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TEXTO 1

Falar mais de um idioma pode beneficiar memória, diz estudo


 Panos Athanasopoulos
 Role,The Conversation*
 23 agosto 2023

Imagine uma conversa com seu melhor amigo ou com a pessoa que é sua parceira. Vocês
costumam terminar as palavras e frases um do outro? Como você sabe o que a outra pessoa vai
dizer antes de terminar a frase?
Gostamos de pensar que se trata de intuição romântica, mas a resposta está simplesmente
na forma de funcionamento do cérebro humano.
Em qualquer comunicação, nós geramos inúmeras previsões sobre o que iremos ouvir em
seguida. É como acontece quando jogamos o jogo da forca e tentamos prever a palavra oculta com
base em algumas letras.
No começo (quando temos apenas uma ou duas letras para prosseguir), o número de
possíveis palavras é imenso. Mas, quanto mais letras adivinharmos corretamente, mais se reduzirá
o conjunto de possíveis palavras, até que o nosso cérebro perceba e encontre a palavra correta.
Assim que ouvimos os primeiros sons de uma palavra, nosso cérebro usa aquela
informação e, em conjunto com outras indicações (como frequência, contexto e experiência),
preenche as lacunas, selecionando uma extensa lista de possíveis palavras para prever qual é a
expressão pretendida.
Mas o que acontece se você for bilíngue e falar idiomas com palavras com sons parecidos?
Bem, neste caso, a lista de possíveis palavras é muito maior.
Pode parecer algo negativo, que dificulte a previsão das palavras. Mas um novo estudo,
publicado na revista Science Advances, revelou que, quando o assunto é memória, as pessoas
bilíngues, na verdade, podem ser privilegiadas.
Os idiomas das pessoas bilíngues são interconectados. O mesmo aparelho neural que
processa a nossa língua principal também processa o segundo idioma.
Por isso, é fácil observar que, quando ouvimos os primeiros sons de uma palavra, possíveis
palavras são ativadas, não apenas em um dos idiomas, mas também no outro.
Quando ouvimos os sons “k” e “l”, por exemplo, uma pessoa bilíngue que fale inglês e
espanhol irá ativar automaticamente as palavras “clock” (“relógio”, em inglês) e “clavo” (“prego”,
em espanhol). Isso significa que a pessoa bilíngue tem mais trabalho para selecionar e definir o
termo correto, simplesmente porque existem mais palavras para serem selecionadas até atingir o
objetivo.
Por esta razão, não surpreende que os bilíngues normalmente levem mais tempo para
reconhecer ou recuperar palavras em experimentos linguísticos e psicológicos.

