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AULA 3

NEUROCIÊNCIA DA
LINGUAGEM

Profª Tammy Ribeiro


CONVERSA INICIAL

No percurso da história humana, o homem vem se tornando capaz de


conquistar o planeta em que vive e grande parte dos fenômenos que fazem parte
deste, além de si mesmo. Organizando-se em grupos, pôde alterar sua realidade
a partir da razão e de seu intelecto, tendo, nesse processo, conseguido entender
e decifrar os fenômenos naturais existentes, na busca por melhorar a vida em
sociedade, avaliando, analisando, sistematizando a interação, que não deixa de
ser um tipo de inteligência (Masgoret; Gardner, 2003).
Não se sabe ao certo em que momento de sua história o homem adquiriu
a capacidade de se comunicar mediante a fala, tendo em vista que somente
depois do surgimento da escrita o homem começou a registrar sua história e,
consequentemente, a formação de sua linguagem. Um estudo realizado por
pesquisadores liderados pelo psicólogo Thomas Morgan, da Universidade da
Califórnia, dá conta de que entre 1,8 e 2,5 milhões de anos atrás, os homens já
travavam as primeiras conversas. Para os estudiosos, o conhecimento sobre a
fabricação de ferramentas obrigou os seres humanos a se comunicarem e a
ensinarem por meio das trocas verbais.
Segundo Rocha (1999), há indícios de que a linguagem tenha surgido
quando a anatomia humana tomou certa forma que deu ao homem uma
capacidade motora facial, manual e orofaríngea que pudesse ser utilizada para a
comunicação e representação. Quando o homem passou a ser bípede, pôde
deixar de utilizar sua boca para segurar as coisas, passando essa função às mãos.
Com a boca livre, o surgimento dos polegares e o aprendizado da fabricação de
ferramentas, estava disposto o momento propício para o surgimento da linguagem
humana.
Desde a Antiguidade Clássica, estudiosos vêm buscando compreender
como o homem adquire a linguagem. Não somente como o fez pela primeira vez
na história, a partir dos antepassados genéticos, mas principalmente como
acontece a aquisição dessa linguagem e como esta se desenvolve nas crianças
pequenas nos dias atuais. O que se vê é uma busca por entender quais as
condições em que a criança estaria disposta para começar a falar e quais palavras
falaria por primeiro.
Muito se discute sobre a linguagem humana desde meados do século XX.
Ao longo do tempo, esse tema tem ocupado lugar de destaque na área de ensino

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e aprendizagem de línguas, nos departamentos de Linguística e Letras, na busca
por aprimorar técnicas e metodologias educacionais e fomentar seus estudos.
Por outro lado, autoras como Mirian Lemle, professora da Universidade
Federal do Rio de Janeiro que conduz pesquisas acerca da teoria chomskiana e
realiza experimentos no Departamento de Linguística da UFRJ, defendem o estudo
da Linguagem não somente por abordagens sociológicas, mas principalmente
biológicas.
Diante disto e entendendo o potencial biológico que tem a linguagem,
discutimos nesta aula os fundamentos biológicos da linguagem, num primeiro
momento abordando sua historicidade e buscando entender como se deu seu
processo, desde os primeiros estudos, até as pesquisas que estão sendo
realizadas nestes primeiros anos do século XXI.
Entendendo a comunicação como uma das funções da linguagem, fazemos
uma reflexão sobre os aspectos biológicos da comunicação humana e buscamos
compreender como ela é entendida a partir de sua base biológica, traçando um
paralelo entre as sentenças da língua e os mecanismos que são processados para
que elas se realizem.
Seguimos nosso estudo abordando a neurofisiologia da linguagem, seção
em que iremos compreender a estrutura, o funcionamento e desenvolvimento das
áreas do sistema nervoso central, alcançando entendimentos sobre as atividades
biológicas que envolvem a capacidade humana de receber e produzir a linguagem
verbal. Ainda, compreenderemos como o cérebro humano está organizado e como
essa organização incide nas funções da linguagem, fazendo um estudo anatômico
da linguagem.

