Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Brasil
Eddy Stols
Luciana Pelaes Mascaro
Clodoaldo Bueno
e Bélgica
Cinco Séculos de Conexões e Interações
Brasil
organizadores
Eddy Stols
Luciana Pelaes Mascaro
Clodoaldo Bueno
e Bélgica
Cinco Séculos de
Conexões e Interações
B r a si l e B é l g ic a
Cinco Séculos de Conexões e Interações
brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
2
brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
Brasil e Bélgica
Cinco Séculos de Conexões e Interações
organizadores
Eddy Stols
Luciana Pelaes Mascaro
Clodoaldo Bueno
3
brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
edi çã o
Roney Cytrynowicz
tradu ção
Eddy Stols
Luciana Pelaes Mascaro
Susana Rossberg
ISBN 978-85-88065-34-5
4
Os laços entre Brasil e Bélgica
5
brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
6
Apresentação
7
brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
Eddy Stols nasceu em 1938 em Roeselare, Bélgica. Concluiu seu Doutorado em História pela Universidade Católica de Lovaina em
1965. Foi professor na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília (atual Unesp) de 1963 a 1968; professor na Universidade
Católica de Lovaina de 1971 até se tornar Professor Emérito em 2004; professor extraordinário na Universidade de Leiden, Holanda
(1987-1991); professor visitante em várias universidades brasileiras (USP, UFMG, UFSC e UNESP - Campus Assis) e na École des
Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Entre suas publicações: Brazilië, Een geschiedenis in dribbelpas (Brasil, uma história em
passo drible), 1996, 2002 e terceira edição ampliada em 2011; coeditor de La Belgique et l’étranger aux XIXe et XXe siècles (1987); de
Flandres e Portugal, Na confluência de duas culturas (1991); Flandre et Amérique latine, Cinq siècles de confrontations et de métissages
(1993); Brasil, Cultures et économies de quatre continents (2001); O diplomata e desenhista Benjamin Mary e as relações da Bélgica com
o Império do Brasil (2006); Un mundo sobre papel (2009); Terra Brasilis (2011), com curadoria da exposição na Europalia.Brasil. Publi-
cou mais de cem artigos em revistas ou capítulos de livros, dos quais uma dezena sobre alimentação, açúcar e chocolate.
Luciana Pelaes Mascaro nasceu em 1970 em Dourado, São Paulo. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pelo Instituto de Ar-
quitetura e Urbanismo (IAU-USP) São Carlos em 1997 e Doutora pela mesma escola na área de Teoria e História da Arquitetura e
do Urbanismo em 2008. Realizou estágio de doutorado na Universidade do Minho, Portugal, e atuou como pesquisador estrangeiro
na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa. Trabalhou como Diretor do Departamento de Patrimônio Histórico da cidade de Jaú
(SP) em 2003. Participou da organização de workshops e seminários sobre Arquitetura e Patrimônio Arquitetônico e colaborou com o
CIVA (Centre International pour la Ville, l’Architecture et le Paysage), em Bruxelles, Bélgica, durante o ano de 2010. É professora do
Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Mato Grosso – campus de Cuiabá, e atua como pesquisadora
em temas como arquitetura do final do século XIX e início do XX, patrimônio arquitetônico e industrial.
Clodoaldo Bueno nasceu em 1943 em Presidente Prudente, Estado de São Paulo. É Mestre e Doutor em História Econômica pela
Universidade de São Paulo (USP), Livre-Docente e Professor Titular da Unesp, aposentado. Docente permanente do curso do Progra-
ma de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” da Unesp/Unicamp/PUC-SP, sediado em São Paulo. Foi pro-
fessor visitante na Universidade de Brasília (1994-95) e no Instituto de Estudos Avançados da USP (1197-99). Com auxílio da Fapesp,
desenvolveu em 1997 programa de aperfeiçoamento científico na Universidade de Lovaina, Bélgica. Membro do Grupo de Análise de
Conjuntura Internacional da USP; membro da CHIR (Comission of History of International Relations), sediada em Paris-Milão e vice-
coordenador acadêmico do Instituto de Estudos Econômicos Internacionais da Unesp/SP. Entre suas publicações, destacam-se os livros
A República e sua política exterior (1889 a 1902) (Editora da Unesp / Funag, 1995); Política externa da Primeira República – Os anos
de apogeu – de 1902-1918) (Paz e Terra, 2003); História da política exterior do Brasil (Ed.UnB, 4ª ed. 2011), este em co-autoria com
Amado Luiz Cervo. Publicou textos em revistas e livros editados em Londres, Tóquio, Paris, Buenos Aires, Milão, Quito e Assunção.
8
Introdução
9
brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
os distúrbios sociais do final de século, socialistas como Augusto dados em casas de família. Paralelamente, cresceu o número de
Lootens e Alphonse Solheid e anarquistas como Jules Moineau expats belgas no Brasil, sendo cada vez maior o número dos que
se asilaram no Brasil. se registram em seus consulados no país.
Fugindo dos horrores da Primeira Guerra Mundial, um grupo Assim não é de se estranhar o fato de a Bélgica ter se tornado
de 30 belgas fundou sua comunidade libertária na fazenda Ta- referência frequente no vocabulário e ideário brasileiros. Em razão
bantinguera perto de Cananéia; mesmo malograda, esta aventura das dimensões do seu território e padrão de vida de sua popula-
brasileira inspirou um dos participantes, Géo Libbrecht, em sua ção passou a fazer parte da métrica brasileira e adquiriu status de
futura obra poética. No início da Segunda Guerra Mundial, cerca modelo de bem-estar social refletido no termo ‘Belíndia’, forjado
de trinta judeus, com passaportes belgas, obtiveram do embaixador em 1974 por Edmar Bacha para definir a sociedade brasileira,
brasileiro na França, Souza Dantas, visto para refugiarem-se no que justapõe o bem-estar desfrutado por 10% de seus nacionais
Brasil. Uma vez terminado o conflito, para lá escaparam, por sua nas condições da Bélgica aos 90% daqueles que vivem problemas
vez, vários colaboracionistas belgas da ocupação nazista. similares aos da Índia.
Outros ainda chegaram ao Brasil para prestar serviço a com- Esta primeira exploração poderia prolongar-se, enveredando-a
panhias belgas, como fez o engenheiro Gustave Vauthier, no final na vida científica, educacional e religiosa, mas esta pequena mis-
do século XIX, nas ferrovias do Paraná e Rio Grande do Sul. Em celânea de dados é suficiente para evidenciar um surpreendente
1886 a compra da companhia inglesa Gaz do Rio por capitalistas fluxo quase contínuo e muito diversificado de conexões entre am-
belgas inaugurou um período de investimentos em ferrovias, mi- bos os países, o que justifica um estudo mais aprofundado destas
neração, indústria têxtil, agropecuária e exploração da borracha, relações multifacetadas e sobretudo recíprocas, relações que nun-
totalizando por volta de 1910 mais de 100 milhões de francos em ca suscitaram uma obra de síntese como as que existem para as
quase quarenta empresas. Algumas destas tiveram vida curta, co- relações do Brasil com outros países europeus. Diferenciando-se
mo a Companhia Força e Luz, no Rio de Janeiro, que em 1887, destas obras, preferiu-se aqui uma abordagem bifocal, exploran-
embora por pouco tempo, teve parte do centro iluminado com ba- do estas conexões dos dois lados e dando ênfase tanto à presença
terias do belga Edmond Julien. Esta prefigurou de certa maneira brasileira na Bélgica quanto à belga no Brasil.
o empenho belga no fornecimento de energia elétrica no Brasil. Em nosso projeto editorial, ambicionamos, inicialmente, apre-
Outras empresas foram compradas pelo americano Farquhar co- sentar um repertório sucinto, mas tão completo quanto possível,
mo as ferrovias do sul brasileiro pouco antes da Primeira Guerra destas conexões em todos os setores, tanto no passado quanto no
Mundial; outras ainda mantiveram-se por quase um século, como presente, alternando verbetes de estudiosos com depoimentos pes-
o Banco Ítalo-Belga, fundado em 1911 em São Paulo. soais. Entretanto, logo vimo-nos subjugados e algo desnorteados
Uma incipiente segunda onda de investimentos belgas no Bra- pela abundância de temas, não suspeitada inicialmente.
sil ocorreu no final dos anos de 1930, mas interrompida pela guer- Além disso, tivemos a grata surpresa de constatar que muitos
ra. A nova dinâmia de investimentos que se verifica atualmente assuntos já foram investigados recentemente por acadêmicos bel-
somente se intensificou a partir do final do século XX, mas supe- gas e, sobretudo, por brasileiros. O crescente interesse existente
ra agora as fases anteriores. Desta vez veio acompanhada de mo- no Brasil pelos recantos de sua história reflete-se na excelente
vimento de capitais em sentido inverso, pois várias companhias qualidade da pesquisa nas suas universidades e na conservação
brasileiras instalaram-se na Bélgica. do patrimônio material.
Se as empresas belgas levaram seu pessoal para o Brasil, nume- Em vista do limite de páginas, do tempo e do orçamento
rosa colônia brasileira surgiu espontaneamente na Bélgica, com disponíveis impôs-se a necessidade de selecionar temas. Assim,
presença mais visível em Bruxelas, dos anos 1990 até hoje, cons- deixamos de lado as figuras e os episódios mencionados acima.
tituída de emigrantes à procura de trabalho. Desde a década an- Procuramos equilibrar os mais conhecidos e proeminentes com
terior, futebolistas brasileiros profissionais foram contratados por outros desconhecidos e quase marginais. Mesmo assim, conexões
equipes belgas, a exemplo do maranhense Luís Oliveira, que se importantes como na psicologia e psicanálise ou na literatura fi-
tornou entre 1988-1992 estrela do F.C. Anderlecht e da equipe caram de fora. Pedimos desculpas às pessoas para as quais não pu-
nacional dos Rode duivels. demos dar a devida atenção, mas esperamos que futuramente em
Bem antes disso, isto é, desde meados do século XIX, foi ex- outro livro consigamos nos redimir desta falha. Para adequarmos
pressivo o número de estudantes brasileiros nas universidades a obra ao espaço disponível reduzimos as referências bibliográfi-
belgas. Merecem ainda destaque os cerca de quarenta exilados cas ao mínimo indispensável. Ressaltamos ainda que cada autor
brasileiros no Chile que, depois do golpe contra o presidente é pessoalmente responsável pelas opiniões emitidas.
Allende, encontraram no final de 1973 refúgio na Bélgica. Dois
de seus líderes, Vladimir Palmeira e José Ibrahim, participaram ***
de maneira ativa da redemocratização do País. Cabe mencionar,
também, o programa de intercâmbio American Field Service, que Este projeto foi viabilizado graças ao patrocínio da Tractebel
desde 1985 facilita para algumas centenas de jovens brasileiros Energia dentro das normas da Lei Rouanet. A boa acolhida da-
e belgas passar um ano escolar na Bélgica ou no Brasil, hospe- da pelo seu diretor Jan Flachet e seus colaboradores foi determi-
10
introdução
nante, como também em Bruxelas o apoio de Dirk Beeuwsaert, pour l’exploration et la conservation de la nature, de Luc Vints do
diretor da Electrabel e administrador da GDF-Suez. Grande é KADOC (Centro de documentação católica da Universidade de
nossa dívida para com a Incentive Cultural de Raphael Ribeiro, Lovaina), do Institut Royal du Patrimoine Artistique (KIK-IRPA)
que conseguiu a aplicação da referida lei a este livro. Entre os em Bruxelas, de Monica Muggler, Patrick Segers, do Serviço de
diplomatas belgas, Peter Claes, cônsul-geral da Bélgica em São Turismo do município de Dendermonde, do Museu Real de Arte
Paulo, foi, em 2011, o primeiro a apoiar o projeto, além de for- e História (KMKG-MRAH), em Bruxelas, do Ecomusée du Bois-
necer valiosas informações juntamente com seus colaboradores du-Luc, em La Louvière, Bélgica, de Verônica Tamaoki do Cen-
Dulce Vivas e Bart Struyf. Em seguida, também o embaixador tro de Memória do Circo em São Paulo, do Instituto do Patrimô-
belga em Brasília, Claude Misson, ofereceu sua colaboração. Os nio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, do Acervo do Museu
atuais embaixador Jozef Smets e cônsul-geral Didier Vanderhas- Mineiro-Superintendência de Museus e Artes Visuais, do Museu
selt apoiaram a conclusão do projeto. O embaixador brasileiro Paulista da Universidade de São Paulo, da Pinacoteca do Estado
na Bélgica, André Mattoso Maia Amado, manifestou, também, de São Paulo, do Museu da Cidade de São Paulo-Casa da Imagem
especial interesse. Somos particularmente gratos à embaixadora da Prefeitura de São Paulo, do Museu do Trem do Rio de Janeiro,
Katia Godinho Gilaberte, no consulado-geral do Brasil em Bruxe- do Arquivo Público do Distrito Federal, da Christie’s Images, do
las, pelo seu apoio, e ao seu assistente Brunno Hoffmann Velloso Irmão João Baptista do Mosteiro de São Bento de São Paulo, do
da Silva, pelas valiosas informações prestadas. Núcleo de Documentação do Instituto Butantan, da Biblioteca
Agradecemos de modo especial a todos os autores por terem da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”-Esalq, da
aceitado colaborar, sem receber honorários, e particularmente a Biblioteca da Faculdade de Economia, Administração e Contabi-
Els Lagrou, Susana Rossberg, Cristina Dias, Roland Renson por lidade-FEA-USP, da Europalia em Bruxelas, do arquivo pessoal de
terem coordenado capítulos. Boa parte das ilustrações foi propor- Allen Morrison, do conde Frédéric de Limburg Stirum, de Paul
cionada pelos próprios autores. Várias fotografias são de autoria de Wittamer, do fotógrafo Ricardo de Vicq de Cumptich, e das fo-
Luciana Mascaro. Outras recebemos de Ivana Vervloet, Regina tógrafas Vivian Oswald e Sofie Deblieck, que cederam suas obras
Lootens Machado, do Museu Histórico de Belo Horizonte, de sem ônus. Devemos, finalmente, registrar que recebemos informa-
Silvio Cordeiro, Luc Van Coolput, Bruno De Corte, do Arquivo ções preciosas de Regina Barbosa, Daniela Rocha, Dominique Van
Municipal de Antuérpia, de Bruno Gosse, do Fonds Léopold III Pée, dos padres Johan Konings e Thierry Linard de Guertechin.
11
brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
12
Sumário
13
brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
A toda vela para o Brasil, impressões do passado marítimo Algumas contribuições belgas à bovinotecnia brasileira . . . . . 114
oitocentista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81 Regis De Bel
Jan Possemiers
Dom Amaro Van Emelen e a apicultura no Brasil . . . . . . . . . 116
Um traficante de escravos na Bahia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84 Regis De Bel
Chris Delarivière
Alphonse Richard Hoge: o especialista em serpentes . . . . . . . 118
Chris Delariviere
E m presas belg as n o B ras il
Biotecnologia Vegetal no Brasil: sucesso na cooperação. . . . . 118
A Urucum dos belgas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
Dulce Eleonora de Oliveira
Fabio Guimarães Rolim
A Cooperação ente a KULeuven e as universidades
A Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil e suas
brasileiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
conexões belgas (1904-1918) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Beatriz Monge Bonini e Rogelio Lopes Brandão
Paulo Roberto Cimó Queiroz
Deme: uma empresa de engenharia marinha com 150 O diretor brasileiro de um dos mais ativos laboratórios de
anos de experiência mundial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 pesquisa em diabetes na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
Decio L. Eizirik
Grupo Jan de Nul. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
Katoen Natie: mais de 15 anos de prestação de serviços Antr o po lo gia
logísticos no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102
A melancolia dos belgas: devir antropológico no Brasil. . . . . . 126
Els Lagrou
E m presas bras i lei ras na B élgica
Quando a selva chama. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138
A Compagnie Brésilienne des Tramways. . . . . . . . . . . . . . . . . 104
Daniel De Vos
Eddy Stols
As pesquisas sobre o patrimônio linguístico africano. . . . . . . . 140
O Panorama da baía e cidade do Rio de Janeiro. . . . . . . . . . . 104
Jacky Maniacky e Jean-Pierre Angenot
Eddy Stols
14
sumário
Os cônegos brancos e outras ordens belgas. . . . . . . . . . . . . . . 164 A dança na Bélgica a partir do Século XX. . . . . . . . . . . . . . . . 199
Eddy Stols Textos organizados por Cristina Dias
O excêntrico padre Júlio Maria de Lombaerde. . . . . . . . . . . . 168 Depoimento de Rachel da Costa Cunha. . . . . . . . . . . . . . . 199
Eddy Stols A Escola Mudra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200
O sonho monástico de José Moreau em Tabatinguera Cristina Dias
(Cananéia) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 Depoimento de Claudio Bernardo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200
Eddy Stols
A evolução da dança contemporânea na Bélgica. . . . . . . . . . 201
A Trapa Maristela (1904-1931). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170 Textos organizados por Cristina Dias
José Eduardo M. Manfredini Júnior
Depoimento de Milton Paulo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202
Orval, uma grande abadia belga, com substrato brasileiro . . . 171
Peter Heyrman
PARTS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202
Cristian Duarte
Os colégios das freiras belgas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173
Eddy Stols
Depoimento de Maria Clara Villa Lobos. . . . . . . . . . . . . . 203
As Damas da Instrução Cristã em Pernambuco. . . . . . . . . . . . 174 O papel dos produtores, os intercâmbios de companhias
Marcelo Lins
de dança e os festivais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 204
Textos organizados por Cristina Dias
Presenças belgas no catolicismo do Brasil contemporâneo
(1945-2010). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176 Espetáculos brasileiros na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 204
Rodrigo Albea
Eddy Stols
15
brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
A descoberta da Bossa Nova na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . 227 O Brasil, terra de energia e de cinema. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 254
Bart P. Vanspauwen Thierry Michel
A descoberta do Mangue Beat na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . 229 Mover-se com a câmera, mudar o ponto de vista. . . . . . . . . . . 257
Bart P. Vanspauwen Heron Ferreira
A música brasileira nos festivais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231 Filmando nas aldeias Kayapó. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259
Bart P. Vanspauwen Gustaaf Verswijver
16
sumário
Fonte de inspiração e temas de Luiz Figueiredo. . . . . . . . . . . 291 Os pavilhões brasileiros nas exposições internacionais
Frederik De Preester e Piet Slijkerman da Bélgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 338
Luciana Pelaes Mascaro
A trajetória da Galeria Cravo e Canela . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293
Jacques Ardies Sérgio Bernardes e o pavilhão do Brasil na Exposição
Mundial de 1958 em Bruxelas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 342
Arte Popular Brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 296
Emiel De Kooning
Daniel Achedjian
Frédéric de Limburg Stirum e Paraty. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 345
Europalia.Brasil 2011-2012 ou como quase um milhão de
Dominique Vanpée
visitantes descobrem ou redescobrem a cultura brasileira. . . . 298
Kristine De Mulder Paraty. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 346
Cassio Ramiro Mohallem Cotrim
Hi s tóri as em Quad ri n h o s
Paraty e o plano de Limburg-Stirum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 349
O cartunista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 302 Fabio Guimarães Rolim
Ronaldo Cunha Dias
B-architecten. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 351
Caatinga. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303 Dirk Engelen
Hermann Huppen
O Projeto Bamboostic. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 351
Sven Mouton
Foto g rafi a
A oficina litográfica de Leon De Rennes. . . . . . . . . . . . . . . . . 305 Parte 11 – Esportes
Jamil Abib
Gaston Roelants ganha quatro vezes a Corrida Internacional
Um patrimônio de fontes em comum com o Brasil: a coleção
de São Silvestre. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 355
de fotografias dos Premonstratenses da Abadia do Parque
Roland Renson
(Parkabdij) de Lovaina. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 307
Luc Vints A primeira competição de atletas brasileiros nos Jogos
Olímpicos de 1920 em Antuérpia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 356
Um botânico, um jardim e uma expedição: Jean Massart
Roland Renson
e a “Mission Biologique Belge Au Brésil (1922-23)”. . . . . . . . . 314
Alda Heizer A capoeira na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 359
Jan Tolleneer
O Rei Leopoldo III e a floresta amazônica brasileira. . . . . . . . 317
Gustaaf Verswijver Nelson e Rodrigo Pessoa: uma família brasileira dedicada
ao hipismo mundial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 360
Frechal, pioneiro da luta quilombola no Brasil. . . . . . . . . . . . 319
Katia Rubio
Christine Leidgens
17
brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação
18
presenças belgas no brasil
parte 1
Travessias e Migrações
19
parte 1 – travessias e migrações
20
presenças belgas no brasil
21
parte 1 – travessias e migrações
agentes ou filhos para São Vicente, Bahia e Pernambuco. Assim, Desde a abertura dos portos em 1808, os registros brasileiros de
constituiu-se lá até o final do século XVI um pequeno núcleo estrangeiros mencionaram esporadicamente a entrada de belgas
de flamengos de primeira geração, que tiveram também alguma como ‘franceses’ ou ‘holandeses’, em função do passaporte que
descendência brasileira, como os Campos. Entretanto, sua tran- traziam. É que os Países Baixos meridionais foram anexados pe-
quilidade foi logo afetada pelos ataques ingleses e holandeses e la República francesa em 1795 e passaram, depois da derrota de
ficaram suspeitos de agir como uma quinta coluna. Alguns, acu- Napoleão, em 1814, a fazer parte, junto com a Holanda, de um
sados de heresias protestantes, foram deportados pelo visitador da Reino Unido dos Países Baixos, que teve pouca duração. Somen-
Inquisição em 1594. te depois da Revolução de 1830 e da Independência da Bélgica
Além disso, em represália às novas investidas holandesas, de- é que a nacionalidade belga definiu-se como tal nos documentos
cretou-se em 1608 a expulsão desses flamengos do Brasil, mas vá- de identidade.
rios puderam voltar durante a trégua de 1609-1621. Confrontados Porém, o equívoco subsistia no Brasil e belgas passavam fre-
outra vez em 1624 e 1630 com as invasões holandesas, tiveram quentemente por franceses, porque falavam francês ou porque ti-
que escolher um ou outro partido. Quem, como Gaspar de Mere, nham residido por um tempo na França. Quanto aos flamengos,
ficou com os portugueses, teve seu engenho confiscado. Depois estes, já ausentes dos registros oficiais, incorporavam-se doravante
da vitória portuguesa sobre os holandeses em 1654, manteve-se no imaginário histórico dos brasileiros.
em Lisboa e no Porto uma pequena comunidade flamenga, que
intermediava o comércio com o Brasil e que enviava, ocasional- Referências
mente, um ou outro agente ao Brasil, sem, entretanto, reconstituir STOLS, Eddy. “Convivências e conivências luso-flamengas na rota do açúcar brasileiro”.
um novo núcleo flamengo. In Ler História, Lisboa, 1997, 32, p. 119-147.
22
presenças belgas no brasil
Campos por uma escuna de guerra, seguiram em barcas até Pe- a vinda de no mínimo cem colonos por ano. O governo imperial
dra Lisa em 14 de fevereiro de 1844, onde deviam receber casas pagaria trinta mil réis por colono maior de 14 anos e dez mil por
provisórias e alimentos até as primeiras colheitas. aqueles com idade entre três e 14 anos. Daria isenções de taxas
Desenganados e descontentes com o despreparo, em abril qua- sobre a importação de móveis, víveres, sementes, equipamentos
se todos tinham desaparecido. Novas providências para comprar agrícolas, material de construção, livros e armas. Permitiria a ex-
gado a fim de reter os poucos restantes não adiantaram. O único ploração de minérios, salvo diamantes e carvão, que exigiriam um
a ficar, Nélis tirou todo o proveito possível das matas, para escân- contrato particular. Os colonos seriam submissos às leis do Impé-
dalo dos vizinhos, que queriam repartir as terras entre os pobres. rio, mas gozariam de liberdade religiosa e seus filhos nasceriam
Alguns fugitivos se colocaram em outras colônias, mas boa parte brasileiros. Não poderiam empregar escravos.
voltou à Bélgica e relatou na imprensa seus dissabores. De regresso à Bélgica, Van Lede sintetizou suas informações
O governo nada recuperou de seus gastos e o próprio Nélis vol- gerais sobre o Brasil e Santa Catarina num livro substancial de 435
tou para Zele onde, em 1847, figurou como morador e fabricante páginas, De la colonisation au Brésil, Bruxelas, 1843. Mandatado
de velas. Neste contexto de Pedra Lisa situou-se a vinda a Campos pela Société de Commerce de Bruges, organizou uma sociedade
do casal Charles Muylaert, originário de Aalst, cidade próxima a anônima de 6 milhões de francos em 6.000 ações. Esperava atrair
Zele, que deixou numerosa descendência no Brasil, ativa na mú- capital e colonos com a distribuição de seu livro e de folhetos não
sica e nas artes. Perto de São Fidelis (RJ), a colônia de Valão dos somente na Bélgica como também na vizinha Renânia alemã.
Veados, montada pelo proprietário Eugênio Aprígio da Veiga em Rivalizando com a colonização já mais adiantada em Santo
1847, contou com 13 belgas. Tomás de Guatemala, seu projeto ambicioso pretendia envolver as
Outra atividade econômica belga que suscitava particular inte- mais altas instâncias do país. Entretanto, o principal banco belga,
resse brasileiro era sua já bem avançada exploração das minas de o Société Générale, recusou-se a promover a subscrição de ações,
carvão. Para examinar o potencial carbonífero brasileiro e trans- alegando que não podia depender de um governo estrangeiro.
ferir a tecnologia belga, o governo imperial contratou, em 1839, O próprio governo belga, alertado por seu encarregado de ne-
o cientista Jules Parigot. Mal sucedido, este acabaria, mais tarde, gócios no Rio de Janeiro, Edouard De Jaegher, sobre a instabili-
nos anos de 1860, como diretor de colônias no Paraná. Um outro dade política no Brasil, os riscos financeiros e os problemas em
belga, Charles Van Lede, travou um nexo mais direto entre explo- casos de heranças, negou a proteção oficial e concedeu somente
ração geológica e colonização. o patrocínio do rei e passaportes gratuitos aos colonos. Não cons-
Charles Van Lede (1801-1875), nascido em Bruges de uma ta que a hierarquia católica deu seu apoio como o fazia para a
família de comerciantes e proprietários de terras, conhecia a Amé- colônia na Guatemala. Mesmo assim, negociantes de Antuérpia,
rica Latina por seu trabalho como engenheiro militar no México como Théodore de Cock e Melchior Kramp, participaram e fa-
e no Uruguai nos anos de 1826 a 1828. No Chile teria sido di- cilitaram a ratificação da nova Companhia em 19 de janeiro de
retor das obras hidráulicas. Seu irmão, Louis Auguste Van Lede, 1844. A imprensa advertiu os eventuais acionistas que ainda fal-
vice-cônsul do Brasil em Bruges e sócio da Société de Commerce tava a aprovação da Câmara brasileira e que as terras eram mais
de Bruges, fazia comércio com o Brasil. Em abril de 1837 tinha baratas nos Estados Unidos. Também na Renânia publicou-se um
despachado um navio para o Rio de Janeiro com farinhas, tecidos exame crítico do projeto: Die Belgischen Colonien in Guatemala
e armas. Em dezembro de 1841, Charles partiu para prospectar und Brasilien, Colônia, 1844.
no Brasil, com um capital de 50.000 francos e recomendado pe- De seu lado, o cônsul-geral brasileiro, José Augusto Rade-
lo encarregado de negócios brasileiro em Bruxelas, Visconde de maker, que no início era favorável ao projeto, se distanciou. A
Santo Amaro. Este apreciava os belgas como “bons trabalhadores ausência de brasileiros no conselho de administração, as críticas
e católicos”, mas pretendia eliminar “a escória da sociedade”. ventiladas por De Jaegher, as passagens sobre as dívidas do Brasil
Charles Van Lede levou consigo Joseph Philippe Fontaine, no livro de Van Lede e a pouca consideração deste último cho-
como delegado da Société de Commerce de Bruges e seu futuro caram sua autoestima de brasileiro, ainda mais quando os jornais
substituto, e mais um sobrinho, Jules de Laveleye, mais tarde vice- escreveram que Van Lede tinha conquistado para a Bélgica ‘un
-cônsul do Brasil em Gand. Percorreu boa parte de Santa Cata- petit royaume de 400 lieues carrées’ – um pequeno reino de 400
rina, de São José a Lages, remontou o Rio Itajaí, examinou o po- léguas quadradas. Rademaker ressentia a resistência dos belgas em
tencial de mineração de carvão como em Tubarão, levantou um ceder ao Império a soberania sobre seus súbditos e sua preferência
mapa e redigiu a nota Geologia de Santa Catarina. Esta foi tradu- pela colônia mais dependente de Santo Tomás de Guatemala, pa-
zida na Revista do Instituto Histórico, 1845, t. 7, do qual se tornou ra onde embarcavam nesta época mais de 500 belgas.
correspondente estrangeiro. Seu trabalho alimentou boatos de que Algo recalcitrante, Van Lede não desistiu e partiu novamente
queria explorar carvão e minérios com mão de obra flamenga. em junho de 1844 para efetuar a demarcação de sua concessão.
No Rio de Janeiro conseguiu do Império, em 10 de agosto de No Brasil lhe esperava a decepção da nova lei, que interditou a
1842, uma concessão de terras devolutas de 20 léguas quadradas doação de terras públicas. Como os primeiros colonos já estavam
que sua nova Companhia belgo-brasileira de colonização devia va- embarcando, Van Lede comprou por conta própria, de Henrique
lorizar com capital suficiente para obras e construções e promover Flores, uma légua quadrada de terras na margem do Rio Itajaí, a
23
parte 1 – travessias e migrações
futura Ilhota. No final de agosto, saiu de Ostende o barco Jan Van Paralelamente, esta colonização belga em Santa Catarina se
Eyck, do capitão Minne, com a primeira leva de 114 emigrantes, conectou com o desenvolvimento da horticultura tropical na Bél-
principalmente da região de Wingene, na província de Flandres gica e particularmente na cidade de Gand. Um de seus principais
ocidental, em maioria agricultores, jovens de 20 a 30 anos, alguns horticultores, Verschaffelt, enviou um empregado, François De
casados e com filhos. Mas vinha também gente de classe média Vos, para coletar orquídeas em Santa Catarina e recebeu deste a
urbana, como o já citado Joseph Philippe Fontaine, Gustave Le- Cattleya Leopoldi e a Cattleya elegans, cuja comercialização exi-
bon, o agrimensor Henri Devreker, Hypolite Vanderheyden de tosa rendeu bons lucros.
Ostende e Pieter-Jan Plettinck. Este último, que foi médico e far- Rijcke foi outro colono belga que também se dedicou à caça
macêutico em Bruges antes de dedicar-se à agricultura e à destila- de plantas, talvez a serviço de outro horticultor gandense, Louis
ria em Jabbeke, escrevia suas cartas num bom francês (Boutens). van Houtte. Graças às suas cartas, conservadas pela família, co-
A viagem levou 12 semanas, com paradas de oito dias em San- nhece-se um pouco melhor a trajetória catarinense do naturalista
ta Cruz de Tenerife e no Rio. Nem todos os imigrantes seguiram Lambert Picard (1827-1891). Jovem, órfão de um metalurgista
diretamente para a colônia no Itajaí. Plettinck, diante de notícias luxemburguês, partiu em 1846, depois de um curto estágio com
confusas sobre as terras, ficou no Desterro, pensando em exercer um horticultor em Bruxelas, para fazer dinheiro como ‘caçador
a medicina por lá. Outros 22 imigrantes se retiraram logo no pri- de plantas’ no Brasil.
meiro ano e um deles, De Gand, ganhou até o processo movido Antes de coletar pelo interior, Picard passou várias semanas
por Van Lede. O grupo de Vanderheyden, com cerca de 14 pesso- nas terras de Telghuys e Vanderheyden e conheceu depois outras
as, julgou as terras de Van Lede de má qualidade e alugou outras. colônias. Logo na sua primeira volta à Bélgica, em 1850, publi-
Na própria Ilhota, cada colono recebeu um lote individual de 50 cou, no Boletim da Academia belga, uma memória crítica sobre
braças (110 metros) de largura, no qual devia uma renda em na- colônias. Entusiasmado pelas riquezas da província e bom obser-
tura e mais um dia por semana de trabalho gratuito para o diretor vador, analisava as falhas de Van Lede e insistia que futuros colo-
da colônia. Pagaria a compra em quatro ou oito anos. nos deveriam receber lotes já demarcados e casas preparadas para
Surpreendentemente, em fevereiro de 1845 Van Lede já havia não perder tempo nem ânimo diante da selva impenetrável. Acon-
deixado a direção da colônia a Fontaine, seu homem de confian- selhava a adoção das tradicionais culturas locais, como de cana,
ça. Era uma fuga de suas responsabilidades ou um sinal de que mandioca, feijão e milho. A exemplo dos agricultores brasileiros
julgava sua tarefa terminada? Pelo menos Fontaine informou, em já experimentados, não devia proceder-se a um desmatamento
carta de 07 de abril de 1845, publicada no diário oficial belga Le tão minucioso e custoso como na Europa. Na mesma linha, Pi-
Moniteur, que os colonos estavam com boa saúde, já livres dos card julgava indispensável empregar, como os brasileiros, mão de
borrachudos e da sarna, contentes e trabalhando duro. Já havia obra escrava, até que uma lei geral abolisse o tráfico. Regressando
16 casas com um caminho traçado ao longo do rio e até uma área a Santa Catarina em 1855, voltou a expedir plantas tropicais e
para um jogo de bochas e 25 hectares desmatados, que renderam peles de jaguatiricas à Bélgica mas, em 1862, passou a exercer a
a primeira safra. Plantaram feijão preto, batatas e, nas linhas divi- medicina natural em Alegrete, no Rio Grande do Sul. Após juntar
sórias, cafeeiros e laranjeiras, e tinham planos para cana, tabaco, dinheiro suficiente, foi estudar medicina em Heidelberg, onde se
linho, índigo, nopal para a cochinilha e até alpiste, e mais estra- formou em 1872. Homologou seu diploma na Bahia, mas prefe-
das para novos colonos. Também o cônsul belga em Desterro, riu praticar no Uruguai, primeiro em Montevideu e, finalmente,
Charles Sheridan, nomeado em maio de 1844 por causa de sua em Nueva Palmira.
longa experiência marítima, confirmou que a colonização estava Referente à Ilhota, a colônia já estava desde o final de 1845
bem encaminhada e oferecia perspectivas para mais emigrantes. vivendo seus primeiros dramas com inundações, safras destruídas
O próprio Sheridan, associado com o armador Telghuys, de e mortes. Fontaine pagava caboclos para o trabalho mais duro e
Antuérpia, desviou emigrantes para suas próprias terras compradas provocava a ira dos belgas, que se recusavam a prestar doravante
em Tijucas Grandes. Foi provavelmente ele quem incitou Pierre seu dia obrigatório de trabalho gratuito. As brigas levaram Fon-
Van Loo, filho de um respeitado negociante de Gandt, a investir taine a fazer queixa às autoridades brasileiras, que condenaram
sua herança de 10.000 francos num projeto com 16 colonos. Con- três belgas, Krabeels e os dois irmãos Maes, a dois anos de prisão.
tratados em cartório, eram em maioria agricultores da região de Em Desterro, suas mulheres com dez crianças vagavam pelas ru-
Wingene, mas também alguns valões, dois operários, um ferreiro as, pés descalços e pedindo esmolas. O consulado ajudou no seu
e um aluno de farmácia. sustento e colocou as crianças na escola pública. Os presos protes-
O médico Plettinck, em carta de março de 1845, também pro- tavam e teimavam em ser julgados pelas leis belgas. A reputação
pôs a seus conhecidos de Jabbeke a formação de uma companhia briguenta dos belgas piorou com um incidente em maio de 1846,
de 20.000 francos e a compra de terras para 12 colonos. Cada um quando Jan Van Eyck trouxe ao porto de Desterro mais colonos
entraria com pelo menos mil francos e deveria trazer utensílios e mercadorias.
agrícolas, tecidos baratos de algodão, sementes de centeio, armas Por andar tarde da noite pelas ruas, o capitão Minne e seus
e pólvora para caçar porcos e animais selvagens. Como Plettinck marinheiros foram interpelados por guardas da polícia e chega-
não deu mais sinal de vida, seu projeto provavelmente não vingou. ram às vias de fato. No dia seguinte o subdelegado de polícia e o
24
presenças belgas no brasil
juiz de direito foram a bordo intimar os belgas a explicar-se e toda ostentar e prestigiar a bandeira belga na costa da América do Sul,
a tripulação acabou presa. O cônsul Sheridan não ousou intervir fosse fazer escala em Desterro.
no meio de um populacho que gritava “matão já esta cambada Sheridan liquidou seus negócios, abandonou sua pequena co-
d’estrangeiros, enforcão já todos elles, arrancão a bandeira”. Iden- lônia e voltou a Gand. Em 08 de julho de 1846, seu cunhado,
tificado como belga, Jean Eilgner foi insultado na rua e a esposa Paul Dierxsens, secretário da Câmara de Comércio de Antuérpia,
teve a roupa rasgada. Outro belga foi expulso. interveio em sua defesa, acusando van der Straten e seu cônsul
O clima xenófobo piorou com a chegada, em agosto de 1846, Saportas de ineptos. Suas queixas fizeram o ministro belga das
do Adèle com Pierre Van Loo e seus colonos. Estes sofreram maus Relações Exteriores lembrar, em 29 de janeiro de 1847, ao encar-
tratos já na alfândega, que exigiu direitos excessivos sobre objetos regado no Rio seu dever de proteger os nacionais, sem que desse
de uso pessoal, como instrumentos agrícolas, quadros de família por isso qualquer apoio oficial a esta colonização.
ou uma caixa para preservar plantas do agente do horticultor Van Essas desavenças naturalmente repercutiram na imprensa e no
Houtte, de Gand. Até a casa do cônsul Sheridan foi vasculhada à parlamento belgas em discussões sobre os rumos da emigração de-
procura de contrabando. Para maior confusão, Fontaine abando- pois dos malogros em Santa Catarina e na Guatemala. O próprio
nou a colônia, vendendo o sino da igreja e a casa como material Van Lede, eleito conselheiro provincial de Flandres ocidental,
de construção, e deixou Lebon como substituto. Ao menos regis- polemizou no final de julho de 1850 em Le Moniteur com o seu
trou, em 17 de julho de 1847, numa planta conservada no Museu antagonista no Rio, De Jaegher, nomeado governador de Flan-
de Tervuren, os nomes dos cinco colonos ainda presentes com 19 dres oriental. Boatos de que venderia sua concessão deixaram os
dependentes, mulheres e filhos, de outros três ausentes e ainda de diplomatas brasileiros em Bruxelas de sobreaviso, ainda mais por-
mais três moradores sem lote. Os outros se dispersaram por outras que, por várias vezes, foi solicitada sua benevolência para deixar
colônias ou voltaram para a Bélgica deportar ao Brasil presos dos asilos de mendicidade e que novos
Sheridan informou o novo encarregado belga, Auguste van candidatos à emigração pediam subsídios brasileiros.
der Straten Ponthoz, e atribuiu estas hostilidades a um partido Em Ilhota, porém, onde por meados de 1847 restavam somen-
liderado pelo presidente da província e juiz de direito. Segundo te 63 pessoas, a colônia se estabilizou e voltou a crescer.
ele, estas elites nacionais estavam acostumadas a obter concessões O novo cônsul belga, o suíço Schuttel, nomeado em 1850,
de terras, que rentabilizavam pelo trabalho de colonos alemães autor dos Relatórios do Império de 1854 e 1859, o viajante alemão
ou que, eventualmente, lhes vendiam. Achavam-se agora preju- Avé-Lallemant em 1858 e o capitão Petit e seu adjunto Émile
dicadas pelas empresas belgas de colonização, que não permitiam Sinkel, do Duc de Brabant, que em meados de 1855 acabou en-
semelhante exploração de seus imigrantes. Alguns, contrários ao trando em Desterro, citaram números variando de 89 a 200 indi-
desmatamento por mão de obra livre, preferiam a escravidão. Nu- víduos e atestaram seu bem-estar e boa natalidade. Na margem
ma interpretação similar, Van Loo considerou os incidentes com alta do rio, em pequenas casas cinzentas, mas limpas, viviam bem
Jan van Eyck como vingança, mas não deixou intimidar-se, ainda nutridos e contentes e casavam-se entre si. Tinham muitos filhos,
mais porque a revolução no Rio Grande do Sul dava sinais de “de- que Avé-Lallemant viu “chafurdando alegres na lama entre bana-
sintegração deste imenso Império”. Em sua opinião – significativa neiras e canas de açúcar”. Locatários ou proprietários, plantavam
do incipiente estado de espírito colonialista entre alguns colonos milho, feijão, batatas, algodão e café, tinham gado, engenhos de
–, os belgas, orientados por “chefes inteligentes” e “tão numerosos cana e mandioca ou trabalhavam como profissionais. Econômicos,
e com um núcleo de gente capaz, poderiam adquirir influência po- alguns já dispunham de dinheiro para emprestar a outros ou para
lítica e dirigir o movimento para o proveito da Bélgica”. Se não, voltar à Bélgica. Na falta de estradas até a costa, faziam comércio
Santa Catarina cairia nas mãos dos ingleses, como também temia com uma escuna de Lebon pelo Rio Itajaí até a foz.
o cônsul francês. Ao contrário, bem mais crítico se mostrou o diplomata belga
O cônsul Sheridan, consciente de sua pouca influência e ain- Charles d’Ursel durante sua visita em dezembro de 1873. Chegan-
da sem exaquatur (permissão para exercer seu cargo no País), es- do pelo rio, se deparou com a pobre venda de J. Maes e convocou
perava que van der Straten fosse intervir junto ao governo central. todos. Das 22 famílias reunidas, a maior parte encontrava-se em
Este diplomata profissional adotou uma atitude ambígua, mas de situação de quase miséria. Continuavam casando em endogamia
acordo com a reserva do governo belga diante da experiência em e falando ainda o flamengo, mesmo na segunda geração. Sem
Santa Catarina. Criticou Sheridan por não ter intermediado en- contratos ou papéis, viviam inseguros e incomodados pelo cônsul
tre Fontaine e os colonos e o demitiu por sua condenação por Schuttel, que pretendia cobrar dívidas de Van Lede. Quando este
contrabando. Ao mesmo tempo, deixou claro que não interviria faleceu em 1889, seu legatário, o Sint-Jans Hospitaal de Bruges,
para proteger os belgas, afirmando que estes deveriam aprender a procurou recuperar as terras e enviou um agrimensor, mas os co-
conformar-se com as leis de seu novo país e que seus problemas lonos belgas resistiram e conservaram as terras.
eram decorrentes dos contratos. Tendo em vista a suscetibilidade Nas gerações seguintes quase todos abandonaram a agricul-
da opinião pública, o melhor era esquecer o episódio com Jan Van tura para profissões nas cidades. Hoje encontram-se os numero-
Eyck. Assim, o encarregado achou pouco oportuno que o navio sos descendentes, Castellain, Coninck, Gevaerd, Hostin, Maes...
de guerra da marinha belga Duc de Brabant, que devia, em 1847, espalhados por toda Santa Catarina e até nos Estados vizinhos.
25
parte 1 – travessias e migrações
Ilhota tornou-se município em 1958 e, confrontado com a forte MAROY, Charles. ‘Sainte-Cathérine du Brésil’. Bulletin d’Etudes et d’Informations de
afirmação cultural e folclórica das outras comunidades étnicas na l’école supérieure St. Ignace, 1932, 9, p. 333-361.
PICARD, Lambert. ‘Des colonies, et spécialement de celles fondées dans l’Amérique du
região, seguiu esta onda e começou ultimamente a comemorar Sud’. Bulletin Académie Royale des Sciences, des Lettres et des Beaux-Arts de Belgi-
suas raízes belgas. Organizou-se em 2010 uma festa Belga-Expo e que, 1850, 17, p. 168-185.
formou-se uma rede da família Brocveld. Relatórios do Império, 1854-1859.
Relatórios do Presidente da Província do Rio de Janeiro, 1843-1850.
SINKEL, Émile. Ma vie de marin. Bruxelas, 1874.
Referências STOLS, Eddy. ‘Utopies, mirages et fièvres latino-américains’. Anne Morelli (ed.), Les
Arquivo Histórico do Itamaraty (AHI), Bruxelas, Ofícios, 1843-1869 e 204/3/10-12; Archives émigrants belges. Bruxelas, 1998, p. 241-258.
du Ministère des Affaires Étrangères, Bruxelas (Amaeb), 2028, I e II e 2030, Pers. 508 STOLS, Eddy. ‘Présences et activités diplomatiques de l’Empire du Brésil dans le Royaume
e 515, I; Archives du Royaume, Bruxelas, Société Génerale, 1877, correspondência de Belgique (1830-1889)’. Le Brésil, l’Europe et les équilibres internationaux, XVIe-XXe
com a Cie. belge-brésilienne de colonisation; Recueil Consulaire, Bruxelas, 1856- siècles, Eds. Katia de Queirós Mattoso, Idelette Muzart-Fonseca dos Santos e Denis
1874; Le Moniteur, 31.08.1845, 23 e 30.07.1850. Rolland. Paris, 1999, p. 209-245.
AVÉ-LALLEMANT, Robert. ReisedurchSüd-Brasilien. Leipzig, 1859. STOLS, Eddy. ‘Présences belges et luxembourgeoises dans la modernisation et l’industria-
BOUTENS, Stefaan. ‘Eenmisluktekolonisatiepogingvanuit Jabbeke in de eerstehelft van lisation du Brésil (1830-1940)’. Brasil, Cultures and Economies of Four Continents,
de XIXe eeuw’. Het Brugs ommeland, 1968, 8, 148-156. Eds. Bart De Prins, Eddy Stols e Johan Verberckmoes.Lovaina, 2001, p. 121-165.
FICKER, Carlos. Charles van Lede e a colonização belga em Santa Catarina. Blume- VAN LEDE, Charles. De la colonisation au Brésil. 1843.
nau, 1972. VAN LEDE, Charles. De la colonisation au Brésil. Rapprt aux membres de la Compagnie
Journal de Bruges, 1842-1844. brésilienne de colonisation sur les difficultés qui ont été élevées à la mise en possession
MAES, Paulo Rogério. Colonização flamenga em Santa Catarina: Ilhota. Itajaí, 2005. de sa concession. Bruxelas, 1846.
26
presenças belgas no brasil
Em janeiro de 1843, na Bélgica, Parigot tentou convencer a ido a Nova York para dirigir um asilo. Entrementes, nos anos de
Société Belge de Colonisation a associar-se, com o devido respei- 1850 a 1880, seu pensamento e suas propostas apareciam com
to aos interesses brasileiros, à Compagnie Impériale des Mines de destaque na corte imperial brasileira nos debates e discursos mé-
Sainte Catherine (Companhia Imperial de Minas de Santa Ca- dicos sobre neuroses e loucura (Gonçalves).
tarina) e a todas as indústrias conexas, um projeto em discussão Não se sabe se Parigot voltou ao Brasil por algum convite,
no Parlamento brasileiro. Se o diretor da sociedade belga mani- por iniciativa própria ou por um casamento. No final da década
festou um interesse polido, deu prioridade ao projeto de coloni- de 1860 já estava neste país e publicou O futuro dos hospícios de
zação na Guatemala. alienados do Brasil: memória offerecida a imperial Academia de
Ao mesmo tempo, Van Lede estava buscando acionistas pa- Medecina do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, 1870, 12 p.). Para
ra sua companhia e gozava então da maior simpatia do cônsul- este espírito polivalente e algo volátil a problemática das colônias
-geral, José Rademaker, da legação do Brasil na Bélgica. Rade- de alienados se aproximava daquela das colônias de imigrantes no
maker tinha recebido ordens para auxiliar Parigot e pagar-lhe a Brasil. Estas se encontravam, na época, em plena efervescência e
pensão. Como Parigot preferiu comprar na Bélgica – em vez de as desavenças dos colonos encontravam acirrada repercussão na
na França ou na Inglaterra – máquinas de mineração do duque Europa. Entrando nas discussões sobre as alternativas, Parigot pro-
d’Arenberg pelo preço de 3.500 francos, Rademaker ficou descon- nunciou um discurso, lançado em folheto, Convirá ao Brasil a im-
fiado e levou o engenheiro Tarte para examiná-las. Este as julgou portação de colonos chins?, em 16 de agosto de 1870, na Sociedade
ultrapassadas, mas Parigot acusou Rademaker de cumplicidade Auxiliadora da Indústria Nacional, da qual se tornou membro.
com Van Lede. No Rio de Janeiro também circulavam críticas Figurava pelo menos desde 15 de fevereiro de 1868 como di-
e boatos contrários. Assim, no final de 1843, Parigot foi exonera- retor na colônia do Assunguy, composta por brasileiros, alemães,
do e os pagamentos, suspensos. Pelo menos algum material foi ingleses, franceses, suíços e outras nacionalidades, servindo tam-
enviado, já que em carta ao Presidente da Província da Bahia bém como médico e ocasionalmente como intérprete em quatro
Parigot solicitou a liberação de materiais destinados à mineração línguas. Teria aceito a função, segundo seu próprio comentário
de Santa Catarina, procedentes da Europa, porém levados à al- ouvido por um colono, principalmente para poder escrever sosse-
fândega da Bahia em 1844. gadamente uma obra sobre loucos (Lamb e Garcia). Se queixas
De volta à Bélgica, Parigot dedicou-se mais à medicina e par- dos imigrantes, inclusive contra os diretores, eram frequentes, na-
ticularmente ao tratamento dos doentes mentais no Hospice de da consta nas fontes disponíveis contra Parigot.
Bruxelas. Em 1849 foi nomeado inspetor-médico da colônia de Segundo o diplomata belga Edouard Anspach, era bem consi-
alienados de Geel, uma pequena cidade na província de Antuér- derado (Recueil consulaire, 16, 1870, p. 24-28). Mostrava-se muito
pia, onde desde a Idade Média se acolhia loucos nas casas de comprometido a atender às necessidades dos colonos e ver cum-
família com bons resultados. Entretanto, esta tradição salutar se pridas as promessas feitas pelo governo. Reclamava da falta de
deteriorou sob o mando tirânico de diretores eclesiásticos. Assim, verbas para receber os colonos em casas prontas na sua chegada e
o governo belga resolveu intervir e reorganizar a colônia com um prover-lhes ferramentas, panelas e alimentos, para preparar o ca-
serviço de quatro médicos e um inspetor. minho que conduzia às melhores terras, para contratar trabalha-
Neste cargo, Parigot restabeleceu e reformou os métodos tra- dores. Defendia a ideia de que, com as famílias pobres dez dias de
dicionais. Os alienados tinham seu próprio quarto, bem melhor sustento – conforme ditava o regulamento – não eram suficientes e
que a cela dos asilos, não eram acorrentados, mas saiam quan- que o provimento deveria estender-se por seis meses. Desaprovava
do queriam e até trabalhavam no campo. Faziam música, com a remessa de imigrantes solteiros por observar que estes não conse-
direito a uma “cervejinha”. Recebiam-se mesmo estrangeiros e guiam viver sozinhos no mato. Além disso, denunciava as mazelas
muitos se curavam ou, pelo menos, não pioravam. de diretorias anteriores e o não cumprimento das obrigações por
Desta experiência resultaram várias publicações como Théra- outros elementos que faziam parte do pessoal da colônia. Assim,
peutique naturelle de la folie: l’air libre et la vie de famille dans la mandou demitir o engenheiro da colônia, Chalreo Jr, o que pro-
commune de Gheel (Terapêutica natural da loucura: o ar livre e a vocou longas discussões e argumentações entre ele, o engenheiro
vida em família na cidade de Geel), Bruxelas, 1852, De l’hygiène e as autoridades provinciais.
des sentiments (Da higiene dos sentimentos), 1856, e De la réfor- Tantas críticas e sugestões podem ter causado sua transferência
me des asiles d’aliénés (Da reforma dos asilos de alienados), 1860. para a colônia de Cananeia, por portaria de 6 de abril de 1869.
A visita do jornalista francês Jules Duval em 1856, um entu- Sobre sua atuação em Cananeia há poucos dados. O relatório da
siasta e praticante das ideias fourieristas num tipo de falanstério Agricultura de 1870 citou um plano seu para abrir um tram-road do
na Algéria, resultou num livro badalado, Gheel ou une colonie porto até Castro, atravessando a Serra Negra e a colônia de Assun-
d’aliénés vivant en famille et en liberté (Geel ou uma colônia de guy. Pouco depois, em 31 de março de 1871, suplicou ao Impera-
alienados vivendo em família e em liberdade), Paris, 1860. Já dor para ajuizar sua proposta de ‘ir à Europa despertar a emigração
em 1856 Parigot se deixou voluntariamente substituir em Geel, espontânea de pequenos proprietários’ (AN, M160D7403). Faria
talvez porque a boa repercussão internacional de seus métodos conferências em vários países, mediante pagamento da passagem
lhe abriu novos horizontes. Por volta de 1861-1864 parece ter de ida e volta e de adiantamento de seis meses de seu ordenado.
27
parte 1 – travessias e migrações
Na mesma carta pediu sua exoneração do cargo de diretor. Não Bibliografia sobre Parigot
se sabe se foi realmente à Europa, mas pelo menos retornou à Co- Arquivo Ministério das Relações Exteriores (Amaeb), Bruxelas, 2015 e 2028, I; Cor. Pol.
lônia de Assunguy, onde, em 1875, segundo o relatório sanitário, Brésil, II, De Jaegher, 16.09; 1842.
AHI 300 04 01 – Parte I – Avisos (minutas) expedidos pelo Ministério dos Negócios Estran-
atuava como médico da colônia. Pouco depois pediu ao presidente geiros ao Ministério dos Negócios do Império – S. Seç. Engenharia e Mineralogia.
da província licença de 2 meses, com vencimentos, para tratar da Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (AN), Documentação Histórica, Cod. 807, livro 5, p.
saúde em Curitiba. Lá estava sua família, que ele só havia visto 155-159, e livro 6, p. 57-61; M160 D 7403.
GILLIES, Ana Maria Rufino. ‘Os ingleses do Assunguy (1859-1882) sob a perspectiva do
uma vez desde que assumira o posto na colônia. Além disso, ele processo civilizador: um estudo comparativo com outra comunidade britânica do sé-
referiu-se a conflitos com o então diretor da colônia, Pedro de Al- culo XIX’. X Simpósio Internacional Processo Civilizador. Campinas, SP, 1-4 abr. 2007.
cântara Buarque, em assuntos de natureza médica. GARCIA, Edrielton dos Santos. Colonização em Assunguy: A experiência do colono nacio-
nal entre 1860 e 1870. Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado
Faleceu em 1877 ou 1878 na colônia Brusque ou Itajaí (Oswal- em Pesquisa Histórica. Curitiba: UFPR, 2010.
do Cabral, História de Santa Catarina, Rio de Janeiro, 1970, p. GONÇALVES, Monique de Siqueira. Mente sã, corpo são: disputas, debates e discursos
médicos na busca pela cura das “nevroses” e da loucura na corte imperial (1850-1880).
243). Vários de seus descendentes desempenharam importantes Tese de Doutorado. Curso de História das Ciências e da Saúde. Rio de Janeiro: Casa
funções no Estado do Paraná. A partir deles se poderia talvez pre- de Oswaldo Cruz-Fiocruz, 2011.
encher as lacunas de sua biografia. HEIDEMANN, Eugenia Exterkoetter. O Carvão em Santa Catarina, 1918-1954. Dis-
sertação de Mestrado. Curso de Pós-Graduação em História (Econômica) do Brasil.
Curitiba: UFPR, 1981.
Ana Maria Rufino Gillies é doutora em História pela Universidade LAMB, Roberto Edgar. Imigrantes britânicos em terras do império brasileiro: mobilidade,
Federal do Paraná (UFPR) e Professora Adjunta do Departamento de vivência e identidades em colônias agrícolas (1860-1890). Tese de Doutorado. São
Paulo: PUC, 2003.
História da Universidade Estadual do Centro-Oeste, Campus de Irati. MASOIN, E. ‘Julien Parigot’. Biographie nationale, 16, col. 635-637.
Uma modernidade claudicante 25 de abril de 1930. No Brasil, o jornal Estado de Minas no-
ticiou a participação da artista na VII Exposição-Geral de Belas
28
presenças belgas no brasil
29
parte 1 – travessias e migrações
“Apesar da insuficiência de sua altura, se revela dotada de uma com a observação e o desenho, para só depois introduzir a escrita.
grandeza de expressão e força artística pouco comuns”. Os trabalhos manuais assumiam, assim, grande protagonismo na
A consagração de Milde chegou em 1928, quando ganhou o Escola Ativa, associando-se à expressão e tornando frequente o uso
Grande Prêmio de Roma. O prêmio objetivava o aprimoramen- de técnicas como a modelagem. Em Minas Gerais, o método foi
to dos artistas, concedendo uma viagem à Itália para o estudo da instituído em alguns grupos escolares, sendo criadas duas ‘classes
tradição clássica. Mas os impasses políticos surgidos ao fim da Decroly’, em Belo Horizonte.
Primeira Guerra Mundial impediram a ida de Milde para Roma. Com a reforma do ensino, em 1929, foi instalada a Escola de
Sua opção foi por uma estadia na França. Aperfeiçoamento em Belo Horizonte. A instituição, que oferecia
A escultora já hesitava entre a tradição e a modernidade. No um curso de especialização para professores primários, destinava-
mesmo ano de 1928, participou do II Salão da Federação Nacional -se a preparar, do ponto de vista técnico e científico, os candidatos
de Pintores e Escultores da Bélgica, à qual se associara. A imprensa ao Magistério Normal, à assistência técnica do ensino e às direto-
atacou a Federação, por ser contra a pintura moderna e o Estado rias dos grupos escolares do Estado. O curso tinha duração de dois
belga, que favorecia a avant-garde. Em meio ao que caracterizaram anos, divididos em dois períodos, que incluíam disciplinas como
como a medíocre e conservadora produção da mostra, os jornais Pedagogia, Metodologia, Desenho e Modelagem, Educação Fí-
destacaram Milde como uma exceção digna de nota. sica e Psicologia Experimental.
Naquele tempo, além de participar de exposições e concur- O corpo docente da Escola de Aperfeiçoamento foi composto
sos, Milde desenhava joias e modelava manequins para uma fá- por professoras que haviam sido enviadas, pelo governo, para o
brica. No atelier que mantinha na Academia, recebia a visita Teacher’s College, da Universidade de Colúmbia (EUA). Além de-
constante de admiradores e compradores, que se avolumaram las, atuaram estrangeiros que compuseram a chamada “Comissão
após a aquisição da peça ‘Danse Folle’ pelo Museu Real de Belas Pedagógica Europeia”. Da Universidade de Paris veio Theodore
Artes, em Bruxelas. Foi ali que recebeu a visita do Dr. Alberto Simon. Do Instituto Jean Jacques Rousseau (Suíça) vieram Leon
Álvares, enviado do governador de Minas Gerais, Antônio Car- Walter, Helena Antipoff, Edouard Claparède e Louise Artus-Per-
los Ribeiro de Andrade. A missão de Álvares era localizar profis- relet. Na Bélgica foram contratados Jeanne Milde e o engenheiro
sionais belgas aptos a auxiliar na reforma do ensino em Minas. Omer Buyse.
Milde foi-lhe indicada pelo secretário-diretor da Academia, que Diretor do Ensino Técnico da Bélgica, Buyse foi criador e
elogiara a ousadia e a qualidade da artista, fazendo-o crer que o reitor da Universidade do Trabalho de Charleroi. À convite de
convite não seria recusado. Washington Pires, Ministro da Educação e Saúde Pública do Bra-
Fevereiro de 1929. A bordo do vapor Alcântara, Jeanne Milde sil, veio para o País com a missão de criar três Universidades do
partiu para o Brasil. Trabalho, em Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife. O projeto
logo encontrou a oposição de Gustavo Capanema, sucessor de
Os belgas e a reforma do ensino em Minas Gerais Washington Pires no Ministério. Capanema considerava prioritá-
ria a fundação de escolas profissionalizantes especializadas para
Quando Milde chegou ao Brasil, vários Estados implantavam atender às necessidades da industrialização nas diversas regiões do
políticas de reforma do ensino, investindo na formação de profes- País. Quando muito, cogitaria ter uma Universidade do Trabalho
sores primários, na criação de escolas e no combate ao analfabe- no Rio de Janeiro, onde as indústrias já exigiam um operariado
tismo. Em Minas Gerais, a reforma foi coordenada por Francisco numeroso, variado e competente.
Campos, Secretário dos Negócios do Interior no governo de An- Jeanne Milde, por sua vez, assumiu as disciplinas de Desenho
tônio Carlos Ribeiro de Andrade. Sua Reforma do Ensino Primá- e Modelagem na Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico da capi-
rio e Normal inspirou-se na reestruturação da instrução pública tal mineira. Relatos de suas ex-alunas revelam como ela conjugava
ocorrida em países estrangeiros, como a Bélgica, e incorporava a formação estética com a pedagógica. Suas disciplinas incluíam
preceitos do movimento ‘Escola Nova’ ou ‘Escola Ativa’. desenho, modelagem e aquarela, além de marcenaria, tecelagem,
À época, uma das principais correntes pedagógicas em voga cartonagem e a fabricação de objetos utilitários e mobiliário. O
no Brasil era o método desenvolvido pelo médico belga Ovide processo de ensino elaborado pela artista guardava semelhanças
Decroly. Baseado em estudos sobre o desenvolvimento biológico com a formação que recebeu em Bruxelas. Segundo a ex-aluna
e psicológico das crianças, o método enfatizava suas aptidões para Maris’Stella Tristão, nas aulas, o mais importante eram os de-
a observação, a associação de ideias e a expressão. Para o ensino senhos, que obrigatoriamente precediam os trabalhos artesanais.
primário, propunha o emprego dos ‘centros de interesse’, que as- Anualmente, Milde organizava exposições com o material produ-
sociavam os conhecimentos ministrados a uma ideia central, tor- zido por suas alunas. Nelas, eram apresentadas modelagens em
nando o ensino “ordenado e lógico”. gesso, cimento, terracota, bronze e matérias-primas regionais que
Em Bruxelas, Decroly atuava na École de l’Ermitage, que fun- poderiam ser encontradas em qualquer escola primária do Estado.
dara em 1907. A escola foi um fértil laboratório de experimenta- Com o fim da Escola de Aperfeiçoamento, na década de 1940,
ção, tornando-se centro de referência para o ensino. Praticado em Milde passou a lecionar no curso de Administração Escolar do Ins-
outras escolas da cidade, o ensino no método Decroly se iniciava tituto de Educação, instituição em que se aposentaria em 1955.
30
presenças belgas no brasil
Nos anos de 1940, a artista também ministrou aulas de desenho e Em Belo Horizonte, dizia-se que a arte era desamparada pelo
modelagem na Escola da Polícia Rafael Magalhães e integrou um Estado. Por isso, o poeta modernista Carlos Drummond de An-
projeto de Helena Antipoff para a formação e o aperfeiçoamento drade, entre outros, reconhecia o empenho heroico de Matos para
de professores primários rurais. desenvolver o meio artístico local. Ainda assim, a cada edição das
Exposições-Gerais, acumulavam-se as críticas ao evento e a seu
Um ambiente propício à expansão da arte organizador. Alguns recriminavam o amadorismo e mau gosto
das obras apresentadas. Outros apontavam o convencionalismo da
Quando Milde chegou a Belo Horizonte, a capital não passa- produção local, relacionando a estagnação da arte à hegemonia
va de uma jovem cidade. Aos olhos da escultora, tudo estava por dos valores acadêmicos.
fazer: não havia escolas de arte, as exposições eram escassas e os A posição de Matos, no entanto, era ambígua. Ele defendia o
artistas locais não formavam uma comunidade unida e ativa. academismo e rejeitava com veemência as vanguardas, os “futu-
Ao invés de desanimá-la, esse cenário mostrou-se fértil para rismos” e “cubismos”, como se dizia à época. Mas, acolhia artistas
sua produção. Em 1929, a crise econômica desencadeada pelo que optavam por um modernismo moderado. Para a VIII Exposi-
fim da Primeira Guerra Mundial chegava ao ápice. Na Bélgica, ção-Geral de Belas Artes (1931), convidou vários acadêmicos de
apesar do sucesso de suas exposições, a falta de oportunidades le- verve neoclássica ou impressionista. E chamou ainda Milde, o
vou a artista a pensar em se mudar para Antuérpia, onde atuaria desenhista Monsã e o arquiteto Luiz Signorelli que, clássicos de
como professora de arte da Academia local. Talvez o tivesse feito, formação, apostavam na estética art déco.
não fosse a proposta de trabalhar no Brasil. Signorelli, por exemplo, iniciou-se na arquitetura projetando
Recém-chegada a Minas Gerais, a escultora não dispunha de edifícios ecléticos e art nouveau. Na década de 1930, adotou o es-
um local de produção. Percebendo a situação, Arcângelo Malet- tilo déco e criou o segundo arranha-céu de Belo Horizonte: a Fei-
ta, proprietário do Grande Hotel, onde Milde vivia, ofereceu-lhe ra Permanente de Amostra, edifício símbolo da modernização da
uma sala nos fundos do estabelecimento. Ali foi instalada a oficina cidade. No mesmo ano, 1935, ganhou o concurso de projetos para
em que a escultora recebia quem vinha ver a “loirinha belga” tra- a construção de uma nova sede para a Prefeitura da capital. Esse
balhando. Como não dominava o idioma, pedia aos amigos para projeto expressou a atitude preponderante no período, fundindo
falarem sobre as obras. “No decorrer do parecer de cada um, surgia elementos e preocupações modernos com uma lógica compositiva
uma ou outra palavra que tinha uma sonoridade que me agradava, tradicional. Junto com Matos e outros professores, em 1930 Signo-
aí então o nome da peça estava escolhido”, lembrou a artista em relli fundou a Escola de Arquitetura de Minas Gerais. Ali, por um
entrevista a Iolanda Pignataro, em 1980. bom tempo, o arquiteto sustentou um sintomático conflito com
Nessa sala, Milde concebeu suas primeiras obras brasileiras. os estudantes de arquitetura que se inclinavam para a vanguarda.
Em 1929, moldou o busto do Embaixador da Bélgica em Washing Em entrevista concedida ao Projeto Memória da Arquitetura e da
ton e a efígie de várias personalidades de Belo Horizonte. Sob en-
comenda do Estado de Minas Gerais, criou dois baixos-relevos em
cobre para decorar o saguão da Escola Normal Modelo da Capital,
inaugurada em 1930. As peças art déco simbolizavam os valores “As Adolescentes”,
da Escola, intitulando-se Alegoria às Ciências e Alegoria às Artes. moldagem em gesso de
Jeanne Louise Milde, Belo
Em 1930, Milde enviou várias peças para o Salão de Belas
Horizonte, 1937.
Artes do Rio de Janeiro, obtendo a medalha de ouro. Em Be-
lo Horizonte, participou da VII Exposição-Geral de Belas Artes.
Organizadas por Aníbal Matos, eminente artista que fundara a
Sociedade Mineira de Belas Artes (1918), as Exposições-Gerais
constituíam o único evento do gênero a ocorrer com regularidade
na capital. Reunindo artistas de inclinações semelhantes à de seu
promotor, as exposições viraram o reduto da tradição acadêmica.
Naquela edição, a mostra reuniu 192 trabalhos de 26 artistas. Mil-
de se destacou por trazer algo novo: uma obra que não se atinha
à tradição clássica, mas nem por isso se rendia aos extremos da
vanguarda modernista.
Aníbal Matos foi um dos responsáveis pela inserção de Milde
no ambiente artístico de Belo Horizonte. Os dois eram colegas
de docência no Instituto de Educação, atuando na formação de
professores. Com frequência, Matos convidava a colega para par-
ticipar dos eventos e das exposições que organizava. Convidava-a,
inclusive, para integrar o júri do carnaval.
31
parte 1 – travessias e migrações
Construção Civil em Belo Horizonte (1980), recordou: “Confesso cara mortuária do governador Olegário Maciel (1932); a Alegoria
com sinceridade a reserva com que a princípio recebi os primeiros à Indústria, alto-relevo criado para a Siderúrgica Belgo-Mineira
rebates da nova arquitetura, para com um tempo relativamente cur- (1933); e a escultura As Adolescentes (1937). Em 1940, o Museu
to aceitá-la sem restrições. Diante de tão palpitante assunto devo Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, adquiriu sua obra
dizer que manterei sempre como ponto de vista aplicar no moderno Água, sua alegria e sua embriaguez.
a proporção clássica [...]”. Em 1945, Milde realizou uma exposição individual no Salão
As mudanças na estética de Milde parecem responder a preo- de Festas do Grande Hotel. Entre os trabalhos expostos, estavam
cupações semelhantes às de Signorelli. “Moderna, mas com uma bustos e cabeças das personalidades com quem convivia na cidade,
base clássica” é como ela se classificaria ao fim da vida. Em algu- como o maestro belga Arthur Bosmans. Essa teria sido a primei-
ma extensão, a adoção desse modelo de modernização, ambíguo ra exposição individual da artista, que até então só participara de
e relutante, elucida o livre trânsito entre acadêmicos e modernos mostras coletivas. A arte tumulária surgiria como uma vertente de
que a escultora sempre manteve. sua produção, nascida do hábito de representar seus convivas. Im-
Em 1936, Belo Horizonte presenciaria seu maior embate en- portante exemplo é o relevo criado para o túmulo do desenhista
tre modernos e acadêmicos. Sob a organização do artista Delpino Monsã, falecido em 1940.
Júnior, caricaturistas, pintores, escultores e arquitetos, modernos Apesar de não ceder às vanguardas, Milde assumiu temáticas
em sua maioria, se reuniram numa exposição organizada no bar caras ao modernismo brasileiro, criando figuras populares, traba-
do Cine Brasil. Tornando-se conhecido como Salão Bar Brasil, o lhadores, indígenas, negros e mulatos. Uma série de esculturas
evento expressava o descontentamento do grupo com a ambiência com motivos brasileiros fizeram sucesso na última exposição da
artística e social da capital, que então celebrava a realização do 2º artista em sua terra – uma mostra coletiva na galeria Toison d’Or,
Congresso Eucarístico Nacional e a inauguração da nova edição em Bruxelas (1948). O evento foi divulgado pelos jornais, que
da Exposição-Geral de Belas Artes, montada por Matos no foyer brindaram a qualidade das obras, embora frisassem seu exotismo.
do Teatro Municipal. Na ocasião, o Ministério da Instrução Pública da Bélgica adquiriu
Acompanhada pela imprensa, a polêmica criada no Salão Bar a escultura Ma maman.
Brasil tinha dois alvos: contestar a hegemonia de Matos e reivindi- Milde obteve grande reconhecimento por sua atuação como
car o apoio do Município, com a criação de uma Escola de Belas artista e educadora. Em várias ocasiões foi homenageada por suas
Artes, a organização de exposições periódicas e a instituição de prê- alunas e pelos governos belga e brasileiro. Em 1930, o Rei Alber-
mios de incentivo. Por sua ascendência sobre o meio artístico local, to da Bélgica nomeou a “artista estatuária” Jeanne Milde como
Delpino convidou Milde a integrar a mostra. Aceitando, a artista cavaleira da Ordem de Leopoldo II, uma distinção de alto grau,
apresentou 22 obras e compôs o júri, ao lado de Luiz Signorelli. conferida aos civis que prestaram serviços inestimáveis à Bélgica.
Ao visitar o Salão Bar Brasil, o prefeito Otacílio Negrão de Já em 1950, um ano antes de se naturalizar brasileira, ela recebeu
Lima sancionou uma resolução determinando que o Município do Príncipe-Regente Baudouin a comenda de Cavaleiro da Or-
realizasse exposições de arte anuais. Assim, em 1937, Matos foi dem da Coroa por seu trabalho como “professora de desenho e artes
convidado para coordenar o 1º Salão de Belas Artes da Prefeitura aplicadas no Instituto de Educação de Belo Horizonte”.
de Belo Horizonte. Ele, por sua vez, convidou Milde para a comis- No ano de 1955, Milde se aposentou do magistério no Insti-
são encarregada de assessorá-lo. A escultora serviu, então, como tuto de Educação. Afastada do ensino, ela foi gradualmente se
um elo entre acadêmicos e modernos, apaziguando os confrontos ausentando do cenário artístico mineiro, que desenvolveu uma
entre os grupos. preferência pelas vanguardas. A importância de Milde foi resga-
O 1º Salão de Belas Artes, por fim, reuniu tanto artistas liga- tada 30 anos depois, quando ela recebeu uma série de homena-
dos a Matos quanto ao grupo de Delpino. Refletindo a diversidade gens. Em 1982, recebeu a Comenda da Ordem dos Pioneiros de
do panorama artístico da capital, os Salões de Arte da Prefeitura Belo Horizonte, em reconhecimento a seu pioneirismo na arte e
consolidaram-se, nos anos 1930, como um espaço de tendências na educação. Também foi lembrada no XIV Salão Nacional de
contraditórias, que reunia modernos, acadêmicos, autodidatas e Arte (Museu da Pampulha) e em uma exposição no Palácio das
artistas de formação. Artes. Em 1984, o governador de Minas Gerais, Tancredo Neves,
No 2º Salão de Belas Artes (1938), Milde participou como condecorou-a com a mais alta comenda do Estado: a Medalha
jurada. Nesse momento, fez valer seu papel aglutinador, reunin- da Inconfidência. No mesmo ano, o sucessor de Tancredo, Hélio
do 14 artistas de uma e outra vertente em um encontro na Fa- Garcia, agraciou-a com a Medalha de Mérito Educacional. Ce-
zenda Petrópolis, propriedade que mantinha próximo à capital. lebrada por seu impacto na formação cultural da cidade, Milde
Embora o acontecimento não tenha produzido desdobramentos, faleceu em 1997.
o sentimento era que nascia um “movimento que congraçará os Outubro de 1988. Em Belo Horizonte, a exposição “Escultu-
artistas de Belo Horizonte”, como testemunhou um cronista da ra Contemporânea em Minas”, organizada no Palácio das Artes,
Folha de Minas. consagrou Jeanne Milde como propulsora da renovação das artes
Os anos de 1930 e 40 foram férteis para Milde. Muitas de suas plásticas em Minas, identificando-a como uma pioneira do mo-
obras mais relevantes foram criadas nesses tempos, como a más- dernismo na cidade.
32
presenças belgas no brasil
René Lommez Gomes é doutor em História pela Universidade Fede- (UFMG). Coordena o núcleo de expografia do Espaço TIM UFMG
ral de Minas Gerais. Atuou em diversas instituições nacionais e estran- do Conhecimento.
geiras, entre as quais a Unesco e o Museum Plantin-Moretus (BE).
Trabalha com temas como Arte Colonial; História da Arte Flamenga Bibliografia sobre Jeanne Milde
e Holandesa (séc. XVII); História da Arte Brasileira (sécs. XIX-XX); Grande parte das matérias jornalísticas utilizadas neste verbete foi localizada na coleção
Mestiçagens e Trânsito de Culturas entre Europa, África e América documentos de Jeanne Louise Milde, doada pela escultora para o Museu Mineiro, Belo
no período moderno. Horizonte.
L. B. Castriota (org.). Arquitetura da Modernidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
Rita Lages Rodrigues. Entre Bruxelas e Belo Horizonte: itinerários da escultura. Belo
Verona Campos Segantini é doutoranda em Educação pela Uni- Horizonte: C/Arte, 2003.
versidade Federal de Minas Gerais (2010). É professora assistente S. Schwartzman, H. B. Bomeny e V. R. Costa. Tempos Capanema. São Paulo: Paz e
Terra, 2000.
da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais e Rodrigo Vivas. Por uma história da arte em Belo Horizonte. Artistas, exposições e salões
subcoordenadora da Rede de Museus e Espaços de Ciência e Cultura de arte. Belo Horizonte: C/Arte, 2012.
33
parte 1 – travessias e migrações
suscita muita admiração. Marcel Roos filma e fotografa à vontade Volta várias vezes ao Brasil, onde roda diversos documentá-
e fará êxito com suas imagens nas salas paroquiais de Flandres. rios, como O parque nacional do Iguaçu (1953) e A morte insi-
Uma vez de volta ao mundo habitado, Marcel Roos se põe a diosa (1957), sobre uma ilha das serpentes ou Ilha da Queimada
escrever, mas desiste de seu sonho de iniciar uma vida nova na Grande, na costa de São Paulo (Cinematek, Arquivo Real do Fil-
América do Sul. Demasiados problemas práticos na sua opinião. me, Bruxelas). Nos anos de 1970 organiza viagens e expedições
Volta à Bélgica, onde publica em 1953 O segredo do Mato Gros- para jovens cientistas. Seu amor pelo Brasil é uma constante.
so. O mistério Fawcett desvendado é o subtítulo e, se não coincide Numa entrevista ao jornal Het Belang van Limburg, em 27 de
completamente com o conteúdo, o livro encontra muitos leitores. julho de 1991, ele declarou ter passado no total 12 anos no Bra-
Em 1965 segue ainda um Avonturen Omnibus, uma coletâ- sil. Marcel Roos faleceu em 1996 em Hasselt, mas foi sepultado
nea de relatos de viagens sobre o Brasil, Paraguai e Bolívia, escri- em Gand, sua cidade natal, no cemitério do Campo Santo em
tos em colaboração com sua mulher Jeannine Roos. Nesse meio Sint-Amandsberg.
tempo, Roos vai morar em Hasselt, onde trabalha no serviço de
publicidade da empresa química Bayer. Com intervalos, Roos Chris Delarivière é jornalista independente em Gand, autor de re-
continua viajando. Financia suas ‘expedições’ pela América do portagens sobre cultura e música popular brasileira; traduziu para o
Sul com os rendimentos de suas conferências, sessões cinemato- flamengo História da Província de Santa Cruz, de Pêro de Magalhães
gráficas e reportagens escritas para os jornais e revistas flamengos. Gandavo, descendente de um flamengo de Gand.
34
presenças belgas no brasil
máquina importada da França o Laticínio Belco foi o primeiro no Como estas atividades não conseguiram consolidar a colônia, a
Brasil a vender leite embalado em saco plástico. Também o quei- antiga SCABB foi desfeita em 1987, quando quase todos os belgas
jo e a manteiga da mesma marca alcançaram renome no Estado. e seus descendentes já tinham abandonado a colônia. Voltaram
O laticínio acabou absorvido pelo Leite Paulista. No início dos para a Bélgica ou se integraram de outra maneira ao Brasil.
anos de 1980, foi ainda criada na colônia a Cervejaria Belco. Sua
marca desfrutou de prestígio na região por sua qualidade, mas foi Referências
adquirida mais tarde pela Destilaria Schincariol e sua fábrica des- Delmanto, Armando Moraes. Memórias de Botucatu, Botucatu: Ed. Vanguarda, 1990;
locada para São Manoel. Peabiru Revista Botucatuense de Cultura, nº 02, Ano I, março-abril, 1997.
35
parte 1 – travessias e migrações
A única coisa que minha mãe não amava eram os trabalhos ma cinzento, chuvoso e frio, assim como da paisagem plana e
domésticos. Nossa casa era uma das menos bem cuidadas do bair- monótona tão bem cantada por Jacques Brel. Mesmo assim, na
ro, onde a arrumação parecia ser uma verdadeira fixação. Segui- convivência familiar, havia assimilado outras práticas, outros va-
damente, eu, minha irmã e meu irmão tínhamos que arrumá-la lores e traços culturais.
e limpá-la porque minha mãe estava terminando um vestido ou Por isso, uma vez, no Brasil, senti também falta da Itália e mais
trabalhando na horta. especificamente da Ligúria, onde passara cada verão de minha in-
Naquela pequena casa, que meu pai em seguida aumentou, fância e juventude. Era ali que se encontravam todas as minhas re-
com a ajuda de todos nós – como era comum fazer na época, ferências familiares – naquela altura até meus pais haviam voltado
naquela classe social e em bairros como o nosso, semiurbano e para a Itália, após 34 anos na Bélgica. Tinha saudade das paisagens
semirrural –, vivíamos em cinco pessoas: eu, meus pais, minha do interior daquela região da Itália, mas também do seu litoral ro-
irmã e meu irmão, nascidos na Itália. No ano em que completei choso, das tortas de verdura, do cheiro de manjericão e alecrim,
oito anos de idade e estava entrando na terceira série, minha irmã dos vilarejos medievais agarrados ao topo dos morros suaves.
iniciava o primeiro ano de faculdade e meu irmão começava a Ao chegar ao Brasil, em finais de 1977, senti falta da seguran-
trabalhar na fábrica com meu pai. Contradições de uma socieda- ça que me dava a possibilidade de participar de um movimento
de em transformação! Dez anos mais tarde, eu também entrei na social, político e cultural em efervescência, naqueles anos 70, na
universidade, sem muita convicção e sem muito rumo. Formei- Itália sobretudo. Ainda mais porque o Brasil daquela época ainda
me mais seriamente muitos anos mais tarde, já casada e mãe, em era governado pelos militares. Uma vez no Brasil, o conhecimen-
outra universidade e em outro curso, também na Bélgica, onde to, puramente teórico e potencial, que eu tinha de um Estado di-
também me doutorei. tatorial e da difícil situação política na América Latina daqueles
Enquanto isso eu havia me apaixonado por um brasileiro, re- anos converteu-se em experiência concreta, imediata, cotidiana:
fugiado político em Bruxelas, onde conheci também chilenos e pelos inúmeros obstáculos encontrados por meu companheiro em
chilenas, exilados após o golpe de Pinochet. Logo, com ele e nosso sua penosa busca por inserção profissional e por uma reinserção
bebê, tomei o caminho da emigração, um pouco como meus pais social, com todas as dificuldades econômicas que isto nos causou
fizeram logo após a Segunda Guerra Mundial. Não pelas mesmas e ao nosso filho. Também pelos repetidos indeferimentos, por se-
razões, nem com os mesmos objetivos. Muito provavelmente, não te anos, aos meus pedidos de visto de permanência, ao qual tinha
com as mesmas dificuldades. direito por ser mãe de uma criança constitucionalmente conside-
Tratou-se, no entanto, de emigração, com seu séquito de des- rada brasileira por ter chegado ao País antes dos três meses de vida.
cobertas, enriquecimentos, encantos, mas também de empobre- Esta recusa que, como ficou demonstrado mais tarde, devia-se
cimentos, rupturas, afastamentos e perdas irremediáveis – perda ao fato de ser companheira de um opositor do regime ditatorial,
de referências culturais, de cheiros, de gostos, de afetos. Tudo is- prejudicou irremediavelmente minha vida profissional, já que,
so deu-se talvez de maneira menos nítida em relação àquilo que além de não me permitir trabalhar de outro modo que informal-
meus pais viveram do final dos anos 40 aos anos 80 na Bélgica. Isso mente, me impediu até mesmo de inscrever-me numa universida-
porque, para mim, não estava muito claro a qual cultura pertencia. de para terminar os estudos de psicologia iniciados em Bruxelas.
Sentia falta da Bélgica, é claro, que considerava o meu país, ape- Os longos sete anos sob a ditadura militar – durante três, ia de
sar de nunca ter tido a nacionalidade belga: lá onde eu nascera e Porto Alegre e vinha de Montevidéu em ônibus precários, com
vivera os primeiros 23 anos de minha vida. meu filho pequeno no colo, para manter o visto de turista; durante
Meu conhecimento racional do mundo se dera sobretudo quatro, vivi como semiclandestina, após receber ordem de expul-
através da língua francesa, que, mesmo não sendo a língua de são – tornaram também mais difícil uma inserção social serena.
minha mãe nem, talvez, a primeira que falara, passou a ser a Sobretudo, eles prejudicaram a possibilidade de que eu amasse o
dominante no meu repertório linguístico. Da Bélgica, conhecia Brasil incondicionalmente e o considerasse o meu país, o mesmo
quase tudo: interpretava perfeitamente os códigos sociais e sabia título que atribuo à Bélgica e à Itália, onde me sentia e sinto cida-
como me comportar conforme quisesse passar por estrangeira ou dã, apesar de minha condição de filha de trabalhadores, imigrados
por autóctone; conseguia comunicar-me com os velhos operários em um e emigrados do outro.
e camponeses até mesmo quando me falavam em puro wallon;
amava a comida; conhecia e apreciava enormemente a cerveja, Florence Carboni, italiana, é professora do Curso de Letras da Uni-
com destaque para a trappiste etc. Gostava até mesmo do cli- versidade Federal do Rio Grande do Sul.
36
presenças belgas no brasil
A casa é sua
Annelies Beck
37
parte 1 – travessias e migrações
“Não é sempre tão simples. Às vezes fico apreensiva” me confiava Collor, sob a pressão dos “caras pintadas”, desenrola-se um novo
minha mãe. Ainda em 2012 não é simples ser GLS no Brasil, ape- processo, que pode seguir-se nos mínimos pormenores na mídia:
sar da garantia legal, do alegre travesti durante o carnaval, das fla- corrupção no coração do PT, o caso do mensalão. O Brasil rein-
mejantes subculturas e da ocasional Gay Pride Parade nas cidades. venta continuamente o seu porvir.
Assim, há outras coisas que pedem uma segunda, terceira e 2013. Minha família hospedeira vai bem – ainda mantemos
quarta leituras. O que à primeira vista é reconhecível, ou com- contato. Meus pais construíram sua própria casa. Minha mãe ain-
preensível, parece, numa inspeção aproximada, se situar um grau da trabalha. Meu pai está agora aposentado. Meu irmão e minha
fora do fio de prumo, pelo menos em comparação com o quadro irmã puderam estudar e ambos trabalham. Minha irmã é fisiote-
de referências que se traz de fora. A procura de pontos comuns, rapeuta em Juiz de Fora e decidiu fazer Direito, “para poder fazer
em algum lugar nas dobras entre familiaridade e alienação, é o alguma coisa pela gente”. Meu irmão projeta cenários para nove-
que torna a conexão com o Brasil tão fascinante. las e vê de seu apartamento como o Rio se embeleza para os Jogos
Em 2013, de volta a Juiz de Fora, fiquei impressionada: foram Olímpicos. A dinâmica dentro da cidade se transforma: as favelas
construídos um hospital e um shopping ainda maior; por toda par- empetecadas entraram na mira dos promotores da construção e
te erguem-se altos prédios de apartamentos e na colina mais longe das imobiliárias. Cá e lá oferece-se um bom dinheiro aos morado-
vêem-se alinhadas as casas sociais da “Minha casa, minha vida”. res de áreas que eram taxadas de favelas. Mas como a empregada
O Brasil vai de vento em popa. Não se deve mais passar horas na do meu irmão me contou: “Para onde temos que ir, então? Para
fila para trocar dinheiro: pode-se em qualquer parte sacar dinheiro mais longe, onde é mais barato? Como então podemos chegar em
do caixa eletrônico. tempo razoável no serviço?”
Vinte anos atrás, no Jornal Nacional, a cada dia William Bon- Quando agora olho a foto da minha turma daquela época, vejo
ner dava o câmbio oficial do dólar e, em seguida, o paralelo no que sempre fui a gringa, mesmo que minhas colegas me dessem
câmbio negro. Naquela época, minha família hospedeira com- o sentimento de ser uma delas e mesmo que eu passasse frequen-
prava os dólares que eu, cuidadosamente, economizava e guarda- temente por uma catarinense ou uma gaúcha, por causa de meu
va num nicho secreto perto da cama. Não era recomendável ter cabelo loiro e meus olhos azuis. Como estudante de intercâmbio,
dólares em casa, mas deixar o dinheiro no banco tampouco era a desligada de quem eu era, salvo por uma frágil linha de envelopes
solução por causa da inflação galopante. Ainda guardo um arco-í- do correio aéreo, eu fui muito longe para conquistar, no estrangei-
ris de passagens de ônibus: a cada mês subia o preço e, portanto, ro, aquele sentimento seguro e familiar de casa.
mudava também a cor do bilhete. Como jornalista, 20 anos mais tarde, levo vantagem com es-
Anos mais tarde, a economia melhorou bastante pela gestão te olhar duplo: a familiaridade transparece nos gostos, cheiros e
liberal do presidente Fernando Henrique Cardoso, mas naquela olhares, numa maneira de falar, em sensibilidades para tabus ver-
altura meus pais brasileiros já tinham visto boa parte de suas eco- sus franqueza e, também, nas minhas mãos que se metem a dan-
nomias virar fumaça. Mais tarde o horroroso cenário para os brasi- çar quando falo português. Ao mesmo tempo, este país poderoso
leiros ricaços tornou-se realidade: o torneiro mecânico de outrora, apresenta-se cada vez numa outra faceta, tanta coisa muda, tão
o barulhento sindicalista Lula da Silva tornou-se presidente. Mas, rapidamente, cada vez surgem novas questões e percepções. É
ao contrário do que alguns temiam (caos! revolução!), ele fez um como em toda boa relação: nunca se acaba.
governo moderado. Continuou o que seus predecessores tinham
começado a construir e o Brasil se deu bem com isso. Hoje, Dilma Annelies Beck é jornalista na VRT, a televisão pública flamenga.
Rousseff é a primeira mulher presidente do Brasil, uma ex-gueri- Há 20 anos se dedica ao Brasil, onde fez numerosas reportagens.
lheira – quem teria imaginado isso? Residiu neste país entre 1991 e 1992 como estudante de intercâm-
O Brasil é um caso interessante não só economicamente. Po- bio e obteve, mais tarde, um MA em Brazilian Studies na Univer-
líticamente, 20 anos depois da renúncia do presidente Fernando sity of London.
38
presenças brasileiras na bélgica
39
parte 1 – travessias e migrações
Ilustração de Uma vez reconhecido seu talento, seguiu primeiro para a Es-
Henrique Alvim
cola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro e depois, em 1903,
Corrêa para o livro La
guerre des mondes, com bolsa do governo paranaense, foi aperfeiçoar-se na Académie
de H. G. Wells. Royale des Beaux-Arts de Bruxelas. Gheur e outro belga interes-
sado, Alphonse Solheid ou talvez o próprio Itiberê podem ter fa-
cilitado o contato. Em Bruxelas, Zaco trabalhou com o escultor
expoente do art nouveau, Charles Van der Stappen. Recebeu em
1905 em sua casa o conterrâneo João Turin (1878-1949), filho de
imigrante italiano, aprendiz de ferreiro, escultor e também auxi-
liado com bolsa de governo. Turin exprimiu o seu sofrimento pelo
clima belga na escultura Exílio.
Com certeza, conheceram Constantin Meunier, cujo Semea-
dor (1896) inspirou semelhante estátua de Zaco Paraná. Ambos fo-
ram diplomados e premiados em 1909, recebendo um ateliê para
trabalhar, carvão para aquecimento e direito a modelo vivo. Com
a morte de Van der Stappen, voltaram ao Brasil em 1910, mas logo
regressaram à Europa e viveram um longo período em Paris em
contato com os artistas modernos. Após seu regresso definitivo em
1922 ao Brasil, encontraram mais reconhecimento e encomendas.
Ainda em Bruxelas, seus caminhos se cruzaram com um ou-
Bruxelas, o Brasil mantinha desde 1834, e quase continuamente, tro artista brasileiro. Henrique Alvim Corrêa (1876-1910) foi le-
um encarregado de negócios, um ou mais adidos e um cônsul-ge- vado com 16 anos pelo padrasto a Paris, onde aprendeu a gravu-
ral, alguns com extensas famílias, como testemunham no cemité- ra e se especializou em pintura militar com Edouard Detaille.
rio de Laken os jazigos das famílias Souto Maior, Ipanema de Bar- Contrariado pela família em seu romance com Blanche Barbant,
ros e Moreira Barros. Possivelmente recebiam viajantes brasileiros fugiu em 1898 para Bruxelas, onde montou um ateliê no subúr-
como o pintor Manuel de Araújo Porto-Alegre e o poeta Domingos bio de Watermael-Boisfort. Mas o pintor não conseguia vender
Gonçalves Magalhães, que excursionaram pela Bélgica por volta seus quadros de temas militares e se sustentou com decoração
de 1837. Este último concluiu lá seu drama Antonio José ou o Poeta mural e ilustrações eróticas no estilo de Félicien Rops. Somen-
e a Inquisição e uma belga lhe inspirou talvez um suspiro poético. te em 1905 conseguiu realizar na galeria Boute de Bruxelas sua
A belga era Céline, amante do outro grande poeta romântico, An- primeira exposição individual. Numa abundância de pinturas,
tônio Gonçalves Dias, que passou por cirurgia na Bélgica em 1863, desenhos e esboços, um crítico (La Chronique, 12 e 15.03.1905)
pouco antes de seu naufrágio na costa do Maranhão. descobriu um artista solitário e original, sem filiação com algu-
Um salão literário concorrido manteve em Bruxelas no final ma escola e desenraizado.
do Império o plenipotenciário conde de Villeneuve e sua esposa, Suas obras revelavam ‘uma mistura singular de fantasia e serie-
assistido por Brasílio Itiberê da Cunha, o compositor da Sertaneja. dade, de sonhos bizarros, caprichosos e de impressionismo natural,
Este trouxe em 1880 para estudar no colégio jesuíta Saint-Michel de simbolismo e realidade’. Tudo lhe inspirava, desde figuras do
um jovem irmão, João, que se formou depois em Ciências Políticas cotidiano, recantos e paisagens de Boisfort até cenas da atualida-
na Universidade de Bruxelas e se relacionou com figuras de La Jeu- de internacional, como a guerra russo-japonesa de 1904, que ele
ne Belgique, como Iwan Gilkin (Andrade Muricy). Nesta linha pu- dramatizava ou parodiava. Sua imaginação fantástica excedeu em
blicou em 1890 sob o nome de Jean Itiberê e com o mesmo editor cerca de 50 desenhos de monstruosos e terríveis extraterrestres
de Maurice Maeterlinck, Lacomblez, um volume de poemas em para ilustrar a obra de grande êxito The War of the Worlds (1898)
francês, Préludes. Voltando em 1892 para a terra natal paranaense de H. G. Wells. O próprio autor, solicitado por Alvim Corrêa em
com postura de dândi no estilo fin-de-siècle, continuou a publicar viagens a Londres, os aprovou para uma edição belga, La guerre
poemas em francês nas revistas Cenáculo e Almanaque Paranaense des mondes, Bruxelas, L. Vandamme, 1906, com 500 exemplares
e divulgou nos meios literários de Curitiba o simbolismo belga. (reeditado no Rio de Janeiro, 1981).