Configuração do experimento
A constante necessidade de analisar palavras concorrentes em um grande número de
candidatas pode trazer consequências cognitivas de longo prazo.
O novo estudo envolveu pessoas bilíngues que falam inglês e espanhol e monoglotas que
falam apenas inglês. Eles ouviam uma dada palavra e precisavam encontrar o objeto
correspondente em um conjunto de imagens. Os movimentos dos olhos dos participantes foram
registrados durante o processo.
Os outros objetos do conjunto foram manipulados para que relembrassem o som da palavra
correspondente ao objeto pretendido.
Suponhamos, por exemplo, que a palavra desejada fosse “beaker” (que, em inglês, pode
designar o béquer usado em laboratórios ou um tipo específico de mamadeira). Neste caso, eram
incluídas opções com imagens de besouros (“beetle”, em inglês, cujo som é parecido com
“beaker”) ou de uma pessoa falando (“speaker”, em inglês, que rima com “beaker”).
Concluiu-se que os participantes passavam mais tempo observando estas imagens do que
aquelas cujo som não era parecido (como “carriage”, ou “carruagem” em inglês). Este maior
tempo de observação ocorreu porque as pessoas ativavam um conjunto maior de rótulos
concorrentes, como acontece quando as palavras têm sons similares.
Por isso, não surpreende que os bilíngues tenham observado por mais tempo as imagens
cujas palavras têm sons parecidos nos seus dois idiomas – ou seja, eles olharam por mais tempo,
para mais objetos, do que os monoglotas.
O estudo examinou em seguida se este tipo de concorrência entre os idiomas gera melhor
capacidade de relembrar objetos. Afinal, quanto mais objetos você observa, maior é a
probabilidade de que você os relembre posteriormente.
Solicitou-se então aos participantes que identificassem a imagem correta depois de
ouvirem uma palavra rapidamente, para testar sua memória de reconhecimento dos objetos que
eles já haviam observado.
Os participantes precisavam clicar em uma caixa marcada como “velho” se reconhecessem
o objeto ou em uma caixa marcada como “novo”, se não o reconhecessem.
As conclusões demonstraram que a memória de reconhecimento de objetos com muitas
palavras concorrentes (como “beaker”, “beetle” e “speaker”) foi melhor do que com objetos com
poucos concorrentes (como “carriage”) – tanto entre os monoglotas quanto entre as pessoas
bilíngues.
Além disso, as pessoas bilíngues também demonstraram o efeito de palavras concorrentes
entre idiomas (por exemplo, “clock” e “clavo”), o que oferece uma vantagem geral em termos de
memória.
É interessante observar que a proficiência do segundo idioma desempenhou papel
fundamental no estudo. A vantagem relativa à memória foi mais profunda em pessoas bilíngues
com alta proficiência na segunda língua do que em monoglotas e bilíngues com baixa proficiência
no segundo idioma.
Fica claro que, para jogar forca bilíngue de forma eficiente, você precisa desenvolver alta
proficiência no segundo idioma, de forma que suas palavras possam concorrer com as da primeira
língua.
Os dados de rastreamento dos olhos confirmaram que objetos com mais palavras
concorrentes eram observados por mais tempo, o que, posteriormente, gerou memória privilegiada
para aqueles objetos. Estas conclusões demonstram que o sistema cognitivo bilíngue é altamente
interativo e pode causar impactos sobre outros componentes da cognição, como a memória de
reconhecimento.
Outros estudos também demonstram melhor processamento de memória entre pessoas
bilíngues, em comparação com monoglotas, em tarefas de categorização que exigem a supressão
de informações conflitantes.
Isso certamente indicaria que as pessoas bilíngues são mais eficientes para realizar
múltiplas tarefas e mais capazes de concentrar-se na tarefa presente, especialmente quando ela
exigir que informações irrelevantes sejam ignoradas (pense em tentar trabalhar em uma cafeteria
barulhenta).
O quadro emergente dos estudos demonstra que ser bilíngue é um instrumento de cognição que
reforça as funções cognitivas básicas, como memória e categorização.
Ou seja, jogar forca bilíngue é mais difícil, mas, em última análise, traz suas
compensações.

*Panos Athanasopoulos é professor de linguística e língua inglesa da Universidade de Lancaster,


no Reino Unido.
Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e
republicado sob licença Creative Commons. Leia aqui a versão original em inglês.

https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce7wnjnw2g6o

TEXTO 2

O que aconteceria se pudéssemos lembrar de absolutamente tudo?


 Pedro Raúl Montoro Martínez, Antonio Prieto Lara e Julia Mayas Arellano
 Role,The Conversation*
 12 agosto 2023
Lembrar de absolutamente tudo seria incrível, não é? Funes, o memorioso, pode não ter a
mesma opinião.
Aos 19 anos, ele bateu a cabeça com força ao andar a cavalo e, quando voltou a si,
percebeu que havia adquirido o incrível talento (ou talvez a maldição) de lembrar tudo o que
percebia ao seu redor.
“Essas memórias não eram simples; cada imagem visual estava ligada a sensações
musculares, térmicas e assim por diante. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os
entressonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro; nunca havia duvidado, mas
cada reconstrução exigia um dia inteiro. No entanto, Funes não era muito capaz de pensar.
Pensar é esquecer as diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo lotado de Funes só havia
detalhes, quase imediatos”.

