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A ÁREA DE LINGUAGENS E A EDUCAÇÃO FÍSICA: DESAFIOS E


POSSIBILIDADES PARA A PRÁTICA PEDAGÓGICA

Chapter · April 2023

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Luiz Gustavo Bonatto Rufino


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A ÁREA DE LINGUAGENS
E A EDUCAÇÃO FÍSICA:
DESAFIOS E POSSIBILIDADES
PARA A PRÁTICA PEDAGÓGICA
Luiz Gustavo Bonatto Rufino
Introdução:

A BNCC E A ÁREA DE LINGUAGENS

Toda atividade humana é mediada pela linguagem. Dessa forma, podemos


compreender que todas as representações que estruturam as produções culturais
dos seres humanos ao longo de sua história foram permeadas por processos de
linguagem. Para isso, precisamos ter uma compreensão ampliada de linguagem,
a qual perpassa tanto as formas de expressão verbal, oral e acústica/sonora, como
também outros modos, a exemplo da linguagem visual e motora, da escrita, da lin-
guagem corporal e, ainda, mais recentemente, da digital. Podemos concluir que o
ser humano é um ser de linguagem, pois foi através dela que ele pôde entender o
mundo, se comunicar com os outros e, dessa forma, tecer essa ampla teia de senti-
dos e significados que podemos denominar de cultura.

Nossos antepassados, no início do processo de desenvolvimento do homo


sapiens, por exemplo, só foram capazes de sobrevier e de povoar nosso planeta
porque foram paulatinamente construindo formas de relação em pequenos gru-
pos sociais. Para se relacionar, tiveram que construir formas de comunicação, ou
seja, estabelecer uma linguagem para que todos fossem capazes de reconhecer
mais ou menos os mesmos códigos e pudessem compreender minimamente um
ao outro. Isso surgiu muito antes das primeiras línguas faladas e escritas ao redor
do mundo e foi fundamental para que os pequenos grupos pudessem ir se consti-
tuindo como redes cooperativas e colaborativas que foram gradativamente assu-
mindo o protagonismo em diversas regiões e ampliando o número de integrantes,
constituindo-se assim as primeiras formas de organização em sociedade.

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Algumas representações gráficas sobre
as formas de comunicação encontradas
em caversas durante a pré-histórica

Fonte: Iustração livre de direitos - Stone age doodle set -


Ilustração de iStock / Getty Images Plus

Tamanha é a importância desta constituição da linguagem como elemento


fundante da cultura humana que não seria exagero afirmar que ao longo de
todo o século XX ela se tornou um dos objetos de investigação e de reflexão
mais importantes de diversos domínios sociais. Não só a Linguística, mas tam-
bém toda a fundamentação do Estruturalismo, como também a Semiótica, a
Psicanálise (particularmente a partir de Lacan), a Filosofia e a Sociologia, entre
outras áreas do conhecimento, com base em um amplo espectro de referências,
tiveram como ponto de partida a compreensão da linguagem. Esse processo
gerou novas formas de entendimento e uso desse conceito, as quais apresen-
tam muitas implicações dentro do campo educativo, particularmente dentro
do contexto dos processos de ensino e aprendizagem na escola.

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Evidentemente, documentos como a Base Nacional Comum Curricular –
BNCC, compreendem a importância da linguagem assumindo-a como eixo es-
truturante do currículo escolar. De acordo com esse documento institucional,
as diferentes linguagens podem ser classificadas dentro de uma mesma área,
a qual apresenta competências específicas e partilha processos semelhantes
de estrutura e constituição. Cabe salientar que além da área das Linguagens, o
documento apresenta ainda as seguintes áreas: Matemática, Ciências da Natu-
reza, Ciências Humanas e Ensino Religioso.

Essa divisão em diferentes áreas, sendo uma delas a de Linguagens, con-


forme apresentado na BNCC, é um legado que advém também de documentos
e de proposições anteriores. Inicialmente, procuraram fundamentar propostas
de organização curricular para o Ensino Médio, mas nos últimos anos temos vis-
to uma ampliação dessa forma de organização para a estruturação educacional
brasileira como um todo.

