Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
or
od V
aut
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
CATALOGAÇÃO NA FONTE
R
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506
o
E56
aC
Encontros de Michel Foucault com Gilles Deleuze e Félix Guattari: governamentalida-
des, arqueogenealogias e cartografias / Flávia Cristina Silveira Lemos et al. (organizadores)
– Curitiba : CRV, 2022.
DOI 10.24825/978652512402.5
a re
159.9(44) 100.0944
Índice para catálogo sistemático
Ed
1. Psicologia - 150
ão
2022
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 – E-mail: sac@editoracrv.com.br
Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br
A GOVERNAMENTALIDADE NAS
PRÁTICAS DE ASSISTÊNCIA
SOCIAL VOLTADAS ÀS CRIANÇAS
or
E ADOLESCENTES NO BRASIL
od V
aut
Robert Damasceno Monteiro Rodrigues
R
Introdução
o
Estudar as políticas de assistência social no Brasil é fundamental para
aC
a psicologia, tendo em vista a quantidade de profissionais da área presentes
nos mais diversos estabelecimentos socioassistenciais em todas as regiões
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Flávia Cristina Silveira Lemos. Nele, fazemos uma crítica à constituição his-
tórica da assistência social no Brasil, identificando as séries históricas de sua
formação à determinadas tecnologias de governo das condutas como formas
de governamentalidade, como a caridade e a pastoral cristã, a filantropia e a
par
explicitas pelo historiador, que estaria também em estreita relação com outras
ciências sociais e humanas. Distanciando-se de uma história naturalizada e
fundada no culto ao progresso, que via nos documentos escritos sua única
fonte de informações e que, por isso, deveriam ser submetidos a um intenso
trabalho de crítica de sua autenticidade, Febvre, por exemplo, identificava o
or
documento, assim como o próprio conhecimento sobre o passado, à partici-
od V
pação ativa, rigorosa e seletiva do historiador (SALIBA, 2012).
aut
De modo semelhante, Bloch oferecia um novo quadro de reflexões para
os documentos, considerando-os “não apenas um resto, um vestígio do pas-
R
sado, mas um produto do passado, ou seja, produzido por relações de força
assimétricas, desiguais sempre, de um passado agônico, irregular e contin-
gente” (SALIBA, 2012, p. 317). A compressão sobre documentos, fontes
o
históricas e o trabalho do historiador foi, posteriormente, ampliada e refinada
aC
por outros analistas, como Michel de Certeau, Geroges Duby, Jacques Le Goff
e Paul Veyne, dentre outros. De agora em diante,
guiam silenciar outras, seja pelo exercício explicito de poder, seja pelo
ato velado de inclusão ou anexação (SALIBA, 2012, p. 319).
or
o que as pessoas efetivamente pensam e fazem, como produtores e resultados
od V
destes acontecimentos (FOUCAULT, 2011).
aut
Segundo Foucault (2013a), a genealogia se opõe e se recusa à pesquisa da
origem, primeiramente porque tal pesquisa se esforça em fundar-se na essência
R
exata das coisas, por outro lado, distanciando-se da metafísica, o que a genealo-
gia encontra no começo histórico das coisas, é que elas são sem essência – não
uma identidade originária e ainda preservada, mas as paixões, as necessidades,
o
os imprevistos e invenções dos dominadores. Em segundo lugar, porque “o
aC
começo histórico é baixo”, quer dizer, é irônico e derrisório – não a perfeição
e grandeza da origem, mas todas as marcas sutis e singulares que descorti-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
or
daquilo que somos hoje e o que fazemos – como governamos os outros; como
od V
somos governados; como nos governamos, enfim, como lutamos para não ser
aut
governados. Nesse sentido, para Foucault (2013a), trata-se de destruir siste-
maticamente tudo aquilo “em que o homem se apoia para voltar em direção à
história e apreendê-la em sua totalidade, tudo o que permite retraçá-la como
R
um paciente movimento contínuo [...] A história será “efetiva” à medida que
reintroduzir o descontínuo em nosso ser” (FOUCAULT, 2013a, p. 72).