Salomão, o memorável
Na realidade, Funes nunca existiu. Ao menos fora da mente prodigiosa do escritor
argentino Jorge Luis Borges e do conto "Funes, o memorioso", publicado em 1942.
Mas, por mais extraordinário que possa parecer, houve alguém muito parecido no mundo
real. Estamos falando de Solomon Shereshevski, um mnemonista profissional russo que viveu em
Moscou na primeira metade do século 20 e que foi estudado pelo neuropsicólogo Alexander R.
Luria.
Seu livro "A mente de um mnemonista" (1968) descreve exaustivamente esse caso e é
considerado uma joia da literatura científica.
Shereshevski conseguia lembrar com precisão longas sequências de letras, números e
palavras que mostravam para ele apenas uma vez, mesmo décadas depois, e sem erros.
A memória de Solomon poderia ser descrita como “fotográfica”, pois tudo que ele via, lia
ou ouvia se transformava em uma memória que ele percebia claramente com o “olho” de sua
mente, como se estivesse realmente vendo.
Ele também fazia cópias das informações em formatos sensoriais diferentes do original,
fenômeno conhecido como sinestesia.
O próprio Salomão descreveu como se lembrava das listas de palavras:
“Normalmente sinto o sabor e o peso da palavra… e não tenho mais nada o que fazer, ela
se lembra de si mesma. Sinto uma coisa amanteigada escorregar pela minha mão, feita de vários
pontos muito muito claros, que formigam um pouco a minha mão esquerda e já não preciso mais”.
No entanto, Salomão tinha uma incapacidade de extrair o significado de textos longos, de
entender os duplos sentidos de poesias, piadas ou provérbios e até de fazer raciocínios lógicos e
matemáticos.
Além disso, Shereshevski tinha dificuldade para lembrar rostos e vozes de outras pessoas.
Podemos tirar uma conclusão desse caso: uma memória superlativa não parece implicar
maior inteligência ou melhor capacidade de raciocínio lógico ou abstrato.
William James, um dos pais da psicologia contemporânea, já havia apontado no final do
século XIX: "Se nos lembrássemos de tudo, seríamos tão deficientes na maioria das vezes como se
não lembrássemos de nada... O resultado paradoxal é que uma condição para lembrar é que
devemos esquecer”.

Uma enciclopédia de arrependimentos


Outro caso bem conhecido parece apoiar a ideia de que uma maior capacidade de memória
não necessariamente leva a uma memória melhor.
Nascida em 1965, Jill Price é uma americana que consegue lembrar, com riqueza de
detalhes e com a mesma intensidade emocional da primeira vez, tudo o que aconteceu em sua
vida.
Essa condição é conhecida como hipertimesia e envolve uma memória autobiográfica
exacerbada, que se torna disfuncional e patológica.
O principal problema é que Jill não controla o acesso a essas memórias, em vez disso, elas
a sobrecarregam quando ela se depara com um encontro ou outras memórias vinculadas.
“A maioria das pessoas considera isso uma bênção, mas eu chamo de fardo”, explica ela.
"Todos os dias eu repasso toda a minha vida na minha cabeça e isso está me deixando louca."
Ela ainda consegue se lembrar de cada uma das vezes em que sua mãe lhe disse que ela
estava engordando na adolescência, com o mesmo fardo emocional que sentia então.
A memória dela se tornou uma enciclopédia de arrependimentos que a persegue
frequentemente.
O caso de Jill Price foi exaustivamente investigado pela disciplina de neuropsicologia e ela
mesma escreveu um livro contando sua história.
Os testes de inteligência apontaram que ela tem uma capacidade intelectual normal,
embora sejam detectadas algumas deficiências no pensamento abstrato e outras funções
executivas.
Como podemos ver, uma memória ilimitada não nos torna mais inteligentes ou,
infelizmente, mais felizes.
As pessoas costumam dizer que o tempo cura tudo, mas no caso de Jill Price, os momentos
ruins de sua vida estão sempre vivos em sua cabeça.

Os campeões mundiais da memória


Um caso bem diferente é o dos mnemonistas profissionais, aquelas pessoas que
memorizam longas listas de números, palavras ou datas a uma velocidade vertiginosa em
"campeonatos da memória".
Por mais surpreendente que pareça, a maioria desses "prodígios" não tem uma memória
qualitativamente diferente de qualquer um de nós.
Na verdade, eles atingem esse grande desempenho de memória treinando várias horas por dia
durante anos.
A história de Joshua Foer, um jornalista seduzido pelo assunto ao fazer uma reportagem e
que, um ano depois, foi proclamado vencedor do United States Memory Championship 2006, é
bastante ilustrativa.
Qual era o seu segredo? O treinamento maciço em regras mnemônicas, conforme descrito
em seu divertido livro "Os desafios da memória".
O curioso é que, além das informações específicas para as quais são treinados, esses
profissionais cometem os mesmos erros de memória que os demais mortais.
Eles esquecem onde estacionaram o carro ou o aniversário de um amigo como qualquer
outra pessoa. Na verdade, os casos de memória fotográfica genuína são tão extraordinários que
não representam um fenômeno estatisticamente relevante na população.