Assim, segundo a BNCC, a linguagem medeia diferentes práticas sociais,


possibilitando que as pessoas interajam consigo mesmas e com os outros e,
a partir disso, possam se constituir como sujeitos sociais. Por isso, dentro da
área de Linguagens, a proposta é compreender que, por meio dessas múltiplas
interações, estão imbricados tanto conhecimentos e saberes diversos, quanto
também atitudes e valores culturais, morais e éticos.

De acordo com a BNCC, a grande área de Linguagens é composta dos se-


guintes componentes curriculares: Língua Portuguesa, Língua Inglesa, Arte e
Educação Física. Dependendo da visão que temos sobre essa área denominada
de Linguagens, fica clara a sua relação com os componentes da Língua Portu-
guesa e Inglesa. Com relação às artes, essa organização pode suscitar algumas
dúvidas, embora sua relação como uma forma de linguagem humana seja bas-
tante evidente.

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Componentes curriculares Língua
relacionados a Área de Linguagens Portuguesa
segundo a BNCC
Língua
Inglesa
Área de
BNCC
Linguagens
Arte

Educação
Fonte: BNCC (2018).
Física

Todavia, quando pensamos na Educação Física, essa relação pode parecer


um pouco mais difícil. À primeira vista, dependendo de nossas crenças e com-
preensões prévias, pode parecer até mesmo um equívoco categorizar a Edu-
cação Física como pertencente a grande área das Linguagens, fato que pode
incitar dúvidas e questionamentos que precisam ser clarificados para que haja
o desenvolvimento da prática pedagógica nesse componente curricular.

Dessa forma, o objetivo do presente texto é compreender e analisar o lugar


da Educação Física dentro da área de Linguagens segundo a BNCC e, a partir
disso, apresentar propostas de compreensão e exemplos práticos que possam
contribuir com os processos de ensino e aprendizagem na escola, bem como
com as práticas pedagógicas de professores e professoras desse componente
curricular no Brasil.

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A EDUCAÇÃO FÍSICA DENTRO
DA ÁREA DE LINGUAGENS
Assim como em documentos anteriores, a BNCC, como vimos, considera a
Educação Física como parte integrante da grande área de Linguagens. É muito im-
portante frisar que esse movimento de relação desse componente curricular com
essa área específica advém de pelo menos vinte anos. Isso porque durante o pro-
cesso de construção de alguns documentos institucionais de caráter nacional, bem
como de outros, em esferas estaduais e municipais, além de vários livros didáticos
e instrucionais, essa relação vem sendo evidenciada cada vez mais.

Para citarmos como exemplo de referência, quiçá de pioneirismo nessa em-


preitada, temos os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, desen-
volvidos em um momento no qual a Educação Física esteve vinculada à grande
matriz denominada de “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”. Posteriormente,
outros documentos, a exemplo dos PCN+, objetivaram, de modo muito intensifi-
cado, estabelecer relações entre Educação Física e linguagem. A partir de então,
inúmeros manuscritos, como as Orientações Curriculares Nacionais, Diretrizes
Curriculares Nacionais, diversos currículos estaduais, entre outros, seguiram essa
tendência, muitas vezes sem que houvesse uma atenção maior em compreender
como se desenvolver efetivamente essa relação e quais os sentidos e significados
atribuídos à vinculação da Educação Física dentro dessa área em específico.

Podemos considerar que essa inserção da Educação Física dentro da área de


linguagens é talvez uma das maiores transformações na história recente desse
componente, tendo em vista sua inserção no contexto escolar, ao menos em ter-
mos de políticas públicas. Trata-se de uma mudança de compreensão que pode ser
classificada como uma transformação paradigmática. Isso porque, historicamente,
a Educação Física apresentou forte relação com as áreas de conhecimento que a
classificavam dentro do campo da Biologia (ou biodinâmica). Desse modo, seria
natural pressupor que tal componente estaria marcadamente ligado às Ciências da
Natureza, por exemplo.

