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ComCiência n.

157 Campinas Apr 2014

Psicologia do esporte: a relação entre corpo e mente dentro e fora de quadra

Keila Knobel e Juliana Passos

Reportagem

Tudo que um atleta precisa é de preparo físico e técnico, boa alimentação, disciplina e
muita determinação, certo? Errado. Se o preparo psicoafetivo estiver aquém do
condicionamento físico e técnico há o risco de um grande talento sucumbir à forte
pressão do mundo dos esportes ou, ainda, da exigência de seu próprio mundo interior, e
é aí que entra o psicólogo do esporte.

Atualmente é comum o enfrentamento de equipes bem preparadas, nas quais cada ponto
é disputado no detalhe. Assim, frente ao equilíbrio técnico de atletas e de equipes de alto
rendimento, o diferencial nos momentos de decisão pode estar no equilíbrio emocional.
Equilíbrio para conviver com a dor e com a superação, com os companheiros de equipe
e com os rivais, com a vitória e com a derrota, com a consagração e com o
esquecimento. Para a recém bicampeã brasileira de vôlei de praia, Agatha Rippel, 30
anos, o preparo psicológico iniciado há um ano fez a diferença na conquista do último
título. “As equipes estão muito parelhas, todas em seu limite de treinamento, então esse
preparo faz toda a diferença”, diz.

A psicologia do esporte tem como objetivo compreender e lidar com os fatores


cognitivos, motivacionais e emocionais envolvidos na prática do exercício físico, e está
cada vez mais presente no esporte profissional e amador. Motivação, personalidade,
violência, liderança, dinâmica de grupo, cognição e emoção são alguns dos temas que
permeiam a pesquisa dessa ciência. A jogadora lamenta o que considera uma falta de
visão da maioria dos atletas brasileiros: “É uma pena que alguns não busquem esse
auxílio, ou por serem leigos ou por não achar importante. Isso precisa melhorar muito
no Brasil. Eu vejo uma grande diferença no meu time”, conta.

A “caçula” das especialidades em psicologia no país nasceu nos anos 1950. O pioneiro
foi João Carvalhaes (1917-1976), que atuou no São Paulo Futebol Clube em 1954 e
em 1958 integrou a comissão técnica da Seleção Brasileira de Futebol, campeã mundial
na Suécia. Naquele ano a psicologia ganhou notoriedade e foi considerada uma das
razões para que a seleção trouxesse a taça dourada para casa. Houve também quem
criticasse sua presença por acreditar que Carvalhaes fosse interferir na escalação do
time, deixando no banco os atletas que “tremeriam” num momento de decisão.

Ainda hoje a psicologia do esporte é, por vezes, mal interpretada, mesmo no meio
esportivo. “Há muita desinformação. É o técnico quem decide se o atleta participa ou
não de uma competição”, afirma Kátia Rubio, professora da Escola de Educação Física
e Esporte da USP, presidente da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte
(Abrapesp) e autora de diversos livros na área. Ela explica que, assim como o treinador
físico tem a obrigação de informar ao técnico qual é o estado físico do atleta, é um dos
papéis do psicólogo reportar o estado mental dos membros do time, o que não significa,
de forma alguma, repassar confidências do atleta, atitude antiética.

João Ricardo Cozac, presidente da Associação Paulista de Psicologia do Esporte,


professor do centro de Consultoria, Estudo e Pesquisa da Psicologia do Esporte (Ceppe)
e doutorando do Laboratório de Psicossociologia do Esporte da USP, já atuou com
jogadores de futebol, paraquedistas, ginastas, tenistas, árbitros de futebol e hoje trabalha
com o piloto Felipe Massa. Ele explica que todos os atletas, em menor ou maior escala,
precisam lidar com pressão, decisão rápida, controle de agressividade, fluxo cognitivo e
concentração.

Sobre a aplicação no futebol brasileiro, apesar da importância extrema, Cozac aponta


que a psicologia ainda está aquém de seu potencial. E com um agravante, pois ao
receber a Copa do Mundo, a pressão, a cobrança e o assédio sobre a equipe serão
enormes. “Estamos muito atrasados em termos de preparação mental em relação ao
resto do mundo. Times como Milan, Ajax e Real Madrid e as seleções da Espanha e
Itália, por exemplo, têm psicólogos nas equipes, além de departamentos inteiros de
psicologia para cada categoria. A psicóloga Regina Brandão trabalha há anos com o
técnico Felipão, mas o enfoque é na elaboração de perfis psicológicos que possam vir a
beneficiar suas escolhas, e não na orientação individual, na promoção do preparo
psicológico do atleta. É uma pena, pois o que está sendo feito é pouco perto do que as
outras equipes estão recebendo”, afirma.

Momentos críticos

Além de ajudar o esportista a enfrentar desde os desafios diários até as grandes


competições, o psicólogo do esporte também é fundamental em momentos delicados e
críticos como mudanças de categoria, profissionalização, retorno financeiro, fama,
assédio, acidentes ou lesões, recuperação e aposentadoria. E, principalmente, no início
da carreira.

