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Revoluções de

1830 e 1848
Hezrom Vieira Costa Lima

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

> Identificar os fatores que ocasionaram a Restauração Francesa.


> Explicar o desenvolvimento da Revolução de 1830, na França.
> Analisar os processos históricos a partir da Revolução de 1848.

Introdução
No início do século XIX, a burguesia surge como vitoriosa dos processos revolu-
cionários iniciados em 1789, tendo conseguido eliminar os privilégios de nascença
que beneficiavam o clero e a nobreza, que se tornaram símbolos de um modelo
social considerado atrasado. Com o desenrolar dos acontecimentos vivenciados
pela França, um elemento até então inédito na história da humanidade se tornou
evidente: a força avassaladora que as classes populares podiam exercer enquanto
transformadores sociais.
Os eventos desencadeados pelo Terror e todo o simbolismo presente durante
a atuação incessante do Comitê de Salvação Pública ilustram essa questão e dão
sentido ao temor vivenciado pela burguesia. Da mesma forma, ilustram também a
submissão dessa classe perante o domínio de Napoleão Bonaparte e suas atitudes,
que demonstravam ora a continuação dos ideais liberais, ora um imperialismo
inegável.
Neste capítulo, você poderá compreender as continuidades e as rupturas
existentes na sociedade francesa — e, consequentemente, no mundo ocidental —
decorrentes do início do século XIX, bem como o contexto sociopolítico vivenciado
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pela França após a queda de Napoleão Bonaparte e o retorno da aristocracia,


período conhecido como Restauração. Além disso, apresentaremos o processo
que possibilitou o retorno da burguesia ao poder, mediante a coroação de Luís
Filipe I, considerado “o rei burguês”. Por fim, você poderá entender o processo
incessante de oposição entre a burguesia e as classes populares, materializadas
pelo proletariado, e como o ano de 1848, marcante em vários sentidos, foi fruto
dessa questão.

A França após Napoleão: a Restauração


Após as consequências ocasionadas tanto pela ação jacobina quanto pelas
guerras napoleônicas, a França se encontrava numa situação em que o equi-
líbrio de forças entre as potências europeias tornou-se uma busca constante.
Como ressalta Hobsbawm (2019, p. 177, tradução nossa): “Nenhum governo
francês entre 1815 e 1848 colocaria em jogo a paz geral em função de seus
próprios interesses estatais”.
Quando Luís XVIII ocupou novamente o trono, em 1815, após o fim do
Governo dos Cem Dias, a França se encontrava em uma situação delicada.
Para evitar maiores contratempos, ocasionados pelo retorno napoleônico
ao poder, o país foi ocupado por forças estrangeiras, que somavam mais
de 1 milhão de soldados de várias nacionalidades. Seu território teve uma
alteração nas linhas fronteiriças, desencadeada sobretudo pelo Congresso
de Viena, e houve uma reação por parte dos monarquistas, que organizaram
represálias pelo interior do país, perseguindo os grupos que outrora estiveram
no poder (HOBSBAWM, 2009).
Ao assumir o trono, a bandeira branca da monarquia francesa é restaurada,
um gesto simbólico que lança luz na compreensão da postura adotada ao
longo do tempo pelo novo governo da Restauração.
Nessa situação, é realizada uma nova eleição para o Parlamento, em
1816, obtendo a maioria de representantes do grupo dos constitucionalistas
moderados. Com esse grupo no poder, o governo francês concede uma vitó-
ria maior para a burguesia, que consegue reorganizar o exército e sanar as
finanças. Em seguida, cinco anos após o início da ocupação do norte do país
e acreditando que o processo pacificador havia sido cumprido, as potências
estrangeiras decidem pôr fim à ocupação do território francês, gerando uma
reviravolta geopolítica. As potências estrangeiras, outrora agrupadas em
várias coligações antifrancesas, permitem que a França, agora uma monarquia,
faça parte da Santa Aliança (FURET, 2001).
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Esse período é marcado também por uma vitória dos ultranacionalistas


no Parlamento francês, ocorrida em 1820. Sua política externa a favor das
monarquias foi materializada com a intervenção francesa na insurreição
espanhola de 1823, um levante ocorrido na Península Ibérica contra o governo
do rei Fernando VII.