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Contudo, desde os documentos supracitados tem-se uma outra compreensão
de Educação Física, alicerçada muito mais em domínios socioculturais e pedagógicos
do que apenas biológicos. Não que toda a relação entre a Educação Física e as ciên-
cias biológicas, tais como a Fisiologia, a Bioquímica, a Biomecânica, a própria Biologia,
entre outras, não seja fundamental. Contudo, entendeu-se, com o passar do tempo,
que esse componente, sobretudo dentro da escola, não deveria se resumir apenas
aos seus aspectos biológicos. Entender que a Educação Física é, antes de tudo, uma
forma de linguagem é uma mudança muito grande e extremamente importante,
fato que nos leva à necessidade de refletir mais sobre isso.

Exemplo: quando realizamos uma atividade de corrida dentro de alguma uni-


dade didática de atletismo, por exemplo, provocamos uma série de adaptações fi-
siológicas na capacidade cardiorrespiratória, na velocidade e até mesmo na potência
muscular de nossos alunos e alunas. Porém, para além disso, estamos nos movimen-
tando, sentindo uma série de sensações e sentimentos: medo, ansiedade, dúvida se
vamos conseguir, tentativa de dar o melhor, etc. Além disso, trata-se de uma ativida-
de individual, mas que requer valorizar o outro e respeitá-lo. Estamos também apren-
dendo mais sobre o próprio atletismo e sua história ao experienciar, na prática, a
corrida contextualizada dentro de uma proposta pedagógica e curricular específica.
Desse modo, não basta, durante nossas aulas, olhar somente para as questões bioló-
gicas, mas, sobretudo, compreender que essa corrida pode ser compreendida como
uma forma de linguagem que compartilha um código muito específico, repleto de
sentidos e significados.

CORRIDA:
Gesto corporal com
sentidos e significados
para além das questões
fisiológicas

Fonte: Luiz Gustavo Bonatto Rufino (2019).


Arquivo pessoal.

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Para conseguir chegar a esse nível de compreensão da Educação Física como
uma forma de linguagem humana foi necessário muito desenvolvimento dentro
do campo pedagógico e científico. Foram muitas décadas de reflexões e de um tra-
balho árduo dos pesquisadores, professores de escolas, fazedores de políticas pú-
blicas e aberturas representadas tanto pela ida de pessoas para o exterior, quanto
pelo recebimento de uma importante parcela da produção acadêmica e também
de pesquisadores internacionais que vieram ao nosso país, especialmente a partir
do final da década de 1980.

Assim, de acordo com a BNCC, a Educação Física pode ser compreendida


como o componente curricular que tematiza as diferentes práticas corporais
que foram historicamente produzidas pelos grupos sociais ao longo da história.
Para isso, compreende-se que o movimento humano é parte integrante da cultura
e, por isso, é histórica e socialmente produzido e contextualizado. Dessa forma, po-
demos inferir que as diferentes sociedades foram, ao longo da história, produzindo
uma forma específica de cultura, denominada de cultura corporal de movimen-
to, alicerçada em práticas tais como as ginásticas, as danças, as lutas, os esportes,
as práticas corporais de aventura e as brincadeiras e jogos. Tais práticas foram de-
senvolvidas a partir de diferentes modos de codificação e significação social, com
finalidades distintas e, assim, produziram diferentes formas de comunicação e ex-
pressão cultural.

Nesse sentido, podemos considerar que as práticas corporais são modos de


expressão de uma forma muito específica de linguagem, a qual está intrinseca-
mente ligada ao contexto no qual foi produzida. A prática de uma determinada
luta de origem oriental, por exemplo, utilizada para a preparação para uma guerra
no passado, pode ter um sentido e um significado totalmente distintos de uma
prática de luta esportiva nos Jogos Olímpicos, como o judô. Apesar de poderem
até ter uma mesma raiz em comum, historicamente foram produzidos sentidos dis-
tintos de acordo com o contexto no qual tais práticas se inseriram.