O prestígio deste pode ter influenciado na ida a Bruxelas, pou- Doente dos pulmões, Alvim Corrêa foi tratar-se num sanató-
co depois, de dois jovens escultores paranaenses, filhos de imigran- rio suíço, mas acabou morrendo de tuberculose em Bruxelas em
tes. Na oficina do polonês Miguel Zak, os trabalhos de madeira do 1910. Seu necrológio (La Chronique, 15.06.1910) o reconheceu
filho João Zaco Paraná (1884-1961) despertaram o interesse de um como um modernizador de Breughel e Bosch. Também devia-
freguês, o técnico ferroviário belga François Gheur. Este levou o -se relacioná-lo com o contemporâneo belga James Ensor. Seu
menino para sua casa em Curitiba para lhe proporcionar ensino ateliê foi destruido na invasão alemã em 1914 e as matrizes de
com auxílio do governo e de protetores no seminário menor e na suas gravuras desapareceram no torpedeamento de um navio em
Escola de Belas Artes e Indústria. 1942, mas seus dois filhos, Eduardo e Roberto, salvaram o que
40
presenças brasileiras na bélgica
puderam. Sua obra foi finalmente redescoberta por José Roberto festa acabou com a invasão das tropas alemãs em agosto de 1914,
Teixeira Leite, que lhe consagrou a primeira exposição em 1973, quando os diplomatas redigiram listas com os nomes de uns 400
parcialmente reapresentada por Pietro Maria Bardi em Bruxelas brasileiros que deviam deixar a Bélgica.
na galeria Studio 44 no mesmo ano da Brasil-Export. Boa parte destes eram estudantes e seus familiares. Já por me-
Nestes anos de 1910 a presença brasileira atingiu maior vi- ados do século XIX se encontravam em Bruxelas em instituições
sibilidade pelas iniciativas do embaixador Oliveira Lima. Junto de educação como do Senhor Lavallée jovens brasileiros, ao lado
com a participação do Brasil na Exposição de Bruxelas, organizou de russos ou de uma Charlotte Brontë (Stols, 1974). Mais tarde,
um concerto de música brasileira no Théâtre de la Monnaie. Os secundaristas frequentaram colégios como o Saint-Michel dos je-
comissários do Estado de São Paulo editaram em Bruxelas várias suítas em Bruxelas ou pensionatos, como das Ursulinas em On-
publicações de propaganda como um álbum de 102 fotografias ze-Lieve-Vrouw-Waver.
de Guilherme Gaensly, Vues de São Paulo. Um exemplar – ho- Bem mais numerosos foram os universitários. Vários motivos
je conservado na Biblioteca Municipal da cidade – foi oferecido levaram os pais brasileiros a preferir a Bélgica: um país monár-
ao poeta Vicente de Carvalho, residente em Bruxelas em 1912. quico, mas constitucionalista e liberal, de idioma francês, mais
Vários jovens talentos literários brasileiros, adeptos do simbo- seguro e também mais barato do que a França. Desde Bruxelas,
lismo, vieram peregrinar na terra de Émile Verhaeren, Georges em carta de 7 de julho de 1863, Antônio Prado recomendou ao
Rodenbach e Maurice Maeterlinck, ainda mais que lá havia edito- irmão Caio estudos na Bélgica por não ter costumes tão diversos
res bons e baratos e onde Victor Orban compôs uma das primeiras como a Alemanha nem tão perigos como Paris (Darrell, p. 147).
antologias de literatura brasileira em francês (Quataert). A visita Entre 1835 e 1914 matricularam-se cerca de 700 brasileiros,
aos canais de Bruges em 1913 de Rodrigo Otávio Filho, junto com dos quais 237 na Universidade Livre de Bruxelas, 217 na Universi-
Ronald de Carvalho, Filipe d’Oliveira e Álvaro Moreyra, rendeu dade de Gand, 100 na Universidade de Liège, 68 na Universidade
seu Alma de Rodenbach, 1921. de Lovaina, 37 na Faculdade de Agronomia de Gembloux, 5 na
Foi nesta época que Manuel Bandeira veio da Suíça conhecer Université Nouvelle de Bruxelles – uma dissidência temporária da
‘a Bélgica perseverante dos velhos paços municipais e beguines’, Universidade Bruxelas –, e 2 no Instituto Superior de Comércio
evocados mais tarde em O Ritmo Dissoluto (1924). Ao contrário, de Antuérpia.
lá também, na casa de um patrício, o poeta mineiro Belmiro Braga Se os primeiros apareceram em 1835, somente a partir de 1857
saboreou sua comida da terra. Um editor de Bruxelas lançou os contava-se mais de dez, alcançando 41 em 1871 com um pico
primeiros estudos de Alberto Lamego, historiador da Terra Goy- de 72 em 1882, baixando depois para 12 em 1912 e subindo no-
tacá. Brasileiros vinham até veranear, como os Almeida Prado vamente até 48 em 1913. O mais surpreendente – e contrário à
em La Panne. Num restaurante de Ostende, Gilberto Amado se reputação de bacharelismo dos brasileiros –, é o alto número de
surpreendeu em 1912 com uma dezena de seringueiros da Ama- inscritos e diplomados em engenharia (318), medicina (236) e
zônia, vestidos de branco, festejando com bonitas mulheres nos agronomia (45).
joelhos (Amado). No mesmo balneário o casal Asseloos anuncia- Notável também é a diversidade de origem dos estudantes bra-
va o ensino da ‘maxixe brésilienne’ (Le Carillon, 28.02.1914). A sileiros, a maior parte vinda das províncias do Rio de Janeiro (231)
e de São Paulo (149), seguidas por Minas Gerais (41), Pará (31),
Rio Grande do Sul (29), Maranhão (28), Bahia (27) e Pernambu-
Ilustração de
Henrique Alvim co (24). Em algumas famílias brasileiras, como os Ottoni, Teixeira
Corrêa para o Leite, Roque de Pinho, Toledo Piza, Villares, Viana e Chermont,
livro La guerre os estudos na Bélgica se tornaram quase uma tradição.
des mondes, de H. No início viviam bastante isolados. A. S. de Abreu se queixou
G. Wells.
num folheto, Souvenir de la province de Minas Gerais au Brésil,
Bruxelas, 1845, como em três anos fez poucos amigos. Defendia
frente aos abolicionistas a reputação de sua pátria, argumentando
que o escravo trabalhava somente oito horas e não se despedia na
rua, faminto, como se fazia com o operário belga.
Nos anos de 1860 e 1870 alguns frequentavam salões e ade-
riam ao positivismo como Luiz Pereira Barreto ou Joaquim Alberto
Ribeiro de Mendonça. Um deles, Francisco Antônio Brandão Jú-
nior, publicou em Bruxelas um dos primeiros livros abolicionistas,
A Escravatura no Brasil, 1865. Participavam das associações estu-
dantis, envolvendo-se às vezes nas disputas entre liberais e católi-
cos. Em Gand houve até um clube brasileiro entre 1875 e 1880.
Alguns se radicaram na Bélgica como Ladislau Furquim de
Almeida, que publicou sobre o café e a borracha e deixou descen-
41
parte 1 – travessias e migrações
42
presenças brasileiras na bélgica
43
parte 1 – travessias e migrações
edifícios vale sem dúvida como um dos exemplos mais marcantes Mario Baeck é licenciado em Filologia Germânica pela Universidade
do pensionato belga do período 1840-1960 e pode ter inspirado de Gand, prepara um doutorado em História da Arte, publicou sobre
nesta procura de classe os seus congêneres estabelecidos por con- literatura flamenga e neerlandesa, história da arte, conservação do
gregações belgas no Brasil, como o Des Oiseaux em São Paulo ou patrimônio e particularmente sobre o Jardim de Inverno do Instituto
as Damas em Recife. das Ursulinas, do qual é secretário.
44
presenças brasileiras na bélgica
Este predomínio de Liège durou até a Primeira Guerra Mun- O que entretanto diferenciou a Universidade de Liège das
dial e pelo menos 132 brasileiros frequentaram os bancos da Uni- outras instituições do país foi seu ‘Institut Montefiore’ (Legros e
versidade de Liège, ou seja três vezes mais do que o segundo país Pirotte; Tomsin). Fundado em outubro de 1883 por Montefio-
latino-americano, a Argentina, com 39 inscritos entre 1870 e 1914. re-Levi, senador de Liège, foi a primeira escola eletrotécnica de
Entre estes 132 estudantes brasileiros, originários essencialmen- nível universitário no mundo a coordenar todas as aplicações da
te das províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo, 109 optaram eletricidade num único programa e a formar engenheiros eletricis-
por estudos técnicos, 66 pelas Escolas especiais ou, em seguida, tas numa sequência de estudos teóricos e práticos. Por situar-se na
a Faculdade Técnica em 1893, e 43 para o Instituto Montefiore, ponta do desenvolvimento da eletrotécnica, o Instituto Montefiore
sete pelos estudos de Medicina, quatro pelas Ciências Políticas ganhou rapidamente reputação nos quatro cantos do mundo e os
e Administrativas, dois pela Licenciatura Comercial, dois pelas estudantes estrangeiros se apresentaram cada ano mais numerosos.
Ciências Notariais, um por Química e um por Direito. Somente Assim, apenas dois anos depois de sua abertura, um estudan-
24 obtiveram diploma. te brasileiro, Colin Freitas Broad, se inscreveu e mais 42 outros
Como explicar o interesse marcante dos brasileiros para os es- brasileiros o seguiram até a Primeira Guerra Mundial. Entre estes
tudos universitários em Liège? Já antes a cidade gozava no Brasil alunos brasileiros da Universidade de Liège, e particularmente
de boa reputação por causa de sua metalurgia e particularmente do Instituto Montefiore, alguns fizeram uma bela carreira. Foi o
de suas armas. Comissões militares brasileiras vinham visitar os caso de Edgard de Souza (nascido em 12.3.1876, Campinas), en-
ateliês e faziam boas encomendas. Em agosto de 1871 o próprio viado com 16 anos à Bélgica para seguir uma formação técnica,
Imperador Pedro II visitou Seraing com o industrial Georges Mon- diplomado como engenheiro de Minas com distinção em 1898
tefiore-Levi, almoçou na casa do sucessor de Cockerill, Sadoine, e como engenheiro Eletricista com satisfação no ano seguinte.
e recebeu revólveres de presente (Condessa do Barral, 736-379). De volta ao Brasil, tornou-se engenheiro Eletricista-chefe e de-
Mais interessado nos métodos de ensino, se informou sobre a Uni- pois, a partir de 1914, vice-presidente da The São Paulo Tramway,
versidade de Liège e entrou em contato com os professores Eu- Light and Power, e ainda diretor da Companhia Telefônica do
gène Catalan e Edouard Van Beneden, respectivamente titulares Estado de São Paulo. Mas, Edgard de Souza é sobretudo conhe-
de Matemáticas e de Biologia e Zoologia. cido como o fundador e primeiro professor da seção de Eletro-
No ano seguinte Van Beneden liderou uma expedição cientí- técnica na Escola Politécnica de São Paulo. Seu irmão, Durval
fica ao Rio de Janeiro, onde descobriu um tipo de boto, e visitou de Souza, também estudou Engenharia em Liège, mas levou
Pedro II. Numa outra passagem por Liège, em 1876 ou 1877, o Im- quase dez anos para obter, em 1902, seu diploma de engenheiro
perador se reencontrou com o zoólogo. Foi por sua apresentação Eletricista pelo Instituto Montefiore e exerceu sua profissão na
que o Imperador se tornou em 22 de dezembro de 1885 membro cidade de São Paulo.
correspondente da Société des Sciences de Liège. Vale seguir outras carreiras: Herculano de Almeida Correa,
45
parte 1 – travessias e migrações
formado engenheiro de Artes e Manufaturas em 1897 e engenhei- na São Paulo Railway Company e diretor da Companhia Telefô-
ro Eletricista em 1899, diretor da Companhia Melhoramentos de nica, da Companhia Melhoramentos e da Empresa Luz e Força
São Paulo; Colin Freitas Broad, engenheiro Eletricista em 1890, de Jundiahy. Alguns estudantes do Instituto Montefiore receberam
atuou na Compagnie Internationale d’Electricité em Liège (1891), bolsas da Marinha brasileira, sem dúvida com relação à sua com-
em Santos (1892-1893), na Companhia Mogyana de Estradas de pra de navios de guerra mais modernos.
Ferro (1894-1895), na Comissão de Estudos da Estrada de Ferro Foi portanto nas companhias de estradas de ferro e de eletrici-
Catalão-Cuiabá (1896-1900), em São Paulo (1901-1902) e, por dade, no serviço público e no ensino superior que quase todos se
fim, no London and Brazilian Bank no Rio de Janeiro (1905- beneficiaram com a formação recebida no Instituto Montefiore.
1908); Carlos de Figueiredo, engenheiro Eletricista em 1900, foi Este contribuiu de maneira modesta, mas evidente, ao desenvol-
professor no Rio de Janeiro; J. N. de Lemos Basto, engenheiro vimento e à modernização do Brasil.
Eletricista em 1890, atuou como diretor dos Correios e Telégrafos
do Brasil no Rio de Janeiro; Edouardo de Aguiar d’Andrade, enge- Christine Fellin obteve a licenciatura em História na Universidade
nheiro Eletricista em 1894, serviu, depois de três anos na General de Liège com uma monografia sobre “Os estudantes latinoamerica-
Electric Company em Nova York (1895-1898), como engenheiro nos na Universidade de Liège antes da Primeira Guerra Mundial”.
46
presenças brasileiras na bélgica
o flamengo com certa facilidade. Atuei, em francês e flamengo, (não Dama) da Ordem de Leopoldo II, por minha contribuição
como continuista, editora, assistente de direção e diretora de fil- ao cinema belga. No entanto, o trabalho pelo qual me sinto mais
mes. Pude trabalhar com diretores belgas conhecidos, tais como realizada, que me toca mais profundamente, é o meu documen-
Benoit Lamy, Harry Kümel, Marion Hänsel, Stijn Coninx, Jaco tário Brasileiros como eu.
Van Dormael, Hugo Claus. Pratiquei meu ofício também em
outros países europeus e fui responsável pela continuidade de Susana Rossberg foi, igualmente, professora em duas escolas de cine-
dois filmes nos Estados Unidos. ma belgas, tendo, assim, a oportunidade e o prazer de contribuir ao
Tive a honra de receber a distinção honorífica de Cavalheiro desenvolvimento de novas gerações de cineastas.
“Il belge”, dizia Miranda quando o céu se mostrava chuvoso Os jovens que haviam deixado o Brasil dos generais temiam
ser perseguidos. Eram muito desconfiados, a tal ponto que alguns
47
parte 1 – travessias e migrações
48
presenças brasileiras na bélgica
negra. Chama-se Aparecida. Fiz dela a heroína de uma história deçà. Resulta um livro que tem por título Carta de Copacabana
que se passa em um engenho. Aparecida é uma escrava, mas pela a Christophe que ficou em Courtelande; Courtelande sendo, na
Lei de 1871 o filho que espera já é livre. Jamais conhecerá, como ocorrência, meu país de origem, a Bélgica. Essa carta sublinha
seus pais, o trabalho servil. No tenso contexto social e político da muitas vezes de modo um tanto irônico o que nos une e nos se-
época, Aparecida Ventre Livre ilustra o nascimento em um plano para, em toda fraternidade.
duplo: nascimento de um filho chamado Solto, mas esse Solto re- Quando o céu se mostra baixo e qu’il belge, como dizia Mi-
presenta, sobretudo, um nascimento para a liberdade. Aparecida randa, lembro-me de Aparecida, pego a mão dessa mãe-coragem
Ventre Livre recebeu o primeiro prêmio da novela e foi publicado que soube, em meio ao pior dos abandonos, dar vida à Liberdade.
em La Libre Belgique antes de ser traduzido para o português em (Tradução Virginia Gomes Ribeiro)
um jornal de Curitiba.
Para um belga que atravessa seu país de ponta a ponta em al- Paul G. Dulieu é diplomado em Sociologia e Linguística, trabalhou
gumas horas, é presunçoso falar do imenso Brasil. Colocando-me para a Universidade Católica de Lovaina, para o Instituto de Artes
a pergunta: ‘Como se pode ser brasileiro?’, tentei respondê-la por de Difusão e para o Fundo das Nações Unidas para a População an-
meio de um subterfúgio narrativo. Fico em Copacabana e faço tes de exercer atividade de jornalista. Tem sólidos laços com o Brasil
uma espécie de caderno de rascunhos. Em meu carnê de notas, e escreveu canções, peças de teatro e novelas, estas últimas editadas
anoto as coisas vistas, evocações históricas, faço comparações en- por revistas belgas e brasileiras. Sua novela Aparecida Ventre Livre
tre essa terra nova e o que Jean de Léry chamava les pays d’en recebeu o Grand Prix de la Libre Belgique em 1999.
49
parte 1 – travessias e migrações
demanda por mão de obra de baixo custo para os chamados 3-D ou legal. Esse setor pouco regulado da economia nacional atrai,
jobs (Dirty, Demanding and Dangerous) (Castles, 2002). Assim, assim, principalmente trabalhadores migrantes, como brasileiros
as oportunidades de trabalho no mercado informal, ou ‘negro’, que entraram como turistas e se encontram em situação irregular
são muitas, sobretudo em setores pouco regulados pelo controle de estadia, sem acesso legal ao mercado de trabalho. Eles entram
governamental: agricultura, restauração, construção e limpeza. no setor da construção – com ou sem experiência – e principal-
Nessa direção, Rosenfeld et al. (2009) salientam que a migra- mente no subsetor das finalizações: pintura, forro e, sobretudo,
ção brasileira tem uma dimensão transnacional por sua mobili- como colocadores de placas de gesso (gyproc) para o forro. A es-
dade entre países europeus e, muitas vezes, também entre Brasil pecialização no subsetor de forro com placas de gyproc apresenta
e Europa. Para esses pesquisadores, essa mobilidade geográfica duas vantagens. Em primeiro lugar, é uma tarefa bem definida,
está a serviço de um projeto migratório que, na maioria dos casos, que pode facilmente ser terceirizada pela empresa responsável
é de uma curta estadia na Europa, o suficiente para economizar pela obra. Em segundo lugar, é uma atividade indoor, isto é, rea-
dinheiro e retornar ao Brasil. O percurso migratório na Europa lizada no interior da obra e por isso menos visível – mais segura
se revela, assim, um jogo estratégico entre oportunidades econô- –, ideal para um trabalhador em situação irregular.
micas e migratórias. No setor de construção, há uma complexa rede de relações
Num continuum migratório, de um lado extremo está o Reino que se estabelece entre grandes empresas e pequenas ou micro
Unido, cuja diferença salarial com o Brasil é das mais relevantes, empresas terceirizadas. Com frequência, há um mestre de obras
mas cujas leis migratórias são extremamente severas. No outro português, um ‘patrão’ brasileiro, que não é senão o encarregado
extremo desse continuum está Portugal, que oferece uma série de pela obtenção e controle da mão de obra e, enfim, o trabalha-
vantagens em termos migratórios, principalmente a facilidade da dor brasileiro. Nessas articulações, não é raro que o intermediário
língua e da organização de frequentes campanhas de regulariza- guarde a metade do salário, e o trabalhador que o realizou recebe,
ção, mas com um mercado de trabalho em crise. Entre os extre- apenas, entre dez a cinco euros a hora trabalhada, dependendo se
mos, a Bélgica parece ocupar uma posição intermediária, por sua o trabalho é especializado ou não.
proximidade de Paris – porta de entrada privilegiada dos turistas
brasileiros – e a relativa facilidade de integração no mercado de O setor do care : limpeza e cuidado
trabalho informal local.
O chamado global care chain, ou redes globais de cuidado
Nichos étnicos e mercado de trabalho belga (Hochschild, 2000), contribuem para o aumento da demanda por
serviços no setor do care (cuidado). Na Bélgica, a demanda se
A repartição de trabalhadores brasileiros entre setores pouco traduz em oportunidades de trabalho na limpeza e no cuidado
regulados da economia belga é marcada: 72% dos homens estão de crianças e de pessoas idosas em domicílio. É comum que as
empregados no setor da construção, enquanto 68% das mulheres trabalhadoras brasileiras se insiram nesse setor, começando por
trabalham no setor da limpeza (OIM, 2009). A grande concen- um trabalho de serviço doméstico que exige que a trabalhadora
tração de brasileiros nesses dois setores revela a existência de ni- durma no emprego, o que lhes permite economizar uma parte do
chos étnicos (Waldinger, 1994) que estruturam esses empregos. salário, acelerar o aprendizado da língua e minimizar os riscos de
Embora somente 15% dos brasileiros trabalhassem nesses setores fiscalização nas idas e vindas de/para o trabalho. No entanto, a si-
antes de sair do Brasil, a diferença salarial é um importante ponto tuação exige forte implicação emocional, pela proximidade com
de decisão. Isto é, apesar do desnível entre a profissão exercida no o empregador, o isolamento e a falta de controle sobre o tempo
Brasil e a atividade profissional na Europa, metade dos brasileiros trabalhado, uma vez que a linha entre o trabalho e o repouso é
empregados nesses setores na Bélgica ganhavam menos de 300 por vezes mal definida.
euros por mês no Brasil (OIM, 2009). Embora essa modalidade de trabalho seja preferida por algu-
A Bélgica oferece, assim, numa lógica de divisão de gênero mas brasileiras recém-chegadas, a maioria procura uma posição
do mercado de trabalho, um nicho de emprego para as mulheres como trabalhadora doméstica em uma família sem exigência de
brasileiras, no setor da limpeza, e, para os homens brasileiros, na dormir no emprego, ou como faxineira, em que trabalham por
construção. É importante ressaltar que, antes de sua integração na hora. Essa modalidade de trabalhar por hora oferece mais ma-
União Europeia, trabalhadores portugueses, e em seguida polone- leabilidade na gestão dos horários, necessária quando crianças
ses, ocuparam, por sua vez, esses mesmos setores, movimentando acompanham o projeto migratório, mas implica, também, uma
o que Waldinger (1994) denomina ‘o jogo étnico da dança das ca- constante busca de um número suficiente de empregadores para
deiras’ entre as nacionalidades (game of the ethnic musical chairs). completar a grade horária semanal, o que pode ser um motivo
de estresse.
Os homens brasileiros na construção Além da limpeza em domicílio, outras oportunidades de tra-
balho para os brasileiros com ou sem estadia regular são ofereci-
O mercado belga da construção depende, de maneira estru- das por empresas de limpeza profissional. O setor é, todavia, bem
tural, de uma mão de obra barata, flexível e sem proteção social distinto do mencionado acima, sendo fisicamente mais pesado e
50
presenças brasileiras na bélgica
mais sujeito à fiscalização do trabalho. Essas características, soma- lhadores e trabalhadoras sejam semelhantes. Consequentemente,
das a horários de trabalho nem sempre fáceis (jornadas noturnas o projeto migratório inicial, de poupar dinheiro a curto prazo, é
e frequentemente irregulares), fazem com que ele seja ocupado, raramente concretizado no tempo previsto.
em sua maioria, por homens. Em 2010, dois terços das infrações À medida que o retorno ao Brasil é adiado, a integração à
constatadas pela fiscalização do trabalho na Bélgica nesse setor Bélgica se acentua. As vantagens sociais, em termos de acesso à
envolviam brasileiros, com 575 casos (SIRS, 2011). educação e à saúde, mesmo para migrantes em situação irregular
de estadia, contribuem para a evolução do projeto migratório no
Conclusão sentido da perenização, sobretudo se há crianças. As possibilida-
des de regularização da estadia e de inserção legal no mercado
O século XXI trouxe ao Brasil um desenvolvimento econômi- de trabalho, todavia, continuam raras, e a situação de irregulari-
co significativo que, como aponta Pochmann (2009), favoreceu dade pode gerar relevantes tensões no seio da comunidade bra-
simultaneamente as classes socioeconômicas mais pobres e mais sileira na Bélgica.
ricas da sociedade, e na qual a classe média foi a menos beneficia-
da com a mobilidade social. O foco deste texto foi, especialmente, Beatriz Camargo é doutoranda em Sociologia na Universidade
a classe média inferior, que representa a maior parte do fluxo de Livre de Bruxelas (ULB) e pesquisadora no GERME (Group of Re-
trabalhadores brasileiros vivendo hoje na Bélgica. Para essa popu- search on Ethnical Relations, Migration and Equality). Faz parte
lação, a migração para o exterior é uma forma de desbloquear a da Associação de Migrantes Brasileiros Abraço (www.abraco-asbl.
mobilidade social que eles não conseguem no Brasil, principal- be) e trabalha com temas de pesquisa sobre migração, trabalho e
mente por falta de especialização profissional. gênero; sua tese de doutorado investiga a formalização do trabalho
Na Bélgica, a migração é, com frequência, familiar e parece doméstico em Bruxelas.
se organizar de maneira complementar em cada casal, em nichos
étnicos específicos e marcados pelo gênero. Assim, as mulheres en- Martin Rosenfeld é doutor em Antropologia pela Universidade Livre
contram principalmente trabalhos regulares e seguros, que permi- de Bruxelas (ULB) e pela École des Hautes Études en Sciences Socia-
tem uma renda estável. Os homens, por sua vez, costumam traba- les-EHESS (França). Atualmente é pesquisador no GERME. Seus
lhar em setores mais expostos, mas cuja remuneração é mais alta. trabalhos estão apoiados na antropologia econômica e na sociologia
A falta de regulação do mercado de trabalho, que atinge os dois urbana e se concentram, principalmente, no fenômeno dos movimen-
setores, entretanto, faz com que as dificuldades vividas pelos traba- tos migratórios transnacionais.
51
parte 1 – travessias e migrações
Com o passar do tempo, outras pessoas, sonhos e ideias se to, festa popular), no Club Brasil, trouxe à equipe Arte N’Ativa a
juntaram à iniciativa. Nesse período, Isabel encontra Alessandra, maturidade para se estabelecer como uma importante associação
jovem empreendedora e com aguerrida motivação artística, ingre- sem fins lucrativos (asbl) de promoção cultural na comunidade.
dientes fundamentais para o avanço das ações. As duas buscaram
conhecer melhor o mundo associativo belga e se lançaram no de- A partir disso...
safio de criar algo mais amplo e mobilizador. Com a oficialização
da associação em 2011, juntaram-se a elas outros membros que Após o sucesso da Europalia, conquistamos outro espaço lo-
trouxeram boa dose de dinamismo à equipe, como Myriam Mar- calizado no coração de Bruxelas, o Micro Marché, onde foi pos-
ques, animadora cultural, e Cleverson de Oliveira, artista plástico. sível manter o projeto de difusão da arte e da cultura brasileiras,
Nesse mesmo ano a associação foi selecionada para participar com a realização de concertos, mostras, saraus poéticos, vernis-
do festival Europalia – tradicional bienal de artes, que acontece sages, exposições, workshops, ateliers de reciclagem etc.
há 30 anos em Bruxelas e outros países da Europa, cuja edição Além dos eventos, a equipe investiu ainda no capital social,
2011-12 teve o Brasil como tema. Coube à Associação a respon- realizando o primeiro encontro informativo com ênfase na ade-
sabilidade de propor, organizar e gerir os eventos culturais do são de novos membros a fim de fortalecer o trabalho associativo
Club Brasil, café musical e ponto de encontro do evento. e a inclusão de novas ideias e projetos. A iniciativa foi de grande
A realização de cerca de 50 manifestações artísticas com ar- sucesso e resultou na adesão de vários atores sociais munidos de
tistas brasileiros residentes na Europa (música, dança, artesana- bons projetos e interesse na participação ativa, como, por exemplo,
52
presenças brasileiras na bélgica
Camélia Prado, educadora da área de Saúde Pública, Thierry Van projetos concretos como a Ciranda de Palavras, Rede Eco-Mix e
Schuylenbergh, terapeuta bioenergético, Philippe Quevauviller, “Pérolas do Mundo”, que têm como objetivo comum fortalecer o
professor/músico, Grazielle Furtado e Ricardo Ambrósio, bailari- senso de solidariedade e cooperação da comunidade, que expressa
nos contemporâneos, Paola Depienne, educadora/coaching, José seus valores e saberes, mantendo viva a identidade e diversidade
Álvaro e Matheus Groove, músicos, Dudu e Christiane, voluntá- cultural brasileiras.
rios, entre vários outros. Concluindo, a Associação Arte N’Ativa está envolvida na luta
Atualmente, a organização conta com mais de 20 associados pela construção de uma cidadania criativa e planetária, tendo a
e continua na promoção da arte e da cultura popular brasileiras, arte como instrumento de integração e transformação social.
realizando projetos como “Samba dos Amigos”, Via MPB, I Roda
de Choro de Bruxelas, Forrobodó, além da promoção de artistas Construção de redes e parcerias
brasileiros que estão ou que estiveram apenas de passagem pela
Europa, como a cantora/compositora Déa Trancoso, o maestro É importante dizer que a Fundação Roi Baudouin (FRB) foi
percussionista Caíto Marcondes e o músico pesquisador Alfredo uma parceira fundamental em nossa trajetória associativa, pois ti-
Belo DJ Tudo. vemos dois projetos aprovados pelo Edital da fundação “Migran-
Assim, há mais de três anos atuando de forma ativa e gregária, tes: atores da solidariedade”. Outros parceiros são o IC Brussel
a Associação Arte N’Ativa – cuja “semente nativa” traz em seu (Comitê Internacional de Bruxelas); Wervel (Grupo de Trabalho
cerne os ideais de inclusão e participação – vem crescendo e se por uma agricultura justa e sustentável); o Citizens Vorming Plus
desenvolvendo a cada dia, e funcionando como uma incubadora (ONG que trabalha com fomação para uma cidadania intercul-
de sonhos, que identifica e valoriza o potencial criativo da comu- tural em Bruxelas); o centro cultural Piano Fabriek; a associação
nidade através de seus membros, que são profissionais de diversas Terra Brasil, e a Associação Abraço.
áreas e cujos sonhos, ideias e projetos são acolhidos, compartilha-
dos e realizados. Isabel Duarte De Lannoy é formada em Comunicação Social pela
A Associação aglutina experiências possibilitando aos artistas, Universidade Federal da Paraíba – UFPB e possui pós-graduação em
trabalhadores sociais e profissionais liberais novas oportunidades Cooperação ao Desenvolvimento pela Universidade Livre de Bruxe-
de ações inter e multiculturais. A título de ilustração temos alguns las – ULB; é fundadora e atual presidente da ASBL Arte N’Ativa.
Bibliografia sobre emigração brasileira ria, 1974, L, p. 653-692; Willy Legros e Paul Pirotte. ‘L’Electrotechnique’. Apports de
Liège au progrès des sciences et des techniques. Liège, 1981, p. 371-384; Philippe Tomsin,
Os Brasileiros de Torna-Viagem no Noroeste de Portugal. Catálogo Exposição Comis- ‘L’Institut Electrotechnique Montefiore à l’Université de Liège, des origines à la seconde
são Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa, 2000; guerre mondiale’. Laurence Badel (ed.), La naissance de l’ingénieur-électricien. Origine
Maxine Margolis. Goodbye, Brazil: Emigres from the Land of Soccer and Samba. Madi et développement des formations nationales électrotechnique. Actes du 3e Congrès sur
son, 2013. l’Histoire de l’Electricité organisé par l’Association pour l’Histoire de l’Electricité en
France (décembre 1994), Paris, 1997, p. 221-232; Christine Fellin. Etude d’une popu-
Sobre presenças brasileiras na Bélgica lation: les étudiants latino-américains inscrits à l’Université de Liège entre 1870 et 1914.
Gilberto Amado. Mocidade no Rio e Primeira Viagem à Europa. Rio de Janeiro, 1956; J. C. Trabalho de licenciatura em História, Université de Liège, 2009-2010.
Andrade Muricy. O símbolo à sombra das araucárias (Memórias). Rio de Janeiro, 1976;
Condessa do Barral. Cartas às suas Majestades. Rio de Janeiro, 1977; Anne Quataert. Sobre os trabalhadores brasileiros na Bélgica
‘Maeterlinck, Rodenbach au Brésil. Quelques pistes’. Revue de littérature comparée, G. de O. Assis. ‘Os novos fluxos da população brasileira e as transformações nas relações
2001, 229, p. 463-470; Luis Afonso Salturi. Gerações de artistas plásticos e suas práticas: de gênero’. Anais II Encontro Nacional sobre Migração, Ouro Preto, 1999; S. Castles.
sociologia da arte paranaense das primeiras décadas do século XX. Curitiba, Doutorado ‘Migration and Community Formation under Conditions of Globalization’. Interna-
UFPR, 2011; Alvim Corrêa. Pinturas e desenhos. Catálogo Exposição Museu de Arte tional Migration Review, 36 (4), 2002; A. R. Hochschild. ‘Global Care Chains and
Moderna, ed. José Roberto Teixeira Leite. Rio de Janeiro, 1973; Alexandre Eulálio. Hen- Emotional Surplus Value’. Giddens A. & Hutton W. (eds.), On the Edge: Living with
rique Alvim Corrêa: guerra e paz. Cotidiano e imaginário na obra de um pintor brasileiro Global Capitalism. Londres, Jonathan Cape, 2000; OIM. Assessment of Brazilian Mi-
no 1900 europeu. Rio de Janeiro, Fund. Casa Rui Barbosa, 1981; Henrique Alvim Corrêa. gration Patterns and Assisted Voluntary Return Programme from Selected European
Cenas da vida militar. Catálogo Exposição Museu Nacional de Belas Artes, ed. Pedro Member States to Brazil, 2009; B. Padilla. ‘A imigrante brasileira em Portugal: con-
Xexéo. Rio de Janeiro, 1990; Maria Stella Teixeira de Barros. Henrique Alvim Corrêa: siderando o gênero na análise’; Malheiros J. M., Imigração brasileira em Portugal. Lis-
correspondências e afinidades. São Paulo, Mestrado USP, 1996. boa, 2007; B. Padilla e J. Peixoto. ‘Latin American Immigration to Southern Europe’.
Migration Information Source, Washington, Migration Policy Institute, 2007; Poch-
Sobre os estudantes brasileiros mann M. ‘A volta da mobilidade social’. Folha de S.Paulo, 18/12/2009; M. Rosenfeld
Darrell E. Levi. A família Prado. São Paulo, 1977; Mario Baeck. Eenkostschool met klasse. & al. ‘Immigration brésilienne en Europe. Dimension transnationale’. Hommes et
Het Instituut van de Ursulinen in Onze-Lieve-Vrouw-Waver centrum van katholiekemo- Migrations, 1.281, 2009; SIRS, Données statistiques agrégées des Inspections sociales
derniteit, Antuérpia/Gand, 2011; Mario Baeck. Le jardin d’hiver de L’Institut des Ur- fédérales et régionales concernant l’occupation de travailleurs étrangers et la traite des
sulines à Wavre-Notre-Dame, O.-L.-V.-Waver, 1993; Carmen Lúcia Oliveira. Flores raras êtres humains 2007-2010, 2011; R. Waldinger. ‘The Making of an Immigrant Niche’.
e banalíssimas: a história de Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop. Rio de Janeiro, International Migration Review, 28, 01, 1994; B. Padilla e J. Peixoto. ‘Latin Ameri-
1995. Filme de Bruno Barreto, 2013; Anaïs Willmar. Souvenirs de Bruxelles. Bruxelas, can Immigration to Southern Europe’. Migration Information Source, Washington,
1862; Eddy Stols. ‘Les étudiants brésiliens en Belgique (1817-1914)’. Revista de Histó- Migration Policy Institute, 2007.
53
parte 1 – travessias e migrações
54
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
parte 2
Relações Oficiais
e Diplomáticas
55
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
56
A diplomacia brasileira perante o potencial e as pretensões belgas
Pa u l o R o b e r t o d e A l m e i d a
57
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
58
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Carro utilizado pelo Rei Alberto I, da Bélgica, em sua visita ao Brasil em 1920. Construído nas oficinas do Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. O autor do projeto art
nouveau do carro não foi identificado.
burguês (Pesavento, 1997). O engajamento do Brasil nesse tipo O desenvolvimento das relações nos últimos
de empreendimento se deveu em grande medida a diplomatas cem anos
brasileiros, a exemplo de Brazílio Itiberê da Cunha, ministro em
Bruxelas e grande entusiasta dos congressos de “expansão econô- No curso do século 20, o Brasil continuou a marcar sua presen-
mica”, tal como ele havia visto e participado em Gand, no início ça político-diplomática na Bélgica, pela participação, por exem-
do século (Cunha, 1907). plo, em feiras e exposições universais organizadas no reino, bem
O auge do bom relacionamento diplomático ficou claramen- como no terreno econômico, pela organização de mostras espe-
te evidenciado pela visita de alto nível, inédita, de um soberano ciais de seu esforço de expansão comercial – como a “Brasil Ex-
europeu, feita ao Brasil em 1920 pelo Rei Alberto I, cuja comitiva port”, de 1973, perturbada pelas manifestações contra a ditadura
deslocou-se inclusive ao Estado do Presidente Artur Bernardes, militar – e pela instalação de companhias brasileiras em sua ca-
Minas Gerais, visita da qual resultou justamente a criação da pital, entre elas a grande exportadora de minério de ferro, Vale
Companhia Belgo-Mineira (aliás, belgo-luxemburguesa) no ano do Rio Doce. A Companhia Belgo-Mineira, por sua vez, sempre
seguinte (Stols, 2013). O convite formal para a visita de Estado representou bem mais do que uma simples siderúrgica – setor no
tinha sido formulado pelo delegado do Brasil na conferência de qual, aliás, ela colocou o Brasil à frente de todos os outros países
Versalhes, Epitácio Pessoa, no contexto da enorme popularida- latino-americanos – e soube se integrar perfeitamente à paisagem
de do “rei-soldado” que tinha despertado a admiração de todos mineira e à economia brasileira em seu esforço de industrializa-
os brasileiros por sua corajosa participação na resistência militar ção, sem descuidar das atividades culturais e esportivas.
do exército belga contra a ofensiva alemã na Primeira Guerra Trata-se de uma das mais longas relações diplomáticas manti-
Mundial (Baptista, 2008). das bilateralmente pelo Brasil de forma ininterrupta desde a cria-
59
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
ção do reino – à exceção de pequeno período de ausência física BAPTISTA, Paulo Francisco Donadio. “Tem Rei no Mar”, Revista de História da Biblio-
durante a Segunda Guerra Mundial, sem que isso, porém, signifi- teca Nacional, n. 34, julho 2008. Disponível em: <http://www.revistadehistoria.com.
br/secao/artigos/tem-rei-no-mar>.
casse rompimento diplomático –, numa interação que alimentou, CUNHA, Brazílio Itiberê da. Expansão Econômica Mundial. Rio de Janeiro: Imprensa
igualmente, um dos mais profícuos exemplos de cooperação cul- Nacional, 1907.
tural e educacional em benefício do Brasil: milhares de estudantes GARCIA, Domingos Sávio da Cunha. Território e negócios na “Era dos Impérios”: os belgas
na fronteira Oeste do Brasil. Brasília: Funag, 2009.
brasileiros, em todas as épocas, formaram-se no terceiro ciclo e/ou ONODY, Oliver, “Quelques Aspects Historiques des Capitaux Étrangers au Brésil”. In:
aperfeiçoaram-se cientificamente nas mais diversas instituições su- Colloques Internationaux du Centre National de la Recherche Scientifique, n. 543,
periores da Bélgica, o que também confirma o argumento que ini- L’Histoire Quantitative du Brésil de 1800 a 1930. Paris: Éditions du Centre National
de la Recherche Scientifique, 1973, p. 269-314.
ciou este pequeno ensaio: a despeito de ser um país relativamente PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições Universais: espetáculos da modernidade do século
pequeno, a Bélgica ocupa um peso e uma importância despropor- XIX. São Paulo: Hucitec, 1997.
cionais no processo de modernização econômica brasileira e na PONTHOZ, Comte Auguste Van der Straten. Le Budget du Brésil ou recherches sur les
ressources de cet Empire dans leurs rapports avec les intérêts européens du commerce
sua presença político-diplomática, educacional e cultural mundial. et de l’émigration. Bruxelles: Librairie Muquardt, 1854, 3 vols.; 1. ed.: 1847 (cópia
digital disponível na Bayerische StaatsBibliothek. Disponível em: <http://reader.di-
Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais pela Uni- gitale-sammlungen.de/resolve/display/bsb10310302.html>. STOLS, Eddy, “Présen-
ce et activités diplomatiques de l’Empire du Brésil dans le Royaume de Belgique
versidade Livre de Bruxelas (1984); Mestre em Planejamento Econô- (1830-1889)”. In: MATTOSO, Katia de Queirós; DOS SANTOS, Idelette Muzart-
mico pelo Colégio dos Países em Desenvolvimento da Universidade Fonseca; ROLLAND, Denis (orgs.). Le Brésil, l’Europe et les équilibres internatio-
do Estado de Antuérpia (1977); Bacharel em Ciências Sociais pela naux XVIe-XXe siècles. Paris: Presses Universitaires de France, Centre d’Études sur
le Brésil, 1999, p. 209-245.
Universidade Livre de Bruxelas (1975); diplomata de carreira desde STOLS, Eddy. “Les Belges au Mato Grosso et en Amazonie, ou la récidive de l’aventure
1977; professor nos programas de Mestrado e Doutorado em Direito congolaise”. In: DUMOULIN, Michel; STOLS, Eddy (orgs.). La Belgique et l’étran-
do Centro Universitário de Brasília (Uniceub); autor de diversas obras ger au XIXe et XXe siècles. Louvain-La-Neuve:Collège Érasme; Éditions Nauwelaerts,
1987, p. 77-112.
de Relações Internacionais, especialmente na vertente econômica, so- STOLS, Eddy. “Les Investissements Belges au Brésil (1830-1914)”. In: Colloques Interna-
bre a integração regional e de história diplomática brasileira; página tionaux du Centre National de la Recherche Scientifique, n. 543, L’Histoire Quanti-
pessoal: www.pralmeida.org. tative du Brésil de 1800 a 1930. Paris: Éditions du Centre National de la Recherche
Scientifique, 1973, p. 259-267.
STOLS, Eddy. “Présences belges et luxemburgeoises dans la modernisation et l’industria-
Referências lisation du Brésil”. In DE PRINS, Bart; STOLS, Eddy; VERBERCKMOES, Johan
(orgs.). Brasil, Cultures et Economies de Quatre Continents. Lovaina, Acco, 2001,
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações p. 121-164.
econômicas internacionais no Império. 2. ed.; São Paulo/Brasília: Senac-SP/Funag,
2005.
60
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
61
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Gabriel Auguste Van der Straten Ponthoz Ele via com muita clareza o fenômeno do expansionismo
(14/09/1812 – 23/02/1900) americano e foi crítico em relação a certos aspectos da realidade
norte-americana. Tais posições são devidas, provavelmente, à sua
O conde Ponthoz foi o sucessor de Jaegher como representan- permanência durante certo tempo nos Estados Unidos. Foi o úni-
te diplomático belga no Brasil. Entrou na diplomacia em 1838, co dos representantes belgas no Brasil que atribuiu a uma causa
inicialmente junto à legação belga em Estocolmo, da qual se tor- econômica as rebeliões que sacudiram o País entre 1831 e 1849.
nou Segundo Secretário em 1839. Em 1840 foi transferido para Afirma ele em carta de 26/2/1849 que “[...] a população das
Washington, sendo promovido a Primeiro Secretário. províncias não cessa de girar num círculo de desordens que são pro-
Representou a Bélgica no Brasil entre outubro de 1845 – sua duzidas pela falta de atividades econômicas das quais essas desor-
primeira carta do Rio é de 22/10/1845 – e 1849 – sua última carta dens impedem todo impulso”. Ponthoz esteve longe da obsessão de
foi escrita em 14/04/1849. Jaegher em relação à permanência e consolidação da monarquia
Ponthoz esperou a chegada de seu substituto, J. Lannoy, antes brasileira. Assim, ele viu de maneira realista um possível desmem-
de regressar a seu país, apresentando-o ao corpo diplomático e às bramento do Sudoeste brasileiro do resto do País, contando com
mais influentes personalidades do País. Lannoy afirmou que seu a emigração europeia para apoiar os interesses da Europa no caso
antecessor havia estabelecido excelentes relações, sendo tido em da concretização da hipótese.
alta consideração no Rio de Janeiro. Interessante é sua ideia de que os fatores pessoais dominavam
Ponthoz foi nomeado em seguida para Lisboa (1848), como no Brasil os negócios do Estado, chamando a atenção para um
encarregado de negócios. Em 1853 foi designado para ocupar fenômeno realmente importante da história brasileira.
as mesmas funções em Madri, sendo elevado em 1850 à catego- O diplomata deixou uma análise bastante clara dos partidos
ria de enviado extraordinário e ministro plenipotenciário. Nessa políticos do Império. Em carta de 7/10/1848, ele traçou a origem
última qualidade esteve sucessivamente em Munique (1867) e dos dois partidos do Brasil monárquico:
Haia (1881). “A influência que trouxe a independência do Império em 1822
Durante sua permanência em Haia, participou como ple- e a abdicação de D. Pedro I em 1831 exagerando suas doutrinas,
nipotenciário belga da Conferência Africana (15/11/1884 a deveria chegar por novas agitações a uma organização republicana.
26/02/1885). Então se organiza um partido conservador que empreendeu salvar a
Teve participação ativa: “Oficialmente ou nos bastidores, nossos ordem e as instituições, enquanto que um outro partido saía da revo-
delegados desenvolveram neste momento uma incessante atividade lução e da democracia para se reunir à monarquia ao mesmo tem-
para obter o reconhecimento por todos do novo Estado Independen- po em que prosseguia o desenvolvimento das instituições liberais.”
te do Congo. Eles foram vitoriosos”. É o que afirma a Biographie Ponthoz mostrou em 27/9/1847 quais eram esses partidos e
Coloniale Belge, t. V, col. 779. suas características:
Ponthoz foi colocado em disponibilidade a seu pedido e apo- “[...] dois partidos principais dividem o Brasil. Eles se chamam
sentado em 1888, retirando-se ao castelo de Ponthoz onde dedicou Saquarema e Santa Luzia nomes de localidades assinaladas por
seu tempo livre à redação de suas memórias. Anteriormente, em perturbações políticas do Império; nós os conservaremos para preve-
plena atividade profissional, escrevera dois livros: Pesquisas sobre nir assimilações inexatas. Os Saquarema invocam o princípio mo-
a situação dos emigrantes nos Estados Unidos (Bruxelas, 1846) nárquico como base de toda organização política. Os Santa Luzia
e O orçamento do Brasil (3 vols., Bruxelas, 1845). O título com- invocam o princípio das instituições liberais regularizadas e desen-
pleto da obra é: Le budget du Brésil, ou recherches sur les ressour- volvidas sob os auspícios da monarquia. Esses dois partidos se acu-
ces de cetempire dans leurs rapports avec les intérêts du européens sam mutuamente de tendências despóticas pelo exagero das medi-
du commerce et de l’émigration. Como é demonstrado pelo título das de ordem e anárquicas pelo exagero das medidas de progresso.”
mesmo de suas obras, Ponthoz dedicou atenção especial ao te-
ma da emigração, esboçando, numa de suas cartas ao ministro Mílton Carlos Costa é graduado em História pela Universidade
de Relações Exteriores da Bélgica (2/12/1845), uma “teoria” da Católica de Lovaina, Doutor em História Social pela Universidade
emigração europeia para a América do Sul. Ele atribui a ela uma de São Paulo, Livre-Docente em Introdução aos Estudos Históricos
função estratégica na defesa dos interesses econômicos e políticos pela Universidade do Estado de São Paulo (Unesp)- campus de As-
da Europa industrializada. sis, professor e pesquisador de História do Brasil e Historiografia na
Ponthoz combinava seu realismo com um certo visionarismo, Unesp-Assis.
presente nas perspectivas otimistas que visualizava para a emi-
gração europeia em direção aos países sul-americanos e em seu Referência
plano de libertação do Brasil de sua dependência financeira em COSTA, Milton Carlos. Visões políticas do Império. Diplomatas belgas no Brasil (1834-
relação à Inglaterra. 1864). São Paulo: Annablume, 2011.
62
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
63
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
a publicação de artigos sobre o Brasil na imprensa belga, como o na Sorbonne, Lima deu início, em 15 de março de 1911, a um
do Etoile Belge (25/1/1909) sobre o Estado de Pernambuco e sua curso sobre Formation historique de la nacionalité brésilienne no
indústria açucareira (cf. Gouvêa, 1976, pp. 669-814). anfiteatro Turgot da Faculdade de Letras.
Lima foi adepto da diplomacia econômica, à época também De outubro a dezembro de 1909 Lima esteve em Estocolmo,
designada por diplomacia moderna, no entendimento de que o na qualidade de ministro, para restabelecer a representação diplo-
alargamento das relações mercantis solucionaria os problemas mática brasileira junto ao governo da Suécia, com o qual negociou
econômicos nacionais. A diplomacia do século XX, dizia, seria um convênio de arbitramento. De volta a Bruxelas, em março de
“muito mais comercial do que política”. Ao pedir a “republicani- 1910, tomou parte na inauguração do Pavilhão Brasileiro na ex-
zação” da diplomacia do Brasil, opinou que sua “tarefa capital, posição mundial. Na oportunidade, Lima promoveu concerto de
além da promoção da inteligência política” seria promover a ex- gala, com execução de trechos de composições de maestros brasi-
pansão econômica. Lima reiteraria, em 1927, que “os interesses do leiros, como Carlos Gomes, Manoel Joaquim de Macedo, Alberto
Brasil, uma vez descrito e fechado o círculo das nossas fronteiras, Nepomuceno e o violinista Francisco Chiaffitelli.
são sobretudo econômicos” (Apud Gouvêa, p. 569, 797, 806, 1635; O momento mais destacado da diplomacia cultural de Oli-
Almeida, p. 258-60). veira Lima foi a soirée de 4 de abril de 1910, promovida pela So-
A concepção de diplomacia econômica completava-se em Oli- cieté Royale Belge de Geographie, no Théâtre de la Monnaie, em
veira Lima com o exercício de bem sucedida diplomacia cultural Bruxelas, quando palestrou, na presença do novo rei, Alberto I
na Bélgica, país que ocupava posição privilegiada na Europa co- (1875-1934), sobre La conquête du Brésil. No decorrer da expo-
mo centro econômico e intelectual, o que lhe permitia divulgar os sição foram insertos trechos musicais de autores brasileiros e, ao
valores culturais e as possibilidades do Brasil por meio de artigos final, executaram-se uma suíte de Alberto Nepomuceno, a com-
em jornais, revistas e conferências. Começou pela Universidade posição do Padre José Maurício (Est incarnatus est), e Tiradentes,
de Lovaina, onde pronunciou palestras sobre La langue portu- de Manoel Joaquim de Macedo. A festa foi encerrada com a exe-
gaise e La littérature brésilienne em 15 e 18 de janeiro de 1909. cução dos hinos nacionais brasileiro e belga (La Brabançonne).
Teve êxito, também, ao criar, às suas expensas, um curso gratuito O Etoile Belge noticiou o evento (Fleiuss: 1937, p. 276; Gouvêa,
de português. Embora não tenha resultado de ação direta da le- pp. 815-941).
gação, Lima inaugurou a Câmara de Comércio Belgo-Brasileira, Lima, aborrecido com o rumo que tomava sua carreira, pediu
a primeira desta natureza criada pelo Brasil na Europa, associan- aposentadoria. O sucessor imediato de Rio Branco no Ministério
do-se ao empreendimento de Afonso Toledo Bandeira de Melo e das Relações Exteriores, Lauro Müller, para mantê-lo no quadro,
do Comissariado de São Paulo na Exposição Universal (Gouvêa, não deu andamento a seu pedido e para que refletisse antes de
p. 814-5, 906-7, 951-3). consumar uma decisão definitiva sugeriu-lhe uma licença, por ele
Bruxelas facilitava-lhe estabelecer contatos com universida- aproveitada para ministrar conferências a partir de 1o de outubro
des e participar de reuniões científicas realizadas na Europa na de 1912 na Califórnia (EUA).
qualidade de representante do Brasil. Assim, compareceu ao 16º Rio Branco, provavelmente por respeitar os talentosos, foi pa-
Congresso Internacional de Americanistas em Viena (9 a 14 set. ciente e tolerante com as insolências de Oliveira Lima, cujas po-
1908), ao 9º Congresso Geográfico em Genebra (27 jul. a 6 ago. sições chegaram a repercutir no legislativo federal, o que levou
1908), para o qual preparou a tese Le Brésil, sés limites, sés voies de o deputado Dunshee de Abranches a fazer a defesa do ministro
pénétration. As sessões de geografia econômica foram presididas das Relações Exteriores na Câmara (Abranches, v. 2, p. 137-202).
pelo grande Vidal de La Blache. No congresso de americanistas, Falecido Rio Branco (fevereiro de 1912), a situação funcional de
Lima apresentou moção, aprovada por unanimidade, propondo seu crítico só piorou. Müller não teve autonomia e força suficien-
que nos futuros congressos o português fosse incluído entre as tes para barrar injunções políticas sobre o Ministério e, assim, o
línguas admitidas, como já o eram o francês, o inglês, o alemão, jornalista-diplomata, em razão de seu destempero verbal e de sua
o espanhol e o italiano. pena afiada, não teve a nomeação para a legação de Londres, sua
Em março de 1909 Rio Branco consultou Lima, estimando antiga aspiração, referendada pelo Senado (Gouvêa, p. 949-50).
uma resposta positiva, sobre o interesse em representar o Brasil no Aborrecido, reiterou seu pedido de aposentadoria, ocorrida em
Congresso Internacional de História Musical a reunir-se em Viena 27 de agosto de 1913. Em 8 de março de 1914 embarcou em Re-
nas festas do centenário de Haydn, e redigir “breve mas substan- cife com direção a Londres, cidade em que iria estabelecer nova
cial notícia histórica [da] música no Brasil”. Rio Branco sugeriu o residência. Passou antes por Bruxelas, onde foi homenageado, de
material a ser usado, remetendo-o juntamente com outros textos surpresa, pelos amigos belgas e brasileiros com uma soirée em 22
pedidos por Lima, com os quais preparou sua participação e fez de abril (Gouvêa, p. 1.181). Em Londres, durante a guerra foi
executar trechos de compositores brasileiros, como o clássico José acusado de ter simpatias pela Alemanha.
Maurício. Fez, também, alusão às modinhas e lundus. Antes de ir Apesar dos riscos de uma travessia marítima no Atlântico nor-
para Viena, Lima foi a Paris para a festa franco-brasileira, promo- te em razão do conflito mundial, viajou para os Estados Unidos
vida pela União Latina na Sorbonne, onde fez conferência, em em outubro de 1915 a fim de proferir uma série de palestras so-
francês impecável, sobre Machado de Assis et son oeuvre. Ainda bre história e economia da América Latina na Universidade de
64
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Harvard, a convite intermediado pelo Embaixador norte-ameri- Nadou contra a corrente, também, ao posicionar-se contraria-
cano no Rio de Janeiro, Edwin Morgan. Depois de um semestre mente ao alinhamento diplomático do Brasil aos Estados Unidos,
naquela universidade, tentou voltar à Inglaterra, mas sem sucesso inaugurado pela República. Neste ponto divergiu de seu ex-amigo
por ter sido incluído na black list das personalidades impedidas Joaquim Nabuco, então embaixador do Brasil em Washington,
de entrar no país. um sonhador como outros norte-americanistas brasileiros, iludidos
Em julho de 1918 Lima chegou a Buenos Aires a convite do com eventual apoio norte-americano contra “imaginadas absor-
Instituto Popular de Conferências, presidido por Estanisláo Ze- ções europeias” ou “aventuras belicosas dentro do continente” (Cf. e
ballos (Gouvêa, p. 1.311, 1.459). Permaneceu sete meses na Ar- apud Gouvêa, p. 738). Apesar de crítico, neste aspecto concordou
gentina, conhecendo o país e proferindo conferências em várias com Rio Branco, pois este cultivou a amizade norte-americana,
instituições. Em agosto de 1920 embarcou no Avaré, em Recife, em mas com ressalvas e nuances. Lima, coerentemente, aplaudiu o
direção aos Estados Unidos, onde fixaria sua derradeira residência. discurso do Chanceler na abertura da 3ª Conferência Internacio-
Ainda viajaria em 1923 para a Alemanha, para tratamento de saúde, nal Americana (Rio de Janeiro, 1906), na presença do Secretário
e Portugal, onde proferiu conferências, uma delas na Faculdade de de Estado norte-americano Elihu Root, sobretudo pela ênfase na
Letras por ocasião da inauguração da Cadeira de Estudos Brasilei- relevância da Europa para o Brasil, que recebia seus capitais e
ros. De volta a Washington, em 10 de janeiro de 1924 começou a braços para a lavoura.
reger a cadeira de Direito Internacional na Universidade Católica. Oliveira Lima faleceu em Washington em março de 1928,
Oliveira Lima foi adequadamente caracterizado por seu con- sentindo-se, segundo suas próprias palavras, escorraçado de seu
terrâneo Gilberto Freire como nosso Dom Quixote Gordo (Veja- próprio país, que não soubera lhe aproveitar o talento. Doou sua
-se Almeida, 2002, p. 234). Homem de pensamento original que extensa biblioteca (que leva seu nome) à Universidade Católica
não tinha receio de expor e defender suas ideias, mesmo quando das Américas, em Washington, inaugurada em 1924 e organizada,
contrariavam, o que normalmente ocorria, correntes de pensa- conforme sonhara, como centro de estudos brasileiros, portugue-
mento em voga. Destemido e sem fazer concessões, sobretudo ses e hispano-americanos. Atendendo ao que dispôs em seu testa-
em questões de princípio, não raro surpreendia a quem acom- mento, seus restos repousam na capital norte-americana.
panhasse os caminhos do seu pensamento, como, por exemplo,
quando divergiu das posições de Rui Barbosa, a quem admirava, Referências
expostas no discurso, de ampla repercussão, inclusive no exterior, ABRANCHES, Dunshee de. Rio Branco e a política exterior do Brasil (1902-1912). Rio de
que fez em Buenos Aires (14 jul. 1916) favoráveis aos Aliados na Janeiro: Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil, 1945, 2 v.
Grande Guerra (1914-18). Fiel ao seu pacifismo, Lima defendeu ALMEIDA, Paulo Roberto de. “O Barão do Rio Branco e Oliveira Lima – vidas paralelas,
itinerários divergentes”. In: CARDIM, Carlos Henrique & ALMINO, João (orgs.).
a neutralidade brasileira. Rio Branco, a América do Sul e a modernização do Brasil. Pref. de Fernando Henrique
Outra polêmica, que acabou lhe custando o posto na diploma- Cardoso. Rio de Janeiro: EMC, 2002, p. 233-278.
cia por conta de seu brio e amor próprio feridos, foi sua manifes- CORRÊA, Luiz Felipe de. “Semblanza biografica del autor”. In: LIMA, Manuel de Oli-
veira. En la Argentina. Buenos Aires: Editorial Centro de Estudios Unión para la
ta simpatia pela monarquia. Apesar de republicano desde moço, Nueva Mayoría, 1998.
interpreta-se que Lima, após sua estada em Caracas à época da FLEIUSS, Max, Conferência no Instituto Histórico e Geográfico a 23 de maio de 1928.
presidência de Cipriano Castro, viu de perto os males que o cau- In: LIMA, Oliveira. Memórias (Estas minhas reminiscências...). Rio de Janeiro: José
Olympio, 1937, p. 263-283.
dilhismo fazia à América Latina, constatação que, somada ao que GOUVÊA, Fernando da Cruz. Oliveira Lima, uma biografia. Pref. de Barbosa Lima So-
observava no seu próprio país, onde políticos da jovem república brinho. Recife: Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, 1976.
lambuzavam-se no poder, provocou-lhe o desencanto com o novo 3 vol.
LIMA, Oliveira. Memórias (Estas minhas reminiscências...). Rio de Janeiro: José Olym-
regime, a partir do que passou a vislumbrar aspectos positivos nos pio, 1937.
regimes monárquicos, destacando que não eram antinômicos à MALATIAN, Tereza. Oliveira Lima e a construção do nacionalismo. Bauru, SP: Edusc;
democracia e se ajustavam bem às correntes socialistas então em São Paulo, SP: Fapesp, 2001.
65
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
A empresa agroindustrial de Descalvados foi adquirida em 1895 pela Compagnie des Produits Cibils, constituída em Antuérpia.
nias e protetorados das principais potências europeias da época. da Bolívia, era controlada por estados fracos ou fragilizados, cuja
Concluído o domínio sobre sua colônia africana, Leopoldo presença nessa região era praticamente inexistente. Dessa forma,
II e sua entourage passaram a procurar outra região do mundo poderiam reaparecer ali as condições para que os belgas, liderados
onde pudessem repetir esse feito e alcançar os lucros advindos do por Leopoldo II, pudessem repetir o seu feito africano, se as condi-
comércio com produtos de origem extrativa ou produzidos com ções da geopolítica internacional o permitissem. E os belgas não
matérias-primas não encontradas na Europa. Para isso procura- esperaram surgir essas condições; trabalharam para isso.
vam uma região com características políticas semelhantes àque- A compra da empresa agroindustrial de Descalvados, efetuada
las encontradas na África quando iniciou sua operação naquele em 1895 pela Compagnie des Produits Cibils, constituída em An-
continente: territórios ricos em produtos extrativos com grande tuérpia com o fim último de comprar aquele empreendimento,
procura nos mercados centrais; populações nativas fragilmente não foi, portanto, uma ação isolada. A fábrica foi comprada da fa-
organizadas, tendo como decorrência a inexistência de fronteiras mília de Jaime Cibils Buxaréo, um industrial uruguaio de origem
entre Estados demarcadas e reconhecidas internacionalmente; ter- catalã, que já operava no ramo de produção de derivados de carne
ritórios disputados por potências europeias, a partir dos interesses e havia construído a fábrica no início da década de 1880.
da geopolítica europeia. Descalvados era uma fábrica de extrato de carne estrategica-
Naquele momento, a região Central da América do Sul se mente localizada na fronteira do Brasil com a Bolívia, em pleno
abria para a exploração mercantil, notadamente com o crescente Pantanal, a maior planície alagada do mundo, possuindo uma área
processo de extração de borracha da seringueira, cujo consumo de um milhão de hectares. A Cibils ainda comprou, em 1899, a
aumentava no mercado internacional. O aumento do consumo es- fazenda São José, com área de 500 mil hectares, também locali-
timulava a abertura de novas frentes extrativas, que avançavam para zada no Pantanal e contígua a Descalvados em sua parte sul, per-
regiões até então pouco atraentes para aquela atividade econômica. fazendo uma área total de mais de um milhão e quinhentos mil
A América do Sul, ao longo do século XIX, era reconhecida- hectares ou 15 mil quilômetros quadrados.
mente uma área de influência da Inglaterra. No entanto, na me- Nos campos de Descalvados e da São José havia um rebanho
dida em que se aproximava o fim desse século, vimos desenvolver com cerca de 340 mil cabeças de gado bovino, a matéria-prima
a força econômica, política e militar dos Estados Unidos, que para a fábrica, que produzia principalmente extrato de carne, deri-
assumiram a condição de potência global com a vitoriosa guerra vados de carne em conserva e couros tratados, produtos que eram
contra a Espanha em 1898. remetidos para o mercado europeu, onde eram bastante aprecia-
Portanto, quando os belgas decidiram iniciar a sua nova fren- dos. Possuía máquinas a vapor (produzidas na Bélgica), que acio-
te de atividades no coração da América do Sul, com métodos e navam uma usina de eletricidade, a serraria, bombas de água e
objetivos semelhantes àqueles desenvolvidos na África, o fizeram permitia à fábrica ter a sua própria produção de embalagens de fo-
no momento em que a geopolítica internacional passava por mu- lhas de flandres, para acondicionar seus produtos para exportação.
danças importantes. Os produtos da fábrica de Descalvados, principalmente o ex-
Mas nada estava decidido e a região central da América do trato de carne, eram famosos na Europa, onde ganharam prêmios
Sul, rica em borracha e em campos de criação de gado vacum, de de qualidade e onde eram oferecidos através de propagandas fei-
difícil acesso e longe dos centros de decisão, localizados no lito- tas por postais com imagens do empreendimento localizado na
ral no caso do Brasil, e próximo à Cordilheira dos Andes, no caso fronteira Oeste do Brasil.
66
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Durante o período em que pertenceu a empresas belgas, o em- as operações na fronteira Oeste do Brasil: Compagnie des Caout-
preendimento era dirigido por gerentes belgas (o primeiro foi Fran- choucs du Matto Grosso, Syndicate de La Banque Africaine, Mer-
çois Joseph Van Dionant, que chegou a Descalvados em abril de cado, Ballivian & Companhia, La Brésilienne, Société Anonyme
1895) e mantido por mão de obra braçal formada por brasileiros, l’Abunã e a Comptoir Colonial Française Société Anonime. Eram
argentinos, paraguaios e bolivianos, além de um expressivo núme- empresas dedicadas principalmente à extração de borracha em
ro de indígenas dos grupos guató e bororo, que habitavam antigas afluentes da margem direita do Rio Amazonas, próximo à fron-
aldeias existentes na área do empreendimento e que usualmente teira com a Bolívia.
eram utilizados no difícil trabalho de manejo do gado bovino. A partir de 1901, a própria Compagnie des Produits Cibils tam-
Entre 1895 e 1897 a empresa rendeu dividendos aos seus só- bém passou a atuar na extração de borracha no Vale do Guaporé,
cios e se mostrou um investimento lucrativo. No entanto, em 1897 onde adquiriu três concessões do lado brasileiro desse rio que di-
um fato chama a atenção para os objetivos dos belgas na fronteira vide a fronteira do Brasil com a Bolívia. A partir dessas concessões,
Oeste do Brasil: a legação da Bélgica no Rio de Janeiro solicitou a borracha extraída pela Cibils era enviada a Descalvados e, de
do governo brasileiro a instalação de um consulado daquele país lá, para o exterior.
em Descalvados. Tal solicitação não foi atendida; o consulado foi Chama atenção a formação dessas empresas belgas que passa-
instalado em Corumbá e em Descalvados foi instalado um vice- ram a atuar na extração de borracha na fronteira Oeste, se juntan-
-consulado. O administrador do empreendimento, François Van do à Cibils, pois seus principais acionistas eram praticamente os
Dionant, se tornou também o vice-cônsul da Bélgica e uma ban- mesmos, se entrelaçando em diferentes composições acionárias.
deira belga passou a tremular em pleno Pantanal, na fronteira do Para ajudá-las em suas operações, as empresas belgas desloca-
Brasil com a Bolívia. ram para a fronteira Oeste do Brasil um conjunto de funcionários
Em 1898, procurando defender o rebanho bovino do roubo capacitados e experientes, alguns já treinados em operações co-
provocado por constantes investidas de ladrões provenientes da Bo- lonialistas, como Alexandre Delcomune, experiente auxiliar de
lívia, Van Dionant solicitou do governo do Estado de Mato Grosso Leopoldo II no Estado Independente do Congo, e José Cousin,
providências para coibir tais ações. Sem ter meios para atender à um geógrafo também experiente. Esses funcionários mapearam os
solicitação, o governo estadual autorizou os belgas a constituírem recursos naturais, fizeram trabalhos de reconhecimento dos rios e
uma força policial própria para conter esses ladrões, forças que das características físicas da região, sempre procurando atuar de
foram organizadas por antigos integrantes da Force Publique, que maneira discreta e sem chamar a atenção das autoridades locais.
Leopoldo II mantinha no seu Estado Independente do Congo, na O fato que estimulou o ânimo dos belgas na fronteira Oeste do
África. Daí em diante, os belgas passaram a ter em Descalvados Brasil foi a disputa pelo território do Acre entre a Bolívia e serin-
uma representação diplomática e uma força armada, dominando gueiros brasileiros que se instalaram na região, atraídos pela grande
um território de mais de 15 mil quilômetros quadrados. demanda por borracha no mercado internacional e pela grande
A partir de 1898 outras empresas organizadas por belgas na produção que essa região proporcionava, disputa na qual se entre-
Europa vieram se juntar à Compagnie des Produitis Cibils em su- laçaram os interesses de empresários norte-americanos influentes
67
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
e ingleses organizados no Bolivian Syndicate, cujo objetivo era o de fato da América Latina em área de influência exclusiva dos
arrendamento do território em disputa. Estados Unidos.
O eventual desenlace positivo para aquele sindicato poderia Esse novo cenário se combinou ainda com as primeiras no-
reabrir no coração da América do Sul uma corrida colonialista se- tícias sobre as atrocidades cometidas pelos funcionários das em-
melhante àquela ocorrida na África. Nesse caso, os belgas estariam presas ligadas a Leopoldo II no seu Estado privado na África. O
muito bem posicionados para ficarem novamente com a sua parte resultado desse cenário desanimou rapidamente os belgas em su-
na disputa, sempre explorando as debilidades dos Estados locais as operações na fronteira Oeste do Brasil e sua retirada da região
e as disputas entre as grandes potências. Foi com essa perspectiva foi tão rápida como a sua entrada. Em 1906, no setor agrícola e
que Leopoldo II também tentou controlar o Bolivian Syindicate. de extração vegetal praticamente só havia o empreendimento de
Não foi coincidência que justamente no período em que a Descalvados. Em 1911, o empreendimento que havia sido a porta
disputa pelo território do Acre alcançou o seu ápice, entre 1898 de entrada para os belgas na fronteira Oeste do Brasil também foi
e 1903, os belgas tenham se lançado na corrida por concessões a sua porta de saída, sendo vendido ao investidor norte-americano
de terras para extração de borracha na fronteira Oeste do Brasil. Percival Farquhar.
O círculo próximo de Leopoldo II operava combinando a ação
efetiva no território desejado com as articulações políticas que se Domingos Sávio da Cunha Garcia possui Mestrado em História
desenvolviam na Europa e nos Estados Unidos. Essa tática havia Econômica pela Universidade Estadual de Campinas e Doutorado
dado certo no caso africano e poderia dar certo novamente no ca- em Economia Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas.
so da América do Sul. É professor do Departamento de História da Universidade do Estado
No entanto, uma combinação de fatores bloqueou essa pers- de Mato Grosso desde 1995.
pectiva. A ação do governo brasileiro, principalmente após a as-
censão do Barão do Rio Branco ao cargo de Ministro das Relações Referências
Exteriores em fins de 1902, combinada com a ação militar dos GARCIA, Domingos Savio da Cunha. Os belgas na fronteira Oeste do Brasil. Brasília:
próprios seringueiros no Acre e, ainda, a decisiva mudança na po- Funag, 2009.
lítica externa dos Estados Unidos para a América Latina naquele KURGAN-VAN HENTENRYK, Ginette. Leopoldo II e a questão do Acre. In: Cadernos
do Centro de Documentação em História e Documentação Diplomática. Brasília: ano
período, mudaram o cenário da disputa. O seu resultado foi o fim 8, tomo II, vol. 14, p. 477-499, primeiro semestre, 2009.
do Bolivian Syndicate, a compra do território do Acre pelo Bra- STOLS, Eddy. O Brasil se defende da Europa: suas relações com a Bélgica (1830-1914). In:
sil, com a assinatura do Tratado de Petrópolis, e a transformação Boletin de Estúdios Latinoamericanos e del Caribe. Amsterdam: Centro de Estudios y
Documentación Latinoamericanos (CEDCA), n. 18, junio de 1975.
68
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
69
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
para o Rio de Janeiro. Lá trabalhou como auxiliar leigo nas favelas, Inspirada pelos Tupamaros do Uruguai, a guerrilha urbana ater-
como na paupérrima Bráz de Pina, mas ao mesmo tempo dava rorizava, no final dos anos de 1960, as grandes cidades brasileiras.
aulas na Universidade Santa Úrsula. Poderia considerar-se Detrez – que provavelmente nunca soltou
Detrez ocupava assim uma posição interessante: entrava em um tiro – como apenas uma nota de rodapé nesta história. Mas,
contato tanto com a cultura popular como com os meios intelec- encarado de maneira mais positiva, ele passa pelo menos por uma
tuais. Esta combinação determinou fortemente sua visão do Brasil, testemunha privilegiada dessa época perturbada. Assim manteve
que era contraditória. Sua atitude era em primeiro lugar de índole uma amizade calorosa com Frei Betto, ainda antes de sua entrada
muito trabalhista. Não gostava nem um pouco da mundana Co- no convento e de tornar-se um influente teólogo da libertação.
pacabana, mesmo esta se passando para a maioria dos estrangeiros Quando Detrez estava, no início dos anos de 1970, na Algéria, co-
como o cartão de visita do Brasil. Não, ele se encantava com a nheceu pessoalmente o exilado Miguel Arraes, um dos próceres da
proletária Zona Norte do Rio. Este bairro era talvez feio, mas tinha resistência brasileira. No tribunal Russell em 1974 – uma conferên-
caráter. Porém, neste olhar romântico sobre as favelas se escondia cia em Roma contra as violações dos direitos humanos no Brasil –,
uma grande contradição, já que Detrez criticaria precisamente, de se encontrou com o excêntrico guerrilheiro Fernando Gabeira. Em
um ponto de vista cada vez mais à esquerda, a pobreza reinante seguida, ambos mantiveram correspondência por pouco tempo.
por lá. Por outro lado, o fascínio de Detrez pela cultura negra e pe- Nos anos de 1970 Detrez continuou seu percurso sinuoso, que
la religião afro-brasileira – que o fez iniciar no candomblé – tinha o levou à Algéria e a Lisboa, onde fazia a reportagem das peripé-
uma forte conotação erótica. No Rio, o ex-seminarista descobriu sua cias da Revolução dos Cravos para a rádio belga. Em matéria polí-
homossexualidade, que projetava quase exclusivamente em negros. tica, se tornou mais reservado e também sua escolha pela literatura
Nada indicava então que Detrez se tornaria mais tarde um era em grande parte ditada pela introspecção. Antes de escrever
escritor laureado. Sem dúvida tinha esta ambição, mas esta se seus romances, Detrez tinha traduzido alguns autores brasileiros
desvaneceu depois do golpe militar de 1964. A partir desse mo- para o francês: Quarup, de Antônio Callado, e Os pastores da noi-
mento, o compromisso com o engajamento político determina- te, de Jorge Amado. Este último manifestou seu agrado em carta.
va sua conduta. Como muitos católicos radicalizados, se tornou Já com Callado, que conhecia pessoalmente, a colaboração ficou
membro da Ação Popular. Já pela sua formação católica, Detrez mais difícil. Literariamente, o Brasil não lhe era tão importante.
nunca sentiu muita estima pelo comunismo, e certamente não por Se relacionava antes com os autores ‘caribenhos’, como o colom-
seus militantes brasileiros. Mesmo assim, se deixou levar de ma- biano García Márquez e o cubano Reinaldo Arenas – ou também,
neira bastante ingênua para a esquerda radical. Isto foi mais uma perto de casa, com o picaresco Charles de Coster.
questão de temperamento do que de compreensão. Nos anos de Estava escrito nas estrelas que o Brasil ocuparia um lugar im-
1960, nutria uma grande admiração por Fidel Castro e Che Gue- portante na sua obra. Depois de dois romances promissores Detrez
vara, que pensava, ou pelo menos esperava, serem os promotores surpreendeu, em 1978, com L’herbe à brûler, um livro que con-
de um marxismo liberal. Também no Brasil tinha que aparecer o tava em boa parte suas aventuras brasileiras numa prosa sensual e
‘Novo Homem’ de Cuba. excitante, sem por isso reincidir nos estereótipos exóticos. Na sua
Em 1967 Detrez foi preso por curto tempo por pretensa subver- narração fortemente autobiográfica, Detrez se revelou um hedo-
são política. Sua detenção não passou desapercebida na imprensa nista puro-sangue, que rejeitava todas as formas de dogmatismo
brasileira. Em manchete, O Globo anunciava: ‘Belga Preso Co- revolucionário. Com isso se aparentava algo com os nouveaux
mo Líder Comunista’. Já o Jornal do Brasil tomou sua defesa: “Os philosophes franceses – se bem que ele mesmo não gostava nem
vizinhos do jovem súdito belga – com trinta anos de idade – têm- um pouco desta comparação.
no como pessoa de hábitos perfeitamente normais e destacam sua L’herbe à brûler foi unanimamente aclamado como uma pe-
cordialidade, seu desejo de servir ao próximo, inclusive pondo-se à quena obra-prima. Com a obtenção do prestigioso prêmio Renau-
disposição dos que lhe pedem pequenos favores, como a redação de dot, o nome de Detrez parecia definitivamente consagrado. A Bél-
cartas pessoais”. gica tinha, depois de Simenon, novamente um autor de impacto
Com a intervenção da diplomacia belga, Detrez pôde, quase internacional. Seguiram-se várias traduções como em neerlandês,
sorrateiramente, deixar o país. Foi morar em Paris, onde partici- português e inglês. A edição inglesa recebeu resenhas relativamen-
pou ativamente da revolução de maio. Mais tarde, em 1968, con- te boas no Time e no The Village Voice. No Brasil, revistas influen-
seguiu fixar-se em São Paulo, onde se tornou jornalista da Folha tes como Veja e IstoÉ foram francamente elogiosas. Nelson Pereira
da Tarde, mas em menos de um ano teve que deixar essa cidade. dos Santos, o padrinho do cinema novo brasileiro, se prontificou
Chegou num ponto em que a repressão ameaçava sua vida. Da a filmar o livro. Infelizmente, este projeto falhou.
França, Detrez queria prestar ainda uma vez uma curta, mas mui- O próprio Detrez regredia. Nunca mais igualou o nível do
to arriscada, contribuição. No maior segredo atravessou o oceano, L’herbe à brûler. No seu romance seguinte, La lutte finale, as fa-
encontrou e entrevistou Carlos Marighella para voltar às pressas. velas do Rio voltaram a formar o cenário. Mas a inspiração ante-
Marighella, chefe da guerrilha brasileira, foi pouco depois execu- rior de Detrez, que era fortemente autobiográfica, minguava de
tado. Detrez resumiu suas ideias num manifesto revolucionário, ano para ano. Interessante foi o ensaio publicado em 1981, Les
Pour la libération du Brésil. noms de la tribu, no qual relatava uma viagem recente ao Brasil.
70
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
Em 1979 Detrez se beneficiou da anistia política oferecida Detrez serviu desde 1982 como diplomata francês na Nicarágua,
pelos governantes de Brasília. Voltou por alguns meses e viu um mas ficou pouco a pouco muito doente. Em 1985 morreu de Aids.
país que se tornou, sob certos aspectos, irreconhecível. Les noms
de la tribu, mais do que um simples diário de viagem, contém Peter Daerden, mestre em História, com passagem pela Universidade
fascinantes considerações sobre o Brasil, a guerrilha dos anos de de São Paulo (USP), juntou em frequentes viagens ao Brasil o mate-
1960 e seu próprio percurso de vida. Esta terminou rápido demais. rial de arquivo e de literatura para uma biografia extensa de Detrez.
71
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas
as suas credenciais de Embaixador ao belga Jean Rey, membro da de interesses teve prosseguimento em junho de 1999, com a rea
Comissão da Comunidade Econômica Europeia. lização da primeira Cúpula de Chefes de Estado e de Governo
Bruxelas entrava, então, de um outro modo e pela segunda da União Europeia e América Latina/Caribe, quando se decidiu
vez, no rol das praças diplomáticas que apresentavam importân- pela formação de um Comitê Birregional de Negociações União
cia central para os interesses internacionais do Brasil, ao lado de Europeia-Mercosul.
Washington, Londres, Paris e Buenos Aires. Funcionando inicial- O início da crise do Mercosul e os alargamentos da União
mente em Paris, a representação do Brasil junto à Comissão foi Europeia, dois processos coincidentes, desfocaram a agenda de
transladada definitivamente para Bruxelas em janeiro de 1961. cooperação inter-regional, enquanto outros temas na dimensão
A missão de Augusto Frederico Schmidt foi breve. Pode-se política e econômica surgiam como prioritários. A partir da década
afirmar que a sua nomeação atendia à necessidade de distender de 2000, o crescimento do perfil internacional do Brasil, com cres-
as relações com a Bruxelas comunitária, e de encetar os difíceis cente protagonismo em diferentes tabuleiros (negociações comer-
processos de negociação que se seguiram ao estabelecimento da ciais, temas ambientais etc.) e com maior visibilidade econômica,
Tarifa Externa Comum, envolvendo tanto o Brasil quanto outros e o crescimento do seu ativismo internacional, levaram a União
países latino-americanos. O Brasil manteve, a partir do estabele- Europeia a reavaliar o conjunto das suas relações com a América
cimento inicial das suas relações com a Europa Comunitária, a Latina. Assim, ao final de 2005, a União Europeia decidiu passar
prática de enviar para a sua representação diplomatas de carreira a privilegiar o Brasil como país-chave da região.
experimentados, somente quebrada com a nomeação de outro O modelo adotado para essa nova estratégia de Bruxelas seguiu
grande intelectual brasileiro, Celso Furtado, que exerceu a chefia o que já estava sendo implementado no manejo das relações da
da Missão entre 1985 e 1986. União Europeia com os seus principais interlocutores – Estados
As relações do Brasil com a Bruxelas comunitária foram, ao Unidos, Canadá, Japão, Rússia, China e Índia –, ou seja, o de
longo de quase cinco décadas, muito tensas. A criação do processo relações de “parceria estratégica”. Ainda que não exista uma de-
europeu de integração teve esse condão: descarregou a pesadíssi- finição clara desde a diplomacia comunitária do que sejam esses
ma agenda contenciosa envolvendo questões comerciais que exis- vínculos, eles têm muito em comum: densas e dinâmicas correntes
tiam com alguns dos seis membros originais (especialmente com de comércio, amplos contatos bilaterais, intensidade de vínculos
a França), mas produziu um grande polo contencioso, justamente políticos e agendas compartilhadas.
a Europa Comunitária. As demandas recorrentes do Brasil, que se O Brasil foi ungido como parceiro estratégico da União Euro-
juntava aos demais países latino-americanos, estiveram ao longo peia em 4 de julho de 2007, por ocasião da primeira Conferência
desse período principalmente circunscritas ao acesso aos merca- de Cúpula Brasil-União Europeia, reunindo a Tróica do Conse-
dos, ao tratamento tarifário conferido aos produtos tropicais e às lho Europeu e o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Trata-se
tentativas de circundar os graves desvios de comércio que se pro- do reconhecimento da singularidade assumida pelo Brasil nas re-
duziram pela associação das antigas colônias europeias. lações internacionais contemporâneas, de certo modo, tradução
A Bruxelas comunitária se convertia, desse modo, em um im- do peso específico que o País tem assumido para a economia e a
portante centro nevrálgico e essencialmente conflituoso das rela- política global.
ções internacionais do Brasil. Esse relacionamento assim perma- Trata-se de uma transformação de vulto no desenvolvimento
neceu praticamente até o início da década de 1990. Nesse longo das relações do Brasil com a Europa Comunitária e oferece uma
momento, não há que se falar em cooperação política, uma vez moldura institucional para a organização do diálogo de alto nível
que a América Latina em geral constituía um ângulo cego das prio- e com pleno potencial para o desenvolvimento de uma agenda
ridades internacionais da Europa comunitária e pode-se afirmar de cooperação bilateral que envolve os desafios da liberalização
que assim seguiu até o estabelecimento do Mercosul, em 1991. comercial, o acesso aos mercados agrícolas, meio ambiente e aque-
O surgimento de um novo processo de integração, em região cimento global, a reforma das organizações internacionais (e o
que foi a periferia das prioridades internacionais da Europa, não papel que o Brasil pode nelas desempenhar) e o reforço da ordem
deixou de ser um motivo de alento para a organização de uma internacional multipolar. Mais do que nunca, o futuro da projeção
nova agenda de cooperação. Com efeito, o bloco sul-americano internacional do Brasil passa por Bruxelas.
surgia como o maior parceiro comercial e principal destino dos
investimentos europeus na região. Em 1992 firmou-se um Acordo Antônio Carlos Lessa é professor do Instituto de Relações Internacio-
de Cooperação Interinstitucional, seguido em dezembro de 1995 nais da Universidade de Brasília e pesquisador do Conselho Nacional
pelo Acordo Marco Inter-regional de Cooperação. A articulação de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq.
72
o comércio
parte 3
Relações Econômicas:
Comércio e Empresas
73
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
74
o comércio
75
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
Um dos primeiros engenhos de açúcar no Brasil, o Engenho do Governador em São Vicente, de 1530, é também o mais antigo investimento de mercadores flamengos
no Novo Mundo.
trabalha, o resto sendo velhos ou crianças. O relator aprecia muito sofreram pouco depois dramáticas perdas de vida, de fortuna e
mais os oficiais africanos, sete ou oito escravos negros da Guiné: o de prestígio durante a tormentosa guerra civil subsequente à re-
mestre de açúcar, que fornece um produto de excelente qualidade volta contra Felipe II. Nem por isso deixaram seu engenho num
e vale bem o salário de trinta mil réis, que na Madeira pagaria-se abandono completo e enviaram para lá, por várias vezes, navios
para um semelhante; e mais um purgador e dois caldeireiros, que com abastecimentos e novos empregados, como Jean-Baptiste
também dispensam as quatro arrobas de açúcar, pagas normal- Maglio, Paulo Wernaerts, um jovem cunhado de Van Hilst, e
mente por mês a cada oficial livre. A compra de mais escravos Geronimo Maya.
para fazer carvão e cinzas e plantar mantimentos economizaria Em 1565, Conrart Schetz e seu parente Jehan Vlemincx in-
o dinheiro gasto nas compras aos moradores. Aconselha por fim vestiram pouco mais de 1.300 libras em mercadorias, equipamen-
de reforçar sua dieta de produtos da terra, como a ‘panqueca de tos, ferros e até canhões, despachados num navio português. Em
mandioca’, que vale cem réis e alimenta uma pessoa por três ou 1579, o navio Licorno levou seis fardos pelo valor de mais de mil
quatro dias, com carne, bacalhau ou outros peixes salgados e quei- florins (Laga). Seu conteúdo reflete o cotidiano no engenho, que
jos flamengos e holandeses. misturava uma vida senhorial escravocrata com requinte burguês
Desconhece-se a sequência dada às suas propostas, mas quan- flamengo. Trazia, ao lado de quatro dúzias de camisas e outras tan-
do Erasmo faleceu pouco depois, em 1550, seus filhos e herdeiros tas de pratos de madeira destinados aos escravos, também tecidos
– Gaspar, Baltasar, Melchior e Conrart – formaram uma compa- mais finos, lençóis de cama, guardanapos, utensílios de cozinha,
nhia, que devia também gerenciar o engenho. Este, no período panelas para peixe, pratos de estanho, canecas para vinho e até
conturbado das investidas francesas nas costas brasileiras, tornou- uma batedeira de manteiga. Se vinham caldeirões, tachos de ferro
se um ponto de encontro e refúgio, conhecido como Engenho de e de cobre e material de ferraria, não faltavam uma escrivaninha,
São Jorge dos Erasmos ou dos Esquetes. Por lá deviam ecoar as papel e pena, e para o auxiliar Paulo Wernaerts um clavicórdio.
controvérsias religiosas entre protestantes e católicos como tam- Tocava-se música renascentista no engenho dos Erasmos! Seguia
bém a curiosidade humanística pela natureza e pela cultura dos também uma quantidade surpreendente de pinturas e imagens,
índios. Dois soldados alemães, que passaram pelo engenho, vie- uma parte talvez para ornar a capela do engenho, mas sobretu-
ram na sua volta por Antuérpia contar aos Schetz suas aventuras, do destinadas à catequese dos índios pelos jesuítas. Estes padres,
Ulrich Schmidl em 1554 e Hans Staden em 1555. inclusive o famoso Anchieta, mantinham contatos com Gaspar
O livro deste último sobre sua catividade entre os canibais Schetz, que em Antuérpia lhes tinha vendido a Huis van Aken.
foi traduzido para o flamengo e publicado, em 1558, em Antuér- Vigiavam particularmente o comportamento moral do feitor e de
pia por Christophe Plantin, que lançou simultâneamente uma seus auxiliares em São Vicente.
edição barata do livro de André Thevet sobre as singularidades Estes subalternos apropriaram-se provavelmente de uma boa
brasileiras. Este interesse podia relacionar-se com a propriedade parte dos bens e o rendimento do engenho entrou em crise, ain-
brasileira dos irmãos Schetz. Estes, muito envolvidos na vida fi- da mais durante as incursões em Santos de piratas ingleses e ho-
nanceira, política e cultural de sua cidade e dos Países Baixos, landeses no final do século. Mesmo assim, os netos de Erasmo,
76
o comércio
já completamente integrados na vida nobiliária e militar, não es- souberam aproveitar a dinâmica e ganhar um notável predomínio
queceram seus direitos sobre suas posses brasileiras. Desde 1603 desta rota açucareira. No mercado de Antuérpia o produto brasilei-
tentaram enviar, sempre por intermédio dos jesuítas, um procu- ro aumentou sua cota de aproximadamente 15% por volta de 1570
rador para investigar estas malversações. Finalmente, em 1612, o para mais de 85% no último decênio do século XVI. Sua nova
mercador flamengo Manuel van Dale conseguiu chegar até lá e abundância abriu o consumo do açúcar, antes reservado à medi-
lavrou em Santos, junto com os jesuítas, um protesto para obstruir cina e à aristocracia, a uma clientela mais larga, mesmo popular
a venda, pelo provedor de ausentes, dos bens dos Schetz, dos es- e infantil. Nas pinturas dos Breughel até o camponês rendeiro é
cravos e equipamentos de cobre. De pouco adiantou porque, em presenteado por seu patrão com um pão de açúcar.
1615, na sua volta ao mundo, o pirata Joris Van Spilbergen – por Com a reconquista católica de Antuérpia, em 1585, e o subse-
sinal um antuerpiense passado para o lado dos rebeldes holandeses quente bloqueio do Rio Escalda pelos holandeses, Antuérpia viu
– passou por São Vicente e, não obtendo ajuda nem abastecimen- partir muitos refinadores para Amsterdã e teve que lhe ceder sua
to entre os habitantes, mandou por vingança incendiar o enge- supremacia. Mesmo assim, recebia através de Lisboa suficientes
nho dos seus conterrâneos. Se este desapareceu do horizonte dos caixas de açúcar brasileiro – em média duas mil no período de
Schetz, continuou a produzir açúcar, beneficiado em marmeladas 1609-1621 – para manter uma requintada cultura da doçaria. O
e outras conservas apreciadas na economia regional. que Antuérpia perdia em quantidade compensou em boa parte
Finalmente, o terreno com as ruínas do engenho, localizado pela qualidade de seu açúcar mais fino e pela diversidade de seus
no atual município de Santos e tombado pelo patrimônio históri- confeitos, um luxo representado e celebrado nas naturezas mortas
co, foi doado em 1958 à Universidade de São Paulo (USP). Esta de Osias Beert, Clara Peeters e outros pintores deste estilo antuer-
o valorizou desde 2005 com pesquisas arqueólogicas e projetos piense, como o alemão Georg Flegel.
educacionais e construiu ao lado um centro de estudos com bi-
blioteca e auditório. Do lado belga ou flamengo não percebeu- Silvo Luiz Cordeiro, arquiteto pela Faculdade de Arquitetura e
se ainda o significado e o potencial comemorativo deste monu- Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), Doutor em
mento como elo tanto econômico como cultural entre Flandres, Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE
Portugal e o Brasil. -USP) e documentarista, desenvolve projetos relacionados ao patri-
Se os investimentos brasileiros dos Schetz resultaram onerosos mônio histórico e arqueológico, como um filme sobre o Engenho dos
pela distância e pelo controle difícil e lhes renderam finalmente Erasmos; em 2011 criou a Mostra Audiovisual Internacional em
poucos lucros, foram ao mesmo tempo estimulantes e corretivos Arqueologia (MAIA).
para o desenvolvimento da produção açucareira no Brasil e para
a sua concentração nas capitanias do Nordeste, mais próximas da Referências
Europa. Lá, em Pernambuco ou na Bahia, outros mercadores se- Carl Laga. ‘O Engenho dos Erasmos em São Vicente; Resultado de pesquisas em arquivos
guiram o exemplo dos Schetz e construíram engenhos, como os belgas’. Estudos Históricos, Marília, n. 1, 1963, p. 13-43. Eddy Stols. ‘Um dos primei-
Lins e os Hoelscher, alemães conectados com Antuérpia. Mais ros documentos sobre o Engenho dos Schetz em São Vicente’. Revista de História,
São Paulo, n. 76, 1968, p. 407-419. Eddy Stols. ‘The Expansion of the Sugar Market
jovens flamengos ousaram aventurar-se na compra de açúcares in Western Europe’. Ed. Stuart B. Schwartz, Tropical Babylons, Sugar and the Making
nas costas brasileiras e um deles, Gaspar de Mere, ergueu até seu of the Atlantic World, 1450-1680, University of North Carolina Press, 2004, p. 237-
próprio engenho no Cabo de Santo Agostinho, perto de Recife. 288. Daniel Strum. O Comércio do Açúcar. Brasil, Portugal e Países Baixos (1595-
1630). Rio de Janeiro, 2012.
Sobretudo os cristãos novos portugueses, católicos ou judaizantes,
77
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
Esboço de Fernando de Noronha por Henri Carlos Gheyselinck realizado para Dois navios, o Marquis de Prié e o Concordia, visitaram, em 4 de maio de 1728,
a Compagnie Générale Impériale et Royale des Indes, mais conhecida como o arquipélago de Fernando de Noronha e examinaram seu potencial como escala
Companhia de Ostende, 1728. para a Companhia.
Em situação de desespero, um primeiro navio de Ostende, o tilha dos marinheiros, ou até com contrabando de ouro nas costas
Sint-Mathieu, entrou em 1716 no Recife e obteve limões e água brasileiras. Além disso, a Companhia enviaria navios menores de
para salvar os tripulantes doentes. Em dezembro de 1720, o Con- aviso rumo a Ostende, Recife e Bahia, levando material náutico
cordia conseguiu no Rio de Janeiro pagar os alimentos frescos com de substituição, como âncoras, e notícias sobre a situação militar
a venda de seis escravos. Entretanto, quatro oficiais foram presos na Europa e a melhor rota para escapar dos inimigos. Pelo menos
nas ruas da cidade sob suspeita de comércio ilícito e somente sol- uma dezena de navios de Ostende entraram assim nos portos do
tos por intermédio do bispo. O navio seguiu para o Recife, onde Rio de Janeiro, da Bahia e do Recife.
vendeu tecidos indianos. Um outro navio de Ostende ancorou na No entanto, apesar das negociações entabuladas com a Corte
Bahia em 1721. de Lisboa, não foram recebidos pelas autoridades portuguesas co-
Com estes precedentes, os diretores da Companhia imagina- mo esperavam. Particularmente o vice-rei na Bahia mostrava-se
ram uma nova rota e logística marítima para recorrer sistema- muito rigoroso. Em maio de 1727, com a chegada de quatro na-
ticamente aos portos brasileiros. Os capitães deviam valer-se de vios, limitou sua permanência, colocou soldados a bordo e confi-
um passaporte do imperador e do parentesco deste com o rei de nou os quatro capitães e seus sobrecargos numa casa com guardas.
Portugal. Poderiam vender uma parte de suas mercadorias para Interditou sob pena de morte qualquer comércio e encarregou
pagar o abastecimento e oferecer presentes de seda, porcelanas seus fiscais da Fazenda do abastecimento. O preço muito alto deste
ou tecidos de até o valor de 800 a 1.000 pistolas. Provavelmente podia encobrir alguma corrupção. Um quinto navio chegou em
especulavam com mais negócios por lá, pelo menos com a paco- julho no Recife, onde os alimentos frescos eram mais baratos e um
78
o comércio
agente pretendia, mediante uma gratificação, garantir no futuro terra, seus doentes de escorbuto sararam em dois dias. Sabiam do
uma recepção mais benevolente. malogro holandês em estabelecer-se por lá por causa dos ratos,
Procurando uma alternativa, a Companhia cogitou criar um mas achavam possível tentar de novo. Bastava introduzir gatos
posto em Fernando de Noronha. Dois navios, o Marquis de Prié para comer os ratos e plantar.
e o Concordia, visitaram, em 4 de maio de 1728, o arquipéla- Não consta que os navios de Ostende voltaram, uma vez que,
go e examinaram seu potencial como escala estratégica para a por pressão dos holandeses e ingleses, a Companhia foi interditada
Companhia. Num levantamento geográfico, Cortmemoriael van em 1731 e finalmente liquidada em 1734.