O governo de Carlos X
Com a morte de Luís XVIII, ocorrida em 1824, quem assume o trono da França
é o seu irmão, o conde de Artois, que passa a ser Carlos X. O novo rei adota
uma postura ultraconservadora, em parte explicada pelo sentimento antir-
revolucionário que cultivava desde o início do processo revolucionário de
1789, quando foi obrigado a fugir para o exílio na Inglaterra.
Seu governo foi marcado por uma tentativa de restaurar o absolutismo na
França — o que era de se esperar de um governante que queria barrar as ideias
republicanas —, gerando impopularidade para ele. Em 1827, as eleições para
a Câmara dos Deputados são vencidas por grupos de oposição ao monarca,
que entram em conflito com o rei. Esses embates crescem com o passar do
tempo, e então Carlos X decide dissolver a Câmara e realizar novas eleições
em 1830. No entanto, para a sua surpresa, novamente grupos de oposição
ganham a maioria das cadeiras.

A literatura histórica é uma forma de compreender como os indivíduos


que viveram determinado período enxergaram os acontecimentos
vividos. Um exemplo emblemático disso é a obra-prima de Victor Hugo, Os
Miseráveis (Les Misérables), publicada originalmente em 1862 e posteriormente
adaptada para o teatro, o cinema e outras formas de mídia.
O enredo narrativo abarca um conjunto de aproximadamente 17 anos, que
é dividido em cinco volumes. Do primeiro volume (“Fantine”), iniciado em 1815,
com a Batalha de Waterloo, até o quinto (“Jean Valjean”), terminando nas ruas
da Paris de 1832, é possível sentir as emoções que a população francesa, so-
bretudo as classes populares, viveram no início do século XIX, em um contexto
de transformações profundas.

Todas essas medidas absolutistas de Carlos X também são percebidas na


política externa adotada por ele. O ano de 1827 se torna emblemático nesse
governo, pois marca a tensão entre as potências ocidentais e o império turco-
-otomano, que já mostrava sinais de decadência. É nessa época que há uma
intervenção pró-Grécia, juntamente com a Grã-Bretanha e a Rússia, antigos
inimigos, bem como o início da conquista da Argélia, com o bloqueio ao porto
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de Argel em 1827, culminando na sua invasão e posterior conquista, em 1830.


Em ambos os casos, o lado perdedor foi o império muçulmano.
Pensando gozar de prestígio pela vitória militar, Carlos X decide impor as
quatro ordenanças de julho, um conjunto de medidas que, além de anular
novamente a recém eleita Câmara, também institui a censura e permite ao
rei controlar o governo a partir de decretos, sem a participação popular.
Mais uma vez, a cidade de Paris seria palco de uma transformação social.
A burguesia liberal, com o apoio de sociedades secretas republicanas e da
população parisiense, se levanta contra o autoritarismo de Carlos X. Nos dias
27, 28 e 29 de julho de 1830, ocorrem Les Trois Glorieuses (em português, “as
Três Gloriosas”), uma série de levantes em que as ruas de Paris são tomadas
por barricadas, generalizando-se um clima de guerra civil, a ponto de a Guarda
Nacional apoiar os revoltosos. Sem apoio de nenhum lado, Carlos X, o último
rei da dinastia Bourbon, decide abdicar, partindo novamente para o exílio e
pondo fim ao período da Restauração.

A insurreição popular foi fundamental nos processos revolucionários.


A respeito da capital francesa, Eric Hobsbawm (2019, p. 190, tradução
nossa) menciona: “Cidade sempre agitada pela atividade de massa, Paris em
julho de 1830 mostrava as barricadas surgindo em maior número e em mais
lugares do que em qualquer época anterior ou posterior. De fato, 1830 fez da
barricada um símbolo de insurreição popular”.