Se lembre de esquecer
Voltamos à pergunta do início: o que aconteceria se pudéssemos nos lembrar de
absolutamente tudo?
A pergunta é interessante porque nos permite questionar a própria natureza desse processo
mental tão importante em nossas vidas.
A memória não é um registro preciso e muito menos literal da realidade, nem um arquivo
histórico do passado.
Não é reprodutivo, mas reconstrutivo: abstrai, resume, esquematiza, constrói e generaliza a
partir do momento em que a informação é adquirida.
Assim que lemos ou ouvimos um texto, esquecemos muito das palavras reais que foram
usadas. É assim que destilamos a essência da mensagem, o nuclear, o simbólico, o interessante.
A memória se desvincula dos detalhes, se torna abstrata, se torna semântica desde o início
de sua obra. Essa é a maneira pela qual uma memória saudável e ativa se adapta às demandas de
um ambiente em mudança.
A memória fotográfica, nos pouquíssimos casos descritos pela ciência, pode ser
considerada uma aberração, por excesso, da memória. Ou melhor, uma aberração do
esquecimento.
Porque esquecer, apesar de sua má impressão, é tão necessário quanto recordar para
permitir que a memória use as informações do passado de forma adaptativa para viver no presente
e antecipar o futuro.
Então agora você já sabe: nunca esqueça de lembrar de esquecer.

*Pedro Raúl Montoro Martínez e Julia Mayas Arellano são professores titulares e Antonio Prieto
Lara é professor assistente PhD no Departamento de Psicologia Básica da Universidade
Nacional de Educação a Distância (UNED) em Madrid, na Espanha
Este artigo foi publicado originalmente no The Conversation e foi compartilhado aqui sob uma
licença Creative Commons. Leia o texto original aqui.

https://www.bbc.com/portuguese/articles/czv19vkk4lyo

TEXTO 3

Retratos de comportamento abusivo


Cresce o número de trabalhos acadêmicos sobre a incidência e os efeitos de assédio moral e
sexual em universidades do país

A física Marcia Barbosa, pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul


(UFRGS) e uma estudiosa da discriminação de mulheres na ciência, conta que ficou surpresa com
o impacto de uma campanha sobre assédio moral e sexual organizada em sua instituição em 2016
pelo grupo Meninas na Ciência, coordenado pelas docentes Carolina Brito e Daniela Pavani. A
dupla coletou via Facebook frases abusivas ou preconceituosas que as estudantes ouviram de
professores. Reproduziram várias dessas afirmações em cartazes, sob a epígrafe “Esse é o meu
professor”, com os quais desfilaram pelo campus para denunciar sexismo e misoginia na sala de
aula. “Tá achando difícil? Então vai fazer ballet”, proclamava um dos pôsteres. “Vem com essa
roupa de novo que te dou um bônus”, dizia outro. “Preciso de dois mestrandos, um cara inteligente
e uma guria bonitinha pra carregar meus livros e me servir cafezinho”, zombava um cartaz.
“Eu achava que essas frases cretinas só fossem comuns nas ciências exatas, nas quais, em
geral, há muitos homens e poucas mulheres, mas vi que em outras áreas, inclusive nas ciências
humanas e sociais, elas também eram frequentes. Fiquei com a sensação de que o assédio é muito
mais disseminado do que imaginava e também mal documentado na literatura”, diz Barbosa. A
pesquisadora teve então a ideia de mapear a incidência e a percepção de funcionários, docentes e
alunos da UFRGS em relação a atitudes que caracterizam assédio sexual e moral, assim como o
perfil de vítimas e perpetradores.
Os resultados foram publicados em 2022 em um artigo na revista Anais da Academia
Brasileira de Ciências, também assinado pela física Carolina Brito e por outros colegas da
UFRGS. O grupo adaptou para cada um dos três grupos – professores, servidores e estudantes –
um questionário adotado em um estudo pioneiro sobre assédio realizado na Universidade Harvard,
nos Estados Unidos, em 1983. Responderam à pesquisa, que foi aplicada on-line, 739 professores,
521 funcionários e 4.791 estudantes. O assédio moral, que compreende comportamentos violentos,
xingamentos e humilhações que degradam o ambiente acadêmico, mostrou-se bastante difundido,
atingindo cerca de 40% dos professores e alunos e mais da metade do corpo técnico-
administrativo. “É um percentual assustador. Muita gente só foi se dar conta de que foi vítima
desse tipo de abuso ao refletir sobre o assunto na hora de responder à pergunta”, constata Barbosa.
“O assédio moral é um instrumento para manter o poder. A lógica de assediadores na universidade
é humilhar para ver se as vítimas desistem e saem do caminho deles.” A distribuição dos casos foi
homogênea nos subgrupos de estudantes, mas não em docentes e servidores – neles, o assédio
moral foi mais frequente entre bissexuais, pessoas trans e não binárias, além de mulheres e de
negros.
Já a ocorrência de assédio sexual, que se caracteriza por condutas abusivas, verbais ou
físicas, para obter favores sexuais ou para humilhar indivíduos por características de gênero, foi
relatada por 12% dos entrevistados em todas as categorias. Mas ocorreu com mais frequência
entre as mulheres (cerca de 15% das participantes do sexo feminino relataram ter sofrido assédio
sexual, ante 5% do grupo masculino) e foi duas vezes mais prevalente em bissexuais do que em
heterossexuais e homossexuais. Um dado curioso está relacionado à percepção de assédio. Mais
mulheres do que homens classificaram como assédio comentários de natureza sexual, convites e
telefonemas indesejados ou piadas sexistas. Uma porcentagem maior de homens considerou o
toque indesejado em uma outra pessoa como assédio moral, muito embora toques quase sempre
tenham cunho sexual.
De acordo com a pesquisa, o assédio sexual é cometido principalmente por homens, que
podem ser professores, funcionários ou estudantes, enquanto o moral também é praticado por
mulheres, ainda que em proporção inferior à dos homens. Só 6,5% dos professores, 7,5% dos
estudantes e 11,3% dos servidores vitimados por assédio sexual fizeram denúncias formais, em
um sinal de que essa prática é pouco combatida. “Foi surpreendente ver o descrédito dos canais de
denúncia e isso levou a UFRGS a criar estruturas mais robustas para receber queixas.” Barbosa
conta que os resultados da pesquisa ajudaram a convencer organizações das quais ela participa,
como a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Sociedade Brasileira de Física (SBF), a
adotarem códigos que identifiquem e punam o assédio entre seus membros.
O mapeamento feito na UFRGS se soma a vários outros trabalhos que, nos últimos tempos,
trouxeram para o escrutínio da comunidade acadêmica o problema do assédio sexual e moral em
universidades e instituições de pesquisa. Um dos dados do estudo “O perfil do cientista brasileiro
em início e meio de carreira”, divulgado neste ano pela ABC, aponta panorama semelhante. Por
volta de 47% das mulheres e 12% dos homens entrevistados relataram ter sofrido assédio sexual
durante a carreira. Em relação ao assédio moral, 67% das mulheres e 49% dos homens
informaram ter sido atingidos. Mais de 4 mil pesquisadores responderam ao levantamento.
Alguns estudos se debruçaram sobre os efeitos do assédio em públicos que conquistaram
