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or
od V
aut
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
CATALOGAÇÃO NA FONTE

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Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

o
E56
aC
Encontros de Michel Foucault com Gilles Deleuze e Félix Guattari: governamentalida-
des, arqueogenealogias e cartografias / Flávia Cristina Silveira Lemos et al. (organizadores)
– Curitiba : CRV, 2022.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


842 p. (Coleção Transversalidade e Criação – Ética, Estética e Política, v. 17).
visã
Bibliografia
ISBN Coleção 978-85-444-1750-8
ISBN Volume Digital 978-65-251-2400-1
ISBN Volume Físico 978-65-251-2402-5
itor

DOI 10.24825/978652512402.5
a re

1. Psicologia 2. Filosofia 3. História 4. Sociologia, 5. Educação I. Lemos, Flávia Cristina Sil-


veira et al. org. II. Título III. Coleção Transversalidade e Criação – Ética, Estética e Política, v. 17 .

CDU 1(44) CDD 150.0944


par

159.9(44) 100.0944
Índice para catálogo sistemático
Ed

1. Psicologia - 150
ão

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s
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2022
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
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A GOVERNAMENTALIDADE NAS
PRÁTICAS DE ASSISTÊNCIA
SOCIAL VOLTADAS ÀS CRIANÇAS

or
E ADOLESCENTES NO BRASIL

od V
aut
Robert Damasceno Monteiro Rodrigues

R
Introdução

o
Estudar as políticas de assistência social no Brasil é fundamental para
aC
a psicologia, tendo em vista a quantidade de profissionais da área presentes
nos mais diversos estabelecimentos socioassistenciais em todas as regiões
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do país, mas principalmente pelo compromisso social, ético e político da


visã
psicologia com a garantia de direitos dos mais vulneráveis, considerando o
papel determinante que a assistência cumpre nesse sentido.
Este texto é fruto da discussão teórica que realizei em meu Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC), defendido na faculdade de psicologia da Uni-
itor

versidade Federal do Pará (UFPA) em 2018, sob orientação da Profa. Dra.


a re

Flávia Cristina Silveira Lemos. Nele, fazemos uma crítica à constituição his-
tórica da assistência social no Brasil, identificando as séries históricas de sua
formação à determinadas tecnologias de governo das condutas como formas
de governamentalidade, como a caridade e a pastoral cristã, a filantropia e a
par

razão de Estado, as políticas públicas de assistência social e o neoliberalismo.


Um trabalho, evidentemente, histórico e político, portanto, resultado de
Ed

um esforço metodológico assentado nas contribuições legadas por Michel


Foucault para a genealogia e a arqueologia. Consideramos, deste modo, todos
os materiais que foram utilizados para esta escrita, como peças documentais
ão

que podem ser analisadas tendo em vista a produção de uma história do


presente, que questiona o modo como fomos constituídos e desnaturaliza o
que parecia não ter história, mas que é disparador de inúmeros regimes de
s

verdade e relações de poder.


ver

Genealogia, arqueologia e a história do presente

Buscando romper com a marca positivista, metódica e factual da his-


toriografia vigente à época, a École des Annales, fruto da criação da revista
Annales d’Histoire Economique et Sociale por Marc Bloch e Lucien Febvre
nos anos de 1930, propunha uma história-problema através do uso de hipóteses
224

explicitas pelo historiador, que estaria também em estreita relação com outras
ciências sociais e humanas. Distanciando-se de uma história naturalizada e
fundada no culto ao progresso, que via nos documentos escritos sua única
fonte de informações e que, por isso, deveriam ser submetidos a um intenso
trabalho de crítica de sua autenticidade, Febvre, por exemplo, identificava o

or
documento, assim como o próprio conhecimento sobre o passado, à partici-

od V
pação ativa, rigorosa e seletiva do historiador (SALIBA, 2012).

aut
De modo semelhante, Bloch oferecia um novo quadro de reflexões para
os documentos, considerando-os “não apenas um resto, um vestígio do pas-

R
sado, mas um produto do passado, ou seja, produzido por relações de força
assimétricas, desiguais sempre, de um passado agônico, irregular e contin-
gente” (SALIBA, 2012, p. 317). A compressão sobre documentos, fontes

o
históricas e o trabalho do historiador foi, posteriormente, ampliada e refinada
aC
por outros analistas, como Michel de Certeau, Geroges Duby, Jacques Le Goff
e Paul Veyne, dentre outros. De agora em diante,

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visã
Qualquer análise documental não poderia ignorar o fato de que a História
se tornara um discurso em litígio, um campo de batalha onde pessoas,
classes e grupos elaboram autobiograficamente suas interpretações do
passado, geralmente para agradarem a si próprios. Todo consenso, ainda
itor

que temporário, só seria alcançado quando as vozes dominantes conse-


a re

guiam silenciar outras, seja pelo exercício explicito de poder, seja pelo
ato velado de inclusão ou anexação (SALIBA, 2012, p. 319).

