de R$ 12.000, deverá gastar R$ 18,1 bilhões com

5
Entrevista concedida ao programa Universo da Moda, da emissora Mega TV, em 2012. A transcrição da
entrevista encontra-se no anexo I desta dissertação.
67

roupas, calçados e acessórios. O Pyxis é uma base de dados que considera o potencial de
consumo por grupo de produtos em todos os municípios brasileiros.
A esta altura da dissertação cabe elucidar alguns aspectos que constituíam o pano de
fundo da época de lançamento da Harper‟s Bazaar no Brasil no ano de 2011. De acordo com
dados recolhidos pelo Instituto de Verificação de Circulação (IVC), o número de títulos de
revistas em geral no Brasil em 2010 era de 4.705, que saltou para 5.779 em 2011, ou seja,
1.074 títulos a mais do que no ano anterior ou crescimento de 23%. Percebe-se que o mercado
editorial de revistas, portanto, estava bastante aquecido no momento. Quanto aos números que
mostram o total de revistas em circulação, foi observado um ápice no ano de 2010 em
assinaturas e compras avulsas, que passou a apresentar queda nos anos seguintes. As revistas
femininas alcançaram em 2011 a maior circulação em 11 anos, alcançando R$ 800 milhões
em renda bruta6. Foi nesse contexto de abundante crescimento do mercado da moda, do luxo e
do bom momento editorial no Brasil que a Carta Editorial trouxe a revista Harper‟s Bazaar
para o país. Neste ponto de nossa dissertação procuramos esclarecer os efeitos de uma
publicação estadunidense com uma história de 150 anos no Brasil, que carrega uma situação
social histórica totalmente diversa daquela do país de origem da Harper‟s Bazaar. Vimos que
desde o início da imprensa no Brasil havia diferenças do contexto social e histórico entre o
Brasil, Estados Unidos e, principalmente a Europa, uma delas, por exemplo, é o índice de
alfabetização da população brasileira a época do lançamento das primeiras revistas nacionais.
O capitalismo industrial, que fez de Paris a “capital do século XIX”, era incipiente no Brasil,
que ainda era colônia de Portugal. Para fazer tal análise, nos apropriamos do conceito de
Glocal disposto por Eugênio Trivinho (2012). Para Trivinho, Glocal seria a globalização em
seu instante local, proporcionada pelos meios de comunicação, que entrecruza a existência
humana com a experiência cotidiana. O global passaria a ser vivido simultaneamente em
vários locais do mundo, seja para sentir, pensar e agir nele, a partir da década de 1970. O
contexto Glocal retiraria o indivíduo de sua consciência individual e o colocaria em um
mundo onde se apreende de acordo com os signos correntes. O resultado do global no local é
uma “hibridação de „planos‟ de existência, experiência e atuação, transformando o mundo
num caleidoscópio de redutos glocais entrecruzados de e para a circulação de informações,
imagens e dados” (TRIVINHO, 2012, p. 13). Ora, o que se expõe aqui com o Glocal é como a
perda da experiência, do continnum histórico e da aura, que ficaria reduzida, como apontado

6
Dados do IVC (Instituto de Verificação de Circulação). Disponível em
http://propmark.com.br/midia/faturamento-de-revistas-femininas-bate-recorde. Último acesso em 21/03/16
68

no capítulo anterior, à memória dos objetos. Tal memória presentificada em objetos e imagens
ocasionaria o sonho coletivo que, como dito por Benjamin (2007), não conhece história.

Figura 5 Capa de edição comemorativa da revista por seus quatro anos no Brasil.

Fonte: Carta Editorial, edição de nov/2015.

Há um consenso internacional a respeito da combinação entre global e local em um


significante: Glocal. Trivinho (2012, pp. 47-8) recorda que o termo nasceu na década de 1980,
constituída no mundo corporativo japonês, que implantava filiais de suas indústrias por todo o
mundo. Para ele, o Glocal se deu em decorrência da situação histórica mais globalizada no
69

que diz respeito à política e o mundo dos negócios, com o fim, certamente, de expansão do
valor de troca. “Uma matriz multinacional determina princípios para a atuação de suas filiais
em território alheio, em diferentes continentes”. O fenômeno Glocal ocorre, não só em torno
da “civilização mediática”, mas em torno do modus operandi de toda a nossa civilização,
obviamente, essa condição alcançou também a comunicação, que delineada dentro dessa
teoria, se dá Glocalmente.
“O processo de Glocalização condiciona, contextualiza e explica, portanto, a
espectralização e tempo real” (TRIVINHO, 2012, p. 91). O espectro da existência já era
observado por Benjamin diante das condições impostas pelas relações do capitalismo e a
fantasmagoria das imagens do desejo coletivo, como já mencionado no capítulo anterior. A
incessante busca pelo novo, que agora aparece de modo Glocal, fantasmagórico e espectral,
conforme apontamento sobre o novo no seguinte trecho do Trabalho das Passagens:

É a quintessência da falsa consciência cujo agente infatigável é a moda. Essa


aparência do novo se reflete, como um espelho no outro, na aparência da repetição
do sempre-igual. O produto dessa reflexão é a fantasmagoria da „história cultural‟,
em que a burguesia saboreia sua falsa consciência (BENJAMIN, 2007, p. 48, grifo
nosso).

O “espelho no outro” poderia ser a identificação com a mercadoria ocasionada pela


falta de identidade do homem do século XIX, que de fronte às vitrines dos grand magasins
passava a enxergar a alma da mercadoria. Podemos aqui transpor este espelho para o duplo,
como no filme de Kieslowski A Dupla Vida de Véronique (1991), no qual a personagem vive
com uma espécie de alma gêmea separada, em uma constante sensação de déjà vu. No termo
Glocal, porém, tal duplicidade da existência paira, porém, como “falsa consciência” conforme
descrito por Benjamin. Pensamos ter o reproduzido em nossas mãos, no caso da revista
Bazaar, com a falsa impressão de aura. Diante dessa fantasmagoria, dupla existência ou
“existência em tempo real” (TRIVINHO, 2012), temos uma cultura da pós-aura, uma cultura
do espetáculo e uma cultura do mito, como já preconizava Marx. Para Buck-Morrs (2002, p.
154) os meios de massa, se considerados como democratização da cultura, “tão
milagrosamente repartidos como os pães de Cristo, é porque eles também se transformaram
em fetiches”, trecho em qual faz referência a Victor Hugo.
“A existência em tempo real representa a Glocalização e a espectralização do hic et
nunc da realidade ordinária herdada (...) O hic et nunc, complexo universo do aqui e agora
próprio da experiência vicária, presencial, material, do tempo-que-passa” (TRIVINHO, 2012,
p. 94). Nesse trecho, o autor aborda o Glocal como a perda da experiência histórica, a perda
70

do Aqui e Agora, que escapa como imagem histórica. O termo hic et nunc utilizado por
Trivinho na demonstração dos efeitos do Glocal nos remete ao conceito da perda da aura de
Benjamin (2014, p.19), porém, deslocado para fora do campo da obra de arte: “O aqui e agora
do original constitui o conceito de sua autenticidade e sobre o fundamento desta encontra-se a
representação de uma tradição que conduziu esse objeto até os dias de hoje como sendo o
mesmo e idêntico objeto”. Não se trata aqui de uma crítica sobre a essência da obra de arte ou
de um objeto histórico, mas de um deslocamento de uma publicação impressa, que nascida em
outrora, em outra época e em outro país, surge como tradicional e Glocal em um contexto
sócio histórico completamente diferente e 150 anos após sua criação. O aqui e agora do
instante de inauguração da revista e sua continuidade na história podem ter se perdido no
meio desse caminho. Como dito por Trivinho (2012, p. 94), “a Glocalização do hic et nunc é
a representação sintética [...] ocorreu com todos os elementos e em diversos planos e
dimensões da civilização mediática [...]”.
Diante da industrialização corrente a partir do século XIX, houve um imenso avanço
das telecomunicações e juntamente a isso, a imprensa, principalmente a audiovisual também
apresentou evolução. Mesmo com tantas novas tecnologias, a imprensa em papel como a
revista, ainda desperta apreço nos leitores. Com o fenômeno Glocal, conforme apontado por
Trivinho (2012, p. 24), existe a reprodução social-histórica em uníssono, com objetivo da
“realização do valor de troca, seja na esfera formal da produção e do trabalho, seja no tempo
livre e no lazer”. O modelo de produção da revista Harper‟s Bazaar no Brasil obedece a um
padrão ditado pela matriz americana, reproduzido aqui, como em uma multinacional que
implanta uma indústria no país. O fim é garantir a realização do valor de troca como em todas
as relações do capitalismo. Como resultado da Glocalização, Trivinho parece temer pela
história vindoura da civilização Glocal:

A existência em tempo real reescalona às últimas consequências – para o bem ou


para o mal – os traços característicos da visibilidade mediática, conduzindo a
civilização Glocal até a fronteira entre as tendências concretas mais prováveis ou
mesmo viáveis e o início da exercitação de uma imaginação incondicional, a se
perder – em terreno longínquo a uma sociologia cientificamente consistente – na
riqueza das suposições possíveis, no que tange à sua incursão na história vindoura
(TRIVINHO, 2012, p. 31).

O apontamento de Trivinho já era observado anteriormente por Benjamin na sociedade


moderna do século XIX que se encantava com o consumo de novidades e pela perda do
caráter histórico daquela sociedade, que tratava objetos que continham traços de história como
uma lembrança do passado não vivido nem reconhecido. Conforme descrito por Matos (2014,
71

p. 9), “a perda da memória individual e da memória coletiva, de nosso próprio passado e da


tradição, dissipou progressivamente valores e modos de viver das sociedades pré-capitalistas e
pré-modernas”. Para Trivinho (2012, p. 95), a existência em tempo real recondicionaria a
“atualidade do ser e do agir no mundo à exigência social reinante de inserção na visibilidade
mediática”. Transpondo para nosso objeto de estudo nesta dissertação, a incursão da revista
Harper‟s Bazaar no Brasil, sob um contexto totalmente diferente daquele de sua criação em
outra época e outro momento social e histórico, deixaria os 150 anos de tradição da revista,
fato anunciado como marketing por seus editores no Brasil, vazio em se tratando de
continuum histórico. A Harper‟s Bazaar Brasil teria perdido, então, sua aura diante dessa
concepção de deslocamento de tempo e espaço histórico (não estamos tratando aqui da aura
das fotografias, assunto que será discutido posteriormente). Conforme Benjamin (2014, p.
21), “a autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo aquilo que nela é transmissível
desde a origem, de sua duração material até seu testemunho histórico”.
O fenômeno da existência em tempo real, uma das características que definem o
Glocal implicaria na chamada visibilidade mediática que, para Trivinho, situa-se no ambiente
de aculturação social-histórica. Para ele, a visibilidade mediática é uma forma de inviabilizar
o real: “para se desdobrar no âmbito simbólico da cultura, ela expurga (ou tende a expurgar)
outras formas possíveis de visibilidade (dos dados) do mundo e, consequentemente, outros
modos de percebê-lo e compreendê-lo” (TRIVINHO, 2012, p. 121). A visibilidade mediática
ocorre hoje em diferentes suportes com o avanço das tecnologias comunicacionais, porém,
não descarta as mídias analógicas tais como a revista impressa. Em sua concepção, a
visibilidade mediática nos condicionaria a não perceber e distrairia nossos sentidos. No
entanto, mesmo em meio ao Glocal e ainda às imagens oníricas, vitrines e a moda
personificada como fetiche da mercadoria, é preciso ter claro que o homem ainda possui
capacidade de resistência e liberdade em seu pensamento. Gagnebin (2014, p. 103) entende o
movimento de atenção e dispersão como naturais ao movimento do homem em relação ao
mundo: “movimento de concentração, de recolhimento, de tensão/atenção, de cuidado – e
movimento de entrega, de distração, de diversão, de disseminação”. A autora convoca aqui a
Dialética do Esclarecimento para ilustrar o movimento, no quadro de Ulisses com as Sereias.
“as sereias encarnam os poderes mágicos anteriores ao surgimento do sujeito como identidade
racional e determinada” (GAGNEBIN, 2014, p. 105). Nessa ilustração, Adorno e Horkheimer
comentam sobre o poder mítico da indústria cultural sobre a massa. Ulisses, atado, reprime
suas próprias pulsões para constituir-se a si mesmo e assim ter acesso ao “reino da liberdade e
beleza”. “Na leitura de Adorno, a solidão de Ulisses e a alienação do trabalho coletivo são
72