Eric Hobsbawm (2019, p. 190, tradução nossa) destaca que “[...] os Bourbon
foram derrubados em Paris por uma típica combinação de crise do que se
considerava a política da monarquia Restaurada e de intranquilidade popular
devido à depressão econômica”.

A Revolução Burguesa de 1830


A alta burguesia, principal agente da derrota de Carlos X, já conhecia os riscos
de uma radicalização social. Ela tinha como exemplos, ainda bastante vivos,
os processos que colocaram os jacobinos no poder, bem como aqueles que
possibilitaram a ascensão de Napoleão Bonaparte. Então, a medida adotada
foi escolher um representante que partilhasse dos interesses da burguesia
liberal, ou, em outros termos, decidiu-se por um “rei burguês”.
Quem ascende ao poder é o duque de Orléans, Luís Filipe, agora coroado
Luís Filipe I. Segundo Eric Hobsbawm (2019, p. 182, tradução nossa), a onda
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revolucionária de 1830 “[...] marca a derrota definitiva dos aristocratas pelo


poder burguês na Europa ocidental”.

As Três Gloriosas
Com Luís Filipe I no poder, a França adota novamente a bandeira tricolor. Mais
uma vez o simbolismo presente no uso da bandeira (Figura 1) demonstra os
princípios adotados e defendidos pelo novo governo — ao menos teoricamente.

Figura 1. A Liberdade guiando o povo.


Fonte: Delacroix (1830, documento on-line).

O governo burguês adota a postura do juste milieu (em português, “meio


termo”), uma política de centro, que mantinha distância tanto da ultradireita
quanto da esquerda republicana, representando, assim, a postura da burguesia
no processo revolucionário desde o final do século XVIII. Essa medida centra-
lizava o poder nas mãos da burguesia, evitando tanto o regresso absolutista
quanto medidas “democratizantes”.
A tensão social vivenciada pela França no início do século XIX se manteve
após a Revolução de 1830, mas, dessa vez, com a adoção de um novo elemento
ideológico: a tendência socialista.
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Desde o período do Renascimento, a cidade de Lyon ocupava um lugar


de destaque no comércio da seda no continente europeu. Localizada a oeste
dos Alpes e na confluência dos rios Ródano e Saône, no sudeste da França,
Lyon contava com uma situação geográfica privilegiada, a qual lhe permitiu
se tornar o canal natural para o processamento da seda e de outros produtos
que entravam no mercado consumidor europeu (Figura 2).

Figura 2. A importância fluvial em Lyon: litogravura de Jean-Jacques de Boissieu representando


a visita do Papa Pio VII à cidade em 1805.
Fonte: Boissieu (1805, documento on-line).

Devido a esse destaque, fortalecido com a realização de quatro feiras


anuais, Lyon recebeu o apelido de “capital da seda da Europa”. No fim do I
Império, a cidade possuía aproximadamente 120 mil habitantes, contando
com 250 teares em 1827. A classe trabalhadora era formada por operários
da seda (canuts), que tinham uma jornada de trabalho árdua, chegando a
ser submetidos a turnos de 14 a 18 horas de trabalho por dia — e, em alguns
lugares, de até 20 horas por dia —, sentados em posições prejudiciais à saúde,
em lugares mal iluminados e sombrios (BEZUCHA, 2014).
As péssimas condições de trabalho foram agravadas com uma queda no
preço da seda no mercado, o que se refletiu em uma baixa no salário dos
trabalhadores. Essa situação os levou a entrar em choque com o seu patronato
em 1831, exigindo o estabelecimento de um “preço mínimo” para a seda a
fim de impedir a ocorrência de alterações que prejudicassem bruscamente
a classe operária, como estava ocorrendo naquela época.
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O historiador estadunidense Robert J. Bezucha (2014, p. 42, tradução nossa)


afirma que “[...] os tecelões eram constantemente lembrados do poder que
os mercadores exerciam sobre suas vidas. O conflito era um subproduto da
indústria”.