CONTEXTUALIZANDO

Nos dias atuais, computadores são conectados a aparelhos de ressonância


magnética, eletroencefalográficos, magnetoencefalogramas e outros para que
cientistas, médicos e estudiosos possam entender como o cérebro funciona, seja
na busca por entender como as funções motoras, sanguíneas, químicas e outras
são realizadas, seja também para compreender como a linguagem se processa no
ser humano.
Estudiosos no mundo inteiro buscam entender como a linguagem se
desenvolve no ser humano. Muitos dizem, como Skinner, que esse
desenvolvimento se dá a partir das interações que o ser humano realiza com o seu

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exterior, outros atribuem o desenvolvimento a questões cognitivas baseadas na
construção virtual de estruturas mentais, como bem defendeu Piaget e ainda
defendem hoje seus seguidores. Há ainda aqueles que pensam a linguagem a partir
do inatismo, crendo ser a linguagem algo nascido com o homem, como o linguista
Noam Chomsky.
Todos eles compreendiam – uns mais, outros menos – que há a necessidade
de uma base biológica que sustente o desenvolvimento da linguagem, mas todos
hão de convir que sem essas estruturas biológicas os seres humanos não
conseguiriam adquirir o meio mais importante para sua própria comunicação, a
linguagem.

TEMA 1 – FUNDAMENTOS BIOLÓGICOS DA LINGUAGEM: HISTORICIDADE

O homem é um ser histórico e sempre, em sua história, buscou compreender


a gênese de seus processos, dentre eles a aquisição de sua linguagem. Ao longo
da história humana, muitas discussões surgiram na tentativa de explicar como a
linguagem teve seu início nos seres humanos e como esta incide sobre suas ações.
A história contada por Heródoto, no século VII a.C., narra que o rei
Psamético do Egito ordenou que se fossem confinadas duas crianças do
nascimento até a idade de dois anos, sem o convívio com outros seres humanos,
a fim de que se observasse como a linguagem seria manifestada fora do processo
interativo (Scarpa, 2001). Desde então filósofos, biólogos, antropólogos, psicólogos
e psiquiatras, religiosos e estudiosos em geral têm se debruçado no estudo da
aquisição da linguagem humana, seja elaborando diários da fala de seus filhos, seja
estudando o comportamento de crianças criadas fora do convívio de outros
humanos, ou até mesmo se baseando na Bíblia.
Desde a Idade da Pedra Lascada, quando o homem descobriu que poderia
fazer instrumentos com pedras e necessitou comunicar-se para ensinar suas
técnicas de construção de ferramentas, a linguagem é utilizada. Nesse ínterim, é
inconcebível que haja alguma sociedade na história da humanidade que não tenha
possuído algum tipo de interação social, pois, segundo Silva (2010), “a linguagem
e a vida em sociedade devem ter surgido praticamente ao mesmo tempo”.
Compreendendo e estudando essa realidade, vários estudiosos perceberam
indícios contundentes de que a linguagem tem base em uma estrutura biológica,
que se encontra no interior do homem.

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O primeiro a encontrar um ponto na anatomia humana onde supostamente
a linguagem estaria alojada foi o cientista, médico, anatomista e antropólogo
francês Pierre Paul Broca. Situado na região do lobo frontal do cérebro humano, o
centro da linguagem foi descoberto quando Broca estudava pacientes com afasia,
ou seja, incapacidade total ou parcial de articular a fala. Assim, Broca descobriu
que seus pacientes que apresentavam problemas com a fala normalmente tinham
uma lesão especificamente naquele ponto. Descobriu também que há no cérebro
estruturas distintas para a compreensão e a produção da linguagem, apresentando
certa dominância hemisférica esquerda nos processos da linguagem.
Outro cientista que teve grande repercussão em seus estudos sobre a
linguagem foi o norte-americano Noam Chomsky. Para ele, a linguagem era uma
faculdade de tipo vertical, dentro de uma mente organizada por módulos. Segundo
Lemle (1998), ao postular sua teoria, Chomsky revolucionou a linguística de sua
época, já que retirar a linguagem da esfera da cultura e realoca-la na esfera da
psicologia, que naquele momento estava incrustada na biologia, mexeria com muita
coisa, seja com a epistemologia genética de Piaget, seja com questões básicas da
filosofia:

Afinal, o que é o saber? O que sabemos vem de fora, de objetos situados


no mundo, para dentro de uma ‘mente-xerox’, ou é uma espécie de ilusão
criada internamente por nossos sentidos? Mexe com a questão da
evolução das espécies. Se a linguagem, um sistema cognitivo, é tão
geneticamente determinada quanto defende Chomsky, sua ‘inscrição’ nos
genes seria totalmente aleatória, como diz a teoria darwinista, ou não?
(Idem, on-line).