complementares. O chefe, privilegiado, pode ter acesso à beleza, mas essa experiência é
sempre incompleta, pois marcada pela incapacidade de se transformar em práxis”. Pelo que
vemos aqui, Ulisses está consciente do movimento de distração dito por Trivinho, e por esse
motivo, ata-se ao mastro. “Quanto aos remadores, resta-lhes uma prática muda e surda,
coletiva e anônima, desprovida de consequências emancipatórias, já que seu trabalho não lhes
possibilita a articulação de uma exigência de transformação” (GAGNEBIN, 2014, p. 107).
Gagnebin, então propõe uma alternativa para a distração: “o que no processo de trabalho
capitalista é denunciado como distração, falta danosa de atenção, falha na disciplina que deve
ser censurada e castigada, revela-se agora muito mais como uma atenção dirigida para outras
coisas, notadamente para as coisas deixadas de lado”. Portanto, o Glocal, que nos tira da
realidade num caráter híbrido “entre hic et hunc da existência em contexto presencial e o hic
et hunc da existência em tempo real” (TRIVINHO, 2012, p. 95), nos lança a uma visibilidade
mediática que, poderia nos lançar ao nosso “desaparecimento da materialidade do mundo” e
ao “tratamento de alteridade como puro signo” (TRIVINHO, 2012, p. 97). A distração para
fora da visibilidade mediática permitiria, como disse Gagnebin em análise aos termos
benjaminiano, a voltar-se ao “esquecido e o recalcado, que pode guardar dentro de si as
sementes de outros caminhos e de outras histórias”, assim, Gagnebin e Trivinho concordam
que a visibilidade mediática e a experiência em tempo real proporcionados pelo Glocal
impedem a “descoberta de outros caminhos e de outros horizontes possíveis” (GAGNEBIN,
2014, p.110). O movimento de concentração e dispersão também é assunto de análise de Bolle
a respeito da Melancolia descrita na Origem do Drama Barroco e o personagem do Flâneur,
em Benjamin, como imagens dialéticas de suas épocas:

Na gravura de Dürer, os seres e objetos gravitam em torno da Melancolia,


contagiados pelo peso de seus sonhos e sua meditação, seu desengano e sua
imobilidade; já o Flâneur possui, por definição, uma extraordinária mobilidade,
percorrendo a metrópole em busca de sensações sempre novas, encarnando, na sua
agitação extrema, no Homem da Multidão, o pólo oposto da Melancolia estática
(BOLLE, 2000, p.366-7).

Esse duplo movimento, de concentração e dispersão, está presente em toda a obra das
Passagens de Benjamin e serve como ilustração também ao movimento da pós-modernidade,
com o Glocal que produz o movimento de dispersão com a visibilidade mediática. O processo
de concentração, por outro lado, configura-se como a evolução do processo de despertar do
sonho coletivo, já descrito no capítulo II dessa dissertação. Todas as peças, tanto o Flâneur
quanto a Melancolia, servem à autoconservação do sistema, tal qual os remadores no barco de
73

Ulisses: “a enorme massa da população recebe agora o adestramento dos guardas de reserva
do sistema, para servir, hoje e amanhã, de material para seus grandes planos” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1996, p. 57).
Em crítica ainda a reprodução em massa ocasionada pela visibilidade mediática do
Glocal, convocamos ainda outro aspecto sobre a questão do transcurso histórico. A
visibilidade mediática, numa sede tão grande em ter sua vontade de potência ampliada
resultaria no Eterno Retorno do Mesmo, já discutido no capítulo anterior em nossa análise
sobre alguns pontos em Benjamin. Para Trivinho (2012, p. 137), “não importa a maestria e a
intensidade da estratégia com a qual se realiza a projeção, o resultado, que só raramente tarda,
será o esquecimento. Em meio à espuma biodegradável de signos, a única certeza é a morte da
perenidade”. Sobre o desejo de permanência, o pesquisador é enfático em sublinhar o seu
definhamento: “o que promana da violência (transpolítica) pela violência se definha”. Sobre
tal violência da indústria cultural, Adorno e Horkheimer (1996, p. 58) sublinham: “o absurdo
da situação, na qual a violência do sistema sobre os homens cresce a cada passo que os liberta
da violência da natureza, denuncia como obsoleta a razão da sociedade racional”. O que
ocorre, seria a repetição do Sempre Igual e a criação de imagens oníricas desprovidas de
memória. A lógica da fabricação de mercadorias, inclusive as culturais, reside na repetição e
consequente morte da memória social. A informação ou a novidade mediada no Glocal
“(auto)expõe-se para desaparecer, o desejo de luz não sendo senão, por suposto, o desejo
obliterado de morrer”. Para Benjamin (1989, p. 172), isso se dá pela dialética da produção de
mercadorias na modernidade e nos acompanha até hoje: “a novidade do produto adquire
(como estimulante da demanda) um significado até então desconhecido; pela primeira vez, o
sempre igual aparece de modo evidente na produção de massa”.
Em Trivinho (2012, p. 138), “na civilização mediática, no que respeita ao mainstream
cultural predominante, a memória social admite-se, quase que exclusivamente, como memória
artificial”. Tal memória, para o autor, representa o excesso de signos que toma o lugar da
memória social e toma seu lugar “em todos os períodos civilizatórios progressos”. A perda da
memória social7 desembocaria na existência então das imagens oníricas e dialéticas de
Benjamin, que se sobressaem em virtude da perda do continuum histórico, que ocorre
necessariamente por meio da experiência vivida. De acordo com Benjamin (1989, p. 173), “a

7
Ver conceito de memória coletiva por Halbwachs (1990, p. 16): “Mas nossas lembranças permanecem
coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós
estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos”. Em Bergson (1999, p. 247), “ela (a memória) prolonga
o passado no presente, porque nossa ação irá dispor do futuro na medida exata em que nossa percepção,
aumentada pela memória, tiver condensado o passado”. A memória social, para Trivinho, estaria convertida em
artificial, sem a presença do passado e, portanto sem futuro.
74

imagem dialética é como um relâmpago. Portanto deve-se reter a imagem do passado, neste
caso, de Baudelaire, como uma imagem fulgurante no agora do cognoscível”. O relâmpago
que aparece, portanto, se dá por meio das imagens provisionadas pela “civilização mediática”.
Bolle (2000, p. 68) levanta a Revolução como o melhor exemplo de Benjamin para explicar a
imagem dialética, na qual existe a perda do continuum histórico. De fronte a tais explanações
acerca da perda do continuum, sobre as imagens dialéticas e oníricas abordadas no segundo e
terceiro capítulo e a presente explicação sobre o Glocal, adentramos nossas considerações
sobre a aura de Benjamin no tópico a seguir.

3.1 CONCEITUAÇÃO DE AURA POR WALTER BENJAMIN

Antes de adentrarmos em nossa análise sobre a aura, o Glocal e a Harper‟s Bazaar,


faz-se necessário a conceituação dada por Benjamin no texto A obra de Arte e sua
reprodutibilidade técnica a fim de tecermos uma base para as correlações que serão feitas
posteriormente. Primeiramente, lembramos que o ensaio possui três versões, em todas
Benjamin, antes de desenvolver sua inflexão sobre a aura, tinha em mente o prognóstico dado
por Marx a respeito do modo de produção capitalista: “pressionada pelo desenvolvimento das
forças produtivas, a arte está assumindo uma função social diferente. O valor que a obra de
arte sempre teve, como objeto de culto, está cedendo lugar ao valor que ela adquire na medida
em que passa a ser muito mais amplamente exposta” (KONDER, 1988, p .68). Para Adorno e
Horkheimer, o iluminismo não esgotou a essência natural dos deuses:

A doutrina dos sacerdotes era simbólica, no sentido em que nela coincidiam signo e
imagem [...] Tanto os mitos quanto os ritos mágicos visam à natureza que se repete.
Ela é a essência do simbólico: um ser ou um processo que é representado como
eterno, por dever sempre converter-se novamente em acontecimento, no perfazer-se
do símbolo. Inesgotabilidade, renovação sem fim, permanência do significado, não
são apenas atributos de todos os símbolos, mas seu verdadeiro teor ( ADORNO;
HORKHEIMER, 1996, p. 33).

A verdadeira obra de arte é a representação do todo no particular. “Ela impõe, em


oposição à existência em carne e osso, a imagem pura que supera em si os elementos dessa
existência”. A obra de arte é também uma duplicação, e nisso consiste sua aura. Todavia, o
pensamento iluminista converteu a ciência em um reino de signos numéricos e a arte da
reprodutibilidade estendeu essa dependência às artes, que se torna reprodução. Quando “os
símbolos assumem a expressão do fetiche”, a expressão da natureza que eles significam torna-
75

se repetição da “permanência de coação social por eles representada” (ADORNO;


HORKHEIMER, 1996, p. 35).
Em Benjamin, o conceito de aura está comumente associado somente à obra de arte,
mas na verdade, transpõe a imagem aurática para objetos naturais quando nos dá o exemplo
de uma tarde de verão. Benjamin faz questão de pontuar o conceito de aura não somente
aplicado à arte quando nos diz que pode ser aplicado a elementos espaciais e temporais, “o
aqui e agora”, “sua existência única, no lugar que ele se encontra”. Para Benjamin, a aura é,
em resumo:

Um estranho tecido fino de espaço e tempo: aparição única de uma distância, por
mais próxima que esteja. Em uma tarde de verão, repousando, seguir os contornos
de uma cordilheira no horizonte ou um ramo, que lança sua sombra sobre aquele que
descansa – isso significa respirar a aura dessas montanhas, desse ramo
(BENJAMIN, 2014, p. 29).