Por isso, segundo a BNCC, durante as aulas de Educação Física as diferentes


práticas corporais devem ser compreendidas como fenômenos culturais e, por isso,
dinâmicos, diversificados, pluridimensionais, singulares e também contraditórios.

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Quando pensamos no fenômeno futebol, por exemplo, temos exatamente essas
qualificações. Trata-se de uma prática cultural, uma vez que é parte integrante da
cultura humana. É dinâmica, já que foi se transformando historicamente. É diver-
sificada e pluridimensional, já que obedece a interesses distintos quando pensa-
da nos moldes de uma “pelada na rua” ou de um campeonato oficial na Copa do
Mundo. É também singular, já que os sentidos atribuídos ao futebol mudam de
pessoa para pessoa (uns podem amar, outros não gostar, e assim por diante). E,
por fim, não deixa de ser um fenômeno contraditório: estimula a saúde ou a vio-
lência? Deve ser praticado por quem? Quais são as condições para a prática? Uma
única prática corporal como o futebol, por exemplo, agrega um amplo conjunto de
formas de expressão cultural que merece ser devidamente tematizado na escola,
durante as aulas de Educação Física.

FUTEBOL:
exemplo de prática corporal que pode ser compreendida
como um fenômeno e uma expressão cultural

Fonte: Luiz Gustavo Bonatto Rufino (2018). Arquivo pessoal.

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Por detrás de toda essa fundamentação, está a ideia de que essa forma de enten-
dimento da Educação Física, fortemente ligada a compreensão de cultura corporal
de movimento e de práticas corporais, é uma forma de linguagem muito específica.
Assim, podemos compreender que as práticas corporais e sua multiplicidade de sen-
tidos e de significados operam como formas de comunicação do ser humano consi-
go mesmo, com os demais e também com o mundo como um todo.

Apesar de todo o potencial pedagógico dessa perspectiva, sua compreensão


ainda carece de um olhar mais atento por parte da literatura acadêmica específica,
como também por meio de muitos currículos oficiais. Mesmo durante a argumenta-
ção desenvolvida na BNCC essa proposição muitas vezes não fica evidente, de modo
que pode incitar dúvidas e questionamentos de parcela significativa de professores
e professoras de Educação Física engajados em contextos específicos e em práticas
pedagógicas inovadoras e fundamentadas. Vejamos então algumas possibilidades
de relação que possam contribuir com o desenvolvimento da prática pedagógica
desse componente curricular, bem como da escola como um todo.

EDUCAÇÃO FÍSICA E LINGUAGENS:


possibilidades de desenvolvimento
durante a prática pedagógica
Todavia, quando pensamos na Educação Física, essa relação pode parecer um
pouco mais difícil. À primeira vista, dependendo de nossas crenças e compreen-
sões prévias, pode parecer até mesmo um equívoco categorizar a Educação Física
como pertencente a grande área das Linguagens, fato que pode incitar dúvidas e
questionamentos que precisam ser clarificados para que haja o desenvolvimento
da prática pedagógica nesse componente curricular.

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Dessa forma, o objetivo do presente texto é compreender e analisar o lugar
da Educação Física dentro da área de Linguagens segundo a BNCC e, a partir disso,
apresentar propostas de compreensão e exemplos práticos que possam contribuir
com os processos de ensino e aprendizagem na escola, bem como com as práticas
pedagógicas de professores e professoras desse componente curricular no Brasil.

Movimento e gesto corporal


produzido como forma
de expressão da cultura
compartilhando linguagem

Fonte: Luiz Gustavo Bonatto Rufino (2018).


Arquivo pessoal.

Nessa imagem é possível compreender que os alunos e alunas estão compar-


tilhando uma mesma forma de interação a partir de uma forma de movimento
muito específica. Não se trata de qualquer movimento, mas uma forma de movi-
mentar-se com significado. Podemos dizer que eles estão se-movimentando, pois
o que é mais importante de analisar nessa imagem não é o movimento corporal
em si e sim as pessoas que estão se-movimentando, isto é, os alunos e alunas.

