Você está na página 1de 7

Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro)

Departamento de Letras (DELET)

Disciplina: Linguística I
Professora Responsável: Drª. Keila Grando
Acadêmico: Juan Pablo Ramos Ribeiro 2º LPM

Análise do filme Nell via ótica de Chomsky

Se observarmos a biografia de Chomsky, podemos observar um eremita


que sempre se interessou pela vida social, muito em especial pela linguagem
que essa sociedade compartilha, ou melhor, que todas as sociedades do
mundo compartilham. Depois da revolução que Saussure exerceu nos estudos
da linguística, o estruturalismo imperou com força, inclusive com reflexos de
aprendizagem de língua encontrados nos modelos atuais de metodologia. Para
Noam Chomsky, entender apenas do que a língua é constituída ao separá-la
atomicamente não era suficiente; ele buscava entender a origem dessas
estruturas linguísticas.

Com o estruturalismo pôde-se observar que todas as línguas são


compostas por estruturas que advém de regras particulares a partir de cada
língua. Assim como Ferdinand de Saussure esteve envolto de uma linguística
comparada e não se viu satisfeito com os rumos do estudo da língua e da
linguagem a partir daquele modelo, Chomsky também não estava satisfeito e o
start da próxima revolução do estudo da linguística viria ao se deparar com o
modelo de ensino de língua proposto por Skinner, o behaviorismo: que explica
que aprendemos via estímulo e resposta, impondo uma sanção positivo ao
comportamento esperado do outro e uma negativa quando não se obtém o
determinado comportamento.

A partir daí Chomsky se debruça nos seus estudos para encontrar a


fonte da linguagem e entender como os seres humanos são capazes de
produzi-la. Ao observar diferenças e semelhanças entre todas as línguas do
mundo, como, por exemplo, todas elas possuem a posição de sujeito, de
objeto, contam o tempo, o espaço; apenas divergem em posições dos valores
sintáticos, então observou que a lei de conjunto de regras que até era
estudada, passou a propor a teoria gerativa, com princípios e parâmetros,
sendo os princípios: as equivalências entre as línguas e os parâmetros, as
variações. Chomsky demonstrou que todas as línguas do mundo, inclusive uma
que se invente, daí construiu a sua famosa frase das ideias verdes que
dormem furiosamente, ignorando a semântica da construção, para revelar que
a linguagem é composta de um componente biológico, isto é, uma área do
cérebro é responsável por ler e produzir a linguagem.

Esse aparato se combina com o aparelho fonador, mas essa questão


não é central produção, visto que são órgãos biologicamente estabelecidos
para outras funções, como comer e respirar, por exemplo. E também a boca
pode ser substituída pelas mãos na fala de sinais, assim como o ouvido pelos
olhos ao escutar a linguagem. Dentro desse panorama, Chomsky traz à
linguística a gramática gerativa que busca entender a linguagem via a
dualidade de linguagem e mente, observando a interferência do contexto e da
cultura, do componente de exposição social que se combina com o biológico
para ativar a produção da linguagem; elenca a construção da língua como uma
leitura inicial do som que depois de absorvido pelo cérebro com a exposição
social começa a gerar imagens, via analogia, e assim, por fim, forma o
conteúdo, o eixo semântico.

Teóricos discutem se a linguagem é a expressão do pensamento ou se


podem ser dissociados, que um vem antes do outro. No trabalho
“Desenvolvimento da Linguagem” o professor José Pereira da Silva discute que
embora haja uma forte ligação entre pensamento e linguagem, o pensamento
pode existir sem a linguagem, usa como exemplo estágios da criança que
mesmo sem língua busca meios de expor seus pensamentos, como um choro
de fome e demais comportamentos corporais; e também usa o exemplo de
quando as pessoas querem dizer alguma coisa, mas não sabem como:

“[...] é a experiência muito comum de querermos exprimir uma ideia e


não podermos encontrar a maneira satisfatória de transformá-la em
palavras. Esse problema não existiria se o pensamento fosse
impossível sem a linguagem.” (SILVA, O Desenvolvimento da
Linguagem, p.10)
A partir de todo esse cenário teórico, se encontra a visão de Chomsky,
que traz o inatismo para explicar a fonte e a capacidade de leitura e produção
da linguagem, que chama de competência linguística, distinguindo a montagem
dos itens lexicais em três grupos de traços distintivos: os semânticos, os
fonéticos, e os que não são nem um, nem outro, sendo interpretativos e
estabelecendo à linguagem um caráter “imperfeito”, impassível de ser
reproduzido pela linguagem computacional com perfeição. E depois do
processo de aquisição, passa pelo processo de performance, colocando a
língua em uso. Nesse aspecto de uso, a cultura e o contexto interferem na
língua e variam de indivíduo para indivíduo de acordo com as características
que o cercam.