Ao lermos o trecho citado acima, vemos que a aura concerne ao momento único de um
acontecimento, sua autenticidade. Outro ponto fundamental quando se trata de aura é a sua
unicidade, que dialoga com o valor de culto da obra de arte. Benjamin lembrou que os
objetos de arte foram marcados por serem insubstituíveis, “havia, em cada um desses objetos,
o selo de um „aqui‟ e „agora‟ que emocionava as pessoas” (KONDER, 1988, p. 68). O autor
de A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica faz uso dessa definição para
justificar que fatores sociais específicos podem condicionar o declínio da aura,
essencialmente, por dois valores: “fazer as coisas „ficarem mais próximas‟ é uma preocupação
tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os
fatos através da sua reprodutibilidade”. O ato de comprar e folhear revistas de moda como a
Harper‟s Bazaar está, de acordo com as palavras de Benjamin, inserido nessa dinâmica de
“aproximação” das coisas: folheia-se a as fotografias de moda da revista como se
consumíssemos imagens, acumuladas. Assim, se o leitor da Harper‟s Bazaar não pode
possuir uma roupa de grife apresentada nos editoriais de luxo, pode irresistivelmente possuir
de alguma forma as modas apresentadas, tão perto quanto quiser ter, na imagem ou sua
reprodução. No caso da revista Harper‟s Bazaar, ainda, se lida com o desejo pela moda e
pelas imagens, ou por melhor dizer, reproduções. “Fazer as coisas se aproximarem‟ de nós, ou
antes, das massas, é uma tendência tão apaixonada do homem contemporâneo quanto a
superação do caráter único de cada situação por meio da sua reprodução”. Walter Benjamin
ainda dissocia o conceito de imagem e de reprodução: na imagem, há unicidade e
durabilidade, enquanto na reprodução, transitoriedade e a repetibilidade. A arte se torna
76

reprodução e se distingue assim do signo da imagem, como faziam antes os sacerdotes


animistas. A transitoriedade e a repetibilidade são basicamente sinônimos de revista de moda,
como a Harper‟s Bazaar ou qualquer outra, porque a moda apresentada é por definição
transitória, e repetibilidade, seja porque a moda em revista se presta a ser imitada ou mesmo
por conta da repetibilidade da moda, que por sua vez se repete na revista. Por último,
observamos que o caráter da repetição é uma cadeia, que graças à imprensa gráfica é
reproduzida em milhares de exemplares, que por sua vez são vistos por milhares de pessoas e
assim, repetidos, uma análise simplória, porém pertinente. A revista, bem como o cinema e
música atuais são reproduções se analisados a partir do ponto de vista de Benjamin, já que não
carregam consigo a unicidade, pois “a cópia, como ela nos é oferecida pelos jornais ilustrados
e pelas atualidades cinematográficas, distingue-se inconfundivelmente da imagem”
(BENJAMIN, 2012, p. 108).
Benjamin ressalta como um dos principais desejos da massa a partir da modernidade a
incumbência de se aproximar das coisas por meio do seu registro de reprodução. Por entre
jornais, semanários, revistas como a Harper‟s Bazaar à reprodução de fatos e objetos tornou-
se executável, porém, Benjamin sinaliza o destroçamento da aura como um sinal da mudança
da percepção no homem, pois “o despojamento do objeto de seu invólucro, a destruição da
aura, é a característica de uma percepção, cujo „sentido para o igual no mundo‟ cresceu tanto
que por meio da reprodução também o capta no que é único” (BENJAMIN, 2014, pp. 29-31).
A transformação na percepção sensível do homem é o assunto do artigo O Olhar contido e o
passo em falso de Jeanne Marie Gagnebin. No texto, ela parte da análise de Georg Simmel
sobre as mudanças na percepção e nas relações entre os homens nas metrópoles modernas.
“Submetido a um excesso de estímulos sensoriais e intelectuais tanto no trabalho, quanto na
rua ou no lar, o habitante das grandes cidades deve se proteger por uma carapaça de
indiferença e frieza, a fim de não sucumbir a um esgotamento físico e intelectual”. Por estar
cercado de estímulos o tempo todo, a essa transformação no espaço social do indivíduo, tem-
se como consequência uma transformação em sua percepção sensível, e “essa combinação de
saturação e de embotamento terá inúmeras consequências sobre as práticas estéticas
contemporâneas” (GAGNEBIN, 2014, p. 123). A mudança na forma de percepção do homem
em sua coletividade é justificada por Benjamin não como algo puramente natural, mas como
uma consequência dos acontecimentos históricos, como o diz: “No interior de grandes
períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo
que seu modo de existência. O modo pelo qual se organiza a percepção humana, o meio em
que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente”. O
77

cidadão moderno exposto a tantas reproduções técnicas, conforme apontamento de Gagnebin,


que reforça a perda de empatia dos que se esbarram nas ruas, e “tampouco pode esse citadino
se interessar por todas as „mercadorias‟ culturais que a grande cidade oferece; ele se torna um
blasé sem curiosidade verdadeira” (GAGNEBIN, 2014, p. 123). Em suma, há muito, porém
nada que lhe chame realmente à atenção. Aqui, vemos que com a mudança na apreensão dos
sentidos o homem busca possuir o objeto e não somente contemplá-lo, daí a necessidade de
obter uma cópia daquilo. Assim, a fotografia, a cópia do palpável, se torna tão indispensável e
pode ser uma explicação para aqueles que apreciam colecionar exemplares de revistas, como
ocorre com aqueles que são colecionadores de souvenirs. Ambas as ações findam naquilo que
Benjamin profetizava para a pós-modernidade: “seu significado social não é concebível,
inclusive e precisamente em sua forma mais positiva, sem esse lado destrutivo, catártico: a
liquidação do valor de tradição na herança cultural” (BENJAMIN, 2014, p. 23). Porém, é
preciso ter cautela ao falar sobre essa desumanização nas relações sociais, na indiferença e
falta de olhares compartilhados, “pelo menos se não quisermos nos resignar a ser robôs
desalmados que só correm atrás de vãos negócios”. Gagnebin (2014, p. 129) destaca em
Benjamin uma ambivalência na questão da aura e da perda da aura, visto que seus textos
evidenciam que “ele nunca foi e não é nenhum defensor entusiasta da mera „desauratização‟
nas artes contemporâneas, como diria uma interpretação que o oporia de maneira simplista às
críticas de Adorno da indústria cultural”.
Ao comentar sobre a desauratização, Gagnebin (2014, p. 102) lembra que não se pode
cair em uma reflexão simples de “„resgate‟ de valores autênticos, como tendem a fazê-lo
vários de seus comentadores bem intencionados”. Para a autora, é preciso compreender as
teorias de Benjamin, “trata-se de tentar pensar novas formas de subjetividade, capazes de
resistência e crítica, mas não nos moldes de individualismo clássico, liquidado pelo
desenvolvimento do capitalismo tardio”. A autora sugere que há essa mudança de percepção
ocasionada pelas novas configurações da modernidade e que as novas técnicas de reprodução
permitiriam novos espaços de jogo. Svendsen (2010, p. 114) mantém conformidade a essa
análise: “em vez de prantear a perda da aura, ele (Benjamin) afirma que isso abre novos
potenciais progressivos. A perda da aura não significa que a experiência estética esteja
perdida, o que faz é mudar sua natureza e abandonar o belo”. A fotografia, portanto, seria um
desses novos espaços de experimentação e de criação, uma nova forma de consumo de arte,
algo já sugerido por Benjamin em uma segunda versão de seus escritos reunidos, de 1935-36,
porém não publicada nem aceita pela Revista de Pesquisa social por ser considerada muito
brechtiana, conforme Gagnebin destaca:
78

Benjamin retoma a oposição entre valor de culto e valor de exposição da obra de


arte, ou seja, entre contemplação e desauratização, mas a inscreve num contexto
mais amplo - numa teoria antropológica das mimesis e do lúdico (...) transformaria,
então, a questão da „arte autêntica‟ ou „verdadeira‟ numa outra: a das formas
estéticas de experimentação, de jogo, de exercício lúdico, formas de percepção
(aisthésis) ampliada e mutante, antes de serem formas artísticas determinadas
(GAGNEBIN, 2014, p. 118).

Uma nova estética surge com a perda da auréola do poeta baudelairiano,


“transformações da aisthèsis moderna e contemporânea pela hipótese da passagem de uma
estética do olhar e da contemplação para uma estética da tatilidade e do gesto (...) é uma
estética do choque e da grande cidade”, e assim, nesses novos movimentos da cidade moderna
surgirão não mais as imagens de contemplação, “imagens estáveis e duráveis, imagens do
sagrado e da beleza. São imagens frágeis, fugazes, que escapam do controle consciente do
sujeito, mas revelam, justamente por isso, uma verdade esquecida e preciosa” (GAGNEBIN,
2014, p. 129). O acionismo vienense, por exemplo, é um dos movimentos da arte moderna
que usou a estética do choque como poucos outros utilizaram. Na moda da alta costura haverá
uma liberdade para que o estilista crie livremente e faça uso da estratégia do choque, porém
nas coleções prêt-à-porter isso não será permitido. A recusa ao choque e a náusea virá
também na fotografia de moda presente na revista Harper‟s Bazaar, que ocupa suas páginas
com modelos em voga na atualidade em poses estratégicas, nas quais o estranhamento só é
causado talvez pela produção de moda.
Sobre a discussão da perda da aura e suas implicações, chegamos a seguinte
conclusão: se antes a obra de arte estava ligada ao valor de culto, ao ritual e servia a poucos,
com as transformações promovidas pela reprodução técnica, a fotografia e o cinema, que já
nasceram reprodutíveis, a obra de arte se descola de sua “existência parasitária” e passa a
servir a função social. Agora, a obra de arte assume novas formas de aparição com a
possibilidade de reprodução e exposição em massa. Ao transportarmos a ideia sobre o
conceito de aura para a revista Bazaar, nos deparamos com vários elementos passíveis de
portar ou não uma aura: a revista Bazaar enquanto caractere cultural e histórico, como meio
de comunicação em massa, como moldura para os editoriais de moda, suas próprias
fotografias de moda ou as marcas de luxo que dá voz. A partir daqui, procuramos analisar
alguns desses elementos, relacionando com a aura, imagem onírica, dialética e o Glocal em
seus pontos de intersecção.
79

3.2 A AURA DO LUXO

Com o nascimento das casas comerciais de prestígio no final do século XIX


conjuntamente surge o produto de luxo, que indica a posição social de que veste a roupa ou
acessório: “Não é mais apenas a riqueza material que constitui o luxo, mas a aura do nome e
renome das grandes casas, o prestígio da grife, a magia da marca” (LIPOVETSKY; ROUX,
2005, p. 43). Assim como a obra de arte, o luxo também contém o elemento tradição inscrito
em sua essência, e daí, também é extraída a sua aura, visto que “a unicidade da obra de arte é
idêntica à sua inserção no contexto da tradição. Essa tradição é ela mesma completamente
viva e extraordinariamente mutável” (BENJAMIN, 2014, p. 31). Aqui, o autor nos figura o
exemplo da estátua de Vênus que era cultuada pelos gregos, mas vista como ídolo maléfico
para os clérigos medievais, conquanto, nas duas situações a unicidade da Vênus se manteve,
com a diferença da expressão do seu culto. Ao discorrer sobre a aura na obra de arte,
Benjamin não descola sua origem, que se deu a serviço do ritual, “primeiramente mágico,
depois religioso” como no trecho em que diz que o “modo aurático de existência da obra de
arte nunca se destaca completamente de sua função ritual”. Do mesmo modo que a obra de
arte que conserva sua aura no ritual, o luxo também o faz quando aliado ao culto à beleza: “o
valor único da obra de arte „autêntica‟ tem seu fundamento sempre no ritual. Esse
fundamento, por mais mediado que seja, pode ser reconhecido, enquanto ritual secularizado,
também nas mais profanas formas de culto à beleza” (BENJAMIN, 2014, p. 33). O luxo se
constitui como um ritual que contém uma aura na medida em que se manifesta na “concepção
de produtos „perfeitos‟ e na criação de um universo de marca que representa um mundo
sensível coerente, que não poderia ser substituído por alguns signos ou elementos de
identificação imediata, por mais visíveis e reconhecíveis que fossem” (LIPOVETSKY;
ROUX, 2005, p. 146) e, assim, carrega a tradição como ingrediente imprescindível para
criação de um objeto de grife de luxo, conforme exemplo dado por Roux, sobre a confecção
das bolsas Hermès:

Hermès seleciona apenas o couro isento de qualquer cicatriz e não utiliza, na


confecção de suas famosas bolsas „Kelly‟, mais que a parte central da pele. O ponto
dito „de seleiro‟, continua a ser costurado à mão pelos artesãos das oficinas de
Pantin, e são necessárias nada menos que dezesseis horas para uma sela sob medida.
Da mesma maneira, as peles de crocodilo são polidas naturalmente com uma pedra
de ágata (semipreciosa) durante longas horas para revelar o verniz natural da pele,
enquanto outras marcas (que não são de luxo) aplicam uma camada de verniz
exterior sobre essas peles (LIPOVETSKY; ROUX, 2005, p. 146).
80

