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A língua do Brasil
amanhã e outros mistérios. São Paulo:
Parábola, 2004.
ÜBRAS DO AUTOR
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Dei acima uma pequena seleção de "fatos malditos":
aspectos da língua que, não obstante sua importân-
E nio, poeta latino do século II a. e.,
falava três línguas: o grego, que ele tinha aprendido por
cia, são sistematicamente deixados de lado pelas gramá- ser na época a língua de cultura dominante no sul da
ticas atuais, pela simples razão de que nunca foram in- Itália; o latim, em que escreveu suas obras; e o osco, que
cluídos nas gramáticas anteriores. Isso revela uma era com toda probabilidade sua língua nativa. O osco
característica fundamental das gramáticas utilizadas nas (uma língua aparentada com o latim) era naquele tempo
escolas atuais: são elaboradas exclusivamente através da o idioma da maioria da população na região, mas aca-
cópia de gramáticas mais amigas, e nunca através de bou sendo suplantado pelo latim, língua dos conquis-
pesquisas originais ou, pelo menos, através da consulta tadores e do Império. De qualquer forma, no século II
aos resultados mais recentes da pesquisa gramatical. a. C. as três línguas tinham seu lugar na mesma região.
O mais provável é que o latim fosse usado nas relações
No entanto, não faltam fatos a investigar. Nem as
com as autoridades romanas, o grego nas grandes ci-
gramáticas usuais, nem o grande corpo de resulta-
dades e o osco nas regiões rurais. E Ênio, que sabia
dos já obtido pela pesquisa lingüística chega perto
as três, costumava dizer que tinha "três almas".
de esgotar a exploração desse grande continente
que c h an1amos "] ingua
' portuguesa,, . É curioso observar que ele exprimiu com isso uma
coisa muito importante relativa ao conhecimento de
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A LJNCUA [)(l BRASIL A1v!ANHA E OUTRG'í 1\IISH'RIO~
As TRJ'S \1.MAS DO POETA
Um exemplo muito ilustrativo é o das diferentes lentes, e percebem tão bem yuanto nós as muitís-
maneiras que as línguas têm de designar as cores. simas cores da natureza; 1nas categorizam cada uma
Para nós, o espectro solar se divide em seis cores: delas como um matiz de gwyrdd ou de glas.
roxo, azul, verde, laranja, amarelo, vermelho. É claro
que temos recursos para exprimir mn mundo de outras Voltando ao russo, a palavra ruka significa a parte do
cores e matizes; podemos dizer azul-marinho, tlztd-claro co1 po que vai do ombro até a ponta dos dedos: inclui,
e azul esverdeado - mas consideramos essas cores portanto, o nosso braço mais a nossa 1não - de modo
como matizes do azul, que seria a cor primária no que em russo a expressão ruktl z1 ruku significa 'de mãos
caso. Tendemos, então a aceitar aquelas seis cores dadas' ou então 'de braço dado'. Paralelamente, a palavra
corno algo que nos é dado pela natureza: afinal de noga recobre o que chamamos de 'pernà mais o que
contas, são diretamente percebidas pela vista, e não chamamos de 'pé'. Aparentemente os russos, que são tão
têm nada a ver com a língua portuguesa. cuidadosos ao distinguirem os matizes do azul, não pres-
tam tanta atenção às extremidades do corpo humano.