Outro aspecto importante da visão de Chomsky sobre a linguagem é o


criativo, daí o nome gerativismo, pois a partir de um número finito de regras é
possível gerar um produto infinito de novos elementos linguísticos. Cada texto
é único, sua unicidade é uma nova geração linguística a partir das regras finitas
estabelecidas. Chomsky vê então a postura ótico dos estudos como uma
dualidade entre linguagem e mente. Estabelecido o cenário teórico, passemos
ao filme.

Filme Nell

Nell fora subtraída do componente social vivendo isoladamente apenas


com a sua mãe; o filme não demonstra a relação entre as duas, mas pela
lacuna de linguagem na protagonista e uma passagem que cita uma doença na
mãe, a troca linguística entre as duas fora extremamente escassa. No entanto,
o componente biológico é gritante, a todo momento ela exerce a presença do
pensamento e balbucia tentativas verbais, conferindo a faculdade da linguagem
sinalizada pela teoria de Chomsky.

A personagem apresenta acesso ao pensamento mesmo sem uma


performance, mesmo sem o verbal claro e definido; essa imagem de acesso ao
pensamento é definida ao telespectador pelas memórias de infância, pela
acusação de intimidade com os ossos da mãe; pela estranheza a pessoas
estranhas. Suas funções sensomotoras indicam que ao conviver com ao
menos uma pessoa, desenvolveu os estímulos necessários para atividades
motoras como nadar, andar, correr, pular, deixando visível que o estado mental
e corporal que subjazem estas funções estão conservados. Ao tentar se
comunicar, a protagonista compõe balbucios que remetem à fase inicial de uma
criança em estágio de aquisição de linguagem; o pensamento nela existe,
apenas lhe falta o canal verbal para exteriorizar; lacuna estabelecida pela
subtração do componente social. Afirma-se, portanto, a faculdade da
linguagem é de origem interna, é um leitor, por assim dizer, de construções
linguísticos, e o aparato social que se combina com esse leitor, pode-se dizer
que é o disco com as informações, é o que Chomsky nos aponta com os seus
estudos.

A composição da frase é distinguida em duas estruturas, uma chamada


de estrutura profunda, que é a base abstrata que compõe o eixo semântico, e a
estrutura superficial, que abarca a relação e ordem sintática dos componentes.
Nell apresenta um contato de sinal com a estrutura profunda, mas desconexa
com a estrutura superficial, no entanto, isso permite experimentar o que é a
competência linguística defendida por Noam Chomsky. À medida que novas
pessoas começam a conviver com a personagem, ao perceber sua lacuna de
linguagem, tentam lhe ensinar a língua, e o sistema behaviorista pode ser
observado na cena da pipoca em que o doutor Lovel exercita que ela obedeça
ao comando de sair da casa à luz do dia para ganhar uma pipoca, o que
funciona, todavia, para a aquisição de linguagem, o ensinamento por imitação
ou estímulo e resposta se demonstra fraco em virtude da rica complexidade de
que as línguas são compostas.

Mesmo com a lacuna verbal em Nell, é possível observar o caráter


criativo; ela possui linguagem, apenas tem dificuldade de exterioriza-la. Em
diversos momentos ela consegue executar trocas comunicativas e apresenta
progressão de aprendizagem. Sua grande dificuldade é explicada pela teoria
do estágio crítico para aquisição da linguagem, que se encontra nos primeiros
anos de vida da criança, passado esse período, a absorção do sistema
linguístico se torna uma tarefa muito mais difícil pela fase divergente que o
cérebro se encontra. Pelo as aspecto criativo, encontra meios de linguagem,
permutando a fonética das palavras. O filme retrata que as pessoas a
observam como “selvagem”, ponto esse que permite a observação de que todo
o império construído pela mão humana no mundo emana da linguagem, isto é,
a linguagem é uma expansão quase infinita do corpo e da mente dos seres
humanos.

Quando um indivíduo numa obra pede para outra que lhe alcance
argamassa e tijolos, tem-se essa extensão apontada; e de extensão em
extensão, a linguagem perpassa como um fio que costura tudo que o ser
humano é capaz de fazer, nos distinguindo, não somente pela função de pinça
das mãos e da racionalidade, mas por esse poder quase infinito de extensão,
dos demais animais. Seríamos, sem linguagem, selvagens, e não teríamos um
mundo e galáxias, teríamos apenas o habitat. Esse é o poder da linguagem,
que dependente ou independente da mente, a potencializa, certamente.