mais espaço no ambiente universitário mais recentemente, como as mulheres, ou aqueles
beneficiados por ações afirmativas, como negros, pardos e egressos de escolas públicas.
Pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) analisaram relatos de 16 alunas da instituição
que, antes de ingressar na graduação, haviam integrado um projeto de extensão, o Meninas
Velozes, aplicado em uma escola pública da periferia do Distrito Federal e voltado para estimular
o gosto pelas ciências exatas entre garotas. O assédio moral foi apontado como um dos primeiros
obstáculos enfrentados na adaptação das alunas à vida universitária. “Houve um professor que,
numa aula de introdução à engenharia, falou que não gostava de trabalhar com mulher porque não
era tão produtivo quanto com um homem. Eu achei muito estranho, foi bem chato”, relatou uma
das participantes da pesquisa, identificada como Catarina, um nome fictício, estudante oriunda do
Distrito Federal. “Esse constrangimento pode ser destruidor para uma estudante, especialmente
caloura em aula de introdução à sua formação. Se denunciá-lo, teme ser alvo de humilhações,
inseguranças e confirmações do ambiente que reproduz o machismo institucionalizado”,
escreveram os autores do artigo, coordenado pela socióloga Tania Mara Campos de Almeida.
Em um reflexo da relevância que a questão do assédio ganhou em corporações e entre
profissionais de recursos humanos, vários trabalhos sobre o problema foram feitos por
pesquisadores da área de administração de empresas. Em um estudo publicado na Revista de
Estudos Organizacionais e Sociedade, Juliana Teixeira, da Universidade Federal do Espírito
Santo, e Adriana Rampazo, da Universidade Estadual de Londrina, no Paraná, analisaram relatos
de pesquisadoras da área de administração e concluíram que o assédio sexual está disseminado e é
tratado com naturalidade no ambiente acadêmico da disciplina. “Embora os avanços nas
discussões de gênero [no espaço acadêmico] devam ser reconhecidos, falar de assédio sexual é,
ainda, falar de um assunto naturalizado e negado nesse espaço, mesmo que vivenciado”,
escreveram as autoras. O prólogo do artigo apresenta o relato de uma pesquisadora de 30 anos,
cuja identidade não é revelada, sobre o assédio sexual que sofreu de um colega pesquisador que
acabara de conhecer em uma festa do Encontro Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
graduação em Administração, realizado em uma cidade do Nordeste na década passada. Depois de
chamá-la de “morena linda” (a pesquisadora é negra), o assediador perguntou qual era o signo
dela e, depois de ouvir a resposta, disparou: “Posso falar? Quer sexo todo dia. Sobe nas paredes”.
Bianca Spode Beltrame, que atualmente faz doutorado em administração na UFRGS,
produziu um levantamento em 2018 que se tornou referência para estudos sobre assédio em
universidades. Em um trabalho de conclusão de um curso de especialização em administração
pública, ela enviou questionários para dezenas de instituições federais de ensino superior e traçou
um panorama do combate e da prevenção institucional do assédio em 71 delas. O trabalho
demonstrou que 52,3% não possuíam nenhuma política de prevenção ao assédio e 70% delas não
adotavam medidas para combater o problema.
Embora esses dados sejam bastante usados para evidenciar as dificuldades de enfrentar o
assédio no ambiente acadêmico, Beltrame afirma que eles ficaram defasados e várias instituições
já deixaram de ser refratárias. “A questão do assédio tornou-se muito discutida nos últimos tempos
e sei de inúmeras instituições que adotaram protocolos, políticas e normativas contra o assédio no
âmbito universitário depois que o estudo foi feito”, diz a pesquisadora, que inclui no rol dessas
instituições a própria UFRGS e também a Universidade Federal de Santa Maria, onde ela trabalha
como servidora. Ainda assim, observa que “a competitividade no ambiente universitário e a lógica
da produtividade, em detrimento do processo educativo e de desenvolvimento acadêmico e
profissional, alimentam e sustentam práticas de assédio moral entre colegas, com alunos ou em
relações hierárquicas”.
Diversas universidades brasileiras acordaram para o problema e instituíram políticas e
programas para lidar com casos de assédio nos últimos anos. Em 2019, o Conselho Universitário
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) criou a Comissão Gênero e Sexualidade, que
administra o Serviço de Atenção à Violência Sexual (Savs), responsável por acionar setores
especializados e, de acordo com as especificidades de cada caso, oferecer orientação e
acolhimento às vítimas, assim como encaminhar denúncias para averiguação. A Universidade de
São Paulo (USP) conta com o Escritório USP Mulheres, que trabalha na elaboração e
implementação de iniciativas de promoção da igualdade de gênero em seus sete campi. Em 2020,
o escritório lançou, em parceria com a Superintendência de Assistência Social, um protocolo de
atendimento para casos de violência e assédio sexual na universidade, com orientações sobre