‘t Eylant Fernando de Noronha, com esboços e uma aquarela por
Henri Carlos Gheyselinck, constataram que, apesar dos abrolhos Referências
e corais, era possível ancorar sem danos. Encontraram boa água, Arquivo Municipal de Antuérpia, Fundo GIC, #5.704, 5.929 e 5.931; Biblioteca Real, Bru-
beldroegas, cabritos, pombas, vacas selvagens e muito bom peixe. xelas, Manuscritos, II-161, Jornal do Concordia; Biblioteca Universidade de Gand,
Em três noites capturaram 14 tartarugas de 500 a 600 libras. Em Fundo Hye-Hoys, Manuscrito 1837. Eddy Stols. ‘A Companhia de Ostende e os Portos
Brasileiros’. Estudos Históricos, Marília, n. 5, 1966, p. 83-95.
79
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
80
o comércio
A barca de três mastros ‘Dyle’ da Société Maritime Belge, que no 14 de julho de 1846 deixou Antuérpia para o Rio de Janeiro com 162 emigrantes a bordo.
81
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
lhe dessem as boas-vindas com sete tiros de canhão. O Paix entrou por iniciativa dos próprios negociantes-armadores antuerpienses.
no Rio num momento pouco propício porque uma revolta contra Alguns eram muito interessados e ativos na rota do Brasil, outros,
Pedro I perturbava o comércio. Em 12 de agosto o brigue estava apenas esporadicamente. A barca Marie Key, de propriedade do
de volta a Antuérpia, carregado com, entre outros, 340 sacos de armador antuerpiense Jean Key, fez entre 1839 e 1862 um total
café para a firma J. L. Lemmé. Em 1836 chegaram 22 navios do de 35 viagens, das quais nada menos que 21 para o Rio de Janeiro
Brasil ao porto do Escalda, em 1845, 59, e em 1848 já eram 70. (12 vezes em direitura desde Antuérpia e nove vezes de um outro
Os navios estrangeiros procedentes do Brasil em Antuérpia ultra- porto: Cardiff, Cádiz, Lisboa ou Setúbal).
passavam quase sempre em número os belgas, ainda mais porque Outros navios de Key frequentavam menos o Brasil: a barca
a marinha mercante belga continuou de tamanho muito modesto. Jean Key fez entre 1829 e 1855 um total de 39 viagens, das quais
A viagem de Antuérpia ao Rio levava em média 50 dias. A volta somente três para o Rio de Janeiro. Muito ativo na rota do Brasil
à Europa durava pouco mais, cerca de 60 dias, já que os veleiros foi também Egide Van Regemortel, proprietário entre 1830 e 1866
precisavam procurar no Oceano Atlântico setentrional os ventos de uma dezena de veleiros. Sua escuna Octavie partiu, entre 1847
do ocidente. As tempestades e as bravuras do capitão e de seus e 1867, 11 vezes para o Rio, uma vez para a Bahia e 17 vezes pa-
marinheiros fizeram entrar a viagem ao Rio no imaginário popu- ra o Maranhão e o Pará. Ladislas Paridant, casado com uma filha
lar no romance In ‘t schipperskwartier: tafereelen uit het Vlaams- do importante armador Cateaux-Wattel e que negociava no Rio
che volksleven, de Domien Sleeckx (1861). Existia aliás no bairro de Janeiro, expôs suas ideias a este respeito no livro Des lignes de
portuário um café Rio. navigation entre l’Europe et le Brésil (Liège, 1855).
Na ida para o Brasil os veleiros antuerpienses carregavam geral-
Armadores, navios e cargas mente sal, carvão ou mercadorias isoladas. Na falta de uma carga
lucrativa navegavam com lastro. Na volta traziam café, açúcar e
Nos anos de 1840 e 1850 a Société Maritime Belge de Bruxelas couros, que tinham mercado garantido na Europa. Também era
era a principal companhia marítima belga na rota do Brasil. A em- o caso para navios dos quais o primeiro destino era a costa Leste
presa possuía entre 1837 e 1856 um total de 13 veleiros. Em 1841 dos Estados Unidos, mas que, na volta à Europa, procuravam boas
ela fechou com o governo belga, que queria apoiar a marinha mer- cargas em portos latino-americanos: café brasileiro, açúcar cubano
cante e incentivar a exportação de produtos belgas, um contrato ou produtos do Rio de la Plata. Egide Van Regemortel trazia do
de exploração de uma linha direta e regular para o Rio de Janeiro, Maranhão e do Pará para Antuérpia couros, algodão e borracha,
inicialmente continuada até Valparaiso. Em 1842 já se organiza- sob o nome de ‘Gom-Elastic’, além de arroz, cacau, café, bálsamo
ram cinco partidas. Seguiram outros destinos ultramarinos, entre de copaíba, tabaco e salsaparrilha.
os quais Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Sul. Nestas linhas
publicava-se para cada saída uma adjudicação. A Comissão para a Emigrantes
navegação a vela avaliava os candidatos e designava, depois de um
exame técnico dos navios, o preferido. Por princípio somente acei- Um tráfico bem particular envolvia os emigrantes. Muitos mi-
tavam-se veleiros de primeira classe, ataviados de cobre e sob ban- lhares de europeus se dirigiram por meados do século XIX a partir
deira belga. Cada travessia era subsidiada pelo governo da Bélgica. de Antuérpia para a América do Sul. Assim, o Phénomène, uma
Por mais importantes que fossem as linhas de veleiros previs- galera de Egide Van Regemortel, partiu em agosto de 1846 com
tas pelo governo, a maior parte das partidas para o Brasil fazia-se 253 emigrantes para o Rio de Janeiro. Na sua esteira seguiu em
O antuerpiense Alexandre Baguet (1817-1897) viajou em 1842 para o Rio de Janeiro onde ficaria uns dez anos. Em 1845 começou uma jornada
audaciosa pelo Rio Grande do Sul e Paraguai. De regresso a Antuérpia, Baguet fez fortuna como negociante. Em abril de 1874 foi nomeado vi-
ce-cônsul do Brasil. No mesmo ano publicou seu relato da viagem, Rio-Grande-do-Sul et le Paraguay. Souvenirs de voyage. Baguet escreveu mais
dezenas de artigos sobre o Brasil na revista da Société Royale de Géographie d’Anvers. Milton Costa traduziu e editou sua Viagem ao Rio Grande
do Sul, Santa Cruz do Sul, 1997. • Urbain Flebus (1839-1853) era um sobrinho de Alexandre Baguet e pertencia a uma família antuerpiense de bo-
as posses. Mesmo assim, com apenas 12 anos de idade, Flebus fez em 1851 sua primeira viagem marítima à América do Norte e à Ásia. Em 8 de
setembro de 1852 partiu de novo, esta vez como novice na barca Indépendance, com destino ao Rio de Janeiro, onde chegou em 6 de novembro.
Carregado com 3.200 sacos de café a Indépendance iniciou em 29 de novembro a viagem de volta, mas deixando Urbain Flebus muito doente no
Rio. Faleceu lá, talvez de febre amarela, em 9 de janeiro de 1853, com seus 14 anos ainda não cumpridos. • A Indépendance era propriedade da
Société Maritime Belge. Entre 1839 e 1856 a barca fez 19 viagens para o Brasil. Em julho de 1856 o navio sofreu avarias entre a Bahia e o Rio de la
Plata. Regressada à Bahia a Indépendance foi declarada imprópria em 16 de agosto de 1856 e vendida.
82
o comércio
A marinha belga
Já que os armadores antuerpienses lidavam com uma contínua falta de tripulantes, nos anos de 1830 e 1840 colocavam-se oficiais e marujos da
marinha nacional à disposição da marinha mercante. O governo pagava o ordenado e fornecia os víveres. Assim, partiu o brigue Caroline (capi-
tão Petit) em 24 de junho de 1835 com uma tripulação militar para o Rio. Voltou em janeiro de 1836 a Antuérpia carregado de café para os im-
portadores Lemmé e Nottebohm. Parece que trazia também uma rica coleção de plantas brasileiras e um casal de pássaros exóticos para o Rei
Leopoldo I. • A própria marinha belga chegou a frequentar os portos brasileiros. O brigue de guerra Duc de Brabant passou em 1847 pelas costas
latino-americanas e visitou Santa Catarina e o Rio. No dia 6 de abril de 1855, o brigue ancorou de novo na baía de Santa Catarina, onde os belgas
quiseram visitar seus compatriotas que residiam por lá. No Rio, o Estado Maior do Duc foi recebido pelo hospitaleiro cônsul-geral belga, Edouard
Pecher, e sua esposa, outra filha do armador Cateaux-Wattel. Tenente-do-mar, Émile Sinkel (1823-1876), descreveu em sua Vie de marin, 1872-74,
como o grupo passou um domingo paradisíaco na Ilha de Paquetá, na baía de Guanabara, junto com as famílias dos negociantes alemães, italia-
nos e belgas. O comandante do Duc de Brabant, o primeiro oficial e o próprio Sinkel foram também recebidos pelo casal imperial. Em 1º de maio
continuaram a viagem à Bahia. • Quem de nós não ouviu falar do Rio? Desde que estou no mar, este nome martelava constantemente minhas orelhas,
acompanhado de exclamações da maior admiração. É o mais belo porto do mundo, dizem os marinheiros; é a baía mais magnífica, é o nec plus ultra da
natureza, dizem os viajantes. Portanto eu estava prevenido e minha curiosidade em alerta. Num semelhante estado de espírito, geralmente ressente-se
decepções. Aqui nada disso. (Émile Sinkel)
novembro a Marie Key com 118 emigrantes. No mesmo ano, sete numa viagem, passando por Le Havre, para Bahia, Santos, Rio de
navios belgas levaram 768 emigrantes para o Rio. Um navio saiu Janeiro e o Rio de la Plata. Em 25 de abril de 1872 o steamer vol-
para Santa Catarina, onde uma empresa belga procurava realizar tou no seu porto de registro, carregado em Santos com 265 sacas
um projeto de colonização. Ainda em 1846 partiram oito navios de algodão para a firma Bunge. Também os vapores da companhia
estrangeiros com 878 emigrantes de Antuérpia para o Rio e mais antuerpiana John P. Best & Co. destinavam-se excepcionalmente à
um, com 95 para o Rio Grande. América do Sul. Foi o caso do SS Ferdinand Van der Taelen em ja-
neiro de 1875 saindo de Antuérpia para o Brasil e o Rio de la Plata.
Da vela ao vapor Os meios comerciais de Antuérpia pouco se importavam com
o declínio da marinha mercante belga. Acreditavam tranquila-
A partir dos anos de 1860 diminuiu muito rapidamente o nú- mente que o princípio ‘Trade Follows the Flag’ não se aplicava ao
mero de veleiros belgas. O governo aboliu os subsídios e os arma- seu porto tão bem situado e de fácil acesso. Algumas tentativas
dores familiarizados com os veleiros sofriam a concorrência brutal para estabelecer linhas belgas de vapores para a América do Sul
dos vapores bem maiores e mais rápidos. A exportação de produtos fracassaram. Assim foi fundada, em 1855, por iniciativa da compa-
agrícolas sul-americanos para Antuérpia fazia-se, cada vez mais, nhia de veleiros Spilliaerdt-Caymax, uma Société Belge de Bateaux
com linhas de vapores do exterior, que empalmavam as melhores à Vapeur entre la Belgique et l’Amérique du Sud. A Société Générale
cargas. O capitão Charles Boone, da companhia antuérpiense de de Belgique e o Banque de Rothschild de Paris interessaram-se pelo
veleiros De Decker – Cassiers, informou mais de uma vez ao seu negócio e o governo belga prometeu um subsídio. Encomendaram
armador que nos grandes portos sul-americanos estavam anco- quatro vapores metálicos na Holanda. Um destes, o Rio de Janei-
rados dezenas de veleiros à espera, sem resultado, de uma carga ro (1857), tinha capacidade de carga de quase 600 toneladas para
lucrativa. Em 1874 De Decker – Cassiers o considerou o assunto carvão e de quase 500 toneladas para mercadorias. Além disso,
resolvido. O armador Claeys escutou a mesma história de seu ca- tinha espaço para 220 passageiros, dos quais 40 em primeira clas-
pitão Thomas Zellien. Este relatou, numa carta do Rio Grande se, com cabines com água corrente e banheiros, e uma magnífica
do Sul em 31 de março de 1870, que havia 195 veleiros à espera. cabine para senhoras com piano e canapés. No entanto, por causa
Somente alguns poucos negociantes-armadores antuerpienses de vários problemas financeiros e de organização, a companhia foi
conseguiram adquirir seus próprios vapores. Daniel Steinmann fi- dissolvida no final de 1858. O Rio de Janeiro nunca navegou sob
gurou primeiro como carregador e agente marítimo, mas dispunha bandeira belga e foi vendido no exterior.
desde os anos de 1860 de seus próprios veleiros e vapores. Sob a Por falta de iniciativas belgas o governo decidiu conceder sub-
bandeira da White Cross Line navegavam sobretudo para a América sídios para atrair companhias estrangeiras a Antuérpia. Assim, o
do Norte, mas esporadicamente destinavam-se também ao Brasil e Ministro de Obras Públicas, Auguste Beernaert, concluiu em 1876
ao Rio de la Plata. A companhia T. C. Engels & Co., fundada em um contrato com a companhia britânica Lamport & Holt sobre
1859, comprou tanto veleiros, entre os quais alguns navios de ferro uma linha subsidiada para o Brasil e o Rio de la Plata. Como a
para o transporte dos nitratos chilenos, como também vapores. O companhia tinha que incorporar navios sob bandeira belga, orga-
SS de Ruyter (2.500 toneladas) partiu em 23 de dezembro de 1871 nizou-se uma Société Anonyme de Navigation Royale Belge-Sud-
83
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
-Américaine. A linha começou em 1878, com oito vapores sob ban- do Brasil – a uma nova artéria aberta no velho bairro portuário,
deira belga e introduziu depois ainda outras unidades, porém sob conhecido como Het Eilandje. Este nome de rua ainda existe e
bandeira britânica. Os subsídios para a Lamport & Holt revelaram- forma um conjunto latino-americano com a Limastraat, a Monte-
se uma sangria para o tesouro. Provocaram a resistência do partido videostraat e a mais afastada Mexicostraat. Novas iniciativas belgas
liberal e foram também bastante criticados nos círculos mercantis exitosas na navegação a vapor avançaram até o século XX, mas isto
de Antuérpia. O contrato terminou em 1908. Na medida em que já é uma outra história.
o número de linhas de vapores em Antuérpia aumentou, os sub-
sídios tornaram-se desnecessários. Com meus agradecimentos particulares ao senhor Luc Van Coolput,
Sem exagero deve-se constatar que Antuérpia tornou-se nos membro da Real Academia Belga da Marinha e autor de diversas pu-
últimos decênios do século XIX um porto mundial sem frota pró- blicações sobre a marinha mercante, que gentilmente colocou muitos
pria. Nos portos brasileiros quase não se viu mais o tricolor belga. dados à minha disposição.
Mesmo assim, Antuérpia e Brasil ficavam conectados mais que
nunca graças à rede mundial de linhas de vapores britânicas e Jan Possemiers, historiador, com tese de licenciatura sobre o bairro
alemãs. Estes embarcavam produtos industriais belgas e sobretudo ecléctico de Zurenborg em Antuérpia, premiada e publicada pela Real
os emigrantes da Europa central e oriental, mas interessavam-se Academia Flamenga da Bélgica, publicou também vários trabalhos
também aos candidatos belgas. Estes eram recrutados com uma sobre a atividade marítima de Antuérpia.
propaganda pouco escrupulosa, denunciada pelo escritor Georges
Eekhoud em seu romance La Nouvelle Carthage, 1893, que trazia Referências
uma descrição naturalista do mundo de negócios antuerpiense. A. De Burbure de Wesembeek. Une anthologie de la marine belge. Antwerpen,1963; Gus-
Neste fervor náutico pelo Brasil, o governo municipal de An- taaf Asaert e. a. Antwerp: a port for all easons. Antwerpen, 1986; J. Vrelust (edit.) An-
tuérpia decidiu, em 1874, dar o nome de Braziliëstraat – Rua twerpen Wereldhaven. Over handel en scheepvaart. Antwerpen, 2012.
84
o comércio
dro Marques devia ainda fornecer cinco ‘sacas’. Ajau d’Acambi e para comprar e armar navios negreiros. Sobre os transportes por
Agenia estavam ainda em falta na sua conta de três e dez ‘sacas’. conta de Gantois encontram-se ainda alguns dados nos arquivos.
Pelo visto Edouard Gantois não era homem de sentimentos, mas Em 1836, o negreiro Atalaya realizou o Middle Passage em
de trato frio e funcional. 128 dias. No golfo de Benin carregou 284 escravos, dos quais 270
desembarcaram em La Havana. Uma segunda viagem no mesmo
Traficante de escravos e homem de negócios ano teve menos êxito, e uma carga de 121 escravos foi intercep-
tada pela marinha britânica na baía de Biafra. O ano de 1836 foi
Subsistem poucos dados biográficos sobre o traficante belga. turbulento para a firma Gantois, pois tinha também o Esperança
Apesar de sua posição proeminente no meio dos negociantes de na rota. Uma primeira viagem começou na Nigéria com 352 “pe-
Salvador, Edouard Gantois continua uma figura algo obscura. ças” e terminou na Bahia com 325 sobreviventes. Um segundo
Nascido no final do século XVIII, emigrou para o Brasil onde es- transporte com 477 “peças” foi confiscado. Oito anos mais tarde
tabeleceu uma firma comercial em Salvador. Lá ficou ativo entre Edouard Gantois continuava ativo no tráfico. Em abril de 1844
1830 e 1850 principalmente no tráfico de escravos, comércio ile- partiu a escuna A Felicidade, sob o comando do capitão J. J. da
gal mas lucrativo com agência na Rua d’Alfandega, na parte baixa Silva. Dos 589 escravos embarcados na África, depois de 73 dias
da cidade. Gantois era visivelmente um peixe graúdo no tráfico. de viagem para chegar à Bahia, apenas 530 resistiram. No mes-
Junto com seus parceiros, como o francês Guilhaume Pailhet e mo ano a guarda costeira brasileira interceptou outro navio de
o britânico Henry Marbach, dirigia uma empresa próspera, com Gantois. O bergantim A Fortuna tinha carregado em Lagos 630
vários navios. Nesse período de 20 anos fizeram pelo menos 36 escravos, dos quais 610 continuavam vivos. Em 1846 o iate Maria
transportes clandestinos, dos quais somente quatro foram intercep- partiu de Lagos com 178 africanos para a Bahia e chegou com 160
tados. Os barcos partiam de Salvador com tabaco, têxteis, açúcar, sobreviventes, que foram vendidos.
cachaça, armas e pólvora, que trocavam na África ocidental por Por volta de 1850 os negócios começaram a declinar. As autori-
escravos. Sua firma era lucrativa. dades brasileiras agiam com mais severidade e a West-Africa Squa-
Entretanto, o Brasil, seguindo a Grã-Bretanha e outros países, dron da marinha britânica patrulhava mais intensivamente a costa
proclamou em 1831 a ilegalidade do tráfico escravista. Se a escra- da África ocidental para interceptar os navios negreiros. A queda
vidão continuou existindo, o comércio transatlântico de escravos de Lagos foi um golpe definitivo para o tráfico. Em seu relatório
ficou proibido, mas a lei continuou letra morta. As fazendas e as de 24 de março de 1851, G. Jackson, Her Majesty’s Commissioner,
minas estavam tão dependentes da mão de obra escrava que as au- em Luanda, informou a apreensão, pelo West-Africa Squadron, de
toridades fechavam os olhos, ainda mais mediante propinas. Até 54 navios, de março de 1850 a 1851, o que levou à libertação de
1850 a introdução de escravos continuou sem maiores problemas um total de 4.841 escravos. Em decorrência, constatou-se a venda
e oferecia excelentes lucros a Gantois e seus colegas. mais difícil de escravos e a falência dos traficantes.
Em 1845 o cônsul francês, Mauboussin, considerou a chegada
de 5.542 escravos como a principal atividade comercial em Salva- O Terreiro do Gantois
dor. Dava bons lucros, já que, segundo o britânico Lord John Hay,
comprava-se um escravo por 10 dólares e vendia-se por 500 dólares Edouard Gantois deve ter ficado muito preocupado com a
no Brasil. Em seu informe consular, Mauboussin relacionava a notícia sobre a queda de Lagos. Pouco antes havia construído um
companhia belgo-francesa Gantois & Pailhet entre os traficantes navio para o Rei Kosoko e agora não podia mais recuperar seu
estrangeiros, que, aliás, desprezava como contrabandistas de hu- dinheiro gasto. Sem futuro para o tráfico, Gantois procurou ou-
manos. Seus principais portos eram Lagos, na Nigéria, e Ouidah, tras atividades comerciais. Isto transparece no relatório de viagem
no Benin, onde tinham seus agentes e depósitos. do Imperador Pedro II pelo Norte do Brasil em 1859. Aí Gantois
figurou como proprietário de uma fábrica de tabaco. Nove anos
Os navios de Gantois depois da abolição do tráfico reconverteu-se em industrial. Além
disso, investiu seus lucros do tráfico na compra de terras, que o
Uma ida e volta no trato dos viventes entre o Brasil e a África transformaram em latifundiário. Num destes terrenos formou-se
ocidental tomava de três a quatro meses, dependendo das escalas por meados do século XIX uma sociedade de candomblé, fundada
escolhidas e das eventuais paradas. Estima-se que, de 1800 até por mulheres Yoruba, que tinham chegado como escravas.
1860, foram traficados de 2 a 2,5 milhões de escravos africanos Foi o começo do Terreiro do Gantois, um dos templos mais
para o Brasil. A mortalidade nos tumbeiros era alta e em média antigos do culto sincretista afro-brasileiro, situado no atual distrito
de 10% a 20% não chegava ao fim da travessia. Mesmo assim era Federação, onde se localiza o campus da Universidade Federal de
um negócio lucrativo que atraía muitos comerciantes estrangeiros. Salvador. Entre os frequentadores do terreiro encontra-se gente de
Alguns combinavam com a venda de ferramentas e armas, ainda todas as classes sociais, das favelas aos condomínios ou aos meios
mais que lá serviam para a caça e a prisão dos escravos. O gandense artísticos. A cantora Maria Bethania celebrou numa de suas can-
Edouard Gantois era um deles e associou-se com outros traficantes, ções ‘minha mãe Menininha...’, a famosa mãe-de-santo Menininha
como o francês Guilhaume Pailhet e o britânico Henry Marbach, do Gantois, que ganhou prestígio nacional. Parece um destino irô-
85
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
nico que precisamente nas terras de um traficante floresceu uma Chris Delarivière é jornalista independente em Gand, autor de re-
das mais respeitadas comunidades do candomblé afro-brasileiro. portagens sobre a cultura e música popular brasileira, traduziu para
Em Salvador não se encontram mais rastros de Edouard Gan- o flamengo a História da Província de Santa Cruz, de Pêro de Maga-
tois. Mas, sim de seus parceiros, o comerciante britânico Henry lhães Gandavo, descendente de um flamengo de Gand.
Marback (Marbach), originário de Liverpool, que se tornou, na
segunda metade do século XIX, um dos homens mais ricos da Bibliografia sobre Gantois
Bahia. Com sua fortuna, ganha parcialmente no tráfico, comprou Pierre Victor Mauboussin. Rapport sur la traite de noirs à Bahia en 1846, Ministére des
no bairro do Bonfim uma casa grande com vista para a Bahia de Affaires Etrangères, Correspondance Consulaire et Commerciale, Consulat de Bahia
Todos os Santos. O Solar Marback ainda encontra-se lá, perto da Vol. 5;Transatlantic Slave Trade Database, <http://www.slavevoyages.org> ; Accounts
& Papers: 48 volumes (47 – Part I); Consuls; Slave Trade (Session 1852-1853), Vol.
igreja do Senhor do Bonfim, que protagoniza a maior festa religio- CIII-Part I; Pierre Verger.Flux et reflux de la traite des négres. Paris, 1968; Pedro Vas-
sa de Salvador, a Lavagem do Bonfim, na qual atuam tanto padres concelos. Salvador: transformações e permanências (1549-1999). Ilhéus, 2002.
católicos como mães-de-santo do candomblé.
Esse fuzil de caça de 2 tiros corresponde ao modelo conhecido como “brasileiro”, que era especialmente fabricado em Liège, na segunda metade do século XIX, para
exportação. Tais armas se caracterizavam por seu modo de carragamento pela boca, pelo seu mecanismo de disparo à percussão e pela escultura da coronha. Se trata de
um modelo de luxo, ricamente esculpido, gravado e incrustrado de ouro. A tampa da caixa de munição, situada na coronha, leva o brasão do antigo império do Brasil.
Um agradecimento a Claude Gaier, especialista do comércio de armas e ex-diretor do antigo Museu de Armas de Liège, pelas fotografias.
Os belgas se situaram no século XIX entre os maiores consumidores de café, com até 7
quilos por pessoa. Se o primeiro café brasileiro teria chegado ao porto de Antuérpia via
Lisboa já por volta de 1807, somente a partir de meados do século importaram-se grandes
quantidades. Entretanto, se vendia no varejo como café de Java, de maior reputação. A
origem brasileira começou a valorizar-se depois que, nas Exposições de Antuérpia, em
1885, e de Bruxelas, em 1910, milhares de visitantes puderam prová-lo gratuitamente nos
pavilhões do Brasil. Ganhou fama com a qualidade “Santos”, nome que um negociante
belga incorporou em 1910 na sua “compagnie brésilienne” de torrefação. Esta fornecia os
“Santos Palace”, salões de café, criados em Bruxelas e em cidades praieiras como La Panne.
86
o comércio
A Bélgica se envolveu muito cedo na construção da infraestrutura ferroviária do Brasil com a vinda do capitão Henri Vlemincx, que recebeu licença do exército belga
para dirigir de 1859 a 1865 o Serviço de Tráfego da Estrada de Ferro Dom Pedro II. Esta permissão deveria contribuir para levar encomendas de material ferroviário
para as metalúrgicas belgas. Estas, como as fábricas de Thy-le-Château, Cockerill, Ougrée, Marcinelle e Couillet, forneceram algumas locomotivas, mas principalmente
vagões de carga e trilhos para diversas estradas brasileiras como a Leopoldina, a Sorocabana, a Central da Bahia e a Central de Pernambuco. O equipamento mais
vultoso veio dos Ateliers franco-belges de la Dyle et Bacalan em Lovaina, que construiu o vagão do Imperador, conservado no Museu do Trem do Rio de Janeiro. Esta
empresa franco-belga participou no capital da Compagnie Générale des Chemins de fer brésiliens, que começou a partir de 1879 a realizar a concessão da linha
Curitiba-Paranaguá e abriu uma filial em Curitiba. Em 1888 se mostrou em Lovaina uma exposição de fotografias dos viadutos instalados no Brasil, mas o Álbum feito
para esta ocasião ainda não foi encontrado ou se perdeu. Nesta onda, financistas belgas, principalmente Franz Philippson, cujo nome se deu a uma colônia judaica da
Jewish Relief Association no Rio Grande do Sul, mobilizaram capitais belgas para a construção e exploração de concessões de ferrovias entre São Paulo e o Rio Grande
do Sul e organizaram em 1891 a Compagnie des Chemins de Fer Sud-Ouest Brésiliens e em 1898 a Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer au Brésil. Seu capital
atingiu perto de 75 milhões de francos belgas para construir e gestionar uma rede de quase 2.500 km. O material foi fornecido pelas fábricas de Braine-le-Comte. Seu
diretor, o engenheiro Gustave Vauthier, que teve sua primeira experiência na construção da estrada de ferro Matadi-Léopoldville, no Congo, construiu a Estação e a Vila
Belga de Santa Maria. Os belgas se interessaram desde 1904 pela organização da estrada de ferro Noroeste e forneceram material ferroviário ainda na década de 1920.
87
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
88
o comércio
O sistema de estacas de concreto armado moldadas e cravadas no solo para sustentar grandes construções foi aperfeiçoado por um engenheiro de Liège, Edgard
Frankignoul e patenteado como ‘estaca Franki’. Para operar na construção pesada pelo mundo inteiro, fundou em 1911 sua Compagnie Internationale des Pieux
Armés Frankignoul. Em 1935 abriu uma filial brasileira no Rio de Janeiro, que interveio na construção de grandes prédios, como a Estação Dom Pedro II e Ministério
da Educação e Saúde, e de obras como o túnel 9 de Julho, em São Paulo. A seguir operou no Brasil inteiro e teve participação importante em obras em Brasília. Desde
1938 contou com a colaboração de engenheiros brasileiros e em janeiro de 1940 se transformou em empresa brasileira, Estacas Franki, com capital de um milhão de
cruzeiros. Criou em 1942 seu próprio Laboratório de Mecânica dos Solos. Dessa forma, constituiu um caso exemplar de empresa estrangeira rapidamente integrada na
tecnologia e na economia nacional.
89
empresas belgas no brasil
A primeira exploração sistemática de recursos minerais em Corumba se deu entre A Compagnie contou com mão de obra vinda do Uruguai e da Bolívia para a
1907 e 1918 pela atividade da Compagnie de l’Urucum. abertura de minas nas cotas superiores do maciço do Urucum.
90
empresas belgas no brasil
91
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
92
empresas belgas no brasil
corre para o Oeste: estudo sobre a Noroeste e seu papel no sistema de viação nacio-
nas”. Não me foi possível, até o momento, identificar claramente nal. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos [s.d.]. 222 p.; CASTRO, Maria Inês Malta. O
a nacionalidade de nenhum desses personagens, nem de outros preço do progresso: a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (1905-1914).
Campinas, 1993. 293 f. Dissertação (Mestrado em História) – IFCH/Unicamp; DIAS,
que, ao longo dos anos seguintes, aparecem como dirigentes ou
José Roberto de Souza. Caminhos de ferro do Rio Grande do Sul: uma contribuição ao
acionistas da Cia., como Gaston Hamelin, Jean Jourdan, Parmen- estudo da formação histórica do sistema de transportes ferroviários no Brasil meridio-
tier, J. Bartholomé, George Prévault, Charles Rau, Léon Maître e nal. São Paulo: Ed. Rios, 1986; ENG. João Teixeira Soares. Engenharia, São Paulo:
Instituto de Engenharia, v. 7, n. 74, p. 53-54, out. 1948; Legislação federal brasilei-
Hubert Laroze. Contudo, levando em conta os resultados que ob-
ra (leis e decretos), disponível em: <www.camara.gov.br> e <www.senado.gov.br>;
tive em buscas pela internet, inclino-me a dizer que se tratava, na QUEIROZ, Paulo R. Cimó. As curvas do trem e os meandros do poder: o nascimento
maioria, de cidadãos franceses – o que contribuiria para confirmar da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (1904-1908). Campo Grande: Ed. UFMS,
1997. 163 p.; QUEIROZ, Paulo R. Cimó. Uma ferrovia entre dois mundos: a E. F.
a observação de Fernando de Azevedo, segundo a qual a Cia. EF-
Noroeste do Brasil na primeira metade do século 20. Bauru: Edusc; Campo Grande:
NOB foi formada por “capitais mistos, brasileiro e franco-belga”. Ed. UFMS, 2004; RELATÓRIO da diretoria da Companhia E. F. Noroeste do Brazil
apresentado à assembleia-geral ordinária realizada em 11 de junho de 1906. Rio de
Janeiro: Typ. de Heitor Ribeiro & C., 1906; RELATÓRIO da diretoria da Companhia
Paulo Roberto Cimó Queiroz, Doutor em História pela Universida-
E. F. Noroeste do Brasil apresentado à assembleia-geral ordinária realizada em 14 de
de de São Paulo, com estágio de pós-doutoramento na Universidade agosto de 1907. Rio de Janeiro: Typ. do “Jornal do Commercio”, de Rodrigues & C.,
Federal Fluminense. É Professor Associado da Universidade Federal 1907; RELATÓRIO da diretoria da Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do
Brazil apresentado à assembleia-geral ordinária realizada em 16 de outubro de 1911.
da Grande Dourados (Mato Grosso do Sul) como docente e orienta-
Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger, 1911; RELATÓRIO da diretoria [da Companhia de
dor nos cursos de graduação e pós-graduação em História (Mestrado Estradas de Ferro Noroeste do Brasil referente ao ano de 1916]. São Paulo: Estab.
e Doutorado). Graphico “Universal”, 1917, 119 p.; STOLS, Eddy. Présences belges et luxembour-
geoises dans la modernisation et l’industrialisation du Brésil (1830-1940). In: DE
PRINS, Bart; STOLS, Eddy; VERBERCKMOES, Johan (ed.). Brasil: cultures and
Referências economies of four continents – cultures et economies de quatre continents. Leuven:
Atas de assembleias e relatórios da diretoria da empresa, publicados no Diário Oficial da Uitjeverij Acco, 2001, p. 121-164; TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da enge-
União, disponíveis em: <www.jusbrasil.com.br>; AZEVEDO, Fernando de. Um trem nharia ferroviária no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Notícia & Cia., 2011.
93
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
94
empresas belgas no brasil
Gruschke foram os responsáveis pelo projeto urbanístico da ci- Entre 1920 e 1933 deu-se a expansão do projeto da cidade
dade industrial da SCBB, com a colaboração administrativa do industrial da SCBB, pois, devido à crescente demanda de operá-
superintendente da sociedade anônima no Brasil, o industrial Wi- rios, uma quantidade significativa de intervenções urbanísticas foi
lhelm Bauer, natural da cidade de Malines, que foi nomeado pelo acrescida à tessitura urbana em benefício da funcionalidade da fá-
Conselho de Anvers. A edificação da cidade belga em um antigo brica têxtil e da reprodução socioespacial. Para isso, uma missão de
engenho de açúcar norteou uma nova lógica socioespacial para a engenheiros e arquitetos belgas, sob a direção de Pieter Gruschke,
localidade, instituindo assim o efetivo aproveitamento da mão de planejou o crescimento urbano da localidade. Foram construídas
obra campesina, ora ociosa (por conta da falência da agroindústria 36 vilas residenciais que triplicaram a oferta de moradia na cidade
do açúcar), que foi especializada para ocupar as funções de oleiro, industrial, com destaque para a Villa Saint-Nicolas-Waes, com 17
pedreiro e posteriormente de operário (Bauer, 1915, p. 5, 18-32). casas em estilo “La Maison Flamande”, em bloco de fileira e com
A implantação da cidade industrial da SCBB foi delineada fachadas em tijolos aparentes. Assim foi expandida a composição
aproveitando-se a espacialidade do engenho São Sebastião quanto das alamedas e dos arruamentos paralelos a partir da linearidade
à infraestrutura de vias (a Estrada Real e a Ferrovia Recife-Vitória da rodovia (Gruschke, 1948, p. 29, 55-73).
de Santo Antão), os recursos naturais (o Rio Jaboatão, as matas Outros edifícios singulares e equipamentos coletivos foram
nativas e o solo) e a situação locacional caracterizada por uma construídos, sendo as principais obras o Mercado Central (1922),
topografia de colinas. Na estrutura espacial do engenho eviden- a Praça das Bandeiras (1923) com morfologia em uma cruz cel-
ciou-se um processo de desmanche com o plantio de 2 milhões de ta, apresentando projeto paisagístico arbóreo de fícus e pinheiros,
mudas de eucalipto (nas áreas de cana-de-açúcar), a reutilização e a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição (1930) com a
dos edifícios singulares (casa-grande, capela, senzala, conjunto do fachada inspirada na L’église Notre-Dame-de-l’Immaculée-Concep-
cemitério e outros prédios rurais) e o aproveitamento do traçado tion de Liège. Quanto à infraestrutura, as principais obras foram a
viário com as novas edificações localizadas às margens da Estrada ampliação do anel ferroviário interno da fábrica têxtil, o calçamen-
Real formando alamedas (apresentando paisagismo arbóreo de to em paralelepípedo de alamedas e ruas e a implantação da rede
flamboyants e castanholas). Assim, o traçado ortogonal do lugar elétrica e do sistema de esgoto que beneficiou todos os operários
belga, com tendência à espontaneidade da topografia íngreme, do lugar belga (Suettinni, op. cit., p. 85, 88-94).
foi delineado por um cinturão verde circundante, com a primei- Desse modo, com a finalização do projeto urbanístico, a cida-
ra secção de floresta de eucaliptos e a segunda de mata atlântica, de industrial da SCBB aumentou a autossuficiência econômico-
demarcando o fim do perímetro urbano em meio a um território -espacial e, paralelamente, passou a ser denominada e reconhecida
entremeado de engenhos de açúcar, canaviais e extensas áreas de por belgas e brasileiros como Nouvelle-Anvers.
vegetação nativa (Suettinni, op. cit., p. 66-72, 74-77). Com o passar dos anos, foi acrescida à tessitura da cidade in-
O projeto urbanístico foi efetivado no platô a partir da centra- dustrial belga a construção de outras vilas operárias, equipamentos
lidade do edifício da fábrica têxtil e localizado estrategicamente coletivos e edifícios singulares, com a manutenção efetiva que a
próximo à estação ferroviária. Nessa área central foram dispostos sociedade anônima realizava no ambiente construído, como no
os prédios de apoio técnico, a termoelétrica, as lojas de comércio e serviço de recolhimento de lixo realizado pela intendência da ci-
serviços, a praça da feira, as 12 vilas operárias, o conjunto de chalés dade industrial.
de diretores e técnicos, uma Villa Belge como casa da superinten- Com a II Guerra Mundial (1939-1945), a sociedade anônima
dência, as duas escolas, o posto de saúde, o campo de futebol, a SCBB perdeu os seus contatos com Anvers, mas manteve-se como
pista de patinação e outros edifícios e logradouros públicos (com- empresa estrangeira no Brasil com os produtos da fábrica têxtil sen-
pondo as alamedas ou formando arruamentos paralelos). A fábrica do exportados para os Estados Unidos e o Canadá, como também
têxtil era circundada por um anel de trilhos que, através de um atendendo ao mercado interno. E em 1950 a sociedade anônima
ramal, estava ligado à estação ferroviária para facilitar a logística conseguiu concluir a edificação e instalação da indústria subsidi-
da cadeia produtiva (Selvais, 1921, p. 19-78). ária da fábrica têxtil, a Tissage Wallonie-Flandre Et Cie. (Société
A primeira fase do projeto da Cidade Industrial da SCBB deu- Cotonnière Belge-Brésilienne, 1966, p. 18, 43-67).
-se entre 1910 e 1915, com a inauguração e o funcionamento efeti- Por conseguinte, a situação do pós-guerra na Europa, mesmo
vo da fábrica têxtil, que abrigou mais de 3.000 operários, oriundos com a salvaguarda do Plano Marshall, e a crise da safra de algo-
da área de entorno de Recife, e de várias localidades do Nordeste dão no Nordeste brasileiro, que afetou o setor da indústria têxtil,
do Brasil, como também 123 executivos e técnicos belgas imigra- afora o incentivo para que a industrialização local fosse centrali-
ram com suas famílias para residir no “Lugar Belga” em Pernam- zada no Sudeste do país, fez com que a sociedade anônima SCBB
buco. Nessa fase, o advento da I Guerra Mundial na Europa im- encerrasse as atividades no Brasil em 1966 e, assim, repassasse as
pediu que o projeto urbanístico final fosse concluído em prol do ações dela para um grupo local, com participação acionária de
efetivo funcionamento da fábrica têxtil da SCBB no Brasil (Jean, dois executivos da SCBB apenas, denominado Brasil-Belgo Union.
op. cit., p. 35-40).
Jean Suettinni é Mestre em Projeto da Cidade e da Arquitetura pelo
Implantação da cidade industrial da SCBB. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU)
95
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (Deau) da Universi- BAUER, Wilhelm. Rapport au Conseil d’Anvers (1907-1917). S.C.B.B.: Pernambouc
dade Federal de Pernambuco (UFPE); Urbanista e historiador (B.Sc.) (Brésil), 1917.
SELVAIS, Fernand. Rapport au Conseil Général du S. C. B. B. (1907-1920). LADM /
pela UFPE; presidente-fundador do Instituto de Estudos Históricos S.C.B.B.: Pernambouc (Brésil), 1921.
Belgo-Brasileiros; organizador/pesquisador e detentor dos Direitos Do- Gruschke, Peter. Rapport au Conseil d’Anvers (1920-1948) ). LADM / S.C.B.B.: Pernam-
cumentais do Acervo da SCBB/Groupe LADM no Brasil e na Amé- bouc (Brésil), 1949.
SOCIÉTÉ COTONNIÈRE BELGE-BRÉSILIENNE. Rapport de Monsieur Charles De
rica Latina. Vocht au conseil général du S. C. B. B. LADM / S.C.B.B.: Anvers, 1966.
Suettinni, Jean. Um Lugar Belga em Pernambuco: o Núcleo Fabril da Société Coton-
Referências nière Belge-Brésilienne S.A. (1907 – 1966). Tese de Mestrado apresentada ao Progra-
ma de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU) do Departamento de
SOCIÉTÉ COTONNIÈRE BELGE-BRÉSILIENNE. Statut Général. LADM / S.C.B.B.: Arquitetura e Urbanismo (Deau) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
Anvers, 1907. sob a orientação da PhD. Dra. Lúcia Leitão. Recife: MDU/DEAU/UFPE, 2011.
96
empresas belgas no brasil
Vista parcial da Solvay Indupa em Santo André. Ao fundo, instalações fabris, 1947.
fornecida pela Light & Power através da usina de Cubatão. E as- Cerimônia na Solvay Indupa em 1948 com a presença do prefeito de Santo
sim garantia-se a produção de cloro e soda cáustica. André, Antonio Flaquer, e comitiva.
Em 1945, a Solvay lançou a pedra fundamental da fábrica e
na sequência iniciou a terraplenagem. O período coincidiu com renomadas universidades e importante polo de pesquisa e ino-
a desativação de vários canteiros de obras de outro grande empre- vação no Brasil.
endimento na mesma região, a construção da Rodovia Anchieta, Esta preocupação de se estabelecer próxima ao setor acadê-
que liga a capital paulista a Santos. mico para a promoção da cultura do saber sempre permeou as re-
Os trabalhadores aos poucos foram migrando para a constru- lações da Solvay com a comunidade. No Brasil não foi diferente.
ção da Indústrias Químicas Eletro Cloro. E os bons ventos sopra- E a Educação merece um capítulo à parte dentro da história do
ram a favor da Solvay, pois essa mão de obra estava habituada ao Grupo no País.
clima úmido e a então hostil região da Mata Atlântica. Desde sua fundação, a Solvay aporta capital expressivo para
A inauguração foi em 16 de julho de 1946, um dia com cli- o desenvolvimento de seus empregados e da comunidade em ge-
ma bastante comum ao local: nublado. A produção inicial era de ral. Faz parte da política de Relações Humanas (RH) do Grupo
cerca de 1 tonelada de cloro por dia. E, não demorou muito para o financiamento parcial de estudos que visem o aprimoramento
que a empresa belga começasse a confiar a brasileiros natos postos profissional dos empregados.
de comando dentro da organização. O primeiro a assumir como Localmente, o primeiro grande projeto educacional nasceu
chefe de produção foi o engenheiro Leonel Luciano, formado junto com a Vila Elclor, por intermédio do estabelecimento legal
pelo Instituto Mackenzie de São Paulo. Ingressou na Eletro Clo- de uma escola de ensino fundamental para os filhos dos funcioná-
ro em 1956 e lá permaneceu até 1991. Durante esse período, fez rios, cujas vagas remanescentes eram disputadas pela comunidade,
especialização no exterior e se destacou em sua área de atuação. devido ao reconhecimento da qualidade do ensino.
A partir do start-up da Eletro Cloro, gradativamente a Solvay Ano após ano, a disputa por uma das bolsas de estudo destinada
passou a desbravar outras fronteiras territoriais e de atuação in- a estagiários de diferentes campos de atuação científica é acirrada.
dustrial dentro do Brasil. Adquiriu o controle acionário da Enisa Por meio dos estágios, a empresa permite que jovens testem na
(Empresa Salineira e de Navegação Igoronhon S.A.), localizada prática supervisionada os ensinamentos teóricos de cursos técni-
em um complexo de ilhas (Caieira, Garça, Beirada Funda, Enfor- cos e superiores, oferecendo-lhes o primeiro contato real com o
cado, Igoronhon e Carrapato) no Estado do Maranhão. Em Minas mundo industrial e corporativo. Em 2013, as bolsas de estágio,
Gerais, comprou a CBCC (Companhia Brasileira de Carbureto formalmente estabelecidas com instituições de ensinos superior
de Cálcio), situada no município de Santos Dumont. e técnico, atenderam a 250 jovens estudantes brasileiros.
Outra empresa agregada foi a Malharia Industrial do Nor- Mundialmente, todas as empresas Solvay também são orien-
deste, no Distrito Industrial de Paulista, cidade a 20 km de Re- tadas a analisar as solicitações de apoios ou patrocínios primei-
cife, Pernambuco. Também fez parte das aquisições a Plavinil, ramente pelo ângulo educacional do projeto, de acordo com o
no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, capital. A Peróxidos tripé social do Desenvolvimento Sustentável. Esta regra é válida
do Brasil integrou-se ao rol de negócios no qual a Solvay passou inclusive para os programas sociais próprios, desenvolvidos com as
a atuar; e neste caso com o caráter de joint venture, com a bra- comunidades vizinhas às fábricas. Esta determinação segue em li-
sileira Produtos Químicos Makay. Já o início das atividades no nha com uma das paixões expressas por Ernest Solvay, que ansiava
setor veterinário se deu com a aquisição da Salsbury Laboratórios pela disseminação do conhecimento e de sua disponibilidade no
Ltda., em Campinas, no Estado de São Paulo, cidade dotada de apoio às pesquisas em todos os campos da ciência.
97
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
Justamente essa ampla visão voltada à aquisição de conheci- Paulo, que passou a se chamar Solvay Farma. Nessa mesma déca-
mento e de constante aprimoramento de suas competências so- da, o Grupo Solvay forma, no município de Osasco, região me-
ciais e fabris levou a Solvay a ousar na diversificação de portfólio tropolitana de São Paulo, a Dacarto Benvic, no sistema de joint
e de atuação industrial na década de 1980. Já no limiar de 1990, venture (50%-50%) com a Dacarto S.A. Indústrias de Plásticos, para
resolveu rebatizar a Eletro Cloro como parte de sua estratégia de atuar no segmento de compostos de PVC.
reconhecimento à boa acolhida em solo brasileiro. A empresa Desde o início de operação da antiga Eletro Cloro, em 1946, o
passou a denominar-se Solvay do Brasil S.A. Brasil sempre esteve no foco das estratégias de crescimento da Sol-
A Solvay S.A., na Bélgica, realizou vários ajustes e reorientação vay. Esse ponto de vista se fortaleceu em 2011, quando adquiriu
de atuação nos anos 1990. Essas alterações atingiram os negócios 100% da francesa Rhodia. Localmente, foram agregados ao Grupo
locais. Foi a partir do know-how adquirido na fábrica de Santo cinco unidades industriais e um centro de Pesquisa e Desenvolvi-
André que o Grupo resolveu explorar os mercados da América do mento, situados no Estado de São Paulo. Também se integraram
Sul por intermédio da aquisição, em 1996, de 51% das ações da à carteira da Solvay no País os negócios de aroma performance,
Indupa S.A.I.C., na Argentina, pioneira no setor petroquímico da- fibras industriais e têxteis, energia renovável, plásticos de engenha-
quele país. No mesmo ano, ainda em terras argentinas, foi criada ria, poliamida e intermediários, sílica, solventes e a área que atua
a Solvay Automotive Argentina. nos mercados de produtos de alto desempenho para uma ampla
Os anos 2000 também foram bastante férteis para a Solvay. variedade de indústrias, incluindo as de cosméticos, produtos de
Marca sua entrada local no segmento de saúde humana com a limpeza, agroquímicos e óleo, assim como para aplicações indus-
compra dos Laboratórios Sintofarma, em Taboão da Serra, São triais. O Grupo Solvay emprega hoje cerca de 3.000 funcionários.
98
empresas belgas no brasil
Junto com o legado da francesa Rhodia no Brasil, a Solvay nhado à estratégia global, dentro do programa denominado Solvay
recebeu ainda o Instituto de mesmo nome, entidade sem fins lu- Way, fortemente ancorado no incentivo à inovação para o forneci-
crativos que atua em projetos sociais ligados à educação comple- mento de produtos que atendam aos desafios do desenvolvimento
mentar, atendendo adolescentes e jovens de baixa renda, de 12 a sustentável. Esse programa começou a ser implantado em 2013
24 anos, nas comunidades onde a empresa tem atuação industrial em todas as empresas do grupo, e esta abordagem já integra os
e ou comercial. Em reconhecimento à força da marca localmente, planos estratégicos de cada um dos negócios.
o Brasil foi o único país que manteve o nome Rhodia após recente Dessa forma, a Solvay segue rumo aos próximos 150 anos cien-
alinhamento mundial de branding, que incluiu a reestruturação te de seu papel como empregador responsável e uma empresa com
da logomarca do Grupo. atuação cidadã, que enxerga em cada um de seus stakeholders a
As sinergias entre os dois legados são maiores do que as dife- possibilidade de juntos continuarem a construção de um mundo
renças, o que facilita a condução dos negócios em nível mundial. mais igualitário e melhor para todos. Assim como em 1863 já pen-
O futuro do Grupo Solvay no Brasil também já está traçado e ali- sava e agia Ernest Solvay.
Tractebel Energia
Geração de energia de biomassa; a Tractebel Energia é a maior geradora privada Geração de energia eólica; em 2012 as usinas da Tractebel somavam 8.630
de energia do Brasil, está presente em 12 Estados e opera 22 usinas, entre MW de capacidade instalada, o equivalente a cerca de 7% do total de energia
hidrelétricas, termelétricas e complementares. consumida no Brasil.
99
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
Geração de energia por hidrelétricas; a Tractebel Energia foi criada em 1998 sob controle da Tractebel, com sede na Bélgica.
prevenção e a mitigação de possíveis impactos causados ao meio nas. A infraestrutura oferecida à comunidade conta com anfiteatro
ambiente em função de suas atividades. Para isso, a Tractebel de- para 150 pessoas, salas para oficinas de inclusão digital, cursos de
senvolve uma série de programas e projetos focados na melhoria capacitação, biblioteca, museu e espaço para exposições. Assim,
ambiental das regiões onde está inserida, o que inclui a prote- propicia o intercâmbio de companhias de dança, teatro, música e
ção de nascentes, a conservação da flora e da fauna, a educação outras manifestações artístico-culturais de diversas regiões do Brasil.
ambiental, o investimento em fontes renováveis e o combate ao Também participa do desenvolvimento cultural das comuni-
aquecimento global, entre outras ações. dades com o apoio a projetos de inciativas locais, contemplando
manifestações tais como cinema, música, teatro, dança e litera-
Parceria com a comunidade tura. Além disso, apoia ações voltadas à inclusão social, geração
de emprego e renda, educação, promoção da saúde e erradica-
Por meio de parcerias com agentes locais, a Companhia bus- ção da miséria.
ca colaborar de forma decisiva com o desenvolvimento humano
das comunidades situadas no entorno de seus empreendimentos, Criação de valor
engajando-se em ações voltadas à qualidade de vida, à valorização
cultural e à conquista da cidadania. A postura empresarial diferenciada em relação à sustentabi-
Exemplo disso são os centros de cultura, uma das ações sociais lidade, somada a boas práticas de governança corporativa, con-
patrocinadas pela Companhia nos últimos anos. Implantados em ferem credibilidade e solidez à Tractebel Energia no mercado.
cidades de pequeno porte, esses centros têm como objetivo criar A Companhia faz parte do Novo Mercado e integra o Índice de
um importante vínculo entre as memórias étnicas e culturais da Sustentabilidade Empresarial (ISE) da BM&F Bovespa desde
comunidade local e a construção de um futuro no qual as pesso- 2005 – ano de criação do ISE. Na última década, a Tractebel
as tenham mais oportunidades de preservar suas tradições e de Energia vem alcançando ótimos resultados, e suas ações regis-
conquistar cidadania por meio do acesso à cultura e à educação. traram valorização ascendente. Uma prova de que a opção pela
O primeiro projeto nesse sentido foi inaugurado em 2011, no sustentabilidade garante o bom desempenho econômico-finan-
município de Entre Rios do Sul, no Rio Grande do Sul, com pou- ceiro de uma organização.
co mais de 3 mil habitantes e localizado na área de influência da E assim, aliando os valores trazidos da França e da Bélgica
Usina Hidrelétrica Passo Fundo. Desde que começou a funcionar, por seus controladores ao potencial local e à cultura brasileira, a
este Centro já recebeu cerca de 20 mil visitantes, tanto para assistir Tractebel Energia mantém seu compromisso com a construção
a espetáculos e exposições quanto para participar de cursos e ofici- de um Brasil cada vez melhor.
100
empresas belgas no brasil
101
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
Draga de sucção autotransportadora Cristobal Colon, que, com seus 46.000m³, é a maior draga do mundo, adentrando o porto do Rio de Janeiro, 2011.
Obras de Aterro: Açu (LLX – 2011) e Itaguaí (Odebrecht – O Grupo Jan De Nul continua fortalecendo sua atuação no
2011/2012); Brasil, trazendo equipamentos de última geração e treinando fun-
Dragagem de Manutenção: Rio Grande (SUPRG – 2012), São cionários brasileiros para que atinjam alto nível de qualificação.
Luís (Vale – 2012/2015); Assim sendo, o Grupo Jan De Nul continua evoluindo com o Bra-
Aprofundamento e Serviços Ambientais: Santos (Embraport sil, criando o mundo do amanhã.
– 2012/2013).
102
empresas belgas no brasil
Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a orga- São Paulo. Em seguida, outros projetos de engenharia e operações
nização deu início a novas atividades: armazenagem em seus pró- in house foram executados para clientes petroquímicos brasileiros.
prios depósitos, transporte, expedição, declaração aduaneira. Nos O grande crescimento no Brasil foi alcançado com a compra
anos 90, os serviços especializados para o setor automobilístico, de um prestador de serviços logísticos brasileiro, JOB, com sede
químico e petroquímico e de grande distribuição foram agregados. em Camaçari, Salvador (BA). A primeira sede da Katoen Natie
Em 1995, a Katoen Natie investiu pela primeira vez no exte- estava por consequência na Bahia. Katoen Natie cresceu para ser
rior, abrindo uma filial em Sarralbe (França). Depois disso, as ati- o líder do mercado de serviços logísticos para a indústria petro-
vidades se expandiram para todas as partes do mundo. Atualmente, química no Brasil com atividades desde o Rio Grande do Sul até
a Katoen Natie é uma empresa de porto mundial com operações Alagoas, passando por Paraná, São Paulo, Rio do Janeiro e Bahia.
em 27 países distribuídos por Europa, Oriente Médio, América do A Katoen Natie já desenvolveu dois centros próprios de distri-
Norte, América do Sul, Ásia e África. Consiste de 400 unidades buição multimodais no Brasil: um em Paulínia, região de Campi-
operacionais, com 150 terminais e plataformas de logística, com nas (SP) e um em Araucária, região de Curitiba (PR). O primeiro
mais de 10.000 pessoas. foi construído em 2001 e Paulínia foi escolhida como localização
A Katoen Natie atua no mundo inteiro. É uma empresa priva- por ser o ponto de interconexão das maiores empresas concessio-
da e não está listada no mercado de ações, de forma que as deci- nárias ferroviárias, oferecendo as duas bitolas aplicadas no Brasil.
sões são tomadas como parte de uma visão de longo prazo. Opera Esta plataforma logística de mais de 50.000 m² de armazéns e
terminais portuários, centros de distribuição e operações on-site mais de 70 ha de terrenos funciona como Centro de Distribuição
(in house). O grupo também fornece todos os tipos de serviços por clientes brasileiros e internacionais do ramo automotivo, in-
semi-industriais, projeta, desenvolve e administra plataformas de dustrial, de bens de consumo e petroquímico.
logística e cadeias de fornecimento completas. Finalmente, a sede da Katoen Natie do Brasil foi transferida
Em 1997 a Katoen Natie começou operações no Brasil a con- para Paulínia,de onde controla mais de 20 operações empregan-
vite de um de seus clientes mundiais da indústria petroquímica. do mais de 850 pessoas. Com essa estrutura a Katoen Natie está
Um primeiro projeto de engenharia, inclusive de silos, linha de preparada para oferecer uma solução logística para a economia
embalagem e armazém, foi realizado em Santo André, ao lado de brasileira numa fase de forte crescimento.
103
empresas brasileiras na bélgica
104
empresas brasileiras na bélgica
As dificuldades técnicas para trabalhar com uma tela de várias dinheiro, o que provocou uma briga judicial entre os dois artistas.
dezenas de metros de comprimento obrigaram Meirelles e Lan- Langerock queria receber mais do que o estipulado. Já no folheto
gerock a programar a realização do Panorama, a partir de estudos assinado por Meirelles, foi inserida, certamente a pedido do belga,
pintados no Rio de Janeiro, num grande espaço na Europa. Como uma nota esclarecendo que era obra de dois artistas e que ele tinha
Londres não tinha naquele momento uma rotunda disponível, pintado a parte oriental. Langerock saiu da sociedade, ao passo
decidiu-se por um ateliê em Ostende. Na escolha desta cidade que Meirelles levou a obra a Paris para instalá-la numa avenida
belga influíram, além dos vínculos pessoais de Langerock, vários perto da Exposição Universal de 1889. Se ganhou lá boas aprecia-
motivos. Suas confortáveis instalações balneárias podiam facilitar ções e uma medalha de ouro, pelo excesso de outros espetáculos
uma estada longa dos dois pintores por mais de um ano. Por es- e panoramas, não recebeu visitantes suficientes e os resultados
trada de ferro, tinha proximidade com Bruxelas, onde existia uma financeiros não corresponderam às expectativas.
rotunda num boulevard da cidade. A Bélgica parecia uma boa al- Em falta de outras oportunidades na Europa, Meirelles trans-
ternativa para a Inglaterra em vista dos crescentes interesses eco- feriu a obra para o Rio de Janeiro. Numa rotunda construída no
nômicos brasileiros naquele país. O Brasil tinha participado com Largo do Paço Imperial, futura Praça XV, o Panorama foi inaugu-
algum êxito da Exposição Universal de Antuérpia em 1885 e era rado em 3 de janeiro de 1891 e ficou aberto pelo menos por dois
representado naquela época por um dinâmico e bem relacionado anos, se bem que num período muito conturbado. A tentativa de
diplomata, conde de Villeneuve. Meirelles para incluí-lo na Exposição Colombiana de Chicago
Em 4 de abril de 1888 abriu-se sua primeira exibição em Bru- em 1892 malogrou. Como previsto no ato de fundação, a empresa
xelas na presença da rainha belga Marie-Henriette. Um folheto foi dissolvida em 1893 com pagamento de dividendos aos sócios.
de 14 páginas, Panorama de la ville de Rio de Janeiro exhibé en A rotunda parece ter acolhido depois outras telas panorâmicas de
Europe et à Bruxelles pour la première fois, impresso em Bruxelas, Meirelles até que, em 1898, a prefeitura, que não devia apreciar
identificava o espetáculo em todos seus pormenores. Insistia muito muito este pintor do antigo regime imperial, mandou demolí-la.
na modernidade desta grande cidade e ousava comparações com A tela do Panorama do Rio de Janeiro, de boa qualidade artística
a Europa, sem dúvida para impressionar e tranquilizar os investi- segundo os críticos da época, foi doada por Meirelles ao governo
dores e acionistas europeus e os eventuais candidatos a emigração em 1902, mas, abandonada na Quinta da Boa Vista, desgastou-
entre os artesãos e operários. Indicava assim a fumaça das quatro se por completo. Somente os seis estudos preparatórios ficaram
chaminés da fábrica de gás, que acabava de ser adquirida em 1886 preservados no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro.
por capitais belgas e que assegurava agora a iluminação noturna Quase um século mais tarde apareceram novas empresas bra-
de toda a cidade. Esta, com 400.000 almas, ou 800.000 com os sileiras na Bélgica. Pouco depois da chamativa Brasil Export em
subúrbios incluídos, tinha um intenso tráfico de vapores a cada 15 Bruxelas, em novembro de 1973, a Rio Doce Internacional, sub-
minutos para Niterói, um serviço abundante de bondes com mais sidiária da Cia. Vale do Rio Doce, abriu em 1974 um escritório
de 100.000 passageiros por dia, grandes reservatórios de água, ou em Bruxelas, dirigido por Eliezer Batista até sua volta, em 1979,
seja, setores que podiam suscitar investimentos belgas. à presidência da sede no Brasil. O Banco do Brasil abriu uma
Seu status de capital econômica se evidenciava ainda nos gran- agência em Bruxelas em 1992. Se ambas empresas já deixaram a
des edifícios da Alfândega e dos Correios, na Bolsa em constru- Bélgica, entrementes chegaram novas. Em 1992 a WEG, fabri-
ção e nos bairros de Tijuca, com as residências dos homens de cante de motores e sistemas industriais elétricos, de Jaraguá do
negócios estrangeiros, e de Santa Teresa, acessível com um tren- Sul, SC, estabeleceu-se em Nivelles. A Citrovita da Votorantim
zinho em plano inclinado. A abertura recente da Rua Senador abriu, em 1993, em Antuérpia um terminal para a distribuição
Dantas, onde se podia ver a carroça do Imperador e os planos de suco de laranja, ampliado em 2008 para armazenar também
para arrasar os morros de Santo Antônio, do Castelo e do Senado, outros produtos do grupo, celulose e metais. Sobretudo o porto
anunciavam um urbanismo ambicioso e as obras de saneamento. de Gand viu crescer a presença brasileira para a distribuição de
Destacavam-se as diversões públicas e a vida cultural: a praia de minérios e produtos do agronegócio. Depois da Citrosuco da Fis-
Icaraí, que oferecia banhos de mar tão bons como em Ostende ou cher, a Louis Dreyfus abriu seu próprio terminal para o suco de
Blankenberghe; os belos jardins com cascadas de São Cristovão; laranja em 2000. Em 2011 veio a Cia. Brasileira de Logística, de
o Passeio Público, onde se davam concertos nas noites de bom Curitiba, que armazena biodiesel, e em 2013 a JBS para a distri-
tempo; a biblioteca do Gabinete Português de Leitura, em estilo buição de carne. A Duratex instalou um centro de distribuição
manuelino, e o Teatro São Pedro, onde atuara recentemente Sa- em Mechelen (Malines) em 2005.
rah Bernhardt. A subida por trem em 40 minutos ao Corcovado,
muito procurado pelos turistas estrangeiros, já superava a mais Bibliografia sobre o Panorama do Rio de Janeiro
famosa de Righi, na Suíça. Panorama de la ville de Rio de Janeiro exhibé en Europe et à Bruxelles pour la première
Durante seis meses o Panorama atraiu cerca de 50.000 visitan- fois, Bruxelas, 1888; Mário César Coelho, Os panoramas perdidos de Victor Meirelles,
tes, em parte escolares com tarifa reduzida. Pode ter melhorado a Tese de doutorado em história UFSC, Florianópolis, 2007; Donato Mello Junior. O
Panorama da Baía e Cidade do Rio de Janeiro, de Vítor Meireles de Lima. Mensário
imagem do Brasil e influído em diversas novas iniciativas belgas do Arquivo Nacional, XIII, 10, 1982, p. 336-346.
neste país nos anos seguintes. Deve também ter rendido um bom
105
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas
106
astronomia e geologia
parte 4
Colaboração Científica
107
parte 4 – colaboração científica
108
astronomia e geologia
109
parte 4 – colaboração científica
era o astrônomo de sua preferência para substituí-lo. Ele assumiu a Repartição Hidrográfica a colaborar com a instituição, e solicitou
interinamente o cargo em 24 de março de 1881, não sem antes ao governo recursos extraordinários, de modo a tornar possível a
naturalizar-se brasileiro, em 12 de fevereiro do mesmo ano, entre organização de pelo menos três expedições com bandeira brasilei-
outras razões para evitar o viés nacionalista embutido nas críticas ra, respectivamente enviadas à ilha de São Tomás, nas Antilhas, a
endereçadas ao Observatório. Olinda e a Punta Arenas, na Patagônia chilena.
Durante o início de sua gestão, ainda no período imperial, Nesta última estação, sob seu comando científico, foi a única
Cruls buscou angariar aliados para o Observatório, como o Im- em que predominou o bom tempo, permitindo que todos os con-
perador D. Pedro II, que não media esforços em demonstrar seu tatos entre Vênus e o Sol fossem cronometrados. Os resultados das
apreço pelas ciências em geral e pela astronomia em particular; observações e cálculos posteriores foram publicados em 1887, nos
Rui Barbosa, que chegou a publicar um folheto em defesa da ins- Anais do Observatório (Annales de l’Observatoire Impérial de Rio
tituição, e Gusmão Lobo, redator do Jornal do Commercio, prin- de Janeiro, t. 3, 1887), em um volume bilíngue organizado por
cipal jornal diário da época, e seu amigo pessoal. Cruls e especialmente dedicado aos trabalhos das diversas expe-
Um dos principais fatores que contribuíram para consolidar o dições brasileiras.
prestígio da instituição entre as elites imperiais brasileiras foi sua Enquanto eram organizadas as expedições visando a obser-
participação em projetos de caráter internacional e grande visibi- vação do trânsito de Vênus, Cruls protagonizou outro momento
lidade, como a observação do trânsito de Vênus pelo disco do Sol, importante simultaneamente na sua carreira e na trajetória do Ob-
em 6 de dezembro de 1882. servatório ao comunicar o aparecimento de um novo cometa no
Para possibilitar a participação do Observatório nos esforços céu austral, visível a partir de 25 de setembro de 1882. A Academia
internacionais de observação do trânsito de Vênus, Cruls convidou de Ciências de Paris reconheceu o seu mérito na descoberta e na
110
astronomia e geologia
análise da constituição química desse cometa concedendo-lhe o nacional. A mais importante delas foi sua nomeação para presidir
Prêmio Valz, em sessão pública realizada em 2 de abril de 1883. a chamada Comissão Exploradora do Planalto Central, que en-
Tendo em vista o prestígio da Academia francesa, o valor sim- tre junho de 1892 e março de 1893 percorreu essa região com o
bólico da premiação recebida por Cruls pode ser considerado objetivo de definir a localização da área de 14.400 km2 que ainda
maior do que o montante em dinheiro, na medida em que con- hoje delimita o Distrito Federal do Brasil, conforme previsto na
tribuiu para a consagração internacional de seu nome, e para o primeira Constituição Republicana, de 1891.
fortalecimento, entre os brasileiros, da instituição onde era diretor. Cruls também chefiou a Comissão de Estudos da Nova Capi-
Foi também ao longo dos anos 1880 que Cruls atingiu o auge tal da União, que voltou à região entre julho de 1894 e dezembro
de sua produção científica, com a publicação de trabalhos de te- de 1895, com o duplo objetivo de escolher a melhor localização
máticas bastante distintas, tais como um método gráfico para a pre- para a futura capital dentro da área previamente demarcada, e de-
visão de ocultações e eclipses (“Occultações e eclipses; processo finir o traçado de uma estrada de ferro interligando duas cidades
graphico para sua predicção”, Revista do Observatório, 1886-1887), próximas, Cuiabá e Catalão.
o projeto de um novo tipo de barômetro destinado à determina- Logo no início do século XX, em janeiro de 1901, Cruls assu-
ção de altitudes (Descripção e Theoria do Barometro Differencial, miu a chefia de outra missão de cunho político-científico: a de-
1888) e um estudo sobre o clima do Rio de Janeiro (O Clima do marcação das nascentes do Rio Javari, início da fronteira do Brasil
Rio de Janeiro, 1892). com a Bolívia. A realização da nova expedição revelou-se uma
Além disso, sob sua direção – desde 1884 em caráter definitivo grande e perigosa aventura, com dias a fio de viagem em canoas,
– o Imperial Observatório expandiu-se de maneira significativa, ad- racionamento de comida e a irrupção de diversas doenças entre os
quirindo instrumentos e contratando pessoal, e começou a divul- membros da comissão, como o próprio Cruls, que teria contraído
gar sua produção, seja através dos Anais, dirigidos à comunidade beribéri e malária. Apesar de todas as dificuldades, a expedição foi
científica, seja através da Revista do Observatório, um periódico bem sucedida, e no dia 22 de agosto de 1901 foi instalado o marco
mensal destinado à “vulgarização científica”. indicativo da nascente principal do Rio Javari.
Em duas viagens aos Estados Unidos e à Europa, em 1887 Cruls nunca se recuperou completamente dessa última via-
e 1889, Cruls garantiu o lugar do Observatório e do Brasil, res- gem a trabalho. A partir dessa data passou a acumular pedidos de
pectivamente, na Conferência Internacional do Meridiano, cujo licença do cargo para tratamento de saúde, a tal ponto que em
objetivo era escolher o meridiano de referência na determinação 1905 o governo nomeou Henrique Morize como seu substituto
das longitudes, e no ambicioso projeto Carta do Céu, iniciativa no Observatório, por prazo indeterminado. Em janeiro de 1908,
francesa cujo objetivo era construir um mapa de toda a abóbada uma nova licença lhe foi concedida pelo período de um ano. Cruls
celeste utilizando a fotografia, através da colaboração entre obser- embarcou então de volta à Europa, junto com a família, em busca
vatórios do mundo inteiro. Finalmente, a partir de março de 1889 de tratamento. Morreu em Paris, em 21 de junho de 1908.
Cruls passou a acumular a direção do Observatório com o cargo
de professor de trigonometria esférica, astronomia e geodesia da Christina Helena da Motta Barboza é pesquisadora no Museu de
Escola Militar do Rio de Janeiro. Astronomia e Ciências Afins, no Rio de Janeiro. É graduada em His-
A instauração do regime republicano no Brasil, a partir de 15 tória pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com
de novembro de 1889, deu ensejo a outras oportunidades de pro- Mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense e Dou-
jetar Cruls e o Observatório por ele dirigido no cenário científico torado em História Social pela Universidade de São Paulo.
111
parte 4 – colaboração científica
Estado, as jazidas de minérios de ferro de São João d’Ypanema e ciété Anonyme John Cockerill, em Seraing, chefiando também seus
as rochas betuminosas da região de Botucatu. Serviços de Relações Exteriores. Como tal lidou por volta de 1910
Em Porangaba, montou a primeira estrutura de sondagem pro- com um projeto para vender modernos navios pesqueiros para o
funda, tornando-se o pioneiro da prospecção petrolífera no Brasil, Brasil. Depois de ter conduzido a Cockerill através dos escolhos da
embora sem resultados. Seu profissionalismo foi muito respeitado Grande Guerra, a deixou por motivos pessoais em 1919 e se radi-
e orientou mais tarde novas sondagens. Ele resumiu suas pesqui- cou com sua família em Antuérpia. Lá colaborou com a Casa G.
sas numa memória manuscrita de 80 páginas, Le Pétrole dans les & C. Kreglinger, muito ativa no comércio com a América Latina,
environs du Mont de Bofete et de Porto Martins dans l’État de São como conselheiro e em seguida como procurador. Faleceu com
Paulo; suivi d’une étude chimico-industrielle des grès bitumeux de 54 anos em Antuérpia.
cette région, datada do Brejão, 11.02.1897, atualmente conserva-
da no Instituto Geológico de São Paulo (e editada em facsimile, Patrick Collon, nascido em Bruxelas em 1942, é filho de Alexandre
São Paulo, 1970). Collon e de Petronella Fitzwilliams-Hyde e neto de Auguste Collon,
Entrementes, pouco depois de sua chegada ao Brasil, veio lhe estudou na Inglaterra (Eton College), Áustria (Linz e Sankt-Florian),
fazer companhia sua noiva, Rachel Goron (Kovno, 28.2.1869 – Alemanha (Ludwigsburg), é organeiro em Bruxelas desde 1966.
Bruxelas, 6.8.1951). Nascida na Rússia, acabava de formar-se em
medicina na Universidade de Liège, onde estudavam na época Referências
muitos russos e brasileiros. Casaram-se em São Paulo em 19 de Collon, A. Sur un Cristal de Zircon. Liège (sic) 1892.
dezembro de 1895. A morte neonata de seu primeiro filho no Collon, A. Sur l’Oligiste de Viel-Salm. Liège (sic) 1894.
Collon, A. Manuscrit: Le Pétrole dans les environs du Mont de Bofete et de Porto Martins
Brejão em 10 de janeiro de 1897 precipitou sua volta à Europa. dans l’Etat de Sâo Paulo; suivi d’une Etude Chimico-industrielle des grès bitumineux
Reinstalado na Bélgica, Auguste Collon efetuou, entre 1897 e de cette région; par Auguste Collon, Docteur en Sciences naturelles, Assistant hono-
1904, como engenheiro-conselheiro, diversas missões científicas raire de l’Université de Liége. Brejão. 1897. Reproduction facsimile, commentée.
Sao Paulo 1970.
por conta de empresas como a Société Générale de Belgique e a Domingues, J. M. Porangaba sua História, Relatório de Collon. Porangaba 1998.
Société Métallurgique Russo-Belge, na Rússia, Alemanha, Polônia, Domingues, J. M. Porangaba sua História, O Manuscrito de Collon. Porangaba
Suécia e Espanha. Em 1905 foi nomeado secretário-geral da So 2012.
112
botânica e zoologia
113
parte 4 – colaboração científica
114
botânica e zoologia
Hector Raquet, mais tarde catedrático do Instituto Agrícola de Foto de Eduardo Cotrim publicada em seu livro A Fazenda Moderna, de 1913.
Gembloux. Em 1906, foi contratado como diretor do Posto Zoo-
técnico Central, criado em 1905 no bairro da Mooca, na cidade Sete capítulos compõem este livro e tratam dos seguintes temas:
de São Paulo, e em 1909 supervisionou os trabalhos de instalação – Estabelecimento e direção de uma fazenda de criar;
do Posto Zootécnico Federal de Pinheiros, na cidade de Pinhei- – Práticas de bovinotecnia;
ral (RJ) e foi seu primeiro diretor – sendo substituído por Nicolau – Alimentação e forragens;
Athanassof, ex-professor da Escola Superior de Agricultura “Luiz – Raças bovinas e escolha das raças;
de Queiroz” (Bhering, 2008, p. 76). Esses postos foram criados – Exploração econômica do gado bovino;
segundo o novo conceito da época – zootecnia –, que separou o – Higiene do gado bovino, e
estudo sobre a agricultura daquele sobre a arte de criar animais pa- – Noções práticas de veterinária.
ra melhorar as suas potencialidades. “Apoio Genética” ressalta os O autor argumenta que, naquela época, a criação bovina no
trabalhos realizados por Hector Raquet, assim como de um outro Brasil sofria com a falta total de métodos: “A indústria não existe
belga, o engenheiro agrônomo Louis Misson, que escolheram os porque o systema adoptado como mais commodo é o da perfeita sel-
animais das primeiras importações para o Brasil. vageria”. Eduardo Cotrim incentiva, porém, o desenvolvimento
Um documento que deve ser posto em destaque é o livro de de meios de proteção para o gado, o melhoramento dos campos
Eduardo Cotrim, figura de destaque na área da pecuária no início com a plantação de forragens e a seleção dos reprodutores para
do século XX, A Fazenda Moderna – Guia do Criador de Gado Bo- dar princípio à criação extensiva.
vino no Brasil –, que foi publicado em português em Bruxelas em No quarto capítulo, além de descrever as raças nacionais, con-
1913. Tal publicação merece mesmo uma observação sobre sua sagra uma parte importante às raças estrangeiras, que poderiam
qualidade, a despeito de seu conteúdo, que aqui é nosso assunto servir para criação de gado no Brasil ou para o melhoramento das
principal: trata-se de uma edição de grande qualidade, com capa raças nacionais através do cruzamento. Além disso, o autor avisa
dura e decorada em baixo-relevo de acordo com a tendência art o leitor das especificidades do clima brasileiro, que apresenta van-
nouveau, em voga na época, espcialmente em países como Bélgica tagens e desvantagens, como, por exemplo, os inúmeros parasitas
e França (precursores dessa linha artística). que perseguem o gado no campo. Em alguns casos, esse tipo de
115
parte 4 – colaboração científica
Fotografia da novilha Flamenga belga da Estância “La Plomer” publicada no Fotografia de “Trowbridge”, campeão flamengo belga na exposição internacional
livro A Fazenda Moderna. de Buenos Aires, em 1910, publicada no livro A Fazenda Moderna.
problema inviabilizava a importação de raças estrangeiras que, dos numa pesquisa realizada de 2002 a 2005, juntamente com a
em campos brasileiros, não apresentavam o rendimento esperado. Université de Liège (ULg), as Facultés Agronomiques de Gembloux
Entre outras, o autor indica que a raça Flamenga belga se re- (FUSAGx – Faculdades Agronômicas de Gembloux) e a Seagri
comenda por sua dupla qualidade leiteira e de açougue: trata-se (Secretaria da Agricultura, Pecuária, Irrigação, Reforma Agrária,
de uma raça mista que vinha sendo melhorada consideravelmen- Pesca e Aquicultura) do Estado de Bahia, foram apresentados du-
te por seleção e que era proveniente das proximidades de Bruges rante o 8º Congresso Mundial de Genética em Belo Horizonte
(Flandria ocidental). Essa raça já fazia sucesso na Argentina e no (Leroy et al., 2006).
Uruguai e iria se difundir também no Brasil, principalmente no
Estado do Rio Grande do Sul. Belos exemplares de vacas e touros Régis De Bel é engenheiro agrônomo, graduado na Universidade
dessa raça também foram levados para os Estados de São Paulo Livre de Bruxelas (ULB, Bélgica) em 2004. Mora atualmente no
(Fazenda de Santa Gertrudes) e Minas Gerais (Cotrim, 1913). Brasil.
Outro legado belga mais recente seria a introdução no Brasil
da raça BBB (Blanc-Bleu Belge). A partir dos anos 1960, ela foi Referências
geneticamente melhorada por seleções sucessivas a fim de desen- Bhering, M. J. Positivismo e Modernização: Políticas e Institutos Científicos de Agricul-
volver de maneira extraordinária a sua musculatura (hipertrofia tura no Brasil (1909-1935). Dissertação de Mestrado, Casa de Oswaldo Cruz – Fio-
muscular hereditária). O BBB é conhecido como o halterofilista cruz, Rio de Janeiro, 2008.
Birgel, E. H. O ensino da Medicina Veterinária no Estado de São Paulo. Revista de
do mundo animal, o superboi. Esta raça foi introduzida no Brasil Educação Continuada em Medicina Veterinária e Zootecnia do CRMV-SP. São Pau-
em 1994, principalmente para cruzamento e obtenção de produ- lo: Conselho Regional de Medicina Veterinária, v. 9, n. 2 (2011), p. 70-79, 2011.
tos de carne mais macia. Boly, H., Lebailly, Ph., Leroy, P. L., Leroy, E. Le Blanc-Bleu Belge en croisement
dans les régions tropicales. Wallonie Elevages, n. 6, juin 2003.
O cruzamento com o zebu de raça Nelore deu resultados inte- Cotrim, E. A Fazenda Moderna, Guia do Criador de Gado Bovino no País. Bruxelas,
ressantes no Estado da Bahia, apresentando melhores rendimentos Belgique, 1913.
em produção de carne, tanto quantitativa como qualitativamente Leroy, P. L., Leroy E., Cassart, R. Growth and carcass performances of Belgian Blue
x Nelore and Bradford Cattel in Bahia State, Belo Horizonte, Brazil, 2006.
(Boly et al., 2003, p. 21). Os resultados desses cruzamentos obti- “Apoio Genética”. Disponível em: <www.apoiogenetica.com.br>. Acesso em: 30 nov. 2013.
116
botânica e zoologia
Em 1895, Dom Amaro Van Emelen introduziu a abelha italia- 254 gravuras e adotou a forma de ‘perguntas e respostas’, muito
na (Apis mellifera ligustica) em Pernambuco e foi autor de várias didática e agradável para o leitor.
obras sobre apicultura, entre as quais a famosa Cartilha do Api- A empresa editora da Chacaras e Quintaes esgotou os 5.000
cultor Brasileiro, publicada em 1934. exemplares em nove anos, o que levou a uma quarta edição em
Segundo os escritos do editor Amadeu Amadei Barbiellini, 1945, que Van Emelen retocou e enriqueceu ainda mais, e a uma
Van Emelen redigiu uma “verdadeira enciclopédia sobre as abe- quinta edição, em 1952, após o falecimento de seu autor (em 1946).
lhas e as suas indústrias máximas de mel e cera” (5ª edição, 1952).
Certamente, Van Emelen foi uma pessoa-chave na divulgação e Referências
no desenvolvimento das técnicas de apicultura no Brasil no início Amaro Van Emelen, 1915. A Criação das Abelhas. São Paulo, Conde A. A. Bar-
do século XX. biellini, 1915. 70 p. ilus.
Essa Cartilha do Apicultor Brasileiro foi elaborada a partir de Amaro Van Emelen, 1924. Abelhas, Mel e Cêra. São Paulo, Chacaras e Quintaes.
56 p. ilus.
duas edições anteriores. A primeira edição era um simples folheto Amaro Van Emelen. 1934. Cartilha do Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra.
com o título de Criação de Abelhas, publicada na revista de Bar- São Paulo, Empreza Editora da Chacaras e Quintaes, 344 p. ilus.
biellini, Chacaras e Quintaes, apresentando 70 páginas ilustradas. Amaro Van Emelen. 1945. Cartilha do Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra.
São Paulo, Chacaras e Quintaes, 356 p. ilus.
A segunda edição, de 1924, já era mais desenvolvida, mas sempre Amaro Van Emelen. 1952. Cartilha do Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra.
no tamanho e na aparência de um opúsculo, com título de Abe- São Paulo, Chacaras e Quintaes, 356 p. ilus.
lhas, Mel e Cêra. Ela também apareceu na revista mensal de Cha- Melo, Lúcio Esmeraldo Honório de; Magalhães, Francisco de Oliveira; Almeida, Argus
Vasconcelos de; Câmara, Cláudio Augusto Gomes da. De alveitares a veterinários:
caras e Quintaes. A terceira edição, de 1934, a famosa Cartilha do notas históricas sobre a medicina animal e a Escola Superior de Medicina Veterinária
Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra apresenta três grandes São Bento de Olinda, Pernambuco (1912-1926). Hist. ciênc. saúde-Manguinhos, vol.
partes – Abelhas, Mel e Cera – com 57 capítulos ilustrados com 17 n.1, Rio de Janeiro Jan./Mar. 2010.
117
parte 4 – colaboração científica
Chris Delarivière é jornalista independente em Gand, autor de re- o flamengo a História da Província de Santa Cruz, de Pêro de Maga-
portagens sobre a cultura e música popular brasileira, traduziu para lhães Gandavo, descendente de um flamengo de Gand.
118
botânica e zoologia
O professor Marc Van Montagu e seus ex-colaboradores no IV Simpósio Brasileiro de Genética Molecular de Plantas, Bento Gonçalves, abril de 2013.
para falar de sua pesquisa sobre o mecanismo natural de transfe- engenharia genética vegetal no Brasil, no Cenargen, em Brasília.
rência de genes de Agrobacterium tumefaciens. Graças à cooperação de Barreto de Castro com Van Montagu,
A partir desse primeiro encontro, Lara iniciou uma série de vários cientistas do Cenargen foram treinados na empresa Plant
cursos internacionais sobre a tecnologia do DNA recombinante Genetic System (PGS), spin-off do Laboratório de Genética da
na USP/Butantã nos quais Marc Van Montagu era um convidado Universidade de Gand.
cativo. Foi nesse cenário que Marc Van Montagu encantou-se pelo Nessa época, tanto Cenargen como PGS estudavam as pro
Brasil e decidiu vir para cá com frequência. teínas de reserva de sementes ricas em metionina para melhorar
Entre 1974 e 1983, Van Montagu, Schell e colaboradores fize- o valor nutricional de alimentos básicos. A determinação da se
ram, em Gand, descobertas e inovações que marcaram o início da quência de aminoácidos das proteínas de reserva ricas em enxo-
era da biologia molecular vegetal. Eles descobriram o plasmídeo fre da castanha do Brasil é um dos resultados dessa cooperação
Ti de A. tumefaciens; elucidaram, junto com grupos de pesquisa (Ampe, Van Damme, Castro, L.A.B., Sampaio, Montagu AND
liderados por Mary-Dell Chilton, nos Estados Unidos, e Robert Vanderkerchove, 1986, p. 597-604). Entretanto, estes projetos não
Schilperoort, na Holanda, o mecanismo bacteriano de infecção foram continuados porque tais proteínas seriam potencialmente
e transferência de genes; desenvolveram a primeira tecnologia de alergênicas. Desde as primeiras tentativas de aplicações da tec-
transferência de genes para plantas e, publicaram, em maio de nologia do DNA recombinante em plantas os cientistas tinham
1983, sobre a primeira planta transgênica. a consciência de que a metodologia de transgenia em si não era
A descoberta e invenção de Van Montagu, Schell e colabora- perigosa, mas que os genes a serem introduzidos deveriam ser ana-
dores deixou uma pegada indelével na área de ciências da vida. lisados criteriosamente para evitar algum dano potencial.
A tecnologia de engenharia genética permitiu pela primeira vez Em 1983, Antonio Paes de Carvalho, então diretor do Instituto
uma análise sistemática e refinada do impacto de genes individu- de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
ais em todos os aspectos da biologia vegetal, do crescimento e de- deu início com alguns colegas – especialmente Affonso do Prado
senvolvimento a resistência a patógenos e estresse abiótico, assim Seabra, Maria Apparecida Esquibel e Antonio Rodrigues Cordeiro
como na forma como as plantas se comunicam com seu ambiente. – ao Programa de Biotecnologia Vegetal da UFRJ. Nesse mesmo
Foi nesse período efervescente da genética molecular vegetal ano, Paes de Carvalho e Seabra montaram a Biomatrix, primeira
que Marc Van Montagu, em uma de suas muitas visitas ao Brasil, empresa brasileira de biotecnologia vegetal.
conheceu Luiz Antonio Barreto de Castro, então professor na Uni- Foi como fundador e presidente da Biomatrix que o professor
versidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Luiz Antonio seria logo Paes de Carvalho conheceu o professor Van Montagu, em um
contratado pela Embrapa para desenvolver a primeira iniciativa de simpósio na França, na vinícola Moet Chandon. Entusiasmado
119
parte 4 – colaboração científica
120
botânica e zoologia
cido também no 4º Simpósio Brasileiro de Genética Molecular inabalável, contribuindo sempre que solicitado. Recentemente o
de Plantas, em Bento Gonçalves, RS (2013), como cientista ho- professor Van Montagu ajudou a montar a equipe de Ciências de
menageado. Plantas no Instituto Tecnológico Vale, em Belém do Pará.
Entre as contribuições do professor Van Montagu para o setor
privado, destaca-se sua participação como membro do Conselho Dulce Eleonora de Oliveira trabalha no Institute of Plant Biotech-
Científico da empresa Allelix entre 2003 e 2009 e o recente con- nology Outreach, VIB – Ghent University.
vite para o Conselho Consultor do Instituto Tecnológico Vale.
Atualmente no Institute of Plant Biotechnology Outreach, Referências
VIB/UGent, o professor Van Montagu continua sendo um incansá- Ampe, C., Van Damme, J., Castro, L. A. B., Sampaio, M. J. A., Montagu, M.
vel, articulado e influente advogado da transferência da biotecno- V. J. and Vanderkerchove, M. V. J. 1986. The aminoacid sequence of the 2S
logia vegetal para o benefício nutricional, econômico e ambiental sulphur-rich proteins from seeds of Brazil nut (Bertholletiaexcelsa H.B.K.).Eur. J.
Biochem. vol. 159 , p. 597-604.
dos países em desenvolvimento. Sua aliança com o Brasil continua
121
parte 4 – colaboração científica
Os professores Rogélio Lopes Brandão e Johan Thevelein e demais participantes do curso de Biologia Molecular de Microorganismos, Ouro Preto, Minas Gerais, janeiro
de 1994.
também fazer seu doutorado em Lovaina, como recentemente também se pesquisam genética e fisiologia de leveduras com foco
Thiago Martins Pais, sobre a modificação genética de leveduras na indústria, principalmente de bebidas e combustível.
para a produção de bioetanol, já reincorporado em seu laboratório Além de colaborações com universidades, o laboratório do
de origem no Brasil. professor Thevelein também mantém colaboração em projetos
Atualmente três estudantes brasileiros estão trabalhando em de aplicação industrial com a empresa Fermentec de Piracicaba
seus projetos de doutorado. Um deles, Thiago Pereira de Souza, (SP), fundada pelo dr. Henrique Vianna de Amorim.
Universidade Federal de Lavras (Ufla), Minas Gerais, bolsista Ca-
pes do programa PDSE-Programa de Doutorado Sanduíche no Beatriz Monge Bonini, Doutora em Bioquímica pela USP, traba-
Exterior, desenvolve projeto relacionado com a genética de leve- lhou como pesquisadora no laboratório do professor Thevelein na Uni-
duras com vistas à produção de biocombustível, sob a orientação versidade Católica de Lovaina (KUL).
do professor Eustáquio Souza Dias, na Ufla, e Johan Thevelein,
na KULeuven. Seu interesse pela Bélgica teve início a partir de Rogelio Lopes Brandão, Doutor em Bioquímica e Imunologia e com
conversas com seu orientador, que conhecia o professor Patrick pós-doutoramento na Universidade Católica de Lovaina (KUL), é
Van Dijck, do VIB (Vlaams Instituut voor Biotechnologie), onde professor da Universidade Federal de Ouro Preto.
122
medicina
123
parte 4 – colaboração científica
124
medicina
Integrantes do laboratório do professor Eizirik (3° da esquerda para a direita, na 2a. fila em pé), incluindo diversos pesquisadores brasileiros.
125
antropologia
126
antropologia
perto de Charleroi. Ele sentia, no entanto, um desejo grande por Dominique Tilkin Gallois
conhecer novos horizontes e foi assim que atendeu ao convite de
amigos brasileiros que conhecera na universidade para um traba- Dominique Gallois, etnóloga de referência na USP, se desta-
lho de cooperação numa diocese brasileira. Em 1971 ele fez sua cou durante toda sua carreira por seu engajamento a longo prazo
primeira viagem, de férias, por Brasil, Argentina e Chile. “Sessen- na pesquisa e na política indigenistas, assim como pela formação
ta e oito é a primavera francesa, quer dizer, uma inquietação na de jovens etnólogos. Desenvolveu pesquisa pioneira sobre o xama-
Europa e o desejo de respirar. Eu gostaria de dizer que na época nismo entre os waiãpis e tem coordenado um grupo de pesquisa
eu sufocava. Esta viagem para o Brasil efetivamente me deu outros sobre as Guianas.
parâmetros para medir a vida humana, algo tinha acontecido. Eu Em suas próprias palavras: “Moro no Brasil desde 1975. É o
descobria uma outra arte de ser gente, uma espontaneidade, um país que escolhi para viver, trabalhar, envelhecer. Mas sou belga,
tipo de beleza, não apenas física, uma beleza moral na época, ou que não nasceu na Bélgica, e lá viveu apenas por 4 anos, no início
talvez eu estivesse romantizando até certo ponto, mas foi decisiva da década de 70, quando morei em Bruxelas, para estudar. Antes,
para mim essa primeira viagem.” morei na Venezuela – onde passei minha infância –, na Itália – on-
Depois, de volta à Bélgica, recebeu o convite de Dom Eugê- de vivi na adolescência. De meu nascimento na China, claro!, não
nio de Araújo Sales, arcebispo do Rio de Janeiro, para lecionar, a recordo nada, pois de lá saí com 18 meses. Acompanhando minha
partir de 1973, um curso de exegese na PUC. Pouco tempo depois família, com pai diplomata, também estive por um curto tempo
de sua chegada, as dúvidas com relação à opção religiosa começa- em São Paulo, em 1967 e 1968. Já querendo ficar. Mas meus pais
ram a se agravar: “Com relação à vocação na minha vida eu sofria me enviaram para Bruxelas, para que eu me conectasse com meu
de uma coisa que nunca ia discernir totalmente... questões de fé, país. Estudei Ciências Sociais, Políticas e Econômicas na Universi-
jogava sobre Deus o que era engajamento humano, questões de dade Livre de Bruxelas. Tínhamos aula de antropologia física com
sexualidade que desconhecia...”. um professor que nos mostrava imagens de pessoas negras, asiáticas
Sob a manifesta decepção do seu mentor brasileiro, Dom Eu- ditas ‘primitivas’, em função do tamanho de sua caixa craniana.
gênio, deixou o sacerdócio e, casando com uma belga em 1975, “Coisas assim me deixavam muito desanimada, pois já tinha
começou a estudar antropologia no Museu Nacional do Rio de lido na adolescência – graças ao estímulo de meu pai – Tristes Tró-
Janeiro. Fez pesquisa de campo, primeiramente entre os índios picos e outros livros de antropologia. A partir do 3º ano, finalmente
Kamayurá (Alto Xingu, Mato Grosso), onde estudou principal- minha formação se consolidou, com as aulas de Luc de Heush,
mente a mitologia e as histórias orais, e depois entre os Urubu que dava aula de Etnologia Africanista, mas também nos intro-
-Kaapor (Maranhão) as músicas xamanísticas e de flauta. Sobre duzia à obra de Lévi-Strauss. Ao lado disso, e de excelentes cursos
os Kamayurá publicou em 1991 Moroneta Kamayurá: Mitos e de Filosofia, professores interessados nas contradições do desen-
Aspectos da Realidade Social dos Índios Kamayurá (Alto Xingu), volvimento em países ditos ‘não desenvolvidos’, acolheram meu
livro ilustrado com muitas fotos. interesse pelos povos indígenas. Acabei realizando uma pesquisa
Étienne Samain, apaixonado pela fotografia desde a infância, sobre a situação dos índios no México no período da revolução
concentrou-se no aprofundamento das linguagens audiovisuais. de 1910. Não podia ir a campo, contentei-me com documentos e
Em 1984 se mudou para a Universidade Estadual de Campinas, com a leitura de romances indianistas. O trabalho defendido em
onde foi convidado a ajudar na implementação de um programa 1974 intitulava-se Les théories indigenistes au Mexique, de 1920
inovador de Pós-Graduação em Multimeios. Desde então seu es- à nos jours.
forço teórico consiste em “fazer da antropologia visual realmente “Em 1975, casei e vim morar no Brasil. Com uma bolsa de
um suporte científico da antropologia, sem descartar a dimensão especialização, válida por um ano, concedida através da ULB no
do verbal, mas trabalhar a relação de ambos”. Trabalhou assim âmbito de um acordo bilateral entre Bélgica e Brasil, pude me
sobre os usos da fotografia em antropologia visual, pesquisa cola- aproximar dos professores de Antropologia da USP e iniciar al-
borativa que resultou na coletânea O fotográfico (1998). gumas disciplinas. Logo, Thekla Hartman e Lux Vidal insistiram
Interessado pela teoria de comunicação de Gregory Bateson, para que me inscrevesse no mestrado. Defendi a dissertação em
publicou em 2005 Os Argonautas do Mangue, em colaboração 1980, conseguindo finalmente realizar pesquisas de campo com
com André Alves, seu orientando, fotógrafo e biólogo de formação. povos indígenas. Inicialmente, desejava continuar na linha de pes-
A primeira parte do livro, escrita por Samain, trata da obra clássica quisa iniciada na Bélgica, estudando os efeitos das políticas indige-
de antropologia visual, de Gregory Bateson e Margereth Mead, nistas. A intenção era pesquisar em alguma região que permitisse
Coming of age in Bali. A segunda parte apresenta os resultados da comparar políticas nacionais, em ambos os lados de uma fronteira.
pesquisa de Alves, com sequências de fotos dos caranguejeiros do Queria trabalhar com os Yanomami, mas um encontro com o an-
mangue de Vitória (Espírito Santo), alternadas com textos, muitas tropólogo escocês Alan Campbell dirigiu meu destino para junto
vezes com interpretações dos próprios caranguejeiros. A intenção dos Wajãpi, no Amapá.
do livro é fazer dialogar estas duas pesquisas, usando a primeira “Contrariamente ao planejado, não iria trabalhar no lado da
como fonte de inspiração para a segunda. Guiana Francesa, diante da acolhida dos Wajãpi no lado brasileiro
e dos desdobramentos que pouco a pouco se impuseram na minha
127
parte 4 – colaboração científica
Jovem kaxinawa.
relação com esse grupo indígena. No entanto, antes de consolidar nas Guianas (2005). Na sequência, coordenei um conjunto de
meus estudos sobre eles no doutorado, experimentei outras áreas pesquisas voltadas à discussão das formas de criação, circulação e
de pesquisa etnográfica entre os Tiriyó, os Karipuna e Galibi do transformação de conhecimentos, engajando um novo conjunto
Oiapoque. Voltei aos Wajãpi no doutorado, após ter tentado, mas de estudantes.
logo abandonado, uma pesquisa de cunho histórico sobre o tra- “Os artigos que publiquei nesse período sobre problemáticas
balho indígena no período colonial, em Marajó. Nesse período, dos saberes ameríndios foram suscitados pelo meu engajamento
meu interesse pelas problemáticas do indigenismo consolidou-se na formação de pesquisadores indígenas no Amapá, entre eles
enquanto participava das campanhas e atividades da Comissão uma turma de 20 pesquisadores Wajãpi, engajados em atividades
Pró-Índio de São Paulo e também graças à oportunidade de tra- do Plano de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial Waiãpi, que in-
balhar durante oito anos na equipe do programa Povos Indígenas cluiu, entre 2000 e 2003, o registro das expressões gráficas e orais
no Brasil, do Centro Ecumênico de Documentação e Informação deste grupo pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Na-
(Cedi), depois incorporado pelo Instituto Socioambiental (ISA). cional (Iphan) e pela UNESCO.