Evidentemente, os alunos não estão necessariamente falando uns com os ou-


tros, isto é, não estão expressando-se por meio da linguagem verbal oral ou escrita,
tradicionalmente representadas em nossa cultura. Porém, podemos considerar que
há uma forma muito específica de comunicação na imagem supracitada. Os alunos
e alunas estão compartilhando formas muito semelhantes de interação e, a partir
delas, expressando-se de diferentes formas. Podemos dizer que a linguagem cor-
poral não deixa de ser uma forma de linguagem e, por isso, está substancialmente
vinculada à Educação Física.

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Assim, é possível afirmar que a linguagem corporal apresenta uma gramática
de interação própria. Aliás, é muito comum dizer que nosso corpo “fala”. Às vezes
dizemos que estamos bem e alegres quando nosso corpo se mostra para baixo e
entristecido. Outras vezes, falamos que não estamos interessados em algo, mas
nosso corpo se movimenta para se aproximar e ouvir melhor. A todo momento, há
formas de expressão corporal e de interação com os movimentos que demonstram
que não precisamos necessariamente falar para nos comunicar. Um olhar, um ges-
to, um silêncio ou uma careta podem ser formas mais claras, diretas e efusivas do
que a mera expressão vocal ou escrita.

Infelizmente, não temos o costume de valorizar a linguagem corporal como


deveríamos fazer. Ora, sendo uma forma de linguagem, porque não dedicarmos
atenção a ela durante o processo de ensino e aprendizagem na escola? Da mesma
forma que buscamos nos alfabetizar na linguagem oral e escrita, por que não foca-
lizamos nos alfabetizarmos também na linguagem corporal?

A linguagem corporal é, muitas vezes, alvo de pouca atenção dentro do âmbito


escolar. Com exceção do componente curricular de Educação Física e em alguns pou-
cos momentos nos quais o corpo se expressa de forma mais livre, há pouco espaço
para o entendimento e a reflexão sobre como nos sentimos, agimos e nos movimen-
tamos. Não trazemos muito para consciência essa forma de linguagem que parece
ficar, muitas vezes, escondida nas entrelinhas de nossa prática pedagógica.

Inicialmente, entender a linguagem corporal é procurar compreender como


os alunos e as alunas vão atribuindo diferentes significados aos movimentos expe-
rienciados. Posteriormente, tem-se a busca pelo reconhecimento dos sentimentos
e das sensações que são construídos ao longo desse processo. Há ainda a necessi-
dade de despendermos atenção aos valores e atitudes que advêm desse processo.
Por fim, podemos atribuir novos sentidos e novos significados a esses mesmos mo-
vimentos, transformando essa forma de linguagem.

Um exemplo de atribuição de sentidos e significados dentro da linguagem


corporal é o sentido de denotação e conotação. A denotação envolve o sentido
real de um determinado signo enquanto a conotação apresenta um sentido amplo

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e figurado. Assim, o mesmo movimento (por exemplo: um salto mortal de costas)
pode ter como sentido real (denotação) o movimento de ginástica artística. Porém,
esse mesmo salto pode ser usado, por exemplo, na comemoração de gol no fute-
bol a partir de um uso específico ligado à ideia de conotação, pois trata-se de uma
nova simbologia atribuída ao mesmo gesto corporal.

A ideia de gesto é central nesse processo. Isso porque o gesto pode ser enten-
dido como o movimento com determinado sentido e significado. Um movimento
não necessariamente apresenta um sentido claro e evidente. Podemos ter espas-
mos, movimentos diversos como sentar e levantar-se, arremessar algo na lata do
lixo sem necessariamente estarmos preocupamos com os sentidos desse movi-
mento. O gesto, por sua vez, é quando esse movimento é imbuído de sentidos.
Um arremesso de basquete é um gesto específico, usado para um determinado
fim, em uma dada circunstância, dentro de um contexto e assim sucessivamente.
Da mesma forma que fazer um agachamento na academia é um gesto específico,
diferente de simplesmente sentar ou levantar-se do sofá, por exemplo.