Aqui está uma conversa dramatizada que apareceu no jornal do


tecelão, L’Echo de la Fabrique. Na cena apresentada a seguir, um
tecelão acaba de entregar um pedido urgente a um comerciante, que está
sentado atrás da grade de ferro — os canuts a chamam “a gaiola” — de seu
armazém (BEZUCHA, 2014, p. 42–43, tradução nossa).
Chef d’atelier: — Aqui está a peça que eu trouxe para você.

Fabricant: — Bem, já era hora. Era para as oito horas da manhã e já são meio-dia.
Por sua causa, não poderei enviar o pedido hoje.

Chef d’atelier: — Por favor, me desculpe, Monsieur, mas minha esposa e eu não
trabalhamos em outra coisa nos últimos doze dias. Não saímos do tear para comer.
Tivemos muitos problemas, porque o fio era muito pobre e a trama muito fina. E
minha mulher, que está grávida, pretendia tecer pela noite toda, mas adormeceu
no tear. É por isso que estou atrasado.

Fabricant: — Está tudo muito bem. No entanto, você atrasou minha ordem. (Olha por
cima do pano.) Aqui está uma mancha. O que você fez, comeu seu ensopado no tear?

Chef: — Oh, Monsieur! Se está lá é porque estávamos com tanta falta de tempo.
Minha esposa nem teve tempo de fazer sopa. Nós não comemos nada além de pão
enquanto trabalhávamos em seu pedido.

Fabricant: — Ah, aqui está um tópico fora de linha. (Para seu escrivão) — Monsieur
Leon, marque para este homem uma redução de dez cêntimos por ano para o
desperdício.

Chef: — Mas, senhor, você não tem consciência? Depois de trabalharmos a noite
toda com um fio tão pobre, com certeza cometeremos erros. Não é justo nos marcar
por isso.

Fabricant: — Justo ou não, é assim que vai ser. Quando pago um bom dinheiro, espero
um bom trabalho. E, se você é tão mal pago quanto afirma, deixe-me lembrá-lo de
que você não precisava aceitar o emprego. Você poderia ter recusado.

Chef: — Mas você sabe muito bem que não trabalho há três meses e que aceitei porque
minhas economias acabaram. Não pude recusar porque minha esposa está grávida.

Fabricant: — Isso não é problema meu. Estou no negócio para ganhar dinheiro, não
para lhe fazer caridade. O que você está dizendo significa pouco para mim.

Chef: — Quer me dar outro pedido?


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Fabricant: — Dar outro pedido? Depois do jeito que você me atrasou em uma comissão,
você ousa pedir outro pedido? Não, meu caro. Só damos ordens a quem aprecia o
que lhes damos. Aqui está o seu pagamento.

Chef: — Malditos comerciantes! Se os bons tempos chegarem, você terá notícias


minhas de novo.

Fabricant (para seus funcionários): — Senhores, vocês um dia serão chefes de co-
mércio. Não posso recomendar mais severidade aos trabalhadores... É a única
maneira de forçá-los a tecer bem. É a única maneira de nossa indústria prosperar.

Tal confronto não foi pura ficção.

Ao não terem a sua exigência de um preço mínimo atendida, os operários


se rebelam (Figura 3) e montam, às 7 horas da manhã, uma procissão de
centenas de trabalhadores na Praça da Croix Rousse, um bairro operário
(BEZUCHA, 2014). A Guarda Nacional abre fogo em direção aos trabalhadores,
que respondem atirando pedras. A frente da prefeitura vira um campo de
batalha, e o dia termina com um saldo de 275 mortos (75 do lado do governo
e 200 civis) e 263 feridos.
O governo de Luís Filipe I intervém montando uma operação de guerra para
suprimir o levante popular, enviando um agrupamento de 20 mil homens da
Guarda Nacional e 150 canhões, liderados por Dieu Soult, veterano das Guerras
Napoleônicas. O resultado foi o fim da revolta, com diversos trabalhadores
presos (MERCIER, 2004).

Figura 3. Revolta dos operários da seda.