Nell apresenta compreensão parcial dos campos fonéticos e semânticos,


além de possuir um léxico embaralhado pelas lacunas desses campos.
Apresenta uma lenta progressão à medida que é oferecida ao componente
social, mesmo fora do período crítico, ainda é possível obter avanços na
aquisição, mas que não são tão satisfatórios quanto uma criança no período
ideal, com os interruptores do cérebro aptos à operação. A cena em que uma
criança mostra a língua para ela e ela repete o gesto, alude para uma idade
mental compatível com a de uma criança, no entanto, já não é mais uma
criança e não possui o cérebro de uma criança, apenas a mente. Juntamente
com a cena da exposição dos seios via imitação, compõem o cenário de uma
mente infantil, apresentando um não desenvolvimento da função inibidora do
cérebro. Ela também imita partículas de sons e de sons em palavras em
algumas vezes, mas dissociadas de sentido.

Pelo que se observa no filme e o professor José Silva apontou na


citação acima, a mente pode ser vista como pré-linguagem, e como também
mencionado, não depende de um canal exclusivo para sua verbalização,
tomando a Libras e o Braille como exemplo. A mente existe sem a linguagem,
mas a linguagem não pode existir sem a mente. A mente conecta o som a um
sentido, como Saussure observou a arbitrariedade do signo linguístico e
demonstrou características da língua análogas a um jogo de xadrez, Nell
entende “anjo da guarda” pela permutação fonética do vocábulo, o que induz
ao mesmo item semântico em que a arquitetura da mente monta para a
mensagem de comando cerebral de entendimento.

Nessa perspectiva, há um diálogo teórico entre Saussure e Chomsky


nesse fragmento do filme. As peças do jogo (permutação fonética) estão
trocadas, mas continuam executando o jogo, em virtude da faculdade da
linguagem e sua competência estabelecida biologicamente. Retomando a
progressão de Nell, seu gradativo avanço e gradual instinto de tentativa em se
comunicar, toca na teoria dos princípios e parâmetros, que mesmo a língua
inventada pode obedecer a estruturas universais oriundas do componente
biológico, que ganha cada vez mais força na área da psicolinguística, tecendo
efeitos em novos modelos de metodologia nos aprendizados da língua materna
e preparação para os professores dessa área de atuação.

Casos de exposição tardia ao componente social são muito raros, e


assim deve ser, pois é um experimento proibido e desumano. Dos casos reais
registrados como o de Kaspar Hauser e Genie Wiley, e fictício no de caso de
Nell, demonstram consequências brutais ao cérebro e a sua capacidade;
embora não anule a capacidade de aquisição, a competência linguística fora da
janela temporal ideal sugerida pelo gerativismo (período crítico), continua
existindo e operando, mas não com toda a sua capacidade. A teoria gerativista
ao discordar do behaviorismo e caminhar por outro polo teórico, demonstra que
apesar das crianças muitas vezes imitarem os adultos, não são capazes de
obter toda a complexidade da linguagem pelo mero exercício de imitação; a
aquisição se habilita na combinação dos componentes biológico e social, sendo
ambos fundamentais para o desenvolvimento da linguagem e da mente.

Assim como na Física em que a luz incide sobre o objeto de acordo com
a interferência ou não de obstáculos no percurso, a linguagem incide sobre a
mente e o mundo.

Referências:

CHOMSKY, N. Linguagem e Mente: pensamentos atuais sobre antigos


problemas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
DUCROT, Osvald. Estruturalismo e Linguística. São Paulo: Cultrix, 1970.

SAUSSURE, F de. Curso de Linguística Geral, São Paulo: Cultrix, 2012.

Artigos de apoio:

Dentro da cabeça de Noam Chomsky: com a autoria de Luís Augusto Fischer


em artigo para a Editora Abril em 30 de abril de 2003 e encontra-se disponível
no seguinte link: https://super.abril.com.br/cultura/dentro-da-cabeca-de-noam-
chomsky

O Desenvolvimento da Linguagem: trabalho do professor José Pereira da Silva


com o prefácio escrito por Afrânio da Silva Garcia. Não encontrei mais
informações biográficas no documento. O link do artigo encontra-se aqui:
http://www.filologia.org.br/pereira/textos/odesenvolvimento.htm

Resenha sobre o livro “Do que é feito o Pensamento” de Steven Pinker, feita
por Karyn Cristine Cavalheiro – Mestre em Filosofia da Linguagem – PUC-PR e
Doutorando (na época do artigo, 2011) em estudos linguísticos – UFPR.

Novos Horizontes no Estudo da Linguagem, de Noam Chomsky, escrito em


1997. Foi publicado em português em 2001 no site da Scielo Brasil no seguinte
link: https://www.scielo.br/j/delta/a/CQTtxYpb3gWqft7BYXntRLz/

Você também pode gostar