o
A arqueologia, por sua vez, não se dissocia nem se distancia da genealo-
aC
gia, pelo contrário, ambas se complementam e se interseccionam, trabalhando
a massa documental como produtos do passado, acontecimentos e fontes para
é, para uma sociedade, uma certa maneira de dar status e elaboração à massa
a re
documental de que ela não se separa” (p. 8). Torna-se necessário, portanto,
reconstituir a edificação de um documento através da análise histórica de sua
formação discursiva na produção de saberes, entretanto, também é fundamen-
tal que encaremos o documento – restituído seu caráter monumental – como
peça de uma relação de forças que tem efeitos de poder a ele associados e pode
par
nem qual é seu valor expressivo, mas sim trabalha-lo no interior e elaborá-
-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e repete em níveis, estabelece
séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos,
s
Foucault (2013b) nos propõe tratar, deste modo, os discursos como práticas,
resultantes, por sua vez, de um conjunto de acontecimentos discursivos iden-
tificados na materialidade da massa documental; tomamos o documento como
um monumento, resultado de um trabalho histórico, talhado pela seletividade
da memória, produzido por relações de poder-saber-sujeição e detonador de
regimes de verdade; e identificamos os acontecimentos que formam as séries de
ENCONTROS DE MICHEL FOUCAULT COM GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
governamentalidades, arqueogenealogias e cartografias 227
or
seu lugar e consiste na relação, coexistência, dispersão, recorte, acumulação,
od V
seleção de elementos materiais” (FOUCAULT, 2013b, p. 54).
aut
Deste modo, segundo Prado Filho, Lobo e Lemos (2014, p. 30), “Um
acontecimento pode assinalar a descontinuidade de um fluxo, a ruptura de um
R
processo, de uma experiência ou de uma prática”, no entanto, trabalhar uma
história acontecimental também permite evidenciar as diversas táticas de sujei-
ção que operam no presente e traçar linhas de fuga para “emergências diversas:
o
a irrupção da diferença, de um ato transgressivo, uma prática de resistência ou
aC
de liberdade – é nesse registro que um acontecimento deve ser lido” (ibdem).
Portanto, a história é formada por acontecimentos que constituem as práticas
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
heterotopias que nos possibilitem ocupar espaços outros onde possamos nos
constituir enquanto sujeitos de nossa conduta, efetivando práticas de liberdade.
or
em que constituem estes sujeitos, práticas de governo dos mesmos, orientadas
od V
por formas de racionalidade específicas. A governamentalidade constitui-se,
aut
para nós, como chave de decifração histórica para os acontecimentos que vão
formar as práticas de assistência social de crianças e adolescentes.
R
Podemos compreender a governamentalidade, em primeiro lugar, como
uma forma de racionalidade, ou seja, “uma forma de ser do pensamento polí-
tico, econômico e social que organiza as práticas de governo desenvolvidas
o
em um determinado tempo e em uma determinada sociedade” (LOCKMANN,
aC
2013, p. 78). Daí podermos falar na Pastoral das almas e na Razão de Estado
como formas de racionalidade do governo, bem como em governamentalidade
das pessoas e das populações – ou seja, das artes de governar. Estas se referem
a uma série de problemas de governo que já aparecem em diversos tratados
desde o século XVI: o problema do governo de si mesmo, das almas e dos
doentes, das crianças, dos trabalhadores, das famílias e do Estado.
par
mas que tinha como objetivo final a força do soberano; de outro a introdução
da economia no exercício do governo tendo por base o modelo da família.