acolhimento, encaminhamento e acompanhamento das vítimas por meio de serviços de saúde e
psicossociais (ver Pesquisa FAPESP nº 312).
A Universidade Estadual Paulista (Unesp) lançou há dois anos um guia para prevenir o
assédio no ambiente acadêmico e reforçou as ouvidorias em todos os seus campi, espalhados por
24 cidades, para lidar com denúncias. A mobilização da universidade foi deflagrada após um
episódio infame ocorrido em 2010 em um evento esportivo de integração de estudantes de
graduação no campus de Araraquara: o Rodeio das Gordas. Alunos do campus de Assis criaram
uma competição brutal, convocada pela rede social Orkut, em que submetiam alunas apontadas
como obesas a situações de humilhação e violência – os homens agarravam as colegas como se
elas fossem um animal de montaria e disputavam prêmios a depender do tempo que conseguissem
permanecer em cima delas. Na época, os alunos envolvidos foram suspensos. Um dos
organizadores foi condenado a pagar indenização de 30 salários mínimos por danos morais. O
caso foi uma das denúncias avaliadas por uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembleia
Legislativa do Estado de São Paulo, criada em 2014 para investigar violações dos direitos
humanos em trotes e festas nas universidades paulistas.
“O período compreendido entre 2013 e 2019 foi marcado pelo crescimento no número de
acusações e denúncias de violência registrado na Ouvidoria da Unesp e, concomitantemente ao
recrudescimento das agressões, houve intensa atuação dos movimentos estudantis de resistência a
essas práticas na universidade”, relatou a socióloga Beatriz Jorge Barreto, em um dos seis artigos
publicados no ano passado no dossiê Violência de Gênero na Universidade, organizado pelo
Laboratório Interdisciplinar de Estudos de Gênero da instituição (Lieg-Unesp), no campus de
Marília.
O dossiê do Lieg/Unesp também trouxe um rtigo de conteúdo autobiográfico, em que a
advogada Natalia Silveira de Carvalho, que atualmente é doutoranda no Programa de Pós-
graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia, expõe a importância de coletivos de
alunas dentro da universidade para desenvolver políticas de prevenção e enfrentamento à violência
de gênero. Ela narra experiências na graduação, cursada na Unesp de Franca na década de 2000.
“Lembro-me bem de uma atividade específica da semana de recepção [de calouros] sobre a série
de estupros contra universitárias da Unesp de 2000 a 2004”, escreveu. Segundo ela, a atividade foi
um exercício de solidariedade com as vítimas dos estupros, “tendo em vista que o sigilo de suas
identidades foi mantido e as narrativas de violência não foram relativizadas nem distorcidas, o que
era relevante considerando que vivíamos em um contexto de culpabilização das vítimas”.
Já a pedagoga Carolina dos Santos Bezerra-Perez, do Colégio de Aplicação da
Universidade Federal de Juiz de Fora, apresentou um dramático estudo de caso de uma estudante
negra em uma universidade brasileira, que era constantemente assediada e chegou a ser agredida
sexualmente por um “veterano”, mas enfrentou uma série de constrangimentos quando denunciou
o caso à universidade em que estudava e à polícia – o assediador nunca foi punido.
Para a historiadora Lidia Possas, coordenadora do Lieg/Unesp e professora da Faculdade de
Filosofia e Ciências (FFC) de Marília, estudos desse tipo são importantes para trazer o problema
do assédio à luz do dia, mas ela afirma que debatê-los e divulgá-los gera focos de tensão no
ambiente acadêmico. “O espaço dentro da universidade parece democrático, mas há disputas
internas que podem ser bastante hostis”, diz. “Denúncias de assédio são frequentemente mal
recebidas por pesquisadores homens, que se formaram em um ambiente em que isso era tolerado e
escamoteado. A discussão é sobre comportamentos ligados a abuso de poder, mas muitos
acusados reagem como se sua produção intelectual estivesse em julgamento”, explica Possas, que
também atua como ouvidora do campus da Unesp em Marília.
Pesquisadoras do Lieg estão engajadas em novos levantamentos sobre o assédio, como as
pesquisas de iniciação científica da graduanda em antropologia Bruna Silva Oliveira, na FFC-
Unesp, em Marília, que compara as diretrizes para lidar com assédio adotado nas universidades
estaduais paulistas com as de instituições de países da América Latina, como Chile, México e
Peru. “No Peru, há uma lei que pune as universidades por falta de protocolos ou falhas na
investigação de denúncias de assédio desde 2014”, afirma Oliveira. Um dos referenciais do
trabalho é um estudo da psicóloga mexicana Flor de María Gamboa Solís sobre protocolos
adotados na Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, no México. Uma das conclusões
de sua análise foi que protocolos desse tipo dependem de mudanças profundas na cultura da
universidade para funcionar e que, se isso não acontecer, em vez de proteger as pessoas, eles
podem servir de parâmetro para serem burlados pelos agressores.

https://revistapesquisa.fapesp.br/retratos-de-comportamento-abusivo/

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