Em 1992, comecei a trabalhar no Centro de Trabalho Indigenista “Paralelamente, apostando na difusão de uma nova imagem
(CTI). Anos depois, fundei com colegas da USP outra ONG, o dos índios, dediquei-me à realização de documentários, especial-
Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé). mente aqueles produzidos com o projeto de vídeo do Centro de
“Ingressei na USP em 1985, antes de concluir meu doutorado, Trabalho Indigenista, durante a década de 90 (A arca dos Zo´é,
defendido em 1988. Desde então, dedico-me a formar etnólogos Segredos da mata, entre outros). Livros de difusão científica, como
que possam desenvolver alternativas mais éticas de diálogo com Patrimônio cultural imaterial: exemplos do Amapá e norte do Pará
os povos indígenas. Coordenei o Núcleo de História Indígena e (2006), também foram realizados com esse objetivo, de contribuir
do Indigenismo (NHII/USP), engajando vários alunos em pes- com a valorização dos conhecimentos indígenas e, sobretudo, com
quisas na região do Amapá e norte do Pará. Um dos resultados a difusão das experiências políticas e culturais indígenas em curso
dessa pesquisa está na coletânea que coordenei Redes de relações naquela região.
128
antropologia
“Ultimamente, tenho retomado minha pesquisa etnográfica estava sendo privada da nacionalidade belga por ter me naturali-
sobre os índios Zo´e, no norte do Pará. Nessa trajetória, nunca zado francesa em 2006, quando o meu filho nasceu.
mais voltei à ULB, nem mantenho contatos com antropólogos “O que mais posso dizer? Decidi estudar antropologia no úl-
belgas. A não ser com os belgas que, como eu, se dedicaram ao timo ano de colégio, quando descobri Lévi-Strauss em 1992, du-
Brasil. Recentemente, tive a alegria de ser escolhida como orien- rante as aulas de Filosofia de Terminale, no Liceu francês, no
tadora de um jovem belga, com dupla nacionalidade, que tam- Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano, trabalhei como voluntária na
bém estudou na ULB. Nicodeme Costia de Renesse concluiu organização da Conferência Mundial dos Povos Indígenas, con-
seu mestrado em 2012 na USP e hoje desenvolve uma pesquisa ferência paralela à reunião das Nações Unidas conhecida como
de doutorado sobre os Surui-Paiter. Trajetórias que se repetem, Rio 92. Essa experiência reforçou minha decisão de virar antro-
sem nunca se repetir”. póloga. Estudei Ciências Sociais na Université Libre de Bruxel-
les, finalizando a graduação em Etnologia já na Universidade de
Oiara Bonilla Paris X-Nanterre em 1996. Na época realizei uma monografia de
conclusão de curso sobre os javaés da Ilha do Bananal, portanto
“Sou belga, mas não pude nascer belga. Nasci em Paris, em já havia feito trabalho de campo no Brasil.
1975, de um pai uruguaio exilado e de uma mãe belga desenhis- “Em 1998, entrei no Mestrado no PPGAS (Programa de Pós-
ta. Mas, por lei, não podia ser nem francesa, nem belga. Só pude -Graduação em Antropologia Social), Museu Nacional, e conti-
me tornar belga bem mais tarde, lá pelos 10-12 anos de idade, nuei minha pesquisa com os javaés e os carajás da Ilha do Bananal,
depois de uma modificação de lei que permitiu que os filhos de sob a orientação de Aparecida Vilaça. Defendi minha dissertação
mães belgas nascidos no exterior tivessem direito a um passaporte. de mestrado em janeiro de 2000. Ainda em 2000, fiz minha pri-
Quando nasci, era legalmente apátrida, até meu pai convencer o meira viagem aos paumaris, no sudoeste do Estado do Amazonas.
cônsul uruguaio a emitir um passaporte para mim. Toda minha fa- Poucos meses depois, já casada, me mudei para a França onde
mília materna é belga e vive em Bruxelas, apesar de ser de origem acabei me inscrevendo no doutorado após tentativas frustradas de
húngara e holandesa. Assim, sou mais uma belga por acidente, fazer uma co-tutela entre o Museu e alguma universidade na Fran-
uruguaia nascida na França e, portanto, também francesa (nacio- ça (na época, as co-tutelas ainda não estavam bem regulamenta-
nalidade também adquirida bem depois). Acho que não preciso das). Entre 2001 e 2002 realizei meu trabalho de campo com os
explicar por que quis ser antropóloga. Paumari, voltando para a França em outubro de 2002. Entre 2003
“Para complicar, vim parar no Brasil (Recife primeiro e Rio e 2005, trabalhei como Leitora de língua portuguesa e civiliza-
de Janeiro mais tarde) aos seis anos de idade e por aqui fiquei até ção brasileira no Departamento de Línguas da Universidade de
a faculdade. Quando terminei o colégio resolvi estudar antropo- Nanterre. Finalmente, defendi minha tese em setembro de 2007,
logia e escolhi ir para Bruxelas cursar ciências sociais na ULB. A voltando ao Brasil em 2009, para realizar um pós-doutorado de
adaptação foi difícil, por várias razões, mas principalmente porque cinco anos, financiado pela Faperj, e desenvolvendo um projeto
fiquei decepcionada, pois já sabia que queria trabalhar na Ama- de pesquisa sobre cosmopolíticas indígenas e políticas públicas.”
zônia e por lá só se falava em África. Foi assim que, ainda no 2º Sob orientação de Philippe Descola, Oiara Bonilla defendeu
ano de faculdade, decidi acompanhar um curso de 4º ano. Era sua tese sobre os paumaris, grupo de língua aruá, na École des
o único oferecido sobre índios na Amazônia. Ali conheci Anne- Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, uma contribuição
-Marie Losonczy, que lecionava essa matéria e rapidamente me original e importante à etnologia ameríndia. Na teoria etnológica
encaminhou para Nanterre para terminar minha graduação com é bem conhecido o fato do discurso guerreiro estar bem presente
a equipe de americanistas de lá. nas sociologias ameríndias, assim como tem sido detectado uma
“Minha experiência belga durou pouco, fiquei apenas dois ontologia que prioriza as relações de predação enquanto contexto
anos por lá, terminando a faculdade em Nanterre e logo voltando no qual se desenvolvem as relações sociais, particularmente com
para o Rio para fazer mestrado no Museu Nacional. Não tenho re- outros seres humanos e não humanos. Neste contexto, os Paumari
lações nem contato com antropólogos da ULB, nem com univer- surgem com um discurso sócio e cosmopolítico particular, enfa-
sitários de lá, apenas com amigos e família. Aliás, poucas pessoas tizando sua posição de vítima e presa numa rede relacional onde
de minha turma se tornaram de fato antropólogos, acho que com precisam dos outros para serem protegidos, tanto no nível das re-
exceção de David Berliner, que é africanista e professor na pró- lações interétnicas quanto na sua concepção de suas relações com
pria ULB. Em 2000, voltei para a França, para fazer o doutorado, outros seres do cosmos. É neste sentido que surge, no contexto das
e lá tive filhos e me naturalizei francesa. Tenho um sentimento relações com os brancos, a figura do ‘bom patrão’.
um pouco melancólico quando penso nesse não vínculo com a
universidade e tenho uma sensação nítida e um pouco triste de Natacha Nicaise
que a Bélgica não apoia, não reconhece seus conterrâneos, nem
valoriza muito aqueles que moram fora. Essa sensação contrasta O texto de Natacha Nicaise é um resumo, editado por mim,
fortemente com a atitude (oposta) dos franceses. Para ilustrar isso, de um memorial que ela escreveu em 2012 para um concurso
fui informada na semana passada (logo após o e-mail da Els) que público e que me cedeu gentilmente. Apresenta aqui a própria
129
parte 4 – colaboração científica
trajetória intelectual que levou a jovem estudante para o Brasil e Econômica (depois União) Europeia e a África. O fio condutor da
a reflexão teórica sobre as diferenças entre os mundos acadêmicos minha investigação foi a política de comunicação oficial em dois
belga e brasileiro, tal como foi experimentado por uma jovem es- momentos: na época da criação da CEE, no final dos anos 1950,
tudante nos anos 1990 e 2000. e entre 2000-2005. Em 2007, fui convidada para integrar uma
Em suas palavras: “Deixei a Bélgica para me instalar no Brasil equipe de pesquisadores brasileiros que participou da criação do
em 2002, após ter ganho uma bolsa do CNPq (Conselho Nacio- Instituto Interuniversitário de Pesquisas e Desenvolvimento (Inu-
nal de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) para realizar red), no Haiti. A partir de então, comecei a pesquisar um universo
o doutorado no PPGAS/Museu Nacional/UFRJ. A decisão de social complexo, marcado pela presença da ONU (e do Brasil, no
continuar minha formação neste país aparece retrospectivamen- exercício do comando militar dos capacetes azuis), de agências in-
te como uma boa lente para colocar em relevo vários elementos ternacionais, de ONGs (algumas brasileiras, como o Viva Rio) e
de minha trajetória pessoal e profissional. Em minha trajetória, de instituições acadêmicas brasileiras, norte-americanas, francesas,
acumulei diversas experiências de pesquisa em vários contextos canadenses, haitianas e de outros países do Caribe.
nacionais (Brasil, Peru, Bélgica, União Europeia, Haiti, Estados “O Haiti e a região do Caribe transformaram-se em um dos
Unidos), tratando de questões como tradições intelectuais, eco- meus centros de interesse. Desenvolvi várias atividades ligadas (1)
nomia popular urbana, política e processos de comunicação, his- à construção institucional – fui responsável pelas relações exterio-
tória e memória institucional, identidades nacionais, políticas de res do Inured entre 2007-2009; (2) à pesquisa – participando do
desenvolvimento e pós-colonialismo. Na Bélgica, como em vários laboratório State, Justice & Public Policy do Inured e da equipe
outros países nos quais as relações coloniais foram estruturantes, coordenada pelo Prof. Federico Neiburg no âmbito do Núcleo de
o passado colonial continua presente na cultura material, na ali- Pesquisas em Cultura e Economia e, a partir de 2009, desenvol-
mentação, na arte, na presença de imigrantes oriundos da África vendo o projeto de pós-doutorado ‘Nações e Cooperação Interna-
e também nas próprias tradições intelectuais e acadêmicas. No cional; a Foreign Assistance norte-americana e o Haiti, 1942-2010’,
mundo acadêmico brasileiro, procurava um distanciamento crí- no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, sob a
tico em relação ao universo cultural que informava minha visão supervisão do Prof. Omar Ribeiro Thomaz (bolsa Fapesp); e (3) à
sobre as relações pós-coloniais. docência – ministrando cursos à distância para alunos da Univer-
“No doutorado, queria estudar as representações sociais das re- sidade do Estado do Haiti.
lações de cooperação para o desenvolvimento da Europa e na Eu- A minha participação no Inured e a colaboração com a ONG
ropa, a partir de um âmbito cultural diferente e de outra tradição brasileira Viva Rio, que atua em Porto Príncipe, tem me permitido
intelectual e, desse modo, tentar me afastar de pressupostos que observar de perto as transformações e as tensões que acompanham
percebia como embutidos na minha ‘condição de belga’, notada- a ‘cooperação internacional’ — por exemplo, situando como ato-
mente um paternalismo difuso na abordagem das relações Norte- res o governo e a “sociedade civil” brasileira e, com isto, abrin-
-Sul. Foram essas indagações — também carregadas, confesso, de do todo um leque de questões a respeito das novas modalidades
rebeldia e irreverência juvenis — que motivaram minha decisão de da presença do Brasil no cenário internacional. Até o momento,
realizar um doutorado fora da Bélgica e, em particular, no Brasil. publiquei dois livros (em formato impresso e digital, em inglês,
“Foi na ocasião da monografia de final de graduação, em 1997, francês, português e creole haitiano) que permitem compreender
que tive o primeiro contato com o país. Graças a um encontro com a relação entre as necessidades e perspectivas da população e as
uma professora alemã, na época diretora do Laboratório de Antro- formas de intervenção da cooperação internacional na área: Lixo,
pologia da Comunicação (LAC) da ULG, a Dra. Tomke Lask, que Estigmatização, Comércio, Política (2010) e A vida social da água
havia feito seu mestrado no PPGAS e mantinha um estreito conta- (2009), ambos em colaboração com Federico Neiburg e editados
to com a academia brasileira, fui recebida como estagiária naquela em parceria entre o NuCEC e o Viva Rio”.
instituição por um período de três meses, visando desenvolver o
projeto de análise comparativa da abordagem do xamanismo em Peter Beysen
um grupo de índios guaranis na obra dos antropólogos Eduardo
Viveiros de Castro e Pierre Clastres. Esta primeira passagem pelo Peter Beysen foi meu aluno no doutorado e escreveu uma bela
Brasil foi fundamental em minha trajetória; despertou um grande tese sobre a estética corporal ashaninka, grupo arawak que habita
interesse pelo mundo acadêmico brasileiro e marcou o início de a fronteira entre o Brasil (no Acre) e o Peru. Antes de vir para o
uma longa e interessantíssima jornada que me levou a me esta- Brasil cursou História da Arte com especialização em Arte Étnica
belecer no país. Um encontro com a antropologia brasileira era na Universidade de Gand. O relato de Peter é o de um viajante
improvável no contexto acadêmico belga. à procura de outro mundo: “A ideia era, originalmente, ir para a
“Em 2002, iniciei meus estudos de doutorado no PPGAS. Co- Indonésia, o que não aconteceu porque a situação política não
mo orientanda do professor A. C. de Souza Lima, integrei o Laced era muito tranquila, especialmente para falantes do holandês...
(Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvi- Dois meses de mochila por Java, Bali, Lombok e Sumbawa me
mento). Estudei a transformação das ‘relações coloniais’ em rela- fizeram escolher pelas ‘artes étnicas’ no curso de História da Arte
ções de ‘cooperação para o desenvolvimento’ entre a Comunidade na Universidade de Gand.
130
antropologia
“O Brasil nos parecia uma segunda opção promissora: para Peter Beysen terminou seu doutorado no Programa de Pós-
minha esposa, especialista em estética médica, o lugar era ideal e -Graduação em Sociologia e Antropologia com tese intitulada Ki-
para mim, tinha a floresta amazônica... Fomos parar em Joinville, tarentse. Pessoa, Arte e Estilo de Vida Ashaninka do Oeste Amazô-
por influência da ex-cunhada de um dos clientes de Sonja (esposa nico (2008). Aborda a estética minimalista dos Ashaninka a partir
de Peter). Em Joinville, passava meu tempo no ‘museu arqueológi- dos objetos fabricados e sua relação com desenhos, corpos e temas
co de sambaqui’. O museu possui uma boa biblioteca e num certo míticos que se organizam ao redor dos dois grandes eixos em torno
dia peguei da estante, por acaso, o livro A temática indígena na dos quais gira a cosmovisão Ashaninka: a procura pela imortali-
escola, folheei o livro e parei numa foto dos Kaxinawa. Em cima dade e a fragilidade do amor. O autor argumenta que o belo para
da foto estava impresso o nome Elsje Lagrou. Sorri por causa do os Ashaninka consiste no equilíbrio entre o pensar (seu estilo de
nome inconfundivelmente holandês ou flamengo. Alguém na sala vida é marcado pela observação e pela reflexão) e o fazer, no qual
reparou meu sorriso e me perguntou o que tinha me chamado a a história guerreira sempre funcionou como pano de fundo para o
atenção. Para minha surpresa conheciam Elsje Lagrou, na época modo como se constituiu a pessoa Ashaninka. É a força latente que
professora em Florianópolis, e especializada em antropologia da se acarinha, constituindo esta o ideal da estética da arte corporal.
arte. Els se revelou mais tarde a orientadora ideal para mim... Els Atualmente prepara um catálogo, com fotos de sua esposa fo-
estava naquela época num processo de transferência da UFSC pa- tógrafa, Sonja Ferson, uma exposição e uma coleção etnográfica
ra o IFCS da UFRJ no Rio de Janeiro, sem dúvida a cidade mais sobre os Ashaninka para o Museu do Índio no Rio de Janeiro, onde
interessante do mundo...” possui bolsa temporária de pesquisa pela Unesco.
131
parte 4 – colaboração científica
Lucia Hussak Van Velthem popular, na gaita. Também ouvia ópera seguidamente, sobretudo
as preferidas: La Bohême e Lucia di Lammermoor, o que explica
Lucia Van Velthem pode ser contada hoje entre os seniores meu prenome. Juntamente com o sobrenome, constituem estes
da disciplina antropológica no Brasil que fizeram a diferença, par- os frágeis e tênues laços que me ligam à Bélgica.
ticularmente no campo da antropologia da arte. A obra O belo é “Os laços são frágeis porque antes de me fazer conhecer e
a fera, a estética da produção e da predação entre os Wayana, de amar a Bélgica, meu pai me fez conhecer e amar o Brasil, o lu-
2003, se tornou um clássico no campo por antecipar, através de gar que escolheu para viver e morrer. A minha grande ‘escolha’,
uma etnografia precisa e detalhada das técnicas de produção dos por outro lado, foi ir contra todas as expectativas familiares e me
artefatos e das pessoas wayana, um paradigma que hoje domina graduar em Museologia em 1972. Estavam esperançosos de que
a antropologia: a ideia que pessoas são como artefatos e artefatos seria uma engenheira, após ter-me formado no curso técnico de
são como pessoas. calculista de concreto armado.
A bem dizer, Lucia Van Velthem não é belga, mas descen- “A formação recebida no curso de Museologia não era em
dente de belga, de primeira geração. Entretanto, seu nome e sua absoluto teórica, mas essencialmente prática. Aprendia-se a iden-
aparência, seu modo de ser, parecem mais belgas do que os de tificar estilos, modismos, fases, técnicas de peças de mobiliário e
muitos belgas. Talvez por ser belga de coração! É na atitude aven- muitos outros objetos e artefatos, passíveis de serem encontrados
tureira do pai, que veio para o Brasil para nunca mais voltar, que em museus, não necessariamente brasileiros, pois nos debruçamos
Van Velthem localiza a origem de sua vocação pela antropologia sobre as escritas medievais europeias. Na época, eu não atinava
e é com ternura que ela se volta inicialmente neste texto para a como me seria útil, no futuro, a intimidade visual e tátil adquiri-
memória do pai: das, nesse período, com artefatos tão variados na forma e nos ma-
“Meu pai, Pierre François Van Velthem nasceu em novembro teriais. A Museologia levou-me ao Museu Nacional, no Rio de
de 1906, filho de Maria Beleyn e de François Van Velthem. Este, Janeiro. Desejava tornar-me restauradora de artefatos indígenas
segundo a tradição familiar, era um renomado decorador de vitri- e assim busquei a Seção de Etnografia. Heloisa Fénelon Costa
nes de grandes magazines na Bélgica, França e Alemanha e ela, a desencorajou-me desse intento, mas encaminhou-me para a do-
mimada filha de um próspero negociante de Bruxelas. A família cumentação de coleções. Meus colegas, estagiários e bolsistas, vi-
se muda para Antuérpia e as relações familiares o introduzem no nham das Ciências Sociais e se dedicavam aos estudos dos povos
aprendizado do entalhe de diamantes em um dos muitos negó- indígenas altoxinguanos, assim como a própria professora. Como
cios de joias e pedras preciosas mantidos por judeus nessa cidade. não havia a menor possibilidade de introduzir-me nesse território,
Em 1925 viaja para o Congo Belga, mas logo decide tomar outros busquei uma região distanciada, mas representativa no acervo.
rumos e não permanece na África, seguindo para o Brasil, mais Assim cheguei ao Rio Negro e às coleções de artefatos plumários
precisamente para Salvador. dos índios Tukano.
“Da capital baiana ruma para o Vale do Jequitinhonha, em “Era um trabalho descritivo e algo enfadonho. O divertido fica-
Minas Gerais. Na época era um lugar remotíssimo, com lavras de va com a prosa do museólogo Geraldo Pitaguary e o extraordinário
diamante que remontavam, entretanto, ao século XVIII. Percor- com a descoberta de uma peça aqui, outra ali, no meio de dezenas
re vilas e mais vilas e seus arredores: Datas, Serro, Milho Verde, de outras, nas caixas de metal do antigo ‘Depósito’. Esse período
São João da Chapada, Barão de Cocais, Guinda, Diamantina e foi marcado por encontros e orientações que vieram de muitos
também lugares mais afastados como ‘Cavalo Morto’ onde, nos lados, mas sempre no cenário do Museu Nacional. Uma forte
contou, havia inúmeros refúgios de quilombolas. Nessa região lembrança está ligada à figura de Berta Ribeiro, que me cumu-
construiu a rede de amigos que o acompanharia para o resto da lou de ensinamentos preciosos, e com a qual mantive duradouro
vida, mesmo morando no Rio de Janeiro, onde se casou com uma compartilhamento de livros, cartas e o interesse pelos estudos de
filha de austríacos, e se estabeleceu. artefatos ameríndios.
“Quando eu tinha uns 10 anos, meu pai levou-me ao sertão de “Em meados de 1973 rumei para Belém do Pará, como alter-
Minas em uma longa viagem e, enquanto registrava pessoas, pai- nativa à impossibilidade de me exilar na Europa, para onde fo-
sagens e igrejas em aquarela, ensinou-me a abordar e a conversar ram muitos dos companheiros de militância política. Em Belém,
com todas as pessoas: da mendiga da porta da Igreja do Amparo Eduardo Galvão, Protásio Frikel e Expedito Arnaud receberam-
ao filho do cartorário, fanático por brigas de galo. Tenho certeza me muito calorosamente no Museu Paraense Emílio Goeldi, en-
de que foi esse aprendizado, repetido em muitas outras viagens, a tão pertencente ao CNPq. Os estudos de plumária dos Tukano
última em 1970, dois anos antes de sua morte, que me conduzi- prosseguiram nas coleções deste museu, sob a batuta de Galvão,
ram à Antropologia e aos índios. de quem fui a última orientanda. Paralelamente dedicava-me,
“Meu pai falava pouco da Bélgica e nunca de forma espon- a pedido de Galvão, a trabalhos propriamente museológicos na
tânea. Jamais esboçou qualquer iniciativa para viajarmos até seu conservação da exposição permanente e foi esta especialidade que
país natal. Não sabemos nada sobre possíveis parentes belgas, os favoreceu minha contratação para o Museu Goeldi em 1975. En-
laços foram completamente rompidos. Recordo que a música era trementes, eu havia descoberto a Etnologia e, sobretudo, a pers-
uma das suas grandes paixões, a clássica interpretava ao violino e a pectiva de realizar trabalho de campo. Assim, rumei com o antro-
132
antropologia
pólogo alemão Protásio Frikel para o Rio Cururu e para as aldeias Nadia Farage, Marta Amoroso e as saudosas Vera P. Coelho e Ara-
dos índios Munduruku. Nessa viagem, Frikel desejava repassar o cy L. da Silva.
rigor e a dedicação de um trabalho de campo à maneira dos velhos “As leituras teóricas – sobretudo Lévi-Strauss – requeriam a
mestres germânicos. Assim, não parávamos: levantamentos nas ro- abertura para novas experiências acadêmicas. Paralelamente era
ças, escavações arqueológicas, coleta de mitos, inventários da cul- necessário ser pragmática, e assim encontrar um povo indígena
tura material, dos grafismos e das aldeias que visitávamos e ainda que fosse pouco estudado, mas que pudesse ser acessado com fa-
uma longa viagem – em canoa a remo – até os locais míticos dos cilidade. Cheguei então ao Parque Tumucumaque, frequentado
Munduruku, no alto Rio Cururu. Tudo isso provocava sucessivos semanalmente pelos aviões da Força Aérea Brasileira. A primeira
choques intelectuais e sensoriais que me exauriam. viagem, em 1975, foi precedida da leitura de parte da bibliografia
“Em 1976 eu já estava na Universidade de São Paulo, no cur- etnológica existente sobre os Carib norte-amazônicos – sobretudo
so de pós-graduação da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Daniel Schoepf que me apresentou aos Wayana – para detectar
Ciências Humanas), e tinha como orientadora a professora Lux onde pousar nesse vasto território indígena, contemporâneo do
B. Vidal, que generosamente me transmitiu seus conhecimentos e Parque do Xingu. A porção leste pareceu-me a mais adequada,
sabedoria, e assim se tornou uma pessoa marcante em minha vida. pois não estava marcada, nem por debates teóricos palpitantes,
A USP era, na época, um importante foco de pesquisas sobre índios nem por etnografias exaustivas. Os contatos iniciais com os Wa-
e Lux Vidal reunia um grupo de estudantes interessados nas possí- yana e Aparai foram decisivos. Meus olhos os viram e os veem
veis correlações existentes entre estética e cosmologia, mas tendo como pessoas de aguçado senso estético e de grande sabedoria. O
como ponto de partida os artefatos materiais. Descobri assim a úni- que foi percebido, na ocasião, permitiu-me esboçar o projeto geral
ca via propícia para uma museóloga, e por ela sigo até o presente! da dissertação de mestrado: o estudo de uma categoria artesanal
“O ingresso na USP abriu-me as portas da reflexão teórica, proeminente, a cestaria.
da história da antropologia e dos estudos sobre os índios do Brasil “Outras viagens ocorreram: umas mais demoradas outras mais
Central, através das aulas de professoras de origem alemã: Lux curtas, quando a malária se manifestava. Fixei-me em uma aldeia
Vidal, Tekla Hartmann e Renate Viertler. Os cursos proporcio- essencialmente wayana - Xuixuimëne, no médio Rio Paru de Les-
naram também o encontro de pessoas que me acompanham até te – onde encontrei pessoas acolhedoras e especialistas dispostas
hoje, umas mais próximas, outras mais distanciadas: Dominique a compartilhar seus saberes. Nesse período não tinha meios de
Gallois, Alba Figueiroa, Regina Muller, Els Lagrou, Silvia Caiuby, avaliar que os estudos da arte e das categorias materiais dos Waya-
133
parte 4 – colaboração científica
na seriam tão fascinantes, tão absorventes e tão demorados, con- na África. Com esta intenção fui duas vezes, entre 1972 e 73, ao
sumindo assim 20 anos, até 1995, ano em que defendi a tese de Museu Real da África Central (Koninklijk Museum voor Midden
doutorado, ainda na USP e ainda sob a entusiasmada orientação -Afrika/Musée Royal de l’Afrique Centrale) de Tervuren (Bruxelas)
de Lux Vidal. Os anos foram longos entre os Wayana porque as para apresentar meus planos. Primeiramente queria ir para o Con-
pesquisas e as publicações se entremearam com os trabalhos de go, depois para a Etiópia. Em ambos os casos me desaconselharam
delimitação da Terra Indígena Rio Paru d’Este, ao norte do Pará. a ir adiante por causa de problemas ou instabilidade políticos.
“Os estudos posteriores ao mestrado continuaram girando em “Durante uma viagem pela Europa encontrei os professores
torno das técnicas e tecnologias da produção material dos Waya- Simone Dreyfus-Gamelon (École des Hautes Études en Scien-
na: cerâmica, entalhe, plumária, arquitetura, culinária, mas não ces Sociales, Paris) e René Fuerst (Genève), que influenciaram
apenas isso, pois a formação adquirida me permitia enveredar por fortemente a escolha do meu campo, pois foi em parte motivado
outros campos de expressão, essencialmente relacionais, e assim por seu entusiasmo que parti em 1974 para os Kayapó do Brasil
contemplavam a pessoa humana – os uaianas – e o resto do uni- Central. Apesar do fato de o grupo escolhido, os Mekrãgnoti, vi-
verso, o que se tornou a pedra fundamental sobre a qual repousa ver naquela época ainda muito afastado, nunca me arrependi de
minha tese de doutorado, intitulada O belo é a fera. A estética da ter feito esta escolha. Entre 1974 e 1981 fiz pesquisa de campo
produção e da predação entre os Wayana. entre os Mekrãgnoti de forma intensiva, aprendi sua língua e me
“Após o doutorado engajei-me na busca de outros horizontes aprofundei nas suas expressões culturais materiais, assim como nas
teóricos, metodológicos e de ação, inclusive entre os Wayana e suas práticas de guerra.
os Aparai, entre os quais permaneço em atividade desde 2005, “Me engajei ativamente para que os Mekrãgnoti pudessem
coordenando projetos de valorização cultural em parceria com obter uma terra significativamente maior do que o previsto ori-
o Iepé e com o Museu do Índio (ProDeCult). Em 1999 tive a ginalmente. Depois da obtenção do doutorado cheguei a pensar
oportunidade de voltar a um antigo cenário: o Rio Negro, mas em ficar no Brasil para neste país viver e trabalhar, mas a sorte o
agora engajada em uma pesquisa multidisciplinar sobre o siste- decidiu de outro modo e em 1990 fui parar finalmente no... Mu-
ma agrícola, no contexto de um projeto de cooperação bilateral seu Real da África Central. Atualmente trabalho nesse museu no
(Pacta). Neste projeto busco decifrar o sistema de objetos relacio- setor de Etnografia, onde me especializei em povos pastores da
nados com o processamento da mandioca. Regressei também ao África Oriental, mais particularmente na região fronteiriça entre
campo museológico. Este retorno à Museologia teve como pon- o Sudão, a Etiópia, o Quênia e Uganda. Os temas principais das
to alto a curadoria do módulo ‘Artes Indígenas’ na monumental minhas pesquisas são a decoração corporal e os conflitos intergru-
Mostra do Redescobrimento em 2000, mas também se exerceu pais onde o gado ocupa um lugar central”.
em outras exposições no Brasil e no exterior, inclusive ‘Índios no No Brasil Gustaaf Verswijver manteve intensas relações de
Brasil’, montada no contexto da Europalia, em Bruxelas, e em troca e colaboração acadêmicas com as professoras antropólogas
parceria com Gustaaf Verswijver! da USP Thekla Hartman, Renate Viertler e Lux Vidal e conhe-
“Entretanto, não me ative exclusivamente aos projetos expo- ceu as colegas de geração Dominique Gallois e Lucia Van Vel-
sitivos, pois assumi a gestão curatorial da Coleção Etnográfica do them. As pesquisas de Verswijver entre os caiapós resultaram em
Museu Goeldi e de um ambicioso projeto de reformulação da várias publicações, a tese em 1992, The Club-Fighters of the Ama-
Reserva Técnica, concluído com algum êxito. A Museologia me zon: Warfare among the Kayapó Indians of Central Brazil (Uni-
possibilitou ainda trabalhar com Lux Vidal no Amapá, em cursos versidade de Gand, Bélgica), a mais detalhada análise do sistema
de capacitação museológica para os técnicos do Museu Kuahi dos guerreiro caiapó até hoje e ainda o catálogo Kaiapó – The Art of
Povos Indígenas do Oiapoque, e de presentemente ser a coorde- Body Decoration –, com fotos da coleção etnográfica dos Kayapó
nadora brasileira do projeto ‘Museus da Amazônia em rede’ que Mekrãgnoti-Mebengokre, montada por Verswijver para o Mu-
une em parceria o citado museu paraense e museus do Suriname seu Real da África Central. Em 1996 publicou ainda Mekranoti
e Guiana Francesa. – Living Among the Painted People of the Amazon, pela Prestel-
“Atualmente trabalho em Brasília, no Ministério da Ciência, Verlag (Munique).
Tecnologia e Inovação. Da Esplanada dos Ministérios, continuo Entre 1997 e 2002, Verswijver passou longos tempos no Brasil,
tecendo uma ampla rede de laços afetivos e profissionais com an- coordenando um projeto com os Kayapó, e organizou dois rituais
tropólogos, museólogos, biólogos, ativistas de muitos lugares e paí- de iniciação para seus filhos (ver os filmes descritos neste livro).
ses e, sobretudo, com os Wayana e Aparai e também com os Baré, Entre 2010 e 2011 Verswijver organizou, em colaboração com
Tukano e Baniwa, junto aos quais desejo envelhecer”. Lucia Van Velthem e com a assessoria acadêmica de Dominique
Gallois, a exposição sobre os Povos Indígenas no Brasil para a Eu-
Belgas antropólogos que voltaram: Gustaaf ropalia na Bélgica em 2011. Juntos editaram o catálogo Índios no
Verswijver Brasil, além de novo livro com fotos suas entre os Kayapó. Ainda
em 2010, editou com Maria Isabel B. Ribeiro um album de fo-
“Originalmente eu queria, evidentemente, como todo belga tos intitulado Diários de viagem: fotografias de Leopold III: 1962-
com aspirações de se tornar antropólogo, fazer pesquisa de campo -1967 com fotos das viagens do Rei Leopold III ao Brasil.
134
antropologia
135
parte 4 – colaboração científica
em contraste com a clássica, porém não por isso menos afetiva, arte do desenho e de toma coletiva da bebida indutora de expe-
reserva flamenga. riência visionária, a ayahuasca, pelos homens que existe entre os
“No final do secundário, já sabia que queria estudar antro- Kaxinawa uma especialização de gênero que gira em torno da
pologia. Na Universidade de Lovaina, no entanto, não existia a complementaridade entre imagens, figuras e grafismos. Os mitos
possibilidade de fazer antropologia na graduação. Deste modo, ensinam que o dono do poder transformador de todas as formas
fui estudar História Contemporânea. Lá tive aula de História do percebidas (ou seja, da fenomenologia kaxinawa) é a anaconda
Brasil com o professor Eddy Stols, que era, já naquela época, um mítica, Yube. Este ser está na origem tanto da arte do grafismo
apaixonado pelo Brasil. Eu namorava então um belga que estava aprendido pelas mulheres quanto da experiência visionária com
se preparando para passar um ano como professor visitante no ayahuasca, também chamada de dami (figuras em transformação,
Brasil. Depois de defendida a dissertação, parti para o Brasil, mais imagens). Mais tarde adicionaria um terceiro termo ao arcabouço
particularmente para Florianópolis. Depois de curto período de nativo da percepção: o conceito yuxin, que também significa ima-
adaptação e aprendizado da língua, fiz a seleção para o mestra- gem, mas imagem enquanto fonte agentiva de outras imagens: a
do em Antropologia na UFSC, em 1987. O ambiente acadêmi- agência que está por trás da transformação de uma imagem em
co que lá encontrei me empolgou muito, especialmente por ter outra. Os yuxin são seres sem corpo que podem mudar de forma
sido esta minha primeira experiência com o modelo de ensino e os yuxibu, superlativo de yuxin, seres que podem transformar
por seminários. as formas dos seres ao seu redor.
“Sob orientação de Jean Langdon, queria estudar a arte, a pin- “Nas pesquisas de campo posteriores, em 1991, e entre 1994 e
tura corporal e o xamanismo de algum grupo amazônico. Resolvi 1995, aprofundei os insights do mestrado através da análise e exe-
perguntar a opinião de Berta Ribeiro, conhecedora das artes in- gese do ritual, dos cantos rituais e dos mitos a eles associados do
dígenas, que me convidou para um encontro em seu apartamen- rito de passagem para meninas e meninos, o nixpupima, ritual de
to no Rio de Janeiro. Berta estava acompanhada de Nietta Lin- enegrecer os dentes das crianças. Este ritual condensa o discurso
denberg Monte, na época coordenadora da comissão pró-índio do e práxis kaxinawa em torno da fabricação dos corpos das crianças
Acre. Foi assim que elas decidiram que eu estudaria os Kaxinawa. e sua preparação para a vida adulta. Foi por intermédio da análise
Saí de lá com uma lista de nomes a procurar até chegar a Rio Bran- do ritual que pude pensar a agência das imagens e dos grafismos,
co. Minha chegada em campo, em 1989, se deu em momento assim como dos artefatos e sua relação com os corpos a partir de
histórico: o Primeiro Encontro dos Povos da Floresta, que visava uma perspectiva nativa. Este material resultou na minha tese de
formalizar e pensar a aliança entre seringueiros e povos indígenas doutorado em 1998.
da região em defesa da floresta. Este encontro aconteceu um ano “Ingressei no doutorado da USP em 1992, sob orientação de
depois da morte de Chico Mendes, o precursor dessa aliança, e Lux Vidal. Morei em São Paulo durante um ano. Lux já tinha se
reunia pesquisadores e militantes do país e do exterior. Foi nessa aposentado das aulas. Mas tive aula com Joanna Overing, Manue-
ocasião que Terri Aquino, histórico aliado dos Kaxinawa, me apre- la Carneiro da Cunha e Roberto Cardoso de Oliveira. Em 1993
sentou a Pancho, chefe da aldeia Recreio e articulador político da fiz um concurso para Professor em Antropologia na UFSC. Passei,
região do Alto Purus. Quando ele e seus familiares regressaram assumi e deste modo interrompi o doutorado por dois anos, porque
à aldeia, fui junto. Fomos acompanhados também por Siã Osair estava ministrando aula. Em 1994 fui liberada para fazer pesquisa
Sales, jovem liderança kaxinawa do Rio Jordão que pretendia via- de campo até meados de 1995.
jar até o Peru para encontrar e filmar seus parentes. Essa viagem “Depois recebi o convite de Joanna Overing para passar um
daria origem a um dos primeiros filmes de vídeo nas aldeias, que ano como Research Assistant na London School of Economics,
Siã editaria mais tarde em São Paulo ao lado de Vincent Carelli. onde ela lecionava. Quando embarquei para a Inglaterra, no en-
“Minha primeira viagem de campo foi iniciática. Permane- tanto, ela já estava de mudança para St. Andrews, onde acabara
ci cinco meses ininterruptos e sem comunicação ou notícias do de ganhar um Professorship. Joanna Overing levou toda sua legião
mundo de fora nas aldeias Recreio e Nova Aliança no Alto Purus. de alunos de Londres consigo para animar a pacata St. Andrews
Essa pesquisa resultou na dissertação de mestrado Entre o cobra na Escócia. Fiz parte dessa primeira geração de etnólogos em
e o Inka: uma etnografia da cultura kaxinawa (1991), na qual as torno de Overing e lá fiquei por dois anos. Por causa desta longa
questões centrais das minhas futuras pesquisas já estavam pre- temporada inglesa/escocesa resolvi fazer um duplo doutorado, re-
figuradas: a relação entre percepção e cognição; o modo como conhecido na Inglaterra e em São Paulo. Mas, já que não existia
determinadas técnicas perceptivas e expressivas dialogam com convênio entre os dois países, tive que defender a tese duas vezes,
uma ontologia específica onde a transformabilidade dos seres traduzindo-a do inglês para o português para defendê-la novamen-
ocupa lugar central (o que veio a ser batizado mais tarde como te, na minha volta ao Brasil, na USP. O período inglês foi para
perspectivismo, Viveiros de Castro, 1996). Na dissertação explo- mim o ponto da virada. Se já sabia que uma volta para a Bélgica
rei a relação entre a existência de dois conceitos distintos para seria difícil, ficar por um tempo na Inglaterra me parecia tenta-
imagem (dami [figura] e kene [grafismo]) e suas relações com a dor. Mas eu já era funcionária pública no Brasil, portanto nada
complementaridade de gênero e o xamanismo. Resumidamen- disso seria fácil. A questão, no entanto, felizmente nem chegou
te, notei através da análise dos rituais femininos de iniciação na a se colocar, pois foi em St. Andrews que conheci meu atual ma-
136
antropologia
rido com quem voltei novamente para o Brasil, desta vez com a (Naipe) e os Seminários Ameríndios bimensais do PPGSA, IFCS
certeza absoluta que era para ficar. O problema a enfrentar agora desde 2002. Minhas áreas de interesse atuais englobam a etnolo-
era o de obter a permissão de transferência de Florianópolis para gia ameríndia, seus regimes ontológicos, sociais e estéticos, assim
a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os colegas cariocas do como a antropologia da arte, da imagem e dos artefatos em geral.
Departamento de Antropologia foram extremamente receptivos. Neste último campo iniciei há alguns anos uma pesquisa sobre a
Foi com o intuito de tornar nossa filha bilíngue, ela tinha dois anos figuração de santos e bichos em Juazeiro do Norte (CE), pesquisa
e começava a falar, que passamos seis meses na Bélgica, entre 2004 esta em colaboração com Marco Antonio Gonçalves e cujos re-
e 2005. Nos apresentamos à Universidade de Lovaina para sermos sultados resultarão em filmes e publicações”.
professores visitantes sem remuneração adicional, pois estávamos
de licença sabática na nossa universidade. Demos algumas pales- Conclusão
tras para os cursos de pós-graduação. Um ano mais tarde, cheguei
a Paris para uma pesquisa com uma bolsa Leg Lelong de quatro Não posso deixar de querer encontrar alguns fios na meada
meses (pelo CNRS). destes relatos de belgas antropólogos tão diferentes entre si. Um
“Para concluir um resumo sobre minhas atividades acadêmi- primeiro elemento que ressalta aos olhos é que muitos se torna-
cas mais recentes: Sou professora do Programa de Pós-Graduação ram etnólogos, estimulados às vezes pela leitura de Lévi-Strauss,
em Sociologia e Antropologia do IFCS, UFRJ, desde 2000. Sobre este gigante das Ciências Humanas do século 20, que fez muito
minha pesquisa entre os caxinauás publiquei em 2007 o livro A para colocar os índios brasileiros no mapa do mundo, às vezes pe-
fluidez da forma: arte, agência e relação numa sociedade ama- la simples vontade de viajar para longe. A vocação pela etnologia
zônica (kaxinawa) (Topbooks). Este retoma os recentes debates ameríndia, que implica em viver numa aldeia na floresta amazô-
teóricos no campo da etnologia e da antropologia da arte, os prin- nica, pode representar este sonho por um mundo diferente, comu-
cipais resultados da minha pesquisa no campo da antropologia mente batizado de atração pelo exótico que caracterizaria o olhar
da percepção. Em 2009 publiquei o livro Arte indígena no Brasil, ocidental sobre o mundo. Para se tornar antropologia, no entanto,
editado pela Com/Arte, um ensaio teórico sobre a questão da arte esta vivência, que pode iniciar por um desejo pelo distante, por
em contextos onde este conceito não existe, estabelecendo um uma experiência de alteridade, precisa ser traduzida em termos
diálogo com as discussões no campo da arte conceitual. Acabo de inteligíveis que eliminam exatamente este aspecto fantasioso do
terminar um livro, em coedição com Carlo Severi (professor da outro idealizado e de incompreensão. Conhecer o outro é, nas pa-
École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris), Quimeras lavras de Michael Taussig, tornar-se parcialmente outro. E é disso
em diálogo: xamanismo, grafismo e figuração, que reúne artigos que se trata na antropologia. Esta experiência vale para qualquer
de especialistas brasileiros e estrangeiros sobre a temática da rela- campo, que seja num terreiro de Xangô, numa aldeia indígena
ção entre mostrar e ocultar nas artes e nos rituais relacionados ao ou no mundo relacional de espelhos invertidos entre agentes de
xamanismo, tanto na Amazônia como na Sibéria e na América do políticas desenvolvimentistas europeias e representantes de países
Norte. O livro é um dos resultados de um convênio de pesquisa em desenvolvimento.
da Capes/Cobecub entre a UFRJ (PPGAS/MN e PPGSA/IFCS), Um elemento que me parece transpassar todos os textos aqui
o Collège de France, EHESS, e o Centro de Pesquisa do Musée reunidos é a dificuldade do movimento de ida e volta. Para todos, o
do Quai Branly entre os anos 2006 e 2010. Atualmente continuo Brasil significou a descoberta de mundos de experiência e de pen-
ligado ao Grupo de Pesquisa Internacional do Quai Branly e sou samento antes insuspeitados. A melancolia deriva do movimento
correspondente de sua revista Gradhiva. de retorno: quando se percebe o quão difícil é invocar o mundo
“Tenho formado meus orientandos de pós-graduação nos cam- de pensamento, reflexão e criação que se conheceu lá fora, mas
pos da antropologia da arte e na etnologia e coordeno desde 2008 que os que ficaram em casa desconhecem. É desta maneira que
um projeto de pesquisa em convênio com o Museu do Índio e a surge uma diferença crucial entre os mundos imaginários belga e
Unesco, “Construindo culturas, documentando tradições” (Pro- francês: o Brasil existe no mapa do imaginário francês, mas existe
docult), assim como um projeto de documentação sobre os usos muito pouco no dos belgas. Mas talvez seja muita presunção que-
e significados da miçanga entre as populações indígenas no Brasil, rer comparar a Bélgica, país tão pequeno e temeroso de ser uma
igualmente em colaboração com o Museu do Índio. Além dis- periferia de vários centros, com o gigante intelectual que continua
so, coordeno o Núcleo de Artes, Imagem e Pesquisa Etnológica sendo a França no mundo.
137
parte 4 – colaboração científica
138
antropologia
A festa da moça nova entre os Ticuna Pedro Inácio Pinheiro Ngematücü, presidente do Conselho Geral da Tribo Ticuna.
1988, quando, num conflito com um madeireiro, 14 índios Ticuna do em Ciências da Família. Meu trabalho final tratou da Educa-
desarmados morreram e 23 outros ficaram feridos. ção entre os povos índigenas Ticuna, Yanomami e Sioux.
Para levar seus problemas a público fora do Brasil não consegui Em 2007-2008 colaborei em duas exposições no Etnografisch
muito mais que algumas entrevistas na imprensa e na rádio. Após Museum de Antuérpia exclusivamente sobre o ritual da “moça no-
o massacre aderi ao recém-fundado grupo flamengo de apoio aos va” entre o povo Ticuna e no Musée International du Carnaval et du
povos indígenas, o KWIA. Escrevi alguns artigos para sua revista Masque (Binche) com uma parte sobre a festa da fertilidade entre
e, em parte porque houve pouco avanço no processo e julgamento os Ticuna. O catálogo da exposição de Binche, Basiques Instincts,
dos culpados e na demarcação oficial de sua área, decidi, em co- leva um artigo meu, Worecü et la démarcation du territoire – La fête
laboração com o KWIA, convidar Pedro para ir à Bélgica. Assim, de la Nouvelle Fille ou la fête de la fertilité chez les Indiens Ticuna,
ele poderia contar pessoalmente sua história à imprensa e buscar que trata da festa e também do papel da festa na luta pela terra.
apoio nas diversas organizações internacionais. Foi a primeira vez No quadro da Europalia.Brasil e da exposição Índios do Brasil
que Pedro veio à Europa. Nessa ocasião escrevi o livrinho Calha (2011) fiz, no Musée Royal d’Art et d’Histoire, duas conferências
Norte e os índios do Norte do Brasil – A problemática dos índios sobre os Ticuna: desde os primeiros contatos com o colonizador,
Yanomami, Tikuna e waimiri-atroari. (Série Inheemse Volkeren os barões da borracha, a luta, a festa… até os acontecimentos e
Vandaag t. 1, 1990, edição KWIA). desafios atuais para o povo Ticuna. O fio da meada nesta história
Em 1991 demarcaram-se oficialmente as duas principais áreas continua sendo o papel-chave de Pedro na luta pela terra e no que
dos Ticuna. Em 1993 fui convidado pelo Tropenmuseum (Museu lhe aconteceu depois da demarcação.
dos Trópicos) de Amsterdã para prepararmos juntos a exposição Ao longo dos 29 anos que trabalho com Pedro, tive desde o
Amazônia, que abriria em 1996. Esse projeto sobre a cultura Ti- início até hoje um vínculo muito íntimo e uma profunda amiza-
cuna focalizaria a festa da fertilidade. O Conselho Ticuna concor- de. Ele foi quem me iniciou e introduziu à vida, ao espírito e à
dou e apreciou a colaboração com o Tropenmuseum. Procurou-se, problemática dos Ticuna. Na medida do possível partilhei com
então, uma coleção representativa da cultura material, junto com ele todas as minhas iniciativas ou lhe comuniquei estas posterior-
a necessária documentação. Para os Ticuna, a mostra de objetos mente. Atualmente preparamos juntos um projeto sobre esculturas
seria uma excelente oportunidade para contar sua vida e luta. No de madeira e frutas.
final de 1996 chega uma delegação Ticuna a Amsterdã e Pedro Seja como for, minha estada no Brasil foi determinante para
abre oficialmente a exposição. o resto da minha vida. Levanto-me e deito literalmente no Brasil!
De repente, feita a demarcação, não havia mais interesses co- Houve momentos em que duvidava, sentia um amor infinito ou
muns ou ameaças. A união, antes tão importante na luta pela terra, uma dor profunda… “o que pelo amor de Deus venho eu ainda
parece perdida. Surgem sérios conflitos e divisões na comunida- fazer aqui?” Mas recebia então um novo encargo ou o chamado
de Ticuna. Até os próprios pesquisadores se separaram contra sua da selva, que se apoderava tanto de mim que simplesmente ia
vontade em dois campos. Reinava a suspeita e tornou-se difícil comprar uma passagem na direção da Amazônia. Não há como
trabalhar nas comunidades Ticuna. escapar à selva! É muito mais do que uma coleção de árvores, um
Porém, não desisti de minha pesquisa de campo. Continuei potencial econômico, turístico ou ecológico. Sobre esta vivência
seguindo os desenvolvimentos e as mudanças políticas dentro da pode-se comunicar com grande facilidade com os índios.
comunidade Ticuna e escrevendo artigos para a revista Inheemse O meu encontro com Pedro não foi uma surpresa para ele,
Volkeren do KWIA. Voltei a estudar e obtive, em 2002, bacharela- na sua juventude já sonhava que iria à Europa. Na minha última
139
parte 4 – colaboração científica
viagem (março de 2013), dizia no primeiro contato: já estou espe- colaborar durante tantos anos e até agora em absoluta confiança
rando um ano por você… Sobretudo é uma honra enorme poder com um dos mais importantes líderes indígenas brasileiros.
140
ensino e pesquisa
Fachada da Escola Agrícola “Luiz de Queiroz” que se encontra no livro Piracicaba e sua Escola Agrícola, de Mario de Sampaio Ferraz, publicado em Bruxelas, 1911.
141
parte 4 – colaboração científica
Grupo de professores e assistentes da Escola Agrícola “Luiz de Queiroz” em Imagem do salão da Congregação da Escola Agrícola “Luiz de Queiroz”, com o
fotografia no livro Piracicaba e sua Escola Agrícola, 1911. diretor Dr. Clinton Smith e os professores Vincent, Puttemans, Charropin, Arié,
Mendes, Gagezou, Dias, Sanders e Ribeiro, que se encontra no livro Piracicaba e
titut Agricole de Gembloux. Figura de renome na sua profissão, sua Escola Agrícola, 1911.
tinha larga experiência profissional obtida em várias estadias pela
França, Espanha, Itália, por Portugal e África. Foi encarregado de Les progrès de l’élevage dans l’Etat de Sao Paulo (Brésil) (A indús-
elaborar o projeto para a escola idealizada por Luiz de Queiroz. tria pastoril no Estado de São Paulo).
Em dezembro desse mesmo ano, Morimont foi nomeado diretor Jean Baptiste Michel, engenheiro agrícola igualmente vindo
da nascente escola por Jorge Tibiriçá Piratininga, então Secretário de Gembloux, foi professor de Agricultura (antiga 4ª Cadeira) e
da Agricultura, Negócios, Comércio e Obras Públicas do Estado sucedido por Hubert Puttemans, engenheiro agrônomo belga, que
de São Paulo. Permaneceu em seu cargo na Fazenda São João da tinha sido um dos primeiros professores da Escola Politécnica de
Montanha por pouco tempo, apenas até 1896 (Perecin, 2004, p. São Paulo (Perecin, 2004, p. 301 e 349). Publicou em 1915, na
135), devido a divergências políticas com o presidente recém-elei- cidade de Nivelles (Bélgica), o livro Agricultura Geral Especial-
to Campos Sales. Consta que havia se dedicado profundamente ao mente Apropriada ao Brasil.
projeto da escola de Piracicaba e deixou o Brasil muito ressentido Além desses, também foi contratado Nicolau Athanassof,
e doente, tendo morrido no mar, durante seu retorno à Bélgica agrônomo búlgaro que havia estudado no Instituto de Gembloux,
(Perecin, entrevista, 2004). e que assumiu a 5ª Cadeira, mais tarde dividida em zootecnia –
Morimont desempenhou papel especialmente importante na a cargo de Athanassof – e zoologia e higiene. Publicou diversos
elaboração dos moldes da escola que ali surgia. Implantou um mo- livros sobre criação de gado e suínos, dentre os quais se destaca
delo prático-teórico equilibrado, baseado no sistema do Instituto o manual do criador Os Bovinos, publicado em São Paulo, em
de Gembloux, mas que, afinal, “não deixou de ser um produto do 1922, que traz figuras de exemplares Flamengos Vermelhos pre-
academicismo europeu, para atender às necessidades de moderniza- miados em 1911 e 1912 nas exposições de gado em Ipre (Bélgi-
ção do setor primário da economia, a ser testado no Estado de São ca). Depois de sua passagem por Piracicaba, foi contratado como
Paulo” (Perecin, 2004, p. 155-157). diretor do Posto Zootécnico Federal de Pinheiros (RJ), substituin-
Quando Carlos Botelho assumiu a Secretaria da Agricultura, do outro belga, Hector Raquet, na função de diretor. (Ver texto
no início do século XX, continuou a contratação de profissionais “bovinotecnia”)
estrangeiros – não sem algumas reações xenófobas (Perecin, 2004, Em 1911, Mario de Sampaio Ferraz editou em Bruxelas um
p. 301) – para a escola agrícola de Piracicaba, dentre os quais vá- livro muito bem cuidado e intitulado Piracicaba e sua Escola Agrí-
rios de nacionalidade belga ou formados na Bélgica, como o co- cola. Nele consta a relação de professores e de seus assistentes, o
nhecido Arsène Puttemans, arquiteto paisagista, que foi professor período de matrícula, o conteúdo do curso, além de fotos de inte-
de paisagismo e horticultura (ver nota em ‘Arquitetura’), e outros resse: dos professores, assistentes e alunos – em seus laboratórios
abaixo relacionados. e em trabalho de campo – e do famoso prédio central, projeto de
Louis Misson, engenheiro agrônomo formado em Gembloux, José Van Humbeeck, situado em frente ao jardim projetado por
assumiu a 4ª Cadeira, mas foi logo requisitado pela Secretaria da Arsène Puttemans.
Agricultura por seu prestígio como cientista (Perecin, 2004, p. A presença desses técnicos e profissionais demonstram, por
293) e publicou, em Bruxelas, em 1907 e outras edições, o livro um lado, que o período era de renovação para a produção rural
142
ensino e pesquisa
Trabalho de mensuração de um cavalo pela lente do dr. Vincent na Escola Agrícola “Luiz de Queiroz”, fotografia publicada em Piracicaba e sua Escola Agrícola, 1911.
brasileira, especialmente na região paulista que começava a vis- de São Paulo, p. 3.368, 1931). Ocupou as cátedras de Patologia e
lumbrar o possível declínio da produção cafeeira (confirmado a Clínicas Cirúrgica e Obstetrícia, de Patologia e Clínica Médicas,
partir de 1929). Por outro, se evidencia o apelo dos governantes ao Indústria e Inspeção de Produtos de Origem Animal. Consta que
conhecimento estrangeiro do setor, no quadro do qual a Bélgica produziu importante trabalho sobre patologia do aparelho loco-
tinha excelente reputação. Assim, esse país viria a contribuir de motor em equinos e foi um dos maiores cirurgiões veterinários do
forma relevante, ao lado da França e dos Estados Unidos, para a Brasil (Matera, 1963-64).
formação e o desenvolvimento da Escola Superior de Agricultura
“Luiz de Queiroz”. Referências
Em tempo, para complementar a atuação de profissionais bel- D.O. do Estado de São Paulo, Imprensa Official, n. 99, p. 3.368, sexta-feira, 1 de maio
gas no quadro do ensino relativo à agropecuária, é preciso citar de 1931.
René Straunard, formado pela Escola de Medicina Veterinária Matera, Ernesto Antônio. Professor René Straunard. Revista da Faculdade de Medicina
Veterinária de São Paulo, Vol. 7, fasc. 1, 1963-64.
de Cureghem, Bruxelas, que chegou ao Brasil pela primeira vez Misson, Louis. Les progrès de l’élevage dans l’Etat de Sao Paulo (Brésil). Bruxelles: So-
em 1913, tendo ido para Catalão, em Goiás. Voltou ao Brasil em ciété anonyme, M. Weissenbruch, 1912.
1920, quando foi contratado como Inspetor Veterinário da Dire- Perecin, Marly Therezinha Germano. Entrevista à Rádio Educadora de Piracicaba AM
1060 Khertz em 20/11/2004. Disponível em: <http://www.teleresponde.com/PERE-
toria de Indústria Animal e trabalhou no Jóquei Clube de São CIN.HTM>. Acesso em: 30 nov. 2013.
Paulo. A partir de 1931 começou a atuar como professor no Ins- Perecin, Marly Therezinha Germano. Os Passos do Saber: a Escola Agrícola Prática
tituto de Veterinária (criado em 1919 e atual Faculdade de Me- “Luiz de Queiroz”. São Paulo: Edusp, 2004.
Stols, Eddy. Penetração econômica, assistência técnica e “brain drain”: aspectos da emigra-
dicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo), ção belga para a América Latina por volta de 1900. Jahrbuch für Geschichte Lateina-
quando assumiu interinamente o cargo de professor catedrático merikas = Anuario de História de América Latina (JbLA), n. 13, 1976 (Ejemplar dedi-
da Cadeira de Clínica e Obstetrícia do Instituto (D.O. do Estado cado a: Emigración europea a América Latina durante los siglos XIX y XX), p. 361-385.
143
parte 4 – colaboração científica
144
ensino e pesquisa
Os primeiros contatos entre o OIB e a Biblioteca Nacional do aproximado de 16 milhões de fichas e a CDU se tornará o padrão
Rio parecem iniciar-se por volta de 1902. A partir dessa época, a em inúmeras bibliotecas do mundo inteiro.
Biblioteca Nacional do Rio envia publicações brasileiras ao OIB. Atualmente, o Mundaneum, instalado em Mons (Bélgica)
Por volta de 1910-1911, seu diretor, Manuel Cícero Peregrino desde 1993, é um centro de arquivos e um espaço de exposições
da Silva (1866-1956), aproveita sua estada em Bruxelas para vi- temporárias. Conserva as coleções reunidas por seus fundadores
sitar o OIB e decide aplicar o sistema da CDU na Biblioteca do e sucessores (publicações, jornais, periódicos, cartazes, fichas, fo-
Rio e de introduzir o RBU, do qual ele encomenda uma cópia tografias, cartões postais…), como também os papeis pessoais de
completa. Trata-se da primeira encomenda tão extensa ao OIB. Paul Otlet e de Henri La Fontaine e os fundos de arquivos tra-
O primeiro volume de 23 mil fichas é despachado em dezembro tando de três temáticas principais: o pacifismo, o anarquismo e o
de 1911 pelo intermediário de Manuel de Oliveira Lima (1867- feminismo.
1928), embaixador do Brasil na Bélgica. A colaboração se pro-
longa até 1914 e leva à criação de uma seção bibliográfica dentro Jacques Gillen, historiador do pacifismo e do movimento anarquista
da Biblioteca Nacional do Rio. Ela comporta várias remessas de na Bélgica, é diretor do Mundaneum em Mons.
fichas e a visita, em 1913, de Britto Galvão, funcionário dessa
mesma biblioteca, que vem a Bruxelas estudar a organização e o Referências
funcionamento do RBU. Le Mundaneum. Les archives de la connaissance. Mons, Impressions Nouvelles, 2008; Paul
Esta cooperação internacional foi decisiva para que primeiro o Otlet, fondateur du Mundaneum (1868-1944). Architecte du savoir, artisan de paix.
Bruxelas, Impressions Nouvelles, 2010; Henri La Fontaine, Prix Nobel de la paix en
OIB e em seguida o Mundaneum pudessem desenvolver o RBU e 1913. Un Belge épris de justice, Bruxelas, Mundaneum-Racine, 2012. Mundaneum,
a CDU de maneira tão considerável: o RBU atingirá um número Papéis pessoais de Paul Otlet, dossier numéroté 504 (PP PO 942).
145
parte 4 – colaboração científica
A partir de 1949, o IRPA começou seu programa de estágio em Antônio Cruz Souza (MG), Marcos Cézar de Sena Hill (RJ), Ka-
seus ateliers de restauração. Coremans, extremamente visionário, thia Berbert Sant’Ana (BA), Beatriz Gonçalves Gaede (MG), Eri-
via sua instituição como um verdadeiro centro de formação. En- ka Benatti Rabelo (MG), Erika Santos (RJ), Karen Barbosa (SP).
quanto conselheiro da United Nations Educational, Scientific and O primeiro estagiário brasileiro (1961-1962) viveu uma época
Cultural Organization (Unesco), visitou vários países e observou importante da história do IRPA, que culminou com a transferên-
que havia urgência em capacitar os recentes centros de conser- cia dos ateliers, dos laboratórios e dos arquivos para o novo pré-
vação surgidos pelo mundo inteiro com funcionários formados dio, inaugurado em dezembro de 1962. Jair Inácio não chegou a
segundo uma metodologia científica adequada. trabalhar nos novos locais, pois seu estágio terminou três meses
Quando o IRPA mudou-se para o novo prédio em outubro de antes. O percurso profissional de Jair é típico de sua época: sem
1962, o estágio tornou-se um curso de pós-graduação em parceria formação acadêmica, ele foi admitido no Sphan (orgão que te-
com universidades belgas (Ceulemans, p. 208), programa que du- ve variações de nome e siglas desde sua criação: Dphan, Sphan,
rou somente três anos, mas que ganhou reputação internacional. IBPC e atualmente Iphan) devido a seu talento como pintor na
Entre 1960 e 1970, 89 estagiários, entre estrangeiros e belgas, pas- cidade de Ouro Preto (MG) e graças ao mecenato da Fundação
saram pelo IRPA. Após o falecimento de Paul Coremans (1965) a Rockefeller, de Nova York, pôde vir estudar na Europa. Nos ar-
pós-graduação voltou a ser um estágio de aperfeiçoamento, mais quivos do IRPA encontram-se cartas de recomendação elogiosas a
modesto, mas mantendo os objetivos iniciais centrado no estudo Jair da parte de Rodrigo Mello Franco Andrade, primeiro diretor
científico das obras de arte. do Sphan e pioneiro incontestável da recuperação patrimonial
no Brasil, e de Edson Motta, restaurador, funcionário do Sphan
Estagiários brasileiros e professor universitário no Rio de Janeiro.
Nessa época, os restauradores eram ainda polivalentes, traba-
Em 64 anos de existência, o IRPA recebeu 14 estagiários do lhavam objetos diversos. Jair Inácio participou da restauração da
Brasil, procedentes dos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio ‘Descida da Cruz’, pintura de Rubens conservada na Catedral de
de Janeiro, Pernambuco e Bahia: Jair Afonso Inácio (MG), Fernan- Antuérpia, sob a direção de Georges Messens. Foi contemporâ-
do Barreto (PE), Regina Costa Pinto Dias Moreira (BA), Frances- neo de Agnes Grafin Ballestrem, formada no Landesmuseum, de
ca Karolyi (SP), Liana Gomes Silveira (BA), Claudina Maria Du- Bonn, Alemanha. Agnes tornaria-se responsável pelo atelier de
tra Moresi (MG), Silvio Luiz Rocha Vianna Oliveira (MG), Luiz restauração de escultura do IRPA, em seguida responsável pelo
146
ensino e pesquisa
Landesmuseum e diretora do Centraal Laboratorium voor Onder- em Belas Artes e aprendizado em ateliers europeus. Ou seja, já há
zoek van Voorwerpen van Kunst en Wetenschap, em Amsterdã. uma especialização entre as diferentes áreas. Regina Costa Pinto
Durante seu estágio, Coremans organizou visitas profissionais Dias Moreira, estagiária em 1970/1971 no atelier de pintura, tinha
a fim de que Jair Inácio pudesse usufruir ao máximo de sua expe- formação de três anos no Instituto de Conservación y Restauración
riência europeia. Entre os meses de abril e maio de 1962, o esta- de Bienes Culturales de Madri, criado em 1961 sob o incentivo da
giário visitou o Museé National Suisse de Zurich, os ateliers do Unesco e particularmente de Paul Coremans. Regina tornar-se-ia
Musée du Louvre sob a direção de Madeleine Hours e o Instituto referência na França onde durante mais de duas décadas esteve
para o Exame e Restauro das Obras de Arte de Lisboa. Antes de a cargo de restaurações de obras-primas conservadas no Museu
retornar ao Brasil visitou a Rockefeller Foundation em Nova York. do Louvre. Recentemente colaborou com restaurações no Masp,
Paul Coremans viajou ao Brasil em 1964 como conselheiro da de São Paulo. Francesca Karolyi estagiou no atelier de escultura
Unesco. Visitou o Rio de Janeiro e as cidades históricas de Minas policromada em 1971/1973. Em seguida, trabalhou no IRPA e
Gerais e Pernambuco. Nessa ocasião conheceu Fernando Barreto, na Alemanha (Munique). Liana Gomes Silveira era restauradora
professor da Universidade de Pernambuco e restaurador de pintura do Museu de Arte Sacra de Salvador quando veio estagiar no IR-
do, então, Dphan. Fernando viria ao atelier de pintura do IRPA em PA em 1976/1977. Em seu currículo constava um curso na Real
1964/1965 com uma bolsa concedida pelo governo belga. Academia de Bellas Artes de San Fernando, em Madri. Durante
Na década de 70 o quadro muda um pouco e os estagiários bra- seu estágio no atelier de esculturas policromadas, sob a direção de
sileiros que chegam ao IRPA vêm com uma formação universitária Myriam Serck-Dewaide, dedicou-se ao estudo da substituição da
147
parte 4 – colaboração científica
reintegração à base de pintura a óleo por resinas sintéticas testa- tação dos órgãos nacionais de preservação do patrimônio cultural
das em envelhecimento artificial, bem como a prática de remoção no Brasil e na América Latina.
mecânica de repinturas. Nas décadas seguintes essa relação continua, mas de outra for-
No Brasil dos anos 80 surgem cursos de especialização en con- ma. Ela caracteriza-se por uma troca de conhecimentos. Vemos a
servação e restauração de bens móveis. Em 1980, o Centro de participação de belgas em cursos e congressos no Cecor-UFMG
Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis da Univer- e no Centro de Estudos da Imaginária Brasileira (Ceib), criado
sidade Federal de Minas Gerais (Cecor) e, no mesmo ano, outro pelas professoras Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho, funda-
curso de especialização, na Universidade Federal da Bahia. A es- dora do Cecor-UFMG, e Myriam Ribeiro de Oliveira, doutora-
tagiária Claudina Maria Dutra Moresi, química do Cecor-UFMG da pela Universidade de Louvain-La-Neuve, professora da UFRJ
frequentou o IRPA em 1986/1987, juntamente com seu marido, e pesquisadora do Iphan. Em 1985, acontece o seminário sobre
Silvio Luiz Rocha Vianna Oliveira (atelier de pintura). Claudi- adesivos naturais, vernizes e utilização de solventes em restau-
na desenvolveu um trabalho no Cecor-UFMG baseado em sua ração, ministrado por Liliane Masschelein-Kleiner, do IRPA, e
experiência na Bélgica. Voltou ao IRPA em 1991 para uma pes- coordenado por Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho, no Ce-
quisa específica. Silvio Luiz Rocha Vianna Oliveira foi professor cor-UFMG. Em 1989, realiza-se o seminário Taller de actuali-
da Fundação de Arte de Ouro Preto. Luiz Antônio Cruz Souza, zación para América Latina: escultura policromada, organizado
químico do Cecor-UFMG, esteve no IRPA em 1987/1988 e em pelo Getty, Programme des nations unies pour le développement
seguida estagiou no Getty Conservation Institute, em Los Ange- (PNUD), Unesco e UFMG, também no Cecor. Participaram des-
les, EUA. Luiz Antônio é atualmente professor do Cecor-UFMG te seminário o belga Jean-Albert Glatgny, restaurador autônomo
e representante do Brasil no conselho do Iccrom. Marcos Cézar formado no IRPA, Myriam Serck-Dewaide, Monique Péquignot
de Sena Hill, diplomado do Cecor-UFMG, estagiou no atelier de e Agnes Grafin Ballestrem.
escultura policromada em 1987/1988, sob a direção de Myriam O I Congresso Internacional do Ceib em Mariana (1998),
Serck-Dewaide. Diplomou-se pela Universidade de Louvain-La contou com a participação do professor Ignace Vandevivere (1938-
-Neuve e é professor de História da Arte na Escola de Belas Artes -2004) da Universidade de Louvain-La-Neuve e diretor do Museu
(EBA-UFMG). Kathia Berbert Sant’Ana foi estagiária do atelier de de Louvain-La-Neuve.
pintura do IRPA em 1988/1989, sob direção de Nicole Goetghe- O III congresso do Ceib em São João Del Rei (2003) teve a
beur. Trabalhou no Museu de Arte Sacra de Salvador, na Bahia, participação de Myriam Serck-Dewaide, responsável pelo atelier
e no Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac). Beatriz de escultura policromada e em seguida diretora do IRPA. Ela tam-
Gonçalves Gaede estagiou no atelier de escultura policromada em bém publicou no Boletim do Ceib Breve história da evolução dos
1990/1991, sob a direção de Myriam Serck-Dewaide. Erika Benati tratamentos das esculturas.
Rabelo, diplomada pelo Cecor-UFMG, estagiou no atelier de es- O IV congresso do Ceib em São João Del Rei (2005) contou
cultura policromada em 1992/1993. Domiciliou-se na Bélgica e com a participação de Michel Lefftz, atual professor da Fundep
colabora com o IRPA desde 1997, onde foi responsável por vários (Facultés Universitaires Notre-Dame de la Paix), de Namur. Sua
projetos de restauração. Realizou pesquisas e publicações sobre a conferência foi publicada na revista do Ceib, Imagem Brasileira,
escultura barroca na Bélgica. Erika Santos estagiou no atelier de com o título “Análises morfológicas dos drapeados na escultura
escultura policramada em 2007/2008. Domiciliou-se na Bélgica portuguesa e brasileira. Método e vocabulário”.
e estudou na Artesis Hogeschool de Antuérpia. E Karen Barbosa,
diplomada pelo Cecor-UFMG, estagiou no atelier de pintura em Myriam Serck-Dewaide, responsável pelo atelier de esculturas poli-
2010/2011. Karen atualmente é coordenadora da área de conser- cromadas do IRPA (1973-1999); Responsável pelo Departamento de
vação e restauração do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Conservação do IRPA (1999-2002); Diretora do IRPA (2003-2011);
co-autora de Les techniques utilisées dans l’art baroque religieux des
Considerações finais XVIIème et XVIIIème siècles au Portugal en Espagne et en Belgique, dans
Policromia. A esculptura policromada religiosa dos séculos XVII e
O relatório de Paul Coremans de sua missão ao Brasil e à XVIII. Actas do Congresso Internacional Policromia em 2002, Lis-
América Latina como conselheiro da Unesco em 1964 é um do- boa, IPCR, 2004, p. 119-157, e autora de ‘Les techniques utilisées
cumento interessante. Além de descrever o que viu no Brasil e dans l’art baroque religieux des XVIIème et XVIIIème siècles au Portugal
sugerir medidas protetoras para os sítios históricos visitados, ele en Espagne et en Belgique’, Policromia. A esculptura policromada
analisa em profundidade o funcionamento do antigo Dphan. Ha- religiosa dos séculos XVII e XVIII. Actas do Congresso Internacional
via, nos anos 60, uma dependência do Brasil, nos níveis teórico e Policromia em 2002, Lisboa, IPCR, 2004, p. 119-157, e ‘Breve história
financeiro (bolsas de estudo), em relação aos países onde a estru- da evolução dos tratamentos das esculturas’, Boletim do Ceib, Belo
tura patrimonial estava mais organizada. A relação belgo-brasileira Horizonte, vol. 9, n. 31, juillet 2005.
desse período inscreve-se nesse âmbito. Observa-se a dependência
internacional para os assuntos patrimoniais do Brasil. O IRPA e a Erika Benati Rabelo, Master em Conservação Preventiva (Paris I-
Unesco forneceram recursos materiais e humanos para a capaci- -Sorbonne), Restauradora do IRPA em Bruxelas; autora de ‘Les imita-
148
ensino e pesquisa
149
parte 4 – colaboração científica
Brasília (maio de 2010). O texto aprovado estabelece as condições Center-APEC, merecia ser melhor estruturada. A fim de dar-lhe
para um programa de colaboração, a longo prazo, em domínios de um quadro formal e um caráter privilegiado, a Secretaria de Por-
pesquisa, como armazenamento de resíduos radiativos, dosimetria, tos assinava com o APEC – mais uma vez na presença de S. A.
corrosão, qualificação dos combustíveis, educação e formação e ir- R., o Príncipe Philippe – um acordo de cooperação técnica para
radiações. Uma missão anterior dos altos dirigentes do SCK-CEN a formação de pessoal e a troca de informações (maio de 2010).
ao Brasil (2011) detalhava as formas de colaboração nessas áreas. Esse acordo, renovado para um período de dois anos em julho de
A ação da Bélgica insere-se num quadro europeu mais amplo: 2011, permite a dezenas de especialistas familiarizarem-se com as
é neste contexto que deve ser colocada a nossa presença nas fei- técnicas modernas de gestão das operações portuárias mais diver-
ras Euro-Pós (2011) e Estude no Exterior (2012), que tinham por sas. Deveria, além disso, favorecer o desenvolvimento de investi-
objetivo apresentar aos estudantes universitários brasileiros uma mentos belgas no Brasil nesse setor.
larga gama de possibilidades de formação na Europa. À margem da visita oficial do Presidente Luis Inácio Lula
Diante destes sucessivos desenvolvimentos, não é, por conse- da Silva a Bruxelas (2009), os altos dirigentes do Ministério dos
guinte, surpreendente constatar que a Bélgica figure na primeira Transportes do Brasil efetuaram uma visita que lhes permitia
fila dos países parceiros quando do lançamento do ambicioso pro- estudar as técnicas e obras desenvolvidas na Bélgica para assegu-
grama brasileiro Ciência sem Fronteiras, que deve oferecer mais rar eficazmente o transporte de mercadorias por vias navegáveis.
de 100 mil bolsas em quatro anos a estudantes brasileiros que de- Começaram, então, negociações que levaram à conclusão de um
sejem completar sua formação em Ciências Exatas no estrangeiro. Protocolo de Intenções com os Governos regionais flamengo e va-
Este assunto foi abordado com detalhe, por ocasião da visita oficial lão (2011). Contemplava uma interação sobre, designadamente,
que a Presidente Dilma Rousseff realizou à Bélgica na inaugura- o Plano Diretor brasileiro de vias navegáveis, o projeto de canal
ção do festival Europalia Brasil (outubro de 2011). navegável, as construções, operação e manutenção das vias na-
O simpósio Belgium-Brasil Networking in Science, Technolo- vegáveis, os projetos de vias navegáveis ecologicamente corretas,
gy and Innovation for a Better Future, seguido de encontros entre o transporte multimodal. Foram igualmente previstos estágios de
os presidentes do FWO e do FNRS com o presidente do CNPq, formação e aperfeiçoamento de conhecimentos no domínio dos
entre o presidente da Capes e o representante do CNPq com re- transportes por vias navegáveis.
presentantes de todas as universidades belgas e, por último, um Para consolidar essas novas relações, o segundo Seminário Bel-
encontro entre as universidades e centros de investigação belgas go-Brasileiro de Vias Navegáveis foi organizado em Brasília, em
com delegações das associações Andifes e Abruem permitiram às abril de 2012.
duas partes discutir sobre as condições de futuros intercâmbios.
As negociações foram rapidamente iniciadas para tornar pos- Conclusão
sível, no princípio de 2012, a assinatura de acordos para o acolhi-
mento desses bolsistas na Bélgica. A sua progressiva implemen- Esperamos que estas diferentes iniciativas deem frutos e que
tação terá sido facilitada pelas conversações entre os Reitores de o movimento não somente seja mantido, mas também ampliado.
universidades brasileiras membros da Associação Brasileira dos Essas trocas têm um efeito muito importante para o futuro das nos-
Reitores das Universidades Estaduais e Municipais-Abruem e to- sas relações com este grande parceiro que é o Brasil. A esse respei-
dos os homólogos belgas quando da missão dos primeiros na Bél- to, é muito agradável sublinhar que, primeiro, o Presidente Luís
gica (em julho de 2012). Inácio Lula da Silva, quando de sua visita oficial em 2009, e, em
seguida, a Presidente Dilma Rousseff, quando de sua visita oficial
A cooperação técnica em 2011, manifestaram, pessoalmente, o interesse e prometeram
apoio a esta cooperação bilateral acadêmica, científica e técnica.
Note-se que a cooperação bilateral igualmente desenvolveu-se Não há nenhuma dúvida de que esta colaboração deva desenvol-
no domínio técnico. Tendo em conta a importância que represen- ver-se sempre mais, para maior benefício dos nossos dois países.
tam as infraestruturas de transporte nos nossos dois países, e tendo
em conta a experiência adquirida pela Bélgica durante séculos, Claude Misson é embaixador honorário da Bélgica. Jovem diploma-
pareceu útil organizar visitas de responsáveis brasileiros aos nossos ta sucessivamente em Jeddah e Brasilia, foi nomeado embaixador em
portos e infraestruturas fluviais. Abu Dhabi, Lisboa e Madrid; foi diretor geral do Institut Egmont
A formação de especialistas brasileiros em gestão portuária, em Bruxelas antes de encerrar a carreira em Brasília. Vive atualmen-
oferecida há mais de 20 anos por Antwerp/Flanders Port Training te em Madri.
150
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
parte 5
Influências Religiosas
e Ideológicas
151
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
152
Jesuítas belgas no Brasil colonial
Eddy Stols
153
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
154
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
Litterae Annuae, as cartas ânuas destes padres. Na mesma época, três vezes amarrado para ser morto pelos Bárbaros’. A última vez,
fundaram-se novas missões, como Santo Ângelo pelo flamengo já amarrado nu num tronco de árvore, foi salvo pelos neófitos. Es-
Diogo de Haze em 1706. tes ameaçaram os bárbaros com o relâmpago, que os mataria se
Nem todos os jesuítas belgas destinados às missões do Paraguai não desamarrassem o padre. Acreditaram, e vários se converteram.
falaram mal dos portugueses. Um deles, o músico e pintor Louis Este imaginário de índios selvagens e de milagres jesuíticos
Berger, se gabou em janeiro de 1617 da boa recepção em Lisboa, foi manipulado pelos confrades belgas para suscitar um culto a
onde ‘querem bem à Nação flamenga’ e, na escala da Bahia, onde Anchieta com livros como a tradução francesa de sua biografia,
‘os padres ao par de nossa chegada foram ao nosso encontro com um La vie miraculeuse du P. Joseph de la compagnie de Jésus, do pa-
barco’ (Histoire du massacre). Antes tiveram a agradável surpresa dre Pedro Rodrigues, aumentada pelo padre Sébastien Beretaire
que ‘à quase uma légua de distância do porto nosso navio foi cerca- (Douai, 1619), e com as relíquias de seus escritos, conservados
do por uma armada de jangadas, feitas cada uma de três peças de em Antuérpia ainda no final do século XIX (Kieckens). Inspirou
madeira, e algumas de uma peça só escavada como uma selha onde estampas como as de Abraham a Diepenbeke na Kerckelycke His-
comem os cavalos. Em cada barquinho tinha um brasileiro e um toriae van de gheheele wereldt, de Cornelius Hazaert (Antuérpia,
negrinho que pescavam e era coisa admirável como ficavam em pé 1652-1671). A visão de um Brasil perigoso e propício ao enaltecido
sobre estes paus. Fizemos entrar alguns no nosso navio, que saíram martírio se fortaleceu ainda mais com a passagem por Antuérpia
muito contentes com os presentes que lhes fizemos’. No porto, des- dos jesuítas portugueses, presos pelos piratas ingleses ou holande-
carregou-se muita artilharia e Berger foi honrar a sepultura de José ses na Bahia, em 1624, e em Pernambuco, em 1630, e resgatados
de Anchieta: ‘Tinha ouvido falar de sua vida e miráculos, quando pelos confrades flamengos.
eu estava em Tournai. É nada em comparação com as maravilhas O prestígio dos jesuítas deve ter incitado a nova ordem dos
que contam aqui deste santo padre. Tenho uma carta escrita de sua capuchinhos a lançar-se na evangelização do Brasil com uma pri-
própria mão junto com um pedaço de osso, de roupa e camisa que meira participação na expedição colonial dos franceses no Mara-
me deu o padre reitor daqui’. Ouviu lá mais notícias sobre o padre nhão. A província belga dos capuchinhos se deixou seduzir pelas
Francisco Pinto, ‘martirizado pelos Bárbaros, e beijei o bastão com perspectivas na África, mas recorreu para chegar lá às conexões
o qual lhe romperam a cabeça... os Bárbaros não querem devolver entre Lisboa, Recife e Angola, uma ligação triangular recorrente
o corpo, que veneram muito. Quando falta chuva nas suas lavras, nas relações entre a Bélgica e o Brasil. O continente africano con-
rezam para este padre’. Falou ainda ‘com um bom padre, que já foi tinuaria presente em filigrana na evangelização belga do Brasil.
155
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
156
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
157
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
predomínio de 30 anos do partido conservador católico e quando No final de agosto de 1895, Dom Gerardo desembarcou em
suas elites se enriqueciam com os primeiros dividendos de sua in- Recife liderando uma caravana de 17 monges, conversos e pos-
dustrialização exitosa. tulantes, além de dois padres seculares, Moreau e Van Emelen,
Proeminente pioneiro nesta romanização belga do catolicis- e o agrônomo franco-polonês Schönowsky. Essa viagem custou
mo brasileiro foi o beneditino belga Gerardo van Caloen (1853- cerca de 16.500 francos belgas, pagos por Frei Domingos. Res-
-1932), hoje mais conhecido por dar nome a uma rua no Rio tauraram logo a clausura e o culto, despediram os empregados e
de Janeiro do que por suas façanhas no Brasil durante quase 25 Dom Gerardo sucedeu ao abade Botelho. Os três primeiros anos
anos. Sua figura, mais do que o mais citado beneditino alemão foram desanimadores pelas dívidas encontradas e pelos conflitos
Miguel Kruse, tem o perfil dos empire builders coloniais, como com as autoridades sobre os regulamentos higiênicos e sobre uma
Cecil Rhodes, econômicos, como Edouard Empain ou Percival escola técnica, aberta e logo fechada em 1897. Nas suas igrejas
Farquhar, ou religiosos, como Mgr Lavigerie. Van Caloen deixou dependentes de Prazeres e de Nossa Senhora do Monte tornou-se
uma pletórica correspondência e um diário bastante minucioso, penoso disciplinar as devoções populares arraigadas. Desgostavam
conservado nos arquivos da Abadia de Zevenkerken. Inspiraram ao da liturgia dirigida por um seminarista, da música mundana, das
beneditino Christian Papeians de Morchoven uma valiosa biogra- festas de São João e do barulho na igreja, como num ‘mercado
fia crítica, que aqui se resume, completa e contextualizada com de peixes’. Estranhavam a superstição dos fiéis contra padres que,
outras fontes, algumas brasileiras. montando a cavalo, faziam este animal ‘ressecar-se’. Em suas ter-
Joseph van Caloen (1853-1932) foi o primogênito de pai bel- ras de Prazeres o administrador Schönowsky foi suspeito de roubo.
ga e mãe francesa, numa família de pequena nobreza e de ricos Aí a preguiça dos trabalhadores deixava na saudade ‘humanidade
proprietários de terras, ativos na política na região de Bruges. à parte, o tempo dos escravos’. ‘Não trabalhavam antes das 7 nem
Cresceu no novo castelo em estilo neogótico que seus pais man- depois das 5, descansavam quanto mais podiam e pela mínima re-
daram construir em Loppem, onde se levantaria mais tarde a preensão iam-se embora’. Eram desonestos e todas as padarias do
abadia ‘brasileira’ de Saint-André de Zevenkerken. Neste meio Recife se serviam do carvão roubado dos seus bosques. Religiosos
cultivado e multilingue, de saúde frágil mas curioso de tudo, com belgas e alemães se desentendiam e alguns abandonaram. Vários
até seu ‘Petit Musée’ no parque, entusiasmou-se pela história, par- adoeceram e dois morreram de febre amarela.
ticularmente dos monges medievais, exaltados por Montalembert O clima mortífero motivou ainda mais Dom Gerardo a con-
como os verdadeiros fundadores do Ocidente europeu. Bastante siderar, em 1899, a fundação, no interior mais sadio do Ceará, de
viajado, ainda jovem, andou pela Palestina, depois pela Espanha, uma nova abadia, Santa Cruz do Quixadá. Esta, mais adequada
Inglaterra e Alemanha, empolgou-se pela reforma beneditina ini- para acolher o noviciado na tradição espiritualista, começaria tu-
ciada em 1870 em Beuron, no sul da Alemanha. Em 1872 se fez, do de novo e formaria um contrapeso às abadias urbanas. O que o
sob o nome de Dom Gerardo, o primeiro monge da suntuosa visionário Van Caloen entreviu nesta primeira visita como a futura
filial belga dessa congregação em Maredsous, custeada pela no- Maredsous do Brasil, começou num casario de taipa, mas deveria
breza e burguesia católica belga. Diferentemente dos confrades, estender-se sobre dois morros. Um seria destinado a um colégio,
sonhava combinar a vida monástica com a ação missionária e que se tornaria a grande instituição do Norte do Brasil. Contava
fundar um mosteiro entre os ‘bárbaros’. Para isso propôs, já em no início com a doação do terreno e o apoio da elite da província,
1886, ao colaborador de Leopoldo II, o Barão Lambermont, a do bispo, do chefe local, Coronel Cravo, e com dinheiro empres-
fundação de uma escola apostólica para preparar a implantação tado pelo Barão de Studart.
dos beneditinos no Congo. Ao mesmo tempo entusiasmou-se pela Este êxito parece ter dado vento em popa às ambições de
reconciliação das igrejas ortodoxas orientais com Roma, para a Van Caloen, que se fez designar adjutor e sucessor de Dom Do-
qual pensava construir uma nova abadia. mingos como abade-geral da Congregação Beneditina brasileira.