Fonte: Historique des Traboules (c2008, documento on-line).
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Três anos depois, em 1834, estoura a segunda Revolta de Canuts, no dia 14


de fevereiro. Dessa vez, a situação econômica francesa está um pouco melhor,
o que possibilita o aumento do salário dos trabalhadores. O patronato reclama
ao governo e decide reduzir o salário dos canuts, considerado alto demais
pela burguesia. Então, a classe trabalhadora reage, ocupando pontos altos
da cidade. A revolta dura aproximadamente seis dias, antes de ser sufocada
por 12 mil soldados e terminar com um saldo de mil mortos e 10 mil presos,
em um episódio que ficaria conhecido como “sanglante semaine d’avril 1834”
(em português, “semana sangrenta de abril de 1834”) (CANUTS, 2007).
Eric Hobsbawm (2019) reconhece três ondas revolucionárias que varrem o
mundo ocidental entre os anos de 1815 e 1848. A primeira delas surge entre
1820 e 1824, no continente europeu, ficando restrita ao Mediterrâneo, com
Espanha (1820), Nápoles (1820) e Grécia (1822). A segunda onda revolucioná-
ria ocorre entre 1829 e 1834, afetando toda a Europa a oeste da Rússia e o
continente norte-americano. A derrubada dos Bourbons na França estimulou
outras insurreições, como a ocorrida em 1830 na Bélgica, que conseguiu sua
independência da Holanda. Reflexos foram sentidos também na Polônia, na
Itália, na Alemanha, na Suíça, na Espanha, em Portugal, na Grã-Bretanha e
na Irlanda.
Para Hobsbawm (2019, p. 183, tradução nossa), a importância da onda
revolucionária de 1830 é fundamental:

Qualquer que seja o aspecto da vida social que avaliarmos, 1830 determina um
ponto crítico; de todas as datas entre 1789 e 1848, o ano de 1830 é o mais obvia-
mente notável. Ele aparece com igual proeminência na história da industrialização
e da urbanização no continente europeu e nos Estados Unidos, na história das
migrações humanas, tanto sociais quanto geográficas, e ainda na história das
artes e da ideologia.

Por fim, a terceira onda revolucionária ocorre em 1848, ficando conhecida


como “Primavera dos Povos”. Quase “[...] simultaneamente, a revolução ex-
plodiu e venceu” na França, na Itália, nos estados alemães e na Suíça, além
de ter reflexos na Espanha, na Dinamarca, na Romênia e, em menor grau, na
Irlanda, na Grécia e na Grã-Bretanha. “Nunca houve nada tão próximo da
revolução mundial com que sonhavam os insurretos do que esta conflagração
espontânea e geral” (HOBSBAWM, 2019, p. 183, tradução nossa).
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A pluralidade de eventos no ano de 1848 ao longo do continente europeu


(Figura 4) também é mencionada por Mike Rapport (2009, p. 1, tradução nossa):

Em 1848 uma violenta tempestade de revoluções rasgou a Europa. Com uma ra-
pidez surpreendente, multidões de radicas da classe trabalhadora e liberais de
classe média em Paris, Milão, Veneza, Nápoles, Palermo, Viena, Praga, Budapeste,
Cracóvia e Berlim derrubaram o Antigo Regime e começaram a tarefa de forjar
uma nova ordem liberal.

Figura 4. A Europa no ano de 1848.


Fonte: Rapport (2009, p. 2–3).

A Revolução de 1848
Em 1848, Paris possuía uma população que ultrapassava a soma de 1 milhão
de pessoas. E o nível de instabilidade da sociedade francesa na primeira
metade do século XIX pode ser atestado pelas tensões e pelas constantes
mudanças de governo ocorridas nesse período.
O governo de Luís Filipe I mostrava a hegemonia de que a burguesia
francesa gozava em relação às outras classes sociais. Em paralelo, a classe
trabalhadora, ou, para ser mais exato, o proletariado industrial via a sua força
política crescer, somando diversas insurreições e levantes, e demonstrava
cada vez mais a sua divergência em relação à elite burguesa dominante.
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De acordo com Agulhon (2008, p. 1), o ano de 1848 será destacado na


história da França como um ano de nova mudança do regime político:

A República substitui a Monarquia, ou uma monarquia. Um poder anônimo, mais


ou menos coletivo, mas em todo caso amplamente despersonalizado e dessacra-
lizado, vem substituir o reinado de um homem, um Soberano designado e tido
como superior simplesmente pelo nascimento. […] Que significa essa forma de
poder? Um expediente para garantir o funcionamento do Estado na falta provisória
de um monarca, ou seja, uma espécie de regência? Ou um sistema que deve ser
escolhido por si mesmo, credor de méritos positivos? A primeira concepção — a
de república transitória à espera da restauração da monarquia — não é estranha
à história da França.

Politicamente, a monarquia francesa adotava medidas repressivas, na


figura do primeiro-ministro Guizot, impondo censuras aos grupos políticos
contrários à monarquia. Então, mais uma vez as ruas de Paris seriam toma-
das pelo proletariado parisiense, que formaria barricadas para enfrentar a
opressão do governo monárquico.

Fé em tempos de revolução

O início do século XIX foi de intensa transformação no ethos da


sociedade francesa, e tais mudanças foram percebidas também nos aspectos
religiosos. Para ilustrar essa questão, o exemplo de Lamennais é emblemático.
Robert de la Mennais nasceu em 1782 e foi ordenado em 1816. Buscando
romper com sua origem nobre, adota outro sobrenome: Lamennais. Ao longo de
sua vida, passa por três transformações que ilustram as mudanças sociais da
França. Em um primeiro momento, entre 1820 e 1823, Lamennais publica “Ensaio
sobre a indiferença em matéria religiosa”, em que adota uma visão conservadora
de combate ao racionalismo, afirmando o princípio da autoridade em oposição
ao livre pensamento.
Com o desenrolar da Revolução de 1830, adota uma nova postura, defendendo
a separação entre Igreja e Estado, a ampliação do sufrágio e a liberdade (de
ensinamento, associação, consciência e imprensa). Sua atitude é, então, con-
denada pelo Papa Gregório XVI na encíclica “Mirari vos”, em 1832. Em resposta,
Lamennais publica em 1834 “Palavras de um crente”, mostrando que a postura
da Igreja Católica Apostólica Romana era contrária tanto ao direito natural
quanto aos princípios cristãos.
A terceira transformação no pensamento de Lamennais ocorre quando ele
se vincula a um cristianismo revolucionário, adotando ideias democráticas.
Essa mudança lhe valeu a eleição para o cargo de deputado da Assembleia
Nacional, em 1848, votando contra a lei da educação que ampliava o controle
sobre a educação por parte das escolas católicas e contra o envio de tropas
a Roma para enfrentar a recém instaurada república romana, liderada por
Giuseppe Garibaldi.
66 Revoluções de 1830 e 1848

Guizot proibiu todo tipo de manifestação pública contrária ao governo.


Em represália, a população organizava a campagne des banquets (em portu-
guês, “campanha dos banquetes”), uma forma de atuação política em que se
realizavam jantares com o objetivo de propor alternativas ao que era feito
pelo então governo monárquico.
Ao tomar conhecimento dos banquetes — que ocorreram entre 1847 e 1848,
contando com um total aproximado de 60 reuniões —, o primeiro-ministro
Guizot envia a Guarda Nacional para pôr fim a essas reuniões. A reação popular
é imediata. Novamente o proletariado arma barricadas nas ruas de Paris, e,
ao longo de três dias, são realizados combates.
Mike Rapport (2009, p. 33, tradução nossa) descreve a situação vivenciada
nas ruas de Paris, em que mais uma vez as barricadas são símbolo da reação
popular:

Durante a noite, barricadas surgiram nas ruas estreitas do centro e do interior


de Paris. Com seu peso absoluto de números, as forças da ordem deveriam ter
permanecido senhores da cidade: havia cerca de 31.000 Soldados Regulares, 3.900
Municipais e 85.000 tropas da Guarda Nacional de Paris e dos subúrbios. No en-
tanto, os regulares só podiam agir por ordem expressa do Prefeito da Polícia — e o
Conselho Real naquela noite, temendo provocar uma reação popular, sabiamente
aconselhou prudência. Quanto à Guarda Nacional, era uma milícia de cidadãos
composta de contribuintes — uma força burguesa com a qual Luís Filipe achava
que poderia contar.