Deste modo, realizar “uma ontologia do presente, uma ontologia de nós


mesmos” (FOUCAULT, 2011, p. 268), desnaturalizando as forças que his-
par

toricamente forjam a nossa subjetividade e problematizando as formas com


que somos sujeitados, no presente, mais do que “analisar o poder do ponto de
Ed

vista de sua racionalidade interna, consiste em analisar as relações de poder


através do antagonismo das estratégias” (FOUCUALT, 2010, p. 276). Nas
palavras de Le Goff (2003,), o documento-monumento “é o testemunho de
ão

um poder polivalente e, ao mesmo tempo, cria-o” (p. 538). É nesse sentido


que, seguindo as pistas deixadas por Michel Foucault e Friedrich Nietzsche,
s

ressaltamos a importância da genealogia e da arqueologia como ferramentas


ver

metodológicas para o trabalho histórico, considerando as fontes documentais


como formações discursivas e, portanto, como efeito de relações de poder
e que, por outro lado – como produtores de regimes de verdade – disparam
efeitos de saber que retroalimentam o poder.
Portanto, é necessário restituir ao documento o seu caráter monumental,
encarando-o como um produto da memória e de forças históricas que, em um
dado momento, rivalizavam pelo poder (LE GOFF, 2003). Ou seja, efetuar
ENCONTROS DE MICHEL FOUCAULT COM GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
governamentalidades, arqueogenealogias e cartografias 225

a crítica do documento como um monumento, reconstituindo as condições


históricas e políticas de sua produção e analisando seus efeitos de saber-poder-
-subjetivação é questionar o estatuto atual do sujeito, já que, o que realmente
importa para a análise do presente e o questionamento do que somos hoje não
são os grandes acontecimentos, sua origem e sua continuidade histórica, e sim

or
o que as pessoas efetivamente pensam e fazem, como produtores e resultados

od V
destes acontecimentos (FOUCAULT, 2011).

aut
Segundo Foucault (2013a), a genealogia se opõe e se recusa à pesquisa da
origem, primeiramente porque tal pesquisa se esforça em fundar-se na essência

R
exata das coisas, por outro lado, distanciando-se da metafísica, o que a genealo-
gia encontra no começo histórico das coisas, é que elas são sem essência – não
uma identidade originária e ainda preservada, mas as paixões, as necessidades,

o
os imprevistos e invenções dos dominadores. Em segundo lugar, porque “o
aC
começo histórico é baixo”, quer dizer, é irônico e derrisório – não a perfeição
e grandeza da origem, mas todas as marcas sutis e singulares que descorti-
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nam as fragilidades, os medos, os erros e as imperfeições de como as coisas


visã
começaram. Por fim, recusa-se a pesquisa da origem, pois ela “seria o lugar
da verdade”, refundada e reafirmada em sua longa maturação pela história, no
entanto, a genealogia demonstra que “atrás da verdade sempre recente, avara e
comedida, existe a proliferação milenar dos erros” (FOUCAULT, 2013a, p. 60).
itor

Opondo-se, portanto, à pesquisa da origem, e caminhando na direção


a re

de uma história efetiva, Foucault identifica em Nietzsche a proveniência e a


emergência como intrínsecos ao objeto próprio da genealogia. A proveniên-
cia, em primeiro lugar, permite dissociar o Eu de sua suposta unidade ao
reconstituir uma pluralidade de acontecimentos que marcam a produção dos
par

sujeitos; isso porque a análise da proveniência permite “manter o que se passou


na dispersão que lhe é própria” (ibdem, p. 63), ela demarca os acidentes, os
Ed

ínfimos desvios, as inversões completas e os erros que deram nascimento ao


que existe e tem valor para nós; enfim, a proveniência diz respeito ao corpo
– superfície de inscrição dos acontecimentos passados – de onde nascem os
ão

desejos, se estabelecem os mecanismos de sujeição e dominação, a história


do corpo é, por assim dizer, genealógica.
A emergência, por sua vez, designa o ponto de surgimento, ela se pro-
s

duz sempre em um determinado estado de forças e diz da relação que se


ver

estabeleceu entre sistemas de dominação e submissão no momento mesmo


dos acontecimentos. “Enquanto a proveniência designa a qualidade de um
instinto, seu grau ou seu desfacelamento, e a marca que ele deixa em um
corpo, a emergência designa um lugar de afrontamento” (ibdem, p. 68), mas
que ao mesmo tempo é um “não-lugar”, pois de um lado, os adversários não
estão no mesmo espaço, não ocupam a mesma posição e, de outro, ninguém
é responsável pela emergência, ela se produz sempre no interstício.
226

Deste modo, a história efetiva é aquela que dissocia a continuidade do


acontecimento, reintroduzindo o descontínuo naquilo que marca o presente
e fazendo o acontecimento ressurgir naquilo que ele pode ter de único e
agudo. Por isso mesmo ela lança um olhar prospectivo para o passado, apro-
ximando-se dele para logo se afastar e lançar um diagnóstico do presente,

or
daquilo que somos hoje e o que fazemos – como governamos os outros; como

od V
somos governados; como nos governamos, enfim, como lutamos para não ser

aut
governados. Nesse sentido, para Foucault (2013a), trata-se de destruir siste-
maticamente tudo aquilo “em que o homem se apoia para voltar em direção à
história e apreendê-la em sua totalidade, tudo o que permite retraçá-la como