Sua guinada de rumo para o Brasil seguiu um pedido de ajuda Apenas chegavam mais alguns monges e ele os destinava à abadia
feito a Roma por Frei Domingos da Transfiguração, abade da Bahia da Bahia e sua dependência de Brotas, que deveriam sediar res-
e abade-geral da congregação beneditina brasileira. Esta dispunha pectivamente uma ‘Faculdade Metropolitana’ e um orfanato ou
de apenas dez monges de idade avançada em cinco abadias e sete escola agrícola. A abadia abriu suas portas aos feridos da Guerra
priorados, parcialmente ocupados por seus familiares ou descen- de Canudos. Em 1900 foi lançado um jornal, O Estandarte Ca-
dentes. Temia-se pelo seu descalabro total com a provável expro- tólico, com duas edições, na Bahia e em São Paulo, destinado a
priação pelo novo poder republicano. Roma se sensibilizou e dele- ser um equivalente do La Croix francês, com mais um periódico
gou em 1893 ao impetuoso van Caloen a tarefa de examinar uma para crianças, O Anjo da Guarda. Van Caloen aconselhou em
restauração beneditina no Brasil. Dom Gerardo aceitou, familiari- Pernambuco o prócer do paternalismo católico, Carlos Alberto
zando-se antes, durante quatro meses, com a língua portuguesa em de Menezes, que, em sua fábrica de Camaragibe, queria aplicar
Lisboa. No Brasil constatou que os confrades brasileiros queriam a encíclica Rerum Novarum e contratou freiras e padres franceses.
apenas uma assistência temporária de Beuron para dirigir um no- Recuperou também a abadia da Paraíba, cobiçada pelo bispo lo-
viciado-geral. Finalmente aceitaram ceder a abadia de Olinda para cal, Dom Adauto. A morte em 1900 do ‘escandaloso’ abade Mo-
reformá-la com uma dúzia de europeus que seriam naturalizados. reira de São Bento em São Paulo abriu o caminho do sul e dos
158
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
priorados de Santos, Sorocaba, Jundiaí, Parnaíba e Campos. Este presidente Rodrigues Alves enviou uma força armada sob o co-
era seu maior opositor dentro da Congregação brasileira junto mando do Marechal Hermes da Fonseca para escoltar e instalar
com o frei secularizado Joaquim do Monte Carmelo, autor de O Van Caloen como novo abade. O próprio Barão do Rio Branco
Brazil mystificado. Acusavam os monges estrangeiros de rapacida- veio à rua para aplaudir sua posse. Enquanto se manteve a proteção
de e de tratar os brasileiros ‘como selvagens, ignorando sua longa militar, ainda durante a Revolta da Vacina, reorganizou o culto e
história sob a cruz’. Van Caloen, entretanto, combateu sua influ- a vida monástica. Construiu um novo colégio, equiparando seu
ência e conseguiu participar do capítulo geral ao mesmo tempo programa ao ginásio nacional e aberto ‘gratuitamente’ a mais de
em que obteve o fim da autonomia das abadias. Na São Bento de 500 alunos. Para fugir do grande calor comprou na Tijuca várias
São Paulo, que a prefeitura queria tomar, expulsou o liquidante, casas e as transformou em um pequeno convento de vilegiatura
improvisou uma pequena comunidade e instalou Miguel Kruse com escola noturna de catecismo. Assim acalmou um pouco a
como prior. Este revidaria os ataques do positivista Luiz Pereira hostilidade geral. Numa visita de cortesia a Rodrigues Alves, este
Barreto, ex-estudante da Universidade de Bruxelas. se declarou ‘católico de coração’, ao passo que o jornalista Carlos
Faltava apenas a bela e bem localizada abadia do Rio. Quan- de Laet defendia os beneditinos belgas.
do seu ex-abade João Ramos teve seu protesto contra a invasão Com a morte de Frei Domingos em 1908, Dom Gerardo tor-
estrangeira rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal, Dom Ge- nou-se o abade-geral vitalício e nomeou outro belga, Chrysostome
rardo entrou, junto com o abade-geral Dom Domingos, em 12 de de Saegher, como seu adjutor no Rio. As quatro principais abadias
maio de 1903, para tomar posse. Circulavam rumores que prepara- estavam agora nas mãos de monges belgas ou alemães. Fez con-
vam uma futura invasão alemã e que fechariam a escola gratuita. sertos em Santos e em Sorocaba, que oferecia mais tranquilidade
Aos gritos de ‘Morram os frades estrangeiros’, foram assaltados por aos noviços de São Paulo. Em Campos reanimou a presença be-
uma malta enfurecida de partidários do ex-abade excomungado. neditina na Fazenda de São Bento e no santuário de Santo Amaro
O belga conseguiu escapar dos ‘200 assassinos’ por uma portinha com o monge Mauro Desrumaux, que abriu centros de catecis-
traseira e refugiou-se na casa do arcebispo Arcoverde. Alertado, o mo, batizou e celebrou casamentos (Lamego, 238). Na Bahia, em
159
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
1905, arrancou Brotas das mãos dos posseiros com a promessa ao que ‘O Brasil fará renascer a velha abadia extinta’, o seu abade Van
governo de criar um orfanato ou escola agrícola. Caloen dizia na sua homilia da ceremônia da pedra fundamental
Como se esta reconquista fosse pouca, Van Caloen pretendia ‘ouvir o gemido de dor dos índios’.
ainda missionar entre os índios. Entre outubro de 1900 e final de A nova abadia nasceu dependente juridicamente da congre-
1901 interessou-se pelo supracitado projeto de Leopoldo II para gação brasileira, inclusive com um subsídio pecuniário, e adotou
uma concessão no Araguaia-Tocantins e se encontrou a este res- mesmo o idioma português para a comunicação entre postulantes
peito com o coronel Thys e com o próprio rei. Ao mesmo tempo, e noviços de diversas nacionalidades. Estes eram, no início, sobre-
em agosto de 1901, Dom Gerardo defendeu em Roma seu pla- tudo calabreses, já que os filhos dos camponeses da região de Bru-
no de missões entre os índios. Desarmaria as campanhas contra ges ‘resistiam aos apelos dos sinos’ (d’Ydewalle). Mesmo assim, des-
os frades pela utilização patriótica de suas rendas. Em audiência de setembro de 1899 rumaram as primeiras caravanas de monges
com o Papa Leão XIII junto com o embaixador brasileiro Augusto para o Brasil. Dos 280 beneditinos europeus, enviados entre 1895
Ferreira da Costa, este último manifestou seu apoio, mas o pro- e 1914 ao Brasil, 118 passaram por Saint-André ou foram formados
jeto não vingou. Van Caloen descartou uma oferta do bispo do lá, na sua maioria belgas e alemães, mas também suíços, italianos
Espírito Santo para uma missão entre os botocudos e preferiu, e franceses. Tem-se notícia de apenas dois brasileiros, um noviço
depois de um encontro em 1904 com o bispo de Manaus, novas e um converso, Baltasar de Araújo, que faleceu em Rio Branco.
perspectivas no território de Rio Branco. No início de 1906 obte- Entretanto, Van Caloen, construtor obsessivo tal qual um em-
ve de Roma sua nomeação de bispo coadjutor de Manaus, sendo presário imobiliário, deixou suas marcas no Brasil, de obras de sa-
consagrado em 18 de abril daquele ano em Maredsous pelo bis- neamento até pinturas murais. Na abadia do Rio, joia do barroco,
po de Belém. Entretanto, as resistências do episcopado brasileiro este ‘vendaval’ (cf. Ramalho Rocha) reformou o telhado, instalou
levaram a transferir este estrangeiro, bispo de Phocéa, à Prelazia iluminação a gás e água encanada, desmanchou os alpendres da
do Rio Branco, criada em 1907 como dependência direta da aba- portaria, revestiu as escadas e os pavimentos com mármores – al-
dia nullius do Rio de Janeiro. Com o status de bispo, Van Caloen guns falsos –, restaurou o dourado das imagens, instalou estalas
foi em 1908 a Manaus conhecer a Amazônia, mas não seguiu até no coro, mas suprimiu nas celas dos monges os aprazíveis bancos
Boa Vista. Os primeiros três monges chegaram lá em 1909, Dom de cantaria junto às janelas, mandou talhar na rocha uma nova
Acário, Dom Adalberto e Dom Boaventura, seguidos em 1911 ladeira de acesso e construiu o novo Colégio São Bento. Mais tar-
por outros, acompanhados de um pedreiro flamengo, contratado de, a pedido do Sphan, foram parcialmente eliminadas estas inter-
por três meses. Entrementes, Van Caloen não apreciou que o aba- venções no estilo barroco, que o belga abominava. Ao contrário,
de de Salvador, Dom Mayeul de Caigny, imitasse na Bahia seu deu livre curso à sua preferência pelo neorromânico à la Beuron
exemplo com a fundação, em 1909, de um posto entre os índios no claustro de Tijuca, conservado como Cela São Gerardo ou
em Angelim, no Rio Pardo. Capela da casa de São Bento no Alto da Boa Vista. Pode também
Para dar fundamento e credibilidade a seu império benediti- ter influído o estilo neorromânico dos três prédios, os números
no brasileiro, precisava recrutar mais pessoas e assegurar-lhes um 1-17, 29-33 e 51-55 da Avenida Central, construídos pelo arquiteto
mínimo de conforto em construções reformadas ou novas. Como Gastão Bahiana numa sobriedade eclesiástica contrastante com o
os poucos postulantes brasileiros não pareciam idôneos ou não pomposo ecletismo dos outros edifícios. No entanto, Van Caloen
aguentavam a disciplina, procurou monges e noviços sobretudo não recusava o modernismo e para Rio Branco encomendou, em
nas próprias abadias de Beuron e Maredsous. Solicitou também Hamburgo, à casa Backhome, uma igreja e duas casas em ferro
as abadias francesas ameaçadas de expulsão e cogitou incorporar a sobre planos do arquiteto Moers, que tinha desenhado o palácio
portuguesa de Cucujães. Sem êxito, apostou na criação de ‘procu- episcopal de Manaus. Foi especialmente a Hamburgo, mas os
ras’ próprias para iniciar jovens à vida monástica no Brasil. Criou planos não tinham chegado lá. Em sua viagem a Georgetown,
uma em Siena e outra em Wessobrunn, na Baviera, mas a maior encantou-se pelas construções de madeira e planejou comprar
e mais querida seria Saint-André, ressuscitando uma abadia me- algo semelhante para Rio Branco.
dieval extinta perto de Bruges. Publicou no ‘Courrier de Bruxelles’ Todas essas viagens e obras custavam evidentemente somas
um apelo às vocações para o Brasil e começou, em 1899, primeiro colossais. Van Caloen aplicou com certeza seu próprio patrimô-
numa casa de sua família. Um senador aparentado, Van Ocker nio e repetidas doações de sua mãe, como as destinadas ao altar
hout, doou um grande terreno em Loppem para a nova constru- de S aint-André. Para custeá-la lançou uma subscrição nos jor-
ção. Em menos de dez anos, entre 1902 e 1910, surgiu, com um nais e passou a coleta entre parentes, conhecidos e os brasileiros
orçamento de 250.000 francos, a monumental Zevenkerken (Sete de Paris, como os Nioaques. Uma nobre de Bruges, Peñaranda,
Igrejas), com um claustro, ladeado por alas térreas de celas, uma emprestou a juro muito baixo. Se Leopoldo II e o coronel Thys
igreja, com torre e sinos e sete igrejas-capelas simbolizando as prometeram doar cada um 100.000 francos sob a condição de
basílicas romanas, das quais três realizadas. Contra a vontade de Saint-André preparar também padres para a China e o Oriente
Beuron e Maredsous, mas aprovada pelo papa para ‘servir ao bem Médio, finalmente o rei limitou-se a 5.000 francos, sem outro
do Brasil’, Saint-André foi promovida como ‘o Brasil na Bélgica’. compromisso. Além do subsídio anual, a congregação beneditina
Enquanto em 28 de abril de 1901 o jornal La Patrie jubilava-se brasileira foi solicitada para pagar os juros de um empréstimo e
160
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
161
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
do Rio Branco reclamou em Roma, ao passo que Van Caloen Autocrático e algo maquiavélico, deslocava numa valsa contínua
solicitou a proteção e intervenção dos ministros belga e prussia- abades e priores como peões num tabuleiro de xadrez para afastar
no de Relações Exteriores. Desta vez, se Van Caloen encontrou os críticos. Paralelamente se deterioravam suas relações com os
disponibilidade financeira do lado inglês, tardou meses a autori- bispos brasileiros. Estes vieram a preferir os franciscanos a estes
zação do Vaticano, alertado pelas denúncias do Núncio no Rio potentados mitrados belgas e alemães. Van Caloen ressentia parti-
e de seu próprio abade adjutor, Chrysostome de Saegher. Este cularmente a hostilidade de Arcoverde, para quem tinha pleiteado
cria ter descoberto o desaparecimento de 400 contos das recei- junto ao Papa Leão XIII o chapéu cardinalício. Acusava de chan-
tas extraordinárias. Além do mais, queria restringir as atividades tagem o bispo da Paraíba, quando este ameaçava com o confisco
do mosteiro e suprimir Tijuca, onde Van Caloen preferia residir da abadia pelo governo.
para escapar da hostilidade dos monges no mosteiro. Junto com Oficialmente, o capítulo geral e a visita apostólica o descri-
outros monges pediu a demissão de Van Caloen. Este resistiu minalizaram e foi seu opositor De Saegher quem voltou à Bél-
primeiro e defendeu, num relatório de 3 de junho de 1912, sua gica. Mesmo assim, van Caloen sentia-se cada vez mais isolado
gestão, salientando que deixava um patrimônio de 99 casas em pelo prior e pelos outros monges e apresentou finalmente sua
bom estado. Quis até afastar De Saegher como vigário-geral em demissão. Foi aceita pelo Vaticano no início de 1915, sendo que
Rio Branco, mas o fim de seu reino onipotente estava chegando. van Caloen se ocuparia doravante somente de Rio Branco. Na
Se o novo Papa Pio X ainda abençoou Van Caloen, este perdeu sua costumeira tática de escapatória, o bispo van Caloen já tinha
seus apoios tanto na Cúria vaticana como do Cardeal-Arcebispo ido antes, no meio da crise em maio de 1914, tomar posse de sua
Arcoverde. O abade de Seckau, Dom Zeller, foi encarregado de prelazia em Rio Branco.
fazer uma visita apostólica. Enquanto o segundo grande emprés- Esta precisava mesmo de sua presença. Logo no início, em
timo de Londres não se efetivava, surgiu, em 1914, com a baixa 1909, os primeiros monges se desentenderam em Boa Vista com
do câmbio e a diminuição das rendas, novamente o espectro da o chefe político Bento Brasil, que administrava para a diocese de
falência. Em desespero, Van Caloen vendeu as valiosas terras de Manaus a grande fazenda de gado Calungá e se negou a entregá-la
Maricá por apenas sete contos (Ramalho Rocha). junto com a contabilidade aos novos donos beneditinos (Vieira).
A animosidade por parte de De Saegher e de outros monges Sua recusa em aceitar um maçom como padrinho de batismo
devia-se não somente às suas opacas transações financeiras como envenenou ainda mais a relação com o Brasil. Sua casa foi me-
também às suas frequentes viagens e longas ausências. Van Caloen tralhada em 10 de dezembro e os monges tiveram que fugir para
atravessou 23 vezes o Atlântico, de preferência nos mais modernos a fazenda nacional de Capela. Foram viver um tempo entre os
steamers ingleses ou franceses, em primeira classe, onde celebrava índios na Missão de Surumu, cuidando de ‘4.000 a 5.000 almas’,
no salão missas para a alta sociedade a bordo, enriquecendo seu enquanto Van Caloen obteve proteção militar através do ministro
caderno de endereços. Suas repetidas viagens de trem pela Itália belga de Relações Exteriores. A morte de dois monges por febre
e Alemanha se justificavam no seu espírito para ganhar a bene- amarela em Belém em fevereiro de 1911 prolongou a inatividade
volência dos poderosos e ricos. Teve audiências com os papas e da missão tão distante. Van Caloen foi, aliás, estudar em George-
os cardeais da Cúria, duas vezes com o Rei Leopoldo II, com os town, uma ligação através da Guiana inglesa, mas preferiu ainda
presidentes brasileiros, de Campos Salles a Hermes da Fonseca. desta vez a rota do Amazonas. Nesta segunda viagem, em plena
Peçanha o recebeu quatro vezes em seis semanas. Aonde passava, crise da borracha, ficou bem impressionado como, perto de Ita-
visitava abades, bispos, governadores e até o Lord Mayor em Lon- coatiara, esta se superava pela valorização da agricultura. Esta re-
dres. Frequentava o rico barão bávaro von Cramer Klett e homens dimiria, no seu entender, Manaus do seu paganismo e favoreceria
de negócios. Em almoços com diplomatas belgas tratava dos in- a evangelização. Assim seus monges deveriam transformar tanto
teresses econômicos da Bélgica no Brasil e lhes pedia consulados os seringueiros como os índios em meeiros, um pouco como os
para seus amigos. Fazia sua mãe convidar no castelo de Loppem agricultores nas terras de sua família perto de Bruges. Em Manaus,
o embaixador Oliveira Lima ou o ex-governador de Pernambuco. visitou as autoridades e se aproximou do doutor Amoura, um dos
Nas longas viagens marítimas podia descansar e recuperar-se de chefes do Serviço de Proteção aos Índios. Se opinava que Rondon
suas crises cardíacas. Para a cura destas foi tomar cinco vezes um o tinha criado para contrariar a influência dos padres, preferia, no
mês de banhos em Bad Neuheim na Alemanha. Gostava também Brasil, flexibilizar sua aversão à maçonaria e manter relações, pe-
de banhos de mar, até nadar em pleno inverno na praia de Dieppe. lo menos, desde que recebesse acesso às colônias para ensinar a
Em toda parte fazia compras de objetos litúrgicos e livros. Esta religião. Fez também as pazes com Bento Brasil e seus agregados
intensa vida social, mundana demais e incompatível com o ideal e cortejou outros poderosos de Rio Branco, como o comerciante
monástico, o afastava de seus monges, ainda mais que, no Rio, dis- J. G. Araujo, que lhe facilitaram alojamento e transporte até Boa
punha de um apartamento abacial, além de seu retiro na Tijuca. Vista. Para um sexagenário doente a longa viagem em barcos sofri-
Se nos primeiros contatos encantava seus noviços e monges, dos, até num batelão sobre 200 bois, e o contorno a pé das catara-
estes, pouco depois, descobriam um abade altivo e severo, que lhes tas se revelaram uma penosa aventura. Aguentou firme, dormindo
recriminava continuamente falhas, neuroses ou outras indisposi- na rede, no barco, anotando no diário os batismos e casamentos a
ções para a vida monástica. Tratava seus secretários com aspereza. realizar e os lugares para a construção de capelas.
162
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
Interior da Basílica Abacial de Nossa Senhora da Assunção do Mosteiro de São Bento, na cidade de São Paulo.
Na sede de sua prelazia fez em julho sua entrada solene de bis- aos índios e mais recursos aos monges para sua catequese, e ainda
po, preocupou-se com a igreja a reconstruir e consagrou o primei- melhorar a navegação e construir uma estrada de ferro de Manaus
ro sacerdote. Ainda fez expedições pelo rio e a cavalo com peões a Rio Branco e de Rio Branco a Georgetown. Esta era apenas
nas redondezas para sopesar o melhor lugar para a construção do uma quimera, mais de concessionários fantasiosos que chegaram
mosteiro São Bonifácio no morro São Bento e para os pastos do a interessar até o grupo belga da Banque de l’Outremer. Em Boa
gado. Nas fazendas Calungá e Capela teve enfim contato com os Vista, seu vigário-geral Bonaventure Barbier e, a seguir, o prelado
índios, que pareciam ter medo do homem branco. Pretendia evan- Pedro Eggerath conseguiram realizar algumas obras, uma escola,
gelizá-los e discipliná-los. Assim, proporcionaria uma mão de obra um hospital, um jornal e uma fábrica de charque, mas um pro-
abundante e regular aos agricultores das terras demarcadas. Seu jeto em 1925 de uma Companhia agroindustrial mais ambiciosa
convívio pessoal se limitou a uma dúzia de curumins. malogrou logo. Em 1948, os beneditinos entregaram o Rio Branco
Numa noite de agosto, armando sua rede, lhe alcançou a no- nas mãos de uma ordem italiana.
tícia da deflagração da guerra e da Bélgica incendiada. Logo re- Van Caloen regressou definitivamente à Europa em 1919 e
solveu voltar ao Rio. Passando por Manaus procurou obter uma terminou seus últimos anos na Côte d’Azur, em Antibes, onde
estrada e um caminhão para contornar as cataratas do Rio Branco. construiu uma capela bizantina para os emigrados russos. Lá fa-
No Rio de Janeiro, se implicou numa ‘Sociedade de Melhoramen- leceu em 1932, não muito longe das faustuosas Villa Léopold e
tos do Rio Branco’, mas que nunca funcionou. Ainda, em 3 de de- Villa des Cèdres de Leopoldo II. À primeira vista, Monsenhor Van
zembro de 1918, numa conferência na Sociedade de Agricultura, Caloen se parece algo com um clone clerical do rei dos belgas
publicada no Boletim da Câmara de Comércio belga no Rio de e famigerado fundador do Estado Livre do Congo. Nutria uma
Janeiro, advogava a valorização de Rio Branco. Além do sanea- ambição expansionista quase tão megalomaníaca e um gosto si-
mento com uma missão médica, propunha demarcar as terras, dar milar de construções, de viagens marítimas e balneários. Exibia,
títulos e repartir as grandes propriedades nacionais, dar trabalho inclusive, a mesma barba comprida do missionário, se bem que
163
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
era de estatura baixa e bem mais novo. Se Leopoldo era um con- o projeto do arquiteto Richard Berndl em estilo neorromânico e
victo ensimesmado e autoritário por herança dinástica, o presun- decorada pelo monge de Maredsous, Adalbert Gressnigt, e por um
çoso Van Caloen se sentia investido pela providência divina. Esta leigo, Adrien van Emelen, irmão do monge Amaro van Emelen.
o acordava de noite para comunicar um encargo novo. Apenas O mosteiro do Rio de Janeiro se estabilizou sob o abade Egge-
chegou num Ceará castigado pela seca que choveu de imediato rath e manteve um colégio bem cotado; ao mesmo tempo, seria o
e tudo verdejou. Escapava de navios que naufragariam, como o melhor sucedido em suscitar vocações entre os próprios brasileiros
Sirio. Interpretava mortes imprevistas de adversários seus, como o e nacionalizar seu recrutamento de monges. A abadia da Bahia
presidente Pena ou o Núncio Bavano, como sinais providenciais. sofreu no conflito entre o arcebispo com seu abade, Dom Mayeul
Entretanto, o diário do impávido ativista atrai alguma curio- de Caigny, que acabou partindo em 1912 para fundar uma nova
sidade, sensibilidade e simplicidade mais humana, sobretudo na abadia em Barbados, Mount Saint Benedict. A de Olinda contou
Amazônia. Em 1914, no Tocantins, o prelado vai morar dois dias mais três mortes numa epidemia de febre amarela em meados de
em Pinheiro numa casinha muito simples e pôs até um curativo 1904. Sob seu severo abade Peter Roeser, criou uma escola supe-
no pé ferido de um menino, se bem que logo pensou em levá-lo rior de agricultura e medicina veterinária, dirigida em 1927 por
como doméstico. Na serra de Araraquara, em Rio Branco, voltou Amaro van Emelen, conhecido por seus trabalhos sobre a apicul-
a ser umas horas o monge sonhador, imaginando construir seu tura, e mais tarde incorporada pela Universidade Federal Rural
mosteiro num promontório em meio à natureza selvagem. Quan- de Pernambuco. Malogros seriam as abadias da Paraíba e, sobre-
do os confrades belgas e alemães lhe resistiam, era às vezes capaz tudo, a de Santa Cruz de Quixadá. Esta acabou fechando devido
de humildade e obediência. Com o tempo os primeiros monges às secas repetidas, ao isolamento e aos altos e baixos de seu colé-
brasileiros amansaram sua voluntariosa restauração beneditina nu- gio em consequência de campanhas hostis em Fortaleza com sua
ma espiritualidade tradicionalista. suspensão final em 1909. Faltou-lhe um abade de pulso, segundo
Van Caloen tinha confiado o mosteiro de São Paulo a Dom Van Caloen, uma vez que não conseguiu levar para lá o empre-
Miguel Kruse em 1907, um alemão de forte personalidade e em- endedor Dom Jean de Hemptinne. O abade Lucas Heuzer não
preendedor, que durante mais de 20 anos firmou-se na paisagem soube aproveitar a visita do padre Cícero, e sua difamação junto
religiosa e intelectual desta futura metrópole. Além de um colé- ao bispo de Crato fizeram o profeta do Cariri legar parte de sua
gio, bem frequentado e reputado, abriu em 1908 uma faculdade fortuna para os salesianos.
com o primeiro curso de Filosofia, para o qual contratou com um Quanto à abadia ‘brasileira’ de Saint-André, Van Caloen a co-
bom salário o padre belga secular Charles Sentroul, discípulo do nectou em 1910 com uma nova missão beneditina em Katanga,
Cardeal Mercier, capaz de malabarismos entre o neotomismo, o no Congo, que cresceu em importância uma vez que em 1912 se
kantismo e a ciência, mas também brincalhão, apreciado até pe- deixou substituir como abade por Dom Théodore de Neve. Este
lo jovem Oswald de Andrade, e briguento durante a guerra com ainda solicitou ajuda pecuniária do Brasil, mas o destino brasilei-
o abade alemão. Quando voltou à Bélgica em 1919, somente em ro dos monges minguou pouco a pouco no horizonte em favor de
1922 reabriu o curso com outro belga, Léonard van Acker, e com missões em outros continentes. Os poucos retornados do Brasil
o português Alexandre Correa, dois leigos formados em Lovaina. cultivaram algum tempo as memórias do país, hoje quase com-
Em 1910, Kruse começou a construção de uma nova igreja com pletamente apagadas.
164
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
Jaguarão, no Rio Grande do Sul, bem perto do Uruguai. Este teve fundação de um priorado em Jaú, elevado a abadia em 2000. Em
algum êxito e, depois da compra de um edifício maior, em 1903, Pirapora já não exploram o santuário, mas mantêm sua casa para
teve mais de cem alunos, mas, por falta de equiparação com o en- retiros e museu de arte sacra com obras do irmão José Withofs.
sino estadual, fechou em 1912. Foram então abrir outro colégio Outra abadia premonstratense, ‘t Park ou Abadia do Parque,
em Jaú, Estado de São Paulo, mas por falta de êxito fechou em na periferia de Lovaina, seguiu a senda brasileira a convite do bis-
1968. Antes, em 1909, assumiram a pedido do Núncio a direção po de Mariana, Silvério Gomes Pimenta, e, em 1898, o próprio
de um colégio em Petrópolis, para o qual alugaram o Palácio Im- abade, Quirinus Nols, acompanhou os três primeiros cônegos.
perial, vazio na época. Primeiro assumiram o serviço pastoral em Congonhas do Campo
Quando, em 1939, o edifício foi requisitado pelo governo para (MG), que, em conflito com a mentalidade local, abandonaram
instalar o museu imperial, construíram, em 1941, um novo prédio em pouco tempo. Tampouco persistiram no colégio aberto em
na estrada para o Rio. Este colégio fechou em 1992. Como na Bél- 1900 em Sete Lagoas (também no Estado de Minas), logo fecha-
gica, alguns cônegos prestavam também serviço paroquial, como do por falta de alunos. Finalmente, seduzidos pelo bispo de Dia-
na igreja de São José, na cidade de São Paulo. De 1898 a 1905 mantina, Joaquim Silveira de Souza, assentaram-se, em 1903, no
partiram de Averbode 35 religiosos, quase a metade de irmãos, que norte de Minas, em Montes Claros. Desta base prestavam serviços
assistiam os cônegos como marceneiros, cozinheiros, alfaiates e pastorais em Bocaiuva, Morrinhos, Salinas, Januária, Tremedal,
domésticos. Os últimos reforços chegaram nos anos de 1950. De Jequitaí e outras missões pelo Alto São Francisco. Batizaram e ca-
um total de quase cem religiosos, a grande maioria voltou à Bél- saram, restauraram ou melhoraram diversas igrejas e organizaram
gica. As repetidas tentativas de montar uma abadia de vida regu- novas confrarias. Em Montes Claros mesmo fundaram o Colégio
lar no modelo belga se frustraram, mas resultaram finalmente na São Norberto, com um observatório meteorológico, compraram
165
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
Ao fundo, Santuário do Senhor Bom Jesus e Seminário Premonstratense em Pirapora do Bom Jesus, interior de São Paulo, 2013.
uma tipografia e lançaram o semanário A Verdade (1907-1917). le sertão de Minas (Lovaina, 1910), transparecem maior convivên-
Pretendiam concentrar-se na fundação de um convento, mas não cia e curiosidade com a cultura popular que entre os beneditinos.
resistiram a novos convites em 1919 para cuidar de paróquias na Schoenaers se deixou fascinar pela cultura negra em terras gaú-
periferia do Rio de Janeiro, que trocaram, em 1921, por Teresópo- chas. Gaspar, um Guimarães Rosa avant la lettre, se encantou pe-
lis. Por falta de mais padres belgas, priorizaram novamente Montes las andanças por serras e chapadões mineiros em caravanas com os
Claros, que, com uma escola apostólica, facilitou o recrutamento camaradas e pela hospitalidade generosa nas fazendas. Gostavam
de brasileiros, a sobrevivência da ordem no Brasil e a criação re- dos encontros e das entradas com fogos de artifício, das congadas
cente de um priorado. de negros e de procissões, desde que as dirigissem.
Se os premonstratenses enviaram mais religiosos que os bene- Mesmo assim, segundo o antropólogo Darcy Ribeiro, nativo
ditinos, seus resultados foram modestos, devidos em primeiro lu- de Montes Claros, ‘o movimento da ortodoxia romana comanda-
gar à instabilidade de suas fundações e às contínuas viagens pelo do pelos padres de batinas brancas que nem se casavam, falavam
Brasil ou de volta à Europa. Poucos ficaram para temporadas mais mal português e só sabiam perseguir as formas tradicionais de re-
longas. Em Minas, quase como padres ambulantes, andavam por ligiosidade popular quase matou o catolicismo em Montes Claros.
muitos dias a cavalo e vários sofreram problemas de saúde, inclusi- Nos espaços abertos por eles se multiplicaram o espiritismo, o can-
ve paludismo, com algumas mortes prematuras. Misturavam o ser- domblé e ultimamente o protestantismo, cada vez mais vigorosos’
viço paroquial com o ensino, sem ter formação ou experiência pe- (Confissões, Rio de Janeiro, 1997, p. 58-63). Efetivamente, algo
dagógica. Seus colégios se destacavam antes em bandas musicais prepotentes, como suas aldeias flamengas, enfrentavam tradições
ou em teatro, como o grupo São Genesco, em Montes Claros. Em e líderes locais e reagiam com uma virulência, pouco brasileira,
suas cartas para a revista de propaganda ‘t Park’s Maandschrift, no contra protestantes e maçons. Em Jaguarão e Salinas, sustentaram
seu uso da fotografia e nos livros dos padres Thomas Schoenaers, polêmicas imprudentes sobre pretensas bíblias falsas. Em Congo-
Drie jaar in Brazilië (Averbode, 1904), e Maurice Gaspar, Dans nhas do Campo, mandaram desenterrar um maçom sepultado na
166
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
Vista da fachada posterior do Seminário Premonstratense em Pirapora do Bom Jesus, São Paulo, 2013.
igreja. Paralelamente, seus projetos de vincularem-se à imigração à presença de uma companhia agrícola belga. Se retiraram em
e aos investimentos belgas, como no apelo do cônego Peffer aos 1936. Outras ordens francesas ou italianas levaram membros bel-
industriais belgas da metalurgia, não vingaram (Peffer). gas para o Brasil como os lazaristas, dos quais alguns belgas se en-
Falta examinar se a crítica de Darcy Ribeiro atinge também contram sepultados na cripta do Colégio do Caraça, em Minas
as outras congregações, que enviaram padres belgas para o Brasil. Gerais; os salesianos no Mato Grosso, ou os barnabitas no Pará.
Os Missionários do Sagrado Coração de Jesus, de origem france- Estes últimos, expulsos da França para Mouscron, embarcaram
sa, mas com um convento em Borgerhout, chegaram em 1911 para Belém em 1903. Lá alçaram sua igreja de Nossa Senhora
como professores do seminário em Pouso Alegre (MG). Logo se de Nazaré, a basílica, e relançaram o Círio. Entre os irmãos das
encarregaram de paróquias como a de Bauru, a partir de 1913, as escolas cristãs ou lasallistas, que saíram da França em 1907 para
de Campinas e de São Paulo e abriram, em Pirassununga, uma organizar escolas em Porto Alegre, havia belgas, como o irmão
escola apostólica. Nos anos de 1950 se disseminaram no Paraná. Justino, que partiu depois para o Congo. Ainda foi o caso entre os
Já depois da Primeira Guerra Mundial, os Josefitas, uma con- maristas, que em sua escola em São Luís do Maranhão tinham,
gregação belga reputada por seus prósperos colégios, empreen- em 1914, como diretor um irmão, Paul Berckmans, e um ‘time
deram em 1924, no sul da Bahia, em Una, uma fundação ligada belga’ de futebol entre os alunos.
167
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
168
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
169
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
sua obra como ‘superior’. Após ter recebido um padre de coro o futuro poeta Géo Libbrecht, mas estes logo se desencantaram
e dois conversos, planejou ir a Lérins para fazer sua profissão e abandonaram Tabatinguera.
eterna, mas a saída de ‘dois falsos irmãos’, a falta de noviços e a Pouco depois, em 29 de abril de 1921, o novo abade de Lérins
‘caixa vazia por causa de um traidor’ fizeram periclitar seu mos- se queixou a Van Caloen que Moreau conseguira captar a confian-
teiro. Pensava sacar novos fundos de uma ‘Piedosa Liga para o ça de seu predecessor abade Patrice por pelo menos 60.000 francos
Livramento das Almas do Purgatório’, que se estabeleceria no Bra- em numerário e mais um material considerável. Destinou o dinhei-
sil inteiro, em Campinas (SP), em Minas e no Piauí, talvez até ro para melhorar sua propriedade e estava vendendo o material.
em Rio Branco. Para construir uma igreja dedicada às Almas do Mesmo assim, em 18 de maio de 1921, Moreau seguiu usando o
Purgatório, servida pelos cistercienses, pediu o apoio a seu velho hábito branco cisterciense e recolhendo inscrições para sua piedosa
conhecido Van Caloen, que o convidou a vir descansar com ele. liga. Desvanecido o sonho monástico, teve que assumir novos car-
Em janeiro de 1919 estava em Dakar a caminho de Lourdes. Des- gos paroquiais em Porto Ferreira e Rio das Pedras, cidades de São
ta vez conseguiu atrair jovens belgas escapados da guerra, como Paulo, onde teria terminado a vida e provavelmente está sepultado.
170
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
Taubaté, Mario Boeris Audrá, por 150 contos de réis. Já os ani- Atualmente, a parte alta da antiga Trapa Maristela, particular-
mais, os maquinários, as ferramentas, os móveis, dentre outras mente o local onde era o mosteiro, é a sede de um hotel fazenda.
benfeitorias, foram vendidos pelos monges a Audrá por 160 Já no Berisal, conserva-se a capela construída pelos monges em
contos de réis. 1917, e ainda pode-se ver, em estado de grande deterioração, o so-
Destarte, o último grupo de monges retornou à França, fi- lar construído em 1908 para abrigar os monges que gerenciavam a
cando apenas um monge em terras brasileiras, o holandês irmão produção de arroz, que ainda continua vigorosa em toda a região.
Leonard Van Lier, que se transferiu para o mosteiro de São Bento,
na cidade de São Paulo, onde faleceu em janeiro de 1948. Em José Eduardo Manfredini Júnior, graduado em História pela Uni-
suma, a Trapa Maristela foi uma referência durante os 27 anos de versidade de Taubaté (Unitau), é professor de História na rede muni-
sua existência, proporcionando a Tremembé e à região grandes cipal de ensino de Taubaté-SP e na rede pública de ensino do Estado
avanços econômicos e sociais. de São Paulo.
171
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
172
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
58 membros, em desproporção com o monumental conjunto com o barulho do gigantesco canteiro e as frequentes visitas de
levantado. Os primeiros monges chegaram em 11 de março de turistas e personalidades. Por isso o prior Van der Cruyssen e o
1927. De Sept-Fons partiram finalmente 14 religiosos para Or- abade Chautard entravam frequentemente em conflito. Depois do
val, de Maristela vieram 20 padres de coro e irmãos. Em 28 de falecimento deste último, em dezembro de 1935, a comunidade
setembro lhes foi instalada uma capela de São Bernardo e, em foi desligada da matriz de Sept-Fons, o que abriu caminho para a
dezembro de 1927, um noviciado. No início, os monges mora- consagração, em maio de 1936, de Van der Cruyssen como aba-
vam em condições precárias no prédio da portaria. Somente em de da ‘ressurrecta’ abadia de Orval. Se a maior parte dos monges
1928 pôde a comunidade ocupar um edifício próprio, onde se vindos de Sept-Fons voltou para a matriz, aqueles regressados de
situaria mais tarde o noviciado. Maristela parecem ter ficado todos em Orval.
Na comunidade surgiram tensões tanto entre os padres de coro
e os irmãos como entre os grupos de diferentes origens, os france- Peter Heyrman é doutor em História e dirige a Seção de Pesquisas
ses, os ‘brasileiros’ e as vocações belgas. Muitos monges criticavam do Kadoc – Centro de Documentação Católica da Universidade de
o prior sobre como sua vida dedicada a Deus podia conciliar-se Lovaina.
173
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
tada com donativos. Com o prêmio ganho por volta de 1960, no dido, oferece uma crônica saborosa da intrusão de freiras belgas,
programa O céu é o limite, de João Silvestre na TV Tupi, Madre algo altivas, na simplicidade material e na complexidade política
Aline decorou a vida do Papa Pio XII. do interior de São Paulo (Quelques notes ...).
Monitoradas por premonstratenses do Park, chegaram em Bem recebidas, mas com alguma curiosidade sobre suas vesti-
Montes Claros em 1907 as quatro primeiras irmãs do Sagrado mentas diferentes, estranharam a improvisação, as mulheres sem
Coração de Maria de Berlaar, que já tinham experiência de ensi- chapéu na igreja, a simplicidade do palácio episcopal e da catedral
no e uma primeira missão no Congo. Sua nova escola pretendia, e as promessas financeiras incorretas. Com quase nada preparado,
segundo advertia o jornal A Verdade dos premonstratenses, ensinar abriram o colégio em três casas pequenas sem conforto algum, mas
as moças ‘alguma coisa mais do que biscoito de goma, bôlo sovado, felizmente apareceram somente 16 internas, em vez das 50 previs-
bolo de arroz e outras saborosas mas antiquissimas guloseimas: por- tas. Com alguma valentia as freiras se emanciparam dos olhares
tuguês, francês, aritmética, geografia, desenho, bordados, flores de dos inspetores locais, ao mesmo tempo em que pressionavam as
pano e pintura aquarela’. O preço, de 5.000 réis para as externas, alunas e seus parentes para uma prática religiosa regular.
de 35.000 para as internas e de 3.000 para o curso Froebel, era alto Erguendo a partir de 1922 um prédio próprio, suficiente pa-
demais e a escola acabou sendo fechada pouco depois. ra acolher mais internas, ficou difícil entrar na posse real da boa
Chegando mais irmãs, tentaram uma escola em Januária área doada e fazer chegar da Bélgica os materiais de construção.
(MG) em 1914, mas também abandonada em 1918. O bom fô- Problemático foi também o reconhecimento legal de sua escola
lego veio somente em 1919 com o convite para abrir um colégio normal em 1928. Para a solução ajudaram um padre português
em Araguari, Minas Gerais, com internato para a boa sociedade expulso de sua terra e o chefe político local. Apesar dessas dificul-
do Triângulo Mineiro e mais uma escolinha modesta para crianças dades dos primeiros anos, logo vieram convites para abrir filiais em
pobres, um patronato e um asilo. Sob a enérgica superiora Blan- Araraquara (1916), em São José do Rio Preto (1920) e em Barretos
dina seu êxito estimulou a criação de mais colégios em Montes (1936), no Estado de São Paulo.
Claros (1927), Patrocínio (1928), Belo Horizonte (1941) e Pará Finalmente, no Rio de Janeiro havia algumas belgas, como
de Minas (1942), enquanto sua escola normal preparava moças madre de Potter, da congregação francesa Soeurs du Sacré Coeur
para o trabalho profissional. de Jésus. Esta se recolheu por causa da Loi Combes na sua filial
A congregação Dames de Saint-André, de Ramegnies-Chin, de Bruxelas (Jette) e lá encontrou reforços para abrir um colégio
perto de Tournai, se engajou no Brasil através dos contatos do je- no Rio de Janeiro em 1904.
suíta português Antonio de Menezes com o bispo de São Carlos. No conjunto a presença das freiras belgas na eduação femini-
Este enviou um cheque e assim as cinco primeiras damas chega- na não ficou muito atrás da francesa ou italiana. Outra questão a
ram em fevereiro de 1914. Uma síntese de seu diário, hoje per- pesquisar é sua relação com a emancipação feminina.
174
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
abandonados e ajudassem na reestruturação e romanização da feliz decepção que tiveram, pois “na Bélgica alertaram-nos sobre
Igreja no Brasil (Lira, 2009). os mosquitos, mas até agora... não nos incomodam absolutamen-
No final do século, o papel tradicional da Igreja na educação, te” e o clima, apesar do calor forte, era amenizado “por uma brisa
principalmente na educação da elite, encontrava-se ameaçado pe- deliciosa” (Mesquita, 1996, p. 77).
los avanços da educação laica. Foi dentro deste contexto que as Já o português, era outro obstáculo a ser superado. Apesar dos
novas congregações chegaram ao Brasil, voltando suas atividades esforços para aprender a língua, vez por outra as irmãs viam-se
para o trabalho educacional e para a manutenção de escolas cató- envolvidas em situações descritas com bom humor por madre
licas, internatos e externatos, masculinos e femininos. Loyola como Cenas dramáticas! Durante uma entrevista com
No contexto cultural lusitano, o papel da mulher estava restrito pais que vieram matricular suas filhas ela diz: “Eram quatro a
a cuidar da casa, dos maridos e dos filhos. Voltadas exclusivamente explicar e três a responder. Não conseguimos entender-nos! A
para os afazeres domésticos, isoladas do convívio social e subme- entrevista terminou sem ter começado”. Noutra ocasião, num
tidas à autoridade do marido, a mulher no mundo português co- café oferecido ao vigário-geral da diocese, monsenhor Marcolino,
lonial estava condenada à ignorância. No início do século XIX, a a irmã notou que faltava manteiga, enviou o funcionário à venda
transferência da família real portuguesa para o Brasil e o Decreto mais próxima com uma nota escrita. Pouco depois ele voltou, e
de Abertura dos Portos às Nações Amigas trouxeram novos hábitos prontamente colocou sobre a mesa um pedaço de madeira com
para a sociedade brasileira. exatamente 300 gramas. Diante da surpresa geral, a irmã com-
Em Recife, em fins de 1811, o inglês Henry Koster nota como preendeu que havia copiado a palavra errada do dicionário, pro-
as damas de algumas famílias portuguesas e inglesas recém-che- vocando o riso de todos.
gadas da Europa “davam o exemplo”, as primeiras indo a pé para O Colégio da Sagrada Família de Olinda iniciou oficialmen-
a igreja, enquanto as inglesas tinham o hábito de passear todas as te suas atividades em 15 de fevereiro de 1897 com o ingresso de
tardes. Ainda assim a educação feminina continuava direcionada sua primeira aluna, Filadélfia de Paula Lopes. Ao longo do ano
para a formação de donas de casa. A Lei Imperial, de 15 de outu- o número de internas foi acrescido de mais nove alunas com ida-
bro de 1827, limitava o currículo das meninas à leitura, escrita, des que variavam entre nove e 16 anos. O currículo pedagógico
quatro operações, moral cristã, doutrina católica e prendas do- daquela primeira turma incluía: História Sagrada, Instrução Reli-
mésticas (Lira, 2009). giosa, Francês, Aritmética, Inglês, Geometria e Português (Silva,
Só em 1875 as mulheres foram admitidas na Escola Normal, 2012). Ao fim daquele primeiro ano letivo, o reduzido número de
até então restrita ao sexo masculino. Para a oligarquia brasileira os internas dificultava o sustento do colégio. E esta não era a única
colégios religiosos supriam seu desejo de “educar suas filhas para preocupação. Logo no início de 1898, recebem a notícia de que
a modernidade sem permitir que elas se envolvessem com as ten- o Papa havia autorizado a abertura do seminário da diocese no
dências negativas trazidas pela mesma modernidade” (Lira, 2009, Convento Franciscano de Olinda, o que significava que as irmãs
p. 36). Entre os anos de 1872 e 1920, 58 congregações religiosas teriam que encontrar outro prédio para seu colégio. A solução, no
femininas europeias se estabeleceram no Brasil, entre elas, as Da- entanto, foi a mudança para o antigo Palácio Episcopal de Olinda,
mas da Instrução Cristã, vindas da Bélgica. cedido às Damas pela diocese.
Voltemos às nove religiosas belgas que sob a liderança de Ma- Mas nem tudo eram aperreios; com o início do novo ano le-
dre Loyola Steyaert (1860-1943), ex-superiora de sua comunida- tivo novas alunas ingressaram no colégio. Em fins de março já
de de Antuérpia, eram aguardadas no cais por Dom Gerard Van eram 19 e no segundo semestre, 34. A questão da residência não
Caloen. A Recife do final do século XIX tinha uma população de estava de todo solucionada, o projeto era comprar o edifício de
mais de 110 mil habitantes. Apesar dos esforços modernizadores forma definitiva e assim evitar novas mudanças inesperadas. No
das várias administrações, como a iluminação a gás carbônico, entanto, a legislação não permitia que imóveis do patrimônio da
água encanada, telégrafo e o serviço telefônico, inaugurado em diocese fossem vendidos a congregações religiosas. Fazia-se, por-
1883, para as recém-chegadas à cidade, a estação e os vagões do tanto, necessária a busca de outro imóvel para o abrigo definitivo
trem pareciam-lhes sujos: é como se tivéssemos recuado ao menos da residência e do colégio. Em meados de 1901, foi comprado o
meio século da nossa querida Bélgica, nas palavras da madre Loyola sobrado da Ponte d’Uchoa, nos arredores de Recife, local aprazí-
em seu diário (Mesquita, 1996, p. 71). vel, que contava com estação e linha de trem. A casa pertencera
Inicialmente elas instalaram-se no convento franciscano de ao comerciante Luiz Morais Gomes Ferreira, um dos fundadores
Nossa Senhora das Neves de Olinda, fundado no ano 1585 e que da Associação Comercial de Pernambuco e falecido em 11 de
se encontrava desocupado. Nesse edifício funcionou o Colégio dezembro de 1899. A nova casa tinha vários cômodos: salas de
da Sagrada Família de Olinda, primeira escola fundada pela con- visita, de jantar, de bilhar, copa e sete quartos e, o mais impor-
gregação das Damas da Instrução Cristã no Brasil. As primeiras tante, um vasto terreno que permitiria os acréscimos necessários
semanas foram dedicadas a pôr o velho edifício em condições ha- ao crescimento do colégio.
bitáveis e aos preparativos para a abertura do internato. As freiras Em 31 de julho daquele ano foi assentada a pedra fundamen-
enfrentaram, também, os problemas de adaptação ao clima e, é tal do novo pensionato a ser construído no vasto terreno. Em 23
claro, a barreira da língua e dos costumes. Madre Loyola fala da de dezembro, com o prédio já pronto, as irmãs instalaram-se de
175
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
forma definitiva na nova residência. No dia 24 foi celebrada a culada Conceição. Em 21 de janeiro de 1967, foi oficialmente
primeira missa na capela do novo internato, agora denominado inaugurado o Ginásio Regina Mundi, em Maringá, no Paraná.
simplesmente Colégio Damas. Em 1921, foi comprada a casa Durante as primeiras oito décadas de Brasil, as Damas dedi-
vizinha que pertencia ao Barão de Casa Forte, praticamente do- caram-se exclusivamente à educação feminina, aspecto que viria
brando a área de terreno. a modificar-se com a adoção do ensino para ambos os sexos em
Sob a direção de madre Loyola, as Damas expandiram-se com 1970. Passados 116 anos daquela pequena aventura das nove freiras
a fundação de novas escolas. Em Pernambuco foram fundados belgas que cruzaram o Atlântico a bordo do Nile, o projeto Damas
os colégios Santa Sofia, em Garanhuns (1912); Colégio Santa da Instrução Cristã está mais do que solidificado no Brasil. Man-
Cristina, em Nazaré da Mata (1922); Colégio Santa Maria, em tendo a tradição de suas fundadoras, as irmãs Damas fundaram no
Timbaúba (1922), e Colégio Nossa Senhora da Graça, em Vitó- final dos anos 90, em Recife, a Universidade Damas.
ria de Santo Antão (1928). Em 1931, o Colégio de Timbaúba foi
transferido para Campina Grande, Paraíba, com o nome de Ima- Marcelo Lins é jornalista em Recife e escreve sobre a história da cidade.
176
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
romances de Jorge Amado sensibilizaram jovens leitores belgas. zação desta disciplina no Brasil e a projeção de seu Departamen-
No Copal residiram por algum tempo Camilo Torres, futuro gue- to de História com uma revista e a primeira reunião da Anpuh
rilheiro na Colômbia, e Gustavo Guttierez, pioneiro da Teologia (Associação Nacional dos Professores Universitários de História).
da Libertação. Esta fez prevalecer doravante a ‘opção preferencial Michel Schooyans, professor de Filosofia na PUC de São Paulo,
pelos pobres’. curioso das coisas brasileiras, colecionador de livros e de obras de
Em 1970, Hélder Câmara, bem relacionado com o cardeal arte e ainda bem introduzido nos meios da burguesia industrial
belga Suenens, recebeu em Lovaina um doutorado honoris causa, nacionalista de São Paulo, analisou, em Le destin du Brésil, La
pregando um outro ‘socialismo humano’. Seguiram mais douto- technocratie militaire et son idéologie (Gembloux, 1973) e De-
rados para Paulo Freire em 1975, Oscar Romero em 1980, Aloíso main le Brésil? Militarisme et technocratie (Paris, 1977), crítico e
Lorscheider em 1982 e Jon Sobrino em 1985. premonitório, os problemas do Brasil como potência emergente.
Jovens idealizaram a revolução cubana de Castro, a morte de Entusiasta do potencial demográfico brasileiro, defendeu, de volta
Guevara, mais tarde as de belgas na guerilha em El Salvador e na à Universidade Católica de Louvain-la-Neuve, posições controver-
Guatemala. Na análise desta radicalização poderiam entrar tantos tidas em matéria de ética e política populacional.
acontecimentos e fatores, desde uma pitada de nacionalismo fla- Larga repercussão teve o ensaio Formação do catolicismo bra-
mengo – que reconvertia sua aversão à cultura latina em rejeição sileiro, 1550-1800 (Petrópolis, 1974), de Eduardo Hoornaert, que
ao imperialismo ianque – à chegada de refugiados latino-ameri- se enquadrou a seguir, junto com José Oscar Beozzo – que aliás
canos ou, até, conflitos íntimos como aqueles descritos pelo ex- estudou em Lovaina – e outros, na nova História da igreja no Brasil
-seminarista Conrad Detrez no romance L’herbe à brûler. Tanto (Petrópolis, 1977). Esta pretendia romper com o tradicional insti-
a secularização como o consumismo da sociedade belga empur- tucionalismo e construir uma história a partir do povo. Na prática,
raram jovens inconformados numa fuga escapatória, com a ilusão Hoornaert investiu menos em novas pesquisas do que recuperou
de que o Brasil estivesse ainda a salvo desses males. e selecionou, num viés catequético e ainda clerical, uma religio-
No Brasil os padres belgas se dispersaram pelo país inteiro, do sidade, desde sempre bastante autônoma e diversa e já valorizada
Maranhão até o Paraná, mas se concentraram mais no Nordes- por historiadores leigos em edições de crônicas coloniais e de vi-
te, particularmente na Bahia. Alguns eram recém-formados, ou- sitações inquisitoriais.
tros tinham mais idade e experiência ou mesmo uma formação Em pesquisa patrocinada pelo Conselho Nacional de Desen-
profissional como agrônomo. Como vigários, tomaram conta de volvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Frans Gistelinck
paróquias e engajaram-se nas comunidades eclesiais de base, na estabeleceu em Carajás, usinas e favelas (São Luís, 1988) um
pastoral da criança, da juventude, das equipes de casais, da terra primeiro balanço crítico do Programa de Desenvolvimento do
e das prisões. Construíram casas e centros comunitários, creches, Maranhão. A obra de Etienne Samain, que passou no Brasil da
jardins de infância e escolas profissionalizantes ou agrícolas, às teologia à antropologia, se apresentou no capítulo anterior.
vezes com o apoio de uma retaguarda de simpatizantes na Bélgi- Paralelamente aos padres seculares, as congregações regulares
ca. Alguns ensinaram em seminários e em universidades católi- se empolgaram de novo pelas perspectivas brasileiras. Nos anos de
cas. Vale registrar que um número significativo deixou a batina e 1950 os supracitados missionários do Sagrado Coração se concen-
constituiu família no Brasil ou de volta, na Bélgica. traram no Paraná, formando uma quase província belga. Em 1966,
Quatro belgas assumiram a direção de uma diocese brasilei- em Francisco Beltrão (PR), Jef Caekelbergh criou a Associação de
ra: o beneditino José Cornelis – ex-arcebispo de Lubumbashi, no Estudos, Orientação e Assistência Rural (Assesoar), particularmen-
Congo – em Alagoinhas (BA), de 1974 a 1986; Eugène Rixen, te ativa entre os pequenos agricultores junto com cooperantes bel-
primeiro como auxiliar em Assis (SP) em 1995 e, depois, como gas. Os Aumôniers du travail (Capelões do trabalho), que, surgidos
bispo de Goiás Velho (GO) a partir de 1998; André De Witte, co- no final do século XIX na parte industrial da Bélgica, ofereciam
mo bispo de Ruy Barbosa (BA) desde 1998, e Philip Dickmans em aos filhos dos operários escolas técnicas e albergues, abriram em
Miracema do Tocantins (TO), desde 2008. No âmbito da CNBB, 1963, com semelhante preocupação, uma escola com o nome de
Johan Konings, que ensinou exegese bíblica na Pontifícia Universi- Universidade do Trabalho em Coronel Fabriciano (MG). Quan-
dade Católica (PUC) de Porto Alegre (RS) e passou no Brasil para do esta foi incorporada pela diocese de Belo Horizonte, em 1976,
a ordem jesuítica, responsabilizou-se pelas traduções da Bíblia, ao estabeleceram outra em Conselheiro Lafaiete, além de um semi-
passo que outro jesuíta, Thierry Linard de Guertechin, demógrafo nário em Contagem, com três a quatro padres belgas.
de formação, com longa vivência na favela da Rocinha, no Rio Os missionários da ordem do Imaculado Coração de Maria
de Janeiro, e diretor do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento, é (ICM), conhecida como Scheut, do nome do bairro de sua sede
consultor em matéria do descenso do catolicismo no Brasil. em Bruxelas, dirigiram-se sobretudo à China, às Filipinas e ao
Vários padres belgas participaram intensamente da vida inte- Congo. Expulsos da China por Mao e com dificuldades no Con-
lectual. Carl Laga, doutor em bizantinismo, em 1959 foi convi- go independente, aumentaram sua presença na América Latina,
dado para uma instituição estadual de São Paulo, a Faculdade de onde já tinham missões no Haiti (1944), na Guatemala (1955) e
Filosofia, Ciências e Letras de Marília, e contribuiu como titular na República Dominicana (1958). Em 1963, tomaram conta de
de História Antiga e Medieval durante um decênio para a valori- paróquias em Nova Iguaçu e, logo depois, em Volta Redonda e
177
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
Itabira. Receberam assistência de freiras também da Scheut e de Também as cônegas de Santo Agostinho continuaram a recru-
algumas Grauwzusters de Roeselare. Estas, com muito pouco pre- tar brasileiras.
paro social, ficaram desnorteadas com os contrastes brasileiros, Outro fato novo foi a presença de leigos ao lado dos religiosos.
mas pouco a pouco se engajaram em projetos sociais, inclusive Logo depois da segunda guerra, jocistas belgas vieram propagar
em Marabá (PA), em 1979. Com a queda das vocações belgas, no Brasil os métodos da JOC belga. A partir dos anos de 1960, a
Scheut trouxe para o Brasil filipinos e outras nacionalidades. Um cooperação com o desenvolvimento foi institucionalizada com um
dos belgas, com 32 anos de experiência no Brasil, Gaby Gheyssens novo Ministério do Estado belga. Dezenas de jovens cooperantes
foi escolhido em 2013 como vigário-geral para a reestruturação vieram trabalhar como auxiliares dos padres e lhes davam maior
mundial de sua ordem. sustentação na Bélgica.
Outras freiras integraram a ofensiva evangelizadora a partir de A principal organização, Samenwerking Latijns-Amerika ou
1952-1953, como as Filles de la Croix de Liège em São Paulo e as Coopération Amérique Latine (SLA e CAL), reconhecida e subsi-
Filles de Notre-Dame du Sacré-Coeur de Bruxelas ou mesmo as diada pelo governo belga como ONG em 1964, mantinha, por vol-
contemplativas, beneditinas de Schoten em Ribeirão Preto (SP) ta de 1980-1990, de 20 a 30 voluntários em serviços variados. Foi
e clarissas de Flandres oriental em Porto Alegre. As Zwartzusters absorvida por outra organização, Volens, que continua ativa e que
ou irmãs negras agostinianas de Bruges escolheram a Bahia em leva também jovens por períodos mais curtos. Mais organismos,
contatos com seu arcebispo, Eugênio Salles. Depois de um está- como Copibo, com ajudantes na construção, ou Vredeseilanden
gio no Copal, as duas primeiras tomaram conta da paróquia São ou Îles de Paix, atentos às experiências rurais, se interessaram pe-
Gonçalo do Retiro, em Salvador, em 1966. A partir de casinhas, lo Brasil, enquanto as campanhas de fraternidade de Broederlijk
como a Casa da Paz, trabalharam com clubes de mães e centros delen, um organismo caritativo das dioceses belgas, recolhiam sus-
comunitários, com ensino e enfermaria, e souberam, assim, ainda tento financeiro. Este se beneficiava também dos contatos entre
mais pelo seu nome de Irmãs negras, atrair moças negras ou mu- patrões católicos belgas e brasileiros.
latas como noviças. Logo pensaram em expansão, primeiro para Avaliar aqui o impacto destes aportes belgas ao catolicismo
Maragojipe (BA) e depois para Ruy Barbosa (BA) e Oiticicas, no brasileiro seria prematuro e presunçoso, ainda mais na atual crise
Ceará. As freiras brasileiras começaram a participar dos capítulos da Igreja Católica, do seu descalabro na Bélgica e do avanço das
da congregação em Bruges, prontas a repovoar e rejuvenescer os igrejas evangélicas no Brasil. Faltam mais transparência e pesqui-
conventos belgas. sas. Pelo menos já se pode constatar que, em comparação com a
Este abrasileiramento ocorreu também com ordens já pre- primeira romanização, por volta de 1900, a presença belga duran-
sentes no Brasil desde o começo do século XX e em franca ex- te este último meio século foi mais ampla, diversa, persistente e
pansão. As Dames de Saint-André, ou irmãs de Santo André, se sobretudo se dedicou cada vez mais aos brasileiros desfavorecidos.
disseminaram por São Paulo e até em Recife. Um terço de sua Neste engajamento social, frequentemente em parceria com
congregação no mundo é brasileira. As irmãs do Sagrado Cora- leigos belgas, surgiram conflitos, mas com o tempo também uma
ção de Maria de Berlaar recrutaram uma centena de brasileiras, convivência mais compreensiva e serena com a cultura e religio-
das quais somente as primeiras fizeram seu noviciado na Bélgica. sidade brasileiras. A trajetória mais significativa desta aculturação
Agruparam seus colégios como Rede Berlaar de Educação, com aos pobres brasileiros parece ter sido a do ‘teólogo da enxada’, Jo-
sede em Belo Horizonte, e formaram em 1969 uma província seph Comblin. Pediu para ser sepultado no Santuário do padre
brasileira, com um representante no capítulo geral na Bélgica. mestre Ibiapina, na Paraíba.
178
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
179
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
ções passadas. Quem nunca se conformou com essa ‘desistência’ de sua morte. A fase da Teologia da Libertação foi exaltante para
brasileira foi o profeta Comblin. Comblin, mas relativamente breve. Já a Conferência de Puebla,
Mas um profeta não transmite sua mensagem sem andar ao que seguia aquela de Medelin, dez anos depois, o decepcionou
encontro de gente. Andar... como Comblin o fazia! Permaneceu – e não só a ele ...
– não seria mais exato falar em passagens? – em Campinas, em Como já dissemos, o golpe militar em 1964 e os temidos Atos
São Paulo, em Santiago do Chile – bis, com cerca de dez anos de Institucionais que se sucediam afogavam em boa parte a vida po-
intervalo –, em Recife – ou será que foi também Olinda? –, antes lítica normal. Não é de se estranhar, nesse silêncio político, que
de encontrar seus horizontes de preferência, o Nordeste profundo, umas vozes de representantes da Igreja – evitemos sugerir que a
a Paraíba. E mesmo aí parecia que se tratava mais de paragens: a Igreja falava alto e de uma voz! –, que ousavam ocupar um lugar
Capital, Serra Redonda, Santa Rita e Bayeux, para terminar sua no palco recebiam maior atenção e encontravam bom ouvido em
odisseia na humilde diocese baiana de Barra. A postura dele, pa- parte da população, que ficava quieta por medo, mas injuriada
recendo frágil, era de uma resistência extraordinária para viajar: por aquela prosa continuamente repetida a respeito de um ‘Brasil
memorizava alegremente os horários de avião, e as longas horas que, agora sim, anda direito e progride no desenvolvimento’. Em
de ônibus e de carro empoeirado não lhe provocavam mal estar. São Paulo e no Recife, percebia-se este som de independência.
Será que era andejo mesmo? Teve a coragem o Arcebispo da maior cidade do País, Dom Evaris-
Mais ainda que andar, o profeta deve falar, e, de preferência, to Arns, de dizer non licet quando a polícia militar prendia gente
falar alto. A condição e a figura de Comblin, de acesso não real- indiscriminadamente e torturava sem dar contas a ninguém. E no
mente fáceis, frequentemente dando mostras de timidez defensiva, Nordeste, a eloquência de um bispo baixinho muito irritou os mi-
se transformavam desde o momento que dirigia a palavra a um litares, repetindo que na sua região a massa empobrecida, apesar
público. Não se esperava uma voz tão forte e consonante saindo de todas as proclamações grandíloquas de Progresso e de Patriotis-
desta figura, físicamente não muito imponente. Porém, captavam mo, só ficava um pouco mais pobre ainda. Dom Helder Câmara,
a assistência – ou a irritavam... – aquele seu discurso cáustico, su- homem santo – porém, ‘não rebelde’, precisava José Comblin –,
as afirmações lapidárias e frequentemente incomodantes. E não era intelectual de grande curiosidade, de modo que sem dúvida
raramente a repercussão ia além da simples assistência física, para já conhecia a obra de Comblin, e foi naquela época que a cola-
irritar certas autoridades políticas. Pena que, por descuido nosso, boração do teólogo belga, oficialmente expulso do País, com um
perdemos o texto dos ataques no poderoso jornal O Estado de S. arcebispo, em vias de tornar-se o símbolo da coragem resistente,
Paulo, que entrou numa verdadeira polêmica, citando nome e fun- tornou-se mais intensa. Mas conosco, Comblin não pormenoriza-
ções de Comblin. Soubemos que, infelizmente, era um sacerdote va o assunto e nós não temos revelação a fazer nesse ponto.
húngaro, fugido de sua pátria depois da revolta de 1956, que os Tenho motivo para supôr, em compensação, que naqueles
inspirava. Nos anos nos quais vigorava a Doutrina da Segurança anos começou a surgir no peito de Comblin uma nova inclina-
Nacional com toda sua força, os sucessivos Atos Institucionais im- ção, versão que virou conversão e que pode bem ter sido a maior
pediam o ressurgimento da vida democrática, sempre prometida na sua vida brasileira, e, quem sabe, a maior da sua vida tout court.
e sempre adiada. Naquela fase de suspeição generalizada, quando O brilhante intelectual, o autor com estupenda facilidade de con-
a polícia militar descobria ‘subversivos’ em todo campo, em 1972 ceber e de realizar livros, não se dava mais por satisfeito com sua
José Comblin foi proibido de entrar no País ao chegar da Europa, produção livresca. Deve ter sido o que vamos chamar sua vocação
em Recife. A proibição nunca foi suspensa – li em algum lugar de nordestino, vontade de deixar aí mesmo uma marca dele, de
que ela foi, sim, em... 2010 –, apesar de seu trabalho durante 38 pôr ponto às grandes teologias – ‘Teologia da Revolução’, ‘Teologia
anos no Nordeste não ter sido clandestino. Então, vemos um Jo- da Cidade’ – para pegar na humilde ‘teologia da enxada’ – instru-
sé Comblin, suspeito, perigoso para a nação, um Comblin que mento que, naquela terra, evoca nada de grandioso mas, isto sim,
amava cada vez mais, que adorava um país que continuava ofi- o penoso, tedioso curvar-se para a terra –, vontade de construir algo
cialmente considerando-o durante 40 anos como perigoso – só com as próprias mãos, curvando-se, até pedindo ajuda financeira
que não fazia nada para eliminar esse perigo. Sutileza brasileira. de outros – o que na vida anterior nunca teve de fazer, tirando do
Mas, entrementes, em 1968, havia se realizado a Conferên- ordenado e da aposentadoria de professor de tempo parcial o su-
cia Episcopal da América Latina de Medelin e os horizontes não ficiente para um sóbrio solteiro como ele. Saíram aos poucos os
eram mais os mesmos. Aquilo que ia chamar-se Teologia da Liber- Centros de Formação Missionária para leigos masculinos e femi-
tação tem aí uma das suas origens. José Comblin, não há dúvida, ninos. Fato é que com esta nova atividade surpreendeu um pouco
participou ativamente dela, tinha contatos frequentes com Gus- os velhos amigos europeus que o visitavam. Conseguia também
tavo Gutiérrez e outros protagonistas, lutou por ela, escrevendo, – não sei como – a admirável ajuda de dona M. M. e de outras.
discursando, explicando. Tudo isso foi importante pelo resto de Graças a elas não passava fome, acho, mas me lembro bem de uma
sua vida. Mas do ponto de vista do autor destas linhas, que pre- passagem minha de um dia e meio com aquele regime: já sonhava
tendem ser uma homenagem de amigo, assim como um olhar – parecia fartura! – com a comida que tinhamos em nossos anos
interrogativo sobre toda a vida de José Comblin, não se pode parar de Campinas e São Paulo. Somente agora, lembrando as outras
aí, como o fizeram a maioria dos comentadores na oportunidade fases de sua vida, é que começo a ver que esta foi a fase mais de-
180
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
cisiva e mais durável do seu curriculum. E bem poderia ter sido e autossuficiente de hoje. E um celebrante, assistido por um par
a fase mais feliz, apesar das limitações materiais evidentes. Não de bispos do Nordeste e por dezenas de sacerdotes, se mostrando
é repentinamente, num dia de calendário, que geralmente uma feliz com toda a naturalidade; difícil reconhecer nele o professor
pessoa se acostuma a um novo estilo de vida. Mas proponhamos europeu, ponderando tudo, hesitando em muito. A conversão ao
prudentemente que essa ideia bem pode ter começado a infiltrar- Nordeste funcionava.
-se em sua cabeça a partir do momento em que, na sua intuição, ‘Preciso me converter’, se defendia, quando seus amigos pru-
a Teologia da Libertação, como ele a concebia, não tinha mais dentemente opinavam contra mais uma mudança de casa, desta
futuro. Não foi muito tempo depois de ‘Puebla’ que já teve essa vez num esconderijo baiano, fora do qual – excluindo sua viagem
intuição. ‘A Teologia da Libertação? Ela já morreu!’, repetia. A costumeira para ver sua família e uns amigos na Bélgica – uma
partir do momento em que se convencera disso, até o fim da vida, vez só se deixou tirar. Jon Sobrino, companheirão de luta nos
contamos uns 25 anos. Significa que, durante a quarta parte de dias de Medelin, foi quem o convenceu, na ocasião do trigésimo
século, dedicou-se à sua obra, dando-lhe a melhor parte do seu aniversário – já! o prazo de uma geração inteira – do assassinato
tempo e de seus talentos. Os centros missionários do Nordeste – a de Dom Oscar Romero, em El Salvador. A alocução de Comblin
sua pátria, agora – multiplicavam-se, partindo de ‘sua’ Serra Re- já mereceu um breve comentário acima, mas dará mais trabalho
donda. Na minha mesa tenho o relatório pormenorizado de um aos teólogos que a lerão.
mês de Formação Pastoral intensiva em duas dioceses, Juazeiro ‘Preciso me converter’ – não houve tempo para isso nas vidas
e Guarabira, respectivamente na Bahia e na Paraíba. Aí, não se anteriores? Comblin queria não ficar abandonado, mesmo quan-
tratava de só passar o tempo. Essas escolas de formação organiza- do morto. Queria juntar-se – assim falou –, fecundando a terra,
vam-se em qualquer lugar, onde se ofereciam boas oportunidades, ao humilde padre – sem maiúscula – Ibiapina, declarado santo
conformando-se às circunstâncias diocesanas, criadas, na prática, pela gente nordestina, onde ‘sempre tem gente visitando o padre...
pelas preferências pastorais do bispo local. Precisei de um bom aproveitarei do movimento’ (comunicação eletrônica de Mônica
mapa para localizar as dioceses de Juazeiro na Bahia – não aquele Maria Muggler, 05.04.2011).
Juazeiro do Padre Cícero! –, de Bonfim – o Brasil está cheio de Ouso concluir com uma lembrança pessoal. Sempre vinha
‘Bonfins’! –, de Guarabira, ‘perto da capital’, cujo título de glória visitar-nos e passar um meio dia em Lovaina, na ocasião da sua
é o santuário do Padre Ibiapina, um santo – proclamado pelo po- viagem estival – no mês de junho ou julho na Bélgica: ‘Nordestino
vo – paraibano, sobre o qual ler-se-á no fim deste depoimento. A tem medo do frio, sabe!’. Nisso, como em muitas coisas da vida,
fase mais penosa da vida? Bem pelo contrário, pode ter sido a fase era de uma regularidade exemplar. Lembro-me bem da última
mais feliz: nas fotografias que guardei desse período, aparece um vez. Quando a Mônica me comunicava um novo endereço, mais
Comblin com largo sorriso, feliz daquela vida. uma vez, e por causa de mais uma mudança, agora porém para
Trabalhando dentro deste novo horizonte, identificando-se um lugar no interior baiano, que eu nunca ouvira mencionar e
com a gente humilde, não por isso se tornou eremita. O Nordes- no qual, para mim, Judas podia ter lá perdido as botas, perguntei
te, em nossos dias de comunicações sociais, está longe de ser um com toda inocência: ‘Não foi difícil, então, o transporte da biblio-
deserto egipcíaco. Reuniões, assembleias, celebrações não falta- teca tua para tal buraco?’. ‘Oh, essa!’, respondeu, ‘eu a deixei,
vam. A celebração dos 80 anos de sua vida, nos dias 20-22 de mar- ficou em Bayeux’. Que susto que me deu tal declaração! Fiquei
ço de 2003, ficarão para sempre na minha memória. No campus sem entender. Para mim, ver Comblin abrir mão da biblioteca –
da Universidade Paraibana Estadual – acho que o ‘Padre’ nunca foi ampla, variada, atualizada, mesmo em Serra Redonda, onde eu
professor aí, mas sabia-se que escreveu livros e livros e ‘é dos nos- o vi lutar, enfurecido, contra o cupim que a invadira... –, com a
sos’ –, que punha à disposição seus salões, se entregou o Festschrift qual ele parecia ter-se identificado, era ver um artista de renome,
com inúmeras contribuições, nacionais e internacionais. Mas é a repentino desprezador do seu instrumento preferido, jogando-o
concelebração de Ação de Graças que me deixou a impressão mais fora. Com o tempo, pouco a pouco – com José, as manifestações
profunda. A missa em si mesma nada tinha de cerimônia revolu- sobre si mesmo ficavam sempre a meio caminho entre brincadeira
cionária – Comblin nunca achou que fazer pulos acrobáticos na e afirmativa... – permeou-me o suspeito de que, nesta fase da vida,
liturgia fosse idêntico à evolução necessária e frutífera. Mas foi a que sabia ser a última, recluir-se num buraco baiano, juntar-se a
dignidade, misturada com uma alegria de poder realmente par- um bispo conhecido por ter tido o jejum como única arma con-
ticipar do ato litúrgico – como a da moça, cujo pai não a tinha tra o poder e a pobreza como único cartaz, era, para o andante,
deixado frequentar a escola até uns três anos antes –, pronuncian- seu caminho de despojo, prova de que seu compromisso com os
do a maioria das leituras, e, mais ainda, a do movimento lento de pobres era conclusivo.
dança sacramental da velha pretinha, que vinha apresentar pão
e vinho litúrgico da parte traseira da tenda para o altar, que me Carl Laga, bizantinista, é Professor Emérito da KULeuven; entre
comoveu. Não me acho ser do tipo sentimental, mas, no fim da 1959 e 1968 foi professor de História Antiga e Medieval na Facul-
ceremônia, tinha lágrimas nos olhos. Liturgia digna e comovente dade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, atualmente campus
ao mesmo tempo, parece impraticável em nossa Europa cética da Unesp.
181
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
182
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
183
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
para ‘obter uma cadeira na cozinha’. Estas ações resultaram no próprio desenvolvimento. Nos anos de 1960, a JOC existia em
primeiro congresso para domésticas no Alto de Boa Vista (1961), mais de 90 países!
que formulou o Manifesto das domésticas e deu origem ao seguro A situação brasileira era totalmente diferente da belga e a JOC
social para este grupo. tinha que se adaptar. O fato de a JOC/F ter sobrevivido a tantos
Denise se dava conta de que não veio para transplantar ao problemas e à repressão militar prova que o movimento se adaptou
Brasil um modelo belga. Ela procurou viver como uma brasileira realmente a esta sociedade. Na medida em que a JOC/F brasileira
no espírito de pobreza e evitava fazer muitas comparações com crescia no nível da direção e em influência, alcançou sua autono-
a JOC/F belga. Era consciente de que a JOC brasileira já havia mia, também graças ao apoio dos comitês regionais e do Centro
realizado muito durante sua curta existência e observava que os de Informação América Latina (1955). O fato de Bartolo Perez ter
jovens brasileiros apenas tinham tido o tempo para ser crianças sido eleito em 1961 presidente internacional no Segundo Con-
despreocupadas. Em 1961, depois de uma estada de oito anos, selho Mundial da JOC/I, com participantes vindos de 85 países,
voltou à Bélgica e recebeu um mandato no Secretariado Interna- mostra como se tinha fortalecido a JOC/F brasileira.
cional em Bruxelas.
Na sua etapa inicial a JOC/F brasileira ficou grata pela ajuda Myriam Vanden Nest obteve licenciatura em História na KULeuven
de fora e precisava de publicações jocistas belgas. Entretanto, não com um trabalho de conclusão sobre “Os belgas na JOC brasileira”, é
se tratou de uma transplantação, que seria contrária aos princípios formada também em Ciências Religiosas, professora do ensino médio
de Cardijn e da JOC/I. Sua estratégia era seguir em cada país seu e ativa na pastoral da igreja católica.
A Uniapac e o Brasil
Peter Heyrman
184
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
Esta função o levou várias vezes à América do Sul. Mesmo de- o Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo
pois de sua passagem para a empresa Bekaert, em 1965, Vermeire (CLAD). A ‘Declaração de São Paulo’, de novembro de 1963, de-
continuou a intermediar os contatos através da Fundação Léon fendeu uma integração econômica latino-americana mais forte,
Bekaert (1962) e da Maison de l’Amérique Latine. A Uniapac pro- algo no modelo europeu e correspondente às ideias do economista
curou o fortalecimento da organização patronal latino-americana argentino Raul Prebisch (1901-1986). O avanço da Uniapac na
e maior colaboração com o patronato europeu e com a Comuni- América Latina se consagrou no congresso mundial no México,
dade Econômica Europeia. Em novembro de 1962 ocorreu em em outubro de 1964.
Bruxelas o Fórum Europeu para a América Latina, que resultou
na fundação do Comité Européen pour la Coopération avec l’Amé- Peter Heyrman é Doutor em História e dirige a Seção de Pesquisas
rique Latine (CECAL, maio de 1963). Meio ano depois se reuni- do Kadoc – Centro de documentação Católica da Universidade de
ram 400 empresários latino-americanos em São Paulo e formaram Lovaina.
185
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
Hins conhecia relativamente bem o Brasil por ter nele residido siva em matéria escolar, mas seus educadores já elaboravam, nas
em 1863, quando, com 24 anos, teve que interromper seus estu- escolas municipais e na Universidade de Bruxelas, novas ideias e
dos por problemas de vista. Tirou de sua estada como preceptor métodos pedagógicos laicos. Advogavam a coeducação e a ginásti-
num engenho da província de Pernambuco material para as cartas ca. Para quebrar o monopólio católico, pensavam na organização
publicadas na Revue de Belgique e, mais tarde, em 1884, reunidas de orfanatos ‘racionalistas’. Muita atenção recebia o modelo das
num livro com o título Un an au Brésil. ‘Escolas Modernas’ formulado pelo mártir do Livre-Pensamento
Este tratava da natureza e da sociedade escravocrata pernam- espanhol, Francisco Ferrer.
bucana e não tinha ainda nada a ver com o Livre-Pensamento. A Estas novas propostas podiam experimentar-se na América
seguir, Hins partiu em 1872 para a Rússia, onde lecionou numa Latina e uma missão laica nesse sentido foi dirigida por Georges
escola militar. Em 1880 participou em Bruxelas do congresso da Rouma, a partir de 1909, na Bolívia e em seguida em Cuba. Na
primeira internacional. pauta deveriam surgir iniciativas no Brasil, onde os métodos ino-
Em La Pensée, Hins assinalava regularmente as atividades dos vadores de Ovide Decroly e, sobretudo, o livro Méthodes américai-
livres-pensadores brasileiros, observando o modo como as ligas nes d’éducation (1908), de Omer Buyse, tiveram forte impacto na
festejavam todos os aniversários do mundo laico europeu, como, nova pedagogia propugnada por Lourenço Filho e Anísio Teixeira.
por exemplo, as comemorações de Francisco Ferrer, em 13 de ou- Este último evoluiu assim do tradicionalismo religioso para a de-
tubro, e de Giordano Bruno, em 14 de fevereiro, mas também o fesa da escola nova pública nos seus cargos de inspetor e diretor
20 de setembro, data da queda da Porta Pio em Roma, em 1870, de ensino, o que lhe valeu acusações de comunista por parte dos
e do fim do Estado pontifical. Vale notar que esta última data é católicos da revista A Ordem e que, bem mais tarde, levou à sua
lembrada pela Liga Anticlerical do Rio de Janeiro por significar morte misteriosa no regime militar em 1971.
‘a queda do poder temporal dos papas, […] um dos feitos mais im- O Estado de Minas Gerais contratou ainda nos anos de 1930
portantes da história da Humanidade’. Além disso, Hins publicava uma missão pedagógica belga, liderada por Buyse, mas logo o Es-
a correspondência de seus correligionários brasileiros a respeito tado Novo de Getúlio Vargas e sua política mais favorável à Igreja
da ingerência dos jesuítas na vida social do Brasil e preocupava- Católica e, em seguida, a Segunda Guerra Mundial interrompe-
se com as alternativas à ofensiva ultramontana na educação da ram este diálogo entre belgas e brasileiros adeptos da laicização.
América Latina.
Aliás, na própria Bélgica, depois da vitória do partido católico Nicoletta Casano é Doutora em História pela Universidade Livre
em 1884, os maçons e livre-pensadores se encontravam na defen- de Bruxelas.
186
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
187
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
e obter papéis; Onde fazer um curso de francês; Por qual fron- pode-se encontrar nesse “ambiente familiar” interlocutores para
teira fazer chegar sua família; Qual é o meio mais barato para exprimir, em seu idioma, suas alegrias, suas dores e suas saudades.
enviar dinheiro; Como alugar um apartamento em Bruxelas e Uma questão se coloca, da mesma forma que, como para to-
conseguir relógios de eletricidade e de água para quem não tem das as situações religiosas em migração: essas igrejas específicas
os documentos em ordem. favorecem a integração ou isolam seus membros da realidade bel-
Para todas estas questões vitais para o recém-chegado é possível ga? Além do papel que elas se atribuem, de que ajudam muitos
encontrar respostas nas igrejas, através de outros brasileiros que já brasileiros a ultrapassar situações difíceis ou mesmo a sobreviver,
tiveram esses problemas e podem comunicar suas experiências e algumas dessas igrejas são etapas progressivas para a mistura. As-
seus “jeitinhos”. As mensagens fornecidas não têm nada de aber- sim a grande comunidade Cristã Brasileira de Anderlecht (Rue
tamente político ou, ainda menos, revolucionário. Mas não dizia des Deux Gares) reúne um público internacional. Várias outras
alguém há 175 anos (antes de acrescentar seu celebre: a religião é igrejas são igualmente ‘mistas’. Lá se encontram, ao lado dos bra-
o ópio do povo): A miséria religiosa é, por uma parte, a expressão da sileiros, cidadãos portugueses ou originários das antigas colônias
miséria real e, por outra, o protesto contra a miséria real. A religião portuguesas na África negra ou ainda de outros países. O idioma
é o suspiro da criatura oprimida, o calor de um mundo sem coração, português não é utilizado exclusivamente e dá lugar ao francês ou
como é o espírito de condições sociais, dos quais o espírito é excluído. ao inglês. O francês pavoneia-se no letreiro em algumas fachadas.
Que ligação têm os brasileiros com suas igrejas? Que papel Para a incipiente segunda geração, o português muitas vezes não
têm estas em suas inserções? Pode surpreender que na realidade é o idioma de melhor compreensão. Assim o ‘recuo’ sobre essas
muitos brasileiros não tenham um apego exclusivo a uma única igrejas comunitárias pode também abrir portas sobre o ‘diferente’,
igreja, mas podem circular entre várias delas. A proximidade geo ser ponte entre o ‘por lá’ e o ‘por aqui’.
gráfica facilita esta mobilidade. Se hoje não tem um culto na mi-
nha igreja ‘habitual’ posso atravessar a rua e assistir numa outra Anne Morelli é historiadora, professora na ULB-Universidade Livre
igreja, onde vou encontrar algumas de minhas referências e... co- de Bruxelas, onde dirige o Centro Interdisciplinar dos Estudos das Re-
nhecidos brasileiros. As diferenças dogmáticas desaparecem diante ligiões e da Laicidade – CIERL. Um de seus cursos trata da História
das semelhanças comunitárias e sociais. O grupo religioso age aqui das igrejas cristãs contemporâneas. Entre suas obras sobre as minorias
como um substituto do grupo familiar. Como todos os seus mem- religiosas se destaca o livro Lettre ouverte à la secte des adversaires
bros se encontram numa situação parecida de desarraigamento, des sectes (Carta aberta à seita dos adversários das seitas).
188
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
Em 2005 um terceiro grupo espírita começa a se criar em tor- gica desde então. Os grupos CESAK, NEECAFLA e Nosso Lar,
no de um grupo de amigos brasileiros que também se reuniam que foram criados por brasileiros, se únem ao movimento para o
semanalmente em Saint Gilles, Bruxelas. Liderados pela brasilei- avanço das ideias espíritas neste país.
ra Flavia Veríssimo, um local foi alugado para acomodar o grupo Por seu caráter livre e desprovido de hierarquias, o movimento
nascente que crescia. Por volta de 2006 é criado o NEECAFLA – espírita cresce pelo esforço e pela união de seus próprios membros.
Núcleo de Estudos Espíritas Camille Flammarion. Com o crescer As atividades caritativas deste movimento se baseiam principal-
do grupo e de suas atividades, o NEECAFLA se torna uma ASBL mente no apoio moral e espiritual ao público participante. Eventu-
em 2010, época em que o grupo contava com aproximadamen- almente são realizadas atividades de caridade para dar apoio finan-
te 10 membros ativos. Atualmente encontra-se na Rue d’Albanie ceiro a movimentos de auxílio ao próximo, como, por exemplo,
103, em Saint-Gilles, e promove diversas atividades semanais em o programa STOP Famine Corne de l’Afrique e o grupo Coeurs
português e em francês voltadas para o público. SDF ASBL de Liège.
Esses grupos se integram e trabalham em conjunto com o mo-
vimento espírita belga com a adesão à União Espírita Belga, que Fabio Furtado é Engenheiro de Computação pela Universidade Fe-
se encontra na cidade de Liège. A União Espírita Belga realiza deral de São Carlos, atuando há vinte anos na área de desenvolvimen-
reuniões trimestrais para a reflexão e troca de experiências entre os to de sistemas no Brasil, França e Bélgica. Participa ativamente no
diversos grupos espíritas existentes no país. A União Espírita Belga Movimento Espírita Belga e é atualmente presidente do NEECAFLA
foi criada em 1882 e mantém vivo o movimento espírita na Bél- – Núcleo de Estudos Espíritas Camille Flammarion em Bruxelas.
189
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
-americanas. Após vários anos de reflexão e hesitação, pontuadas de seu companheiro brasileiro, ele próprio iniciado no candomblé.
por uma longa estada em Salvador e a abertura de um restauran- A eles eu exprimo aqui toda a minha admiração.
te brasileiro em Carnières, Alain fundou uma nova casa de culto, As informações mencionadas acima fazem parte de uma pesqui-
desta vez em La Louvière. sa etnográfica realizada no candomblé de Alain entre 1998 e 2000.
Como testemunham a breve história do terreiro de Carnières Esta pesquisa resultou na redação de uma dissertação de Mestrado
e também, numa escala mais ampla, a escravidão transatlântica, na Universidade Livre de Bruxelas (“Dieux en Exil. Adaptations et
as crenças e práticas religiosas não têm nem fronteiras nem na- apprentissage rituel dans un candomblé de caboclo en Belgique”)
cionalidades: elas parecem, tanto quanto o ser humano desde há e na publicação de um artigo (“Um candomblé na Bélgica. Traços
dezenas de milhares de anos, destinadas a migrar e a se transfor- etnográficos de uma tentativa de instalação e suas dificuldades”,
mar ao longo dos encontros e das circunstâncias sócio-históricas. na Revista de Antropologia – USP, 2004, 47(2): 453-493).
Escolher a Bélgica como domicílio não é um negócio fácil para as
entidades afro-brasileiras, mas este desafio foi vencido há mais de Arnaud Halloy é antropólogo na Universidade de Nice Sophia-An-
30 anos por Alain. E hoje ele pode contar também com o apoio tipolis.
190
parte 5 – influências ideológicas e religiosas
Sobre o candomblé
Arnaud Halloy. ‘Um candomblé na Bélgica. Traços etnográficos de uma tentativa de insta-
lação e suas dificuldades’. Revista de Antropologia-USP, 2004, 47(2): 453-493.
191
parte 5 – influências religiosas e ideológicas
192
o brasil entra em cena
parte 6
193
parte 6 – o brasil entra em cena
194
o brasil entra em cena
195
parte 6 – o brasil entra em cena
gens dos balés medievais. Na segunda metade do século XVI, jun- nato locais, seu papel indispensável no abastecimento de maté-
to com os livros, o mapa do Brasil ganhou presença e volume na rias-primas, ao passo que os artistas plásticos inventavam e desen-
cartografia de Mercator e Ortelius. Ao mesmo tempo, traziam-se volviam a temática dos Quatro Continentes na pintura, gravura
do Brasil, em abundância, saguis, macacos, papagaios e araras co- e arte efêmera. No arco do triunfo dos portugueses na entrada de
mo animais de companhia, ao ponto de vendê-los na feira, como Antuérpia, do Arquiduque Ernesto, em 1594, Brasília, antes ainda
registrou uma pintura de Joachim Beuckelaer em 1566. representada sob o vulto da América, acedeu, num desenho de
Mercadorias brasileiras, do pau-brasil ao açúcar, agora mais Maarten de Vos, ao seu próprio status em pleno, ao lado da Índia,
abundante e barato, entraram no consumo corrente, enquanto Etiópia e Mauritânia.
se experimentavam em cachimbos as primeiras pitadas do tabaco Entretanto, a guerra religiosa e civil em Flandres e o crescen-
brasileiro. Formavam-se gabinetes de curiosidades como o Museo te antagonismo entre católicos e protestantes que, além de tudo,
instructissimo de Jacobo Plateau, em Tournai, com tatus e colibris, repercutiram no bloqueio ou na pirataria do comércio marítimo
ou a coleção do Duque de Arenberg, especializada em armas e regular com o Brasil, fizeram abortar esta equanimidade huma-
plumaria dos índios. Artistas como Hans Bol, Philippe Galle e Jan nista, algo respeitosa da alteridade indígena.
van der Straeten imaginavam suas pescarias, enquanto o natura- Com a Contrarreforma triunfante nos Países Baixos meridio-
lista Carolus Clusius inseriu as novidades brasileiras numa síntese nais, seus poderosos, sua nobreza e sua igreja esvaziaram o desafio
enciclopédica, Exoticorum libri decem, 1605. cultural do primeiro Brasil e reduziram as interrogações a meros
Se um aparente nivelamento entre uma sociedade cristã e estereótipos alegóricos. Confinaram os índios numa ciranda de
uma selvagem surpreende – como na supracitada referência de plumas, ao passo que domesticaram as araras insolentes como
Van Vaernewyck aos flamengos como índios –, este aflorou mais emblema da fidelidade conjugal.
explicitamente nas comparações feitas por Jean de Léry e Mi-
chel Montaigne sobre o canibalismo dos índios brasileiros e as Referências
barbaridades entre cristãos. Vaernewyck, Marcus Van. Van die beroerlicke tijden in de Nederlanden en voorname-
Algum relativismo cultural, subjacente e mais pragmático, se lijk in Ghendt, 1566-1568. Ed. E. Vanderhaeghen, Gand, 1872.
Stols, Eddy. ‘De triomf van de exotica of de bredere wereld in de Nederlanden’. Eds.
veiculou pela mesma época em Antuérpia na exaltação do comér- Werner Thomas e Luc Duerloo, Albert &Isabella, 1598-1621, Essays. Turnhout,
cio internacional pacífico e do intrépido mercador viajante pelo 1998, p. 291-301.
mundo e em contato com civilizações diferentes. Textos como os Stols, Eddy. ‘Alegorias fossilizadas o redivivas? Las cuatro partes del mundo en las artes
visuales de los Países Bajos (siglos XVI-XVIII)’. Eds. Scalett O’Phelan Godoy e Car-
prólogos do Landjuweel, o grande festival de teatro popular em men Salazar-Soler, Passeurs, mediadores culturales y agentes de la primera globaliza-
1561, justificavam, perante as resistências da agricultura e artesa- ción en el Mundo Ibérico, siglos XVI-XIX. Lima, 2005, p. 853-885.
Brasileiros barrocos
J o h a n Ve r b e r c k m o e s
196
o brasil entra em cena
Dançarinos brasileiros nas ruas de cidades flamengas durante cortejos e desfiles, que atraíam milhares de espectadores.
Antuérpia, tanto por Guilliam van Parijs como por Joannes Bel- lianen e a gravura mostra uns 14 andando na frente e ao lado de
lerus, o gravador Jacobus Sluperus apresenta o homem e a mu- etíopes, sobre camelos e precedendo seu rei em cadeirinha. Os
lher brasileiros nus e qualificados como monstruosos. Somente o brasileiros somente trajam tangas e dançam gesticulando com
homem leva um pequeno penacho na cabeça e um enduape ou seus braços, tocando música ou levantando espelhinhos para o
coroa de plumas no traseiro. rei etíope. Estes brasileiros, gingando alegremente, se tornaram,
Num outro livro antuerpiense de trajes de 1581, de Abraham por volta de 1600, em pleno período barroco, um supletivo cons-
de Bruyn, se vê um casal parecido de índios brasileiros. As varian- tante nas festividades.
tes mais horríveis de índios emplumados surgem nas gravuras dos Em Bruxelas, em 31 de maio de 1615, participaram num carro
livros sobre a América, de Théodore de Bry, de Liège. Esta foi a alegórico do Ommegang – um desfile tradicional nas principais ci-
primeira coleção pan-europeia de livros de viagem sobre outros dades flamengas –, em homenagem à Arquiduquesa Isabela, com
continentes e as suas gravuras mostravam com muita minúcia o o maior requinte indumentário. A pintura por Denijs van Alsloot
canibalismo, a idolatria e a crueldade dos índios. As gravuras de (antes de 1593-1626) mostra quatro índios porta-estandartes atavia-
Bry mostraram ainda por vários séculos os autóctones brasileiros dos com uma túnica curta de plumas de diferentes cores e de uma
como canibais desnudos. deslumbrante manta de plumas vermelhas, que desce da coifa e
Mesmo assim, a outra representação dos índios brasileiros cobre suas costas e pernas por inteiro. Seus estandartes com o mo-
muito bem vestidos se adequava melhor às festas em terras da nograma IHS, da ordem jesuítica, parecem simbolizar a expansão
Contrarreforma católica. Em 1613 o senhor de Rasilly levou da religião cristã entre os índios americanos. Na parte traseira do
alguns índios do Maranhão a Paris, onde foram batizados. Na carro senta um soberano branco com cetro, que se deixa abanar
ocasião foram convidados a dançar. O desenhista Joachim Du- por um menino africano com um para-sol de plumas vermelha-
viert (1580-1648) e o gravador Pierre Firens (1580-1638), ambos ças. No meio, uma grande gaiola prende um jovem índio pagão
antuerpienses trabalhando em Paris, registraram, num retrato ao debaixo de um bando de papagaios e araras. Estes reaparecem em
natural, os diferentes passos de sua dança. Pela roupa parecem abundância na decoração do pano, que cobre a carroçaria.
quase europeus: meias longas, calças curtas bufantes, camisa de Aos jesuítas dos Países Baixos meridionais, que tinham fre-
manga longa e gola alta. De índios, têm somente sua coifa curta quentes relações com o Brasil, visto como terra de missão e de
em quatro deles, e longa, com plumas cobrindo as costas, nos índios a vestir, convinha uma imagem intermediária, nem escan-
outros dois. Primam nesta imagem o prazer de dançar e a hu- dalosamente nu, nem adornada demais. Ainda mais quando, fes-
manidade desses índios. tejando em 1640 o centenário da ordem, os jovens da retórica
Dançarinos brasileiros eram vistos também nas ruas das cida- em Bruges representaram, no seu teatro escolar, temas brasileiros
des flamengas durante os cortejos e desfiles, que atraíam milha- como a figura de José de Anchieta.
res de espectadores. Na entrada triunfal do Arquiduque Ernesto Na sua grande igreja de Francisco Xavério, construída em Ma-
da Áustria em Antuérpia, em 14 de junho de 1594, um cortejo lines nos anos de 1670, o arquiteto jesuíta integrou, com exube-
de brasileiros emplumados chamou a atenção com suas danças rância, índios no programa iconográfico do interior. O banco de
exuberantes. O livro de homenagem os menciona como Brazi- comunhão é decorado com emblemas de índios com cocares.
197
parte 6 – o brasil entra em cena
O gigante índio no
cortejo Ros Beiaard de
Dendermonde.
Mostra ainda um missionário, que carrega nas costas um menino do século XVII, como uma terra onde as fronteiras da civilização
índio. Como um dos representantes dos quatro continentes, um podiam ainda avançar. Como tal, se confundia frequentemente
índio, de forte bigode e braços musculosos com pulseiras emplu- com a África. Assim o pintor Jan van Kessel justapõe no seu painel
madas, sustenta o púlpito. Numa série de pinturas sobre a vida América, da série Os quatro continentes (1666), índias mais claras
de Francisco Xavério se encontram também índios com cocares com homens negros de cocares índios. Filhos deste fascínio confu-
reconhecíveis entre a multidão extasiada pelo santo. so são os dois gigantes tapuyas com cocares que se carregam ainda
Esta propaganda em Malines para estimular as missões ao Bra- nos cortejos de Dendermonde, os dançarinos índios representan-
sil também é tributária do belo livro que o jesuíta antuerpiense do a Ásia na toalha de damasco de Courtrai ou, ainda, o menino
Cornelius Hazart tinha publicado, a Kerckelycke Historie van de índio com arco e flechas no lustre rococó dos Quatro continentes
gheheele wereldt (A história eclesiástica do mundo inteiro). No de Frans Allaert (1770), do Museu de Arte Decorativa de Gand.
primeiro dos quatro volumes, publicado em 1668, um capítulo so-
bre o Brasil trata de José de Anchieta e de três martírios de alguns Johan Verberckmoes é professor de História Cultural da Época Mo-
jesuítas. Três gravuras ilustram o texto. Em duas se representam derna na Universidade Católica de Lovaina. Escreveu um doutorado
índios perigosos com tangas de plumas, flechas e arco, e na tercei- sobre o Riso, o Humor e os Livros de piadas nos Países Baixos espa-
ra, Anchieta no meio de animais selvagens. Hazart tinha predicado nhóis nos séculos XVI e XVII. Suas pesquisas tratam do humor e das
também sobre estes temas na igreja jesuítica de Antuérpia e não é emoções na cultura da época moderna, dos intercâmbios culturais dos
excluído que, por essa ocasião, se mostraram imagens desses índios Países Baixos meridionais com os impérios português e espanhol, das
selvagens, por exemplo, em grandes telas de pano. correspondências privadas e da vida cotidiana das famílias nobres nos
Desta maneira o Brasil era visualmente presente, até o final Países Baixos meridionais.
198
teatro, dança, circo
A da n ça na Bél g i ca a pa r t i r d o s é c u l o X X
Te x t o s o r g a n i z a d o s p o r C r i s t i n a D i a s
199
parte 6 – o brasil entra em cena
A Escola Mudra
Cristina Dias
200
teatro, dança, circo
201
parte 6 – o brasil entra em cena
Pa rts
Cristian Duarte
202
teatro, dança, circo
203
teatro, dança, circo
O pa p e l d os p r o du t o r e s , o s i n t e r câ mb io s
d e com pa n h i a s d e dan ça e o s f e s t i vai s
Te x t o s o r g a n i z a d o s p o r C r i s t i n a D i a s
204
teatro, dança, circo
é bastante característico e Bruno Beltrão conseguiu surpreender Nesse teatro, sob a direção de Serge Rangoni e com o apoio
a todos e criar uma verdadeira explosão na plateia com seu H2 de uma equipe de produção extremamente competente, brasi-
(2005). Havia ali uma síntese dos conceitos mais em voga na dan- leira e belga, conseguimos a verdadeira proeza de mostrar três
ça e, ao mesmo tempo, uma fronteira nova para a qual apontava, apresentações das “Bacantes”, de José Celso Martinez Corrêa,
longe de todo e qualquer exotismo dos quadris brasileiros. e seu Uzina Uzona de mais de 50 pessoas. Um espetáculo tea-
O apogeu recente dessa nova relação, mais de igual para igual tral, operístico, carnavalesco, coreográfico. Total. As referências
– inclusive entre os festivais, com o interesse crescente suscitado à antropofagia cultural brasileira e à imensa influência de José
pelo Panorama, no Rio –, foi toda a programação durante a tempo- Celso no meio artístico brasileiro justificam ele aqui ser citado.
rada Europalia (outono-inverno 2011-2012). Marcelo Evelin, Lia O evento encerrou as festividades do Europalia e marcou esse
Rodrigues, Membros, Quasar, Dani Lima, Marta Soares... apre- novo modo de relação, de interesse e de produção da cultura
sentaram suas singularidades fortes, sobretudo durante a bienal de brasileira na Bélgica.
Charleroi-Danses e num programa por mim elaborado no Théâtre
de la Place de Liège. Rodrigo Albea é jornalista, produtor e curador de dança.
205
parte 6 – o brasil entra em cena
O bailarino e professor Cleber Santos, que ensina o afrojazz, participou do A baiana Patrícia Argolo, conhecida como Bombom, foi eleita em 2010 rainha
espetáculo “Bolero de Ravel” em 2000, quando Béjart (à esq.), de passagem por do CarnaBruxelas.
Bruxelas, o apresentou no Forest National.
Oya Brasil –, e o bailarino e professor Cleber Santos – que ensina sil Tropical; em 2010 foi eleita rainha do CarnaBruxelas e conti-
o afrojazz –, e teve a grande oportunidade de participar do espetá- nua seus estudos superiores de Educação, com especialidade no
culo “Bolero de Ravel” em 2000, quando Béjart, de passagem por acompanhamento psicoeducativo, com o objetivo de utilizar a
Bruxelas, o apresentou no Forest National. dança e o esporte como terapia para pessoas com deficiência mo-
A baiana Patrícia Argolo, conhecida como Bombom, também tora ou cognitiva.
começou a ensinar dança após ter viajado pelo mundo com o Bra- Outras histórias como esta nos descreve Arlene Rocha a seguir.