Chomsky criticou, com sua teoria, dois grandes pensamentos que eram
divulgados em sua época, os de Skinner e Piaget. O primeiro dizia que a linguagem
era adquirida a partir de situações externas, e o segundo postulava que a
linguagem fazia parte de uma estrutura mental virtual autoconstrutivista.
Num primeiro momento, Chomsky se contrapôs à ideia skinneriana da
linguagem. Por volta do fim da década de 1950, o teórico postulou duras críticas à
teoria de Skinner, introduzindo a ideia de que a língua não é fruto do meio e sim da
mente humana, um fator biológico inato (Chomsky, 1998).
Para Chomsky, a linguagem faz parte do instinto humano, podendo ser
comparada à produção da teia pela aranha, que mesmo sem ter conhecimento de
geografia plana, possui todas as condições fisiológicas e anatômicas para
desenvolver sua arte geométrica (Pinker, 2002). Esse instinto é observável em

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outros animais, sendo que, para Chomsky, a aquisição da linguagem não se difere,
sendo também um instinto.
Por volta da década de 1970, sua teoria foi novamente posta à prova, e em
uma reunião científica histórica, realizada na Abadia de Royaumont no ano de
1975, Chomsky a defendeu em detrimento da teoria postulada por Piaget, propondo
a Gramática Gerativista, que postulava que a mente era organizada em módulos a
partir de conceitos inatos. Com essa teoria, Chomsky pretendia analisar aspectos
da mente da criança, buscando compreender como esta era capaz de adquirir,
desenvolver e colocar em uso sua língua materna. Essa teoria era uma maneira
biolinguística de abordar a capacidade da linguagem humana.
Desde então essas teorias convivem e são discutidas diuturnamente pelos
profissionais e estudiosos da linguagem, mas se há de convir que a teoria que mais
se aproxima dos aspectos biológicos da linguagem é a teoria chomskiana.

TEMA 2 – ASPECTOS BIOLÓGICOS DA COMUNICAÇÃO HUMANA

O ser humano é um ser social. Sendo uma necessidade básica, a


comunicação é um processo inato ao ser humano, pelo qual conhece o que há ao
seu redor e expressa seus pensamentos. Sem a linguagem o ser humano não
consegue sobreviver em meio às dificuldades (LUFT, 2002).
A comunicação é uma necessidade que vem determinada biologicamente no
ser humano. A criança ao nascer se comunica de várias formas, seja com o choro,
as expressões faciais, o olhar ou a forma como move seu corpo. Comunicar é
transmitir a outra pessoa algo que se tem, seja pensamentos, ideias, sentimentos,
ou qualquer outra classe de informações. Tudo isso constitui mensagens a serem
transmitidas (Fernández; Faílde; Vidal, 1998).
Segundo Sena e Gomes (2015), a comunicação é tão essencial para a
manutenção da espécie quanto as necessidades físicas e fisiológicas do ser
humano. Até para se alimentar os homens, em tempos remotos, necessitavam se
entender e cooperar uns com outros por meio da linguagem:

O poder da palavra não é apenas um recurso superficial de uma relação


comunicacional, nem apenas uma moeda mercantil, mas, ela transforma
conceitos e valores intrínsecos gerados por culturas e ideologias, ela
convence o espírito e persuade a alma. (Sena; Gomes, 2015, p. 555)

O processo comunicatório no ser humano é tão importante e poderoso que


pode mudar os rumos da própria história humana:

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Na história da civilização humana, uma palavra escrita ou falada tem poder
tão grande que basta utilizá-la para o mundo mudar, para produzir uma
guerra, para anunciar boas novas, para proclamar a tão desejada
independência. E é a partir dessa complexidade que, ao longo dos anos,
estudiosos interessados buscam conhecer, aprimorar ou reafirmar teorias
que estudam a linguagem. (Sena; Gomes, 2015, p. 555).