R
um paciente movimento contínuo [...] A história será “efetiva” à medida que
reintroduzir o descontínuo em nosso ser” (FOUCAULT, 2013a, p. 72).

o
A arqueologia, por sua vez, não se dissocia nem se distancia da genealo-
aC
gia, pelo contrário, ambas se complementam e se interseccionam, trabalhando
a massa documental como produtos do passado, acontecimentos e fontes para

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a produção de uma história do presente. A arqueologia, enquanto análise das
formações discursivas, quer dizer, dos documentos, “é uma história dos dis-
visã
cursos considerados como monumentos, isto é, em sua espessura própria, na
materialidade que os caracteriza” (MACHADO, 1981, p. 172).
Foucault (2013b), em A arqueologia do saber, considera que “a história
itor

é, para uma sociedade, uma certa maneira de dar status e elaboração à massa
a re

documental de que ela não se separa” (p. 8). Torna-se necessário, portanto,
reconstituir a edificação de um documento através da análise histórica de sua
formação discursiva na produção de saberes, entretanto, também é fundamen-
tal que encaremos o documento – restituído seu caráter monumental – como
peça de uma relação de forças que tem efeitos de poder a ele associados e pode
par

produzir, no presente, não apenas regimes de verdade, saberes, mas também


domínios de objetos, sujeitos, subjetividades e novas relações de poder.
Ed

A história mudou sua posição acerca do documento: ela considera como


sua tarefa primordial não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade
ão

nem qual é seu valor expressivo, mas sim trabalha-lo no interior e elaborá-
-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e repete em níveis, estabelece
séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos,
s

define unidades, descreve relações (FOUCAULT, 2013b, p. 7-8).


ver

Foucault (2013b) nos propõe tratar, deste modo, os discursos como práticas,
resultantes, por sua vez, de um conjunto de acontecimentos discursivos iden-
tificados na materialidade da massa documental; tomamos o documento como
um monumento, resultado de um trabalho histórico, talhado pela seletividade
da memória, produzido por relações de poder-saber-sujeição e detonador de
regimes de verdade; e identificamos os acontecimentos que formam as séries de
ENCONTROS DE MICHEL FOUCAULT COM GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
governamentalidades, arqueogenealogias e cartografias 227

sua ordem discursiva nos entalhes do monumento, bem como os acontecimentos


que se inscrevem na história para efetivar a sua produção e são resultados de
jogos de poder. O acontecimento, portanto, na ordem de uma formação discur-
siva, “não é nem substância nem acidente, nem qualidade, nem processo; [...]
é sempre no âmbito da materialidade que ele se efetiva, que é efeito; ele possui

or
seu lugar e consiste na relação, coexistência, dispersão, recorte, acumulação,

od V
seleção de elementos materiais” (FOUCAULT, 2013b, p. 54).

aut
Deste modo, segundo Prado Filho, Lobo e Lemos (2014, p. 30), “Um
acontecimento pode assinalar a descontinuidade de um fluxo, a ruptura de um

R
processo, de uma experiência ou de uma prática”, no entanto, trabalhar uma
história acontecimental também permite evidenciar as diversas táticas de sujei-
ção que operam no presente e traçar linhas de fuga para “emergências diversas:

o
a irrupção da diferença, de um ato transgressivo, uma prática de resistência ou
aC
de liberdade – é nesse registro que um acontecimento deve ser lido” (ibdem).
Portanto, a história é formada por acontecimentos que constituem as práticas
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que objetivam e sujeitam; estes acontecimentos, raros e inteiramente diferentes,


precisam ser organizados e articulados de acordo com as suas regularidades
visã
– seja na ordem de uma formação discursiva seja seguindo o filão da prove-
niência e da emergência – ou seja, precisam ser colocados em séries. “É para
estabelecer as séries diversas, entrecruzadas, divergentes muitas vezes, mas não
itor

autônomas, que permitem circunscrever o ‘lugar do acontecimento, as margens


a re

de sua contingência, as condições de sua aparição” (FOUCAULT, 2013b, p. 53).

De agora em diante, o problema é constituir séries: definir para cada uma


seus elementos, fixar-lhes os limites, descobrir o tipo de relações que lhes
é específico, formular-lhes a lei e, além disso, descrever as relações entre
par

as diferentes séries, para constituir, assim, séries de séries, ou quadros


(FOUCAULT, 2013b, p. 9).
Ed

Dessa forma, efetuar uma ontologia histórica de nós mesmos através da


demolição das evidencias, do estranhamento das práticas e da desnaturalização
ão

dos objetos é trabalhar a história, recortá-la, seriá-la; é evidenciar relações


de poder-saber que produziram e produzem sujeitos e regimes de verdade; é
demarcar o não-lugar dos acontecimentos e organizá-los em séries; é utilizar
s

esse saber histórico, enfim, para realizar um corte na realidade e produzir


ver

heterotopias que nos possibilitem ocupar espaços outros onde possamos nos
constituir enquanto sujeitos de nossa conduta, efetivando práticas de liberdade.