206
teatro, dança, circo
Maracatu Mix! (MMix!), fundado em 2004 em Bruxelas e formado por músicos de diferentes experiências percussivas e bailarinos com experiência na dança afro-brasileira.
vas e bailarinos com vasta experiência na dança afro-brasileira, em jetos europeus e brasileiros. Atualmente, desenvolve três projetos
particular na dança sagrada dos Orixás. culturais: Maracatu Mix!, companhia de dança Alma Brasil (cria-
No seu desfile, Maracatu Mix! traz um ambiente musical e da em 2009, em Bruxelas, e dirigida por Arlene Rocha e Bruna
coreográfico particular, marcado pelo som grave das alfaias, pela Fernandes) e projeto Pedro Moura.
potência do ritmo do maracatu e por um visual inspirado na cul-
tura tradicional pernambucana, redesenhado na dança por Arlene Companhia Alma Brasil
Rocha e na percussão por Arnaud Halloy.
Hoje o projeto Maracatu Mix! se compõe de duas formações: Companhia de dança brasileira criada em 2009, em Bruxe-
Maracatu Mix! France e Maracatu Mix! Bruxelas. Ambos apre- las, é dirigida por Arlene Rocha e Bruna Fernandes. Guarda o
sentam o mesmo repertório musical e coreográfico. mesmo objetivo artístico da companhia Matalumbo: valorizar a
diversidade e as raízes da cultura brasileira através da dança e da
ASBL Alma Brasil música popular.
Maracatu Mix! é um projeto cultural produzido e divulgado Arlene Rocha é Coreógrafa, nascida em Goiânia, formada em Artes
pela associação sem fins lucrativos Alma Brasil, instalada nas Ar- Cênicas pela Universidade do Rio de Janeiro (UNI-Rio), residente
denas belgas e criada em 2011. Tem como objetivo valorizar a na Bélgica.
cultura brasileira na Europa e promover o intercâmbio entre pro-
207
parte 6 – o brasil entra em cena
208
teatro, dança, circo
Em 2001, teve a sorte de conhecer o destaque Nabil Samir Alain é um dos raros europeus a ter o privilégio de fazer parte
Habib, personagem principal que desfilava no alto de um carro do círculo fechado dos destaques das escolas de samba do Rio,
alegórico: uma verdadeira estrela para os brasileiros. Este encon- principalmente numa das mais populares, a Mangueira. Atual-
tro permitiu que, desde o ano de 2004, Alain Taillard desfilasse mente, Alain Taillard trabalha na SNCB (Sociedade Nacional dos
como figurante numa grande escola de samba. Em 2008, a gran- Caminhos de Ferro Belga) e é reconhecido como especialista e
de surpresa! Nabil Samir Habib fez a proposta para que Alain o embaixador do carnaval do Rio na Bélgica. (Tradução e adapta-
substituísse, o que foi o ponto de partida de uma longa aventura, ção de Cristina Dias.)
rica em encontros e em emoções intensas.
209
teatro, dança, circo
210
teatro, dança, circo
–, com quem Lison percorreu várias cidades da Europa, Ásia e ceu em Santo André, no dia 14 de fevereiro de 2008, ao lado de
África, até chegar ao Brasil, em 1953, para integrar o elenco do sua filha Jeanine, suas netas Carmem e Lissete, muitos bisnetos
Circo Garcia. e tataranetos.
No Brasil, La Lison se destacou como apresentadora, papel em
que foi pioneira e marcou época. Trocava de roupa a cada número, Dona Carola
anunciava o espetáculo em oito idiomas e tinha uma elegância
que até hoje é lembrada pelos colegas. Atuou nas maiores com- Andréa Françoise Carola Boets nasceu em 1937, na Bélgica.
panhias circenses da época, com as quais viajou por todo o País e Filha de acordeonistas performáticos, Carolus Boets e Ernestine
parte da América do Sul. Maria Ryckaert, que se apresentavam com o nome de Scandallis,
Após quase 50 anos de ausência, Lison retornou à sua terra na- começou ainda menina sua carreira artística, fazendo imitações
tal, onde reencontrou Carolus Leon Van Reet, seu namorado de de Maurice Chevalier e, seguindo a tradição familiar, tocando
adolescência. Começaram a manter contato e em 1991 Carolus acordeons dos mais variados tamanhos. Carola também tocava
fez uma visita surpresa a Lison no Brasil. No ano seguinte, casa- saxofone, dançava, interpretava, adestrava animais (cobras, cabras,
ram-se em uma cerimônia católica dentro do circo de Federico elefantes, chimpanzés).
Orfei, com quem sua neta Lissete era casada. Seis meses depois, No Brasil, aonde chegou em 1953, casou-se com Antolin Gar-
como num conto de fadas, casaram-se também no cívil, em um cia (1904-1987), proprietário fundador do Circo Garcia (1928-
Castelo de Antuérpia. -2002), na época considerado um dos maiores circos do mundo.
Daí em diante, Lison passou a viver uma nova rotina, residin- Indubitavelmente, dona Carola, como era chamada nos
do metade do ano no Brasil e a outra metade, na Bélgica. Fale- bastidores, foi a primeira dama do circo brasileiro nas últimas
211
parte 6 – o brasil entra em cena
212
teatro, dança, circo
Uma possível explicação da popularidade do circo no Brasil é a sensação de se ser valorizado não “apesar da diferença”, mas precisamente por se ser diferente.
213
parte 6 – o brasil entra em cena
214
música clássica
parte 7
Música
215
parte 7 – música
216
música clássica
Reichert e Callado: dois flautistas irmãos cólogo e diretor do Conservatório de Bruxelas quando Reichert
lá fez seus estudos:
217
parte 7 – música
Cabe à flautista dos com perfeita e rigorosíssima afinação, execução firme, excelente
francesa Odette
sentimento, o que honrava a escola de seu professor, Charles de Bé-
Ernest Dias o mérito
de ter redescoberto, riot. O público carioca festejou-o com delirantes aplausos. No dia
pesquisado e seguinte, o Imperador D. Pedro honrava-o, presenteando-o com um
interpretado Reichert. anel cravejado de brilhantes e ornado com suas iniciais”.
Como professora Outros artistas estrangeiros que aqui se apresentaram, como o
da Universidade de
português Eduardo Medina Ribas, o holandês Gustav Van Mark,
Brasília (UnB), em
1985 ela dedicou o a francesa Madame Freery, também foram alunos de Bériot, en-
disco “Afinidades quanto Paul Julien, que se tornou amigo de Carlos Gomes, trazia
brasileiras” à sua em seu repertório obras dos representantes da escola franco-belga
obra, lançado pela de violino, como Bériot e Vieuxtemps. Portanto, nada mais natu-
própria UnB.
ral para alguns brasileiros que queriam se aperfeiçoar no exterior
do que escolher Bruxelas como seu destino.
Manoel Joaquim de Macedo nasceu em Cantagalo, Rio de
Janeiro, em 1847. Estudou composição no Conservatório Real
de Bruxelas com François-Joseph Fétis (1784-1871) e violino com
Em 1863, por ocasião do 33º aniversário da Independência Huber Leonard (1819-1890) e Henry Vieuxtemps (1820-1881),
da Bélgica, apresenta-se, com o pianista Carlos Schramm, após recebendo medalha de ouro. Há notícias de que tenha, ainda, se
o banquete oferecido pelo Cônsul-Geral da Bélgica no Rio de aperfeiçoado com Joseph Joaquin (1831-1907) e com o próprio
Janeiro, Edouard Pecher, aos membros da Sociedade Belga de Auguste Bériot (1802-1870). Vieuxtemps o indica para a função
Beneficência. de violinista spalla da orquestra do Covent Garden, em Londres,
Em São Paulo, onde se apresentou por duas vezes, em 1863 o que estende sua estadia na Europa por um total de nove anos.
e 1871, teria entrado em contato com os jovens do curso de Di- Quando volta ao Rio, em 1871, é nomeado por D. Pedro II
reito, pois eram eles que formavam o público mais expressivo dos mestre da Capela Imperial. Na capital do império compõe a ope-
concertos e que escreviam críticas e artigos musicais no Correio reta Antonica da Silva com libreto de seu tio, o romancista Joa-
Paulistano. Cursavam a Faculdade de Direito, em 1863, o poeta quim Manuel de Macedo, apresentada no Teatro Fênix Dramática
Fagundes Varela e o compositor Venâncio José Gomes da Costa em 1880. Três anos depois, se estabelece em Minas para dedicar-
Júnior. Em 1871, o compositor Antônio Frederico Cardoso de Me- -se, principalmente, à composição. Sua obra inclui sonatas, fan-
nezes pôs em música a célebre Hebréia, de Castro Alves. tasias, um álbum para piano, canções e, segundo Camila Frésca,
Reichert teve vários alunos no Brasil. Entre eles Duque Estra- que o estuda, oito concertos para violino, dos quais sete deles estão
da Meyer, que também foi aluno de Callado e famoso professor desaparecidos até agora. Seu poema sinfônico Floriano Peixoto foi
no Conservatório de Música, tendo, por sua vez, entre seus alu- apresentado com grande sucesso em Minas e no Rio de Janeiro
nos o grande flautista e compositor Patapio Silva. Por essa razão, e foi publicado em versão para dois pianos. Em 1897 termina de
Odette Ernst Dias afirma: “Reichert pode ser considerado, junto compor sua ópera, Tiradentes, com libreto de Augusto de Lima
com Callado, o fundador da escola de flauta brasileira”. (1859-1943) e obtém uma bolsa de trabalho do governo brasileiro
e mineiro para orquestrá-la na Bélgica, onde permanece por lon-
Um violino que veio do mar gos anos, só voltando ao Brasil pouco antes de sua morte, em 1925.
O prelúdio e alguns trechos dessa ópera foram apresentados por
Segundo Vincenzo Cernicchiaro (1855-1928), violinista, mu- Alberto Nepomuceno no Festival de Música Brasileira, na Expo-
sicólogo e compositor italiano radicado no Rio de Janeiro e pro- sição Internacional de Bruxelas, em 1910.
fessor do Instituto Nacional de Música (antigo Conservatório), Entre seus alunos destaca-se João Augusto Campos que foi
foram muitos os violinistas a se apresentar no Rio de Janeiro no tio e professor do violinista e compositor mineiro Flausino Vale.
século XIX. Entre eles, estava um “violinista de superior importân- Grande virtuose de violino e compositor injustamente esqueci-
cia, trazendo novidades de escola, elegância de estilo e novas obras do, deve-se a Villa-Lobos a lembrança de homenageá-lo com a
musicais para violino. Era ele Charles Wynem, jovem belga que um cadeira nº 21 da Academia Brasileira de Música, no momento
forte temporal – quando viajava para as ilhas orientais – lançou à de sua criação. Macedo foi o primeiro de uma série de violinis-
praia da Bahia, sem ter podido salvar outra coisa além de seu vio- tas que introduziram e sedimentaram a escola franco-belga no
lino e o repertório musical. Brasil. Outros foram:
“Na Bahia, onde realizou dois concertos, obteve grande sucesso, Francisco Chiaffitelli (1881-1954). Estudou no Conservató-
passando depois ao Rio de Janeiro, onde chegou em 19 de março [de rio Real de Bruxelas, na classe do renomado violinista Eugène
1846]. Seu primeiro concerto teve lugar dias depois de sua chegada. Isaye, obtendo o primeiro prêmio de violino do Conservatório em
(...) Em seu último concerto, em 25 de agosto, tocou o Rondó russe 1897. No Brasil, foi professor do Instituto Nacional de Música,
do segundo concerto de Bériot, além do célebre Tremolo, executa- destacando-se entre seus alunos Paulina d’Ambrosio, nascida em
218
música clássica
1890, em São Paulo, matricula-se aos 15 anos no Conservatório de Gelisette (sic, 1895), de Aglavaine et Sélizette. Foi seu primeiro
Real de Bruxelas. Ao voltar, em 1907, dedica-se principalmente ao contato com a Bélgica.
ensino, como professora do Instituto Nacional de Música. Como Não foi possível saber se Nepomuceno se encontrou pessoal-
intérprete, participou da Semana de Arte Moderna, executando, mente com Maeterlinck na França ou na Bélgica, mas tudo leva
inclusive, obras de Villa-Lobos. Teve como alunos, entre outros, a crer que tiveram algum tipo de contato, uma vez que Chanson
Guerra Peixe, Nathan Schwartzman, Henrique Morelenbaum, de Gelisette foi composta um ano antes da publicação de Aglavai-
Mariuccia Jacovino, Ernani Aguiar e Paulo Bosísio que, por sua ne et Sélizette (1896).
vez, foi professor do violinista mineiro especializado em música De volta ao Rio, realiza – no Instituto Nacional de Música –
barroca Luís Otávio Santos, atualmente professor no Conservató- um concerto com obras suas, na qualidade de compositor, pianista
rio Real de Bruxelas. e organista, apresentando, também, um punhado de canções com
texto em português. Inicia, assim, sua campanha pela composição
A ponte para o Modernismo de canções com texto em vernáculo, sustentando: “Não tem pátria
um povo que não canta em sua língua”.
Difícil tentar colocar em poucos parágrafos a grandeza da vida Alberto Nepomuceno foi um homem de grande cultura e um
e da obra de um compositor como Alberto Nepomuceno. Nascido compositor incansável. Criou obras para todas as formações vocais-
em Fortaleza, CE, em 1864, fez seus primeiros estudos de piano -instrumentais, incluindo ópera (Ártemis, Abul), música sinfônica,
e violino com o pai e, adolescente ainda, frequenta o meio aboli- vocal e de câmara. É autor da mais importante coleção de canções
cionista do Recife. Tobias Barreto o inicia em Filosofia e Alemão. da história da música brasileira, pela quantidade, qualidade e pela
A morte do pai faz com que a família retorne ao Ceará onde con- associação feita com os mais expressivos poetas seus contempo-
tinua suas atividades políticas. Em função delas, o pedido enviado râneos, desde Machado de Assis a Coelho Neto e Olavo Bilac.
pela Assembleia Legislativa cearense ao Governo Imperial para Suas obras estão perfeitamente sintonizadas com a estética inter-
que Nepomuceno pudesse aperfeiçoar-se na Europa é negado. nacional do período, permanecendo, no entanto, extremamente
Parte, então, para o Rio de Janeiro, onde continua seus estudos pessoais e utilizando elementos de raiz brasileira.
e é nomeado professor de piano do Club Beethoven. Data dessa Atuou ainda como regente, professor e diretor do Instituto
época sua amizade com Machado de Assis, então bibliotecário do Nacional de Música. Executou estreias brasileiras de obras con-
clube, com o violoncelista Frederico Nascimento e com os irmãos temporâneas de autores internacionais, como Debussy, Dukas,
Rodolfo e Henrique Bernardelli. Todos exercerão importantes pa- Roussel, Glazunov, Rimsky Korsakov, e primeiras audições de
péis em sua vida. obras de compositores brasileiros como Araujo Viana, Barro-
Em maio de 1888, executa no Club Iracema, em Fortaleza, zo Netto, Francisco Braga, Alexandre Levy, Henrique Oswald,
a 1ª audição de sua Dança de Negros, para piano, que se tornará, Leopoldo Miguez, entre outros. Estimulou novos talentos, como
mais tarde, o Batuque da Série Brasileira para orquestra. Nesse Glauco Velazques, Luciano Gallet, Lorenzo Fernandez e Heitor
mesmo ano, parte para a Europa com os Bernardelli em viagem Villa-Lobos.
de estudos. Em Roma, matricula-se no Liceo Musicale Santa Ce- Em 1910, por ocasião da Exposição Internacional de Bruxelas,
cilia. No ano seguinte, obtém do Governo Provisório uma pensão realiza no Teatro La Monnaie o Festival de Música Brasileira, co-
que lhe permitirá inscrever-se na Academia Meister Schule, em missionado pelo então embaixador e grande intelectual Oliveira
Berlim, e, em seguida, no Conservatório Stern. Nas provas finais Lima. Rege obras de sua própria autoria, de Carlos Gomes, Ma-
rege obras suas à frente da Filarmônica de Berlim. noel de Macedo, Leopoldo Miguez, Henrique Oswald e Francisco
Durante sua estada na Alemanha, conhece sua futura esposa, Braga. Também se apresenta diante da corte belga, num concerto
a pianista norueguesa Walmor Bang, que o aproxima de Brahms particular, com obras suas e de outros compositores brasileiros.
e de Grieg. Este reforça a ideia já demonstrada por Nepomuceno Durante a guerra de 1914-18, Nepomuceno participou do
em seu Batuque: a importância de compor obras a partir de um grande movimento de simpatia para com a Bélgica, inclusive or-
patrimônio brasileiro. ganizando concertos em favor do país que tão bem o recebeu. Por
Antes de voltar ao Rio de Janeiro, segue para Paris, aperfei ocasião da visita dos reis da Bélgica ao Brasil, em 1920, Nepomu-
çoando-se na Schola Cantorum com o célebre organista Alexan- ceno recebeu do Rei Alberto a Medalha de Ouro pela “devoção
der Guilmant. Conhece Saint-Saëns, Vincent d’Indy e Debussy, que fez prova durante a guerra pela causa belga”.
de quem assiste a estreia mundial de L’après – midi d’un faune, Alguns meses depois, Alberto Nepomuceno escreve sua úl-
obra que seria o primeiro a revelar no Brasil em 1908. Durante tima canção, A jangada, com versos do poeta cearense Juvenal
sua estada na França, compõe, a convite de Charles Chabault, Galeno, obra que o coloca definitivamente na história da música
catedrático de grego na Sorbonne, a música incidental para a tra- do Brasil como o elemento de ligação entre o Romantismo e o
gédia de Sófocles, Electra. Também musica, ao mesmo tempo, Modernismo.
uma série de poemas em português e em francês, alguns deles Tendo se separado de Walmor Bang e residindo, desde então,
com texto do poeta e dramaturgo belga Maurice Maeterlinck: na casa de seu grande amigo, Frederico Nascimento, não resiste a
Desirs d’hiver Oraison (1894), de Serres Chaudes, e La chanson um agravamento de seu estado de saúde, já precário desde 1916, e,
219
parte 7 – música
cercado por amigos e discípulos, falece em 16 de outubro de 1920. Segundo a pianista Berenice Menegale, que estreou sob a re-
O musicólogo Luiz Heitor relata através da testemunha ocular de gência de Bosmans aos 11 anos, o maestro era um grande impro-
seu passamento, Otávio Bevilacqua, que ele cantava na hora da visador, capaz de criar em tempo real pequenas obras à maneira
morte, tal como fizera José Maurício Nunes Garcia. de compositores do passado. Oiliam Lanna, compositor que foi
aluno e amigo de Bosmans, relata ter sido ele um homem de
Um compositor marinheiro e um músico-viajante grande cultura não só musical, mas também no campo das artes
do século XX em geral, possuindo uma imensa biblioteca. Foi amigo de artistas
plásticos, como Guignard e Chanina – que pintou um retrato seu
Entre os compositores belgas que estiveram no Brasil no século – e de compositores seus contemporâneos, como Edino Krieger,
XX, destacam-se dois nomes cujo trabalho se encontra mesclado, Francisco Mignone e, principalmente, Radamés Gnatali. Sua vida
de forma particular, às duas culturas. Trata-se do compositor e re- de marinheiro teria contribuído para seu interesse em outras cul-
gente Athur Bosmans e do compositor de música eletroacústica turas e influenciado no colorido de suas obras. Embora não fosse
Leo Kupper. um compositor nacionalista, no sentido estrito da palavra, durante
Arthur Bosmans nasceu em Bruxelas em 1908. O fato de não sua estada em Portugal compôs a Sinfonietta Lusitana, baseada
ter seguido cursos regulares de música não o impediu de participar, em cantigas tradicionais portuguesas. Oiliam ressalta o papel de
já aos 12 anos, como violinista, da Orquestra Sinfônica de Mons. Bosmans como divulgador da obra de compositores belgas no Bra-
Além do violino, tocava com grande desenvoltura piano, clarine- sil (Peter Benoit, Joseph Jongen, Marcel Poot e Gaston Brenta),
te e trompa. Em 1926, ingressou na Marinha Belga, na qual per- assim como o de compositores brasileiros no exterior.
maneceu por cinco anos, ao fim dos quais resolveu abandonar a Os títulos de suas obras sugerem um certo humor e mesmo al-
carreira militar para se dedicar unicamente à música. Estudou por guma irreverência, como La vie em bleu, O cavaquinho bem tempe-
conta própria composição e regência e, em 1933, recebeu o Prê- rado, Clavinedoctes, Valsa...da outra esquina – para violão –, segun-
mio Cesar Frank, em Liège, por sua rapsódia La rue, o que o tornou do o violonista Edelton Gloeden, uma homenagem a Mignone.
conhecido em todo o país e propiciou a edição de várias obras suas. Sérgio Freyre, Alice Belém e Rodrigo Miranda, que o estuda-
Durante a Exposição Mundial de Bruxelas, em 1935, foi or- ram mais profundamente, admitem ter sido Bosmans um gran-
ganizado o Festival Arthur Bosmans, no qual apresentou várias de de admirador de Gershwin, Bartok e Ravel, podendo-se notar a
suas obras sinfônicas com grande sucesso. Nessa época, tornou-se influência desses compositores em sua rica e ao mesmo tempo
regente assistente e depois titular da Orquestra Filarmônica de clara sonoridade orquestral. A linguagem de sua obra, entretanto,
Antuérpia, tendo apresentado seu scherzo sinfônico James Ensor, despreza os experimentos das correntes de vanguarda pós-Scho-
Cymbalum para piano e orquestra e a suíte orquestral La vie em enberg, valendo-se de combinações politonalistas e timbrísticas
bleu. Em 1939, torna-se membro do conselho editorial da Revue como elementos de construção.
Musicale Belge e diretor do Ballet Bellowa. Arthur Bosmans casou-se com uma brasileira, Walkyria – que
Com a eclosão da Segunda Guerra, voltou à Marinha e, após mantém o acervo de suas obras – e naturalizou-se brasileiro em
uma operação no Canal da Mancha, chegou acidentalmente a 1954. Faleceu em Belo Horizonte em 1995.
Lisboa. Lá encontrou Darius Milhaud, que pretendia ir para os Boa parte do registro de suas obras feitas na Bélgica perdeu-se
Estados Unidos. Era o ano de 1940 e, através de Milhaud, con- durante a Segunda Guerra Mundial, com os bombardeios sobre
seguiu um visto para o Brasil. Aqui chegando, encontrou-se com Antuérpia e Bruxelas. No entanto, seu filho, Jaak Bosmans, tem
Villa-Lobos que o ajudou a integrar-se no meio musical do Rio de restaurado e digitalizado as gravações ainda existentes, trabalho
Janeiro. Nos dois anos seguintes regeu, deu aulas e compôs músi- complementado pela Escola de Música da UFMG, que tem rea-
ca para cinema e dança. Enquanto isso, suas obras continuavam lizado novas gravações de algumas de suas obras.
a ser apresentadas na Bélgica ocupada, nos Estados Unidos, no Leo Kupper nasceu em Nidrum, Bélgica, em 1935, e fez
Canadá e Uruguai. seus estudos de Musicologia e História da Arte nas Universida-
Em 1944, foi convidado a reorganizar a Orquestra Sinfônica de des de Liège e de Bruxelas. A partir de 1962, colaborou com
Belo Horizonte, como diretor artístico e regente estável. Transfe- Henry Pousseur no Studio Apelac, o primeiro estúdio de música
re-se então para Minas Gerais, onde exerceu grande atividade na eletroacústica da Bélgica. Foi diretor de sonorização da Rádio
vida cultural de Belo Horizonte. Em 1965, começou a lecionar e Televisão Belga, compondo trilhas sonoras para filmes e pro-
composição, regência e música de câmara na Escola de Música gramas de televisão. Em 1967, funda o Studio de Recherches et
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), tendo se apo- de Structurations Électroniques Auditives, em Bruxelas, no qual
sentado em 1980. realiza uma série de experiências relacionadas à música e à cria-
Nos anos 1960, Bosmans realizou várias turnês na América ção sonora, como Música Digital Pública: realizações de músi-
Latina e Europa e gravou com a Orquestra da Rádio e Televisão cas coordenadas pelo público ou autoestimuladas por máquinas
Belga várias de suas obras. Em 1975, conquistou o primeiro prê- que engendram um ambiente sonoro complexo, através de um
mio do 7º Concurso Internacional de Composição da Académie grande número de fontes sonoras (na Bienal de Veneza, em 1987,
Internationale de Lutèce, em Paris, com sua Toccata para piano. até 350 canais de áudio).
220
música clássica
A partir de 1977, estuda a divulgação da música no espaço, Os materiais vocais da terceira obra, Anamak, foram criados a
através da construção de quatro cúpulas sonoras (Roma, 1977, partir de temas musicais de índios do Brasil, recolhidos por viajan-
Avignon, 1979, Linz, 1984, Veneza, 1987). A maior delas foi a tes e antropólogos, desde o século XVI, completados por blocos
construída para o festival “Ars-Electronica”, em Linz, Áustria, com vocais estimulados por trechos musicais gravados entre os Kaiapó
104 canais de áudio. por Fuesrt, Love, Rosseels e Verswijwer. No entanto, Kupper ex-
Cria, ainda, máquinas musicais de fabricação original como plica, “o conjunto das vocalizações, das fonemizações e das arti-
o Game (Gerador Automático de Música Eletrônica) por estimu- culações musicais é absolutamente abstrato. É uma sequência de
lação vocal (analógica e numérica, depois MIDI), 1970-1980; os invenções a várias vozes, a polifonização da voz de uma mesma e
Autômatos sonoros, estimulados pela voz humana, 1970-1976; os única cantora”.
Muvis: instrumento de visualização espectral da música, 1976-78; Rezas populares do Brasil teve a colaboração do baixo brasi-
o Kinéphone: instrumento musical com teclado para a interpreta- leiro Eduardo Janho-Abumrad. A maior parte delas são rezas de
ção da música no espaço através de cúpula sonora, 1983. cura coletadas por Núbia Pereira de Magalhães Gomes e Edmil-
Realiza, a partir de 1968, uma longa série de concertos de mú- don de Almeida Pereira, em Minas Gerais, nas décadas de 1970 e
sica eletroacústica na Europa, nas Américas e no Oriente, com 1980. Foram ainda utilizados cantos fúnebres recolhidos por Al-
solistas e grupos musicais. Tem sido, durante toda sua vida, um ceu Maynard de Araújo, no Ceará, na década de 1940, e cantos
viajante incansável, se interessando pela música dos lugares que religiosos populares recolhidos por mim em Cananeia, litoral sul
visitou, principalmente o Irã – cuja cultura influenciou sua espi- de São Paulo, em 1982. Segundo Kupper, “uma seleção delas foi
ritualidade e sua arte – e o Brasil. fonemizada e parcialmente cantada. Os sons gerados pelo baixo fo-
Em 1978, vem pela primeira vez ao Brasil, convidado pelos ram posteriormente, transformados por máquinas eletrônicas, com
organizadores da 8ª edição dos Cursos Latino-Americanos de Mú- o intuito de criar seu próprio acompanhamento. Uma das técnicas
sica Contemporânea, realizados cada ano em uma cidade latino-a- utilizadas foi a da granulação sonora, realizada por um programa
mericana, no caso, São João del Rei, em Minas Gerais. Em 1981, criado pelo compositor belga e professor de arte digital da Universi-
é convidado pelo compositor Gilberto Mendes a participar do dade de Mons, Todor Todoroff. Este programa permite armazenar
Festival Música Nova com o Grupo de Música Fonêmica e Vocal na memória do computador um pequeno fragmento do original e
do Studio de Recherches, do qual faziam parte o baixo Paul Gé- trabalhá-lo. Todos os sons da obra foram extraídos da declamação
rimont e o ator Jean-Claude Frison. e do canto dos intérpretes”.
Conheci Leo Kupper durante o festival. Desse encontro nas- Essas quatro primeiras peças foram reunidas no CD Ways of
ceu uma colaboração artística que completa 30 anos, em busca the voice, e deram origem ao espetáculo do mesmo nome, ence-
de uma linguagem vocal que pudesse ser, ao mesmo tempo, nado pelo diretor brasileiro radicado na Bélgica, Caio Gaiarsa,
abstrata e afetiva e que servisse de matéria-prima para posterior com imagens digitais em movimento criadas por Alessandra Ga-
elaboração eletroacústica. Testemunho desse trabalho são cinco lasso, Eduardo Campos e Chico Escher. O espetáculo foi apre-
obras nas quais temas da cultura brasileira são tratados através sentado em São Paulo, no Sesc Vila Mariana, no Centro Cultural
dos procedimentos de música fonética, desenvolvidos anterior- do Museu Reyna Sofia, em Madri, e no Festival Au Carré, em
mente por Kupper. Mons, Bélgica.
As duas primeiras, Amkea e Annazone, necessitaram de uma A última das obras realizadas em conjunto com Leo Kupper,
longa fase de exercícios e procedimentos microtonais oriundos de Kamana, parte de um universo afro-brasileiro, através dos vissun-
novas técnicas vocais e respiratórias a partir dos quais brotaram gos (antigos cantos de trabalho das minas) recolhidos por Ayres
grafismos vocais, gestos sonoros, miragens resultantes da livre as- da Matta Machado, em São João da Chapada, Minas Gerais, na
sociação com insetos, pássaros, bichos do mato, árvores e pedras. década de 1920. No caso dessa obra, o processo usado para sua
Segundo Kupper, “Amkea se exprime em linguagem absolutamente composição não foi o de polifonia, mas o de multifonia, represen-
abstrata, não tendo pois – como resultado – nenhuma significação tada por sete diferentes vozes superpostas colocadas num eixo ho-
nacional, internacional ou figurativa: fonemas, fonátomos, alofo- rizontal e integra voz, sons instrumentais de diferentes culturas,
nes, vocalizes, gritos e chamados constituem a essência da lingua- sons eletroacústicos e sons eletroacústicos originários da voz trata-
gem abstrata mas lembram em suas entoações, seus timbres e seus da. De acordo com Kupper, “embora vários sons como os de metal,
ritmos, a origem brasileira da cantora”. madeira, e sons eletrônicos sejam oriundos da vida contemporânea,
Em Annazone, Leo Kupper mescla materiais sonoros criados através dos processos compositivos, se tornam referência a aspectos
por mim a pios de pássaros e sons eletrônicos. Comecei partindo inerentes aos reinos animal e vegetal”. A estreia dessa obra se deu
da memória de cantos de pássaros, zumbidos de insetos, coaxar em Bruxelas, no encerramento da Semaine du som, na grande
de batráquios, passando a uma linguagem de invenção da sono- sala do complexo cultural Flagey no dia 27 de janeiro de 2013.
ridade de flores, plantas e borboletas. A obra é enquadrada por Leo Kupper veio inúmeras vezes ao Brasil e vários técnicos,
um acorde sinfônico, no começo e no fim dela, como se “ouvís- compositores e cantores brasileiros participaram de suas produções
semos” um quadro no qual a sonoridade de uma mata imaginária ou estagiaram em seu estúdio, em Bruxelas, ao lado de artistas
se desenrola. belgas. Além dos já citados, não posso deixar de lembrar nomes
221
parte 7 – música
de compositores como Helio Sizkind, Vania Dantes Leite, Rodol- CORREA, Sérgio Alvim. Alberto Nepomuceno: Catálogo geral. Rio de Janeiro: Funarte,
fo Caesar, Vanderlei Lucentini e cantoras como Kátia Guedes e 1985.
DIAS, Odette Ernst. Mathieu-André Reichert: um flautista belga na Corte do Rio de Janeiro.
Cláudia Todorovo, o que o torna um verdadeiro promotor de in- Brasília: Editora UNB, 1990.
tercâmbio musical entre o Brasil e a Bélgica. FORSTER, Maria Thereza Diniz. Oliveira Lima e as relações exteriores do Brasil: o legado
de um pioneiro e sua relevância atual para a diplomacia brasileira. Brasília: Fundação
Alexandre de Gusmão, 2011.
Anna Maria Kieffer é musicóloga, pesquisadora e cantora lírica FREIRE, Sérgio / BELÉM, Alice / MIRANDA, Rodrigo. Do conservatório à escola. Belo
brasileira, participou de turnês por Alemanha e França como mez- Horizonte: Editora UFMG, 2006.
zosoprano. Estudou musicologia na década de 1960 e lançou vários REZENDE, Carlos Penteado de. Tradições musicais da Faculdade de Direito de São Paulo.
São Paulo: Edições Saraiva, 1954.
CDs, entre os quais Ways of the Voice (1999), produzido na Fila- CDs/CDs-livros
délfia, com o compositor belga Leo Kupper, reunindo rezas popula- KIEFFER, Anna Maria. In: Encarte do CD A. Nepomuceno-canções. São Paulo, AKRON,
res do Brasil carregadas de heranças múltiplas da Ásia, da Europa 1997.
KUPPER, Leo. In: Encarte do CD-livro Ways of the voice. São Paulo, AKRON, 2004.
e da África. É responsável pela trilha sonora do filme O Retorno, KUPPER, Leo. In: Encarte do CD Digital voices. Nova York, POGUS, 2012.
de Rodolfo Nanni.
Referências Eletrônicas
Referências DEWILDE, Jan e FCQUAERT, Annelies. Bosmans, Arthur: Biographie. Disponível em:
AZEVEDO, Luiz Heitor Correia de. 150 anos de música no Brasil (1800-1950). Rio de <http://www.svm.be/content/bosmans-arthur?display=biography&language=en>. Acesso
Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1956. em: 15 jan. 2013.
ANDRADE, Ayres de. Francisco Manuel da Silva e seu tempo (1808-1865). Rio de Janeiro: FRÉSCA, Camila. Uma gênese do violino no Brasil: a escola franco-belga e o desenvol-
Edições Tempo Brasileiro Ltda., 1967. vimento do violino como instrumento autônomo. Disponível em: <http://www.pos.
CERNICCHIARO, Vincenzo. Storia della musica nel Brasile: dai tempi coloniali sino ai eca.usp.br/sites/default/files/jornada_discente/ppgmus/camila_fresca-mus_etno.pdf>.
nostri giorni (1547-1925). Milano: Fratelli Riccioni, 1926. Acesso em: 07 fev. 2013.
222
música clássica
223
parte 7 – música
224
música popular brasileira
MPB
Daniel Achedjian
225
parte 7 – música
os grandes clássicos da MPB, abandonando tudo que era cantado Oscar Castro-
-Neves e Toots
em inglês.
Thielemans,
Entre 1988 e 1994 foi também a época do festival “Viva Bra- que gravou
sil” na Bélgica e dos cartazes de sonho que reuniam, entre muitos três álbuns em
outros, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, João homenagem
Bosco, João Gilberto, as jovens Marisa Monte e Daniela Mercury, à música
brasileira.
mas também Toninho Horta, Egberto Gismonti, Hermeto Pas
coal, Nana Vasconcellos.
Como um digno filho do rock e da soul, eu me abri rapidi-
nho aos outros estilos, de influências mais claramente estrangeiras,
muitas vezes misturados aos ritmos e harmonias do Brasil, para me
dar conta que a riqueza implantada musicalmente naquele país
continente não tinha equivalente no mundo.
Se eu estudava com paixão e compulsão mais de um século de
história da música popular brasileira (me levando a adquirir mais
de dez mil CDs), eu vivia igualmente com intensidade, através
de minhas inúmeras viagens durante os anos 90, uma das décadas
mais ricas e produtivas do século XX no Brasil.
O aparecimento do Mangue Beat de Pernambuco, a afirmação
nacional da música axé de Salvador, Bahia, o cenário rap de São
Paulo e Rio de Janeiro, o amadurecimento da música eletrônica,
a bossa lounge na Europa; o nascimento de uma nova geração de
cantoras compositoras como Adriana Calcanhotto, Marisa Monte,
Zélia Duncan, Fernanda Abreu, Cassia Eller, Ana Carolina; uma bém artistas da novíssima geração, como Rodrigo Campos, Tiê,
chegada importante de artistas carismáticos vindos do Nordeste Rodrigo Bittencout, Sílvia Machete, Mariana Aydar, Cris Aflalo,
como Lenine, Zeca Baleiro, Chico César; a consolidação do rock Verônica Ferriani e Chico Saraiva da nova cena independente de
nascido nos anos 80 (Barão Vermelho, Legião Urbana, Paralamas São Paulo. Em suma, por volta de uns 200 nomes, conhecidos e
do Sucesso, Titãs) e os primórdios muito importantes do grupo menos conhecidos. Pode-se dizer que, geralmente, foram encon-
Los Hermanos no Rio de Janeiro que influencia toda a cena in- tros bem à vontade, informais (embora todos gravados) e com di-
dependente e indie carioca até os dias de hoje. Na realidade, tra- reito, de vez em quando, a sessões privadas de música.
tava-se de uma década que após ter visto o nascimento do rock Tudo isso devido à confiança que me foi dada pelos produto-
influenciado pelo cenário inglês, e a chegada da MTV Brasil, em res, presidentes de selos, assessores de imprensa e artistas que ha-
1989, mais uma vez conseguiu integrar magnificamente os estilos viam tomado conhecimento do site Tropicália MPB – precedido
estrangeiros às raízes brasileiras. pelo blog “Art et Musique Populaire Brésilienne” –, redigido em
Após ter feito uma pausa na carreira jornalística, retomei mi- duas línguas, francês e português, onde também se encontram os
nhas atividades no início dos anos 2000, atuando em diferentes podcasts dos programas transmitidos na Rádio Judaica Bélgica.
rádios independentes, ainda hoje na Rádio Judaica Bélgica (90,2 Os cadernos culturais de jornais importantes como o finado
FM), na qual tive a liberdade de produzir programas de duas a Jornal do Brasil (que ainda existe na internet), O Dia e O Globo,
três horas semanais. O que não é muito comum, diria até mesmo me honraram publicando alguns artigos sobre meu trabalho, e boa
inédito, em francofonia. O programa foi muito tempo ao ar no parte das minhas resenhas de discos e de shows encontram-se nos
domingo à noite, em seguida, na segunda-feira, enquanto, atual- sites oficiais dos artistas e das gravadoras.
mente, ele é gravado no Rio de Janeiro, e colocado no ar, sendo Há dois anos resido, principalmente, no Rio de Janeiro, e é
várias vezes retomado em diferentes horários, em função da atua- com um prazer levemente dissimulado que continuo, como Her-
lidade frequentemente perturbada, típica da natureza da estação. cule Poirot, a corrigir com malícia aqueles que acham que sou
Tendo aperfeiçoado meu português do Brasil, pude retomar o francês. Pois se a Bélgica é um país tão complexo para ser defini-
exercício das entrevistas e, foi com bastante surpresa que vi as por- do, ela possui ao menos a vantagem, devido a isto, de escapar das
tas se abrirem com entusiasmo. Tive a oportunidade de encontrar, ideias preconcebidas. Verdade seja dita, continuo a pensar que é
para longas conversas, artistas como Paulinho da Viola, Gilberto particularmente confortável dizer que se é belga no Brasil.
Gil, Gal Costa, Martinho da Vila, Beth Carvalho, Francis Hime,
Edu Lobo, Roberto Menescal, Carlos Lyra, João Donato, Alceu Daniel Achedjian, doutor em História da Arte, se apaixonou pela
Valença, Ney Matogrosso, Ed Motta, Frejat, Marina Lima, Arnal- música e arte popular brasileira. Constituiu uma grande coleção em
do Antunes, Zeca Baleiro, Lenine, Paulinho Moska, Adriana Cal- Bruxelas, onde, como radialista, mantém o programa “Tropicalia”
canhotto, Zélia Duncan, Los Hermanos, Leila Pinheiro, e tam- na Rádio Judaica.
226
música popular brasileira
227
parte 7 – música
Em 1990, Catherine recebeu, junto com Stan Getz, o Bird Pri- dos e vocais), Charles Loos (piano e teclados), Jan de Haas (ba-
ze, durante o Northsea Jazz Festival. Catherine compartilhou seu teria, percussão e marimba) e Henri Greindl (baixo), novamente
amor pela Bossa-Nova repetidamente no palco com Toots Thie- com influências musicais brasileiras.
lemans. Por exemplo, em 1993, durante um concerto na Flanders Finalmente, o terceiro projeto de Greindl, Henri Greindl
Expo, em Gand, com Thielemans e amigos. No seu primeiro ál- Quintet, tem como membros Daniel Stokart (sax, flauta), Pierre
bum solo, Guitars Two (2008), Catherine interpretou igualmente Bernard (flauta), Theo de Jong e José Luis Montiel (baixo), Luc
números do guitarrista brasileiro Guinga, de Stephane Grappelli Vanden Bosch (bateria, percussão) e Henri Greindl (violão). Du-
e de Fiszman Nicolas, além de composições originais (tal como rante suas apresentações no Brasil, Greindl foi acompanhado por
a música acústica Lendas Brasileiras). Catherine voltou repetida- músicos locais: Vitor Alcantara e Josué dos Santos (sax e flauta),
mente a São Paulo, como em 2010, com interpretações de Guin- Zeli (contrabaixo) e Alexandre Damasceno (bateria).
ga e Pixinguinha, juntamente com a orquestra Jazz Sinfônico no Além disso, Greindl fundou em 1997 o selo independente
Auditório Ibirapuera. ‘Mogno Music’, que produziu as obras discográficas de seus dife-
Two Man Sound foi um grupo belga pop constituído pelos rentes grupos. Na compilação Inspiração Brasil (2005), Greindl
músicos Lou Deprijck, Sylvain Vanholmen e Yvan Lacomblez. tocou ao lado de músicos brasileiros ou outros músicos que se
Tanto Deprijck como Vanholmen já tinham ganho alguma fama inspiraram na música brasileira (Tom Jobim, Benoit Mansion,
como produtor musical: o primeiro com músicos como Liberty Ronaldo Boscoli, Weber Iago, Pixinguinha, Baden Powell, Jose
Six, Lou & the Hollywood Banana’s e projetos como Viktor La- Eduardo Gramani e Charles Loos). Os rendimentos do álbum
zlo, Plastic Bertrand; o segundo com The Wallace Collection, foram inteiramente transferidos à comunidade Corumbau, no Es-
Octopus, e mais tarde com The Machines, Jo Lemaire & Flouze. tado brasileiro da Bahia.
A banda registrou seus maiores sucessos na década de 1970 com O saxofonista John van Rymenant gravou o álbum Memory
influências de disco, samba e bossa-nova. Mais elogios o trio re- Stop (1982) durante oito meses de estadia no Brasil, em 1979,
cebeu com as canções “Copacabana” (1971), “Charlie Brown” período no qual mergulhou no mundo dos sons brasileiros, crian-
(1976) e “Que Tal América” (1979). O medley “Disco Samba”, do do uma fascinação pelo berimbau, que usou extensivamente nas
álbum homônimo (1978), por outro lado, se tornou um grande gravações e depois tratou eletronicamente no estúdio em Bruxe-
sucesso na Europa no início dos anos 1980, com posições altas las. O LP é classificado como de gênero de música eletroacústica,
nas diferentes euro-charts entre 1983 e 1986, depois do grupo já contendo músicas como “Electro Samba” e “Capoeira”.
ter parado de atuar. Desde 1996, Buscemi (pseudônimo de Dirk Swartenbroekx)
Henri Greindl, além de ser compositor, arranjador, produtor ganhou fama com seus álbuns remix sob influência brasileira,
musical e engenheiro de som também ativo como músico (violão, chamados Late Nite Reworks, incluindo remixes no estilo bossa-
baixo, cavaquinho), trabalhou com numerosos músicos de jazz -nova de canções de músicos brasileiros como Marcos Valle, Ro-
no Brasil (Marimbanda, Caito Marcondes, Marito Correa, Léa salia de Souza, e Electro Coco. Juntamente com sua banda Squa-
Freire). Greindl, casado com a curadora de exposições brasileira dra Bossa (trompetista Sam Versweyveld, baixista Hans Mullens e
Cristina Barros Greindl, foi membro fundador das bandas Cheiro baterista Luuk Cox), DJ Buscemi atuou repetidamente em muitos
de Choro, Parfum Latin, e Henri Greindl Quintet, todas influen- festivais de grande dimensão na Bélgica bem como no exterior.
ciadas pelo gosto musical de Greindl por bossa-nova, jazz e rock Finalmente, Ziriguiboom, um sub-rótulo da editora discográ-
progressivo dos anos 1970. fica belga Crammed Discs, foi fundado em 1998 por Vincent Ke-
O grupo Cheiro de Choro é composto por Daniel Stokart (flau- nis em colaboração com o produtor musical brasileiro Beco Dra-
ta, sax), Anne Wolf (piano), Tonio Reina (bateria e percussão) e noff. A editora foca em sons brasileiros inovadores que mesclam
Henri Greindl (violão, baixo eletrônico, contrabaixo, cavaquinho). tradição e pop com elementos eletrônicos, sendo a bossa-nova
O flautista brasileiro Beto Cavalcante (Heriberto Cavalcante Porto uma parte importante dessa mistura. Músicos internacionalmente
Filho) também foi envolvido na fundação do grupo em 1990. Des- conhecidos como Bebel Gilberto (cujo álbum Tanto Tempo, de
de então, Cheiro de Choro tocou em vários festivais na Bélgica e 2000, criou um avanço nacional), Trio Mocotó, Celso Fonseca,
no Norte da França (Viva Brasil, Belga Jazz Festival, Bruxelas Jazz Bossacucanova, Zuco 103, Cibelle, DJ Dolores, Apollo Nove e
Rallye, entre outros), com interpretações de Tom Jobim, Egber- Suba são alguns dos nomes famosos. Ziriguiboom já editou mais
to Gismonti, Hermeto Pascoal, misturando o jazz com diversas de 30 CDs e compilações, tais como Samba Soul 70, Brasil 2 Mil:
variantes da música brasileira, tais como samba, frevo, marcha Soul Of Bass-O-Nova) e Ziriguiboom: The New Sound Of Brazil.
rancho, partido alto, chorinho, maracatu, xote e baião. Depois
do primeiro álbum, Chorinho para Tina (2001), a ênfase passou Bart Vanspauwen, graduado em Estudos Literários e em Estudos Cul-
do choro ao jazz. turais pela Universidade Católica de Lovaina, é Mestre e Doutorando
O segundo projeto musical de Greindl, o grupo Parfum Latin, em Etnomusicologia pela Universidade Nova de Lisboa, com pesquisa
é composto por Pierre Bernard (flauta), Anne Wolf (piano, tecla- sobre a integração de músicos migrantes de língua portuguesa.
228
música popular brasileira
229
parte 7 – música
(Vooruit), Mol (Het Getouw), Bruges (De Nacht) e em festivais em 2007, no Cactus Festival (Bruges), desta vez sob o nome de
de projeção nacional como Afro Latino, Polé Polé, Gentse Feesten, DJ Dolores & Aparelhagem.
Dour e Dranouter. Aliás, vários outros artistas e bandas pernambucanas passaram
Para o próximo álbum, Tráfego, que foi lançado pela editora por Sfinks Festival, como Chico Science e Nação Zumbi (1995),
belga Crammed Discs (que também editou discos de outros mú- Mestre Ambrósio (1996), Lenine (2000), Mundo Livre S/A (2000),
sicos brasileiros, como Zuco 103, Bebel Gilberto, DJ Dolores e Cordel do Fogo Encantado (2001), Silvério Pessoa, ex-cantor do
Suba), Think of One voltou para o Brasil. O programa Cucamon- grupo Cascabulho (2003) e a Banda Eddie (2006).
ga novamente transmitiu um telefonema semanal com o grupo a Diversos grupos de maracatu e outros desfiles tradicionais tam-
partir de Recife e trechos musicais exclusivos. bém chegaram até Sfinks, entre eles: Maracatu Nação Pernambu-
Participaram do álbum novamente Dona Cila do Coco (voz), co (1998, que também tocou no Festival Couleur Café no mesmo
Alê Oliveira, Lucie e Carolina de Renesse, Fernanda Boechat, ano), Maracatu Leão Coroado (2002), Maracatu Estrela Brilhante
Ganga Barreto, Sheyla Vidal e Cris Nolasco (backing vocals), (2005) e a Afoxé Iyê de Egba de Olinda (2006).
Ricardo Lourenço (violão), Sergio Lemos, Dom Carlos e Hugo O programa Cucamonga, entretanto, tentou construir uma
Carranca (percussão), David Bovée (violão, teclados, voz), Tomas ponte musical entre RecBeat e a Bélgica: o grupo belga Maden-
De Smet (baixo, teclados), Bart Maris (corneta, trompete), Bruno suyu na edição de 2010 de RecBeat, em Recife e São Paulo, e
Vansina (saxofone barítono), Eric Morel (saxofone), Jon Birdsong havia também grupos do Recife nos palcos do festival Gentse Fe-
(corneta, trompete), Marc Meeuwissen e Stefaan Blancke (trom- esten em Gand.
bone), Tobe Wouters (trombone, tuba), Michael Weilacher (ma- Finalmente, em 2011, foram programados vários atos musicais
rimba, vibrafone), Peter Vandenberghe (órgão Hammond), Pitcho de Recife no Europalia.Brasil em Bruxelas, do qual Zjakki Wil-
Bovée (efeitos de som) e Roel Poriau (bateria, teclados, triângulo). lems era o curador musical. Ficaram agendadas apresentações da
Think of One atuou como showcase na conferência musical Banda Eddie, DJ Dolores e Renata Rosa em Gand (na sala Han-
Porto Musical em março de 2006 no Recife. Na Bélgica, a ban- delsbeurs), Turnhout (Warande) e Amsterdã (Melkweg), que, no
da atuou nas principais salas de concertos de Bruxelas (Ancienne entanto, foram cancelados na última hora pela organização. Para
Belgique), Antuérpia (Petrol), Gand (Vooruit), Lovaina (Het De- outras atuações, como a de Siba em Bruxelas (Palácio de Belas
pot), Diksmuide (Ten Vrede), bem como em festivais multicultu- Artes), apareceram poucas pessoas, que também foi o caso de Re-
rais como Mano Mundo (em Boom) e Couleur Café (Bruxelas). nato Borghetti, Olivinho e Lulinha Alencar. Willems observou
Entretanto, outros músicos do Recife também vieram à Bél- que, embora houvesse grandes concertos de músicos brasileiros
gica. DJ Dolores e Orquestra de Santa Massa atuaram, em 2002, como CéU, Samba Chula de São Braz e Tom Zé, estilos musi-
nos clubes Nijdrop em Opwijk e 4AD em Diksmuide, em 2003 cais como maracatu, funk carioca, bossa-nova, DJ sets ou hip hop
no festival multicultural Sfinks (Boechout, perto de Antuérpia) e, foram pouco promovidos.
230
música popular brasileira
231
parte 7 – música
232
cinema atual
parte 8
Cinema e Televisão
233
parte 8 – cinema e televisão
234
cinema atual
235
parte 8 – cinema e televisão
O Brasil sempre interessou aos belgas, ávidos assistentes de um engajados e preocupados com os problemas sociais do nosso país.
projeto cinematográfico chamado Exploração do Mundo, criado Uma das grandes lacunas nessa série de depoimentos é Jean-
em 1950. No entanto, a maioria dos diretores cujos filmes são ain- -Pierre Dutilleux, eminente documentarista, particularmente in-
da hoje apresentados é francesa. teressado pelas tribos indígenas. Seu documentário Raoni, feito
Diversos antropólogos belgas se empolgaram pelo Brasil e fize- em 1978, muito premiado, foi candidato a um Academy Award
ram filmes como parte de seu trabalho – por exemplo, Dominique nos Estados Unidos. Dutilleux fez diversos filmes na Amazônia e
Tilkin Gallois, professora na USP, e Gustaaf Verswijver, curador escreveu um livro, Raoni, les Mémoires d’un Chef Indien, infeliz-
do Museu de Arte Africana de Tervuren, na Bélgica. Ambos tra- mente ainda não traduzido para o português.
balham com indígenas brasileiros. Outros cineastas belgas, tais Outra lacuna é a falta de um depoimento de André Dartevelle,
como Damien Chemin, Nicodème de Renesse e Nicolas Hallet, infelizmente doente e incapacitado de escrever. Dartevelle reali-
se radicaram no Brasil e construíram suas vidas lá. zou dois documentários que nos dizem respeito: um, nos anos de
Seguem depoimentos de algumas dessas pessoas, cineastas 1980, sobre o retorno do sindicalista José Ibrahim, refugiado na
experimentados ou principiantes. Nota-se que os documenta- Bélgica, ao Brasil; o outro, sobre a grande seca de 1984 no Nor-
ristas belgas que filmaram no Brasil tendem a ser politicamente deste e as revoltas da fome que dela resultaram.
236
cinema atual
A associação brasileira “Porto de Minas”, em Belo Horizonte, percurso de um jovem capoeirista de Belo Horizonte, que a “ex-
propunha não somente um complemento possível ao sistema edu- porta” para a Europa, que a seguimos em Bruxelas. Em terceiro
cativo, que o apresentava desde 1984, de uma maneira original, lugar, esse filme, que se debruça sobre a problemática das crian-
como propunha um novo estilo de colaboração dentro da socie- ças de rua no Brasil, não as mostra sob os tristes chavões, como
dade. O procedimento utilizava todas as características do setor frequentemente certos documentários e certas revistas os fazem,
informal – eficiência, entusiasmo, o método de “dar um jeito” –, isto é, como delinquentes, ladrões, drogados e assassinos. Essa dura
mas cultivava, no entanto, a ambição de consolidar sua estrutura, realidade não é iludida no filme, porém, esse aspecto não podia
a fim de assegurar a perenidade do projeto. ser considerado como a única verdade. Capoeira, Bel Horizon é,
Três eixos principais regeram a fabricação desse filme. Em nesse sentido, uma resposta a essa situação, e uma tentativa de
primeiro lugar, o aspecto de descobrimento que representa a ca- reequilibrar a informação.
poeira. Poucos estrangeiros, hoje em dia, conhecem o fenômeno Enfim, trata-se principalmente de um filme que nos faz ver
brasileiro, a sua origem e a sua evolução durante os séculos. Em protagonistas generosos e, sobretudo, portadores de uma ideia de
segundo lugar, o aspecto “retorno à nossa sociedade”, ou seja, de esperança. No mundo (audiovisual) no qual vivemos, feito, mais
que maneira as sociedades ocidentais eram e ainda são solicitadas do que no passado, de abundância e ebulição de imagens, preci-
pela capoeira. É por intermédio de seus praticantes brasileiros que samos e muito de imagens construtivas e positivas.
a encontramos, que a descobrimos, e, particularmente através do (Tradução Susana Rossberg)
O meu Brasil
Roger Beeckmans
237
parte 8 – cinema e televisão
238
cinema atual
239
parte 8 – cinema e televisão
Marc-Henri Wajnberg e Oscar Niemeyer. Um gesto arquitetural, para Niemeyer, devia se traduzir numa mensagem poética.
240
cinema atual
241
parte 8 – cinema e televisão
uma geração de pessoas conscientemente excluídas das grandes prestes a tirar-nos a vida para obter um par de tênis novos! Muito
decisões políticas de um país. ao contrário, os habitantes das favelas são formigas que permitem
Examinando mais de perto como Lamartine e o seu movi- ao gigante econômico se desenvolver, e não os marginais que se
mento, o MHHOB, se serviam da cultura como um “instrumento vê, todas as noites, nos programas sensacionalistas que seguem as
de transformação social”, me veio à mente as imagens de outro equipes de polícia. Eu ia de surpresa em surpresa. Evidentemente,
movimento nascido nos anos 1970, nos Estados Unidos, o Black vivemos situações de tensão, mas poucas, afinal, comparadas com
Panther Party. Só que estava acontecendo hoje, como herdeiro o que tínhamos imaginado.
espiritual, com o MHHOB, no Brasil. Eu tinha uma porção de perguntas, e devia achar elementos de
Foi na Bélgica que decidi realizar um filme sobre o compro- respostas na aventura documentária que iniciei. O hip-hop brasilei-
misso dessa juventude sofrendo de dor de justiça. O produtor, ro poderia, um dia, fazer parte da máquina política? Caso afirmati-
que eu tinha encontrado durante uma formação de escrita de vo, se tornaria um partido político tradicional? Ou: Lamartine veria
documentários, me propôs trabalharmos juntos no projeto, que o seu sonho se tornar realidade graças ao seu movimento, ou seja,
interessava. Após meses de escrita, de contatos e de encontros, che- um fator de melhora das condições de vida de milhões de pessoas?
gamos a um acordo. Tínhamos a opção de sermos acompanhados Confesso que encontrei, diante de muitas perguntas e dúvidas
por uma produção local, mas, por motivos de leveza de filmagem que eu tinha, respostas bem mais complicadas do que esperava.
e de discrição, preferi evitar essa possibilidade. Em todo caso, tive a sorte de ser testemunha privilegiada do desen-
Fiz as primeiras viagens sozinho, acompanhado, quando ne- volvimento do MHHOB, por ter obtido sua confiança. Continuo
cessário, por uma técnica de som brasileira. A ideia era ser ul- esperando, profundamente, que sua experiência tenha um alcance
tradiscreto, pois a maioria das filmagens ocorria nas favelas. No que vá além das fronteiras brasileiras, e que esse filme possa, mo-
entanto, não era por segurança pessoal, pois quando chegávamos destamente, contribuir para isso. Ele transmite as palavras destas
nesses bairros, ditos sensíveis pela imprensa, éramos muito bem pessoas “sem voz” e, sobretudo, oferece uma visão de uma parte
recebidos. Foi quando compreendi que a favela era composta de do Brasil muito pouco conhecida.
uma população de renda baixa, e não de bandidos de todo tipo, (Tradução Susana Rossberg)
242
cinema atual
des de Recife, atravessando Pernambuco, Ceará, Piauí, Maranhão, hapox, enquanto se formava uma turma itinerante, no Brasil, da
até chegar ao Fórum Social, em Belém, no Pará. No Pará, filmei exposição Rua na Rua.
um curta sobre a poluição causada pela indústria de alumínio na Hoje estou iniciando um novo projeto de arte social. Copa
área de Barcarena, em terras dos ribeirinhos. Com o jornalista Lie- Favela 2014 é um projeto de arte contemporânea, uma interven-
ven Verstraete, da televisão belga, fiz um curta sobre as crianças ção na cidade, que será fabricada sem dinheiro, sem ajuda es-
catadoras de lixo durante o carnaval. trutural – uma pesquisa sobre o poder das ideias na arte popular
O festival belga Europalia.Brasil me convidou para fazer um das comunidades. Também é uma plataforma para reunir tudo
projeto de arte com dez pequenos vídeos, Retratos Brasileiros. Rea- que tem a ver com a Copa do Mundo no Brasil e o povo da peri-
lizei isso através de uma oficina para o CCJ de Recife. Os vídeos fo- feria. Enquanto a FIFA está divulgando as boas notícias sobre a
ram mostrados durante quatro meses no Club Brasil em Bruxelas. Copa do Mundo 2014, Copa Favela 2014 vai mostrar as realida-
Na “Zwarte Zaal”, da academia de arte KASK, em Gand, con- des das comunidades e os impactos no meio ambiente. A ideia
videi o artista de rua brasileiro José Cleiton Carbonel para criar seria unir essa iniciativa ao projeto Welvaert, ao lado do museu
comigo uma instalação, Rua na Rua, no final de 2011. Em 2012 MAS, em Antuérpia.
continuei esse trabalho na galeria de arte contemporânea Crox O Brasil vive em mim, nunca me largará.
243
parte 8 – cinema e televisão
Icaro Alba e Coral Pastoreaux, coral infantil belga de música erudita, no Brasil.
244
cinema atual
Sem-Terra
Jean Timmerman
245
parte 8 – cinema e televisão
246
cinema atual
247
parte 8 – cinema e televisão
Chemin em 2005, produzido por Tarantula, na Bélgica, deixei de na que evoluiu para um projeto de doutorado em 2012. Por coin-
fazer o som para experimentar uma outra maneira de explorar o cidência, minha orientadora, Dominique Tilkin Gallois, seguiu
mundo, um outro ponto de vista. um percurso parecido: graduou-se em Antropologia na ULB, antes
Aos poucos, comecei a cultivar o desejo de retomar o caminho de migrar para o Brasil nos anos 1970, onde prosseguiu com um
deixado para trás e voltar para a Antropologia. Nas minhas andan- mestrado e um doutorado na USP, até tornar-se professora nessa
ças, descobri um Brasil indígena que eu desconhecia e, em 2009, universidade. Quanto a mim, a questão de saber de que lado ficar
entrei na USP com um projeto de mestrado em etnologia indíge- ainda não recebeu uma solução definitiva.
248
cinema atual
249
parte 8 – cinema e televisão
faltar aqui. Fogo, chama, calor, autoconfiança. A Bélgica te in- quem sou acalma essa recorrente dúvida. Na Bélgica aprendi quão
centiva pela dúvida e não pela confiança cega. E acho que isso se pequeno é o mundo, e como não há limite para o que podemos
reflete na atitude das pessoas, na integração do país como um todo fazer; basta querer. Na Bélgica me assumi artista, me comprometi
e na sua arte em geral. A Bélgica precisa se amar mais. comigo mesmo e aprendi a apreciar a jornada muito mais que o
Cheguei à Bélgica por amor e resolvi ficar por teimosia. Lar- seu destino. Tomei gosto pelas curvas da estrada, mesmo como o
guei um trabalho em ascensão no Brasil, na prestigiada O2 Fil- impaciente e inconformado que sou. Hoje eu sou “eu”. E parte
mes, onde era editor e assistente de direção, por amor a uma desse eu devo à Bélgica. E mais que um diretor de filmes, me con-
jovem belga que conheci no Rio de Janeiro e por amor à aven- sidero um artista, e me expresso nos meios que me convêm: foto,
tura. Pelo desejo de enfrentar o desconhecido. Pela curiosidade desenho, pintura e filme. No momento, flerto com os pincéis e as
infantil que pulsa dentro de mim e faz coro à minha ode ao “por telas enquanto bailo sobre as teclas que coreografam o que pode
que não?”. E de “por que não?” em “por que não?”, estou aqui algum dia se tornar o roteiro de um longa-metragem. Sou Diego
há seis anos. Santana Claudino. Baiano, brasileiro e bruxellois.
Às vezes me pergunto como seria a minha vida se não tivesse Link: www.selfishbastards.tumblr.com e www.vimeo.com/
tomado tal decisão. Mas a certeza de que certamente não seria dieego
250
cinema atual
Cena de A Verdade do Gato, de 2005, de Jeremy Hamers, sobre a cremação noturna nos campos de cana de açúcar.
de trabalho catastróficas: eram empregados por um recrutador rava como recursos da reportagem tradicional, infiéis a uma situa-
(chamado “gato”) que tinha um estatuto jurídico totalmente nebu- ção complexa. Contava com o que diriam as pessoas que ia filmar.
loso, com um salário proporcional ao metro de cana cortado, sem No entanto, apesar do aprendizado do português ter consti-
direitos sociais, com uma deterioração da saúde devido ao trabalho tuído uma parte importante da preparação para a filmagem pela
cotidiano num cinzeiro gigante. Uma condição que lembrava, sem equipe inteira, não tínhamos nos preocupado com a relação com
ambiguidade, o tratamento infligido aos trabalhadores das minas as pessoas que íamos encontrar. Estava unicamente inquieto com
de carvão imigrados na Bélgica alguns decênios antes. a liberdade que teríamos para filmar os trabalhadores labutando.
O projeto estava, pois, marcado por uma contradição que eu Porém, chegando lá, todas as portas foram abertas com uma fa-
achava interessante, e que deveria me permitir escapar ao regis- cilidade desconcertante. Tudo podia ser filmado. Nunca tivemos
tro maniqueísta da reportagem televisual clássica. A produção do que usar estratagemas, ou sermos discretos, para filmar o trabalho.
biocombustível oferecia ao Brasil uma independência financei- Passado nosso primeiro entusiasmo, percebemos que parecia
ra que achávamos de excelente agouro no cenário do primeiro impossível estabelecer qualquer comunicação com os sazonais.
mandato presidencial de Lula e, concomitantemente, a explora- Sempre sorridentes, dispostos a repetir um gesto quando julgáva-
ção da cana de açúcar ocorria em condições sociais e ecológicas mos necessário para a filmagem, brincalhões apesar do trabalho
amedrontadoras. extenuante, eles nos davam a impressão de estar interpretando
No anteprojeto do filme, que nos proporcionou algum finan- uma opereta num filme que tinha a pretensão de ser uma ópera.
ciamento, as coisas eram apresentadas de maneira muito simples. Uma primeira explicação dessa estranha situação nos veio de
O filme seria composto de imagens da colheita manual e da cre- nosso encontro, no terceiro dia de filmagem, com o diretor da
mação dos campos, ambas espetaculares (penso, hoje, que é o que exploração agrícola na qual filmávamos. Alguns minutos de con-
causa, em parte, o sucesso do filme nos festivais). Naquela época, versa informal foram suficientes para compreender que o homem
eu recusava toda Voice Over clássica e toda entrevista, que conside- nos considerava como poderosos meios de retransmissão publi-
251
parte 8 – cinema e televisão
Jeremy Hamers: “Sabemos que a história do documentário está repleta de tentativas de não levar em conta o abismo que separa a pessoa que filma daquilo que é filmado”.
citária vindos de uma Europa (onde tinha feito seus estudos) e durante a Mostra de Cinema de São Paulo, mencionava A Verda-
que fantasiávamos, então, a propósito dos biocombustíveis. Antes de do Gato como um dos filmes imperdíveis da seleção oficial.1
da nossa chegada, tinha encarregado os contramestres de anun- Essas duas recepções brasileiras de meu filme sintetizam bem o
ciar nossa visita aos cortadores. Eu nunca teria imaginado que abismo que minha ingenuidade tinha eliminado mesmo antes do
o peso das categorizações clichês pesaria tanto na nossa relação primeiro dia de filmagem.
com os sazonais. Atualmente penso que a filmagem de A Verdade do Gato no
A este primeiro mal-entendido, que nunca conseguimos des- Brasil repousou num conjunto de mal entendidos e de elementos
construir totalmente (mesmo em situação de entrevista anônima, a priori, com os quais um documentarista – certo de suas boas in-
a prudência dos trabalhadores era impressionante), juntou-se um tenções – pode se aproximar de um lugar, de uma situação e de
segundo problema. Frequentemente, diante da câmera, os traba- uma comunidade que lhes são estrangeiros. Sabemos que a história
lhadores paravam de trabalhar e assumiam uma pose. Retrospec- do documentário está repleta de tentativas de não levar em con-
tivamente, essa situação problemática (afinal, estávamos lá para ta o abismo que separa a pessoa que filma daquilo que é filmado.
filmar o movimento do trabalho) me parece totalmente interes- Alguns documentários camuflam esse problema para colocar a
sante, na medida em que espelhava minha própria ingenuidade. matéria filmada unicamente a serviço de um relato. Outros tentam
Evidentemente, eu não podia pedir a esses homens que fossem implicar o filmado para fazer um filme a duas, ou mais, vozes, na
naturais, que agissem como se eu não estivesse lá. tradição dos autores que revolucionaram o documentário etno-
A carga aviltante desse tipo de injunção contraditória e grotes- gráfico a partir dos anos 1950. Mais raros são os que colocam essa
ca é evidente. Hoje me parece que, adotando um comportamento relação no centro de sua obra, problematizando-a e tornando-a o
que eu achava absurdo e inadequado, esses homens responderam assunto do filme, sem jamais perder de vista a causa que defendem.
à minha intrusão ingênua no seu cotidiano de trabalhadores. Até Me parece que a filmagem de A Verdade do Gato deveria ter che-
hoje não tenho a certeza de ter podido estabelecer a origem de gado a tal problematização. Em vez disso, o filme se refugia numa
tal comportamento. No entanto, acompanhando um grupo de encenação que transforma o cortador numa silhueta, num robô,
cortadores a uma sessão de televisão que encerrava o dia, me pa- num escravo sem personalidade, para sublinhar, por falta de coisa
receu que o imobilismo que eles ofereciam à câmera, em certas melhor, a exploração humana que está na origem de um sistema.
circunstâncias, me lembrava as encenações extremamente petrifi- Nesse sentido, o filme não trai os trabalhadores da cana de açúcar.
cadas das telenovelas melodramáticas que consumiam em massa. Mas ele constitui somente uma primeira etapa no caminho de um
Mais tarde, quando o filme foi mostrado no povoado de Car- tratamento real do que é o encontro entre dois mundos.
mo do Rio Verde, onde tínhamos filmado, informaram-me que a (Tradução Susana Rossberg)
maioria dos cortadores tinha ficado desapontada com o documen-
tário, constatando que nele não acontecia nada. Quase no mesmo Notas
momento, Leon Cakoff, que eu tinha tido a sorte de encontrar 1. http://media.terra.com.br/imprime/0,,OI1220750-EI7774,00.html
252
cinema atual
Acima, esquerda: Iniciação de meu irmão Arnaud Halloy, antropólogo, num quarto de santo de um candomblé de Recife, registrado no documentário “Iyawo” (2004),
consumido por um incêncio. Experiência inédita de “antropoesia”. Acima, direita: Reynald Halloy.
253
parte 8 – cinema e televisão
A chegada da eletricidade nesse vilarejo isolado havia, igual- Em seguida filmei um documentário do qual não me restou
mente, permitido a chegada da televisão. Zé Lopes, mamulenguei- nem um rastro. Em 2005 “Iyawo” desapareceu num incêndio,
ro em Glória do Goita, nos falava de sua dificuldade para transmi- junto com meu apartamento, em Bruxelas. Era consagrado à ini-
tir sua arte à jovem geração, que preferia os jogos televisuais aos ciação de meu irmão Arnaud, antropólogo, num candomblé de
jogos de rua. Estelita, artesã que criava flores cortando garrafas de Recife. Filmado na intimidade do culto dos orixás, esse filme teria
Coca-Cola, sonhava também em comprar esse movelzinho lumi- sido pioneiro na história do cinema etnográfico, uma experiência
noso para ocupar suas noites. Severino sonhava em construir, para inédita de “antropoesia”.
sua esposa, uma casa de tijolo com uma cozinha equipada, como O grande roteirista desse filme era Ifá, o oráculo que, através
nas telenovelas. Ele morava numa casa de taipa, feita pelas suas do jogo de búzios, autorizaria, ou não, a filmagem das sequências
mãos, com terra que tinha achado sob seus pés. rituais. Meu irmão antropólogo, seu pai de santo e eu ficamos sur-
Nossa prospecção fotográfica e sonora se tornou um documen- presos, pois o oráculo nos abria todas as portas, até a do Quarto do
tário, “Ondas Surdas”, em torno da influência devastadora das Santo, onde nenhuma câmera nunca tinha penetrado. O segredo
mídias em meio rural. Depois de ter apresentado o filme no Bilan do culto talvez não devesse ser revelado; o mistério devia, e deve,
du film ethnographique, de Jean Rouch, eu quis voltar ao vilarejo provavelmente permanecer inteiro!
para mostrá-lo aos habitantes – na sua nova televisão. Talvez tivesse O Brasil foi o berço da minha inspiração musical e cinema-
sido uma maneira de despertar o olhar crítico deles. Infelizmen- tográfica, a terra onde nasci artista, entre encanto e desencanto.
te, a aldeia tinha desaparecido. Os habitantes tinham ido viver na (Músicas, filmes e fotografias na internet: www.reynaldhalloy.be)
cidade e suas casas tinham sido engolidas novamente pela terra, (Tradução Susana Rossberg)
como se nada tivesse, jamais, existido. Sem saber, tínhamos feito
um filme de arquivo sobre os últimos representantes de 300 anos Notas
de tradição oral em terras da cultura do açúcar. * Extrato de “Bluesette” de Toots Thielemans, The Brasil Project, Private Music, 1992.
254
cinema atual
negro, visto quando eu era adolescente, e do qual a música con- mundo, do envolvimento, no Brasil, de um jovem belga que partiu
tinuava a me trotar na cabeça. O filme falava, evidentemente, de com um ideal religioso, mas sobretudo social, e que, no Brasil, ia
amor, tendo como fundo o Rio, as favelas e o carnaval. se imergir na luta contra a ditadura, ao ponto de arriscar sua vida,
Essa grande manifestação, Brazil Export, me levou, igualmen- de ser preso, torturado, expulso. Foi um dos poucos livros que me
te, à Cinemateca de Bruxelas, onde descobri, com avidez, os fil- abalou e, num dado momento da minha carreira, eu quis fazer
mes de Glauber Rocha, Carlos Diegues, Ruy Guerra e Nelson dele uma obra de ficção cinematográfica. Me baseando nesse li-
Pereira dos Santos, todos inspirados no cinema social neorrealista vro, parti para o Brasil pela primeira vez.
italiano e na liberdade de tom da “nouvelle vague” francesa. Dois Meu desejo era preparar essa grande ficção, essa adaptação do
filmes me impressionaram particularmente: Deus e o Diabo na romance de Conrad Detrez. Mas, como se tratava de uma obra
Terra do Sol e Terra em transe. ficcional, igualmente muito autobiográfica, me pus, desde que
Foi também o que me orientou, alguns anos depois, a ler um cheguei no Rio, a buscar as pessoas reais sobre as quais o romance
escritor belga, além do mais de Liège, coroado com um prestigio- nos contava a história, a resistência, a oposição política, a coragem,
so prêmio literário, o Prêmio Renaudot, por seu livro L’herbe à a abnegação. Foi assim que pude encontrar vários companheiros e
brûler. O livro falava da Bélgica profunda, aquela que eu conhecia, camaradas de Conrad Detrez, que haviam compartilhado sua luta
aquela que fazia parte da minha identidade, a Bélgica das contes- e os sofrimentos da repressão. Foram eles que me fizeram desco-
tações políticas, aquela do conflito linguístico flamengo e valão, brir o Rio profundo, o das favelas, das prostitutas, das lutas polí-
aquela da divisão da Universidade de Louvain, na época Leuven, ticas, da emergência do que se tornaria o grande partido político
em duas universidades – enfim, o pão de cada dia deste pequeno no poder, o Partido dos Trabalhadores; mas igualmente o Brasil
país sujeito à guerras étnicas de baixa intensidade. Mas o livro fa- dos grupos de traficantes de drogas que reinavam sobre os bairros
lava, igualmente, de um envolvimento num país dito do terceiro pobres, das prostitutas organizadas em sindicatos, dos padres bra-
255
parte 8 – cinema e televisão
256
cinema atual
Heron Ferreira diante do Museum of Modern Art. Cartaz de “Esse pequeno vislumbre”, de Heron Ferreira.
257
parte 8 – cinema e televisão
possível da realidade, sem a necessidade de lidar com zoom re- Cartaz de “Le meme chapeau que
toi”, de Heron Ferreira.
moto. A realidade é mais “real” quando estamos próximos dela.
Nosso primeiro filme juntos aconteceu em junho de 2006.
Gigi veio me visitar em Francorchamps, no sul da Bélgica, per-
to de Verviers, onde ocorrem as corridas de automóvel. Era um
dia ensolarado, o segundo dia do verão. Estava levantando uma
graninha extra, trabalhando como garçom. O restaurante tinha
um belo lago redondo no centro. Estava quase na hora de abrir o
serviço do jantar quando um cozinheiro me pede para ajudá-lo.
Era para preparar um esquentador de pratos, no qual um gel-com-
bustível era utilizado para manter a comida quente. Coloquei a
quantidade a olho e tentei acender e nada. O cozinheiro me disse
que era necessário colocar mais gel no copo para que o gel-com-
bustível permanecesse durante todo o jantar. Sinto um frio que
me atravessa, mas sigo suas ordens. Quando viro o galão de três
litros a flama sobe e explode no meu rosto. Só tenho o reflexo de
levantar a cabeça e de me jogar no lago. A partir de lá, muita dor, noite de embriaguez: Gigi Mette, napolitano, Heron Ferreira,
o fim do verão, e o nascimento de um filme sobre meu acidente, brasileiro, e Nikola Buric, servo-bósnio. Naquela noite nasce um
Le Même Chapeau Que Toi (2007), Prêmio Especial do Juri no curta-metragem que conta a história de um menino da Sérvia,
Festival CinEsquemaNovo 2007. na verdade a história de muitos jovens sérvios. O filme rodou o
Anoto no cartaz do filme: “Vítima da explosão de um esquen- mundo e foi premiado em 2010, em Belgrado. Após o festival, foi
tador de pratos, Heron Ferreira é queimado em segundo e tercei- guardado na videoteca nacional de Belgrado para lembrar que a
ro graus no rosto, pescoço e mãos. Para não cair no desespero e Sérvia esteve um dia fora do espaço Shengen (aderiu em 2009).
em depressão, decide filmar o que aconteceu com ele. As trocas Em fevereiro de 2009, fui convidado pela jornalista belga Ma-
de curativos e os cuidados diários, um encontro nos corredores rie-Martine Buckens para acompanhá-la na pesquisa para seu do-
do hospital e sua recuperação vão ajudar a recuperar a esperan- cumentário, Sementes, na Amazônia. Em Manaus, entrevistamos
ça e a confiança.” escritores, responsáveis ambientais, artistas e ribeirinhos. Seu fil-
O pequeno Elias e seu pai, o incentivo da doutora Anne Pier- me questiona a relação do homem com a natureza e as reservas
lot e de sua equipe, o apoio da família e o trabalho conjunto com ambientais, das quais o homem que ali vive deve se retirar para
Gigi Mette na câmera e na edição foram fundamentais na reali- preservar a natureza.
zação deste filme. No mesmo ano, em Paris, entrevistamos Franz Krajberg, que
Em setembro de 2006, ingresso na Académie de Dessin et Arts nos falou da sua fuga do ser humano, da guerra e de seu re-nasci-
Visuels de Molenbeek Saint-Jean, Bruxelas, em Videografia, onde mento quando conheceu o Brasil e a floresta. Foi emocionante.
estudo durante dois anos. O interessante desta escola é que você é Em meados de março de 2010, fui convidado pela Associação
quase forçado a ter o seu próprio projeto, a descobrir o seu olhar Vision e por ZinTV para fazer um filme sobre um grupo de jovens
sobre o mundo. O singular dentro do plural. Aprendi muito, tive de Bruxelas, de origem marroquina, que partiriam para Quebec
cursos com Thierry Zeno sobre crítica, e com Jean Timmerman para aprender teatro e improvisação. Através dessa viagem eles
sobre a importância do som. descobrem um país, uma cultura e aprendem a arte do entreteni-
Em junho de 2007 conheço Jean-Pierre e seus companhei- mento. Além da improvisação e, sobretudo, da troca, a comunica-
ros. Eles vivem em autogestão nas bordas do Canal Saint-Mar- ção entre os jovens está no centro do projeto. O filme, rodado em
tin, na décima circunscrição administrativa de Paris, desde 2006. Bruxelas, Montreal e Nova York, se chama Au Coin de Ma Rue
Exigem a garantia dos direitos fundamentais, o monitoramento (Na Esquina da Minha Rua).
da saúde em todos os acampamentos de Paris e a existência de Nosso coletivo de autoproduções audiovisuais, Não Tem Zoom,
um acampamento permanente, assim como o direito de viver de procura contar fragmentos da realidade. O desejo de experimen-
uma forma diferente. Após o encontro com Marianne Col nasce tar, aprender, participar e criar comparações tem muito a ver com
um fragmento do cotidiano deste acampamento no coração de a capacidade de mudar seu ponto de vista: o mesmo objeto, even-
Paris, Sans Doute Fous (Sem Dúvida Loucos), em 2007. Um mês to, pessoa, pode-se ver de uma maneira diferente, dependendo dos
após as filmagens eles foram despejados e nunca mais tivemos óculos que usamos e da perspectiva em que estamos. É preciso se
notícias de Jean-Pierre. aproximar ou se afastar, se inclinar ou dar alguns passos para ver
Em fevereiro de 2008, Este pequeno vislumbre dos Balcãs de- o mesmo fenômeno de maneiras diferentes e entender sua com-
corre de um projeto comum, e de um movimento composto por plexidade. Afinal, a chave é uma questão de atitude: a gente pode
muitos olhos, mãos e vozes. Tudo começa e termina nas margens se mover com a câmera, mas não adiantará nada se não se é capaz
do Danúbio, com o encontro de três estrangeiros durante uma de mudar seu ponto de vista, dentro de si.
258
cinema atual
259
parte 8 – cinema e televisão
260
cinema atual
Bisavó de Nicolas Hallet, Irene de Nangy (3ª pessoa sentada da esquerda para a direita), na chegada do navio ao Brasil.
dei um amigo brasileiro, Paulinho Lupifieri, para almoçar na casa ele a riqueza chegou. Nunca se casou, era uma mulher indepen-
de meus pais, uma casa velha e bagunçada no interior da Bélgica. dente já no início do século XX.
Ele ficou impressionado com a quantidade de objetos do Brasil Voltaram para a Bélgica no final dos anos 1920. Ela transfor-
que havia lá: quadro do Pão de Açúcar, Santo Antônio de madeira, mara todos os seus bens em diamante e mandara costurar uma
boneca negra da Bahia... Esses objetos não haviam me chamado cinta para sair do país com essa fortuna clandestinamente, pois,
a atenção antes. Foi quando minha mãe esclareceu a relação da nesse período, o Brasil não permitia a saída de valores. Assim que
família com o Brasil. Minha bisavó, Augusta Leclercq, havia imi- chegou à Bélgica, comprou três casarões em Bruxelas.
grado da América do Sul em 1910. Ela nasceu em 1888 na provín- Morreu em 1942, provavelmente de um câncer, e meu avô
cia do Hainaut. Depois da adolescência mudou-se para Bruxelas, foi morar na mata para se esconder dos alemães, que recruta-
onde era modiste, fabricava chapéus e participava de um grupo de vam jovens para trabalhar nas usinas de armas durante a Segunda
teatro, La Compagnie Du Bois Sacré. Frequentava a boemia de Guerra Mundial.
Bruxelas, onde começou a cantar acompanhada de um pianista. Meu avô morreu em 1973 com muitas saudades do Brasil, sem
Numa relação com um homem da burguesia teve um filho, meu nunca ter voltado. Cheguei ao Brasil em 1997 com 26 anos, mais
avô, Jean Lebrun Leclercq. Como ele não assumiu a relação, ela ou menos a idade em que meu avô saíra do Brasil, no final da dé-
deixou a criança sob a guarda da avó materna e pegou um navio cada de 1920. Eu já tinha viajado bastante pelo Leste Europeu,
para a América Latina, somente com a roupa do corpo. Oriente Médio e África, porém nesses países nunca me senti em
No Brasil, começou uma nova vida como cantora fazendo tur- casa, a diferença cultural era muito grande.
nês de Belém do Pará a Buenos Aires, na Argentina, sob o nome Cheguei ao Rio de Janeiro e, no dia seguinte ao desembarque,
artístico de Irene De Nangy. Quando a Primeira Guerra Mundial peguei um ônibus para Salvador, Bahia, a fim de conhecer uma
começou, ela foi buscar seu filho e se instalaram no Rio de Janeiro. cidade de tamanho mais humano e talvez de tamanho mais “bel-
Lá, ela construiu o Hotel Bélgica na Rua das Laranjeiras, e com ga”. O Rio me parecia uma enorme “Paris Tropical”.
261
parte 8 – cinema e televisão
Cartaz de Irene de
Nangy, bisavó de
Nicolas Hallet.
262
televisão
263
parte 8 – cinema e televisão
época da série de TV, tomei de forma aleatória dois exemplos. um pedido do diretor do presídio de Bangu I para que não filmás-
Enquanto uma revista (Uit Magazine) anunciava na capa Brazilië semos os presos nas celas (para garantir o direito à privacidade
is Hot, que remetia a um dossiê de 12 páginas com reportagens deles). Mesmo assim, eles foram filmados, e seus rostos, exibidos,
sobre o país, uma das resenhas críticas sobre a série foi publica- sem que isso trouxesse problemas posteriores.
da pelo site Humo.be com o sugestivo título de Cartões Postais Pensei com meus botões: em que país do mundo uma equipe
do Inferno (Ansichtkaarten uit de hel). Compreensível, uma vez de TV estrangeira ousaria pedir à polícia aérea para acompanhar
que o primeiro episódio a ser levado ao ar teve como tema a seus voos em helicóptero por tempo ilimitado, além de realizar em
criminalidade no Rio de Janeiro, com imagens (de arquivo) de inglês entrevistas em terra e em ar, respondendo questões que iam
tiroteio nas favelas, e entrevistas com policiais, criminalistas e da criminalidade das ruas à corrupção nas corporações da polícia...
educadores que vivem uma realidade de grande violência física Os policiais do GAM (Grupamento Aéro-Marítimo) do Rio de
e psicológica... Janeiro fizeram tudo isso e chegaram a emprestar seus uniformes
Chegaram a me explicar que para que o público belga enten- oficiais para uso da equipe a ser filmada e do diretor.
desse a situação no Rio de Janeiro eu deveria compará-lo à Faixa Essa abertura, essa sinceridade, esse gosto pela exposição,
de Gaza... Eu acreditava que essa comparação mais confundia típicos do Brasil, foram registrados, mas nem sempre bem apro-
que esclarecia (porque os conflitos urbanos do Rio de Janeiro não veitadas na edição final na TV... Porque, para muito além da
têm natureza de guerra civil); felizmente essa frase foi descartada. criminalidade, que foi o tema mais controverso da série, o meio
Depois desse tema, os outros foram bem mais amenos e mos- ambiente, a religião, a política, o empreendedorismo, a gastro-
travam um Brasil que, apesar das adversidades, esbanjava criativi- nomia, o esporte, a sexualidade, a música e as artes do Brasil se
dade e bom humor, tanto nos negócios e empreendimentos das revelavam um campo imenso a ser explorado e mostrado, com
mais variadas naturezas, como na liberdade de culto do chama- seus personagens que aos olhos belgas pareciam tão estranhos
do maior país católico (“não praticante”) do mundo, ou na sua que logo se tornavam simpáticos.
culinária amazônica de peixes e temperos locais, contrastado ao No episódio sobre a sexualidade, houve espanto em ver que
universo musical que derruba fronteiras, ou no ajuste da relação homens e mulheres falam sobre sua intimidade com tamanha
entre homens e mulheres em uma sociedade que já foi patriarcal. desinibição... Ali, perdeu-se a oportunidade de mostrar como a
Convidada a escrever um livro com o mesmo título e os mes- sociedade brasileira vive um tuning point, com mulheres que con-
mos temas da série, vi nele a oportunidade de revelar várias situa quistaram autonomia financeira e sexual, definindo parceiros, nú-
ções, inclusive cômicas, que vivi nesse rico convívio de diálogo mero de filhos e quando tê-los. Em paralelo, o homem, que antes
entre Brasil e Bélgica. Tive como meta dar a minha visão de bra- era o provedor, tenta se reposicionar e aprender um novo papel
sileira sobre o meu país e publicar entrevistas que realizei mesmo que, entretanto, não está claro para ele.
quando as câmeras estavam desligadas e que renderam momentos Em empreendedorismo, o espanto ocorre porque, aos olhos
emocionantes. Um deles foi a conversa que tive com um biólogo belgas, seria impensável iniciar um negócio com quase nada de
do Ibama de Manaus sobre a trágica morte de um filhote de peixe recurso financeiro. E o Brasil mostra que muitas das experiências
boi que atrapalhava o abate de sua mãe durante a temporada de que começam precárias conseguem apoio para corrigir seus pro-
pesca desse grande mamífero de água doce, tradição no Amazonas dutos e ingressam no mercado com excelente retorno a médio
que colocou a espécie em risco de extinção. Outro, foi a história de prazo. A cultura de arregaçar as mangas e ir à luta, aceitando os
um caçador de macacos que agradeceu por ser preso e confessou riscos, surpreendeu os belgas. Por outro lado, o jeitinho brasileiro
que tinha pesadelos com os gritos das fêmeas e filhotes ao verem de improvisar ou de pensar que no final tudo vai dar certo prova
os machos mortos a tiros cairem das árvores e serem recolhidos que o país precisa aprender que planejamento e pesquisa urgem
das águas do Rio Amazonas. Ou ainda minha conversa com uma em fazer parte da rotina de quem quer entrar em um mercado
família do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra em cada vez mais competitivo.
Rezende (RJ), e me surpreender com o nível de participação e de A percepção da música brasileira na série, tema filmado em
destemor das crianças, politizadas desde o berço, na busca pela São Paulo, optou por mostrar uma música de raiz, do folclore, um
reforma agrária. Outro ainda foi minha curiosidade para enten- pouco do samba, do jazz, do hip-hop, do rock e da MPB, que re-
der a realidade da violência urbana no Rio de Janeiro e de poder velou um belo recorte no caldeirão de sons e ritmos paulistas. Na
confessar o meu medo em entrar à noite com a equipe de TV em gastronomia, a opção foi registrar a fantástica culinária amazônica,
uma das maiores favelas da cidade para realizar uma entrevista conhecida principalmente por quem é da região, já que demanda
com um ex-traficante e ex-usuário de crack. Existem territórios ingredientes locais e peixes frescos encontrados apenas ali.
onde a licença para entrar não significa garantia de segurança. Mas Minha pesquisa sobre a comida amazônica foi intensa, já que
felizmente, no momento em que chegamos, fomos “recepciona- eu mesma, nascida no Estado de São Paulo, pouco conhecia dos
dos” por uma chuva torrencial e não havia vivalma nas ruelas da sabores amazônicos. Tive dificuldade em decorar tantos nomes de
Rocinha, quase às dez horas da noite. origem indígena das frutas, ervas, temperos e pratos típicos, e mais
Durante as filmagens, em nenhum momento houve censura ainda em descrever o sabor e o preparo deles, já que até o açaí de
ou restrição imposta à equipe belga. O máximo que ocorreu foi polpa congelada servido com guaraná em todo o Brasil não tinha
264
televisão
nada a ver com o creme do açaí fresco consumido na região com De repente, notei nos belgas que eles mesmos deixaram os
farinha de mandioca. estereótipos sobre o Brasil de lado (o carnaval, o futebol e a cai-
A série de TV e o livro Brazilië voor Beginners não satisfizeram pirinha eram meras alegorias, e deixaram de ser o main issue que
por completo a curiosidade dos belgas para entender o país. Ao traduziu durante tantos anos o Brasil). Sem negá-los, busquei con-
longo do ano de 2011, fui chamada a fazer dezenas de palestras, tar da minha experiência, assumindo as precariedades, mas sem
em português, inglês e francês, para belgas em Antuérpia, Gand, ocultar o orgulho que tenho das conquistas do país.
Bruges, Oostende, Aalst e Bruxelas. Alguns já haviam visitado o Um dos comentários que mais me chamou atenção foi de um
Brasil ou tinham familiares por lá. Outros, pouco sabiam, mas que- dos participantes em Bruges. “Pensava que você não tinha muita
riam entender que tipo de fenômeno é esse, de um país que, em coisa a dizer. Mas quando você fala, parece que a gente encontra,
algumas décadas, deixa de ser considerado de terceiro mundo e enxerga e sente o Brasil.”
passa a figurar entre as oito maiores economias do planeta (e ganha
status e poder nas mesas de negociação), um país que inicia um Daniela Rocha é jornalista, autora do livro Brazilië voor Beginners
caminho por maior inclusão social, um país que possui um estra- (Witsand Uitgevers) e apresentadora da série de TV de mesmo título
tégico mercado consumidor, um país que é percebido como amea exibida pela TV Canvas em 2010.
ça aos outros quando o tema é agrobusiness ou biocombustível.
265
parte 8 – cinema e televisão
266
pintura e escultura
parte 9
Artes Plásticas
267
parte 9 – artes plásticas
268
pintura e escultura
“Santa Ceia”, de Manoel da Costa Ataíde, Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto, MG.
269
parte 9 – artes plásticas
270
pintura e escultura
“Observar é procurar ver nos fatos tudo o que eles nos podem oferecer onde se inscreveu na Faculdade de Ciências da Universidade de
deles mesmos, sob todos os ângulos e em todos os seus detalhes.”1 Bruxelas.
Entretanto, um intervalo de tempo e trabalho se fez necessá-
271
parte 9 – artes plásticas
sideradas duvidosas, uma das mais discutidas foi o diploma obtido conhecimento em seus mais diversos campos o fascinava e mo-
na Universidade de Bruxelas. Américo, orgulhoso de sua qualidade via. No contexto do Brasil do século XIX o aprendizado artístico
de doutor (posteriormente ele chegou a assinar alguns quadros co- e científico na Europa referencial foi vital para sua trajetória. A
mo Dr. Pedro Américo), escreveu ao diretor da universidade belga, Bélgica, por sua vez, foi fundamental para sua formação científica
G. Tiberghien, relatando as acusações que ele (e o seu diploma) bem pouco estudada em relação ao seu desempenho artístico co-
sofria. O diretor lamenta o fato em carta datada de 30 de setembro mo pintor do Império brasileiro. Para concluir esta breve análise
de 1870. O próprio governador da província do Rio de Janeiro, João tomo emprestado suas próprias palavras como explicação daquele
Ramos Queirós, resolveu tomar parte nesta polêmica e escreveu momento: “Transporte-se pois pelo pensamento através do espaço
a João Couto dos Santos, que habitava então em Bruxelas (prova- e do tempo e julgue estas páginas do ponto de vista que eu mesmo
velmente membro da diplomacia brasileira), pedindo informações me situei para escrevê-las”.4
sobre Pedro Américo e seu amigo Daniel Pedro Ferro Cardoso.
A resposta caracteriza bem a desconfiança que reinava no Bra- Madalena Zaccara é Doutora em História da Arte pela Université
sil e que gerou as perguntas feitas pelo governador. De fato, era Toulouse II, França, Professor Associado do Departamento de Teoria
quase como se o artista tivesse que apresentar um álibi. João Cou- da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernambuco,
to, porém, confirmou as conquistas acadêmicas de Pedro Américo, Coordenadora do Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Vi-
objeto de tanta controvérsia. Diz Couto: suais UFPE-UFPB, autora de vários livros e artigos inclusive um sobre
O Sr. Dr. Pedro Américo de Figueiredo não só obteve os primei- Pedro Américo intitulado Pedro Américo de Figueiredo e Mello: um
ros lugares entre os companheiros como ainda não contente com artista brasileiro do século XIX, baseado em sua tese de doutorado.
tantas distinções que obteve ainda quis defender uma these para
obter o titulo de Doutor agregado, o que fez sendo elogiado por um Notas
júri de nove membros e todos notáveis (...) pela mesma ocasião ob- 1. Mello, Pedro Américo de Figueiredo. A Ciência e os sistemas: questões de história e
teve o titulo de lente agregado da Universidade. Distinção essa que filosofia natural. João Pessoa: Editora Universitária, 1999, p.11.
é muito rara, que não só elle deve estar orgulhoso como nosso país 2. Mello, Pedro Américo de Figueiredo, op. cit., p. 6.
3. Zaccara, Madalena. Pedro Américo de Figueiredo e Mello: um artista brasileiro do
que orgulha-se de o possuir por filho.3 (...) século XIX. Recife: Editora da Universidade Federal de Pernambuco, 2011, p. 77.
Pedro Américo foi um homem à maneira da Renascença. O 4. Mello, Pedro Américo de Figueiredo, op. cit., p. 4.
“Panorama do Rio de Janeiro”, de Benjamin Mary, c. 1835 / Aquarela, grafite e nanquim sobre papel, 30,3 x 312,4 cm.
