Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Imagine uma conversa com seu melhor amigo ou com a pessoa que é sua parceira. Vocês
costumam terminar as palavras e frases um do outro? Como você sabe o que a outra pessoa vai
dizer antes de terminar a frase?
Gostamos de pensar que se trata de intuição romântica, mas a resposta está simplesmente
na forma de funcionamento do cérebro humano.
Em qualquer comunicação, nós geramos inúmeras previsões sobre o que iremos ouvir em
seguida. É como acontece quando jogamos o jogo da forca e tentamos prever a palavra oculta com
base em algumas letras.
No começo (quando temos apenas uma ou duas letras para prosseguir), o número de
possíveis palavras é imenso. Mas, quanto mais letras adivinharmos corretamente, mais se reduzirá
o conjunto de possíveis palavras, até que o nosso cérebro perceba e encontre a palavra correta.
Assim que ouvimos os primeiros sons de uma palavra, nosso cérebro usa aquela
informação e, em conjunto com outras indicações (como frequência, contexto e experiência),
preenche as lacunas, selecionando uma extensa lista de possíveis palavras para prever qual é a
expressão pretendida.
Mas o que acontece se você for bilíngue e falar idiomas com palavras com sons parecidos?
Bem, neste caso, a lista de possíveis palavras é muito maior.
Pode parecer algo negativo, que dificulte a previsão das palavras. Mas um novo estudo,
publicado na revista Science Advances, revelou que, quando o assunto é memória, as pessoas
bilíngues, na verdade, podem ser privilegiadas.
Os idiomas das pessoas bilíngues são interconectados. O mesmo aparelho neural que
processa a nossa língua principal também processa o segundo idioma.
Por isso, é fácil observar que, quando ouvimos os primeiros sons de uma palavra, possíveis
palavras são ativadas, não apenas em um dos idiomas, mas também no outro.
Quando ouvimos os sons “k” e “l”, por exemplo, uma pessoa bilíngue que fale inglês e
espanhol irá ativar automaticamente as palavras “clock” (“relógio”, em inglês) e “clavo” (“prego”,
em espanhol). Isso significa que a pessoa bilíngue tem mais trabalho para selecionar e definir o
termo correto, simplesmente porque existem mais palavras para serem selecionadas até atingir o
objetivo.
Por esta razão, não surpreende que os bilíngues normalmente levem mais tempo para
reconhecer ou recuperar palavras em experimentos linguísticos e psicológicos.
Configuração do experimento
A constante necessidade de analisar palavras concorrentes em um grande número de
candidatas pode trazer consequências cognitivas de longo prazo.
O novo estudo envolveu pessoas bilíngues que falam inglês e espanhol e monoglotas que
falam apenas inglês. Eles ouviam uma dada palavra e precisavam encontrar o objeto
correspondente em um conjunto de imagens. Os movimentos dos olhos dos participantes foram
registrados durante o processo.
Os outros objetos do conjunto foram manipulados para que relembrassem o som da palavra
correspondente ao objeto pretendido.
Suponhamos, por exemplo, que a palavra desejada fosse “beaker” (que, em inglês, pode
designar o béquer usado em laboratórios ou um tipo específico de mamadeira). Neste caso, eram
incluídas opções com imagens de besouros (“beetle”, em inglês, cujo som é parecido com
“beaker”) ou de uma pessoa falando (“speaker”, em inglês, que rima com “beaker”).
Concluiu-se que os participantes passavam mais tempo observando estas imagens do que
aquelas cujo som não era parecido (como “carriage”, ou “carruagem” em inglês). Este maior
tempo de observação ocorreu porque as pessoas ativavam um conjunto maior de rótulos
concorrentes, como acontece quando as palavras têm sons similares.
Por isso, não surpreende que os bilíngues tenham observado por mais tempo as imagens
cujas palavras têm sons parecidos nos seus dois idiomas – ou seja, eles olharam por mais tempo,
para mais objetos, do que os monoglotas.
O estudo examinou em seguida se este tipo de concorrência entre os idiomas gera melhor
capacidade de relembrar objetos. Afinal, quanto mais objetos você observa, maior é a
probabilidade de que você os relembre posteriormente.
Solicitou-se então aos participantes que identificassem a imagem correta depois de
ouvirem uma palavra rapidamente, para testar sua memória de reconhecimento dos objetos que
eles já haviam observado.
Os participantes precisavam clicar em uma caixa marcada como “velho” se reconhecessem
o objeto ou em uma caixa marcada como “novo”, se não o reconhecessem.
As conclusões demonstraram que a memória de reconhecimento de objetos com muitas
palavras concorrentes (como “beaker”, “beetle” e “speaker”) foi melhor do que com objetos com
poucos concorrentes (como “carriage”) – tanto entre os monoglotas quanto entre as pessoas
bilíngues.
Além disso, as pessoas bilíngues também demonstraram o efeito de palavras concorrentes
entre idiomas (por exemplo, “clock” e “clavo”), o que oferece uma vantagem geral em termos de
memória.
É interessante observar que a proficiência do segundo idioma desempenhou papel
fundamental no estudo. A vantagem relativa à memória foi mais profunda em pessoas bilíngues
com alta proficiência na segunda língua do que em monoglotas e bilíngues com baixa proficiência
no segundo idioma.
Fica claro que, para jogar forca bilíngue de forma eficiente, você precisa desenvolver alta
proficiência no segundo idioma, de forma que suas palavras possam concorrer com as da primeira
língua.