Assistência Social e Governamentalidade

Não falaremos em assistência social, mas sim, de um lado, das diversas


práticas que a constituem como objeto e como experiência na história do Brasil
228

e, de outro, das formas de racionalidade política que se inscrevem em tais práti-


cas. Em outros termos, compreenderemos a assistência social na perspectiva da
governamentalidade, quer dizer, das formas de governar a conduta das pessoas
tendo em vista um determinado fim, em diferentes períodos da história. Deste
modo, as práticas de assistência social de crianças e adolescentes são, na medida

or
em que constituem estes sujeitos, práticas de governo dos mesmos, orientadas

od V
por formas de racionalidade específicas. A governamentalidade constitui-se,

aut
para nós, como chave de decifração histórica para os acontecimentos que vão
formar as práticas de assistência social de crianças e adolescentes.

R
Podemos compreender a governamentalidade, em primeiro lugar, como
uma forma de racionalidade, ou seja, “uma forma de ser do pensamento polí-
tico, econômico e social que organiza as práticas de governo desenvolvidas

o
em um determinado tempo e em uma determinada sociedade” (LOCKMANN,
aC
2013, p. 78). Daí podermos falar na Pastoral das almas e na Razão de Estado
como formas de racionalidade do governo, bem como em governamentalidade

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neoliberal, entendendo o neoliberalismo como uma racionalidade política.
visã
Referidas a cada uma destas três formas de racionalidade do governo, identifi-
camos, deste modo, diferentes práticas da assistência social, como a caridade,
a filantropia e as políticas públicas de assistência social.
Em segundo lugar, compreendemos governamentalidade como uma his-
itor

tória das práticas de governo – dos diferentes modos de conduzir a conduta


a re

das pessoas e das populações – ou seja, das artes de governar. Estas se referem
a uma série de problemas de governo que já aparecem em diversos tratados
desde o século XVI: o problema do governo de si mesmo, das almas e dos
doentes, das crianças, dos trabalhadores, das famílias e do Estado.
par

No entanto, as artes de governar encontravam-se bloqueadas até o início do


século XVIII, tendo, para tanto, razões históricas – as grandes crises do século
Ed

XVII que produziram urgências militares, políticas e econômicas – e razões que,


segundo Foucault (2013c, p. 421) “dizem respeito ao que se poderia chamar
de estrutura institucional e mental”: de um lado uma arte refletida de governo,
ão

mas que tinha como objetivo final a força do soberano; de outro a introdução
da economia no exercício do governo tendo por base o modelo da família.
A emergência da governamentalidade ocorre, portanto, com o desbloqueio
s

das artes de governar no século XVIII, quando o vertiginoso crescimento demo-


ver

gráfico nos países da Europa acarretou no aparecimento do problema político da


população. É quando ocorre o desenvolvimento de uma ciência do governo – com
os saberes da estatística, da medicina, da biologia – que desloca as preocupações
da economia do âmbito da família para a população, constituindo a economia
política, ao se perceber que, em decorrência de suas regularidades e características
próprias, de “seus deslocamentos, de sua atividade, a população produz efeitos
econômicos específicos” (FOUCAULT, 2013c, p. 424).
ENCONTROS DE MICHEL FOUCAULT COM GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
governamentalidades, arqueogenealogias e cartografias 229

Deste modo, a família deixa de ser modelo e se constitui como elemento


no interior da população e instrumento fundamental de governo. Segundo
Foucault (2013c), “quando se quiser obter alguma coisa da população – quanto
aos comportamentos sexuais, à demografia, ao consumo etc. – é pela família
que se deverá passar” (p. 425). Em resumo: a população aparece como objeto

or
e objetivo final do governo, tendo a família como unidade de intervenção.

od V
Desenvolvem-se, portanto, uma série de aparelhos, instrumentos e técnicas que

aut
vão agir diretamente sobre a população – como as ações contra a mortalidade,
campanhas de vacinação, as relativas ao casamento, à educação, ao trabalho,

R
etc. – visando gerir, regulamentar e controlar seus fenômenos específicos,
seus fluxos, taxas e proporções.

o
Para Foucault (2013c, p. 430), “São as táticas de governo que permitem
definir a cada instante o que deve ou não competir ao Estado, o que é público
aC
ou privado, o que é ou não estatal”. Desde o século XVI, portanto, o Estado
passou a adotar mecanismos de direção da conduta das pessoas e das popu-
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lações, através de cálculos diferenciais que levam em conta a segurança, na


visã
perspectiva de determinada racionalidade e valendo-se dos saberes da eco-
nomia política. Em outras palavras: o Estado, desde o final da Idade Média,
foi progressivamente governamentalizado.
itor

É inegável, portanto, a relação da governamentalidade com o desenvol-


vimento do capitalismo, desde a revolução industrial. Deste modo, a assis-
a re

tência passa a se constituir com o agravamento das questões sociais, que


demandam intervenções no campo da população a partir da célula familiar,
visando principalmente os setores mais vulnerabilizados pelas condições da
vida moderna: os trabalhadores (desempregados ou não), as crianças e ado-
par

lescentes abandonados, as famílias proletárias, etc.