Os processos de comunicação estão tão interligados aos processos da


linguagem que um serve ao outro. É por intermédio da linguagem, capacidade
humana de base biológica, que a comunicação se faz, e é por conta desses
processos comunicatórios que a própria linguagem se desenvolve.
Para Fischer (2009, p. 12):

Em sua definição mais simples, linguagem significa “meio de troca de


informações”. Essa definição permite que o conceito de linguagem
englobe expressões faciais, gestos, posturas, assobios, sinais de mão,
escrita, linguagem matemática, linguagem de programação (ou de
computadores), e assim por diante.

Todas as ações humanas são baseadas em processos sinápticos que se


iniciam no cérebro e se distribuem por todo o corpo. Sendo assim, cada parte da
comunicação, para além dos padrões sociais que esta impõe, baseia-se em
atividades internas do homem que estão integradas aos processos biológicos
inerentes ao ser humano.

TEMA 3 – BUSCANDO UMA BASE BIOLÓGICA DA LINGUAGEM HUMANA

Entendendo a linguagem como algo inato, baseado em estruturas biológicas


da mente, Chomsky postula a Gramática Gerativa. Gramática porque estuda as
prescrições e regras que determinam o uso correto da língua; gerativa porque
permite, dentro dessas regras, gerar um número infinito de sequências frasais.
Para Chomsky (1998), a criança possui um dispositivo genético de aquisição
da linguagem que lhe promove acesso às estruturas de base e às categorias
gramaticais, ou seja, a criança recebe o input da linguagem do adulto, realiza uma
análise desse input e escolhe a regra de acordo com sua intenção e necessidade,
realizando acréscimos, inversões, apagamentos, substituições, afirmações e
negações.
Chomsky (1998) defendia que a criança já vem do ventre da mãe dotada das
habilidades da linguagem e de todo o arcabouço necessário para o aprendizado de
uma língua, além de postular que existe uma faculdade da linguagem circunspeta
por princípios e parâmetros que constituem a estrutura da língua materna localizada
na mente, o que vai muito além da aquisição do léxico específico de uma língua.

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A linguagem é compreendida por Chomsky como sintaxe, ou seja, um
conjunto de regras que será gerado na criança, independentemente da influência
ou qualquer regra que venha do seu exterior.

[...] gramática mental gera um marcador sintagmático inicial, a estrutura


profunda (estrutura – D) que a partir de operações do indivíduo, transforma
e converte a estrutura – D em estrutura superficial (estrutura – S). Toda
essa transformação é realizada por meio dos componentes interpretativos:
o sistema articulatório-perceptual (SAP) e o sistema conceptual-
intencional (SCI) que operam sobre os componentes sintáticos. Em outras
palavras, o módulo mental da criança marca um sintagma, utilizando os
componentes interpretativos para uma sequência que ainda está mente,
opera os valores sintáticos pertencentes a sua gramática mental. (Sena;
Gomes, 2015, p. 560)

Nesse caso, a gramática é formada por três componentes: um que é


sintático, ou seja, define as frases permitidas em uma língua; outro que é
semântico, pois interpreta as frases definidas pelo componente sintático,
transformando e convertendo esse componente em outra estrutura; por fim, o
componente que é formado por um sistema de regras fonéticas, que definem os
sons e frases gerados pelos dois outros componentes.
Segundo Lemle (1998), para conhecer o espírito do que Chomsky defendeu
no encontro realizado na Abadia de Royaumont, é necessário entender a lógica
das técnicas de pesquisa. Na busca por demonstrar que a mente humana em um
estado inicial não é uma tábula rasa, o pesquisador precisou buscar evidências
indiretas como estratégia de pesquisa. Durante seu estudo, utilizou a
introspecção, obedecendo à lógica da tomada de uma sequência de palavras que
formasse uma sentença aceitável, se comparada a outra ligeiramente diferente.
Caso esta se tornasse menos aceitável, poderia se supor que a alteração afetou
a gramaticidade. Essa técnica simples de pesquisa permitiu aos estudiosos o
avanço na compreensão dos princípios e regras das gramáticas das línguas
humanas (Lemle, 1998).
Ainda segundo Lemle (1998), Chomsky buscou, em sua primeira fala em
Royaumont, mostrar que as gramáticas seguem princípios gerais, que as pessoas
não aprendem da maneira tradicional, por meio da instrução ou da experiência. O
intuito dele era demonstrar que os conhecimentos de cada um sobre a língua
superam em muito o que pode ser obtido apenas a partir dos dados em si,
entendendo-se dados como a experiência com a língua no seu uso normal. Esse
raciocínio é chamado de argumento da insuficiência do estímulo ou da pobreza
dos dados, deixando-se claro que os dados não são pobres e sim que o conjunto

