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O LATIM E SUAS VARIEDADES

A princípio, o que existia era simplesmente o latim. Depois, o idioma dos romanos
se estiliza, transformando-se num instrumento literário. Passa então a apresentar dois
aspectos que, com o correr do tempo, se tornam cada vez mais distintos: o clássico e o
vulgar. Não eram duas línguas diferentes, mas dois aspectos da mesma língua. Um
surgiu do outro, como a árvore da semente. Essas duas modalidades do latim, a literária e
a popular, receberam dos romanos a denominação respectivamente de sermo urbanus e
sermo vulgaris1.
Diz-se latim clássico a língua escrita, cuja imagem está perfeitamente configurada
nas obras dos escritores latinos. Caracteriza-se pelo apuro do vocabulário, pela correção
gramatical, pela elegância do estilo, numa palavra, por aquilo que Cícero chamava, com
propriedade, a urbanitas. Era uma língua artificial, rígida, imota. Por isso mesmo que não
refletia a vida trepidante e mudável do povo, pôde permanecer, por tanto tempo, mais ou
menos estável.
A tradição literária começa em Roma no século III a.C., com o aparecimento dos
primeiros escritores: Lívio Andronico, Cneu Névio, Enio. Antes, o que havia eram simples
inscrições de nulo valor literário. O período de ouro do latim clássico é representado pela
época de Cícero e de Augusto. É então que aparecem os grandes artistas da prosa e do
verso, que levam a língua ao seu maior esplendor2.
Chama-se latim vulgar o latim falado pelas classes inferiores da sociedade romana
inicialmente e depois de todo o Império Romano 3. Nestas classes estava compreendida a
imensa multidão das pessoas incultas que eram de todo indiferentes às criações do
espírito, que não tinham preocupações artísticas ou literárias, que encaravam a vida pelo
lado prático, objetivamente.
A estas pertenciam os soldados (milites), os marinheiros (nautae), os artífices
(fabri), os agricultores (agricolae), os barbeiros (tensores), os sapateiros (sutores), os
taverneiros (caupones), os artistas de circo (histriones), etc., homens livres e escravos,
que se acotovelavam nas ruas, que se comprimiam nas praças, que freqüentavam o
forum, que superlotavam os teatros, a negócio ou em busca de diversões, tôda essa

1
COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de Gramática Histórica. 6. ed. Livraria Acadêmica: Rio de Janeiro, 1969, p. 29.
2
Idem.
3
A expressão latim vulgar, embora geralmente admitida, é imprópria para significar o que com ela se pretende. Por isso,
tem-se procurado corrigir essa impropriedade, substituindo-a por outras. Convém citar a êste respeito o que diz o prof.
Serafim da Silva Neto: “As variedades da língua falada chamaremos sermo usualis, latim corrente, latim coloquial –
fugindo à expressão latim vulgar, que é muito defeituosa”. (Font. do Lat. Vulg., p. 27). Podem-se distinguir, segundo êle,
na língua corrente quatro matizes: “Embora sem precisão matemática, penso que podemos admitir quatro matizes da
língua corrente: familiar (latim das classes médias, dos honestiores ciado pela urbanitas); vulgar (latim das baixas
camadas da população, dos escravos); girias (militar, dos gladiadores, dos marinheiros, etc.); provincial”. (Hist. do Lat.
Vulg., p. 27).
1
gente, enfim, que, se passara pela escola, dela só conservara os conhecimentos mais
necessários ao exercício da sua atividade.
Representava êsse latim, pois, a soma de todos os falares das camadas sociais
mais humildes. Era uma espécie de denominador comum, que se sobrepunha às gírias
das várias profissões, como um instrumento familiar de comunicação diária.
Encerrava êle não poucos arcaísmos, banidos da língua literária, a par de um
grande número de inovações ou empréstimos, que se refletiam principalmente no
vocabulário, em conseqüência das conquistas.
Contido durante muito tempo, em suas expansões naturais, pela ação dos
gramáticos, da literatura e da classe culta, o latim vulgar se expande livremente mais
tarde, com a ruína do Império Romano e o avassalamento dos seus domínios pelas
hordas bárbaras, cuja conseqüência foi, e não podia deixar de ser, o fechamento das
escolas e o desaparecimento da aristocracia, onde se cultivavam as boas letras4.
Produto de uma contribuição tão variada, em que ao lastro primitivo, de humilde
origem rural, se haviam sobreposto elementos diversos dialetais ou de outra procedência,
êsse latim encerrava já em si o germe da diferenciação, que se foi acentuando cada vez
mais, desde que o adotaram como idioma comum povos tão diversos pela língua e pelos
costumes5.
Foram essas transformações, que êle sofreu em cada região, que deram em
resultado o aparecimento dos diferentes romances e, posteriormente, das várias línguas
neolatinas.
Não é fácil conhecer, em seus pormenores, esta modalidade do latim. Nos autores
latinos não houve nunca o propósito deliberado de retratar o falar do vulgo. O humilde
entalhador, ao gravar na pedra ou no mármore uma inscrição, julgava estar escrevendo a
boa língua, ou seja, o latim clássico6.
Era a literatura latina uma espécie de círculo fechado às manifestações da vida
popular. Os escritores punham sempre grande empenho em evitar o emprêgo de palavras
ou expressões da plebe. Assim, não é em suas obras que se pode estudar o sermo
vulgaris. Com isso, entretanto, não queremos dizer que não se encontrem absolutamente
palavras ou expressões do povo em seus trabalhos. Não é possível supor que o sermo
urbanus, em contacto permanente com o vulgaris, não se deixasse penetrar de certos
vulgarismos, como também não se pode negar que a língua do povo contivesse palavras
ou expressões pertencentes à língua culta7.