Segundo Cruz e Guareschi (2012, p. 18), “a primeira configuração do
Ed

social está vinculada ao campo social assistencial”: intervenções dirigidas


a categorias de indivíduos carentes e/ou incapazes de trabalhar que não são
absorvidos em suas demandas pelas relações informais, levando a criação de
ão

uma série de equipamentos institucionais. Nesse sentido, ainda conforme as


autoras, a segunda configuração do social se refere à instauração da noção
s

de direitos – com a emergência do Estado moderno e o desenvolvimento do


ver

capitalismo – culminando com a consolidação da cidadania social no século


XX. Percebemos que o social se configura, deste modo, como um campo
de tencionamento entre o direito e o assistencialismo, entretanto, alerta
Castel (2011), o pleno exercício da cidadania social “exige um mínimo de
recursos e de direitos sociais que estão na base da independência social
dos indivíduos” (p. 107).
230

Caridade e Pastoral Cristã

A caridade foi o primeiro tipo de práticas de assistência social de crianças


e adolescentes no Brasil. Emergindo com o início da colonização e esten-
dendo-se até meados do século XIX, a caridade encontrava-se vinculada à

or
racionalidade do pastorado cristão, operando, portanto, o governo das condutas

od V
segundo a estratégia do poder pastoral. Segundo Marcílio (1998, p. 134):

aut
O assistencialismo dessa fase tem como marca principal o sentimento da
fraternidade humana, de conteúdo paternalista, sem pretensão a mudan-

R
ças sociais. De inspiração religiosa, é missionário e suas formas de ação
privilegiam a caridade e a benemerência. Sua atuação se caracteriza pelo

o
imediatismo, com os mais ricos e poderosos procurando em minorar o
aC
sofrimento dos mais desvalidos, por meio de esmolas ou das boas ações
– coletivas ou individuais. Em contrapartida, esperam receber a salvação
de suas almas, o paraíso futuro e, aqui na terra, o reconhecimento da

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sociedade e o status de beneméritos.
visã
A racionalidade do pastorado cristão fundamenta-se, sobretudo, na crença
da salvação após a morte, difundida pela igreja católica, como recompensa pelas
obras de misericórdia, exercidas em vida, em prol dos mais necessitados. Deste
itor

modo, ao exercer a caridade, tratava-se de garantir a salvação neste e no outro


a re

mundo – ou seja, do corpo e da alma – tanto das crianças desvalidas quanto de


quem praticava a misericórdia. “É por meio da crença na salvação eterna que
se torna possível exercer o poder sobre a conduta dos homens, determinando a
forma como devem agir neste mundo” (LOCKMANN, 2013, p. 92).
par

Até o final do século XIX, as principais instituições de assistência à


infância abandonada estiveram quase que exclusivamente associadas às Santas
Ed

Casas de Misericórdia. Apesar de o sistema informal ou privado de proteção e


criação de expostos em casas de família ter sido o mais amplo e presente em
toda a história do Brasil, as câmaras municipais e diversas instituições, como
ão

as Rodas dos Expostos e as Casas de Recolhimento, também se arrogavam a


tarefa de assistir às crianças e adolescentes desvalidos; todas estas iniciativas
tinham como premissa “não deixar os bebês sem o sacramento do batismo,
s

sem o qual não haveria salvação de suas almas” (MARCÍLIO, 1998, p. 145).
ver

Segundo Foucault (2010b, p. 280), o poder pastoral “não cuida apenas


da comunidade como um todo, mas de cada indivíduo em particular, durante
toda a sua vida”. Deste modo, a caridade configurou uma série de práticas
de governo das condutas voltadas a assistir – dirigir – crianças e adolescen-
tes, tanto no plano material (sobrevivência, saúde, educação, profissionali-
zação) quanto no espiritual, entretanto seus efeitos sempre foram irrisórios
e insuficientes, quando não perversos, promovendo a tutela dos pobres e
ENCONTROS DE MICHEL FOUCAULT COM GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
governamentalidades, arqueogenealogias e cartografias 231

marginalizados e o conformismo com as injustiças e desigualdades sociais,


pois sua estratégia permanecia sempre “no plano do atendimento individual a
pessoas cujos problemas são tomados também como individuais” (BENELLI;
COSTA-ROSA, 2012, p. 620).

or
Filantropia, Polícia e Razão de Estado

od V
aut
O crescimento populacional elevado associado à queda das taxas de mor-
talidade na Europa de fins do século XVIII levou a um vertiginoso aumento