Lipovetsky e Roux conseguem apresentar o luxo em sua dimensão ética e estética em


todas as suas fases de preparação para o consumo, desde a produção até a distribuição, que ao
contrário da arte que consegue se emancipar do seio do ritual com a possibilidade de
reprodutibilidade técnica, parece preservar sua relação ritualística que carrega sua aura que se
mantém no tempo e espaço. O luxo nos dias atuais seria uma forma ainda sagrada “de
reinscrever o ritualismo no mundo desencantado, massa-midiatizado do consumo” em uma
sociedade que já perde sua conexão com os ritos e “é também isso que, no fundo, constitui o
charme do luxo, o qual, em nossas sociedades, é capaz de ressuscitar uma aura de „sagrado‟ e
de tradição formal, de fornecer uma tonalidade cerimonial ao universo das coisas”
(LIPOVETSKY; ROUX, 2005, p. 85). Como no excerto acima, a marca de luxo se diz
autêntica e por isso, carregaria consigo a aura como a obra de arte: como para sua fabricação
exige-se um verdadeiro ritual, inclusive, que é executado manualmente inclusive, é criado um
objeto único, que não pode ser imitado por outrem. Como relatado no primeiro capítulo dessa
dissertação, o nascimento da moda de alta costura ocorreu simultaneamente ao da moda
produzida em massa, graças à evolução da indústria que permitiu a reprodução rápida de
produtos. A moda, assim como a arte, poderia ser colocada sob duas visões: a aurática,
proporcionada pela Alta Costura, e a reproduzida em série, como a vendida em grandes
magazines, por exemplo: “Costura e confecção se distinguem claramente. A primeira veste as
mulheres sob medida, ao passo que a segunda se dirige à sra. Todo-mundo” (GRUMBACH,
2009, p. 33). Ambas se assemelham no início do processo de criação, porém, a diferença está
na confecção, que segue medidas padrão e, produzidas em série, podem ser vendidas com
preços mais baratos.
A questão da aura dada por Benjamin (2014) diz respeito à originalidade, da
autenticidade e da unicidade da arte. Assim, o estilista se posta como artista e sua criação,
obra de arte dotada de aura. É mediante o conceito da autenticidade da arte que a Harper‟s
Bazaar e outras revistas que trazem o luxo como a simulação de uma aura, uma tentativa
inconsciente de trazer de volta o ritual e o sagrado das imagens. A marca de luxo, por não
estar ao alcance de todos e possuir uma baixa exposição entre tantas outras modas produzidas
em larga escala, se apropria do caráter de unicidade da aura, do valor de culto, presente no
ritual. Desse modo, o luxo adquire até mesmo características teológicas que o ligam ao
transcendental, deslocando-o de sua realidade material e histórica, como na concepção de
obra de arte aurática e na noção idealista da arte, que diz que a produção de cultura é
privilégio somente daqueles dotados por um dom e, assim, uma atividade para poucos
81

(MARCUSE, 1997). É interessante aqui também levantarmos a dimensão antropológica do


vestuário associado à magia e ao ritual, tal como a obra de arte:

O vestuário, tal como o teatro, descende de um passado remoto religioso, místico e


mágico, relacionado com o ritual e com a devoção. Muitas sociedades usaram
formas de adorno e de vestuário que colocavam o indivíduo num certo
relacionamento com os espíritos ou com as estações do ano, durante a atuação dos
ritos de fertilidade ou de colheita de alimentos, para a guerra ou na celebração. A
evolução do ritual até à religião, e depois disso para a seriedade profana e finalmente
para o simples hedonismo [...] A moda também contém o fantasma de uma tênue
memó ria coletiva das propriedades mágicas que os adornos tinham antigamente
(WILSON, 1985, p. 79).

O luxo da moda tem como pretensão carregar a dimensão ritualística, o sagrado, seja
por aparições feéricas, por seu processo de manufatura ou pela exclusividade e sensação de
unicidade, mas um simples ponto o diferencia do vestuário e do cerimonial religioso: o luxo
da moda se dá somente ao hedonismo, como apontado por Wilson no trecho destacado acima.
Todo o ritual religioso resulta na formação de uma imagem mágica, que perdura, e daí surge o
impacto naquele que o contempla:

A arte do tempo primevo fixa, a serviço da magia, certas notações que servem à
práxis. E isso, provavelmente, como exercício nos procedimentos mágicos (o
entalhar a figura de um antepassado é, em si mesmo, uma execução mágica),
também como ensinamento destes procedimentos (a figura de um antepassado
demonstra uma postura de ritual) e, finalmente, como objeto de uma contemplação
mágica (a contemplação da figura de um antepassado intensifica a força mágica
daquele que contempla) (BENJAMIN, 2014, p. 41).

Em consonância a isso, a revista serve como meio de suporte para


demonstração da imagem mágica, pois ainda, com a fotografia, encontra o seu valor de culto,
mesmo que com resistência ao valor de exposição, porque a figura humana ainda é obrigatória
nos editoriais de moda. Os rituais de luxo da revista Harper‟s Bazaar acabam por formar essa
imagem mágica e se transforma, sobretudo, em objeto de contemplação. Na imprensa de
moda, a imagem mágica dispõe do auxílio ainda da fotografia, que fixa e congela as imagens,
que ficam para sempre belas e intactas. Em fotografias que evocam o luxo das vestimentas,
maquiagens, penteados e poses, é possível facilmente associar então o luxo ao sagrado, como
o fez Lipovetsky e Roux (2005, p. 85) ao dizer que “mesmo em uma época de informalidade
como a nossa, que vê ampliar-se o abandono dos ritos e outros comportamentos
convencionais, os usos ligados ao luxo continuam carregados de cerimonial”.
82

Figura 6: Destaque para chamada principal de capa "Tudo Novo" e "Em nome do look: estilistas buscam na
religião referências para as coleções"

Fonte: Carta Editorial, set/2013.

No ensaio em que liga o sagrado ao luxo, é plausível que o conceito de aura também
esteja aqui posto, suscitado no trecho: “é também isso que, no fundo, constitui o charme do
luxo, o qual, em nossas sociedades, é capaz de ressuscitar uma aura de „sagrado‟ e de tradição
formal, de fornecer uma totalidade cerimonial ao universo das coisas, de reinscrever
ritualismo no mundo desencantado massa-midiatizado do consumo”. Na imagem acima, capa
da edição de setembro de 2013 da revista no Brasil, traz duas frases de impacto que traduzem
83

o inconsciente de trazer o valor de ritual para a moda: “em nome do look: estilistas buscam na
religião referências para as coleções” e “Tudo novo”. Em uma só capa, o passado encontra o
presente na moda, que volta como o Sempre Igual disfarçado como novidade, e os ritos são
suscitados como inspiração para a moda. Aqui também é suscitado o componente lúdico da
fotografia, abordado pela pesquisadora Jeanne Marie ao dissertar sobre a perda da aura com a
fotografia sob o olhar de Benjamin: “o papel do fotógrafo não consiste em restaurar a aura
perdida das primeiras fotografias, mas, eis a segunda hipótese, em levar até o fim esse
processo de „desauratização‟, de „desinfecção‟ de um sagrado barato” (GAGNEBIN, 2014, p.
159). Gagnebin (2014, p. 101) explica o pensamento de Benjamin sobre a reprodutibilidade
técnica e a perda da aura enquanto “tentativas de pensar os fenômenos estéticos sem recorrer
ao pressuposto de uma origem substancial, única e autêntica”. Portanto, uma das qualidades
da reprodução de imagens como as da revista Bazaar é a aposta na “manifestação lúdica,
entre a „bricolagem‟ engraçada e a construção austera, um jogo com uma série infinita de
reproduções, em vez de querer restaurar a imagem aurática”.
As fotografias ordenadas na Harper‟s Bazaar conduzem para o imaginário que
envolve o luxo e seus usos, cuja base é “se ser desejável, de manter certa distância, de ser algo
merecido; é uma aura imaterial que se projeta acima do ordinário e acima da simples
qualidade da vida para ser uma forma de realização e de oferenda que se faz a si próprio e aos
outros” (LIPOVETSKY; ROUX, 2005, p. 130). Tal conclusão foi obtida por Roux a partir de
estudo da Cofremca, o qual a autora traz à tona em O luxo eterno. Uma dessas pontuações do
estudo que nos interessa é que “o luxo deve despertar imaginários e ressuscitar artes de
viver”, o que nos remete nesse ponto ao consumo da revista Harper‟s Bazaar como a vivência
de um sonho. Ao folhear a revista, imaginários são despertados, como se somente a visão dos
editoriais de moda bastassem para alguns dos leitores da Harper‟s. “A mulher de Moda é ao
mesmo tempo o que a leitora é e o que ela sonha ser. Seu perfil psicológico é
aproximadamente o de todas as celebridades „relatadas‟ cotidianamente pela cultura de
massa” (BARTHES, 1979, p. 247). O luxo é vivenciado para o leitor com o consumo dessas
imagens que suscitam o imaginário, pois “à medida que a sociedade se industrializa como
para compensar o processo de padronização imposto, o consumo deve ser investido de uma
dimensão individualizante. Daí necessidade de se utilizar uma carga imaginativa que torne
sedutora a aquisição dos produtos” (ORTIZ, 1998, p.159). Para Buitoni (1990, p. 18), a
revista feminina é por si só uma fruição, pois “não se leem revistas somente para informação;
muitas vezes, o ato de folheá-las já é um prazer”. O local de culto da obra de arte, neste caso a
moda de alta costura, se torna a própria revista, por meio de suas fotografias feéricas e devido
84

à história de tradição que a Harper‟s Bazaar carrega, como uma tentativa de preservação da
aura através dos tempos.

3.3 O GLOCAL E A AURA

Trivinho discorre a respeito da perda aurática do elemento contemplativo da existência


em tempo real, o que seria a perda do continuum histórico. No entanto, Matos (2015) nos diz
que a aura pode existir em reproduções técnicas da fotografia, como um fantasma que vem do
passado e se manifesta no presente. Como vimos no capítulo anterior, a conceituação da
imagem dialética e imagem onírica de Benjamin está intimamente ligada à aura, seja ela dos
objetos, das produções midiáticas de uma época ou de suas obras de arte. Isso porque “a
ênfase dada ao „agora da conhecebilidade‟ e ao presente como ponto de fuga‟ mostra que as
imagens dialéticas não são dadas empiricamente, mas resultam de uma construção‟, por meio
da qual elas se tornam objetos históricos” (BOLLE, 2000, p.69). O conceito de Glocal
corresponde à expansão da informação, seja ela em tempo real ou não, deslocada de sua
contextualização social e histórica, tal como a reprodução técnica possibilitou a obra de arte.
O local passou a ser visto globalmente, reproduzido em um mesmo padrão, por todo o globo,
graças às novas tecnologias midiáticas. Como a obra de arte que ficava isolada para acesso a
poucos, o que era local se expandiu e deu lugar a função social (BENJAMIN, 2014). Desde os
primeiros estudos sobre a indústria cultural com a Escola de Frankfurt há críticas sobre a
reprodução em massa da informação, possibilitada pela visibilidade mediática. Mas como
antevisto por Benjamin e seu estudo da aura, a reprodutibilidade técnica mudou o suporte pelo
qual a obra de arte é exposta. Tais mudanças, seja na arte ou na indústria cultural em geral,
não ocorreram de forma natural e foi resultado da ação do homem como sujeito na história.
Benjamin identificou nas primeiras fotografias a presença ainda da beleza aurática, no
entanto, “ele também aposta numa prática artística futura que não evoca mais a nostalgia de
uma beleza inacessível, a presença do longínquo no próximo, mas que constitui uma espécie
de jogo em série, de mimesis parodística ou denunciadora” (GAGNEBIN, 2014, p. 160).
Quando guardamos fotografias de entes queridos, o valor de culto a imagem ainda se preserva
e “na expressão fugaz de um rosto humano, a aura acena das primeiras fotografias pela última
vez. E é isso que perfaz sua beleza melancólica e incomparável” (BENJAMIN, 2014, p. 47).
A fotografia, assim como a arte, se transforma por volta de 1900, em um registro histórico
incomparável. De acordo com Benjamin, os indicadores de caminhos, ou melhor, dizendo,
85