4
COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de Gramática Histórica. 6. ed. Livraria Acadêmica: Rio de Janeiro, 1969, p. 30.
5
Idem, p. 30-31.
6
“É difícil, diz Menéndez Pidal, o conhecimento do latim vulgar, pois nunca foi escrito deliberadamente: o canteiro mais
rude, ao gravar um letreiro, propunha-se escrever a língua clássica”. (Man. de Gram. Hist. Esp., p. 3).
7
COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de Gramática Histórica. 6. ed. Livraria Acadêmica: Rio de Janeiro, 1969, p. 31.
2
Os poucos informes que temos do latim vulgar são-nos ministrados: a) pelos
trabalhos dos gramáticos, na correção das formas errôneas usuais; b) pelas obras dos
comediógrafos, quando apresentam em cena pessoas do povo, falando; c) pelas
inscrições, que nos legaram humildes artistas plebeus; d) pelos cochilos dos copistas; e)
pelos erros ocasionais dos próprios escritores cultos, principalmente dos últimos tempos.
Por semelhantes documentos e pelos abundantes subsídios que nos fornecem as
línguas românicas, podemos concluir que bem profundas eram as diferenças que
extremavam o sermo vulgaris do sermo urbanus8.
No estudo do latim vulgar, deve-se salientar a importância das obras dos escritores
da decadência romana, sobretudo daqueles que, visando a um objetivo superior,
escreviam com simplicidade, sem a preocupação da gramática e do estilo. Neste número,
estão os escritores cristãos. Fontes de informação segura, para o conhecimento desta
modalidade do latim, são igualmente o De architectura de Vitrúvio (séc. I), a Cena
Trimalchionis de Petrônio (séc. I), o Appendix Probi (séc. III), o Opus agriculturae e o De
medicina pecorum de Paládio (séc. IV), a Peregrinatio ad loca sancta da monja hispânica
Egéria (séc. IV), a Mulomedicina Chironis (séc. V), a Regula Monachorum (séc. VI), as
obras de Gregório de Tours (séc. VI), as de Isidoro de Sevilha (séc. VII) e as Glosas9.
Caracteriza-se êste latim:
a) no VOCABULÁRIO:
1) pela preferência dada às palavras compostas, derivadas ou expressões perifrásicas:
*accu'iste (iste), depost (post), fortimente (fortiter); *calcaneare (calcaneum), ovicula
(ovis), *permanescere (permanere), *coratio (cor), *sperantia (spes); vernum tempus (ver),
jam magis (nunquam), hac hora (nunc);
2) pelo sentido especial, atribuído a alguns vocábulos do latim clássico: comparare
(comprar), viaticum (viagem), parentes (parentes), paganus (pagão);
3) pelo emprêgo freqüente de têrmos, representativos de idéias, que eram expressas
diferentemente no latim literário: caballus (equus), apprendere (discere), jocus (ludus),
bucca (os), focus (ignis), casa (domus), grandis (magnus), omnis (totus), campus (ager),
bellus (pulcher), bibere (potare), manducare (edere).
b) na FONÉTICA:
1) pela redução dos ditongos e hiatos a simples vogais: plostrum (plaustrum), orum
(aurum), preda (praeda), paretes (parietes), quetus (quietus), dodece (duodecim), cortem
(cohortem), battalia (battualia), prendere (prehendere), febrarius (februarius);
2) pela transformação ou queda de alguns fonemas: justicia (iustitia), cocere (coquere),
paor (pauor), rius (riuus);

8
Idem.
9
Idem, p. 31-32.
3
3) pelo obscurecimento dos sons finais: es (est), dece (decem), mecu (mecum), posuerun
(posuerunt), pos (post), ama (amat), biber (bibere);
4) pela tendência a evitar as palavras proparoxítonas: masclus (masculus), domnus
(dominus), caldus (calidus), fricda (frigida), virdis (viridis);
5) pela perda da aspiração representada no latim clássico pelo h: omo (homo), abere
(habere), eres (heres)10;
6) pela transposição do acento tônico, em circunstâncias especiais: cathédra (cáthedra),
intégrum (integrum), muliéris (mulieris), *reténet (rétinet)11;
7) pela confusão reinante entre i e e, sobretudo em hiato: famis (fames), nubis (nubes),
vinia (vinea), lileum (lilium), aria (area); e entre b e v: serbus (servus), vaclus (baculus),
albeus (alveus);
8) pela desnasalação ou queda do n no grupo ns e nf: asa (ansa), costat (constat), mesa
(mensa), iferi (inferi);
9) pelas freqüentes assimilações: isse (ipse), pessicum (persicum), dossum (dorsum),
grunnio (grundio), *verecunnia (verecundia);
10) pela prótese de um i nos grupos iniciais st, sp, sc: istare (stare), ispiritus (spiritus),
iscribere (scribere).
c) na MORFOLOGIA:
1) pela redução das cinco declinações do latim clássico a três, proveniente da confusão
da quinta com a primeira e da quarta com a segunda: *dia, ae (dies, ei), glacia, ae
(glacies, ei); fructus, i (fructus, us), gemitus, i (gemitus, us);
2) pela redução dos casos, tendo-se conformado, em todas as declinações, o vocativo
com o nominativo; o genitivo, dativo e ablativo, já desnecessários pelo emprêgo mais
freqüente das preposições, com o acusativo: cum filios (cum filiis), ex litteras (ex litteris),
Saturninus cum discentes (cum discentibus);
3) pela tendência para tornar masculinos os nomes neutros quando no singular: vinus
(vinum), fatus (fatum), templus (templum); e femininos, quando no plural: *folia (gen.
foliae), ligna (gen. lignae), fata (gen. fatae);
4) pela substituição das formas sintéticas do comparativo e superlativo pelas analíticas:
plus ou magis certus (certior), multum justus (justissimus);
5) pelo uso do demonstrativo ille, illa, e do numeral unus, una, como artigos: ille homo, illa
domus, unum templum;
6) pela confusão nas conjugações: florire (florere), *lucire (lucere), *ridire (ridere), *sapére
(sápere), *cadére (cádere), tóndere (tondére);

10
COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de Gramática Histórica. 6. ed. Livraria Acadêmica: Rio de Janeiro, 1969, p. 32.
11
COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de Gramática Histórica. 6. ed. Livraria Acadêmica: Rio de Janeiro, 1969, p. 33.
4
7) pela formação analógica de alguns infinitivos irregulares: *essere (esse), potere
(posse), *volere (velle);
8) pela transformação dos verbos depoentes e ativos: *sequo (sequor), mentio (mentior),
irasco (irascor)12;
9) pela substituição do futuro imperfeito do indicativo por uma perífrase em que entrava o
infinitivo de um verbo e o indicativo de habere: amare habeo (amabo), debere habeo
(debebo), audire habeo (audiam)13;
10) pelo emprego de uma perífrase verbal, constituída pelo infinitivo e o imperfeito do
indicativo de habere, que deu origem ao nosso condicional14: amare habebam, audire
habebam;
11) pelo uso do mais-que-perfeito do subjuntivo pelo imperfeito do mesmo modo:
amassem (amarem), legissem (legerem), audissem (audirem);
12) pelo emprêgo de perífrases, formadas pelo verbo sum e particípio passado de outro
verbo, em lugar das formas passivas sintéticas: amatus sum (amor), captus sum (capior),
auditus sum (audior);
13) pelo desuso de alguns tempos da conjugação do latim clássico, tais como: o supino, o
futuro do imperativo, o perfeito do infinitivo, etc.
d) na SINTAXE:
1) pelas construções analíticas: credo quod terra est rotunda por credo terram esse
rotundam;
2) pelo emprêgo mais freqüente das preposições em vez dos casos: dedi ad patrem (dedi
patri), liber de Petro (Petri liber);
3) pela regência diferente de alguns verbos: persuadere aliquem, maledicere aliquem;
4) pela ordem direta: “Haec est autem uallis ingens et planissima, in qua filii Israhel
commorati sunt his diebus, quod sanctus Moyses ascendit in montem Domini, et fuit ibi
quadraginta diebus et quadraginta noctibus”15.
Algumas das particularidades aqui mencionadas, existiam também no latim
clássico, porém mais se acentuaram no vulgar. Difícil é saber se elas pertenceram a todas
as fases da língua falada, que se verificavam nos últimos tempos, provam-no as línguas
novilatinas ou românicas16.

12
Idem, p. 33.
13
COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de Gramática Histórica. 6. ed. Livraria Acadêmica: Rio de Janeiro, 1969, p. 34.
14
Chamado futuro do pretérito na “Nova Nomenclatura Gramatical Brasileira”.
15
Apêndice de Francisco de B. Moll à Introd. al Lat. Vulg., de Grandgent, p. 297 (Peregrin. ad loca sancta).
16
COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de Gramática Histórica. 6. ed. Livraria Acadêmica: Rio de Janeiro, 1969, p. 34.
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