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desses dados, por si só, não explica por que nossa mente tem os conhecimentos
de gramática que tem.
Ou seja, com tão poucos dados externos, da língua, para Chomsky é
praticamente impossível que a criança obtenha uma potência gramatical tão
grande quanto a que tem se a potência gramatical não lhe fosse inata.
Na reunião que estamos analisando neste texto, Chomsky apresentou
vários exemplos para confirmar sua tese, alguns dos quais apresentamos com o
intuito de que se esclareçam suas ideias.
Tomemos como exemplo a formação de uma frase negativa a partir de uma
afirmativa, como em “o gato está debaixo da cama” e “o gato não está debaixo da
cama”. Observando essas frases, podemos deduzir que para formar uma frase
negativa basta inserir a palavra não depois do primeiro nome que aparecer, mas
ao testar a fórmula com outra frase – “o gato que está enciumado está debaixo da
cama” e “o gato não que está enciumado está embaixo da cama” –, há aí uma
falha na organização da frase. A regra de colocação do não para negar uma frase
não pode tomar as palavras como unidades simplesmente enfileiradas. A frase
certa seria: “o gato que está enciumado não está embaixo da cama”. Deve-se
inserir o não, portanto, após o primeiro sintagma (unidade léxica composta por
mais de um elemento lexical) nominal. Ou seja: a regra requer menção a uma
estrutura sintática e não a uma fileira de palavras (Lemle, 1998)
Diante disto e considerando-se a lógica de que se a gramática fosse
somente aprendida somente por estímulos externos o normal seria que a criança
interpretasse as frases como uma sequência de palavras – o que não acontece –
, afirma Chomsky (1998, s/n):

As crianças contam de saída com esse princípio hierárquico, o que reduz


as alternativas que elas precisam testar e serve de guia para a aquisição
de língua. Se não fosse assim, aprender uma língua seria uma tarefa
impossível, de tão desordenada.

Somente com uma condição inata conseguiríamos, enquanto ainda


crianças, encontrar um sentido nessas funções que a nossa capacidade racional
pouco entende. Para Lemle (1998), quando crianças resolvemos essa charada e
muitas outras sem maior dificuldade. Isso é possível graças ao mecanismo de
aquisição da linguagem, gramática universal ou faculdade de linguagem – nomes
dados a esse notável poder natural que está ativo na primeira infância e
desaparece por volta dos sete anos de idade. Daí em diante, temos que estudar
muito e durante anos para aprender uma nova língua. Ou seja, nos primeiros anos

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de vida há uma facilidade muito maior no aprendizado de qualquer tipo de língua,
seja ela baseada em organizações fônicas ou gestuais, como é o caso da Libras.
Da mesma forma que, em meados das décadas de 1950 e 1970, Chomsky
defendeu sua pesquisa sobre a linguagem humana, ainda hoje vários
pesquisadores no Brasil e no mundo buscam explicar como a linguagem se
desenvolve no ser humano.

Diante de um computador conectado a um aparelho eletroencefalógrafo


digital (EEG) e com eletrodos fixados em seu couro cabeludo, voluntários
têm suas ondas elétricas cerebrais monitoradas enquanto executam
tarefas como decidir se a frase que estão lendo na tela é congruente ou
não. [...], a captura da atividade elétrica cerebral por
eletroencefalograma é um ótimo método de pesquisa porque oferece
grande precisão temporal. Os impulsos elétricos no cérebro podem ser
detectados quase instantaneamente no couro cabeludo, através do osso
craniano [...]. (Em busca..., 2005)

Quando a sentença é incongruente, o computador registra ondas distintas


que detectam o tipo de incongruência. Lemle, em entrevista dada à Fundação
Carlos Chagas, afirma que se testaram