legendas, em jornais ilustrados ou revistas, passam a condicionar o caminho de interpretação


do leitor, que segundo ele ficam “ainda mais precisas e imperativas no cinema, onde a
compreensão de cada imagem individual aparece prescrita pela sucessão de todas as imagens
precedentes” (BENJAMIN, 2014, p. 49). Como observou Buitoni (1990, p. 19), as imagens
fotográficas nas revistas são “persuasivas - ou sugestivas; recheadas de ilusão e imaginação,
elas estimulam, induzem, conduzem” e ainda, “vira texto, com séries de fotos construindo
verdadeiras „frases visuais‟; e o texto vira imagem quando recorre a figuras de estilo que nos
fazem visualizar a pessoa ou a cena, ou sugerem emoções e sentimentos”. A fotografia e a
revista feminina, para Buitoni, foi um casamento que deu muito certo.
A fotografia, para Benjamin (2012, p. 100), pode conter um “valor mágico que um
quadro nunca terá para nós” revelando um inconsciente ótico, só visto por meio dos recursos
tecnológicos da fotografia. A aura contida na fotografia está presente na “pequena centelha do
acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de encontrar o lugar
imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje no „ter sido assim‟ desses minutos únicos,
há muito extintos, e com tanta eloquência que, olhando para trás, podemos descobri-lo”. Em
análise sobre a imagem fotográfica, Aumont (2014, p. 209) ressalta que a essência da
fotografia “é ser uma „alucinação verdadeira‟, „embalsamar‟ e „revelar‟ o real em todos os
seus aspectos, inclusive temporais. É, pois, a encarnação de uma semelhança ideal, apta a
satisfazer a necessidade de ilusão mágica que está no fundo de todo desejo de analogia”. A tal
mimesis parodística revelada por Gagnebin reaparece também nos excertos de Aumont (2014,
p. 210), que diz que a nossa visão é paralela à interpretação e ao copiar, criamos. A presença
da Harper‟s Bazaar Brasil enquanto um instrumento de visibilidade mediática proporcionado
pelo advento do Glocal pode não conter o valor histórico levantado por Trivinho, porém
diante dessas considerações acerca da aura da fotografia percebemos que sua edição no Brasil
expressa, mesmo que oniricamente, a sociedade em que vivemos no presente momento, por
ali estarem as imagens de desejo.
O que ocorre, no entanto, é que a fotografia vista enquanto arte é um terreno ardiloso,
ponto também tratado em Pequena História da Fotografia. Benjamin discorre sobre a questão
ao apresentar a fotografias de Atget de cenas do cotidiano. Em todas as paisagens habituais
que Atget fotograva o homem se retira das imagens: “Vazia a Porte d‟Arcueil nas
fortificações, vazias as escadas faustosas, vazios os pátios, vazios os terraços dos cafés, vazia,
como convém, a Place du Tertre”. Os locais citados, no entanto, não “são solitários e sim
privados de toda atmosfera; nessas imagens, a cidade foi esvaziada, como uma casa que ainda
não encontrou locatários” (BENJAMIN, 2012, pp. 108-9). Aqui, Benjamin comenta a perda
86

da autenticidade da fotografia, porque aqui, a fotografia começa a possuir uma dimensão


criadora e se desprende de “todo interesse fisionômico, político e científico”. A essa altura,
Benjamin fala a respeito da fotografia retocada ou fabricada, aquela volta à comercialização.

Quanto mais se propaga a crise da atual ordem social, quanto mais rigidamente os
momentos individuais se contrapõe entre si, numa oposição morta, tanto mais a
„criatividade‟ – no fundo, por sua própria essência, mera variante, cujo pai é a
contradição e cuja mãe é a imitação – se afirma como fetiche, cujos traços só devem
a vida à alternância das modas. A criatividade na fotografia é o seu
comprometimento com a moda. Sua divisa é precisamente: „o mundo é belo‟
(BENJAMIN, 2012, p. 113).

Ao mesmo tempo em que a nova configuração da técnica permite uma nova forma de
arte, aliada às mudanças na aisthésis, a manipulação dessas imagens fotográficas, as quais
Benjamin se refere, acaba por descambar na fabricação artificial delas mesmas e constitui
mais uma forma para o fetiche se compor na sociedade do século XX e permanece assim no
século XXI, onde já dispomos de tantas outras tecnologias, mas a imagem manipulada das
fotografias continua nos encantando. Se as primeiras fotografias continham uma aura, a
fotografia manipulada já não a tem. Diante desse excerto da Pequena História da Fotografia
Benjamin ainda faz alusão à moda, assunto tratado na presente dissertação. A moda, pois,
encontra na fotografia, uma parceira perfeita para se aliar e criar o onirismo pertinente ao
fetiche da mercadoria:

Nela se desmascara a atitude de uma fotografia capaz de realizar infinitas montagens


com uma lata de conservas, mas incapaz de compreender um único dos contextos
humanos em que ela aparece, e que, com isso, constitui mais uma precursora do
valor de venda de seu objeto, por mais onírico que este seja, que de seu
conhecimento (BENJAMIN, 2012, p. 113).

As imagens que se associam ao reclame, como diz Benjamin, são incapazes de serem
compreendidas em qualquer contexto humano, vide os editoriais de moda da revista Harper‟s
Bazaar, nos quais a mulher se posta em poses irrealizáveis em situações corriqueiras. As
produções de moda, também dessas fotografias, estão aquém do realizável na vida social de
qualquer um que não seja uma celebridade do cinema em tapete vermelho ou em uma
aparição pública que tenha como objetivo causar frisson. Tais imagens fotográficas são
oníricas, pois nelas estão representadas o desejo das mulheres, seja de status ou de querer
parecer com a new face impressa na revista do mês. As imagens fotográficas da revista
Harper‟s Bazaar como a de qualquer outra revista de moda se presta ao “valor de venda de
seu objeto” como dito por nosso filósofo. Benjamin suscita o trecho no qual Brecht discorre a
87

respeito da fotografia enquanto uma “simples reprodução da realidade” onde não se vê a


“verdadeira realidade” deslocada para “realidade funcional”. Para Benjamin, “o mérito dos
surrealistas é o de ter preparado o caminho para uma tal construção fotográfica” e argumenta
que as montagens feitas com fotos se dão “à experimentação e ao aprendizado”. Benjamin
compara trechos em que Wiertz e Baudaleire saúdam o advento da fotografia e tratam-na
como uma possível suplantadora da pintura. Baudelaire ainda diz: “em breve ela a suplantará
e corromperá completamente, graças à aliança natural que encontrará na tolice da multidão”
(BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 2012, p. 114). Benjamin é contundente em rebater as
duas opiniões e diz que nem sempre se poderá compreender as injunções da fotografia: “Nem
sempre será possível contorná-las com uma reportagem, cujos clichês somente produzem o
efeito de provocar no espectador associações linguísticas” (BENJAMIN, 2012, p. 114).
Benjamin destaca aqui o caráter da fotografia de indução a uma figura de linguagem ou até
mesmo antever sua legenda e deslocar totalmente a imagem de sua realidade material. São
“imagens efêmeras e secretas, cujo efeito de choque paralisa o mecanismo associativo do
espectador”. Benjamin se refere às imagens fotográficas dispostas em jornais diários, porém
tal análise se faz pertinente em qualquer plataforma mediática onde se faz o uso de fotografias
como apoio do texto jornalístico, isso se aplica também à revista de moda. “Aqui deve intervir
a legenda, introduzida pela fotografia para favorecer a literarização de todas as relações da
vida e sem a qual qualquer construção fotográfica corre o risco de permanecer vaga e
aproximativa” (BENJAMIN, 2012, p. 115). As fotografias sem legendas, sejam elas na
fotografia de moda ou impressa nos jornais diários, simplesmente se tornam ilegíveis sem a
legenda. Para Benjamin, um fotógrafo que não lê suas próprias imagens é pior que um
analfabeto e, assim, engrandece as antigas fotografias que falavam por si e que não
precisavam de legendas.
O efeito Glocal que se dá por meio de suportes digitais encontra também nos suportes
analógicos espaço para sua repercussão. A imprensa escrita e a fotografia são exemplos de
como o Glocal pode ser manifestado e a revista Harper‟s Bazaar é uma de suas implicações.
Se por um lado o efeito Glocal desloca o acontecimento de seu contexto social e histórico, ele
se faz possível também por meio da fotografia, e no caso da revista Bazaar, por entre a
fotografia de moda. Podemos afirmar, diante da concepção de Benjamin (2014, p. 19) acerca
da reprodução técnica, que fotografias podem conter um índice de autenticidade: “a esfera da
autenticidade, como um todo, subtrai-se à reprodutibilidade técnica – e, naturalmente, não só
a que é técnica” e, portanto, possuir aura. Para exemplificar a autenticidade da reprodução
técnica, Benjamin destaca a fotografia: “pode, por exemplo, na fotografia, acentuar aspectos
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do original acessíveis somente à lente – ajustável e capaz de escolher arbitrariamente seu


ponto de vista -, mas não ao olho humano”. Se existe um fenômeno único na fotografia de
moda, no momento em que o fotógrafo guia a modelo em determinada pose para o seu
editorial, talvez seja esse o instante de glamour desejado pelas massas modernas apaixonadas.
Consoante a Gagnebin (2014, p. 127), “a arte aurática era caracterizada por um modo de
aparição do objeto no qual este, mesmo que próximo, se mostrava como imagem aurática, isto
é, se mostrava como uma imagem emoldurada ou aureolada pela presença do longínquo”
podemos fazer um paralelo aqui entre o objeto (fotografia de moda) e sua moldura (revista
Harper‟s Bazaar). Ora, se o objeto se mostra como imagem aurática emoldurada por uma
auréola que remete à presença do longínquo, é possível propor que a fotografia dos editoriais
de moda mantém uma espécie de aura, não só pelo glamour das modelos e roupas, mas
também em decorrência da própria revista Harper‟s Bazaar, diante de sua origem tradicional
que se deu no fim do século XIX. “A aura é, sem dúvida, um tipo de auréola; mas é também
uma espécie de moldura, que empresta à imagem um campo de perceptibilidade próprio, uma
abertura sobre outra dimensão que aquela da superfície habitual das percepções cotidianas”
(GAGNEBIN, 2014, p. 127). O que ocorre com a fotografia de moda que aparenta ter aura é a
confusão dos sentidos provocada pela própria alteração da percepção sensível do homem. Há
o que Sfez (1994) chama de tautismo, hibridação de tautologia com autismo, em que se crê
que a reprodução, portanto, sua representação, é a expressão da imagem. O tautismo é a
confusão entre a representação e a expressão. Com a fotografia e a imprensa, há uma
tendência em confundirmos a representação com a expressão da realidade, ou o contrário,
pensar que o mundo sensível é uma realidade representada. “Somos então chamadas a ver um
espetáculo de purgação (representação), mas esse espetáculo também nos é apresentado
impelindo­nos à razão, à fusão (expressão)” (SFEZ, 1994, p. 103). A mídia de massa e a
revista Harper‟s Bazaar como objeto de nossa dissertação é o exemplo de tautismo mais
presente em nosso cotidiano. “O real tampouco é o que se inventou com esse nome ao
exprimi-lo. No tautismo, toma-se a realidade representada por uma realidade expressa. Toma-
se o representado pelo representante”. Com tanta informação, nada mais se diz, há prolixidade
e um discurso vazio, cheio de tautologia.
Com o progresso do Iluminismo no século XIX, houve um deslocamento das crenças
do homem em religiões, tornando-o mais concentrado em sua vida material e no imediato.
“Como os deuses estão desmistificados, o homem mistifica a sua própria condição; sua
própria vida é temida com significação e, todavia, continua a ser representada” (SENNETT,
1989, p. 192). Roland Barthes também o diz em suas análises sobre a fotografia, nas quais a
89

apontou como sendo invisível, pois “não é ela que vemos”. Podemos relacionar a perda da
aura de Benjamin com a Morte presente na fotografia: “o que a Fotografia reproduz ao
infinito só ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se
existencialmente” (BARTHES, 2012, p. 14). Roland Barthes diz ainda que toda fotografia
carrega consigo algo “terrível”:

O Operator é o Fotógrafo. O Spectator somos todos nós, que compulsamos, nos


jornais, nos livros, nos álbuns, nos arquivos, coleções de fotos. E aquele ou aquela
que é fotografado é o alvo, o referente, espécie de pequeno simulacro, de eídolon
emitido pelo objeto, que de bom grado eu chamaria de Spectrum da Fotografia,
porque essa palavra mantém, através de sua raiz, uma relação com o „espetáculo‟ e a
ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do
morto (BARTHES, 2012, p. 18).