R
da população infanto-juvenil, ao mesmo tempo, a consolidação do Estado
moderno e os valores do iluminismo e do higienismo associados ao desen-
volvimento técnico-científico decorrente da revolução industrial levaram, de

o
um lado, à emergência de uma nova concepção de assistência – dissociada
aC
dos valores cristãos da caridade e direcionada à vida biológica e seus efeitos
para a sociedade – e, de outro, a uma reorganização da estratégia adotada pelo
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Estado tendo em vista sua racionalidade interna, seu crescimento e sua força.
visã
A filantropia constitui-se, portanto, como tipo de práticas de assistência
social associada à racionalidade da razão de Estado ao lado da formação da
polícia. Emergem, deste modo, “as primeiras políticas públicas sociais. Busca-
va-se adequar essas políticas ao ideário do progresso, da ciência, da medicina
itor

higiênica, do interesse da nação, do liberalismo triunfante” (MARCÍLIO, 1998,


a re

p. 71). Ocorre um rearranjo das práticas voltadas para as crianças e adolescentes


abandonos e desvalidos, a pátria os nutriria e garantiria sua sobrevivência, pois
são considerados filhos do Estado; “em compensação, esses filhos da pátria
deveriam prestar serviços a ela, serem ‘úteis a si e à nação’” (ibdem, p. 72).
par

Foucault (2010d) considera a razão de Estado como uma arte, ou seja,


uma técnica conformada a certas regras voltada à observação da natureza do
Ed

que é governado, no caso o Estado, objetivando conhecê-lo, desenvolver uma


série de saberes sobre ele e consequentemente aumentar a sua força. Já a polí-
cia, por seu turno, configura-se como uma técnica de governo racional própria
ão

ao Estado, ela é o que lhe permite, ao mesmo tempo, aumentar o seu poder
e exercer sua potência em toda sua amplitude, seu objetivo central é “desen-
volver os elementos constitutivos da vida dos indivíduos [trabalho, comércio,
s

saúde, moradia, educação, segurança] de tal forma que seu desenvolvimento


ver

também reforce a potência do Estado” (FOUCAULT, 2010d, p. 383).


Segundo Marcílio (1998), genericamente a filantropia designa “o con-
junto das obras sociais, caritativas e humanitárias de iniciativa privada, quer
sejam confessionais, ou não” (p. 73); por outro lado, sabe-se da importância
que o Estado assumiu como agente das práticas filantrópicas. Seus principais
objetivos foram, incialmente, a supressão da pobreza e a melhoria das con-
dições de vida dos operários e seus filhos, a partir da adoção da perspectiva
232

higienista de educação física e moral. É nessa perspectiva que diversas formas


de proteção à infância desvalida passaram a ser “desenvolvidas, estudadas
e planejadas pela filantropia higiênica, sob a forma de asilos, colônias, orfa-
natos, colégios, creches, etc.” (ibdem, p. 84). Quer dizer, ao constituir o
ser humano como produto precioso para o Estado, a filantropia desenvolve

or
mecanismos de regulação da conduta dos indivíduos e da população – neste

od V
caso crianças e adolescentes – tendo em vista objetivos de caráter político,

aut
econômico, demográfico, de segurança, etc.
A filantropia desenvolve-se, no Brasil, entre o final do século XIX e iní-

R
cio do XX. Com o deslocamento de uma verdade religiosa para uma verdade
baseada em princípios científicos e racionais houve também um rearranjo
das práticas de assistência social voltadas para crianças e adolescentes. Este

o
acontecimento vincula-se á emergência de uma nova racionalidade política,
aC
neste período, que visava conhecer a fundo a realidade do Estado brasileiro e,
com isso, incitar os indivíduos a agirem de determinada forma, ou seja, gover-

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nar as suas condutas. Torna-se perceptível, de acordo com Lockmann (2013,
visã
p. 1015), “um deslocamento importante nesse momento. Não basta apenas
existir instituições que recolham as crianças, as batizem e encaminhem suas
almas a vida eterna. Agora é necessário que essas instituições sejam capazes
de cuidar, de prevenir, de estender a vida dessas crianças”.
itor

Nesse sentido, buscando acompanhar no plano político as diversas


a re

transformações que o Brasil passava – modernização, crescimento demográ-


fico, industrialização, urbanização – passou-se a olhar de forma preocupada
para as grandes aglomerações que surgiam nas cidades e, junto com elas, o
aumento da criminalidade, da “vadiagem”, da mendicância, da prostituição,
par

de doenças e epidemias que ganhavam um terreno fértil para se desenvolver


(RIZZINI, 2009). Desse modo, o Estado, ao lado da inciativa privada, se
Ed

arrogou a tarefa de garantir seu crescimento e assegurar a vida da população;


entretanto, diversas práticas clientelistas, de favorecimento dos interesses
privados em troca de “favores pessoais”, para os agentes das políticas de
ão