Parte da Guarda Nacional muda de lado, abandonando o apoio ao monarca.


“Com uma posição militar mais fraca do que esperava, Luís Filipe, que até
então resistia obstinadamente a concessões, decidiu relutantemente que havia
chegado a hora de sacrificar seu odiado primeiro-ministro” (RAPPORT, 2009,
p. 34, tradução nossa). Na tarde do dia 23, Guizot é demitido, as ruas de Paris
são iluminadas e a bandeira tricolor tremula enquanto a população grita “Vive
la Réforme! A bas Guizot!” (em português, “Viva a Reforma! Abaixo Guizot!”).
Temendo por sua vida, Luís Filipe decide fugir para a Inglaterra (Figura 5).
Com o apoio da Guarda Nacional, que garantiu o processo de mudança de
governo, é proclamada a II República na França, sendo eleito para o cargo
de presidente Luís Napoleão, em 2 de dezembro de 1848.
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Figura 5. O republicanismo francês chuta Luís Filipe em charge do século XIX: “Vá se enforcar
em outro lugar!”.
Fonte: Va te faire pendre ailleurs (1848, documento on-line).

A II República francesa teria uma vida curta. Como medidas iniciais, esta-
belecem-se a pena de morte e o sufrágio universal. Na esteira do processo
revolucionário francês, contexto no qual os grupos representados conhecem
os riscos que estão correndo, é adotada uma postura moderada em torno da
Assembleia Constituinte.
Essa república foi formada por grupos oriundos das camadas sociais
que representavam interesses socialistas, republicanos e bonapartistas.
Ancorando-se no direito ao trabalho, também foram criados os ateliers na-
tionaux (em português, “oficinas nacionais”), locais de trabalho para a po-
pulação desempregada parisiense que envolviam setores como carpintaria
e marcenaria (AGULHON, 2008).
O presidente Luís Bonaparte adota medidas conservadoras e, três anos
após ser eleito, em 2 de dezembro de 1851, proclama o II Império francês, em
um golpe de Estado.
Conforme bem avaliou Karl Marx (2012, p. 21), “[...] a Revolução de 1848
não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revo-
lucionária de 1793–1795”.
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Os levantes populares ocorridos em 1848 não ficaram restritos à


França. Em A Era das Revoluções (2019) — cujos capítulos 6, “As Re-
voluções”, e 7, “Nacionalismo”, são leituras essenciais para uma compreensão
mais aprofundada da questão —, Eric Hobsbawm demonstra que esse fenômeno
ocorreu quase simultaneamente em todo o mundo ocidental.
No caso do Brasil, a Revolução Praieira, ocorrida em Pernambuco, no ano
de 1848, ilustra a expansão dos ideais revolucionários que pairavam sobre o
Ocidente. Para saber mais sobre esse episódio, sugerimos a leitura da obra
O sentido social da Revolução Praieira (2004), do historiador Amaro Quintas.