É muito interessante compreendermos também como um mesmo gesto pode


ser usado para diferentes fins. Isso acontece o tempo todo dentro do universo das
práticas corporais. Vejamos um exemplo:

O mesmo movimento de salto usado a partir


de gestos corporais com diferentes finalidades

Fonte: Luiz Gustavo Bonatto Rufino (2019). Arquivo pessoal.

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Esse movimento de salto está muito presente em diversas práticas cor-
porais. Porém, apresenta finalidades diferentes de acordo com o contexto. No
primeiro caso, trata-se de um salto para transpor um determinado obstáculo,
dentro de uma unidade didática de salto em altura, ligada à prática corporal do
atletismo (esporte de marca). No segundo caso, trata-se de um salto voltado
para a prática da ginástica de demonstração. Analisando-se do ponto de vista
motor, poderíamos ver uma série de questões como base, propulsão, eficiência,
aterrisagem e finalização do movimento, etc. Porém, dentro da ideia de lingua-
gem devemos entender qual a finalidade desse gesto, se ele atendeu ao ob-
jetivo proposto, se estava ligado à prática corporal devida e, claro, como cada
pessoa que se-movimentou ficou antes, durante e após essa experiência: houve
medo e receio no início? Houve prazer e contentamento durante o processo?
Ao final, houve um conjunto de aprendizagens significativas a partir dessa vi-
vência corporal? Toda essa ideia mais ampla está sumariamente ligada ao cam-
po das linguagens.

Dessa forma, a importância da compreensão da Educação Física dentro do


campo de Linguagens é fundamental. Além de sua importância para toda a for-
ma de desenvolvimento dos processos de ensino e aprendizagem por meio da
tematização das práticas corporais segundo a BNCC, existe uma série de possi-
bilidades de relação entre esses conhecimentos com os demais componentes
curriculares da área de Linguagens. Assim, essa compreensão permite desen-
volvermos formas mais inovadoras e significativas de ensinar e de aprender as
línguas portuguesa e inglesa e também as artes. Existem muitas possibilidades
de trabalho interdisciplinar que têm como eixo a tematização das diferentes
formas de linguagem.

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DOIS EXEMPLOS PRÁTICOS:
a relação da educação física
na área das linguagens
De posse de toda essa contextualização e valorização da importância entre se
compreender a Educação Física dentro da área de Linguagens, vamos nesse mo-
mento procurar entender alguns exemplos práticos de unidades didáticas que apre-
sentam como principal característica o desenvolvimento da linguagem corporal em
suas múltiplas dimensões. Trata-se de alguns projetos desenvolvidos por mim em
diferentes faixas etárias ao longo dos anos como professor de escola pública e que
podem contribuir com a clarificação e a elucidação de propostas interativas dentro
do campo da Educação Física escolar. Vamos lá?

Exemplo 1:
O corpo fala! Compreensões sobre linguagem corporal
na Educação Física e suas relações com diferentes
componentes curriculares

Fonte: Luiz Gustavo


Bonatto Rufino (2019).
Arquivo pessoal.

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Tema principal: Relação entre a linguagem corporal e suas possibilidades
no desenvolvimento das competências socioemocionais durante as aulas de
Educação Física.

Objetivo: Compreender e analisar algumas formas de manifestação da lin-


guagem corporal durante as aulas de Educação Física e suas relações com o
desenvolvimento das competências socioemocionais.

Faixa etária e ano de escolarização: Alunos do ensino fundamental –


anos iniciais (entre sete a dez anos, aproximadamente).