Os dados de rastreamento dos olhos confirmaram que objetos com mais palavras
concorrentes eram observados por mais tempo, o que, posteriormente, gerou memória privilegiada
para aqueles objetos. Estas conclusões demonstram que o sistema cognitivo bilíngue é altamente
interativo e pode causar impactos sobre outros componentes da cognição, como a memória de
reconhecimento.
Outros estudos também demonstram melhor processamento de memória entre pessoas
bilíngues, em comparação com monoglotas, em tarefas de categorização que exigem a supressão
de informações conflitantes.
Isso certamente indicaria que as pessoas bilíngues são mais eficientes para realizar
múltiplas tarefas e mais capazes de concentrar-se na tarefa presente, especialmente quando ela
exigir que informações irrelevantes sejam ignoradas (pense em tentar trabalhar em uma cafeteria
barulhenta).
O quadro emergente dos estudos demonstra que ser bilíngue é um instrumento de cognição que
reforça as funções cognitivas básicas, como memória e categorização.
Ou seja, jogar forca bilíngue é mais difícil, mas, em última análise, traz suas
compensações.
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce7wnjnw2g6o
TEXTO 2
Salomão, o memorável
Na realidade, Funes nunca existiu. Ao menos fora da mente prodigiosa do escritor
argentino Jorge Luis Borges e do conto "Funes, o memorioso", publicado em 1942.
Mas, por mais extraordinário que possa parecer, houve alguém muito parecido no mundo
real. Estamos falando de Solomon Shereshevski, um mnemonista profissional russo que viveu em
Moscou na primeira metade do século 20 e que foi estudado pelo neuropsicólogo Alexander R.
Luria.
Seu livro "A mente de um mnemonista" (1968) descreve exaustivamente esse caso e é
considerado uma joia da literatura científica.
Shereshevski conseguia lembrar com precisão longas sequências de letras, números e
palavras que mostravam para ele apenas uma vez, mesmo décadas depois, e sem erros.
A memória de Solomon poderia ser descrita como “fotográfica”, pois tudo que ele via, lia
ou ouvia se transformava em uma memória que ele percebia claramente com o “olho” de sua
mente, como se estivesse realmente vendo.
Ele também fazia cópias das informações em formatos sensoriais diferentes do original,
fenômeno conhecido como sinestesia.
O próprio Salomão descreveu como se lembrava das listas de palavras:
“Normalmente sinto o sabor e o peso da palavra… e não tenho mais nada o que fazer, ela
se lembra de si mesma. Sinto uma coisa amanteigada escorregar pela minha mão, feita de vários
pontos muito muito claros, que formigam um pouco a minha mão esquerda e já não preciso mais”.
No entanto, Salomão tinha uma incapacidade de extrair o significado de textos longos, de
entender os duplos sentidos de poesias, piadas ou provérbios e até de fazer raciocínios lógicos e
matemáticos.
Além disso, Shereshevski tinha dificuldade para lembrar rostos e vozes de outras pessoas.
Podemos tirar uma conclusão desse caso: uma memória superlativa não parece implicar
maior inteligência ou melhor capacidade de raciocínio lógico ou abstrato.
William James, um dos pais da psicologia contemporânea, já havia apontado no final do
século XIX: "Se nos lembrássemos de tudo, seríamos tão deficientes na maioria das vezes como se
não lembrássemos de nada... O resultado paradoxal é que uma condição para lembrar é que
devemos esquecer”.
Se lembre de esquecer
Voltamos à pergunta do início: o que aconteceria se pudéssemos nos lembrar de
absolutamente tudo?
A pergunta é interessante porque nos permite questionar a própria natureza desse processo
mental tão importante em nossas vidas.
A memória não é um registro preciso e muito menos literal da realidade, nem um arquivo
histórico do passado.
Não é reprodutivo, mas reconstrutivo: abstrai, resume, esquematiza, constrói e generaliza a
partir do momento em que a informação é adquirida.
Assim que lemos ou ouvimos um texto, esquecemos muito das palavras reais que foram
usadas. É assim que destilamos a essência da mensagem, o nuclear, o simbólico, o interessante.
A memória se desvincula dos detalhes, se torna abstrata, se torna semântica desde o início
de sua obra. Essa é a maneira pela qual uma memória saudável e ativa se adapta às demandas de
um ambiente em mudança.
A memória fotográfica, nos pouquíssimos casos descritos pela ciência, pode ser
considerada uma aberração, por excesso, da memória. Ou melhor, uma aberração do
esquecimento.
Porque esquecer, apesar de sua má impressão, é tão necessário quanto recordar para
permitir que a memória use as informações do passado de forma adaptativa para viver no presente
e antecipar o futuro.
Então agora você já sabe: nunca esqueça de lembrar de esquecer.
*Pedro Raúl Montoro Martínez e Julia Mayas Arellano são professores titulares e Antonio Prieto
Lara é professor assistente PhD no Departamento de Psicologia Básica da Universidade
Nacional de Educação a Distância (UNED) em Madrid, na Espanha
Este artigo foi publicado originalmente no The Conversation e foi compartilhado aqui sob uma
licença Creative Commons. Leia o texto original aqui.
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czv19vkk4lyo
TEXTO 3
https://revistapesquisa.fapesp.br/retratos-de-comportamento-abusivo/