Nöth e Santaella (2001, p. 135), relacionam a ideia de morte com a eternidade da


fotografia: “na fotografia, morte e eternidade são inextricáveis, como as duas faces de uma
moeda. O instante arrancado do continuum, que o registro fotográfico eterniza, é um
fragmento do vivido que se esvaiu”. Tal afirmação está em consonância com o comentário de
Barthes sobre a presença da morte na fotografia. “A eternidade do registro acaba funcionando
como prova irrefutável de que a vida, em cada milésimo de instante, está grávida de morte”.
Para Dubois (1993), na fotografia tem-se uma distância com o real, o encontro parece estar
iminente, porém ele jamais ocorre. “Aquilo com que pretensamente deveria se parecer está a
tal ponto definitivamente distanciado, afastado, perdido, que nada mais há diante da imagem.
A fotografia não tem cara a cara”. Como um instante congelado, carrega um caráter
“aurifico”, como o próprio Dubois pontuou, por se parecer um fantasma. “É a única aparição
de uma ausência”. Se isso se aplica às fotografias que são retratos, fotos de familiares, se
tratando de fotos com produção e/ ou alteradas digitalmente, o que vemos realmente não está
lá. É um instante, que ocorreu em algum espaço e tempo, que se dá ao valor de exposição,
porém, o valor de culto, sobrepujado, se mostra como imagem de desejo, que por sua vez,
toma o lugar da imagem mágica. Apoiado no conceito de aura de Benjamin, Dubois (1993, p.
311), diz que “a aura seria o próprio efeito dialético, saído dessa tensão entre o longínquo e o
próximo, ou melhor, do longínquo mais especial agarrado, mantido, no próximo mais
conjuntural”.
De volta ao texto de Benjamin sobre a obra de e arte a e a reprodutibilidade técnica,
vemos que a reprodução de imagens captadas em seu momento único é uma tentativa de
imortalização da fotografia, da preservação daquele instante ou daquela moda tal como foi
fotografada. “É preciso que a Morte, em uma sociedade, esteja em algum lugar; se não está
90

mais (ou está menos) no religioso, deve estar em outra parte: talvez essa imagem que produz a
Morte ao querer conservar a vida” (BARTHES, 2012, p. 85). A fotografia de moda ilustra
bem isso, já que a moda já está predestinada à morte desde o momento em que é lançada, pelo
próprio movimento do capitalismo, que suscita a novidade. A fotografia comercial, retocada,
que se põe como arte, é na verdade, a fetichização da mercadoria como imagem do desejo.
“As fotografias sobrevivem não apenas a nós, mas a muitas gerações. Cópias envelhecidas
podem ser renovadas. Negativos podem ser reproduzidos de negativos. Há algo de
indestrutível nas fotografias” (NÖTH, SANTAELLA, 2001, p. 134). O teor “indestrutível” da
fotografia presente na revista de moda se confunde com a aura, mas na realidade, são apenas
fantasmagorias. Essa espectralidade que se apresenta na fotografia ocorre, para Dubois,
justamente porque a trama de origem da aura em Benjamin se transforma em drama, ou seja,
ficção, ao tentar contar uma história e constituir uma narrativa.
A Glocalização que se dá também por meio da existência em tempo real confusa,
confusão essa que, segundo Konder (1988, p. 42) em análise sobre a experiência com o
haxixe de Benjamin, se deve a própria „“natureza alucinógena‟ da própria „razão instrumental‟
a que recorremos sempre, com cega confiança em nossa vida cotidiana” e “provoca
alucinações no período que é consumido”, algo que a razão instrumental faz também, segundo
ele, de modo pior: “ela nos acostuma a conviver duradouramente com as fantasmagorias que,
com o apoio da ideologia dominante, se apresentam como fiel representação da realidade”. As
imagens do desejo ultrapassam as fronteiras e assim se dá o Glocal, possível graças às
tecnologias que expandem a novidade para os locais do globo conectados. Para Buck-Morrs
(2002, p. 200), “no processo de se tornar mercadorias, as imagens de desejo se congelam em
fetiches; o mítico aspira à eternidade [...] a outra face da repetição infernal do „novo‟ na
cultura de massa é a mortificação daquilo que não é novidade”. Benjamin (2014, p. 101), ao
comentar sobre o impacto do cinema na sociedade, assinalou a magnitude da câmera para
afetar o mundo em suas “psicoses, nas alucinações, nos sonhos” por meio do encadeamento
de imagens. A fotografia permite o mesmo efeito ao proporcionar as imagens congeladas:

E, assim, aqueles modos de proceder da câmera correspondem a muitos


procedimentos graças aos quais a percepção coletiva pode se apropriar dos modos
individuais de percepção do psicótico ou do sonhador. Na verdade de Heráclito – os
despertos possuem um mundo em comum, cada um dos que dormem possuem um
mundo para si – o cinema abriu uma brecha. E fez isso muito menos pela
apresentação do mundo onírico que pela criação do sonho coletivo, como a de
Mickey Mouse, que circula pelo mundo inteiro (BENJAMIN, 2014, p. 101, grifo
nosso).
91

Com o Glocal, o mundo onírico criado por imagens semelhantes ou mesmo iguais se
espalha pelo globo. A revista Harper‟s Bazaar no Brasil é um exemplo de imagem que
circula o mundo e faz criar aqui, nos brasileiros que folheiam as páginas da revista, o
consumo dessas imagens que permeiam então o mundo onírico. Os meios de comunicação
Glocalizados como a revista Harper‟s Bazaar trazem modelos internacionais como capa e
conteúdos como “O Melhor dos Desfiles Internacionais” e “40 anos de Armani”, como na
edição de Abril de 2015.

Figura 7: Modelo alemã Toni Garrn ilustra capa de edição brasileira da Bazaar.

Fonte: Carta Editorial, abr/2015.


92

Mesmo que grande parte do conteúdo da revista cuja matriz é americana seja
produzido no Brasil, a moda se tornou algo global desde o fim do século XIX com a
insurgência do capitalismo industrial, a alta costura e a produção de massa de roupas. As
imagens oníricas se tornam flutuantes em todo o mundo: as imagens do desejo são as mesmas
com o fetiche da mercadoria apresentado pela revista Harper‟s Bazaar no Brasil. Conforme
Benjamin (2006, p. 505), “a imagem lida, quer dizer, a imagem no agora da cognoscibilidade,
carrega no mais alto grau a marca do momento crítico, perigoso, subjacente a toda leitura”.
Essa superfície, a epiderme, a camada mais rasa de uma época, tal como a fisiognomia das
cidades, a cultura do cotidiano, das imagens do desejo e fantasmagorias possui “a mesma
importância das „grandes ideias‟ e das obras de arte consagradas” (BOLLE, 2000, p.43).
Observar a imagem fotográfica impressa nas folhas da revista Harper‟s Bazaar é, portanto,
reconhecer a representação histórica de um dado momento, pois “a história em tudo o que
nela desde o início é prematuro, sofrido e malogrado, se exprime num rosto - não numa
caveira” (BENJAMIN, 1984, p. 188).
93

CONCLUSÕES

A presente dissertação se propôs à investigação da revista Harper‟s Bazaar como


elemento onírico da contemporaneidade. Se Benjamin expôs as passagens parisienses como
galerias do sonho, transpomos essa metáfora para nosso objeto de pesquisa: a revista Harper‟s
Bazaar é a representação onírica do fetiche da mercadoria, que nos aparece como imagem do
desejo. O Trabalho das Passagens constituiu o nosso maior arcabouço teórico e nos levou a
esta conclusão. “A armadura teórica visível do Passagen-Werk se apoia em uma teoria
sociopsicológica secular da modernidade como mundo do sonho, e uma concepção de um
„despertar‟ coletivo enquanto sinônimo de uma conscientização revolucionária de classe”
(BUCK-MORRS, 2002, p. 302). A análise de Benjamin acerca dos objetos que o circundava
para expor uma experiência histórica, se deu, no entanto, com base mais literária do que
lógica, como aponta Buck-Morrs. Ao reunir Freud, Marx e Proust em seus escritos, Benjamin
nos apresentou sua visão de mundo, o de reencantamento do mundo social com a imagem
onírica. A sua teoria, mesmo que não aceita completamente por Adorno no início, trouxe uma
concepção que coloca o homem como sujeito agente na história e sua existência, ao contrário
da concepção de Adorno, que temia o que para ele era um “local enfeitiçado”. Com as
Passagens, Benjamin quis demonstrar que o capitalismo industrial promoveu a reativação dos
poderes míticos, que agora estavam sobre a mercadoria. “Na cidade moderna, assim como nos
ur-bosques de outra era, a „face fascinante e ameaçadora‟ do mito estava viva e em toda a
parte” (BUCK-MORRS, 2002, p. 303). Benjamin previu que os meios de reprodução técnica
ainda permitiriam que uma mesma imagem permearia o onírico de todo o mundo. Isso se
comprovou com o avanço das tecnologias mediáticas. O suporte impresso, como o da revista
Harper‟s Bazaar, mesmo que pareça desatualizado e em desuso visto o aparecimento de
outros meios de comunicação mais rápidos, ainda permanece como uma das formas mais
eficazes da moda se afirmar como imagem do desejo.
Em 1867, a Harper‟s Bazaar surge nos Estados Unidos como produto de uma equação
envolta pelo avanço do capitalismo industrial, crescimento da classe burguesa, o nascimento
da moda moderna, da alta costura e de sua reprodução em lojas de departamento. Com a
população cada vez maior nas cidades modernas da Europa e com o consumo proporcionado
pelo varejo, crescia a necessidade de meios de comunicação que acompanhassem tal
desenvolvimento. Fora isso, o século XIX foi marcado pelo secularismo, o Iluminismo
burguês, que colocava a revolução industrial como paraíso terreno (BUCK-MORRS, 2002). O
desenvolvimento das cidades refletiu-se no modo de pensar do homem, reforçado pela atitude
94