Breve explicação e desenvolvimento do projeto: Inicialmente, contextua-


lizar as diferentes formas através das quais podemos nos comunicar quando não
utilizamos a fala e a escrita. Depois, tematizar algumas emoções e sentimentos
e suas manifestações no corpo: pedir aos alunos para descreverem, por meio de
dinâmicas, diferentes sentimentos, sem poder falar: alegria, tristeza, raiva, frus-
tração, surpresa, medo, etc. Posteriormente, é chegada a hora de envolvimen-
to em algumas vivências: desenvolver atividades de mímica, jogos de expressão
corporal e desenho da silhueta do corpo em diferentes ambientes. Refletir sobre
as diferentes formas de linguagem e sua relação com a Educação Física.

Número de aulas: Entre oito a dez aulas, em média.

Registro e avaliação: Importante haver registro do processo desde o iní-


cio. Para isso, pedir relatos escritos e também desenhos aos alunos, anotações
das atividades práticas, etc. Registrar imagens e fotos das turmas e, ao final,
apresentar essas imagens para os próprios alunos para que eles se analisem e
relembrem o processo. Se possível e necessário, pode ser sugerida, ainda, uma
avaliação teórica breve e uma atividade avaliativa em grupo (procurar se co-
municar sem ser por meio da escrita e da fala com um colega). Pode-se ainda
incluir diferentes exemplos de formas de linguagem corporal, a exemplo da
proposta de tematização breve da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS).

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Exemplo 2:
As diferentes formas de comunicação
nos jogos esportivos coletivos

Fonte: Luiz Gustavo


Bonatto Rufino (2019).
Arquivo pessoal.

Tema principal: Compreender a consciência tática nos jogos esportivos


coletivos de invasão por meio das formas de comunicação com os parceiros de
equipe e de contracomunicação com os colegas da outra equipe.

Objetivo: Tematizar o ensino da consciência tática nos esportes coletivos


de invasão por meio da relação entre comunicação e contracomunicação pre-
sente nessas atividades e suas possibilidades para a compreensão da lógica
interna nessas práticas corporais.

Faixa etária e ano de escolarização: Alunos do ensino fundamental –


anos finais (entre onze a quatorze anos, aproximadamente).

Breve explicação e desenvolvimento do projeto: Inicialmente, é possível


mostrar vídeos de modalidades que representem os jogos esportivos coletivos
de invasão (handebol, basquetebol, futebol/futsal, etc.). O que elas apresentam
de características em comum? Depois, explicar a ideia de comunicação e con-
tracomunicação: nas modalidades coletivas, é preciso desenvolver formas de
comunicação com os colegas de time (não necessariamente por meio verbal) e

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de contracomunicação com os colegas do outro time (para que os oponentes
não entendam o que o time planeja fazer). Essa ideia é fundamental e deve ser
exemplificada e vivenciada na prática. Apresentar atividades e disputas diver-
sas 1X1 e depois ir aumentando a complexidade por meio de diferentes formas
de jogos reduzidos: 2x2, 2x1, 3x2, 3x3 e assim por diante. Estimular os alunos
a criarem formas de comunicação com os colegas (códigos semelhantes) e de
contracomunicação com os outros. Usar o espaço (quadra, por exemplo) e divi-
di-lo em diferentes espaços de jogo, reduzindo a dimensão para que haja mais
interação (por exemplo: em uma quadra tradicional é possível criar ao menos
três ou cinco miniquadras para que as equipes (duplas, trios, etc.) realizem os
jogos diversas vezes. Ao final, explicar as ideias de consciência e de tática, po-
dendo fazer uso de lousas e de quadros e também de vídeos para isso.

Número de aulas: Entre seis a oito aulas, em média.

Registro e avaliação: é possível realizar avaliações iniciais, para que se


compreenda os conhecimentos dos alunos com relação ao tema jogos cole-
tivos de invasão. Depois, solicitar registros diversos que permitam a reflexão
sobre os jogos reduzidos desenvolvidos na prática. Ao final, é possível realizar
seminários em grupo, avaliações teóricas individuais e uma última proposta
interessante: gravação de jogos (pode ser o dos próprios alunos, ou outro já
disponível online) para que os alunos analisem a consciência tática e a ideia de
comunicação e contracomunicação por vídeo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo principal do presente texto foi primeiramente buscar compreender
como a Educação Física pode ser compreendida e desenvolvida dentro da área
de Linguagens, particularmente a partir de sua contextualização segundo a BNCC.
Posteriormente, buscamos também exemplificar essa relação por meio de exem-
plos práticos que destacassem as possibilidades de relação entre linguagem e Edu-
cação Física.

Para isso, foi fundamental tecermos um breve relato histórico que pudesse
servir como pano de fundo para essa ideia. Vimos que nem sempre essa relação en-
tre Educação Física e linguagem foi clara e que nos últimos anos ela se intensificou
a partir de diversas políticas públicas, estudos científicos e práticas pedagógicas
de professores e professoras inseridos nos mais diversos e adversos contextos de
intervenção profissional em nosso país. Aqui cabe um destaque: apesar dessa pro-
posição de relação ter surgido dentro de um contexto específico, no caso, o Ensino
Médio, ela atualmente se estendeu para os demais níveis de ensino que compõem
a Educação Básica em nosso país. Assim, o que atualmente surgiu como uma for-
ma de organização do Ensino Médio em diferentes áreas, compreende a forma de
organização e articulação de nosso processo educativo, referendado pela BNCC.

Vimos também que a ideia de relacionar a Educação Física dentro da área de


Linguagens apresenta um potencial muito interessante dentro do contexto peda-
gógico. Todavia, ela também incita diversos questionamentos e dúvidas. Apresen-
tamos algumas dessas problemáticas e ilustramos formas concretas e exemplos
práticos de como podemos compreender e relacionar esse componente curricular
nessa área em específico.

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Finalmente, tivemos a apresentação de uma série de exemplos práticos e
também de ao menos duas sequências didáticas que tornam essa relação possível
e permitem compreender formas de vinculação da Educação Física no campo das
Linguagens. Para isso, a ideia de linguagem corporal e de suas muitas possibilida-
des pedagógicas é um item que precisa ser mais explorado não apenas nesse com-
ponente curricular, mas pela escola como um todo.

Sendo assim, podemos concluir que a área de Linguagens é bastante ampla


e muito importante. Como parte da expressão da cultura, a linguagem é uma for-
ma de nós nos relacionarmos com nós mesmos, com o mundo e com os outros de
diferentes formas. Ao colaborar com esse processo de apropriação da cultura, por
meio das práticas corporais e da linguagem corporal, a Educação Física se consoli-
da como fundamental dentro do currículo escolar. Os exemplos aqui tratados são
apenas algumas sugestões, pois muitas outras formas de compreender essa rela-
ção entre Educação Física e Linguagem são possíveis e merecem ser desenvolvi-
das. Afinal de contas, como toda forma de linguagem, esse componente curricular
possibilita não apenas que nos comuniquemos, mas que possamos nos inserir na
cultura humana, apropriando-nos dela para compreendê-la, vivenciá-la e, ainda,
transformá-la.

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CURRÍCULO - Luiz Gustavo Bonatto Rufino

Graduado em Educação Física (bacharelado e licenciatura) e em Pedagogia. Pós-


-graduado em Docência do Ensino Superior. Mestre em Desenvolvimento Humano
e Tecnologias e Doutor em Ciências da Motricidade pela Unesp Rio Claro – SP. Pos-
sui experiência profissional na docência em todos os níveis de ensino, bem como
em processos de formação inicial e continuada, produção de livros e outros mate-
riais didáticos e assessorias e consultorias pedagógicas/educativas. Atua nas redes
públicas municipais de Paulínia – SP e Campinas – SP e no Centro Universitário de
Jaguariúna (Unieduk). Em 2019, foi Vencedor do Prêmio Educador Nota 10, com o
projeto “Ressignificando as visões sobre o corpo”.

Contato: https://www.instagram.com/luizgustavobonattorufino/

21
na rede pública

www.edocente.com.br

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