Quem tem experiência com categorias infanto-juvenis é a psicóloga clínica e do esporte


e doutora em psicologia pela USP Samia Hallage, que trabalhou durante mais de dez
anos com as premiadas categorias de base Seleção Brasileira de Vôlei Feminino de
Quadra. Segundo Hallage, além dos desafios de qualquer atleta, as meninas das
categorias infanto-juvenil e juvenil estão vivendo uma fase que, por si só, já é de muitas
transformações, a adolescência. Ela diz que sempre foi muito bem recebida por
esportistas, equipe técnica e dirigentes. “O atleta percebe o quanto a psicologia é
importante”, completa.

O atleta da Seleção Brasileira de Handebol Arthur Patrianova, 20 anos, começou a jogar


profissionalmente aos 16 anos, quando saiu de Itajaí (SC) para defender o time paulista
Pinheiros. Lá, o armador teve os primeiros acompanhamentos para enfrentar as
mudanças em sua carreira, afinal, sair da seleção de base para defender a seleção
principal e se tornar o destaque do último mundial, em 2013, não é algo trivial. Ele
confessa que ainda não se acostumou com sua nova vida. "As coisas aconteceram
rápido. É estranho, eu olho para trás, quando via os jogadores da seleção pela TV. Agora
eu jogo com eles e tenho as mesmas responsabilidades. Percebo que sou muito novo e
tenho muito o que aprender", diz.
Ano passado embarcou para a Espanha para integrar o time Nathurhouse La Rioja. Feliz
com sua posição atual, ele comenta que a liga espanhola é bem mais competitiva que a
brasileira, o que significa treinamentos físicos mais intensos, muito mais jogos, menos
tempo para descanso e maiores chances de se lesionar. Patrianova sente falta do preparo
psicológico que tinha no Brasil, com acompanhamento individual, pois na Espanha é
feito coletivamente. "Acho que em times o acompanhamento individual funciona
melhor, enquanto na seleção, em que o sentimento de unidade precisa ser maior, a
preparação em grupo funciona bem", compara. Patrianova acredita que, como a troca de
time por parte dos jogadores é constante no país, não há interesse em fazer um trabalho
individual de longo prazo.

Dor e superação

Outro aspecto de muita importância na atuação do psicólogo do esporte está ligado à


dor, tão intrinsecamente presente na vida de um atleta. Agatha Rippel, por exemplo,
começou a jogar vôlei com 12 anos e teve sua primeira lesão séria no joelho aos 15
anos. “Costumava ter problemas no menisco, mas em até três horas ele voltava ao lugar.
Até que um dia tive que fazer cirurgia”, diz. A dor a acompanha até hoje, 15 anos
depois, mas nunca foi motivo para que desistisse. “Jogo com dor constantemente, mas
busco o que eu posso para amenizá-la, com trabalhos específicos e bons profissionais. O
atleta vive no limite. Nós estragamos e os médicos arrumam. O atleta é isso”, afirma.
Ela conta que o tema é um tabu entre os atletas, que preferem não comentar. “Muitas
vezes treinamos junto a outras duplas, mas ninguém comenta. Inclusive alguns treinam
escondidos para ninguém saber de sua dor”, completa.

O risco de uma lesão grave aumenta durante as competições e se na quadra a dor é


suportada por conta da liberação de endorfina que traz a falsa sensação de que o corpo
está bem, lá fora a complicação pode ser maior. “A dor é uma doença e deve ser tratada,
porque o excesso trará consequências posteriormente. Mas o médico não pode barrar o
atleta e sua vontade de jogar, então alertamos para deixá-los tomar a decisão. Já tive
pacientes que me disseram que preferiam comprar um joelho novo a parar de jogar”,
conta o diretor da Sociedade Brasileira de Medicina do Esporte, Ricardo Nahas.

O maratonista Adriano Bastos, 36 anos, ao final de 2003, quando se preparava para


tentar o bicampeonato na Maratona da Disney, teve uma pubeíte (inflamação no púbis)
gravíssima que o deixou seis meses afastado dos treinos. Retomou aos poucos e hoje
pode se gabar de ter sido oito vezes o campeão da competição. O fundista acredita que
um dos motivos da bem sucedida recuperação foi o tempo de descanso. "Infelizmente a
maioria dos esportistas acaba ultrapassando seus limites e não se permite o tempo
necessário de recuperação. A rotina da dor, lesões e retorno à prática antes do tempo é
comum tanto para atletas que não têm patrocínio e que dependem da premiação quanto
para campeões olímpicos”, afirma ele que, hoje, com a experiência que adquiriu ao
longo de 24 anos, dispensa o acompanhamento de um psicólogo.

Para os jogadores, dificilmente a dor funciona como barreira, mas sim como estímulo.
Kátia Rubio define com precisão a coragem comum a todos os atletas de alto
rendimento. “Determinação pela busca de seus objetivos. Não se importam com as
dificuldades, e sim com os resultados. O psicólogo do esporte ajuda então o esportista a
determinar quais são os seus objetivos de superação, mas também trabalha para que ele
se localize dentro do processo. E quando a prevenção não é suficiente e o acidente ou a
lesão acontecem, a reabilitação deve ser completa, o físico está vinculado ao emocional,
sem hierarquia. O restabelecimento físico pode até anteceder a recuperação emocional,
pois há o medo da recidiva, da dor, do afastamento”, diz. E acrescenta que, embora seja
o atleta que decida se está pronto para voltar, o psicólogo pode ajudá-lo a elaborar suas
dúvidas e encontrar suas próprias respostas.

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