[...] estímulos como “a cadeira chutou a bola” comparativamente a “o


menino chutou a bola” e [percebeu-se] que a concatenação do sujeito é
posterior à do objeto direto da frase, ou seja, a derivação da construção
sintática se dá inversamente à ordem linear das palavras, o que
demonstra que o processamento se dá a partir das camadas mais
internas da sintaxe para as mais externas. (Em busca..., 2005)

Ainda pra Lemle, outro estudo em curso tem o intuito capturar os efeitos
neurofisiológicos dos encaixes de palavras dentro de palavras. Para entender
como esse encaixe se processa no cérebro, apresenta-se numa tela de
computador primeiro a palavra globo e logo depois a palavra globalizar. Como a
palavra globo está contida em globalizar, globalizar vai ser lida muito mais
rapidamente do que se a palavra dada antes fosse glória ou lobo. Diz ainda Lemle
(Em busca..., 2005):

Também estamos montando um experimento para comparar as ondas


elétricas decorrentes de outras relações entre palavras, além da relação
morfológica – como “globo/globalizar”. Vamos pesquisar relações
fonológicas como “elefante” e “elegante”, ou conceituais, como “nuvem”
e “chuva”. A nossa hipótese é a de que o facilitador mais forte para o
processamento da segunda palavra do par será o fator morfológico [...].

Todas essas pesquisas aqui apresentadas são baseadas nas pesquisas


anteriores realizadas desde a década de 1950 por Noam Chomsky. Lemle explica
que a gramática gerativa é uma maneira biolinguística de abordar a capacidade
da linguagem humana: “Sem um substrato orgânico muito poderoso,

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geneticamente alicerçado, não poderíamos criar, pelas vias da cultura, um
mecanismo como as línguas humanas, que nos permite relacionar pensamentos
com cadeias de sons da fala” (Em busca..., 2005).

TEMA 4 – NEUROFISIOLOGIA DA LINGUAGEM

A neurofisiologia é uma área do saber que tem por intuito estudar o


funcionamento do Sistema Nervoso Central, avaliar as funções relacionadas com
este sistema do corpo humano, além de realizar estudos dos potenciais
somatossensitivos visuais e auditivos que são importantes no diagnóstico de
diversas doenças neurológicas e neuromusculares.
Segundo Faria (2015), a Neurofisiologia apresenta quatro fundamentos
básicos, os quais estão relacionados à capacidade de se comunicar, adaptar-se
ao meio, sustentar-se e compreender o mundo a sua volta. Por serem mais
representativos da funcionalidade do sistema nervoso, os fenômenos mentais,
que também podem ser denominados de fenômenos psíquicos ou neurológicos,
ocorrem como parte de sua fisiologia natural.

Desde a produção do liquor, ao fenômeno da excitabilidade neuronal


propriamente dito, o pensamento, a plasticidade neural, as emoções,
como raiva, medo, agressividade e afetividade, os fenômenos
cognitivos, os vários aspectos do comportamento, como um músculo do
corpo que se contrai respeitando uma ordem do pensamento. Os
fenômenos neurológicos são inúmeros e quatro deles, fundamentais.
(Farias, 2015)

Em relação à capacidade de comunicação, a transmissão de sinais


elétricos realizada pelos neurônios se apresenta como a base para a produção da
comunicação no ser humano. Quando um neurônio é de alguma forma estimulado
com suficiente força, irá produzir um impulso nervoso, que corresponde a uma
corrente elétrica que percorre o axônio até os botões sinápticos. É necessário que
esse impulso nervoso encontre a membrana numa condição denominada
potencial de repouso, ou seja, a -70 milivolts; uma vez iniciado, se autopropagará.
Os potenciais capazes de gerar tal transmissão de sinal são denominados
potenciais de ação e estão a >15 milivolts.
Esses impulsos nervosos, que se caracterizam como sinais elétricos,
quando liberados percorrem os neurônios, sinapses, órgãos receptores e efetores.
Quando estimulados e organizados, esses sinais constituem a base da
comunicação humana, em todas as suas instâncias e nuances (Farias, 2015).