científica. Formou-se o terreno ideal para o aprisionamento por meio da mercadoria: o homem
burguês que detinha o capital quanto os trabalhadores das fábricas acreditavam no próprio
capital como meio de sua libertação. O pensamento material começou a se formar com os
meios de produção. A primeira conclusão do primeiro capítulo é que a mistificação, da qual o
homem buscava se libertar por meio da razão, foi deslocada para a mercadoria como fetiche,
sendo personificada na moda. Em segundo lugar, concluímos que a moda se tornou um dos
instrumentos usados pelo homem para expressar suas emoções no exterior de sua residência,
no âmbito público. A distinção entre o público e o privado é um dos principais apontamentos
também do primeiro capítulo. Com o exterior das residências muito mais movimentado com a
grande circulação de pessoas, a moda servia para mostrar que se estava fora de casa, e no
interior da residência burguesa, os mobiliários serviam como expressão de sua personalidade.
Em terceiro, podemos enumerar que a moda encontrou na revista um meio de expressão para
se mostrar ao homem que via a moda como sua expressão. A massa, fragmentada, tinha a
moda como uma de suas ligaduras. Fora isso, a comunicação no fim do século XIX insurgia
para dar conta das cidades modernas. Como observou Wilson (1985), o capitalismo faz tudo
girar em torno de seu próprio vórtice. A alta costura, surgida no fim do século XIX, se
apresenta ainda mais expressivamente como fetiche da mercadoria. Charles Frédéric Worth é
considerado o inventor da alta costura e primeiro estilista já conhecido, atendia tanto a
aristocracia quanto a burguesia. A moda de alta costura viu então com a revolução industrial
ambiente providencial para se multiplicar e alcançar também as classes menos favorecidas
com a produção em massa. Por último, destacamos como uma das conclusões do primeiro
capítulo da dissertação o luxo como elemento criador da Harper‟s Bazaar. A individualidade
e a vida dispersa da dependência da religião tomava a beleza como meio de civilidade. Aqui,
colocamos o luxo não só como sinônimo de ostentação, mas também enquanto conforto. A
revista passaria a ser o meio para promoção do estilo de vida luxuoso e confortável, símbolos
da civilidade do homem burguês. Tais condições prefiguradas nas metrópoles europeias eram
reproduzidas na América, mais precisamente em Nova Iorque, berço da Bazaar. A cidade
simbolizava o século XX tal como Paris foi símbolo e capital do século XIX. Movida pela
novidade e pela rapidez em suas transformações, a imprensa movimentava o grande comércio
de moda de Nova Iorque.
O segundo capítulo da nossa dissertação teve como objetivo delinear a moda e a
revista Harper‟s Bazaar como representativa da imagem onírica benjaminiana. Em
continuidade às primeiras conclusões alcançadas no capítulo I, colocamos a moda como
elemento que cria a identidade para o homem moderno, fragmentado pelo capitalismo.
95

Benjamin, apoiado em Freud, nos expõe a moda como uma “gratificação substitutiva”. O ser
humano que desde a primeira infância é afastado de sua mãe busca cercar-se de tudo o que lhe
proporciona prazer. A mercadoria, assim como o haxixe, promoverá essa sensação de
ebriedade. No entanto, os prazeres provocados pelo encanto do novo será sempre um “morno
bem-estar”. Logo, o homem precisará de novo o encanto por outra novidade. Nisto, a moda
lhe cai bem, devido à sua busca sempre desenfreada pelo novo e por buscar incessantemente
se distanciar da moda anterior. Convocamos aqui o Eterno Retorno do Mesmo dado por
Nietzsche, e também por Benjamin no Trabalho das Passagens e em outros textos. A moda é o
Eterno Retorno do Mesmo por conta de seus princípios antinômicos da felicidade: o da
eternidade e o do mais uma vez ainda. Por sua vez, é na moda que a mercadoria encontra a
sua melhor face fantasmagórica. A moda encontra na revista Harper‟s Bazaar em sua versão
no Brasil o substrato para se manter como imagem do desejo, no qual o coletivo deseja
transfigurar suas imperfeições (BENJAMIN, 2007). As imagens que permeiam as páginas da
revista são imagens do sonho por constituírem a forma simbólica do capitalismo, cuja
estrutura não é visível por nós, pois estamos aprisionados a ela. Em outras palavras, as
imagens oníricas que aparecem diante de cada época são uma tentativa de se libertar da
estrutura do capitalismo, no entanto, da sociedade moderna até hoje, essa estrutura de sonho
se alimenta do próprio capitalismo. A forma fantasmagórica, portanto, é a novidade que se faz
Sempre-Igual. Como apontado por Buck-Morrs (2002) a fetichização dos sonhos e das
mercadorias se tornam indistinguíveis.
Apoiamo-nos sobre a ideia de Marx sobre o mito, criado pelo sistema de produção de
mercadorias e espetacularizado por meio da imprensa, em nosso caso, na de moda. Chegamos
à conclusão de que a moda como imagem onírica e como imagem do desejo, alcança o seu
objetivo somente como mercadoria de exibição. Expostos como objetos de luxo com custo
muito elevado e acesso limitado por grande parte da população, as imagens suportadas pela
Harper‟s Bazaar só aumentam a cobiça em que as admira. Por fim, as imagens oníricas se
portam como imagens dialéticas como observado por Benjamin. A imagem dialética é a
manifestação da imagem onírica, que carrega consigo a “história primeva”. O desejo em
permanecer a existência finda como o Eterno Retorno do Mesmo. O homem que se cerca de
objetos e se veste com a última moda espera deixar rastros para que seja interpretado e
compreendido posteriormente. Esta metáfora está presente na esfera do despertar, que cabe ao
historiador a sua compreensão. O sonho, detido pela mercadoria, sua fantasmagoria e fetiche,
estão em nossa transitoriedade, mas que, como colocado por Benjamin, antecipam a dialética
do despertar. Como fechamento do segundo capítulo, foi postulada a questão da mimesis nos
96

teóricos da escola de Frankfurt, discorrida por Jeanne Marie Gagnebin. Aqui a imagem
dialética e onírica se volta como imitação de sua aparição anterior, posto que as semelhanças
que existem não são imutáveis e eternas, mas são capazes de se inventariar de acordo com a
época que ressurgem.
O último capítulo de nossa dissertação circundou a questão da aura na revista
Harper‟s Bazaar no Brasil. Primeiramente, foi dado um pequeno histórico sobre a imprensa
feminina no país a fim de buscarmos contextualizar o surgimento da revista Harper‟s Bazaar
em território nacional. A revista lançada em 1867 em Nova Iorque, nos Estados Unidos,
aparecia no Brasil 144 anos depois. Por meio de nossa pesquisa, apontamos que a revista
Vogue, também americana e igualmente nascida no fim do século XIX, teve seu primeiro
exemplar publicado no Brasil na década de 1970 por Luis Carta, hoje falecido, da Carta
Editorial, a mesma editora que detém os direitos da Harper‟s Bazaar nacional. Em 2011, ano
de lançamento da Bazaar no Brasil, a Carta Editorial havia perdido o direito de publicação da
Vogue no Brasil por motivo não divulgado. A editora buscou uma publicação igualmente
luxuosa para ocupar o seu lugar em sua cartela de produtos. Outro possível motivo para que a
Carta Editorial trouxesse a publicação americana ao Brasil era o mercado editorial crescente e
promissor, a moda e o mercado de luxo em um bom momento econômico no cenário nacional.
Dado esse panorama, tratamos a versão brasileira da Bazaar como fenômeno Glocal e
relacionamo-lo com a aura de Benjamin, visto que uma das críticas de Trivinho (2012) a
respeito da glocalização é a perda do hic et nunc, ou seja, do Aqui e Agora. Destacamos como
primeira conclusão na conjugação dos conceitos de Trivinho e Benjamin a glocalização como
criadora de um espectro, que se trata da existência em tempo real. Ao ter o reproduzido em
nossas mãos, têm-se uma falsa impressão de aura, falsa porque a aura prevê o Aqui e Agora
no interior do seu continuum histórico, algo que o Glocal despedaça. Os meios de
comunicação são o próprio fetiche da mercadoria se colocados como democratizantes da
cultura. Convidamos novamente Adorno e Horkheimer sobre o conceito do Iluminismo para
tratar a comunicação como forma permanente de distração dos nossos sentidos. Em meio ao
sonho, não seria possível perceber que estamos sonhando, no entanto, com o despertar, o
homem encontra o seu lugar de resistência e liberdade. O movimento dialético de
concentração e dispersão se voltam com a figura de Ulisses e as Sereias e a do Flâneur e da
Melancolia. Na Melancolia, o homem se vê preso em sua imobilidade diante de sonhos em
dispersão, em contrapartida, o Flâneur, está sempre em movimento em busca pelo novo
(BOLLE, 2000). Concluímos, portanto, que tanto a figura do Flâneur como a da Melancolia
serve à manutenção do próprio sistema. Em nosso tempo, o Glocal proporciona a dispersão
97

por meio da visibilidade mediática. Por outro lado, o movimento de concentração se faz por
meio do despertar do sonho coletivo.
O declínio da aura se dá, em Benjamin, pelo desejo das massas de tornar as coisas
mais próximas, em vez de ocuparem somente o local de culto. Por isso também ressaltamos a
necessidade de adquirir a revista impressa, mesmo que não se haja condições para adquirir
uma de suas roupas de luxo ali expostas. O leitor da Harper‟s Bazaar pode possuir uma
daquelas modas apresentadas, seja nas imagens ou em suas reproduções. Mencionamos
também no último capítulo a mudança da aisthésis, como uma mudança na percepção do
homem reconfigurada a partir de um novo período histórico, mas ao invés de prantear a perda
da aura, Benjamin vê uma possibilidade de novos espaços de experimentação e criação, como
o cinema. Sobre a possível existência da aura na revista Harper‟s Bazaar analisamos um
outro ponto onde essa aura poderia se instalar: o luxo. Por estar distante, o luxo adquire um
valor de culto tal como as primeiras esculturas que serviam à religião. A Harper‟s Bazaar
exprime a tentativa de um local sagrado do luxo, que a moda pretende alcançar por meio do
feérico, seu processo de manufatura e exposição. A fotografia se dispõe com a revista de
moda como uma imagem mágica, que ainda encontra o seu valor de culto. A Bazaar no Brasil
pretende ser o local de culto da obra de arte da alta costura por meio de suas fotografias
suntuosas e devido à história de tradição que a Harper‟s Bazaar carrega. Na fotografia de
moda da Bazaar, podemos afirmar que, nessa reprodução está expressa a imagem onírica de
nosso presente por ali se conter também a imagem de desejo. As fotografias são oníricas, pois
nessa estão representados os desejos das mulheres, de status, de querer se parecer como uma
modelo, enfim, as imagens fotográficas se prestam ao valor de venda. Não há aura na
fotografia de moda, de acordo com a nossa análise baseada em Benjamin, apenas a
personificação do fetiche da mercadoria. Como antevisto por Barthes, é preciso que a morte
esteja presente em algum lugar em nossa sociedade, e esse local é a fotografia. A
espectralidade na fotografia é dupla: tanto a do tempo apreendido naquele momento quanto a
da fantasmagoria da mercadoria ali exposta. A glocalização promovida por esse aparato
mediático confunde, pois se tem a impressão de estarmos nos deparando com a representação
da realidade, quando realmente estamos defronte às imagens do desejo congeladas em
fantasmagorias. Com a globalização as mesmas imagens oníricas são absorvidas glocalmente.
Finalmente, mesmo que as fotografias e a revista Bazaar no Brasil sejam o próprio espectro da
mercadoria, são com elas que o historiador deverá lidar no momento de despertar, as imagens
oníricas da pós-modernidade.
98

REFERÊNCIAS

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101

ANEXO I – TRANSCRIÇÃO DE ENTREVISTAS

ENTREVISTA 1
Concedida por Patrícia Carta ao programa Universo da Moda, da emissora Mega TV
(novembro/2013)

Max Fivelinha: Ela é responsável pela vinda da revista Harper‟s Bazaar para o Brasil e foi
editora da revista Vogue por 36 anos. Patrícia Carta é referência quando o assunto é moda.
Numa entrevista exclusiva, ela fala sobre os rumos do mercado fashion no Brasil. A moda
brasileira teve um boom nos últimos 20 anos: jornalistas especializados, sites especializados e
um número cada vez maior de publicações, mas nem sempre foi assim. Eu vim bater um papo
com a Patrícia Carta, que desse assunto, ela entende. Você começou fazendo o que antes?