Ledo engano: as línguas segmentam o espectro cada
uma à sua maneira, e seus falantes juram que essa é que Outro exemplo: em russo a palavra dycrevo significa
é a segmentação certa. Como já expliquei em So.fendo 'árvore', e também 'madeira'; em português, como se
a gmmáticrz, o que chamamos de azul é dividido em vê, temos duas palavras diferentes para exprimir essas
russo em duas cores básicas: sinn~y, que é um azul-
noções. Ora, nen1 um russo nem um brasileiro con-
escuro, e golubo_y, que é o azul-claro. Para eles, portanto,
fundem uma árvore com um pedaço de pau, mas
o espectro tem sete cores, e não seis. Tanto nós quanto
o russo dirá algo correspondente a 'essa mesa é feita
os russos percebemos claramente a diferença entre
de árvore' (isso, lá na língua dele). Não há nada de
azul-claro e azul-escuro; mas categorizamos essa dife-
absurdo nisso. O russo pode justificar sua língua
rença através do filtro que nos fornece a língua: para
os russos, são duas cores, para nós é uma só. dizendo: se um osso é feito de osso, e uma pedra
é feita de pedra, por que não posso dizer que uma
Em galês (língua falada no País de Gales), há ape- ~írvore é feita de árvore? Só que o português não
nas duas cores básicas: gwyrdd, que vale para o roxo, funciona assim: nós categorizamos o material de
o azu 1 e o verde, e guis,
' que pega as cores "quentes " que uma árvore é feita como "outra coisa", e os
do laranja ao vermelho. Os galeses têm olhos exce- russos o categorizam como "a mesrna coisa".
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A LÍNGUA DO BRASIL AMANHÃ E OUTROS MISTÉRIOS
As TRF,S ALMAS DO POFTA
Em compensação, temos dois verbos, secar e enxugar, que Essas diferenças não ocorrem somente em casos de
correspondem a um único verbo em muitas outras lín- línguas relativamente distanciadas, como o português
guas: o francês sécher, o inglês to dry ou o russo suJit: Aqui e o russo. Já tive ocasião de notar que o it<Üiano tem
é o poru1guês que faz a distinção mais fina entre duas dois verbos, perdere e smarrire, que se traduzem em
ações, consideradas uma só pelas outras línguas; nesse português como 'perder'. Mas eles não são sinôni-
caso, o espanhol concorda com o português (secar e mos: smarrire é usado apenas para coisas que foram
enjuagar), assim como o italiano (essiccare e asciugare). perdidas, mas podem ser procuradas e encontradas:
assim, pode-se smarrire um livro ou os óculos, mas
Até agora consideramos objetos muito concretos (de- 'perdi o trem' tem que ser ho perso il trena, e não ho
dos, limões, mãos, pés, cores) e vimos que mesmo para smarrito il treno (a menos, claro, que se trate de um
eles as categorizações podem mudar de língua para lín- trem de brinquedo). Como se vê, a idéia de 'per-
gua. Quando se chega a noções mais abstratas, natural- der' é segmentada de modo diferente pelo italiano
mente, as diferenças podem ser ainda mais profun- e pelo português. Em compensação, o italiano só
das. Uma vez eu disse a uma professora turca que eu tem uma palavra, nipote, para exprimir aquilo que
conhecia uma palavra da sua língua: sevda (disse eu) chamamos sobrinho e neto - será que isso às vezes
significa "amor". Aí ela partiu para uma longa expli- não causa alguma confusão lá na Itália?
cação do que significa realmente essa palavra, que é
amor, mas não qualquer tipo de amor. Não me lem- Até agora só examinamos palavras individuais. Mas
bro dos detalhes, mas, se pensarmos bem, realmente as línguas também diferem - e muito mais, aliás -
há muitas coisas diferentes que nós englobamos sob na maneira de categorizar e exprimir conceitos mais
a mesma designação amor. amor aos filhos, amor ao amplos do que simplesmente a designação de objetos
trabalho, amor sexual, amor platônico, ou simples- concretos ou abstratos. Um caso interessante é o dos
mente quando chamamos alguém de meu amor. Uma verbos e substantivos em português e seus corres-
língua estrangeira não tem nenhuma obrigação de fazer pondentes em náhuad (a antiga língua dos astecas,
o mesmo recorte que o português faz; os turcos, ao que ainda falada em várias regiões do México).
parece, fazem distinções mais finas, sem que isso signifi-
que que eles sejam mais ou menos amorosos do que nós. Em náhuatl, a palavra mexzcatl significa 'mexicano',
Apenas recortam a realidade de maneira diferente. mas pode ser "conjugada'' em frases como
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A LÍNCL'A DO BRASIL Al\IANH,-\ [ Ol rrnos MlSTÉRIOS
As TRfs ALt-.1As DC) ruFTA
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