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Quanto aos processos de adaptação do homem ao meio, a neurofisiologia
se encarrega de estudar a plasticidade neural que é inerente ao ser humano e que
é definida como a capacidade que o sistema nervoso tem de se transformar em
resposta às exigências do ambiente em que se encontra. Para Farias (2015), esse
é um fenômeno que depende de mudanças microestruturais morfológicas e
fisiológicas que devem acontecer nos próprios neurônios. O termo também pode
ser definido em relação às sinapses, sendo denominado plasticidade sináptica.
Quando as sinapses sofrem esse fenômeno plástico, elas podem se fortalecer,
ganhando robustez e sendo reforçadas pelo fenômeno de potenciação, ou podem
se desfazer pelos fenômenos da retração e da movimentação dendrítica. Se não
houvesse a plasticidade neural, não poderíamos aprender nada, e assim não nos
adaptaríamos ao ambiente em que vivemos.
Outro fundamento importante da Neurofisiologia é a autosustentação, a
qual se dá pela produção do liquor. É essa substância que sustenta e protege o
cérebro contra eventuais choques mecânicos. Além disso, também desempenha
um papel imunológico, pois serve como veículo para nutrientes e agentes de
defesa contra infecções. O liquor é produzido pelo plexo coroide e, após circular
pelo interior do cérebro, é absorvido pelo sistema de drenagem venoso. Cerca de
100-150 ml são produzidos diariamente. Durante séculos se acreditou que o
sistema ventricular era onde a alma estava alojada. O estudo do sistema
ventricular e da neurofisiologia do liquor, tão importante para o sistema nervoso
central, prova que a absorção de impactos e a proteção são básicas para qualquer
processo, por mais complexo que ele seja (Farias, 2015).
O quarto fundamento é aquele que está atrelado à compreensão que o ser
humano tem do mundo ao seu redor, o que é viabilizado pelo pensamento.
Segundo Jolivet (1986), pensamento é a capacidade que tem o ser humano de
conhecer em que consistem as coisas e as relações que elas têm entre si.
Entendendo que o pensamento precede a linguagem, que é também
considerada uma forma de pensamento, a neurofisiologia da linguagem busca
compreender a estrutura, o funcionamento e o desenvolvimento da linguagem a
partir das áreas do sistema nervoso central, com base nas suas funções e
fundamentos.
Segundo Kapitaniuk (2010), essa área de estudo tem por finalidade
fundamentar hipóteses sobre as capacidades que estão biologicamente
envolvidas na recepção e produção da linguagem verbal, principalmente na fase

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de aquisição da linguagem e entre os afásicos. Constatações que surgiram
desses estudos comprovaram que o hemisfério esquerdo é especializado para
funções sequenciais e lógicas, como as linguísticas, e que o hemisfério direito
processa informações holísticas, como as empregadas para o reconhecimento de
faces, vozes conhecidas, imagens, entre outros.
A partir desses estudos, várias descobertas têm surgido ao longo dos anos,
ao tempo que novas tecnologias têm surgido e aprimorado as pesquisas na área
da neurofisiologia, como é o caso da tomografia por emissão de prótons e da
ressonância magnética, que auxiliam os pesquisadores dando-lhes condição de
acompanharem os processos da linguagem em imagens produzidas em tempo
real. Segundo Raichle (1999), é possível observar, por exemplo, regiões
específicas do cérebro sendo ativadas quando atividades de leitura são efetuadas,
bem como os neurônios e sua intrincada rede de células.
A tecnologia tem auxiliado de forma tão profícua o processo de evolução
da neurociência que, atualmente, a partir dos novos aparelhos, é possível
visualizar cada parte do cérebro vivo em ação, do maior circuito até a sinapse no
diminuto espaço entre neurônios. Com aparelhos, como os citados anteriormente,
é possível registrar a atividade elétrica de uma única molécula no cérebro (Eliot,
1999).

Saiba mais
MASCARELLO, L. J. Lingua(gem) sob duas perspectivas teóricas. Working
Papers em Linguística, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 61-71, jan./jun. 2009.
Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/workingpapers/article/view/1984-
8420.2009v10n1p61>. Acesso em: 13 nov. 2020.