272
pintura e escultura
por seu inventor. Alois e seu irmão Karl Senefelder viajaram por nhos, nos quais constam índices manuscritos que acompanham
diversos países europeus formando grupos de alunos de litografia a numeração das folhas. Exceção é o grande panorama do Rio de
e é certo que Mary tenha frequentado o grupo belga, reunido no Janeiro tomado do alto de Santa Teresa, pertencente à Pinacoteca
Musée Central de Minéralogie em Bruxelas. do Estado de São Paulo. Ainda que seja obra avulsa, foi adquiri-
São conhecidos dois exercícios de litografia de sua autoria, da juntamente com seu portfólio, cuja capa traz a gravação em
com inscrições que indicam terem sido realizados nas aulas de dourado “Benjamin Mary. Souvenirs du Bresil I”. Sobressaem, no
Karl Senefelder. Além disso, gravuras feitas a partir de desenhos primeiro plano da composição, várias espécies da flora brasileira,
de Mary ilustram o livro Voyage pittoresque dans le royaume des nativas ou aclimatadas. Podem ser identificados o mamoeiro, a
Pays-Bas de autoria de Jean-Baptiste de Cloet, publicado em Bru- araucária e a jaqueira, assim como vegetação de pequeno por-
xelas entre 1822 e 1830, o que atesta uma já consolidada expe te, como cipós, filodendros e outras trepadeiras, e uma grande
riência na prática do desenho. Como complemento indispensável variedade de bromélias. Através desta profusão vegetal, a cidade
de uma educação humanista, Mary empreende viagem à Itália pode ser vislumbrada ao fundo: à esquerda o convento de Santa
em 1823, onde teve aulas com o pintor francês François-Marius Teresa, a cidade baixa, a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar.
Granet (1775-1849), discípulo de Jacques Louis David. A aquarela foi executada em sete folhas separadas, coladas poste-
Ao eclodir a revolução de 1830, que culminou no surgimento riormente pelo artista. Cada uma delas tem tratamento e níveis
do Reino da Bélgica, Mary opta pela carreira no exterior como de acabamento diferenciados, o que confere ao conjunto certo
diplomata. Foi nomeado Encarregado de Negócios no Brasil em aspecto de modernidade.
1832 e sua chegada ao Rio de Janeiro dois anos depois marca a Dentre os álbuns conhecidos de aguadas de autoria de Mary,
abertura do primeiro posto diplomático do Reino da Bélgica na merece destaque aquele adquirido na década de 1970 pelo casal
América Latina. Sua principal incumbência nessa função era ne- Pimenta Camargo, de São Paulo. Contém 63 aguadas represen-
gociar um Tratado de Comércio e Navegação entre os dois países, tando, além de vistas do Rio de Janeiro, raros registros da viagem
celebrado cerca de seis meses depois de sua chegada. Por esta con- que Mary empreendeu pelo litoral paulista. Destacam-se vistas
quista, Mary foi condecorado com a Ordem do Cruzeiro do Sul, panorâmicas tomadas do mar em direção à costa que ocupam
pelo lado brasileiro, e pela Ordem de Leopold, pelo governo belga. folhas duplas do caderno. A paisagem, assunto por excelência da
Nos quatro anos em que viveu no Rio de Janeiro, Mary fixou produção brasileira de Mary, surge como manchas de cor, como
residência no Catete, bairro que se urbanizava pouco a pouco, po- registro sensível de tonalidades. Se há um desejo de definir o ca-
voado por chácaras de cultivo de verduras e casas de campo. Era ráter geral da paisagem, este se realiza por meio da sensação da
a região em que se instalariam muitos estrangeiros, como o minis- espacialidade e das intensidades luminosas.
tro inglês William Gore Ouseley (1797-1866), cuja residência se Esse conjunto de memórias visuais de viagem marcam a per-
pode distinguir em vários desenhos de Mary, e Karl Wilhelm von feita sintonia de Mary com o perfil do naturalista diletante do
Theremin (1784-1852), cônsul da Prússia no Rio de Janeiro. Este, século XIX para o qual, de acordo com o ideário defendido por
um ativo homem de negócios que atuara em Lovaina e Antuér- Alexander von Humboldt (1769-1859), a sensação diante do mun-
pia, era possivelmente já conhecido de Mary. Ambos, assim como do natural é tão fundamental para a compreensão científica da
Mary, são autores de importantes registros iconográficos do Rio natureza quanto o são a observação e a análise racional.
de Janeiro à época da Regência. Curiosamente, não se constata Outro álbum a mencionar seria o pertencente à coleção Pau-
nenhum relacionamento de Mary com o meio artístico brasilei- lo Geyer, hoje parte do acervo do Museu Imperial de Petrópo-
ro, capitaneado, àquela altura, pela Academia Imperial de Belas lis, que traz na capa o monograma de Louis Philippe d’Orléans
Artes, cujo diretor era o francês Félix-Emile Taunay (1795-1881). (1773-1850), rei dos franceses. Desenhos esparsos comparecem
A obra de Mary que se conserva em coleções brasileiras está em álbum de memórias pessoais de D. Francisca de Bragança
concentrada predominantemente em pequenos álbuns de dese- (1824-1898), depois princesa de Joinville.
273
parte 9 – artes plásticas
Contudo, a contribuição mais significativa de Mary para a os pontos de vista mais convencionais no registro da paisagem.
divulgação da iconografia brasileira seria, sem dúvida, sua parti- Após o período brasileiro, a carreira diplomática de Benjamin
cipação na audaciosa obra do botânico bávaro Carl von Martius Mary o levaria para o Oriente Médio. De seu posto em Atenas,
(1794-1868), a Flora Brasiliensis. Ilustrada com 3.811 gravuras onde permanece por cinco anos entre 1839 e 1844, empreende
agrupadas em 130 fascículos, a publicação surgiu em Munique diversas viagens, entre as quais a Constantinopla, Smyrna, Bursa,
entre 1840 e 1906 e resulta de uma vida toda dedicada a estudar Beirute, Chipre e Egito. Todas elas devidamente registradas em
e sistematizar o material coletado em três anos de viagem pelo uma profusão de desenhos. O artista parece ter desenvolvido ali
território brasileiro. Dentre as 59 pranchas que ilustram o primei- um olhar mais atento aos tipos humanos, às cenas urbanas, assim
ro volume da Flora Brasiliensis, 14 são assinadas por Benjamin como aos retratos de personagens com os quais se relacionava.
Mary. Não foi possível apurar com precisão em que condições São notáveis ainda as caricaturas que realiza com destreza e
Martius e Mary teriam se conhecido. O mais provável é que tenha humor de anônimos e músicos que observa, por exemplo, em apre-
sido por meio de Adolphe Quetelet (1806-1874), matemático e sentações teatrais. No entanto, ele nunca descuidaria do registro
astrônomo, fundador do Observatório Real de Bruxelas. Mary se da paisagem, assunto principal de seu trabalho artístico, em que a
aproximara de Quetelet na capital belga e era frequentador do presença da natureza local é sempre privilegiada na revelação de
salão promovido por sua esposa, que reunia renomados poetas e suas formas mais intrigantes e inusitadas. Seu traço expressivo, o
artistas. Quetelet e Martius, por sua vez, mantiveram assídua cor- gesto marcado no papel, o registro sensível da paisagem colabo-
respondência, sendo que Martius menciona visitas feitas a ele em ram para que seu trabalho tenha um aspecto, em última instân-
Munique por Mary. A pedido de Martius, Quetelet teria obtido de cia, tão moderno.
Edouard Mary a promessa de fazer vir de Atenas para Munique Ao final de seu período na Grécia, Mary começou a apresen-
os desenhos de seu irmão Benjamin. tar problemas de saúde. Retornou à Bélgica, via Malta, em 1845.
As obras de Mary reproduzidas na Flora Brasiliensis demons- Não se sabe com precisão quais funções assume em Bruxelas nes-
tram um artista atento aos entrelaçamentos das formas vegetais, as- se período, mas começa a apresentar sinais de alienação mental,
sim como à profusão de espécies. Dedica atenção especial às espé- até que foi declarado inapto para a carreira diplomática. Por re-
cies mais particulares da flora brasileira, registrando-as em termos comendação médica, Mary seguiu para a estação termal de Bag-
de sua inserção no contexto geral da paisagem. É curioso notar nères-de-Luchon, nos Pirineus franceses, onde faleceu em 1846.
que, embora Mary tenha um olhar orientado para a construção de
uma paisagem de viés pitoresco, tão característico daquele perío- Valéria Piccoli, mestre e doutora pela Faculdade de Arquitetura e
do, ele parece ser atraído pelas formações mais excêntricas, tanto Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), é Curadora-
no que diz respeito à topografia como às formas vegetais, evitando -Chefe da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
274
pintura e escultura
“La montagne de L’Or Noire [Ouro Preto]”, 1888, de Henri Langerock / Óleo sobre tela, 111.7 x 161.3 cm.
dois teriam se conhecido. Meirelles estava em Paris entre 1881 e tas, prevista inicialmente para durar seis anos. Em 1889, quando
1883, pintando a segunda versão de sua Batalha do Riachuelo. o panorama do Rio de Janeiro foi exibido na Exposição Universal
Entretanto, Langerock teria já chegado ao Brasil por essa época, de Paris, sendo agraciado com a medalha de ouro, Langerock já
pois sua primeira pintura de tema brasileiro data de 1881. O fato tinha se desligado do empreendimento.
é que, em 1885, ano em que executa uma fotopintura a partir de Posteriormente, em 1891, uma rotunda foi construída no Lar-
fotografia de Marc Ferrez (1843-1923), Langerock se torna sócio go do Paço, atual Praça XV, no Rio de Janeiro, onde o panorama
de Meirelles para a realização do Panorama circular da cidade do foi exposto durante alguns anos. Doado por Meirelles ao gover-
Rio de Janeiro, uma vista cenográfica de 360 graus, tomada do alto no brasileiro, a tela foi incorretamente armazenada e totalmente
do morro de Santo Antônio, no centro da então capital brasileira. destruída. Do grande empreendimento de Langerock e Meirelles
A impossibilidade de encontrar no Brasil um ateliê de dimen- restam apenas seis estudos a óleo, conservados no Museu Nacio-
sões suficientes para a execução da grande pintura de 14 metros nal de Belas Artes.
de altura por 115 metros de largura leva os dois artistas a se insta- Langerock daria continuidade à sua carreira como pintor-fo-
larem em Ostende, onde trabalharam entre 1886 e 1887. Meirel- tógrafo especializado em paisagens de lugares exóticos. Em 1894,
les e Langerock compuseram o panorama certamente a partir de participou da Exposição do Congo em Antuérpia, expondo lá um
fotografias da paisagem do Rio de Janeiro, talvez de autoria de Ge- diorama baseado no relato de viagem de Henry Morton Stanley
orge Leuzinger (1813-1892) ou mesmo do próprio Marc Ferrez, (1841-1904) à África.
sendo o belga responsável pela pintura da parte oriental da cidade. O artista faleceu em Marselha, França. Há obras de sua autoria
No ano seguinte, o panorama do Rio de Janeiro foi inaugura- em diversos museus brasileiros, entre os quais no Museu Nacional
do em Bruxelas com a presença dos soberanos da Bélgica. Uma de Belas Artes do Rio de Janeiro, no Museu Mariano Procópio
disputa judicial, contudo, pôs fim à sociedade entre os dois artis- em Juiz de Fora (MG) e na Pinacoteca do Estado de São Paulo.
275
parte 9 – artes plásticas
“Cena do Porto de Santos”, década de 1920, de Adrien Van Emelen / Óleo sobre tela.
276
pintura e escultura
de buscar junto à Universidade Católica de Lovaina um professor e Ofícios de São Paulo, o que demonstra que Van Emelen se in-
para a criação da Faculdade de Filosofia e Letras de São Bento. seriu rapidamente no meio artístico local.
Em São Paulo, D. Amaro estava certamente a par das reformas O Liceu era o principal estabelecimento do gênero na cida-
planejadas pelo abade, o grande responsável pela reconstrução do de, onde tiveram origem monumentos públicos de grande im-
edifício do mosteiro de São Bento, empreendida a partir de 1910, portância para São Paulo. Van Emelen manteve um espaço de
segundo projeto do arquiteto alemão Richard Berndl (1875-1955). trabalho no Centro das Artes do Palácio das Indústrias, disponi-
Já em 1912, começavam a ser executadas as pinturas decorati- bilizado pelo engenheiro Ramos de Azevedo (1851-1928). Suas
vas no interior da Basílica, obra do beneditino holandês Adalbert esculturas para o complexo de São Bento foram finalizadas em
Gressnicht (1877-1956). 1922, tendo o artista realizado, além dos apóstolos, uma imagem
Os motivos da transferência de Adrien Van Emelen para o Bra- da Pietà, localizada em uma capela fechada à visitação pública,
sil ainda não são de todo claros, mas não é improvável supor que e outras duas de Sant’Ana e Santa Gertrudes, situadas em capelas
a presença de seu irmão na abadia beneditina em reforma fosse laterais da Basílica.
um estímulo nesse sentido. Sabe-se que outro de seus irmãos, o Sem dúvida, Van Emelen chegou a São Paulo num momento
pastor Léon Charles Victor Van Emelen, visitou São Paulo em de grande pujança econômica e quando a cidade se preparava para
1915 e Adrien Van Emelen talvez o tenha acompanhado. O fato comemorar o centenário da independência. Simultaneamente à
é que o artista estava já em 1919 envolvido com a realização de realização das esculturas para o mosteiro de São Bento, o artista
12 esculturas representando os apóstolos para a decoração da Ba- estava envolvido no projeto decorativo de outro importante edi-
sílica de Nossa Senhora da Assunção, no mosteiro de São Bento. fício público, a Bolsa do Café em Santos. Inaugurada em 1922,
As peças foram moldadas em gesso nas oficinas do Liceu de Artes a Bolsa do Café – hoje Museu do Café – foi construída para cen-
277
parte 9 – artes plásticas
tralizar e controlar as operações do mercado cafeeiro em Santos, zação das esculturas dos bandeirantes Manuel Preto e Francisco
então o principal porto exportador do “ouro verde”. O edifício foi de Brito Peixoto, respectivamente conquistadores dos Estados do
projetado pela Companhia Construtora de Santos sob a direção Paraná e Rio Grande do Sul. As esculturas, de grandes dimen-
do engenheiro Roberto Simonsen (1889-1948), e consta ter sido sões, ressaltam a indumentária do bandeirante, com seu chapéu
dele o convite feito a Van Emelen para a elaboração das figuras de abas largas e botas altas, que ficou imortalizada na imagina-
alegóricas da Indústria, Comércio, Lavoura e Navegação que or- ção popular. Van Emelen foi responsável ainda pela concepção
nam a torre do edifício. Voltadas para os quatro pontos cardeais, do suporte das ânforas de vidro que guardam as águas dos rios
as esculturas se encontram a 40 metros de altura. brasileiros, parte da ornamentação da grande escadaria central
Também em 1919, começava a ser elaborado o ambicioso do edifício. Fundidos em bronze entre 1928 e 1930, os suportes
plano de ornamentação pretendido para o Museu Paulista pelo são decorados com exemplos da flora brasileira compostos com
historiador Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958). O então as figuras de cinco pássaros representando a fauna das bacias
diretor do museu almejava reunir no edifício esculturas e pintu- amazônica e platina.
ras que sintetizassem o papel pioneiro de São Paulo na conquista Além de sua atuação como escultor, Van Emelen foi autor de
do território brasileiro, evocando a história do bandeirantismo, um número expressivo de pinturas. Conhecem-se algumas obras
bem como seu papel no processo de independência do País. Van de temática histórica, mas sobressaem nesse conjunto as figuras po-
Emelen colaborou com o projeto de Taunay por meio da reali- pulares, como vendedores de rua. O artista faleceu em São Paulo.
278
pintura e escultura
queiro, as avenidas largas sombreadas pelas mangueiras, os hidroa- paisagens brasileiras. Alguns intelectuais, incluindo sua mulher, o
viões da Panair ao tempo da Segunda Guerra Mundial, os palácios consideravam alienado da situação que a Europa vivia. Essa ten-
e o casario colonial da cidade. são talvez tenha provocado, em parte, o fim do casamento com
Apesar de dominar várias técnicas de pintura, Wambach era Edith Blin.
cultor da aquarela e de uma antiga tradição da arte flamenga que Já famoso, tudo o que pintava conseguia vender. Ganhou di-
vinha de sua mãe Maria De Duve. O método era antigo e faz par- nheiro e frequentou as altas rodas do Rio de Janeiro, tanto que a
te ao menos desde o século XVI do repertório cognitivo dos artis- última vez que conseguiu reunir obras para uma exposição foi em
tas de Flandres e depois amplamente empregado em Florença e 1954, na Galeria Montparnasse, em Copacabana. Viajou o Brasil
Veneza. Mas a aquarela só pode resistir ao tempo com a obra de em aviões da Força Aérea Brasileira, daí sua vasta obra por diferen-
Albrecht Dürer (1471-1528), que deixou pelo menos 120 obras tes recantos do País. Entre seus amigos importantes estiveram os
suas; e, destas, algumas retratam uma viagem pelo Rio Reno até jornalistas Samuel Wainer, Osvaldo Orico e Assis Chateaubriand,
Colônia e então para Antuérpia, com inúmeros desenhos em vá- além dos políticos Juracy Magalhães, Virgílio Távora e Magalhães
rias técnicas, com imagens de Bruxelas, Bruges, Gand, Zeeland e Pinto. Por causa dessa inserção no poder, Wambach acabou por
Nijmegen. Imagens que fascinariam o jovem Wambach no início receber o grau de oficial da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul
do século XX. das mãos do presidente Getúlio Vargas em 1956.
Na década de 1940, Wambach descobre o povo brasileiro, Apesar de toda essa notoriedade, Georges Wambach nunca
especialmente a mulata, dialogando com o Movimento Vanguar- fez parte da roda de artistas plásticos e intelectuais brasileiros.
dista da Bahia, de Mário Cravo, Carlos Bastos e Gennaro de Car- Viu, observou e dialogou com vários movimentos nas artes – da
valho. Também viu a obra de Alberto Guignard e Emeric Marcier velha Flandres, passando pelo impressionismo, pela art nouveau
e as montanhas de Minas Gerais, uma imagem que estará presente e pelas vanguardas. Sempre tinha, porém, uma ironia para definir
em suas aquarelas de Ouro Preto, Itabira e Sabará, nas décadas os artistas da moda, como sobre as “lindas mulheres de Picasso,
de 1950 e 1960. contrafeitas, de olhares apavorados, saídas do Hospício Nacional
Muito articulado nos círculos políticos e da elite carioca, de Belas Artes”. De fato, Wambach gostava de ambientes alegres,
Wambach expõe em 1942, em meio à Segunda Guerra, no Mu- como o Cassino da Urca, onde aparecia com vedetes, cantoras e
seu Nacional de Belas Artes uma série de obras, especialmente de também políticos da época.
279
parte 9 – artes plásticas
280
pintura e escultura
“Igarapé-Manaus III”, de Jef Van Grieken, 1984, 22x30cm. “Alcântara I”, de Jef Van Grieken, 1985, 13x17,5 cm, 1985.
Em Minas Gerais fui atraído pelas enormes minas de minérios lembro que o ânimo de viajar, a admiração e a curiosidade esta-
de Itabira e seu contraste com o tumulto artesanal nos “rios” dos vam minguando. Mas os passeios pelos leitos secos dos igarapés
pequenos garimpeiros. Folheando de novo minhas notas, constato nessa cidade amazônica marcaram um ponto alto no fim da longa
que me custou bastante esforço e irritação para fazer as imagens. viagem. O implante anárquico destas palafitas ao lado de tantas
Agora, esse nervosismo da época desapareceu completamente. margens é uma benção para um gravador.
Finalmente consegui fazer uma pintura bastante grande das re- Algum tempo atrás, amigos voltaram de Manaus. Falaram da
dondezas de Itabira. bonita ponte iluminada nessa cidade. Uma ponte em Manaus?...
Naturalmente criei obras sobre quase todos os lugares por onde E iluminada? Sim, vi as fotografias. Pois é o que faz 30 anos. Eu
passei. Uma destas em particular devo mencionar: “Alcântara”. Es- tive que desligar um momento.
se pequeno paradeiro dos traficantes de escravos da época, ao lado
de São Luís, foi a razão pela qual Herman Liebaers me enviou Jef Van Grieken é professor na Academia de Belas Artes de Lovaina
para o Brasil... para fazer quatro pequenas gravuras. e artista plástico com uma obra que tematiza cidades, construções,
Para mim, a série sobre Manaus me deu maior satisfação. Me ruinas e arqueologia industrial.
281
parte 9 – artes plásticas
Montagem da obra na estação de metrô Luz, São Paulo e vista geral da mesma estação.
cidade de fazer compreender ideias por imagens. A arte permite próximo com a família biológica de minha filha, eu posso afirmar
pensar com ferramentas conceituais individuais que seus seis irmãos e irmãs que vivem em uma favela no norte
Desde a adoção de minha filha no Rio de Janeiro, em 2000, da cidade infelizmente não conhecem mais que isso aos 16 anos).
retornei ao Brasil anualmente para engendrar novos projetos sobre A participação na produção de obras artísticas se tornam uma
questões dos direitos humanos. Aí constituí uma equipe de arqui- ocasião de ter acesso à vida cultural da cidade de maneira imedia-
tetos, de artistas, de artesãos e de voluntários para atingir diferen- ta, mais fácil, realizando obras sobre um tema ainda desconheci-
tes objetivos que havia imaginado e que fazem parte de um todo, do. Quais são os direitos de todos os seres humanos, inclusive os
de um só e grande projeto: “O Caminho dos Direitos Humanos”. seus? A questão restou muitas vezes sem resposta quando come-
Tal projeto é imaginado e composto de centenas de obras sobre o çamos o trabalho.
tema realizadas com a população. Uma vez criados, os painéis de A partir desse trabalho artístico, imaginei obras em cerâmica
cerâmica são instalados nos lugares públicos. Esse caminho, em de cores vivas, suficientemente grandes sobre as quais poderíamos
2013, já integra numerosos projetos realizados no Rio de Janeiro e ver elementos realizados profissionalmente, como textos e mapas,
em São Paulo. Alguns são situados nas estações de metrôs das duas ao lado dos quais seriam justapostas outras obras realizadas manu-
cidades e outros nos bairros desfavorecidos chamados ‘favelas’. To- almente pela população. Os elementos artísticos cartográficos e
das essas obras foram produzidas com a participação da população textuais retomam de maneira metódica e legível o mapa do local,
e com profissionais locais interessados em participar do projeto. da favela, onde cada um pode se situar. Os textos são os dos direitos
No Rio de Janeiro, foi com a jovem arquiteta Laura Taves que humanos – em sua totalidade ou em fragmentos – acompanhados
a equipe começou a realizar os projetos que eu havia imaginado de textos literários e poéticos.
a partir da expressão do direito, ou da ausência do direito, entre a Na ocasião dos ateliês participativos, a população dos bairros
população das favelas do Rio: como falar de direitos onde o acesso desfavorecidos foi convidada a inserir nessas obras contribuições
à educação básica é reduzido à sua mais simples expressão: apren- figurativas feitas por eles mesmos, desenhos que exprimem o que
der a ler, a escrever e a contar (tendo guardado contato muito lhes sensibiliza, particularmente sobre questões das origens étnicas,
282
pintura e escultura
históricas e culturais. Nesse trabalho em comum desejei permitir o O projeto possibilitou criar uma microempresa de serigrafia, a
acesso à cultura, ou seja, o acesso aos museus, às galerias, às biblio- “Serigrarte”, dentro do ateliê paulista da Associação Inscrire. Esse
tecas, aos lugares de cultura da cidade às pessoas que pensavam não projeto se desenvolve, lenta, mas firmemente, com as dificuldades
ter direito a tais espaços... Os ateliês foram precedidos por diversas e os imprevistos das buscas de patrocínios brasileiros: processos de
visitas culturais, o que atraiu um grande número de participantes. financiamentos complexos e baseados no desconto de impostos,
Ao fim do trabalho, em diversas comunidades, a arquiteta Lau- trabalho difícil mas apaixonante.
ra Taves e uma dezena de mulheres decidiram continuar a expe- O projeto para a estação do metrô Luz é um projeto-piloto,
riência e criaram, dentro do meu ateliê, a “Azulejaria”: um ate- pois leva com ele um trabalho social e educativo. Nosso patroci-
liê de cerâmica que produz artesanato e novos projetos culturais. nador principal é a empresa belga de iluminação Schréder, que
Assim, há dez anos essas mulheres continuam a produzir obras nos acompanha e nos apoia desde o início, à qual agradecemos
cidadãs. Pouco a pouco, passamos de uma obra de artista para o grandemente. A equipe reúne arquitetos, grafistas, artistas, histo-
desenvolvimento estável do ateliê “Azulejaria” e para a sua inde- riadores, serigrafistas, juristas, economistas e professores de escolas
pendência. Penso poder afirmar que essa experiência, nascida de de São Paulo com as quais trabalhamos. Os parceiros-chave são o
ideais utópicos, é um sucesso, pois a estabilidade é garantida na Metropolitano, o CMDHSP (Comissão Municipal dos Direitos
independência da “Azulejaria”. Humanos da cidade de São Paulo) e o Museu da Língua Portu-
Enquanto isso, com a Associação Inscrire (que fundei e dirijo guesa. Também são parceiros investidores privados e novas insti-
desde 1989) iniciei outra importante obra sobre os direitos funda- tuições que se interessam por essa maneira inovadora de fazer arte
mentais em São Paulo: trata-se da primeira estação de metrô do com numerosas mãos para realizar uma obra do interesse de todos.
mundo com a instalação de painéis construídos com a participa- Como para o projeto do Rio, para este da estação Luz, pretendo
ção de milhares de jovens alunos das escolas das comunidades criar uma “Associação Inscrire de São Paulo” e permitir, assim, a
pobres da cidade. O imenso projeto para a estação Luz do metrô continuidade em futuros projetos.
– 500 m2 – em obra desde 2009, permitiu criar novas parcerias, Pouco depois da realização das primeiras obras em cerâmica
como a da ONG “Danyann: Aprender, Evoluir”, e convites a ou- sobre os direitos do homem no Rio de Janeiro, em 2003, com a
tros artistas brasileiros, como Julio Villani e Tatiana Dalla Bona. Associação Inscrire criei um kit pedagógico de ensino sobre o tema
283
parte 9 – artes plásticas
através da arte (a ser feito em papel ou em cerâmica). Ele é difun- educação e de senso da comunidade cidadã é o único caminho
dido nas escolas do ciclo secundário pela Europa e pelo mundo. que a cria. Como em todo lugar, existem apenas indivíduos que
Numerosos parceiros culturais locais, institucionais e privados, acreditam e conseguem, contra tudo e todos, transformar, quando
utilizam esse kit atualmente. No prosseguimento de nossa parceria juntos, suas utopias individuais em realidade comum.
com a CMDHSP, esta começa a utilizá-lo nas escolas municipais.
O que posso dizer da experiência de trabalho com os brasilei- Françoise Schein é arquiteta e urbanista formada na Bélgica e profes-
ros é que eles têm capacidade de se engajar, desinteressadamen- sora na École Supérieure d’Arts et Médias em Caen (França). Como
te, em projetos inovadores e transformando-os em projetos que artista plástica realizou obras com temáticas cívicas em vários metrôs
funcionam em longo prazo. O país, como outros, é jovem ainda nas cidades de Paris, Bruxelas, Lisboa, Esctocolmo, Berlim, Haifa,
e a verdadeira democracia aí se instala lentamente. O trabalho de Bremen e Coventry e também em favelas do Rio de Janeiro.
284
pintura e escultura
posições no exterior, eram relativamente desconhecidos na Bélgi- tório belga, que incluiu arte contemporânea brasileira, mas que
ca. Efetivamente, enquanto cinema e música brasileira eram, até ainda estava incorporada na categoria vaga e problemática de
certo ponto, conhecidos do público europeu e norte-americano, “arte latino-americana”.
não se conhecia praticamente nada sobre as artes visuais do Brasil Se Catherine de Zegher foi uma importante intermediária
(G. Brett, 1989, s.p. [p. 33] ). entre o Brasil e a Bélgica no campo institucional das artes, outra
Além disso, o Brasil também não teve artistas com um reco- personalidade importante no estabelecimento de uma ponte en-
nhecimento internacional como Frida, Botero ou os muralistas tre os dois países é Cristina Barros que, diferentemente daquela
mexicanos, que desfrutam de uma popularidade mundial (Depoi- curadora, trabalha de forma independente, sem estar vinculada a
mento de Afrânio Fonseca de Paula e Sidnei Tendler em Bruxelas uma instituição. A especialista brasileira, casada com o belga Hen-
no dia 02/11/2012 ). Esse fator contribuiu para induzir a concep- ri Grendl, vivendo entre Bruxelas e São Paulo, trabalha há muitos
ção errada de que “não há arte no Brasil” (C. de Zegher, 1989, anos trazendo exposições e artistas do Brasil para a Bélgica e vice-
s.p., [p. 2]), salvo aquela considerada como uma continuação da -versa. Ela foi, entre outros exemplos, responsável pela exposição
Europa ou impregnada de exotismo e primitivismo. O objetivo de Marcia Xavier e Albano Afonso em 2002 no centro cultural
dessa exposição foi justamente contradizer e desmentir esse clichê Botanique, dois artistas então pouco conhecidos na Bélgica. Foi
sobre a arte brasileira pois, como explica Paulo Venâncio Filho, também curadora da exposição de Sandra Cinto, Albano Afonso
“quem esperar tematização do Brasil, a cor local, certamente não e Regina Silveira no espaço Médiatine, em 2005.
encontrará isso nos trabalhos [de Tunga e Cildo Meireles]” (P. Além disso, a embaixada do Brasil na Bélgica, que conta com
Venâncio Filho, 1989, s. p., [p. 25]). um espaço expositivo, a galeria Marcantônio Vilaça – Casa do Bra-
Essa exposição parece ter sido um catalisador de outras expo- sil, incentivou a visibilidade da arte contemporânea brasileira se-
sições individuais também realizadas no Kanaal Art Foundation, diando diversas exposições de artistas como Paulo Climachauska,
como as de Waltercio Caldas, em 1991, e de Anna Maria Maio- Sebastião Salgado ou Maria Bonomi.
lino, em 1995. Depois de 25 anos sem representação do país, o Em 2005 aconteceu o ano do Brasil na França, grande ma-
curador da Documenta em 1992, Jan Hoet, fundador do SMAK, nifestação cultural sobre o Brasil no exterior, com a ambição de
museu de arte contemporânea de Gand, deu uma visibilidade reforçar as relações bilaterais entre os dois países em diferentes
sem precedentes a artistas brasileiros na história desse evento, campos, tanto no cultural e acadêmico quanto no econômico.
com obras dos já expostos Waltercio Caldas e Cildo Meireles Pela proximidade da França, este evento foi uma vitrine para ar-
além de Saint Clair Cemin e Jac Leiner (A. L. Fialho, 2006, p. tistas brasileiros na Bélgica, como o prova a Bienal de Fotografia
71). Aliás, nesse mesmo ano, o SMAK adquiriu para o seu arcervo de Liège em sua edição de 2006, que foi dedicada ao Brasil. O
obras de Jac Leirner e de Adriana Varejão (site do SMAK), duas evento reuniu 80 fotógrafos que foram representados em mais de
artistas consideradas até hoje como expoentes da arte brasileira 15 locais diferentes da cidade localizada na região da Valônia. Os
(R. Storr, 2012, p. 104). A importância da Documenta como ve- organizadores desse evento procuraram afastar-se da ideia de exo-
tor de divulgação de artistas é manifesta no caso de Lygia Clark, tismo geralmente associada ao país. Aliás, a dimensão engajada
quando, em 1998, dando prosseguimento à sua participação na dos artistas brasileiros foi o que levou o comitê da Bienal a esco-
10ª edição, lhe foi dedicada uma retrospectiva no Bozar e que lhê-los para sua edição de 2006. Dorothée Luczak, a idealizadora
culminou itinerando pela Europa. do evento, explica que foi sensível ao fato desses artistas abordarem
Nesse mesmo contexto de interesse pela América Latina e de questões de sociedade e se interrogarem sobre a realidade que os
estratégias multiculturais nos anos 90, por ocasião da comemora- cerca. Segundo ela, essa atitude crítica também tem algo a ensinar
ção dos 500 anos da descoberta da América, vários eventos foram aos belgas, já que no seu próprio país há problemas sociais igno-
organizados na Europa (B. H. D. Buchloh e C. de Zegher, 1992, rados, como a existência de sem-tetos e uma importante taxa de
p. 223, e A. Farias, 1997, p. 34). A Bélgica sediou um dos maiores suicídio (Dorothée Luczak citada em G. Duplat).
eventos: uma grande exposição que abordou o intercâmbio entre Outro elemento interessante dessa Bienal foi a vontade de
a América Latina e Flandres: America. Bride of the Sun. 500 years estabelecer um diálogo e uma confrontação entre artistas belgas
Latin America and the Low Countries. No prefácio do catálogo da e brasileiros, uma iniciativa rara. Foi o caso da exposição no Ins-
exposição, Gaston Geens explica que, até aquela data, o públi- tituto de Arquitetura Lambert-Lombard Bruxelles-Brasília: à la
co conhecia apenas as manifestações artísticas pré-colombianas traque des signes de pouvoir que revêt une capitale...(Bruxelas-Bra-
e que pela primeira vez um panorama da arte pré e pós-colonial sília: à procura dos sinais de poder encontrados em uma capital...).
seria apresentado ao público belga (G. Geens, 1992, p. 11). Com Como o título indica, a exposição quis mostrar como a ideologia
efeito, a seção de arte contemporânea, que teve curadoria de e as marcas de poder influenciam a arquitetura e o urbanismo
Catherine de Zegher, trouxe obras de grandes artistas brasileiros de uma capital como Bruxelas ou Brasília (Comunicado de im-
como Lygia Clark, Waltercio Caldas, Regina Vater, Anna-Maria prensa 5ème Biennale internationale de la Photographie et des Arts
Maiolino entre outros, mas que na Europa eram relativamente visuels de Liège).
desconhecidos (B. H. D. Buchloh e C. de Zegher, 1992, p. 233). No entanto, a maior manifestação dedicada ao Brasil até ho-
Esta exposição foi uma das maiores realizadas até então no terri- je foi Europalia, um festival bienal internacional de artes criado
285
parte 9 – artes plásticas
em 1969 destinado a um novo país a cada edição. Depois de duas geiro estabelecer uma imagem da arte brasileira sem cair no risco
edições consagradas a países emergentes, respectivamente, Rús- ou de considerá-la simples mimese dos procedimentos europeus
sia em 2005 e China em 2009, em 2011 foi a vez do Brasil. Com ou sofrer a recorrência fantasmagórica dos temas do folclore e do
eventos em mais de 75 cidades da Bélgica, abrangendo as diversas exótico” (P. Venâncio Filho, 1989, s.p., [p. 24]).
disciplinas como artes plásticas, música, teatro, poesia, literatura Contudo, o festival Europalia.Brasil contribuiu para a divulga-
entre outros, o festival se propôs a apresentar um vasto panorama ção da arte brasileira contemporânea na Bélgica. Desde o encer-
da cultura brasileira. ramento do festival, por exemplo, obras de Cildo Meireles, Zero
A originalidade de Europalia também foi trazer a um público Dollar e Projeto Coca-Cola, que estavam na exposição A Rua, in-
europeu uma perspectiva brasileira da sua própria produção artís- tegraram sucesivamente diversas exposições em Antuérpia, como:
tica uma vez que essas exposições geralmente caracterizavam-se Vis-à-vis (3 de dezembro de 2011 a 21 de janeiro de 2012); Spirits
por um olhar estrangeiro na curadoria. No catálogo de exposição of Internationalism que aconteceu no MuHKA, museu de arte
Art in Brazil, que aconteceu no Bozar entre 4 de outubro de 2011 contemporânea da cidade, antes de ser apresentada na exposição
e 15 de janeiro de 2012, foi ressaltado várias vezes que Europalia. e Extra Muros: Obras-primas no MAS. Cinco séculos de imagens
Brasil seria a primeira apresentação da cultura brasileira nessa es- em Antuérpia (17 de maio de 2011 a 30 de dezembro de 2012),
cala, a ser realizada na Europa com uma significativa participação no MAS, mais recente museu aberto na cidade.
do país, em particular na curadoria das diferentes exposições (R. Contudo, a obra apresentada na última exposição, Zero Dollar,
Brito, G. Bueno e S. Salcedo (ed.), 2011, p. 9-11). ilustrou a tématica da arte como alternativa à economia, mas não
Esse ponto de vista propriamente brasileiro seria a diversidade houve contextualização ou explicação sobre o artista, que aliás não
de um Brasil miscigenado e sincrético, que representa um aspec- teve relações particulares com a cidade de Antuérpia, fio condu-
to menos conhecido do Brasil na Bélgica (R. Brito, G. Bueno e tor da exposição.
S. Salcedo (ed.), 2011, p. 9-12). Essa temática estruturou Brazil. Depois do encerramento de Europalia.brasil, pelo menos du-
Brasil, uma das maiores exposições do festival, que aconteceu no as exposições em Bruxelas foram dedicadas exclusivamente à arte
Bozar, e que retraçou o aparecimento do modernismo no Brasil e brasileira contemporânea. A exposição Brazilian Modern, que reu-
a sua busca por uma identidade artística própria e que incorporou niu prataria, joalheria, moda e artes plásticas nacionais seleciona-
tanto as inovações das vanguardas europeias como a diversidade das por Cristina Barros e Laurence Lachambre.
étnica do país. Essa tématica também esteve implícita em expo- 7SP: 7 Artists from São Paulo, exposição que teve curadoria
sições menores tais como Incorporations: Afro-brazilian contem- de Rejane Cintrão, reuniu os trabalhos de Paulo Climachauska,
porary art que apresentou, de forma pedagógica e didática, obras Sandra Cinto, Albano Afonso, Raphel Carneiro, Ana Elisa Egreja,
contemporâneas relativas à questão da herança negra no Brasil. Wagner Malta Tavares e Rodrigo Bivar. O fato mais relevante, no
Se a Europalia.Brasil reflete uma certa mudança de menta- entanto, é que essa exposição foi escolhida para inaugurar o CAB
lidade em relação ao Brasil pelo fato de o considerar como um – um novo centro de arte contemporânea aberto em Bruxelas –,
país com um grande potencial, inserido no importante bloco dos além de acontecer paralelamente à Art Brussels – principal feira
países emergentes do BRIC e, também, pelo fato de reconhecer de arte contemporânea na Bélgica. Aliás, o Brasil é representado
a necessidade de superação dos antigos clichês impregnados de nessa feira há dois anos pela Galeria Leme de São Paulo, e as obras
exotismo que cercam o país sul-americano (B. De Baere, 2011, p. de Paulo Climachauska e Rafael Carneiro são representadas pela
14), na prática, esses estereótipos ainda povoam as representações galeria belga Bodson-Emelinckx. Seu sócio-proprietário Charles
do público belga em geral. Efetivamente, ainda são projetadas so- -Antoine Bodson explica que foi ao Brasil por interesse próprio,
bre a arte brasileira noções como arte primitiva ou popular, sensu- mas que não foi Europalia.Brasil ou outras exposições que o in-
alidade e cores quentes. Segundo Afrânio Fonseca de Paula, que centivaram, e sim a situação econômica atual do Brasil, que é se-
trabalhou como monitor fazendo visitas guiadas na maior expo- melhante à situação da China há alguns anos. O galerista explica
sição de arte contemporânea do festival, Art in Brazil, que cobria que se antes se falava muito pouco do Brasil, hoje o momento é
a arte brasileira dos anos 50 até hoje, a tendência do público era de um crescente interesse das galerias pelo gigante da América
esperar algo mais “autêntico” e “legitimamente brasileiro” com Latina porque há mercado e uma grande efervescência de novas
uma coloração local e diferente do que se encontra na Europa. inciativas. Tal fato é comprovado, por exemplo, pela abertura em
Esse foi o caso, por exemplo, do confronto do público com o rigor dezembro de 2012 de uma filial da White Cube em São Paulo,
e a geometria do concretismo. Além disso, algumas das obras que uma das maiores galerias mundiais.
faziam referência a situações e vivências propriamente brasileiras Portanto, antes dos anos 90, poucas exposições de arte con-
ficaram herméticas para um público que conhece muito pouco da temporânea brasileira eram realizadas na Bélgica, e mesmo as
história do país e necessitava de mais chaves de leitura para uma que foram realizadas deviam-se a ocasiões de eventos ou acor-
apreensão completa de seu sentido. dos bilaterais. Os artistas brasileiros começam a ter visibilidade a
Tal constatação prova que a problemática e o desafio da reali- partir dos anos 90, num contexto de interesse pela arte dos países
zação de exposições de artistas brasileiros no exterior ainda oscila “periféricos”, relativamente desvinculados do eixo Europa–Esta-
entre dois polos extremos: “Como pode o distante olhar estran- dos Unidos. Porém, a visibilidade da arte brasileira na Bélgica foi
286
pintura e escultura
menos importante do que nos países vizinhos tais como a França Artistas brasileiros vivendo na Bélgica
e a Inglaterra, que já divulgam artistas do país há mais tempo e de
forma mais sistemática. Na Bélgica, as exposições de artistas bra- Depois de um panorama geral (e voluntariamente generalista)
sileiros foram principalmente resultado de iniciativas individuais, sobre a visibilidade da arte brasileira na Bélgica, convém também
como as de Catherine De Zegher, Cristina Barros ou Dorothée abordar alguns casos de artistas brasileiros que lá vivem. Porém,
Luczak, e são permeáveis a outros eventos que puderam contribuir geralmente a compreensão e concepção da noção de “artistas bra-
para a divulgação da arte brasileira na Europa, como a Documenta sileiros” tende a excluir aqueles que vivem e trabalham em outros
ou o ano do Brasil na França. Isso talvez explique a recorrência países, onde eles também não entram na categoria de artistas na-
das exposições de alguns artistas e, talvez, a ausência de manifes- cionais (G. Brett, 1989, s.p., [ p. 33]). Contudo, são esses artistas
tações artísticas incluindo outros. Enquanto artistas como Sandra expatriados que melhor encarnam a ideia de intercâmbio e inte-
Cinto, Albano Afonso ou ainda Paulo Climachauska já têm um ração entre países, às vezes de forma bastante palpável, como ve-
histórico de exposições na Bélgica, artistas como Beatriz Milha- remos em algumas obras. Por essa razão nos parece fundamental
zes ou Adriana Varejão, que desfrutam de um reconhecimento no contexto desta publicação apresentar brevemente seus traba-
nacional e internacional, não tiveram muita visibilidade na Bél- lhos e seus percursos.
gica (segundo o currículo das duas artistas publicado no site da
galeria Fortes Vilaça). Afrânio Fonseca de Paula, entre mémoria pessoal
Com o crescimento econômico do Brasil nos últimos anos e e coletiva
com a realização dos eventos esportivos (Copa do mundo da FI-
FA, em 2014, e Olimpíadas, em 2016), as atenções se voltam para Natural do Ceará, Afrânio Fonseca de Paula cursou dois anos
o Brasil e estimulam um interesse crescente e mais generalizado de História na Universidade Estadual do Ceará seguidos de dois
pela arte brasileira. E ainda que esta afirmação possa ser vista de anos de Desenho e Pintura na Faculdade de Belas Artes de São
forma negativa, é imperativo que o Brasil aproveite esse momento Paulo. Entretanto, ele desejava obter uma formação complemen-
oportuno para ganhar visibilidade na cena artística internacional, tar de uma academia de pintura europeia, onde pudesse adquirir
impondo-se como ator de peso no circuito de arte. Mas para que mais técnica e prática. Se a sua escolha inicial oscilava entre a
essa posição persista e seja coerente, é preciso que o país se faça Royal Academy de Londres, a Kunstakademie Düsseldorf e a Aka-
reconhecer por sua história e sua arte, e não alimentando os cli- demie der Künste em Berlim, o artista sempre manteve uma curio-
chês que ainda persistem. sidade pela Bélgica. Efetivamente, o pequeno país tem uma forte
tradição de pintura a óleo desde os primitivos flamengos como Jan
Bibliografia Van Eyck, até os retratos de Van Dyck e as dramáticas cenas de
Brito R., G. Bueno e S. Salcedo (éd.), Art in Brazil 1950 – 2011, catálogo de exposição, Rubens. Isso o levou a enviar um dossiê para a Academia Real de
4 outubro 2011 – 15 janeiro 2012, Bozar. Centro de Belas Artes, Bruxelas, 2011. Belas Artes de Bruxelas, onde foi aceito.
Comunicado de imprensa 5ème Biennale internationale de la Photographie et des Arts vi- O artista chegou a Bruxelas em 1999, quando a cidade ainda
suels de Liège. BRASIL - Du 19 février au 2 avril 2006.
De Baere B., I. Koeckelberghe N. Van Hout, Images pensées. Cinq siècles d’images à An- não era um centro artístico muito conhecido na cena internacio-
vers, Antuérpia, 2011. nal. Entretanto, ela já oferecia uma grande facilidade de acesso a
Deepwell K., “An Interview with Catherine de Zegher, curator of Inside the Visible: An informações e bibliotecas, além de uma oferta cultural considerá-
Elliptical Traverse of Twentieth Century Art, in, of, and from the feminine”, n. para-
doxa, 1, dezembro 1996, p. 57-67. vel. Além disso, Afrânio Fonseca de Paula também se identificou
De Zegher C., Tunga “Lezarts” – Cildo Meireles “Through”, catálogo de exposição, 20 de com a diversificação e o cosmopolitismo da cidade que criaram
maio – 22 de outubro 1989, Kanaal Art Foundation, Courtrai, 1989. um ambiente propício à sua criação. Por conta disso, Bruxelas teve
Duplat G., “ Eux, ils interpellent encore la société” em Culture em Lalibre.be, 16/02/2006,
[ http://www.lalibre.be/culture/global/article/269175/eux-ils-interpellent-encore-la-so- uma grande influência no trabalho do artista.
ciete.html], (15/09/2012). Em primeiro lugar, foi na capital da Europa que Afrânio Fonse-
Farias A., “Brésil: un petit manuel d’instructions”, Art Press, 221, fevereiro 1997, p. 34 – 39. ca de Paula adotou o material de base do seu trabalho atual: peda-
Fialho A. L., L’insertion internationale de l’art brésilien. Une analyse de la présence et de
la visibilité de l’art brésilien dans les institutions et le marché, Tèse de doutoradoapre- ços de porcelana recuperados. O artista coleta fragmentos de louça
sentada na École des hautes études en sciences sociales, Paris (Jacques Leenhardt, em porcelana que são descartados ao final do maior mercado de
orientador), 2006. pulgas de Bruxelas, no bairro popular Maroles. Esses fragmentos
Fialho A. L., “As exposições internacionais de arte brasileira: discursos, práticas e interes-
ses em jogo”, Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n° 3, set.-dez. 2005, p. 689 – 712. são utilizados como cacos de mosaicos para revestir ou compor fi-
Musées royaux des beaux-arts de Belgique, Créativité dans l’art brésilien contemporain, guras tridimensionais. Dessa forma, o artista dá uma segunda vida
catálogo de exposição, Bruxelas, 10 maio-24 de maio de 1978, Bruxelas, 1978. a esses objetos descartados reunindo-os em mosaicos que amalga-
Robberechts C., S. Beele, C. de Zegher e H. Verschaeren (ed.), America. Bride of the Sun.
500 years Latin America and the Low Countries, catálogo de exposição, 1 de feve- mam as diversas histórias associadas aos seus usos anteriores.
reiro – 31 de maio de 1992, Museu Real de Belas Artes de Antuérpia, Gand, 1992. Em segundo lugar, alguns temas iconográficos povoam o tra-
Roelstraete D. (éd.), A Rua. Rio de Janeiro & The Spirit of the Street, catálogo de exposi- balho do artista, como por exemplo o seu emblemático Manne
ção, MuHKA.Museu de Arte Contemporânea de Antuerpia, Antuerpia, 6 outubro
2011 – 22 janeiro 2012, Antuerpia, 2011. ken-Pis Blanc realizado em 2009, que constitui uma releitura do
Storr R., “The carioca & the paulista”, Art in America, setembro de 2012, p. 104-108. mascote da cidade, literalmente um menininho que urina. O artis-
ta achou uma estátua quebrada do Manneken-Pis e a usou como
287
parte 9 – artes plásticas
base para sua obra. A escultura original foi recoberta por cacos de
objetos utilitários dos quais a função primeira foi desviada. Por
exemplo: o órgão sexual da estátua é representado pelo bico de
um bule de chá.
Talvez esse espírito de desvio e subversão tenha sido algo que
lhe foi transmitido pela Bélgica, e que encontra um eco no traba-
lho de artistas como René Magritte, Marcel Broothaers ou James
Ensor. De toda forma, o artista brasileiro conseguiu conciliar a
figura folclórica que marcou a história coletiva da cidade com
fragmentos de memórias individuais (site Ville de Bruxelles). Es-
sa livre interpretação do mascote da cidade foi apreciada pelos
belgas, tanto que a obra foi adquirida pelo Museu da Cidade de
Bruxelas – Maison du Roi, em 2011, e está exposta na sala consa-
grada ao Manneken-Pis.
288
pintura e escultura
Além de seus projetos artísticos, Sidnei Tendler também de- de Munich em 2008. Em 2009 também foi comissionado para rea
senvolve atividades educativas na Bélgica. Em 2001 apresentou lização de Good Luck, para o Museu da Ourivesaria Sterckhof, na
um seminário na escola europeia de Bruxelas aos alunos do último Província de Antuérpia.
ano em Artes Plásticas e, de 2002 a 2004, foi idealizador de diver- Apesar da participação nesses diversos eventos, a obra de Nil-
sos seminários no centro cultural De Warende, em Turnhout. O ton Cunha se situa mais precisamente no cruzamento entre a sua
artista também montou seu próprio ateliê na Bélgica, primeiro na cultura natal brasileira e a cultura da Bélgica, país onde vive e
cidade de Mol e depois em Overijse, antes de se estabelecer em trabalha há 20 anos. A este respeito, o artista explica que o diálo-
Bruxelas, onde atualmente vive e trabalha. Este espaço projetado go e a interação entre essas duas matrizes são fonte de inspiração
para estabelecer diálogos, discussões e trocas entre artistas e pro- que alimentam e estruturam sua arte. Um exemplo significativo
fissionais do mundo da arte, sediou exposições de diversos artistas é a obra intitulada Pomar, que apresenta uma superfície branca e
durante o projeto Ateliê Sidnei Tendler Invites. Agora abre espaço plana de formato retangular, na qual estão fixadas pequenas hastes
para novos artistas no seu projeto mais recente, Showing Young de diferentes tamanhos e sobre as quais estão dispostas taças cir-
Talents, onde o artista espera poder criar um intercâmbio entre culares de prata. Em português, o título remete a um terreno de
a Bélgica e o Brasil, em que os artistas possam expor respectiva- árvores frutíferas, enquanto em francês ele evoca as palavras maçã
mente nos dois países. Esta, aliás, também é a ambição da galeria e arte (respectivamente “pomme” e “art”). Ao mesmo tempo que
TeC – Tendler Contemporânea, nova galeria de arte aberta no Rio a obra remete ao pomar, ela ergue e valoriza cada fruta em vez de
de Janeiro por sua esposa Carla Tendler, que pretende reforçar a apresentá-las de forma amontoada e desordenada. Assim, com esse
ponte entre os dois países. jogo de palavras e línguas, Pomar reflete a maneira na qual Nilton
Cunha “preserva uma cultura e absorve outra”.
Nilton Cunha, entre a esfera linguística Depois de conciliar essas duas esferas de influência e de estar
francófona e lusófona fora do Brasil por tantos anos, o artista deseja compartilhar seu
aprendizado e experiência em seu país de origem, que desde o
Nilton Cunha desenvolveu um trabalho consistente e diversi- século XIX, não teve uma grande tradição em ourivesaria. As téc-
ficado, que vai da prataria até a joalheria contemporânea, e que se nicas que aprendeu na Bélgica e a joalheria contemporânea ainda
destaca pela simplicidade e elegância de suas formas, assim como são pouco conhecidos no Brasil, e é esse manuseio que ele gostaria
pela sua habilidade técnica. Depois de seguir as primeiras aulas de de divulgar na sua terra natal.
ourivesaria, em uma escola particular de Belo Horizonte, o artista
se estabelece na Bélgica em 1992, então com 26 anos. Apesar de Inêz Oludé da Silva e a Bienal de artes
nunca ter planejado se instalar no país, ele expressa a sua satisfa- brasileiras de Bruxelas
ção de ter adotado a Bélgica e ser adotado por ela.
O primeiro aspecto relevante que contribuiu para o seu desen- Se o acaso trouxe à Bélgica os artistas que apresentamos an-
volvimento artístico é o acesso a formações e cursos de qualidade teriormente, o exílio político fez com que Inêz Oludé da Silva se
relativamente baratos em comparação a outros países. Depois da instalasse na Bélgica em 1976. Foi lá que ela encontrou na arte
sua chegada, Nilton Cunha completou a sua formação em joalhe- uma maneira privilegiada de expressar suas ideias e um meio de
ria, esmaltação e cinzel no Instituto Arts et Métiers, em Bruxelas, divulgação do seu engajamento. Autodidata, começou a pintar
de 1994 a 1999. Paralelamente, se especializou em ourivesaria no em 1991, mas tornou-se uma artista polivalente que se dedica
Instituut voor Kunstambachten, de Malines, entre 1998 e 2001. também à música, à dança e à arte postal; linguagem esta que
Desde esse período de formação, Nilton Cunha se destacou pela convém particularmente bem ao seu ativismo e que consiste em
qualidade do acabamento de suas peças e pela minúcia e precisão realizar colagens de pequeno formato com mensagens políticas
de sua realização técnica. Em 2000 sua obra Prato Valeiro venceu que são enviadas a outros artistas no mundo, estabelecendo assim
o prêmio Wim Ibens de ourivesaria contemporânea, e em seguida uma forma de arte livre de qualquer critério estético ou preocu-
foi apresentada no Museu do Design de Gand, onde recebeu uma pação comercial.
menção honrosa. No mesmo ano, o artista voltou ao Instituto Arts Além das ideias engajadas que ela faz circular com sua arte pos-
et Métiers, dessa vez como professor, onde lecionou até 2006 e, tal, a artista explica que vem lutando muito pelos artistas brasilei-
posteriormente, a partir de 2008. ros expatriados. Ela distingue os “artistas oficiais”, aqueles que são
O trabalho de Nilton Cunha também foi reconhecido fora da enviados pelo Brasil em exposições no contexto de acordos de co-
Bélgica, como indica, por exemplo, a sua participação em 2001 e operação, e os artistas “locais”, ou brasileiros residentes no estran-
2004 respectivamente nas 13ª e 14ª Silbertriennale em Hanau, na geiro, que não podem contar com o auxílio governamental mas
Alemanha, além dos diversos prêmios recebidos, como os presti- que na verdade constituem a memória viva do Brasil no exterior.
giosos SNS Bank Silver Day Public’s Prize, em 2006, e o Schoon Dois dos principais problemas que recaem sobre os artistas bra-
hoven Silver Award,em 2009, ambos em Schoonhoven, na Ho- sileiros no exterior são, segundo Inêz Oludé, a ignorância relativa
landa, e o Inhorgenta Innovation Award durante a Internationale à arte brasileira e os clichês sobre o Brasil. Efetivamente, a artista
Fachmesse für Uhren, Schmuck, Edelsteine, Perlen und Technologie insiste sobre o fato de que na Bélgica as pessoas desconhecem e até
289
parte 9 – artes plásticas
Bibliografia
As informações dos diferentes textos foram realizados a partir de entrevistas com os artistas e
‘Labirinto’, obra de Inêz Oludé da Silva.
com auxílio de documentos mencionados na bibliografia. As entrevistas aconteceram
em Bruxelas, no dia 2 de novembro de 2012 com Afrânio Fonseca de Paula e Sidnei
Tendler, dia 9 de novembro de 2012 com Inês Oludé da Silva e finalmente no dia 13
se perguntam se existe arte no Brasil. Essa foi a principal motiva- de novembro com Nilton Cunha.
ção que a estimulou a idealizar uma Bienal de artes brasileiras em Atelier Sidnei Tendler, About, 15/11/2012, [http://ateliersidneitendler.wordpress.com/
Bruxelas. Este evento tem como objetivo reunir e divulgar em uma about/], (04/12/2012).
Devoght T., 001. Sidnei Tendler, Turnhout, 1999.
exposição as obras dos artistas brasileiros que vivem e trabalham De Naeyer Ch., “Inêz Olude da Silva. L’expression comme nécessité”, Artenews, n°72,
na Europa, mostrando assim ao público europeu que o brasileiro maio 2011, p. 14.
é portador de uma cultura rica e diversificada. MintenI., “La classe ? C’est la personnalité qui joue avec le beau…”, ISEL, 21, p. 79-89.
Nys W., Nilton Cunha. Good Luck, catálogo de exposição, 25 de outubro de 2009 – 10
Em 2007, com o apoio da embaixada do Brasil na Bélgica e a de janeiro de 2010, Museu de ourivesaria Sterckhof da Província de Antuérpia, An-
Comune de Saint-Gilles, foi realizada a primeira Bienal de artes tuérpia, 2009.
brasileiras em Bruxelas. No catálogo dessa primeira edição, Inêz Oludé da Silva I. (ed.), Bienale des Arts Brésiliens de Bruxelles, Bruxelas, 2007.
Oludé da Silva I. (ed.), Catalogue 2eme édition 2009. Bienale des Arts Brésiliens de Bru-
Oludé expôs seus objetivos. Os principais são a realização de um xelles, Bruxelas, 2009.
mapeamento dos artistas brasileiros residentes na Europa, a di- Oludé da Silva I. (ed.), 3ème Biennale des Arts Brésiliens de Bruxelles. Catalogue 2011,
vulgação dos seus trabalhos no Brasil, assim como no exterior, e Bruxelas, 2011.
Ville de Bruxelles, “Witte Manneken-Pis Blanc” em Musées de la Ville, 01/12/2012, [http://
estimular e estabelecer as trocas entre o Brasil e a Europa. Dessa www.bruxelles.be/artdet.cfm/7156], (01/12/2012).
forma a arte adquire um papel de integração e se torna um ve-
290
pintura e escultura
291
parte 9 – artes plásticas
292
pintura e escultura
293
parte 9 – artes plásticas
294
pintura e escultura
rantia de sucesso. E assim foi levando; conseguiu seus primeiros Em 2004, teve que deixar a casa da Rua do Livramento em três
clientes, artigos na imprensa e a reputação de galeria de arte onde meses, pois ali seria construído um prédio. Procurar um novo local
era agradável passar um fim de tarde. transformou-se numa tarefa bem mais complicada do que tinha
Um ano mais tarde, transferiu-se para uma casa mais ampla e imaginado: ou os imóveis estavam deteriorados ou o aluguel estava
melhor localizada, perto do Parque do Ibirapuera, inaugurando além de suas possibilidades. Com muita sorte encontrou uma bela
uma nova galeria à qual deu seu nome. Nessa casa, na Rua do casa de 1925, renovada, maior, mais luminosa e não muito longe,
Livramento, seria realizada uma quantidade importante de ex- no Bairro de Vila Mariana, mais precisamente na Rua Morgado
posições individuais e coletivas durante os 25 anos seguintes. Em de Mateus, onde a galeria está instalada até hoje.
1998, conseguiu publicar um livro sobre a arte naïf do Brasil, que Depois de completar os dois anos obrigatórios no Brasil, Jac-
teve excelente receptividade; o livro foi reimpresso duas vezes e ques pensou na ideia de ficar mais um pouco. Este pouco dura já
hoje encontra-se esgotado. Em 2002, teve também a sorte de po- quase 40 anos e não há perspectivas de modificar este quadro tão
der editar um livro sobre a vida e a obra do artista pernambucano cedo. Jacques é casado com Lucia Diniz, sua esposa e companhei-
Ivonaldo Veloso de Melo, comemorando uma parceria bem su- ra de todos os desafios. Tiveram três filhos: Maité, Joyce e Daniel,
cedida de 22 anos e que se mantém até hoje. todos formados e seguindo carreira profissional.
295
parte 9 – artes plásticas
Sobre a arte naïf, por Jacques Ardies inconsciente coletivo. Há muita poesia, observação encantadora,
uma desajeitada habilidade charmosa, uma mensagem positiva
É uma classificação para definir um grupo de pintores que ex- e, enfim, um mundo encantado. Os olhos agradecem por tanta
pressam livremente suas memórias e suas emoções. Sem a ajuda beleza e sutil emoção. Os meus clientes costumam sorrir quando
de um professor de Belas Artes, eles conseguem superar as difi- observam os quadros expostos.
culdades técnicas e inventam uma linguagem inédita e pessoal. Depois da revolução da arte moderna, vivemos uma implacá-
A palavra francesa naïf significa ingênuo, e foi dada ao estilo apre- vel necessidade de apresentar novidades no mundo das artes. A
sentado por Henri Rousseau, que se juntou aos revolucionários arte conceitual, as performances e as instalações requerem grande
da arte moderna. Rousseau era uma pessoa sensível que vivia um concentração e leitura de muitas explicações esclarecedoras. A ar-
pouco fora do seu tempo. Ele tinha o seu lado bem ingênuo e te virou um terreno fértil para muitas extrapolações que aparecem
sua pintura espontânea encantava pelo talento criativo e inédito. tão rapidamente quanto são esquecidas, assim que os efeitos das
Tenho um fascínio pela arte naïf porque ela se inspira nas modernas técnicas de marketing desmoronam. Neste contexto, a
raízes culturais. Penso também que representa uma expressão ar- arte naïf oferece um sopro de ar fresco, uma obra honesta e dedi-
tística de grande valor pela criativitade e orginalidade de seus ar- cada, uma expressão sem maior implicância intelectual, apreciada
tistas. Cada um apresenta uma obra diferenciada, inconfundível, e admirada pelo povo e também pelos intelectuais e colecionado-
expressiva e que se inspira em sua vivência pessoal e invade o nosso res contemporâneos.
296
pintura e escultura
297
parte 9 – artes plásticas
parte destes de mergulhar na vanguarda. No entanto, alguns de- a produção do artista popular data, em geral, da sua maturidade.
les, apesar de tudo, dela participam. Existe um exemplo mais belo Um exemplo entre tantos outros, um dos maiores escultores de
de arte minimalista que a de Nhô Caboclo (c. 1910-1976), genial madeira do Brasil, Geraldo Teles de Oliveira – GTO (1913-1990)
criador de ascendência indígena, que alia modernidade e cultura –, só entra de cabeça no trabalho a partir de 1965 – ou seja, quan-
ancestral naqueles navios de guerreiros e de escravos? do o artista já está com 52 anos –, e ele só atinge a plenitude da
Mas a maioria dos artistas populares partiu dos objetos de uso. sua arte uma década depois. E não se trata de um caso extremo.
Assim, a inspiração das esculturas do Vale do Jequitinhonha (Mi- Pode-se notar que assistimos, para alguns destes artistas, um
nas Gerais) vem das antigas moringas que podiam guardar a água certo efeito rotor: em um momento da sua vida, um artesão aban-
fresca nesta região seca. Por sua vez, Mestre Guarany (1882-1979) dona o seu lado utilitário para se dedicar definitivamente à cria-
esculpiu as famosas carrancas para as embarcações que navega- ção artística. Este, em questão, adquire, então, sua autonomia
vam no Rio São Francisco, mas a grande maioria destas obras foi e pode, algumas vezes, reivindicar um certo reconhecimento. E
criada depois que a utilização destas cabeças de proa fantásticas seu sucesso é tal que a demanda fica cada vez maior. O artista é,
foram descartadas. Essas obras passaram a ser esculpidas enquanto então, forçado a trabalhar sob encomenda, repetindo suas obras
objeto de arte em si. mais populares e perdendo, desta forma, toda sua alma criativa.
Da mesma forma, Vitalino Pereira dos Santos (1909-1963), Ele se vê de volta ao lugar onde começou: rumo à produção em
no início, criava seus personagens com barro para fazer brinque- série, ainda menos interessante que o artesanato.
dos, antes de suas peças se tornarem estas magníficas testemunhas Muitas vezes ele não tem escolha, pois é deixado proposital-
da vida nordestina, muito apreciadas pelos colecionadores atuais. mente nos limites de uma certa pobreza pelos marchands pou-
O artista popular é, geralmente, fruto de condição modesta, que co escrupulosos. Dão-lhes apenas o suficiente para cobrir suas
possui um nível de educação e de cultura um tanto restrito. Ele necessidades e para trabalhar. Os lugares de difícil acesso onde
não tem formação artística. É um criador intuitivo e instintivo que vivem não lhes permitem usufruir de alguma concorrência, nem
produz uma arte autêntica, mas, contudo, muitas vezes, sofistica- de promover sua arte. Grandes nomes, como o famosíssimo es-
da; um homem ou uma mulher que trabalha duro e que se dedica cultor ceramista de Pernambuco, Mestre Vitalino, não escaparam
ao seu meio de expressão (pinturas, esculturas) após suas horas de dessa armadilha. Por isso, os colecionadores de hoje se focam na
‘batente’, ou assim que entram na aposentadoria. Seu ambiente produção que o artista criou quando este não estava sujeito a ne-
de vida é simples e rústico, nos vilarejos remotos do interior do nhuma restrição. Quando ele ainda não havia sido engolido pelo
Brasil, na costa ou nas periferias das grandes cidades. Não se trata comércio e pela superprodução.
aqui de fazer o retrato romântico do artista vivendo em condições
precárias que, na dor e na miséria, percebe que tem, de repente, Daniel Achedjian, doutor em História da Arte, se apaixonou pela
o dom de criação. música e arte popular brasileira. Constituiu uma grande coleção em
Muitas e muitas vezes ele foi, inicialmente, artesão para so- Bruxelas, onde, como radialista, mantém o programa “Tropicalia”
breviver, antes de se tornar artista para se expressar. Vemos que na Rádio Judaica.
298
pintura e escultura
A Presidenta Dilma Rousseff com o Rei Albert II e a Rainha Paola por ocasião do festival Europalia.Brasil.
Ritmos, cores, formas... Em 2011-2012, Europalia fez ra em 2009, na época ministro da Cultura, que deu luz verde ao
a festa do Brasil projeto e determinou suas grandes linhas. Em seguida, em 2011,
Ana Buarque de Hollanda, ministra nomeada pela nova presiden-
24 exposições, 137 concertos, 105 encontros literários e con- ta, Dilma Rousseff, retomou o projeto. Dois comissários-gerais
ferências, 62 espetáculos de dança, 31 apresentações teatrais, 4 investiram toda sua energia nesse vasto projeto: Sérgio Mamberti
espetáculos de circo, mais de 100 sessões de cinema... Quer dizer e Pierre Alain De Smedt.
1.033 artistas e especialistas vindos do Brasil para o festival, 208 Ritmos, cores, formas… patrimônio e arte atual: mais de 200
parceiros culturais na Bélgica, 103 dias de festival, 71 cidades, 5 sítios culturais na Bélgica e nos países vizinhos deixaram o público
países e finalmente 913.000 visitantes e espectadores. O festival europeu descobrir o Brasil, sua vitalidade, seu calor, sua abundân-
Europalia.Brasil foi um verdadeiro ‘fogo de artifício’ cultural. cia de identidades e de culturas.
País em movimento, resolutamente moderno e orientado sobre
o futuro, o Brasil soube valorizar suas origens e o mosaico de povos Exposições ‘sob medida’
que o compõem. Mistura um mundo inteiro: dos herdeiros dos
colonos europeus aos índios da Amazônia, dos afro-brasileiros aos Brazil.Brasil, no Palácio de Belas Artes de Bruxelas, traça a
numerosos imigrantes japoneses, libaneses, italianos ou alemães. busca apaixonante de uma expressão da diversidade e da(s) iden-
O desafio era o de confrontar o público europeu o melhor possí- tidade(s) do Brasil por artistas brasileiros, ansiosos de liberarem-se
vel com esta complexidade. E de ultrapassar os estereótipos que do barroco onipresente e das influências coloniais. Desde o início
somente se limitam a aspectos como o futebol, as favelas, o samba do século XIX, com sua ‘arte nacional’, preconizada pela monar-
e o carnaval. O tema da diversidade se impôs quase naturalmente quia e academia brasileiras, até o início do século XX, quando os
e permitiu ao público perceber o país sob este prisma diferente. artistas brasileiros procuram desvelar a alma de seu país, resultan-
O conjunto do programa foi elaborado em colaboração com do numa arte moderna própria. Os comissários desta exposição,
o Ministério da Cultura do Brasil. O impulso veio de Juca Ferrei- Ana Maria de Moraes Belluzzo, Julio Bandeira, Victor Burton e
299
parte 9 – artes plásticas
Montagem da tela “Primeira Missa do Brasil, de Victor Meirelles, de 1860, na exposição para o festival Europalia.Brasil.
Lorenzo Mammi, fizeram o público europeu conhecer a história ção singular se refletia em todas as expressões artísticas: desenhos,
da arte brasileira, e notadamente do modernismo incontornável. pinturas, esculturas, objetos de arte, ourivesaria e, também, nas
Entre os artistas apresentados: Aleijadinho, Victor Meirelles, Je- ciências. O roteiro da exposição narra 400 anos de história, desde
an-Baptiste Debret, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Cícero a descoberta portuguesa do Brasil, passando pela época holandesa,
Dias, Emiliano Di Cavalcanti, Oswald de Andrade, Vicente do as expedições alemãs, francesas e portuguesas e a longa história
Rego Monteiro, Candido Portinari, Lasar Segall, Oswaldo Goeldi, colonial até o Império brasileiro do século XIX e o início da Repú-
Arthur Bispo do Rosário, Alfredo Volpi… blica. Comissários: Valéria Piccoli, Eddy Stols, Patricia De Peuter.
Índios no Brasil, no Museu do Cinquantenaire de Bruxelas, Art in Brasil, no Palácio de Belas Artes de Bruxelas, esboça a
levou o visitante ao coração da Amazônia brasileira e à descoberta evolução e a revolução na arte brasileira dos anos 1950 até hoje.
da imensa diversidade dos povos indígenas. Um percurso inédito Um tema e uma exposição originais vistos pela primeira vez na
permitiu mergulhar no meio de sua vida cotidiana, de encontrar Europa a partir de uma perspectiva brasileira. Comissários: Ronal-
seus xamãs, de compreender sua organização social e de partici- do Brito, Vanda Klabin, Guilherme Bueno, Sonia Salceido, Cauê
par de seus ritos. Cestarias, cerâmicas, máscaras, instrumentos Alves, Marcus Lontra, Alexandre Dacosta, Luiz Camillo Osório,
musicais ou suntuosos cocares de plumas, objetos utilitários ou Luiz Eduardo Meira de Vasconcellos.
sagrados revelavam aos olhos do público todo um universo desco- A Rua, a exposição apresentada no MuHKA, Museu de Arte
nhecido de uma incrível vitalidade. Comissários: Lucia Hussak Contemporânea de Antuérpia, trouxe cerca de 20 artistas, cuja vi-
van Velthem, Gustaaf Verswijver. da e obra têm relação peculiar com a cidade do Rio de Janeiro. A
Terra Brasilis, no Espaço Cultural ING de Bruxelas, mostrou exposição se concentrou sobre a evolução da cena artística do Rio
a influência recíproca entre a Europa e o Brasil na descoberta, ao longo dos quatro últimos decênios e focalizou a noção da rua e
valorização e exploração da fauna e flora brasileiras. Esta intera- seu papel na produção artística carioca contemporânea. Os artistas
300
pintura e escultura
apresentados: Artur Barrio, Ricardo Basbaum, Waltercio Caldas, por ocasião do festival e contribuíram com 64 conferências, de-
Lygia Clark, Dias & Riedweg, Guga Ferraz, Ivens Machado, Anna bates e leituras. Um êxito e uma surpresa, visto o número limi-
Maria Maiolino, Antonio Manuel, Cildo Meireles, Ernesto Neto, tado de autores brasileiros traduzidos para o francês e sobretudo
Helio Oiticica, Arthur Omar, Rosana Palazyan, Lygia Pape, Paula para o n eerlandês. No total, 24 intervenientes, como João Ubaldo
Trope, Alexandre Vogler… Comissário: Dieter Roelstraete. Ribeiro, Augusto de Campos, Bernardo Carvalho, Zuca Sardan,
Vinte outras exposições trataram de temas muito diversos, tais Lourenço Mutarelli, Ricardo Domeneck, Arnaldo Antunes, Da-
como a arte afro-brasileira, a fotografia, a gravura, o design, a ar- niel Galera e Chico Alvim.
quitetura com mostras particulares dedicadas a Lina Bo Bardi, Cinema: Cinco encontros com cineastas brasileiros e pelo me-
Sérgio Bernardes, Paulo Mendes da Rocha e à cidade de Brasília, nos 100 projeções foram organizados durante o festival. Um con-
ou ainda sobre Arthur Bispo do Rosário, os carnavais brasileiros, vidado de honra: Walter Salles.
Copacabana, as joias afro-brasileiras, a febre do ouro, os diaman- Fundamentalmente, Europalia quis, como de seu costume,
tes, as viagens do Rei Leopoldo III ao Brasil e Tintin no Brasil. acentuar os encontros e suscitar ou despertar as colaborações en-
tre os artistas belgas e brasileiros. Dentro desta ótica, dançarinos e
Eventos de artes cênicas… completas! atores brasileiros foram acolhidos para desenvolver os projetos em
residência. O concerto de Thoots Thielemans e de seus ‘Brazilian
Os eventos musicais tiveram um êxito impressionante. Uma friends’ foi um dos momentos memoráveis do festival.
tamanha concentração de cultura brasileira não é pão de todo dia O Clube Brasil, instalado a dois passos da Grand’ Place de
na Europa e os amantes de música se regalaram. Do Norte ao Sul, Bruxelas, foi o coração vivo do festival, com suas irresistíveis cai-
os diversos estilos e tendências atuais puderam expressar-se nas pirinhas, seus cursos de dança, seus concertos e seus ateliês gra-
cenas europeias. Entre os artistas: Teresa Cristina, Tom Zé, Velha tuitos, um lugar de reunião e convivialidade com a comunidade
Guarda da Portela, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Hamil- brasileira na Bélgica.
ton de Holanda, Naná Vasconcelos, Dona Cila, Chico Pinheiro, Europalia.Brasil foi uma aventura artística e humana, apaixo-
Céu, Barbatuques, Marlui Miranda, Chico Correa, Dj Dolores, nante e enriquecedora; um encontro entre a Europa e o Brasil,
DJ Tudo… Samba, forró, choro, coco, dj’s & vj’s, música tradicio- país vasto como um continente que, certamente, não deixará de
nal ou experimental, grandes clássicos ou underground, um pouco surpreender nos próximos anos.
de tudo, para todos os gostos!
Em matéria de dança, Europalia acolheu com orgulho e ad- Kristine De Mulder é formada em Arquitetura de Interiores e em
miração o Grupo Corpo, mas também Lia Rodrigues, Balé Fol- Arqueologia e História da Arte na Universidade Livre de Bruxelas
clórico da Bahia, Mimulus, Quasar e ainda Marta Soares e Mar- (VUB), fez carreira como curadora de arte e de comunicação no
celo Evelin. O teatro também participou da festa com Zé Celso, setor acadêmico, mediático e empresarial e é desde 2003 diretora-
monstro sagrado por excelência, Enrique Dias e Cibele Forjaz. E -geral da Europalia International, além de membro dos conselhos
para os amantes do circo e dos mamulengos: a espantosa Intrépida de administração do Festival van Vlaanderen e do Concours Reine
Trupe, a magia do Grupo Giramundo e da Nau de Ícaros. Elisabeth. Recebeu em 2012, por seu engajamento cultural, o títu-
Literatura: Poetas, escritores, filósofos, professores e especia- lo de baronesa.
listas da literatura brasileira vieram em grande número à Belgica
301
histórias em quadrinhos
302
histórias em quadrinhos
Caatinga
Hermann Huppen
303
parte 9 – artes plásticas
Interpretação da
personagem Lapião
pelo desenhista e
cenarista Harmann
Huppen.
304
fotografia
305
parte 9 – artes plásticas
na Biblioteca Nacional como uma formalidade constitutiva do Sua produção distinguia-se pela originalidade das ilustrações,
Direito Autoral. ângulos e objetivos fotografados, tanto no Rio de Janeiro como em
O primeiro registro no Escritório de Direitos Autorais da Bi- outros lugares do Brasil, como Minas Gerais, Bahia, Pernambuco.
blioteca Nacional foi o da “Lithographia e Cromolithographia” da O legado iconográfico-documental deixado por Leon de Ren-
empresa Leon de Rennes e Cia. – requerido em 14 de outubro de nes faz dele um dos editores mais procurados e valorizados pelos
1898, deferido em 7 de dezembro de 1898, com termo lavrado colecionadores e estudiosos do passado brasileiro.
em 16 de dezembro de 1899 (Livro 1, fl 1, nº 1).
No início do século XX, Leon de Rennes estava entre os pio- Monsenhor Jamil Abib é Vigário-Geral da Diocese de Piracicaba e
neiros na impressão e venda de cartões-postais ilustrados, no ata- Mestre em História. Atuou na história da Igreja no Brasil (Cepehib)
cado e no varejo, atendendo assim à enorme demanda que esse e na defesa do patrimônio como conselheiro do Condephaat. Reuniu
comércio experimentou na época. Era, já, a idade de ouro do uma das maiores coleções de cartões postais com temas brasileiros.
cartão-postal também no Brasil.
306
fotografia
Praça Doutor Chaves ou Praça da Matriz, em Montes Claros, por volta de 1910, repleta de gente bem vestida, talvez por ocasião de uma das festas religiosas da
Semana Santa relatadas pelos missionários em suas cartas. Na frente de um grupo, caminham meninas de roupa branca, possivelmente de 1a comunhão, cada uma
levando na mão uma bandeira; no fundo, entre as duas casas maiores, vê-se uma fonte, sobre a qual sentam uma dezena de homens para ver melhor o espetáculo.
307
parte 9 – artes plásticas
Esta fotografia foi tirada na frente da Matriz de Montes Claros. A grande cruz e o altar externo, com um padre na sua frente, parecem indicar que a imagem mostra uma
missão organizada pelos norbertinos com a ajuda de redentoristas holandeses, como ocorreu em meados de 1907. A foto é interessante, sobretudo, pelo povo presente, bem
representativo da sociedade brasileira mestiça de brancos e muitos negros; um grupo de mulheres na frente, olhando para o fotógrafo, parece ser de origem índigena.
oblato Franz Van de Velde. Seus diários e notícias oferecem uma em Teresópolis e num bairro operário do Rio de Janeiro. Conser-
imagem da vida cotidiana, do clima, da história e do idioma desse vam atualmente, tanto como seus confrades de Averbode, ativos
povo, completada com fotografias e filmes. em Bom Jesus de Pirapora (SP), Jaguarão (RS), Petrópolis (RJ) e
Também a respeito dos países latino-americanos, os arquivos Jaú (SP), arquivos em sua própria abadia. ‘t Park se encontra pró-
religiosos belgas merecem ser pesquisados a fundo. Os jesuítas fo- ximo aos arredores de Lovaina e atende visitantes.
ram ativos na Guatemala, os redentoristas nas Antilhas, as irmãs de Lá, o fundo Brasil conta com quase um metro de documen-
Champion e os domínicos no Equador, as irmãs franciscanas de tos. Datam desde o período inicial até os anos de 1970, quando a
Gand na Argentina e os franciscanos no Chile. Sobretudo para o maior parte dos religiosos belgas voltaram e seus confrades brasi-
Brasil, a safra promete ser rica, com mais de uma dúzia de ordens leiros montaram seu próprio arquivo. O material é muito diverso:
acima relacionadas. Uma destas, os norbertinos ou premonstra- correspondências dos missionários e dos bispos locais, relatórios de
tenses, atuou no Brasil a partir de duas abadias suas na Bélgica, visitações, documentos sobre o patrimônio, contas, regulamentos,
Averbode e ‘t Park (do Parque). Desta última, os cônegos brancos, todo tipo de folhetos, personalia. Uma menção à parte merecem
como se conheciam no Brasil, passaram em 1898 primeiro por o dossiê e as fotografias da viagem ao Brasil do Rei Alberto I e da
Congonhas do Campo e Sete Lagoas para fixarem-se, em 1903, Rainha Elisabeth em 1920. Essas fotografias não são as únicas e,
em Montes Claros, cidades mineiras, de onde irradiaram sua pas- espalhadas pelo arquivo, podem localizar-se uma centena. Além
toral pelo norte de Minas Gerais. Serviram também em paróquias disso, há ainda dez pastas com fotografias dos anos de 1900 a 1970,
308
fotografia
Salão na casa do cônego Charles Vincart, que partiu em 1898 para o Brasil e
em 1903 foi nomeado pároco de Montes Claros, o novo posto missionário dos
norbertinos da Abadia do Parque, tendo como coadjutor Franciscus Moureau
(possivelmente são ambos nesta imagem). Acima deles um retrato, parecido com
o novo Papa Pio X, que em 1903 tinha sucedido a Leão XIII. O interior do salão
O cônego Lenaerts a cavalo, provavelmente em Montes Claros por volta de é ricamente decorado e tem um teto curioso; na mesinha se encontram livros e um
1907, quando chegou à missão. A foto não foi tirada ao ar livre na natureza, globo e as cadeiras são cobertas com uma pele de jaguatirica.
mas diante de uma tela grande dentro ou perto de um estúdio de um fotógrafo
profissional. Através destas extensas paróquias, os missionários viajavam a
cavalo, único meio de visitar os fiéis neste período pioneiro. Nas cartas escritas
para casa frequentemente insistem na importância do cavalo. Assim o cônego
Fessingher pretendia, já em 1901, que o pároco passava metade de seu tempo
a cavalo. Não é de estranhar que o arquivo dos norbertinos contenham várias
destas fotos de cavaleiros.
309
parte 9 – artes plásticas
O trabalho missionário nem sempre é tenso, parece sugerir esta fotografia. É uma das poucas identificadas no verso pelo carimbo do fotógrafo Antonio Quirino de
Souza. Trata-se de um piquenique na Lapa Grande, um complexo de grutas a cerca de 10 km de Montes Claros, ainda hoje procurado pelos turistas. O grupo, bastante
heterogêneo, com dois norbertinos e mais dois outros padres, celebra com caça e vinho.
310
fotografia
311
parte 9 – artes plásticas
Fotografia um pouco posterior à construção do mercado de Montes Claros, construído em 1899. Carros de bois e cavalos trazem as mercadorias. Se a foto não está
relacionada ao trabalho missionário dos norbertinos, mostra como coleções de congregações podem ser importantes para a história local, mesmo econômica.
alguns álbuns do padre Siardus Felix Maes e algumas centenas de com uma fotografia. Também as publicações do cônego Maurice
negativos, parcialmente em vidro. Gaspar, Les Prémontrés Belges et les missions étrangères (Lovaina,
Que num arquivo missionário se encontre material fotográfi- 1905), Dans le Sertão de Minas (Lovaina, 1910) e Trente années
co não é excepcional, muito ao contrário. Depois da invenção da d’Apostolat au Brésil par les Prémontrés du Parc (Malinas, 1930),
fotografia, todos os missionários e os superiores de sua congrega- levam ilustração interessante.
ção se deram conta da força dessa mídia. Para promover sua obra As fotografias do fundo Brasil são de qualidade desigual. As
e recolher meios financeiros utilizavam fotografias, tiradas pelos mais velhas do período pioneiro de 1900-1920 são geralmente
próprios missionários ou compradas dos fotógrafos locais. Assim boas. A autoria das fotos quase nunca é mencionada. Tampouco
fizeram os norbertinos da Abadia do ‘t Park. sabemos se os próprios missionários dispunham, na época, de uma
Imediatamente depois do começo da missão do Parque no máquina fotográfica. Apenas excepcionalmente aparece o nome
Brasil, seu abade, Quirinus Nols, lançou a propaganda da obra de um fotógrafo local: Max Rosenfeld (Rio de Janeiro), Symphro-
missionária. De 1899 a 1904 editou a Bibliothèque norbertine, se- nio Coutinho de Castro e Antonio Quirino de Souza (Montes
guida pela Revue de l’Ordre de Prémontré et de ses missions (1905- Claros). As fotos mostram as cidades onde os missionários da Aba-
-1915). Entre 1901 e 1914, Nols publicou ainda em neerlandês ‘t dia do ‘t Park eram ativos, as igrejas paroquiais onde serviam, suas
Parks maandschrift. Estas revistas tinham o propósito explícito de explorações na região – geralmente a cavalo –, seu apostolado de
exaltar a missão no Brasil, geralmente na forma de uma carta de ensino e a vida religiosa que estimulavam. Notável é também a
um dos missionários. Às vezes, mas nem sempre, eram ilustradas presença de muitos cartões-postais, como uma série sobre os povos
312
fotografia
Esta foto foi tirada em Sete Lagoas na frente de uma das capelas – neste caso, a de Nossa Senhora das Dores no bairro da Piedade – desta extensa paróquia, que os
norbertinos receberam sob sua guarda em 1900 e onde começaram uma escola. Sete Lagaos contava então com 7.000 habitantes numa região montanhosa de quase 1.000
km². Quando o missionário chegava a uma destas capelas – o que não acontecia frequentemente por causa da extensão do território – ocorriam manifestações de alegria,
que segundo o cônego Fesingher na revista missionária da Abadia do Parque em 1901, “faziam pensar em nossas quermesses”. Seria uma destas festas retratadas nesta
fotografia? Pelas tendas e pelo acordeonista à direita da capela parece ser o caso. E isto não impede que o cônego na porta da capela continue lendo seriamente um livro.
indígenas da Amazônia, nos álbuns de Siardus Felix Maes, que Publica sobre história do cinema e da fotografia e sobre história e
nos anos de 1930 era sobretudo ativo em Teresópolis e nos anos propaganda das missões.
de 1950, superior em Montes Claros. Sua viagem ao Brasil, em
1952, pode reviver-se a partir dos cartões: de Gênova, passando Bibliografia:
por Marseille, Barcelona, Mallorca, Olinda e Recife até o Rio de S. Van Lani. Witheren van ’t Park in Brazilië. 100 jaar missioneringswerk van de Abdij
Janeiro e, de lá, a Belo Horizonte e, finalmente, Montes Claros. van t’Park. Heverlee: Abdij van ’t Park, 2003. http://www.norbal.org/-Montes-Claros-
L. Vints. ‘Photographs of and with a Mission’ J. Tollebeek, ed. Mayombe. Ritual Sculptures
from the Congo. Tielt, 2010, 45-51.
Luc Vints é mestre em História da KU Leuven (1986). Nessa Uni- L. Vints. ‘Utilisation et valorisation des films missionnaires du KADOC-KU Leuven Trente
versidade dirige a seção de Publicações e Exposições do KADOC. ans d’expériences’. Paris, Karthala, no prelo.
313
parte 9 – artes plásticas
“Malgré certaines listes de plantes, listes inévitables dans une étude doux e A. Navez, da Université de Bruxelles –, desembarcou no
du genre, j’espère que les aperçus biologiques et géographiques in- Rio de Janeiro, vinda de Antuérpia (Bélgica). Esse grupo, vindo
téresseront l’Européen curieux de saisir les manifestations de la vie de diferentes instituições e liderados pelo biólogo e médico Jean
végétale sous le jeu libre des forces naturelles et loin de l’influence Massart (1865-1925), conhecido como o primeiro conservador
de l’homme”. (Massart, 1929) da natureza em seu país, se destinava à Amazônia e tinha co-
“A Manaos, elle fut reçue par le Consul de Belgique qui sut mo missão estudar a fauna e a flora do Brasil. Patrocinados pela
mettre à sa disposition tous les moyens de réaliser en peu de jours Monarquia belga e por associações científicas, os integrantes da
plusieurs voyages extrêmement instructifs dans les Igapos du Rio expedição percorreram, durante um ano, parte considerável do
Negro”. (idem) território brasileiro.
“Les cinq premières semaines y furent consacrées au travail dans
À esquerda, João Geraldo Khulmann e Paul Ledoux, num momento de descontração dos integrantes da “Missão Jean Massart”; note-se o material fotográfico e alguns
objetos que faziam parte da expedição.
314
fotografia
Jovem índio numa canoa, próximo à floresta de Jeretepaua, na Amazônia, imagem da “Missão Jean Massart”.
triotes, qu’ils emmenèrent, de plus, en de nombreuses et fructueuses de Minas Geraes et de Bahia, recevant partout le plus chaleureux
excursions”. (Marchal, 125) accueil de la part, non seulement des autorités scientifiques et ad-
Ao chegarem ao Rio de Janeiro, Massart e sua equipe se ins- ministratives, mais de la population tout entière.” (idem)
talaram no Jardim Botânico (JBRJ) – criado no século XIX e hoje A viagem ao Brasil permitiu a Massart, identificado por seus
autarquia do Ministério do Meio Ambiente, que tem como missão pares como um “animador de vocações científicas”, bem como aos
“Promover, realizar e divulgar o ensino e as pesquisas técnico-cientí- seus companheiros de jornada constatar hipóteses, propor novas
ficas sobre os recursos florísticos do Brasil, visando o conhecimento interpretações e gerar novos conhecimentos para a Botânica. Um
e a conservação da biodiversidade, assim como a manutenção das exemplo é o fato de um dos integrantes do grupo, o biólogo Ray-
coleções científicas sob sua responsabilidade” – e foram acolhidos mond Bouillene (1897-1972), fazer do resultado de sua viagem
pelo então diretor, o biólogo Antonio Pacheco Leão (1872-1931), à Amazônia a sua tese de doutoramento intitulada Un voyage bo-
bem como por seus pesquisadores, como foi o caso de João Ge- tanique dans le Bas Amazone (Uma viagem botânica pelo baixo
raldo Kuhlmann (1882 -1958), que seguiu com a expedição para Amazonas), considerado por seus biógrafos o primeiro ato de sua
a Amazônia. Além disso, os biólogos utilizaram os laboratórios e carreira científica.
fizeram viagens de reconhecimento a diferentes locais próximos “Tandis que Massart reprenait, le 5 janvier suivant, Le bateau
à cidade do Rio de Janeiro. pour la Belgique, ses compagnons se dirigeaient vers le Nord, vers
“Après avoir acquis cette première initiation à La connaissance Belem de Para, en vue de séjourner quelque temps dans le Bas-Ama-
de la flore et de la faune brésiliennes, les biologistes belges, toujours zone, région qui, à cause de son insalubrité, avait été interdite au
pilotés par de distingués spécialistes du pays, visitèrent un certain chef de l’expédition.” (Marchal, 126)
nombre de régions forestières et de steppes des États de Sao-Paulo, Durante a viagem, a expedição foi bem acolhida por onde
315
parte 9 – artes plásticas
316
fotografia
O rei Leopoldo III na sua visita aos Kayaó no Parque Nacional do Xingu em outubro de 1964. Raoni (à esquerda), ainda jovem naquela época, serviu de intérprete.
Mais tarde ele se impôs como um reconhecido defensor das terras indígenas na floresta amazônica.
317
parte 9 – artes plásticas
do mesmo ano, centrada somente na Amazônia. Fez, durante seis travam a dinâmica dentro do parque índigena e encontraram em
semanas, excursões a partir de Manaus pelo Rio Solimões e adja- Leopoldo uma testemunha que era felizmente excelente fotógrafo.
centes, acompanhado pelo professor Jean-Pierre Gosse, ictiólogo O rei se encantou com o porte físico destes índios e pelas danças
do Instituto Real de Ciências Naturais de Bruxelas, com a nature- dos Kayapó. Suas poderosas fotografias são de uma rara beleza e
za e principalmente os peixes amazônicos como prato principal. provam sua paixão pelo homem na natureza.
Entretanto, com a autorização do Serviço de Proteção aos Índios, Depois do Xingu foi mais para o Norte, explorar o Cururu e co-
quis visitar Roraima e conheceu lá, através das missões protestan- nhecer os Munduruku, e percorreu o Rio Trombetas e adjacentes,
tes, outros grupos de ianomamis na Serra Parima, perto da fron- prestando agora mais atenção à sua fauna. Passando por Óbidos
teira venezuelana. Foi, ainda, ao Amapá, mais interessado pela e Santarém, deixou o Rio de Janeiro somente em 8 de dezembro
exploração dos minérios e da natureza. para reencontrar-se com sua família. O Brasil, e sobretudo a re-
Apaixonado pelo Brasil, Leopoldo III fez mais duas viagens gião Amazônica, se cravaram no coração de Leopoldo. Ainda em
a esse país em 1964. Na primeira, curta, de pouco mais de uma 1967 voltou para outra viagem, de 14 novembro a 18 de dezembro.
semana, chegou em 23 de março ao Rio de Janeiro, na volta do Desta vez, em várias excursões a partir de Manaus, foi conhecer
Chile. Visitando o Museu Nacional, no zoológico foi mordido na Porto Velho e o Rio Madeira até Guajará-Mirim, e no Acre, foi a
mão por uma onça. Mas seguiu viagem e foi a São Paulo para ver Rio Branco e Cruzeiro do Sul – em sua opinião, a mais romântica
o Museu Paulista, que o desapontou, e seguiu logo para Brasília, cidadezinha do Brasil – e ao Rio Negro.
que achou bem melhorada. De lá fez uma breve excursão para A partir de 1970, Leopoldo orientou suas pesquisas para a Índia
Santa Isabel no Brasil central. Embarcou para a Bélgica em 1º e sobretudo a Indonésia. Essas missões fundamentaram a organi-
de abril, em plena agitação do golpe militar. Isso não o deteve de zação, em 1976, de uma estação biológica permanente numa ilha
planejar, para outubro do mesmo ano, uma expedição mais longa em frente à costa oriental da Papuásia, de onde se estudaram os
com o professor Gosse ao Parque Nacional do Xingu. bancos de coral e a fauna e a flora locais. Entrementes, por volta
No período de 1975 a 1981 encontrei-me diversas vezes pes- de 1970 as três viagens do Rei Leopoldo III à Floresta Amazôni-
soalmente com o Rei Leopoldo III. Suas evocações da viagem ca brasileira suscitaram a ideia de realizar uma fundação. Assim
de 1964 deixavam entender como esta o impressionou profun- surgiu, em 8 de junho de 1972, a Fundação Leopold III, para a
damente até o ponto de ainda considerar uma segunda visita ao pesquisa e a preservação da natureza, uma associação apolítica,
Parque Nacional do Xingu. Este parque foi criado oficialmente sem fins lucrativos, para patrocinar expedições científicas e via-
em 1961, quase no coração do Brasil e do tamanho da Bélgica. A gens de estudos.
delimitação do parque trouxe uma proteção privilegiada e intan- A partir daí a fundação prestou apoio financeiro e material a
gível para os povos indígenas que viviam lá, como também para mais de 150 missões ou expedições científicas, em diversas disci-
os da vizinhança, que estavam ameaçados de extermínio e que os plinas, como a zoologia, botânica, antropologia e entomologia.
idealizadores do parque, os irmãos Villas-Bôas, tinham removido Estes subsídios permitiram a publicação de centenas de artigos
para dentro da segurança do parque. O objetivo oficial do parque científicos e lançaram a carreira de muitos jovens cientistas belgas.
era duplo: a preservação tanto da natureza como do homem; mas Eu fui um dos contemplados.
seus administradores, os irmãos Villas-Bôas, o consideravam desde
o início como um meio para garantir a sobrevivência das culturas Gustaaf Verswijver, doutor em Antropologia pela Universidade de
indígenas. Seria um exemplo a repetir mais tarde em outras áreas. Gand com pesquisas de campo entre os índios Caiapó e Mehinako;
Essa visão foi oficialmente confirmada em 1967, quando o nome desde 1990 conservador na Seção de Etnografia do Museu Real da
do parque foi alterado de Parque Nacional do Xingu para Parque África Central, em Tervuren, com pesquisas de campo entre os po-
Indígena do Xingu, o primeiro desse tipo. Hoje oferece moradia vos pastorais da África Oriental, curador de várias exposições, como
a 16 povos indígenas, com uma população total de cerca de 5.500 “Omo, peoples and design”, 2008-2009, no mesmo museu.
pessoas repartidas em cerca de 80 aldeias.