assistência infanto-juvenil, fizeram da filantropia um substitutivo à garantia


efetiva da cidadania de crianças e adolescentes (FALEIROS, 2009).
s

Um dos traços fundamentais da constituição da filantropia no Brasil é


ver

o de que, ao mesmo tempo, as práticas de assistência social apoiaram-se,


de um lado, em práticas médico-higienistas – como o combate à mortali-
dade e adoecimento infantil, os cuidados com as mães e com o corpo dos
bebês, a higiene física e mental e o desenvolvimento de técnicas como a
Puericultura e a Pediatria – e, de outro, em práticas liberal-positivistas, de
expressão policial e jurídica, que prescreviam e executavam medidas peda-
gógicas e punitivo-disciplinares visando à normalização dos “menores” e
ENCONTROS DE MICHEL FOUCAULT COM GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
governamentalidades, arqueogenealogias e cartografias 233

a segurança da sociedade. Buscava-se, deste modo, com a participação de


diversos especialistas da infância – médicos, pedagogos, juristas – valorizar
a família para prevenir a ociosidade, a prostituição, o crime e o abandono
de bebês, mas, acima de tudo, preparar as crianças pobres para o mercado

or
de trabalho e “educar, formar, proteger e corrigir menores abandonados”
(MARCÍLIO, 1998, p. 208).

od V
Inúmeras medidas foram, portanto, tomadas para governar as crianças e

aut
adolescentes. Durante toda a Primeira República e até o final da década de 1960,
foram criadas instituições, leis, programas e projetos de caráter assistencial-filan-

R
trópico. Nesse sentido foi criado, em 1919, o Departamento Nacional da Criança
(DNCr); em 1921 o Serviço de Assistência e de Proteção à Infância; em 1924

o
o Conselho de Assistência e Proteção aos Menores; em 1927 foi aprovado o
aC
Código de Menores e, em 1941, foi Criado o Serviço de Assistência ao Menor,
antecessor direto da Funabem (1964), dentre diversos outros.
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Políticas de Assistência Social e Neoliberalismo


visã
A partir de 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, desenvolve-se,
na Alemanha e nos Estados Unidos, o neoliberalismo como forma de ser do
itor

pensamento político e arte de governar, constituindo-se em uma crítica aos


a re

excessos de governo e propondo uma tecnologia governamental adaptada ao


livre mercado. Segundo Candiotto (2010), o modelo de neoliberalismo que
predominou na história política do ocidente foi o norte-americano, que regula
os efeitos do mercado a partir de domínios não diretamente econômicos – que
par

dizem respeito a problemas específicos da vida e da população, como a famí-


lia, educação, saúde, criminalidade, etc. – mas que “fazem parte da economia
Ed

racional, que, por sua vez, é considerada o modelo formal do conjunto dos
problemas sociais” (p. 42).
Deste modo e, nos marcos de um Estado governamentalizado, com-
ão

preendemos o neoliberalismo como racionalidade política (AVELINO, 2012).


Quer dizer que as políticas econômicas – mas também as políticas sociais
s

– são pensadas e organizadas no interior de uma racionalidade neoliberal,


objetivando governar as condutas dos indivíduos e da população de modo a
ver

incluí-los nas redes de consumo e garantir-lhes a participação no mercado,


para que possam contribuir, mesmo que minimamente, no jogo econômico.

Nesse sentido, é importante compreender que as políticas sociais não podem


mais ser vistas como ações neutras e/ou somente humanitárias que preten-
dem ajudar os mais pobres, retirando-os de situações desfavoráveis e contri-
buindo para a sua inclusão social. [...] Trata-se apenas de compreender que as
234

políticas sociais constituem-se em estratégias de governamento, pensadas e


organizadas no interior de uma racionalidade neoliberal, que pretende incluir
a todos nos jogos do mercado, diminuindo o risco social produzido por essas
camadas da população e constituindo sujeitos produtivos e responsáveis por
sua autogestão (LOCKMANN, 2013b, p. 38).

or
Um dos traços característicos do neoliberalismo encontra-se na gestão das

od V
liberdades individuais, de um lado, e no investimento em capital humano, de

aut
outro. Quer dizer, gerir liberdades significa permitir que as pessoas, o Estado
e a sociedade possam investir em suas formas-empresa, concorrer livremente

R
entre si no mercado, e produzir para si um capital. Deste modo vemos emergir
o homo oeconomicus do neoliberalismo, aquele que, individualizado e inde-

o
pendente, constitui-se como empresário de si mesmo, tomando a si mesmo
aC
como seu capital, “sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo
a fonte de sua renda” (FOUCAULT, 2008, p. 311).

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Segundo Gadelha (2013, p. 238), “A noção de capital humano, ou capital
intelectual, refere-se a um conjunto de capacidades, habilidades e destrezas
visã
criadas, desenvolvidas, aperfeiçoadas e acumuladas pelos indivíduos, ao longo
de suas existências”. Por um lado, portanto, as pessoas são incitadas cons-
tantemente a investir em seu capital humano e, por outro, vê-se nitidamente
itor

que as políticas sociais, educacionais, culturais, econômicas, etc., orientam-se


a re

no sentido de incitar os sujeitos a investirem em seu capital humano, de seus


filhos, de sua família, enfim, de suas empresas (FOUCAULT, 2008).
A forma política de governo neoliberal começa a se desenvolver no
Brasil no final da década de 1970, a partir das prescrições do Consenso de
Washington para a implantação do neoliberalismo nos países da América
par