TEMA 5 – ANATOMIA DA LINGUAGEM

Quando influenciado pelo meio ambiente, seja ele social ou linguístico, todo
ser humano pode desenvolver a linguagem. Isso se dá porque todos os seres
humanos possuem em seus cérebros sistemas anatomofuncionais que permitem
esse desenvolvimento. Desde o século XIX estuda-se como as patologias da fala
estavam ligadas a lesões cerebrais, e pesquisas já eram realizadas na busca de
entender como as partes do cérebro estavam ligadas aos processos da
linguagem. No entanto, foi a partir da década de 1960 que pesquisadores como

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os franceses Paul Broca e Armand Trousseau, o alemão Carl Wernicke, entre
outros, realizaram estudos mais aprofundados sobre a anatomia da linguagem.
Todavia, estudos mais detalhados da fisiologia da linguagem dentro do cérebro
humano surgiram somente quando foi possível estimular o córtex eletricamente
utilizando equipamentos computadorizados, como a tomografia e o radioisótopo
(Jakubovicz; Cupello, 1996).
Desses estudos, pôde-se caracterizar as principais áreas do cérebro
ligadas à linguagem e às fases por que o cérebro passa até que a linguagem seja
expressa:

a. Fase 1: o lóbulo temporal se encarrega de selecionar as palavras com as


quais construímos as frases, com as quais verbalizamos o que queremos
dizer. Trata-se do componente semântico, dos significados. Essas palavras
estão armazenadas na memória e se relacionam com os acontecimentos
vividos pelo homem.
b. Fase 2: ainda dentro do lóbulo temporal, encontra-se a área de Wernicke,
que é encarregada de interpretar as palavras unindo-as aos sons que lhes
correspondem. Esta fase está relacionada ao componente fonético da
linguagem.
c. Fase 3: uma série de fibras nervosas, que recebem o nome de fascículo
arqueado, conectam a área de Wernicke e a área de Broca. Esta última se
encarrega de interpretar os movimentos musculares para cada som de
cada palavra. É a parte do cérebro que está encarregada da pronúncia das
palavras.
d. Fase 4: algumas partes do córtex motor vão se encarregar de enviar
informações para a boca, língua e laringe para que organizem seus
músculos para a pronunciação das palavras.
e. Fase 5: o cerebelo se encarrega da fluidez verbal, organização das
palavras, sintaxe, leitura, escrita e das habilidades metalinguísticas.

São várias as áreas do cérebro que se ativam quando se processa a


linguagem, todavia, as áreas aqui apresentadas são consideradas as mais
básicas da anatomia do cérebro para a produção da linguagem no homem.

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FINALIZANDO

Vários estudiosos tentaram explicar como a linguagem se desenvolve no ser


humano. Uns afirmam que esse desenvolvimento se dá pelas interações com o
ambiente externo, outros defendem que somente com uma construção interna a
linguagem poderia ser realizada, mas todos hão de convir que existe uma
imprescindível e poderosa base biológica que dá suporte para que a linguagem
humana obtenha sucesso. Para que se entenda como a biologia pode influenciar
os processos linguísticos, estudar as estruturas cerebrais e musculares que formam
a linguagem se faz necessário.
Nesse ínterim, a neurofisiologia da linguagem se apresenta como uma
ciência que tem por objetivo estudar as estruturas do sistema nervoso central para
compreender como a linguagem se forma e se desenvolve no ser humano. Nesse
ponto a tecnologia tem se mostrado como uma grande aliada desses estudos.
Os estudos de Noam Chomsky se atualizam a cada conhecimento novo que
surge, assessorados pelas tecnologias que avançam e levam os pesquisadores a
se aprofundarem cada vez mais na investigação de como o cérebro humano em
sua vertente biológica funciona para que a linguagem humana possa continuar se
desenvolvendo.

LEITURA COMPLEMENTAR

Texto de abordagem teórica

MASCARELLO, L. J. Lingua(gem) sob duas perspectivas teóricas. Working


Papers em Linguística, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 61-71, jan./jun. 2009.
Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/workingpapers/article/view/1984-
8420.2009v10n1p61>. Acesso em: 13 nov. 2020.

Texto de abordagem prática

SENA, F. V. de; GOMES, N. dos S. Aquisição da linguagem: uma abordagem


gerativa. In: Revista Philologus, Rio de Janeiro, ano 21, n. 63 – Supl.: Anais da
X CNLF, set./dez. 2015. Disponível em:
<http://www.filologia.org.br/rph/ANO21/63supl/039.pdf>. Acesso em: 6 jun. 2018.

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REFERÊNCIAS

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