Leopoldo III chegou em 10 de outubro de 1964 ao Posto Leo Referências
nardo, dirigido por Orlando Villas-Bôas. Pensou primeiro em ficar Ed. Roger Bodart, Expédition “Elata”, Voyage de S. M. Le roi Léopold III de l’Orénoque
três dias no parque, mas, uma vez no lugar, mudou seus planos e au Rio Negro, Bruxelas, Vromant, s.d.
permaneceu lá por cinco semanas. Enquanto o professor Gosse Leopold de Belgique, La fête indienne, Souvenirs d’un voyage chez les Indiens du Hau-
t-Xingù, París, 1967.
realizava suas pesquisas científicas, o rei passava seu tempo sobre- Gustaaf Verswijver, Kayapó, the Art of Body Decoration, Catálogo da exposição no Museu
tudo com os índios. Cláudio Villas-Bôas vislumbrou-lhe a possi- Real da África Central, Tervuren-Ghent, 1992.
bilidade de receber antropólogos belgas para estudar as culturas Gustaaf Verswijver, The Club-Fighters of the Amazon, Warfare among the Kayapó Indians
of Central Brazil, Ghent, 1992.
indígenas. Gustaaf Verswijver, Mekranoti, Living among the Painted People of the Amazon, Muni-
Durante essa visita o rei foi testemunha de dois momentos que-New York, 1996.
históricos: os primeiros contatos e a pacificação dos Ikpeng ou Leopold III, Carnets de voyages, 1919-1983, Bruxelas, Racine, 2004.
Léopold III Photographe, ed. Esmeralda de Belgique, Bruxelas, Racine, 2006.
Txicão, um grupo de índios ainda isolado, e a fusão de duas fra- Diários de viagem – Fotografias do Rei Leopoldo III no Brasil (1962-1967), Catálogo da
ções antes separadas do povo Kayapó. Estes acontecimentos mos- exposição no Museu de Arte Brasileira, São Paulo, 2010.
318
fotografia
319
parte 9 – artes plásticas
Essa nova realidade jurídica suscitou oposição virulenta dos ru- so exemplar da comunidade do Frechal, orgulhosa de si, de seus
ralistas que, ao perseguir os quilombos, pretendem, na realidade, valores e de sua história.
anular as leis que protegem os interesses coletivos dos quilombolas Essa história poderá ser descoberta através de depoimentos
e apropriar-se de suas terras. Desde então, os quilombolas articu- e fotografias colecionados no meu livro, Frechal, Terre africaine
lam-se com o movimento indígena, com seringueiros, pescadores au Brésil (Ed. belga Territoires de la Mémoire, 2014), e na ver-
e ribeirinhos na defesa dos recursos naturais do País. são original brasileira, Frechal, quilombo pioneiro no Brasil, a ser
Na verdade eles já discutem direitos territoriais e estratégias de publicada.
desenvolvimento social com habitantes dos demais países amazô-
nicos. Ao longo de duas décadas e mais recentemente, em 2012, Christine Leidgens, fotógrafa sem fronteiras, nascida na Bélgica,
quando lá estive pela última vez, pude observar as mudanças em pratica sua arte entre as populações diversas numa abordagem de
curso naquela comunidade, hoje dona de seu destino. antropologia sociocultural interativa, a qual procura soltar a palavra
As exposições fotográficas e os seminários organizados na Eu- dos sujeitos fotografados incentivando o reconhecimento de sua iden-
ropa e no Brasil durante o Fórum Social Mundial (FSM) de Porto tidade e a reapropriação de sua plena autonomia.
Alegre (RS), em 2003, contribuíram para a divulgação do percur-
320
fotografia
321
parte 9 – artes plásticas
322
parte 10 – arquitetura
parte 1 0
Arquitetura
323
parte 10 – arquitetura
324
Ramos de Azevedo: um arquiteto brasileiro formado na Bélgica
M a r i a A n g e l a P. C . S . B o r t o l u c c i
325
parte 10 – arquitetura
326
parte 10 – arquitetura
No escritório, foram executados centenas de projetos e obras e por isso Ramos de Azevedo se empenhou na estruturação e con-
públicas e particulares, tanto na capital quanto em outras loca- solidação do Liceu de Artes e Ofícios. Assumiu a direção em 1895
lidades do Estado de São Paulo, com a participação de diversos e manteve-se até o ano de sua morte; nesse período ele conseguiu
profissionais, mas sempre sob o controle de Ramos de Azevedo que o Liceu obtivesse muito prestígio e se tornasse uma referência
até 1928, ano de sua morte. Alguns dos principais colaboradores em tudo o que produzia.
de Ramos de Azevedo: Antonio Francisco de Paula Souza, Ma-
ximiliano Hehl, Ricardo Severo, João Frederico Washington de Maria Angela Pereira de Castro e Silva Bortolucci é graduada em
Aguiar, Jorge Krug, Victor Dubugras, Calixto de Paula Souza, Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco
Carlos Wagner, Carlos Shalders e Domiziano Rossi. Quase todas (UFPE), com Mestrado em Arquitetura e Urbanismo na Escola de
as obras importantes de São Paulo nessa época saíram do seu es- Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP) e
critório, algumas delas foram: Tesouraria da Fazenda, Secretaria Doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquite-
da Agricultura, Teatro Municipal, Mercado Central, Faculdade tura e Urbanismo da USP. Atualmente é professora no Instituto de
de Medicina, Correios, entre outras. Arquitetura e Urbanismo da USP-Campus de São Carlos/SP.
Outra importante atuação de Ramos de Azevedo foi na área
acadêmica. Ele gostava muito de ensinar e São Paulo estava caren- Referências
te de profissionais habilitados na construção. Esses foram requi- Carvalho, M. C. W. de. Ramos de Azevedo. São Paulo, Edusp, 2000.
sitos suficientes para ele ter se unido ao amigo Paula Souza para Farah, A. P. A produção do engenheiro arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo
criar a Escola Politécnica em 1894. Este último foi o diretor da na província de São Paulo. São Carlos. Dissertação (Mestrado) EESC-USP, 2003.
Ficher, S. Os arquitetos da Poli – ensino e profissão em São Paulo. São Paulo, Edusp, 2005.
Escola Politécnica de São Paulo até sua morte em 1917 e Ramos Lemos, C. A. C. Ramos de Azevedo e seu escritório. São Paulo, Pini, 1993.
de Azevedo, o vice-diretor. A partir dessa data a direção é assumi- Monteiro, A. M. R. de G. Ramos de Azevedo: presença e atuação profissional em Campi-
da por Ramos de Azevedo até seu falecimento em 1928 (Ficher, nas. Campinas, Unicamp-CMU, 2009.
Santos, M. C. L. dos. Escola Politécnica (1894-1984). São Paulo, Imesp, 1985.
2005). Faltava também a São Paulo o ensino técnico de qualidade
327
parte 10 – arquitetura
Viaduto Santa Ifigênia (2012), na cidade de São Paulo, exemplo da arquitetura industrial fabricada na Bélgica e instalada no Brasil. Inaugurado em 26 de julho de 1913.
Estação Bananal, construída em 1888, exemplo da construção industrial do Projeto da nova Estação Inicial de São Paulo da E. F. Sorocabana.
Sistema Danly no Brasil no século XIX.
328
parte 10 – arquitetura
329
parte 10 – arquitetura
330
parte 10 – arquitetura
dos nos quatro cantos bem como o elemento central. Construído que Rodrigues Alves e no campus da Universidade Federal do
em 1903, ele sobreviverá ao cruzamento da Avenida Perimetral, Pará (UFPA), herdaram as tipologias desenvolvidas. Sua data de
mas foi destruído no final dos anos de 1950; subsiste apenas uma chegada a Belém não está registrada, mas, segundo elementos de
das torres de canto, transformada em restaurante a partir de 1933. detalhes, podemos situar sua construção depois de 1890.
É interessante notar o apelo a empresas de construção metálica A estação de Bananal, o mercado de São Paulo e o trapiche
de diferentes nacionalidades para um mesmo prédio. Esta situação de Manaus, bem como os chalés, são construções completamente
que se repete em outras construções no Brasil parece, entretan- metálicas. Se a estação de Bananal e os chalés de Belém foram
to, única na América Latina nessa época e ela demonstra grande considerados como elegantes pela população local, esse não foi o
domínio de diferentes técnicas de construção metálica e a gestão caso do mercado de São Paulo. Na Europa, as construções inteira-
hábil da concorrência pelos arquitetos brasileiros. mente metálicas e fechadas foram consideradas apenas muito es-
Em Manaus, o Trapiche 15 de Novembro (ex-trapiche Prince- poradicamente: os arquitetos concebiam muito excepcionalmente
sa Isabel), foi construído em 1889-90 pela empresa Forges d’Aiseau a utilização do metal em fachada e o relegavam aos elementos
para abrigar numa estrutura fechada os produtos de borracha. Em estruturais e internos. A esse respeito, a posição dos arquitetos la-
bom estado de conservação, ele foi recentemente integrado num tino-americanos é mais coerente em relação à modernidade, não
projeto turístico do porto de Manaus. dando esse status restritivo aos novos materiais.
Os pequenos prédios de habitação ou “chalés de ferro” cor- Os quiosques, muito numerosos na Bélgica, não parecem ter
respondem, como programa, aos primeiros desenvolvimentos da constituído um mercado de exportação, não chegando a vencer a
arquitetura metálica da metade do século XIX. Em meio tropical, concorrência britânica que trabalhava com catálogos. Exceção à
essas habitações integram elementos tipológicos e climáticos dos regra, o elegante Mirante Chapéu do Sol do Corcovado, construí
pavilhões coloniais ingleses. Os dois chalés de ferro construídos do depois de 1886, e da construção da estrada de ferro de acesso,
pela Forges d’Aiseau existentes ainda em Belém, situados no Bos- demolido na ocasião da construção do Cristo Redentor, em 1931.
331
parte 10 – arquitetura
Ao longo da Baía de Botafogo, as primeiras instalações do Clu- – As escadas do Palácio da Liberdade em Belo Horizonte, de
be de Regatas de Botafogo, fundada em 1894, foram construídas 1897, construídas pelos Ateliers de Jaegher, de Bruges, que foram
no mesmo ano pela Compagnie Centrale de Construction de Hai- igualmente guarnecidas de vitrais coloridos e de elementos es-
ne-Saint-Pierre. Serão demolidas depois de 1910 quando da am- truturais;
pliação das instalações. – Um pórtico, colunas e elementos estruturais de casa da fa-
Diferentes estruturas de cobertura e de cúpulas, assim como mília Brennand, em Recife, pela Compagnie Centrale de Cons-
elementos decorativos, foram realizados por empresas belgas. Es- truction de Haine-Saint-Pierre;
ses elementos, partes de projetos maiores, são identificados mais – Os espelhos bisotados existentes originalmente no Palácio
pelos catálogos de construtoras: de Cristal de Petrópolis, em 1884, e aqueles ainda existentes na
– A cúpula do Teatro Amazonas em Manaus, fabricada depois Confeitaria Colombo (1894) no Rio de Janeiro;
de 1885 pela empresa Compagnie Centrale de Construction de – Os candelabros, aparelhos para iluminação para a S.A. do
Haine-Saint-Pierre; Gaz de Rio de Janeiro, fornecidos pela empresa Baume et Mar-
– O domo do necrotério do Cemitério do Bonfim, em Belo pent, de Haine-Saint-Pierre, em 1926.
Horizonte, pela empresa La Brugeoise, construído em 1900 e Os arquivos das empresas belgas do século XIX e início do
preservado; XX, quando subsistem, são em sua maior parte não classificados.
– A estrutura do telhado, construída por Baume et Marpent em Não há dúvida de que numerosas construções realizadas no Bra-
1906, do edifício da Associação dos Empregados do Comércio do sil poderão ser identifcadas por ocasião de um eventual trabalho
Rio de Janeiro, situado à Avenida Central, e demolido em 1939; sistemático – devendo-se ainda fazer a distinção entre realizações
– A estrutura visível do interior da igreja do Pequeno Grande e projetos – como esse belo “Floral Pavilhão” encomendado per-
em Fortaleza (1898-1903); to de 1910 para as empresas Baume et Marpent por Paul Villon,
– A estrutura da estação triangular de General Carneiro (MG) paisagista francês que trabalhou em criações de parques no Rio
em 1895, demolida nos anos de 1960; de Janeiro, em São Paulo e Belo Horizonte, principalmente, e
cuja construção ou destino não puderam ainda ser identificados.
332
parte 10 – arquitetura
333
parte 10 – arquitetura
O núcleo fabril Moreno, Pernambuco, construído a partir de 1909, fotografado Monlevade, construído pela Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, fotografado
em 1994. em 1998.
elas atendem à sua destinação e podem servir de modelo no Brasil, on- igreja, escola e cinema. O edital do concurso determinava que “A
de não se está habituado a conforto semelhante” (Lima, 2003, p. 91). nova cidade deveria transpirar a alegria de viver e o contentamento
Em 1952 havia cerca de 500 casas, distribuídas em várias vilas.3 de seus habitantes, dando uma impressão risonha e clara” (Lima,
A Belgo-Mineira também ergueu um hotel-cassino para hospe- 2003, p. 97-98). Lincoln Continentino definiu seu plano como o
dagem de visitantes e moradia de engenheiros solteiros, a Escola de uma “cidade-jardim industrial moderna”. Criou uma praça em
Profissional, a Pensão Siderúrgica, a Maternidade e Puericultura forma elíptica, com uma igreja no centro e prédios comerciais e
Louis Ensch, um ambulatório, um dormitório para solteiros, o Es- de serviço em torno. O sistema viário composto por passagens para
porte Clube Siderúrgica, a Associação Atlética dos Ex-Alunos do pedestres, ruas residenciais e avenida marginal ao Rio Piracicaba,
Senai (Serviço Nacional da Indústria) e vários clubes de futebol. se conformava em formas retilíneas ou em curvas suaves, incluin-
Na década de 1960 a empresa tinha o Grupo Escolar Cristiano do faixas gramadas com árvores de pequeno porte. Coerente com
Guimarães e subvencionava o Ginásio Santa Rita, além de dois a intenção de diversidade que marca a concepção espacial das ci-
postos de abastecimento e um açougue (Silva, 2004).4 dades-jardim, Continentino propôs ampliar os tipos de casas, dos
Havia nove tipos de habitações: casas para engenheiros, dois três sugeridos pelos organizadores do concurso para sete, todas do-
tipos de casas-padrão (com 2 ou 3 quartos), casas geminadas e cin- tadas de jardins. O engenheiro Louis Ensh dirigiu os trabalhos de
co tipos de casas econômicas. Adotavam várias formas e tamanhos: detalhamento e implementação do plano urbanístico, enquanto
em renque, geminadas e isoladas em meio a jardins; de porta e o arquiteto Yaro Burian projetou escolas, igreja, hospital, hotel e
janela, chalés e bangalôs; de alvenaria ou madeira. Em alguns moradias (Lima, 2003, p. 364).
conjuntos todas as casas eram iguais, enquanto em outros havia Monlevade rapidamente extrapolou os limites do plano origi-
mais de um modelo de moradia. nal, se expandindo sob a ação da Belgo até a década de 1960. Nele
Em 1934 a empresa decidiu criar uma segunda usina – inau- a empresa construiu mais de duas mil casas, alojamentos, cassi-
gurada em 1937 –, construir junto a ela um núcleo fabril – deno- no-alojamento, mercado, igreja, cinema, escolas, praças, hotel,
minado Monlevade – e promover um concurso para o seu plano. clubes, estádio de futebol, hospital, ambulatório, aeroporto e ma-
Ao decidir promover este concurso, a Belgo-Mineira inseriu-se tadouro. No início da década de 1960 a empresa tinha em Mon-
em uma tendência que se firmaria nas duas décadas seguintes, levade quatro grupos escolares, o Ginásio Monlevade e a Escola
de núcleos fabris concebidos a partir de planos previamente ela- Profissional (Lima, 2003, p. 369). Um pequeno comércio – açou-
borados por urbanistas. Foram 13 as propostas que participaram gue, armazém farmácia, barbearia etc. – se estabeleceu no local.
do concurso, vencido pelo engenheiro Lincoln Continentino. A O espaço do núcleo fabril de Monlevade foi marcado pela
proposta concebida pelo arquiteto Lucio Costa, embora não se- segregação social: havia a “vila dos médicos” junto ao hospital, a
lecionada, constitui um documento muito importante na histó- “vila dos engenheiros” na Avenida Aeroporto, um grupo de casas
ria do urbanismo moderno brasileiro. Nele o arquiteto explicita grandes na Avenida Getúlio Vargas e diversas vilas com casas me-
estratégias instigantes de diálogo entre modernismo e tradição, nores. Monlevade se estruturava a partir desses conjuntos de casas
ao mesmo tempo em que formula uma curiosa articulação entre semelhantes, localizados em torno da usina ou em locais mais dis-
procedimentos consagrados na organização de núcleos fabris e fer- tantes: em 1952 existiam 16 vilas operárias. As moradias se diferen-
ramentas de projeto difundidas pela arquitetura e pelo urbanismo ciavam em termos de material, tamanho e padrão de construção.
modernos (Correia, 2000). Havia casas térreas e sobrados, de madeira e de alvenaria, cercadas
O programa proposto pela Belgo-Mineira para o núcleo resi- por jardins, geminadas e dispostas em renque. As casas maiores,
dencial incluía, além de 300 moradias, área para comércio, clube, situadas na Avenida Aeroporto, eram construções térreas amplas,
334
parte 10 – arquitetura
de linhas modernistas e dispostas em meio a grandes jardins. Correia, Telma de Barros. Pedra: plano e cotidiano operário no Sertão. Campinas, Ed.
Monlevade e Moreno se converteram em cidades, enquanto as Papirus, 1998. 320 p.
Finger, Ana Eliza. Vilas Ferroviárias no Brasil. Os casos de Paranapiacaba em São Paulo
vilas operárias em Sabará (MG) e em Santa Maria (RS) continuam e da Vila Belga no Rio Grande do Sul. FAU-UNB, 2009. Dissertação de Mestrado.
existindo, testemunhando a ação das empresas na urbanização e Lima, Fábio José Martins de. Por uma cidade moderna: ideários de urbanismo em jogo no
na reforma da moradia do trabalhador brasileiro. concurso para Monlevade e nos projetos destacados da trajetória dos técnicos concor-
rentes (1931-1943). São Paulo, FAU-USP, 2003. Tese de Doutorado.
Mabilde, Adriano Ballejos. Estaleiro Mabilde – As relações com os funcionários e o Esta-
Telma de Barros Correia é Arquiteta e Urbanista pela Universidade do. (1896-1943). Porto Alegre, PUC, 2009. Dissertação de Mestrado em História.
Federal de Pernambuco (UFPE), mestre em Desenvolvimento Urbano Pesavento, Sandra Jatahy. A Burguesia Gaúcha: dominação do capital e disciplina do tra-
balho (1889-1930). Porto Alegre, Mercado Aberto, 1988.
pela UFPE, doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Silva, Ronaldo A. R. da. “Empresa, cidade e sociedade: uma (re)construção das relações
Universidade de São Paulo e livre docente pela USP. É professora e sociais sob o olhar das vilas operárias”. Memeguello, C. & Rubino, S. Patrimônio In-
pesquisadora no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP-Cam- dustrial: perspectivas e abordagens. Campinas, Unicamp, 2004.
335
parte 10 – arquitetura
O projeto foi desenvolvido pelo engenheiro belga Gustave Santa Maria, possivelmente em função das chamadas “posturas
Vauthier, na época diretor da companhia, e não foi concebido municipais” (leis que normatizavam a forma de implantação dos
segundo os preceitos clássicos das vilas industriais, com setoriza- edifícios, acabamentos, coberturas etc.), sua configuração se apro-
ção urbanística e arquitetônica ou hierarquia viária, pois abrigaria xima do restante da cidade, com edifícios construídos em alvenaria
apenas funcionários de uma mesma hierarquia e que não exerciam e implantados no alinhamento dos lotes.
um papel de vigilância uns sobre os outros, pertencendo todos ao Além disso, cada unidade é diferenciada através de detalhes
mesmo nível funcional, o que lhes permitia usufruir certa auto- dos requadros das aberturas, cimalhas e pilastras, que têm dese-
nomia e liberdade individual. nho único e, associados a porões altos em alguns edifícios, pro-
Entretanto, é possível identificar referências aos manuais de porcionam variações que tornam única cada unidade, o que tam-
orientação para a construção de vilas operárias e ferroviárias pu- bém pode ser atribuído a uma possível influência de Cloquet,
blicados na Bélgica ao final do século XIX, com destaque para o que afirmava que a uniformidade das residências era um defeito
Traité d’Architecture, de Louis Cloquet, de 1898, e que constava que geraria banalidade e monotonia, negando-se o direito à in-
do acervo do Liceu de Artes e Ofícios da Cooperativa dos Ferro- dividualidade humana.
viários de Santa Maria. No ano 2000 a Vila Belga foi tombada pelo Instituto do Patri-
Dentre esses, se destaca a integração em relação ao restante da mônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae) como Patrimônio
cidade, evitando o isolamento dos bairros operários, que poderia Cultural do Rio Grande do Sul.
criar “castas” hostis à sociedade e constituir locais de desordem.
Quanto à implantação, as 80 residências foram organizadas em Anna Eliza Finger é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela
blocos de duas, conforme modelo chamado por Cloquet de ac- Universidade Federal de Santa Catarina (2001), especialista em Con-
colée, preservando a ventilação cruzada entre a fachada principal servação e Restauro de Monumentos e Conjuntos Históricos, pela
e o quintal aos fundos. O agrupamento de apenas duas unidades Universidade Federal da Bahia (UFBA), Mestre e Doutora em Teo-
também permitiria o afastamento de uma das laterais do lote, ga- ria, História e Crítica da Arquitetura pela Universidade de Brasília
rantindo certo isolamento e privacidade. (UnB), com o tema Patrimônio Ferroviário Brasileiro. É funcionária
As residências foram divididas em tipos, variando de tamanho do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) des-
conforme o número de ocupantes, mas com os mesmos padrões de 2006, atualmente desempenhando o cargo de Coordenadora-Geral
de acabamento. Como foi construída dentro da área urbana de de Cidades Históricas.
336
parte 10 – arquitetura
337
parte 10 – arquitetura
338
parte 10 – arquitetura
339
parte 10 – arquitetura
– L’Exposition Universelles Retrouvée”, uma exposição sobre a facilitada pelo uso da estrutura em metal – nos trazem imediata-
exposição de 1910, realizada em 2010, no Campus da Universi- mente de volta ao século XIX (embora tenha sido construído nos
dade Livre de Bruxelas. primeiros anos do século XX, em linguagem anacrônica). Uma
A exposição de 1910 é característica pela linha política de curiosidade sobre este evento foi o incêndio que atingiu, em agosto
seu Comitê Executivo, que escolheu como arquiteto-chefe Er- daquele ano, um dos seus setores, poupando o do Brasil, e revelou
nest Acker, professor e antigo diretor da Academia de Belas Artes as técnicas construtivas escondidas e a capacidade de reorganizar a
de Bruxelas (em detrimento, por exemplo, de Victor Horta, re- feira rapidamente, sem que a mesma tivesse de ser cancelada. Vasta
presentante da vanguarda em arquitetura) (Douillet; Schaack, p. iconografia da época mostra escombros e estruturas metálicas retor-
7-8). Como resultado, a estética que se manifesta nos pavilhões cidas pelo incêndio, flagrante do interesse geral pela modernidade
da exposição – exceto raras exceções – representa o retorno ao velada do evento, apesar da opção por uma aparência conservadora.
classicismo e à Belle Époque (http://expo1910.be/). Em 1930 o Brasil participou novamente da Exposição Inter-
O Pavilhão do Brasil não fugiu à regra, como se nota por suas nacional em Antuérpia. Nos 20 anos que se passaram desde a fei-
raras imagens. Grandioso, simétrico, com suas estátuas, cúpulas e ra em Bruxelas, a arquitetura eclética estava suplantada e se im-
colunatas nos faz pensar em Palladio, mas as proporções e a altura punham francamente tendências muito menos ornamentadas e
da cúpula principal – que, de acordo com Dantas (2010, p. 108) mais arrojadas. As exposições internacionais eram o reflexo de tais
estava “situada a 52 metros de altura”, deve ter recorrido a conhe- transformações na linguagem arquitetônica, pois os pavilhões for-
cimentos técnicos de engenharia para ser realizada e, talvez, sido mavam um uníssono composto por linhas art déco e racionalistas.
340
parte 10 – arquitetura
Fotografia do Pavilhão do
Instituto Nacional do Café
na Exposição de Bruxelas de
1935, publicada na Revista
La Technique des Travaux,
julho de 1935.
O pavilhão do Brasil, projetado pelo arquiteto Pedro Paulo lógica, o pavilhão brasileiro apresentou uma constituição aberta-
Bernardes Bastos, e “no qual lembranças da grandiosa arte pré- mente moderna. Não faltaram grandes áreas envidraçadas, o volu-
colombiana lhe atribuem uma nota muito característica (...) com me retangular sobre pilotis nem o terraço elevado do solo – referên-
galerias baixas e varandas nos transportam à frescura dos abrigos cias inequívocas aos preceitos de Le Corbusier – onde se degustava
à sombra nos países quentes” (La Technique..., 1930, p. 427), foi várias maneiras de se preparar o café. O prédio mereceu uma pe-
um exemplar de tendência art déco. O arquiteto adota formas geo- quena nota elogiosa na revista La Tecniques des Travaux, que o
métricas e linhas retas, reforçando a verticalidade da torre central; descreveu como “muito moderno e muito elegante” (1935, p. 358).
aparecem detalhes decorativos com motivos estilizados de inspi- Em 50 anos – desde 1885 até as vésperas da Segunda Guerra
ração vegetal e, também, máscaras e estátuas indígenas estiliza- Mundial –, portanto, o Brasil se fez presente na Bélgica através das
das. De acordo com o “Livro de Ouro da Exposição Internacional, exposições internacionais, que eram, e continuam sendo, eventos
Colonial, Marítima e de Arte Flamenga”, a participação do Brasil especialmente eficazes de divulgação e catalizadores de relações
nessa exposição foi particularmente brilhante e contribuiu para comerciais entre países. Assim, além de mostrar que são capazes
ampliar o renome do país na Bélgica. de acompanhar as últimas tendências em matéria de arquitetura,
Pouco depois, em 1935, reencontramos o Brasil em Bruxelas pois os próprios pavilhões se tornaram produtos passíveis de co-
para a Exposição Internacional com seu Pavilhão do Instituto Na- mercialização e exemplos de domínio de técnicas e tecnologias
cional do Café, situado próximo à Entrada do Centenário e em construtivas, os países representados nelas expõem os mais diver-
frente aos pavilhões dos Países Baixos e do Chile. Nessa exposi- sos atrativos exportáveis. Nesse sentido, de maneira geral, o Brasil
ção pode-se notar o esforço dos arquitetos em explorar a estética levou à Bélgica, além do café, que era o carro-chefe da exportação
dos materiais e das técnicas então disponíveis que, embora não brasileira no período, amostras de suas outras riquezas, naturais ou
fossem propriamente novos – o concreto e o metal já estavam no processadas, fossem elas oriundas da fauna, da flora ou dos mine-
mercado da construção desde fins do século XIX –, passaram a rais. Além disso, o Brasil mostrou que estava a par das vanguardas
ser trabalhados de forma nova, procurando deixar de lado a carga arquitetônicas, como mostra o estudo dos pavilhões que produziu
historicista e academicista. Esse modo de atuar que caracterizou para tais feiras realizadas em território belga.
a arquitetura dita moderna empregou, entre outros recursos, pa- Em 1958 o Brasil estará presente numa das mais marcantes
nos envidraçados, elementos metálicos aparentes, linhas sóbrias exposições realizada em Bruxelas com um pavilhão de autoria do
e espaços racionais recorrentemente. célebre arquiteto Sérgio Bernardes, sobre o qual o professor De
Concebido por Alphonse Barrez, arquiteto belga, dentro dessa Kooning nos fala no artigo a seguir.
341
parte 10 – arquitetura
Referências La technique des travaux. Revue mensuelle des procédés de construction modernes. Ma-
gazine publié sous les auspices de la Cie Internationale des Pieux Franki, n. 7, 6ème
Bruxelles 1910, L’Éxposition Universelle Retrouvée. Disponível em: <http://expo1910.ulb. année, Juillet 1930.
ac.be/>. Acesso em: 10 maio 2013. _____________. Revue mensuelle des procédés de construction modernes. Magazine
Civa (Centre International pour la Ville, l’Architecture et le Paysage); Université Libre de publié sous les auspices de la Cie Internationale des Pieux Franki, n. 7, 11ème an-
Bruxelles (ULB); Vrije Universiteit Brussel (VUB) (Bélgica). Bruxelles, sur les traces née, Juillet 1935.
des Ingénieurs Bâtisseurs: catálogo-guia. Bruxelas, 2011. 320 p. Guia realizado para Pirson, B. (1986). Architecture métallique démontable au XIX e siècle exportée d’Euro-
a exposição Bruxelles, prouesses d’ingénieurs, 20 de maio e 2 de outubro de 2011. pe vers les pays d’Outre-mer. Une contribution belge: les Forges d’Aiseau. Louvain:
Dantas, A. D. (2010). Os Pavilhões Brasileiros nas Exposições Internacionais. Dissertação KUL, 238 p.
de mestrado, São Paulo: FAU-USP. Renardy, C. (2005). Liège et l’Exposition universelle de 1905. Sous la direction de Christine
Douillet, I. Schaack, C. L’avenue Franklin Roosevelt et le quartier du Solbosch Consi- Renardy. Bruxelles: La renaissance du livre, Fonds Mercator, Dexia banque, 317 p.
dérations historiques, urbanistiques et architecturales. In: Inventaire du Patrimoine Silva, Geraldo Gomes da. Arquitetura de ferro no Brasil. São Paulo: Nobel, 1986.
architectural, Bruxelles-Extensions Sud. Bruxelles, Ministère de la Région de Bru-
xelles-Capitale, Direction des Monuments et des Sites, Ed. P. Crahay. S/D. Dispo-
nível em: http://www.irismonument.be/pdf/fr/1001-roosevelt_solbosch_bruxelles-ex- Notas
tensions_sud.pdf>. Acesso em: 21 maio 2013. 1. “la société occidentale semble vouloir de plus en plus souvent se comparer à d’autres
Halleux R., Bernes A.-C., Etienne L. (1995). L’évolution des sciences et des techniques continents, car les milieux industriels (…) cherchent des matières premières, mais aussi
en Wallonie. In: «Wallonie. Atouts et références d’une Région», sous la direction de des marchés porteurs où écouler les produits finis”.
Freddy JORIS, Gouvernement wallon. Namur. 2. “un rôle appréciable dans l’évolution universelle des sciences et des techniques”.
Kühl, Beatriz Mugayar. Arquitetura do ferro e arquitetura ferroviária em São Paulo: reflexões
sobre a sua preservação. 1. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998. v. 1. 438 p .
342
parte 10 – arquitetura
343
parte 10 – arquitetura
Interior com o jardim de Roberto Burle Marx, perspectiva a partir da entrada do Pavilhão do Brasil na Exposição Mundial de 1958 em Bruxelas.
de bandeira transparente na Praça dos Três Poderes e um impo- muitas outras obras suas, Bernardes fundiu as ideias divergentes na
nente centro de congressos no Eixo Monumental, perto da torre arquitetura brasileira do pós-guerra numa síntese extremamente
de televisão de Lúcio Costa. pessoal, uma síntese que parecia oferecer uma saída ao impasse
Mesmo tendo o pavilhão do Brasil na Expo 58 grande reper- ao qual a abordagem formalista tinha chegado naquele momen-
cussão nas revistas profissionais internacionais, foi também criti- to. Nesta residem o valor histórico e a atualidade duradoura do
cado pela elaboração construtiva impura. Essa crítica é pertinen- pavilhão do Brasil na Expo 58.
te, mas, de fato, não é relevante: se faz injustiça a Bernardes de
querer compreender o pavilhão somente a partir de uma lógica Emiel De Kooning é professor do Departamento de Arquitetura e
construtiva. O cariz de seu trabalho tem precisamente a ver com o Urbanismo da Universidade de Gand e publicou sobre a Arquitetura
caráter exaltante, e mesmo obstinado, desta repetida combinação e o Design na Bélgica do pós-guerra.
de experimentação construtiva e de intenção formalista. Tampou-
co se deve a isso que o pavilhão de Bruxelas não teve o mesmo Referências
impacto como aquele de Costa e Niemeyer em Nova York. Di- Elisabetta Andreoli e Adrian Forty, eds. Brazil’s Modern Architecture. London/New York:
ferentemente de 1939, as características do Brazilian style (estilo Phaidon Press, 2004.
brasileiro) se tinham tornado os clichês do arsenal de formas da Kykah Bernardes em Lauro Cavalcanti, eds. Sérgio Bernardes. Reinvenção da Arquitetura.
Rio de Janeiro: Artviva Editora, 2010.
arquitetura internacional. Além disso, com seu ‘Burle Marx’, sua Lauro Cavalcanti. ‘Sérgio Bernardes, un moderniste radical’. L’Architecture d’Aujourd’hui,
rampa e suas curvas leves e lúdicas do teto e dos muros, o pavilhão 359 (número temático: Brésil), julho-agosto de 2005, p. 68-75.
de Bernardes pode facilmente ser posto no catálogo consagrado, Rika Devos e Mil De Kooning, eds. Moderne architectuur op Expo 58. ‘Vooreenhumane-
rwereld’. Bruxelas: Mercatorfonds/Dexia Bank, 2006.
mas, entrementes, já contestado, da arquitetura brasileira contem- Márcia Macul. ‘Sérgio Bernardes. Arquiteto+humanista+poeta+utopista’. Arquitetura &
porânea. Entretanto, o caráter informal e o propósito expressamen- Urbanismo 82, 15, fevereiro-março 1999, p. 64-69.
te construtivo faziam uma diferença bem nítida entre Bernardes Paul Meurs, Mil De Kooning e Ronny De Meyer, eds. Expo 58: The Brasil Pavilion of Sér-
gio Bernardes. Gent: Vakgroep Architectuur & Stedenbouw, Universiteit Gent, 1999.
e a maior parte dos arquitetos do Brazilian style. Tanto que, em
344
parte 10 – arquitetura
345
parte 10 – arquitetura
Exemplares desse trabalho foram distribuídos pela DPhan (Di- A CNPI (Companhia Nacional de Planejamento Integrado) en-
retoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) às diferentes volvia Limburg Stirum pelo seu engajamento anterior no plano
autoridades, inclusive ao prefeito de Paraty, Lulu Vieira Ramos, e diretor da zona de expansão da cidade de Paraty, mas entregou a
ao governador do Estado do Rio de Janeiro, Paulo Torres. Numa direção efetiva a Lúcio Costa (Plano diretor, 1972). Colaborou
sessão ordinária, em 30 de setembro de 1965, a Câmara Munici- com eles de setembro de 1971 até janeiro de 1972, quando re-
pal de Paraty discutiu o plano, que na votação “foi aprovado, sen- gressou à Bélgica com o sentimento de ser cada vez mais deixado
do que o vereador Antonio Porto votou contra” e o seu presidente, de lado. Em 1973 Paraty ainda se mostrou na Brasil Export 1973,
Derly, pediu ao presidente para assinar o decreto. Ainda houve em Bruxelas. Suas visitas em 1974 e 1976 ao Brasil e, especifica-
em novembro de 1965 alguma resistência da parte do ministro. mente, ao Rio de Janeiro e a Paraty não o tranquilizaram quanto
Por seu lado, Rodrigo M. F. de Andrade apresentou uma nota ao à preservação futura da cidade. Será que o Brasil ousaria esquecer
ministro do Planejamento, Dos obstáculos para o planejamento e o papel deste estrangeiro no salvamento de Paraty?
de uma primeira solução (Constatações que surgiram na elaboração
do plano diretor em proveito de Paraty). Dominique Vanpée publicou vários trabalhos sobre biblioteca e
Em 14 de janeiro de 1966 a revista Visão publicou um artigo: documentação, informação ligeira como rumores e urban legends,
Um conde quer salvar Paraty, para incitar o ministro a dar sua assi- história local de Huldenberg, alimentação, patrimônio industrial e
natura. Com uma mudança de governo, Pedro Aleixo se tornou o científico, inteligência competitiva, management e estratégia dos co-
novo ministro da Educação. O texto do decreto foi submetido ao nhecimentos.
presidente e em 24 de março de 1966 saiu sob o nº 58.077, con-
vertendo Paraty em Monumento Nacional e assinado por Castello Referências
Branco, Pedro Aleixo, Juarez Távora, Ney Braga, Paulo Egydio Este verbete se baseia principalmente numa entrevista concedida pelo Conde Frédéric
Martins e Roberto Campos. O texto se encontra publicado na de Limburg Stirum ao autor Dominique Vanpée em 11 de fevereiro de 2012 e pre-
senciada por Eddy Stols. Boa parte de sua documentação sobre Paraty foi doada pelo
revista Arquitetura, nº 46 de abril de 1966, junto com uma repor- conde aos arquivos do Heemkundige Kring van Huldenberg (Círculo de história
tagem do arquiteto M. Nogueira Batista (IAB-GB) e com fotos de local de Huldenberg).
Frédéric de Limburg Stirum. F. de Limburg Stirum. Mémoire pour la défense et conservation des monuments et sites au
Brésil. Rio de Janeiro, edição pessoal, 1963.
Quando Michel Parent realizou para a UNESCO algumas Frédéric de Limburg Stirum. Plano de urbanização de Paraty. Rio de Janeiro, edição pes-
missões no Brasil nos anos de 1966-1967 a fim de valorizar e pro- soal, 1964, 57+vp.
teger o patrimônio cultural no contexto do desenvolvimento turís- Frédéric de Limburg Stirum. Plan national de mise en valeur de Paraty dans le cadre
d’un développement touristique. Paris, Unesco, 1968, 774/BMS.RD/SHC/CLT/DEV.
tico e econômico, obteve, junto com Rodrigo M. F. de Andrade, Frédéric de Limburg Stirum. Paraty, son port et la fôret atlantique. Rio ‘92 Forum global.
que o Conde Limburg Stirum pudesse trabalhar para a UNESCO Bruxelas, edição pessoal, 1 juin 1992, 9 p.
em torno de Paraty. Redigiu então um relatório, publicado em Serge de Robiano. Le tour du monde insolite d’un diplomate belge. Bruxelas, Éditions
Racine, 2009, 288 p.
1968 (Parent, 1967, e Limburg Stirum, 1968). Michel Parent. Protection et mise en valeur du patrimoine culturel brésilien dans le cadre
Em 1969 se elaboraram, dentro do programa do primeiro ano, de développement touristique et économique: Brésil (mission) 24 novembre 1966 - 8
as Diretrizes básicas na urbanização de Paraty. Com o falecimento janvier 1967 et 17 avril - 1er juin 1967. Paris, UNESCO, 1968, 492/BMS.RD /CLT.
Plano diretor da zona de expansão da cidade de Paraty. Separata do plano de desenvolvimen-
de Rodrigo M. F. de Andrade a direção do Instituto do Patrimônio to integrado e proteção do bairro histórico de Parati, Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Histórico e Artístico Nacional (Iphan) passou para Renato Sairo. Janeiro, Companhia Nacional de Planejamento Integrado-CNPI, 1972.
Paraty
Cassio Ramiro Mohallem Cotrim
346
parte 10 – arquitetura
nham por mar, do Rio de Janeiro a Paraty, e dali subiam a serra Ainda nesse período de prosperidade: trechos de ruas ganha-
carregados por tropas de mulas até o Vale do Paraíba, todos os pro- ram novo alinhamento, a vila recebeu calçamento construído com
dutos necessários aos fazendeiros de café: desde ferragens e ferra- grandes pedras arredondadas e todas as casas remanescentes do
mentas para a lavoura, até produtos da Europa, como cristais da século XVIII foram reformadas.
Bohemia, porcelanas de Sèvres, bules e talheres de prata, móveis O padrão construtivo de altura das casas e de dimensões das
de jacarandá, tecidos de seda e vinhos do Porto. portas foi estabelecido em 1799. Uma lei de 1829 confirmou esse
Em Paraty desembarcavam-se também grandes quantidades padrão. Desse modo, a vila histórica dos nossos dias foi construída
de escravos africanos com destino à lavoura do café. Os trafican- no século XIX com um padrão arquitetônico português do século
tes desses escravos residiam nos arredores da Vila e abasteciam XVIII. O “palmo” português equivale a 22 cm. A pedra que for-
seus navios com mercadorias compradas dos comerciantes locais. ma o degrau de entrada da casa denomina-se “soleira”. As portas
A famosa aguardente de cana de açúcar produzida em Para- deveriam ter, de espaço livre, cinco palmos de largura por onze
ty servia como “moeda de troca” por escravos na costa da África. palmos e meio de altura acima da soleira. As janelas deveriam ter,
também de espaço livre, seis palmos e meio de altura por cinco
Urbanismo no século XIX palmos de largura.
347
parte 10 – arquitetura
348
parte 10 – arquitetura
Ordenamento urbano
com sistema de canais
e lagoas previsto pelo
plano de Limburg
Stirum.
349
parte 10 – arquitetura
rochosos, ora alargada em várzeas dos diversos rios que vertem das Histórico e Artístico Nacional – Iphan até 1968) e a despeito da
montanhas e afluem à Baía de Ilha Grande, intercalando-se por incorporação de seus principais aspectos pelo “Plano de Desenvol-
restingas e manguezais. Esse território, assim como o de diversos vimento Integrado e Proteção do Bairro Histórico do Município
outros núcleos urbanos situados nessa característica porção do li- de Paraty”, produzido sob os auspícios do Iphan pela Companhia
toral brasileiro entre Santos e a Baía de Guanabara, testemunha Nacional de Planejamento Integrado – CNPI entre 1971 e 1972
exemplarmente os complexos processos de recuos e avanços ma- e convertido em lei municipal em 1973.
rinhos durante os últimos 25.000 anos em que o mar esteve alter- Hoje, o plano de Stirum é referência para a atuação do Iphan
nadamente a cerca de cem metros abaixo e quatro metros acima em Paraty por meio de seu escritório da cidade, notadamente
da atual linha d’água. quanto à visão integral requerida para a gestão da preservação na
Assim, parece ter sido fundamental para o arquiteto belga a in- área municipal, inteiramente tombada em 1974.
tuição de um terreno que já fora alternadamente terra, água e terra Como uma decisiva vitória do plano e da cidade, na década
novamente, bem como da instabilidade geológica da Serra do Mar de 1970 a rodovia BR-101 (Rio-Santos) foi executada distante do
e da dinâmica dos rios, que serpenteiam lentamente pela planície centro. Evitou-se, assim, uma proximidade que seria fatal ao nú-
em móveis meandros, dada a baixa declividade do terreno. cleo urbano original e garantiu a permanência desta área a nos
As premissas de seu plano evidenciam a compreensão e o res- lembrar hoje das lutas pela preservação e pelo futuro de Paraty.
peito a estas condicionantes físicas. Tal postura face ao território
é fundamental para um efetivo controle de suas dinâmicas pró- Fabio Guimarães Rolim, Arquiteto e Urbanista pela Escola de En-
prias e também da ação humana. Casos contrários são os que hoje genharia de São Carlos (USP), com especialização em Jornalismo
infelizmente abundam, conforme atestam as notícias de desliza- Científico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). No
mentos e enchentes que em proporções cada vez maiores abalam Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde 2006,
as cidades brasileiras. atuou em Mato Grosso do Sul e Paraty e é atualmente Coordena-
O plano não foi implementado, apesar dos esforços de Rodri- dor-Geral do Patrimônio Natural no Departamento de Patrimônio
go Melo Franco de Andrade (dirigente do Instituto do Patrimônio Material e Fiscalização.
350
parte 10 – arquitetura
B-architecten
Dirk Engelen
O Projeto Bamboostic
Sven Mouton
351
parte 10 – arquitetura
352
parte 11 – esportes
parte 1 1
Esportes
353
parte 11 – esportes
354
Gaston Roelants ganha quatro vezes a Corrida
Internacional da São Silvestre
Roland Renson
355
parte 11 – esportes
Roland Renson estudou Educação Física (1965), Fisioterapia (1969) o primeiro presidente do ISHPES (1989-2003) depois de o HISPA ter
e Antropologia Cultural e Social (1973) na KU Leuven (Bélgica), on- sido anexado ao ICOSH. Elaborou cursos de História e Sociologia
de obteve seu Ph.D em Educação Física em 1973. Esteve ativamente da Cultura do Movimento. Fundou e preside o Museu de Esportes
envolvido no “Longitudinal Leuven Boys Growth Study of Belgian ‘Sportiimoinium’, Hofstade-Zemst (Bélgica). É professor emérito da
Boys” (1969-1974). Em 1975 organizou o HISPA, Seminário de His- Universidade Católica de Leuven (KUL) desde 2008, mas continua
tória do Esporte, e tornou-se presidente do HISPA de 1985 a 1989. Foi ativo em pesquisas sobre o conceito de “Ludodiversidade”.
356
parte 11 – esportes
ganhou no tempo extra. Perderam a quarta de final da Suécia em terminou respectivamente em oitavo lugar entre nove competido-
24 de agosto. Algumas fontes brasileiras citam nove jogadores, in- res e em sétimo ou último. Avançou para a final de salto ornamen-
cluindo Carlos Lopes e Edgard Ribeiro, mas não foram registra- tal, em 25 de agosto, sem competir primeiro nas pré-eliminatórias
dos no jornal esportivo belga leVélo-Sport (Mallone Bijkerk, 483). (Mallone Bijkerk, 141).
O município de Antuérpia tinha comissionado a construção de
uma piscina nova no final da Avenida Van Rijswijck. A muralha da Reme, reme, reme seu barco...
cidade que se encontrava lá foi parcialmente escavada e utilizada
como uma “praia natural”. A Sport-Revue (8.8.1920) a qualificou Os cinco remadores brasileiros no casco de quatro remos e
sem mais como “realmente a mais bela piscina ao ar livre do mun- um timoneiro eram Guilherme Lorena, João Jório, Alcides Vieira,
do, que custou à cidade de Antuérpia nada menos que 1.100.000 Abrahão Soliture e Ernesto Flores Filho. Jório e Soliture também
francos”. Duas semanas mais tarde, o mesmo semanário falou de participaram do polo aquático. Terminaram em segundo na quar-
mais ou menos meio milhão. Pelo menos Coubertin considerou ta eliminatória das semifinais, no Canal de Willebroek, perto de
o Estádio Náutico como um modelo. Mas essa opinião não era Bruxelas. Em 28 de agosto perderam da tripulação americana, mas
compartilhada pelos nadadores masculinos e femininos america- terminaram antes dos checoslovacos. O canal era um tanto estreito
nos. A saltadora americana Aileen Riggin, de apenas 14 anos na e por isso as regatas se remaram com dois ou, no máximo, três bar-
época, escreveu mais tarde em suas memórias que nunca tinha cos. O Canal de Willebroek, entre os lugarejos de Trois Fontaines
visto coisa semelhante. A piscina era nada mais que um fosso re- e Marly, era longe de ser idílico. Foi descrito por Coubertin como
pleto de água fria e opaca. Os saltadores, tanto masculinos como “a pior paisagem possível... tão horrorosa que todos os esforços para
femininos, se muniram não apenas de toalhas, mas de todo tipo esconder sua feiura foram abandonados” (Coubertin, s. d., 52).
de roupa quente e procuraram esquentar-se entre os saltos com
massagens recíprocas. Mais ainda, lembraram que alguns dos jo- Barulho e alegria em Antuérpia
gadores de polo tiveram que ser resgatados porque desmaiaram de
frio (Carlson e Fogarty, 19-20). Infelizmente, sabemos pouco como a equipe olímpica brasilei-
Adolfo Wellish, o único competidor brasileiro no salto, chegou ra viveu sua iniciação olímpica e sua estada numa cidade portuária
até as finais em salto de plataforma e salto ornamental, nos quais como Antuérpia. Sabemos, sim, de muitos outros participantes,
357
parte 11 – esportes
que não levaram muito a sério o festival olímpico e procuraram distrito sul, vestindo as cores belgas, contra outro do distrito norte,
mais divertir-se. Como a guerra pertencia ao passado, Coubertin no uniforme da Liga Metropolitana (Miranda Pereira).
intitulou seu discurso na 18ª Sessão do COI (Comitê Olímpico O Rei Alberto manteve sua reputação de esportista mergu-
Internaccional), na sala da prefeitura de Antuérpia, em 17 de agos- lhando cada manhã na praia de Copacabana. Em Ribeirão Preto
to, como “O esporte é rei” (Renson, 1995, 96). (SP), os soberanos belgas presenciaram ainda um jogo de futebol,
Junto com a banda do Exército americano, a Idade do Jazz al- ao passo que, na Fazenda de Guatapará, puderam andar a cavalo,
cançou a Bélgica no final da guerra. Essa música sincopada tinha conhecendo a vida rural. Como lembrança de suas visitas ao Bra-
feito sua entrada com o baterista-cantor negro americano Louis sil receberam dois magníficos cavalos, que acomodaram nos está-
Michell e seus Jazz Kings. O jazz era a expressão da nova era dos bulos do Palácio Real de Laken (Le Patriote illustré, 28.11.1920).
roaring twenties, o símbolo de que se podia improvisar livremente
mantendo a harmonia com o grupo. Conclusão
Em 27 de agosto, Roberto Trompowsky Júnior ofereceu um
banquete em honra a Pierre de Coubertin e Edward S. Brown, As relações belgo-brasileiras provavelmente nunca foram mais
do YMCA no qual o COI prometeu apoio oficial aos Jogos Regio- intensas em termos políticos e econômicos como em 1920. O
nais da América do Sul (De Franceschi Neto-Wacker e Wacker). esporte desempenhou um papel catalítico nesta aproximação.
Globalmente, Pierre de Coubertin deixou uma imagem bastante Naquele momento, era a expressão do espírito modernista e ex-
objetiva do “Sturm und Drang” dos olímpicos de 1920. Mencio- pansionista e devia moldar o estilo de vida dos jovens industriais,
nou, por exemplo, que uma noite um grupo de atletas vasculhou empresários e aventureiros coloniais.
a cidade caçando bandeiras olímpicas. Coubertin constatou sa- Tanto a estreia do Brasil nos Jogos Olímpicos de Antuérpia
biamente no seu relatório sobre os Jogos de Antuérpia: “...houve quanto a visita real belga se enquadraram nesta configuração. Es-
muitos outros distúrbios. Mas alguém imagina que antes, no Olím- ta “caipirinha agridoce” de esportes e negócios ficou ainda mais
pio (sic), nunca houve disputas ou escaramuças?” (Coubertin, s. d., evidente nos jogos latino-americanos de setembro de 1922. Pierre
55). Ignoramos se algumas bandeiras foram levadas como troféus de Coubertin tinha delegado o conde belga Henry de Baillet-La-
olímpicos para casa no Brasil. tour como o representante do COI, que exprimiu seu desejo de
manter esses jogos como a melhor maneira de preparo para os
O esporte brasileiro e a visita real de 1920 Jogos Olímpicos e uma única oportunidade de dar à juventude a
educação esportiva que lhe faltava (Costa, 2002).
Como o Rei Albert e a Rainha Elisabeth partiram em 1º de Após a participação memorável do Brasil nos Jogos Olímpicos
setembro para o Brasil, “país das maravilhas” (Le Patriote illustré, de Antuérpia em 1920, os Jogos da Exposição do Rio de Janeiro,
5.9.1920), não puderam assistir à Cerimônia de Encerramento do presenciados por Baillet-Latour, tornaram-se um marco na política
mesmo dia. Entretanto, em pleno mar, assistiram no cruzeiro São geoesportiva da América do Sul e promoveram a criação formal
Paulo a vários divertimentos esportivos. Já o príncipe herdeiro, Le- dos Comitês Nacionais Olímpicos no continente latino-america-
opold, seguiu seus pais 15 dias mais tarde no navio belga SS Pays no. Desta maneira, esse “romance” belgo-brasileiro esportivo e
de Waes, levando a bordo os participantes brasileiros dos Jogos de econômico teve consequências duradouras.
Antuérpia. Para o casal real, foi organizado, no Rio de Janeiro, no
estádio fluminense, em 26 de setembro, um grande festival esporti- Referências
vo com um desfile dos clubes esportivos da Liga Metropolitana. O E. Bergvall. De Olympiska Spelen / Antwerpen 1920. Estocolmo, 1920.
caráter nacionalista e simbólico dessa manifestação foi celebrado Carlson, L. H., e Fogary, J. J. Tales of gold. Chicago, 1987.
no jornal O Paiz de 24 de setembro de 1920: “Nenhuma ocasião Costa, L. da. The IOC geopolitics in South America, 1886-1936. Journal of Olympic His-
tory, 2002, 10(3), 61-67.
se apresenta para uma demonstração do que representamos como Coubertin, P. de. Géographie sportive. Revue olympique, 1911, abril, 51-52.
expressão galharda do que somos, como sport... da parada atlética Coubertin, P. de. The seventh Olympic Games. Report of the American Olympic Com-
de domingo, em homenagem à energia moça e heróica do grande mittee, s. d., 47-58.
Kluge, V. Olympische Sommerspiele: Die Chronik I: Athen 1896-Berlin 1936. Berlim, 1998.
atleta-rei, que é o soberano belga, que ora nos dá a honra de sua Neto-Wacker, M. de Franceschi. Brasilien und die Olympische Bewegung 1896bis 1925.
visita” (Miranda Pereira, 155). Stadion, 1999, 25, 131-137.
A imprensa brasileira destacava que o rei belga, que era ao Neto-Wacker, M. de Franceschi e Wacker, C. Rio de Janeiro goes olympic. Journal of
Olympic History, 2009, 17 (3), 6-20.
mesmo tempo um europeu, esportista e “rei-soldado” podia lá Mallon, B..The unofficial report of the 1920 Olympics. Durham, 1992.
observar uma nova geração de atletas “...flores do Brasil de hoje e Mallon, B., e Bijkerk, A. T. The 1920 Olympic Games: results for all competitors in all
frutos do Brasil futuro”. Por sua vez, a imprensa belga usou super- events, with commentary. Jefferson, 2003.
Pereira, L. A. de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro,
lativos similares: “Todos os atletas e esportistas do Brasil desfila- 1902-1938. Rio de Janeiro, 2000.
ram defronte à tribuna dos reis belgas e do presidente” (Le Patriote Renson, R. War is over, sport is king: the political climate during the 1920 Olympic Games
illustré, 14.11.1920). Como parte da manifestação, foi jogada uma of Antwerp. Stadion, 1995-1996, 11-12, 193-209.
Renson, R. The Games reborn: the VII Olympiad Antwerp 1920. Antuérpia, 1996.
partida de futebol entre dois times escolares, um selecionado no
358
parte 11 – esportes
A capoeira na Bélgica
J a n To l l e n e e r
Um número crescente de
belgas se deixa fascinar
pelas demonstrações de
capoeira, ficam intrigados
pela estranha mistura de
arte marcial e dança, um
happening e um esporte.
359
parte 11 – esportes
1962, conheceu o Mestre Miguel Magado em 2002, um professor e as redes informais. Ensina as pessoas a elevar seus olhares acima
de educação física e famoso pelo grupo brasileiro e internacional das fronteiras das disciplinas esportivas, das formas culturais, das
Cativeiro. O mestre estava então na cidade de Antuérpia para dar épocas, dos países e das raças. Que se estude o fenômeno, seja
aulas de capoeira. Casaram-se em 2007 e começaram juntos, em em nível micro ou macro, os conceitos que sempre voltam são
2004, a Ilê dos Êres, um projeto de desenvolvimento em São Mi- paz, liberdade, controle e desenvolvimento. É o que faz a capo-
guel, um bairro de pescadores em Ilhéus (BA). eira tão contagiante na Bélgica e que lhe dá sua carga simbólica
Uma pesquisa com observação participativa (Van Dyck, Ver- e atração em muitos países.
meulen & Tolleneer, 2007) ressalta que a capoeira é um instru-
mento excepcional para melhorar não somente a motricidade mas Jan Tolleneer é professor das Universidades de Lovaina (KULeu-
também as habilidades sociais e a autoestima de crianças desfavo- ven) e de Gand. Foi membro da presidência da International Socie-
recidas e adolescentes. ty for Comparative Physical Education and Sport (ISPES) e da In-
Projetos como Ilê dos Êres e Mus-e Brasil se conduzem no en- ternational Society for the History of Physical Education and Sport
tusiasmo e idealismo, mas não podem subsistir sem financiamento (ISHPES). Ensina Fundamentos da Educação Física, Estudos Com-
e enquadramento. O primeiro projeto desfrutou nesse período do parativos, História dos Esportes e Ética Esportiva. Coordena o Interfa-
apoio da ONG flamenga SOS Kids International e da Barry Cal- culty Research Group Sport and Ethics (KULeuven). Publicou vários
lebaut, que possui perto de São Miguel uma fábrica que processa livros e artigos em revistas de estudos dos esportes.
sementes de cacau. O segundo surgiu no contexto da International
Yehudi Menuhin Foundation (IYMF). Referências
Como meio para estimular a convivência local e o desenvol- Van Dyck J., Vermeulen E. e Tolleneer J., Capoeira, ontwikkeling en samenwerking in
vimento internacional a capoeira precisa efetivamente de uma Brazilië. Literatuuronderzoek en gevalstudies, Leuven: KU Leuven, tese de mestrado
gestão eficiente e de financiamento substancial. Na Bélgica, leva em Educação Física e Kinésiologia; orientador prof. dr. J. Tolleneer, 2007, 141 p.
Wielandts J. e De Meyer G., Capoeira: van zelfverdediging voor slaven tot populaire sport
um pouco sua vida própria como um valor patrimonial, artístico e in Vlaanderen, Leuven: KU Leuven; tese de mestrado em Ciências da Comunicação;
lúdico. Em comparação com o mundo esportivo moderno, é me- orientador prof. dr. G. De Meyer, 2005, 137 p.
nos burocratizada e deixa mais lugar para a vivência pós-moderna
360
parte 11 – esportes
Ainda que os cursos de equitação tenham sido fechados duran- Além de grande atleta, Nelson destaca-se, até o presente, por
te a Segunda Guerra, em 1942 pela primeira vez uma equipe bra- sua performance como técnico e criador de cavalos. É um profun-
sileira disputou torneios no exterior, mais precisamente no Chile. do conhecedor da psicologia do cavalo e um estudioso das linhas
Mas, essa história poderia ter outro enredo, não fosse a presença genealógicas dos cavalos de esporte. Como técnico, alcançou des-
de dois brasileiros ilustres. taque ao orientar equipes em vários países na Europa e no Oriente
Há quem diga que o esporte é uma linguagem universal. Em Médio e ajudou na conquista da primeira medalha olímpica do
certo sentido isso poderia sugerir a inexistência de fronteiras ou esporte equestre brasileiro, bronze em Atlanta.
barreiras uma vez que a comunicação pode se dar pela competi- Em 1981 instalou-se na Bélgica, onde vive até o presente. Lá
ção em si. Alguns atletas brasileiros mostram isso quando vencem ele montou o Haras du Ligny, em Fleurus, importante centro de
as fronteiras dos Estados Nacionais e ganham o mundo com seu formação e treinamento para cavaleiros de todo o mundo.
talento e competência, estabelecendo residência e tendo mais do Rodrigo Pessoa nasceu em 29 de novembro de 1972, em Paris,
que um passaporte, mas mantendo vínculo com o Brasil. na França. Apesar de nunca ter morado no Brasil, aos 18 anos ele
Esse é o caso de Nelson e Rodrigo Pessoa, pai e filho, cavaleiros optou pela cidadania brasileira. Começou a montar aos cinco anos
olímpicos, reconhecidos internacionalmente por seus talentos e e aos nove participou de seu primeiro campeonato, em Hickstead
habilidades e que residem há muitos anos na Bélgica. (Inglaterra), na classe pônei. Aos 12 anos, foi com a família morar
Nelson Pessoa Filho nasceu no Rio de Janeiro, em 16 de de- na Bélgica onde conquistou o campeonato belga de pônei.
zembro de 1935, e muito cedo começou a montar e a se destacar Foi o jóquei mais jovem dos Jogos Olímpicos de Barcelona
nos torneios em que participou. Como dito acima, o hipismo nesse (1992), ficando em nono lugar na classificação individual. Nesse
momento era um esporte praticado basicamente por militares e mesmo ano conquistou seu primeiro grande prêmio na Copa do
os destaques da modalidade eram oficiais do exército brasileiro. Mundo, em Malines (Bélgica). Em 1995 ganhou a medalha de
Foi nesse cenário que no final dos anos 1950 Nelson Pessoa surgiu ouro por equipe nos Jogos Pan-Americanos de Mar del Plata (Ar-
para o esporte, passando a representar a equipe brasileira e defen- gentina) e no ano seguinte venceu o Grande Prêmio da Alema-
dendo o País nas competições internacionais. nha, recebendo o título de melhor cavaleiro em Paris (França) e
Neco, como é conhecido o atleta, iniciou sua carreira inter- Zurique (Suíça).
nacional como cavaleiro muito jovem, ganhando vários torneios Rodrigo fez parte da equipe que conquistou a medalha de
e a vaga para sua primeira participação olímpica em Melbourne, bronze olímpica nos Jogos de Atlanta em 1996 e, em 2004, foi
em 1956, quando tinha 21 anos. campeão olímpico individual. Além dessas conquistas também
Em 1961 mudou-se para a Europa a fim de aperfeiçoar-se, o foi campeão da Copa do Mundo em Helsinque (Finlândia) e do
que o levou não a apenas conquistar o reconhecimento mundial Campeonato Mundial em Roma (Itália), disputado a cada quatro
como também abriu caminho para que muitos outros cavaleiros anos. Em 1999, venceu pela segunda vez a Copa do Mundo em
brasileiros pudessem conquistar esse continente. Nelson ficou co- Gotemburgo, na Suécia, e chegou ao segundo lugar no ranking
nhecido como o Feiticeiro por causa do estilo de conduzir seu ani- mundial de hipismo na categoria sênior.
mal, o que parecia ser uma obra de encantamento. A partir de 2004, junto com o pai, Rodrigo trouxe de volta ao
Nos Jogos Pan-Americanos de Winnipeg, em 1967, pela pri- calendário internacional o tradicional CSI de Bruxelas, evento que
meira vez na história a equipe brasileira de hipismo conquistou reúne os melhores cavaleiros do mundo e revela grandes talentos.
a medalha de ouro, superando os favoritos à medalha. Nelson Nelson e Rodrigo Pessoa são exemplos vivos da mundialização
Pessoa Filho, juntamente com Antônio Alegria Simões, José Ro- do esporte e da fluidez das fronteiras quando o objetivo é a busca
berto Reynoso Fernandes e o coronel Renyldo Ferreira foram os da excelência.
protagonistas desse feito. E na prova individual, Neco conquistou
a medalha de prata. Kátia Rubio é Professora Associada da Escola de Educação Física e
Como atleta, Nelson participou ainda dos Jogos Olímpicos de Esporte da Universidade de São Paulo (USP). É bacharel em Jorna-
Tóquio em 1964, México em 1968, Munique em 1972 e Barce- lismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero (1983) e
lona em 1992, mostrando uma longevidade rara em atletas. Em psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1995).
seu currículo constam duas medalhas de ouro e uma de prata em Fez mestrado em Educação Física pela USP (1998) e doutorado em
Jogos Pan-Americanos, sete vezes campeão (recorde de vitórias) do Educação pela USP (2001). Tem 16 livros publicados na área de
Derby de Hamburgo, tricampeão do Derby de Hickstead, campeão Psicologia do Esporte e Estudos Olímpicos. É membro da Academia
europeu, vencedor de 150 GPs na Europa, foi vencedor de mais Olímpica Brasileira.
de 100 provas de Potência e foi quatro vezes campeão brasileiro.
361
parte 11 – esportes
362
parte 12 – gastronomia
parte 1 2
Gastronomia
363
parte 12 – gastronomia
364
Produtos brasileiros na gastronomia belga
Eddy Stols
Nas últimas décadas do século XVI e nas primeiras do século XVII chegava em Flandres o açúcar dos novos engenhos brasileiros com maior abundância e a melhor
preço. Abastecia as refinarias de Antuérpia e promoveu para as mesas aristocráticas e burguesas uma sofisticada arte de doçaria e confeitaria. Açúcar cristalizado,
biscoitos e conservas de frutas eram celebradas nas pinturas de naturezas mortas de Osias Beert e de Clara Peeters. Entretanto, outro pintor, Pieter Breughel o jovem,
mostrava também um camponês recebendo de presente de seu proprietário um pão de açúcar, já embrulhado no papel e provavelmente de açúcar mascavado. Este
entrou rapidamente no consumo popular, como cobertura de tortas ou até de simples fatias de pão, às vezes assadas como rabanadas ou adocicando pratos populares
com repolho vermelho. No século XIX o açúcar, se bem que agora de beterraba, se generalizou na dieta popular, ao mesmo tempo em que se criaram novas iguarias de
confeitaria como a tarte brésilienne e a glace brésilienne (sorvete). Justificavam seu nome de brasileira pela presença da “noix du Brésil” ou castanha do Pará.
365
parte 12 – gastronomia
“La Maison Antoine”, um dos mais conceituados ‘fritkots’ de Bruxelas – lojas de frituras em vias públicas, onde se encontram as batatas fritas belgas e outras
guloseimas – tem no seu cardápio, entre outros, o molho ‘Brazil’, cujo ingrediente especial é o abacaxi.
366
parte 12 – gastronomia
367
parte 12 – gastronomia
ecossistema favorável ao plantio de cevada, lúpulo e certos maltes, Paulo para Santos um Parque Recreio Belgo-Brasileiro. Um belga
com clima moderado e solo propício. de Bruxelas, Pascal Schoeps, introduziu assim no Brasil um tipo
A Bélgica conta com marcas poderosas como a Stella Artois de taberna com música, jogos e bailes, que com suas janelas verdes
(originária da taberna Den Hoorn, fundada na cidade de Lovaina em meio a ipês se parecia muito, segundo o visitante belga Louis
em 1366), já tão presente e apreciada no mercado brasileiro. A Piérard em 1920, com as guinguettes parisienses ou com casas re-
produção industrial fomentou a organização na Universidade de creativas como Moeder Lambic e Ziska, localizadas na praia belga
Lovaina de uma formação universitária de engenheiro-cervejeiro. de Knokke (Piérard e Araújo, p. 321).
Mas a produção artesanal segue sendo uma atração à parte que Outra visita belga que rendeu frutos saborosos foi Emile To-
conta com misturas tradicionais como coentro, alcaçuz, gengibre, bias Morisse, engenheiro agrônomo que nas primeiras décadas
cerejas e framboesas; e a ousadia de novas experiências e misturas, do século XX assumiu vários cargos na Seção de Leiteria do Posto
como a mostarda, o café e o chocolate. Zootécnico Federal(D.O.U, 1910; 1911; 1913). Posteriormente
Esse entusiasmo de produção e consumo que une os dois paí- voltou todos os seus conhecimentos e investiduras em uma socie-
ses já viveu episódios frutíferos. Vários jovens brasileiros foram es- dade com Antoine Daniel Souquières e Landucci, no Grand Hô-
tudar engenharia cervejeira em Lovaina. Em 1905 um deles, Luiz tel e Rotisserie Sportsman, localizado no centro da cidade de São
Englert, adquiriu em Porto Alegre a grande cervejaria Christoffel, Paulo. Esse estabelecimento pretendia ser uma verdadeira misci-
que tinha 45 empregados, e uma produção de 1.500.000 garrafas genação de hábitos e produtos europeus. O cardápio era servido
de cerveja por ano, de cerveja branca e preta simples e dupla, de à francesa. O nome – sportsman – era uma referência ao inglês
Lager Bier, Export Bier, Culmbacher, Chopps simples e duplo supostamente refinado praticante de esportes (o logotipo da casa
(A Redenção, 16.03.1904). Sua caldeira a vapor do sistema Bele- era uma cabeça de cavalo, evocação nítida aos esportes equestres).
vil vinha da Bélgica, da empresa metalúrgica De Nayer & Cia. A adega ficou famosa por sua variedade e sucesso na eficiência das
de Willebroek, que forneceu nessa época também as estruturas regas em festas e banquetes (Barbuy, p. 125)
metálicas para o novo Mercado Municipal do Rio de Janeiro. Se- Novos encontros se fizeram esperar por muito tempo até que
gundo um padre belga em Porto Alegre, Joseph Moreau, no final foi fundada em 1983 na cidade de Botucatu (SP) a Cervejaria
de 1905 Luiz Englert procurou associar-se com capitalistas belgas Belco. A fábrica foi instalada onde anteriormente funcionava a
para aumentar sua produção e conquistar, no Norte do Brasil, um Belgium Co., uma cooperativa que reunia remanescentes da co-
mercado em falta de boa cerveja (Moreau). lonização belga nesse município, iniciada na década de 1960. A
Não podemos aferir se tal empreitada teve sucesso, mas pelo origem do nome é um amálgama e homenagem das primeiras síla-
menos poucos anos depois um grupo de investidores belgas per- bas do nome da cooperativa. Em 1985 foi adquirida pela Destilaria
cebeu que com a alta proibitiva das taxas de importação sobre Schincariol e posteriormente remanejada para São Manuel, onde
cervejas chegava a hora de aventurar-se no Brasil. Se sua produ- permanece. Há também uma filial em Cabo de Santo Agostinho
ção nacional aumentou de forma expressiva, faltava-lhe boa qua- (PE). Essa cerveja que traz a marca feliz da junção do gosto belga
lidade nas cervejas de alta fermentação. Em 22 de julho de 1910 em território brasileiro é exportada para os Estados Unidos, Euro-
foi fundada na cidade de Bruxelas Les Grandes Brasseries du Rio pa e Ásia. Suas principais marcas são: Chopp Belco, Belco Pilsen,
de Janeiro, com capital de 2 milhões de francos belgas (Recueil Tauber, Malzbier Belco e Mãe Preta.
Financier, 1910). Entre os acionistas da nova sociedade encontra- No mais, a influência da cervejaria belga foi incorporada por
vam-se dirigentes de uma das maiores cervejarias belgas daquela algumas fábricas brasileiras. É o caso da Riopretana (fundada em
época e em plena expansão, as Grandes Brasseries de l’Étoile, mas 2005, São José do Rio Preto, SP), que produz a Amber, anuncia-
também um ex-presidente da Província do Pará, José Paes de Car- da como avermelhada e de origem belga. A Whitehead, cervejaria
valho. A intenção era rentabilizar com mais capital e a tecnolo- artesanal de Porto Alegre (RS-2007), comercializa a Witbier, se-
gia das Grandes Brasseries de l’Étoile a cervejaria Guarda Velha, guidora do “estilo belga”, forte, encorpada e aromática.
comprada dos Alves da Nobrega por um contabilista de Bruxelas, Esse namoro etílico desembocou num grande encontro entre a
Léon Requier. Situada num bairro rico do Rio de Janeiro, estava história da cerveja nos dois países, agora no campo do mundo glo-
equipada com material moderno e produzia 1.200.000 garrafas, balizado. Falamos da formação da AB Inbev (sediada em Lovaina),
sendo dois terços de cerveja clara e um terço de stout. companhia de bebidas formada no ano de 2004 com a fusão da
A parte não utilizada do prédio era alugada por 40.000 francos brasileira Ambev e a belga Interbrew. Essa última era uma empre-
e podia, com melhoramentos, render 80.000. Não obstante, em sa de raízes belgas, formada pela junção da flamenga Stella Artois
12 de abril de 1913 a sociedade já se encontrava em liquidação. com a Piedboeuf, da Valônia. Depois de muitas fusões e aquisições
A entrega da cervejaria demorou demais e os primeiros sete meses tornou-se a maior companhia de cerveja do mundo.
de exploração sofreram prejuízo pela forte concorrência alemã. Do lado brasileiro, a Ambev (Companhia de Bebidas das Amé-
Além do mais, houve suspeita de erros em relação à produção ricas) é o resultado da fusão da Companhia Antarctica Paulista e
anterior e aos aluguéis. Companhia Cervejaria Brahma. Com a AB Inbev o brasileiro teve
Mas a presença de belgas aflorou em novas searas de consumo. maior acesso às cervejas belgas, que, traçando um caminho aber-
Em 23 de novembro de 1913 foi inaugurado na estrada de São to pela Duvel (Diabo), viraram verdadeira febre. A lista de oferta
368
parte 12 – gastronomia
belga é ampla, dentre as quais destacam-se no mercado brasilei- Daisy de Camargo é Mestre em História pela Pontifícia Universida-
ro: Hoegaarden (com fórmula baseada em sementes de coentro de Católica de São Paulo (Capes), Doutora em História pela Unesp/
e raspas de casca de laranja); Belle-Vue (do tipo Lambic, ou seja, Assis (Fapesp). Trabalhou como historiadora no Museu da Imagem
de fermentação espontânea); Leffe (de alta fermentação, do tipo e do Som de São Paulo e no Condephaat (Conselho de Defesa do
abadia); Malheur 10 (encorpada e marcante); West Malle Dubbel Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado
(trapista); Delirium Tremens (ironicamente frutada); Troubadour; de São Paulo). Publicou o livro Alegrias Engarrafadas: os álcoois e a
Maredsous; La Chouffe; Kwak. embriaguez na cidade de São Paulo no final do século XIX e come-
No rastro de tamanho sucesso de paladar, Xavier Depuydt, ço do XX. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
cervejeiro belga de família tradicional no ofício e com experiên
cia de mais de dez anos em cervejarias belgas, imigrou para o Referências
Brasil em 1996, instalando-se no Rio de Janeiro. Depois de três Luis Felipe de Alencastro e Maria Luiza Renaux. “Caras e modos dos migrantes e imigran-
anos inaugurou a primeira loja com espaço para degustação de tes.”, in Luis Felipe de Alencastro (Org.). História da Vida Privada no Brasil: Império.
cervejas belgas do Brasil, a Belgian Beer Paradise. O sucesso foi de São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 291-335.
Vicente de Paula Araújo. Salões, circos e cinemas de São Paulo. São Paulo, 1981.
tal envergadura que Depuydt passou a arranjar, no ano de 2010, Heloisa Barbuy. A cidade – exposição: comércio e cosmopolitismo em São Paulo, 1860-
a Belgian Beer Festival, festa para degustação de cervejas e gastro- 1914. São Paulo: Edusp, 2006.
nomia típica belgas. Em novembro de 2013 organizou-se em São Henrique Carneiro. Pequena Enciclopédia da História das Drogas e Bebidas. Rio de Ja-
neiro: Elsevier, 2005.
Paulo uma Semana da Cerveja Belga. Luis da Câmara Cascudo. História da Alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004.
Retornando à permuta de encantamentos etílicos, atualmente Luis da Câmara Cascudo. Prelúdio da Cachaça. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986.
a hora e a vez na Bélgica é da Caipirinha. Na década de 2000 co- Pedro Luiz Napoleão Chernoviz. Diccionario de Medicina Popular (em que se descrevem
em linguagem accommodada á intelligencia das pessoas estranhas á sciencia medica).
meçaram a surgir vários bares brasileiros onde essa bebida impera. Terceira Edição, Paris: em casa do autor, Rua de Passy, 10 bis, 1862.
No livro Xangô de Baker Street, Jô Soares elabora um chiste em http://www. Cervejasdomundo.com/Brasil.htm Acesso em 22 de outubro de 2012.
torno da invenção desse drink. O sábio médico Dr. Watson, amigo Inventário de Bernardo Martins Meira, Arquivo Judiciário do Estado de São Paulo, Pro-
cesso 689/1876.
e assistente de Sherlock Holmes, teria criado a receita na tentativa Joseph Moreau, 30.12.1905, Archives du Ministère des Affaires Étrangères, Bruxelas,
de utilizar o limão e o açúcar como antivenenos para qualquer mal 2806, VII.
-estar que pudesse causar a força da cachaça no corpo de Holmes. Diário Oficial da União (DOU). 17 nov. 1910, p. 14, seção 1; 30 jun. 1911, p. 8, seção 1;
10 maio 1913, p. 44, seção 1.
Mas a Caipirinha surgiu em algum recanto do Estado de São Michael Jackson. Great Beers of Belgium. Philadelphia: Running Press, 1998.
Paulo. A mistura de aguardente, limão e açúcar era primeiro uti- O Estado de S. Paulo, 8 jun. 1919, p. 9; 25 jan. 1920, p. 11; 08 fev. 1920, p. 8.
lizada na Capitania de São Vicente como antídoto para constipa- Louis Piérard. Films brésiliens. Bruxelas, 1921.
Recueil Financier. Bruxelas, 1910-1921.
ções. Com o passar do tempo e o acréscimo do gelo tornou essa Walthère de Sélys-Longchamps. ‘Notes d’un voyage au Brésil’. Revue de Belgique, 1875.
mistura querida e disseminada por todo o Brasil, vertendo-se num Jô Soares. O Xangô de Baker Street. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
dos símbolos da cultura brasileira no exterior. Mário Souto Maior. Cachaça. Brasília: Thesaurus, 2005.
Conde de Villeneuve. Exposição Universal de Antuérpia: relatório apresentado a S. Ex.
Na Bélgica a Caipirinha virou febre nos últimos anos, em Sr. Conselheiro A. da Silva Prado. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Biblio-
bares brasileiros como o Dona Flor em Bruxelas, onde é servida teca Digital do Senado Federal/ Obras Raras. http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/
com feijoada e picantes da Bahia. Outra embaixadora nesta cidade id/242456 [acesso em 22 de novembro de 2012].
Revista Cervisiafilia (A história das antigas cervejarias) Domingo, 2 dez. 2012. http://cer-
dessa fórmula encantatória é o Canoa Quebrada, onde é consumi- visiafilia.blogspot.com.br/2012/12/fabrica-de-cerveja-frederico.html [acesso em 15 de
da como combustível para danças latinas e remédio para fadigas novembro de 2013].
repentinas e renitentes. Mas a poção mágica também é vendida
em um pequeno carro ambulante ancorado no centro de Bruxelas.
369
parte 12 – gastronomia
tarefas nas casas dos brancos. As mulheres, envolvidas em teci- e cantinas. A gastronomia japonesa estava despontando para um
dos de cores vivas e alegres, de porte altivo, sorrisos reluzentes e público seletivo ainda restrito. A abertura do Hotel Maksoud Plaza
olhar meloso, desfilavam no portão, ao amanhecer, coroadas por e seus cinco restaurantes com cardápios de diversos países sinte-
grandes bacias em ágata, vendendo as frutas colhidas e raízes ca- tizava a virada da gastronomia na capital paulista: um mercado
tadas, folhas e legumes da horta comunitária ninados pelos can- com sede de novidades, o que se confere até hoje.
tos ritualísticos do vilarejo de origem. Os peixes de água doce, as Trazia comigo o aprendizado profissional de uma nova filoso-
tartarugas e os pitus eram trazidos, ainda vivos, pelos pescadores, fia da gastronomia europeia, a Nouvelle Cuisine: movimento da
ao entardecer. Os caçadores vinham com cortes de carnes sangui- culinária iniciado pelo chef Fernand Point, que chefs renomados
nolentas presos a pedaços de couro para identificar sua origem. da Europa abraçaram nos anos 70, para atender a uma clientela
Tinha também a feira a céu aberto, com seu labirinto de ilhas de homens de negócio e mulheres de silhuetas esbeltas, à procura
de tapetes de folhas de palmeira trançadas, amostras dos diversos de uma alimentação mais adequada ao estilo de vida contempo-
produtos com cores variadas e que exalavam cheiros marcantes, râneo. Com um visual mais desenhado, ela acompanhava a onda
provocando um dégradé de emoções, que passavam do enigmático de novidades que estavam revolucionando a alimentação cotidia-
ao deslumbrante, podendo chegar até mesmo ao repulsivo. Du- na, o mundo da moda, da música, da arquitetura e das artes em
as estações compartilhavam o ano, a das chuvas que se alternava geral. Uma brisa de frescor soprou a favor de uma cozinha mais
com a das secas, modelando a imensa paisagem e a natureza com livre, mais leve, mais apurada, temperada com parcimônia e de-
caraterísticas bem definidas. licadeza, cozimento minucioso com ingredientes preparados na
A chegada na Bélgica teve como forte impacto a demarcação hora e com respeito às riquezas nutritivas, com porções menores
das quatro estações e a delimitação das propriedades, assim como e estilizadas, permitindo, assim, a elaboração de vários pratos na
várias sutilezas socioculturais, iniciando minha adaptação pelo composição dos menus degustação. Tudo para estimular os senti-
aprendizado necessário de uma outra língua, o neerlandês. dos e, em destaque, a aparência.
Toda minha educação escolar foi feita por uma maioria de São Paulo, em plena ebulição, oferecia um campo fértil para
professores que demonstravam ter, mais do que um trabalho re- implantação dessa nova gastronomia. Os estilistas da capital pau-
munerado, uma vocação, ensinando a importância do porque, do lista e de Belo Horizonte animavam, com suas criações, o bairro
onde, do como e do pesquisar, sempre. Meus pais valorizaram, dos Jardins, tanto de dia como de noite. As artes plásticas esta-
na minha educação, a constante procura da qualidade e da origi- vam explodindo em cores e novas linguagens e as galerias de arte
nalidade. Durante as férias, a Europa era explorada com o olhar se multiplicavam, a música marcava novos ritmos, os arquitetos
focado na arquitetura, na música, nos museus, nos mercados, nas encontravam um mercado aquecido para propor novas formas e
feiras livres de produtos regionais e nas visitas aos ateliês dos arte- novos espaços; os escritores, roteiristas e jornalistas desfrutavam
sãos. Em poucas palavras: a cultura em geral, natural e humana. da recém-conquistada liberdade de expressão. Toda essa efer-
Todas as refeições servidas à mesa eram realizadas com receitas vescência me motivou a abrir o L’Arnaque, na rua Oscar Freire.
à base de produtos de origem conhecida, o que reforçou o foco Um local apropriado para encontrar um público diversificado,
de ter no mínimo três prazeres epicuristas ao dia. Leite, manteiga, vanguardista e atuante, favorecendo a troca de ideias e informa-
creme de leite fresco, ovos, carnes e aves fornecidos pelas fazendas ções, no seu terraço aberto para a rua, com mesas na calçada,
vizinhas. A carne de caça era trazida pelo meu avô materno na sua máquina de café expresso, seus jornais e revistas nacionais e
estação permitida. As frutas silvestres eram catadas na floresta; os internacionais. Os pedidos dos clientes eram anotados por uma
cogumelos, apanhados nos pastos antes do amanhecer; as frutas, hostess. Os garçons, vestindo jeans e grandes aventais, camisas
colhidas no pomar, e as verduras, na horta de casa. Tudo isso me brancas e gravata borboleta, iniciavam uma nova tendência que
permitiu aguçar e enriquecer a minha bagagem de sabores inicia- se perpetua até hoje. O público do terraço era atendido por es-
da na África, sem preconceito, mas com exigência. tudantes universitários.
Cheguei no Brasil no início dos anos 80 e, como todo estran- Na cozinha, foram implantadas aulas do Mobral para ensinar
geiro, aterrissei na cidade maravilhosa do Rio de Janeiro, onde a a equipe, basicamente formada por uma mão de obra vinda do
influência francesa na culinária já era notória no hotel Copaca- Ceará e do Piauí, a ler e escrever. Trabalhadores assíduos e cora-
bana Palace, da família Guinle, seguido, mais tarde, pelo chef josos que até então só podiam reproduzir as receitas de memória.
Laurent Suaudeau e pelo chef Claude Troisgros. A proposta era inovadora, o público e a mídia apoiaram incon-
Os pratos vedetes da época eram coquetel de camarão com dicionalmente sua ousadia e temeridade. Na época, só havia a re-
molho golf, filé café de Paris, linguado belle meunière e strogonoff vista Gourmet especializada em gastronomia, e colunas assinadas
com batata palha. Na cidade de São Paulo, o restaurante Cassero- por críticos apareciam semanalmente nos jornais. Para manter o
le, da Tuna e do Roger, hasteava a bandeira da cozinha tradicional espaço interagindo com a cidade, eram realizados eventos, como
francesa, e o Rodeio era a grande churrascaria em voga. O restau- lançamentos de livros, exposições de obras de jovens artistas, des-
rante do hotel Ca D’Oro, o La Tambouille, o Massimo e outros files de moda, que constituíam uma moldura para uma culinária
do gênero demostravam a importância da presença italiana, cuja arrojada com um cardápio degustação que mudava radicalmente
culinária se popularizou com a explosão do fenômeno pizzarias a cada mês.
370
parte 12 – gastronomia
Durante os primeiros meses, foram apresentados pratos com da Cultura do Governo Fernando Henrique Cardoso. Pesquisa de
raízes no velho continente. Iniciamos uma criação própria de pa- produtos e comidas regionais iniciada desde a minha chegada ao
tos mulard para obter foie gras fresco, e uma horta orgânica abas- país reuniu receitas criadas, revistas e recriadas sob a nova filosofia,
tecia a casa. Uma traineira explorava a baía de Angra dos Reis, agrupadas por região. Sempre fui um viajante dos sabores, levan-
para fornecer os peixes e camarões. A cozinha sempre foi aberta tando ingredientes e receitas do Oiapoque ao Chuí. O reconheci-
para integrar, nas suas criações, novos ingredientes de pequenos mento da nova proposta foi imediato. O livro, talvez em função do
produtores. Com a ajuda da historiadora e pesquisadora Ângela novo conceito, esgotou-se rapidamente. O Embaixador da União
Marques da Costa, pesquisamos receitas, a tendência fusion, hoje Europeia, João Pacheco, e sua esposa, Leonor Pires, ofereceram
consagrada, mas que já existia no Brasil Império, mesclando três na sua residência um jantar, preparado por oito chefs de São Paulo
fontes – tipíco da colonização portuguesa: índios, portugueses e e Brasília, para toda comunidade diplomática europeia e autorida-
negros. Uma paleta de ingredientes brasileiros, sabores, texturas des brasileiras, baseado na proposta do livro. Segundo Maria Ceci-
e perfumes, ainda ignorados pela alta gastronomia, entrou com lia Londres, representante do Brasil nas reuniões de especialistas
força na filosofia da Nouvelle Cuisine no Brasil. O Chef Alex Ata- internacionais na Unesco, para a elaboração da Convenção para
la, recém-chegado da Europa, aluno da escola de hotelaria de a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, “quem estava
Namur, e que mais tarde iria projetar internacionalmente a gas- presente se deliciou com os sabores dos ingredientes inusitados
tronomia brasileira, foi apresentado ao chef em destaque no mo- apresentados e quem não foi perdeu o trem”. Esse evento levou
mento, durante um almoço no L’Arnaque. O empurrão foi dado um dos participantes, o chef brasileiro Henrique Fogaça, consa-
e bem dado. O movimento da Nouvelle Cuisine se espalhou pelas grado como chef revelação do ano em São Paulo, a aproveitar suas
cozinhas dirigidas por jovens chefs, a princípio formados fora do férias para descobrir a gastronomia belga, trabalhando ao lado da
país. Logo os cursos de gastronomia se multiplicaram no Estado, chef Arabelle Meirlaen e do Chef Philippe Fauchet.
e seu o governo investiu em escolas técnicas. A profissão de chef A ponte dos sabores está lançada entre o Brasil da mandioca,
foi tomando um novo rumo, deixando o estereótipo “casa grande do feijão e das frutas de botão e a Bélgica da batata frita, do chicon
e senzala”, para ter o reconhecimento do notório saber e a valori- au gratin e do sirop de Liège. Agora, é só reatar os laços e se deli-
zação do seu ofício e da sua arte. ciar com o exotismo dos ingredientes de lá e de cá para desfrutar
Em Brasília, concretizei um novo sonho: apresentar a diver- e enriquecer nossa cumplicidade gastronômica.
sidade das receitas e o potencial das matérias-primas do país no Boa viagem!
livro “Muito Prazer, Brasil”, publicado com apoio do Ministério Gastronomicalement, Quentin Geenen de Saint Maur.
371
parte 12 – gastronomia
Alex Atala: “Os anos na Bélgica foram fundamentais para a minha formação,
não só de cozinheiro, mas de homem e de caráter”.
372
parte 12 – gastronomia
373
Créditos de imagens
Parte 1 p. 86 em cima: Museu de Armas de Liège, n° 101, env. 16 / Reprodução: Marta C. Vale 02-
M.A.L. : 8005-De 58”. 03-1993
p. 28 à esq.: Acervo pessoal de Regina Lootens p. 86 embaixo: Acervo pessoal de Eddy Stols. p. 112 © Acervo pessoal de Patrick Collon.
Machado. p. 87 em cima à dir. e embaixo: foto de Carlos p. 114 © Magali Romero Sá.
p. 28 à dir.: Acervo Ivana Vervloet Di Francesco / R. Zanello de Aguiar (Macacheira) / Acervo p. 115 Acervo do Museu Paulista da Universidade
http://www.familiavervloet.com.br/fotos.asp pessoal de Eddy Stols. de São Paulo / Fotógrafo da reprodução: Hélio
p. 29 Museu Mineiro / Superintendência de p. 87 em cima à esq.: foto de Marc Ferrez em: Nobre.
Museus e Artes Visuais / Secretaria de Estado http://www.brasil.gov.br/old/copy_of_imagens/ p. 116 Acervo da Biblioteca da Esalq-USP.
de Cultura de Minas Gerais. sobre/cultura/fotografia/marc-ferrez/estrada- p. 117 Acervo da Biblioteca da FEA-USP.
p. 31 Museu Mineiro / Superintendência de de-ferro-de-paranagua-a-curitiba-viaduto-do- p. 118 Acervo do Núcleo de Documentação do
Museus e Artes Visuais / Secretaria de Estado conselheiro-sinimbu-parana-1879/view Instituto Butantan.
de Cultura de Minas Gerais / Fotografia de p. 88 em cima à esq. e à dir e no meio: Coleção p. 119 e 120 @ Dulce Eleonora de Oliveira
Pedro David. Allen Morrison / http://www.tramz.com p. 122 Acervo pessoal de Beatriz Monge Bonini e
p. 40 e 41 http://www.territorioscuola. p. 88 embaixo: Brasil, Cultures and Economies Rogelio Lopes Brandão.
com/wikipedia/pt.wikipedia. of Four Continents Cultures Et economies De p. 123 http://www.ihgsp.org.br/abl/arquivos/2.pdf
php?title=Ficheiro:Alvim-correa12.jpg Quatre Continents, editora Acco, Lovaina, 2001, p. 125 Acervo pessoal de Decio Eizirik.
p. 42 http://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.5 fig. 20 e 21. p. 128 e 131 Fotos de Els Lagrou.
/ Attribution: By Diesko Rosa (kexow@hotmail. p. 89 em cima à esq.: Acervo pessoal de Eddy p. 133 e 135 Acervo da Europalia.
com) (Own work) [CC-BY-SA-2.5.] Stols. p. 139 ©Daniel De Vos.
p. 43 e 44 Acervo de Mario Baeck. p. 89 embaixo: Dumoulin, Michel e De Vreese, p. 141, 142 e 143 Acervo da Biblioteca da Esalq-
p. 45 Reproduções de Christine Fellin. Marianne, Franki: een wereld bouwen”, Tielt: USP.
p. 48 Reproduções de Paul Dulieu. Lannoo, 1992. p. 144 © Acervo pessoal de Jacques Gillen, ARC-
p. 51 e 52 Acervo Associação Art N’Ativa. p. 90 foto do lado esq.: “Mina dos Belgas, MUNDA-PV-RBU1900bis
Corumbá/MS”, foto de Fábio Guimarães Rolim p. 146 e 147 ©Erika Benati Rabelo.
Parte 2 /Acervo do IPHAN-Corumbá, MS.
p. 91 Acervo do IPHAN-Corumbá, MS. Parte 5
p. 58 e 59 Acervo da Casa do Patrimônio p. 92 © Bernard Pirson.
Ferroviário do Rio de Janeiro (antigo Museu do p. 94 © Acervo de Jean Suettinni. p. 153 e 154 Cornelis Hazaert, “Kerckelijcke
Trem) / IPHAN – RJ. p. 97 e 98 Acervo Solvay Indupa. Historiae van de gheheele wereldt”, Antuérpia
p. 66 Acervo pessoal de Eddy Stols. p. 99 e 100 Acervo Tractebel Energia. 1652-1671 / Acervo de Johan Verberckmoes.
p. 67 Foto de Eddy Stols. p. 101 Acervo DEME. p. 155, 156 e 157 © Jeroen Dewulf.
p. 102 Acervo Grupo Jan De Nul. p. 159 e 161 Fotografias de Luciana Mascaro.
Parte 3 p. 104 Emile Cosaert e Joseph Delmelle, Histoire p. 163 Acervo da Biblioteca do Mosteiro de São
des transports à Bruxelles, Bruxelas, 1976, t. 1, Bento.
p. 76 Foto de Silvio Luiz Cordeiro. p. 86-87 p. 165 © KADOC, Centre de Documentation et
p. 78 à esq.: “Stadsarchief Antwerpen”, Arquivo p. 106 Acervo Citrosuco. de Recherche: Religion - Culture - Société /
Felix: Arquivo Municipal de Antuérpia, Imagens fornecidas por Luc Vints.
GIC#5704_001 Parte 4 p. 166 e 167 Fotografias de Luciana Mascaro.
p. 78 à dir.: “Stadsarchief Antwerpen”, Arquivo p. 168 http://www.territorioscuola.com/wikipedia/
Felix: Arquivo Municipal de Antuérpia, p. 109 Arquivo Público do Distrito Federal. pt.wikipedia.php?title=Ficheiro:Padre_julio.jpg
GIC#5704_002 Notação: ArPDF-B.03.01.c / Localização: ficha p. 171 e 172 © KADOC, Centre de
p. 79 “Stadsarchief Antwerpen”, Arquivo Felix: 0124, env. 21 / Reprodução: Marta Vale 02-03- Documentation et de Recherche: Religion
Arquivo Municipal de Antuérpia, GIC#5929 1993. – Culture – Société / Imagens fornecidas por
p. 81 Acervo do Museu Efgoed, Antuérpia, p. 110 Arquivo Público do Distrito Federal. Peter Heyrman.
reproduzida por Jan Possemiers. Notação: ArPDF-B.03.01.c / Localização: ficha p. 179 ©Monica Maria Muggler.
374
créditos de imagens
375
pa t r o c í n i o r e a l i z ação
pa t r o c í n i o r e a l i z ação