Latina. No entanto, e já de antemão, podemos dizer que o neoliberalismo


Ed

“como um projeto global para a sociedade”, articulando diversas políticas e


não se limitando a medidas econômicas paliativas, acarretou consequências
sociais graves e permanentes, através de políticas de ajuste que provocaram a
ão

deterioração de políticas sociais, de um lado, e o agravamento das condições


sociais da população pobre, de outro (SOARES, 2001).
Em contra partida, no seguimento histórico das políticas públicas de
s

assistência social, no Brasil – como práticas de governo operadas pelo Estado


ver

de acordo com a racionalidade neoliberal – encontramos a série das regula-


mentações jurídicas, ideológicas e institucionais da política de assistência
social; iniciando-se em 1988 com a Constituição Federal, que trouxe um
novo estatuto à política de assistência social brasileira: esta “passa a ser polí-
tica pública, compondo a seguridade social, de responsabilidade do Estado
e direito do cidadão, de caráter democrático, com gestão descentralizada e
participativa” (FONTENELE, 2007, p. 154).
ENCONTROS DE MICHEL FOUCAULT COM GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
governamentalidades, arqueogenealogias e cartografias 235

Para provê os “mínimos sociais” e “garantir o atendimento às neces-


sidades básicas” da população, conforme o Art. 1º da Lei Orgânica da
Assistência Social, homologada em 1993, os objetivos da assistência social
passam a ser, dentre outros, a proteção à família, à maternidade, à infância
e adolescência, bem como o amparo às crianças e adolescentes carentes

or
(BRASIL, 1993). O Conselho Nacional de Assistência Social foi regula-

od V
mentado em 1995 e, no ano seguinte, foi implantado o Fundo Nacional de

aut
Assistência Social (CNAS).
Respondendo à demanda da 2ª Conferência Nacional da Assistên-
cia Social, em 1998 é aprovada, pelo CNAS, a criação de uma Política

R
Nacional de Assistência Social (PNAS), mas que só começou a ser de fato
implantada em 2004, quando a política assume nova versão e redesenho

o
sob a perspectiva de um Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Com
aC
este acontecimento a assistência social passa a ser pensada como política
de direito, não mais como filantropia ou caridade, mas como “prática
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que exige formulação de políticas, determinação de objetivos, critérios,


métodos e diretrizes” (FONTENELE, 2007, p. 156). A PNAS de 2004
visã
definiu o público usuário da política de assistência social como cidadãos
e grupos que se encontrem em situação de vulnerabilidade e riscos, como
crianças e adolescentes com perda ou fragilidade de vínculos de afetivi-
itor

dade, pertencimento e sociabilidade (BRASIL, 2004).


a re

Segundo a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, apro-


vada pelo Conselho Nacional da Assistência Social, em 2009, e seguindo
a organização em níveis de complexidade do SUAS, os Serviços de Prote-
ção Social são divididos em três níveis: proteção social básica, de média
par

e alta complexidade. A proteção básica conta com o Serviço de Proteção


e Atenção Integral às Famílias, por exemplo; a proteção social de média
Ed

complexidade conta, dentre outros, com o Serviço de Proteção Social a


Adolescentes em Cumprimento de Medidas Socioeducativas de Liberdade
Assistida e de Prestação de Serviços à Comunidade; já a proteção de alta
ão

complexidade constitui-se, basicamente, em serviços de acolhimento e


proteção emergencial (BRASIL, 2013).
Passada a época da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNA-
s

BEM), quando crianças e adolescentes eram assistidos por políticas assisten-


ver

ciais compensatórias, em uma conjunção impressionante entre segregação,


autoritarismo e assistencialismo – marcada pelas Fundações Estaduais do
Bem-Estar do Menor (FEBEMs) – o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) emerge em 1990 como um marco jurídico em substituição ao Código
de Menores de 1979, adotando o princípio da Proteção Integral de crianças
e adolescentes da Convenção Internacional dos Direitos da Criança da ONU
de 1989 e ratificada na Constituição de 1988, instituindo a sua condição de
236

sujeitos de direito em situação peculiar de desenvolvimento e responsabili-


zando a família, a sociedade e o Estado pela sua proteção.
Entretanto, os acontecimentos que marcaram a emergência do neo-
liberalismo no Brasil, bem como suas consequências imediatas – como a
desregulamentação, flexibilização e precarização do trabalho e da política

or
de pleno emprego – acabaram por fragilizar ainda mais a população pobre

od V
(GADELHA, 2013), constituindo-a como perigosa e, portanto, alvo de polí-

aut
ticas de assistência social, que segundo Lockmann (2013b), ao governarem
a conduta da população e dos indivíduos, configuram-se como “estratégias
biopolíticas que objetivam gerenciar os riscos produzidos pela fome, pela

R
miséria, pelo desemprego, pela doença, pela deficiência, etc e garantir a
seguridade da população” (p. 43).

o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
ENCONTROS DE MICHEL FOUCAULT COM GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI:
governamentalidades, arqueogenealogias e cartografias 237

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