A emergência da governamentalidade ocorre, portanto, com o desbloqueio
s
or
e objetivo final do governo, tendo a família como unidade de intervenção.
od V
Desenvolvem-se, portanto, uma série de aparelhos, instrumentos e técnicas que
aut
vão agir diretamente sobre a população – como as ações contra a mortalidade,
campanhas de vacinação, as relativas ao casamento, à educação, ao trabalho,
R
etc. – visando gerir, regulamentar e controlar seus fenômenos específicos,
seus fluxos, taxas e proporções.
o
Para Foucault (2013c, p. 430), “São as táticas de governo que permitem
definir a cada instante o que deve ou não competir ao Estado, o que é público
aC
ou privado, o que é ou não estatal”. Desde o século XVI, portanto, o Estado
passou a adotar mecanismos de direção da conduta das pessoas e das popu-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
or
racionalidade do pastorado cristão, operando, portanto, o governo das condutas
od V
segundo a estratégia do poder pastoral. Segundo Marcílio (1998, p. 134):
aut
O assistencialismo dessa fase tem como marca principal o sentimento da
fraternidade humana, de conteúdo paternalista, sem pretensão a mudan-
R
ças sociais. De inspiração religiosa, é missionário e suas formas de ação
privilegiam a caridade e a benemerência. Sua atuação se caracteriza pelo
o
imediatismo, com os mais ricos e poderosos procurando em minorar o
aC
sofrimento dos mais desvalidos, por meio de esmolas ou das boas ações
– coletivas ou individuais. Em contrapartida, esperam receber a salvação
de suas almas, o paraíso futuro e, aqui na terra, o reconhecimento da
sem o qual não haveria salvação de suas almas” (MARCÍLIO, 1998, p. 145).
ver
or
Filantropia, Polícia e Razão de Estado
od V
aut
O crescimento populacional elevado associado à queda das taxas de mor-
talidade na Europa de fins do século XVIII levou a um vertiginoso aumento
R
da população infanto-juvenil, ao mesmo tempo, a consolidação do Estado
moderno e os valores do iluminismo e do higienismo associados ao desen-
volvimento técnico-científico decorrente da revolução industrial levaram, de
o
um lado, à emergência de uma nova concepção de assistência – dissociada
aC
dos valores cristãos da caridade e direcionada à vida biológica e seus efeitos
para a sociedade – e, de outro, a uma reorganização da estratégia adotada pelo
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Estado tendo em vista sua racionalidade interna, seu crescimento e sua força.
visã
A filantropia constitui-se, portanto, como tipo de práticas de assistência
social associada à racionalidade da razão de Estado ao lado da formação da
polícia. Emergem, deste modo, “as primeiras políticas públicas sociais. Busca-
va-se adequar essas políticas ao ideário do progresso, da ciência, da medicina
itor
ao Estado, ela é o que lhe permite, ao mesmo tempo, aumentar o seu poder
e exercer sua potência em toda sua amplitude, seu objetivo central é “desen-
volver os elementos constitutivos da vida dos indivíduos [trabalho, comércio,
s
or
mecanismos de regulação da conduta dos indivíduos e da população – neste
od V
caso crianças e adolescentes – tendo em vista objetivos de caráter político,
aut
econômico, demográfico, de segurança, etc.
A filantropia desenvolve-se, no Brasil, entre o final do século XIX e iní-
R
cio do XX. Com o deslocamento de uma verdade religiosa para uma verdade
baseada em princípios científicos e racionais houve também um rearranjo
das práticas de assistência social voltadas para crianças e adolescentes. Este
o
acontecimento vincula-se á emergência de uma nova racionalidade política,
aC
neste período, que visava conhecer a fundo a realidade do Estado brasileiro e,
com isso, incitar os indivíduos a agirem de determinada forma, ou seja, gover-
or
de trabalho e “educar, formar, proteger e corrigir menores abandonados”
(MARCÍLIO, 1998, p. 208).
od V
Inúmeras medidas foram, portanto, tomadas para governar as crianças e
aut
adolescentes. Durante toda a Primeira República e até o final da década de 1960,
foram criadas instituições, leis, programas e projetos de caráter assistencial-filan-
R
trópico. Nesse sentido foi criado, em 1919, o Departamento Nacional da Criança
(DNCr); em 1921 o Serviço de Assistência e de Proteção à Infância; em 1924
o
o Conselho de Assistência e Proteção aos Menores; em 1927 foi aprovado o
aC
Código de Menores e, em 1941, foi Criado o Serviço de Assistência ao Menor,
antecessor direto da Funabem (1964), dentre diversos outros.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
racional, que, por sua vez, é considerada o modelo formal do conjunto dos
problemas sociais” (p. 42).