O ano de 1848 também é emblemático devido à publicação do “Manifesto


Comunista”, obra conjunta de Karl Marx e Friedrich Engels. Refletindo a práxis
“Trabalhadores do mundo, uni-vos!”, essa obra serviu como norte ideológico
para a classe trabalhadora, que vivia em condições degradantes frente a uma
sociedade burguesa que utilizava sua mão de obra como força de trabalho,
enquanto usufruía dos benefícios da exploração do proletariado.
Marx e Engels (2017) apresentam a luta de classes como o motor da história,
refletindo sobre a trajetória de grupos que se posicionavam antagonicamente
em estratos sociais, numa relação em que o grupo no poder explorava o
grupo dominando ao longo da história da humanidade. A partir do contexto
da dupla revolução (HOBSBAWM, 2019), uma nova sociedade foi gestada: a
sociedade burguesa na qual o proletariado, a classe trabalhadora urbana,
é explorado. Dessa forma, para Marx e Engels (2017, p. 34), “[...] a burguesia
não forjou apenas as armas que lhe darão a morte; também engendrou os
homens que empunharão essas armas: os operários modernos, os proletários”.
Tal contexto serviu como bandeira de luta para o desmantelamento da
sociedade burguesa vigente no século XIX. Apesar da aparente hegemonia
da burguesia enquanto classe dominante, o proletariado vivenciava um
sentimento duplo. Por um lado, havia a consciência sobre a exploração por
parte da classe dominante. E, por outro, crescia um sentimento de união,
ancorado nos ideais comunistas, anarquistas e socialistas, que vislumbravam
o desenvolvimento de um mundo novo, no qual o proletariado poderia ter
liberdade e capacidade de gerir seu próprio destino. A despeito da força
demonstrada pelo modelo burguês, a onda avassaladora de 1848 foi capaz
de desmontar essa opressão, mesmo que por um período curto. As utopias,
entendidas aqui não como algo inalcançável, mas como modelos futuros
para a sociedade, foram o combustível de transformação que moveu a classe
trabalhadora para os levantes.
Revoluções de 1830 e 1848 69

A sociedade industrial, modelo orquestrado pela burguesia liberal,


foi alvo de diversas críticas. Em contraposição a essa sociedade,
propuseram-se modelos utópicos nos quais a autogestão deveria imperar, como
o sistema de Falanstério, criado por Charles Fourier, que buscava uma sociedade
igualitária e equilibrada (BARROS, 2011).

Denunciando a falência do modelo liberal burguês, o proletariado emergiu


como agente do processo revolucionário, ao despertar como classe social
e prescindir do apoio da classe burguesa para vencer a opressão. Esse des-
pertar de classes sociais ganhou sentido ideológico a partir da publicação
do “Manifesto Comunista”. Não era raro encontrar nas mãos dos revolucio-
nários bandeiras pretas e vermelhas tremulando, juntamente da massa de
proletários que se levantavam contra a opressão desenfreada da qual eram
vítimas (HOBSBAWM, 2019).
O preto do anarquismo simbolizava a proposta de sociedades distintas
do padrão burguês vigente, com modelos de autogestão em que a autonomia
seria a sua principal característica. Por sua vez, o escarlate simbolizava a
adoção de ideias socialistas ou comunistas, que pregavam a revolução, na
qual a classe trabalhadora deveria tomar o poder e instaurar a ditadura do
proletariado, exilando a burguesia do controle dos meios de produção, de
modo a pôr fim à mais-valia e à exploração decorrente desse processo.
O cerne proposto pelo “Manifesto Comunista” foi a união da classe tra-
balhadora em torno de um ideal, o despertar de classe social, revelando a
opressão e denunciando a alienação criada pelo modelo burguês de sociedade.
A postura adotada é, portanto, uma postura internacionalista, ou seja, que
busca romper com as fronteiras criadas pelos Estados-nações, travestidos
de nacionalismos, para denunciar a opressão sofrida pelo proletariado, in-
dependentemente da sua identidade nacional.

Referências
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em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/7752/8503.
Acesso em: 8 jan. 2021.
BEZUCHA, R. J. The Lyon Uprising of 1834: Social and political conflict in the early july
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70 Revoluções de 1830 e 1848

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faire connoitre les bords de la Saône lors de son passage à Lion le 27 avril 1805. 1805. 1
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HISTORIQUE des Traboules. Traboule, c2008. Disponível em: http://traboule.free.fr/
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HOBSBAWM, E. J. A Era das Revoluções: 1789–1848. 43. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2019.
MARX, K. As lutas de classes na França: de 1848 a 1850. Boitempo: São Paulo, 2012.
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MERCIER, C. Gérard Cholvy, Frédéric Ozanam, 1813–1853. L’engagement d’un intellectuel
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Leituras recomendadas
HUGO, V. Os Miseráveis. São Paulo: Nova Fronteira, 2020.
QUINTAS, A. O Sentido Social da Revolução Praieira. São Paulo: Yendis, 2004.

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