Patrícia Carta: Sou formada em publicidade e a primeira coisa que eu fiz foi trabalhar em
agência, mas garota, com 19 anos, estagiária na verdade. De lá eu saí e vim para a Carta,
então eu comecei aqui, na moda.

M.F: Você já começou na moda?

Patrícia Carta: Já, comecei na moda com 20 anos. Então faz 30 anos só que eu trabalho com
isso.

M.F: Você teve com a Vogue mais de 36 anos aqui, foi uma escola pra você, foi sua primeira
escola? Pode chamar de escola? Escola às vezes é meio velho, mas não é né?

Patrícia Carta: Foram 36 anos e a escola continua né, porque enquanto a gente faz todo mês a
gente aprende alguma coisa nova.

M.F: Você trouxe a revista Bazaar pro Brasil faz um ano e pouquinho. Demorou pra vir...

Patrícia Carta: ô...

M.F: Como que você trouxe a revista, foi uma negociação daquelas que demoram?

P.C: Na verdade, demorou para vir se você considerar que é uma revista de 150 anos (risos)
Então a revista... É, a primeira revista de moda do mundo e... É ela é o berço dessa arte
gráfica, ela é o berço da fotografia de moda, o berço do styling, o berço de uma série de
coisas, então ela demorou bastante, mas foi uma grande sorte minha que ela tenha demorado,
porque senão eu não poderia ter trazido. E a negociação não foi difícil porque o Brasil estava
num momento em que estavam todos chegando e eu peguei exatamente esse momento. Talvez
tivesse sido mais difícil em outra situação, em outra época, mas agora foi rápido, mas mesmo
assim é muito trabalhoso, porque quando eu digo rápido, leva bastante tempo.

M.F: Você tem que obedecer alguma coisa que vem de fora, da revista Bazaar, por exemplo,
“o editorial é assim, a foto de campanha é assim”

P.C: Eu tenho padrões...

M.F: Você tem um padrão que você precisa obedecer, mas já tem um jeitinho, um jeito
brasileiro?
102

P.C: Eu tenho padrões pra obedecer, se não, você não reconhece como Bazaar né, a revista
tem que ser reconhecível, tem que ser Bazaar, mas obviamente, completamente tropicalizada
porque o conteúdo dela, 90% do conteúdo é nacional.

M.F: Muda muito de lá pra cá?

P.C: Muda, muda sim. Muda o olhar, muda, porque a cultura de cada povo tá impressa em
cada revista de cada país. São 26 espalhadas pelo mundo e você percebe com rapidez da onde
é cada uma. É o que se espera senão você só ia ler uma, então é importante que isso sem
mantenha e é importante que o Brasil tenha uma Bazaar pra chamar de sua.

M.F: Você tem estilistas começando, que fez uma coleção (sic) ou que é uma promessa, que
de repente uma roupa vai pra capa ou já vai para um editorial, isso, nacional, brasileiro?

P.C: Sim, sim, acontece. Acho que o Vitorino Campos é um deles, não foram para a capa,
mas fizemos editoriais, temos apostas né, mas gostaríamos, inclusive, de ter mais apostas,
gostaria que o Brasil estivesse numa situação menos fragilizada, eu acho que vai ter que se
reencontrar, se reinventar, agora que o Brasil ficou globalizado, agora que todas as marcas
estão aqui, as nossas vão ter que se autoafirmar novamente. Nós temos boas marcas aqui, o
que acontece é que a roupa importada, ela é mais fácil que seja mais bem feita, é mais fácil
que ela tenha um tecido melhor, porque no Brasil, aqui a moda é mais recente, porque a mão-
de-obra daqui é menos especializada do que a mão-de-obra de lá, então para se fazer o
produto daqui de alto nível, é assim, de grande competência, de grande mérito para aquele
estilista que consegue isso, porque é difícil, as condições de trabalho são difíceis.

M.F: As revistas ditam a moda, os estilistas ditam a moda ou a rua dita a moda, quem dita a
moda?

P.C: Hoje em dia é uma mistura de tudo isso, já foi de outra forma. Já foi uma pirâmide muito
clara, mas hoje em dia já houve uma inversão absoluta e a moda já vem ditada por todo
mundo que tem uma influência, então, o esporte, o roqueiro, enfim, o cantor, seja lá quem for,
o astro, a moça do cinema, a atriz, a it girl, a blogueira, a revista, todo mundo, ela é
democrática no olhar. Aceita quem se sobressai. A moda também fascina as pessoas, porque
ela ajuda a pessoa a sonhar, a imaginar uma situação de glamour e essa situação a moda
vende, esse sonho a moda vende. Ela também obviamente reflete o que você vive hoje, como
a sociedade pensa, como as pessoas vivem, porque elas precisam , então a moda ela pode ser
vista por vários prismas, ela é fascinante sob todos eles.

M.F: Tem uma moda, uma tendência, que pode virar um clássico no futuro?

P.C: Eu vejo todos os clássicos (risos) sendo retrabalhados, então, de novo, a Dior está
trabalhando o New Look, você vê o grunge, dos anos 90, que voltou com tudo, então as
pessoas retrabalham se apoiando na nova tecnologia. São misturas e desmembramentos do
que a gente já conhece há muito tempo. Então, surgir um clássico é dificílimo de imaginar,
pode até... É sempre uma releitura né.

M.F: Patrícia, eu queria te agradecer por ter tirado um tempo para falar comigo, você é
superocupada, obrigado.

P.C: Obrigada você querido, foi um prazer.


M.F: Adorei.
103

P.C: Eu também.

M.F: O Universo da Moda fica por aqui, se você tem algum assunto que gostaria de assistir
aqui no programa mande e-mail pra gente, na semana que vem eu volto. Tchau.

ENTREVISTA 2
Concedida por Patrícia Carta ao programa Mundo Fashion, da Bandeirantes
(maio/2014)

Tatjana Ceratti: E agora eu vou entrevistar a Patrícia Carta, que sabe tudo, que tem anos
dentro desse universo fashion e agora cheia de novidades com essa revista que já está na sua
quarta edição e está bombando já, né? Tudo bem, querida?

Patrícia Carta: Tudo bem? Prazer estar aqui com você.

T.C: O prazer é todo meu, conta dessas novidades todas, a Bazaar é uma revista que já tem
uma tradição enorme no mundo inteiro, quero que você conte um pouquinho do DNA da
revista.

Patrícia Carta: É uma revista americana que tem mais de 140 anos, chegou agora no Brasil,
ela é da Hearst e a Carta Editorial tem a licença dela aqui no Brasil. Ela foi lançada em
outubro, a primeira edição, é uma revista de lifestyle e de moda basicamente. É uma revista
feminina de luxo.

T.C: Eu já sabia que era uma revista muito antiga, mas 140 anos, acompanhou todos os pilars
da moda mundial mesmo, né?

P.C: É, sem dúvida, tem uma tradição, ela une justamente a tradição, o glamour e sempre se
transformando e mostrando o que tem de mais interessante nesse mundo.

T.C: As revistas, as capas, o formato, sofrem esses modismos, e aonde vocês pesquisam isso?
Porque cada país tem um estilo, a revista tem uma propriedade, mas cada país tem um DNA,
uma história, como vocês pesquisam para trazer esse resultado sempre novo, sempre
vanguarda pra gente?

P.C: A gente olha pra tudo, com os profissionais daqui pra trazer o padrão de lá com a
identidade nacional. Então, nós trabalhamos com os profissionais brasileiros que também são
internacionais mas que já tem obviamente desejos que não são locais, acho que essas
barreiras, que essas fronteiras já terminaram faz tempo. Enfim, é o que a moda oferece, é o
que as pessoas gostam, e estar de olho para trazer antes e ser realmente um guia de moda para
as leitoras.

T.C: O Brasil está tão em evidência e junto com ele a nossa moda, os nossos designers, nós
temos profissionais, como você falou, que não perdem em mais nada para nenhum lugar do
mundo e são referências internacionais inclusive. Conta um pouquinho, você que está há
tantos anos na moda quando você começou e hoje, um parâmetro desse desenvolvimento,
como que era lá e como que é agora?

P.C: Embora a moda seja muito recente no Brasil, sempre tiveram bons movimentos, desde a
época da Fenit, depois outras organizações de moda, na época da Fenit, nos anos 60 e foi
104

caminhando com bons profissionais e com estilistas que sempre foram importantes. O que
aconteceu é que isso pulverizou, então hoje tem uma quantidade de pessoas que trabalham
com isso muito maior do que antes e aí também a comunicação possibilitou que todas as
pessoas terem o desejo de moda, querer usar moda, consumir, entender e exigir desse
mercado. Então, na verdade, acho que houve uma pulverização.

T.C: Você não acha que a nossa moda é muito cara? O que você acha que poderia ser feito
nesse movimento para ajudar os designers inclusive para competir lá fora, porque a gente não
consegue competir quando fala de história né, agregada à marca.

P.C: Realmente, é tudo muito caro aqui e a matéria-prima é cara, enfim, tudo o que eles
precisam para fazer é caro, os impostos, e fica tudo realmente, moda no Brasil é bastante cara
e talvez, talvez não, acho que basicamente por isso, porque é cara no mundo inteiro né, não é
só aqui, e acho que por isso que cresceu esse movimento do hi-low, porque a consciência da
pessoa, dela entender e ter informação de moda possibilita que ela tenha escolhas e faça
misturas sem precisar estar só apoiada no que aquela grife oferece, mas ela consegue misturar
peças e acho que fazer um guarda-roupa mais acessível e bem informado. Essa tendência hi-
low surgiu e se espalhou pelo mundo inteiro e a tendência é crescer.

T.C: O que cresce dentro dessa moda é até a compra consciente né.

P.C: Quanto mais você conhece e sabe o que é, você pode querer ter ou não, ou achar alguma
coisa parecida, sem obviamente dispensar o que é grife, é qualidade. O consumidor pelo
menos tem essa opção e poder oferecer o máximo possível é super bacana.

T.C: Vendo tudo isso, acompanhando tudo isso, porque estilo é uma coisa super divertida né,
você vai se conhecendo, vai provando, vai se lapidando, você vai ficando sempre melhor né,
com o tempo, quando a gente vai descobrindo o nosso jeitinho, nosso o que que fica bom.
Quando você começou, você acha que teve fase errada, como todo mundo, fala um pouquinho
sobre o estilo Patrícia.

P.C: Eu acho que sim, eu acho que levei um tempo até pra,, pra chegar num estilo assim bem
casual, básico, neutro, mas eu errei bastante no caminho disso.

T.C: O mais gostoso que eu acho é que não tem regras né e a regra única que eu conheço é
você se conhecer e ressaltar.

P.C: É, o que fica bom. De repente você usa coisas que você gostaria que ficasse bom mas
não está (risos)

T.C: Mas o importante é você estar aí provando e se sentir bem, porque quando você está se
sentindo bem, isso passa né?

P.C: É verdade, é isso mesmo.

T.C: Muito obrigada por essa entrevista, eu quero que você volte no Mundo Fashion para
contar essas novidades e quem sabe presentear o nosso telespectador com o making of dessa
revista maravilhosa.

P.C: Claro, com o maior prazer.

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