Deste modo e, nos marcos de um Estado governamentalizado, com-
ão
or
Um dos traços característicos do neoliberalismo encontra-se na gestão das
od V
liberdades individuais, de um lado, e no investimento em capital humano, de
aut
outro. Quer dizer, gerir liberdades significa permitir que as pessoas, o Estado
e a sociedade possam investir em suas formas-empresa, concorrer livremente
R
entre si no mercado, e produzir para si um capital. Deste modo vemos emergir
o homo oeconomicus do neoliberalismo, aquele que, individualizado e inde-
o
pendente, constitui-se como empresário de si mesmo, tomando a si mesmo
aC
como seu capital, “sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo
a fonte de sua renda” (FOUCAULT, 2008, p. 311).
or
(BRASIL, 1993). O Conselho Nacional de Assistência Social foi regula-
od V
mentado em 1995 e, no ano seguinte, foi implantado o Fundo Nacional de
aut
Assistência Social (CNAS).
Respondendo à demanda da 2ª Conferência Nacional da Assistên-
cia Social, em 1998 é aprovada, pelo CNAS, a criação de uma Política
R
Nacional de Assistência Social (PNAS), mas que só começou a ser de fato
implantada em 2004, quando a política assume nova versão e redesenho
o
sob a perspectiva de um Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Com
aC
este acontecimento a assistência social passa a ser pensada como política
de direito, não mais como filantropia ou caridade, mas como “prática
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
or
de pleno emprego – acabaram por fragilizar ainda mais a população pobre
od V
(GADELHA, 2013), constituindo-a como perigosa e, portanto, alvo de polí-
aut
ticas de assistência social, que segundo Lockmann (2013b), ao governarem
a conduta da população e dos indivíduos, configuram-se como “estratégias
biopolíticas que objetivam gerenciar os riscos produzidos pela fome, pela
R
miséria, pelo desemprego, pela doença, pela deficiência, etc e garantir a
seguridade da população” (p. 43).
o
aC
REFERÊNCIAS
AVELINO, Nildo. Foucault, governamentalidade e neoliberalismo. In: 1º
ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS FOUCAULTIANOS:
or
GOVERNAMENTALIDADE E SEGURANÇA, 13 a 15 de maio de 2014.
Anais [...]. João Pessoa. p. 879-982.
od V
aut
BRASIL. Lei Orgânica da Assistência Social – Lei nº 8.742, de 7 de dezem-
bro de 1993. Brasília: Ministério do desenvolvimento social e combate à
R
fome, 1993.
o
BRASIL. Política Nacional de Assistência Social – PNAS. Brasília: Ministério
aC
do desenvolvimento social e combate à fome, 2004.
or
od V
FOUCAULT, Michel. “Mesa-redonda em 20 de Maio de 1978. In: MOTTA,
aut
M. B. da (org.). Estratégia Poder-Saber. (Coleção Ditos & Escritos v. IV).
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010c. p. 335-351.
R
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège
de France (1978-1979). Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
o
Fontes, 2008.
aC
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e história. In: MACHADO,
NOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estru-
turalismo e da hermenêutica. Tradução: Vera Portocarrero e Gilda Gomes
Carneiro. 2. ed. ver. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010b.
ão
or
Editora Hucitec, 1998.
od V
aut
PRADO FILHO, K; LOBO, L. F.; LEMOS, F. C. S. A história do presente em
Foucault e as lutas atuais. Fractal Revista de Psicologia. v. 26, n. 1, p. 29-42,
jan./abr. 2014.
R
SALIBA, E. T. Aventuras modernas e desventuras pós-modernas. In:
o
PINSKY, C. B.;
aC
SOARES, L. T. R. Os custos sociais do ajuste neoliberal no Brasil. In: EL
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão