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organizadores

Brasil
Eddy Stols
Luciana Pelaes Mascaro
Clodoaldo Bueno

e Bélgica
Cinco Séculos de Conexões e Interações
Brasil
organizadores
Eddy Stols
Luciana Pelaes Mascaro
Clodoaldo Bueno

e Bélgica
Cinco Séculos de
Conexões e Interações
B r a si l e B é l g ic a
Cinco Séculos de Conexões e Interações
brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação

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brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação

Brasil e Bélgica
Cinco Séculos de Conexões e Interações

organizadores
Eddy Stols
Luciana Pelaes Mascaro
Clodoaldo Bueno

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brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação

edi çã o
Roney Cytrynowicz

p rodu ção edi tor i al


Monica Musatti Cytrynowicz

desi gn e edi tor aç ão e le tr ôni c a


Ricardo Assis
Tainá Nunes Costa
Negrito Produção Editorial
www.negritodesign.com.br

tradu ção
Eddy Stols
Luciana Pelaes Mascaro
Susana Rossberg

p repa ra ção de te xto e r e vi s ão


Mariangela Paganini

revi sã o de te xto e r e vi s ão das tr aduç õe s


Clodoaldo Bueno c i p - b r a si l . c a ta l o g a ç ã o n a p u b l i ca çã o
Eddy Stols s i n d i c a t o n a c i o n a l d o s e d i t o r e s d e l iv ro s , rj
Luciana Pelaes Mascaro B83
  Brasil e Bélgica: cinco séculos de conexões e interações / organização Eddy
Stols, Luciana Pelaes Mascaro, Clodoaldo Bueno. – 1. ed. – São Paulo: Narra-
tiva Um, 2014.
  376 p.: il.; 29 cm.

  ISBN 978-85-88065-34-5

  1. Brasileiros – Bélgica – História.  2. Problemas sociais.  3. Política interna-


cional.  I. Stols, Eddy.  II. Mascaro, Luciana Pelaes.  III. Bueno, Clodoaldo.
Editora Narrativa Um – Projetos e Pesquisas de História
www.narrativaum.com.br 14-13963 CDD: 305.86980493
CDU: 316.77
editora@narrativaum.com.br

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Os laços entre Brasil e Bélgica

Manoel Arlindo Zaroni Torres


Presidente da Tractebel Energia

S eparados por um oceano e milhares de quilômetros, Brasil e


Bélgica são mais próximos do que se poderia imaginar. Trazer
à tona esse vínculo é a principal missão desta obra, que nos ofe-
Além das influências culturais, o livro revela impressionantes
alinhamentos religiosos, ideológicos e científicos entre as duas na-
ções. Ao final de cada texto, constatamos a solidez dessa relação e,
rece um registro histórico e cultural importante da relação entre em especial, o legado deixado por um país no outro. Fundamental
os dois países. A tarefa de desbravar o tema, transformando uma à construção desse legado, a atuação de empresas belgas, como a
série de informações dispersas em um livro pujante como este, foi Tractebel Energia, no Brasil, bem como de companhias brasilei-
brilhantemente desempenhada pelos autores e organizadores, os ras na Bélgica, contribuíram de forma decisiva não apenas para
quais conhecem o assunto em profundidade. o desenvolvimento econômico dos dois países, mas também para
Ao longo dos capítulos, o leitor descobrirá que os laços entre intensificar o intercâmbio cultural.
os dois países começaram a ser construídos ainda no Brasil Colô- Colaborar para que toda essa trajetória conjunta fosse regis-
nia, há mais de cinco séculos, e foram se estreitando a partir do trada e se tornasse pública foi o que motivou a Tractebel Energia
intercâmbio cultural e econômico que se seguiu. O relato deixa a apoiar a realização desta obra. Estamos certos de que, a partir
claro que muitas pessoas e instituições colaboraram para conso- dela, Brasil e Bélgica passam a ter uma referência bibliográfica
lidar marcas do Brasil na Bélgica e da Bélgica no Brasil. A elas tão relevante quanto inspiradora, capaz de demonstrar todos os
cabe nosso agradecimento, pois a proximidade resultou em trocas benefícios da relação respeitosa, harmoniosa e cooperativa entre
importantes nas mais diversas áreas, do cinema à gastronomia, duas nações.
passando pelas artes cênicas e plásticas, literatura, música, espor-
tes e arquitetura.

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brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação

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Apresentação

Incentive Projetos e Eventos


Florianópolis (SC)

A presentar um livro cuja missão é tão importante não é tarefa


fácil. Uma obra que promete discorrer sobre o belo cordão
que existe entre o Brasil e a Bélgica. Essa relação, tão cordial e só-
Enxergamos neste livro, também, uma forma não só de res-
gatar o passado das duas nações e suas relações, mas também de
desenhar novos cenários para o futuro: promovendo conhecimen-
lida, já vem de tempos: são cinco séculos de interação. Um pouco to sobre a atual realidade entre os dois países e assim oportunizar
esquecida entre as tão comentadas relações brasileiras com outros novas formas de negociações. Assim, esperamos que este livro seja
países europeus, como a Itália, Alemanha e Portugal, o relaciona- apenas o primeiro entre muitos outros que contarão mais sobre a
mento Brasil-Bélgica é importante de ser aprofundado, exposto e trajetória do Brasil e Bélgica unidos em torno da valorizarão da
disseminado. Tornar esse livro acessível a todos aqueles que dese- cultura destes dois países.
jam ter mais conhecimento sobre o estreitamento entre esses dois Agradecemos imensamente a todos os profissionais envolvidos
países é o nosso maior objetivo. Como intuito principal, nosso neste trabalho, entre eles, especialmente aos pesquisadores Eddy
desejo é que existam cada vez mais intercâmbios socioculturais Stols, Luciana Mascaro e Clodoaldo Bueno; Roney Cytrynowicz
entre as duas nações e, acreditamos, sem sombra de dúvidas, que e Monica Musatti Cytrynowicz, diretores da editora Narrativa Um;
este livro propiciará isso. a Embaixada da Bélgica no Brasil, na pessoa do Sr. Jozef Smet;
Sabedores de que esta obra tem na sua tônica o resgate, a ao Consulado Geral da Bélgica, representado pelo Cônsul Didier
preservação e a promoção da presença do Brasil na Bélgica e da Vanderhasselt; ao Consulado Honorário da Bélgica em Santa Ca-
Bélgica no Brasil, temos a certeza de que os dois países se comple- tarina, Sr. Manoel Arlindo Zaroni Torres. Sem o envolvimento
mentam e se ajudam mutuamente a evoluir e a crescer, trazendo destes profissionais não seria possível que tal estudo acontecesse.
intrínsecos benefícios um ao outro. Somos gratos pelo profissionalismo, comprometimento e esmero
A partir do convite do professor Eddy Stols, precursor do pro- que todos dedicaram a este projeto cultural.
jeto, pode-se entender que este foi delineado para apresentar as Nosso agradecimento especial também ao Ministério da
relações que se formaram entre essas duas importantes nações no ­Cultura, por ter proporcionado a execução deste projeto, e a em-
decorrer dos últimos séculos, que vão desde a gastronomia até o presa Patrocinadora Tractebel Energia, representada pelo Sr. Jan
esporte. Passou-se pelas influências ideológicas e religiosas que Flachet, Sr. Luciano Andriani e Sra. Luciane Pinheiro Pedro, que
cada país revelou um ao outro. Vislumbrou-se a arte como verda- cumpriram papel essencial para a realização desta obra.
deira ferramenta de diplomacia e assim descobrimos dois países O livro Brasil e Bélgica: Cinco Séculos de Conexões e Intera-
repletos de trocas entre as áreas de cinema, teatro, dança, música ções está pronto para ser apreciado pelos seus leitores. A Incentive
popular e clássica, artes plásticas, arquitetura e literatura. Projetos e Eventos espera que a obra literária aqui presente seja
Com este desafio proposto, acreditamos que podíamos alcan- de grande contribuição para a valorização das heranças culturais
çar os objetivos desenhados para este estudo e, certamente, nossa geradas pela relação entre os dois países e que traga incontáveis
alegria é imensa por desempenharmos e mediarmos as relações ganhos para aqueles que tiverem acesso a ela. Convidamos a to-
entre os profissionais, que para nós, mostraram-se verdadeiros in- dos, portanto, a entrarem neste mundo ainda pouco conhecido da
vestigadores da história brasileira e belga. Poder proporcionar uma relação belgo-brasileira e a se deliciarem com o incrível conteúdo
fonte de conhecimento sobre essa relação tão importante nos en- que está agora disponível.
che de entusiasmo. Ficamos motivados, cada vez mais, por saber-
mos que estamos no caminho certo: levar ao outro a possibilidade
de descobertas e de crescimento através do aprendizado.

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brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação

Eddy Stols nasceu em 1938 em Roeselare, Bélgica. Concluiu seu Doutorado em História pela Universidade Católica de Lovaina em
1965. Foi professor na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília (atual Unesp) de 1963 a 1968; professor na Universidade
Católica de Lovaina de 1971 até se tornar Professor Emérito em 2004; professor extraordinário na Universidade de Leiden, Holanda
(1987-1991); professor visitante em várias universidades brasileiras (USP, UFMG, UFSC e UNESP - Campus Assis) e na École des
Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Entre suas publicações: Brazilië, Een geschiedenis in dribbelpas (Brasil, uma história em
passo drible), 1996, 2002 e terceira edição ampliada em 2011; coeditor de La Belgique et l’étranger aux XIXe et XXe siècles (1987); de
Flandres e Portugal, Na confluência de duas culturas (1991); Flandre et Amérique latine, Cinq siècles de confrontations et de métissages
(1993); Brasil, Cultures et économies de quatre continents (2001); O diplomata e desenhista Benjamin Mary e as relações da Bélgica com
o Império do Brasil (2006); Un mundo sobre papel (2009); Terra Brasilis (2011), com curadoria da exposição na Europalia.Brasil. Publi-
cou mais de cem artigos em revistas ou capítulos de livros, dos quais uma dezena sobre alimentação, açúcar e chocolate.

Luciana Pelaes Mascaro nasceu em 1970 em Dourado, São Paulo. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pelo Instituto de Ar-
quitetura e Urbanismo (IAU-USP) São Carlos em 1997 e Doutora pela mesma escola na área de Teoria e História da Arquitetura e
do Urbanismo em 2008. Realizou estágio de doutorado na Universidade do Minho, Portugal, e atuou como pesquisador estrangeiro
na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa. Trabalhou como Diretor do Departamento de Patrimônio Histórico da cidade de Jaú
(SP) em 2003. Participou da organização de workshops e seminários sobre Arquitetura e Patrimônio Arquitetônico e colaborou com o
CIVA (Centre International pour la Ville, l’Architecture et le Paysage), em Bruxelles, Bélgica, durante o ano de 2010. É professora do
Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Mato Grosso – campus de Cuiabá, e atua como pesquisadora
em temas como arquitetura do final do século XIX e início do XX, patrimônio arquitetônico e industrial.

Clodoaldo Bueno nasceu em 1943 em Presidente Prudente, Estado de São Paulo. É Mestre e Doutor em História Econômica pela
Universidade de São Paulo (USP), Livre-Docente e Professor Titular da Unesp, aposentado. Docente permanente do curso do Progra-
ma de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” da Unesp/Unicamp/PUC-SP, sediado em São Paulo. Foi pro-
fessor visitante na Universidade de Brasília (1994-95) e no Instituto de Estudos Avançados da USP (1197-99). Com auxílio da Fapesp,
desenvolveu em 1997 programa de aperfeiçoamento científico na Universidade de Lovaina, Bélgica. Membro do Grupo de Análise de
Conjuntura Internacional da USP; membro da CHIR (Comission of History of International Relations), sediada em Paris-Milão e vice-
coordenador acadêmico do Instituto de Estudos Econômicos Internacionais da Unesp/SP. Entre suas publicações, destacam-se os livros
A República e sua política exterior (1889 a 1902) (Editora da Unesp / Funag, 1995); Política externa da Primeira República – Os anos
de apogeu – de 1902-1918) (Paz e Terra, 2003); História da política exterior do Brasil (Ed.UnB, 4ª ed. 2011), este em co-autoria com
Amado Luiz Cervo. Publicou textos em revistas e livros editados em Londres, Tóquio, Paris, Buenos Aires, Milão, Quito e Assunção.

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Introdução

Eddy Stols • Luciana Pelaes Mascaro • Clodoaldo Bueno


Organizadores

E ntre o Brasil e a Bélgica (a Flandres do século XVI) o primeiro


atrativo foi a procura de açúcar de cana em quantidade sufi-
ciente para sustentar uma requintada produção doceira e confei-
nos anos de 1850 a de Nicolau Vergueiro em Limeira, ou oficiais,
como por volta de 1890 a de Porto Feliz, dirigida pelo padre Va-
nesse. Havia também trabalhadores à procura de salário melhor.
teira, bem como para adocicar, com o mascavado mais barato, a Em menor número, partiram comerciantes para vender armas,
dieta popular. Para produzi-lo, um grande mercador de Antuérpia, vidraria, casimiras, espelhos, lampadários, estruturas metálicas, co-
Erasmo Schetz, lançou já na década de 1540 um dos primeiros mo fizeram no Rio de Janeiro a Casa Laporte e os irmãos Pecher.
investimentos capitalistas no Brasil com o Engenho dos Erasmos O cônsul Edouard Pecher fundou no Rio de Janeiro em 1852
em São Vicente, no litoral do atual Estado de São Paulo. a Société Belge de Bienfaisance – ainda existente –, que organiza-
Pouco depois, em Antuérpia, um primeiro papagaio verde va banquetes anuais para angariar fundos para dar assistência aos
brasileiro apareceu à venda em uma feira, segundo um quadro compatriotas necessitados ou doentes, embora não possuísse hos-
de Joachim Beuckelaer de 1566. Importaram-se logo em seguida pital próprio. Vieram, ainda, artesões como o litográfo Jean-Bap-
mais papagaios, além de araras, tucanos, saguis e tatus brasileiros, tiste Lombaerts que montou em 1848 na Rua do Ouvidor uma
que serviam para dar prestígio à corte de Bruxelas e enriquecer as conceituada livraria, continuada pelo seu filho Henri e frequen-
coleções dos primeiros naturalistas. Tais animais exóticos, vendi- tada por Machado de Assis. Os tecelões d’Olne de Verviers cria-
dos no mercado, eram destinados também à intimidade dos lares ram no final do século XIX em Niterói a fábrica Tecidos Aurora.
burgueses e chegaram a merecer um lugarzinho nos quadros de Nessa corrente imigratória nem mesmo faltou um ou outro
Jan Breughel o Velho, no início do século XVII. nobre ou gente abastada: Léon Mosselman du Chenoy, longíquo
Mas foi somente a partir do início do século XIX que se in- parente da Rainha Paola da Bélgica, que se distinguiu na Bahia
tensificaram e se diversificaram as conexões entre os dois países. por volta de 1900 pelas suas empresas de mineração e, até, de
A partir de 1807, o porto de Antuérpia abriu-se à importação de piscicultura, embora nunca bem sucedidas; a família de Vicq de
produtos brasileiros, como café, couros e madeira. O Brasil reco- Cumpich no Rio de Janeiro; Henri Oedenkoven, filho de um rico
nheceu a independência da Bélgica e com ela firmou, já em 1834, industrial de Antuérpia, que, desiludido da famosa colônia de na-
um tratado de comércio. turismo Monte Veritá em Ascano na Suiça, tentou em 1925 orga-
Doravante, ambos os países manteriam relações diplomáticas nizar uma similar em escala menor em Catalão, Estado de Goiás.
exemplares, reforçadas pela arbitragem do Rei Leopoldo I em fa- Vale assinalar a presença de mulheres atuantes como Marie
vor do Brasil na questão Christie com a Inglaterra em 1863, quan- van Langendonck, que publicou em 1862 o relato de sua vida
do, por seu lado, o Brasil contribuiu para resgatar os direitos de pe- numa colônia do Rio Grande do Sul ou Georgina Mongruel,
agem, cobrados pela Holanda sobre a navegação do Rio Escalda. musa dos simbolistas e poetisa em Curitiba por volta de 1900. O
Nesses anos ainda, o príncipe herdeiro Leopoldo II estimulou, sem talento artístico motivou frequentes travessias e migrações como
êxito, o irmão Felipe a pedir no Rio de Janeiro a mão de uma das a de Maurice Nadeau, que desde os anos de 1950 encenou peças
princesas imperiais. Logo depois, o Imperador Pedro II visitou a no Teatro Brasileiro de Comédia e dirigiu inclusive novelas. Nos
Bélgica por quatro vezes em 1871-1872, 1876 e 1888. Com a que- anos de 1950 e 1960 o violonista Jan Douliez fundou em Goiânia
da do Império, Leopoldo II, exitoso na sua conquista do Congo, o Conservatório de Música, mas, incomodado pelo regime militar,
cobiçou uma parte do território da recém implantada república voltou em 1965 para a Bélgica.
brasileira: em 1891 fez a proposta ao Brasil e à França de cessão O Brasil recebeu também fugitivos belgas. O primeiro foi Pier-
do território contestado do Oiapoque; por volta de 1900 estava re Mabilde, que, revoltado contra o novo Rei Leopoldo I, chegou
de olho no Acre e tinha em mira grandes concessões de terras no em 1832 ao Rio Grande do Sul, onde, dirigindo a abertura de es-
Mato Grosso e no Araguaia. tradas, ficou cativo dos índios Coroados, que lhe inspiraram seu
Entrementes embarcaram entre 1840 e 1914 quase seis mil livro Apontamentos. Nos anos de 1840, um conspirador contra o
emigrantes belgas para o Brasil, principalmente agricultores can- mesmo rei, o Conde Auguste van der Meeren, teve sua pena de
didatos a um pedaço de terra numa das colônias privadas, como morte comutada em banimento e se estabeleceu na Bahia. Com

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brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação

os distúrbios sociais do final de século, socialistas como Augusto dados em casas de família. Paralelamente, cresceu o número de
Lootens e Alphonse Solheid e anarquistas como Jules Moineau expats belgas no Brasil, sendo cada vez maior o número dos que
se asilaram no Brasil. se registram em seus consulados no país.
Fugindo dos horrores da Primeira Guerra Mundial, um grupo Assim não é de se estranhar o fato de a Bélgica ter se tornado
de 30 belgas fundou sua comunidade libertária na fazenda Ta- referência frequente no vocabulário e ideário brasileiros. Em razão
bantinguera perto de Cananéia; mesmo malograda, esta aventura das dimensões do seu território e padrão de vida de sua popula-
brasileira inspirou um dos participantes, Géo Libbrecht, em sua ção passou a fazer parte da métrica brasileira e adquiriu status de
futura obra poética. No início da Segunda Guerra Mundial, cerca modelo de bem-estar social refletido no termo ‘Belíndia’, forjado
de trinta judeus, com passaportes belgas, obtiveram do embaixador em 1974 por Edmar Bacha para definir a sociedade brasileira,
brasileiro na França, Souza Dantas, visto para refugiarem-se no que justapõe o bem-estar desfrutado por 10% de seus nacionais
Brasil. Uma vez terminado o conflito, para lá escaparam, por sua nas condições da Bélgica aos 90% daqueles que vivem problemas
vez, vários colaboracionistas belgas da ocupação nazista. similares aos da Índia.
Outros ainda chegaram ao Brasil para prestar serviço a com- Esta primeira exploração poderia prolongar-se, enveredando-a
panhias belgas, como fez o engenheiro Gustave Vauthier, no final na vida científica, educacional e religiosa, mas esta pequena mis-
do século XIX, nas ferrovias do Paraná e Rio Grande do Sul. Em celânea de dados é suficiente para evidenciar um surpreendente
1886 a compra da companhia inglesa Gaz do Rio por capitalistas fluxo quase contínuo e muito diversificado de conexões entre am-
belgas inaugurou um período de investimentos em ferrovias, mi- bos os países, o que justifica um estudo mais aprofundado destas
neração, indústria têxtil, agropecuária e exploração da borracha, relações multifacetadas e sobretudo recíprocas, relações que nun-
totalizando por volta de 1910 mais de 100 milhões de francos em ca suscitaram uma obra de síntese como as que existem para as
quase quarenta empresas. Algumas destas tiveram vida curta, co- relações do Brasil com outros países europeus. Diferenciando-se
mo a Companhia Força e Luz, no Rio de Janeiro, que em 1887, destas obras, preferiu-se aqui uma abordagem bifocal, exploran-
embora por pouco tempo, teve parte do centro iluminado com ba- do estas conexões dos dois lados e dando ênfase tanto à presença
terias do belga Edmond Julien. Esta prefigurou de certa maneira brasileira na Bélgica quanto à belga no Brasil.
o empenho belga no fornecimento de energia elétrica no Brasil. Em nosso projeto editorial, ambicionamos, inicialmente, apre-
Outras empresas foram compradas pelo americano Farquhar co- sentar um repertório sucinto, mas tão completo quanto possível,
mo as ferrovias do sul brasileiro pouco antes da Primeira Guerra destas conexões em todos os setores, tanto no passado quanto no
Mundial; outras ainda mantiveram-se por quase um século, como presente, alternando verbetes de estudiosos com depoimentos pes-
o Banco Ítalo-Belga, fundado em 1911 em São Paulo. soais. Entretanto, logo vimo-nos subjugados e algo desnorteados
Uma incipiente segunda onda de investimentos belgas no Bra- pela abundância de temas, não suspeitada inicialmente.
sil ocorreu no final dos anos de 1930, mas interrompida pela guer- Além disso, tivemos a grata surpresa de constatar que muitos
ra. A nova dinâmia de investimentos que se verifica atualmente assuntos já foram investigados recentemente por acadêmicos bel-
somente se intensificou a partir do final do século XX, mas supe- gas e, sobretudo, por brasileiros. O crescente interesse existente
ra agora as fases anteriores. Desta vez veio acompanhada de mo- no Brasil pelos recantos de sua história reflete-se na excelente
vimento de capitais em sentido inverso, pois várias companhias qualidade da pesquisa nas suas universidades e na conservação
brasileiras instalaram-se na Bélgica. do patrimônio material.
Se as empresas belgas levaram seu pessoal para o Brasil, nume- Em vista do limite de páginas, do tempo e do orçamento
rosa colônia brasileira surgiu espontaneamente na Bélgica, com disponíveis impôs-se a necessidade de selecionar temas. Assim,
presença mais visível em Bruxelas, dos anos 1990 até hoje, cons- deixamos de lado as figuras e os episódios mencionados acima.
tituída de emigrantes à procura de trabalho. Desde a década an- Procuramos equilibrar os mais conhecidos e proeminentes com
terior, futebolistas brasileiros profissionais foram contratados por outros desconhecidos e quase marginais. Mesmo assim, conexões
equipes belgas, a exemplo do maranhense Luís Oliveira, que se importantes como na psicologia e psicanálise ou na literatura fi-
tornou entre 1988-1992 estrela do F.C. Anderlecht e da equipe caram de fora. Pedimos desculpas às pessoas para as quais não pu-
nacional dos Rode duivels. demos dar a devida atenção, mas esperamos que futuramente em
Bem antes disso, isto é, desde meados do século XIX, foi ex- outro livro consigamos nos redimir desta falha. Para adequarmos
pressivo o número de estudantes brasileiros nas universidades a obra ao espaço disponível reduzimos as referências bibliográfi-
belgas. Merecem ainda destaque os cerca de quarenta exilados cas ao mínimo indispensável. Ressaltamos ainda que cada autor
brasileiros no Chile que, depois do golpe contra o presidente é pessoalmente responsável pelas opiniões emitidas.
Allende, encontraram no final de 1973 refúgio na Bélgica. Dois
de seus líderes, Vladimir Palmeira e José Ibrahim, participaram ***
de maneira ativa da redemocratização do País. Cabe mencionar,
também, o programa de intercâmbio American Field Service, que Este projeto foi viabilizado graças ao patrocínio da Tractebel
desde 1985 facilita para algumas centenas de jovens brasileiros Energia dentro das normas da Lei Rouanet. A boa acolhida da-
e belgas passar um ano escolar na Bélgica ou no Brasil, hospe- da pelo seu diretor Jan Flachet e seus colaboradores foi determi-

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introdução

nante, como também em Bruxelas o apoio de Dirk Beeuwsaert, pour l’exploration et la conservation de la nature, de Luc Vints do
diretor da Electrabel e administrador da GDF-Suez. Grande é KADOC (Centro de documentação católica da Universidade de
nossa dívida para com a Incentive Cultural de Raphael Ribeiro, Lovaina), do Institut Royal du Patrimoine Artistique (KIK-IRPA)
que conseguiu a aplicação da referida lei a este livro. Entre os em Bruxelas, de Monica Muggler, Patrick Segers, do Serviço de
diplomatas belgas, Peter Claes, cônsul-geral da Bélgica em São Turismo do município de Dendermonde, do Museu Real de Arte
Paulo, foi, em 2011, o primeiro a apoiar o projeto, além de for- e História (KMKG-MRAH), em Bruxelas, do Ecomusée du Bois-
necer valiosas informações juntamente com seus colaboradores du-Luc, em La Louvière, Bélgica, de Verônica Tamaoki do Cen-
Dulce Vivas e Bart Struyf. Em seguida, também o embaixador tro de Memória do Circo em São Paulo, do Instituto do Patrimô-
belga em Brasília, Claude Misson, ofereceu sua colaboração. Os nio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, do Acervo do Museu
atuais embaixador Jozef Smets e cônsul-geral Didier Vanderhas- Mineiro-Superintendência de Museus e Artes Visuais, do Museu
selt apoiaram a conclusão do projeto. O embaixador brasileiro Paulista da Universidade de São Paulo, da Pinacoteca do Estado
na Bélgica, André Mattoso Maia Amado, manifestou, também, de São Paulo, do Museu da Cidade de São Paulo-Casa da Imagem
especial interesse. Somos particularmente gratos à embaixadora da Prefeitura de São Paulo, do Museu do Trem do Rio de Janeiro,
Katia Godinho Gilaberte, no consulado-geral do Brasil em Bruxe- do Arquivo Público do Distrito Federal, da Christie’s Images, do
las, pelo seu apoio, e ao seu assistente Brunno Hoffmann Velloso Irmão João Baptista do Mosteiro de São Bento de São Paulo, do
da Silva, pelas valiosas informações prestadas. Núcleo de Documentação do Instituto Butantan, da Biblioteca
Agradecemos de modo especial a todos os autores por terem da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”-Esalq, da
aceitado colaborar, sem receber honorários, e particularmente a Biblioteca da Faculdade de Economia, Administração e Contabi-
Els Lagrou, Susana Rossberg, Cristina Dias, Roland Renson por lidade-FEA-USP, da Europalia em Bruxelas, do arquivo pessoal de
terem coordenado capítulos. Boa parte das ilustrações foi propor- Allen Morrison, do conde Frédéric de Limburg Stirum, de Paul
cionada pelos próprios autores. Várias fotografias são de autoria de Wittamer, do fotógrafo Ricardo de Vicq de Cumptich, e das fo-
Luciana Mascaro. Outras recebemos de Ivana Vervloet, Regina tógrafas Vivian Oswald e Sofie Deblieck, que cederam suas obras
Lootens Machado, do Museu Histórico de Belo Horizonte, de sem ônus. Devemos, finalmente, registrar que recebemos informa-
Silvio Cordeiro, Luc Van Coolput, Bruno De Corte, do Arquivo ções preciosas de Regina Barbosa, Daniela Rocha, Dominique Van
Municipal de Antuérpia, de Bruno Gosse, do Fonds Léopold III Pée, dos padres Johan Konings e Thierry Linard de Guertechin.

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brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação

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Sumário

Parte 1 – Travessias e Migrações A inserção dos trabalhadores brasileiros migrantes no


mercado de trabalho belga. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
P res en ças B elg as n o B ra sil Martin Rosenfeld e Beatriz Camargo

Os ‘flamengos’ do Brasil colonial. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 A Associação Arte N’Ativa: um pouco da nossa história.... . . . . 51


Eddy Stols Isabel de Lannoy

Sainte-Cathérine du Brésil ou os belgas em Santa Catarina. . . 22


Parte 2 – Relações Oficiais e Diplomáticas
Eddy Stols

Jules Luis Parigot . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26 A diplomacia brasileira perante o potencial e as pretensões


Ana Maria Rufino Gillies e Eddy Stols belgas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
Paulo Roberto de Almeida
Jeanne Louise Milde, escultora e educadora. . . . . . . . . . . . . . . 28
René Lommez Gomes e Verona Campos Segantini Dois diplomatas belgas no Brasil imperial: Edouard de
Jaegher (1839-1843) e Gabriel Auguste Van der Straten
Marcel Roos: viajante, escritor e cineasta . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
Ponthoz (1845-1849) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Chris Delarivière
Milton Carlos Costa
A colônia belga de Botucatu. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
Oliveira Lima: um homem certo no lugar certo. . . . . . . . . . . . 63
Luciana Pelaes Mascaro e Eddy Stols
Clodoaldo Bueno
Uma italo-belga no Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
Os belgas em Descalvados e na fronteira Oeste do Brasil
Florence Carboni
(1895-1912). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
A casa é sua. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 Domingos Savio da Cunha Garcia
Annelies Beck
O Rei Alberto I e a música brasileira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
Daniel Achedjian
Pr e s en ças B ras i lei ras na B é lgica
De rebelde a escritor laureado: Conrad Detrez no Brasil. . . . . 69
Os primeiros brasileiros em Flandres. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
Peter Daerden
Eddy Stols
Brasil-Europa, via Bruxelas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
Passantes e residentes brasileiros na Bélgica dos séculos
Antônio Carlos Lessa
XIX e XX. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
Eddy Stols
Parte 3 – Relações Econômicas: Comércio e Empresas
Flores brasileiras no Instituto das Ursulinas em Onze-Lieve-
Vrouw-Waver . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 O C o mé r cio
Mario Baeck
O Engenho dos Erasmos ou dos Esquetes em São Vicente . . . 75
Os estudantes brasileiros na Universidade de Liège Eddy Stols e Silvio Cordeiro
(1870-1914). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44
A companhia de Ostende e os portos brasileiros. . . . . . . . . . . . 77
Christine Fellin
Eddy Stols
Como fui parar na Bélgica e me tornei cineasta. . . . . . . . . . . . 46
Antuérpia e os diamantes do Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
Susana Rossberg
Tijl Vanneste
Algumas figuras brasileiras em Lovaina durante os anos 70 . . . 47
Paul Dulieu

13
brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação

A toda vela para o Brasil, impressões do passado marítimo Algumas contribuições belgas à bovinotecnia brasileira . . . . . 114
oitocentista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81 Regis De Bel
Jan Possemiers
Dom Amaro Van Emelen e a apicultura no Brasil . . . . . . . . . 116
Um traficante de escravos na Bahia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84 Regis De Bel
Chris Delarivière
Alphonse Richard Hoge: o especialista em serpentes . . . . . . . 118
Chris Delariviere
E m presas belg as n o B ras il
Biotecnologia Vegetal no Brasil: sucesso na cooperação. . . . . 118
A Urucum dos belgas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
Dulce Eleonora de Oliveira
Fabio Guimarães Rolim
A Cooperação ente a KULeuven e as universidades
A Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil e suas
brasileiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
conexões belgas (1904-1918) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Beatriz Monge Bonini e Rogelio Lopes Brandão
Paulo Roberto Cimó Queiroz

Um lugar belga em Pernambuco: a cidade industrial da Me d icina


Société Cotonnière Belge-Brésilienne S.A.. . . . . . . . . . . . . . . . 93
Marie Rennotte: medicina e emancipação da mulher . . . . . . 123
Jean Suettinni
Eddy Stols
A Solvay chega ao Brasil e abre as portas para a América
Lucien Lison e André Jacquemin na Faculdade de
do Sul. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
Medicina de Ribeirão Preto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
Tractebel Energia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99 Luciana Pelaes Mascaro

Deme: uma empresa de engenharia marinha com 150 O diretor brasileiro de um dos mais ativos laboratórios de
anos de experiência mundial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 pesquisa em diabetes na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
Decio L. Eizirik
Grupo Jan de Nul. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
Katoen Natie: mais de 15 anos de prestação de serviços Antr o po lo gia
logísticos no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102
A melancolia dos belgas: devir antropológico no Brasil. . . . . . 126
Els Lagrou
E m presas bras i lei ras na B élgica
Quando a selva chama. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138
A Compagnie Brésilienne des Tramways. . . . . . . . . . . . . . . . . 104
Daniel De Vos
Eddy Stols
As pesquisas sobre o patrimônio linguístico africano. . . . . . . . 140
O Panorama da baía e cidade do Rio de Janeiro. . . . . . . . . . . 104
Jacky Maniacky e Jean-Pierre Angenot
Eddy Stols

Citrosuco: presente na Bélgica desde 1980. . . . . . . . . . . . . . . 106 Ensino e Pe sq u isa


Os belgas nas origens da Escola Superior de Agricultura
Parte 4 – Colaboração Científica
“Luiz de Queiroz” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141
Luciana Pelaes Mascaro
A s tron om i a e Geo lo g i a
A cooperação entre o Institut International de Bibliographie
Louis Cruls e o Observatório Astronômico do Rio
e a Biblioteca Nacional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144
de Janeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
Jacques Gillen
Christina Helena Barboza
O Instituto Real do Patrimônio Artístico de Bruxelas e o
Um belga à procura do petróleo no Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . 111
Barroco Mineiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145
Patrick Collon
Erika Benati Rabelo e Myriam Serck-Delwaide

B o tân i ca e Z o o lo g i a A cooperação acadêmica, científica e técnica entre


Bélgica e Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
O botânico Céléstin Alfred Cogniaux e sua relação com
Claude Misson
o Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
Magali Romero Sá e Alda Heizer

14
sumário

Parte 5 – Influências Religiosas e Ideológicas Parte 6 – O Brasil Entra em Cena

Jesuítas belgas no Brasil colonial. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153 O Br a sil e ntr a e m cena


Eddy Stols O Brasil entra em cena. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195
As missões flamengas no Congo e a cultura afro-brasileira. . . 155 Eddy Stols
Jeroen Dewulf Brasileiros barrocos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196
Dom Gerardo van Caloen e sua reconquista do Brasil Johan Verberckmoes
beneditino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157
Eddy Stols Te atr o, Da nça , C ir c o

Os cônegos brancos e outras ordens belgas. . . . . . . . . . . . . . . 164 A dança na Bélgica a partir do Século XX. . . . . . . . . . . . . . . . 199
Eddy Stols Textos organizados por Cristina Dias

O excêntrico padre Júlio Maria de Lombaerde. . . . . . . . . . . . 168 Depoimento de Rachel da Costa Cunha. . . . . . . . . . . . . . . 199
Eddy Stols A Escola Mudra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200
O sonho monástico de José Moreau em Tabatinguera Cristina Dias
(Cananéia) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 Depoimento de Claudio Bernardo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200
Eddy Stols
A evolução da dança contemporânea na Bélgica. . . . . . . . . . 201
A Trapa Maristela (1904-1931). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170 Textos organizados por Cristina Dias
José Eduardo M. Manfredini Júnior
Depoimento de Milton Paulo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202
Orval, uma grande abadia belga, com substrato brasileiro . . . 171
Peter Heyrman
PARTS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202
Cristian Duarte
Os colégios das freiras belgas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173
Eddy Stols
Depoimento de Maria Clara Villa Lobos. . . . . . . . . . . . . . 203

As Damas da Instrução Cristã em Pernambuco. . . . . . . . . . . . 174 O papel dos produtores, os intercâmbios de companhias
Marcelo Lins
de dança e os festivais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 204
Textos organizados por Cristina Dias
Presenças belgas no catolicismo do Brasil contemporâneo
(1945-2010). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176 Espetáculos brasileiros na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 204
Rodrigo Albea
Eddy Stols

Joseph Comblin (1923-2011). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 178 Danças populares brasileiras. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205


Cristina Dias
Carl Laga

A contribuição dos jocistas belgas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182 Grupos e companhias de espetáculos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206


Arlene Rocha
Myriam Vanden Nest

A Uniapac e o Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 184 Depoimento de Mano Amaro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207


Peter Heyrman O homem do carnaval do Rio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 208
Régis Lemaire
Os vínculos entre os mundos maçônicos e laicos da Bélgica
e do Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185 Depoimento de Cristina Dias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209
Nicoletta Casano
A amizade entre o Brasil e a Bélgica no circo . . . . . . . . . . . . . 210
As igrejas brasileiras de Bruxelas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 186 Verônica Tamaoki
Anne Morelli
Circo social belgo-brasileiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 212
Grupos espíritas criados por brasileiros na Bélgica e o Anne Loeckx
movimento espírita belga. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 188
Fabio Mendes Furtado Parte 7 – Música
Deuses em exílio: notas biográficas de um candomblé Mú sica C lá ssica
na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189
Arnaud Halloy Músicos belgas no Brasil e brasileiros na Bélgica . . . . . . . . . . 217
Anna Maria Kieffer

15
brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação

Álvaro Guimarães (1956-2009). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222 Baiano, Brasileiro e Bruxellois. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249


Katrijn Friant Diego Santana Claudino

Biografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 224 Documentário e mal-entendido: Retorno sobre uma


Eliane Rodrigues primeira filmagem no Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 250
Jeremy Hammers
M ú s i ca Popu lar B ras i lei r a
“Primeira vez que eu ouvi Bluesette, tinha eu dezessete, ah
MPB . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225 foi bom, meu coração ficou feliz...”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253
Daniel Achedjian Reynald Halloy

A descoberta da Bossa Nova na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . 227 O Brasil, terra de energia e de cinema. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 254
Bart P. Vanspauwen Thierry Michel

A descoberta do Mangue Beat na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . 229 Mover-se com a câmera, mudar o ponto de vista. . . . . . . . . . . 257
Bart P. Vanspauwen Heron Ferreira

A música brasileira nos festivais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231 Filmando nas aldeias Kayapó. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259
Bart P. Vanspauwen Gustaaf Verswijver

Os músicos brasileiros residentes na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . 232 O fascínio pelo Nordeste . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 260


Bart P. Vanspauwen Nicolas Hallet

Parte 8 – Cinema e Televisão Te le v isão


A difícil e prazerosa tarefa de traduzir o Brasil para
C i n em a Atual
os belgas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 263
Pequeno panorama atual do cinema sobre o Brasil Daniela Rocha
na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235
Susana Rossberg Parte 9 – Artes Plásticas
Capoeira, Bel Horizon . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 236
Pintu r a e Escu ltu ra
Basile Salustio
Rastros flamengos no Barroco mineiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269
O meu Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237
Alex Fernandes Bohrer
Roger Beeckmans
Pedro Américo de Figueiredo e Mello: Conexão Ciência &
As questões indígena e ambiental. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 238
Brasil & Bélgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271
Babi Avelino
Madalena Zaccara
A mensagem poética de Oscar Niemeyer . . . . . . . . . . . . . . . . 240
Benjamin Mary (1792-1846) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 272
Marc-Henri Wajnberg
Valéria Piccoli
Sobre as “pessoas sem voz” no Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241
Henri Langerock (1830-1915) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 274
Lazhari Abdeddaïm
Valéria Piccoli
Paixão pelo Nordeste . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 242
Adrien Henri Vital Van Emelen (1868-1943). . . . . . . . . . . . . 276
John Erbuer
Valéria Piccoli
Em busca de uma arte global. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243
Georges Wambach e o Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 278
Icaro Alba
Aldrin Moura de Figueiredo
Sem-Terra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245
Um olhar para o meu passado brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . 280
Jean Timmerman
Jef Van Grieken
Descobertas do Brasil entre o som e a antropologia . . . . . . . . 247
Inscrever os direitos do homem entre o Brasil e a Bélgica. . . . 281
Nicodème de Renesse
Françoise Schein
Lampião, sonhos de bandido. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 248
A visibilidade da arte contemporânea brasileira na
Damien Chemin
Bélgica: uma história recente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 284
Olívia Ardui

16
sumário

Fonte de inspiração e temas de Luiz Figueiredo. . . . . . . . . . . 291 Os pavilhões brasileiros nas exposições internacionais
Frederik De Preester e Piet Slijkerman da Bélgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 338
Luciana Pelaes Mascaro
A trajetória da Galeria Cravo e Canela . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293
Jacques Ardies Sérgio Bernardes e o pavilhão do Brasil na Exposição
Mundial de 1958 em Bruxelas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 342
Arte Popular Brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 296
Emiel De Kooning
Daniel Achedjian
Frédéric de Limburg Stirum e Paraty. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 345
Europalia.Brasil 2011-2012 ou como quase um milhão de
Dominique Vanpée
visitantes descobrem ou redescobrem a cultura brasileira. . . . 298
Kristine De Mulder Paraty. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 346
Cassio Ramiro Mohallem Cotrim
Hi s tóri as em Quad ri n h o s
Paraty e o plano de Limburg-Stirum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 349
O cartunista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 302 Fabio Guimarães Rolim
Ronaldo Cunha Dias
B-architecten. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 351
Caatinga. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303 Dirk Engelen
Hermann Huppen
O Projeto Bamboostic. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 351
Sven Mouton
Foto g rafi a
A oficina litográfica de Leon De Rennes. . . . . . . . . . . . . . . . . 305 Parte 11 – Esportes
Jamil Abib
Gaston Roelants ganha quatro vezes a Corrida Internacional
Um patrimônio de fontes em comum com o Brasil: a coleção
de São Silvestre. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 355
de fotografias dos Premonstratenses da Abadia do Parque
Roland Renson
(Parkabdij) de Lovaina. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 307
Luc Vints A primeira competição de atletas brasileiros nos Jogos
Olímpicos de 1920 em Antuérpia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 356
Um botânico, um jardim e uma expedição: Jean Massart
Roland Renson
e a “Mission Biologique Belge Au Brésil (1922-23)”. . . . . . . . . 314
Alda Heizer A capoeira na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 359
Jan Tolleneer
O Rei Leopoldo III e a floresta amazônica brasileira. . . . . . . . 317
Gustaaf Verswijver Nelson e Rodrigo Pessoa: uma família brasileira dedicada
ao hipismo mundial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 360
Frechal, pioneiro da luta quilombola no Brasil. . . . . . . . . . . . 319
Katia Rubio
Christine Leidgens

A obra de Ricardo de Vicq Cumpitch. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 321 Parte 12 – Gastronomia

Parte 10 – Arquitetura Produtos brasileiros na gastronomia belga. . . . . . . . . . . . . . . . 365


Eddy Stols
Ramos de Azevedo: um arquiteto brasileiro formado
Interlocuções etílicas entre o Brasil e a Bélgica. . . . . . . . . . . . 368
na Bélgica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325
Daisy De Camargo
Maria Angela P. C. S. Bortolucci
Como um chef mergulhou nos sabores dos ingredientes
Arquitetura industrial belga no Brasil no século XIX. . . . . . . . 327
nacionais valorizando os produtos e a gastronomia brasileira . . 371
Bernard Pirson
Quentin Geenen de Saint Maur
Os empreendimentos belgas e a moradia operária . . . . . . . . . 333
Mille merci monsieur Quentin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 373
Telma de Barros Correia
Alex Atala
A vila belga de Santa Maria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 335
Ensaio do fotógrafo Ricardo de Vicq Cumptich sobre
Anna Eliza Finger
gastronomia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 373
Nota sobre Arsène Puttemans. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 337
Luciana Pelaes Mascaro Créditos de Imagem. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 374

17
brasil e bélgica: cinco séculos de conexões e interação

18
presenças belgas no brasil

parte 1

Travessias e Migrações

19
parte 1 – travessias e migrações

20
presenças belgas no brasil

Os ‘flamengos’ do Brasil colonial


Eddy Stols

N ão falta no Brasil quem se orgulhe de sua origem flamen-


ga, seja pelo nome, seja pela aparência, de cabelos loiros e
olhos azuis. Quem eram estes pretensos antepassados flamengos?
compartilharam com Portugal e o Brasil, de 1580 a 1640, os mes-
mos soberanos Felipe II, Felipe III e Felipe IV.
Entretanto, no Brasil esta distinção entre obedientes e rebel-
Tratava-se mesmo de flamengos de Flandres ou de holandeses? des custou a validar-se. Os holandeses, que começaram nos anos
A confusão entre os dois é frequente e banal no Brasil, mas não de 1590 a piratear os navios de açúcar brasileiro, conquistaram
agrada aos atuais belgas e holandeses. Merece ser esclarecida por brevemente a Bahia em 1624 e dominaram Pernambuco de 1630
um curto histórico das presenças flamengas no Brasil colonial e a 1654, ainda eram chamados de flamengos. Na boca do poeta
das linhas de ascendência. Gregório de Matos foram até vituperados como ‘o belga ... ímpio
Flamengo tinha, no Brasil colonial como em Portugal, um signi- tirano’. Ainda hoje a ocupação holandesa de Pernambuco é come-
ficado de nacionalidade diferente e bem mais amplo do que aquele morada, numa veneração bastante ambígua, como o ‘Tempo dos
vigente para os nativos da região de Flandres, no atual Estado federal flamengos’ no famoso livro de José Antônio Gonçalves de Mello.
da Bélgica. Como flamengos designavam-se não somente os súditos Na realidade, a maioria dos invasores era mesmo de holandeses,
do condado de Flandres como também todas as pessoas vindas dos se bem que ao seu lado lutaram alguns flamengos emigrados ou
diferentes condados e ducados dos Países Baixos, reunidos pelos trânsfugas das províncias meridionais e muitos mercenários ale-
duques de Borgonha e herdados por seus sucessores habsburgos. mães. Uns e outros tiveram filhos nos poucos casamentos com
Em Lisboa, a privilegiada e prestigiosa nação flamenga tinha portuguesas e sobretudo nas furtivas relações com índias e negras,
sua capela – Santo André dos Flamengos – fundada em 1414 por podendo, assim, figurar como antepassados flamengos de muitos
mercadores de Bruges, naquela época a maior praça comercial nordestinos.
do Norte da Europa. Mais tarde, no século XVI, a nação veio a Oposta a esta amálgama com os belicosos holandeses existe,
admitir também holandeses e outros mercadores ou artesãos das entretanto, uma outra linha de ascendência flamenga que remonta
regiões setentrionais. ao próprio condado de Flandres, através de seus mercadores esta-
Esta ‘Flandres’ lato sensu dos portugueses coincidia com a ‘Bél- belecidos em Lisboa. Estes conseguiram, desde meados do século
gica’ constituída por 17 províncias e representada pelos cartógrafos XV e no contexto dos laços dinásticos entre os duques de Borgo-
como um poderoso ‘Leo Belgicus’. Seus habitantes ‘belgas’, um nha e a Casa de Aviz, uma participação generosa nas empresas
termo apenas corrente entre os letrados latinistas, falavam idiomas portuguesas no ultramar, primeiro no povoamento da Madeira e
diferentes: o flamengo, o holandês, uma variante do baixo-alemão dos Açores com gente vinda de Bruges e vizinhança. Destas ilhas
e o francês. Flamengos podiam ser francófonos, já que este idioma seus descendentes seguiram mais tarde para o Brasil, já no século
predominava em boa parte do condado de Flandres, em cidades XVI, ou com os colonos açorianos do século XVIII. Naquela época
como Lille e Douai, e circulava também na metrópole poliglota os Açores figuravam ainda em alguns mapas como ‘Ilhas flamen-
de Antuérpia. gas’. Estes flamengos de segunda ou terceira gerações integraram-se
A união das 17 províncias desintegrou-se a partir de 1566 com sem maiores problemas na boa sociedade colonial como os Leme
a rebeldia contra seu soberano Felipe II e a reconquista contrar- (Lam), Taques (Tacx), Dutra (de Hurtere), da Silveira (van der Hae-
reformadora, que acabaram criando dois Estados separados: no ghen), Bulcão (Bulskamp)..., nomes hoje presentes no País inteiro.
Norte, as Províncias Unidas, com principalmente a Holanda e a Uma via flamenga mais direta para o Brasil preexistia desde os
Zelândia, protestantes e em guerras quase contínuas, e, no Sul, anos de 1540, quando os mercadores de Antuérpia, interessados
os Países Baixos meridionais, incluindo o condado de Flandres, no comércio do açúcar brasileiro e na exploração de engenhos,
católicos e leais dentro da órbita espanhola. Aliás, estes últimos aproveitaram esta primeira mundialização portuguesa e enviaram

21
parte 1 – travessias e migrações

agentes ou filhos para São Vicente, Bahia e Pernambuco. Assim, Desde a abertura dos portos em 1808, os registros brasileiros de
constituiu-se lá até o final do século XVI um pequeno núcleo estrangeiros mencionaram esporadicamente a entrada de belgas
de flamengos de primeira geração, que tiveram também alguma como ‘franceses’ ou ‘holandeses’, em função do passaporte que
descendência brasileira, como os Campos. Entretanto, sua tran- traziam. É que os Países Baixos meridionais foram anexados pe-
quilidade foi logo afetada pelos ataques ingleses e holandeses e la República francesa em 1795 e passaram, depois da derrota de
ficaram suspeitos de agir como uma quinta coluna. Alguns, acu- Napoleão, em 1814, a fazer parte, junto com a Holanda, de um
sados de heresias protestantes, foram deportados pelo visitador da Reino Unido dos Países Baixos, que teve pouca duração. Somen-
Inquisição em 1594. te depois da Revolução de 1830 e da Independência da Bélgica
Além disso, em represália às novas investidas holandesas, de- é que a nacionalidade belga definiu-se como tal nos documentos
cretou-se em 1608 a expulsão desses flamengos do Brasil, mas vá- de identidade.
rios puderam voltar durante a trégua de 1609-1621. Confrontados Porém, o equívoco subsistia no Brasil e belgas passavam fre-
outra vez em 1624 e 1630 com as invasões holandesas, tiveram quentemente por franceses, porque falavam francês ou porque ti-
que escolher um ou outro partido. Quem, como Gaspar de Mere, nham residido por um tempo na França. Quanto aos flamengos,
ficou com os portugueses, teve seu engenho confiscado. Depois estes, já ausentes dos registros oficiais, incorporavam-se doravante
da vitória portuguesa sobre os holandeses em 1654, manteve-se no imaginário histórico dos brasileiros.
em Lisboa e no Porto uma pequena comunidade flamenga, que
intermediava o comércio com o Brasil e que enviava, ocasional- Referências
mente, um ou outro agente ao Brasil, sem, entretanto, reconstituir STOLS, Eddy. “Convivências e conivências luso-flamengas na rota do açúcar brasileiro”.
um novo núcleo flamengo. In Ler História, Lisboa, 1997, 32, p. 119-147.

Sainte-Cathérine du Brésil ou os belgas em Santa Catarina


Eddy Stols

A Bélgica viu-se durante o segundo decênio de sua indepen-


dência confrontada com uma dramática crise econômica. A
tecelagem e os outros artesanatos domésticos da zona rural foram
elites belgas e vários naturalistas, como Louis van Houtte, Auguste
Ghiesbrecht e Jean Linden, que partiram à busca de novas plantas.
Além disso, os diplomatas brasileiros na Bélgica mostravam-se
substituídos pela produção fabril nas cidades, ao passo que estas atentos à questão da emigração. Se o governo do Brasil incentiva-
novas indústrias perderam seu acesso aos mercados nas colônias va a implantação de colonos europeus, procurava diversificá-los
holandesas. O êxodo rural e o desemprego urbano provocaram além dos suíços e alemães. Dos belgas, reputados por seus tecidos
um pauperismo, mais marcado nas duas províncias de Flandres de linho, esperavam a introdução da cultura e de fábricas que uti-
oriental e ocidental, que, a partir de 1844, tornou-se catastrófico lizassem essa planta.
com a fome e a alta mortalidade subsequentes aos malogros das Com este propósito, o presidente da província do Rio de Janei-
safras de batata e às epidemias de tifo e cólera. ro, Honório Hermeto Carneiro Leão, assinou, em 20 de outubro
Para evitar uma explosão social, os dirigentes políticos, e parti- de 1842, um contrato com Ludgero Joseph Nélis, empresário do
cularmente o Rei Leopoldo I, buscaram o remédio na emigração linho de Zele em Flandres oriental, para trazer 20 agricultores
para colônias de povoamento belga no ultramar, que deveriam criar e implantar esta cultura numa concessão na Pedra Lisa, perto
novos mercados para produtos belgas. A primeira colônia foi lan- de Campos.
çada em 1841 em Santo Tomás, na Guatemala, onde seu governo Pouco depois, em 10 de maio de 1843, o contrato foi amplia-
aceitou ceder um território a uma companhia de colonização bel- do para 125 colonos com meia légua de terra e um empréstimo
ga. Esta focalizou durante um decênio as melhores atenções das para suas passagens e primeiras despesas, a serem reembolsadas
autoridades belgas ao mesmo tempo em que suas atribulações com- em dois anos. O cônsul-geral brasileiro na Bélgica, José Augusto
prometiam as outras tentativas coloniais nos quatro continentes. Rademaker, vistoriou pessoalmente em Zele os candidatos: eram
Neste contexto, não podia faltar um projeto colonizador no bons agricultores e suas mulheres, especialistas no trabalho com
Brasil, país que se firmava naqueles anos no horizonte dos belgas. linho e manteiga.
No porto de Antuérpia cresceu o número de partidas de navios Dos 106 colonos embarcados no porto francês vizinho de Dun-
para o Brasil. Comerciantes belgas, como os Laporte, Saportas e querque, no navio francês Curieux, chegaram ao Rio em 28 de
Hanquet, investiram na praça do Rio de Janeiro para a venda de dezembro de 1843 somente 99, sendo que seis e um recém-nas-
armas e tecidos. A compra de café brasileiro começou a substituir cido morreram durante a travessia de 56 dias. Entre eles estavam
o café holandês de Java. A riqueza botânica do Brasil fascinava as 56 solteiros, 9 casais, 6 moças e 16 crianças. Transportados para

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presenças belgas no brasil

Campos por uma escuna de guerra, seguiram em barcas até Pe- a vinda de no mínimo cem colonos por ano. O governo imperial
dra Lisa em 14 de fevereiro de 1844, onde deviam receber casas pagaria trinta mil réis por colono maior de 14 anos e dez mil por
provisórias e alimentos até as primeiras colheitas. aqueles com idade entre três e 14 anos. Daria isenções de taxas
Desenganados e descontentes com o despreparo, em abril qua- sobre a importação de móveis, víveres, sementes, equipamentos
se todos tinham desaparecido. Novas providências para comprar agrícolas, material de construção, livros e armas. Permitiria a ex-
gado a fim de reter os poucos restantes não adiantaram. O único ploração de minérios, salvo diamantes e carvão, que exigiriam um
a ficar, Nélis tirou todo o proveito possível das matas, para escân- contrato particular. Os colonos seriam submissos às leis do Impé-
dalo dos vizinhos, que queriam repartir as terras entre os pobres. rio, mas gozariam de liberdade religiosa e seus filhos nasceriam
Alguns fugitivos se colocaram em outras colônias, mas boa parte brasileiros. Não poderiam empregar escravos.
voltou à Bélgica e relatou na imprensa seus dissabores. De regresso à Bélgica, Van Lede sintetizou suas informações
O governo nada recuperou de seus gastos e o próprio Nélis vol- gerais sobre o Brasil e Santa Catarina num livro substancial de 435
tou para Zele onde, em 1847, figurou como morador e fabricante páginas, De la colonisation au Brésil, Bruxelas, 1843. Mandatado
de velas. Neste contexto de Pedra Lisa situou-se a vinda a Campos pela Société de Commerce de Bruges, organizou uma sociedade
do casal Charles Muylaert, originário de Aalst, cidade próxima a anônima de 6 milhões de francos em 6.000 ações. Esperava atrair
Zele, que deixou numerosa descendência no Brasil, ativa na mú- capital e colonos com a distribuição de seu livro e de folhetos não
sica e nas artes. Perto de São Fidelis (RJ), a colônia de Valão dos somente na Bélgica como também na vizinha Renânia alemã.
Veados, montada pelo proprietário Eugênio Aprígio da Veiga em Rivalizando com a colonização já mais adiantada em Santo
1847, contou com 13 belgas. Tomás de Guatemala, seu projeto ambicioso pretendia envolver as
Outra atividade econômica belga que suscitava particular inte- mais altas instâncias do país. Entretanto, o principal banco belga,
resse brasileiro era sua já bem avançada exploração das minas de o Société Générale, recusou-se a promover a subscrição de ações,
carvão. Para examinar o potencial carbonífero brasileiro e trans- alegando que não podia depender de um governo estrangeiro.
ferir a tecnologia belga, o governo imperial contratou, em 1839, O próprio governo belga, alertado por seu encarregado de ne-
o cientista Jules Parigot. Mal sucedido, este acabaria, mais tarde, gócios no Rio de Janeiro, Edouard De Jaegher, sobre a instabili-
nos anos de 1860, como diretor de colônias no Paraná. Um outro dade política no Brasil, os riscos financeiros e os problemas em
belga, Charles Van Lede, travou um nexo mais direto entre explo- casos de heranças, negou a proteção oficial e concedeu somente
ração geológica e colonização. o patrocínio do rei e passaportes gratuitos aos colonos. Não cons-
Charles Van Lede (1801-1875), nascido em Bruges de uma ta que a hierarquia católica deu seu apoio como o fazia para a
família de comerciantes e proprietários de terras, conhecia a Amé- colônia na Guatemala. Mesmo assim, negociantes de Antuérpia,
rica Latina por seu trabalho como engenheiro militar no México como Théodore de Cock e Melchior Kramp, participaram e fa-
e no Uruguai nos anos de 1826 a 1828. No Chile teria sido di- cilitaram a ratificação da nova Companhia em 19 de janeiro de
retor das obras hidráulicas. Seu irmão, Louis Auguste Van Lede, 1844. A imprensa advertiu os eventuais acionistas que ainda fal-
vice-cônsul do Brasil em Bruges e sócio da Société de Commerce tava a aprovação da Câmara brasileira e que as terras eram mais
de Bruges, fazia comércio com o Brasil. Em abril de 1837 tinha baratas nos Estados Unidos. Também na Renânia publicou-se um
despachado um navio para o Rio de Janeiro com farinhas, tecidos exame crítico do projeto: Die Belgischen Colonien in Guatemala
e armas. Em dezembro de 1841, Charles partiu para prospectar und Brasilien, Colônia, 1844.
no Brasil, com um capital de 50.000 francos e recomendado pe- De seu lado, o cônsul-geral brasileiro, José Augusto Rade-
lo encarregado de negócios brasileiro em Bruxelas, Visconde de maker, que no início era favorável ao projeto, se distanciou. A
Santo Amaro. Este apreciava os belgas como “bons trabalhadores ausência de brasileiros no conselho de administração, as críticas
e católicos”, mas pretendia eliminar “a escória da sociedade”. ventiladas por De Jaegher, as passagens sobre as dívidas do Brasil
Charles Van Lede levou consigo Joseph Philippe Fontaine, no livro de Van Lede e a pouca consideração deste último cho-
como delegado da Société de Commerce de Bruges e seu futuro caram sua autoestima de brasileiro, ainda mais quando os jornais
substituto, e mais um sobrinho, Jules de Laveleye, mais tarde vice- escreveram que Van Lede tinha conquistado para a Bélgica ‘un
-cônsul do Brasil em Gand. Percorreu boa parte de Santa Cata- petit royaume de 400 lieues carrées’ – um pequeno reino de 400
rina, de São José a Lages, remontou o Rio Itajaí, examinou o po- léguas quadradas. Rademaker ressentia a resistência dos belgas em
tencial de mineração de carvão como em Tubarão, levantou um ceder ao Império a soberania sobre seus súbditos e sua preferência
mapa e redigiu a nota Geologia de Santa Catarina. Esta foi tradu- pela colônia mais dependente de Santo Tomás de Guatemala, pa-
zida na Revista do Instituto Histórico, 1845, t. 7, do qual se tornou ra onde embarcavam nesta época mais de 500 belgas.
correspondente estrangeiro. Seu trabalho alimentou boatos de que Algo recalcitrante, Van Lede não desistiu e partiu novamente
queria explorar carvão e minérios com mão de obra flamenga. em junho de 1844 para efetuar a demarcação de sua concessão.
No Rio de Janeiro conseguiu do Império, em 10 de agosto de No Brasil lhe esperava a decepção da nova lei, que interditou a
1842, uma concessão de terras devolutas de 20 léguas quadradas doação de terras públicas. Como os primeiros colonos já estavam
que sua nova Companhia belgo-brasileira de colonização devia va- embarcando, Van Lede comprou por conta própria, de Henrique
lorizar com capital suficiente para obras e construções e promover Flores, uma légua quadrada de terras na margem do Rio Itajaí, a

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parte 1 – travessias e migrações

futura Ilhota. No final de agosto, saiu de Ostende o barco Jan Van Paralelamente, esta colonização belga em Santa Catarina se
Eyck, do capitão Minne, com a primeira leva de 114 emigrantes, conectou com o desenvolvimento da horticultura tropical na Bél-
principalmente da região de Wingene, na província de Flandres gica e particularmente na cidade de Gand. Um de seus principais
ocidental, em maioria agricultores, jovens de 20 a 30 anos, alguns horticultores, Verschaffelt, enviou um empregado, François De
casados e com filhos. Mas vinha também gente de classe média Vos, para coletar orquídeas em Santa Catarina e recebeu deste a
urbana, como o já citado Joseph Philippe Fontaine, Gustave Le- Cattleya Leopoldi e a Cattleya elegans, cuja comercialização exi-
bon, o agrimensor Henri Devreker, Hypolite Vanderheyden de tosa rendeu bons lucros.
Ostende e Pieter-Jan Plettinck. Este último, que foi médico e far- Rijcke foi outro colono belga que também se dedicou à caça
macêutico em Bruges antes de dedicar-se à agricultura e à destila- de plantas, talvez a serviço de outro horticultor gandense, Louis
ria em Jabbeke, escrevia suas cartas num bom francês (Boutens). van Houtte. Graças às suas cartas, conservadas pela família, co-
A viagem levou 12 semanas, com paradas de oito dias em San- nhece-se um pouco melhor a trajetória catarinense do naturalista
ta Cruz de Tenerife e no Rio. Nem todos os imigrantes seguiram Lambert Picard (1827-1891). Jovem, órfão de um metalurgista
diretamente para a colônia no Itajaí. Plettinck, diante de notícias luxemburguês, partiu em 1846, depois de um curto estágio com
confusas sobre as terras, ficou no Desterro, pensando em exercer um horticultor em Bruxelas, para fazer dinheiro como ‘caçador
a medicina por lá. Outros 22 imigrantes se retiraram logo no pri- de plantas’ no Brasil.
meiro ano e um deles, De Gand, ganhou até o processo movido Antes de coletar pelo interior, Picard passou várias semanas
por Van Lede. O grupo de Vanderheyden, com cerca de 14 pesso- nas terras de Telghuys e Vanderheyden e conheceu depois outras
as, julgou as terras de Van Lede de má qualidade e alugou outras. colônias. Logo na sua primeira volta à Bélgica, em 1850, publi-
Na própria Ilhota, cada colono recebeu um lote individual de 50 cou, no Boletim da Academia belga, uma memória crítica sobre
braças (110 metros) de largura, no qual devia uma renda em na- colônias. Entusiasmado pelas riquezas da província e bom obser-
tura e mais um dia por semana de trabalho gratuito para o diretor vador, analisava as falhas de Van Lede e insistia que futuros colo-
da colônia. Pagaria a compra em quatro ou oito anos. nos deveriam receber lotes já demarcados e casas preparadas para
Surpreendentemente, em fevereiro de 1845 Van Lede já havia não perder tempo nem ânimo diante da selva impenetrável. Acon-
deixado a direção da colônia a Fontaine, seu homem de confian- selhava a adoção das tradicionais culturas locais, como de cana,
ça. Era uma fuga de suas responsabilidades ou um sinal de que mandioca, feijão e milho. A exemplo dos agricultores brasileiros
julgava sua tarefa terminada? Pelo menos Fontaine informou, em já experimentados, não devia proceder-se a um desmatamento
carta de 07 de abril de 1845, publicada no diário oficial belga Le tão minucioso e custoso como na Europa. Na mesma linha, Pi-
Moniteur, que os colonos estavam com boa saúde, já livres dos card julgava indispensável empregar, como os brasileiros, mão de
borrachudos e da sarna, contentes e trabalhando duro. Já havia obra escrava, até que uma lei geral abolisse o tráfico. Regressando
16 casas com um caminho traçado ao longo do rio e até uma área a Santa Catarina em 1855, voltou a expedir plantas tropicais e
para um jogo de bochas e 25 hectares desmatados, que renderam peles de jaguatiricas à Bélgica mas, em 1862, passou a exercer a
a primeira safra. Plantaram feijão preto, batatas e, nas linhas divi- medicina natural em Alegrete, no Rio Grande do Sul. Após juntar
sórias, cafeeiros e laranjeiras, e tinham planos para cana, tabaco, dinheiro suficiente, foi estudar medicina em Heidelberg, onde se
linho, índigo, nopal para a cochinilha e até alpiste, e mais estra- formou em 1872. Homologou seu diploma na Bahia, mas prefe-
das para novos colonos. Também o cônsul belga em Desterro, riu praticar no Uruguai, primeiro em Montevideu e, finalmente,
Charles Sheridan, nomeado em maio de 1844 por causa de sua em Nueva Palmira.
longa experiência marítima, confirmou que a colonização estava Referente à Ilhota, a colônia já estava desde o final de 1845
bem encaminhada e oferecia perspectivas para mais emigrantes. vivendo seus primeiros dramas com inundações, safras destruídas
O próprio Sheridan, associado com o armador Telghuys, de e mortes. Fontaine pagava caboclos para o trabalho mais duro e
Antuérpia, desviou emigrantes para suas próprias terras compradas provocava a ira dos belgas, que se recusavam a prestar doravante
em Tijucas Grandes. Foi provavelmente ele quem incitou Pierre seu dia obrigatório de trabalho gratuito. As brigas levaram Fon-
Van Loo, filho de um respeitado negociante de Gandt, a investir taine a fazer queixa às autoridades brasileiras, que condenaram
sua herança de 10.000 francos num projeto com 16 colonos. Con- três belgas, Krabeels e os dois irmãos Maes, a dois anos de prisão.
tratados em cartório, eram em maioria agricultores da região de Em Desterro, suas mulheres com dez crianças vagavam pelas ru-
Wingene, mas também alguns valões, dois operários, um ferreiro as, pés descalços e pedindo esmolas. O consulado ajudou no seu
e um aluno de farmácia. sustento e colocou as crianças na escola pública. Os presos protes-
O médico Plettinck, em carta de março de 1845, também pro- tavam e teimavam em ser julgados pelas leis belgas. A reputação
pôs a seus conhecidos de Jabbeke a formação de uma companhia briguenta dos belgas piorou com um incidente em maio de 1846,
de 20.000 francos e a compra de terras para 12 colonos. Cada um quando Jan Van Eyck trouxe ao porto de Desterro mais colonos
entraria com pelo menos mil francos e deveria trazer utensílios e mercadorias.
agrícolas, tecidos baratos de algodão, sementes de centeio, armas Por andar tarde da noite pelas ruas, o capitão Minne e seus
e pólvora para caçar porcos e animais selvagens. Como Plettinck marinheiros foram interpelados por guardas da polícia e chega-
não deu mais sinal de vida, seu projeto provavelmente não vingou. ram às vias de fato. No dia seguinte o subdelegado de polícia e o

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presenças belgas no brasil

juiz de direito foram a bordo intimar os belgas a explicar-se e toda ostentar e prestigiar a bandeira belga na costa da América do Sul,
a tripulação acabou presa. O cônsul Sheridan não ousou intervir fosse fazer escala em Desterro.
no meio de um populacho que gritava “matão já esta cambada Sheridan liquidou seus negócios, abandonou sua pequena co-
d’estrangeiros, enforcão já todos elles, arrancão a bandeira”. Iden- lônia e voltou a Gand. Em 08 de julho de 1846, seu cunhado,
tificado como belga, Jean Eilgner foi insultado na rua e a esposa Paul Dierxsens, secretário da Câmara de Comércio de Antuérpia,
teve a roupa rasgada. Outro belga foi expulso. interveio em sua defesa, acusando van der Straten e seu cônsul
O clima xenófobo piorou com a chegada, em agosto de 1846, Saportas de ineptos. Suas queixas fizeram o ministro belga das
do Adèle com Pierre Van Loo e seus colonos. Estes sofreram maus Relações Exteriores lembrar, em 29 de janeiro de 1847, ao encar-
tratos já na alfândega, que exigiu direitos excessivos sobre objetos regado no Rio seu dever de proteger os nacionais, sem que desse
de uso pessoal, como instrumentos agrícolas, quadros de família por isso qualquer apoio oficial a esta colonização.
ou uma caixa para preservar plantas do agente do horticultor Van Essas desavenças naturalmente repercutiram na imprensa e no
Houtte, de Gand. Até a casa do cônsul Sheridan foi vasculhada à parlamento belgas em discussões sobre os rumos da emigração de-
procura de contrabando. Para maior confusão, Fontaine abando- pois dos malogros em Santa Catarina e na Guatemala. O próprio
nou a colônia, vendendo o sino da igreja e a casa como material Van Lede, eleito conselheiro provincial de Flandres ocidental,
de construção, e deixou Lebon como substituto. Ao menos regis- polemizou no final de julho de 1850 em Le Moniteur com o seu
trou, em 17 de julho de 1847, numa planta conservada no Museu antagonista no Rio, De Jaegher, nomeado governador de Flan-
de Tervuren, os nomes dos cinco colonos ainda presentes com 19 dres oriental. Boatos de que venderia sua concessão deixaram os
dependentes, mulheres e filhos, de outros três ausentes e ainda de diplomatas brasileiros em Bruxelas de sobreaviso, ainda mais por-
mais três moradores sem lote. Os outros se dispersaram por outras que, por várias vezes, foi solicitada sua benevolência para deixar
colônias ou voltaram para a Bélgica deportar ao Brasil presos dos asilos de mendicidade e que novos
Sheridan informou o novo encarregado belga, Auguste van candidatos à emigração pediam subsídios brasileiros.
der Straten Ponthoz, e atribuiu estas hostilidades a um partido Em Ilhota, porém, onde por meados de 1847 restavam somen-
liderado pelo presidente da província e juiz de direito. Segundo te 63 pessoas, a colônia se estabilizou e voltou a crescer.
ele, estas elites nacionais estavam acostumadas a obter concessões O novo cônsul belga, o suíço Schuttel, nomeado em 1850,
de terras, que rentabilizavam pelo trabalho de colonos alemães autor dos Relatórios do Império de 1854 e 1859, o viajante alemão
ou que, eventualmente, lhes vendiam. Achavam-se agora preju- Avé-Lallemant em 1858 e o capitão Petit e seu adjunto Émile
dicadas pelas empresas belgas de colonização, que não permitiam Sinkel, do Duc de Brabant, que em meados de 1855 acabou en-
semelhante exploração de seus imigrantes. Alguns, contrários ao trando em Desterro, citaram números variando de 89 a 200 indi-
desmatamento por mão de obra livre, preferiam a escravidão. Nu- víduos e atestaram seu bem-estar e boa natalidade. Na margem
ma interpretação similar, Van Loo considerou os incidentes com alta do rio, em pequenas casas cinzentas, mas limpas, viviam bem
Jan van Eyck como vingança, mas não deixou intimidar-se, ainda nutridos e contentes e casavam-se entre si. Tinham muitos filhos,
mais porque a revolução no Rio Grande do Sul dava sinais de “de- que Avé-Lallemant viu “chafurdando alegres na lama entre bana-
sintegração deste imenso Império”. Em sua opinião – significativa neiras e canas de açúcar”. Locatários ou proprietários, plantavam
do incipiente estado de espírito colonialista entre alguns colonos milho, feijão, batatas, algodão e café, tinham gado, engenhos de
–, os belgas, orientados por “chefes inteligentes” e “tão numerosos cana e mandioca ou trabalhavam como profissionais. Econômicos,
e com um núcleo de gente capaz, poderiam adquirir influência po- alguns já dispunham de dinheiro para emprestar a outros ou para
lítica e dirigir o movimento para o proveito da Bélgica”. Se não, voltar à Bélgica. Na falta de estradas até a costa, faziam comércio
Santa Catarina cairia nas mãos dos ingleses, como também temia com uma escuna de Lebon pelo Rio Itajaí até a foz.
o cônsul francês. Ao contrário, bem mais crítico se mostrou o diplomata belga
O cônsul Sheridan, consciente de sua pouca influência e ain- Charles d’Ursel durante sua visita em dezembro de 1873. Chegan-
da sem exaquatur (permissão para exercer seu cargo no País), es- do pelo rio, se deparou com a pobre venda de J. Maes e convocou
perava que van der Straten fosse intervir junto ao governo central. todos. Das 22 famílias reunidas, a maior parte encontrava-se em
Este diplomata profissional adotou uma atitude ambígua, mas de situação de quase miséria. Continuavam casando em endogamia
acordo com a reserva do governo belga diante da experiência em e falando ainda o flamengo, mesmo na segunda geração. Sem
Santa Catarina. Criticou Sheridan por não ter intermediado en- contratos ou papéis, viviam inseguros e incomodados pelo cônsul
tre Fontaine e os colonos e o demitiu por sua condenação por Schuttel, que pretendia cobrar dívidas de Van Lede. Quando este
contrabando. Ao mesmo tempo, deixou claro que não interviria faleceu em 1889, seu legatário, o Sint-Jans Hospitaal de Bruges,
para proteger os belgas, afirmando que estes deveriam aprender a procurou recuperar as terras e enviou um agrimensor, mas os co-
conformar-se com as leis de seu novo país e que seus problemas lonos belgas resistiram e conservaram as terras.
eram decorrentes dos contratos. Tendo em vista a suscetibilidade Nas gerações seguintes quase todos abandonaram a agricul-
da opinião pública, o melhor era esquecer o episódio com Jan Van tura para profissões nas cidades. Hoje encontram-se os numero-
Eyck. Assim, o encarregado achou pouco oportuno que o navio sos descendentes, Castellain, Coninck, Gevaerd, Hostin, Maes...
de guerra da marinha belga Duc de Brabant, que devia, em 1847, espalhados por toda Santa Catarina e até nos Estados vizinhos.

25
parte 1 – travessias e migrações

Ilhota tornou-se município em 1958 e, confrontado com a forte MAROY, Charles. ‘Sainte-Cathérine du Brésil’. Bulletin d’Etudes et d’Informations de
afirmação cultural e folclórica das outras comunidades étnicas na l’école supérieure St. Ignace, 1932, 9, p. 333-361.
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região, seguiu esta onda e começou ultimamente a comemorar Sud’. Bulletin Académie Royale des Sciences, des Lettres et des Beaux-Arts de Belgi-
suas raízes belgas. Organizou-se em 2010 uma festa Belga-Expo e que, 1850, 17, p. 168-185.
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nau, 1972. VAN LEDE, Charles. De la colonisation au Brésil. Rapprt aux membres de la Compagnie
Journal de Bruges, 1842-1844. brésilienne de colonisation sur les difficultés qui ont été élevées à la mise en possession
MAES, Paulo Rogério. Colonização flamenga em Santa Catarina: Ilhota. Itajaí, 2005. de sa concession. Bruxelas, 1846.

Jules Louis Parigot


Ana Maria Rufino Gillies e Eddy Stols

A surpreendente trajetória do belga Jules Louis Parigot, diretor


de colônias no Brasil imperial, redundando entre dois con-
tinentes e três ciências, tão característica do século XIX, merece
de contratar Parigot para pesquisas mineralógicas e a exploração
do carvão de pedra no Brasil (AHI). O interesse do governo brasi-
leiro pelo carvão de pedra se devia naquele momento menos aos
mais que este esboço biográfico ainda fragmentário. De origem primeiros projetos ferroviários, mas antes à navegação a vapor,
francesa, nascido em Paris em 1806, formou-se em medicina e que tinha boas perspectivas na costa marítima e nos rios do País.
foi nomeado em novembro de 1835 professor de mineralogia e Parigot recebeu este encargo e com instruções do Ministro
geologia na Université libre de Bruxelles, recém-fundada em 1834 do Império de 21 de novembro de 1839 foi primeiro a Alagoas
dentro do espírito do livre pensamento. e logo à Bahia. Lá, desde janeiro de 1840, fez sondagens na Ilha
No ano seguinte participou da comissão que devia redigir um de Itaparica, mas em Ilhéus foi perturbado pelas chuvas. Pelo re-
projeto para organizar a nova Académie Royale de Médecine. Fez-se gistro de estrangeiros, em 5 de julho de 1840 embarcou do Rio
também membro da Société de Médecine de Gand e da Société des de Janeiro para o Sul. Publicou seus primeiros resultados no Rio
Sciences Naturelles et Médicales de Bruxelles. Ao mesmo tempo, de Janeiro em Memória sobre o carvão de pedra no Brasil (1841),
redigiu uma Carte du bassin houiller de la Belgique et du nord de Minas de carvão de pedra de Santa Catarina (1841) e Memória
la France (Mapa da Jazida Carbonífera da Bélgica e do Norte da terceira sobre as minas de carvão de pedra de Santa Catarina (1842)
França), Bruxelas, 1838. Seu livro Histoire des tribus indiennes de (Anderson Heleodoro).
l’Amérique septentrionale, Bruxelas, 1837, demonstrou seu inte- No final destas viagens Parigot pode ter cruzado com o com-
resse pelo novo mundo, que se concretizou na ideia de fazer uma patriota Charles Van Lede. Este liderou sua própria exploração
viagem ao Brasil, como fizeram outros belgas na época. em Santa Catarina no início de 1842, com atenção particular pa-
Apresentando-se como naturalista em carta de 28 de março de ra o carvão, e obteve, em 10 de agosto de 1842, uma concessão
1839 ao Ministro de Relações Exteriores belga, pediu subvenção imperial para trazer imigrantes belgas através de sua companhia
de um ano de salário para uma viagem científica ao Brasil e paí- belgo-brasileira de colonização.
ses vizinhos, onde coletaria dados estatísticos, estudaria a econo- Ao mesmo tempo, o governo imperial encarregou Parigot de
mia rural e doméstica, examinaria o mercado para as exportações iniciar a exploração do carvão e de buscar capitais, mineiros belgas
belgas e ofereceria seus serviços para fazer o mapa geológico do e instrumentos de mineração na Inglaterra e na França. Segundo
Império (Amaeb, 2015). Recebeu apenas uma carta de recomen- o Jornal do Comércio de 10 de setembro de 1842, ele estava de
dação e a promessa de indenização no regresso. Mais receptivi- partida no Rio de Janeiro. Poucos dias depois, o encarregado de
dade encontrou no ministro brasileiro dos Negócios Estrangeiros, negócios belga, De Jaegher, em aviso ao seu ministro sobre esta
Caetano Maria Lopes Gama, que informou o Ministro dos Ne- missão, exprimiu sua pouca confiança em Parigot e o aconselhou
gócios do Império, Manuel Antônio Galvão, sobre a possibilidade lhe conceder somente ajuda, depois de ter ouvido Van Lede.

26
presenças belgas no brasil

Em janeiro de 1843, na Bélgica, Parigot tentou convencer a ido a Nova York para dirigir um asilo. Entrementes, nos anos de
Société Belge de Colonisation a associar-se, com o devido respei- 1850 a 1880, seu pensamento e suas propostas apareciam com
to aos interesses brasileiros, à Compagnie Impériale des Mines de destaque na corte imperial brasileira nos debates e discursos mé-
Sainte Catherine (Companhia Imperial de Minas de Santa Ca- dicos sobre neuroses e loucura (Gonçalves).
tarina) e a todas as indústrias conexas, um projeto em discussão Não se sabe se Parigot voltou ao Brasil por algum convite,
no Parlamento brasileiro. Se o diretor da sociedade belga mani- por iniciativa própria ou por um casamento. No final da década
festou um interesse polido, deu prioridade ao projeto de coloni- de 1860 já estava neste país e publicou O futuro dos hospícios de
zação na Guatemala. alienados do Brasil: memória offerecida a imperial Academia de
Ao mesmo tempo, Van Lede estava buscando acionistas pa- Medecina do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, 1870, 12 p.). Para
ra sua companhia e gozava então da maior simpatia do cônsul- este espírito polivalente e algo volátil a problemática das colônias
-geral, José Rademaker, da legação do Brasil na Bélgica. Rade- de alienados se aproximava daquela das colônias de imigrantes no
maker tinha recebido ordens para auxiliar Parigot e pagar-lhe a Brasil. Estas se encontravam, na época, em plena efervescência e
pensão. Como Parigot preferiu comprar na Bélgica – em vez de as desavenças dos colonos encontravam acirrada repercussão na
na França ou na Inglaterra – máquinas de mineração do duque Europa. Entrando nas discussões sobre as alternativas, Parigot pro-
d’Arenberg pelo preço de 3.500 francos, Rademaker ficou descon- nunciou um discurso, lançado em folheto, Convirá ao Brasil a im-
fiado e levou o engenheiro Tarte para examiná-las. Este as julgou portação de colonos chins?, em 16 de agosto de 1870, na Sociedade
ultrapassadas, mas Parigot acusou Rademaker de cumplicidade Auxiliadora da Indústria Nacional, da qual se tornou membro.
com Van Lede. No Rio de Janeiro também circulavam críticas Figurava pelo menos desde 15 de fevereiro de 1868 como di-
e boatos contrários. Assim, no final de 1843, Parigot foi exonera- retor na colônia do Assunguy, composta por brasileiros, alemães,
do e os pagamentos, suspensos. Pelo menos algum material foi ingleses, franceses, suíços e outras nacionalidades, servindo tam-
enviado, já que em carta ao Presidente da Província da Bahia bém como médico e ocasionalmente como intérprete em quatro
Parigot solicitou a liberação de materiais destinados à mineração línguas. Teria aceito a função, segundo seu próprio comentário
de Santa Catarina, procedentes da Europa, porém levados à al- ouvido por um colono, principalmente para poder escrever sosse-
fândega da Bahia em 1844. gadamente uma obra sobre loucos (Lamb e Garcia). Se queixas
De volta à Bélgica, Parigot dedicou-se mais à medicina e par- dos imigrantes, inclusive contra os diretores, eram frequentes, na-
ticularmente ao tratamento dos doentes mentais no Hospice de da consta nas fontes disponíveis contra Parigot.
Bruxelas. Em 1849 foi nomeado inspetor-médico da colônia de Segundo o diplomata belga Edouard Anspach, era bem consi-
alienados de Geel, uma pequena cidade na província de Antuér- derado (Recueil consulaire, 16, 1870, p. 24-28). Mostrava-se muito
pia, onde desde a Idade Média se acolhia loucos nas casas de comprometido a atender às necessidades dos colonos e ver cum-
família com bons resultados. Entretanto, esta tradição salutar se pridas as promessas feitas pelo governo. Reclamava da falta de
deteriorou sob o mando tirânico de diretores eclesiásticos. Assim, verbas para receber os colonos em casas prontas na sua chegada e
o governo belga resolveu intervir e reorganizar a colônia com um prover-lhes ferramentas, panelas e alimentos, para preparar o ca-
serviço de quatro médicos e um inspetor. minho que conduzia às melhores terras, para contratar trabalha-
Neste cargo, Parigot restabeleceu e reformou os métodos tra- dores. Defendia a ideia de que, com as famílias pobres dez dias de
dicionais. Os alienados tinham seu próprio quarto, bem melhor sustento – conforme ditava o regulamento – não eram suficientes e
que a cela dos asilos, não eram acorrentados, mas saiam quan- que o provimento deveria estender-se por seis meses. Desaprovava
do queriam e até trabalhavam no campo. Faziam música, com a remessa de imigrantes solteiros por observar que estes não conse-
direito a uma “cervejinha”. Recebiam-se mesmo estrangeiros e guiam viver sozinhos no mato. Além disso, denunciava as mazelas
muitos se curavam ou, pelo menos, não pioravam. de diretorias anteriores e o não cumprimento das obrigações por
Desta experiência resultaram várias publicações como Théra- outros elementos que faziam parte do pessoal da colônia. Assim,
peutique naturelle de la folie: l’air libre et la vie de famille dans la mandou demitir o engenheiro da colônia, Chalreo Jr, o que pro-
commune de Gheel (Terapêutica natural da loucura: o ar livre e a vocou longas discussões e argumentações entre ele, o engenheiro
vida em família na cidade de Geel), Bruxelas, 1852, De l’hygiène e as autoridades provinciais.
des sentiments (Da higiene dos sentimentos), 1856, e De la réfor- Tantas críticas e sugestões podem ter causado sua transferência
me des asiles d’aliénés (Da reforma dos asilos de alienados), 1860. para a colônia de Cananeia, por portaria de 6 de abril de 1869.
A visita do jornalista francês Jules Duval em 1856, um entu- Sobre sua atuação em Cananeia há poucos dados. O relatório da
siasta e praticante das ideias fourieristas num tipo de falanstério Agricultura de 1870 citou um plano seu para abrir um tram-road do
na Algéria, resultou num livro badalado, Gheel ou une colonie porto até Castro, atravessando a Serra Negra e a colônia de Assun-
d’aliénés vivant en famille et en liberté (Geel ou uma colônia de guy. Pouco depois, em 31 de março de 1871, suplicou ao Impera-
alienados vivendo em família e em liberdade), Paris, 1860. Já dor para ajuizar sua proposta de ‘ir à Europa despertar a emigração
em 1856 Parigot se deixou voluntariamente substituir em Geel, espontânea de pequenos proprietários’ (AN, M160D7403). Faria
talvez porque a boa repercussão internacional de seus métodos conferências em vários países, mediante pagamento da passagem
lhe abriu novos horizontes. Por volta de 1861-1864 parece ter de ida e volta e de adiantamento de seis meses de seu ordenado.

27
parte 1 – travessias e migrações

Na mesma carta pediu sua exoneração do cargo de diretor. Não Bibliografia sobre Parigot
se sabe se foi realmente à Europa, mas pelo menos retornou à Co- Arquivo Ministério das Relações Exteriores (Amaeb), Bruxelas, 2015 e 2028, I; Cor. Pol.
lônia de Assunguy, onde, em 1875, segundo o relatório sanitário, Brésil, II, De Jaegher, 16.09; 1842.
AHI 300 04 01 – Parte I – Avisos (minutas) expedidos pelo Ministério dos Negócios Estran-
atuava como médico da colônia. Pouco depois pediu ao presidente geiros ao Ministério dos Negócios do Império – S. Seç. Engenharia e Mineralogia.
da província licença de 2 meses, com vencimentos, para tratar da Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (AN), Documentação Histórica, Cod. 807, livro 5, p.
saúde em Curitiba. Lá estava sua família, que ele só havia visto 155-159, e livro 6, p. 57-61; M160 D 7403.
GILLIES, Ana Maria Rufino. ‘Os ingleses do Assunguy (1859-1882) sob a perspectiva do
uma vez desde que assumira o posto na colônia. Além disso, ele processo civilizador: um estudo comparativo com outra comunidade britânica do sé-
referiu-se a conflitos com o então diretor da colônia, Pedro de Al- culo XIX’. X Simpósio Internacional Processo Civilizador. Campinas, SP, 1-4 abr. 2007.
cântara Buarque, em assuntos de natureza médica. GARCIA, Edrielton dos Santos. Colonização em Assunguy: A experiência do colono nacio-
nal entre 1860 e 1870. Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado
Faleceu em 1877 ou 1878 na colônia Brusque ou Itajaí (Oswal- em Pesquisa Histórica. Curitiba: UFPR, 2010.
do Cabral, História de Santa Catarina, Rio de Janeiro, 1970, p. GONÇALVES, Monique de Siqueira. Mente sã, corpo são: disputas, debates e discursos
médicos na busca pela cura das “nevroses” e da loucura na corte imperial (1850-1880).
243). Vários de seus descendentes desempenharam importantes Tese de Doutorado. Curso de História das Ciências e da Saúde. Rio de Janeiro: Casa
funções no Estado do Paraná. A partir deles se poderia talvez pre- de Oswaldo Cruz-Fiocruz, 2011.
encher as lacunas de sua biografia. HEIDEMANN, Eugenia Exterkoetter. O Carvão em Santa Catarina, 1918-1954. Dis-
sertação de Mestrado. Curso de Pós-Graduação em História (Econômica) do Brasil.
Curitiba: UFPR, 1981.
Ana Maria Rufino Gillies é doutora em História pela Universidade LAMB, Roberto Edgar. Imigrantes britânicos em terras do império brasileiro: mobilidade,
Federal do Paraná (UFPR) e Professora Adjunta do Departamento de vivência e identidades em colônias agrícolas (1860-1890). Tese de Doutorado. São
Paulo: PUC, 2003.
História da Universidade Estadual do Centro-Oeste, Campus de Irati. MASOIN, E. ‘Julien Parigot’. Biographie nationale, 16, col. 635-637.

Alguns socialistas e anarquistas belgas Casa que pertenceu a Jean-


buscaram refúgio no Brasil, entre eles Joseph Vervloet, que imigrou em
Augusto Lootens, que partiu para a 1858 para a colônia de Santa
Argentina em 1889 e se estabeleceu Leopoldina, no Espírito Santo, em
pouco depois no Rio de Janeiro com um projeto oficial de colonização.
uma lavanderia.

Jeanne Louise Milde, escultora e educadora


R e n é L o m m e z G o m e s e Ve r o n a C a m p o s S e g a n t i n i

Uma modernidade claudicante 25 de abril de 1930. No Brasil, o jornal Estado de Minas no-
ticiou a participação da artista na VII Exposição-Geral de Belas

“E sculturas, retratos, composições, estudos diversos, Mlle. Mil-


de não cai nos erros de certas esculturas, ditas modernistas,
que não oferecem mais que desbastes, rascunhos, [...] e acreditam
Artes de Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais: “Em
sua escultura há serenidade e arrojo, [...] dando à sua obra essa alta
expressão emotiva que não está disciplinada ao canon clássico e que
descobrir a arte na expressão informe.” não tomba na vertigem do modernismo chocante”.
27 de novembro de 1928. Com essas palavras, um crítico de 17 de abril de 1960. Entrevistada por Lúcia Veado, do mesmo
arte do jornal Les Nouvelles, de La Louvière, saudava a produ- jornal, Milde diria: “Fui da escola impressionista e conservo até ho-
ção de um promissor talento da nova geração de artistas belgas: je alguns exemplares. Considero-a ainda a escola básica dos meus
Jeanne Louise Milde, que apresentava algumas de suas obras em conhecimentos de arte, porém, apreciando muito a arte moderna na
uma exposição. sua concepção sólida, sem fantasia e sem exageros”.

28
presenças belgas no brasil

Reflexo de suas escolhas, as palavras e a obra de Milde a si-


tuam em um “entrelugar”. Havendo abandonado uma carreira
promissora na Bélgica, em 1929, a artista mudou-se para Belo
Horizonte, como professora contratada para atuar na reforma do
ensino público. Fixando-se na cidade, desenvolveu importante
carreira de educadora e artista, que lhe rendeu a fama de pioneira
do modernismo. Sua obra, contudo, oscilou sempre em torno de
um ponto médio entre a renovação radical e o cultivo da tradição,
fazendo de sua trajetória um eloquente símbolo do tardio e claudi-
cante processo de modernização da cidade em que escolheu viver.
Fundada em 1897, Belo Horizonte foi criada para ser a capital
republicana de Minas Gerais, em substituição a Ouro Preto, que
representava o passado colonial da região. Concebida sob a égide
do progresso e da racionalização, a nova capital nasceu de um
profundo desejo de modernidade, ali expresso na efemeridade de
suas criações e rápida obsolescência do novo. Jeanne Louise Milde em seu ateliê em Belo Horizonte, cidade para a qual
Tão cedo quanto na década de 1930, a cidade já pensava os a artista plástica se transferiu em 1929.
caminhos de sua renovação. Na arquitetura local conviviam dife-
rentes atitudes frente ao cânone clássico, indo da opção pela ma- de cabeça e torso antigos”, “Modelagem de figura antiga” e “Com-
nutenção do estilo eclético ao surgimento de duas alternativas de posição em art déco”. Era uma formação artística tradicional que
renovação – uma radical, a outra não. Eram o decorativismo mo- se iniciava com o desenho, passava pelo estudo de modelos antigos
derno dos edifícios déco e os primeiros exemplares do modernismo e finalizava com o exercício da composição. Quanto à estética, no
de vanguarda, que negava a linguagem clássica e a ornamentação. século XIX, a Academia de Bruxelas preconizou o neoclassicismo.
Tratava-se da emergência de uma modernidade em duplo signo: Com o tempo, adotou várias linguagens, indo do romantismo ao
um processo ambíguo, de alternativas múltiplas e interpenetran- naturalismo e ao impressionismo. Quando Milde a frequentou,
tes, que contrariava a perspectiva de que o moderno só se constrói a escola assumia ares modernos, incorporando o estilo art déco.
no embate radical e excludente entre o novo e o antigo. A renovação da escola incluiu a abertura de um curso de Artes
Simbolizando o modelo de modernização assumido por Be- Decorativas. O intuito era incentivar a indústria, permitindo que
lo Horizonte, a vida da artista construiu-se em uma série de atos artesãos e operários desenvolvessem habilidades e conhecimentos
marcados simultaneamente pelo cultivo da tradição – pilar de artísticos. Milde não frequentou esse curso. Mas, o reconhecimen-
sua formação – e a negação dessa mesma tradição, como fonte to de novas perspectivas para a arte produziu impactos no trabalho
de normatividade. que viria a desenvolver no Brasil.
Enquanto estudante, Milde respondia com a qualidade dos
Uma mulher na Academia Real de Belas Artes trabalhos a quem questionava sua vocação. No boletim das disci-
plinas cursadas, ficaram registrados seus êxitos. Durante sua for-
15 de julho de 1900. Jeanne Louise Milde nasceu em Bru- mação, Milde recebeu 15 prêmios, seis deles com distinção. Em
xelas, filha do professor Josse Milde e de Mathilde Cammaerts seu último ano de estudos, 1925, foi agraciada com o 1º lugar no
Milde. Aos dezoito anos, foi aceita como estudante na Academia Grande Concurso de Escultura.
Real de Belas Artes. Esse teria sido seu primeiro ato de ruptura. A artista começava a despontar. Em 1923, foi reconhecida
Para frequentar o curso, a jovem enfrentou a oposição dos pais e pelas obras que apresentou numa mostra coletiva na importante
as críticas de professores e colegas, que acreditavam ser o exercí- Galeria Giroux, de Bruxelas. Em 1927, figurou nos jornais por
cio da arte, em especial da escultura, inadequado para mulheres. criar uma placa de bronze com a estampa de Charles Lindbergh,
Inicialmente, ainda que várias tivessem se destacado como ar- primeiro aviador a voar de Nova York a Paris sem escalas. Entre
tista, às mulheres era vedado o acesso à Academia belga. Só lhes 1926 e 1929, Milde integrou as mostras da seção belga da Société
era permitido seguir os cursos complementares, oferecidos nos Française des Beaux-Arts, sendo destacada pela crítica.
ateliês dos professores da instituição. Controversa, a abertura do Os críticos não escondiam o assombro ao verem esculturas fei-
curso a mulheres, em 1892, comportou restrições. Para alguns, a tas por uma mulher. Por vezes, buscavam nelas ternura, delicade-
presença feminina era admissível apenas na formação em Artes za e outros traços de feminilidade. Por outras, se espantavam com
Industriais, e não em Artes Maiores, estudando desenho aplicado, o domínio da artista, supostamente frágil, sobre a matéria. Em
bordado e tapeçaria. Quando muito, era considerada uma vocação 1928, o jornal Vooruit avaliou as obras expostas na Galeria Phe-
especial para o colorismo. nix, em Ghent: “Sra. Milde tem uma inclinação para agradáveis
Dedicando-se à escultura, uma Arte Maior, Milde cursou dis- realizações, cujo personagem principal denuncia a feminilidade da
ciplinas que revelavam a verve do ensino na Academia: “Desenho escultora”. Já o Les Nouvelles afirmou sobre o VIII Salão L’Essaim:

29
parte 1 – travessias e migrações

“Apesar da insuficiência de sua altura, se revela dotada de uma com a observação e o desenho, para só depois introduzir a escrita.
grandeza de expressão e força artística pouco comuns”. Os trabalhos manuais assumiam, assim, grande protagonismo na
A consagração de Milde chegou em 1928, quando ganhou o Escola Ativa, associando-se à expressão e tornando frequente o uso
Grande Prêmio de Roma. O prêmio objetivava o aprimoramen- de técnicas como a modelagem. Em Minas Gerais, o método foi
to dos artistas, concedendo uma viagem à Itália para o estudo da instituído em alguns grupos escolares, sendo criadas duas ‘classes
tradição clássica. Mas os impasses políticos surgidos ao fim da Decroly’, em Belo Horizonte.
Primeira Guerra Mundial impediram a ida de Milde para Roma. Com a reforma do ensino, em 1929, foi instalada a Escola de
Sua opção foi por uma estadia na França. Aperfeiçoamento em Belo Horizonte. A instituição, que oferecia
A escultora já hesitava entre a tradição e a modernidade. No um curso de especialização para professores primários, destinava-
mesmo ano de 1928, participou do II Salão da Federação Nacional -se a preparar, do ponto de vista técnico e científico, os candidatos
de Pintores e Escultores da Bélgica, à qual se associara. A imprensa ao Magistério Normal, à assistência técnica do ensino e às direto-
atacou a Federação, por ser contra a pintura moderna e o Estado rias dos grupos escolares do Estado. O curso tinha duração de dois
belga, que favorecia a avant-garde. Em meio ao que caracterizaram anos, divididos em dois períodos, que incluíam disciplinas como
como a medíocre e conservadora produção da mostra, os jornais Pedagogia, Metodologia, Desenho e Modelagem, Educação Fí-
destacaram Milde como uma exceção digna de nota. sica e Psicologia Experimental.
Naquele tempo, além de participar de exposições e concur- O corpo docente da Escola de Aperfeiçoamento foi composto
sos, Milde desenhava joias e modelava manequins para uma fá- por professoras que haviam sido enviadas, pelo governo, para o
brica. No atelier que mantinha na Academia, recebia a visita Teacher’s College, da Universidade de Colúmbia (EUA). Além de-
constante de admiradores e compradores, que se avolumaram las, atuaram estrangeiros que compuseram a chamada “Comissão
após a aquisição da peça ‘Danse Folle’ pelo Museu Real de Belas Pedagógica Europeia”. Da Universidade de Paris veio Theodore
Artes, em Bruxelas. Foi ali que recebeu a visita do Dr. Alberto Simon. Do Instituto Jean Jacques Rousseau (Suíça) vieram Leon
Álvares, enviado do governador de Minas Gerais, Antônio Car- Walter, Helena Antipoff, Edouard Claparède e Louise Artus-Per-
los Ribeiro de Andrade. A missão de Álvares era localizar profis- relet. Na Bélgica foram contratados Jeanne Milde e o engenheiro
sionais belgas aptos a auxiliar na reforma do ensino em Minas. Omer Buyse.
Milde foi-lhe indicada pelo secretário-diretor da Academia, que Diretor do Ensino Técnico da Bélgica, Buyse foi criador e
elogiara a ousadia e a qualidade da artista, fazendo-o crer que o reitor da Universidade do Trabalho de Charleroi. À convite de
convite não seria recusado. Washington Pires, Ministro da Educação e Saúde Pública do Bra-
Fevereiro de 1929. A bordo do vapor Alcântara, Jeanne Milde sil, veio para o País com a missão de criar três Universidades do
partiu para o Brasil. Trabalho, em Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife. O projeto
logo encontrou a oposição de Gustavo Capanema, sucessor de
Os belgas e a reforma do ensino em Minas Gerais Washington Pires no Ministério. Capanema considerava prioritá-
ria a fundação de escolas profissionalizantes especializadas para
Quando Milde chegou ao Brasil, vários Estados implantavam atender às necessidades da industrialização nas diversas regiões do
políticas de reforma do ensino, investindo na formação de profes- País. Quando muito, cogitaria ter uma Universidade do Trabalho
sores primários, na criação de escolas e no combate ao analfabe- no Rio de Janeiro, onde as indústrias já exigiam um operariado
tismo. Em Minas Gerais, a reforma foi coordenada por Francisco numeroso, variado e competente.
Campos, Secretário dos Negócios do Interior no governo de An- Jeanne Milde, por sua vez, assumiu as disciplinas de Desenho
tônio Carlos Ribeiro de Andrade. Sua Reforma do Ensino Primá- e Modelagem na Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico da capi-
rio e Normal inspirou-se na reestruturação da instrução pública tal mineira. Relatos de suas ex-alunas revelam como ela conjugava
ocorrida em países estrangeiros, como a Bélgica, e incorporava a formação estética com a pedagógica. Suas disciplinas incluíam
preceitos do movimento ‘Escola Nova’ ou ‘Escola Ativa’. desenho, modelagem e aquarela, além de marcenaria, tecelagem,
À época, uma das principais correntes pedagógicas em voga cartonagem e a fabricação de objetos utilitários e mobiliário. O
no Brasil era o método desenvolvido pelo médico belga Ovide processo de ensino elaborado pela artista guardava semelhanças
Decroly. Baseado em estudos sobre o desenvolvimento biológico com a formação que recebeu em Bruxelas. Segundo a ex-aluna
e psicológico das crianças, o método enfatizava suas aptidões para Maris’Stella Tristão, nas aulas, o mais importante eram os de-
a observação, a associação de ideias e a expressão. Para o ensino senhos, que obrigatoriamente precediam os trabalhos artesanais.
primário, propunha o emprego dos ‘centros de interesse’, que as- Anualmente, Milde organizava exposições com o material produ-
sociavam os conhecimentos ministrados a uma ideia central, tor- zido por suas alunas. Nelas, eram apresentadas modelagens em
nando o ensino “ordenado e lógico”. gesso, cimento, terracota, bronze e matérias-primas regionais que
Em Bruxelas, Decroly atuava na École de l’Ermitage, que fun- poderiam ser encontradas em qualquer escola primária do Estado.
dara em 1907. A escola foi um fértil laboratório de experimenta- Com o fim da Escola de Aperfeiçoamento, na década de 1940,
ção, tornando-se centro de referência para o ensino. Praticado em Milde passou a lecionar no curso de Administração Escolar do Ins-
outras escolas da cidade, o ensino no método Decroly se iniciava tituto de Educação, instituição em que se aposentaria em 1955.

30
presenças belgas no brasil

Nos anos de 1940, a artista também ministrou aulas de desenho e Em Belo Horizonte, dizia-se que a arte era desamparada pelo
modelagem na Escola da Polícia Rafael Magalhães e integrou um Estado. Por isso, o poeta modernista Carlos Drummond de An-
projeto de Helena Antipoff para a formação e o aperfeiçoamento drade, entre outros, reconhecia o empenho heroico de Matos para
de professores primários rurais.   desenvolver o meio artístico local. Ainda assim, a cada edição das
Exposições-Gerais, acumulavam-se as críticas ao evento e a seu
Um ambiente propício à expansão da arte organizador. Alguns recriminavam o amadorismo e mau gosto
das obras apresentadas. Outros apontavam o convencionalismo da
Quando Milde chegou a Belo Horizonte, a capital não passa- produção local, relacionando a estagnação da arte à hegemonia
va de uma jovem cidade. Aos olhos da escultora, tudo estava por dos valores acadêmicos.
fazer: não havia escolas de arte, as exposições eram escassas e os A posição de Matos, no entanto, era ambígua. Ele defendia o
artistas locais não formavam uma comunidade unida e ativa. academismo e rejeitava com veemência as vanguardas, os “futu-
Ao invés de desanimá-la, esse cenário mostrou-se fértil para rismos” e “cubismos”, como se dizia à época. Mas, acolhia artistas
sua produção. Em 1929, a crise econômica desencadeada pelo que optavam por um modernismo moderado. Para a VIII Exposi-
fim da Primeira Guerra Mundial chegava ao ápice. Na Bélgica, ção-Geral de Belas Artes (1931), convidou vários acadêmicos de
apesar do sucesso de suas exposições, a falta de oportunidades le- verve neoclássica ou impressionista. E chamou ainda Milde, o
vou a artista a pensar em se mudar para Antuérpia, onde atuaria desenhista Monsã e o arquiteto Luiz Signorelli que, clássicos de
como professora de arte da Academia local. Talvez o tivesse feito, formação, apostavam na estética art déco.
não fosse a proposta de trabalhar no Brasil. Signorelli, por exemplo, iniciou-se na arquitetura projetando
Recém-chegada a Minas Gerais, a escultora não dispunha de edifícios ecléticos e art nouveau. Na década de 1930, adotou o es-
um local de produção. Percebendo a situação, Arcângelo Malet- tilo déco e criou o segundo arranha-céu de Belo Horizonte: a Fei-
ta, proprietário do Grande Hotel, onde Milde vivia, ofereceu-lhe ra Permanente de Amostra, edifício símbolo da modernização da
uma sala nos fundos do estabelecimento. Ali foi instalada a oficina cidade. No mesmo ano, 1935, ganhou o concurso de projetos para
em que a escultora recebia quem vinha ver a “loirinha belga” tra- a construção de uma nova sede para a Prefeitura da capital. Esse
balhando. Como não dominava o idioma, pedia aos amigos para projeto expressou a atitude preponderante no período, fundindo
falarem sobre as obras. “No decorrer do parecer de cada um, surgia elementos e preocupações modernos com uma lógica compositiva
uma ou outra palavra que tinha uma sonoridade que me agradava, tradicional. Junto com Matos e outros professores, em 1930 Signo-
aí então o nome da peça estava escolhido”, lembrou a artista em relli fundou a Escola de Arquitetura de Minas Gerais. Ali, por um
entrevista a Iolanda Pignataro, em 1980. bom tempo, o arquiteto sustentou um sintomático conflito com
Nessa sala, Milde concebeu suas primeiras obras brasileiras. os estudantes de arquitetura que se inclinavam para a vanguarda.
Em 1929, moldou o busto do Embaixador da Bélgica em Washing­ Em entrevista concedida ao Projeto Memória da Arquitetura e da
ton e a efígie de várias personalidades de Belo Horizonte. Sob en-
comenda do Estado de Minas Gerais, criou dois baixos-relevos em
cobre para decorar o saguão da Escola Normal Modelo da Capital,
inaugurada em 1930. As peças art déco simbolizavam os valores “As Adolescentes”,
da Escola, intitulando-se Alegoria às Ciências e Alegoria às Artes. moldagem em gesso de
Jeanne Louise Milde, Belo
Em 1930, Milde enviou várias peças para o Salão de Belas
Horizonte, 1937.
Artes do Rio de Janeiro, obtendo a medalha de ouro. Em Be-
lo Horizonte, participou da VII Exposição-Geral de Belas Artes.
Organizadas por Aníbal Matos, eminente artista que fundara a
Sociedade Mineira de Belas Artes (1918), as Exposições-Gerais
constituíam o único evento do gênero a ocorrer com regularidade
na capital. Reunindo artistas de inclinações semelhantes à de seu
promotor, as exposições viraram o reduto da tradição acadêmica.
Naquela edição, a mostra reuniu 192 trabalhos de 26 artistas. Mil-
de se destacou por trazer algo novo: uma obra que não se atinha
à tradição clássica, mas nem por isso se rendia aos extremos da
vanguarda modernista.
Aníbal Matos foi um dos responsáveis pela inserção de Milde
no ambiente artístico de Belo Horizonte. Os dois eram colegas
de docência no Instituto de Educação, atuando na formação de
professores. Com frequência, Matos convidava a colega para par-
ticipar dos eventos e das exposições que organizava. Convidava-a,
inclusive, para integrar o júri do carnaval.

31
parte 1 – travessias e migrações

Construção Civil em Belo Horizonte (1980), recordou: “Confesso cara mortuária do governador Olegário Maciel (1932); a Alegoria
com sinceridade a reserva com que a princípio recebi os primeiros à Indústria, alto-relevo criado para a Siderúrgica Belgo-Mineira
rebates da nova arquitetura, para com um tempo relativamente cur- (1933); e a escultura As Adolescentes (1937). Em 1940, o Museu
to aceitá-la sem restrições. Diante de tão palpitante assunto devo Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, adquiriu sua obra
dizer que manterei sempre como ponto de vista aplicar no moderno Água, sua alegria e sua embriaguez.
a proporção clássica [...]”. Em 1945, Milde realizou uma exposição individual no Salão
As mudanças na estética de Milde parecem responder a preo- de Festas do Grande Hotel. Entre os trabalhos expostos, estavam
cupações semelhantes às de Signorelli. “Moderna, mas com uma bustos e cabeças das personalidades com quem convivia na cidade,
base clássica” é como ela se classificaria ao fim da vida. Em algu- como o maestro belga Arthur Bosmans. Essa teria sido a primei-
ma extensão, a adoção desse modelo de modernização, ambíguo ra exposição individual da artista, que até então só participara de
e relutante, elucida o livre trânsito entre acadêmicos e modernos mostras coletivas. A arte tumulária surgiria como uma vertente de
que a escultora sempre manteve. sua produção, nascida do hábito de representar seus convivas. Im-
Em 1936, Belo Horizonte presenciaria seu maior embate en- portante exemplo é o relevo criado para o túmulo do desenhista
tre modernos e acadêmicos. Sob a organização do artista Delpino Monsã, falecido em 1940.
Júnior, caricaturistas, pintores, escultores e arquitetos, modernos Apesar de não ceder às vanguardas, Milde assumiu temáticas
em sua maioria, se reuniram numa exposição organizada no bar caras ao modernismo brasileiro, criando figuras populares, traba-
do Cine Brasil. Tornando-se conhecido como Salão Bar Brasil, o lhadores, indígenas, negros e mulatos. Uma série de esculturas
evento expressava o descontentamento do grupo com a ambiência com motivos brasileiros fizeram sucesso na última exposição da
artística e social da capital, que então celebrava a realização do 2º artista em sua terra – uma mostra coletiva na galeria Toison d’Or,
Congresso Eucarístico Nacional e a inauguração da nova edição em Bruxelas (1948). O evento foi divulgado pelos jornais, que
da Exposição-Geral de Belas Artes, montada por Matos no foyer brindaram a qualidade das obras, embora frisassem seu exotismo.
do Teatro Municipal. Na ocasião, o Ministério da Instrução Pública da Bélgica adquiriu
Acompanhada pela imprensa, a polêmica criada no Salão Bar a escultura Ma maman.
Brasil tinha dois alvos: contestar a hegemonia de Matos e reivindi- Milde obteve grande reconhecimento por sua atuação como
car o apoio do Município, com a criação de uma Escola de Belas artista e educadora. Em várias ocasiões foi homenageada por suas
Artes, a organização de exposições periódicas e a instituição de prê- alunas e pelos governos belga e brasileiro. Em 1930, o Rei Alber-
mios de incentivo. Por sua ascendência sobre o meio artístico local, to da Bélgica nomeou a “artista estatuária” Jeanne Milde como
Delpino convidou Milde a integrar a mostra. Aceitando, a artista cavaleira da Ordem de Leopoldo II, uma distinção de alto grau,
apresentou 22 obras e compôs o júri, ao lado de Luiz Signorelli. conferida aos civis que prestaram serviços inestimáveis à Bélgica.
Ao visitar o Salão Bar Brasil, o prefeito Otacílio Negrão de Já em 1950, um ano antes de se naturalizar brasileira, ela recebeu
Lima sancionou uma resolução determinando que o Município do Príncipe-Regente Baudouin a comenda de Cavaleiro da Or-
realizasse exposições de arte anuais. Assim, em 1937, Matos foi dem da Coroa por seu trabalho como “professora de desenho e artes
convidado para coordenar o 1º Salão de Belas Artes da Prefeitura aplicadas no Instituto de Educação de Belo Horizonte”.
de Belo Horizonte. Ele, por sua vez, convidou Milde para a comis- No ano de 1955, Milde se aposentou do magistério no Insti-
são encarregada de assessorá-lo. A escultora serviu, então, como tuto de Educação. Afastada do ensino, ela foi gradualmente se
um elo entre acadêmicos e modernos, apaziguando os confrontos ausentando do cenário artístico mineiro, que desenvolveu uma
entre os grupos. preferência pelas vanguardas. A importância de Milde foi resga-
O 1º Salão de Belas Artes, por fim, reuniu tanto artistas liga- tada 30 anos depois, quando ela recebeu uma série de homena-
dos a Matos quanto ao grupo de Delpino. Refletindo a diversidade gens. Em 1982, recebeu a Comenda da Ordem dos Pioneiros de
do panorama artístico da capital, os Salões de Arte da Prefeitura Belo Horizonte, em reconhecimento a seu pioneirismo na arte e
consolidaram-se, nos anos 1930, como um espaço de tendências na educação. Também foi lembrada no XIV Salão Nacional de
contraditórias, que reunia modernos, acadêmicos, autodidatas e Arte (Museu da Pampulha) e em uma exposição no Palácio das
artistas de formação. Artes. Em 1984, o governador de Minas Gerais, Tancredo Neves,
No 2º Salão de Belas Artes (1938), Milde participou como condecorou-a com a mais alta comenda do Estado: a Medalha
jurada. Nesse momento, fez valer seu papel aglutinador, reunin- da Inconfidência. No mesmo ano, o sucessor de Tancredo, Hélio
do 14 artistas de uma e outra vertente em um encontro na Fa- Garcia, agraciou-a com a Medalha de Mérito Educacional. Ce-
zenda Petrópolis, propriedade que mantinha próximo à capital. lebrada por seu impacto na formação cultural da cidade, Milde
Embora o acontecimento não tenha produzido desdobramentos, faleceu em 1997.
o sentimento era que nascia um “movimento que congraçará os Outubro de 1988. Em Belo Horizonte, a exposição “Escultu-
artistas de Belo Horizonte”, como testemunhou um cronista da ra Contemporânea em Minas”, organizada no Palácio das Artes,
Folha de Minas. consagrou Jeanne Milde como propulsora da renovação das artes
Os anos de 1930 e 40 foram férteis para Milde. Muitas de suas plásticas em Minas, identificando-a como uma pioneira do mo-
obras mais relevantes foram criadas nesses tempos, como a más- dernismo na cidade.

32
presenças belgas no brasil

René Lommez Gomes é doutor em História pela Universidade Fede- (UFMG). Coordena o núcleo de expografia do Espaço TIM UFMG
ral de Minas Gerais. Atuou em diversas instituições nacionais e estran- do Conhecimento.
geiras, entre as quais a Unesco e o Museum Plantin-Moretus (BE).
Trabalha com temas como Arte Colonial; História da Arte Flamenga Bibliografia sobre Jeanne Milde
e Holandesa (séc. XVII); História da Arte Brasileira (sécs. XIX-XX); Grande parte das matérias jornalísticas utilizadas neste verbete foi localizada na coleção
Mestiçagens e Trânsito de Culturas entre Europa, África e América documentos de Jeanne Louise Milde, doada pela escultora para o Museu Mineiro, Belo
no período moderno. Horizonte.
L. B. Castriota (org.). Arquitetura da Modernidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
Rita Lages Rodrigues. Entre Bruxelas e Belo Horizonte: itinerários da escultura. Belo
Verona Campos Segantini é doutoranda em Educação pela Uni- Horizonte: C/Arte, 2003.
versidade Federal de Minas Gerais (2010). É professora assistente S. Schwartzman, H. B. Bomeny e V. R. Costa. Tempos Capanema. São Paulo: Paz e
Terra, 2000.
da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais e Rodrigo Vivas. Por uma história da arte em Belo Horizonte. Artistas, exposições e salões
subcoordenadora da Rede de Museus e Espaços de Ciência e Cultura de arte. Belo Horizonte: C/Arte, 2012.

Marcel Roos: viajante, escritor e cineasta


Chris Delarivière

H et Geheim van Mato Grosso (O segredo do Mato Grosso),


Bloedige Diamanten (Diamantes sangrentos), De Sluipende
Dood (A morte furtiva) são alguns dos títulos imaginativos dos li-
através do cônsul belga entra em contato com Alphonse Hoge,
um herpetólogo belgo-brasileiro ligado ao Instituto Butantã. Hoge
é originário de Gand, onde concluiu sua formação universitária
vros de viagens e documentários cinematográficos com os quais o e recebe seu concidadão de braços abertos. Mais ainda, convida
viajante, cineasta e escritor belga Marcel Roos (1919-1996) fazia Marcel a participar como fotógrafo-cineasta de uma expedição.
furor nos anos de 1950 e 1960. Seus contagiantes relatos cheios de Para Roos é uma oportunidade única. O destino da expedição é o
aventuras e juvenil entusiasmo caíram depois no esquecimento, Mato Grosso, mais precisamente a Serra do Roncador. Numa área,
mas não deixam de ser uma ilustração marcante do poder atrativo ainda em sua maior parte desconhecida, entre o Rio das Mortes e
que o Brasil exercia sobre os europeus aventureiros. o Rio Kuluene, o doutor Hoge pretende descobrir répteis vivendo
A história de Marcel Roos começa em Gand, pouco depois nessa região transitória entre a floresta tropical e o cerrado do Bra-
da Segunda Guerra Mundial. A Europa ocidental estava ainda se sil central. As serpentes, os escorpiões e as aranhas colhidos pela
recuperando desta calamidade e já se anunciava a Guerra Fria. O expedição serão estudados no Instituto Butantã e utilizados para
futuro parecia pouco promissor e, antes de chegar novos tempos preparar o soro antivenenoso.
penosos, Roos decidiu procurar outros horizontes. Vendeu seu Tudo isso parece muito aventureiro para Marcel e seu cora-
negócio de atacado em perfumes e de cabelereiros, comprou um ção bate ainda mais forte quando fica sabendo que a jornada pas-
montão de material cinematográfico e fotográfico e embarcou sará por terras de índios. Expedições anteriores malograram pela
num vapor com destino à América do Sul. Ele pensava explorar atitude hostil dos índios xavantes, que não gostavam de intrusos.
terras na Argentina e procurar uma moradia adequada para em Circulavam os boatos mais diversos sobre a região para onde se
seguida trazer sua mulher e filhos. Ao menos essa era sua intenção. dirige essa ‘expedição suicida’. Fundados, entre outros, sobre o
Os caprichos do destino intervieram e fizeram finalmente Marcel desaparecimento do viajante britânico coronel P. H. Fawcett, que
Roos parar no Brasil. em sua busca do mítico El Dorado em 1925, junto com seu filho
A bordo do vapor Roos encontra-se com outro passageiro, Pier- e o amigo deste, não deixaram rastro algum. O coronel Fawcett
re Doriaan, que lhe conta histórias alvissareiras sobre o Brasil. Do- foi um dos últimos lendários exploradores da época vitoriana e seu
riaan é de Antuérpia e fez seu nome como cantor no circuito dos sumiço misterioso durante a procura de uma civilização misteriosa
cafés chantants de Paris. Durante a guerra se comprometeu pelo continua a desafiar a imaginação. O mistério Fawcett não deixa de
seu bom relacionamento com os ocupantes alemães. Uma razão comover também Marcel Roos.
suficiente para abandonar a Europa por algum tempo. Assim, par- Finalmente, a primeira expedição de Roos na região amazô-
te para o Brasil, acompanhado pela mulher e seu amigo mais fiel: nica revela-se um acerto em cheio. Não somente encontra uma
um automóvel ano de 1930. Chegados ao Rio de Janeiro, Doriaan oportunidade para conhecer como testemunha privilegiada o fa-
leva Marcel Roos a passear neste carro antigo, um Minerva, pelo roeste brasileiro com sua mentalidade de fronteira nos confins
centro da cidade até as praias de Copacabana e Ipanema. “A vida da civilização, mas encontra também os xavantes, que, atraídos
pode ser boa”, deve ter pensado Marcel. pelos presentes, procuram contato com a expedição. De toda
Roos deixa-se fascinar pelo Brasil e parte para São Paulo. Lá, evidência, Roos agrada aos índios e sobretudo sua cabeleira loira

33
parte 1 – travessias e migrações

suscita muita admiração. Marcel Roos filma e fotografa à vontade Volta várias vezes ao Brasil, onde roda diversos documentá-
e fará êxito com suas imagens nas salas paroquiais de Flandres. rios, como O parque nacional do Iguaçu (1953) e A morte insi-
Uma vez de volta ao mundo habitado, Marcel Roos se põe a diosa (1957), sobre uma ilha das serpentes ou Ilha da Queimada
escrever, mas desiste de seu sonho de iniciar uma vida nova na Grande, na costa de São Paulo (Cinematek, Arquivo Real do Fil-
América do Sul. Demasiados problemas práticos na sua opinião. me, Bruxelas). Nos anos de 1970 organiza viagens e expedições
Volta à Bélgica, onde publica em 1953 O segredo do Mato Gros- para jovens cientistas. Seu amor pelo Brasil é uma constante.
so. O mistério Fawcett desvendado é o subtítulo e, se não coincide Numa entrevista ao jornal Het Belang van Limburg, em 27 de
completamente com o conteúdo, o livro encontra muitos leitores. julho de 1991, ele declarou ter passado no total 12 anos no Bra-
Em 1965 segue ainda um Avonturen Omnibus, uma coletâ- sil. Marcel Roos faleceu em 1996 em Hasselt, mas foi sepultado
nea de relatos de viagens sobre o Brasil, Paraguai e Bolívia, escri- em Gand, sua cidade natal, no cemitério do Campo Santo em
tos em colaboração com sua mulher Jeannine Roos. Nesse meio Sint-Amandsberg.
tempo, Roos vai morar em Hasselt, onde trabalha no serviço de
publicidade da empresa química Bayer. Com intervalos, Roos Chris Delarivière é jornalista independente em Gand, autor de re-
continua viajando. Financia suas ‘expedições’ pela América do portagens sobre cultura e música popular brasileira; traduziu para o
Sul com os rendimentos de suas conferências, sessões cinemato- flamengo História da Província de Santa Cruz, de Pêro de Magalhães
gráficas e reportagens escritas para os jornais e revistas flamengos. Gandavo, descendente de um flamengo de Gand.

A colônia belga de Botucatu


Luciana Pelaes Mascaro e Eddy Stols

Q uando em 30 de junho de 1960 o Congo Belga se tornou


independente com o nome de República Democrática do
Quando os belgas chegaram em 1961, a cidade de Botucatu
se engalanou para recebê-los com festa popular, mas rapidamente
Congo, surgiram graves desordens, que precipitaram o êxodo da surgiram problemas. Muitos belgas, ainda imbuídos de sua menta-
maior parte dos belgas. Diante do afluxo dos retornados, o governo lidade colonialista, não se davam conta de que a economia, a socie-
belga acreditou poder prevenir tensões sociais com alternativas de dade e a população de Botucatu eram diferentes do Congo belga.
colonização no ultramar. Como a Austrália foi logo descartada por Criaram conflitos, sobretudo no trato com os empregados. Se entre
suas rígidas normas para imigração, o governo belga optou pelo os cooperados haviam agricultores, grande parte não era ligada à
Brasil, aureolado pela recente inauguração de Brasília e mais aco- agricultura e não sabia trabalhar a terra. Além disso, descobriram
lhedor à colonização do seu interior. que as safras não correspondiam às expectativas e circularam boa-
A princípio, as autoridades belgas apoiaram-se na experiência tos que foram logrados pelos holandeses no preço e na qualidade
da Holanda, que já mantinha uma colônia agrícola em Jaguaríuna das terras. Os novos colonos já tinham gastado boa parte de seu
(SP) – Holambra I. Seu presidente, Charles Hoogenboom, ficou dinheiro com a construção de 45 casas confortáveis, mas deviam
encarregado de ajudar na localização de uma área agrícola para também arcar com os custosos estudos de seus filhos em escolas
a instalação de uma cooperativa para os belgas que vinham do particulares. Prevaleceu entre eles um forte individualismo, em
Congo. As terras escolhidas foram as da Fazenda Monte Alegre, contraste com a exemplar disciplina entre os colonos de Holambra.
antiga produtora de café localizada no município de Botucatu Com o crescente descontentamento e sua repercussão na
(SP). Seus 4.010 alqueires custaram, na época, o equivalente a Bélgica, seu governo, na tentativa de salvar a experiência, provi-
650 mil dólares. denciou ajuda dentro de seu programa de cooperação ao desen-
Em 22 de setembro de 1961 foi oficialmente fundada a Socie- volvimento. Enviou supervisores e assistentes técnicos e colocou
dade Cooperativa Agropecuária Belgo-Brasileira – SCABB. Entre 4 milhões de dólares à disposição da SCABB e dos cooperados,
1963 e 64 aí se estabeleceram 102 belgas cooperados e seus fami- respectivamente 44.652.456 e 111.938.985 francos belgas. Assim,
liares. No seu auge, em 1971, ascenderam pelos casamentos – dos equipou-se a colônia com um poço artesiano, uma caixa d´água,
quais, dez com brasileiros – e nascimentos a umas quatrocentas transformadores de eletricidade, silos e uma beneficiadora de ar-
pessoas. A cada cooperado coube no início 50 hectares de terra roz. Para promover um melhor espírito comunitário, construíram
e, após a redistribuição ocorrida em 1963 com o retorno de par- uma escola, uma creche e uma igreja, para a qual chegou um pa-
te dos pioneiros à Europa, uma gleba maior, até o limite de 150 dre belga para oferecer assistência espiritual.
hectares. Além dos belgas, trabalhavam para a SCABB e para os Após a redistribuição das glebas e diante dos poucos resultados
próprios cooperados vários antigos colonos brasileiros da Fazenda com a agricultura, a SCABB optou finalmente pela pecuária e pe-
e, na hora das safras, contratavam-se ainda boias-frias em Pratânia. la produção de derivados de leite. Com novas instalações e uma

34
presenças belgas no brasil

máquina importada da França o Laticínio Belco foi o primeiro no Como estas atividades não conseguiram consolidar a colônia, a
Brasil a vender leite embalado em saco plástico. Também o quei- antiga SCABB foi desfeita em 1987, quando quase todos os belgas
jo e a manteiga da mesma marca alcançaram renome no Estado. e seus descendentes já tinham abandonado a colônia. Voltaram
O laticínio acabou absorvido pelo Leite Paulista. No início dos para a Bélgica ou se integraram de outra maneira ao Brasil.
anos de 1980, foi ainda criada na colônia a Cervejaria Belco. Sua
marca desfrutou de prestígio na região por sua qualidade, mas foi Referências
adquirida mais tarde pela Destilaria Schincariol e sua fábrica des- Delmanto, Armando Moraes. Memórias de Botucatu, Botucatu: Ed. Vanguarda, 1990;
locada para São Manoel. ­Peabiru Revista Botucatuense de Cultura, nº 02, Ano I, março-abril, 1997.

Uma ítalo-belga no Brasil


Florence Carboni

D esde a primeira série, eu era uma das poucas alunas a fre-


quentar a aula de Religião. Por um lado, isso me fazia me
sentir privilegiada. Quem nos ensinava essa matéria, duas vezes
Essas cartas, que terminavam sempre com as mesmas fórmulas,
como ladainhas, minha mãe as lia em voz alta. E ela as respondia
com uma religiosa seriedade.
por semana, não era a nossa professora: ela se ocupava das minhas Havia também as orações da noite, que eu e meus irmãos reci-
colegas que assistiam a disciplina de Moral. Era uma jovem se- távamos em francês e minha mãe em italiano, à exceção de uma
nhora, muito simpática, irmã (assim diziam) do nosso pároco, que prece, toda em italiano, uma espécie de conversa com Deus na
dava a máxima atenção às suas três ou quatro alunas. Por outro qual se faziam vários pedidos: proteção para os diferentes parentes
lado, incomodava-me um pouco o fato de não fazer parte do gru- e ajuda para que, também naquele verão, se pudesse ir à Itália e
po majoritário, formado sobretudo por meninas belgas, enquanto rever a todos. Na época, nunca mencionava estas coisas com mi-
minhas duas ou três colegas na Religião eram italianas, como eu. nhas colegas de aula ou com as outras crianças do bairro – já eram
Aquela aula de Moral, eu a engrandecia. Parecia-me mais sé- tantas as coisas que diferenciavam minha família das delas! Tor-
ria. Eu ficava sentida por deixar às minhas colegas, que considera- naram-me consciente da dualidade de minha existência também
va menos capazes do que eu, o privilégio de ter a nossa professora as constantes lamentações de meu pai porque seus filhos se recu-
apenas para elas. Tentava imaginar as coisas interessantes que elas savam a falar com ele na língua dele. E havia ainda o fato de que,
estariam aprendendo enquanto eu desenhava cestas atravessando no bairro, minha mãe fosse conhecida como Maria l’Italienne. 
o Nilo, com bebês chamados Moisés dentro, ou o menino Jesus Vivíamos numa fração de um pequeno município, na provín-
carregado por uma mula, guiada por um cara que era marido de cia de Hainaut, no Pays Noir, a região escurecida pelo carvão das
sua mãe sem ser seu pai. Isso me fazia sentir inferior aos meus minas e pela fumaça dos hauts fourneaux (altos-fornos) da metalur-
próprios olhos. Mas assim tinha que ser porque minha mãe assim gia. Meu pai trabalhava numa fábrica, onde era considerado um
queria. E, deduzia eu, ela assim queria porque era italiana. Dois bom operário. No nosso bairro, ele também tinha certo prestígio:
anos mais tarde, na terceira série, a primeira aula de História foi entendido de mecânica, era muito procurado para consertar car-
dedicada aos “nossos” antepassados, os Gauleses, que tinham tão ros. E, de vez em quando, tocava violino nas festas da paróquia,
bravamente combatido os invasores romanos... Romanos? Como apesar de seu anticlericalismo declarado.
assim? Então os malvados eram italianos? Como eu! No nosso bairro, no qual viviam quase exclusivamente operá-
Esses dois fatos, a aula de Religião e os romanos invasores rios e mineiros belgas e onde, por muito tempo, fomos uma das
da Bélgica, me fizeram tomar consciência de que não era total- poucas famílias italianas, minha mãe também se destacava. Era
mente igual às minhas colegas. Depois disso, tudo passou a ter uma das poucas mulheres a não trabalhar na grande fábrica de
um sentido particular: o nosso modo de viver, alguns gostos dos confecção masculina situada em uma cidade vizinha. Ela costura-
meus pais, nossa casa, o modo como minha mãe se vestia e me va em casa. Tinha aprendido com dez anos, quando fora enviada
vestia, a ópera – italiana, é claro! – que escutávamos todos os do- como aprendiz à loja de um alfaiate em La Spezia, na Itália. Ela
mingos de manhã quando meu pai estava em casa. A nossa co- vestia todos nós, inclusive meu pai. Mas costurava sobretudo para
mida também, tão diferente da que faziam as mães das minhas fora. Não havia noiva dos arredores que não entrasse na igreja com
amigas, que eu invejava porque comiam linguiça com batata um vestido feito por ela. Ocupava-se também de uma horta, que
fervida. Tinha também as cartas da Itália, dos avós, dos tios, das nos alimentava boa parte do ano, assim como de um lindo jardim
tias, e de amigos italianos como nós, que haviam voltado para a na frente da casa, o mais lindo da rua. Eu tinha muito orgulho
Itália depois da terrível catástrofe ocorrida numa mina de carvão dele, apesar da vergonha que me causava o estado de decadência
da região, onde muitos dos nossos compatriotas tinham morrido. de nossa velha casa.

35
parte 1 – travessias e migrações

A única coisa que minha mãe não amava eram os trabalhos ma cinzento, chuvoso e frio, assim como da paisagem plana e
domésticos. Nossa casa era uma das menos bem cuidadas do bair- monótona tão bem cantada por Jacques Brel. Mesmo assim, na
ro, onde a arrumação parecia ser uma verdadeira fixação. Segui- convivência familiar, havia assimilado outras práticas, outros va-
damente, eu, minha irmã e meu irmão tínhamos que arrumá-la lores e traços culturais.
e limpá-la porque minha mãe estava terminando um vestido ou Por isso, uma vez, no Brasil, senti também falta da Itália e mais
trabalhando na horta. especificamente da Ligúria, onde passara cada verão de minha in-
Naquela pequena casa, que meu pai em seguida aumentou, fância e juventude. Era ali que se encontravam todas as minhas re-
com a ajuda de todos nós – como era comum fazer na época, ferências familiares – naquela altura até meus pais haviam voltado
naquela classe social e em bairros como o nosso, semiurbano e para a Itália, após 34 anos na Bélgica. Tinha saudade das paisagens
semirrural –, vivíamos em cinco pessoas: eu, meus pais, minha do interior daquela região da Itália, mas também do seu litoral ro-
irmã e meu irmão, nascidos na Itália. No ano em que completei choso, das tortas de verdura, do cheiro de manjericão e alecrim,
oito anos de idade e estava entrando na terceira série, minha irmã dos vilarejos medievais agarrados ao topo dos morros suaves.
iniciava o primeiro ano de faculdade e meu irmão começava a Ao chegar ao Brasil, em finais de 1977, senti falta da seguran-
trabalhar na fábrica com meu pai. Contradições de uma socieda- ça que me dava a possibilidade de participar de um movimento
de em transformação! Dez anos mais tarde, eu também entrei na social, político e cultural em efervescência, naqueles anos 70, na
universidade, sem muita convicção e sem muito rumo. Formei- Itália sobretudo. Ainda mais porque o Brasil daquela época ainda
me mais seriamente muitos anos mais tarde, já casada e mãe, em era governado pelos militares. Uma vez no Brasil, o conhecimen-
outra universidade e em outro curso, também na Bélgica, onde to, puramente teórico e potencial, que eu tinha de um Estado di-
também me doutorei. tatorial e da difícil situação política na América Latina daqueles
Enquanto isso eu havia me apaixonado por um brasileiro, re- anos converteu-se em experiência concreta, imediata, cotidiana:
fugiado político em Bruxelas, onde conheci também chilenos e pelos inúmeros obstáculos encontrados por meu companheiro em
chilenas, exilados após o golpe de Pinochet. Logo, com ele e nosso sua penosa busca por inserção profissional e por uma reinserção
bebê, tomei o caminho da emigração, um pouco como meus pais social, com todas as dificuldades econômicas que isto nos causou
fizeram logo após a Segunda Guerra Mundial. Não pelas mesmas e ao nosso filho. Também pelos repetidos indeferimentos, por se-
razões, nem com os mesmos objetivos. Muito provavelmente, não te anos, aos meus pedidos de visto de permanência, ao qual tinha
com as mesmas dificuldades. direito por ser mãe de uma criança constitucionalmente conside-
Tratou-se, no entanto, de emigração, com seu séquito de des- rada brasileira por ter chegado ao País antes dos três meses de vida.
cobertas, enriquecimentos, encantos, mas também de empobre- Esta recusa que, como ficou demonstrado mais tarde, devia-se
cimentos, rupturas, afastamentos e perdas irremediáveis – perda ao fato de ser companheira de um opositor do regime ditatorial,
de referências culturais, de cheiros, de gostos, de afetos. Tudo is- prejudicou irremediavelmente minha vida profissional, já que,
so deu-se talvez de maneira menos nítida em relação àquilo que além de não me permitir trabalhar de outro modo que informal-
meus pais viveram do final dos anos 40 aos anos 80 na Bélgica. Isso mente, me impediu até mesmo de inscrever-me numa universida-
porque, para mim, não estava muito claro a qual cultura pertencia. de para terminar os estudos de psicologia iniciados em Bruxelas.
Sentia falta da Bélgica, é claro, que considerava o meu país, ape- Os longos sete anos sob a ditadura militar – durante três, ia de
sar de nunca ter tido a nacionalidade belga: lá onde eu nascera e Porto Alegre e vinha de Montevidéu em ônibus precários, com
vivera os primeiros 23 anos de minha vida. meu filho pequeno no colo, para manter o visto de turista; durante
Meu conhecimento racional do mundo se dera sobretudo quatro, vivi como semiclandestina, após receber ordem de expul-
através da língua francesa, que, mesmo não sendo a língua de são – tornaram também mais difícil uma inserção social serena.
minha mãe nem, talvez, a primeira que falara, passou a ser a Sobretudo, eles prejudicaram a possibilidade de que eu amasse o
dominante no meu repertório linguístico. Da Bélgica, conhecia Brasil incondicionalmente e o considerasse o meu país, o mesmo
quase tudo: interpretava perfeitamente os códigos sociais e sabia título que atribuo à Bélgica e à Itália, onde me sentia e sinto cida-
como me comportar conforme quisesse passar por estrangeira ou dã, apesar de minha condição de filha de trabalhadores, imigrados
por autóctone; conseguia comunicar-me com os velhos operários em um e emigrados do outro.
e camponeses até mesmo quando me falavam em puro wallon;
amava a comida; conhecia e apreciava enormemente a cerveja, Florence Carboni, italiana, é professora do Curso de Letras da Uni-
com destaque para a trappiste etc. Gostava até mesmo do cli- versidade Federal do Rio Grande do Sul.

36
presenças belgas no brasil

A casa é sua
Annelies Beck

É uma turma alegre que posa caótica para a foto da classe de


segundo grau de 1991-1992. Cinquenta rapazes e moças num
emaranhado de braços e pernas, todos com um largo sorriso, sal-
Minha família hospedeira me recebeu de braços abertos. Mi-
nha mãe é psicóloga. Ela combinava seu consultório pessoal com
aulas. Meu pai trabalhava num restaurante de empresa. Meu ir-
vo o beicinho de uma que se imagina uma modelo. Uma moça mão estudava arquitetura e aprendia alemão num curso noturno.
tem o cabelo curto. Outra, chama a atenção no meio de todas as Minha irmã era bastante esportiva e estava na escola secundária.
outras com seu cabelo até a cintura. Esta de cabelo curto, sou A família com quem estava tinha raízes no Líbano, na Itália e, de
eu, a gringa, a belga – na época sou ainda uma novata estudante algum antepassado, sangue africano. Cada membro da família ti-
de intercâmbio, mas na minha opinião já totalmente integrada. nha uma coloração diferente. Todos os dias chegava a empregada,
O carnaval, o futebol e as novelas Sinha Moça e Escrava Isau- que arrumava o apartamento e cozinhava o almoço, mas não havia
ra, que a televisão pública passava então no fim da tarde, eram luxo. Trabalhavam duro para poder ter o possível.
as primeiras coisas que as pessoas evocavam quando lhes contava Como estudante de intercâmbio, no começo anda-se às cegas.
que passaria um ano no Brasil como estudante de intercâmbio. Compromissos fixos tornam-se amparos. No café da manhã havia
Em segundo lugar também: muita pobreza, a selva amazônica e variedade de frios e queijos, com uma faca em cada qual, e não,
os teólogos da libertação. E mais nada. como de praxe na Bélgica, uma faca ao lado do prato de cada co-
O e-mail e a internet ainda não eram muito divulgados. De Fa- mensal. O mesmo se repetia no almoço, com toda a família. Eu
cebook ou Twitter não se falava ainda. Tinha eu 18 anos, não falava estranhava os combinados pouco comuns para mim: carne, legu-
português e iria morar um ano num país onde nunca tinha estado. mes e arroz com feijão sempre estavam na mesa; além disso, ain-
Devia ser o Brasil por causa do idioma bonito, de situar-se bem lon- da um prato com mandioca, batata doce ou massa. Muitas vezes
ge e de ser uma terra totalmente desconhecida para mim: outra cul- me felicitavam por eu não ser “doceira” e recusava facilmente o
tura e outra sociedade, com uma extensa gama de cores e de gente brigadeiro e outras bombas calóricas. Por outro lado, infelizmen-
do mundo inteiro que, aparentemente, conviviam sem problemas. te, eu resistia bem menos aos salgadinhos vendidos em bares por
1991. Fui parar numa família de classe média em Juiz de Fo- toda a cidade e até na escola.
ra, Minas Gerais. No ônibus do Rio de Janeiro para Juiz de Fora Se eu tinha Durex comigo? A pergunta veio na segunda ou
arregalei os olhos. Balbuciava as palavras estranhas dos painéis terceira semana desde que frequentava a escola. Fiquei um mo-
publicitários, ensaiando os sons certos. Pneu parecia pronunciar- mento sem fala. A menina que parecia a mais inocente da classe
-se como pieneeuw. Tudo era diferente. Ia-se à escola de seis e me perguntou se eu tinha camisinha. Meu português estava ainda
meia da manhã até o meio dia e não das nove às cinco. Havia, no em desenvolvimento, mas eu estava certa de que a tinha compre-
centro urbano efervescente, mais prédios altos do que estávamos endido bem, ainda mais quando repetiu a pergunta. Na escola,
acostumados nas cidades europeias. Por toda parte sempre me gravidez na adolescência não era incomum e muitas meninas da
deparava com mendigos ou camelôs. Fernando Collor de Mello minha classe – tinham geralmente quinze ou dezesseis anos, um
era presidente e Lula da Silva ainda líder sindical em São Paulo. a dois anos mais novas do que eu – falavam o tempo todo de pa-
A palavra presidente pronuncia-se em português como fosse ‘pre- querar e namorar, sobre qual rapaz era atraente e de quem estava
sidentje’ (um diminutivo em flamengo), o que então, em plena com quem. Mas quase nunca se falava diretamente de sexo. Eu
aprendizagem do idioma, me soava engraçado. Este tipo de coisa balbuciava qualquer coisa. Minha colega de série me fitou com
me impressionava no começo. olhos interrogativos e apontou para o rolinho de fita adesiva no
O afamado choque cultural não está no multicolorido, nem meu estojo. “Durex?” Este era o momento em que a classe e a
mesmo na pobreza, tão visível. O choque está nas pequenas coi- gringa se abraçavam. A confusão prolongou-se por meses e provo-
sas. A cena de rua, que fica incompleta, até quando se realiza que, cava cada vez mais risadas.
durante meses, não se via nem um carrinho de bebê ou buggy. Fora a comida, também a novela das nove era ponto fixo do
Bebês sempre se carregam. Assim um vazio pega mais cor. A per- meu dia. A pretexto de que me ensinavam português, gostava de
gunta, sempre repetida, aberta e direta, na presença de qualquer ver Vamp e Perigosas Peruas. Narrativas fantasiosas e relações amo-
um: “Você tem um namorado?” A reação incompreensiva quando rosas, atuadas em diálogos singelos. O perfeito trampolim para a
eu não queria responder fazia mistério, ao passo que eu me assus- conquista do português em todas suas nuances. Mas, e as novelas
tava como quanto as pessoas faziam pouco caso, como achavam como espelho da evolução da sociedade, como os sociólogos às
natural, penetrar desse jeito na privacidade de alguém. Como fi- vezes as apresentam? Dois verões antes especulava-se nos jornais
xavam meus cabelos curtos – Sinéad O’Connor, Jeanne Moreau, durante semanas se duas personagens homossexuais se beijariam
Annie Lennox!, por quem mais me tomavam? Quem sabe se eu ou não. Com ou sem beijo, a franqueza com que se escrevia sobre
era talvez doente? o amor ainda não era, infelizmente, corrente na vida cotidiana.

37
parte 1 – travessias e migrações

“Não é sempre tão simples. Às vezes fico apreensiva” me confiava Collor, sob a pressão dos “caras pintadas”, desenrola-se um novo
minha mãe. Ainda em 2012 não é simples ser GLS no Brasil, ape- processo, que pode seguir-se nos mínimos pormenores na mídia:
sar da garantia legal, do alegre travesti durante o carnaval, das fla- corrupção no coração do PT, o caso do mensalão. O Brasil rein-
mejantes subculturas e da ocasional Gay Pride Parade nas cidades. venta continuamente o seu porvir.
Assim, há outras coisas que pedem uma segunda, terceira e 2013. Minha família hospedeira vai bem – ainda mantemos
quarta leituras. O que à primeira vista é reconhecível, ou com- contato. Meus pais construíram sua própria casa. Minha mãe ain-
preensível, parece, numa inspeção aproximada, se situar um grau da trabalha. Meu pai está agora aposentado. Meu irmão e minha
fora do fio de prumo, pelo menos em comparação com o quadro irmã puderam estudar e ambos trabalham. Minha irmã é fisiote-
de referências que se traz de fora. A procura de pontos comuns, rapeuta em Juiz de Fora e decidiu fazer Direito, “para poder fazer
em algum lugar nas dobras entre familiaridade e alienação, é o alguma coisa pela gente”. Meu irmão projeta cenários para nove-
que torna a conexão com o Brasil tão fascinante. las e vê de seu apartamento como o Rio se embeleza para os Jogos
Em 2013, de volta a Juiz de Fora, fiquei impressionada: foram Olímpicos. A dinâmica dentro da cidade se transforma: as favelas
construídos um hospital e um shopping ainda maior; por toda par- empetecadas entraram na mira dos promotores da construção e
te erguem-se altos prédios de apartamentos e na colina mais longe das imobiliárias. Cá e lá oferece-se um bom dinheiro aos morado-
vêem-se alinhadas as casas sociais da “Minha casa, minha vida”. res de áreas que eram taxadas de favelas. Mas como a empregada
O Brasil vai de vento em popa. Não se deve mais passar horas na do meu irmão me contou: “Para onde temos que ir, então? Para
fila para trocar dinheiro: pode-se em qualquer parte sacar dinheiro mais longe, onde é mais barato? Como então podemos chegar em
do caixa eletrônico. tempo razoável no serviço?”
Vinte anos atrás, no Jornal Nacional, a cada dia William Bon- Quando agora olho a foto da minha turma daquela época, vejo
ner dava o câmbio oficial do dólar e, em seguida, o paralelo no que sempre fui a gringa, mesmo que minhas colegas me dessem
câmbio negro. Naquela época, minha família hospedeira com- o sentimento de ser uma delas e mesmo que eu passasse frequen-
prava os dólares que eu, cuidadosamente, economizava e guarda- temente por uma catarinense ou uma gaúcha, por causa de meu
va num nicho secreto perto da cama. Não era recomendável ter cabelo loiro e meus olhos azuis. Como estudante de intercâmbio,
dólares em casa, mas deixar o dinheiro no banco tampouco era a desligada de quem eu era, salvo por uma frágil linha de envelopes
solução por causa da inflação galopante. Ainda guardo um arco-í- do correio aéreo, eu fui muito longe para conquistar, no estrangei-
ris de passagens de ônibus: a cada mês subia o preço e, portanto, ro, aquele sentimento seguro e familiar de casa.
mudava também a cor do bilhete. Como jornalista, 20 anos mais tarde, levo vantagem com es-
Anos mais tarde, a economia melhorou bastante pela gestão te olhar duplo: a familiaridade transparece nos gostos, cheiros e
liberal do presidente Fernando Henrique Cardoso, mas naquela olhares, numa maneira de falar, em sensibilidades para tabus ver-
altura meus pais brasileiros já tinham visto boa parte de suas eco- sus franqueza e, também, nas minhas mãos que se metem a dan-
nomias virar fumaça. Mais tarde o horroroso cenário para os brasi- çar quando falo português. Ao mesmo tempo, este país poderoso
leiros ricaços tornou-se realidade: o torneiro mecânico de outrora, apresenta-se cada vez numa outra faceta, tanta coisa muda, tão
o barulhento sindicalista Lula da Silva tornou-se presidente. Mas, rapidamente, cada vez surgem novas questões e percepções. É
ao contrário do que alguns temiam (caos! revolução!), ele fez um como em toda boa relação: nunca se acaba.
governo moderado. Continuou o que seus predecessores tinham
começado a construir e o Brasil se deu bem com isso. Hoje, Dilma Annelies Beck é jornalista na VRT, a televisão pública flamenga.
Rousseff é a primeira mulher presidente do Brasil, uma ex-gueri- Há 20 anos se dedica ao Brasil, onde fez numerosas reportagens.
lheira – quem teria imaginado isso? Residiu neste país entre 1991 e 1992 como estudante de intercâm-
O Brasil é um caso interessante não só economicamente. Po- bio e obteve, mais tarde, um MA em Brazilian Studies na Univer-
líticamente, 20 anos depois da renúncia do presidente Fernando sity of London.

38
presenças brasileiras na bélgica

Os primeiros brasileiros em Flandres


Eddy Stols

P or algum ufanismo a historiografia brasileira relutou muito


tempo a pensar o Brasil como um país de emigração. Os úni-
cos casos conhecidos eram os deportados da Inconfidência minei-
como gente simples e ignorante, que nunca estiveram em outro
lugar senão no Brasil e no mar. Tudo indica que eram mestiços,
mamelucos ou mesmo índios, marinheiros de um navio português
ra, a família imperial e os monarquistas em 1889, os baderneiros procedente do Brasil. Uma tripulação semelhante talvez já tives-
anarquistas principalmente italianos expulsos por volta de 1900, os se sido encontrada em viagens anteriores de navios portugueses
exilados da Revolução de 1930 e do Estado Novo e os refugiados a Flandres.
e deportados da ditadura militar de 1964 a 1978. Um pouco brasileiros podiam ser neste final do século XVI os
Como um fato novo e quantitativamente inédito surgiu a partir cristãos-novos portugueses, que, após longa estada em Pernambu-
da crise econômica dos anos de 1980 a saída do País de milhares co ou na Bahia ou já nascidos por lá, vieram residir em Antuérpia
de brasileiros modestos por necessidade econômica. A formação para tratar de seus negócios de açúcar e pau-brasil e eventualmen-
de uma grande diáspora brasileira nos Estados Unidos, no Japão te à procura de maior liberdade religiosa.
e na Europa abriu os olhos dos historiadores para os precedentes, Algumas famílias desta rede comercial transatlântica se fize-
como os ‘brasileiros de torna-viagem’ no Norte de Portugal ou no ram católicas como os Ximenes ou os Rodrigues d’Evora. Outras
Sul da Itália, ou os escravos alforriados que voltaram para a cos- seguiram mais tarde, nos anos de 1640, para Amsterdam, onde
ta ocidental da África. Dentro deste variegado Brasil extramuros, podiam professar abertamente seu judaismo, se bem que como
cabe situar a presença brasileira na Bélgica. cidadãos de segunda categoria e com censuras internas na sua
Logo depois da chegada dos portugueses e franceses ao Brasil, comunidade. Um ou outro cristão-novo voltou inclusive para os
alguns índios fizeram a viagem em sentido inverso para Lisboa ou Países Baixos meridionais, que adotaram progressivamente maior
para a Normandia. A sua vinda para Flandres pode ter demorado tolerância com os judeus.
até que em 1584 uma primeira notícia assinalou a prisão em An- Em Zandvliet, um povoado perto de Antuérpia, uma Brazilia-
tuérpia de quatro Brasiliaenen, ou brasileiros, Melchior Albares, nenstraat se refere à gente de pele escura que vivia lá em choças
Anthonio Ghercy, Pedro Borges e Juan Aldres (Bulletin des Archi- como meio selvagens ao deus-dará. Na voz popular atribuía-se
ves d’Anvers, 5, 264). sua origem a soldados vindos com o exército espanhol no século
Chegando à cidade tarde da noite, encontraram as portas já XVI. Como mais plausível, tratar-se-ia de emigrantes belgas, que
fechadas pelo horário de recolher, mas entraram pulando pelos retornaram miseráveis do Brasil no século XIX e se reinstalaram
muros. Foram liberados mediante o pagamento de multa de 100 em terras abandonadas (com meus agradecimentos a M. Bollen
florins pelos cônsules da nação portuguesa. Estes os desculparam e J. Possemiers).

Passantes e residentes brasileiros na Bélgica dos séculos XIX e XX


Eddy Stols

U ma vez independente, a Bélgica atraiu um número considerá-


vel de passantes e residentes brasileiros, sem que se constitu-
ísse uma colônia bem visível como a de Paris. Tratava-se de diplo-
matas, comerciantes, artistas e principalmente de estudantes. Em

39
parte 1 – travessias e migrações

Ilustração de Uma vez reconhecido seu talento, seguiu primeiro para a Es-
Henrique Alvim
cola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro e depois, em 1903,
Corrêa para o livro La
guerre des mondes, com bolsa do governo paranaense, foi aperfeiçoar-se na Académie
de H. G. Wells. Royale des Beaux-Arts de Bruxelas. Gheur e outro belga interes-
sado, Alphonse Solheid ou talvez o próprio Itiberê podem ter fa-
cilitado o contato. Em Bruxelas, Zaco trabalhou com o escultor
expoente do art nouveau, Charles Van der Stappen. Recebeu em
1905 em sua casa o conterrâneo João Turin (1878-1949), filho de
imigrante italiano, aprendiz de ferreiro, escultor e também auxi-
liado com bolsa de governo. Turin exprimiu o seu sofrimento pelo
clima belga na escultura Exílio.
Com certeza, conheceram Constantin Meunier, cujo Semea-
dor (1896) inspirou semelhante estátua de Zaco Paraná. Ambos fo-
ram diplomados e premiados em 1909, recebendo um ateliê para
trabalhar, carvão para aquecimento e direito a modelo vivo. Com
a morte de Van der Stappen, voltaram ao Brasil em 1910, mas logo
regressaram à Europa e viveram um longo período em Paris em
contato com os artistas modernos. Após seu regresso definitivo em
1922 ao Brasil, encontraram mais reconhecimento e encomendas.
Ainda em Bruxelas, seus caminhos se cruzaram com um ou-
Bruxelas, o Brasil mantinha desde 1834, e quase continuamente, tro artista brasileiro. Henrique Alvim Corrêa (1876-1910) foi le-
um encarregado de negócios, um ou mais adidos e um cônsul-ge- vado com 16 anos pelo padrasto a Paris, onde aprendeu a gravu-
ral, alguns com extensas famílias, como testemunham no cemité- ra e se especializou em pintura militar com Edouard Detaille.
rio de Laken os jazigos das famílias Souto Maior, Ipanema de Bar- Contrariado pela família em seu romance com Blanche Barbant,
ros e Moreira Barros. Possivelmente recebiam viajantes brasileiros fugiu em 1898 para Bruxelas, onde montou um ateliê no subúr-
como o pintor Manuel de Araújo Porto-Alegre e o poeta Domingos bio de Watermael-Boisfort. Mas o pintor não conseguia vender
Gonçalves Magalhães, que excursionaram pela Bélgica por volta seus quadros de temas militares e se sustentou com decoração
de 1837. Este último concluiu lá seu drama Antonio José ou o Poeta mural e ilustrações eróticas no estilo de Félicien Rops. Somen-
e a Inquisição e uma belga lhe inspirou talvez um suspiro poético. te em 1905 conseguiu realizar na galeria Boute de Bruxelas sua
A belga era Céline, amante do outro grande poeta romântico, An- primeira exposição individual. Numa abundância de pinturas,
tônio Gonçalves Dias, que passou por cirurgia na Bélgica em 1863, desenhos e esboços, um crítico (La Chronique, 12 e 15.03.1905)
pouco antes de seu naufrágio na costa do Maranhão. descobriu um artista solitário e original, sem filiação com algu-
Um salão literário concorrido manteve em Bruxelas no final ma escola e desenraizado.
do Império o plenipotenciário conde de Villeneuve e sua esposa, Suas obras revelavam ‘uma mistura singular de fantasia e serie-
assistido por Brasílio Itiberê da Cunha, o compositor da Sertaneja. dade, de sonhos bizarros, caprichosos e de impressionismo natural,
Este trouxe em 1880 para estudar no colégio jesuíta Saint-Michel de simbolismo e realidade’. Tudo lhe inspirava, desde figuras do
um jovem irmão, João, que se formou depois em Ciências Políticas cotidiano, recantos e paisagens de Boisfort até cenas da atualida-
na Universidade de Bruxelas e se relacionou com figuras de La Jeu- de internacional, como a guerra russo-japonesa de 1904, que ele
ne Belgique, como Iwan Gilkin (Andrade Muricy). Nesta linha pu- dramatizava ou parodiava. Sua imaginação fantástica excedeu em
blicou em 1890 sob o nome de Jean Itiberê e com o mesmo editor cerca de 50 desenhos de monstruosos e terríveis extraterrestres
de Maurice Maeterlinck, Lacomblez, um volume de poemas em para ilustrar a obra de grande êxito The War of the Worlds (1898)
francês, Préludes. Voltando em 1892 para a terra natal paranaense de H. G. Wells. O próprio autor, solicitado por Alvim Corrêa em
com postura de dândi no estilo fin-de-siècle, continuou a publicar viagens a Londres, os aprovou para uma edição belga, La guerre
poemas em francês nas revistas Cenáculo e Almanaque Paranaense des mondes, Bruxelas, L. Vandamme, 1906, com 500 exemplares
e divulgou nos meios literários de Curitiba o simbolismo belga. (reeditado no Rio de Janeiro, 1981).
O prestígio deste pode ter influenciado na ida a Bruxelas, pou- Doente dos pulmões, Alvim Corrêa foi tratar-se num sanató-
co depois, de dois jovens escultores paranaenses, filhos de imigran- rio suíço, mas acabou morrendo de tuberculose em Bruxelas em
tes. Na oficina do polonês Miguel Zak, os trabalhos de madeira do 1910. Seu necrológio (La Chronique, 15.06.1910) o reconheceu
filho João Zaco Paraná (1884-1961) despertaram o interesse de um como um modernizador de Breughel e Bosch. Também devia-
freguês, o técnico ferroviário belga François Gheur. Este levou o -se relacioná-lo com o contemporâneo belga James Ensor. Seu
menino para sua casa em Curitiba para lhe proporcionar ensino ateliê foi destruido na invasão alemã em 1914 e as matrizes de
com auxílio do governo e de protetores no seminário menor e na suas gravuras desapareceram no torpedeamento de um navio em
Escola de Belas Artes e Indústria. 1942, mas seus dois filhos, Eduardo e Roberto, salvaram o que

40
presenças brasileiras na bélgica

puderam. Sua obra foi finalmente redescoberta por José Roberto festa acabou com a invasão das tropas alemãs em agosto de 1914,
Teixeira Leite, que lhe consagrou a primeira exposição em 1973, quando os diplomatas redigiram listas com os nomes de uns 400
parcialmente reapresentada por Pietro Maria Bardi em Bruxelas brasileiros que deviam deixar a Bélgica.
na galeria Studio 44 no mesmo ano da Brasil-Export. Boa parte destes eram estudantes e seus familiares. Já por me-
Nestes anos de 1910 a presença brasileira atingiu maior vi- ados do século XIX se encontravam em Bruxelas em instituições
sibilidade pelas iniciativas do embaixador Oliveira Lima. Junto de educação como do Senhor Lavallée jovens brasileiros, ao lado
com a participação do Brasil na Exposição de Bruxelas, organizou de russos ou de uma Charlotte Brontë (Stols, 1974). Mais tarde,
um concerto de música brasileira no Théâtre de la Monnaie. Os secundaristas frequentaram colégios como o Saint-Michel dos je-
comissários do Estado de São Paulo editaram em Bruxelas várias suítas em Bruxelas ou pensionatos, como das Ursulinas em On-
publicações de propaganda como um álbum de 102 fotografias ze-Lieve-Vrouw-Waver.
de Guilherme Gaensly, Vues de São Paulo. Um exemplar – ho- Bem mais numerosos foram os universitários. Vários motivos
je conservado na Biblioteca Municipal da cidade – foi oferecido levaram os pais brasileiros a preferir a Bélgica: um país monár-
ao poeta Vicente de Carvalho, residente em Bruxelas em 1912. quico, mas constitucionalista e liberal, de idioma francês, mais
Vários jovens talentos literários brasileiros, adeptos do simbo- seguro e também mais barato do que a França. Desde Bruxelas,
lismo, vieram peregrinar na terra de Émile Verhaeren, Georges em carta de 7 de julho de 1863, Antônio Prado recomendou ao
Rodenbach e Maurice Maeterlinck, ainda mais que lá havia edito- irmão Caio estudos na Bélgica por não ter costumes tão diversos
res bons e baratos e onde Victor Orban compôs uma das primeiras como a Alemanha nem tão perigos como Paris (Darrell, p. 147).
antologias de literatura brasileira em francês (Quataert). A visita Entre 1835 e 1914 matricularam-se cerca de 700 brasileiros,
aos canais de Bruges em 1913 de Rodrigo Otávio Filho, junto com dos quais 237 na Universidade Livre de Bruxelas, 217 na Universi-
Ronald de Carvalho, Filipe d’Oliveira e Álvaro Moreyra, rendeu dade de Gand, 100 na Universidade de Liège, 68 na Universidade
seu Alma de Rodenbach, 1921. de Lovaina, 37 na Faculdade de Agronomia de Gembloux, 5 na
Foi nesta época que Manuel Bandeira veio da Suíça conhecer Université Nouvelle de Bruxelles – uma dissidência temporária da
‘a Bélgica perseverante dos velhos paços municipais e beguines’, Universidade Bruxelas –, e 2 no Instituto Superior de Comércio
evocados mais tarde em O Ritmo Dissoluto (1924). Ao contrário, de Antuérpia.
lá também, na casa de um patrício, o poeta mineiro Belmiro Braga Se os primeiros apareceram em 1835, somente a partir de 1857
saboreou sua comida da terra. Um editor de Bruxelas lançou os contava-se mais de dez, alcançando 41 em 1871 com um pico
primeiros estudos de Alberto Lamego, historiador da Terra Goy- de 72 em 1882, baixando depois para 12 em 1912 e subindo no-
tacá. Brasileiros vinham até veranear, como os Almeida Prado vamente até 48 em 1913. O mais surpreendente – e contrário à
em La Panne. Num restaurante de Ostende, Gilberto Amado se reputação de bacharelismo dos brasileiros –, é o alto número de
surpreendeu em 1912 com uma dezena de seringueiros da Ama- inscritos e diplomados em engenharia (318), medicina (236) e
zônia, vestidos de branco, festejando com bonitas mulheres nos agronomia (45).
joelhos (Amado). No mesmo balneário o casal Asseloos anuncia- Notável também é a diversidade de origem dos estudantes bra-
va o ensino da ‘maxixe brésilienne’ (Le Carillon, 28.02.1914). A sileiros, a maior parte vinda das províncias do Rio de Janeiro (231)
e de São Paulo (149), seguidas por Minas Gerais (41), Pará (31),
Rio Grande do Sul (29), Maranhão (28), Bahia (27) e Pernambu-
Ilustração de
Henrique Alvim co (24). Em algumas famílias brasileiras, como os Ottoni, Teixeira
Corrêa para o Leite, Roque de Pinho, Toledo Piza, Villares, Viana e Chermont,
livro La guerre os estudos na Bélgica se tornaram quase uma tradição.
des mondes, de H. No início viviam bastante isolados. A. S. de Abreu se queixou
G. Wells.
num folheto, Souvenir de la province de Minas Gerais au Brésil,
Bruxelas, 1845, como em três anos fez poucos amigos. Defendia
frente aos abolicionistas a reputação de sua pátria, argumentando
que o escravo trabalhava somente oito horas e não se despedia na
rua, faminto, como se fazia com o operário belga.
Nos anos de 1860 e 1870 alguns frequentavam salões e ade-
riam ao positivismo como Luiz Pereira Barreto ou Joaquim Alberto
Ribeiro de Mendonça. Um deles, Francisco Antônio Brandão Jú-
nior, publicou em Bruxelas um dos primeiros livros abolicionistas,
A Escravatura no Brasil, 1865. Participavam das associações estu-
dantis, envolvendo-se às vezes nas disputas entre liberais e católi-
cos. Em Gand houve até um clube brasileiro entre 1875 e 1880.
Alguns se radicaram na Bélgica como Ladislau Furquim de
Almeida, que publicou sobre o café e a borracha e deixou descen-

41
parte 1 – travessias e migrações

No pós-guerra a presença brasileira se reativou primeiro na


área cultural, promovida por uma Union Brasilo-Belge, fundada
em 1950. Nesse ano estreou o maestro Eleazar de Carvalho no
Palais des Beaux-Arts de Bruxelas. Magda Tagliaferro fez em 1952
uma turnê belga e participou do júri do Concours Reine Elisabeth.
A construção da nova capital em Brasília colocava o País no diapa-
são da modernidade, que precisamente a Exposição Mundial de
Bruxelas em 1958 pretendia celebrar. Esta coincidência suscitou
mais intercâmbios.
Assim Heitor Villa-Lobos dirigiu em 1958 a orquestra belga
na inauguração do Pavilhão do Brasil. Se a Expo 58 fez descobrir
Cândido Portinari e Cícero Dias, o Palais des Beaux-Arts mostrou
em 1957 Burle Marx e em 1960 Lasar Segall, em parte como res-
postas às participações belgas na Bienal de São Paulo. Este maior
apreço cultural mútuo levou em 1960 à assinatura de um acordo
cultural. Ao mesmo tempo os belgas descobriram o futebol bra-
sileiro nos encontros do Botafogo e do Santos com o Anderlecht
e o Beerschot.
A partir dos anos 1960 o número de estudantes cresceu bas-
tante à procura de formações inexistentes ou pouco desenvolvidas
no Brasil, como engenheiro de cervejaria, psicólogo, psicanalista,
demógrafo, ou de especializações e de doutorados. Vários tipos
de bolsas, do supracitado acordo cultural, do Ministério Belga da
Cooperação, ou das próprias universidades facilitaram sua vinda.
Paralelamente, escolas de artes plásticas, cinema ou dança e
conservatórios de música atraíram mais jovens de vocação artís-
tica. Clubes de futebol belgas começaram a contratar jogadores
brasileiros, ao passo que mestres capoeiristas faziam facilmente
adeptos na juventude belga. Esta apreciou cada vez mais as ban-
das de música brasileira ativas no país.
Empresas brasileiras se instalaram na Bélgica ou enviaram es-
tagiários, enquanto a representação diplomática se expandiu na
União Europeia e na Otan. Os casamentos mistos trouxeram mais
João Turin esculpindo “Exílio”.
brasileiras à Bélgica, inclusive princesas da família imperial. Com
a crise econômica milhares de brasileiros buscaram trabalho na
dência. Outros levaram na volta ao Brasil uma esposa belga. Uma Bélgica. Muitos não conseguiram carteira de trabalho, arriscan-
destas relatou, em carta aos parentes belgas, a vida na fazenda em do-se como clandestinos à deportação. Para assisti-los, surgiu em
Minas Gerais com os escravos reunidos à noite para a reza e benção. 2006 a associação Abraço.
Depois da Primeira Guerra Mundial estudantes brasileiros ins- Assim, formou-se uma verdadeira colônia brasileira com pon-
creveram-se de novo nas universidades belgas, se bem que o Brasil tos de encontro, bares e restaurantes, associações culturais, gale-
criava entrementes suas próprias instituições. A Bélgica voltou a rias de arte, exposições, publicações, igrejas, carnaval e festas ju-
fazer parte da rota de literatos, artistas, diplomatas e empresários ninas, mais concentrada em Bruxelas, mas também presente em
brasileiros no seu périplo europeu. Em viagem de 1922 junto com Antuérpia, Liège, Gand e Lovaina. Estimativas calcularam o total
Vicente do Rêgo Monteiro, Gilberto Freyre conheceu uma belga de brasileiros na Bélgica em torno de 40.000 por volta de 2010,
‘a mais lírica das namoradas... demônio de morena de olhos verdes um número bastante alto em comparação com a emigração brasi-
tão criança e ao mesmo tempo já tão mulher’, que lhe escrevia car- leira nos outros países europeus. O tema merece certamente uma
tas com um pouco de seu cabelo (Tempo morto e outros tempos). pesquisa mais ampla e sistemática. Em 2011 surgiu o projeto Me
Outros vieram para visitar as exposições de Antuérpia em 1930 Brasil dentro da Oca, sob o impulso de Regina Barbosa, para re-
e de Bruxelas em 1935, como o pintor Décio Villares, do qual o gistrar esta presença brasileira em interação com belgas ou outros
Museu de Belas Artes de Antuérpia conserva uma tela. Foi no lusófonos. Não falta matéria interessante como Pixote em Bruges, a
ateliê do escultor Oscar Jespers que Maria Martins aprendeu, por revista Para ti Para todos em Antuérpia desde 1995, a galeria Zacco
volta de 1938, a trabalhar em bronze. A segunda invasão alemã em Canchi em Aalst, La Maison du Brésil em Bruxelas, Alegria em Lo-
maio de 1940 provocou um novo êxodo dos brasileiros. vaina ou os numerosos grupos de capoeira, como o Porto de Minas.

42
presenças brasileiras na bélgica

Flores brasileiras no Instituto das Ursulinas


em Onze-Lieve-Vrouw-Waver
Mario Baeck

F undado em 1841, o Instituto das Ursulinas em Onze-Lieve-


-Vrouw-Waver se impôs em poucos decênios como uma ins-
tituição de fama internacional (Baeck, 2011). No final do século
construção metálica. É uma realização artística única de prestígio
mundial, ainda mais como uma rara e grandiosa construção art
nouveau em zona rural e num contexto católico (Baeck, 1993).
XIX oferecia fácil acesso pelo porto de Antuérpia e pela estrada de Pela cúpula de vidro entram raios dourados que criam uma atmos-
ferro até a cidade vizinha de Malines. fera primaveril mesmo em dias escuros. O vitral multicolorido da
Suas belas construções em diversos estilos históricos forma- cúpula desenha a Manhã, o Dia e a Noite. A flora se faz também
vam um amálgama esplêndido bem ao gosto da alta burguesia. proeminente na decoração. Além disso, a natureza ao vivo tam-
Prestavam muita importância à higiene e às técnicas modernas bém está presente no jardim de inverno com palmeiras exóticas,
como calefação central, água corrente e iluminação elétrica. A samambaias, plantas e flores. Nisto as irmãs aderiram a um tipo de
propriedade rural de dez hectares dispunha de um parque de natureza civilizada e estilizada, cultivada pelo homem, inerente
passeio de estilo inglês, de um bosque com vistosas estruturas de aos seus conceitos pedagógicos.
cimento rústico, entre as quais uma sala de piquenique e uma O caráter único do complexo se encontra ainda nos interiores
gruta de Lourdes, e vastos campos lavrados a partir de sua pró- primorosamente ecléticos e bem conservados. A sua decoração
pria granja modelo. carrega um significado fortemente simbólico como também serve
A sua maior atração consistia na sua oferta de um ensino de às finalidades estéticas e sempre didáticas. Assim, o conjunto dos
qualidade e progressista, não somente nas matérias de humanida-
des e nas formações de professoras, como também de economia
doméstica e de ensino agrícola e hortícola. Graças às suas múlti-
plas inovações pedagógicas, inspiradas num feminismo moderado,
tinha o instituto excelente reputação junto à burguesia afortuna-
da e de cunho cosmopolita, bem além das fronteiras da Bélgica.
Por volta de 1900 quase uma quarta parte das alunas vinha do
exterior. As irmãs recrutavam não somente nos países vizinhos,
como também na Rússia, Áustria-Hungria, Itália, Espanha e até
na África, Austrália, nos Estados Unidos e na América Latina, com
numerosas moças do Panamá e da Colômbia e ainda da Nicará-
gua, Argentina e do Brasil.
Por causa de diversas circunstâncias, como as destruições du-
rante a Primeira Guerra Mundial, as listas das matrículas conserva-
das são fragmentárias. Nos palmarés (listas) dos anos de 1920-1930
figuram como alunas brasileiras Flora e Gina d’Oliveira Castro,
Juliette e Lucy Braz Pereira Gomes e Jandyra Gomes de Men-
donça, todas de Brazópolis, cidade do Estado de Minas Gerais.
Foi provavelmente este o pensionato belga onde o jornalista José
Eduardo de Macedo Soares, exilado na França por volta de 1923,
colocou suas duas filhas. Uma delas, Maria Carlota [ou Lota] de
Macedo Soares parece ter inventado uma marchinha de samba
quando, numa festa, todas as moças deviam cantar o hino nacio-
nal (Oliveira). Ela se tornou mais tarde, no começo dos anos de
1960, a paisagista executiva do parque no Aterro do Flamengo.
Sua sensibilidade particular aos encantos da natureza talvez tenha
se despertado e crescido no ambiente floral do pensionato.
Para oferecer às centenas de internas estrangeiras e a seus pa-
rentes de visita uma condigna sala de recepção e de encontro, as
Ursulinas enriqueceram o pensionato em 1900 com um magní-
fico jardim de inverno de estilo art nouveau, com vitrais numa Vista do interior da estufa art nouveau do Instituto das Ursulinas.

43
parte 1 – travessias e migrações

Instituto das Religiosas Ursulinas em Wavre Notre-Dame, fundado em 1841.

edifícios vale sem dúvida como um dos exemplos mais marcantes Mario Baeck é licenciado em Filologia Germânica pela Universidade
do pensionato belga do período 1840-1960 e pode ter inspirado de Gand, prepara um doutorado em História da Arte, publicou sobre
nesta procura de classe os seus congêneres estabelecidos por con- literatura flamenga e neerlandesa, história da arte, conservação do
gregações belgas no Brasil, como o Des Oiseaux em São Paulo ou patrimônio e particularmente sobre o Jardim de Inverno do Instituto
as Damas em Recife. das Ursulinas, do qual é secretário.

Os estudantes brasileiros na Universidade de Liège (1870-1914)


C h r i s t i n e Fe l l i n

A chegada de estudantes brasileiros na Universidade de Liège


ocorreu mais tarde do que nas outras universidades belgas
com os primeiros quatro inscritos em 1863-1864 (Fellin; Stols,
dificuldades políticas do fim do Império e dos primeiros passos
da República, mas também com a crise do café e a situação fi-
nanceira instável do País.
1875). Esse número estagnou neste patamar por muito tempo. Quando a situação interna do Brasil melhorou e a industriali-
Aliás, ao passo que os estudantes dos outros países da América zação do País deslanchou de verdade nos anos de 1900, o número
Latina se tornaram cada vez mais numerosos, se produziu des- de estudantes brasileiros aumentou novamente. Neste momento
de 1887 em todas as universidades belgas uma diminuição ní- a tendência se inverteu: não eram mais a Universidade Livre de
tida das inscrições brasileiras. Em comparação com os 15 anos Bruxelas e a Universidade de Gand as mais procuradas, mas a
anteriores, esta forte queda se relacionava não somente com as Universidade de Liège, e principalmente seu Instituto Montefiore.

44
presenças brasileiras na bélgica

Alunos trabalhando no Instituto Montefiore. O Instituto Montefiore da Universidade de Liège.

Este predomínio de Liège durou até a Primeira Guerra Mun- O que entretanto diferenciou a Universidade de Liège das
dial e pelo menos 132 brasileiros frequentaram os bancos da Uni- outras instituições do país foi seu ‘Institut Montefiore’ (Legros e
versidade de Liège, ou seja três vezes mais do que o segundo país Pirotte; Tomsin). Fundado em outubro de 1883 por Montefio-
latino-americano, a Argentina, com 39 inscritos entre 1870 e 1914. re-Levi, senador de Liège, foi a primeira escola eletrotécnica de
Entre estes 132 estudantes brasileiros, originários essencialmen- nível universitário no mundo a coordenar todas as aplicações da
te das províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo, 109 optaram eletricidade num único programa e a formar engenheiros eletricis-
por estudos técnicos, 66 pelas Escolas especiais ou, em seguida, tas numa sequência de estudos teóricos e práticos. Por situar-se na
a Faculdade Técnica em 1893, e 43 para o Instituto Montefiore, ponta do desenvolvimento da eletrotécnica, o Instituto Montefiore
sete pelos estudos de Medicina, quatro pelas Ciências Políticas ganhou rapidamente reputação nos quatro cantos do mundo e os
e Administrativas, dois pela Licenciatura Comercial, dois pelas estudantes estrangeiros se apresentaram cada ano mais numerosos.
­Ciências Notariais, um por Química e um por Direito. Somente Assim, apenas dois anos depois de sua abertura, um estudan-
24 obtiveram diploma. te brasileiro, Colin Freitas Broad, se inscreveu e mais 42 outros
Como explicar o interesse marcante dos brasileiros para os es- brasileiros o seguiram até a Primeira Guerra Mundial. Entre estes
tudos universitários em Liège? Já antes a cidade gozava no Brasil alunos brasileiros da Universidade de Liège, e particularmente
de boa reputação por causa de sua metalurgia e particularmente do Instituto Montefiore, alguns fizeram uma bela carreira. Foi o
de suas armas. Comissões militares brasileiras vinham visitar os caso de Edgard de Souza (nascido em 12.3.1876, Campinas), en-
ateliês e faziam boas encomendas. Em agosto de 1871 o próprio viado com 16 anos à Bélgica para seguir uma formação técnica,
Imperador Pedro II visitou Seraing com o industrial Georges Mon- diplomado como engenheiro de Minas com distinção em 1898
tefiore-Levi, almoçou na casa do sucessor de Cockerill, Sadoine, e como engenheiro Eletricista com satisfação no ano seguinte.
e recebeu revólveres de presente (Condessa do Barral, 736-379). De volta ao Brasil, tornou-se engenheiro Eletricista-chefe e de-
Mais interessado nos métodos de ensino, se informou sobre a Uni- pois, a partir de 1914, vice-presidente da The São Paulo Tramway,
versidade de Liège e entrou em contato com os professores Eu- Light and Power, e ainda diretor da Companhia Telefônica do
gène Catalan e Edouard Van Beneden, respectivamente titulares Estado de São Paulo. Mas, Edgard de Souza é sobretudo conhe-
de Matemáticas e de Biologia e Zoologia. cido como o fundador e primeiro professor da seção de Eletro-
No ano seguinte Van Beneden liderou uma expedição cientí- técnica na Escola Politécnica de São Paulo. Seu irmão, Durval
fica ao Rio de Janeiro, onde descobriu um tipo de boto, e visitou de Souza, também estudou Engenharia em Liège, mas levou
Pedro II. Numa outra passagem por Liège, em 1876 ou 1877, o Im- quase dez anos para obter, em 1902, seu diploma de engenheiro
perador se reencontrou com o zoólogo. Foi por sua apresentação Eletricista pelo Instituto Montefiore e exerceu sua profissão na
que o Imperador se tornou em 22 de dezembro de 1885 membro cidade de São Paulo.
correspondente da Société des Sciences de Liège. Vale seguir outras carreiras: Herculano de Almeida Correa,

45
parte 1 – travessias e migrações

formado engenheiro de Artes e Manufaturas em 1897 e engenhei- na São Paulo Railway Company e diretor da Companhia Telefô-
ro Eletricista em 1899, diretor da Companhia Melhoramentos de nica, da Companhia Melhoramentos e da Empresa Luz e Força
São Paulo; Colin Freitas Broad, engenheiro Eletricista em 1890, de Jundiahy. Alguns estudantes do Instituto Montefiore receberam
atuou na Compagnie Internationale d’Electricité em Liège (1891), bolsas da Marinha brasileira, sem dúvida com relação à sua com-
em Santos (1892-1893), na Companhia Mogyana de Estradas de pra de navios de guerra mais modernos.
Ferro (1894-1895), na Comissão de Estudos da Estrada de Ferro Foi portanto nas companhias de estradas de ferro e de eletrici-
Catalão-Cuiabá (1896-1900), em São Paulo (1901-1902) e, por dade, no serviço público e no ensino superior que quase todos se
fim, no London and Brazilian Bank no Rio de Janeiro (1905- beneficiaram com a formação recebida no Instituto Montefiore.
1908); Carlos de Figueiredo, engenheiro Eletricista em 1900, foi Este contribuiu de maneira modesta, mas evidente, ao desenvol-
professor no Rio de Janeiro; J. N. de Lemos Basto, engenheiro vimento e à modernização do Brasil.
Eletricista em 1890, atuou como diretor dos Correios e Telégrafos
do Brasil no Rio de Janeiro; Edouardo de Aguiar d’Andrade, enge- Christine Fellin obteve a licenciatura em História na Universidade
nheiro Eletricista em 1894, serviu, depois de três anos na General de Liège com uma monografia sobre “Os estudantes latinoamerica-
Electric Company em Nova York (1895-1898), como engenheiro nos na Universidade de Liège antes da Primeira Guerra Mundial”.

Como fui parar na Bélgica e me tornei cineasta


Susana Rossberg

E m 1964, quando ocorreu no Brasil um golpe de Estado e o


estabelecimento da ditadura militar que duraria 21 anos, eu
estava nos Estados Unidos, pois tinha me tornado órfã aos 15 anos
rio, belga, diplomado em uma boa escola de teatro em Bruxelas,
o Insas (Institut National Supérieur des Arts du Spectacle). Foi
assim que resolvemos ir para Bruxelas. Chegamos na véspera do
e fora enviada para viver com minha tia americana. Mas não gos- vestibular e, não sei por que milagre, fomos ambos aceitos. O nosso
tava dos Estados Unidos e, em 1965, antes de completar 20 anos, francês, sobretudo o meu, não era extraordinário.
voltei para o Brasil. Comecei a cursar Psicologia na Universidade Após um ano no Insas, Luis Otavio, hoje falecido, voltou
de São Paulo (USP) e iniciei estudos de Crítica Teatral na Escola para Belém do Pará, de onde era oriundo, e onde se tornou um
de Arte Dramática (EAD), precursora da Escola de Comunicações profissional de teatro conhecido. Eu, tendo descoberto a edição de
e Artes (ECA) da USP. Passei a viver com um colega da Escola de cinema, pedi transferência para a seção de continuidade e edição
Arte Dramática. Um dia, em 1967, participamos de uma passeata de filmes do Insas.
contra a ditadura, e a nossa foto, na primeira fila da passeata, foi Naquela época, o Consulado do Brasil ficava em Antuérpia. Eu
publicada no jornal O Estado de S. Paulo. viajava para lá unicamente para renovar o passaporte e não coloca-
Sabíamos que as fotos feitas durante passeatas eram utilizadas va jamais os pés na embaixada. Os dois funcionários na Antuérpia,
pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) para iden- um deles Silvio Moreira, que continua na embaixada, eram sim-
tificar as pessoas que se opunham à ditadura. Compreendemos, páticos, mas, como todos os brasileiros na Bélgica, eu morria de
assim, que deveríamos sair do País. medo de aparecer por lá. Aliás, conhecia pouquíssimos brasileiros
Meu companheiro, Luis Otavio Barata, então cenógrafo de aqui. Era muito paranoica, morria de medo dos delatores da dita-
teatro, havia encontrado, na Bienal de São Paulo, um cenógrafo dura. Por isso, não voltei ao Brasil até o fim da ditadura e a Anistia.
tcheco famoso, Josef Svoboda, e lhe propusera aperfeiçoar seus Bruxelas mudou muito desde 1967. Na época, parecia um vila-
estudos com ele. Svoboda respondeu: ‘Venha’, de maneira que rejo de província. A mentalidade era bastante racista. Até eu apren-
o lugar lógico para irmos, quando saíssemos do Brasil, era a en- der o francês corretamente, era um pouco maltratada ou ignorada
tão Tchecoslováquia. Esperávamos sermos acolhidos de braços nas lojas. Tínhamos problemas para alugar um apartamento – em
abertos. No entanto, quando chegamos, nos sinalizaram que de- todo lugar estava anotado ‘étrangers s’abstenir’, isto é, ‘estrangeiros,
veríamos aprender o tcheco durante dois anos e que as escolas de abstenham-se’. O fato de Bruxelas tornar-se a capital da Europa,
tcheco estavam lotadas, devido ao esforço de guerra, para ajudar assim como a chegada de milhares de estrangeiros, modificou a
o Vietnã do Norte. As escolas estavam cheias de vietnamitas e nos mentalidade e aumentou a diversidade cultural da cidade.
aconselharam a fazer o pedido de admissão em março do ano se- Tive muita sorte na vida profissional. Minha mãe me falava
guinte, isto é, 1968. sempre da importância de um trabalho bem feito. Dediquei-me
Nos lembramos, então, de uma conferência que Heleny Gua- ao trabalho o quanto pude, chegando a negligenciar um pouco
riba tinha dado na EAD. Ela tinha falado de seu estágio com o a minha vida privada. Graças ao conhecimento da língua alemã
diretor francês de teatro Roger Planchon e de um outro estagiá- (meus pais tinham emigrado da Alemanha para o Brasil), aprendi

46
presenças brasileiras na bélgica

o flamengo com certa facilidade. Atuei, em francês e flamengo, (não Dama) da Ordem de Leopoldo II, por minha contribuição
como continuista, editora, assistente de direção e diretora de fil- ao cinema belga. No entanto, o trabalho pelo qual me sinto mais
mes. Pude trabalhar com diretores belgas conhecidos, tais como realizada, que me toca mais profundamente, é o meu documen-
Benoit Lamy, Harry Kümel, Marion Hänsel, Stijn Coninx, Jaco tário Brasileiros como eu.
Van Dormael, Hugo Claus. Pratiquei meu ofício também em
outros países europeus e fui responsável pela continuidade de Susana Rossberg foi, igualmente, professora em duas escolas de cine-
dois filmes nos Estados Unidos. ma belgas, tendo, assim, a oportunidade e o prazer de contribuir ao
Tive a honra de receber a distinção honorífica de Cavalheiro desenvolvimento de novas gerações de cineastas.

Algumas figuras brasileiras em Lovaina durante os anos 70


Pa u l D u l i e u

“Il belge”, dizia Miranda quando o céu se mostrava chuvoso Os jovens que haviam deixado o Brasil dos generais temiam
ser perseguidos. Eram muito desconfiados, a tal ponto que alguns

N os anos 70, na Universidade de Lovaina, aconteceu-me en-


contrar inúmeros brasileiros. Era o tempo da ditadura mi-
litar, dissidentes de várias correntes chegavam à Bélgica. Em
os julgavam paranoicos. Um tipo bigodudo poderia ser um espião,
e postiço seu bigode! Às vezes o rumor se espalhava. Pois não se
falava em sequestrar Fleury, um policial torturador, que diziam
Bruxelas, Yolanda Bettencourt, que trabalhava na Entraide et ir à França para colher informações? Mas esses receios e projetos
Fraternité, era a mãe universal dos exilados. O brasileiro que fantasiosos logo se dissipavam ao ritmo do carnaval no Stuc, Van
desembarcava, se nada conhecia do país, tinha pelo menos no Evenstraat; os passos endiabrados do samba espalhavam no inver-
fundo do bolso uma papeleta com o endereço de Yolanda, e no flamengo o calor vibrante dos Trópicos. Mas, deve-se confessar,
procurava, no emaranhado urbano de Anderlecht, a Rua Doc- experimentava-se às vezes um fundo de amargura, uma espécie
teur Huet. Bate à porta. Longas explicações são desnecessárias. de alegria melancólica. Seria o que nossos amigos do Brasil cha-
Providencia-se um pouso e alguns expedientes para sobreviver. mam de saudade?
Dom Hélder Câmara que declarava: ‘Quando dou pão a um po- Os estudantes que não seguiam o rastro de Marx deixavam-se
bre, dizem que sou um santo. Quando pergunto por que ele é apanhar por Freud, ou por Marcuse ou Lacan. Os brasileiros de-
pobre, dizem que sou comunista’, hospedou-se mais de uma vez gustavam as teorias psicanalíticas. Walter Evangelista, estudante
em sua casa. O marido de Yolanda, Luc Thomé, pito no canto de Filosofia, alardeava o evangelho segundo Sigmund; o tipo que
da boca à moda de Jacques Prévert, mostrava boa acolhida – às não se deitava no divã era lastimável; recusava a aventura interior;
vezes resmungando um pouco – a todos os que, como se diz no tinha medo de embarcar no conhecimento do seu Eu profundo.
Brasil, ‘não tinham onde cair morto’. Antonio Marques (chamavam-no Antonio das Mortes por cau-
Em Lovaina, havia um cabaret de estudantes com a placa sa do filme de Glauber Rocha sobre os cangaceiros) ficou dez anos
l’Œil Nu (Olho nu). À noite, ouvia-se música brasileira. O guitar- na Bélgica; durante essa longa permanência – e era preciso driblar
rista Marcelo de Mello, que fundou o Quinteto Violado, tocava incríveis dificuldades – apaixonou-se por antiguidades e obras de
ali música erudita e popular. Revejo Geraldo Vandré arranhando arte. Depois de escrever uma tese sobre a literatura de cordel, tor-
sua guitarra. Cantava “somos todos iguais braços dados ou não”, nou-se no Brasil especialista reconhecido em cultura popular e
uma canção que não havia tido a sorte de agradar aos generais, hoje possui em seu Solar das Artes, em Natal, vasta coleção de te-
e o pobre trovador, devido a certas estrofes impertinentes, vira-se las, esculturas, marionetes, comprovando a brilhante imaginação
forçado a exilar-se num país chuvoso. dos artistas brasileiros.
A época era efervescente. O grande caldeirão da universidade Alto, magro, óculos de intelectual, sorriso irônico no canto da
fumegava ainda do fogo de 68. Contra o ministro Vrancks, que boca. Osmar Ramos Filho era inigualável na interpretação dos
queria, por meio de medidas julgadas iníquas, limitar o acesso de sonhos da noite. Parecia ter a chave de todos os enigmas. Atraído
estrangeiros à universidade, os estudantes fizeram greve de fome pelo esoterismo, tornou-se, por paixão, um conhecedor único da
em dezembro de 1971. No Œil Nu, um ateliê de serigrafia im- obra de Balzac. No Brasil, pretendeu ter descoberto um romance
primia cartazes onde se lia: Non au décret; Les frontières on s’en psicografado: Waldo Vieira, escritor brasileiro, teria sido tomado
fout; Nous sommes tous des étrangers. Tais cartazes eram um ape- pelo espírito do grande romancista francês para escrever sob seu
lo à manifestação. Havia uma fraternidade na recusa à injustiça ditado Cristo espera por ti. A fim de provar esse fenômeno espírita,
internacional, e era preciso lutar contra a palmatória dos regimes Osmar conduziu com persistência infatigável pesquisas de estilísti-
militares em que se apoiava o capitalismo. ca e de lexicografia comparando o romance de Waldo Vieira com

47
parte 1 – travessias e migrações

Ilustração de Géraldine Servais denominada “Aparecida Ventre Livre”.

Mas esse velho enclave português acabava de ser recuperado pe-


la Índia. Aceitar um passaporte que Portugal lhe propunha? Seria
correr o risco de se ver envolvido na guerra colonial de Moçam-
bique. Apegado à sua língua, José Miranda escolheu partir para
ensinar no Brasil. Foi, pois, passando pela universidade de Lovai-
na que um goense encontrou brasileiros que o determinaram a
Cartaz de 1971 conclamando a uma manifestação em Lovaina com os dizeres atravessar o Atlântico.
“Nós somos todos estrangeiros”.
Esses exemplos que pinço na paisagem movimentada dos anos
70 falam do papel prioritário que a Bélgica desempenhou no des-
os escritos de Balzac. Consequentemente a esse trabalho minucio- tino de certos jovens em relação ao Brasil. A partir de 1984 os
so, Osmar redigiu uma obra notável que tem por título O avesso intelectuais e os artistas exilados retornaram ao seu país e hoje
de um Balzac contemporâneo. são substituídos por emigrados sem formação particular, vindos
Vindo de Ferreiras, uma cidadezinha que por gracejo ele cha- principalmente de Goiás, e que esperam melhorar sua situação
ma de centro do mundo, José Maria Tavares de Andrade reunia econômica instalando-se em Bruxelas.
uma quantidade de dados sobre a religiosidade popular do Nor-
deste e sobre a farmacopeia tradicional. Após completar sua for- Segurando a mão de Aparecida
mação de sociólogo junto com Bastide e Edgar Morin em Paris,
tornou-se um brilhante especialista do fenômeno religioso e do Depois de ter-me casado com uma carioca, mergulhei na
que chama de ‘etnomedicina’. história desse país gigantesco, tão diferente da pequena Bélgi-
Rachel da Costa Cunha permaneceu na Bélgica após ter re- ca pelo tamanho e pelo céu. Devo minha primeira leitura em
cebido sua licenciatura em Filosofia. Participara, antes de seus língua portuguesa à minha sogra, que ofereceu-me o livro fun-
estudos, do Rio Ballet Guanabara e apresentou-se no Tea­tro Mu- dador da identidade brasileira, Casa Grande e Senzala, de Gil-
nicipal do Rio. Após seus estudos fundou, em Wavre, o Centro berto Freyre.
de Balé Mimésis, que acolheu por mais de 30 anos centenas de Em 1999, a Comunidade francesa da Bélgica propunha para
alunos. seu concurso anual de novelas o tema do nascimento. Voltou-me
José Miranda falava português, mas não vinha nem do Brasil à memória que o Brasil procedeu por etapas para chegar à abo-
nem de Portugal. Era originário de Goa. Em Lovaina, estudava lição total da escravidão em 1888. Uma dessas etapas foi a Lei
Sociologia. Que faria no final de seus estudos? Retornar a Goa? do Ventre Livre. Lembrei-me da imagem de uma jovem mulher

48
presenças brasileiras na bélgica

negra. Chama-se Aparecida. Fiz dela a heroína de uma história deçà. Resulta um livro que tem por título Carta de Copacabana
que se passa em um engenho. Aparecida é uma escrava, mas pela a Christophe que ficou em Courtelande; Courtelande sendo, na
Lei de 1871 o filho que espera já é livre. Jamais conhecerá, como ocorrência, meu país de origem, a Bélgica. Essa carta sublinha
seus pais, o trabalho servil. No tenso contexto social e político da muitas vezes de modo um tanto irônico o que nos une e nos se-
época, Aparecida Ventre Livre ilustra o nascimento em um plano para, em toda fraternidade.
duplo: nascimento de um filho chamado Solto, mas esse Solto re- Quando o céu se mostra baixo e qu’il belge, como dizia Mi-
presenta, sobretudo, um nascimento para a liberdade. Aparecida randa, lembro-me de Aparecida, pego a mão dessa mãe-coragem
Ventre Livre recebeu o primeiro prêmio da novela e foi publicado que soube, em meio ao pior dos abandonos, dar vida à Liberdade.
em La Libre Belgique antes de ser traduzido para o português em (Tradução Virginia Gomes Ribeiro)
um jornal de Curitiba.
Para um belga que atravessa seu país de ponta a ponta em al- Paul G. Dulieu é diplomado em Sociologia e Linguística, trabalhou
gumas horas, é presunçoso falar do imenso Brasil. Colocando-me para a Universidade Católica de Lovaina, para o Instituto de Artes
a pergunta: ‘Como se pode ser brasileiro?’, tentei respondê-la por de Difusão e para o Fundo das Nações Unidas para a População an-
meio de um subterfúgio narrativo. Fico em Copacabana e faço tes de exercer atividade de jornalista. Tem sólidos laços com o Brasil
uma espécie de caderno de rascunhos. Em meu carnê de notas, e escreveu canções, peças de teatro e novelas, estas últimas editadas
anoto as coisas vistas, evocações históricas, faço comparações en- por revistas belgas e brasileiras. Sua novela Aparecida Ventre Livre
tre essa terra nova e o que Jean de Léry chamava les pays d’en recebeu o Grand Prix de la Libre Belgique em 1999.

A inserção dos trabalhadores brasileiros


migrantes no mercado de trabalho belga
Martin Rosenfeld e Beatriz Camargo

O Brasil, tradicionalmente um país de emigração, combina


atualmente essa tendência migratória com uma imigração
significativa, formando fluxos migratórios complexos (Padilla &
Padilla (2007) aponta que a chegada do século XXI trouxe uma
massificação e uma ‘proletarização’ das migrações brasileiras ru-
mo à Europa. Isto é, essa terceira vaga migratória é caracterizada
Póvoa Neto, 2012). Este artigo descreve e discute as características por pessoas pertencentes à classe média baixa, cuja inserção no
do último momento migratório brasileiro. Está organizado para mercado de trabalho se dá principalmente em setores menos qua-
enfocar as migrações brasileiras e as oportunidades no mercado lificados e, consequentemente, menos valorizados. Os principais
de trabalho na Bélgica. países receptores dessa migração são Estados Unidos e Inglaterra.
De fato, o Brasil foi uma terra de destino para os europeus até Os atentados de 11 de Setembro nos Estados Unidos e ao metrô de
o início da ditadura civil-militar, nos anos 1960. Todavia, a partir Londres, e a consequente restrição do controle migratório, como
de 1964, intelectuais e sindicalistas expulsos pelo regime ditato- revelam Padilla e Peixoto (2007), contribuíram para o desvio dessas
rial foram em grande parte à Europa. Eram, em geral, pessoas migrações principalmente para países como a Bélgica.
altamente qualificadas, que se inseriram facilmente no mercado
de trabalho europeu (Padilla et Peixoto, 2007). Uma parte dessa Migrações brasileiras e oportunidades de trabalho
leva migrante retornou ao Brasil com a Lei de Anistia em 1979,
trazendo consigo uma imagem positiva dos países de acolhimento, O fluxo expressivo de migrantes de classe média baixa é favo-
inclusive da Bélgica, como nações receptivas e com um mercado recido na Europa por uma estrutura de oportunidade específica:
de trabalho atrativo. a possibilidade de entrar no espaço Schengen como turista, sem
No final dos anos 1970, teve início uma imigração econô- necessidade de pedido de visto de entrada no país. O Acordo de
mica de profissionais altamente qualificados. Esse movimento Schengen é uma convenção entre países europeus (União Eu-
cresceu no início dos anos 1980 com a crise brasileira motivada, ropeia exceto Irlanda e Reino Unido, mais Islândia, Noruega e
principalmente, pela dívida externa e a estagnação do projeto de Suíça) sobre a circulação de pessoas entre os países signatários e
desenvolvimento industrial, que havia sido, desde os anos 1930, uma fronteira comum. Brasileiros entram sem visto, mas devem
a base do crescimento econômico brasileiro (Pochmann, 2009). responder a uma série de condições, como provar a estadia e re-
A balança migratória se invertia, progressivamente, e o Brasil se cursos suficientes para o período da viagem.
tornava, nessa segunda vaga migratória, um país de imigração A autorização funciona como porta de entrada, mas não dá
(Assis, 1999). acesso ao mercado de trabalho. Há, no entanto, uma relevante

49
parte 1 – travessias e migrações

demanda por mão de obra de baixo custo para os chamados 3-D ou legal. Esse setor pouco regulado da economia nacional atrai,
jobs (Dirty, Demanding and Dangerous) (Castles, 2002). Assim, assim, principalmente trabalhadores migrantes, como brasileiros
as oportunidades de trabalho no mercado informal, ou ‘negro’, que entraram como turistas e se encontram em situação irregular
são muitas, sobretudo em setores pouco regulados pelo controle de estadia, sem acesso legal ao mercado de trabalho. Eles entram
governamental: agricultura, restauração, construção e limpeza. no setor da construção – com ou sem experiência – e principal-
Nessa direção, Rosenfeld et al. (2009) salientam que a migra- mente no subsetor das finalizações: pintura, forro e, sobretudo,
ção brasileira tem uma dimensão transnacional por sua mobili- como colocadores de placas de gesso (gyproc) para o forro. A es-
dade entre países europeus e, muitas vezes, também entre Brasil pecialização no subsetor de forro com placas de gyproc apresenta
e Europa. Para esses pesquisadores, essa mobilidade geográfica duas vantagens. Em primeiro lugar, é uma tarefa bem definida,
está a serviço de um projeto migratório que, na maioria dos casos, que pode facilmente ser terceirizada pela empresa responsável
é de uma curta estadia na Europa, o suficiente para economizar pela obra. Em segundo lugar, é uma atividade indoor, isto é, rea-
dinheiro e retornar ao Brasil. O percurso migratório na Europa lizada no interior da obra e por isso menos visível – mais segura
se revela, assim, um jogo estratégico entre oportunidades econô- –, ideal para um trabalhador em situação irregular.
micas e migratórias. No setor de construção, há uma complexa rede de relações
Num continuum migratório, de um lado extremo está o Reino que se estabelece entre grandes empresas e pequenas ou micro
Unido, cuja diferença salarial com o Brasil é das mais relevantes, empresas terceirizadas. Com frequência, há um mestre de obras
mas cujas leis migratórias são extremamente severas. No outro português, um ‘patrão’ brasileiro, que não é senão o encarregado
extremo desse continuum está Portugal, que oferece uma série de pela obtenção e controle da mão de obra e, enfim, o trabalha-
vantagens em termos migratórios, principalmente a facilidade da dor brasileiro. Nessas articulações, não é raro que o intermediário
língua e da organização de frequentes campanhas de regulariza- guarde a metade do salário, e o trabalhador que o realizou recebe,
ção, mas com um mercado de trabalho em crise. Entre os extre- apenas, entre dez a cinco euros a hora trabalhada, dependendo se
mos, a Bélgica parece ocupar uma posição intermediária, por sua o trabalho é especializado ou não.
proximidade de Paris – porta de entrada privilegiada dos turistas
brasileiros – e a relativa facilidade de integração no mercado de O setor do care : limpeza e cuidado
trabalho informal local.
O chamado global care chain, ou redes globais de cuidado
Nichos étnicos e mercado de trabalho belga (Hochschild, 2000), contribuem para o aumento da demanda por
serviços no setor do care (cuidado). Na Bélgica, a demanda se
A repartição de trabalhadores brasileiros entre setores pouco traduz em oportunidades de trabalho na limpeza e no cuidado
regulados da economia belga é marcada: 72% dos homens estão de crianças e de pessoas idosas em domicílio. É comum que as
empregados no setor da construção, enquanto 68% das mulheres trabalhadoras brasileiras se insiram nesse setor, começando por
trabalham no setor da limpeza (OIM, 2009). A grande concen- um trabalho de serviço doméstico que exige que a trabalhadora
tração de brasileiros nesses dois setores revela a existência de ni- durma no emprego, o que lhes permite economizar uma parte do
chos étnicos (Waldinger, 1994) que estruturam esses empregos. salário, acelerar o aprendizado da língua e minimizar os riscos de
Embora somente 15% dos brasileiros trabalhassem nesses setores fiscalização nas idas e vindas de/para o trabalho. No entanto, a si-
antes de sair do Brasil, a diferença salarial é um importante ponto tuação exige forte implicação emocional, pela proximidade com
de decisão. Isto é, apesar do desnível entre a profissão exercida no o empregador, o isolamento e a falta de controle sobre o tempo
Brasil e a atividade profissional na Europa, metade dos brasileiros trabalhado, uma vez que a linha entre o trabalho e o repouso é
empregados nesses setores na Bélgica ganhavam menos de 300 por vezes mal definida.
euros por mês no Brasil (OIM, 2009). Embora essa modalidade de trabalho seja preferida por algu-
A Bélgica oferece, assim, numa lógica de divisão de gênero mas brasileiras recém-chegadas, a maioria procura uma posição
do mercado de trabalho, um nicho de emprego para as mulheres como trabalhadora doméstica em uma família sem exigência de
brasileiras, no setor da limpeza, e, para os homens brasileiros, na dormir no emprego, ou como faxineira, em que trabalham por
construção. É importante ressaltar que, antes de sua integração na hora. Essa modalidade de trabalhar por hora oferece mais ma-
União Europeia, trabalhadores portugueses, e em seguida polone- leabilidade na gestão dos horários, necessária quando crianças
ses, ocuparam, por sua vez, esses mesmos setores, movimentando acompanham o projeto migratório, mas implica, também, uma
o que Waldinger (1994) denomina ‘o jogo étnico da dança das ca- constante busca de um número suficiente de empregadores para
deiras’ entre as nacionalidades (game of the ethnic musical chairs). completar a grade horária semanal, o que pode ser um motivo
de estresse.
Os homens brasileiros na construção Além da limpeza em domicílio, outras oportunidades de tra-
balho para os brasileiros com ou sem estadia regular são ofereci-
O mercado belga da construção depende, de maneira estru- das por empresas de limpeza profissional. O setor é, todavia, bem
tural, de uma mão de obra barata, flexível e sem proteção social distinto do mencionado acima, sendo fisicamente mais pesado e

50
presenças brasileiras na bélgica

mais sujeito à fiscalização do trabalho. Essas características, soma- lhadores e trabalhadoras sejam semelhantes. Consequentemente,
das a horários de trabalho nem sempre fáceis (jornadas noturnas o projeto migratório inicial, de poupar dinheiro a curto prazo, é
e frequentemente irregulares), fazem com que ele seja ocupado, raramente concretizado no tempo previsto.
em sua maioria, por homens. Em 2010, dois terços das infrações À medida que o retorno ao Brasil é adiado, a integração à
constatadas pela fiscalização do trabalho na Bélgica nesse setor Bélgica se acentua. As vantagens sociais, em termos de acesso à
envolviam brasileiros, com 575 casos (SIRS, 2011). educação e à saúde, mesmo para migrantes em situação irregular
de estadia, contribuem para a evolução do projeto migratório no
Conclusão sentido da perenização, sobretudo se há crianças. As possibilida-
des de regularização da estadia e de inserção legal no mercado
O século XXI trouxe ao Brasil um desenvolvimento econômi- de trabalho, todavia, continuam raras, e a situação de irregulari-
co significativo que, como aponta Pochmann (2009), favoreceu dade pode gerar relevantes tensões no seio da comunidade bra-
simultaneamente as classes socioeconômicas mais pobres e mais sileira na Bélgica.
ricas da sociedade, e na qual a classe média foi a menos beneficia-
da com a mobilidade social. O foco deste texto foi, especialmente, Beatriz Camargo é doutoranda em Sociologia na Universidade
a classe média inferior, que representa a maior parte do fluxo de Livre de Bruxelas (ULB) e pesquisadora no GERME (Group of Re-
trabalhadores brasileiros vivendo hoje na Bélgica. Para essa popu- search on Ethnical Relations, Migration and Equality). Faz parte
lação, a migração para o exterior é uma forma de desbloquear a da Associação de Migrantes Brasileiros Abraço (www.abraco-asbl.
mobilidade social que eles não conseguem no Brasil, principal- be) e trabalha com temas de pesquisa sobre migração, trabalho e
mente por falta de especialização profissional. gênero; sua tese de doutorado investiga a formalização do trabalho
Na Bélgica, a migração é, com frequência, familiar e parece doméstico em Bruxelas.
se organizar de maneira complementar em cada casal, em nichos
étnicos específicos e marcados pelo gênero. Assim, as mulheres en- Martin Rosenfeld é doutor em Antropologia pela Universidade Livre
contram principalmente trabalhos regulares e seguros, que permi- de Bruxelas (ULB) e pela École des Hautes Études en Sciences Socia-
tem uma renda estável. Os homens, por sua vez, costumam traba- les-EHESS (França). Atualmente é pesquisador no GERME. Seus
lhar em setores mais expostos, mas cuja remuneração é mais alta. trabalhos estão apoiados na antropologia econômica e na sociologia
A falta de regulação do mercado de trabalho, que atinge os dois urbana e se concentram, principalmente, no fenômeno dos movimen-
setores, entretanto, faz com que as dificuldades vividas pelos traba- tos migratórios transnacionais.

A Associação Arte N’Ativa: um pouco da nossa história...


Isabel De Lannoy

P odemos dizer que a Associação Arte N’Ativa, bastante dinâmica


atualmente na promoção da arte e da cultura popular brasilei-
ras em Bruxelas, “brotou” das sementes nativas da flora brasileira
trazidas para a Bélgica por meio das bio-bijoux produzidas pelas
artesãs Flávia e Patrícia Duarte, ambas irmãs de Isabel Duarte De
Lannoy, coordenadora e presidente da Associação.
Com um histórico de militância e envolvimento com temas
sociais, ambientais e migratórios, Isabel criou em 2007 o Atelier
Arte Nativa Brasil com o objetivo de difundir na Europa o uso das
bio-bijoux fabricadas com materiais naturais, como sementes, ma-
deira, coco, conchas etc., muito populares no Brasil.
A iniciativa foi, em princípio, uma tímida ação de fomento à
prática de consumo sustentável e promoção da economia popular
praticada majoritariamente por mulheres à margem do mercado
formal de trabalho: esta era a realidade das irmãs Duarte (Flávia
e Patrícia) entre outras artesãs do Estado da Paraíba, que foram
as primeiras protagonistas envolvidas no projeto que se pretendia
solidário e transformador. Evento promovido pela associação Art N’Ativa.

51
parte 1 – travessias e migrações

Curso promovido pela associação Arte N’Ativa.

Com o passar do tempo, outras pessoas, sonhos e ideias se to, festa popular), no Club Brasil, trouxe à equipe Arte N’Ativa a
juntaram à iniciativa. Nesse período, Isabel encontra Alessandra, maturidade para se estabelecer como uma importante associação
jovem empreendedora e com aguerrida motivação artística, ingre- sem fins lucrativos (asbl) de promoção cultural na comunidade.
dientes fundamentais para o avanço das ações. As duas buscaram
conhecer melhor o mundo associativo belga e se lançaram no de- A partir disso...
safio de criar algo mais amplo e mobilizador. Com a oficialização
da associação em 2011, juntaram-se a elas outros membros que Após o sucesso da Europalia, conquistamos outro espaço lo-
trouxeram boa dose de dinamismo à equipe, como Myriam Mar- calizado no coração de Bruxelas, o Micro Marché, onde foi pos-
ques, animadora cultural, e Cleverson de Oliveira, artista plástico. sível manter o projeto de difusão da arte e da cultura brasileiras,
Nesse mesmo ano a associação foi selecionada para participar com a realização de concertos, mostras, saraus poéticos, vernis-
do festival Europalia – tradicional bienal de artes, que acontece sages, exposições, workshops, ateliers de reciclagem etc.
há 30 anos em Bruxelas e outros países da Europa, cuja edição Além dos eventos, a equipe investiu ainda no capital social,
2011-12 teve o Brasil como tema. Coube à Associação a respon- realizando o primeiro encontro informativo com ênfase na ade-
sabilidade de propor, organizar e gerir os eventos culturais do são de novos membros a fim de fortalecer o trabalho associativo
Club Brasil, café musical e ponto de encontro do evento. e a inclusão de novas ideias e projetos. A iniciativa foi de grande
A realização de cerca de 50 manifestações artísticas com ar- sucesso e resultou na adesão de vários atores sociais munidos de
tistas brasileiros residentes na Europa (música, dança, artesana- bons projetos e interesse na participação ativa, como, por exemplo,

52
presenças brasileiras na bélgica

Camélia Prado, educadora da área de Saúde Pública, Thierry Van projetos concretos como a Ciranda de Palavras, Rede Eco-Mix e
Schuylenbergh, terapeuta bioenergético, Philippe Quevauviller, “Pérolas do Mundo”, que têm como objetivo comum fortalecer o
professor/músico, Grazielle Furtado e Ricardo Ambrósio, bailari- senso de solidariedade e cooperação da comunidade, que expressa
nos contemporâneos, Paola Depienne, educadora/coaching, José seus valores e saberes, mantendo viva a identidade e diversidade
Álvaro e Matheus Groove, músicos, Dudu e Christiane, voluntá- cultural brasileiras.
rios, entre vários outros. Concluindo, a Associação Arte N’Ativa está envolvida na luta
Atualmente, a organização conta com mais de 20 associados pela construção de uma cidadania criativa e planetária, tendo a
e continua na promoção da arte e da cultura popular brasileiras, arte como instrumento de integração e transformação social.
realizando projetos como “Samba dos Amigos”, Via MPB, I Roda
de Choro de Bruxelas, Forrobodó, além da promoção de artistas Construção de redes e parcerias
brasileiros que estão ou que estiveram apenas de passagem pela
Europa, como a cantora/compositora Déa Trancoso, o maestro É importante dizer que a Fundação Roi Baudouin (FRB) foi
percussionista Caíto Marcondes e o músico pesquisador Alfredo uma parceira fundamental em nossa trajetória associativa, pois ti-
Belo DJ Tudo. vemos dois projetos aprovados pelo Edital da fundação “Migran-
Assim, há mais de três anos atuando de forma ativa e gregária, tes: atores da solidariedade”. Outros parceiros são o IC Brussel
a Associação Arte N’Ativa – cuja “semente nativa” traz em seu (Comitê Internacional de Bruxelas); Wervel (Grupo de Trabalho
cerne os ideais de inclusão e participação – vem crescendo e se por uma agricultura justa e sustentável); o Citizens Vorming Plus
desenvolvendo a cada dia, e funcionando como uma incubadora (ONG que trabalha com fomação para uma cidadania intercul-
de sonhos, que identifica e valoriza o potencial criativo da comu- tural em Bruxelas); o centro cultural Piano Fabriek; a associação
nidade através de seus membros, que são profissionais de diversas Terra Brasil, e a Associação Abraço.
áreas e cujos sonhos, ideias e projetos são acolhidos, compartilha-
dos e realizados. Isabel Duarte De Lannoy é formada em Comunicação Social pela
A Associação aglutina experiências possibilitando aos artistas, Universidade Federal da Paraíba – UFPB e possui pós-graduação em
trabalhadores sociais e profissionais liberais novas oportunidades Cooperação ao Desenvolvimento pela Universidade Livre de Bruxe-
de ações inter e multiculturais. A título de ilustração temos alguns las – ULB; é fundadora e atual presidente da ASBL Arte N’Ativa.

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53
parte 1 – travessias e migrações

54
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

parte 2

Relações Oficiais
e Diplomáticas

55
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

56
A diplomacia brasileira perante o potencial e as pretensões belgas
Pa u l o R o b e r t o d e A l m e i d a

Preliminares de Antuérpia (Onody, 1973, p. 281). Os contatos devem ter conti-


nuado, e se ampliado, durante a ocupação holandesa do Nordeste

O Reino da Bélgica ocupa, na história econômica do Brasil,


uma importância especial, provavelmente similar àquela
ocupada por Portugal na história mundial das navegações e dos
brasileiro, com as interrupções e rupturas que se seguiram às guer-
ras prolongadas e à reconquista final do território pelas forças da
metrópole portuguesa e dos residentes locais. A presença, nos dois
descobrimentos: dois pequenos países, de dimensões geografica- lados, de famílias judias e cristãs-novas dedicadas ao comércio e
mente reduzidas e dispondo de recursos econômicos e humanos às finanças deve ter assegurado a manutenção de vários tipos de
bastante limitados, mas que, no entanto, desempenharam, em vínculos entre a economia exportadora do Brasil e os grandes nú-
suas esferas respectivas, papéis significativos na abertura de no- cleos de comércio controlados pelas companhias dos Países Baixos
vos horizontes econômicos e na exploração de novas atividades na Europa setentrional: os portos sob sua “jurisdição” comercial
humanas. sempre foram grandes distribuidores do açúcar brasileiro e de ou-
Portugal, um reino periférico, com uma sociedade ainda bas- tros produtos exportados pela colônia. A ascensão subsequente dos
tante atrasada, mas dotado de um Estado relativamente “moder- interesses comerciais ingleses, no seguimento da derrota e da as-
no” para os padrões da baixa Idade Média, avançou decisivamente, sociação dos grandes comerciantes holandeses àqueles depois das
desde o início do século 15, na conquista de novos territórios, a guerras mercantilistas travadas entre as duas maiores potências co-
partir de seu posicionamento geográfico ímpar e apoiado numa merciais da Europa do norte, podem ter consolidado alguns desses
aliança entre seus mercadores e líderes políticos dotados de grande laços, a despeito da política exclusivista da metrópole portuguesa,
élan empreendedor, embora também animados pela fé missioná- mesmo a partir dos crescentes vínculos de dependência lusitana
ria típica do espírito das cruzadas. em relação à Inglaterra depois da Restauração (1640).
A Bélgica, constituída como Estado independente vários sé-
culos depois de Portugal, e oito anos depois do Império do Brasil, As relações Brasil-Bélgica no século 19
desempenhou, no entanto, mesmo antes de sua autonomia políti-
ca, mas sobretudo depois, um papel de destaque na primeira revo- As relações oficiais, de governo a governo, começam logo
lução industrial (a do carvão e do aço) e avançou, já no contexto após o rápido reconhecimento pelo Brasil do novo Estado euro-
da segunda revolução industrial (a da química e da eletricidade), peu, o que se deve tanto ao alinhamento do primeiro reinado à
para posições relevantes na industrialização e modernização da política inglesa para o continente europeu quanto o desejo de
infraestrutura do Brasil. De forma não surpreendente, portanto, ampliar o reconhecimento diplomático do novo Império sul-ame-
os vínculos diplomáticos entre os dois países se contam entre os ricano no contexto europeu (Stols, 1999, p. 210). O Brasil man-
mais duradouros, estáveis e promissores nas suas histórias diplo- teve, quase sempre, diplomatas profissionais à frente da legação
máticas respectivas e nas suas relações bilaterais, de todos os tipos. em Bruxelas, sendo que já mantinha um cônsul de carreira desde
antes da independência belga. O reino também despachou repre-
O quadro histórico sentante ao Brasil assim que foi possível fazê-lo (1834), logran-
do-se, logo em seguida, a assinatura de um tratado de comércio
São antigas as relações, geralmente comerciais, entre o terri- (Stols, 1999, p. 209-210).
tório da Flândria e a maior colônia do Império português. Um Comércio à parte, muitos jovens brasileiros fizeram estudos
historiador informa que, já no século 16, o engenho de açúcar de universitários em diversas instituições belgas, geralmente em me-
Erasmo, em Santos, tinha relações financeiras com a casa Schetz, dicina ou nas escolas politécnicas das universidades de Bruxelas e

57
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

a ­Grã-Bretanha, no seguimento da chamada Questão Christie


(Stols, 1973, p. 259), o que certamente agregou ao capital de sim-
patia de que dispunha o pequeno reino entre os brasileiros em
geral, e entre os diplomatas em particular. Pedro II visitou várias
vezes a Bélgica, no curso de suas diversas viagens internacionais.
A partir de então, iniciativas belgas para efetuar negócios e em-
preender investimentos diretos no Brasil sempre foram acolhidas
com boa vontade, a exemplo de projetos em estradas de ferro, da
navegação do Paraguai e da exploração e transformação de recur-
sos naturais no Mato Grosso (Garcia, 2009; Stols, 1987).
Menor sucesso, porém, tiveram as investidas e os projetos
colonialistas de Leopoldo II em direção do Brasil (Stols, 1987;
1999, p. 231), inclusive porque o Brasil não podia ser equipara-
do às terras incógnitas da Ásia ou da África, como os diplomatas
brasileiros não deixavam de recordar. Os empreendimentos clara-
mente capitalistas crescem então em importância: um primeiro
investimento direto, na Société Anonyme du Gaz de Rio de Janei-
ro, é feito desde 1886 (Onody, 1973, p. 300), seguido de diversos
outros, sobretudo no setor ferroviário. Ocorre então uma vaga
Carro Imperial construído em 1886 na Bélgica para servir ao Imperador Pedro II. de investimentos belgas no Brasil no final do século 19 e início
do 20, paralelamente a outros investimentos belgas efetuados na
Gand (Stols, 1999, p. 211). O Brasil, obviamente, vendia sobretu- Rússia, no Congo, no Egito, entre outros países: Stols identifica
do café – não apenas para a Bélgica, mas a partir da Bélgica para pelo menos 57 companhias belgas autorizadas a operar no Brasil
diversos outros clientes na Europa do norte – e adquiria do país entre 1876 e 1920, disseminadas por quase todo o território bra-
materiais diversos, entre eles equipamentos militares, como armas sileiro (1973, p. 262-265).
de guerra, especialidade das fábricas de Liège.
O primeiro estudo sério das contas públicas brasileiras foi efe- Os investimentos belgas no Brasil no início do
tuado no início do segundo império pelo ministro belga no Rio século 20
de Janeiro, o Conde Auguste Van der Straten Ponthoz, em três
grossos volumes: Le Budget du Brésil (1847). Pelo exame da distri- Os investimentos se diversificam no início do século 20, mas
buição de recursos entre as legações e os consulados do Brasil no o destaque cabe, sem qualquer hesitação, ao setor mineral e me-
exterior se podia constatar a hierarquia diplomática estabelecida talúrgico, ramo no qual a companhia Belgo-Mineira pode ser
pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros: as despesas alocadas, considerada como a pioneira efetiva do início dessa indústria no
conjuntamente com as representações na Bélgica e na Holanda Brasil (Stols, 2013). A indústria leve de transformação – têxtil,
ascendiam a 5,3 contos de réis, em paridade com os recursos atri- vidro, confecções, marcenaria, papelaria e impressão – e os servi-
buídos à representação em Montevidéu e pouco abaixo de As- ços comerciais e financeiros também concentram a atenção dos
sunção, mas bem abaixo (num distante 15º lugar) dos montantes investidores belgas, que chegam a representar parte substancial
alocados à primeira legação em importância, Londres, que rece- dos investimentos diretos estrangeiros no Brasil nesse período
bia 16,4 contos no orçamento de 1846-47 (Ponthoz, 1847: 169). (embora com presença mais modesta na vertente dos emprésti-
À margem das observações críticas que o ministro belga fazia mos puramente financeiros, a despeito mesmo da participação
sobre o orçamento brasileiro, o interesse maior – dos dois países, de bancos belgas em algumas operações de valorização do café,
aliás – estava concentrado no comércio e, do lado brasileiro, na conduzidas nessa época).
imigração belga para o Brasil, embora a permanência do tráfico, Deve-se considerar, também, que muitos interesses belgas es-
primeiro, e da escravidão, durante quase todo o século 19, tenha tavam representados por, ou associados a, capitais e companhias
limitado bastante as possibilidades de cooperação nesse particular. inglesas, francesas ou holandesas, e que boa parte dos aportes dire-
Mas a Bélgica podia servir de centro de recrutamento para agri- tos foram feitos em capital humano, embutido nos trabalhadores
cultores da Alemanha e de outras regiões da Europa, da mesma e técnicos especializados que emigraram ao Brasil, cuja dimensão
forma como os portos da Bélgica e da Holanda eram receptores econômica é de difícil avaliação (Stols, 1973, 1999).
e distribuidores dos principais produtos brasileiros de exportação Essa presença dispunha da simpatia manifesta da diplomacia
nas mesmas regiões (Almeida, 2005). brasileira, que sempre manteve em Bruxelas diplomatas experien-
Há também o registro positivo da arbitragem efetuada em 1863 tes. A reciprocidade nessa área se deu sobretudo pela participação
pelo rei da Bélgica, Leopoldo I, em favor do Brasil, no caso do brasileira em exposições universais e outras mostras internacionais
conflito político e do rompimento de relações diplomáticas com que eram realizadas na Bélgica, na época áurea do exibicionismo

58
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

Carro utilizado pelo Rei Alberto I, da Bélgica, em sua visita ao Brasil em 1920. Construído nas oficinas do Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. O autor do projeto art
nouveau do carro não foi identificado.

burguês (Pesavento, 1997). O engajamento do Brasil nesse tipo O desenvolvimento das relações nos últimos
de empreendimento se deveu em grande medida a diplomatas cem anos
brasileiros, a exemplo de Brazílio Itiberê da Cunha, ministro em
Bruxelas e grande entusiasta dos congressos de “expansão econô- No curso do século 20, o Brasil continuou a marcar sua presen-
mica”, tal como ele havia visto e participado em Gand, no início ça político-diplomática na Bélgica, pela participação, por exem-
do século (Cunha, 1907). plo, em feiras e exposições universais organizadas no reino, bem
O auge do bom relacionamento diplomático ficou claramen- como no terreno econômico, pela organização de mostras espe-
te evidenciado pela visita de alto nível, inédita, de um soberano ciais de seu esforço de expansão comercial – como a “Brasil Ex-
europeu, feita ao Brasil em 1920 pelo Rei Alberto I, cuja comitiva port”, de 1973, perturbada pelas manifestações contra a ditadura
deslocou-se inclusive ao Estado do Presidente Artur Bernardes, militar – e pela instalação de companhias brasileiras em sua ca-
Minas Gerais, visita da qual resultou justamente a criação da pital, entre elas a grande exportadora de minério de ferro, Vale
Companhia Belgo-Mineira (aliás, belgo-luxemburguesa) no ano do Rio Doce. A Companhia Belgo-Mineira, por sua vez, sempre
seguinte (Stols, 2013). O convite formal para a visita de Estado representou bem mais do que uma simples siderúrgica – setor no
tinha sido formulado pelo delegado do Brasil na conferência de qual, aliás, ela colocou o Brasil à frente de todos os outros países
Versalhes, Epitácio Pessoa, no contexto da enorme popularida- latino-americanos – e soube se integrar perfeitamente à paisagem
de do “rei-soldado” que tinha despertado a admiração de todos mineira e à economia brasileira em seu esforço de industrializa-
os brasileiros por sua corajosa participação na resistência militar ção, sem descuidar das atividades culturais e esportivas.
do exército belga contra a ofensiva alemã na Primeira Guerra Trata-se de uma das mais longas relações diplomáticas manti-
Mundial (Baptista, 2008). das bilateralmente pelo Brasil de forma ininterrupta desde a cria-

59
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

ção do reino – à exceção de pequeno período de ausência física BAPTISTA, Paulo Francisco Donadio. “Tem Rei no Mar”, Revista de História da Biblio-
durante a Segunda Guerra Mundial, sem que isso, porém, signifi- teca Nacional, n. 34, julho 2008. Disponível em: <http://www.revistadehistoria.com.
br/secao/artigos/tem-rei-no-mar>.
casse rompimento diplomático –, numa interação que alimentou, CUNHA, Brazílio Itiberê da. Expansão Econômica Mundial. Rio de Janeiro: Imprensa
igualmente, um dos mais profícuos exemplos de cooperação cul- Nacional, 1907.
tural e educacional em benefício do Brasil: milhares de estudantes GARCIA, Domingos Sávio da Cunha. Território e negócios na “Era dos Impérios”: os belgas
na fronteira Oeste do Brasil. Brasília: Funag, 2009.
brasileiros, em todas as épocas, formaram-se no terceiro ciclo e/ou ONODY, Oliver, “Quelques Aspects Historiques des Capitaux Étrangers au Brésil”. In:
aperfeiçoaram-se cientificamente nas mais diversas instituições su- Colloques Internationaux du Centre National de la Recherche Scientifique, n. 543,
periores da Bélgica, o que também confirma o argumento que ini- L’Histoire Quantitative du Brésil de 1800 a 1930. Paris: Éditions du Centre National
de la Recherche Scientifique, 1973, p. 269-314.
ciou este pequeno ensaio: a despeito de ser um país relativamente PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições Universais: espetáculos da modernidade do século
pequeno, a Bélgica ocupa um peso e uma importância despropor- XIX. São Paulo: Hucitec, 1997.
cionais no processo de modernização econômica brasileira e na PONTHOZ, Comte Auguste Van der Straten. Le Budget du Brésil ou recherches sur les
ressources de cet Empire dans leurs rapports avec les intérêts européens du commerce
sua presença político-diplomática, educacional e cultural mundial. et de l’émigration. Bruxelles: Librairie Muquardt, 1854, 3 vols.; 1. ed.: 1847 (cópia
digital disponível na Bayerische StaatsBibliothek. Disponível em: <http://reader.di-
Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais pela Uni- gitale-sammlungen.de/resolve/display/bsb10310302.html>. STOLS, Eddy, “Présen-
ce et activités diplomatiques de l’Empire du Brésil dans le Royaume de Belgique
versidade Livre de Bruxelas (1984); Mestre em Planejamento Econô- (1830-1889)”. In: MATTOSO, Katia de Queirós; DOS SANTOS, Idelette Muzart-
mico pelo Colégio dos Países em Desenvolvimento da Universidade Fonseca; ROLLAND, Denis (orgs.). Le Brésil, l’Europe et les équilibres internatio-
do Estado de Antuérpia (1977); Bacharel em Ciências Sociais pela naux XVIe-XXe siècles. Paris: Presses Universitaires de France, Centre d’Études sur
le Brésil, 1999, p. 209-245.
Universidade Livre de Bruxelas (1975); diplomata de carreira desde STOLS, Eddy. “Les Belges au Mato Grosso et en Amazonie, ou la récidive de l’aventure
1977; professor nos programas de Mestrado e Doutorado em Direito congolaise”. In: DUMOULIN, Michel; STOLS, Eddy (orgs.). La Belgique et l’étran-
do Centro Universitário de Brasília (Uniceub); autor de diversas obras ger au XIXe et XXe siècles. Louvain-La-Neuve:Collège Érasme; Éditions Nauwelaerts,
1987, p. 77-112.
de Relações Internacionais, especialmente na vertente econômica, so- STOLS, Eddy. “Les Investissements Belges au Brésil (1830-1914)”. In: Colloques Interna-
bre a integração regional e de história diplomática brasileira; página tionaux du Centre National de la Recherche Scientifique, n. 543, L’Histoire Quanti-
pessoal: www.pralmeida.org. tative du Brésil de 1800 a 1930. Paris: Éditions du Centre National de la Recherche
Scientifique, 1973, p. 259-267.
STOLS, Eddy. “Présences belges et luxemburgeoises dans la modernisation et l’industria-
Referências lisation du Brésil”. In DE PRINS, Bart; STOLS, Eddy; VERBERCKMOES, Johan
(orgs.). Brasil, Cultures et Economies de Quatre Continents. Lovaina, Acco, 2001,
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações p. 121-164.
econômicas internacionais no Império. 2. ed.; São Paulo/Brasília: Senac-SP/Funag,
2005.

60
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

Dois diplomatas belgas no Brasil imperial: Edouard de Jaegher


(1839-1843) e Gabriel Auguste Van der Straten Ponthoz (1845-1849)
M i lt o n C a r l o s C o s ta

Introdução Jaegher deteve-se na análise das relações entre o Brasil e a In-


glaterra. “Há uma potência da qual o dedo está gravado sobre os

A reconstituição e análise da visão do Império brasileiro pelos


diplomatas belgas acreditados no País permite apreciar a his-
tória brasileira e platina da época – um período particularmente
principais acontecimentos do Brasil: a Inglaterra”, afirmou Jaegher
em 1º de agosto de 1840. Na mesma carta, o diplomata afirma que
a Inglaterra impediu a recolonização do Brasil e conseguiu uma
complexo e desafiante – a partir de um ângulo diferente: de uma sólida posição no país com os tratados de 1810 e 1826, que lhe
perspectiva europeia. deram favores excepcionais, garantindo seus interesses de potência
Neste artigo apresentamos uma síntese interpretativa da cor- comercial, industrial e colonial.
respondência política enviada para o governo belga sobre o Brasil Para Jaegher, a posição privilegiada da Inglaterra sofreu uma
imperial por dois diplomatas dos mais interessantes que estiveram degradação com o tempo: de um lado, devido ao desenvolvimento
no Brasil: Edouard de Jaegher e Van der Straten Ponthoz. do país (produção agrícola etc.), de outro, com a concorrência, a
partir de 1836, de países como Portugal, França, Estados Unidos.
Edouard de Jaegher (27/07/1806 – 06/03/1883) Ademais, o Brasil deixara claro seu desejo de não renovar os tra-
tados existentes.
Edouard de Jaegher substituiu Benjamin Mary como encarre- Jaegher tratou em sua correspondência, largamente, dos con-
gado de negócios da Bélgica no Brasil. Nasceu em Bruges. Entrou flitos platinos, detendo-se muitas vezes na análise de Rosas e de sua
muito cedo na administração do Brabante Meridional. Por Arrêté política. O diplomata faz dele uma caracterização completa, um
Royal do Rei Guilherme I, de 20 de agosto de 1825, juntou-se à retrato brilhante, não isento de fascínio pelo retratado, em cartas
missão do Visconde L. P. J. Dubus de Ghisignies, governador do de 16 e 24 de setembro de 1840:
Brabante Meridional, o qual acabava de ser nomeado Comissário- “Rosas, de seu lado, escuta o ministro da Inglaterra, mas só
Geral para as Índias Orientais Holandesas. segue suas opiniões na medida em que elas correspondem a suas
Jaegher fazia parte do grupo de cinco funcionários que as- ideias pessoais. Impassível no meio dos perigos que o ameaçam,
sessoravam aquela autoridade colonial. Permaneceu no posto do ele parece não preocupar-se com sua grandeza; indiferente a tu-
começo de 1826, quando chegou às Índias Orientais, a junho de do o que atrás dele cairia com ela, ele retomaria, meio selvagem
1830, data de seu retorno à Bélgica. ainda como ele as deixou, suas emboscadas, suas armas de caça;
Após a Revolução da Independência belga, Jaegher entrou na intrépido cavaleiro, combatente astuto, ele não teme seu homem
administração do país tornando-se comissário distrital em Oude- quem quer que ele seja; ele sempre será o chefe dos caçadores do
narde, função na qual permaneceu até 1839. Em 9 de junho de touro selvagem, se ele não é mais o chefe de sua República. Com
1835 foi eleito deputado por sua comuna e esteve na Câmara de homens como esses, que não recuam diante de nada, que sabem
Deputados até 11 de junho de 1839. espalhar, sucessivamente e segundo as fraquezas, o ouro e o terror,
O novo diplomata chegou ao Rio de Janeiro em 2 de outubro não há nunca nada de positivo antes de ocorrer. Dez dias de demo-
de 1839, permanecendo no Brasil até novembro de 1843. ra, num golpe repentino como o de Lavalle, diante de um homem
Nomeado encarregado de negócios junto às cortes da Suécia oportunista como Rosas, é excessivo.”
e da Noruega, estabeleceu-se em Estocolmo e aí ficou até o fim Quanto ao Império brasileiro, Jaegher insistiu muito na neces-
de 1847. Sua nomeação como ministro residente junto à corte de sidade de reformas institucionais, o que parecia estar ligado à sua
Madri foi feita em 12 de novembro de 1847. Permaneceu pouco concepção de um equilíbrio constitucional necessário ao funcio-
tempo na Espanha sendo chamado à Bélgica para ocupar um alto namento harmônico das instituições brasileiras.
posto administrativo. O diplomata parecia inclinar-se por uma monarquia forte, ati-
Nomeado governador da Flandres Oriental em 1º de setem- va, ilustrada e popular. Era obcecado pela manutenção da monar-
bro de 1848, passou a exercer a função no dia 6 do mesmo mês quia brasileira e pelo fantasma do republicanismo. A análise que
e permaneceu no cargo por 23 anos, até agosto de 1831, quando fez da guerra em geral e das rebeliões brasileiras – e também dos
sua demissão honrosa por motivo de idade foi aceita. conflitos platinos – mostra como ele esteve atento à sua conside-
Uma nota de 1878 mostrava-o vivendo em Bruxelas como apo- ração como fenômeno global, tratando tanto da crônica militar
sentado do Estado belga. Sua morte ocorreu em Uccle, a 6 de quanto da influência dos fatores políticos, das finanças, do con-
março de 1883, segundo informação de seu irmão. trabando e do comércio.

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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

Gabriel Auguste Van der Straten Ponthoz Ele via com muita clareza o fenômeno do expansionismo
(14/09/1812 – 23/02/1900) americano e foi crítico em relação a certos aspectos da realidade
norte-americana. Tais posições são devidas, provavelmente, à sua
O conde Ponthoz foi o sucessor de Jaegher como representan- permanência durante certo tempo nos Estados Unidos. Foi o úni-
te diplomático belga no Brasil. Entrou na diplomacia em 1838, co dos representantes belgas no Brasil que atribuiu a uma causa
inicialmente junto à legação belga em Estocolmo, da qual se tor- econômica as rebeliões que sacudiram o País entre 1831 e 1849.
nou Segundo Secretário em 1839. Em 1840 foi transferido para Afirma ele em carta de 26/2/1849 que “[...] a população das
Washington, sendo promovido a Primeiro Secretário. províncias não cessa de girar num círculo de desordens que são pro-
Representou a Bélgica no Brasil entre outubro de 1845 – sua duzidas pela falta de atividades econômicas das quais essas desor-
primeira carta do Rio é de 22/10/1845 – e 1849 – sua última carta dens impedem todo impulso”. Ponthoz esteve longe da obsessão de
foi escrita em 14/04/1849. Jaegher em relação à permanência e consolidação da monarquia
Ponthoz esperou a chegada de seu substituto, J. Lannoy, antes brasileira. Assim, ele viu de maneira realista um possível desmem-
de regressar a seu país, apresentando-o ao corpo diplomático e às bramento do Sudoeste brasileiro do resto do País, contando com
mais influentes personalidades do País. Lannoy afirmou que seu a emigração europeia para apoiar os interesses da Europa no caso
antecessor havia estabelecido excelentes relações, sendo tido em da concretização da hipótese.
alta consideração no Rio de Janeiro. Interessante é sua ideia de que os fatores pessoais dominavam
Ponthoz foi nomeado em seguida para Lisboa (1848), como no Brasil os negócios do Estado, chamando a atenção para um
encarregado de negócios. Em 1853 foi designado para ocupar fenômeno realmente importante da história brasileira.
as mesmas funções em Madri, sendo elevado em 1850 à catego- O diplomata deixou uma análise bastante clara dos partidos
ria de enviado extraordinário e ministro plenipotenciário. Nessa políticos do Império. Em carta de 7/10/1848, ele traçou a origem
última qualidade esteve sucessivamente em Munique (1867) e dos dois partidos do Brasil monárquico:
Haia (1881). “A influência que trouxe a independência do Império em 1822
Durante sua permanência em Haia, participou como ple- e a abdicação de D. Pedro I em 1831 exagerando suas doutrinas,
nipotenciário belga da Conferência Africana (15/11/1884 a deveria chegar por novas agitações a uma organização republicana.
26/02/1885). Então se organiza um partido conservador que empreendeu salvar a
Teve participação ativa: “Oficialmente ou nos bastidores, nossos ordem e as instituições, enquanto que um outro partido saía da revo-
delegados desenvolveram neste momento uma incessante atividade lução e da democracia para se reunir à monarquia ao mesmo tem-
para obter o reconhecimento por todos do novo Estado Independen- po em que prosseguia o desenvolvimento das instituições liberais.”
te do Congo. Eles foram vitoriosos”. É o que afirma a Biographie Ponthoz mostrou em 27/9/1847 quais eram esses partidos e
Coloniale Belge, t. V, col. 779. suas características:
Ponthoz foi colocado em disponibilidade a seu pedido e apo- “[...] dois partidos principais dividem o Brasil. Eles se chamam
sentado em 1888, retirando-se ao castelo de Ponthoz onde dedicou Saquarema e Santa Luzia nomes de localidades assinaladas por
seu tempo livre à redação de suas memórias. Anteriormente, em perturbações políticas do Império; nós os conservaremos para preve-
plena atividade profissional, escrevera dois livros: Pesquisas sobre nir assimilações inexatas. Os Saquarema invocam o princípio mo-
a situação dos emigrantes nos Estados Unidos (Bruxelas, 1846) nárquico como base de toda organização política. Os Santa Luzia
e O orçamento do Brasil (3 vols., Bruxelas, 1845). O título com- invocam o princípio das instituições liberais regularizadas e desen-
pleto da obra é: Le budget du Brésil, ou recherches sur les ressour- volvidas sob os auspícios da monarquia. Esses dois partidos se acu-
ces de cetempire dans leurs rapports avec les intérêts du européens sam mutuamente de tendências despóticas pelo exagero das medi-
du commerce et de l’émigration. Como é demonstrado pelo título das de ordem e anárquicas pelo exagero das medidas de progresso.”
mesmo de suas obras, Ponthoz dedicou atenção especial ao te-
ma da emigração, esboçando, numa de suas cartas ao ministro Mílton Carlos Costa é graduado em História pela Universidade
de Relações Exteriores da Bélgica (2/12/1845), uma “teoria” da Católica de Lovaina, Doutor em História Social pela Universidade
emigração europeia para a América do Sul. Ele atribui a ela uma de São Paulo, Livre-Docente em Introdução aos Estudos Históricos
função estratégica na defesa dos interesses econômicos e políticos pela Universidade do Estado de São Paulo (Unesp)- campus de As-
da Europa industrializada. sis, professor e pesquisador de História do Brasil e Historiografia na
Ponthoz combinava seu realismo com um certo visionarismo, Unesp-Assis.
presente nas perspectivas otimistas que visualizava para a emi-
gração europeia em direção aos países sul-americanos e em seu Referência
plano de libertação do Brasil de sua dependência financeira em COSTA, Milton Carlos. Visões políticas do Império. Diplomatas belgas no Brasil (1834-
relação à Inglaterra. 1864). São Paulo: Annablume, 2011.

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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

Oliveira Lima: um homem certo no lugar certo


Clodoaldo Bueno

M anoel de Oliveira Lima nasceu na cidade de Recife no Natal


de 1867. Seu pai, comerciante português lá estabelecido,
retornou velho para sua terra natal após formar bom patrimônio.
que culminariam no Tratado de Petrópolis (1903), que pôs fim à
difícil questão do Acre.
Removido para Caracas, assumiu a legação em 12 de março
Manoel foi praticamente criado em Lisboa, aonde chegou com de 1905 após resistências afinal vencidas por Rio Branco que lhe
seis anos de idade. Teve vida confortável e pôde desfrutar de bom concedeu vantagens funcionais e prometeu-lhe um posto na Eu-
ambiente cultural. Cursou a Faculdade de Letras, e teve oportu- ropa. Pouco tempo ficou na Venezuela; só o suficiente para assi-
nidade de conhecer Teófilo Braga, de quem foi discípulo. nar o protocolo do tratado de delimitação de fronteiras entre os
Durante seus estudos em Lisboa dedicou-se às então chama- dois países, em 9 de dezembro de 1905. Governava a Venezuela
das “ciências auxiliares” da história, o que lhe desenvolveu o gos- o caudilho Cipriano Castro, a quem chegou a admirar, conforme
to pelo trato das fontes documentais. Em julho de 1883 escreveu exprimiu-se em carta a Nabuco, “pela sua energia e desassom-
uma série de artigos para o Comércio de Lisboa e em agosto de bro”, qualificando-o como “um lutador nato”. Caracas foi para o
1885 iniciou sua colaboração para o Jornal do Recife. Crítico feri- diplomata pernambucano um ponto de observação privilegiado
no, escreveu sobre história, literatura, artes plásticas, arquitetura e para conhecer a prática do monroísmo de Theodore Roosevelt,
teatro. Apesar de prevenções antibritânicas, admirava a Inglaterra consubstanciado no big stick, levando-o a formular reservas ao
(Gouvêa, 1976, p. 86-87, 94-5, 97-8). pan-americanismo dos Estados Unidos tal como concebido pelo
Após a conclusão de seus estudos (1888), buscou um cargo seu presidente em 1906.
na carreira diplomática, o que conseguiu logo depois (1890), ain- Depois de recusar a legação brasileira na Cidade do México,
da jovem, sendo nomeado 2º Secretário da legação do Brasil em Lima foi nomeado para chefiar a de Bruxelas, alcançando, final-
Lisboa por Quintino Bocaiúva, primeiro Ministro das Relações mente, o ambicionado posto na Europa. A cidade casava bem com
Exteriores da recém-implantada República no Brasil. Em maio seu perfil de historiador e homem de letras (em 1897, com apenas
de 1892 foi removido para Berlim, e lá permaneceu por três anos. 29 anos de idade, Oliveira Lima tornou-se membro da Academia
Em maio de 1896 assumiu o cargo de 1º Secretário da legação Brasileira de Letras), pois, além de culta e agradável, permitia-lhe
brasileira em Washington, onde foi subordinado e admirador de visitar outros grandes centros europeus para coletar material para
Salvador de Mendonça. Em razão de desavenças pessoais com J. suas pesquisas históricas. A função na Bélgica foi exercida cumu-
F. de Assis Brasil, sucessor daquele na chefia da legação, Oliveira lativamente com a legação do Brasil em Estocolmo.
Lima pediu e obteve remoção para Londres, para aonde partiu de Lima assumiu a legação em Bruxelas em 2 de março de 1908
Nova York em janeiro de 1900. Pouco ficou nesse cargo, pois foi e em 7 de abril entregou sua credencial ao Rei Leopoldo II (1835-
nomeado Encarregado de Negócios no Japão, cuja legação assu- 1909). Apenas decorridos 15 dias de sua chegada, Lima enviou a
miu em junho do ano seguinte (Gouvêa, p. 359-394, 285, 319). Rio Branco relatório sobre questões políticas e perspectivas econô-
Em novembro de 1902 foi promovido a Enviado Extraordinário e micas da Bélgica e da colônia do Congo. Referiu-se ainda a uma
Ministro Plenipotenciário no Peru, mas permaneceu no Japão até 7 possível imigração belga para o Brasil.
de março do ano seguinte, quando embarcou em direção ao Brasil. O rei dos belgas estava atento às possibilidades de investimen-
O novo Ministro das Relações Exteriores, Barão do Rio Bran- tos e incremento do intercâmbio comercial com o Brasil, coin-
co, confirmou sua nomeação para o Peru, mas pediu-lhe a presen- cidindo com as concepções do diplomata. Causa surpresa ao ob-
ça imediata no Rio a fim de passar-lhe instruções antes de seguir servador de hoje o fato de Lima, crítico da política imperialista
para Lima, pois contava com seus conhecimentos para acompa- norte-americana, ter formado opinião positiva sobre Leopoldo II,
nhar os problemas de fronteira entre Peru e Bolívia que interessa- bem como de sua política imperialista no Congo. Para Gouvêa, a
vam ao Brasil, então às voltas com a questão do Acre (Gouvêa, p. identificação de Oliveira Lima com o imperialismo belga foi um
443-5; Almeida, p. 252). erro de previsão histórica.
Lima, todavia, em correspondência oficial e particular nada Além dos assuntos próprios da política externa, Lima enviava
mencionou a esse respeito, além de ter significado seu desagrado relatórios, ofícios e publicações de interesse prático para o Brasil,
com a nomeação para o Peru e reiterado suas solicitações referen- como o artigo sobre o aproveitamento do solo em face do indus-
tes a vencimentos e licença. Afora isso, Lima retardou sua chegada trialismo exagerado em voga na Europa. Prefaciou o livro (1910)
ao Rio de Janeiro, o que Rio Branco interpretou como recusa ou sobre o ensino profissional e agrícola do engenheiro belga Armand
desinteresse em participar das negociações para as quais estava Ledent, ligado, inclusive, ao projeto da Escola Agrícola de Piraci-
preparado. Mesmo nomeado, Lima não chegou a ir para a capi- caba (SP) e ao ensino agrícola profissional em Araras. Da mesma
tal do Peru, pois o Chanceler reteve-o no Rio de Janeiro, a título forma levava ao conhecimento da chancelaria tudo o que interes-
de aguardo de instruções, mas deixando-o alheio às conversações sava à indústria açucareira do Brasil. Na mesma linha, inspirou

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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

a publicação de artigos sobre o Brasil na imprensa belga, como o na Sorbonne, Lima deu início, em 15 de março de 1911, a um
do Etoile Belge (25/1/1909) sobre o Estado de Pernambuco e sua curso sobre Formation historique de la nacionalité brésilienne no
indústria açucareira (cf. Gouvêa, 1976, pp. 669-814). anfiteatro Turgot da Faculdade de Letras.
Lima foi adepto da diplomacia econômica, à época também De outubro a dezembro de 1909 Lima esteve em Estocolmo,
designada por diplomacia moderna, no entendimento de que o na qualidade de ministro, para restabelecer a representação diplo-
alargamento das relações mercantis solucionaria os problemas mática brasileira junto ao governo da Suécia, com o qual negociou
econômicos nacionais. A diplomacia do século XX, dizia, seria um convênio de arbitramento. De volta a Bruxelas, em março de
“muito mais comercial do que política”. Ao pedir a “republicani- 1910, tomou parte na inauguração do Pavilhão Brasileiro na ex-
zação” da diplomacia do Brasil, opinou que sua “tarefa capital, posição mundial. Na oportunidade, Lima promoveu concerto de
além da promoção da inteligência política” seria promover a ex- gala, com execução de trechos de composições de maestros brasi-
pansão econômica. Lima reiteraria, em 1927, que “os interesses do leiros, como Carlos Gomes, Manoel Joaquim de Macedo, Alberto
Brasil, uma vez descrito e fechado o círculo das nossas fronteiras, Nepomuceno e o violinista Francisco Chiaffitelli.
são sobretudo econômicos” (Apud Gouvêa, p. 569, 797, 806, 1635; O momento mais destacado da diplomacia cultural de Oli-
Almeida, p. 258-60). veira Lima foi a soirée de 4 de abril de 1910, promovida pela So-
A concepção de diplomacia econômica completava-se em Oli- cieté Royale Belge de Geographie, no Théâtre de la Monnaie, em
veira Lima com o exercício de bem sucedida diplomacia cultural Bruxelas, quando palestrou, na presença do novo rei, Alberto I
na Bélgica, país que ocupava posição privilegiada na Europa co- (1875-1934), sobre La conquête du Brésil. No decorrer da expo-
mo centro econômico e intelectual, o que lhe permitia divulgar os sição foram insertos trechos musicais de autores brasileiros e, ao
valores culturais e as possibilidades do Brasil por meio de artigos final, executaram-se uma suíte de Alberto Nepomuceno, a com-
em jornais, revistas e conferências. Começou pela Universidade posição do Padre José Maurício (Est incarnatus est), e Tiradentes,
de Lovaina, onde pronunciou palestras sobre La langue portu- de Manoel Joaquim de Macedo. A festa foi encerrada com a exe-
gaise e La littérature brésilienne em 15 e 18 de janeiro de 1909. cução dos hinos nacionais brasileiro e belga (La Brabançonne).
Teve êxito, também, ao criar, às suas expensas, um curso gratuito O Etoile Belge noticiou o evento (Fleiuss: 1937, p. 276; Gouvêa,
de português. Embora não tenha resultado de ação direta da le- pp. 815-941).
gação, Lima inaugurou a Câmara de Comércio Belgo-Brasileira, Lima, aborrecido com o rumo que tomava sua carreira, pediu
a primeira desta natureza criada pelo Brasil na Europa, associan- aposentadoria. O sucessor imediato de Rio Branco no Ministério
do-se ao empreendimento de Afonso Toledo Bandeira de Melo e das Relações Exteriores, Lauro Müller, para mantê-lo no quadro,
do Comissariado de São Paulo na Exposição Universal (Gouvêa, não deu andamento a seu pedido e para que refletisse antes de
p. 814-5, 906-7, 951-3). consumar uma decisão definitiva sugeriu-lhe uma licença, por ele
Bruxelas facilitava-lhe estabelecer contatos com universida- aproveitada para ministrar conferências a partir de 1o de outubro
des e participar de reuniões científicas realizadas na Europa na de 1912 na Califórnia (EUA).
qualidade de representante do Brasil. Assim, compareceu ao 16º Rio Branco, provavelmente por respeitar os talentosos, foi pa-
Congresso Internacional de Americanistas em Viena (9 a 14 set. ciente e tolerante com as insolências de Oliveira Lima, cujas po-
1908), ao 9º Congresso Geográfico em Genebra (27 jul. a 6 ago. sições chegaram a repercutir no legislativo federal, o que levou
1908), para o qual preparou a tese Le Brésil, sés limites, sés voies de o deputado Dunshee de Abranches a fazer a defesa do ministro
pénétration. As sessões de geografia econômica foram presididas das Relações Exteriores na Câmara (Abranches, v. 2, p. 137-202).
pelo grande Vidal de La Blache. No congresso de americanistas, Falecido Rio Branco (fevereiro de 1912), a situação funcional de
Lima apresentou moção, aprovada por unanimidade, propondo seu crítico só piorou. Müller não teve autonomia e força suficien-
que nos futuros congressos o português fosse incluído entre as tes para barrar injunções políticas sobre o Ministério e, assim, o
línguas admitidas, como já o eram o francês, o inglês, o alemão, jornalista-diplomata, em razão de seu destempero verbal e de sua
o espanhol e o italiano. pena afiada, não teve a nomeação para a legação de Londres, sua
Em março de 1909 Rio Branco consultou Lima, estimando antiga aspiração, referendada pelo Senado (Gouvêa, p. 949-50).
uma resposta positiva, sobre o interesse em representar o Brasil no Aborrecido, reiterou seu pedido de aposentadoria, ocorrida em
Congresso Internacional de História Musical a reunir-se em Viena 27 de agosto de 1913. Em 8 de março de 1914 embarcou em Re-
nas festas do centenário de Haydn, e redigir “breve mas substan- cife com direção a Londres, cidade em que iria estabelecer nova
cial notícia histórica [da] música no Brasil”. Rio Branco sugeriu o residência. Passou antes por Bruxelas, onde foi homenageado, de
material a ser usado, remetendo-o juntamente com outros textos surpresa, pelos amigos belgas e brasileiros com uma soirée em 22
pedidos por Lima, com os quais preparou sua participação e fez de abril (Gouvêa, p. 1.181). Em Londres, durante a guerra foi
executar trechos de compositores brasileiros, como o clássico José acusado de ter simpatias pela Alemanha.
Maurício. Fez, também, alusão às modinhas e lundus. Antes de ir Apesar dos riscos de uma travessia marítima no Atlântico nor-
para Viena, Lima foi a Paris para a festa franco-brasileira, promo- te em razão do conflito mundial, viajou para os Estados Unidos
vida pela União Latina na Sorbonne, onde fez conferência, em em outubro de 1915 a fim de proferir uma série de palestras so-
francês impecável, sobre Machado de Assis et son oeuvre. Ainda bre história e economia da América Latina na Universidade de

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parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

Harvard, a convite intermediado pelo Embaixador norte-ameri- Nadou contra a corrente, também, ao posicionar-se contraria-
cano no Rio de Janeiro, Edwin Morgan. Depois de um semestre mente ao alinhamento diplomático do Brasil aos Estados Unidos,
naquela universidade, tentou voltar à Inglaterra, mas sem sucesso inaugurado pela República. Neste ponto divergiu de seu ex-amigo
por ter sido incluído na black list das personalidades impedidas Joaquim Nabuco, então embaixador do Brasil em Washington,
de entrar no país. um sonhador como outros norte-americanistas brasileiros, iludidos
Em julho de 1918 Lima chegou a Buenos Aires a convite do com eventual apoio norte-americano contra “imaginadas absor-
Instituto Popular de Conferências, presidido por Estanisláo Ze- ções europeias” ou “aventuras belicosas dentro do continente” (Cf. e
ballos (Gouvêa, p. 1.311, 1.459). Permaneceu sete meses na Ar- apud Gouvêa, p. 738). Apesar de crítico, neste aspecto concordou
gentina, conhecendo o país e proferindo conferências em várias com Rio Branco, pois este cultivou a amizade norte-americana,
instituições. Em agosto de 1920 embarcou no Avaré, em Recife, em mas com ressalvas e nuances. Lima, coerentemente, aplaudiu o
direção aos Estados Unidos, onde fixaria sua derradeira residência. discurso do Chanceler na abertura da 3ª Conferência Internacio-
Ainda viajaria em 1923 para a Alemanha, para tratamento de saúde, nal Americana (Rio de Janeiro, 1906), na presença do Secretário
e Portugal, onde proferiu conferências, uma delas na Faculdade de de Estado norte-americano Elihu Root, sobretudo pela ênfase na
Letras por ocasião da inauguração da Cadeira de Estudos Brasilei- relevância da Europa para o Brasil, que recebia seus capitais e
ros. De volta a Washington, em 10 de janeiro de 1924 começou a braços para a lavoura.
reger a cadeira de Direito Internacional na Universidade Católica. Oliveira Lima faleceu em Washington em março de 1928,
Oliveira Lima foi adequadamente caracterizado por seu con- sentindo-se, segundo suas próprias palavras, escorraçado de seu
terrâneo Gilberto Freire como nosso Dom Quixote Gordo (Veja- próprio país, que não soubera lhe aproveitar o talento. Doou sua
-se Almeida, 2002, p. 234). Homem de pensamento original que extensa biblioteca (que leva seu nome) à Universidade Católica
não tinha receio de expor e defender suas ideias, mesmo quando das Américas, em Washington, inaugurada em 1924 e organizada,
contrariavam, o que normalmente ocorria, correntes de pensa- conforme sonhara, como centro de estudos brasileiros, portugue-
mento em voga. Destemido e sem fazer concessões, sobretudo ses e hispano-americanos. Atendendo ao que dispôs em seu testa-
em questões de princípio, não raro surpreendia a quem acom- mento, seus restos repousam na capital norte-americana.
panhasse os caminhos do seu pensamento, como, por exemplo,
quando divergiu das posições de Rui Barbosa, a quem admirava, Referências
expostas no discurso, de ampla repercussão, inclusive no exterior, ABRANCHES, Dunshee de. Rio Branco e a política exterior do Brasil (1902-1912). Rio de
que fez em Buenos Aires (14 jul. 1916) favoráveis aos Aliados na Janeiro: Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil, 1945, 2 v.
Grande Guerra (1914-18). Fiel ao seu pacifismo, Lima defendeu ALMEIDA, Paulo Roberto de. “O Barão do Rio Branco e Oliveira Lima – vidas paralelas,
itinerários divergentes”. In: CARDIM, Carlos Henrique & ALMINO, João (orgs.).
a neutralidade brasileira. Rio Branco, a América do Sul e a modernização do Brasil. Pref. de Fernando Henrique
Outra polêmica, que acabou lhe custando o posto na diploma- Cardoso. Rio de Janeiro: EMC, 2002, p. 233-278.
cia por conta de seu brio e amor próprio feridos, foi sua manifes- CORRÊA, Luiz Felipe de. “Semblanza biografica del autor”. In: LIMA, Manuel de Oli-
veira. En la Argentina. Buenos Aires: Editorial Centro de Estudios Unión para la
ta simpatia pela monarquia. Apesar de republicano desde moço, Nueva Mayoría, 1998.
interpreta-se que Lima, após sua estada em Caracas à época da FLEIUSS, Max, Conferência no Instituto Histórico e Geográfico a 23 de maio de 1928.
presidência de Cipriano Castro, viu de perto os males que o cau- In: LIMA, Oliveira. Memórias (Estas minhas reminiscências...). Rio de Janeiro: José
Olympio, 1937, p. 263-283.
dilhismo fazia à América Latina, constatação que, somada ao que GOUVÊA, Fernando da Cruz. Oliveira Lima, uma biografia. Pref. de Barbosa Lima So-
observava no seu próprio país, onde políticos da jovem república brinho. Recife: Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, 1976.
lambuzavam-se no poder, provocou-lhe o desencanto com o novo 3 vol.
LIMA, Oliveira. Memórias (Estas minhas reminiscências...). Rio de Janeiro: José Olym-
regime, a partir do que passou a vislumbrar aspectos positivos nos pio, 1937.
regimes monárquicos, destacando que não eram antinômicos à MALATIAN, Tereza. Oliveira Lima e a construção do nacionalismo. Bauru, SP: Edusc;
democracia e se ajustavam bem às correntes socialistas então em São Paulo, SP: Fapesp, 2001.

ascensão na Europa (Malatian, p. 199-202).

Os belgas em Descalvados e na fronteira Oeste do Brasil (1895-1912)


D o m i n g o s Sav i o d a C u n h a G a r c i a

P ara entender a presença belga na fronteira Oeste do Brasil,


na virada do século XIX para o século XX, é preciso entender
o que se passava no mundo naquele momento. Essa perspectiva
lidades que ela poderia abrir para os belgas, principalmente se
considerarmos a exitosa operação na África do Rei Leopoldo II,
que resultou na formação do Estado Independente do Congo,
é necessária para termos a dimensão daquela ação e as possibi- um Estado privado de grandes dimensões, encravado entre colô-

65
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

A empresa agroindustrial de Descalvados foi adquirida em 1895 pela Compagnie des Produits Cibils, constituída em Antuérpia.

nias e protetorados das principais potências europeias da época. da Bolívia, era controlada por estados fracos ou fragilizados, cuja
Concluído o domínio sobre sua colônia africana, Leopoldo presença nessa região era praticamente inexistente. Dessa forma,
II e sua entourage passaram a procurar outra região do mundo poderiam reaparecer ali as condições para que os belgas, liderados
onde pudessem repetir esse feito e alcançar os lucros advindos do por Leopoldo II, pudessem repetir o seu feito africano, se as condi-
comércio com produtos de origem extrativa ou produzidos com ções da geopolítica internacional o permitissem. E os belgas não
matérias-primas não encontradas na Europa. Para isso procura- esperaram surgir essas condições; trabalharam para isso.
vam uma região com características políticas semelhantes àque- A compra da empresa agroindustrial de Descalvados, efetuada
las encontradas na África quando iniciou sua operação naquele em 1895 pela Compagnie des Produits Cibils, constituída em An-
continente: territórios ricos em produtos extrativos com grande tuérpia com o fim último de comprar aquele empreendimento,
procura nos mercados centrais; populações nativas fragilmente não foi, portanto, uma ação isolada. A fábrica foi comprada da fa-
organizadas, tendo como decorrência a inexistência de fronteiras mília de Jaime Cibils Buxaréo, um industrial uruguaio de origem
entre Estados demarcadas e reconhecidas internacionalmente; ter- catalã, que já operava no ramo de produção de derivados de carne
ritórios disputados por potências europeias, a partir dos interesses e havia construído a fábrica no início da década de 1880.
da geopolítica europeia. Descalvados era uma fábrica de extrato de carne estrategica-
Naquele momento, a região Central da América do Sul se mente localizada na fronteira do Brasil com a Bolívia, em pleno
abria para a exploração mercantil, notadamente com o crescente Pantanal, a maior planície alagada do mundo, possuindo uma área
processo de extração de borracha da seringueira, cujo consumo de um milhão de hectares. A Cibils ainda comprou, em 1899, a
aumentava no mercado internacional. O aumento do consumo es- fazenda São José, com área de 500 mil hectares, também locali-
timulava a abertura de novas frentes extrativas, que avançavam para zada no Pantanal e contígua a Descalvados em sua parte sul, per-
regiões até então pouco atraentes para aquela atividade econômica. fazendo uma área total de mais de um milhão e quinhentos mil
A América do Sul, ao longo do século XIX, era reconhecida- hectares ou 15 mil quilômetros quadrados.
mente uma área de influência da Inglaterra. No entanto, na me- Nos campos de Descalvados e da São José havia um rebanho
dida em que se aproximava o fim desse século, vimos desenvolver com cerca de 340 mil cabeças de gado bovino, a matéria-prima
a força econômica, política e militar dos Estados Unidos, que para a fábrica, que produzia principalmente extrato de carne, deri-
assumiram a condição de potência global com a vitoriosa guerra vados de carne em conserva e couros tratados, produtos que eram
contra a Espanha em 1898. remetidos para o mercado europeu, onde eram bastante aprecia-
Portanto, quando os belgas decidiram iniciar a sua nova fren- dos. Possuía máquinas a vapor (produzidas na Bélgica), que acio-
te de atividades no coração da América do Sul, com métodos e navam uma usina de eletricidade, a serraria, bombas de água e
objetivos semelhantes àqueles desenvolvidos na África, o fizeram permitia à fábrica ter a sua própria produção de embalagens de fo-
no momento em que a geopolítica internacional passava por mu- lhas de flandres, para acondicionar seus produtos para exportação.
danças importantes. Os produtos da fábrica de Descalvados, principalmente o ex-
Mas nada estava decidido e a região central da América do trato de carne, eram famosos na Europa, onde ganharam prêmios
Sul, rica em borracha e em campos de criação de gado vacum, de de qualidade e onde eram oferecidos através de propagandas fei-
difícil acesso e longe dos centros de decisão, localizados no lito- tas por postais com imagens do empreendimento localizado na
ral no caso do Brasil, e próximo à Cordilheira dos Andes, no caso fronteira Oeste do Brasil.

66
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

Vista da empresa agroindustrial em Descalvados, a Cibils, em fotografia dos anos 1980.

Durante o período em que pertenceu a empresas belgas, o em- as operações na fronteira Oeste do Brasil: Compagnie des Caout-
preendimento era dirigido por gerentes belgas (o primeiro foi Fran- choucs du Matto Grosso, Syndicate de La Banque Africaine, Mer-
çois Joseph Van Dionant, que chegou a Descalvados em abril de cado, Ballivian & Companhia, La Brésilienne, Société Anonyme
1895) e mantido por mão de obra braçal formada por brasileiros, l’Abunã e a Comptoir Colonial Française Société Anonime. Eram
argentinos, paraguaios e bolivianos, além de um expressivo núme- empresas dedicadas principalmente à extração de borracha em
ro de indígenas dos grupos guató e bororo, que habitavam antigas afluentes da margem direita do Rio Amazonas, próximo à fron-
aldeias existentes na área do empreendimento e que usualmente teira com a Bolívia.
eram utilizados no difícil trabalho de manejo do gado bovino. A partir de 1901, a própria Compagnie des Produits Cibils tam-
Entre 1895 e 1897 a empresa rendeu dividendos aos seus só- bém passou a atuar na extração de borracha no Vale do Guaporé,
cios e se mostrou um investimento lucrativo. No entanto, em 1897 onde adquiriu três concessões do lado brasileiro desse rio que di-
um fato chama a atenção para os objetivos dos belgas na fronteira vide a fronteira do Brasil com a Bolívia. A partir dessas concessões,
Oeste do Brasil: a legação da Bélgica no Rio de Janeiro solicitou a borracha extraída pela Cibils era enviada a Descalvados e, de
do governo brasileiro a instalação de um consulado daquele país lá, para o exterior.
em Descalvados. Tal solicitação não foi atendida; o consulado foi Chama atenção a formação dessas empresas belgas que passa-
instalado em Corumbá e em Descalvados foi instalado um vice- ram a atuar na extração de borracha na fronteira Oeste, se juntan-
-consulado. O administrador do empreendimento, François Van do à Cibils, pois seus principais acionistas eram praticamente os
Dionant, se tornou também o vice-cônsul da Bélgica e uma ban- mesmos, se entrelaçando em diferentes composições acionárias.
deira belga passou a tremular em pleno Pantanal, na fronteira do Para ajudá-las em suas operações, as empresas belgas desloca-
Brasil com a Bolívia. ram para a fronteira Oeste do Brasil um conjunto de funcionários
Em 1898, procurando defender o rebanho bovino do roubo capacitados e experientes, alguns já treinados em operações co-
provocado por constantes investidas de ladrões provenientes da Bo- lonialistas, como Alexandre Delcomune, experiente auxiliar de
lívia, Van Dionant solicitou do governo do Estado de Mato Grosso Leopoldo II no Estado Independente do Congo, e José Cousin,
providências para coibir tais ações. Sem ter meios para atender à um geógrafo também experiente. Esses funcionários mapearam os
solicitação, o governo estadual autorizou os belgas a constituírem recursos naturais, fizeram trabalhos de reconhecimento dos rios e
uma força policial própria para conter esses ladrões, forças que das características físicas da região, sempre procurando atuar de
foram organizadas por antigos integrantes da Force Publique, que maneira discreta e sem chamar a atenção das autoridades locais.
Leopoldo II mantinha no seu Estado Independente do Congo, na O fato que estimulou o ânimo dos belgas na fronteira Oeste do
África. Daí em diante, os belgas passaram a ter em Descalvados Brasil foi a disputa pelo território do Acre entre a Bolívia e serin-
uma representação diplomática e uma força armada, dominando gueiros brasileiros que se instalaram na região, atraídos pela grande
um território de mais de 15 mil quilômetros quadrados. demanda por borracha no mercado internacional e pela grande
A partir de 1898 outras empresas organizadas por belgas na produção que essa região proporcionava, disputa na qual se entre-
Europa vieram se juntar à Compagnie des Produitis Cibils em su- laçaram os interesses de empresários norte-americanos influentes

67
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

e ingleses organizados no Bolivian Syndicate, cujo objetivo era o de fato da América Latina em área de influência exclusiva dos
arrendamento do território em disputa. Estados Unidos.
O eventual desenlace positivo para aquele sindicato poderia Esse novo cenário se combinou ainda com as primeiras no-
reabrir no coração da América do Sul uma corrida colonialista se- tícias sobre as atrocidades cometidas pelos funcionários das em-
melhante àquela ocorrida na África. Nesse caso, os belgas estariam presas ligadas a Leopoldo II no seu Estado privado na África. O
muito bem posicionados para ficarem novamente com a sua parte resultado desse cenário desanimou rapidamente os belgas em su-
na disputa, sempre explorando as debilidades dos Estados locais as operações na fronteira Oeste do Brasil e sua retirada da região
e as disputas entre as grandes potências. Foi com essa perspectiva foi tão rápida como a sua entrada. Em 1906, no setor agrícola e
que Leopoldo II também tentou controlar o Bolivian Syindicate. de extração vegetal praticamente só havia o empreendimento de
Não foi coincidência que justamente no período em que a Descalvados. Em 1911, o empreendimento que havia sido a porta
disputa pelo território do Acre alcançou o seu ápice, entre 1898 de entrada para os belgas na fronteira Oeste do Brasil também foi
e 1903, os belgas tenham se lançado na corrida por concessões a sua porta de saída, sendo vendido ao investidor norte-americano
de terras para extração de borracha na fronteira Oeste do Brasil. Percival Farquhar.
O círculo próximo de Leopoldo II operava combinando a ação
efetiva no território desejado com as articulações políticas que se Domingos Sávio da Cunha Garcia possui Mestrado em História
desenvolviam na Europa e nos Estados Unidos. Essa tática havia Econômica pela Universidade Estadual de Campinas e Doutorado
dado certo no caso africano e poderia dar certo novamente no ca- em Economia Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas.
so da América do Sul. É professor do Departamento de História da Universidade do Estado
No entanto, uma combinação de fatores bloqueou essa pers- de Mato Grosso desde 1995.
pectiva. A ação do governo brasileiro, principalmente após a as-
censão do Barão do Rio Branco ao cargo de Ministro das Relações Referências
Exteriores em fins de 1902, combinada com a ação militar dos GARCIA, Domingos Savio da Cunha. Os belgas na fronteira Oeste do Brasil. Brasília:
próprios seringueiros no Acre e, ainda, a decisiva mudança na po- Funag, 2009.
lítica externa dos Estados Unidos para a América Latina naquele KURGAN-VAN HENTENRYK, Ginette. Leopoldo II e a questão do Acre. In: Cadernos
do Centro de Documentação em História e Documentação Diplomática. Brasília: ano
período, mudaram o cenário da disputa. O seu resultado foi o fim 8, tomo II, vol. 14, p. 477-499, primeiro semestre, 2009.
do Bolivian Syndicate, a compra do território do Acre pelo Bra- STOLS, Eddy. O Brasil se defende da Europa: suas relações com a Bélgica (1830-1914). In:
sil, com a assinatura do Tratado de Petrópolis, e a transformação Boletin de Estúdios Latinoamericanos e del Caribe. Amsterdam: Centro de Estudios y
Documentación Latinoamericanos (CEDCA), n. 18, junio de 1975.

O Rei Alberto I e a música brasileira


Daniel Achedjian

E vocar as inúmeras interações entre os belgas e a música bra-


sileira, erudita ou popular, representa uma matéria apaixo-
nante para músicos, pesquisadores, jornalistas ou, simplesmente,
boê­mia, onde se atravessava a noite, se bebia, se caia na sarjeta e,
claro, se tocava e se escutava música.
O compositor relata que em 1920, para ser bem preciso, um
amantes fervorosos. Porém, que um cidadão do Reino da Bélgica certo “Rei Alberto” veio visitar o Brasil e o Rio de Janeiro – na
– e não se trata de um qualquer – tenha sido o tema de algumas época, capital do País – e pediu insistentemente que lhe fosse mos-
composições é algo que seria imperdoável se negligenciado. trado esse bairro de folia. Este famoso rei “Alberto”, claro, não era
A famosa vinda do Rei Alberto I e de sua esposa Elisabeth da ninguém mais ninguém menos do que o Rei Alberto I da Bélgica
Bélgica ao Brasil, em 1920, seduziu alguns letristas famosos. Es- (1875-1965), vindo em visita oficial em companhia de sua esposa,
tes viram no soberano, de temperamento excepcional e às vezes a muitíssimo amada e célebre Rainha Elisabeth (1876-1965). Eles
insólito, e que ignorava o protocolo, um personagem dotado de visitaram, no final das contas, Rio e Minas Gerais.
um jeitinho belga bem apreciado pelos cariocas. Assim, neste samba, “A Lapa”, Herivelto Martins canta os se-
Encontramos a menção de uma primeira peça musical so- guintes versos:
bre este assunto no DVD “Ensaio, TV Cultura, 1990”, dedicado
a Herivelto Martins (1912-1992), o muito célebre e importante “O bairro de quatro letras
compositor carioca de sambas e de marchinhas do século XX. Em Até um rei conheceu
um trecho do programa, ele evoca o samba “A Lapa”, que havia Onde tanto malandro viveu
composto nos anos 30 com Benedito Lacerda. Herivelto Martins Onde tanto valente morreu.”
fala desse bairro do Rio que, nos anos 20, era o centro da vida

68
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

A atitude do soberano, no momento daquela visita, impres- É um homem de fato


siona a todos. Sua vontade de quebrar certos protocolos durante Não tem orgulho
as cerimônias oficiais perturbava um pouco as altas autoridades Nem espalhafato
brasileiras. O rei decidiu até se engajar em atividades não previs-
tas, como a visita à Lapa, como já mencionado, ou se fazendo Foi a insulta
presente em certas manifestações desportivas. Assim, ele se lança Da mais alta
em um longo e difícil percurso de natação, que saía da praia de Deixar os repórteres
Copacabana em direção à praia do Diabo, situada ao lado das Espiando na esquina
pedras do Arpoador de Ipanema. Uma proeza que deixou os ca-
riocas admirados. Comeu feijoada
Aficionado por escaladas, o Rei também decidiu subir parte E bebeu parati
da colina do Corcovado (sem o Cristo na época). Esta expedição Jogava no bicho
tinha sido planejada, mas quase virou um incidente diplomático. Não saía daqui
Com a preocupação em tornar a expedição mais confortável, os E se ele provasse
cariocas já haviam demarcado o percurso e arrumado, em alguns O angu da baiana
lugares na rocha, degraus para facilitar a subida. O Rei Alberto Então ficava
se sentiu ofendido, se zangou e decidiu passar por um caminho Mais uma semana.”
selvagem que não havia sido preparado.
Nos arquivos musicais da música popular brasileira também Mas, além destes textos espirituosos, bem dentro do espírito
encontramos vestígios da atitude do soberano belga na canção dos sambas e marchinhas da época dourada, encontramos tam-
“Alberto I Rei dos belgas”, de José Napolitanos, “Pro Rei Alberto bém a composição “Saudades e saudades” (aos Reis dos belgas),
ver”, de Lourival de Carvalho, e “O Protocolo”, de B. Silvestre e composta pelo ilustre Ernesto Nazareth (1863-1934), pianista e
Miguel de Azevedo, que relata assim: compositor, navegando entre o clássico e o popular, a quem deve-
mos alguns clássicos do Choro como “Odeon”. “Saudades e sauda-
“O Rei Alberto des”, peça instrumental composta em 1921, um ano após a visita
Ao pisar este solo do casal soberano, toma ares de uma marchinha com cara de valsa.
Mandou às favas Enfim, se tratando da visita real, um outro eminente músico
O protocolo ligado à grande história do Choro, Pixinguinha (1897-1973), se
apresentava com Os Oito Batutas num almoço ao Rei e à Rainha
Conquistou logo dos belgas. Aí estava presente também o maior compositor clássico
Com feliz maestria brasileiro (de inspiração popular), Heitor Villa-Lobos (1887-1959),
Dos brasileiros que apresentou, por sua vez, várias de suas obras. Nessa ocasião, o
A simpatia soberano concedeu a este último a cruz honorária de Santo Leo­
poldo, que o brasileiro recusou sob o pretexto de que ela havia
Assim, Alberto Primeiro também sido dada ao cozinheiro e ao chefe da guarda do palá-
Ao mundo inteiro cio. Pois é, até mesmo os grandes homens conhecem momentos
Deu uma lição de fraqueza e de vaidade, que sejam perdoados de bom grado...!
Mandou a etiqueta
Com pirueta Daniel Achedjian, Doutor em História da Arte, se apaixonou pela
Lamber sabão música e arte popular brasileira; constituiu uma grande coleção em
Bruxelas, onde, como radialista, mantém também o programa “Tro-
O Rei Alberto picalia” na Rádio Judaica.

De rebelde a escritor laureado: Conrad Detrez no Brasil


Peter Daerden

E m 31 de julho de 1962 chegou ao Rio de Janeiro, a bordo do


navio francês Charles Tellier, um jovem belga, algo tímido.
Filho de uma família de açougueiros modestos da região de Liè-
ge, Conrad Detrez tinha 25 anos e acabava de interromper uma
formação de seminarista em Lovaina. Passou primeiro seis meses
na sinistra cidade industrial de Volta Redonda e mudou, depois,

69
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

para o Rio de Janeiro. Lá trabalhou como auxiliar leigo nas favelas, Inspirada pelos Tupamaros do Uruguai, a guerrilha urbana ater-
como na paupérrima Bráz de Pina, mas ao mesmo tempo dava rorizava, no final dos anos de 1960, as grandes cidades brasileiras.
aulas na Universidade Santa Úrsula. Poderia considerar-se Detrez – que provavelmente nunca soltou
Detrez ocupava assim uma posição interessante: entrava em um tiro – como apenas uma nota de rodapé nesta história. Mas,
contato tanto com a cultura popular como com os meios intelec- encarado de maneira mais positiva, ele passa pelo menos por uma
tuais. Esta combinação determinou fortemente sua visão do Brasil, testemunha privilegiada dessa época perturbada. Assim manteve
que era contraditória. Sua atitude era em primeiro lugar de índole uma amizade calorosa com Frei Betto, ainda antes de sua entrada
muito trabalhista. Não gostava nem um pouco da mundana Co- no convento e de tornar-se um influente teólogo da libertação.
pacabana, mesmo esta se passando para a maioria dos estrangeiros Quando Detrez estava, no início dos anos de 1970, na Algéria, co-
como o cartão de visita do Brasil. Não, ele se encantava com a nheceu pessoalmente o exilado Miguel Arraes, um dos próceres da
proletária Zona Norte do Rio. Este bairro era talvez feio, mas tinha resistência brasileira. No tribunal Russell em 1974 – uma conferên-
caráter. Porém, neste olhar romântico sobre as favelas se escondia cia em Roma contra as violações dos direitos humanos no Brasil –,
uma grande contradição, já que Detrez criticaria precisamente, de se encontrou com o excêntrico guerrilheiro Fernando Gabeira. Em
um ponto de vista cada vez mais à esquerda, a pobreza reinante seguida, ambos mantiveram correspondência por pouco tempo.
por lá. Por outro lado, o fascínio de Detrez pela cultura negra e pe- Nos anos de 1970 Detrez continuou seu percurso sinuoso, que
la religião afro-brasileira – que o fez iniciar no candomblé – tinha o levou à Algéria e a Lisboa, onde fazia a reportagem das peripé-
uma forte conotação erótica. No Rio, o ex-seminarista descobriu sua cias da Revolução dos Cravos para a rádio belga. Em matéria polí-
homossexualidade, que projetava quase exclusivamente em negros. tica, se tornou mais reservado e também sua escolha pela literatura
Nada indicava então que Detrez se tornaria mais tarde um era em grande parte ditada pela introspecção. Antes de escrever
escritor laureado. Sem dúvida tinha esta ambição, mas esta se seus romances, Detrez tinha traduzido alguns autores brasileiros
desvaneceu depois do golpe militar de 1964. A partir desse mo- para o francês: Quarup, de Antônio Callado, e Os pastores da noi-
mento, o compromisso com o engajamento político determina- te, de Jorge Amado. Este último manifestou seu agrado em carta.
va sua conduta. Como muitos católicos radicalizados, se tornou Já com Callado, que conhecia pessoalmente, a colaboração ficou
membro da Ação Popular. Já pela sua formação católica, Detrez mais difícil. Literariamente, o Brasil não lhe era tão importante.
nunca sentiu muita estima pelo comunismo, e certamente não por Se relacionava antes com os autores ‘caribenhos’, como o colom-
seus militantes brasileiros. Mesmo assim, se deixou levar de ma- biano García Márquez e o cubano Reinaldo Arenas – ou também,
neira bastante ingênua para a esquerda radical. Isto foi mais uma perto de casa, com o picaresco Charles de Coster.
questão de temperamento do que de compreensão. Nos anos de Estava escrito nas estrelas que o Brasil ocuparia um lugar im-
1960, nutria uma grande admiração por Fidel Castro e Che Gue- portante na sua obra. Depois de dois romances promissores Detrez
vara, que pensava, ou pelo menos esperava, serem os promotores surpreendeu, em 1978, com L’herbe à brûler, um livro que con-
de um marxismo liberal. Também no Brasil tinha que aparecer o tava em boa parte suas aventuras brasileiras numa prosa sensual e
‘Novo Homem’ de Cuba. excitante, sem por isso reincidir nos estereótipos exóticos. Na sua
Em 1967 Detrez foi preso por curto tempo por pretensa subver- narração fortemente autobiográfica, Detrez se revelou um hedo-
são política. Sua detenção não passou desapercebida na imprensa nista puro-sangue, que rejeitava todas as formas de dogmatismo
brasileira. Em manchete, O Globo anunciava: ‘Belga Preso Co- revolucionário. Com isso se aparentava algo com os nouveaux
mo Líder Comunista’. Já o Jornal do Brasil tomou sua defesa: “Os philosophes franceses – se bem que ele mesmo não gostava nem
vizinhos do jovem súdito belga – com trinta anos de idade – têm- um pouco desta comparação.
no como pessoa de hábitos perfeitamente normais e destacam sua L’herbe à brûler foi unanimamente aclamado como uma pe-
cordialidade, seu desejo de servir ao próximo, inclusive pondo-se à quena obra-prima. Com a obtenção do prestigioso prêmio Renau-
disposição dos que lhe pedem pequenos favores, como a redação de dot, o nome de Detrez parecia definitivamente consagrado. A Bél-
cartas pessoais”. gica tinha, depois de Simenon, novamente um autor de impacto
Com a intervenção da diplomacia belga, Detrez pôde, quase internacional. Seguiram-se várias traduções como em neer­landês,
sorrateiramente, deixar o país. Foi morar em Paris, onde partici- português e inglês. A edição inglesa recebeu resenhas relativamen-
pou ativamente da revolução de maio. Mais tarde, em 1968, con- te boas no Time e no The Village Voice. No Brasil, revistas influen-
seguiu fixar-se em São Paulo, onde se tornou jornalista da Folha tes como Veja e IstoÉ foram francamente elogiosas. Nelson Pereira
da Tarde, mas em menos de um ano teve que deixar essa cidade. dos Santos, o padrinho do cinema novo brasileiro, se prontificou
Chegou num ponto em que a repressão ameaçava sua vida. Da a filmar o livro. Infelizmente, este projeto falhou.
França, Detrez queria prestar ainda uma vez uma curta, mas mui- O próprio Detrez regredia. Nunca mais igualou o nível do
to arriscada, contribuição. No maior segredo atravessou o oceano, L’herbe à brûler. No seu romance seguinte, La lutte finale, as fa-
encontrou e entrevistou Carlos Marighella para voltar às pressas. velas do Rio voltaram a formar o cenário. Mas a inspiração ante-
Marighella, chefe da guerrilha brasileira, foi pouco depois execu- rior de Detrez, que era fortemente autobiográfica, minguava de
tado. Detrez resumiu suas ideias num manifesto revolucionário, ano para ano. Interessante foi o ensaio publicado em 1981, Les
Pour la libération du Brésil. noms de la tribu, no qual relatava uma viagem recente ao Brasil.

70
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

Em 1979 Detrez se beneficiou da anistia política oferecida Detrez serviu desde 1982 como diplomata francês na Nicarágua,
pelos governantes de Brasília. Voltou por alguns meses e viu um mas ficou pouco a pouco muito doente. Em 1985 morreu de Aids.
país que se tornou, sob certos aspectos, irreconhecível. Les noms
de la tribu, mais do que um simples diário de viagem, contém Peter Daerden, mestre em História, com passagem pela Universidade
fascinantes considerações sobre o Brasil, a guerrilha dos anos de de São Paulo (USP), juntou em frequentes viagens ao Brasil o mate-
1960 e seu próprio percurso de vida. Esta terminou rápido demais. rial de arquivo e de literatura para uma biografia extensa de Detrez.

Brasil-Europa, via Bruxelas


Antônio Carlos Lessa

D epois de seu retorno ao poder na França, em 1958, o Gene-


ral de Gaulle por diversas ocasiões imprecou contra o forte
componente supranacional que era característico dos Tratados
africana. Com efeito, as produções das colônias e ex-colônias euro-
peias, não apenas de café, mas também de cacau, seriam drama-
ticamente favorecidas pelas medidas de associação comercial que
de Roma, fundadores do processo europeu de integração, que garantiam o acesso em condições privilegiadas, não mais apenas
entraram em vigor justamente naquele ano. Para o líder francês, para a França ou a Bélgica, mas para todos os seis países que então
a Europa das Comunidades e os seus arranjos supranacionais di- fundavam a Europa Comunitária (França, Bélgica, Países Baixos,
minuíam as competências e prerrogativas dos governos dos Esta- Luxemburgo, Itália e República Federal da Alemanha). Entre os
dos-membros e exageravam no limite do absurdo as competências Seis estavam justamente dois dos maiores compradores de café
e a autoridade das burocracias europeias. Desde o início de seu brasileiro, em termos globais, a Alemanha e a Itália.
funcionamento, sediada em Bruxelas, a Comissão Europeia era, Em outra linha de argumentação esboçada pelo governo bra-
na lógica do presidente da França, a tradução perfeita de uma sileiro em sua reação ao Tratado de Roma, se arguia que a inte-
tecnocracia apátrida e irresponsável. gração econômica provocaria uma desvinculação progressiva dos
A evolução da política europeia nos anos seguintes mostrou capitais europeus, atraídos para investimentos na África e em ou-
que o líder francês efetivamente perdeu essa arenga. Ao cabo de tras paragens, enquanto o Brasil, em pleno desenvolvimento in-
mais uns poucos anos encontrou-se uma solução de equilíbrio pa- dustrial, tinha mais do que nunca necessidade da ajuda financeira
ra o desenvolvimento contínuo da integração da Europa, e a sua dos países europeus.
conversão, em pouco mais de 50 anos, em uma grande potência Portanto, os primeiros contatos entre o Brasil e a Europa Co-
econômica e com vocações políticas universais que, de certo mo- munitária foram caracterizados por desconfiança e tensão. De
do, ultrapassam as ambições dos Estados nacionais que tomam pouco, ou quase nada, adiantou o grande esforço diplomático de
parte, hoje, da União Europeia. Mas o que efetivamente não mu- arregimentação levado a cabo pelo governo brasileiro que, tra-
dou foi a permanência de Bruxelas como sede das competências zendo consigo vários outros países latino-americanos, tradicionais
crescentes das Comunidades, ao ponto em que a capital dos bel- exportadores de produtos tropicais, pressionaram contra o Tratado
gas se transformou em metonímia das burocracias que animam e de Roma e, mais especialmente, contra as disposições dos artigos
governam a Europa Comunitária. 131 a 136. Para azar do Brasil e dos seus parceiros latino-ameri-
O Brasil foi o primeiro país latino-americano a estabelecer canos, os dispositivos do Tratado de Roma seriam considerados
relações diplomáticas com a Comunidade Econômica Europeia, legais sob a luz do Acordo-Geral de Tarifas e Comércio-GATT, e
ainda em 1960. Esse gesto se sobrepunha então à reação enérgica não haveria, portanto, via jurídica de recurso acerca da legalidade
que a diplomacia do governo do Presidente Juscelino Kubitschek do ato fundacional da Comunidade Europeia.
esboçou quando do anúncio da assinatura do Tratado de Roma, Esse início pouco auspicioso deu, então, o tom da história
ainda em 1957. Desde então, e praticamente até 1964, o Brasil li- das relações do Brasil com o processo europeu de integração. De
derou a reação dos governos de países latino-americanos, grandes certo modo, a designação do poeta Augusto Frederico Schmidt
exportadores de produtos tropicais, temerosos da perda de espaço como primeiro embaixador brasileiro junto à Comunidade pode
nos mercados europeus diante da associação das colônias e ex-co- ser entendido como um gesto de conciliação com a Europa Co-
lônias europeias à então Europa dos Seis por meio de acordos de munitária nascente ou, no mínimo, como o reconhecimento de
comércio preferencial. que em Bruxelas surgia um respeitável oponente. Schmidt era um
No entender do Itamaraty, a formação do Mercado Comum intelectual e empresário respeitado, do entourage do Presidente
Europeu ensejaria uma diminuição expressiva das exportações de Kubitschek. Atribui-se a ele a paternidade intelectual da Operação
café brasileiro, que se daria mediante a criação de desvios de co- Pan-Americana, e também influência certa sobre vários outros te-
mércio que beneficiariam a produção concorrente, especialmente mas da política externa brasileira daquele momento. Apresentou

71
parte 2 – relações oficiais e diplomáticas

as suas credenciais de Embaixador ao belga Jean Rey, membro da de interesses teve prosseguimento em junho de 1999, com a rea­
Comissão da Comunidade Econômica Europeia. lização da primeira Cúpula de Chefes de Estado e de Governo
Bruxelas entrava, então, de um outro modo e pela segunda da União Europeia e América Latina/Caribe, quando se decidiu
vez, no rol das praças diplomáticas que apresentavam importân- pela formação de um Comitê Birregional de Negociações União
cia central para os interesses internacionais do Brasil, ao lado de Europeia-Mercosul.
Washington, Londres, Paris e Buenos Aires. Funcionando inicial- O início da crise do Mercosul e os alargamentos da União
mente em Paris, a representação do Brasil junto à Comissão foi Europeia, dois processos coincidentes, desfocaram a agenda de
transladada definitivamente para Bruxelas em janeiro de 1961. cooperação inter-regional, enquanto outros temas na dimensão
A missão de Augusto Frederico Schmidt foi breve. Pode-se política e econômica surgiam como prioritários. A partir da década
afirmar que a sua nomeação atendia à necessidade de distender de 2000, o crescimento do perfil internacional do Brasil, com cres-
as relações com a Bruxelas comunitária, e de encetar os difíceis cente protagonismo em diferentes tabuleiros (negociações comer-
processos de negociação que se seguiram ao estabelecimento da ciais, temas ambientais etc.) e com maior visibilidade econômica,
Tarifa Externa Comum, envolvendo tanto o Brasil quanto outros e o crescimento do seu ativismo internacional, levaram a União
países latino-americanos. O Brasil manteve, a partir do estabele- Europeia a reavaliar o conjunto das suas relações com a América
cimento inicial das suas relações com a Europa Comunitária, a Latina. Assim, ao final de 2005, a União Europeia decidiu passar
prática de enviar para a sua representação diplomatas de carreira a privilegiar o Brasil como país-chave da região.
experimentados, somente quebrada com a nomeação de outro O modelo adotado para essa nova estratégia de Bruxelas seguiu
grande intelectual brasileiro, Celso Furtado, que exerceu a chefia o que já estava sendo implementado no manejo das relações da
da Missão entre 1985 e 1986. União Europeia com os seus principais interlocutores – Estados
As relações do Brasil com a Bruxelas comunitária foram, ao Unidos, Canadá, Japão, Rússia, China e Índia –, ou seja, o de
longo de quase cinco décadas, muito tensas. A criação do processo relações de “parceria estratégica”. Ainda que não exista uma de-
europeu de integração teve esse condão: descarregou a pesadíssi- finição clara desde a diplomacia comunitária do que sejam esses
ma agenda contenciosa envolvendo questões comerciais que exis- vínculos, eles têm muito em comum: densas e dinâmicas correntes
tiam com alguns dos seis membros originais (especialmente com de comércio, amplos contatos bilaterais, intensidade de vínculos
a França), mas produziu um grande polo contencioso, justamente políticos e agendas compartilhadas.
a Europa Comunitária. As demandas recorrentes do Brasil, que se O Brasil foi ungido como parceiro estratégico da União Euro-
juntava aos demais países latino-americanos, estiveram ao longo peia em 4 de julho de 2007, por ocasião da primeira Conferência
desse período principalmente circunscritas ao acesso aos merca- de Cúpula Brasil-União Europeia, reunindo a Tróica do Conse-
dos, ao tratamento tarifário conferido aos produtos tropicais e às lho Europeu e o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Trata-se
tentativas de circundar os graves desvios de comércio que se pro- do reconhecimento da singularidade assumida pelo Brasil nas re-
duziram pela associação das antigas colônias europeias. lações internacionais contemporâneas, de certo modo, tradução
A Bruxelas comunitária se convertia, desse modo, em um im- do peso específico que o País tem assumido para a economia e a
portante centro nevrálgico e essencialmente conflituoso das rela- política global.
ções internacionais do Brasil. Esse relacionamento assim perma- Trata-se de uma transformação de vulto no desenvolvimento
neceu praticamente até o início da década de 1990. Nesse longo das relações do Brasil com a Europa Comunitária e oferece uma
momento, não há que se falar em cooperação política, uma vez moldura institucional para a organização do diálogo de alto nível
que a América Latina em geral constituía um ângulo cego das prio- e com pleno potencial para o desenvolvimento de uma agenda
ridades internacionais da Europa comunitária e pode-se afirmar de cooperação bilateral que envolve os desafios da liberalização
que assim seguiu até o estabelecimento do Mercosul, em 1991. comercial, o acesso aos mercados agrícolas, meio ambiente e aque-
O surgimento de um novo processo de integração, em região cimento global, a reforma das organizações internacionais (e o
que foi a periferia das prioridades internacionais da Europa, não papel que o Brasil pode nelas desempenhar) e o reforço da ordem
deixou de ser um motivo de alento para a organização de uma internacional multipolar. Mais do que nunca, o futuro da projeção
nova agenda de cooperação. Com efeito, o bloco sul-americano internacional do Brasil passa por Bruxelas.
surgia como o maior parceiro comercial e principal destino dos
investimentos europeus na região. Em 1992 firmou-se um Acordo Antônio Carlos Lessa é professor do Instituto de Relações Internacio-
de Cooperação Interinstitucional, seguido em dezembro de 1995 nais da Universidade de Brasília e pesquisador do Conselho Nacional
pelo Acordo Marco Inter-regional de Cooperação. A articulação de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq.

72
o comércio

parte 3

Relações Econômicas:
Comércio e Empresas

73
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

74
o comércio

O Engenho dos Erasmos ou dos Esquetes em São Vicente


Eddy Stols e Silvio Cordeiro

U m dos primeiros engenhos de açúcar no Brasil, o Engenho


do Governador em São Vicente, é também o mais antigo
investimento de mercadores flamengos no Novo Mundo (Stols e
depois da introdução de seu plantio no Brasil por Dom Manuel,
sua produção provinha, na época, principalmente da Madeira e
das Canárias, onde outros mercadores flamengos tinham insta-
Cordeiro). Construído nos anos de 1530 pelo donatário da capi- lado engenhos.
tania, Martim Afonso de Sousa, contava entre seus sócios Johan No intuito de ampliar o abastecimento com a produção brasi-
Van Hilst, aliás João Veniste, nativo de Hasselt, que representa- leira e preocupado em rentabilizar sua nova propriedade, Erasmo
va em Lisboa os interesses de seu tio, Erasmo Schetz. Este, de enviou um servidor flamengo de sua filial de Lisboa a São Vicente
origem alemã, mas nativo de Maastricht e casado com uma rica para fiscalizar a gestão do feitor Pedro Rouzée. Pode ter sido um
herdeira de Antuérpia, Ida van Rechtergem, controlava na re- outro sobrinho seu, Sydrach Schetz, filho bastardo do irmão cô-
gião de ­Aachen a exploração de calamina e cobre e a produção nego em Maastricht, Willem Schetz, que no seu testamento de
de bacias e manilhas de latão, em parte destinadas ao comércio 1527 lhe confiou sua tutoria e uma pensão. O mesmo Sydrach
português na África ocidental. Esquete apareceu, em 1557, na Inquisição de Lisboa como capi-
Assim, granjeava longa experiência comercial em Portugal, on- tão do navio São Jorge, vindo do Brasil e acusado de luteranismo.
de tratava também especiarias, açúcar, trigo, tapeçarias ou mesmo O relatório deste agente, escrito em flamengo e enviado de
cerveja. Gozava da confiança de Dom Manuel e de Dom João III, São Vicente em 13 de maio de 1548 – um dos mais antigos deste
provavelmente para empréstimos de dinheiro. Regressando a Flan- tipo no novo mundo –, prefigura um raro exemplo de auditoria
dres, desenvolveu, sem abandonar o comércio, sua atividade ban- moderna e surpreende por sua fria capacidade de análise capita-
cária na praça de Antuérpia, prestando serviços financeiros tanto lista. Encontra o engenho como uma pequena fortaleza, elevada
ao humanista Erasmo de Roterdã como ao imperador Carlos V. e munida com baluartes para sua defesa contra os índios ou ou-
Bem relacionado no meio mercantil e intelectual desta metrópo- tros invasores. Consta de uma casa grande, bem construída, espa-
le cosmopolita, transformou a casa de seu sogro, Huis van Aken, çosa, com senzala e ferraria e mais duas casas cobertas de telhas.
numa das melhores residências de Antuérpia, onde recebeu, em Apenas a roda d’água do engenho precisa de consertos e deveria
1549, Carlos V e seu filho, Felipe II. Para assegurar o enobreci- ser remontada para cima, a fim de evitar as inundações da ma-
mento de sua estirpe, Erasmo adquiriu em 1545 a senhoria e o ré. Produz 900 arrobas de açúcar, mas apenas 400 exportam-se
castelo de Grobbendonk. Seus filhos continuaram nesta senda a Portugal, porque, por falta de moeda circulante, os serviços e
senhorial, se bem que os descendentes de Gaspar, casado com as mercadorias pagam-se com açúcar. O próprio agente deve no
Catarina van Ursel, adotaram este nome e conhecem-se ainda pagamento de suas mercadorias contentar-se com uma letra de
hoje como duque e condes d’Ursel. câmbio sobre Antonio Becudo em Lisboa. Outro problema sério
A compra por Erasmo, nestes anos de 1540, das outras partes numa terra de muitos degredados e malandros é a ausência de um
do engenho em São Vicente podia corresponder ao anseio de in- aparato judiciário eficiente.
serir-se socialmente entre os outros grandes banqueiros, Fugger e Para aumentar a produção, julga indispensável recuperar as
Welser, que também lançaram empresas coloniais na América. terras cedidas ou ocupadas pelos moradores e comprar novas ro-
Tinha sobretudo a ver com a fulgurante expansão do negócio ças. Rouzée já conseguiu incorporar 32 tarefas a mais. Com mais
açucareiro, do qual Antuérpia, com grandes refinarias e nume- cana própria, dispensar-se-ia de moer aquela dos moradores a custo
rosos confeiteiros, projetava-se como o maior centro da Europa maior. Para alcançar esta autarquia e ao mesmo tempo suprimir
setentrional. Se na entrada do Rio Escalda a tabela do pedágio de os salários da mão de obra livre, dispõe-se de uma numerosa escra-
Iersekeroord mencionou o açúcar ‘Bresilli’ já em 1519, três anos varia, se bem que destes 130 escravos da terra, somente a metade

75
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

Um dos primeiros engenhos de açúcar no Brasil, o Engenho do Governador em São Vicente, de 1530, é também o mais antigo investimento de mercadores flamengos
no Novo Mundo.

trabalha, o resto sendo velhos ou crianças. O relator aprecia muito sofreram pouco depois dramáticas perdas de vida, de fortuna e
mais os oficiais africanos, sete ou oito escravos negros da Guiné: o de prestígio durante a tormentosa guerra civil subsequente à re-
mestre de açúcar, que fornece um produto de excelente qualidade volta contra Felipe II. Nem por isso deixaram seu engenho num
e vale bem o salário de trinta mil réis, que na Madeira pagaria-se abandono completo e enviaram para lá, por várias vezes, navios
para um semelhante; e mais um purgador e dois caldeireiros, que com abastecimentos e novos empregados, como Jean-Baptiste
também dispensam as quatro arrobas de açúcar, pagas normal- Maglio, Paulo Wernaerts, um jovem cunhado de Van Hilst, e
mente por mês a cada oficial livre. A compra de mais escravos Geronimo Maya.
para fazer carvão e cinzas e plantar mantimentos economizaria Em 1565, Conrart Schetz e seu parente Jehan Vlemincx in-
o dinheiro gasto nas compras aos moradores. Aconselha por fim vestiram pouco mais de 1.300 libras em mercadorias, equipamen-
de reforçar sua dieta de produtos da terra, como a ‘panqueca de tos, ferros e até canhões, despachados num navio português. Em
mandioca’, que vale cem réis e alimenta uma pessoa por três ou 1579, o navio Licorno levou seis fardos pelo valor de mais de mil
quatro dias, com carne, bacalhau ou outros peixes salgados e quei- florins (Laga). Seu conteúdo reflete o cotidiano no engenho, que
jos flamengos e holandeses. misturava uma vida senhorial escravocrata com requinte burguês
Desconhece-se a sequência dada às suas propostas, mas quan- flamengo. Trazia, ao lado de quatro dúzias de camisas e outras tan-
do Erasmo faleceu pouco depois, em 1550, seus filhos e herdeiros tas de pratos de madeira destinados aos escravos, também tecidos
– Gaspar, Baltasar, Melchior e Conrart – formaram uma compa- mais finos, lençóis de cama, guardanapos, utensílios de cozinha,
nhia, que devia também gerenciar o engenho. Este, no período panelas para peixe, pratos de estanho, canecas para vinho e até
conturbado das investidas francesas nas costas brasileiras, tornou- uma batedeira de manteiga. Se vinham caldeirões, tachos de ferro
se um ponto de encontro e refúgio, conhecido como Engenho de e de cobre e material de ferraria, não faltavam uma escrivaninha,
São Jorge dos Erasmos ou dos Esquetes. Por lá deviam ecoar as papel e pena, e para o auxiliar Paulo Wernaerts um clavicórdio.
controvérsias religiosas entre protestantes e católicos como tam- Tocava-se música renascentista no engenho dos Erasmos! Seguia
bém a curiosidade humanística pela natureza e pela cultura dos também uma quantidade surpreendente de pinturas e imagens,
índios. Dois soldados alemães, que passaram pelo engenho, vie- uma parte talvez para ornar a capela do engenho, mas sobretu-
ram na sua volta por Antuérpia contar aos Schetz suas aventuras, do destinadas à catequese dos índios pelos jesuítas. Estes padres,
Ulrich Schmidl em 1554 e Hans Staden em 1555. inclusive o famoso Anchieta, mantinham contatos com Gaspar
O livro deste último sobre sua catividade entre os canibais Schetz, que em Antuérpia lhes tinha vendido a Huis van Aken.
foi traduzido para o flamengo e publicado, em 1558, em Antuér- Vigiavam particularmente o comportamento moral do feitor e de
pia por Christophe Plantin, que lançou simultâneamente uma seus auxiliares em São Vicente.
edição barata do livro de André Thevet sobre as singularidades Estes subalternos apropriaram-se provavelmente de uma boa
brasileiras. Este interesse podia relacionar-se com a propriedade parte dos bens e o rendimento do engenho entrou em crise, ain-
brasileira dos irmãos Schetz. Estes, muito envolvidos na vida fi- da mais durante as incursões em Santos de piratas ingleses e ho-
nanceira, política e cultural de sua cidade e dos Países Baixos, landeses no final do século. Mesmo assim, os netos de Erasmo,

76
o comércio

já completamente integrados na vida nobiliária e militar, não es- souberam aproveitar a dinâmica e ganhar um notável predomínio
queceram seus direitos sobre suas posses brasileiras. Desde 1603 desta rota açucareira. No mercado de Antuérpia o produto brasilei-
tentaram enviar, sempre por intermédio dos jesuítas, um procu- ro aumentou sua cota de aproximadamente 15% por volta de 1570
rador para investigar estas malversações. Finalmente, em 1612, o para mais de 85% no último decênio do século XVI. Sua nova
mercador flamengo Manuel van Dale conseguiu chegar até lá e abundância abriu o consumo do açúcar, antes reservado à medi-
lavrou em Santos, junto com os jesuítas, um protesto para obstruir cina e à aristocracia, a uma clientela mais larga, mesmo popular
a venda, pelo provedor de ausentes, dos bens dos Schetz, dos es- e infantil. Nas pinturas dos Breughel até o camponês rendeiro é
cravos e equipamentos de cobre. De pouco adiantou porque, em presenteado por seu patrão com um pão de açúcar.
1615, na sua volta ao mundo, o pirata Joris Van Spilbergen – por Com a reconquista católica de Antuérpia, em 1585, e o subse-
sinal um antuerpiense passado para o lado dos rebeldes holandeses quente bloqueio do Rio Escalda pelos holandeses, Antuérpia viu
– passou por São Vicente e, não obtendo ajuda nem abastecimen- partir muitos refinadores para Amsterdã e teve que lhe ceder sua
to entre os habitantes, mandou por vingança incendiar o enge- supremacia. Mesmo assim, recebia através de Lisboa suficientes
nho dos seus conterrâneos. Se este desapareceu do horizonte dos caixas de açúcar brasileiro – em média duas mil no período de
Schetz, continuou a produzir açúcar, beneficiado em marmeladas 1609-1621 – para manter uma requintada cultura da doçaria. O
e outras conservas apreciadas na economia regional. que Antuérpia perdia em quantidade compensou em boa parte
Finalmente, o terreno com as ruínas do engenho, localizado pela qualidade de seu açúcar mais fino e pela diversidade de seus
no atual município de Santos e tombado pelo patrimônio históri- confeitos, um luxo representado e celebrado nas naturezas mortas
co, foi doado em 1958 à Universidade de São Paulo (USP). Esta de Osias Beert, Clara Peeters e outros pintores deste estilo antuer-
o valorizou desde 2005 com pesquisas arqueólogicas e projetos piense, como o alemão Georg Flegel.
educacionais e construiu ao lado um centro de estudos com bi-
blioteca e auditório. Do lado belga ou flamengo não percebeu- Silvo Luiz Cordeiro, arquiteto pela Faculdade de Arquitetura e
se ainda o significado e o potencial comemorativo deste monu- Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), Doutor em
mento como elo tanto econômico como cultural entre Flandres, Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE
Portugal e o Brasil. -USP) e documentarista, desenvolve projetos relacionados ao patri-
Se os investimentos brasileiros dos Schetz resultaram onerosos mônio histórico e arqueológico, como um filme sobre o Engenho dos
pela distância e pelo controle difícil e lhes renderam finalmente Erasmos; em 2011 criou a Mostra Audiovisual Internacional em
poucos lucros, foram ao mesmo tempo estimulantes e corretivos Arqueologia (MAIA).
para o desenvolvimento da produção açucareira no Brasil e para
a sua concentração nas capitanias do Nordeste, mais próximas da Referências
Europa. Lá, em Pernambuco ou na Bahia, outros mercadores se- Carl Laga. ‘O Engenho dos Erasmos em São Vicente; Resultado de pesquisas em arquivos
guiram o exemplo dos Schetz e construíram engenhos, como os belgas’. Estudos Históricos, Marília, n. 1, 1963, p. 13-43. Eddy Stols. ‘Um dos primei-
Lins e os Hoelscher, alemães conectados com Antuérpia. Mais ros documentos sobre o Engenho dos Schetz em São Vicente’. Revista de História,
São Paulo, n. 76, 1968, p. 407-419. Eddy Stols. ‘The Expansion of the Sugar Market
jovens flamengos ousaram aventurar-se na compra de açúcares in Western Europe’. Ed. Stuart B. Schwartz, Tropical Babylons, Sugar and the Making
nas costas brasileiras e um deles, Gaspar de Mere, ergueu até seu of the Atlantic World, 1450-1680, University of North Carolina Press, 2004, p. 237-
próprio engenho no Cabo de Santo Agostinho, perto de Recife. 288. Daniel Strum. O Comércio do Açúcar. Brasil, Portugal e Países Baixos (1595-
1630). Rio de Janeiro, 2012.
Sobretudo os cristãos novos portugueses, católicos ou judaizantes,

A Companhia de Ostende e os portos brasileiros


Eddy Stols

N ovas perspectivas de contatos marítimos com o Brasil apa-


receram quando os Países Baixos meridionais passaram, em
1713, do domínio espanhol para o austríaco sob o Imperador
Seus bons lucros com produtos em voga, como o chá, leva-
ram, no final de 1722, à fundação, com patente do imperador, da
Compagnie Générale Impériale et Royale des Indes, mais conhe-
Carlos VI, um soberano benevolente. Já que o Rio Escalda e o cida como Companhia de Ostende. Sua concorrência ameaçou o
porto de Antuérpia continuaram bloqueados pelos holandeses, quase monopólio das poderosas Companhias das Índias orientais
os negociantes flamengos lançaram-se logo no comércio asiático existentes, principalmente a holandesa e a inglesa. Estas hostili-
a partir do porto de Ostende e armaram seus primeiros navios zaram os navios de Ostende, que na rota do regresso fizeram es-
para Mocha, na Arábia, Surate, Malabar e Bengala, na Índia, e cala na colônia do Cabo ou na ilha de Santa Helena à procura de
Cantão, na China. assistência e refrescos.

77
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

Esboço de Fernando de Noronha por Henri Carlos Gheyselinck realizado para Dois navios, o Marquis de Prié e o Concordia, visitaram, em 4 de maio de 1728,
a Compagnie Générale Impériale et Royale des Indes, mais conhecida como o arquipélago de Fernando de Noronha e examinaram seu potencial como escala
Companhia de Ostende, 1728. para a Companhia.

Em situação de desespero, um primeiro navio de Ostende, o tilha dos marinheiros, ou até com contrabando de ouro nas costas
Sint-Mathieu, entrou em 1716 no Recife e obteve limões e água brasileiras. Além disso, a Companhia enviaria navios menores de
para salvar os tripulantes doentes. Em dezembro de 1720, o Con- aviso rumo a Ostende, Recife e Bahia, levando material náutico
cordia conseguiu no Rio de Janeiro pagar os alimentos frescos com de substituição, como âncoras, e notícias sobre a situação militar
a venda de seis escravos. Entretanto, quatro oficiais foram presos na Europa e a melhor rota para escapar dos inimigos. Pelo menos
nas ruas da cidade sob suspeita de comércio ilícito e somente sol- uma dezena de navios de Ostende entraram assim nos portos do
tos por intermédio do bispo. O navio seguiu para o Recife, onde Rio de Janeiro, da Bahia e do Recife.
vendeu tecidos indianos. Um outro navio de Ostende ancorou na No entanto, apesar das negociações entabuladas com a Corte
Bahia em 1721. de Lisboa, não foram recebidos pelas autoridades portuguesas co-
Com estes precedentes, os diretores da Companhia imagina- mo esperavam. Particularmente o vice-rei na Bahia mostrava-se
ram uma nova rota e logística marítima para recorrer sistema- muito rigoroso. Em maio de 1727, com a chegada de quatro na-
ticamente aos portos brasileiros. Os capitães deviam valer-se de vios, limitou sua permanência, colocou soldados a bordo e confi-
um passaporte do imperador e do parentesco deste com o rei de nou os quatro capitães e seus sobrecargos numa casa com guardas.
Portugal. Poderiam vender uma parte de suas mercadorias para Interditou sob pena de morte qualquer comércio e encarregou
pagar o abastecimento e oferecer presentes de seda, porcelanas seus fiscais da Fazenda do abastecimento. O preço muito alto deste
ou tecidos de até o valor de 800 a 1.000 pistolas. Provavelmente podia encobrir alguma corrupção. Um quinto navio chegou em
especulavam com mais negócios por lá, pelo menos com a paco- julho no Recife, onde os alimentos frescos eram mais baratos e um

78
o comércio

Aquarela de Fernando de Noronha por Henri Carlos Gheyselinck, 1728.

agente pretendia, mediante uma gratificação, garantir no futuro terra, seus doentes de escorbuto sararam em dois dias. Sabiam do
uma recepção mais benevolente. malogro holandês em estabelecer-se por lá por causa dos ratos,
Procurando uma alternativa, a Companhia cogitou criar um mas achavam possível tentar de novo. Bastava introduzir gatos
posto em Fernando de Noronha. Dois navios, o Marquis de Prié para comer os ratos e plantar.
e o Concordia, visitaram, em 4 de maio de 1728, o arquipéla- Não consta que os navios de Ostende voltaram, uma vez que,
go e examinaram seu potencial como escala estratégica para a por pressão dos holandeses e ingleses, a Companhia foi interditada
Companhia. Num levantamento geográfico, Cortmemoriael van em 1731 e finalmente liquidada em 1734.
‘t Eylant Fernando de Noronha, com esboços e uma aquarela por
Henri Carlos Gheyselinck, constataram que, apesar dos abrolhos Referências
e corais, era possível ancorar sem danos. Encontraram boa água, Arquivo Municipal de Antuérpia, Fundo GIC, #5.704, 5.929 e 5.931; Biblioteca Real, Bru-
beldroegas, cabritos, pombas, vacas selvagens e muito bom peixe. xelas, Manuscritos, II-161, Jornal do Concordia; Biblioteca Universidade de Gand,
Em três noites capturaram 14 tartarugas de 500 a 600 libras. Em Fundo Hye-Hoys, Manuscrito 1837. Eddy Stols. ‘A Companhia de Ostende e os Portos
Brasileiros’. Estudos Históricos, Marília, n. 5, 1966, p. 83-95.

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parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

Antuérpia e os diamantes do Brasil


T i j l Va n n e s t e

Q uando nos anos de 1723 e 1724 foram extraídos os primei-


ros diamantes no Rio Jequitinhonha, na região do Serro em
Minas Gerais, Antuérpia já tinha uma longa tradição de comércio
no Brasil a lavra de pedras se liberou do monopólio, importava di-
retamente ou por intermédio de comerciantes franceses. Se a par-
tir de 1867 começaram a predominar as pedras da África do Sul,
e lapidação de diamantes. As pedras brutas eram importadas prin- os diamantes brasileiros continuaram chegando, principalmente
cipalmente da Índia pela Carreira portuguesa e por intermédio de dos novos centros de extração, como Lençóis, na Chapada Dia-
mercadores flamengos ativos em Lisboa nos séculos XVI e XVII. mantina. Capital belga foi investido na formação de companhias
Desde 1582 uma guilda reunia e regulamentava os mestres lapi- francesas, como a Boa Vista. Ainda em 1923 uma parada festiva
dários e polidores, que cravejavam as pedras em alfaias litúrgicas da Antuérpia diamantária celebrava com um carro alegórico sua
para o culto católico e em joias para a nobreza e a rica burguesia. gratidão a essa riqueza brasileira.
Boa parte destinava-se à venda em Paris e na corte francesa, mas A dianteira de Antuérpia se devia sobretudo ao desenvolvimen-
também em Viena, Milão, Constantinopla e Moscou, ou até nas to industrial da lapidação. Já em 1842 Jean-Jacques Bovie insta-
cortes da própria Índia. lou no seu ateliê uma primeira máquina a vapor, que funcionaria
Rapidamente, a abundância dos diamantes brasileiros provo- quase exclusivamente com pedras brasileiras. Com o tempo essa
cou uma queda de preços e o pânico entre os negociantes em indústria diamantária exportava também instrumentos e know-how
Londres, Amsterdam e Antuérpia. Para melhor controlar o mer- para o Brasil. Discos utilizados para lapidar pedras preciosas no
cado, a Coroa portuguesa decidiu, em 1753, aplicar ao comércio final do século XIX vieram da companhia G. J. de Winter & Fi-
diamantário na Europa um sistema semelhante ao monopólio já lho, de Antuérpia. Numa visita a Lençóis, em 1920, o jornalista
operativo na mineração desde 1739. Entre os interessados nesta belga S. Hartveld notou que as máquinas de lapidação eram de
exclusividade se apresentou um rico mercador de Antuérpia, Ja- origem antuerpiana.
mes Dormer, de origem inglesa, mas casado na burguesia local. Entrementes, desde o final do século XIX o potencial indus-
Ele tinha boas conexões com uma firma anglo-judaica de Lon- trial e comercial de Antuérpia se beneficiou bastante com a che-
dres, Francis e Joseph Salvador, muito importante no mundo dos gada de judeus fugitivos dos pogroms na Europa oriental e melhor
diamantes e em contato com os governantes portugueses. Juntos conectados internacionalmente, particularmente com Amsterdã
fizeram uma proposta para comprar a cada ano 25.000 a 30.000 e Paris. Empresários judeus deste circuito fugiram no contexto
quilates de diamantes brasileiros, por um período de três anos. da Segunda Guerra Mundial para o Brasil, alguns com vistos do
Não se concretizou. Ao passo que os Salvador sofreram grandes embaixador brasileiro em Vichy, Souza Dantas, e operaram uma
perdas no terremoto de Lisboa em 1755, o Marquês de Pombal nova transferência tecnológica. Significativa desta interação e da
deu preferência aos mercadores holandeses, que fortaleceram o modernização da joalharia no Brasil foi a atribuição, em 2003, de
predomínio de Amsterdã no comércio diamantário. um Antwerp Diamond Award a um bracelete da designer brasileira
Não obstante, Antuérpia continuou a receber indiretamente Gláucia Silveira.
muitas pedras brasileiras e sua guilda viu subir o número de apren-
dizes em até quase 80 por ano por volta de 1765. Como Amster- Tijl Vanneste, historiador especializado em história global e em his-
dã se reservava as pedras melhores e enviava as pequenas ou de tória da América do Sul nos séculos XVII-XIX, trabalha atualmente
baixa qualidade para Antuérpia, seus lapidários se especializavam na Universidade de Exeter e tem afiliações com a Universidade Paris-
particularmente na talha de roosjes ou diamante-rosa para joias VII e a Universidade Nova de Lisboa.
mais baratas. Entre as mais correntes figuravam os ‘hertekens’ ou
corações, que os filhos ofereciam à sua mãe no dia da Assunção Bibliografia sobre os diamantes
da Virgem, em 15 de agosto, costume consagrado posteriormen- S. Hartveld. Schetsen uit Brazilië, Antuérpia, 1921; Iris Kockelbergh, Eddy Vleeschdrager
te e comemorado até hoje como o dia das mães em Antuérpia. e Jan Walgrave (eds). The Brilliant Story of Antwerp Diamonds, Antuérpia, 1992; Tijl
Durante o século XIX, Antuérpia conseguiu revigorar seu setor Vanneste. Global Trade and Commercial Networks: Eighteenth-Century Diamond
Merchants, Londres, 2011; Nicolaas Verschuur. Brieven uit Brazilië, 1897-1902. Ams-
diamantário. Dependia agora menos de Amsterdã e, uma vez que terdam, 1989.

80
o comércio

A barca de três mastros ‘Dyle’ da Société Maritime Belge, que no 14 de julho de 1846 deixou Antuérpia para o Rio de Janeiro com 162 emigrantes a bordo.

A toda vela para o Brasil, impressões do passado marítimo oitocentista


J a n Po s s e m i e r s

‘A ntuérpia deve o Escalda a Deus e todo o resto ao Escalda’


é voz corrente nesta cidade à margem do Rio Escalda. Es-
te ficou durante mais de dois séculos fechado à navegação, mas
A revolução de 1830

Depois da revolução belga de 1830, dezenas de mercado-


depois de sua reabertura em 1795 o porto recuperou seu caráter res-armadores migraram para Roterdã ou Amsterdã, já que a
internacional. Uma vez que o Brasil, por decreto de 28 de janei- bandeira belga não era bem-vinda nas colônias holandesas. En-
ro de 1808, admitiu navios estrangeiros, não demorou muito o tretanto, Antuérpia conseguiu restabelecer rapidamente os con-
interesse de Antuérpia por este país. No final dos anos de 1820, tatos com a América Latina. Melhor ainda: os portos latino-a-
quando a Bélgica constituía ainda junto com a Holanda o Reino mericanos tornaram-se o principal destino dos veleiros belgas
Unido dos Países Baixos, Antuérpia já recebia uns 15 navios do de longo curso.
Brasil. O armador-negociante Adriaan Saportas era, ao lado de O primeiro navio de bandeira belga a chegar ao porto do Rio
outros, um ativo importador de produtos brasileiros, como café, de Janeiro em 2 de janeiro de 1832 foi o brigue antuerpiense La
açúcar e couros. Figurava também como diretor da Société d’Ar- Paix do armador Joseph Muskeyn. Parece que custou ao capitão J.
mement d’Anvers pour le Brésil, que procurou organizar um ser- Roose sete dias de negociações antes que as autoridades – por in-
viço regular entre Antuérpia e o Rio de Janeiro. tervenção do cônsul da França – reconhecessem o tricolor belga e

81
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

lhe dessem as boas-vindas com sete tiros de canhão. O Paix entrou por iniciativa dos próprios negociantes-armadores antuerpienses.
no Rio num momento pouco propício porque uma revolta contra Alguns eram muito interessados e ativos na rota do Brasil, outros,
Pedro I perturbava o comércio. Em 12 de agosto o brigue estava apenas esporadicamente. A barca Marie Key, de propriedade do
de volta a Antuérpia, carregado com, entre outros, 340 sacos de armador antuerpiense Jean Key, fez entre 1839 e 1862 um total
café para a firma J. L. Lemmé. Em 1836 chegaram 22 navios do de 35 viagens, das quais nada menos que 21 para o Rio de Janeiro
Brasil ao porto do Escalda, em 1845, 59, e em 1848 já eram 70. (12 vezes em direitura desde Antuérpia e nove vezes de um outro
Os navios estrangeiros procedentes do Brasil em Antuérpia ultra- porto: Cardiff, Cádiz, Lisboa ou Setúbal).
passavam quase sempre em número os belgas, ainda mais porque Outros navios de Key frequentavam menos o Brasil: a barca
a marinha mercante belga continuou de tamanho muito modesto. Jean Key fez entre 1829 e 1855 um total de 39 viagens, das quais
A viagem de Antuérpia ao Rio levava em média 50 dias. A volta somente três para o Rio de Janeiro. Muito ativo na rota do Brasil
à Europa durava pouco mais, cerca de 60 dias, já que os veleiros foi também Egide Van Regemortel, proprietário entre 1830 e 1866
precisavam procurar no Oceano Atlântico setentrional os ventos de uma dezena de veleiros. Sua escuna Octavie partiu, entre 1847
do ocidente. As tempestades e as bravuras do capitão e de seus e 1867, 11 vezes para o Rio, uma vez para a Bahia e 17 vezes pa-
marinheiros fizeram entrar a viagem ao Rio no imaginário popu- ra o Maranhão e o Pará. Ladislas Paridant, casado com uma filha
lar no romance In ‘t schipperskwartier: tafereelen uit het Vlaams- do importante armador Cateaux-Wattel e que negociava no Rio
che volksleven, de Domien Sleeckx (1861). Existia aliás no bairro de Janeiro, expôs suas ideias a este respeito no livro Des lignes de
portuário um café Rio. navigation entre l’Europe et le Brésil (Liège, 1855).
Na ida para o Brasil os veleiros antuerpienses carregavam geral-
Armadores, navios e cargas mente sal, carvão ou mercadorias isoladas. Na falta de uma carga
lucrativa navegavam com lastro. Na volta traziam café, açúcar e
Nos anos de 1840 e 1850 a Société Maritime Belge de Bruxelas couros, que tinham mercado garantido na Europa. Também era
era a principal companhia marítima belga na rota do Brasil. A em- o caso para navios dos quais o primeiro destino era a costa Leste
presa possuía entre 1837 e 1856 um total de 13 veleiros. Em 1841 dos Estados Unidos, mas que, na volta à Europa, procuravam boas
ela fechou com o governo belga, que queria apoiar a marinha mer- cargas em portos latino-americanos: café brasileiro, açúcar cubano
cante e incentivar a exportação de produtos belgas, um contrato ou produtos do Rio de la Plata. Egide Van Regemortel trazia do
de exploração de uma linha direta e regular para o Rio de Janeiro, Maranhão e do Pará para Antuérpia couros, algodão e borracha,
inicialmente continuada até Valparaiso. Em 1842 já se organiza- sob o nome de ‘Gom-Elastic’, além de arroz, cacau, café, bálsamo
ram cinco partidas. Seguiram outros destinos ultramarinos, entre de copaíba, tabaco e salsaparrilha.
os quais Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Sul. Nestas linhas
publicava-se para cada saída uma adjudicação. A Comissão para a Emigrantes
navegação a vela avaliava os candidatos e designava, depois de um
exame técnico dos navios, o preferido. Por princípio somente acei- Um tráfico bem particular envolvia os emigrantes. Muitos mi-
tavam-se veleiros de primeira classe, ataviados de cobre e sob ban- lhares de europeus se dirigiram por meados do século XIX a partir
deira belga. Cada travessia era subsidiada pelo governo da Bélgica. de Antuérpia para a América do Sul. Assim, o Phénomène, uma
Por mais importantes que fossem as linhas de veleiros previs- galera de Egide Van Regemortel, partiu em agosto de 1846 com
tas pelo governo, a maior parte das partidas para o Brasil fazia-se 253 emigrantes para o Rio de Janeiro. Na sua esteira seguiu em

Alexandre Baguet e Urbain Flebus

O antuerpiense Alexandre Baguet (1817-1897) viajou em 1842 para o Rio de Janeiro onde ficaria uns dez anos. Em 1845 começou uma jornada
audaciosa pelo Rio Grande do Sul e Paraguai. De regresso a Antuérpia, Baguet fez fortuna como negociante. Em abril de 1874 foi nomeado vi-
ce-cônsul do Brasil. No mesmo ano publicou seu relato da viagem, Rio-Grande-do-Sul et le Paraguay. Souvenirs de voyage. Baguet escreveu mais
dezenas de artigos sobre o Brasil na revista da Société Royale de Géographie d’Anvers. Milton Costa traduziu e editou sua Viagem ao Rio Grande
do Sul, Santa Cruz do Sul, 1997. • Urbain Flebus (1839-1853) era um sobrinho de Alexandre Baguet e pertencia a uma família antuerpiense de bo-
as posses. Mesmo assim, com apenas 12 anos de idade, Flebus fez em 1851 sua primeira viagem marítima à América do Norte e à Ásia. Em 8 de
setembro de 1852 partiu de novo, esta vez como novice na barca Indépendance, com destino ao Rio de Janeiro, onde chegou em 6 de novembro.
Carregado com 3.200 sacos de café a Indépendance iniciou em 29 de novembro a viagem de volta, mas deixando Urbain Flebus muito doente no
Rio. Faleceu lá, talvez de febre amarela, em 9 de janeiro de 1853, com seus 14 anos ainda não cumpridos. • A Indépendance era propriedade da
Société Maritime Belge. Entre 1839 e 1856 a barca fez 19 viagens para o Brasil. Em julho de 1856 o navio sofreu avarias entre a Bahia e o Rio de la
Plata. Regressada à Bahia a Indépendance foi declarada imprópria em 16 de agosto de 1856 e vendida.

82
o comércio

A marinha belga

Já que os armadores antuerpienses lidavam com uma contínua falta de tripulantes, nos anos de 1830 e 1840 colocavam-se oficiais e marujos da
marinha nacional à disposição da marinha mercante. O governo pagava o ordenado e fornecia os víveres. Assim, partiu o brigue Caroline (capi-
tão Petit) em 24 de junho de 1835 com uma tripulação militar para o Rio. Voltou em janeiro de 1836 a Antuérpia carregado de café para os im-
portadores Lemmé e Nottebohm. Parece que trazia também uma rica coleção de plantas brasileiras e um casal de pássaros exóticos para o Rei
Leopoldo I. • A própria marinha belga chegou a frequentar os portos brasileiros. O brigue de guerra Duc de Brabant passou em 1847 pelas costas
latino-americanas e visitou Santa Catarina e o Rio. No dia 6 de abril de 1855, o brigue ancorou de novo na baía de Santa Catarina, onde os belgas
quiseram visitar seus compatriotas que residiam por lá. No Rio, o Estado Maior do Duc foi recebido pelo hospitaleiro cônsul-geral belga, Edouard
Pecher, e sua esposa, outra filha do armador Cateaux-Wattel. Tenente-do-mar, Émile Sinkel (1823-1876), descreveu em sua Vie de marin, 1872-74,
como o grupo passou um domingo paradisíaco na Ilha de Paquetá, na baía de Guanabara, junto com as famílias dos negociantes alemães, italia-
nos e belgas. O comandante do Duc de Brabant, o primeiro oficial e o próprio Sinkel foram também recebidos pelo casal imperial. Em 1º de maio
continuaram a viagem à Bahia. • Quem de nós não ouviu falar do Rio? Desde que estou no mar, este nome martelava constantemente minhas orelhas,
acompanhado de exclamações da maior admiração. É o mais belo porto do mundo, dizem os marinheiros; é a baía mais magnífica, é o nec plus ultra da
natureza, dizem os viajantes. Portanto eu estava prevenido e minha curiosidade em alerta. Num semelhante estado de espírito, geralmente ressente-se
decepções. Aqui nada disso. (Émile Sinkel)

novembro a Marie Key com 118 emigrantes. No mesmo ano, sete numa viagem, passando por Le Havre, para Bahia, Santos, Rio de
navios belgas levaram 768 emigrantes para o Rio. Um navio saiu Janeiro e o Rio de la Plata. Em 25 de abril de 1872 o steamer vol-
para Santa Catarina, onde uma empresa belga procurava realizar tou no seu porto de registro, carregado em Santos com 265 sacas
um projeto de colonização. Ainda em 1846 partiram oito navios de algodão para a firma Bunge. Também os vapores da companhia
estrangeiros com 878 emigrantes de Antuérpia para o Rio e mais antuerpiana John P. Best & Co. destinavam-se excepcionalmente à
um, com 95 para o Rio Grande. América do Sul. Foi o caso do SS Ferdinand Van der Taelen em ja-
neiro de 1875 saindo de Antuérpia para o Brasil e o Rio de la Plata.
Da vela ao vapor Os meios comerciais de Antuérpia pouco se importavam com
o declínio da marinha mercante belga. Acreditavam tranquila-
A partir dos anos de 1860 diminuiu muito rapidamente o nú- mente que o princípio ‘Trade Follows the Flag’ não se aplicava ao
mero de veleiros belgas. O governo aboliu os subsídios e os arma- seu porto tão bem situado e de fácil acesso. Algumas tentativas
dores familiarizados com os veleiros sofriam a concorrência brutal para estabelecer linhas belgas de vapores para a América do Sul
dos vapores bem maiores e mais rápidos. A exportação de produtos fracassaram. Assim foi fundada, em 1855, por iniciativa da compa-
agrícolas sul-americanos para Antuérpia fazia-se, cada vez mais, nhia de veleiros Spilliaerdt-Caymax, uma Société Belge de Bateaux
com linhas de vapores do exterior, que empalmavam as melhores à Vapeur entre la Belgique et l’Amérique du Sud. A Société Générale
cargas. O capitão Charles Boone, da companhia antuérpiense de de Belgique e o Banque de Rothschild de Paris interessaram-se pelo
veleiros De Decker – Cassiers, informou mais de uma vez ao seu negócio e o governo belga prometeu um subsídio. Encomendaram
armador que nos grandes portos sul-americanos estavam anco- quatro vapores metálicos na Holanda. Um destes, o Rio de Janei-
rados dezenas de veleiros à espera, sem resultado, de uma carga ro (1857), tinha capacidade de carga de quase 600 toneladas para
lucrativa. Em 1874 De Decker – Cassiers o considerou o assunto carvão e de quase 500 toneladas para mercadorias. Além disso,
resolvido. O armador Claeys escutou a mesma história de seu ca- tinha espaço para 220 passageiros, dos quais 40 em primeira clas-
pitão Thomas Zellien. Este relatou, numa carta do Rio Grande se, com cabines com água corrente e banheiros, e uma magnífica
do Sul em 31 de março de 1870, que havia 195 veleiros à espera. cabine para senhoras com piano e canapés. No entanto, por causa
Somente alguns poucos negociantes-armadores antuerpienses de vários problemas financeiros e de organização, a companhia foi
conseguiram adquirir seus próprios vapores. Daniel Steinmann fi- dissolvida no final de 1858. O Rio de Janeiro nunca navegou sob
gurou primeiro como carregador e agente marítimo, mas dispunha bandeira belga e foi vendido no exterior.
desde os anos de 1860 de seus próprios veleiros e vapores. Sob a Por falta de iniciativas belgas o governo decidiu conceder sub-
bandeira da White Cross Line navegavam sobretudo para a América sídios para atrair companhias estrangeiras a Antuérpia. Assim, o
do Norte, mas esporadicamente destinavam-se também ao Brasil e Ministro de Obras Públicas, Auguste Beernaert, concluiu em 1876
ao Rio de la Plata. A companhia T. C. Engels & Co., fundada em um contrato com a companhia britânica Lamport & Holt sobre
1859, comprou tanto veleiros, entre os quais alguns navios de ferro uma linha subsidiada para o Brasil e o Rio de la Plata. Como a
para o transporte dos nitratos chilenos, como também vapores. O companhia tinha que incorporar navios sob bandeira belga, orga-
SS de Ruyter (2.500 toneladas) partiu em 23 de dezembro de 1871 nizou-se uma Société Anonyme de Navigation Royale Belge-Sud-

83
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

-Américaine. A linha começou em 1878, com oito vapores sob ban- do Brasil – a uma nova artéria aberta no velho bairro portuário,
deira belga e introduziu depois ainda outras unidades, porém sob conhecido como Het Eilandje. Este nome de rua ainda existe e
bandeira britânica. Os subsídios para a Lamport & Holt revelaram- forma um conjunto latino-americano com a Limastraat, a Monte-
se uma sangria para o tesouro. Provocaram a resistência do partido videostraat e a mais afastada Mexicostraat. Novas iniciativas belgas
liberal e foram também bastante criticados nos círculos mercantis exitosas na navegação a vapor avançaram até o século XX, mas isto
de Antuérpia. O contrato terminou em 1908. Na medida em que já é uma outra história.
o número de linhas de vapores em Antuérpia aumentou, os sub-
sídios tornaram-se desnecessários. Com meus agradecimentos particulares ao senhor Luc Van Coolput,
Sem exagero deve-se constatar que Antuérpia tornou-se nos membro da Real Academia Belga da Marinha e autor de diversas pu-
últimos decênios do século XIX um porto mundial sem frota pró- blicações sobre a marinha mercante, que gentilmente colocou muitos
pria. Nos portos brasileiros quase não se viu mais o tricolor belga. dados à minha disposição.
Mesmo assim, Antuérpia e Brasil ficavam conectados mais que
nunca graças à rede mundial de linhas de vapores britânicas e Jan Possemiers, historiador, com tese de licenciatura sobre o bairro
alemãs. Estes embarcavam produtos industriais belgas e sobretudo ecléctico de Zurenborg em Antuérpia, premiada e publicada pela Real
os emigrantes da Europa central e oriental, mas interessavam-se Academia Flamenga da Bélgica, publicou também vários trabalhos
também aos candidatos belgas. Estes eram recrutados com uma sobre a atividade marítima de Antuérpia.
propaganda pouco escrupulosa, denunciada pelo escritor Georges
Eekhoud em seu romance La Nouvelle Carthage, 1893, que trazia Referências
uma descrição naturalista do mundo de negócios antuerpiense. A. De Burbure de Wesembeek. Une anthologie de la marine belge. Antwerpen,1963; Gus-
Neste fervor náutico pelo Brasil, o governo municipal de An- taaf Asaert e. a. Antwerp: a port for all easons. Antwerpen, 1986; J. Vrelust (edit.) An-
tuérpia decidiu, em 1874, dar o nome de Braziliëstraat – Rua twerpen Wereldhaven. Over handel en scheepvaart. Antwerpen, 2012.

Um traficante de escravos na Bahia


Chris Delarivière

D ezembro de 1851. O Rei Kosoko, soberano de Lagos, já era


há tempo uma espinha no olho dos britânicos que controlo-
vam a baía do Benin. Lagos virou o principal pivô do trato dos es-
As cartas

As cartas de Edouard Gantois ao Rei Kosoko constituem do-


cravos na África e o rei recusou teimosamente em ceder às exigên- cumentação singular sobre o estilo mercantil do tráfico de es-
cias dos britânicos de terminar com o tráfico de escravos. Quando, cravos. Em termos práticos e frios descrevem a mercadoria for-
além do mais, o Rei Kosoko rejeitou a amizade da rainha da Ingla- necida. Em nenhuma parte aparece a palavra ‘escravo’ e se fala
terra, os britânicos decidiram parar as negociações diplomáticas e antes de ‘sacas’ ou ‘pacotes’. Oferecem um balanço detalhado da
passar para o método duro. ‘mercadoria’, levando em conta os preços de compra e venda, os
Um dia depois do Natal a Royal Navy começou o ataque a La- gastos médicos e os alimentos, os prêmios de seguro, as comissões
gos. Os navios do West Africa Squadron entraram na desembocadura e a ‘mercadoria’ avariada. A correspondência prova também que
do rio e dirigiram-se para o centro da cidade. Ao fogo cerrado dos Edouard Gantois tinha relações comerciais seguidas com o Rei
sitiados, responderam com salvas dos canhões Howitzer. Rapida- Kosoko. Assim informou o monarca sobre os avanços na cons-
mente uma parte da cidade pegou fogo. Desembarcando com suas trução de um veleiro de dois mastros destinado ao transporte dos
tropas auxiliares africanas, os soldados britânicos encontraram forte escravos do rei africano.
resistência. Mesmo assim, os guerreiros do Rei Kosoko não rechaça- A última carta de Edouard Gantois data de 1850, em pleno
ram as tropas da Royal Navy. O rei fugiu e dos três mil defensores da declínio do tráfico de escravos. Sob o impulso da Grã-Bretanha,
cidade algumas centenas perderam a vida. Os britânicos contaram combatia-se com mais rigor os traficantes e também no Brasil
somente uma dezena de vítimas. A queda de Lagos acabou assim cessou a tolerância de longa data. Em suas cartas ao Rei Kosoko
com o último grande empório de escravos da África ocidental. Nos transpareciam as crescentes dificuldades e as queixas sobre a de-
dias seguintes os conquistadores acharam no palácio do rei um ma- feituosa qualidade da mercadoria. Muitos escravos eram velhos ou
ço de cartas. Tratava-se da correspondência entre o Rei Kosoko e doentes demais e alcançavam preços baixos. Além disso, o risco
seus parceiros de negócios no Brasil. Várias cartas eram provenientes do embargo dos navios aumentava. Numa carta de outubro de
de Gantois & Marback, uma firma comercial com sede em Salva- 1849, Gantois alertou o Rei Kosoko a respeito dessas dificuldades
dor, Bahia, e fundada por Edouard Gantois, originário de Gand. e insistiu para pressionar alguns de seus devedores. Um tal de Pe-

84
o comércio

dro Marques devia ainda fornecer cinco ‘sacas’. Ajau d’Acambi e para comprar e armar navios negreiros. Sobre os transportes por
Agenia estavam ainda em falta na sua conta de três e dez ‘sacas’. conta de Gantois encontram-se ainda alguns dados nos arquivos.
Pelo visto Edouard Gantois não era homem de sentimentos, mas Em 1836, o negreiro Atalaya realizou o Middle Passage em
de trato frio e funcional. 128 dias. No golfo de Benin carregou 284 escravos, dos quais 270
desembarcaram em La Havana. Uma segunda viagem no mesmo
Traficante de escravos e homem de negócios ano teve menos êxito, e uma carga de 121 escravos foi intercep-
tada pela marinha britânica na baía de Biafra. O ano de 1836 foi
Subsistem poucos dados biográficos sobre o traficante belga. turbulento para a firma Gantois, pois tinha também o Esperança
Apesar de sua posição proeminente no meio dos negociantes de na rota. Uma primeira viagem começou na Nigéria com 352 “pe-
Salvador, Edouard Gantois continua uma figura algo obscura. ças” e terminou na Bahia com 325 sobreviventes. Um segundo
Nascido no final do século XVIII, emigrou para o Brasil onde es- transporte com 477 “peças” foi confiscado. Oito anos mais tarde
tabeleceu uma firma comercial em Salvador. Lá ficou ativo entre Edouard Gantois continuava ativo no tráfico. Em abril de 1844
1830 e 1850 principalmente no tráfico de escravos, comércio ile- partiu a escuna A Felicidade, sob o comando do capitão J. J. da
gal mas lucrativo com agência na Rua d’Alfandega, na parte baixa Silva. Dos 589 escravos embarcados na África, depois de 73 dias
da cidade. Gantois era visivelmente um peixe graúdo no tráfico. de viagem para chegar à Bahia, apenas 530 resistiram. No mes-
Junto com seus parceiros, como o francês Guilhaume Pailhet e mo ano a guarda costeira brasileira interceptou outro navio de
o britânico Henry Marbach, dirigia uma empresa próspera, com Gantois. O bergantim A Fortuna tinha carregado em Lagos 630
vários navios. Nesse período de 20 anos fizeram pelo menos 36 escravos, dos quais 610 continuavam vivos. Em 1846 o iate Maria
transportes clandestinos, dos quais somente quatro foram intercep- partiu de Lagos com 178 africanos para a Bahia e chegou com 160
tados. Os barcos partiam de Salvador com tabaco, têxteis, açúcar, sobreviventes, que foram vendidos.
cachaça, armas e pólvora, que trocavam na África ocidental por Por volta de 1850 os negócios começaram a declinar. As autori-
escravos. Sua firma era lucrativa. dades brasileiras agiam com mais severidade e a West-Africa Squa-
Entretanto, o Brasil, seguindo a Grã-Bretanha e outros países, dron da marinha britânica patrulhava mais intensivamente a costa
proclamou em 1831 a ilegalidade do tráfico escravista. Se a escra- da África ocidental para interceptar os navios negreiros. A queda
vidão continuou existindo, o comércio transatlântico de escravos de Lagos foi um golpe definitivo para o tráfico. Em seu relatório
ficou proibido, mas a lei continuou letra morta. As fazendas e as de 24 de março de 1851, G. Jackson, Her Majesty’s Commissioner,
minas estavam tão dependentes da mão de obra escrava que as au- em Luanda, informou a apreensão, pelo West-Africa Squadron, de
toridades fechavam os olhos, ainda mais mediante propinas. Até 54 navios, de março de 1850 a 1851, o que levou à libertação de
1850 a introdução de escravos continuou sem maiores problemas um total de 4.841 escravos. Em decorrência, constatou-se a venda
e oferecia excelentes lucros a Gantois e seus colegas. mais difícil de escravos e a falência dos traficantes.
Em 1845 o cônsul francês, Mauboussin, considerou a chegada
de 5.542 escravos como a principal atividade comercial em Salva- O Terreiro do Gantois
dor. Dava bons lucros, já que, segundo o britânico Lord John Hay,
comprava-se um escravo por 10 dólares e vendia-se por 500 dólares Edouard Gantois deve ter ficado muito preocupado com a
no Brasil. Em seu informe consular, Mauboussin relacionava a notícia sobre a queda de Lagos. Pouco antes havia construído um
companhia belgo-francesa Gantois & Pailhet entre os traficantes navio para o Rei Kosoko e agora não podia mais recuperar seu
estrangeiros, que, aliás, desprezava como contrabandistas de hu- dinheiro gasto. Sem futuro para o tráfico, Gantois procurou ou-
manos. Seus principais portos eram Lagos, na Nigéria, e Ouidah, tras atividades comerciais. Isto transparece no relatório de viagem
no Benin, onde tinham seus agentes e depósitos. do Imperador Pedro II pelo Norte do Brasil em 1859. Aí Gantois
figurou como proprietário de uma fábrica de tabaco. Nove anos
Os navios de Gantois depois da abolição do tráfico reconverteu-se em industrial. Além
disso, investiu seus lucros do tráfico na compra de terras, que o
Uma ida e volta no trato dos viventes entre o Brasil e a África transformaram em latifundiário. Num destes terrenos formou-se
ocidental tomava de três a quatro meses, dependendo das escalas por meados do século XIX uma sociedade de candomblé, fundada
escolhidas e das eventuais paradas. Estima-se que, de 1800 até por mulheres Yoruba, que tinham chegado como escravas.
1860, foram traficados de 2 a 2,5 milhões de escravos africanos Foi o começo do Terreiro do Gantois, um dos templos mais
para o Brasil. A mortalidade nos tumbeiros era alta e em média antigos do culto sincretista afro-brasileiro, situado no atual distrito
de 10% a 20% não chegava ao fim da travessia. Mesmo assim era Federação, onde se localiza o campus da Universidade Federal de
um negócio lucrativo que atraía muitos comerciantes estrangeiros. Salvador. Entre os frequentadores do terreiro encontra-se gente de
Alguns combinavam com a venda de ferramentas e armas, ainda todas as classes sociais, das favelas aos condomínios ou aos meios
mais que lá serviam para a caça e a prisão dos escravos. O gandense artísticos. A cantora Maria Bethania celebrou numa de suas can-
Edouard Gantois era um deles e associou-se com outros traficantes, ções ‘minha mãe Menininha...’, a famosa mãe-de-santo Menininha
como o francês Guilhaume Pailhet e o britânico Henry Marbach, do Gantois, que ganhou prestígio nacional. Parece um destino irô-

85
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

nico que precisamente nas terras de um traficante floresceu uma Chris Delarivière é jornalista independente em Gand, autor de re-
das mais respeitadas comunidades do candomblé afro-brasileiro. portagens sobre a cultura e música popular brasileira, traduziu para
Em Salvador não se encontram mais rastros de Edouard Gan- o flamengo a História da Província de Santa Cruz, de Pêro de Maga-
tois. Mas, sim de seus parceiros, o comerciante britânico Henry lhães Gandavo, descendente de um flamengo de Gand.
Marback (Marbach), originário de Liverpool, que se tornou, na
segunda metade do século XIX, um dos homens mais ricos da Bibliografia sobre Gantois
Bahia. Com sua fortuna, ganha parcialmente no tráfico, comprou Pierre Victor Mauboussin. Rapport sur la traite de noirs à Bahia en 1846, Ministére des
no bairro do Bonfim uma casa grande com vista para a Bahia de Affaires Etrangères, Correspondance Consulaire et Commerciale, Consulat de Bahia
Todos os Santos. O Solar Marback ainda encontra-se lá, perto da Vol. 5;Transatlantic Slave Trade Database, <http://www.slavevoyages.org> ; Accounts
& Papers: 48 volumes (47 – Part I); Consuls; Slave Trade (Session 1852-1853), Vol.
igreja do Senhor do Bonfim, que protagoniza a maior festa religio- CIII-Part I; Pierre Verger.Flux et reflux de la traite des négres. Paris, 1968; Pedro Vas-
sa de Salvador, a Lavagem do Bonfim, na qual atuam tanto padres concelos. Salvador: transformações e permanências (1549-1999). Ilhéus, 2002.
católicos como mães-de-santo do candomblé.

Esse fuzil de caça de 2 tiros corresponde ao modelo conhecido como “brasileiro”, que era especialmente fabricado em Liège, na segunda metade do século XIX, para
exportação. Tais armas se caracterizavam por seu modo de carragamento pela boca, pelo seu mecanismo de disparo à percussão e pela escultura da coronha. Se trata de
um modelo de luxo, ricamente esculpido, gravado e incrustrado de ouro. A tampa da caixa de munição, situada na coronha, leva o brasão do antigo império do Brasil.
Um agradecimento a Claude Gaier, especialista do comércio de armas e ex-diretor do antigo Museu de Armas de Liège, pelas fotografias.

Os belgas se situaram no século XIX entre os maiores consumidores de café, com até 7
quilos por pessoa. Se o primeiro café brasileiro teria chegado ao porto de Antuérpia via
Lisboa já por volta de 1807, somente a partir de meados do século importaram-se grandes
quantidades. Entretanto, se vendia no varejo como café de Java, de maior reputação. A
origem brasileira começou a valorizar-se depois que, nas Exposições de Antuérpia, em
1885, e de Bruxelas, em 1910, milhares de visitantes puderam prová-lo gratuitamente nos
pavilhões do Brasil. Ganhou fama com a qualidade “Santos”, nome que um negociante
belga incorporou em 1910 na sua “compagnie brésilienne” de torrefação. Esta fornecia os
“Santos Palace”, salões de café, criados em Bruxelas e em cidades praieiras como La Panne.

86
o comércio

A Bélgica se envolveu muito cedo na construção da infraestrutura ferroviária do Brasil com a vinda do capitão Henri Vlemincx, que recebeu licença do exército belga
para dirigir de 1859 a 1865 o Serviço de Tráfego da Estrada de Ferro Dom Pedro II. Esta permissão deveria contribuir para levar encomendas de material ferroviário
para as metalúrgicas belgas. Estas, como as fábricas de Thy-le-Château, Cockerill, Ougrée, Marcinelle e Couillet, forneceram algumas locomotivas, mas principalmente
vagões de carga e trilhos para diversas estradas brasileiras como a Leopoldina, a Sorocabana, a Central da Bahia e a Central de Pernambuco. O equipamento mais
vultoso veio dos Ateliers franco-belges de la Dyle et Bacalan em Lovaina, que construiu o vagão do Imperador, conservado no Museu do Trem do Rio de Janeiro. Esta
empresa franco-belga participou no capital da Compagnie Générale des Chemins de fer brésiliens, que começou a partir de 1879 a realizar a concessão da linha
Curitiba-Paranaguá e abriu uma filial em Curitiba. Em 1888 se mostrou em Lovaina uma exposição de fotografias dos viadutos instalados no Brasil, mas o Álbum feito
para esta ocasião ainda não foi encontrado ou se perdeu. Nesta onda, financistas belgas, principalmente Franz Philippson, cujo nome se deu a uma colônia judaica da
Jewish Relief Association no Rio Grande do Sul, mobilizaram capitais belgas para a construção e exploração de concessões de ferrovias entre São Paulo e o Rio Grande
do Sul e organizaram em 1891 a Compagnie des Chemins de Fer Sud-Ouest Brésiliens e em 1898 a Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer au Brésil. Seu capital
atingiu perto de 75 milhões de francos belgas para construir e gestionar uma rede de quase 2.500 km. O material foi fornecido pelas fábricas de Braine-le-Comte. Seu
diretor, o engenheiro Gustave Vauthier, que teve sua primeira experiência na construção da estrada de ferro Matadi-Léopoldville, no Congo, construiu a Estação e a Vila
Belga de Santa Maria. Os belgas se interessaram desde 1904 pela organização da estrada de ferro Noroeste e forneceram material ferroviário ainda na década de 1920.

87
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

(Acima, à esquerda) – Inauguração do São Carlos Electric Tramway,


em frente à estação ferroviária da cidade em 27 de
dezembro de 1914.

(Acima, à direita) Projeto dos bondes encomendados pela South


Brazilian Railways a Les Ateliers Metallurgiques de Nivelles,
Bélgica, e que começaram a funcionar em Curitiba, Paraná, em
janeiro de 1913.

(À esquerda) – Bondes comprados em 1925 pela CFLPA dos Ateliers


de Construction Energie Marcinelle, Bélgica, e instalados em Porto
Alegre; notar a circulação à esquerda, no estilo inglês.

Pavilhão Belga na Exposição do Rio de Janeiro em 1922-23. O governo belga, diante da


custosa reconstrução do país devastado pela Primeira Guerra Mundial, hesitou em participar
da Exposição Internacional do Centenário da Independência no Rio de Janeiro em 1922.
Entretanto, foi pressionado pelo Rei Alberto, que, depois de sua visita ao Brasil, queria
restabelecer e desenvolver as relações econômicas entre os países. Assim confiou a organização
da participação belga ao conde Adrien van der Burch, especialista em matéria de exposições
internacionais. Na Avenida das Nações, o arquiteto Arthur Verhelle construiu um pavilhão em
estilo neorrenacentista, o Resurgam, prevalecente em muitas reconstruções nas cidades belgas.
Foi um dos poucos a ficar prontos na inauguração de 7 de setembro. Seu interior mostrava uma
exposição de arte belga. Na Praça Mauá havia mais: uma construção metálica, instalada pelo
arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo, muito ligado aos interesses belgas. Numa
superfície de 7.000 m2 nada menos que 417 expositores belgas apresentavam seus produtos para o
mercado brasileiro. O número de visitantes e as vendas, no entanto, ficaram abaixo do esperado.

88
o comércio

O Copacabana (um cargueiro mixto com BRT – toneladas brutas registradas –


de 7.334 e uma Loa – longitude – de 140,15 m) foi lançado festivamente em 19
de outubro de 1937 nos estaleiros Cockerill, de Antuérpia (Hoboken), e entrou em
serviço em 1938. O navio, bastante luxuoso e mobiliado em art déco, dispunha
de amplas e modernas instalações para transporte de carnes e frutas (nas
imagens, rótulos de laranjas brasileiras). Havia também acomodação para cerca
de 140 passageiros, dos quais 20 em primeira classe. Naquele mesmo ano a CMB
(Compagnie Maritime Belge) armou ainda dois navios idênticos: o Piriapolis
e o Mar del Plata. Os três navios frequentaram os portos de Pernambuco, Rio
de Janeiro, Santos, Montevideu e Buenos Aires. O Copacabana serviu sob a
bandeira da CMB até 1958 e foi também utilizado na rota do Congo. Suas
câmaras frigoríficas permitiam o transporte de frutas, principalmente de laranjas
brasileiras que a empresa Louis Van Parijs de Antuérpia distribuía no mercado
belga. Substituíam a importação das laranjas espanholas, afetada pela guerra
civil na Espanha. Louis Van Parijs foi um dos primeiros a adquirir terras em São
Paulo para desenvolver suas próprias plantações de laranja. No pós-guerra suas
laranjas, com a marca LVP, dominaram durante muitos anos o consumo belga.

O sistema de estacas de concreto armado moldadas e cravadas no solo para sustentar grandes construções foi aperfeiçoado por um engenheiro de Liège, Edgard
Frankignoul e patenteado como ‘estaca Franki’. Para operar na construção pesada pelo mundo inteiro, fundou em 1911 sua Compagnie Internationale des Pieux
Armés Frankignoul. Em 1935 abriu uma filial brasileira no Rio de Janeiro, que interveio na construção de grandes prédios, como a Estação Dom Pedro II e Ministério
da Educação e Saúde, e de obras como o túnel 9 de Julho, em São Paulo. A seguir operou no Brasil inteiro e teve participação importante em obras em Brasília. Desde
1938 contou com a colaboração de engenheiros brasileiros e em janeiro de 1940 se transformou em empresa brasileira, Estacas Franki, com capital de um milhão de
cruzeiros. Criou em 1942 seu próprio Laboratório de Mecânica dos Solos. Dessa forma, constituiu um caso exemplar de empresa estrangeira rapidamente integrada na
tecnologia e na economia nacional.

89
empresas belgas no brasil

A Urucum dos belgas


Fa b i o G u i m a r ã e s R o l i m

D etentora de uma das maiores reservas de manganês e minério


de ferro do mundo e de um Produto Interno Bruto em que
a indústria, liderada pela mineração, até mesmo supera o tradi-
proprietárias de imensas áreas nos dois países, sob retaguarda di-
plomática do governo belga na busca por administração territorial
autônoma e nos moldes de sua experiência colonialista no Congo
cionalíssimo setor pecuário, a cidade sul-matogrossense Corumbá africano. Foi nesse cenário que operou a Compagnie de l’Urucum.
viu a primeira exploração sistemática de seus recursos minerais Entretanto, sua história é hoje pouco conhecida, assim como a
nascer entre 1907 e 1918 pela atividade da belga Compagnie de existência de alguma relação com as demais empresas belgas do
l’Urucum, nas montanhas de mesmo nome. período. Sabe-se que a Compagnie contou com mão de obra vinda
Foram décadas de profundas transformações para Corumbá. do Uruguai e da Bolívia para a abertura de minas nas cotas supe-
Privilegiada por sua condição geográfica de articulação entre o riores do maciço do Urucum e, com o fim da I Guerra Mundial,
interior do continente e as capitais platinas e da zona franca para o minério produzido não foi exportado, a despeito da conclusão
o comércio internacional, a cidade viu explodir o número de habi- de uma via férrea entre as lavras e o Rio Paraguai e de alguma
tantes e a atividade de casas comerciais, bancos e consulados, ma- relação firmada com os proprietários da antiga Fazenda Urucum
nifestos na arquitetura de seu porto e numa diversidade linguística (em cuja área localizavam-se as lavras), que atuava simultanea-
que, segundo os relatos, fazia com que o português fosse apenas mente como entreposto fornecedor de gêneros alimentícios, hos-
uma de suas línguas e a libra a moeda corrente. pital militar e hospedagem.
Paralelamente, no restante da fronteira matogrossense com a É possível, contudo, estabelecer algumas inferências, resultan-
Bolívia desenvolvia-se uma intensa atuação de empresas belgas tes do cruzamento entre as informações já conhecidas. Por exem-

A primeira exploração sistemática de recursos minerais em Corumba se deu entre A Compagnie contou com mão de obra vinda do Uruguai e da Bolívia para a
1907 e 1918 pela atividade da Compagnie de l’Urucum. abertura de minas nas cotas superiores do maciço do Urucum.

90
empresas belgas no brasil

plo, o geólogo Miguel Arrojado Lisboa, que passou pela região no


final de 1907 com a Comissão Schnoor, para o estabelecimento
do traçado da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil-EFNOB, faz
referência a um certo engenheiro “residente”, Delhaye, o qual in-
formou ter trabalhado na medição da altitude máxima do maciço
(1.077 metros) “a partir da fazenda Urucum”. Seria este Delhaye
o geólogo belga Fernard Delhaye (1880-1946), que mais tarde
viria a ser o descobridor da delhayelita na região de Kivu, Zaire
(ex-Congo Belga)? Permite essa suposição a reunião de elementos
comuns como o sobrenome, o período cronológico, a profissão e
a localização da descoberta que lhe eternizou o nome – o Congo
–, remetendo ao contexto colonialista belga na África e ao que se
intentava nas fronteiras do Mato Grosso.
Casos mais concretos são representados por seções de trilhos
encontrados na área da antiga Fazenda Urucum, reforçando as
informações sobre a conexão portuária; por edificações ainda exis-
tentes na fazenda, entre as quais ao menos duas são identificadas
por antigas fotos e cartões postais como sendo da Compagnie – es-
Chalet construído na Fazenda Urucum.
taria aqui a razão de ser do termo “residente” adotado por Arrojado
Lisboa ao se referir ao engenheiro Delhaye? E, por último, mas
não menos importante, a popular “mina dos belgas”, em área atu- geossítios de interesse histórico e mineralógico componentes do
almente sob concessão da Urucum Mineração-Vale do Rio Doce. Geopark Estadual Bodoquena-Pantanal, candidato ao reconhe-
As atividades da Compagnie findaram-se em 1918 e a Fazenda cimento mundial pelo Global Geoparks Network/GGN, sob os
Urucum entrou em abandono após 1960, até ser desapropriada auspícios da Unesco. Felizmente, um cenário propício para o
em 1984. Seus remanescentes localizam-se em área adquirida maior conhecimento deste passado, nem tão remoto, e que per-
pela Vale do Rio Doce em 2007 com o intuito de ampliar sua manece vivo na economia e na paisagem corumbaenses, apto a
estocagem. A ação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artís- emergir novamente à superfície da memória.
tico Nacional/Iphan, no entanto, possibilitou a preservação da
área e a condução de um projeto para um parque histórico-ar- Fabio Guimarães Rolim é arquiteto e urbanista, coordenador-geral
queológico no local. A “mina dos belgas”, por sua vez, é um dos de Patrimônio Natural do Iphan.

A Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do


Brasil e suas conexões belgas (1904-1918)
Pa u l o R o b e r t o C i m ó Q u e i r o z

A ferrovia historicamente conhecida como Noroeste do Brasil


(NOB), existente ainda hoje, liga Bauru (SP) a Corumbá
(MS, fronteira com a Bolívia), com um ramal de Campo Grande
a Coxim (MT) – traçado que foi alterado para Bauru-Cuiabá (capi-
tal do então MT) e concedido à Companhia de Estradas de Ferro
Noroeste do Brasil (Cia. EFNOB), fundada em 1904.
(MS) a Ponta-Porã (MS, fronteira com o Paraguai) – traçado que Em 1908, com a construção em andamento, novas mudanças:
indica seu sentido essencialmente político-estratégico. o ponto final foi alterado de Cuiabá para Corumbá e a ferrovia foi
A história da construção da NOB é extremamente movimen- dividida em dois segmentos: a E. F. Bauru-Itapura e a E. F. Itapu-
tada. Suas origens remontam à traumática experiência da Guerra ra-Corumbá (sendo Itapura uma localidade no extremo Oeste do
com o Paraguai (1864-1870), quando o Sul do então Estado de Estado de São Paulo, às margens do Rio Tietê). A concessão da
Mato Grosso (que constitui o atual Mato Grosso do Sul) foi ocu- Cia. EFNOB foi mantida apenas para a Bauru-Itapura, enquanto
pado pelas forças paraguaias. a Itapura-Corumbá foi declarada propriedade da União.
O início de sua construção, em 1905, deu-se pelo “aproveita- Em 1914 foi dado por concluído o trecho entre Bauru e as
mento” de uma antiga concessão, efetuada pelo governo federal margens do Rio Paraguai, em Porto Esperança. Pouco depois, a
em 1890, referente a uma ferrovia que deveria ligar Uberaba (MG) União encampou a Bauru-Itapura, e de sua fusão com a Itapura-

91
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

des Travaux Dyle et Bacalan. Nos anos seguintes, Teixeira Soares


havia prosseguido em suas estreitas relações com empresas bel-
gas, como a Compagnie des Chemins de Fer Sud-Ouest Brésilien
e a Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer au Brésil, ambas
integrantes de um grupo pertencente à Compagnie Générale des
Chemins de Fer Secondaires, sediado em Bruxelas.
2) O fato de a construção ter sido empreitada à empresa Com-
pagnie Générale de Chemins de Fer et de Travaux Publics, fundada
em Bruxelas, em 1902, inicialmente com vistas a assumir a “em-
preitada da construção e superestrutura da linha” da estrada de ferro
de Vitória (es) a Diamantina (mg). Vale notar que o vice-presiden-
te da NOB, João T. Soares, era também diretor da Cia. Vitória-
-Minas; Louis Malchain, que foi diretor da NOB, era um dos prin-
cipais acionistas da Compagnie Générale, enquanto Ernest Poizat
(membro do Conselho Fiscal da NOB) aparece como pequeno
acionista e membro do Conselho Fiscal da mesma Compagnie.
3) O fato de muitos cidadãos belgas terem certamente se tor-
nado obrigacionistas (debenturistas) da Cia. EFNOB, pois a maior
parte do capital empregado na construção foi levantado na Euro-
pa, e Bruxelas (ao lado de Paris, Amsterdã e, possivelmente, An-
tuérpia) esteve sempre entre os locais onde foram negociadas as
debêntures emitidas pela companhia.
4) O fato de grande parte do material rodante da ferrovia ser
de origem belga. Em 1907, as seis locomotivas de que dispunha
a empresa eram belgas, provenientes dos Ateliers de la Meuse;
dentre os 15 veículos, 12 provinham igualmente da Bélgica (no-
ve vagões para mercadorias e três vagões de lastro). Nos anos
seguintes, a procedência belga se mantém muito forte no con-
cernente aos veículos, embora ceda terreno no que se refere a
locomotivas. Assim, em 1911, todos os 178 veículos da ferrovia
(carros de passageiros, mistos, vagões para bagagens, animais,
Vagão e interior do carro de 1ª classe da Nord Ouest Brazilian Railway, a ferrovia mercadorias etc.) têm como procedência a Bélgica; já, contu-
conhecida como Noroeste do Brasil (NOB), que liga Bauru (SP) a Corumbá (MS). do, no que concerne às 14 locomotivas, apenas quatro (do tipo
Mogul) eram belgas, sendo as demais importadas dos EUA. Esse
-Corumbá resultou, em 1918, a NOB, agora inteiramente estatal. quadro parece, enfim, claramente consolidado em 1916, último
A extensão até Corumbá e o ramal de Ponta-Porã foram construí­ ano para o qual disponho de dados (referentes, no caso, apenas
dos entre 1938 e 1953. à Bauru-Itapura). De um total de 127 veículos, nada menos que
No Oeste do Estado de São Paulo, a construção enfrentou 81 eram belgas; dentre os demais, havia cinco dos Estados Uni-
forte resistência dos antigos habitantes desse território, isto é, os dos (carros para passageiros), e os restantes 41 eram brasileiros.
indígenas kaingang, o que gerou sangrentos confrontos. Além dis- Já com relação às locomotivas, de um total de 20, apenas cinco
so, muitas vidas de operários e engenheiros foram ceifadas pela eram belgas: das demais, 12 eram Baldwin e três inglesas (Sharp
malária que grassava no vale do Rio Tietê. Stewart). Tal tendência confirma, portanto, para a NOB, a ob-
A Cia. EFNOB foi constituída no Rio de Janeiro, em junho de servação de Stols, que, referindo-se às ferrovias belgas no Rio
1904, como uma empresa brasileira, com capital de 10 mil con- Grande do Sul, entre fins do século XIX e início do XX, assinala
tos de réis, e, dentre seus nove acionistas, apenas um trazia um que “le matériel roulant provient de plus en plus des États-Unis
nome estrangeiro: Victor Folletête, citado como “incorporador”. ou d’ateliers brésiliens” (Stols, 2001, p. 132).
Mas a presença de capitais e interesses belgas fica especialmente Mais difícil é a identificação de possíveis personagens belgas
evidenciada por quatro circunstâncias: na Cia. EFNOB. É certo que na primeira diretoria, eleita em
1) As conexões belgas do fundador e principal dirigente da 1904, aparecem vários nomes estrangeiros: Henri Lartigue, “ad-
Cia., engenheiro João Teixeira Soares, cujo elevado prestígio pro- ministrador da Sociedade de Estradas de Ferro Argelianas”, como
fissional derivava, em grande parte, de sua atuação como chefe da presidente; Victor Folletête, como “administrador delegado”, e,
construção da célebre ferrovia de Curitiba a Paranaguá, no início como diretores, Gusty Joris, Louis Malchain (“administrador da
da década de 1880, a serviço da empreiteira belga Société Anonyme Ouro Preto Gold Mine”) e George Moreau, “engenheiro de mi-

92
empresas belgas no brasil

corre para o Oeste: estudo sobre a Noroeste e seu papel no sistema de viação nacio-
nas”. Não me foi possível, até o momento, identificar claramente nal. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos [s.d.]. 222 p.; CASTRO, Maria Inês Malta. O
a nacionalidade de nenhum desses personagens, nem de outros preço do progresso: a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (1905-1914).
Campinas, 1993. 293 f. Dissertação (Mestrado em História) – IFCH/Unicamp; DIAS,
que, ao longo dos anos seguintes, aparecem como dirigentes ou
José Roberto de Souza. Caminhos de ferro do Rio Grande do Sul: uma contribuição ao
acionistas da Cia., como Gaston Hamelin, Jean Jourdan, Parmen- estudo da formação histórica do sistema de transportes ferroviários no Brasil meridio-
tier, J. Bartholomé, George Prévault, Charles Rau, Léon Maître e nal. São Paulo: Ed. Rios, 1986; ENG. João Teixeira Soares. Engenharia, São Paulo:
Instituto de Engenharia, v. 7, n. 74, p. 53-54, out. 1948; Legislação federal brasilei-
Hubert Laroze. Contudo, levando em conta os resultados que ob-
ra (leis e decretos), disponível em: <www.camara.gov.br> e <www.senado.gov.br>;
tive em buscas pela internet, inclino-me a dizer que se tratava, na QUEIROZ, Paulo R. Cimó. As curvas do trem e os meandros do poder: o nascimento
maioria, de cidadãos franceses – o que contribuiria para confirmar da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (1904-1908). Campo Grande: Ed. UFMS,
1997. 163 p.; QUEIROZ, Paulo R. Cimó. Uma ferrovia entre dois mundos: a E. F.
a observação de Fernando de Azevedo, segundo a qual a Cia. EF-
Noroeste do Brasil na primeira metade do século 20. Bauru: Edusc; Campo Grande:
NOB foi formada por “capitais mistos, brasileiro e franco-belga”. Ed. UFMS, 2004; RELATÓRIO da diretoria da Companhia E. F. Noroeste do Brazil
apresentado à assembleia-geral ordinária realizada em 11 de junho de 1906. Rio de
Janeiro: Typ. de Heitor Ribeiro & C., 1906; RELATÓRIO da diretoria da Companhia
Paulo Roberto Cimó Queiroz, Doutor em História pela Universida-
E. F. Noroeste do Brasil apresentado à assembleia-geral ordinária realizada em 14 de
de de São Paulo, com estágio de pós-doutoramento na Universidade agosto de 1907. Rio de Janeiro: Typ. do “Jornal do Commercio”, de Rodrigues & C.,
Federal Fluminense. É Professor Associado da Universidade Federal 1907; RELATÓRIO da diretoria da Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do
Brazil apresentado à assembleia-geral ordinária realizada em 16 de outubro de 1911.
da Grande Dourados (Mato Grosso do Sul) como docente e orienta-
Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger, 1911; RELATÓRIO da diretoria [da Companhia de
dor nos cursos de graduação e pós-graduação em História (Mestrado Estradas de Ferro Noroeste do Brasil referente ao ano de 1916]. São Paulo: Estab.
e Doutorado). Graphico “Universal”, 1917, 119 p.; STOLS, Eddy. Présences belges et luxembour-
geoises dans la modernisation et l’industrialisation du Brésil (1830-1940). In: DE
PRINS, Bart; STOLS, Eddy; VERBERCKMOES, Johan (ed.). Brasil: cultures and
Referências economies of four continents – cultures et economies de quatre continents. Leuven:
Atas de assembleias e relatórios da diretoria da empresa, publicados no Diário Oficial da Uitjeverij Acco, 2001, p. 121-164; TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da enge-
União, disponíveis em: <www.jusbrasil.com.br>; AZEVEDO, Fernando de. Um trem nharia ferroviária no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Notícia & Cia., 2011.

Um lugar belga em Pernambuco: a cidade industrial da


Société Cotonnière Belge-Brésilienne S.A.
Jean Suettinni

A sociedade anônima Société Cotonnière Belge-Brésilienne S.A.


(SCBB) foi fundada na cidade de Anvers (Antuérpia), no nor-
te da Bélgica, em 23 de fevereiro de 1907, pelo Groupe LADM em
A sociedade anônima SCBB instituiu o Conselho de Anvers co-
mo responsável para gerir a construção da cidade industrial belga
em Pernambuco e a administração efetiva do empreendimento,
acordo firmado com as empresas Fry Miers & Co., Nathan & Co. representando todos os acionistas na estrutura jurídico-societária
e com o consorciado delas no Brasil, o industrial pernambucano estabelecida. O Conselho de Anvers nomeou o brasileiro João de
João de Hollanda Vasconcellos. Hollanda Vasconcellos como procurador da sociedade anônima
O Groupe LADM era composto por industriais e financistas SCBB no Brasil para implantar jurídico-administrativamente a
das cidades de Liège, Anvers, Deurne e Malines (Mechelen), que fábrica têxtil belga, atendendo as exigências dos ministérios no
eram proprietários de fábricas do setor têxtil na Bélgica, além de Rio de Janeiro (capital da República na época) e agilizando a im-
serem acionistas de indústrias localizadas em outros países do No- plantação da cidade industrial em Pernambuco.
roeste europeu e na Rússia (Société Cotonnière Belge-Brésilienne, Em 29 de novembro de 1907, a sociedade anônima SCBB
1907, p. 3-11). comprou o engenho de açúcar São Sebastião localizado no vale
A sociedade anônima SCBB foi criada para estabelecer uma do Rio Jaboatão, na região fisiográfica de mata atlântica, a 28 km
cidade industrial com fábrica especializada em tecidos de algo- da cidade do Recife, e, assim, foi iniciada a construção da cidade
dão localizada no Estado de Pernambuco, no Nordeste do Brasil, industrial belga. A propriedade adquirida, originada do sistema
especificamente na área circunvizinha da metrópole de Recife de plantation da cana-de-açúcar, era servida por eficiente sistema
que, em função do porto, constituía a quinta localidade mais viário com a intersecção da rodovia Estrada Real com a estrada de
industrializada do país, possuindo atrativos ambientais, infraes- ferro da Great Western of Brazil Railway Company Limited (que
truturais e econômicos para o investimento do capital industrial possuía uma estação ferroviária). Essas vias ligavam o porto do
europeu. Esse empreendimento desenvolveu-se durante o pro- Recife até o extremo oeste de Pernambuco, atravessando extensa
cesso de urbanização industrial europeia que ocorreu em outros zona rural (Suettinni, 2011, p. 59-64).
continentes. Os engenheiros-arquitetos belgas Fernand Selvais e Pieter

93
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

94
empresas belgas no brasil

Gruschke foram os responsáveis pelo projeto urbanístico da ci- Entre 1920 e 1933 deu-se a expansão do projeto da cidade
dade industrial da SCBB, com a colaboração administrativa do industrial da SCBB, pois, devido à crescente demanda de operá-
superintendente da sociedade anônima no Brasil, o industrial Wi- rios, uma quantidade significativa de intervenções urbanísticas foi
lhelm Bauer, natural da cidade de Malines, que foi nomeado pelo acrescida à tessitura urbana em benefício da funcionalidade da fá-
Conselho de Anvers. A edificação da cidade belga em um antigo brica têxtil e da reprodução socioespacial. Para isso, uma missão de
engenho de açúcar norteou uma nova lógica socioespacial para a engenheiros e arquitetos belgas, sob a direção de Pieter Gruschke,
localidade, instituindo assim o efetivo aproveitamento da mão de planejou o crescimento urbano da localidade. Foram construídas
obra campesina, ora ociosa (por conta da falência da agroindústria 36 vilas residenciais que triplicaram a oferta de moradia na cidade
do açúcar), que foi especializada para ocupar as funções de oleiro, industrial, com destaque para a Villa Saint-Nicolas-Waes, com 17
pedreiro e posteriormente de operário (Bauer, 1915, p. 5, 18-32). casas em estilo “La Maison Flamande”, em bloco de fileira e com
A implantação da cidade industrial da SCBB foi delineada fachadas em tijolos aparentes. Assim foi expandida a composição
aproveitando-se a espacialidade do engenho São Sebastião quanto das alamedas e dos arruamentos paralelos a partir da linearidade
à infraestrutura de vias (a Estrada Real e a Ferrovia Recife-Vitória da rodovia (Gruschke, 1948, p. 29, 55-73).
de Santo Antão), os recursos naturais (o Rio Jaboatão, as matas Outros edifícios singulares e equipamentos coletivos foram
nativas e o solo) e a situação locacional caracterizada por uma construídos, sendo as principais obras o Mercado Central (1922),
topografia de colinas. Na estrutura espacial do engenho eviden- a Praça das Bandeiras (1923) com morfologia em uma cruz cel-
ciou-se um processo de desmanche com o plantio de 2 milhões de ta, apresentando projeto paisagístico arbóreo de fícus e pinheiros,
mudas de eucalipto (nas áreas de cana-de-açúcar), a reutilização e a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição (1930) com a
dos edifícios singulares (casa-grande, capela, senzala, conjunto do fachada inspirada na L’église Notre-Dame-de-l’Immaculée-Concep-
cemitério e outros prédios rurais) e o aproveitamento do traçado tion de Liège. Quanto à infraestrutura, as principais obras foram a
viário com as novas edificações localizadas às margens da Estrada ampliação do anel ferroviário interno da fábrica têxtil, o calçamen-
Real formando alamedas (apresentando paisagismo arbóreo de to em paralelepípedo de alamedas e ruas e a implantação da rede
flamboyants e castanholas). Assim, o traçado ortogonal do lugar elétrica e do sistema de esgoto que beneficiou todos os operários
belga, com tendência à espontaneidade da topografia íngreme, do lugar belga (Suettinni, op. cit., p. 85, 88-94).
foi delineado por um cinturão verde circundante, com a primei- Desse modo, com a finalização do projeto urbanístico, a cida-
ra secção de floresta de eucaliptos e a segunda de mata atlântica, de industrial da SCBB aumentou a autossuficiência econômico-
demarcando o fim do perímetro urbano em meio a um território -espacial e, paralelamente, passou a ser denominada e reconhecida
entremeado de engenhos de açúcar, canaviais e extensas áreas de por belgas e brasileiros como Nouvelle-Anvers.
vegetação nativa (Suettinni, op. cit., p. 66-72, 74-77). Com o passar dos anos, foi acrescida à tessitura da cidade in-
O projeto urbanístico foi efetivado no platô a partir da centra- dustrial belga a construção de outras vilas operárias, equipamentos
lidade do edifício da fábrica têxtil e localizado estrategicamente coletivos e edifícios singulares, com a manutenção efetiva que a
próximo à estação ferroviária. Nessa área central foram dispostos sociedade anônima realizava no ambiente construído, como no
os prédios de apoio técnico, a termoelétrica, as lojas de comércio e serviço de recolhimento de lixo realizado pela intendência da ci-
serviços, a praça da feira, as 12 vilas operárias, o conjunto de chalés dade industrial.
de diretores e técnicos, uma Villa Belge como casa da superinten- Com a II Guerra Mundial (1939-1945), a sociedade anônima
dência, as duas escolas, o posto de saúde, o campo de futebol, a SCBB perdeu os seus contatos com Anvers, mas manteve-se como
pista de patinação e outros edifícios e logradouros públicos (com- empresa estrangeira no Brasil com os produtos da fábrica têxtil sen-
pondo as alamedas ou formando arruamentos paralelos). A fábrica do exportados para os Estados Unidos e o Canadá, como também
têxtil era circundada por um anel de trilhos que, através de um atendendo ao mercado interno. E em 1950 a sociedade anônima
ramal, estava ligado à estação ferroviária para facilitar a logística conseguiu concluir a edificação e instalação da indústria subsidi-
da cadeia produtiva (Selvais, 1921, p. 19-78). ária da fábrica têxtil, a Tissage Wallonie-Flandre Et Cie. (Société
A primeira fase do projeto da Cidade Industrial da SCBB deu- Cotonnière Belge-Brésilienne, 1966, p. 18, 43-67).
-se entre 1910 e 1915, com a inauguração e o funcionamento efeti- Por conseguinte, a situação do pós-guerra na Europa, mesmo
vo da fábrica têxtil, que abrigou mais de 3.000 operários, oriundos com a salvaguarda do Plano Marshall, e a crise da safra de algo-
da área de entorno de Recife, e de várias localidades do Nordeste dão no Nordeste brasileiro, que afetou o setor da indústria têxtil,
do Brasil, como também 123 executivos e técnicos belgas imigra- afora o incentivo para que a industrialização local fosse centrali-
ram com suas famílias para residir no “Lugar Belga” em Pernam- zada no Sudeste do país, fez com que a sociedade anônima SCBB
buco. Nessa fase, o advento da I Guerra Mundial na Europa im- encerrasse as atividades no Brasil em 1966 e, assim, repassasse as
pediu que o projeto urbanístico final fosse concluído em prol do ações dela para um grupo local, com participação acionária de
efetivo funcionamento da fábrica têxtil da SCBB no Brasil (Jean, dois executivos da SCBB apenas, denominado Brasil-Belgo Union.
op. cit., p. 35-40).
Jean Suettinni é Mestre em Projeto da Cidade e da Arquitetura pelo
Implantação da cidade industrial da SCBB. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU)

95
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (Deau) da Universi- BAUER, Wilhelm. Rapport au Conseil  d’Anvers (1907-1917). S.C.B.B.: Pernambouc
dade Federal de Pernambuco (UFPE); Urbanista e historiador (B.Sc.) (Brésil), 1917.
SELVAIS, Fernand. Rapport au Conseil Général du S. C. B. B. (1907-1920). LADM /
pela UFPE; presidente-fundador do Instituto de Estudos Históricos S.C.B.B.: Pernambouc (Brésil), 1921.
Belgo-Brasileiros; organizador/pesquisador e detentor dos Direitos Do- Gruschke, Peter. Rapport au Conseil  d’Anvers (1920-1948) ). LADM / S.C.B.B.: Pernam-
cumentais do Acervo da SCBB/Groupe LADM no Brasil e na Amé- bouc (Brésil), 1949.
SOCIÉTÉ COTONNIÈRE BELGE-BRÉSILIENNE. Rapport de Monsieur Charles De
rica Latina. Vocht au conseil général du S. C. B. B. LADM / S.C.B.B.: Anvers, 1966.
Suettinni, Jean. Um Lugar Belga em Pernambuco: o Núcleo Fabril da Société Coton-
Referências nière Belge-Brésilienne S.A. (1907 – 1966). Tese de Mestrado apresentada ao Progra-
ma de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU) do Departamento de
SOCIÉTÉ COTONNIÈRE BELGE-BRÉSILIENNE. Statut Général. LADM / S.C.B.B.: Arquitetura e Urbanismo (Deau) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
Anvers, 1907. sob a orientação da PhD. Dra. Lúcia Leitão. Recife: MDU/DEAU/UFPE, 2011.

A Solvay chega ao Brasil e abre as portas para a América do Sul

2 013, ano em que comemora seu 150º aniversário de funda-


ção e a apenas três para celebrar os 75 anos de chegada ao
Brasil, o grupo químico internacional belga, denominado Solvay
Também conhecido por Instituto de Física e Química Solvay, esta
entidade possui como atividade central a organização das reuniões
do Conselho e a concessão de apoio às pesquisas realizadas pelos
S.A., reitera sua estratégia de crescimento fortemente baseada cientistas filiados.
nos pilares da sustentabilidade. A empresa encontra-se engaja- Em 1940, a ocupação da Bélgica pelas tropas alemãs durante a
da para enfrentar de forma inovadora, e baseada na excelência Segunda Guerra Mundial foi definitiva para que a Solvay decidis-
operacional, os desafios do presente e aqueles que terão de ser se estabelecer no Brasil os mesmos ideais que já a conduziam em
superados no futuro. solos da Europa, no Leste Europeu. Além de um complexo indus-
Essa linha-mestra de atuação tem origem nos ideais que nor- trial, a Solvay contribuiu também para criar no país uma comuni-
tearam a vida pessoal e profissional de Ernest Solvay, que, em dade de trabalho, prosperidade, solidariedade e respeito mútuos.
conjunto com seu irmão Alfred, fundou a Solvay & Cie em 1863. E foi por intermédio desta linha de atuação cidadã que no
Ernest sempre pautou suas atividades em conformidade com a século passado, entre as décadas de 1930 e 1940, a empreende-
filosofia social progressista. Exemplos desta forma de pensar e dora família contrapôs-se aos contextos de depressão financeira e
agir permearam seus passos, inclusive como empregador. Antes bélica, que dominavam inúmeros países e dizimavam incontáveis
mesmo de ser obrigado por lei, estabeleceu para seus funcioná- empresas e seres humanos, e seguiu em frente com os ideais de seu
rios um sistema de seguro social, implementou plano de apo- patriarca Ernest Solvay. Sem render-se aos obstáculos históricos,
sentadoria em 1878, jornada de 8 horas em 1897 e férias pagas optou por utilizar as temáticas de expansão e hegemonia geográ-
em 1913. Tudo isso no auge do segundo período da Revolução fica de forma positiva e com vistas ao progresso da humanidade.
Industrial, quando as condições de trabalho eram insalubres e A primeira empresa do Grupo Solvay em solo brasileiro foi a
submetiam os empregados às piores situações já experimentadas Indústrias Químicas Eletro Cloro, que, apesar de legalmente cons-
desde a escravidão. tituída em 1941, viu-se obrigada a protelar a construção da fábrica,
Ernest não se restringiu aos muros de seus empreendimentos. e da vila para seus operários, devido às dificuldades causadas pela
Dedicou olhar especial à sociedade, e fundou várias bases científi- guerra para o envio de recursos.
cas, filantrópicas e de caridade, incluindo o Instituto de Fisiologia O local escolhido para a instalação do complexo industrial
(1895) e de Sociologia (1901), bem como a prestigiada Escola de foi o quilômetro 38 da Ferrovia Santos-Jundiaí, no município de
Comércio Solvay (1903). A Biblioteca Solvay e o edifício que a Santo André, região metropolitana de São Paulo. Ali, a Solvay se-
abriga também foram obras financiadas por Ernest Solvay e doada meou tecnologia, aprendeu a ser brasileira e abriu as portas para
à comunidade. O prédio foi originalmente construído para o Insti- sua atuação na América do Sul.
tuto de Sociologia da Universidade Livre de Bruxelas. Cercada pela Mata Atlântica em terreno de 7 milhões de me-
A paixão primordial pela ciência impulsionou Ernest a expres- tros quadrados, cortada pelo Rio Grande, pela estrada de ferro e
sá-la de forma ampla em 1911, ao agregar em Bruxelas a maioria estrategicamente próxima ao Porto de Santos, da Estrada Cami-
dos mundialmente famosos físicos e químicos da época. Entre os nho do Mar e da Via Anchieta – que à época se encontrava em
participantes, Marie Curie, Albert Einstein, Max Planck, Ernest construção –, a Solvay ergueu a Indústrias Químicas Eletro Cloro
Rutherford, Henri Poincaré e Maurice de Broglie. S.A. e a Vila Elclor.
Foi a partir desse encontro que nasceu o Conselho Internacio- Pelo litoral paulista a empresa recebia as matérias-primas sal
nal de Física e Química da Solvay, que ainda se mantém atuante. e energia elétrica para o processo de eletrólise. A eletricidade era

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empresas belgas no brasil

Vista parcial da Solvay Indupa em Santo André. Ao fundo, instalações fabris, 1947.

fornecida pela Light & Power através da usina de Cubatão. E as- Cerimônia na Solvay Indupa em 1948 com a presença do prefeito de Santo
sim garantia-se a produção de cloro e soda cáustica. André, Antonio Flaquer, e comitiva.
Em 1945, a Solvay lançou a pedra fundamental da fábrica e
na sequência iniciou a terraplenagem. O período coincidiu com renomadas universidades e importante polo de pesquisa e ino-
a desativação de vários canteiros de obras de outro grande empre- vação no Brasil.
endimento na mesma região, a construção da Rodovia Anchieta, Esta preocupação de se estabelecer próxima ao setor acadê-
que liga a capital paulista a Santos. mico para a promoção da cultura do saber sempre permeou as re-
Os trabalhadores aos poucos foram migrando para a constru- lações da Solvay com a comunidade. No Brasil não foi diferente.
ção da Indústrias Químicas Eletro Cloro. E os bons ventos sopra- E a Educação merece um capítulo à parte dentro da história do
ram a favor da Solvay, pois essa mão de obra estava habituada ao Grupo no País.
clima úmido e a então hostil região da Mata Atlântica. Desde sua fundação, a Solvay aporta capital expressivo para
A inauguração foi em 16 de julho de 1946, um dia com cli- o desenvolvimento de seus empregados e da comunidade em ge-
ma bastante comum ao local: nublado. A produção inicial era de ral. Faz parte da política de Relações Humanas (RH) do Grupo
cerca de 1 tonelada de cloro por dia. E, não demorou muito para o financiamento parcial de estudos que visem o aprimoramento
que a empresa belga começasse a confiar a brasileiros natos postos profissional dos empregados.
de comando dentro da organização. O primeiro a assumir como Localmente, o primeiro grande projeto educacional nasceu
chefe de produção foi o engenheiro Leonel Luciano, formado junto com a Vila Elclor, por intermédio do estabelecimento legal
pelo Instituto Mackenzie de São Paulo. Ingressou na Eletro Clo- de uma escola de ensino fundamental para os filhos dos funcioná-
ro em 1956 e lá permaneceu até 1991. Durante esse período, fez rios, cujas vagas remanescentes eram disputadas pela comunidade,
especialização no exterior e se destacou em sua área de atuação. devido ao reconhecimento da qualidade do ensino.
A partir do start-up da Eletro Cloro, gradativamente a Solvay Ano após ano, a disputa por uma das bolsas de estudo destinada
passou a desbravar outras fronteiras territoriais e de atuação in- a estagiários de diferentes campos de atuação científica é acirrada.
dustrial dentro do Brasil. Adquiriu o controle acionário da Enisa Por meio dos estágios, a empresa permite que jovens testem na
(Empresa Salineira e de Navegação Igoronhon S.A.), localizada prática supervisionada os ensinamentos teóricos de cursos técni-
em um complexo de ilhas (Caieira, Garça, Beirada Funda, Enfor- cos e superiores, oferecendo-lhes o primeiro contato real com o
cado, Igoronhon e Carrapato) no Estado do Maranhão. Em Minas mundo industrial e corporativo. Em 2013, as bolsas de estágio,
Gerais, comprou a CBCC (Companhia Brasileira de Carbureto formalmente estabelecidas com instituições de ensinos superior
de Cálcio), situada no município de Santos Dumont. e técnico, atenderam a 250 jovens estudantes brasileiros.
Outra empresa agregada foi a Malharia Industrial do Nor- Mundialmente, todas as empresas Solvay também são orien-
deste, no Distrito Industrial de Paulista, cidade a 20 km de Re- tadas a analisar as solicitações de apoios ou patrocínios primei-
cife, Pernambuco. Também fez parte das aquisições a Plavinil, ramente pelo ângulo educacional do projeto, de acordo com o
no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, capital. A Peróxidos tripé social do Desenvolvimento Sustentável. Esta regra é válida
do Brasil integrou-se ao rol de negócios no qual a Solvay passou inclusive para os programas sociais próprios, desenvolvidos com as
a atuar; e neste caso com o caráter de joint venture, com a bra- comunidades vizinhas às fábricas. Esta determinação segue em li-
sileira Produtos Químicos Makay. Já o início das atividades no nha com uma das paixões expressas por Ernest Solvay, que ansiava
setor veterinário se deu com a aquisição da Salsbury Laboratórios pela disseminação do conhecimento e de sua disponibilidade no
Ltda., em Campinas, no Estado de São Paulo, cidade dotada de apoio às pesquisas em todos os campos da ciência.

97
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

Vista aérea da planta industrial da Solvay Indupa de Santo André.

Justamente essa ampla visão voltada à aquisição de conheci- Paulo, que passou a se chamar Solvay Farma. Nessa mesma déca-
mento e de constante aprimoramento de suas competências so- da, o Grupo Solvay forma, no município de Osasco, região me-
ciais e fabris levou a Solvay a ousar na diversificação de portfólio tropolitana de São Paulo, a Dacarto Benvic, no sistema de joint
e de atuação industrial na década de 1980. Já no limiar de 1990, venture (50%-50%) com a Dacarto S.A. Indústrias de Plásticos, para
resolveu rebatizar a Eletro Cloro como parte de sua estratégia de atuar no segmento de compostos de PVC.
reconhecimento à boa acolhida em solo brasileiro. A empresa Desde o início de operação da antiga Eletro Cloro, em 1946, o
passou a denominar-se Solvay do Brasil S.A. Brasil sempre esteve no foco das estratégias de crescimento da Sol-
A Solvay S.A., na Bélgica, realizou vários ajustes e reorientação vay. Esse ponto de vista se fortaleceu em 2011, quando adquiriu
de atuação nos anos 1990. Essas alterações atingiram os negócios 100% da francesa Rhodia. Localmente, foram agregados ao Grupo
locais. Foi a partir do know-how adquirido na fábrica de Santo cinco unidades industriais e um centro de Pesquisa e Desenvolvi-
André que o Grupo resolveu explorar os mercados da América do mento, situados no Estado de São Paulo. Também se integraram
Sul por intermédio da aquisição, em 1996, de 51% das ações da à carteira da Solvay no País os negócios de aroma performance,
Indupa S.A.I.C., na Argentina, pioneira no setor petroquímico da- fibras industriais e têxteis, energia renovável, plásticos de engenha-
quele país. No mesmo ano, ainda em terras argentinas, foi criada ria, poliamida e intermediários, sílica, solventes e a área que atua
a Solvay Automotive Argentina. nos mercados de produtos de alto desempenho para uma ampla
Os anos 2000 também foram bastante férteis para a Solvay. variedade de indústrias, incluindo as de cosméticos, produtos de
Marca sua entrada local no segmento de saúde humana com a limpeza, agroquímicos e óleo, assim como para aplicações indus-
compra dos Laboratórios Sintofarma, em Taboão da Serra, São triais. O Grupo Solvay emprega hoje cerca de 3.000 funcionários.

98
empresas belgas no brasil

Junto com o legado da francesa Rhodia no Brasil, a Solvay nhado à estratégia global, dentro do programa denominado Solvay
recebeu ainda o Instituto de mesmo nome, entidade sem fins lu- Way, fortemente ancorado no incentivo à inovação para o forneci-
crativos que atua em projetos sociais ligados à educação comple- mento de produtos que atendam aos desafios do desenvolvimento
mentar, atendendo adolescentes e jovens de baixa renda, de 12 a sustentável. Esse programa começou a ser implantado em 2013
24 anos, nas comunidades onde a empresa tem atuação industrial em todas as empresas do grupo, e esta abordagem já integra os
e ou comercial. Em reconhecimento à força da marca localmente, planos estratégicos de cada um dos negócios.
o Brasil foi o único país que manteve o nome Rhodia após recente Dessa forma, a Solvay segue rumo aos próximos 150 anos cien-
alinhamento mundial de branding, que incluiu a reestruturação te de seu papel como empregador responsável e uma empresa com
da logomarca do Grupo. atuação cidadã, que enxerga em cada um de seus stakeholders a
As sinergias entre os dois legados são maiores do que as dife- possibilidade de juntos continuarem a construção de um mundo
renças, o que facilita a condução dos negócios em nível mundial. mais igualitário e melhor para todos. Assim como em 1863 já pen-
O futuro do Grupo Solvay no Brasil também já está traçado e ali- sava e agia Ernest Solvay.

Tractebel Energia

O compromisso com a busca do desenvolvimento sustentável


acompanha a Tractebel Energia desde sua criação, em 1998,
data do início de suas atividades no Brasil sob controle da Tracte-
Desta capacidade instalada, aproximadamente 80% é prove-
niente de fontes renováveis: água, vento e biomassa. E praticamen-
te todo o seu parque gerador tem sua gestão certificada segundo
bel, com sede na Bélgica. Acreditando no potencial de crescimen- as normas NBR ISO 9001 (Qualidade), NBR ISO 14001 (Meio
to do Brasil, o grupo GDF SUEZ, atual controlador da empresa, Ambiente) e OHSAS 18001 (Saúde e Segurança do Trabalho).
trouxe sua experiência adquirida em mais de um século de atuação Isso confirma o compromisso da Tractebel Energia de atuar
no desenvolvimento de soluções sustentáveis e inovadoras para os de forma sustentável, equilibrando crescimento econômico com
setores de água, energia e gestão de resíduos. conservação ambiental e avanços sociais. Essa premissa reflete os
Com sede em Florianópolis, Santa Catarina, a Tractebel Ener- valores que a empresa compartilha com o seu controlador, o grupo
gia é a maior geradora privada de energia do Brasil. Empregan- GDF SUEZ, com sede na França, e maior produtor independente
do diretamente pouco mais de mil pessoas, está presente em 12 de energia do mundo, presente em 100 países.
Estados, nas cinco regiões do País, onde opera 22 usinas, entre Alinhada às políticas do grupo GDF SUEZ, a Tractebel Ener-
hidrelétricas, termelétricas e complementares (eólicas, a biomas- gia faz do respeito ao meio ambiente um valor fundamental à
sa e pequenas centrais hidrelétricas). Juntos, em 2012 esses em- conduta dos negócios. Assim, a gestão ambiental realizada pela
preendimentos somavam 8.630 MW de capacidade instalada, o Companhia, tanto nos empreendimentos em operação quanto na-
equivalente a cerca de 7% do total de energia consumida no Brasil. queles em fase de implantação, tem como base a identificação, a

Geração de energia de biomassa; a Tractebel Energia é a maior geradora privada Geração de energia eólica; em 2012 as usinas da Tractebel somavam 8.630
de energia do Brasil, está presente em 12 Estados e opera 22 usinas, entre MW de capacidade instalada, o equivalente a cerca de 7% do total de energia
hidrelétricas, termelétricas e complementares. consumida no Brasil.

99
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

Geração de energia por hidrelétricas; a Tractebel Energia foi criada em 1998 sob controle da Tractebel, com sede na Bélgica.

prevenção e a mitigação de possíveis impactos causados ao meio nas. A infraestrutura oferecida à comunidade conta com anfiteatro
ambiente em função de suas atividades. Para isso, a Tractebel de- para 150 pessoas, salas para oficinas de inclusão digital, cursos de
senvolve uma série de programas e projetos focados na melhoria capacitação, biblioteca, museu e espaço para exposições. Assim,
ambiental das regiões onde está inserida, o que inclui a prote- propicia o intercâmbio de companhias de dança, teatro, música e
ção de nascentes, a conservação da flora e da fauna, a educação outras manifestações artístico-culturais de diversas regiões do Brasil.
ambiental, o investimento em fontes renováveis e o combate ao Também participa do desenvolvimento cultural das comuni-
aquecimento global, entre outras ações. dades com o apoio a projetos de inciativas locais, contemplando
manifestações tais como cinema, música, teatro, dança e litera-
Parceria com a comunidade tura. Além disso, apoia ações voltadas à inclusão social, geração
de emprego e renda, educação, promoção da saúde e erradica-
Por meio de parcerias com agentes locais, a Companhia bus- ção da miséria.
ca colaborar de forma decisiva com o desenvolvimento humano
das comunidades situadas no entorno de seus empreendimentos, Criação de valor
engajando-se em ações voltadas à qualidade de vida, à valorização
cultural e à conquista da cidadania. A postura empresarial diferenciada em relação à sustentabi-
Exemplo disso são os centros de cultura, uma das ações sociais lidade, somada a boas práticas de governança corporativa, con-
patrocinadas pela Companhia nos últimos anos. Implantados em ferem credibilidade e solidez à Tractebel Energia no mercado.
cidades de pequeno porte, esses centros têm como objetivo criar A Companhia faz parte do Novo Mercado e integra o Índice de
um importante vínculo entre as memórias étnicas e culturais da Sustentabilidade Empresarial (ISE) da BM&F Bovespa desde
comunidade local e a construção de um futuro no qual as pesso- 2005 – ano de criação do ISE. Na última década, a Tractebel
as tenham mais oportunidades de preservar suas tradições e de Energia vem alcançando ótimos resultados, e suas ações regis-
conquistar cidadania por meio do acesso à cultura e à educação. traram valorização ascendente. Uma prova de que a opção pela
O primeiro projeto nesse sentido foi inaugurado em 2011, no sustentabilidade garante o bom desempenho econômico-finan-
município de Entre Rios do Sul, no Rio Grande do Sul, com pou- ceiro de uma organização.
co mais de 3 mil habitantes e localizado na área de influência da E assim, aliando os valores trazidos da França e da Bélgica
Usina Hidrelétrica Passo Fundo. Desde que começou a funcionar, por seus controladores ao potencial local e à cultura brasileira, a
este Centro já recebeu cerca de 20 mil visitantes, tanto para assistir Tractebel Energia mantém seu compromisso com a construção
a espetáculos e exposições quanto para participar de cursos e ofici- de um Brasil cada vez melhor.

100
empresas belgas no brasil

DEME: uma empresa de engenharia marinha


com 150 anos de experiência mundial

A DEME (Dredging, Environmental & Marine Engineering)


foi estabelecida como uma sociedade de participação em
abril de 1991, mas suas raízes remontam ao século 19. As origens
da DEME estão embutidas na Flandres, que tem uma longa com-
petência de engenharia hidráulica na construção de diques, na lu-
ta contra as inundações, no aprofundamento do acesso marítimo
e na construção de portos.
A DEME foi criada como sociedade de participação de duas
empreiteiras de dragagem belgas: Dredging International e Bag-
gerwerken Decloedt. Dois grupos industriais e financeiros atual­
mente controlam o capital de participação: Ackermans & van
Haaren, um grupo de investimento industrial baseado em An-
tuérpia e cotado na bolsa; e a CFE, uma empreiteira civil cota- Drenagem de aprofundamento da seção 5 do canal de acesso ao porto de Itaguaí,
da na bolsa, controlada pelo grupo francês Vinci. A experiência Baía de Sepetiba, Rio de Janeiro.
da DEME no Brasil remonta ao início do século 20, quando a
Ackermans estava envolvida nos trabalhos de extensão no porto localizado na baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro (2008-2009); a
do Rio Grande do Sul, em 1908. Mais recentemente, o grupo dragagem para o aprofundamento da seção 5 do canal de acesso
está ativamente presente no mercado brasileiro desde 2006, mo- do porto de Itaguaí, incluindo o aprofundamento do acesso ao
mento em que o mercado de dragagem foi aberto novamente porto da ThyssenKrupp CSA (2010-2011); a dragagem de manu-
para empresas estrangeiras. O Grupo DEME criou uma compa- tenção no terminal de Ponta da Madeira para a Vale, em São Luiz
nhia brasileira local em 2006, a Dragabras Serviços de Dragagem (MA) (2010), e os trabalhos de dragagem de capital no porto de
­Ltda., para todas as suas atividades no Brasil. Tubarão para a Vale (2011). Pequenos trabalhos de dragagem
A DEME esteve envolvida em diferentes projetos de grande de manutenção foram executados nos últimos anos nos portos
escala de dragagem no Brasil, tanto para clientes públicos como do Rio de Janeiro, de Imbituba, Santos e São Francisco do Sul.
para privados: realizou trabalhos de dragagem e de aterro hidráu- Como resultado da descoberta de grandes campos de petróleo,
lico para a construção da Usina Siderúrgica da Thyssen Krupp o governo brasileiro e o setor privado estão investindo enormes
CSA, na baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro (2006-2008); a dra- quantias em infraestrutura e nos portos. Isto leva a muitos projetos
gagem de aprofundamento do canal de acesso ao porto de Itaguaí, e diversas oportunidades para os próximos anos.

Grupo Jan De Nul

P essoas e embarcações, essa é a força motriz do grupo belga Jan


De Nul. Graças à dedicação de nossos funcionários e de nossa
frota ultramoderna, o Grupo Jan De Nul se mantém no topo da
ca de tratamento de esgoto da Europa ou a instalação de pedras a
2.000 metros de profundidade.
Desde a abertura do mercado de dragagem no Brasil, em 2007,
indústria de dragagem mundial. a Jan De Nul do Brasil Dragagem Ltda. – empresa 100% controla-
Além da dragagem de manutenção e de aprofundamento, o da pelo Grupo Jan De Nul – tomou a frente do mercado. Planos
grupo possui um departamento de construção civil e uma divisão de investimento sem precedentes vêm sendo elaborados, tanto no
de meio ambiente que dão suporte e possibilitam a ampla gama setor público quanto no setor privado.
de serviços do grupo. Esses são os três pilares que nos permitem Obras de Aprofundamento: Barra do Riacho (Portocel/Pe-
realizar projetos em ampla escala, atendendo as expectativas de trobras – 2007), Rio Grande (SEP/SUPRG – 2009/2012), Salva-
nossos clientes. Sejam esses projetos a Palm Island, em Dubai, o dor/Aratu (SEP/Dias Branco – 2010), Itaguaí (LLX/Odebrecht –
novo conjunto de eclusas no Panamá, a manutenção de rios na 2011/2012), Itajaí (SEP – 2011), Vitória (Vale – 2012) e Paraguaçu
Argentina, novos complexos portuários na Austrália, a maior fábri- (EEP – 2012/2013);

101
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

Draga de sucção autotransportadora Cristobal Colon, que, com seus 46.000m³, é a maior draga do mundo, adentrando o porto do Rio de Janeiro, 2011.

Obras de Aterro: Açu (LLX – 2011) e Itaguaí (Odebrecht – O Grupo Jan De Nul continua fortalecendo sua atuação no
2011/2012); Brasil, trazendo equipamentos de última geração e treinando fun-
Dragagem de Manutenção: Rio Grande (SUPRG – 2012), São cionários brasileiros para que atinjam alto nível de qualificação.
Luís (Vale – 2012/2015); Assim sendo, o Grupo Jan De Nul continua evoluindo com o Bra-
Aprofundamento e Serviços Ambientais: Santos (Embraport sil, criando o mundo do amanhã.
– 2012/2013).

Katoen Natie: Mais de 15 anos de prestação


de serviços logísticos no Brasil

K atoen Natie foi fundada em 1854 em Antuérpia por quatro


companheiros de trabalho. Sua primeira atividade consistia
no recebimento do algodão. Cada navio descarregado no porto
por comissão para os compradores de mercadorias. A Katoen Na-
tie (Associação Algodoeira), em seus primórdios, trabalhava para
o setor de processamento de algodão e recebia os fardos, além de
por seu capitão e tripulação era assistido por estivadores recru- manejar a armazenagem, pesagem, amostragem e distribuição.
tados localmente. Quando o guindaste colocava as mercadorias Ela rapidamente diversificou seu produto e começou a receber
no cais, estas eram recebidas pelos associados. Estes trabalhavam outras mercadorias: juta, café, ferro, aço, frutas, tomates etc.

102
empresas belgas no brasil

Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a orga- São Paulo. Em seguida, outros projetos de engenharia e operações
nização deu início a novas atividades: armazenagem em seus pró- in house foram executados para clientes petroquímicos brasileiros.
prios depósitos, transporte, expedição, declaração aduaneira. Nos O grande crescimento no Brasil foi alcançado com a compra
anos 90, os serviços especializados para o setor automobilístico, de um prestador de serviços logísticos brasileiro, JOB, com sede
químico e petroquímico e de grande distribuição foram agregados. em Camaçari, Salvador (BA). A primeira sede da Katoen Natie
Em 1995, a Katoen Natie investiu pela primeira vez no exte- estava por consequência na Bahia. Katoen Natie cresceu para ser
rior, abrindo uma filial em Sarralbe (França). Depois disso, as ati- o líder do mercado de serviços logísticos para a indústria petro-
vidades se expandiram para todas as partes do mundo. Atualmente, química no Brasil com atividades desde o Rio Grande do Sul até
a Katoen Natie é uma empresa de porto mundial com operações Alagoas, passando por Paraná, São Paulo, Rio do Janeiro e Bahia.
em 27 países distribuídos por Europa, Oriente Médio, América do A Katoen Natie já desenvolveu dois centros próprios de distri-
Norte, América do Sul, Ásia e África. Consiste de 400 unidades buição multimodais no Brasil: um em Paulínia, região de Campi-
operacionais, com 150 terminais e plataformas de logística, com nas (SP) e um em Araucária, região de Curitiba (PR). O primeiro
mais de 10.000 pessoas. foi construído em 2001 e Paulínia foi escolhida como localização
A Katoen Natie atua no mundo inteiro. É uma empresa priva- por ser o ponto de interconexão das maiores empresas concessio-
da e não está listada no mercado de ações, de forma que as deci- nárias ferroviárias, oferecendo as duas bitolas aplicadas no Brasil.
sões são tomadas como parte de uma visão de longo prazo. Opera Esta plataforma logística de mais de 50.000 m² de armazéns e
terminais portuários, centros de distribuição e operações on-site mais de 70 ha de terrenos funciona como Centro de Distribuição
(in house). O grupo também fornece todos os tipos de serviços por clientes brasileiros e internacionais do ramo automotivo, in-
semi-industriais, projeta, desenvolve e administra plataformas de dustrial, de bens de consumo e petroquímico.
logística e cadeias de fornecimento completas. Finalmente, a sede da Katoen Natie do Brasil foi transferida
Em 1997 a Katoen Natie começou operações no Brasil a con- para Paulínia,de onde controla mais de 20 operações empregan-
vite de um de seus clientes mundiais da indústria petroquímica. do mais de 850 pessoas. Com essa estrutura a Katoen Natie está
Um primeiro projeto de engenharia, inclusive de silos, linha de preparada para oferecer uma solução logística para a economia
embalagem e armazém, foi realizado em Santo André, ao lado de brasileira numa fase de forte crescimento.

103
empresas brasileiras na bélgica

A Compagnie Brésilienne des Tramways


Eddy Stols

C andidata à primeira empresa brasileira atuando na Europa


ocidental pode ser a Compagnie Brésilienne des Tramways,
fundada no Rio de Janeiro com um capital de 1.200 contos de réis,
ou seja, algo mais que três milhões de francos belgas, quantia de
dinheiro mais do que respeitável (Cosaert e Delmelle). Represen-
tada em Bruxelas por dois homens de negócios belgas ativos no
Rio de Janeiro, Ladislas Paridant e Louis Laureys, ela comprou em
1874 dos irmãos Becquet duas linhas de bondes existentes com
tração hipomóvel e em dificuldades por causa do alto custo dos
cavalos. Uma servia a Rue de la Loi, uma nova artéria ao lado do
Parlamento belga, e a outra, a Tour du Boulevard, e ligava as duas
estações do Norte e do Midi correndo parcialmente pela avenida
circular. Na parte inclinada deste trajeto precisava-se de quatro
cavalos, o que encarecia muito o preço da passagem.
Sua frota consistia em 30 carros fechados, pintados de ver-
melho. A Brésilienne foi a primeira a introduzir, nos dias de bom
Um carro aberto, com cortinas para proteger da chuva ou do sol, de 16 lugares,
tempo, carros abertos com bancos transversais, e chegou a ter dez da ‘Compagnie brésilienne des tramways’ ou ‘Brésilienne’, fundada no Rio de
desse tipo. Os cinco últimos a entrar em serviço levavam uma cor Janeiro e que passou a operar em Bruxelas em 1874.
marrom, que lhes mereceu na boca do povo, o apelido de tram
chocolat. Este conservou-se por muito tempo, mesmo depois que Referência
a Brésilienne, em dificuldades financeiras, foi absorvida em 1879 É. Cosaert e Joseph Delmelle. Histoire des transports publics à Bruxelles. Bruxelas, 1976,
pelos Tramways Bruxellois. t. 1, p. 83-140.

O Panorama da Baía e da Cidade do Rio de Janeiro


Eddy Stols

U ma das primeiras empresas publicitárias foi a sociedade co-


manditária ‘Meirelles & Langerock’, que os pintores Vítor
Meirelles e Henri Langerock, um paisagista belga ativo no Brasil
nas grandes cidades europeias, onde este tipo de espetáculo pago
se popularizou como diversão pública. Enquadrava-se bem dentro
da ofensiva de propaganda que o Brasil deslanchou nesses anos
desde 1885, registraram no Rio de Janeiro em 25 de junho de 1886 na Europa com publicações subsidiadas e participações nas gran-
com capital de 150 contos de réis e duração de seis anos (Mello des exposições. Mais de 30 proeminentes brasileiros subscreveram
Junior e Coelho). Devia realizar um Panorama da Baía e Cidade cotas tanto para apoiar a promoção de sua pátria quanto na expec-
do Rio de Janeiro para explorá-lo comercialmente em exposições tativa de bons lucros.

104
empresas brasileiras na bélgica

As dificuldades técnicas para trabalhar com uma tela de várias dinheiro, o que provocou uma briga judicial entre os dois artistas.
dezenas de metros de comprimento obrigaram Meirelles e Lan- Langerock queria receber mais do que o estipulado. Já no folheto
gerock a programar a realização do Panorama, a partir de estudos assinado por Meirelles, foi inserida, certamente a pedido do belga,
pintados no Rio de Janeiro, num grande espaço na Europa. Como uma nota esclarecendo que era obra de dois artistas e que ele tinha
Londres não tinha naquele momento uma rotunda disponível, pintado a parte oriental. Langerock saiu da sociedade, ao passo
decidiu-se por um ateliê em Ostende. Na escolha desta cidade que Meirelles levou a obra a Paris para instalá-la numa avenida
belga influíram, além dos vínculos pessoais de Langerock, vários perto da Exposição Universal de 1889. Se ganhou lá boas aprecia-
motivos. Suas confortáveis instalações balneárias podiam facilitar ções e uma medalha de ouro, pelo excesso de outros espetáculos
uma estada longa dos dois pintores por mais de um ano. Por es- e panoramas, não recebeu visitantes suficientes e os resultados
trada de ferro, tinha proximidade com Bruxelas, onde existia uma financeiros não corresponderam às expectativas.
rotunda num boulevard da cidade. A Bélgica parecia uma boa al- Em falta de outras oportunidades na Europa, Meirelles trans-
ternativa para a Inglaterra em vista dos crescentes interesses eco- feriu a obra para o Rio de Janeiro. Numa rotunda construída no
nômicos brasileiros naquele país. O Brasil tinha participado com Largo do Paço Imperial, futura Praça XV, o Panorama foi inaugu-
algum êxito da Exposição Universal de Antuérpia em 1885 e era rado em 3 de janeiro de 1891 e ficou aberto pelo menos por dois
representado naquela época por um dinâmico e bem relacionado anos, se bem que num período muito conturbado. A tentativa de
diplomata, conde de Villeneuve. Meirelles para incluí-lo na Exposição Colombiana de Chicago
Em 4 de abril de 1888 abriu-se sua primeira exibição em Bru- em 1892 malogrou. Como previsto no ato de fundação, a empresa
xelas na presença da rainha belga Marie-Henriette. Um folheto foi dissolvida em 1893 com pagamento de dividendos aos sócios.
de 14 páginas, Panorama de la ville de Rio de Janeiro exhibé en A rotunda parece ter acolhido depois outras telas panorâmicas de
Europe et à Bruxelles pour la première fois, impresso em Bruxelas, Meirelles até que, em 1898, a prefeitura, que não devia apreciar
identificava o espetáculo em todos seus pormenores. Insistia muito muito este pintor do antigo regime imperial, mandou demolí-la.
na modernidade desta grande cidade e ousava comparações com A tela do Panorama do Rio de Janeiro, de boa qualidade artística
a Europa, sem dúvida para impressionar e tranquilizar os investi- segundo os críticos da época, foi doada por Meirelles ao governo
dores e acionistas europeus e os eventuais candidatos a emigração em 1902, mas, abandonada na Quinta da Boa Vista, desgastou-
entre os artesãos e operários. Indicava assim a fumaça das quatro se por completo. Somente os seis estudos preparatórios ficaram
chaminés da fábrica de gás, que acabava de ser adquirida em 1886 preservados no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro.
por capitais belgas e que assegurava agora a iluminação noturna Quase um século mais tarde apareceram novas empresas bra-
de toda a cidade. Esta, com 400.000 almas, ou 800.000 com os sileiras na Bélgica. Pouco depois da chamativa Brasil Export em
subúrbios incluídos, tinha um intenso tráfico de vapores a cada 15 Bruxelas, em novembro de 1973, a Rio Doce Internacional, sub-
minutos para Niterói, um serviço abundante de bondes com mais sidiária da Cia. Vale do Rio Doce, abriu em 1974 um escritório
de 100.000 passageiros por dia, grandes reservatórios de água, ou em Bruxelas, dirigido por Eliezer Batista até sua volta, em 1979,
seja, setores que podiam suscitar investimentos belgas. à presidência da sede no Brasil. O Banco do Brasil abriu uma
Seu status de capital econômica se evidenciava ainda nos gran- agência em Bruxelas em 1992. Se ambas empresas já deixaram a
des edifícios da Alfândega e dos Correios, na Bolsa em constru- Bélgica, entrementes chegaram novas. Em 1992 a WEG, fabri-
ção e nos bairros de Tijuca, com as residências dos homens de cante de motores e sistemas industriais elétricos, de Jaraguá do
negócios estrangeiros, e de Santa Teresa, acessível com um tren- Sul, SC, estabeleceu-se em Nivelles. A Citrovita da Votorantim
zinho em plano inclinado. A abertura recente da Rua Senador abriu, em 1993, em Antuérpia um terminal para a distribuição
Dantas, onde se podia ver a carroça do Imperador e os planos de suco de laranja, ampliado em 2008 para armazenar também
para arrasar os morros de Santo Antônio, do Castelo e do Senado, outros produtos do grupo, celulose e metais. Sobretudo o porto
anunciavam um urbanismo ambicioso e as obras de saneamento. de Gand viu crescer a presença brasileira para a distribuição de
Destacavam-se as diversões públicas e a vida cultural: a praia de minérios e produtos do agronegócio. Depois da Citrosuco da Fis-
Icaraí, que oferecia banhos de mar tão bons como em Ostende ou cher, a ­Louis Dreyfus abriu seu próprio terminal para o suco de
Blankenberghe; os belos jardins com cascadas de São Cristovão; laranja em 2000. Em 2011 veio a Cia. Brasileira de Logística, de
o Passeio Público, onde se davam concertos nas noites de bom Curitiba, que armazena biodiesel, e em 2013 a JBS para a distri-
tempo; a biblioteca do Gabinete Português de Leitura, em estilo buição de carne. A Duratex instalou um centro de distribuição
manuelino, e o Teatro São Pedro, onde atuara recentemente Sa- em Mechelen (Malines) em 2005.
rah Bernhardt. A subida por trem em 40 minutos ao Corcovado,
muito procurado pelos turistas estrangeiros, já superava a mais Bibliografia sobre o Panorama do Rio de Janeiro
famosa de Righi, na Suíça. Panorama de la ville de Rio de Janeiro exhibé en Europe et à Bruxelles pour la première
Durante seis meses o Panorama atraiu cerca de 50.000 visitan- fois, Bruxelas, 1888; Mário César Coelho, Os panoramas perdidos de Victor Meirelles,
tes, em parte escolares com tarifa reduzida. Pode ter melhorado a Tese de doutorado em história UFSC, Florianópolis, 2007; Donato Mello Junior. O
Panorama da Baía e Cidade do Rio de Janeiro, de Vítor Meireles de Lima. Mensário
imagem do Brasil e influído em diversas novas iniciativas belgas do Arquivo Nacional, XIII, 10, 1982, p. 336-346.
neste país nos anos seguintes. Deve também ter rendido um bom

105
parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

Citrosuco: presente na Bélgica desde 1980

A Citrosuco instalou-se na Bélgica em 1980, no porto de Gand,


quando contratou os serviços da Citrus Coolstore NV para o
serviço de armazenamento e distribuição na Europa do suco con-
centrado e congelado de laranja.
A escolha recaiu sobre Gand devido à sua localização estra-
tégica em relação aos mercados europeus e também porque, já
em 1980, era considerado o porto “brasileiro” mais importante na
Bélgica. Naquela época, Gand movimentava cerca de 3 milhões
de toneladas de mercadorias originárias do Brasil, principalmente
grãos, soja, minério de ferro, produtos metálicos, celulose e sucos
de fruta. Para grande parte desses produtos, o porto de Gand ainda
funciona como centro de distribuição para toda a Europa e mes-
mo para o Oriente Médio. Esse é o caso, por exemplo, do suco de
laranja da Citrosuco.
Para atender o contrato firmado com a Citrosuco, a Citrus
Coolstore NV construiu um armazém frigorífico com capacidade
para 21 mil toneladas de suco a granel e 40 mil tambores. O frigo- O navio ‘Sol do Brasil’ da Citrosuco fornece regularmente suco de laranja à
rífico ficou pronto em novembro de 1982 e com ele a Citrosuco Bélgica, 2012.
assegurou então plena capacidade para garantir o abastecimento
de suco de laranja aos mercados europeus. tomatizados. O cais possui cerca de 200 metros de comprimento,
Estava pronto, assim, o sistema que permitiu à Citrosuco o oferecendo total estrutura para o carregamento e descarregamento
transporte a granel de suco concentrado congelado desde as ­suas dos navios dedicados ao transporte de suco de laranja.
fábricas no Brasil até a Europa. Na viagem inaugural, o navio Em 2010, a Citrosuco, empresa do Grupo Fischer, e a Citro-
“Ouro do Brasil” saiu de Santos no dia 17 de novembro de 1982 vita, empresa do Grupo Votorantim, anunciaram sua fusão e a
com 9 mil toneladas de suco de laranja concentrado congelado. formação de uma joint venture 50/50 de seus negócios, tanto no
Por outro lado, a Citrovita – até então uma empresa do Grupo Brasil como no exterior.
Votorantim e concorrente da Citrosuco – instalou-se também na Em maio de 2011, a fusão Citrosuco/Citrovita foi aprovada pe-
região de Flandres na Bélgica em 1993, mais precisamente na ci- la Comissão Europeia e, em dezembro de 2011, teve a aprovação
dade de Antuérpia, considerado o segundo maior porto da Europa. do Cade, órgão brasileiro regulador.
Na ocasião, a Citrovita operava juntamente com outras em- A partir de 2012, as duas empresas passaram a operar conjun-
presas do Grupo Votorantim, entre elas a Votorantim Celulose e tamente, coordenando as atividades de produção, logística terres-
Papel (VCP). A escolha por Antuérpia levou em conta o fato de tre, terminais, logística marítima e comercialização do suco de
que a região de Flandres era considerada o coração da Europa, laranja no exterior.
e oferecia às empresas toda a infraestrutura, seja rodoviária, fer- Surge, assim, uma nova empresa, que manteve o nome Citro-
roviária ou marítima, interligando os grandes centros europeus. suco, com uma nova marca e posicionamento. A nova Citrosuco
O terminal da Citrovita em Antuérpia possui capacidade para está presente na Bélgica em seus dois principais portos, Gand e
armazenar 33.200 toneladas de suco, em tanques totalmente au- Antuérpia, com dois terminais e cerca de 60 funcionários.

106
astronomia e geologia

parte 4

Colaboração Científica

107
parte 4 – colaboração científica

108
astronomia e geologia

Louis Cruls e o Observatório Astronômico no Rio de Janeiro


Christina Helena Barboza

O engenheiro e astrônomo Louis Ferdinand Cruls nasceu no


dia 21 de janeiro de 1848, em Diest, cidade situada no la-
do flamengo da Bélgica. Filho de Philippe Augustin Guillaume
Cruls e de Anne Elizabeth Jordens, Cruls completou os estudos
superiores na Universidade de Gand, onde travou amizade com
jovens brasileiros, que o incitaram a visitar o Brasil. Foi assim que,
contando com o apoio do pai, Cruls embarcou para o Rio de Janei-
ro em setembro de 1874, interrompendo a carreira de engenheiro
militar na Bélgica.
Graças à rede de amizades estabelecida ainda na Europa, alar-
gada pelo convívio estabelecido com Joaquim Nabuco durante a
travessia do Atlântico, Cruls foi recebido pelo próprio imperador,
D. Pedro II, e pelo então Diretor-Geral do Ministério da Agricul-
tura, Comércio e Obras Públicas, Manuel Buarque de Macedo,
que lhe arrumou trabalho na Comissão de Triangulação do Mu-
nicípio Neutro, ainda no final de 1874.
Nessa oportunidade ele não apenas desenvolveu um estudo
comparativo sobre os métodos empregados na determinação de
posições geográficas por triangulação, publicado em maio de 1875
por uma tipografia de sua cidade natal (Discussion sur les mé-
thodes de répétition et de réitération employées en géodésie pour
la mesure des angles, 1875), como também ganhou a confiança
de Emmanuel Liais, diretor do Imperial Observatório do Rio de
Janeiro, que logo convidou-o a ingressar nessa instituição, em de-
zembro de 1877.
Foi também durante essa etapa inicial de sua carreira no Brasil
que Cruls conheceu Maria Margarida de Oliveira, com quem se
casou em 26 de maio de 1877, e teve seis filhos: Edmée, Stella,
Sylvie, Maria Luísa, Gastão e Henri (este último falecido ainda
criança).
Trabalho de campo da Comissão Cruls no alto dos Pirineus, Goiás, em 8 de
Cruls trabalhou no Observatório do Rio de Janeiro durante agosto de 1892.
cerca de 30 anos, desde 1877 até o ano de sua morte. Mais do
que isso, ele contribuiu decisivamente para a consolidação dessa quanto à sua competência e mesmo sua utilidade, e não faltou
instituição no cenário científico brasileiro. De fato, entre o final quem recomendasse o fechamento da instituição.
da década de 1870 e o final da década de 1880, a despeito do O principal alvo das críticas, Liais acalmou momentanea-
apelo que possuía o ideário cientificista entre as elites políticas e mente a situação no início de 1881, ao afastar-se da direção do
intelectuais brasileiras, o Observatório foi alvo de críticas pesadas Observatório e do país, voltando à França, sua terra natal. Cruls

109
parte 4 – colaboração científica

Integrantes da Comissão Cruls, Goiás, 1892.

era o astrônomo de sua preferência para substituí-lo. Ele assumiu a Repartição Hidrográfica a colaborar com a instituição, e solicitou
interinamente o cargo em 24 de março de 1881, não sem antes ao governo recursos extraordinários, de modo a tornar possível a
naturalizar-se brasileiro, em 12 de fevereiro do mesmo ano, entre organização de pelo menos três expedições com bandeira brasilei-
outras razões para evitar o viés nacionalista embutido nas críticas ra, respectivamente enviadas à ilha de São Tomás, nas Antilhas, a
endereçadas ao Observatório. Olinda e a Punta Arenas, na Patagônia chilena.
Durante o início de sua gestão, ainda no período imperial, Nesta última estação, sob seu comando científico, foi a única
Cruls buscou angariar aliados para o Observatório, como o Im- em que predominou o bom tempo, permitindo que todos os con-
perador D. Pedro II, que não media esforços em demonstrar seu tatos entre Vênus e o Sol fossem cronometrados. Os resultados das
apreço pelas ciências em geral e pela astronomia em particular; observações e cálculos posteriores foram publicados em 1887, nos
Rui Barbosa, que chegou a publicar um folheto em defesa da ins- Anais do Observatório (Annales de l’Observatoire Impérial de Rio
tituição, e Gusmão Lobo, redator do Jornal do Commercio, prin- de Janeiro, t. 3, 1887), em um volume bilíngue organizado por
cipal jornal diário da época, e seu amigo pessoal. Cruls e especialmente dedicado aos trabalhos das diversas expe-
Um dos principais fatores que contribuíram para consolidar o dições brasileiras.
prestígio da instituição entre as elites imperiais brasileiras foi sua Enquanto eram organizadas as expedições visando a obser-
participação em projetos de caráter internacional e grande visibi- vação do trânsito de Vênus, Cruls protagonizou outro momento
lidade, como a observação do trânsito de Vênus pelo disco do Sol, importante simultaneamente na sua carreira e na trajetória do Ob-
em 6 de dezembro de 1882. servatório ao comunicar o aparecimento de um novo cometa no
Para possibilitar a participação do Observatório nos esforços céu austral, visível a partir de 25 de setembro de 1882. A Academia
internacionais de observação do trânsito de Vênus, Cruls convidou de Ciências de Paris reconheceu o seu mérito na descoberta e na

110
astronomia e geologia

análise da constituição química desse cometa concedendo-lhe o nacional. A mais importante delas foi sua nomeação para presidir
Prêmio Valz, em sessão pública realizada em 2 de abril de 1883. a chamada Comissão Exploradora do Planalto Central, que en-
Tendo em vista o prestígio da Academia francesa, o valor sim- tre junho de 1892 e março de 1893 percorreu essa região com o
bólico da premiação recebida por Cruls pode ser considerado objetivo de definir a localização da área de 14.400 km2 que ainda
maior do que o montante em dinheiro, na medida em que con- hoje delimita o Distrito Federal do Brasil, conforme previsto na
tribuiu para a consagração internacional de seu nome, e para o primeira Constituição Republicana, de 1891.
fortalecimento, entre os brasileiros, da instituição onde era diretor. Cruls também chefiou a Comissão de Estudos da Nova Capi-
Foi também ao longo dos anos 1880 que Cruls atingiu o auge tal da União, que voltou à região entre julho de 1894 e dezembro
de sua produção científica, com a publicação de trabalhos de te- de 1895, com o duplo objetivo de escolher a melhor localização
máticas bastante distintas, tais como um método gráfico para a pre- para a futura capital dentro da área previamente demarcada, e de-
visão de ocultações e eclipses (“Occultações e eclipses; processo finir o traçado de uma estrada de ferro interligando duas cidades
graphico para sua predicção”, Revista do Observatório, 1886-1887), próximas, Cuiabá e Catalão.
o projeto de um novo tipo de barômetro destinado à determina- Logo no início do século XX, em janeiro de 1901, Cruls assu-
ção de altitudes (Descripção e Theoria do Barometro Differencial, miu a chefia de outra missão de cunho político-científico: a de-
1888) e um estudo sobre o clima do Rio de Janeiro (O Clima do marcação das nascentes do Rio Javari, início da fronteira do Brasil
Rio de Janeiro, 1892). com a Bolívia. A realização da nova expedição revelou-se uma
Além disso, sob sua direção – desde 1884 em caráter definitivo grande e perigosa aventura, com dias a fio de viagem em canoas,
– o Imperial Observatório expandiu-se de maneira significativa, ad- racionamento de comida e a irrupção de diversas doenças entre os
quirindo instrumentos e contratando pessoal, e começou a divul- membros da comissão, como o próprio Cruls, que teria contraído
gar sua produção, seja através dos Anais, dirigidos à comunidade beribéri e malária. Apesar de todas as dificuldades, a expedição foi
científica, seja através da Revista do Observatório, um periódico bem sucedida, e no dia 22 de agosto de 1901 foi instalado o marco
mensal destinado à “vulgarização científica”. indicativo da nascente principal do Rio Javari.
Em duas viagens aos Estados Unidos e à Europa, em 1887 Cruls nunca se recuperou completamente dessa última via-
e 1889, Cruls garantiu o lugar do Observatório e do Brasil, res- gem a trabalho. A partir dessa data passou a acumular pedidos de
pectivamente, na Conferência Internacional do Meridiano, cujo licença do cargo para tratamento de saúde, a tal ponto que em
objetivo era escolher o meridiano de referência na determinação 1905 o governo nomeou Henrique Morize como seu substituto
das longitudes, e no ambicioso projeto Carta do Céu, iniciativa no Observatório, por prazo indeterminado. Em janeiro de 1908,
francesa cujo objetivo era construir um mapa de toda a abóbada uma nova licença lhe foi concedida pelo período de um ano. Cruls
celeste utilizando a fotografia, através da colaboração entre obser- embarcou então de volta à Europa, junto com a família, em busca
vatórios do mundo inteiro. Finalmente, a partir de março de 1889 de tratamento. Morreu em Paris, em 21 de junho de 1908.
Cruls passou a acumular a direção do Observatório com o cargo
de professor de trigonometria esférica, astronomia e geodesia da Christina Helena da Motta Barboza é pesquisadora no Museu de
Escola Militar do Rio de Janeiro. Astronomia e Ciências Afins, no Rio de Janeiro. É graduada em His-
A instauração do regime republicano no Brasil, a partir de 15 tória pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com
de novembro de 1889, deu ensejo a outras oportunidades de pro- Mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense e Dou-
jetar Cruls e o Observatório por ele dirigido no cenário científico torado em História Social pela Universidade de São Paulo.

Um belga à procura de petróleo no Brasil


Pa t r i c k C o l l o n

N o final do século XIX o Brasil, assim como a Rússia, aparecia


frequentemente no roteiro dos engenheiros belgas, que per-
corriam o mundo à procura de minérios para sua indústria meta-
as riquezas mineralógicas do Ural em 1891 e 1892 e a extração do
petróleo em Baku no Cáucaso em 1894.
Entre 1895 e 1897 deixou Liège e foi para o Brasil, na con-
lúrgica. Neste sentido foi bem significativo o percurso de Auguste dição de encarregado de missão do governo belga, para montar
Collon (Mons, 30.04.1869 – Antuérpia, 07.01.1924). Em 1885 um centro de estudos na Fazenda do Brejão, de propriedade de
matriculou-se na Universidade de Liège para estudar Ciências Eduardo Ferreira de Camargo. Em menos de dois anos, realizou
Naturais e obteve, em 1890, com apenas 21 anos, seu doutorado várias explorações mineralógicas e geológicas no Estado de São
com a menção de grande distinção. Nomeado assistente em mi- Paulo, em parte junto com o influente geólogo americano Orville
neralogia, pôde fazer numerosas viagens de estudo, descobrindo A. Derby. Estudou particularmente os terrenos carboníferos desse

111
parte 4 – colaboração científica

Auguste Collon no laboratório do Brejão,


onde realizou pesquisas mineralógicas e
geológicas entre 1895 e 1897.

Estado, as jazidas de minérios de ferro de São João d’Ypanema e ciété Anonyme John Cockerill, em Seraing, chefiando também seus
as rochas betuminosas da região de Botucatu. Serviços de Relações Exteriores. Como tal lidou por volta de 1910
Em Porangaba, montou a primeira estrutura de sondagem pro- com um projeto para vender modernos navios pesqueiros para o
funda, tornando-se o pioneiro da prospecção petrolífera no Brasil, Brasil. Depois de ter conduzido a Cockerill através dos escolhos da
embora sem resultados. Seu profissionalismo foi muito respeitado Grande Guerra, a deixou por motivos pessoais em 1919 e se radi-
e orientou mais tarde novas sondagens. Ele resumiu suas pesqui- cou com sua família em Antuérpia. Lá colaborou com a Casa G.
sas numa memória manuscrita de 80 páginas, Le Pétrole dans les & C. Kreglinger, muito ativa no comércio com a América Latina,
environs du Mont de Bofete et de Porto Martins dans l’État de São como conselheiro e em seguida como procurador. Faleceu com
Paulo; suivi d’une étude chimico-industrielle des grès bitumeux de 54 anos em Antuérpia.
cette région, datada do Brejão, 11.02.1897, atualmente conserva-
da no Instituto Geológico de São Paulo (e editada em facsimile, Patrick Collon, nascido em Bruxelas em 1942, é filho de Alexandre
São Paulo, 1970). Collon e de Petronella Fitzwilliams-Hyde e neto de Auguste Collon,
Entrementes, pouco depois de sua chegada ao Brasil, veio lhe estudou na Inglaterra (Eton College), Áustria (Linz e Sankt-Florian),
fazer companhia sua noiva, Rachel Goron (Kovno, 28.2.1869 – Alemanha (Ludwigsburg), é organeiro em Bruxelas desde 1966.
Bruxelas, 6.8.1951). Nascida na Rússia, acabava de formar-se em
medicina na Universidade de Liège, onde estudavam na época Referências
muitos russos e brasileiros. Casaram-se em São Paulo em 19 de Collon, A. Sur un Cristal de Zircon. Liège (sic) 1892.
dezembro de 1895. A morte neonata de seu primeiro filho no Collon, A. Sur l’Oligiste de Viel-Salm. Liège (sic) 1894.
Collon, A. Manuscrit: Le Pétrole dans les environs du Mont de Bofete et de Porto Martins
Brejão em 10 de janeiro de 1897 precipitou sua volta à Europa. dans l’Etat de Sâo Paulo; suivi d’une Etude Chimico-industrielle des grès bitumineux
Reinstalado na Bélgica, Auguste Collon efetuou, entre 1897 e de cette région; par Auguste Collon, Docteur en Sciences naturelles, Assistant hono-
1904, como engenheiro-conselheiro, diversas missões científicas raire de l’Université de Liége. Brejão. 1897. Reproduction facsimile, commentée.
Sao Paulo 1970.
por conta de empresas como a Société Générale de Belgique e a Domingues, J. M. Porangaba sua História, Relatório de Collon. Porangaba 1998.
Société Métallurgique Russo-Belge, na Rússia, Alemanha, Polônia, Domingues, J. M. Porangaba sua História, O Manuscrito de Collon. Porangaba
Suécia e Espanha. Em 1905 foi nomeado secretário-geral da So­ 2012.

112
botânica e zoologia

O botânico Célestin Alfred Cogniaux e sua relação com o Brasil


Magali Romero Sá e Alda Heizer

O botânico belga Célestin Alfred Cogniaux (1841-1916) foi


um dos maiores colaboradores da Flora Brasiliensis de von
Martius, tendo sido responsável por cinco dos 40 volumes que
separadamente em 1887 (Saldanha da Gama & Cogniaux, 1887).
Foi também através de Saldanha da Gama que Cogniaux foi
indicado ao Imperador do Brasil para atuar como vice-cônsul do
compõem a obra elaborada pelo botânico alemão. Cogniaux foi então recém-criado vice-consulado brasileiro em Verviers (Mat-
responsável pelas monografias das famílias Melastomataceae e Or- toso et al., 1999, p. 237), tendo sido nomeado pelo monarca em
chidaceae tendo colaborado também na elaboração da família 1887 e permanecido no cargo até 1902 (Cogniaux, 2003, p. 5).
Curcubitaceae em um fascículo do volume VI, part. IV da Flora. Seu trabalho sobre a família Melastomataceae foi publicado
Seus escritos sobre a flora brasileira preencheram cerca de na Flora Brasiliensis em dois volumes, com cinco fascículos, entre
3.118 páginas, com mais de 600 ilustrações (Hoehne, 1941, p. 1883 e 1888 (Hoehne, 1941) e, segundo Goldenberg et al. (2012)
50-51). Formado como professor secundário pela École Normale esse estudo ainda representa a monografia mais recente sobre a
de Nivelles, Cogniaux trabalhou como professor de matemática família no Brasil, constituindo a base para subsequentes estudos
e ciências naturais em diferentes cidades e escolas da Bélgica. taxonômicos, tanto para tratamentos de revisão quanto trabalhos
Amante da botânica, adquiriu sua formação na prática e através de cunho florístico.
do convívio com outros botânicos. Em 1893 Cogniaux iniciou a publicação da primeira parte da
Em 1862 o botânico belga iniciou, em parceria com Barthé- obra sobre Orchidaceae na Flora Brasiliensis após intensa nego-
lémy Dumortier, os estudos sobre briófitas indígenas, tendo parti- ciação com o botânico brasileiro João Barbosa Rodrigues. Desde
cipado, nesse mesmo ano, da fundação da Société Royale de Bota- 1868 Rodrigues vinha se dedicando à coleta e descrição das orquí-
nique de Belgique. Dez anos depois, em 1872, foi indicado para o deas brasileiras, tendo em 1870 apresentado à comunidade cientí-
cargo de Conservador do Jardim Botânico do Estado e nomeado fica brasileira uma obra sobre Orchidaceae em três volumes com
naturalista ajudante. Lá, inicia seus estudos sobre a sistemática das descrições em latim e francês e ricamente ilustrada.
fanerógamas e, a convite de August W. Eichler, editor da Flora Rodrigues não obteve apoio do governo para a publicação da
Brasiliensis, dedica-se à família Curcubitaceae. Vale lembrar que sua obra ilustrada. Porém, por iniciativa do Barão de Capanema,
o Jardim Botânico belga havia acabado de receber, no ano ante- um volume de seu trabalho foi enviado para August Eichler na Ale-
rior, em 1871, o herbário brasileiro de Carl von Martius adquirido manha e apresentado a Heinrich Gustav Reichenbach, orquidólo-
pelo governo da Bélgica. go alemão, responsável inicialmente por escrever a parte dedicada
Em 1880, por divergências internas, Cogniaux se desliga do às orquídeas da Flora. Reichenbach, admirado com o trabalho
Jardim Botânico e volta a atuar como professor de ciências natu- do botânico brasileiro, convida-o para levar o seu herbário para
rais, não deixando, porém, seus estudos botânicos, em especial a Europa para que suas novas espécies pudessem ser validadas, e
sobre a flora do Brasil (Alfred Cogniaux – National Botanic Gar- propõe que sejam publicadas em coautoria. Em carta ao botâni-
den of Belgium. Disponível em: <http://www.br.fgov.be/PUBLIC/ co sueco A. Regnell, residente no Brasil, Reichenbach explicou:
GENERAL/HISTORY/cogniaux.php>). “O objetivo de minha carta é falar sobre o sr. Barbosa Rodri-
Sua ligação com os botânicos brasileiros, fortalecida quando gues. Devo admitir que suas pesquisas são muito boas, e que nós
esteve na direção do Jardim Botânico belga, se manteve viva e co- poderíamos ser úteis um ao outro. Se ele publicar suas orquídeas,
laborativa. Com José de Saldanha da Gama, botânico brasileiro, acredito que metade já tenha sido descrita, e ele poderia evitar esta
professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro e cônsul-geral do duplicação trazendo para a Europa os tipos de suas novas desco-
Brasil na Bélgica, Cogniaux realizou estudo sobre Melastomata­ bertas, e assim ninguém poderia contestá-lo. É sabido ser impossível
ceae brasileiras para a Flora Brasiliensis, cujo extrato foi publicado produzir um trabalho perfeito (de taxonomia) fora da Europa... Por

113
parte 4 – colaboração científica

Capa da publicação Uma nova colaboração com botânicos brasileiros se deu em


Mélastomacées
1910 quando foi convidado por Frederico Carlos Hoehne para par-
Brésiliennes, de Alfred
Cogniaux e Saldanha da ticipar da publicação sobre o material botânico coletado durante
Gama, 1887. a expedição da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de
Mato Grosso ao Amazonas (Comissão Rondon). Cogniaux ficou
encarregado do estudo das melastomáceas, curcubitáceas e orqui-
dáceas, tendo o resultado de seu trabalho publicado no Brasil em
1912 na parte Botânica das publicações da Comissão.
Cogniaux faleceu em 1916, aos 75 anos, quatro anos após a
sua última contribuição à botânica brasileira. Apesar de nunca ter
visitado o Brasil foi um profundo conhecedor de sua flora.

Magali Romero Sá, bióloga e Ph.D, é Pesquisadora Titular e Coor-


denadora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências
e da Saúde da Fundação Oswaldo Cruz; Bolsista de Produtividade
em Pesquisa 2 do CNPq.

Alda Heizer, Doutora em Ciências, é Professora de História da Bo-


tânica no Brasil na Escola Nacional de Botânica Tropical/JBRJ e
favor, gostaria de chamar a atenção de seu amigo para esses fatos e Historiadora do Museu do Meio Ambiente e do Instituto de Pesquisas
dizer a ele que eu me ofereço a publicar suas novas descobertas em Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
coautoria... Por favor, informe-me imediatamente de sua decisão e
envie a ele meus respeitos...” (Barbosa Rodrigues, 1877). Referências
Rodrigues não aceitou a oferta e acabou publicando somente Cogniaux, C. A. Botânica III – Melastomáceas, Curcubitáceas, Orquidáceas, vol. 5,
a diagnose de suas espécies em 1877 (Sá, 2001). n. 10, p. 1-15, 1912. In: Hoehne, F. C., Harms, H. A. T.; Cogniaux, Célestin Al-
Reichenbach acabou desistindo de participar da Flora Bra- fred; Sampaio, Alberto José de; Kuhlmann, João Geraldo. Botânica/ Comissão de
Linhas Telegraphicas Estrategicas de Matto Grosso ao Amazonas, vol. 5, 1910-1923.
siliensis e após desencontros vários, até mesmo entre os próprios Cogniaux, Célestin Alfred (1841-1916). Nowellia Bryologica, n. 24, p. 5, 2003. http://
botânicos europeus, Cogniaux finalmente aceitou assumir a tare- www.nowellia.be/download/revue%20nowellia/Binder%2024.pdf
fa. Rodrigues (1882), por seu turno, continuava a receber ofertas Goldenberg, R; Baumgratz, J. F. A.; Souza, M. L. D. R. Taxonomia de Me-
lastomataceae no Brasil: retrospectiva, perspectivas e chave de identificação para os
de outros pesquisadores convidados a escrever a parte de orquídea gêneros. Rodriguésia , vol.63 no.1, p. 145-161, 2012.
da Flora, sem contudo aceitar nenhuma das propostas. Cogniaux, Hoehne, F. C. Notas biobiliográficas de naturalistas botânicos que pretendemos home-
conhecedor do trabalho do botânico brasileiro, igualmente convi- nagear com a denominação de caminhos e picadas no Jardim Botânico e na Estação
Biológica do Alto da Serra. In: O Jardim botânico de São Paulo. São Paulo: Depar-
dou-o a participar da obra de Martius por meio da utilização dos tamento de Botânica do Estado de S. Paulo. 1941.
seus desenhos de orquídeas ainda inéditos e das descrições das es- Mattoso, K. Q., Santos, I. F., Rolland, D. Le Brésil, l’ Europe et les équilibres
pécies novas. Em 1892, Rodrigues finalmente aceitou o convite. internationaux XVI-XX siècles. Université de Paris IV: Paris-Sorbonne. Centre d’Étu-
des sur le Brésil. Presses de l’Université de Paris. Sorbonne. 1999.
No ano seguinte Cogniaux iniciou a publicação das orquidáceas Mori, S. A., Ferreira, F. C. A distinguished Brazilian botanist, João Barbosa Rodrigues
em três partes, compostas por 10 fascículos, tendo o último saído (1842-1909). Brittonia, vol. 39, n. 1, p. 73-85, 1987.
em 1906. Do material cedido por Barbosa Rodrigues ao botânico Sá, M. R. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na segun-
da metade do século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. 8, suppl., p.
belga, foram publicadas 267 cópias das pranchas originais, além de 899-924, 2001.
7 gêneros descritos pelo botânico brasileiro e 538 espécies (Mori Saldanha da Gama, J. de; Cogniaux, A. Bouquet de Mélastomacées brésiliennes
& Ferreira, 78). dédiées a Sa Majesté Dom Pedro II empereur du Brésil. A. Remacle, Verviers. 1887.

Algumas contribuições belgas à bovinotecnia brasileira


Régis De Bel

V ários belgas tentaram se estabelecer no Brasil para desen-


volver a pecuária, tanto para lucrar com a venda de animais
reprodutores como para valorizar o prestígio nacional… nem sem-
legados para o melhoramento do rebanho bovino brasileiro.
Vale mencionar a contribuição do engenheiro agrônomo (Fa-
culdade de Agronomia de Gembloux, 1884) e médico veterinário
pre com sucesso. Porém, podem ser mencionados alguns de seus (Escola de Veterinária de Alfort, 1888) (Birgel, p. 72, 2011) belga

114
botânica e zoologia

Capa do livro A Fazenda Moderna, de Eduardo Cotrim, publicado em Bruxelas


em 1913.

Hector Raquet, mais tarde catedrático do Instituto Agrícola de Foto de Eduardo Cotrim publicada em seu livro A Fazenda Moderna, de 1913.
Gembloux. Em 1906, foi contratado como diretor do Posto Zoo-
técnico Central, criado em 1905 no bairro da Mooca, na cidade Sete capítulos compõem este livro e tratam dos seguintes temas:
de São Paulo, e em 1909 supervisionou os trabalhos de instalação – Estabelecimento e direção de uma fazenda de criar;
do Posto Zootécnico Federal de Pinheiros, na cidade de Pinhei- – Práticas de bovinotecnia;
ral (RJ) e foi seu primeiro diretor – sendo substituído por Nicolau – Alimentação e forragens;
Athanassof, ex-professor da Escola Superior de Agricultura “Luiz – Raças bovinas e escolha das raças;
de Queiroz” (Bhering, 2008, p. 76). Esses postos foram criados – Exploração econômica do gado bovino;
segundo o novo conceito da época – zootecnia –, que separou o – Higiene do gado bovino, e
estudo sobre a agricultura daquele sobre a arte de criar animais pa- – Noções práticas de veterinária.
ra melhorar as suas potencialidades. “Apoio Genética” ressalta os O autor argumenta que, naquela época, a criação bovina no
trabalhos realizados por Hector Raquet, assim como de um outro Brasil sofria com a falta total de métodos: “A indústria não existe
belga, o engenheiro agrônomo Louis Misson, que escolheram os porque o systema adoptado como mais commodo é o da perfeita sel-
animais das primeiras importações para o Brasil. vageria”. Eduardo Cotrim incentiva, porém, o desenvolvimento
Um documento que deve ser posto em destaque é o livro de de meios de proteção para o gado, o melhoramento dos campos
Eduardo Cotrim, figura de destaque na área da pecuária no início com a plantação de forragens e a seleção dos reprodutores para
do século XX, A Fazenda Moderna – Guia do Criador de Gado Bo- dar princípio à criação extensiva.
vino no Brasil –, que foi publicado em português em Bruxelas em No quarto capítulo, além de descrever as raças nacionais, con-
1913. Tal publicação merece mesmo uma observação sobre sua sagra uma parte importante às raças estrangeiras, que poderiam
qualidade, a despeito de seu conteúdo, que aqui é nosso assunto servir para criação de gado no Brasil ou para o melhoramento das
principal: trata-se de uma edição de grande qualidade, com capa raças nacionais através do cruzamento. Além disso, o autor avisa
dura e decorada em baixo-relevo de acordo com a tendência art o leitor das especificidades do clima brasileiro, que apresenta van-
nouveau, em voga na época, espcialmente em países como Bélgica tagens e desvantagens, como, por exemplo, os inúmeros parasitas
e França (precursores dessa linha artística). que perseguem o gado no campo. Em alguns casos, esse tipo de

115
parte 4 – colaboração científica

Fotografia da novilha Flamenga belga da Estância “La Plomer” publicada no Fotografia de “Trowbridge”, campeão flamengo belga na exposição internacional
livro A Fazenda Moderna. de Buenos Aires, em 1910, publicada no livro A Fazenda Moderna.

problema inviabilizava a importação de raças estrangeiras que, dos numa pesquisa realizada de 2002 a 2005, juntamente com a
em campos brasileiros, não apresentavam o rendimento esperado. Université de Liège (ULg), as Facultés Agronomiques de Gembloux
Entre outras, o autor indica que a raça Flamenga belga se re- (FUSAGx – Faculdades Agronômicas de Gembloux) e a Seagri
comenda por sua dupla qualidade leiteira e de açougue: trata-se (Secretaria da Agricultura, Pecuária, Irrigação, Reforma Agrária,
de uma raça mista que vinha sendo melhorada consideravelmen- Pesca e Aquicultura) do Estado de Bahia, foram apresentados du-
te por seleção e que era proveniente das proximidades de Bruges rante o 8º Congresso Mundial de Genética em Belo Horizonte
(Flandria ocidental). Essa raça já fazia sucesso na Argentina e no (Leroy et al., 2006).
Uruguai e iria se difundir também no Brasil, principalmente no
Estado do Rio Grande do Sul. Belos exemplares de vacas e touros Régis De Bel é engenheiro agrônomo, graduado na Universidade
dessa raça também foram levados para os Estados de São Paulo Livre de Bruxelas (ULB, Bélgica) em 2004. Mora atualmente no
(Fazenda de Santa Gertrudes) e Minas Gerais (Cotrim, 1913). Brasil.
Outro legado belga mais recente seria a introdução no Brasil
da raça BBB (Blanc-Bleu Belge). A partir dos anos 1960, ela foi Referências
geneticamente melhorada por seleções sucessivas a fim de desen- Bhering, M. J. Positivismo e Modernização: Políticas e Institutos Científicos de Agricul-
volver de maneira extraordinária a sua musculatura (hipertrofia tura no Brasil (1909-1935). Dissertação de Mestrado, Casa de Oswaldo Cruz – Fio-
muscular hereditária). O BBB é conhecido como o halterofilista cruz, Rio de Janeiro, 2008.
Birgel, E. H. O ensino da Medicina Veterinária no Estado de São Paulo. Revista de
do mundo animal, o superboi. Esta raça foi introduzida no Brasil Educação Continuada em Medicina Veterinária e Zootecnia do CRMV-SP. São Pau-
em 1994, principalmente para cruzamento e obtenção de produ- lo: Conselho Regional de Medicina Veterinária, v. 9, n. 2 (2011), p. 70-79, 2011.
tos de carne mais macia. Boly, H., Lebailly, Ph., Leroy, P. L., Leroy, E. Le Blanc-Bleu Belge en croisement
dans les régions tropicales. Wallonie Elevages, n. 6, juin 2003.
O cruzamento com o zebu de raça Nelore deu resultados inte- Cotrim, E. A Fazenda Moderna, Guia do Criador de Gado Bovino no País. Bruxelas,
ressantes no Estado da Bahia, apresentando melhores rendimentos Belgique, 1913.
em produção de carne, tanto quantitativa como qualitativamente Leroy, P. L., Leroy E., Cassart, R. Growth and carcass performances of Belgian Blue
x Nelore and Bradford Cattel in Bahia State, Belo Horizonte, Brazil, 2006.
(Boly et al., 2003, p. 21). Os resultados desses cruzamentos obti- “Apoio Genética”. Disponível em: <www.apoiogenetica.com.br>. Acesso em: 30 nov. 2013.

Dom Amaro Van Emelen e a apicultura no Brasil


Régis De Bel

D om Amaro Van Emelen, nascido em 1863, foi um padre be-


neditino belga que se tornou professor no Colégio São Bento,
no Rio de Janeiro, considerado como um dos mais tradicionais do
uma escola agrícola em Pernambuco. Foi, em 19 de abril de 1926,
nomeado diretor-geral da Escola Superior de Medicina Veterinária
São Bento de Olinda (Melo et al., 2010), mais tarde integrada à
país, e do qual foi Reitor nos períodos 1905-1906 e 1909-1910. Es- Universidade Federal Rural de Pernambuco. Era irmão do pintor
teve também ligado à tentativa dos beneditinos belgas de implantar e escultor Pierre Van Emelen e aparentado a Louis Cruls.

116
botânica e zoologia

Foto de D. Amaro Van Emelen publicada na edição de sua cartilha, impressa


Capa do livro Cartilha do Apicultor Brasileiro, de Amaro Van Emelen. após o seu falecimento.

Em 1895, Dom Amaro Van Emelen introduziu a abelha italia- 254 gravuras e adotou a forma de ‘perguntas e respostas’, muito
na (Apis mellifera ligustica) em Pernambuco e foi autor de várias didática e agradável para o leitor.
obras sobre apicultura, entre as quais a famosa Cartilha do Api- A empresa editora da Chacaras e Quintaes esgotou os 5.000
cultor Brasileiro, publicada em 1934. exemplares em nove anos, o que levou a uma quarta edição em
Segundo os escritos do editor Amadeu Amadei Barbiellini, 1945, que Van Emelen retocou e enriqueceu ainda mais, e a uma
Van Emelen redigiu uma “verdadeira enciclopédia sobre as abe- quinta edição, em 1952, após o falecimento de seu autor (em 1946).
lhas e as suas indústrias máximas de mel e cera” (5ª edição, 1952).
Certamente, Van Emelen foi uma pessoa-chave na divulgação e Referências
no desenvolvimento das técnicas de apicultura no Brasil no início Amaro Van Emelen, 1915. A Criação das Abelhas. São Paulo, Conde A. A. Bar-
do século XX. biellini, 1915. 70 p. ilus.
Essa Cartilha do Apicultor Brasileiro foi elaborada a partir de Amaro Van Emelen, 1924. Abelhas, Mel e Cêra. São Paulo, Chacaras e Quintaes.
56 p. ilus.
duas edições anteriores. A primeira edição era um simples folheto Amaro Van Emelen. 1934. Cartilha do Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra.
com o título de Criação de Abelhas, publicada na revista de Bar- São Paulo, Empreza Editora da Chacaras e Quintaes, 344 p. ilus.
biellini, Chacaras e Quintaes, apresentando 70 páginas ilustradas. Amaro Van Emelen. 1945. Cartilha do Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra.
São Paulo, Chacaras e Quintaes, 356 p. ilus.
A segunda edição, de 1924, já era mais desenvolvida, mas sempre Amaro Van Emelen. 1952. Cartilha do Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra.
no tamanho e na aparência de um opúsculo, com título de Abe- São Paulo, Chacaras e Quintaes, 356 p. ilus.
lhas, Mel e Cêra. Ela também apareceu na revista mensal de Cha- Melo, Lúcio Esmeraldo Honório de; Magalhães, Francisco de Oliveira; Almeida, Argus
Vasconcelos de; Câmara, Cláudio Augusto Gomes da. De alveitares a veterinários:
caras e Quintaes. A terceira edição, de 1934, a famosa Cartilha do notas históricas sobre a medicina animal e a Escola Superior de Medicina Veterinária
Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra apresenta três grandes São Bento de Olinda, Pernambuco (1912-1926). Hist. ciênc. saúde-Manguinhos, vol.
partes – Abelhas, Mel e Cera – com 57 capítulos ilustrados com 17 n.1, Rio de Janeiro Jan./Mar. 2010.

117
parte 4 – colaboração científica

Alphonse Richard Hoge: o especialista em serpentes


Chris Delarivière

A lphonse Richard Hoge foi um herpetólogo belgo-brasileiro


(1912-1982) que, nos anos 50 e 60, era ativo no Instituto Bu-
tantã, fundado em 1901 em São Paulo para remediar as frequentes
Alphonse
Hoge e
auxiliares
na Ilha da
mordidas por serpentes nas fazendas de café. Queimada,
Hoge nasceu em Cacequi, no Estado do Rio Grande do Sul, litoral do
filho de um engenheiro belga. Mais tarde a família voltou para Estado de
Gand, onde o jovem Alphonse Richard foi estudar na universidade São Paulo,
capturando
do Estado. Uma vez diplomado, tornou-se assistente do professor
jararacas
Georges Bobeau e estudou, entre outros, o uso do veneno serpen- ilhoas
tígeno no combate às células cancerígenas. (Bothropóides
Em 1939 decidiu voltar para o Brasil onde encontrou um pos- insularis).
to no Instituto Butantã, que tinha, e ainda tem, fama mundial
pelas pesquisas e pela produção de soros antivenenosos. O Insti-
tuto interveio ainda no salvamento da fauna reptiliana durante a
construção das grandes barragens e no treinamento do pessoal da
inspeção sanitária.
Em São Paulo, o professor Hoge construiu uma reputação de
cientista respeitado, que não recusava pesquisas de campo. Co-
mo tal, apareceu também nos relatos de Marcel Roos como um
professor algo distraído, com senso de aventura.
Alphonse Hoge morreu em 1982, pouco depois de sua aposen-
tadoria. Publicou mais de cem trabalhos e deu seu nome a uma
impressionante coleção herpetológica. Esta, com mais de 70 mil
peças, entre serpentes, aranhas e escorpiões, foi parcialmente des-
truída por um incêndio em 15 de maio de 2010.

Chris Delarivière é jornalista independente em Gand, autor de re- o flamengo a História da Província de Santa Cruz, de Pêro de Maga-
portagens sobre a cultura e música popular brasileira, traduziu para lhães Gandavo, descendente de um flamengo de Gand.

Biotecnologia Vegetal no Brasil: sucesso na cooperação


Dulce Eleonora de Oliveira

A cooperação do Laboratório de Genética da Universidade de


Gand com o Brasil vem de longa data e, de fato, caminha
junto com a história da tecnologia do DNA recombinante.
logia do DNA recombinante e as recomendações para utilizar a
tecnologia com segurança.
Nessa época, Francisco Lara – então professor titular do De-
Desde o início das pesquisas sobre clonagem de genes, no co- partamento de Bioquímica do Instituto de Química da Universida-
meço dos anos 70, a Bélgica teve um papel relevante. Ainda em de de São Paulo – estudava os puffs de DNA de Rhynchosciara. O
1974, Fiers, Schell e Van Montagu organizaram o primeiro sim- professor Lara teve o grande mérito de imediatamente reconhecer
pósio internacional sobre clonagem de genes. Nele comparece- a Biologia Molecular como uma disciplina que revolucionaria as
ram os grandes nomes em sequenciamento e clonagem de DNA, pesquisas na área de ciências naturais.
tais como os laureados com o Prêmio Nobel: Werner Arber, Rich Com o objetivo de trazer esta nova disciplina para o Brasil, La-
Roberts, Fred Sanger e Wally Gilbert. Este simpósio aconteceu ra organizou um simpósio no Instituto Butantã sobre a clonagem
um ano antes da famosa conferência de Assilomar, organizada por de genes em diversos organismos, com a participação de especia-
Paul Berg, para discutir os potenciais riscos biológicos da tecno- listas de renome internacional. Marc Van Montagu foi convidado

118
botânica e zoologia

O professor Marc Van Montagu e seus ex-colaboradores no IV Simpósio Brasileiro de Genética Molecular de Plantas, Bento Gonçalves, abril de 2013.

para falar de sua pesquisa sobre o mecanismo natural de transfe- engenharia genética vegetal no Brasil, no Cenargen, em Brasília.
rência de genes de Agrobacterium tumefaciens. Graças à cooperação de Barreto de Castro com Van Montagu,
A partir desse primeiro encontro, Lara iniciou uma série de vários cientistas do Cenargen foram treinados na empresa Plant
cursos internacionais sobre a tecnologia do DNA recombinante Genetic System (PGS), spin-off do Laboratório de Genética da
na USP/Butantã nos quais Marc Van Montagu era um convidado Universidade de Gand.
cativo. Foi nesse cenário que Marc Van Montagu encantou-se pelo Nessa época, tanto Cenargen como PGS estudavam as pro­
Brasil e decidiu vir para cá com frequência. teínas de reserva de sementes ricas em metionina para melhorar
Entre 1974 e 1983, Van Montagu, Schell e colaboradores fize- o valor nutricional de alimentos básicos. A determinação da se­
ram, em Gand, descobertas e inovações que marcaram o início da quência de aminoácidos das proteínas de reserva ricas em enxo-
era da biologia molecular vegetal. Eles descobriram o plasmídeo fre da castanha do Brasil é um dos resultados dessa cooperação
Ti de A. tumefaciens; elucidaram, junto com grupos de pesquisa (Ampe, Van Damme, Castro, L.A.B., Sampaio, Montagu AND
liderados por Mary-Dell Chilton, nos Estados Unidos, e Robert Vanderkerchove, 1986, p. 597-604). Entretanto, estes projetos não
Schilperoort, na Holanda, o mecanismo bacteriano de infecção foram continuados porque tais proteínas seriam potencialmente
e transferência de genes; desenvolveram a primeira tecnologia de alergênicas. Desde as primeiras tentativas de aplicações da tec-
transferência de genes para plantas e, publicaram, em maio de nologia do DNA recombinante em plantas os cientistas tinham
1983, sobre a primeira planta transgênica. a consciência de que a metodologia de transgenia em si não era
A descoberta e invenção de Van Montagu, Schell e colabora- perigosa, mas que os genes a serem introduzidos deveriam ser ana-
dores deixou uma pegada indelével na área de ciências da vida. lisados criteriosamente para evitar algum dano potencial.
A tecnologia de engenharia genética permitiu pela primeira vez Em 1983, Antonio Paes de Carvalho, então diretor do Instituto
uma análise sistemática e refinada do impacto de genes individu- de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
ais em todos os aspectos da biologia vegetal, do crescimento e de- deu início com alguns colegas – especialmente Affonso do Prado
senvolvimento a resistência a patógenos e estresse abiótico, assim Seabra, Maria Apparecida Esquibel e Antonio Rodrigues Cordeiro
como na forma como as plantas se comunicam com seu ambiente. – ao Programa de Biotecnologia Vegetal da UFRJ. Nesse mesmo
Foi nesse período efervescente da genética molecular vegetal ano, Paes de Carvalho e Seabra montaram a Biomatrix, primeira
que Marc Van Montagu, em uma de suas muitas visitas ao Brasil, empresa brasileira de biotecnologia vegetal.
conheceu Luiz Antonio Barreto de Castro, então professor na Uni- Foi como fundador e presidente da Biomatrix que o professor
versidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Luiz Antonio seria logo Paes de Carvalho conheceu o professor Van Montagu, em um
contratado pela Embrapa para desenvolver a primeira iniciativa de simpósio na França, na vinícola Moet Chandon. Entusiasmado

119
parte 4 – colaboração científica

um projeto de desenvolvimento de batatas transgênicas resistente


a vírus e obteve um importante financiamento do PADCT, que
permitiu equipar o laboratório com o que havia de mais moder-
no na época para conduzir pesquisa em biologia molecular. Em
1990 assumi, como previsto, a direção do LGMV enquanto Ben
retornou à Europa, enriquecido com a experiência como diretor
de laboratório no Brasil, fazendo pesquisa aplicada em biotecno-
logia vegetal. Isto o levou a interessar-se por inovações em biotec-
nologia e a cursar um MBA no INSEAD, França. Atualmente Ben
Timmerman é o fundador e CEO da empresa Enticel, dedicada
a vacinas terapêuticas contra o HPV.
Até a aposentadoria do professor Marc Van Montagu, em no-
vembro de 1999, o LGMV contou com seu apoio incondicional.
Continuamos tendo o suporte da Cooperação ao Desenvolvimen-
to – ABOS. Entre 1990 e 1994, três jovens doutores do Lab de
Placa comemorativa ofertada ao professor Marc Van Montagu no 4º Simpósio Genética-Gand fizeram pós-doutorado no LGMV, todos dentro
Brasileiro de Genética Molecular de Plantas em agradecimento ao seu da política belga de substituir o serviço militar por atividades em
inestimável apoio à Biologia Molecular Vegetal no Brasil, abril de 2013.
países em desenvolvimento. Sobrevivemos ao duro período de
vacas magras para a pesquisa científica no Brasil nos governos
com o potencial da tecnologia do DNA recombinante para o me- Collor, Franco e Cardoso graças aos projetos que pudemos de-
lhoramento de plantas, Paes de Carvalho convidou Van Montagu senvolver em cooperação com a Universidade de Gand. Foram
para uma visita à UFRJ. oito projetos em colaboração, sob a minha gestão (1990-1995)
Foi nessa visita, em 1985, que conheci o trabalho de Marc Van e a gestão da professora Marcia Pinheiro Margis (1996-2000),
Montagu. A conferência que ele proferiu sobre os primeiros resul- financiados por agências internacionais, tais como ABOS, IC-
tados com plantas transgênicas tolerantes a herbicida maravilha- GBE, Fundação Rockefeller e diversos programas de cooperação
ram-me e levaram-me a trocar a genética molecular de leveduras da União Europeia.
pelas plantas. Imediatamente postulei para pós-doutoramento no Ao mesmo tempo, graças a estes projetos, a grande maioria
seu laboratório. Ao mesmo tempo o professor Antonio Cordeiro, dos pesquisadores e alunos de pós-graduação do LGMV tiveram
que iniciava pesquisa em transformação de plantas em seu Labo- a oportunidade de estagiar no Laboratório de Genética da Uni-
ratório de Cultura de Tecidos Vegetais no Instituto de Biologia versidade de Gand. Contamos também com o apoio do consula-
da UFRJ, articulou com Paes de Carvalho e Van Montagu a cria- do belga no Rio de Janeiro, que concordou em enviar pela mala
ção do Laboratório de Genética Molecular Vegetal (LGMV) no diplomática materiais de consumo perecíveis, como enzimas de
Instituto de Biologia. Eu era a candidata natural para liderar esse restrição e kits usados em biologia molecular que dificilmente
laboratório, pois já pertencia ao quadro de docentes da UFRJ. Foi resistiriam à temperatura ambiente durante o longo processo de
estrategicamente decidido que o professor Marc Van Montagu desembaraço na aduana brasileira.
me receberia como pós-doutor na Universidade de Gand e, ao Os frutos deste esforço são expressivos. Entre 1990 e 2000, o
mesmo tempo, enviaria para a UFRJ o jovem doutor Benedikt LGMV formou mais de 50 pesquisadores, entre mestres e douto-
Timmerman para iniciar o laboratório e implantar as primeiras res. Sob a liderança estimulante de Darcy Ribeiro, então Secretá-
linhas de pesquisa. rio de Educação do Estado do Rio de Janeiro, o LGMV participou
Naquela época, a Bélgica permitia e incentivava os jovens bel- da criação da Universidade do Norte Fluminense (Uenf) e do seu
gas que haviam adiado o serviço militar por estar cursando univer- Laboratório de Biotecnologia Vegetal.
sidade a, quando completassem toda a sua formação acadêmica, Marc Van Montagu tem 54 publicações científicas em coau-
substituíssem o serviço militar tradicional na Bélgica por um tra- toria com cientistas brasileiros. Os pesquisadores que o professor
balho científico/humanitário em um país em desenvolvimento. Van Montagu acolheu em seu laboratório, e aqueles formados no
A Cooperação ao Desenvolvimento da Flandria – Algemeen LGMV, estão ativos em diversas instituições de pesquisa no Brasil
Bestuur van Ontwikkelingssamenwerking (ABOS) – financiava o e são uma parte expressiva da liderança brasileira em biotecnologia
projeto de pesquisa do postulante. Assim, em 1986 eu segui para o vegetal, uma área de pesquisa florescente e respeitada tanto nacio-
pós-doutorado na Universidade de Gand e Benedikt Timmerman nal como internacionalmente. Muito disto devemos ao professor
foi para a UFRJ. Paralelamente, entre 1987 e 1996, o professor Van Marc Van Montagu.
Montagu acolheu para doutoramento em seu laboratório vários Marc recebeu, em 1997, o título de Doutor Honoris Causa da
estudantes brasileiros, a maioria ligada ao LGMV. Universidade Federal do Rio de Janeiro por sua inestimável con-
Benedikt Timmerman realizou um excelente trabalho no LG- tribuição para a área de Biotecnologia Vegetal. Seu esforço para
MV. Em três anos montou uma equipe dinâmica em torno de o desenvolvimento das ciências de plantas no Brasil foi reconhe-

120
botânica e zoologia

cido também no 4º Simpósio Brasileiro de Genética Molecular inabalável, contribuindo sempre que solicitado. Recentemente o
de Plantas, em Bento Gonçalves, RS (2013), como cientista ho- professor Van Montagu ajudou a montar a equipe de Ciências de
menageado. Plantas no Instituto Tecnológico Vale, em Belém do Pará.
Entre as contribuições do professor Van Montagu para o setor
privado, destaca-se sua participação como membro do Conselho Dulce Eleonora de Oliveira trabalha no Institute of Plant Biotech-
Científico da empresa Allelix entre 2003 e 2009 e o recente con- nology Outreach, VIB – Ghent University.
vite para o Conselho Consultor do Instituto Tecnológico Vale.
Atualmente no Institute of Plant Biotechnology Outreach, Referências
VIB/UGent, o professor Van Montagu continua sendo um incansá- Ampe, C., Van Damme, J., Castro, L. A. B., Sampaio, M. J. A., Montagu, M.
vel, articulado e influente advogado da transferência da biotecno- V. J. and Vanderkerchove, M. V. J. 1986. The aminoacid sequence of the 2S
logia vegetal para o benefício nutricional, econômico e ambiental sulphur-rich proteins from seeds of Brazil nut (Bertholletiaexcelsa H.B.K.).Eur. J.
Biochem. vol. 159 , p. 597-604.
dos países em desenvolvimento. Sua aliança com o Brasil continua

A cooperação entre a KULeuven e as universidades brasileiras


Beatriz Monge Bonini e Rogelio Lopes Brandão

N a Universidade Católica de Lovaina (KUL), um dos laborató-


rios que tem atraído a atenção de muitos estudantes cientistas
brasileiros é o de biologia celular e molecular no departamen-
brasileiros a Lovaina para trabalhar ou estagiar no Laboratório
do dr. Thevelein.
Mais recentemente, e no âmbito do Programa Ciência sem
to de Biologia da Faculdade de Ciência da KUL, chefiado pelo Fronteiras, foi aprovado um projeto de Pesquisador Visitante es-
professor Johan Thevelein. Este laboratório tem como principal pecial para o dr. Johan Thevelein por um período de três anos, no
tema de investigação fundamental o estudo dos mecanismos de qual o Dr. Thevelein visitará algumas vezes o Brasil. Este projeto
transdução de sinal ativados por nutrientes, mais especificamente tem forte apoio de empresas brasileiras, tais como a Petrobras e a
os mecanismos envolvidos no controle de proteína quinase A em Fermentec, devido ao interesse bilateral no desenvolvimento da
leveduras (Saccharomyces cerevisiae). pesquisa aplicada ao bioetanol.
Na área da pesquisa aplicada, o laboratório tem conquistado Essa colaboração com o professor Brandão também deu iní-
fama internacional pelo uso de uma eficiente metodologia de mo- cio à organização de cursos em biologia molecular de micro-or-
dificação genética de leveduras, com a finalidade de desenvolver ganismos, três dos quais em conjunto com a Ufop, em janeiro de
estirpes de leveduras industriais superiores para a produção de 1994, novembro de 1997 e novembro de 1999, e mais uma vez
bioetanol de primeira e segunda gerações, produção de vinho, na Universidade de Viçosa (MG) em fevereiro de 2005. Nessas
cerveja e fermento. ocasiões, alguns participantes foram convidados a estagiar no la-
A cooperação entre os pesquisadores Rogelio Lopes Brandão boratório em Lovaina; no total, desde 1988, perto de 25 cientistas
e Ieso de Miranda Castro (Laboratório de Biologia Celular e Mo- vindos da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto,
lecular-LBCM do Núcleo de Pesquisas em Ciências Biológicas- Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade
-Nupeb da Universidade Federal de Ouro Preto) e o dr. Johan The- Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Federal de Minas
velein surgiu em 1987 com intensa troca de “cartas” para tratar Gerais (UFMG) e outras.
da resolução de aspectos do metabolismo de um fungo, Fusarium Da participação de Beatriz Bonini no primeiro curso orga-
oxysporum, na época objeto de estudo do Dr. Rogelio Brandão. nizado em Ouro Preto surgiu a oportunidade de vir como es-
Disto resultou um curto estágio de três meses (dezembro de tudante bolsista da Capes, do programa PDSE-Programa de
1988 a fevereiro de 1989), que possibilitou a elaboração de um Doutorado Sanduíche no Exterior, para trabalhar em pesquisa
projeto de cinco anos (1991-1995). Este viabilizou com recursos fundamental, desenvolvendo projeto na área de metabolismo de
da ABOS (Agência de Cooperação ao Desenvolvimento do gover- trealose e controle da glicólise por trealose-6-fosfato. Esta vinda
no flamengo) a estruturação física do LBCM/Nupeb/Ufop com a como estudante de doutorado proporcionou a possibilidade de
construção financiada pela Ufop (Universidade Federal de Ouro voltar como pós-doutoranda e colaborar com o professor The-
Preto) e a compra de equipamentos e facilidades. velein por mais de dez anos, com várias publicações e um pro-
Em contrapartida, o governo brasileiro, através das agências jeto comum na área de metabolismo de trealose, estabelecido
de fomento Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pesso- com o grupo do professor Héctor Francisco Terenzi da USP de
al de Nível Superior) e CNPq (Conselho Nacional de Desen- Ribeirão Preto.
volvimento Científico e Tecnológico), financiou a ida de vários Outros participantes dos cursos de biologia molecular vieram

121
parte 4 – colaboração científica

Os professores Rogélio Lopes Brandão e Johan Thevelein e demais participantes do curso de Biologia Molecular de Microorganismos, Ouro Preto, Minas Gerais, janeiro
de 1994.

também fazer seu doutorado em Lovaina, como recentemente também se pesquisam genética e fisiologia de leveduras com foco
Thiago Martins Pais, sobre a modificação genética de leveduras na indústria, principalmente de bebidas e combustível.
para a produção de bioetanol, já reincorporado em seu laboratório Além de colaborações com universidades, o laboratório do
de origem no Brasil. professor Thevelein também mantém colaboração em projetos
Atualmente três estudantes brasileiros estão trabalhando em de aplicação industrial com a empresa Fermentec de Piracicaba
seus projetos de doutorado. Um deles, Thiago Pereira de Souza, (SP), fundada pelo dr. Henrique Vianna de Amorim.
Universidade Federal de Lavras (Ufla), Minas Gerais, bolsista Ca-
pes do programa PDSE-Programa de Doutorado Sanduíche no Beatriz Monge Bonini, Doutora em Bioquímica pela USP, traba-
Exterior, desenvolve projeto relacionado com a genética de leve- lhou como pesquisadora no laboratório do professor Thevelein na Uni-
duras com vistas à produção de biocombustível, sob a orientação versidade Católica de Lovaina (KUL).
do professor Eustáquio Souza Dias, na Ufla, e Johan Thevelein,
na KULeuven. Seu interesse pela Bélgica teve início a partir de Rogelio Lopes Brandão, Doutor em Bioquímica e Imunologia e com
conversas com seu orientador, que conhecia o professor Patrick pós-doutoramento na Universidade Católica de Lovaina (KUL), é
Van Dijck, do VIB (Vlaams Instituut voor Biotechnologie), onde professor da Universidade Federal de Ouro Preto.

122
medicina

Marie Rennotte: medicina e emancipação da mulher


Eddy Stols

M arie Rennotte (1852-1942) foi recentemente redescoberta


como uma figura relevante na história da emancipação fe-
minina e da medicina no Brasil. Nascida em Wandre, perto de
Marie Rennotte, nascida em
Wandre e que emigrou ao
Brasil em 1878.

Liège, ganhou, em 1874-1875, em Paris, um diploma de profes-


sora e foi lecionar francês durante três anos na Alemanha, em
Mannheim.
Em 1878 desembarcou no Rio de Janeiro, onde trabalhou
como governanta e deu aulas em colégios particulares, como o
Colégio Werneck. Em 1882 foi convidada para o recém-fundado
Colégio Piracicabano dos metodistas americanos em Piracicaba.
Em suas aulas de Ciências, Rennotte professava ideias avançadas
evolucionistas e positivistas, que destoavam da educação tradicio-
nalista dispensada em escolas como o Patrocínio de Itu, das freiras
francesas. Referindo-se a Rousseau, Pestalozzi, Froebel e Spencer,
ousava polemizar a esse respeito na imprensa local, a Gazeta de
Piracicaba. Assim seu colégio ganhou mais alunas entre as famílias
influentes da cidade, como os irmãos de Barros Moraes.
Entrementes, propugnava a emancipação feminina em artigos organizar, em São Paulo, a diretoria regional da Cruz Vermelha
no jornal A Família. E viajava bastante. Com passaporte belga do e em 1912 tornou-se sua presidente. No mesmo ano propugnou
consulado do Rio, viajou em 1885 para Buenos Aires e em 1886- também a fundação de uma casa do convalescente, que não deu
1887 aos Estados Unidos e à França. certo, e de um hospital para crianças, para diminuir a mortalidade
Provavelmente com o auxílio de Prudente de Moraes, deci- infantil. Este último, construído no bairro de Indianópolis, segun-
diu em 1889 estudar Medicina no Women’s Medical College of do projeto de Francisco de Paula Ramos de Azevedo, foi inaugu-
Pennsylvania, na Philadelphia, onde formou-se em três anos. Em rado finalmente em 1919.
seguida, aperfeiçoou-se em ginecologia, obstetrícia e neonatologia Rennotte foi ainda pioneira na formação de enfermeiras com
como estagiária em Paris no Hôtel-Dieu e Saint-Louis em 1893-95. um curso criado na Santa Casa em 1912, se bem que foi de curta
De volta ao Brasil, revalidou seu diploma em 1895 na Facul- duração. Pelos seus contatos com as tradicionais famílias da socie-
dade de Medicina do Rio de Janeiro com a tese Influência da dade paulista, foi aceita em 1901 como primeiro membro femi-
educação da mulher sobre a medicina social, que insistia muito na nino do Instituto Histórico e Geográfico. Em 1922 participou da
necessidade de uma medicina preventiva. Começou sua primeira campanha a favor do voto feminino. Marie conheceu uma velhice
prática na Maternidade São Paulo, que acolhia mulheres pobres difícil e morreu na pobreza.
e, em 1906, entrou na Clínica Cirúrgica de Mulheres da Santa
Casa de Misericórdia, onde colaborou com o célebre médico Ar- Referências
naldo Vieira de Carvalho. Maria Lúcia Mott. ‘De educadora a médica: trajetória de uma pioneira metodista’. Revista
Ao mesmo tempo era bastante ativa na Sociedade de Medi- do Cogeime, 1999, n. 15, p. 115-126. Idem, ‘Gênero, medicina e filantropia: Maria
Rennotte e as mulheres da nação’. Cadernos Pagu, n. 24, 2005, p. 41-67; Débora Cos-
cina e Cirurgia de São Paulo com propostas inovadoras. Numa ta Ramires. A contribuição de Mlle. Maria Rennotte na construção e implantação do
viagem de estudos pela França e pela Alemanha preparou-se para projeto educacional metodista no Colégio Piracicabano, Piracicaba, Doutorado, 2009.

123
parte 4 – colaboração científica

Lucien Lison e André Jacquemin na Faculdade


de Medicina de Ribeirão Preto
Luciana Pelaes Mascaro

A convite do primeiro diretor da Faculdade de Medicina de


Ribeirão Preto (FFCLRP), Zeferino Vaz (1952-64), Lucien
Alphonse Joseph Lison (1908-1984) veio para o Brasil em 1953
Na área de Psicologia, ressalte-se os fortes laços existentes entre
as universidades de Louvain-La-Neuve e de Lovaina com outras do
Brasil, da qual a FFCLRP é um exemplo. Atualmente, Jacquemin
para fazer parte do quadro dos professores e pesquisadores dessa é referência nacional e internacional para a Psicologia, especial-
instituição, movido, talvez, pelas consequências do pós-guerra mente em técnicas de Avaliação Psicológica.
na Europa.
Nascido em Trazegnies, Bélgica, graduou-se em Medicina pe- Referências
la Universidade Livre de Bruxelas em 1931. Desde 1936 produ- Homenageado: André Jacquemin. Revista Psicologia Ciência e Profissão. Vol. 24
ziu estudos e artigos de grande relevância para a medicina e, em n. 1, Brasília, mar. 2004. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1414-
1952, publicou um livro sobre histoquímica animal que se tornou 98932004000100014>. Acesso em: 30 nov. 2013.
Lison, Lucien. La Faculte de Philosophie, Sciences et Lettres de RibeirãoPreto. Pai-
um clássico, o que lhe valeu a reputação de pioneiro no assunto. déia (Ribeirão Preto) vol. 15 n. 31, Ribeirão Preto, May/Aug. 2005, Seção Especial.
Foi o primeiro diretor da Faculdade de Filosofia Ciências e Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0103-863X2005000200002>. Acesso em:
Letras de Ribeirão Preto (SP) que, embora tivesse sido criada em 30 nov. 2013.
ALVES, Zélia Maria Mendes Biasoli. Carta a um mestre. Paidéia (Ribeirão Preto) vol. 16
1959, somente foi autorizada a funcionar em março de 1964. Fi- n. 33, Ribeirão Preto, Jan./Apr. 2006, Seção Especial. Disponível em: <http://dx.doi.
cou no cargo até 1968. Em 1966 convidou seu conterrâneo, o org/10.1590/S0103-863X2006000100002>. Acesso em: 30 nov. 2013.
psicólogo André Jacquemin (1942, Baranzy, Bélgica) – formado Moraes, Maria Augusta de Sant’Ana. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Uni-
versidade de São Paulo. Disponível em: <http://www.sbhm.org.br/index.asp?p=insti-
pela Universidade de Lovaina La-Neuve em 1965 – para compor tuicoes_view&codigo=7>. Acesso em: 30 nov. 2013.
o corpo docente do Departamento de Psicologia da FFCLRP,
chegando a ser seu diretor de 1988 a 1992.

O diretor brasileiro de um dos mais ativos laboratórios


de pesquisa em diabetes na Bélgica

O professor doutor Decio L. Eizirik é atualmente diretor do


Laboratório de Medicina Experimental da Faculdade de
Medicina da Université Libre de Bruxelles (ULB). Ele começou
Bruxelas devido à intensa colaboração mantida pelo professor Eizi-
rik com as universidades brasileiras Federal do Rio Grande do Sul
(UFRS), Estadual de Campinas (Unicamp) e de São Paulo (USP).
sua carreira estudando medicina na Universidade Federal do Rio O grupo do professor Eizirik fez importantes descobertas na
Grande do Sul (UFRS) e fez doutorado na Universidade de São área de pesquisa em diabetes, incluindo a clarificação de meca-
Paulo (USP). nismos que levam à morte das células beta no diabetes e o papel
Depois de trabalhar dez anos na Universidade de Uppsala, de genes candidatos para a doença nas células beta. Seu trabalho
Suécia, primeiro como pesquisador visitante e depois como Pro- foi recompensado com vários prêmios belgas e internacionais, in-
fessor Associado, foi viver na Bélgica em 1996, inicialmente para cluindo o Prêmio Pharmacia & Upjohn do FWO (Belga), o JDR-
dirigir uma unidade de pesquisa na Vrije Universiteit Brussels, FI Diabetes Care Research Award e, em outubro de 2012, um dos
mas em 2002 foi nomeado diretor do Laboratório de Medicina três mais importantes prêmios da EASD (European Association for
Experimental na ULB. the Study of Diabetes), o Prêmio Albert Renold. A foto na próxi-
Seu grupo conta no momento com quase 30 pesquisadores de ma página mostra os membros do laboratório do professor Eizirik,
diferentes países, incluindo cinco brasileiros que trabalham em incluindo diversos brasileiros.

124
medicina

Integrantes do laboratório do professor Eizirik (3° da esquerda para a direita, na 2a. fila em pé), incluindo diversos pesquisadores brasileiros.

125
antropologia

A melancolia dos belgas: devir antropológico no Brasil


Els Lagrou

E ste artigo é o resultado de uma pequena pesquisa em docu-


mentos disponíveis e de uma consulta por e-mail aos colegas,
antropólogos belgas residentes no Brasil ou que tiveram uma re-
do país, a cor cinza dos longos dias de chuva, os desentendimentos
de seus políticos, que fazem com que os vizinhos se perguntem o
que faz este país perdurar. Não obstante tudo isso, os belgas sabem
lação profissional com o país, que foi decisiva para suas carreiras. que são o coração da Europa, tanto espacial quanto historicamen-
A consulta produziu um material rico e heterogêneo. Optei por te, mas não o dizem...
reproduzir suas palavras tal qual, porque cada pequeno relato evo- Um resultado que aparecerá da comparação das trajetórias dos
cava, melhor do que eu mesma poderia reproduzir, a atmosfera diferentes antropólogos belgas que vieram para o Brasil é que (qua-
particular que permeia a relação de cada um com a questão da se) todos parecem ter vindo para cá como lonely riders em busca
migração da Bélgica para o Brasil. de algo, sem saber muito bem o quê. Se várias narrativas apontam
É curioso notar que num primeiro momento obtive mais in- mediadores ou histórias de família, não parece existir nenhuma
formações sobre os motivos e os acasos que levaram esses belgas política acadêmica sistemática de intercâmbio; as pessoas têm a
e ex-belgas a deixar seu pequeno país no coração da Europa, fa- sensação de ter vindo por conta própria e de, ao chegarem aqui,
zendo-os optar pela vida neste país fascinante, do que informa- ter descoberto um mundo acadêmico poderosíssimo, insuspeito
ções sobre suas carreiras acadêmicas. Esta modéstia mostra que pela academia belga. O contraste com a situação na França, espe-
os migrantes ainda não deixaram totalmente de ser belgas, pois cialmente para o campo da antropologia, salta logo aos olhos. Na
faz parte do estilo belga não ostentar aquilo que não for explici- França se conhece a antropologia brasileira e vice-versa. Veremos
tamente solicitado. que alguns dos nossos entrevistados traçaram sua relação com o
Não pretendo explicar logo no começo a escolha do título des- Brasil por intermédio de antropólogos franceses.
te artigo. Só queria assinalar que ‘a melancolia dos belgas’ nada Grande é, portanto, o contraste da mentalidade belga, ciosa da
tem que ver com pessoas melancólicas, e muito menos com uma solidez de sua formação, mas modesta por natureza, com a men-
nostalgia que sentiriam pelo país de origem. O que se quer sugerir talidade brasileira, orgulhosa pelas dimensões e potencialidades
é que pensar sobre a relação desses belgas com os dois países é que do país, crente na sua diversidade e na sua capacidade de absorção
produz um efeito que poderia ser chamado de melancólico. Dife- das diferenças; país que se considera um país de migrantes, ten-
rentemente de outros países europeus, como a França e até mes- do se tornado um dos maiores blocos monolíngues do planeta. A
mo a Holanda, a Bélgica não tem uma política cultural agressiva. hospitalidade para com o estrangeiro que chega ao país continua
Minha leitura aqui é a de um nativo da vida entre dois mundos. fazendo parte da autoimagem dos brasileiros e da experiência do
Bélgica é um país pequeno, tem duas comunidades linguísticas estrangeiro europeu quando aqui aporta.
majoritárias, a flamenga e a valona, além de uma pequena mi- Passo agora à apresentação dos relatos dos entrevistados so-
noria de fala alemã. As políticas culturais belgas acabaram sendo bre suas próprias trajetórias para depois tirar algumas modestas
regionalizadas de acordo com a fronteira linguística, tornando o conclusões.
país ainda menor do que já era.
Outro fator importante do caráter belga, resultado de sua pe- Belgas no Brasil: Étienne Samain
culiar história e composição, é que cultivar o sentimento nacio-
nalista não é bem visto. Cultivar regionalismos, menos ainda, mas Em filme de Clarice Peixoto, Étienne Samain respondeu às
parece ser mais difícil de conter. Cultiva-se antes certo humor ne- questões sobre sua atividade no Brasil: Formado doutor em Teo-
gro perante outros nacionalismos e a própria história complexa de logia na Université Catholique de Louvain (1965), foi servir por
fronteiras fluidas, a ambivalência de sua identidade, a pequenez algum tempo como sacerdote numa paróquia na zona operária,

126
antropologia

perto de Charleroi. Ele sentia, no entanto, um desejo grande por Dominique Tilkin Gallois
conhecer novos horizontes e foi assim que atendeu ao convite de
amigos brasileiros que conhecera na universidade para um traba- Dominique Gallois, etnóloga de referência na USP, se desta-
lho de cooperação numa diocese brasileira. Em 1971 ele fez sua cou durante toda sua carreira por seu engajamento a longo prazo
primeira viagem, de férias, por Brasil, Argentina e Chile. “Sessen- na pesquisa e na política indigenistas, assim como pela formação
ta e oito é a primavera francesa, quer dizer, uma inquietação na de jovens etnólogos. Desenvolveu pesquisa pioneira sobre o xama-
Europa e o desejo de respirar. Eu gostaria de dizer que na época nismo entre os waiãpis e tem coordenado um grupo de pesquisa
eu sufocava. Esta viagem para o Brasil efetivamente me deu outros sobre as Guianas.
parâmetros para medir a vida humana, algo tinha acontecido. Eu Em suas próprias palavras: “Moro no Brasil desde 1975. É o
descobria uma outra arte de ser gente, uma espontaneidade, um país que escolhi para viver, trabalhar, envelhecer. Mas sou belga,
tipo de beleza, não apenas física, uma beleza moral na época, ou que não nasceu na Bélgica, e lá viveu apenas por 4 anos, no início
talvez eu estivesse romantizando até certo ponto, mas foi decisiva da década de 70, quando morei em Bruxelas, para estudar. Antes,
para mim essa primeira viagem.” morei na Venezuela – onde passei minha infância –, na Itália – on-
Depois, de volta à Bélgica, recebeu o convite de Dom Eugê- de vivi na adolescência. De meu nascimento na China, claro!, não
nio de Araújo Sales, arcebispo do Rio de Janeiro, para lecionar, a recordo nada, pois de lá saí com 18 meses. Acompanhando minha
partir de 1973, um curso de exegese na PUC. Pouco tempo depois família, com pai diplomata, também estive por um curto tempo
de sua chegada, as dúvidas com relação à opção religiosa começa- em São Paulo, em 1967 e 1968. Já querendo ficar. Mas meus pais
ram a se agravar: “Com relação à vocação na minha vida eu sofria me enviaram para Bruxelas, para que eu me conectasse com meu
de uma coisa que nunca ia discernir totalmente... questões de fé, país. Estudei Ciências Sociais, Políticas e Econômicas na Universi-
jogava sobre Deus o que era engajamento humano, questões de dade Livre de Bruxelas. Tínhamos aula de antropologia física com
sexualidade que desconhecia...”. um professor que nos mostrava imagens de pessoas negras, asiáticas
Sob a manifesta decepção do seu mentor brasileiro, Dom Eu- ditas ‘primitivas’, em função do tamanho de sua caixa craniana.
gênio, deixou o sacerdócio e, casando com uma belga em 1975, “Coisas assim me deixavam muito desanimada, pois já tinha
começou a estudar antropologia no Museu Nacional do Rio de lido na adolescência – graças ao estímulo de meu pai – Tristes Tró-
Janeiro. Fez pesquisa de campo, primeiramente entre os índios picos e outros livros de antropologia. A partir do 3º ano, finalmente
Kamayurá (Alto Xingu, Mato Grosso), onde estudou principal- minha formação se consolidou, com as aulas de Luc de Heush,
mente a mitologia e as histórias orais, e depois entre os Urubu que dava aula de Etnologia Africanista, mas também nos intro-
-Kaapor (Maranhão) as músicas xamanísticas e de flauta. Sobre duzia à obra de Lévi-Strauss. Ao lado disso, e de excelentes cursos
os Kamayurá publicou em 1991 Moroneta Kamayurá: Mitos e de Filosofia, professores interessados nas contradições do desen-
Aspectos da Realidade Social dos Índios Kamayurá (Alto Xingu), volvimento em países ditos ‘não desenvolvidos’, acolheram meu
livro ilustrado com muitas fotos. interesse pelos povos indígenas. Acabei realizando uma pesquisa
Étienne Samain, apaixonado pela fotografia desde a infância, sobre a situação dos índios no México no período da revolução
concentrou-se no aprofundamento das linguagens audiovisuais. de 1910. Não podia ir a campo, contentei-me com documentos e
Em 1984 se mudou para a Universidade Estadual de Campinas, com a leitura de romances indianistas. O trabalho defendido em
onde foi convidado a ajudar na implementação de um programa 1974 intitulava-se Les théories indigenistes au Mexique, de 1920
inovador de Pós-Graduação em Multimeios. Desde então seu es- à nos jours.
forço teórico consiste em “fazer da antropologia visual realmente “Em 1975, casei e vim morar no Brasil. Com uma bolsa de
um suporte científico da antropologia, sem descartar a dimensão especialização, válida por um ano, concedida através da ULB no
do verbal, mas trabalhar a relação de ambos”. Trabalhou assim âmbito de um acordo bilateral entre Bélgica e Brasil, pude me
sobre os usos da fotografia em antropologia visual, pesquisa cola- aproximar dos professores de Antropologia da USP e iniciar al-
borativa que resultou na coletânea O fotográfico (1998). gumas disciplinas. Logo, Thekla Hartman e Lux Vidal insistiram
Interessado pela teoria de comunicação de Gregory Bateson, para que me inscrevesse no mestrado. Defendi a dissertação em
publicou em 2005 Os Argonautas do Mangue, em colaboração 1980, conseguindo finalmente realizar pesquisas de campo com
com André Alves, seu orientando, fotógrafo e biólogo de formação. povos indígenas. Inicialmente, desejava continuar na linha de pes-
A primeira parte do livro, escrita por Samain, trata da obra clássica quisa iniciada na Bélgica, estudando os efeitos das políticas indige-
de antropologia visual, de Gregory Bateson e Margereth Mead, nistas. A intenção era pesquisar em alguma região que permitisse
Coming of age in Bali. A segunda parte apresenta os resultados da comparar políticas nacionais, em ambos os lados de uma fronteira.
pesquisa de Alves, com sequências de fotos dos caranguejeiros do Queria trabalhar com os Yanomami, mas um encontro com o an-
mangue de Vitória (Espírito Santo), alternadas com textos, muitas tropólogo escocês Alan Campbell dirigiu meu destino para junto
vezes com interpretações dos próprios caranguejeiros. A intenção dos Wajãpi, no Amapá.
do livro é fazer dialogar estas duas pesquisas, usando a primeira “Contrariamente ao planejado, não iria trabalhar no lado da
como fonte de inspiração para a segunda. Guiana Francesa, diante da acolhida dos Wajãpi no lado brasileiro
e dos desdobramentos que pouco a pouco se impuseram na minha

127
parte 4 – colaboração científica

Jovem kaxinawa.

relação com esse grupo indígena. No entanto, antes de consolidar nas Guianas (2005). Na sequência, coordenei um conjunto de
meus estudos sobre eles no doutorado, experimentei outras áreas pesquisas voltadas à discussão das formas de criação, circulação e
de pesquisa etnográfica entre os Tiriyó, os Karipuna e Galibi do transformação de conhecimentos, engajando um novo conjunto
Oiapoque. Voltei aos Wajãpi no doutorado, após ter tentado, mas de estudantes.
logo abandonado, uma pesquisa de cunho histórico sobre o tra- “Os artigos que publiquei nesse período sobre problemáticas
balho indígena no período colonial, em Marajó. Nesse período, dos saberes ameríndios foram suscitados pelo meu engajamento
meu interesse pelas problemáticas do indigenismo consolidou-se na formação de pesquisadores indígenas no Amapá, entre eles
enquanto participava das campanhas e atividades da Comissão uma turma de 20 pesquisadores Wajãpi, engajados em atividades
Pró-Índio de São Paulo e também graças à oportunidade de tra- do Plano de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial Waiãpi, que in-
balhar durante oito anos na equipe do programa Povos Indígenas cluiu, entre 2000 e 2003, o registro das expressões gráficas e orais
no Brasil, do Centro Ecumênico de Documentação e Informação deste grupo pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Na-
(Cedi), depois incorporado pelo Instituto Socioambiental (ISA). cional (Iphan) e pela UNESCO.
Em 1992, comecei a trabalhar no Centro de Trabalho Indigenista “Paralelamente, apostando na difusão de uma nova imagem
(CTI). Anos depois, fundei com colegas da USP outra ONG, o dos índios, dediquei-me à realização de documentários, especial-
Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé). mente aqueles produzidos com o projeto de vídeo do Centro de
“Ingressei na USP em 1985, antes de concluir meu doutorado, Trabalho Indigenista, durante a década de 90 (A arca dos Zo´é,
defendido em 1988. Desde então, dedico-me a formar etnólogos Segredos da mata, entre outros). Livros de difusão científica, como
que possam desenvolver alternativas mais éticas de diálogo com Patrimônio cultural imaterial: exemplos do Amapá e norte do Pará
os povos indígenas. Coordenei o Núcleo de História Indígena e (2006), também foram realizados com esse objetivo, de contribuir
do Indigenismo (NHII/USP), engajando vários alunos em pes- com a valorização dos conhecimentos indígenas e, sobretudo, com
quisas na região do Amapá e norte do Pará. Um dos resultados a difusão das experiências políticas e culturais indígenas em curso
dessa pesquisa está na coletânea que coordenei Redes de relações naquela região.

128
antropologia

“Ultimamente, tenho retomado minha pesquisa etnográfica estava sendo privada da nacionalidade belga por ter me naturali-
sobre os índios Zo´e, no norte do Pará. Nessa trajetória, nunca zado francesa em 2006, quando o meu filho nasceu.
mais voltei à ULB, nem mantenho contatos com antropólogos “O que mais posso dizer? Decidi estudar antropologia no úl-
belgas. A não ser com os belgas que, como eu, se dedicaram ao timo ano de colégio, quando descobri Lévi-Strauss em 1992, du-
Brasil. Recentemente, tive a alegria de ser escolhida como orien- rante as aulas de Filosofia de Terminale, no Liceu francês, no
tadora de um jovem belga, com dupla nacionalidade, que tam- Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano, trabalhei como voluntária na
bém estudou na ULB. Nicodeme Costia de Renesse concluiu organização da Conferência Mundial dos Povos Indígenas, con-
seu mestrado em 2012 na USP e hoje desenvolve uma pesquisa ferência paralela à reunião das Nações Unidas conhecida como
de doutorado sobre os Surui-Paiter. Trajetórias que se repetem, Rio 92. Essa experiência reforçou minha decisão de virar antro-
sem nunca se repetir”. póloga. Estudei Ciências Sociais na Université Libre de Bruxel-
les, finalizando a graduação em Etnologia já na Universidade de
Oiara Bonilla Paris X-Nanterre em 1996. Na época realizei uma monografia de
conclusão de curso sobre os javaés da Ilha do Bananal, portanto
“Sou belga, mas não pude nascer belga. Nasci em Paris, em já havia feito trabalho de campo no Brasil.
1975, de um pai uruguaio exilado e de uma mãe belga desenhis- “Em 1998, entrei no Mestrado no PPGAS (Programa de Pós-
ta. Mas, por lei, não podia ser nem francesa, nem belga. Só pude -Graduação em Antropologia Social), Museu Nacional, e conti-
me tornar belga bem mais tarde, lá pelos 10-12 anos de idade, nuei minha pesquisa com os javaés e os carajás da Ilha do Bananal,
depois de uma modificação de lei que permitiu que os filhos de sob a orientação de Aparecida Vilaça. Defendi minha dissertação
mães belgas nascidos no exterior tivessem direito a um passaporte. de mestrado em janeiro de 2000. Ainda em 2000, fiz minha pri-
Quando nasci, era legalmente apátrida, até meu pai convencer o meira viagem aos paumaris, no sudoeste do Estado do Amazonas.
cônsul uruguaio a emitir um passaporte para mim. Toda minha fa- Poucos meses depois, já casada, me mudei para a França onde
mília materna é belga e vive em Bruxelas, apesar de ser de origem acabei me inscrevendo no doutorado após tentativas frustradas de
húngara e holandesa. Assim, sou mais uma belga por acidente, fazer uma co-tutela entre o Museu e alguma universidade na Fran-
uruguaia nascida na França e, portanto, também francesa (nacio- ça (na época, as co-tutelas ainda não estavam bem regulamenta-
nalidade também adquirida bem depois). Acho que não preciso das). Entre 2001 e 2002 realizei meu trabalho de campo com os
explicar por que quis ser antropóloga. Paumari, voltando para a França em outubro de 2002. Entre 2003
“Para complicar, vim parar no Brasil (Recife primeiro e Rio e 2005, trabalhei como Leitora de língua portuguesa e civiliza-
de Janeiro mais tarde) aos seis anos de idade e por aqui fiquei até ção brasileira no Departamento de Línguas da Universidade de
a faculdade. Quando terminei o colégio resolvi estudar antropo- Nanterre. Finalmente, defendi minha tese em setembro de 2007,
logia e escolhi ir para Bruxelas cursar ciências sociais na ULB. A voltando ao Brasil em 2009, para realizar um pós-doutorado de
adaptação foi difícil, por várias razões, mas principalmente porque cinco anos, financiado pela Faperj, e desenvolvendo um projeto
fiquei decepcionada, pois já sabia que queria trabalhar na Ama- de pesquisa sobre cosmopolíticas indígenas e políticas públicas.”
zônia e por lá só se falava em África. Foi assim que, ainda no 2º Sob orientação de Philippe Descola, Oiara Bonilla defendeu
ano de faculdade, decidi acompanhar um curso de 4º ano. Era sua tese sobre os paumaris, grupo de língua aruá, na École des
o único oferecido sobre índios na Amazônia. Ali conheci Anne- Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, uma contribuição
-Marie Losonczy, que lecionava essa matéria e rapidamente me original e importante à etnologia ameríndia. Na teoria etnológica
encaminhou para Nanterre para terminar minha graduação com é bem conhecido o fato do discurso guerreiro estar bem presente
a equipe de americanistas de lá. nas sociologias ameríndias, assim como tem sido detectado uma
“Minha experiência belga durou pouco, fiquei apenas dois ontologia que prioriza as relações de predação enquanto contexto
anos por lá, terminando a faculdade em Nanterre e logo voltando no qual se desenvolvem as relações sociais, particularmente com
para o Rio para fazer mestrado no Museu Nacional. Não tenho re- outros seres humanos e não humanos. Neste contexto, os Paumari
lações nem contato com antropólogos da ULB, nem com univer- surgem com um discurso sócio e cosmopolítico particular, enfa-
sitários de lá, apenas com amigos e família. Aliás, poucas pessoas tizando sua posição de vítima e presa numa rede relacional onde
de minha turma se tornaram de fato antropólogos, acho que com precisam dos outros para serem protegidos, tanto no nível das re-
exceção de David Berliner, que é africanista e professor na pró- lações interétnicas quanto na sua concepção de suas relações com
pria ULB. Em 2000, voltei para a França, para fazer o doutorado, outros seres do cosmos. É neste sentido que surge, no contexto das
e lá tive filhos e me naturalizei francesa. Tenho um sentimento relações com os brancos, a figura do ‘bom patrão’.
um pouco melancólico quando penso nesse não vínculo com a
universidade e tenho uma sensação nítida e um pouco triste de Natacha Nicaise
que a Bélgica não apoia, não reconhece seus conterrâneos, nem
valoriza muito aqueles que moram fora. Essa sensação contrasta O texto de Natacha Nicaise é um resumo, editado por mim,
fortemente com a atitude (oposta) dos franceses. Para ilustrar isso, de um memorial que ela escreveu em 2012 para um concurso
fui informada na semana passada (logo após o e-mail da Els) que público e que me cedeu gentilmente. Apresenta aqui a própria

129
parte 4 – colaboração científica

trajetória intelectual que levou a jovem estudante para o Brasil e Econômica (depois União) Europeia e a África. O fio condutor da
a reflexão teórica sobre as diferenças entre os mundos acadêmicos minha investigação foi a política de comunicação oficial em dois
belga e brasileiro, tal como foi experimentado por uma jovem es- momentos: na época da criação da CEE, no final dos anos 1950,
tudante nos anos 1990 e 2000. e entre 2000-2005. Em 2007, fui convidada para integrar uma
Em suas palavras: “Deixei a Bélgica para me instalar no Brasil equipe de pesquisadores brasileiros que participou da criação do
em 2002, após ter ganho uma bolsa do CNPq (Conselho Nacio- Instituto Interuniversitário de Pesquisas e Desenvolvimento (Inu-
nal de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) para realizar red), no Haiti. A partir de então, comecei a pesquisar um universo
o doutorado no PPGAS/Museu Nacional/UFRJ. A decisão de social complexo, marcado pela presença da ONU (e do Brasil, no
continuar minha formação neste país aparece retrospectivamen- exercício do comando militar dos capacetes azuis), de agências in-
te como uma boa lente para colocar em relevo vários elementos ternacionais, de ONGs (algumas brasileiras, como o Viva Rio) e
de minha trajetória pessoal e profissional. Em minha trajetória, de instituições acadêmicas brasileiras, norte-americanas, francesas,
acumulei diversas experiências de pesquisa em vários contextos canadenses, haitianas e de outros países do Caribe.
nacionais (Brasil, Peru, Bélgica, União Europeia, Haiti, Estados “O Haiti e a região do Caribe transformaram-se em um dos
Unidos), tratando de questões como tradições intelectuais, eco- meus centros de interesse. Desenvolvi várias atividades ligadas (1)
nomia popular urbana, política e processos de comunicação, his- à construção institucional – fui responsável pelas relações exterio-
tória e memória institucional, identidades nacionais, políticas de res do Inured entre 2007-2009; (2) à pesquisa – participando do
desenvolvimento e pós-colonialismo. Na Bélgica, como em vários laboratório State, Justice & Public Policy do Inured e da equipe
outros países nos quais as relações coloniais foram estruturantes, coordenada pelo Prof. Federico Neiburg no âmbito do Núcleo de
o passado colonial continua presente na cultura material, na ali- Pesquisas em Cultura e Economia e, a partir de 2009, desenvol-
mentação, na arte, na presença de imigrantes oriundos da África vendo o projeto de pós-doutorado ‘Nações e Cooperação Interna-
e também nas próprias tradições intelectuais e acadêmicas. No cional; a Foreign Assistance norte-americana e o Haiti, 1942-2010’,
mundo acadêmico brasileiro, procurava um distanciamento crí- no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, sob a
tico em relação ao universo cultural que informava minha visão supervisão do Prof. Omar Ribeiro Thomaz (bolsa Fapesp); e (3) à
sobre as relações pós-coloniais. docência – ministrando cursos à distância para alunos da Univer-
“No doutorado, queria estudar as representações sociais das re- sidade do Estado do Haiti.
lações de cooperação para o desenvolvimento da Europa e na Eu- A minha participação no Inured e a colaboração com a ONG
ropa, a partir de um âmbito cultural diferente e de outra tradição brasileira Viva Rio, que atua em Porto Príncipe, tem me permitido
intelectual e, desse modo, tentar me afastar de pressupostos que observar de perto as transformações e as tensões que acompanham
percebia como embutidos na minha ‘condição de belga’, notada- a ‘cooperação internacional’ — por exemplo, situando como ato-
mente um paternalismo difuso na abordagem das relações Norte- res o governo e a “sociedade civil” brasileira e, com isto, abrin-
-Sul. Foram essas indagações — também carregadas, confesso, de do todo um leque de questões a respeito das novas modalidades
rebeldia e irreverência juvenis — que motivaram minha decisão de da presença do Brasil no cenário internacional. Até o momento,
realizar um doutorado fora da Bélgica e, em particular, no Brasil. publiquei dois livros (em formato impresso e digital, em inglês,
“Foi na ocasião da monografia de final de graduação, em 1997, francês, português e creole haitiano) que permitem compreender
que tive o primeiro contato com o país. Graças a um encontro com a relação entre as necessidades e perspectivas da população e as
uma professora alemã, na época diretora do Laboratório de Antro- formas de intervenção da cooperação internacional na área: Lixo,
pologia da Comunicação (LAC) da ULG, a Dra. Tomke Lask, que Estigmatização, Comércio, Política (2010) e A vida social da água
havia feito seu mestrado no PPGAS e mantinha um estreito conta- (2009), ambos em colaboração com Federico Neiburg e editados
to com a academia brasileira, fui recebida como estagiária naquela em parceria entre o NuCEC e o Viva Rio”. 
instituição por um período de três meses, visando desenvolver o
projeto de análise comparativa da abordagem do xamanismo em Peter Beysen
um grupo de índios guaranis na obra dos antropólogos Eduardo
Viveiros de Castro e Pierre Clastres. Esta primeira passagem pelo Peter Beysen foi meu aluno no doutorado e escreveu uma bela
Brasil foi fundamental em minha trajetória; despertou um grande tese sobre a estética corporal ashaninka, grupo arawak que habita
interesse pelo mundo acadêmico brasileiro e marcou o início de a fronteira entre o Brasil (no Acre) e o Peru. Antes de vir para o
uma longa e interessantíssima jornada que me levou a me esta- Brasil cursou História da Arte com especialização em Arte Étnica
belecer no país. Um encontro com a antropologia brasileira era na Universidade de Gand. O relato de Peter é o de um viajante
improvável no contexto acadêmico belga. à procura de outro mundo: “A ideia era, originalmente, ir para a
“Em 2002, iniciei meus estudos de doutorado no PPGAS. Co- Indonésia, o que não aconteceu porque a situação política não
mo orientanda do professor A. C. de Souza Lima, integrei o Laced era muito tranquila, especialmente para falantes do holandês...
(Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvi- Dois meses de mochila por Java, Bali, Lombok e Sumbawa me
mento). Estudei a transformação das ‘relações coloniais’ em rela- fizeram escolher pelas ‘artes étnicas’ no curso de História da Arte
ções de ‘cooperação para o desenvolvimento’ entre a Comunidade na Universidade de Gand.

130
antropologia

Preparação de pigmentos minerais.

“O Brasil nos parecia uma segunda opção promissora: para Peter Beysen terminou seu doutorado no Programa de Pós-
minha esposa, especialista em estética médica, o lugar era ideal e -Graduação em Sociologia e Antropologia com tese intitulada Ki-
para mim, tinha a floresta amazônica... Fomos parar em Joinville, tarentse. Pessoa, Arte e Estilo de Vida Ashaninka do Oeste Amazô-
por influência da ex-cunhada de um dos clientes de Sonja (esposa nico (2008). Aborda a estética minimalista dos Ashaninka a partir
de Peter). Em Joinville, passava meu tempo no ‘museu arqueológi- dos objetos fabricados e sua relação com desenhos, corpos e temas
co de sambaqui’. O museu possui uma boa biblioteca e num certo míticos que se organizam ao redor dos dois grandes eixos em torno
dia peguei da estante, por acaso, o livro A temática indígena na dos quais gira a cosmovisão Ashaninka: a procura pela imortali-
escola, folheei o livro e parei numa foto dos Kaxinawa. Em cima dade e a fragilidade do amor. O autor argumenta que o belo para
da foto estava impresso o nome Elsje Lagrou. Sorri por causa do os Ashaninka consiste no equilíbrio entre o pensar (seu estilo de
nome inconfundivelmente holandês ou flamengo. Alguém na sala vida é marcado pela observação e pela reflexão) e o fazer, no qual
reparou meu sorriso e me perguntou o que tinha me chamado a a história guerreira sempre funcionou como pano de fundo para o
atenção. Para minha surpresa conheciam Elsje Lagrou, na época modo como se constituiu a pessoa Ashaninka. É a força latente que
professora em Florianópolis, e especializada em antropologia da se acarinha, constituindo esta o ideal da estética da arte corporal.
arte. Els se revelou mais tarde a orientadora ideal para mim... Els Atualmente prepara um catálogo, com fotos de sua esposa fo-
estava naquela época num processo de transferência da UFSC pa- tógrafa, Sonja Ferson, uma exposição e uma coleção etnográfica
ra o IFCS da UFRJ no Rio de Janeiro, sem dúvida a cidade mais sobre os Ashaninka para o Museu do Índio no Rio de Janeiro, onde
interessante do mundo...” possui bolsa temporária de pesquisa pela Unesco.

131
parte 4 – colaboração científica

Lucia Hussak Van Velthem popular, na gaita. Também ouvia ópera seguidamente, sobretudo
as preferidas: La Bohême e Lucia di Lammermoor, o que explica
Lucia Van Velthem pode ser contada hoje entre os seniores meu prenome. Juntamente com o sobrenome, constituem estes
da disciplina antropológica no Brasil que fizeram a diferença, par- os frágeis e tênues laços que me ligam à Bélgica.
ticularmente no campo da antropologia da arte. A obra O belo é “Os laços são frágeis porque antes de me fazer conhecer e
a fera, a estética da produção e da predação entre os Wayana, de amar a Bélgica, meu pai me fez conhecer e amar o Brasil, o lu-
2003, se tornou um clássico no campo por antecipar, através de gar que escolheu para viver e morrer. A minha grande ‘escolha’,
uma etnografia precisa e detalhada das técnicas de produção dos por outro lado, foi ir contra todas as expectativas familiares e me
artefatos e das pessoas wayana, um paradigma que hoje domina graduar em Museologia em 1972. Estavam esperançosos de que
a antropologia: a ideia que pessoas são como artefatos e artefatos seria uma engenheira, após ter-me formado no curso técnico de
são como pessoas. calculista de concreto armado.
A bem dizer, Lucia Van Velthem não é belga, mas descen- “A formação recebida no curso de Museologia não era em
dente de belga, de primeira geração. Entretanto, seu nome e sua absoluto teórica, mas essencialmente prática. Aprendia-se a iden-
aparência, seu modo de ser, parecem mais belgas do que os de tificar estilos, modismos, fases, técnicas de peças de mobiliário e
muitos belgas. Talvez por ser belga de coração! É na atitude aven- muitos outros objetos e artefatos, passíveis de serem encontrados
tureira do pai, que veio para o Brasil para nunca mais voltar, que em museus, não necessariamente brasileiros, pois nos debruçamos
Van Velthem localiza a origem de sua vocação pela antropologia sobre as escritas medievais europeias. Na época, eu não atinava
e é com ternura que ela se volta inicialmente neste texto para a como me seria útil, no futuro, a intimidade visual e tátil adquiri-
memória do pai: das, nesse período, com artefatos tão variados na forma e nos ma-
“Meu pai, Pierre François Van Velthem nasceu em novembro teriais. A Museologia levou-me ao Museu Nacional, no Rio de
de 1906, filho de Maria Beleyn e de François Van Velthem. Este, Janeiro. Desejava tornar-me restauradora de artefatos indígenas
segundo a tradição familiar, era um renomado decorador de vitri- e assim busquei a Seção de Etnografia. Heloisa Fénelon Costa
nes de grandes magazines na Bélgica, França e Alemanha e ela, a desencorajou-me desse intento, mas encaminhou-me para a do-
mimada filha de um próspero negociante de Bruxelas. A família cumentação de coleções. Meus colegas, estagiários e bolsistas, vi-
se muda para Antuérpia e as relações familiares o introduzem no nham das Ciências Sociais e se dedicavam aos estudos dos povos
aprendizado do entalhe de diamantes em um dos muitos negó- indígenas altoxinguanos, assim como a própria professora. Como
cios de joias e pedras preciosas mantidos por judeus nessa cidade. não havia a menor possibilidade de introduzir-me nesse território,
Em 1925 viaja para o Congo Belga, mas logo decide tomar outros busquei uma região distanciada, mas representativa no acervo.
rumos e não permanece na África, seguindo para o Brasil, mais Assim cheguei ao Rio Negro e às coleções de artefatos plumários
precisamente para Salvador. dos índios Tukano.
“Da capital baiana ruma para o Vale do Jequitinhonha, em “Era um trabalho descritivo e algo enfadonho. O divertido fica-
Minas Gerais. Na época era um lugar remotíssimo, com lavras de va com a prosa do museólogo Geraldo Pitaguary e o extraordinário
diamante que remontavam, entretanto, ao século XVIII. Percor- com a descoberta de uma peça aqui, outra ali, no meio de dezenas
re vilas e mais vilas e seus arredores: Datas, Serro, Milho Verde, de outras, nas caixas de metal do antigo ‘Depósito’. Esse período
São João da Chapada, Barão de Cocais, Guinda, Diamantina e foi marcado por encontros e orientações que vieram de muitos
também lugares mais afastados como ‘Cavalo Morto’ onde, nos lados, mas sempre no cenário do Museu Nacional. Uma forte
contou, havia inúmeros refúgios de quilombolas. Nessa região lembrança está ligada à figura de Berta Ribeiro, que me cumu-
construiu a rede de amigos que o acompanharia para o resto da lou de ensinamentos preciosos, e com a qual mantive duradouro
vida, mesmo morando no Rio de Janeiro, onde se casou com uma compartilhamento de livros, cartas e o interesse pelos estudos de
filha de austríacos, e se estabeleceu. artefatos ameríndios.
“Quando eu tinha uns 10 anos, meu pai levou-me ao sertão de “Em meados de 1973 rumei para Belém do Pará, como alter-
Minas em uma longa viagem e, enquanto registrava pessoas, pai- nativa à impossibilidade de me exilar na Europa, para onde fo-
sagens e igrejas em aquarela, ensinou-me a abordar e a conversar ram muitos dos companheiros de militância política. Em Belém,
com todas as pessoas: da mendiga da porta da Igreja do Amparo Eduar­do Galvão, Protásio Frikel e Expedito Arnaud receberam-
ao filho do cartorário, fanático por brigas de galo. Tenho certeza me muito calorosamente no Museu Paraense Emílio Goeldi, en-
de que foi esse aprendizado, repetido em muitas outras viagens, a tão pertencente ao CNPq. Os estudos de plumária dos Tukano
última em 1970, dois anos antes de sua morte, que me conduzi- prosseguiram nas coleções deste museu, sob a batuta de Galvão,
ram à Antropologia e aos índios. de quem fui a última orientanda. Paralelamente dedicava-me,
“Meu pai falava pouco da Bélgica e nunca de forma espon- a pedido de Galvão, a trabalhos propriamente museológicos na
tânea. Jamais esboçou qualquer iniciativa para viajarmos até seu conservação da exposição permanente e foi esta especialidade que
país natal. Não sabemos nada sobre possíveis parentes belgas, os favoreceu minha contratação para o Museu Goeldi em 1975. En-
laços foram completamente rompidos. Recordo que a música era trementes, eu havia descoberto a Etnologia e, sobretudo, a pers-
uma das suas grandes paixões, a clássica interpretava ao violino e a pectiva de realizar trabalho de campo. Assim, rumei com o antro-

132
antropologia

Apresentação de dança indígena no evento Europalia.Brasil, 2011.

pólogo alemão Protásio Frikel para o Rio Cururu e para as aldeias Nadia Farage, Marta Amoroso e as saudosas Vera P. Coelho e Ara-
dos índios Munduruku. Nessa viagem, Frikel desejava repassar o cy L. da Silva.
rigor e a dedicação de um trabalho de campo à maneira dos velhos “As leituras teóricas – sobretudo Lévi-Strauss – requeriam a
mestres germânicos. Assim, não parávamos: levantamentos nas ro- abertura para novas experiências acadêmicas. Paralelamente era
ças, escavações arqueológicas, coleta de mitos, inventários da cul- necessário ser pragmática, e assim encontrar um povo indígena
tura material, dos grafismos e das aldeias que visitávamos e ainda que fosse pouco estudado, mas que pudesse ser acessado com fa-
uma longa viagem – em canoa a remo – até os locais míticos dos cilidade. Cheguei então ao Parque Tumucumaque, frequentado
Munduruku, no alto Rio Cururu. Tudo isso provocava sucessivos semanalmente pelos aviões da Força Aérea Brasileira. A primeira
choques intelectuais e sensoriais que me exauriam. viagem, em 1975, foi precedida da leitura de parte da bibliografia
“Em 1976 eu já estava na Universidade de São Paulo, no cur- etnológica existente sobre os Carib norte-amazônicos – sobretudo
so de pós-graduação da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Daniel Schoepf que me apresentou aos Wayana – para detectar
Ciências Humanas), e tinha como orientadora a professora Lux onde pousar nesse vasto território indígena, contemporâneo do
B. Vidal, que generosamente me transmitiu seus conhecimentos e Parque do Xingu. A porção leste pareceu-me a mais adequada,
sabedoria, e assim se tornou uma pessoa marcante em minha vida. pois não estava marcada, nem por debates teóricos palpitantes,
A USP era, na época, um importante foco de pesquisas sobre índios nem por etnografias exaustivas. Os contatos iniciais com os Wa-
e Lux Vidal reunia um grupo de estudantes interessados nas possí- yana e Aparai foram decisivos. Meus olhos os viram e os veem
veis correlações existentes entre estética e cosmologia, mas tendo como pessoas de aguçado senso estético e de grande sabedoria. O
como ponto de partida os artefatos materiais. Descobri assim a úni- que foi percebido, na ocasião, permitiu-me esboçar o projeto geral
ca via propícia para uma museóloga, e por ela sigo até o presente! da dissertação de mestrado: o estudo de uma categoria artesanal
“O ingresso na USP abriu-me as portas da reflexão teórica, proe­minente, a cestaria.
da história da antropologia e dos estudos sobre os índios do Brasil “Outras viagens ocorreram: umas mais demoradas outras mais
Central, através das aulas de professoras de origem alemã: Lux curtas, quando a malária se manifestava. Fixei-me em uma aldeia
Vidal, Tekla Hartmann e Renate Viertler. Os cursos proporcio- essencialmente wayana - Xuixuimëne, no médio Rio Paru de Les-
naram também o encontro de pessoas que me acompanham até te – onde encontrei pessoas acolhedoras e especialistas dispostas
hoje, umas mais próximas, outras mais distanciadas: Dominique a compartilhar seus saberes. Nesse período não tinha meios de
Gallois, Alba Figueiroa, Regina Muller, Els Lagrou, Silvia Caiuby, avaliar que os estudos da arte e das categorias materiais dos Waya-

133
parte 4 – colaboração científica

na seriam tão fascinantes, tão absorventes e tão demorados, con- na África. Com esta intenção fui duas vezes, entre 1972 e 73, ao
sumindo assim 20 anos, até 1995, ano em que defendi a tese de Museu Real da África Central (Koninklijk Museum voor Midden
doutorado, ainda na USP e ainda sob a entusiasmada orientação -Afrika/Musée Royal de l’Afrique Centrale) de Tervuren (Bruxelas)
de Lux Vidal. Os anos foram longos entre os Wayana porque as para apresentar meus planos. Primeiramente queria ir para o Con-
pesquisas e as publicações se entremearam com os trabalhos de go, depois para a Etiópia. Em ambos os casos me desaconselharam
delimitação da Terra Indígena Rio Paru d’Este, ao norte do Pará. a ir adiante por causa de problemas ou instabilidade políticos.
“Os estudos posteriores ao mestrado continuaram girando em “Durante uma viagem pela Europa encontrei os professores
torno das técnicas e tecnologias da produção material dos Waya- Simone Dreyfus-Gamelon (École des Hautes Études en Scien-
na: cerâmica, entalhe, plumária, arquitetura, culinária, mas não ces Sociales, Paris) e René Fuerst (Genève), que influenciaram
apenas isso, pois a formação adquirida me permitia enveredar por fortemente a escolha do meu campo, pois foi em parte motivado
outros campos de expressão, essencialmente relacionais, e assim por seu entusiasmo que parti em 1974 para os Kayapó do Brasil
contemplavam a pessoa humana – os uaianas – e o resto do uni- Central. Apesar do fato de o grupo escolhido, os Mekrãgnoti, vi-
verso, o que se tornou a pedra fundamental sobre a qual repousa ver naquela época ainda muito afastado, nunca me arrependi de
minha tese de doutorado, intitulada O belo é a fera. A estética da ter feito esta escolha. Entre 1974 e 1981 fiz pesquisa de campo
produção e da predação entre os Wayana. entre os Mekrãgnoti de forma intensiva, aprendi sua língua e me
“Após o doutorado engajei-me na busca de outros horizontes aprofundei nas suas expressões culturais materiais, assim como nas
teóricos, metodológicos e de ação, inclusive entre os Wayana e suas práticas de guerra.
os Aparai, entre os quais permaneço em atividade desde 2005, “Me engajei ativamente para que os Mekrãgnoti pudessem
coordenando projetos de valorização cultural em parceria com obter uma terra significativamente maior do que o previsto ori-
o Iepé e com o Museu do Índio (ProDeCult). Em 1999 tive a ginalmente. Depois da obtenção do doutorado cheguei a pensar
oportunidade de voltar a um antigo cenário: o Rio Negro, mas em ficar no Brasil para neste país viver e trabalhar, mas a sorte o
agora engajada em uma pesquisa multidisciplinar sobre o siste- decidiu de outro modo e em 1990 fui parar finalmente no... Mu-
ma agrícola, no contexto de um projeto de cooperação bilateral seu Real da África Central. Atualmente trabalho nesse museu no
(Pacta). Neste projeto busco decifrar o sistema de objetos relacio- setor de Etnografia, onde me especializei em povos pastores da
nados com o processamento da mandioca. Regressei também ao África Oriental, mais particularmente na região fronteiriça entre
campo museológico. Este retorno à Museologia teve como pon- o Sudão, a Etiópia, o Quênia e Uganda. Os temas principais das
to alto a curadoria do módulo ‘Artes Indígenas’ na monumental minhas pesquisas são a decoração corporal e os conflitos intergru-
Mostra do Redescobrimento em 2000, mas também se exerceu pais onde o gado ocupa um lugar central”.
em outras exposições no Brasil e no exterior, inclusive ‘Índios no No Brasil Gustaaf Verswijver manteve intensas relações de
Brasil’, montada no contexto da Europalia, em Bruxelas, e em troca e colaboração acadêmicas com as professoras antropólogas
parceria com Gustaaf Verswijver! da USP Thekla Hartman, Renate Viertler e Lux Vidal e conhe-
“Entretanto, não me ative exclusivamente aos projetos expo- ceu as colegas de geração Dominique Gallois e Lucia Van Vel-
sitivos, pois assumi a gestão curatorial da Coleção Etnográfica do them. As pesquisas de Verswijver entre os caiapós resultaram em
Museu Goeldi e de um ambicioso projeto de reformulação da várias publicações, a tese em 1992, The Club-Fighters of the Ama-
Reserva Técnica, concluído com algum êxito. A Museologia me zon: Warfare among the Kayapó Indians of Central Brazil (Uni-
possibilitou ainda trabalhar com Lux Vidal no Amapá, em cursos versidade de Gand, Bélgica), a mais detalhada análise do sistema
de capacitação museológica para os técnicos do Museu Kuahi dos guerreiro caiapó até hoje e ainda o catálogo Kaiapó – The Art of
Povos Indígenas do Oiapoque, e de presentemente ser a coorde- Body Decoration –, com fotos da coleção etnográfica dos Kayapó
nadora brasileira do projeto ‘Museus da Amazônia em rede’ que Mekrãgnoti-Mebengokre, montada por Verswijver para o Mu-
une em parceria o citado museu paraense e museus do Suriname seu Real da África Central. Em 1996 publicou ainda Mekranoti
e Guiana Francesa. – Living Among the Painted People of the Amazon, pela Prestel-
“Atualmente trabalho em Brasília, no Ministério da Ciência, Verlag (Munique).
Tecnologia e Inovação. Da Esplanada dos Ministérios, continuo Entre 1997 e 2002, Verswijver passou longos tempos no Brasil,
tecendo uma ampla rede de laços afetivos e profissionais com an- coordenando um projeto com os Kayapó, e organizou dois rituais
tropólogos, museólogos, biólogos, ativistas de muitos lugares e paí- de iniciação para seus filhos (ver os filmes descritos neste livro).
ses e, sobretudo, com os Wayana e Aparai e também com os Baré, Entre 2010 e 2011 Verswijver organizou, em colaboração com
Tukano e Baniwa, junto aos quais desejo envelhecer”. Lucia Van Velthem e com a assessoria acadêmica de Dominique
Gallois, a exposição sobre os Povos Indígenas no Brasil para a Eu-
Belgas antropólogos que voltaram: Gustaaf ropalia na Bélgica em 2011. Juntos editaram o catálogo Índios no
Verswijver Brasil, além de novo livro com fotos suas entre os Kayapó. Ainda
em 2010, editou com Maria Isabel B. Ribeiro um album de fo-
“Originalmente eu queria, evidentemente, como todo belga tos intitulado Diários de viagem: fotografias de Leopold III: 1962-
com aspirações de se tornar antropólogo, fazer pesquisa de campo -1967 com fotos das viagens do Rei Leopold III ao Brasil.

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antropologia

Paramentos utilizados em dança indígena apresentados no evento Europalia.Brasil, 2011.

Arnaud Halloy vínculo com a minha família-de-santo em Recife continua forte.


Vou publicar o meu primeiro livro cujo título é Une anthropo-
Arnaud Halloy, atualmente professor na Universidade de Nice, logie des émotions. L’apprentissage de la possession dans un culte
no sul da França, é um jovem antropólogo belga que fez pesquisa afro-brésilien.
de campo num terreiro de Xangô no Recife, fazendo doutorado
na ULB. Acompanhou também os últimos anos de vida de um De volta ao Brasil: Els Lagrou
terreiro de candomblé caboclo na Bélgica, na pequena cidade de
Carnières (ver seu verbete no capítulo religião). “Guardei minha autoapresentação para o final deste artigo,
Em 2006 publica um artigo surpreendente, “Un anthropolo- misturando a narrativa da minha trajetória pessoal com a profis-
gue en transe. Du corps comme outil d’investigation ethnographi- sional. Diferentemente de alguns, que vieram para o Brasil quase
que” (in Joël Noret e Pierre Petit, eds.). Halloy empreende uma que por acaso, o Brasil estava no horizonte de meus sonhos de
descrição detalhada e reflexiva do processo de aprendizado, pre- infância desde tenra idade. Conta minha mãe que eu dizia aos
paração e vivência do transe, a possessão por um orixá no candom- sete anos que me casaria com um índio, e se naquela época ainda
blé. Não se trata de um relato meramente descritivo ou subjetivo, não era claro se este índio moraria nos Estados Unidos ou na flo-
mas, antes, de mostrar como a etnografia e a vivência produzem resta amazônica, pouco a pouco fui adquirindo uma predileção
um conhecimento especificamente antropológico. pela América Latina. Para tal ajudou a experiência de morar em
Em suas palavras: “A respeito da minha relação com o Brasil, Lovaina, cidade universitária, onde viviam muitos estudantes la-
ela continua muito viva. Eu sou casado há quase 20 anos com tino-americanos, especialmente durante o período das ditaduras
uma brasileira. Então o laço amoroso continua forte! Eu cultivo no Chile, na Argentina e no Brasil. Minha mãe participava do
também uma relação artística com o Brasil. Montei com a minha comitê de recepção dos estudantes estrangeiros da universidade
esposa – Arlene Rocha, ela é bailarina e coreógrafa de danças po- e dessa maneira tivemos, eu e meus irmãos, desde cedo contato
pulares brasileiras – um maracatu (http://maracatumix.blogspot. com estudantes e suas culinárias de todas as partes do mundo. Meu
com) no sul da França e outro em Bruxelas. Além disso, parti- pai também contribuía com a internacionalização do clima em
cipo atualmente da montagem de um projeto de troca artística casa, trazendo para o jantar vários dos seus orientandos latinos,
entre o Brasil e o Benin. Finalmente, continuo trabalhando sobre do México, Peru e Brasil. Assim fomos sendo seduzidos por este
o candomblé, apesar de não conseguir ir ao Brasil todo ano. O jeito caloroso que os latinos têm de se relacionar com os amigos,

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parte 4 – colaboração científica

em contraste com a clássica, porém não por isso menos afetiva, arte do desenho e de toma coletiva da bebida indutora de expe-
reserva flamenga. riência visionária, a ayahuasca, pelos homens que existe entre os
“No final do secundário, já sabia que queria estudar antro- Kaxinawa uma especialização de gênero que gira em torno da
pologia. Na Universidade de Lovaina, no entanto, não existia a complementaridade entre imagens, figuras e grafismos. Os mitos
possibilidade de fazer antropologia na graduação. Deste modo, ensinam que o dono do poder transformador de todas as formas
fui estudar História Contemporânea. Lá tive aula de História do percebidas (ou seja, da fenomenologia kaxinawa) é a anaconda
Brasil com o professor Eddy Stols, que era, já naquela época, um mítica, Yube. Este ser está na origem tanto da arte do grafismo
apaixonado pelo Brasil. Eu namorava então um belga que estava aprendido pelas mulheres quanto da experiência visionária com
se preparando para passar um ano como professor visitante no ayahuasca, também chamada de dami (figuras em transformação,
Brasil. Depois de defendida a dissertação, parti para o Brasil, mais imagens). Mais tarde adicionaria um terceiro termo ao arcabouço
particularmente para Florianópolis. Depois de curto período de nativo da percepção: o conceito yuxin, que também significa ima-
adaptação e aprendizado da língua, fiz a seleção para o mestra- gem, mas imagem enquanto fonte agentiva de outras imagens: a
do em Antropologia na UFSC, em 1987. O ambiente acadêmi- agência que está por trás da transformação de uma imagem em
co que lá encontrei me empolgou muito, especialmente por ter outra. Os yuxin são seres sem corpo que podem mudar de forma
sido esta minha primeira experiência com o modelo de ensino e os yuxibu, superlativo de yuxin, seres que podem transformar
por seminários. as formas dos seres ao seu redor.
“Sob orientação de Jean Langdon, queria estudar a arte, a pin- “Nas pesquisas de campo posteriores, em 1991, e entre 1994 e
tura corporal e o xamanismo de algum grupo amazônico. Resolvi 1995, aprofundei os insights do mestrado através da análise e exe-
perguntar a opinião de Berta Ribeiro, conhecedora das artes in- gese do ritual, dos cantos rituais e dos mitos a eles associados do
dígenas, que me convidou para um encontro em seu apartamen- rito de passagem para meninas e meninos, o nixpupima, ritual de
to no Rio de Janeiro. Berta estava acompanhada de Nietta Lin- enegrecer os dentes das crianças. Este ritual condensa o discurso
denberg Monte, na época coordenadora da comissão pró-índio do e práxis kaxinawa em torno da fabricação dos corpos das crianças
Acre. Foi assim que elas decidiram que eu estudaria os Kaxinawa. e sua preparação para a vida adulta. Foi por intermédio da análise
Saí de lá com uma lista de nomes a procurar até chegar a Rio Bran- do ritual que pude pensar a agência das imagens e dos grafismos,
co. Minha chegada em campo, em 1989, se deu em momento assim como dos artefatos e sua relação com os corpos a partir de
histórico: o Primeiro Encontro dos Povos da Floresta, que visava uma perspectiva nativa. Este material resultou na minha tese de
formalizar e pensar a aliança entre seringueiros e povos indígenas doutorado em 1998.
da região em defesa da floresta. Este encontro aconteceu um ano “Ingressei no doutorado da USP em 1992, sob orientação de
depois da morte de Chico Mendes, o precursor dessa aliança, e Lux Vidal. Morei em São Paulo durante um ano. Lux já tinha se
reunia pesquisadores e militantes do país e do exterior. Foi nessa aposentado das aulas. Mas tive aula com Joanna Overing, Manue-
ocasião que Terri Aquino, histórico aliado dos Kaxinawa, me apre- la Carneiro da Cunha e Roberto Cardoso de Oliveira. Em 1993
sentou a Pancho, chefe da aldeia Recreio e articulador político da fiz um concurso para Professor em Antropologia na UFSC. Passei,
região do Alto Purus. Quando ele e seus familiares regressaram assumi e deste modo interrompi o doutorado por dois anos, porque
à aldeia, fui junto. Fomos acompanhados também por Siã Osair estava ministrando aula. Em 1994 fui liberada para fazer pesquisa
Sales, jovem liderança kaxinawa do Rio Jordão que pretendia via- de campo até meados de 1995.
jar até o Peru para encontrar e filmar seus parentes. Essa viagem “Depois recebi o convite de Joanna Overing para passar um
daria origem a um dos primeiros filmes de vídeo nas aldeias, que ano como Research Assistant na London School of Economics,
Siã editaria mais tarde em São Paulo ao lado de Vincent Carelli. onde ela lecionava. Quando embarquei para a Inglaterra, no en-
“Minha primeira viagem de campo foi iniciática. Permane- tanto, ela já estava de mudança para St. Andrews, onde acabara
ci cinco meses ininterruptos e sem comunicação ou notícias do de ganhar um Professorship. Joanna Overing levou toda sua legião
mundo de fora nas aldeias Recreio e Nova Aliança no Alto Purus. de alunos de Londres consigo para animar a pacata St. Andrews
Essa pesquisa resultou na dissertação de mestrado Entre o cobra na Escócia. Fiz parte dessa primeira geração de etnólogos em
e o Inka: uma etnografia da cultura kaxinawa (1991), na qual as torno de Overing e lá fiquei por dois anos. Por causa desta longa
questões centrais das minhas futuras pesquisas já estavam pre- temporada inglesa/escocesa resolvi fazer um duplo doutorado, re-
figuradas: a relação entre percepção e cognição; o modo como conhecido na Inglaterra e em São Paulo. Mas, já que não existia
determinadas técnicas perceptivas e expressivas dialogam com convênio entre os dois países, tive que defender a tese duas vezes,
uma ontologia específica onde a transformabilidade dos seres traduzindo-a do inglês para o português para defendê-la novamen-
ocupa lugar central (o que veio a ser batizado mais tarde como te, na minha volta ao Brasil, na USP. O período inglês foi para
perspectivismo, Viveiros de Castro, 1996). Na dissertação explo- mim o ponto da virada. Se já sabia que uma volta para a Bélgica
rei a relação entre a existência de dois conceitos distintos para seria difícil, ficar por um tempo na Inglaterra me parecia tenta-
imagem (dami [figura] e kene [grafismo]) e suas relações com a dor. Mas eu já era funcionária pública no Brasil, portanto nada
complementaridade de gênero e o xamanismo. Resumidamen- disso seria fácil. A questão, no entanto, felizmente nem chegou
te, notei através da análise dos rituais femininos de iniciação na a se colocar, pois foi em St. Andrews que conheci meu atual ma-

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antropologia

rido com quem voltei novamente para o Brasil, desta vez com a (Naipe) e os Seminários Ameríndios bimensais do PPGSA, IFCS
certeza absoluta que era para ficar. O problema a enfrentar agora desde 2002. Minhas áreas de interesse atuais englobam a etnolo-
era o de obter a permissão de transferência de Florianópolis para gia ameríndia, seus regimes ontológicos, sociais e estéticos, assim
a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os colegas cariocas do como a antropologia da arte, da imagem e dos artefatos em geral.
Departamento de Antropologia foram extremamente receptivos. Neste último campo iniciei há alguns anos uma pesquisa sobre a
Foi com o intuito de tornar nossa filha bilíngue, ela tinha dois anos figuração de santos e bichos em Juazeiro do Norte (CE), pesquisa
e começava a falar, que passamos seis meses na Bélgica, entre 2004 esta em colaboração com Marco Antonio Gonçalves e cujos re-
e 2005. Nos apresentamos à Universidade de Lovaina para sermos sultados resultarão em filmes e publicações”.
professores visitantes sem remuneração adicional, pois estávamos
de licença sabática na nossa universidade. Demos algumas pales- Conclusão
tras para os cursos de pós-graduação. Um ano mais tarde, cheguei
a Paris para uma pesquisa com uma bolsa Leg Lelong de quatro Não posso deixar de querer encontrar alguns fios na meada
meses (pelo CNRS). destes relatos de belgas antropólogos tão diferentes entre si. Um
“Para concluir um resumo sobre minhas atividades acadêmi- primeiro elemento que ressalta aos olhos é que muitos se torna-
cas mais recentes: Sou professora do Programa de Pós-Graduação ram etnólogos, estimulados às vezes pela leitura de Lévi-Strauss,
em Sociologia e Antropologia do IFCS, UFRJ, desde 2000. Sobre este gigante das Ciências Humanas do século 20, que fez muito
minha pesquisa entre os caxinauás publiquei em 2007 o livro A para colocar os índios brasileiros no mapa do mundo, às vezes pe-
fluidez da forma: arte, agência e relação numa sociedade ama- la simples vontade de viajar para longe. A vocação pela etnologia
zônica (kaxinawa) (Topbooks). Este retoma os recentes debates ameríndia, que implica em viver numa aldeia na floresta amazô-
teóricos no campo da etnologia e da antropologia da arte, os prin- nica, pode representar este sonho por um mundo diferente, comu-
cipais resultados da minha pesquisa no campo da antropologia mente batizado de atração pelo exótico que caracterizaria o olhar
da percepção. Em 2009 publiquei o livro Arte indígena no Brasil, ocidental sobre o mundo. Para se tornar antropologia, no entanto,
editado pela Com/Arte, um ensaio teórico sobre a questão da arte esta vivência, que pode iniciar por um desejo pelo distante, por
em contextos onde este conceito não existe, estabelecendo um uma experiência de alteridade, precisa ser traduzida em termos
diálogo com as discussões no campo da arte conceitual. Acabo de inteligíveis que eliminam exatamente este aspecto fantasioso do
terminar um livro, em coedição com Carlo Severi (professor da outro idealizado e de incompreensão. Conhecer o outro é, nas pa-
École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris), Quimeras lavras de Michael Taussig, tornar-se parcialmente outro. E é disso
em diálogo: xamanismo, grafismo e figuração, que reúne artigos que se trata na antropologia. Esta experiência vale para qualquer
de especialistas brasileiros e estrangeiros sobre a temática da rela- campo, que seja num terreiro de Xangô, numa aldeia indígena
ção entre mostrar e ocultar nas artes e nos rituais relacionados ao ou no mundo relacional de espelhos invertidos entre agentes de
xamanismo, tanto na Amazônia como na Sibéria e na América do políticas desenvolvimentistas europeias e representantes de países
Norte. O livro é um dos resultados de um convênio de pesquisa em desenvolvimento.
da Capes/Cobecub entre a UFRJ (PPGAS/MN e PPGSA/IFCS), Um elemento que me parece transpassar todos os textos aqui
o Collège de France, EHESS, e o Centro de Pesquisa do Musée reunidos é a dificuldade do movimento de ida e volta. Para todos, o
do Quai Branly entre os anos 2006 e 2010. Atualmente continuo Brasil significou a descoberta de mundos de experiência e de pen-
ligado ao Grupo de Pesquisa Internacional do Quai Branly e sou samento antes insuspeitados. A melancolia deriva do movimento
correspondente de sua revista Gradhiva. de retorno: quando se percebe o quão difícil é invocar o mundo
“Tenho formado meus orientandos de pós-graduação nos cam- de pensamento, reflexão e criação que se conheceu lá fora, mas
pos da antropologia da arte e na etnologia e coordeno desde 2008 que os que ficaram em casa desconhecem. É desta maneira que
um projeto de pesquisa em convênio com o Museu do Índio e a surge uma diferença crucial entre os mundos imaginários belga e
Unesco, “Construindo culturas, documentando tradições” (Pro- francês: o Brasil existe no mapa do imaginário francês, mas existe
docult), assim como um projeto de documentação sobre os usos muito pouco no dos belgas. Mas talvez seja muita presunção que-
e significados da miçanga entre as populações indígenas no Brasil, rer comparar a Bélgica, país tão pequeno e temeroso de ser uma
igualmente em colaboração com o Museu do Índio. Além dis- periferia de vários centros, com o gigante intelectual que continua
so, coordeno o Núcleo de Artes, Imagem e Pesquisa Etnológica sendo a França no mundo.

137
parte 4 – colaboração científica

Quando a selva chama


D a n i e l D e Vo s

D esde minha infância meu irmão mais velho me contava so-


bre os exploradores da África: Livingstone, Stanley, Burton…
Ele também queria ser explorador. Um dia – eu tinha na época
tura. No entanto, em setembro de 1995 a fatalidade bateu à porta
e Simon foi assassinado perto de sua casa em Manaus por dois
meninos de rua. Quinze minutos antes da rixa à facada, Simon e
14 anos – descobri a existência da floresta amazônica, a maior do eu tinhamos nos despedido depois de uma comidinha. Meu me-
mundo. Já que meu irmão iria à África, minha escolha estava fei- lhor amigo, o animado e sempre alegre Simon, não estava mais
ta. A África seria dele, a floresta amazônica seria minha! Informei presente. Seu passamento significou uma perda pessoal extrema-
meus pais, mas estes riram muito de meus planos. mente penosa. Com ele vivi muitas aventuras e minha primeira
Comprei um livrinho O Português sem custo e em janeiro de vivência com os índios amazônicos. A partir daí, algo mudou na
1981, com 21 anos, parti por alguns meses ao Brasil. Eu sabia minha relação com o Brasil. Nunca mais seria a mesma. Simon
pouca coisa sobre a Amazônia. Tinha lido alguns livros do autor nos deixou vários diários de seu trabalho de campo, assim como
holandês Anthony Van Kampen. Seu trabalho com os leprosos na um dicionário Yanomami.
floresta amazônica brasileira me emocionou bastante. Seus livros Depois de Carauari, ainda no ano de 1983, eu queria decidi-
me fizeram, a caminho do interior da Amazônia, passar por Ma- damente subir o Rio Japurá. Tinha a impressão que era um dos
naus. Lá encontrei um padre da Congregação holandesa do Espíri- tantos rios desconhecidos do Estado do Amazonas. Pude acom-
to Santo que me propôs acompanhá-lo até Carauari, no Rio Juruá, panhar um regatão no Rio Japurá e fiz uma reportagem sobre os
para conhecer a população e a selva. Assim dito, assim feito. Lá, ribeirinhos e sua relação com o regatão. Terminei minha jornada
entrei em contato através de outro padre e de uma enfermeira com numa aldeia dos índios Maku-Guariba. Mais tarde visitei, numa
os leprosos. Cada dia participava da ronda da enfermeira pelos segunda viagem de barco pelo Rio Japurá, uma aldeia Kanamari.
bairros de leprosos para tratar suas feridas. Após algum tempo eu No início dos anos 80, percorri principalmente o Estado do
os visitava sozinho. Sua condição dolorosa me deixou comovido Amazonas, às vezes o do Pará. Tinha visto tantos recantos da selva
por muito tempo. Em Carauari toquei um dia no assunto índios, e observado diversas populações, mas em nenhuma parte podia
mas veio pouca ou nenhuma resposta. Dizia-se mesmo: ‘Dentro montar minha tenda.
de dez anos não haverá mais índios no Brasil!’ Isto mudou quando encontrei Pedro Inácio Pinheiro Ngematü-
No final desta primeira viagem topei em Manaus com o fina- cü. Em janeiro de 1984 fui para o Alto Solimões. Fiquei sabendo
do Simon le Fevere de ten Hove. Ele voltava de uma aldeia Ya- que na cidadezinha de Benjamin Constant existia um pequeno
nomami e queria ir de novo na direção do Rio Araçá, um afluente centro de encontro, onde os índios do Alto Solimões (principal-
do Rio Negro. Decidimos nos preparar para uma nova viagem mente os ticuna) se reuniam regularmente. Lá topei com Pedro
às terras dos Yanomamis, com o propósito de realizar um docu- Inácio Pinheiro, na época presidente do CGTT (Conselho-Geral
mentário em 16 mm sobre a vida na Amazônia. Passamos algu- da Tribo Ticuna), ou seja, capitão-geral do povo Ticuna. Contei-
mas semanas numa aldeia Yanomami, seguimos a extração da -lhe minhas andanças pela Amazônia. Ele me convidou para sua
borracha pelos seringueiros e visitamos duas minas de ouro na aldeia Vendaval a fim de conhecer o povo Ticuna e enteirar-me
região de Itaituba (Rio Tapajós), onde se coletava o pó de ouro de sua problemática.
na floresta e no rio. No momento de minha chegada à região Ticuna, a luta para a
Depois de seis meses, em maio de 1982, nosso filme estava demarcação oficial das terras estava em pleno andamento. Patrões
pronto. Recebeu o título de Grito Amazônico. Entretanto, voltei brancos foram expulsos e os índios acabavam de ganhar alguma
a Carauari e fiz um filme e uma reportagem de diapositivos. Na liberdade, uma recuperação de suas raízes despontava, como tam-
Bélgica, consegui recolher algum dinheiro para a construção de bém a conscientização de seus direitos à terra previstos pela cons-
um lar para os leprosos que viviam às margens do Rio Juruá e tituição. Os Ticuna empenhavam-se para fazer valer estes direitos.
que poderiam residir lá, quando precisavam de longos cuidados Junto com Pedro e mais alguns da aldeia de Vendaval partimos de
médicos. canoa às numerosas aldeias Ticuna para convidar os capitães Ti-
Em 1983 Simon e eu partimos de novo por um ano para o cuna (como se chamavam os chefes de aldeia) para uma reunião
Brasil. Mas nossos caminhos se separaram logo. Eu fui a Carauari geral para discutir a estratégia a seguir. Vários chefes e membros
para o lar, cuja administração passou inteiramente para as mãos do Conselho Ticuna me pediram para divulgar fora do Brasil sua
do município. Simon queria fixar-se definitivamente no Brasil e problemática, sobretudo dos direitos à terra. Desde o começo era
ocupava-se com infinita paciência da maçada administrativa, en- evidente que não queriam ser objetos, mas sujeitos.
quanto trabalhava para uma ONG com meninos de rua em Ma- Com estas lutas subiram as tensões entre os diversos grupos de
naus. Somente dois anos mais tarde eu voltaria por um tempo população e interesses na região do Alto Solimões. Atingiram um
mais longo à aldeia dos Yanomami para estudar seu idioma e cul- ponto dramático com o massacre de Capacete, em 28 de março de

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antropologia

A festa da moça nova entre os Ticuna Pedro Inácio Pinheiro Ngematücü, presidente do Conselho Geral da Tribo Ticuna.

1988, quando, num conflito com um madeireiro, 14 índios Ticuna do em Ciências da Família. Meu trabalho final tratou da Educa-
desarmados morreram e 23 outros ficaram feridos. ção entre os povos índigenas Ticuna, Yanomami e Sioux.
Para levar seus problemas a público fora do Brasil não consegui Em 2007-2008 colaborei em duas exposições no Etnografisch
muito mais que algumas entrevistas na imprensa e na rádio. Após Museum de Antuérpia exclusivamente sobre o ritual da “moça no-
o massacre aderi ao recém-fundado grupo flamengo de apoio aos va” entre o povo Ticuna e no Musée International du Carnaval et du
povos indígenas, o KWIA. Escrevi alguns artigos para sua revista Masque (Binche) com uma parte sobre a festa da fertilidade entre
e, em parte porque houve pouco avanço no processo e julgamento os Ticuna. O catálogo da exposição de Binche, Basiques Instincts,
dos culpados e na demarcação oficial de sua área, decidi, em co- leva um artigo meu, Worecü et la démarcation du territoire – La fête
laboração com o KWIA, convidar Pedro para ir à Bélgica. Assim, de la Nouvelle Fille ou la fête de la fertilité chez les Indiens Ticuna,
ele poderia contar pessoalmente sua história à imprensa e buscar que trata da festa e também do papel da festa na luta pela terra.
apoio nas diversas organizações internacionais. Foi a primeira vez No quadro da Europalia.Brasil e da exposição Índios do Brasil
que Pedro veio à Europa. Nessa ocasião escrevi o livrinho Calha (2011) fiz, no Musée Royal d’Art et d’Histoire, duas conferências
Norte e os índios do Norte do Brasil – A problemática dos índios sobre os Ticuna: desde os primeiros contatos com o colonizador,
Yanomami, Tikuna e waimiri-atroari. (Série Inheemse Volkeren os barões da borracha, a luta, a festa… até os acontecimentos e
Vandaag t. 1, 1990, edição KWIA). desafios atuais para o povo Ticuna. O fio da meada nesta história
Em 1991 demarcaram-se oficialmente as duas principais áreas continua sendo o papel-chave de Pedro na luta pela terra e no que
dos Ticuna. Em 1993 fui convidado pelo Tropenmuseum (Museu lhe aconteceu depois da demarcação.
dos Trópicos) de Amsterdã para prepararmos juntos a exposição Ao longo dos 29 anos que trabalho com Pedro, tive desde o
Amazônia, que abriria em 1996. Esse projeto sobre a cultura Ti- início até hoje um vínculo muito íntimo e uma profunda amiza-
cuna focalizaria a festa da fertilidade. O Conselho Ticuna concor- de. Ele foi quem me iniciou e introduziu à vida, ao espírito e à
dou e apreciou a colaboração com o Tropenmuseum. Procurou-se, problemática dos Ticuna. Na medida do possível partilhei com
então, uma coleção representativa da cultura material, junto com ele todas as minhas iniciativas ou lhe comuniquei estas posterior-
a necessária documentação. Para os Ticuna, a mostra de objetos mente. Atualmente preparamos juntos um projeto sobre esculturas
seria uma excelente oportunidade para contar sua vida e luta. No de madeira e frutas.
final de 1996 chega uma delegação Ticuna a Amsterdã e Pedro Seja como for, minha estada no Brasil foi determinante para
abre oficialmente a exposição. o resto da minha vida. Levanto-me e deito literalmente no Brasil!
De repente, feita a demarcação, não havia mais interesses co- Houve momentos em que duvidava, sentia um amor infinito ou
muns ou ameaças. A união, antes tão importante na luta pela terra, uma dor profunda… “o que pelo amor de Deus venho eu ainda
parece perdida. Surgem sérios conflitos e divisões na comunida- fazer aqui?” Mas recebia então um novo encargo ou o chamado
de Ticuna. Até os próprios pesquisadores se separaram contra sua da selva, que se apoderava tanto de mim que simplesmente ia
vontade em dois campos. Reinava a suspeita e tornou-se difícil comprar uma passagem na direção da Amazônia. Não há como
trabalhar nas comunidades Ticuna. escapar à selva! É muito mais do que uma coleção de árvores, um
Porém, não desisti de minha pesquisa de campo. Continuei potencial econômico, turístico ou ecológico. Sobre esta vivência
seguindo os desenvolvimentos e as mudanças políticas dentro da pode-se comunicar com grande facilidade com os índios.
comunidade Ticuna e escrevendo artigos para a revista Inheemse O meu encontro com Pedro não foi uma surpresa para ele,
Volkeren do KWIA. Voltei a estudar e obtive, em 2002, bacharela- na sua juventude já sonhava que iria à Europa. Na minha última

139
parte 4 – colaboração científica

viagem (março de 2013), dizia no primeiro contato: já estou espe- colaborar durante tantos anos e até agora em absoluta confiança
rando um ano por você… Sobretudo é uma honra enorme poder com um dos mais importantes líderes indígenas brasileiros.

As pesquisas sobre o patrimônio linguístico africano


Jacky Maniacky e Jean-Pierre Angenot

O forte impacto cultural do escravismo transatlântico se faz


sentir em grande parte do continente americano e, particu-
larmente, na América Latina, no patrimônio linguístico. O Brasil
dônia e do Museu Real da África Central, que conseguiu em re-
ferência aos bantuísmos estabelecer um banco de dados com hoje
quase 5.000 entradas! Uma das próximas etapas desta colaboração
é de longe a região que oferece o maior número de testemunhos será de afinar as etimologias propostas até agora para o vocábulo
através de numerosos africanismos que participam na sua varieda- brasileiro de origem africana.
de da língua portuguesa. Paralelamente a estas pesquisas, Jacky Maniacky dá cursos de
A Bélgica é implicada em primeiro plano, através de dois lin- linguística africana no programa de mestrado do campus de Gua-
guistas, nas pesquisas sobre estes africanismos e, principalmente, jará-Mirim como professor visitante. Além destes pesquisadores
nos bantuísmos (palavras de origem bantu, um conjunto agru- mencionados e ligados à Bélgica, outros linguistas, brasileiros des-
pando mais de 500 idiomas falados na África Central, Oriental e ta vez, se reuniram a este projeto de estudos africanos, tanto dou-
Austral): Jacky Maniacky, franco-congolês, responsável pelo servi- tores como doutorandos, que lhes oferece pesquisas de terreno em
ço de linguística do Museu Real da África Central (Musée Royal Angola e na Namíbia e visitas de estudos regulares no serviço de
de l’Afrique Centrale) em Tervuren, e Jean-Pierre Angenot, belga linguística de Tervuren. O objetivo a médio prazo é dispor, gra-
naturalizado brasileiro, professor emérito de linguística na Uni- ças à esta colaboração belgo-brasileira, de vários especialistas nos
versidade Federal de Rondônia. idiomas africanos baseados na Universidade Federal de Rondônia
Jacky Maniacky tem, além de suas raízes e infância no Congo- e beneficiados da expertise reconhecida de Tervuren em matéria
-Brazzaville, desenvolvido, desde 1997, em suas pesquisas de DEA de linguística histórico-comparativa africana.
e de doutoramento, uma expertise das línguas faladas nas regiões Quando se fala de patrimônio linguístico africano no Brasil,
de Angola e do Congo, situadas em face do Brasil e fortemente trata-se principalmente de palavras de origem africana que se en-
implicadas no tráfico transatlântico. Aprofundando seus conheci- contram na variedade do português falado no Brasil, seja na lín-
mentos da região nas pesquisas pós-doutorais, surgiu o desejo de gua corrente, na gíria ou ainda em contextos particulares como
investigar o patrimônio legado do lado brasileiro. quilombos e cerimônias religiosas. Por exemplo, caçula, bunda,
Decênios antes (1974), Jean-Pierre Angenot, na época pesqui- moleque, fubá... Trata-se igualmente de influências gramaticais,
sador no Congo (antigo Zaire), levantou já um primeiro repertório ainda que essas sejam mais difíceis de estudar.
dos bantuísmos no Brasil. Sua chegada neste país, há mais de 30 Saber mais sobre os idiomas africanos permite aperfeiçoar os
anos, permitiu a criação de um curso de linguística na Universi- conhecimentos etimológicos do português do Brasil. Várias en-
dade Federal da Bahia. Depois de passar por Florianópolis, abriu tradas dos dicionários de referência como o Aurélio ou o Houaiss
uma fileira de estudos africanos no campus de Guajará-Mirim, ainda estão erradas. Mas estas pesquisas linguísticas contribuem
Universidade Federal de Rondônia, na fronteira com a Bolívia. também para melhorar o conhecimento da história do Brasil, no-
Seu programa de mestrado é até hoje o único na América Latina tadamente em matéria cultural.
dedicado à linguística africana.
Em 2008, uma visita do professor Angenot a Tervuren ofere- Referências
ceu a oportunidade aos dois pesquisadores de se encontrarem e de Jean-Pierre Angenot, Jean-Pierre Jacquemin e Jacques L. Vincke. Répertoire de vocables
unir seus recursos para aprofundar, por um lado, a pesquisa sobre brésiliens d’origine africaine. Lubumbashi, Collection Travaux et Documents du
o patrimônio linguístico bantu no Brasil e, por outro, de iniciar CELTA, 1974.
Jean-Pierre Angenot e Geralda de Lima V. Angenot. Dicionário de bantuísmos brasileiros.
pesquisas sobre os numerosos idiomas bantu ainda não documen- Manuscrito. Porto Velho, Universidade de Rondônia.
tados, notadamente de Angola. Jacky Maniacky. Thèmes régionaux Bantu et africanismes brésiliens. Margarida Petter e
Assim existe, desde 2009, através destes dois pesquisadores, Ronald Beline Mendes (eds.), Proceedings of the Special World Congress of African
Linguistics: Exploring the African Language Connection in the Americas, São Paulo,
uma colaboração intensiva entre a Universidade Federal de Ron- Humanitas, 2009, p. 153-165.

140
ensino e pesquisa

Os belgas nas origens da Escola Superior


de Agricultura “Luiz de Queiroz”
Luciana Pelaes Mascaro

E m 1889 Luiz Vicente de Souza Queiroz arrematou a Fazenda


São João da Montanha, com 319 hectares e distante três qui-
lômetros da cidade de Piracicaba (SP). Alguns anos depois doou
de nível universitário, lá estudaram, entre 1863 e 1914, pelo me-
nos 38 brasileiros, dos quais sete se formaram engenheiros agrôno-
mos. Um deles, José Fortunato de Camargo – formado em agro-
a fazenda ao governo do Estado de São Paulo, como estratégia nomia em Gembloux – e proprietário da Fazenda Aterradinho,
para alcançar seu sonho de ali instalar uma escola agrícola, o que município de Angatuba (SP), “contratou em 1899 os agrônomos Lé-
começou a ser realizado a partir de 1893. on Renaud e Hernan Vande Venne para instalar uma leiteria indus-
A futura escola seria formada com a participação maciça de trial e uma fábrica de margarina [manteiga]” (Stols, 1987, p. 373).
profissionais estrangeiros e vale ressaltar as relações estabelecidas Ainda em 1893, chegava ao Brasil o engenheiro agrônomo
com o Institut Agricole de Gembloux, na Bélgica. Escola superior belga Leon Alphonse Morimont, formado pelo conhecido Ins-

Fachada da Escola Agrícola “Luiz de Queiroz” que se encontra no livro Piracicaba e sua Escola Agrícola, de Mario de Sampaio Ferraz, publicado em Bruxelas, 1911.

141
parte 4 – colaboração científica

Grupo de professores e assistentes da Escola Agrícola “Luiz de Queiroz” em Imagem do salão da Congregação da Escola Agrícola “Luiz de Queiroz”, com o
fotografia no livro Piracicaba e sua Escola Agrícola, 1911. diretor Dr. Clinton Smith e os professores Vincent, Puttemans, Charropin, Arié,
Mendes, Gagezou, Dias, Sanders e Ribeiro, que se encontra no livro Piracicaba e
titut Agricole de Gembloux. Figura de renome na sua profissão, sua Escola Agrícola, 1911.
tinha larga experiência profissional obtida em várias estadias pela
França, Espanha, Itália, por Portugal e África. Foi encarregado de Les progrès de l’élevage dans l’Etat de Sao Paulo (Brésil) (A indús-
elaborar o projeto para a escola idealizada por Luiz de Queiroz. tria pastoril no Estado de São Paulo).
Em dezembro desse mesmo ano, Morimont foi nomeado diretor Jean Baptiste Michel, engenheiro agrícola igualmente vindo
da nascente escola por Jorge Tibiriçá Piratininga, então Secretário de Gembloux, foi professor de Agricultura (antiga 4ª Cadeira) e
da Agricultura, Negócios, Comércio e Obras Públicas do Estado sucedido por Hubert Puttemans, engenheiro agrônomo belga, que
de São Paulo. Permaneceu em seu cargo na Fazenda São João da tinha sido um dos primeiros professores da Escola Politécnica de
Montanha por pouco tempo, apenas até 1896 (Perecin, 2004, p. São Paulo (Perecin, 2004, p. 301 e 349). Publicou em 1915, na
135), devido a divergências políticas com o presidente recém-elei- cidade de Nivelles (Bélgica), o livro Agricultura Geral Especial-
to Campos Sales. Consta que havia se dedicado profundamente ao mente Apropriada ao Brasil.
projeto da escola de Piracicaba e deixou o Brasil muito ressentido Além desses, também foi contratado Nicolau Athanassof,
e doente, tendo morrido no mar, durante seu retorno à Bélgica agrônomo búlgaro que havia estudado no Instituto de Gembloux,
(Perecin, entrevista, 2004). e que assumiu a 5ª Cadeira, mais tarde dividida em zootecnia –
Morimont desempenhou papel especialmente importante na a cargo de Athanassof – e zoologia e higiene. Publicou diversos
elaboração dos moldes da escola que ali surgia. Implantou um mo- livros sobre criação de gado e suínos, dentre os quais se destaca
delo prático-teórico equilibrado, baseado no sistema do Instituto o manual do criador Os Bovinos, publicado em São Paulo, em
de Gembloux, mas que, afinal, “não deixou de ser um produto do 1922, que traz figuras de exemplares Flamengos Vermelhos pre-
academicismo europeu, para atender às necessidades de moderniza- miados em 1911 e 1912 nas exposições de gado em Ipre (Bélgi-
ção do setor primário da economia, a ser testado no Estado de São ca). Depois de sua passagem por Piracicaba, foi contratado como
Paulo” (Perecin, 2004, p. 155-157). diretor do Posto Zootécnico Federal de Pinheiros (RJ), substituin-
Quando Carlos Botelho assumiu a Secretaria da Agricultura, do outro belga, Hector Raquet, na função de diretor. (Ver texto
no início do século XX, continuou a contratação de profissionais “bovinotecnia”)
estrangeiros – não sem algumas reações xenófobas (Perecin, 2004, Em 1911, Mario de Sampaio Ferraz editou em Bruxelas um
p. 301) – para a escola agrícola de Piracicaba, dentre os quais vá- livro muito bem cuidado e intitulado Piracicaba e sua Escola Agrí-
rios de nacionalidade belga ou formados na Bélgica, como o co- cola. Nele consta a relação de professores e de seus assistentes, o
nhecido Arsène Puttemans, arquiteto paisagista, que foi professor período de matrícula, o conteúdo do curso, além de fotos de inte-
de paisagismo e horticultura (ver nota em ‘Arquitetura’), e outros resse: dos professores, assistentes e alunos – em seus laboratórios
abaixo relacionados. e em trabalho de campo – e do famoso prédio central, projeto de
Louis Misson, engenheiro agrônomo formado em Gembloux, José Van Humbeeck, situado em frente ao jardim projetado por
assumiu a 4ª Cadeira, mas foi logo requisitado pela Secretaria da Arsène Puttemans.
Agricultura por seu prestígio como cientista (Perecin, 2004, p. A presença desses técnicos e profissionais demonstram, por
293) e publicou, em Bruxelas, em 1907 e outras edições, o livro um lado, que o período era de renovação para a produção rural

142
ensino e pesquisa

Trabalho de mensuração de um cavalo pela lente do dr. Vincent na Escola Agrícola “Luiz de Queiroz”, fotografia publicada em Piracicaba e sua Escola Agrícola, 1911.

brasileira, especialmente na região paulista que começava a vis- de São Paulo, p. 3.368, 1931). Ocupou as cátedras de Patologia e
lumbrar o possível declínio da produção cafeeira (confirmado a Clínicas Cirúrgica e Obstetrícia, de Patologia e Clínica Médicas,
partir de 1929). Por outro, se evidencia o apelo dos governantes ao Indústria e Inspeção de Produtos de Origem Animal. Consta que
conhecimento estrangeiro do setor, no quadro do qual a Bélgica produziu importante trabalho sobre patologia do aparelho loco-
tinha excelente reputação. Assim, esse país viria a contribuir de motor em equinos e foi um dos maiores cirurgiões veterinários do
forma relevante, ao lado da França e dos Estados Unidos, para a Brasil (Matera, 1963-64).
formação e o desenvolvimento da Escola Superior de Agricultura
“Luiz de Queiroz”. Referências
Em tempo, para complementar a atuação de profissionais bel- D.O. do Estado de São Paulo, Imprensa Official, n. 99, p. 3.368, sexta-feira, 1 de maio
gas no quadro do ensino relativo à agropecuária, é preciso citar de 1931.
René Straunard, formado pela Escola de Medicina Veterinária Matera, Ernesto Antônio. Professor René Straunard. Revista da Faculdade de Medicina
Veterinária de São Paulo, Vol. 7, fasc. 1, 1963-64.
de Cureghem, Bruxelas, que chegou ao Brasil pela primeira vez Misson, Louis. Les progrès de l’élevage dans l’Etat de Sao Paulo (Brésil). Bruxelles: So-
em 1913, tendo ido para Catalão, em Goiás. Voltou ao Brasil em ciété anonyme, M. Weissenbruch, 1912.
1920, quando foi contratado como Inspetor Veterinário da Dire- Perecin, Marly Therezinha Germano. Entrevista à Rádio Educadora de Piracicaba AM
1060 Khertz em 20/11/2004. Disponível em: <http://www.teleresponde.com/PERE-
toria de Indústria Animal e trabalhou no Jóquei Clube de São CIN.HTM>. Acesso em: 30 nov. 2013.
Paulo. A partir de 1931 começou a atuar como professor no Ins- Perecin, Marly Therezinha Germano. Os Passos do Saber: a Escola Agrícola Prática
tituto de Veterinária (criado em 1919 e atual Faculdade de Me- “Luiz de Queiroz”. São Paulo: Edusp, 2004.
Stols, Eddy. Penetração econômica, assistência técnica e “brain drain”: aspectos da emigra-
dicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo), ção belga para a América Latina por volta de 1900. Jahrbuch für Geschichte Lateina-
quando assumiu interinamente o cargo de professor catedrático merikas = Anuario de História de América Latina (JbLA), n. 13, 1976 (Ejemplar dedi-
da Cadeira de Clínica e Obstetrícia do Instituto (D.O. do Estado cado a: Emigración europea a América Latina durante los siglos XIX y XX), p. 361-385.

143
parte 4 – colaboração científica

A cooperação entre o Institut International


de Bibliographie e a Biblioteca Nacional
Jacques Gillen

P ara Paul Otlet (1868-1944) e Henri La Fontaine (1854-1943,


Prêmio Nobel da Paz em 1913), os dois fundadores do Office
International de Bibliographie (OIB) e do Institut International de
A primeira missão do OIB consiste em levantar o Répertoire
Bibliographique Universel (RBU, destinado a reunir as referências
de todas as obras publicadas no mundo e baseado no sistema da
Bibliographie (IIB), a cooperação internacional é primordial. Con- Classification Décimale Universelle (CDU). Desde sua criação em
sideram-na como uma dimensão essencial da missão que assumiram Bruxelas, em 1895, uma cooperação internacional se instala, nota-
de providenciar ao mundo os instrumentos de acesso ao conheci- damente, sob a forma de intercâmbio de publicações e de fichas
mento. Além de oferecer possibilidades para estender seu campo de bibliográficas, em torno das associações científicas, oficinas biblio-
trabalho, ela permite, no seu espírito, favorecer a compreensão inter- gráficas e bibliotecas que participam no desenvolvimento do RBU
nacional. A paz aparece em filigrana do conjunto de seus projetos e da CDU. Na América Latina, o OIB dispõe de um embaixador
e as instituições criadas na sequência do OIB – tais como a Union na pessoa de Federico Birabén (1866-1929), promotor da CDU
des Associations Internationales (UAI) e o Musée International em e dos métodos recomendados pela OIB em seu país, a Argentina.
1910 –, acentuarão a dimensão internacionalista do conjunto que Ele atuou igualmente no Brasil, no Peru e no Chile, onde contri-
formarão a partir de 1920 o Palácio Mundial ou Mundaneum. buiu com a criação de escritórios bibliográficos.

A sala-oficina do catálogo do Mundaneum.

144
ensino e pesquisa

Os primeiros contatos entre o OIB e a Biblioteca Nacional do aproximado de 16 milhões de fichas e a CDU se tornará o padrão
Rio parecem iniciar-se por volta de 1902. A partir dessa época, a em inúmeras bibliotecas do mundo inteiro.
Biblioteca Nacional do Rio envia publicações brasileiras ao OIB. Atualmente, o Mundaneum, instalado em Mons (Bélgica)
Por volta de 1910-1911, seu diretor, Manuel Cícero Peregrino desde 1993, é um centro de arquivos e um espaço de exposições
da Silva (1866-1956), aproveita sua estada em Bruxelas para vi- temporárias. Conserva as coleções reunidas por seus fundadores
sitar o OIB e decide aplicar o sistema da CDU na Biblioteca do e sucessores (publicações, jornais, periódicos, cartazes, fichas, fo-
Rio e de introduzir o RBU, do qual ele encomenda uma cópia tografias, cartões postais…), como também os papeis pessoais de
completa. Trata-se da primeira encomenda tão extensa ao OIB. Paul Otlet e de Henri La Fontaine e os fundos de arquivos tra-
O primeiro volume de 23 mil fichas é despachado em dezembro tando de três temáticas principais: o pacifismo, o anarquismo e o
de 1911 pelo intermediário de Manuel de Oliveira Lima (1867- feminismo.
1928), embaixador do Brasil na Bélgica. A colaboração se pro-
longa até 1914 e leva à criação de uma seção bibliográfica dentro Jacques Gillen, historiador do pacifismo e do movimento anarquista
da Biblioteca Nacional do Rio. Ela comporta várias remessas de na Bélgica, é diretor do Mundaneum em Mons.
fichas e a visita, em 1913, de Britto Galvão, funcionário dessa
mesma biblioteca, que vem a Bruxelas estudar a organização e o Referências
funcionamento do RBU. Le Mundaneum. Les archives de la connaissance. Mons, Impressions Nouvelles, 2008; Paul
Esta cooperação internacional foi decisiva para que primeiro o Otlet, fondateur du Mundaneum (1868-1944). Architecte du savoir, artisan de paix.
Bruxelas, Impressions Nouvelles, 2010; Henri La Fontaine, Prix Nobel de la paix en
OIB e em seguida o Mundaneum pudessem desenvolver o RBU e 1913. Un Belge épris de justice, Bruxelas, Mundaneum-Racine, 2012. Mundaneum,
a CDU de maneira tão considerável: o RBU atingirá um número Papéis pessoais de Paul Otlet, dossier numéroté 504 (PP PO 942).

O Instituto Real do Patrimônio Artístico


de Bruxelas e Barroco Mineiro
E r i k a B e n a t i R a b e l o e M y r i a m S e r c k - D e l wa i d e

O Instituto Real do Patrimônio Artístico de Bruxelas (IRPA),


antigo ACL (Archives Centrales Iconographiques d’Art et le
Laboratoire Central), surgiu oficialmente em 1948, ano em que
aceleraram-se durante o período da Segunda Guerra Mundial.
Estima-se que entre 1941 e 1945 mais de 160 mil fotografias foram
realizadas, e isto levando em conta o racionamento de gasolina,
tornou-se independente em nível administrativo do Museu Real do material fotográfico em geral e dos constantes bombardeios.
de Arte e História de Bruxelas. Entretanto, remontando no tempo, Esse acervo fotográfico foi de grande utilidade uma vez termi-
as atividades do IRPA se iniciaram em 1934, com a chegada de nada a guerra, pois serviu para uma avaliação precisa do estado
Paul Coremans (1908-1965) para os departamentos de documen- de conservação do patrimônio móvel e imóvel e para o desenvol-
tação e do laboratório de pesquisas físico-químicas do Museu Real. vimento de uma estratégia de recuperação. Algumas dessas foto-
Doutor em química, Paul Coremans implementou projetos de grafias são, em casos extremos, o único testemunho de objetos
restauração envolvendo os principais museus belgas. Desejando completamente destruídos pela guerra (Masschelein-Kleiner, p.
que seus departamentos crescessem cientificamente, direcionou 18). Todo esse material fotográfico é, ainda hoje, uma excelente
a conservação de obras de arte segundo uma metodologia cientí- base de informação para restauradores e pesquisadores em geral.
fica, baseada no estudo exaustivo de seus materiais constitutivos. Se por um lado a guerra engendrou a deterioração do patri-
Preocupado com a comunicação, criou uma rede de relações com mônio, por outro, e paradoxalmente, ela promulgou, nos anos se-
universidades da Europa, dos Estados Unidos e demais centros de guintes, o desenvolvimento de teorias relativas à sua recuperação.
conservação. O surgimento do IRPA é contemporâneo de insti- Os anos do pós-guerra foram vividos, em nível mundial, como um
tuições internacionais pioneiras, tais como o Courtauld Institute, período de reflexão, de avaliação e de procura de critérios na área
em Londres (1932), e o Istituto Centrale per il Restauro (ICR), do patrimônio. Sem dúvida, a experiência desse inventário, reali-
de Roma, criado por Cesare Brandi em 1939. zado em tempos difíceis, com uma equipe composta de artistas, de
Como diretor do IRPA, Coremans conciliou duas áreas distin- historiadores de arte e fotógrafos, influenciou o desenvolvimento
tas, mas complementares: a documentação e a análise científica. de uma prática baseada na interdisciplinaridade, pedra angular
Deu início a uma vasta campanha de inventário fotográfico do do trabalho do IRPA.
patrimônio da Bélgica, que, apesar de ser um país pequeno, con- No nível nacional, o IRPA apoiou a criação do Centro Na-
centra uma riqueza excepcional. Essas campanhas de inventário cional de Pesquisas ‘Primitifs flamands’ (1949), cujos objetivos

145
parte 4 – colaboração científica

eram constituir um inventário, um arquivo fotográfico e o estudo


da produção de pintura do século XV nos antigos países baixos
meridionais (atual território belga). No cenário internacional, o
IRPA participou de momentos históricos, como da criação do
International Council of Museums (ICOM) em 1946, do Inter-
national Institute for Conservation of Historic and Artistic Works
(IIC) em 1950, do International Centre for the Study of the Pre-
servation and Restoration of Cultural Property (ICCROM) em
1959 e ainda e do International Council on Monuments and
Sites (ICOMOS) em 1964.
Em 1957, o projeto de interdisciplinaridade idealizado por Co-
remans é oficializado e surge a atual denominação: Institut Royal
du Patrimoine Artistique/Koninklijk Instituut voor het Kunst­
patrimonium. Historiadores de arte, restauradores, químicos, físi-
cos trabalham juntos para o estudo, o inventário e a conservação
do patrimônio artístico. O projeto do edifício independente com
8.700 m2, separando fisicamente cada área de trabalho, foi lança-
do e a pedra fundamental foi posta em 9 de maio de 1959 (Mass-
chelein-Kleiner, p. 25). Em 1963, a química Liliane Masschelein
-Kleiner integra a equipe do laboratório, dedicando-se às análises
dos materiais orgânicos, até então difíceis de serem identificados
pela microscopia e pela microquímica. Os laboratórios adquiri-
ram, a partir da década de 60, um equipamento extremamente
moderno para a realização de exames científicos.
Paul Coremans, Jair Afonso Inácio e Fernando Barreto em Ouro Preto em 1964.
Formação e estágio no IRPA

A partir de 1949, o IRPA começou seu programa de estágio em Antônio Cruz Souza (MG), Marcos Cézar de Sena Hill (RJ), Ka-
seus ateliers de restauração. Coremans, extremamente visionário, thia Berbert Sant’Ana (BA), Beatriz Gonçalves Gaede (MG), Eri-
via sua instituição como um verdadeiro centro de formação. En- ka Benatti Rabelo (MG), Erika Santos (RJ), Karen Barbosa (SP).
quanto conselheiro da United Nations Educational, Scientific and O primeiro estagiário brasileiro (1961-1962) viveu uma época
Cultural Organization (Unesco), visitou vários países e observou importante da história do IRPA, que culminou com a transferên-
que havia urgência em capacitar os recentes centros de conser- cia dos ateliers, dos laboratórios e dos arquivos para o novo pré-
vação surgidos pelo mundo inteiro com funcionários formados dio, inaugurado em dezembro de 1962. Jair Inácio não chegou a
segundo uma metodologia científica adequada. trabalhar nos novos locais, pois seu estágio terminou três meses
Quando o IRPA mudou-se para o novo prédio em outubro de antes. O percurso profissional de Jair é típico de sua época: sem
1962, o estágio tornou-se um curso de pós-graduação em parceria formação acadêmica, ele foi admitido no Sphan (orgão que te-
com universidades belgas (Ceulemans, p. 208), programa que du- ve variações de nome e siglas desde sua criação: Dphan, Sphan,
rou somente três anos, mas que ganhou reputação internacional. IBPC e atualmente Iphan) devido a seu talento como pintor na
Entre 1960 e 1970, 89 estagiários, entre estrangeiros e belgas, pas- cidade de Ouro Preto (MG) e graças ao mecenato da Fundação
saram pelo IRPA. Após o falecimento de Paul Coremans (1965) a Rockefeller, de Nova York, pôde vir estudar na Europa. Nos ar-
pós-graduação voltou a ser um estágio de aperfeiçoamento, mais quivos do IRPA encontram-se cartas de recomendação elogiosas a
modesto, mas mantendo os objetivos iniciais centrado no estudo Jair da parte de Rodrigo Mello Franco Andrade, primeiro diretor
científico das obras de arte. do Sphan e pioneiro incontestável da recuperação patrimonial
no Brasil, e de Edson Motta, restaurador, funcionário do Sphan
Estagiários brasileiros e professor universitário no Rio de Janeiro.
Nessa época, os restauradores eram ainda polivalentes, traba-
Em 64 anos de existência, o IRPA recebeu 14 estagiários do lhavam objetos diversos. Jair Inácio participou da restauração da
Brasil, procedentes dos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio ‘Descida da Cruz’, pintura de Rubens conservada na Catedral de
de Janeiro, Pernambuco e Bahia: Jair Afonso Inácio (MG), Fernan- Antuérpia, sob a direção de Georges Messens. Foi contemporâ-
do Barreto (PE), Regina Costa Pinto Dias Moreira (BA), Frances- neo de Agnes Grafin Ballestrem, formada no Landesmuseum, de
ca Karolyi (SP), Liana Gomes Silveira (BA), Claudina Maria Du- Bonn, Alemanha. Agnes tornaria-se responsável pelo atelier de
tra Moresi (MG), Silvio Luiz Rocha Vianna Oliveira (MG), Luiz restauração de escultura do IRPA, em seguida responsável pelo

146
ensino e pesquisa

Estagiários do Institut Royal du Patrimoine Artistique, 1961-1962.

Landesmuseum e diretora do Centraal Laboratorium voor Onder- em Belas Artes e aprendizado em ateliers europeus. Ou seja, já há
zoek van Voorwerpen van Kunst en Wetenschap, em Amsterdã. uma especialização entre as diferentes áreas. Regina Costa Pinto
Durante seu estágio, Coremans organizou visitas profissionais Dias Moreira, estagiária em 1970/1971 no atelier de pintura, tinha
a fim de que Jair Inácio pudesse usufruir ao máximo de sua expe- formação de três anos no Instituto de Conservación y Restauración
riência europeia. Entre os meses de abril e maio de 1962, o esta- de Bienes Culturales de Madri, criado em 1961 sob o incentivo da
giário visitou o Museé National Suisse de Zurich, os ateliers do Unesco e particularmente de Paul Coremans. Regina tornar-se-ia
Musée du Louvre sob a direção de Madeleine Hours e o Instituto referência na França onde durante mais de duas décadas esteve
para o Exame e Restauro das Obras de Arte de Lisboa. Antes de a cargo de restaurações de obras-primas conservadas no Museu
retornar ao Brasil visitou a Rockefeller Foundation em Nova York. do Louvre. Recentemente colaborou com restaurações no Masp,
Paul Coremans viajou ao Brasil em 1964 como conselheiro da de São Paulo. Francesca Karolyi estagiou no atelier de escultura
Unesco. Visitou o Rio de Janeiro e as cidades históricas de Minas policromada em 1971/1973. Em seguida, trabalhou no IRPA e
Gerais e Pernambuco. Nessa ocasião conheceu Fernando Barreto, na Alemanha (Munique). Liana Gomes Silveira era restauradora
professor da Universidade de Pernambuco e restaurador de pintura do Museu de Arte Sacra de Salvador quando veio estagiar no IR-
do, então, Dphan. Fernando viria ao atelier de pintura do IRPA em PA em 1976/1977. Em seu currículo constava um curso na Real
1964/1965 com uma bolsa concedida pelo governo belga. Academia de Bellas Artes de San Fernando, em Madri. Durante
Na década de 70 o quadro muda um pouco e os estagiários bra- seu estágio no atelier de esculturas policromadas, sob a direção de
sileiros que chegam ao IRPA vêm com uma formação universitária Myriam Serck-Dewaide, dedicou-se ao estudo da substituição da

147
parte 4 – colaboração científica

reintegração à base de pintura a óleo por resinas sintéticas testa- tação dos órgãos nacionais de preservação do patrimônio cultural
das em envelhecimento artificial, bem como a prática de remoção no Brasil e na América Latina.
mecânica de repinturas. Nas décadas seguintes essa relação continua, mas de outra for-
No Brasil dos anos 80 surgem cursos de especialização en con- ma. Ela caracteriza-se por uma troca de conhecimentos. Vemos a
servação e restauração de bens móveis. Em 1980, o Centro de participação de belgas em cursos e congressos no Cecor-UFMG
Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis da Univer- e no Centro de Estudos da Imaginária Brasileira (Ceib), criado
sidade Federal de Minas Gerais (Cecor) e, no mesmo ano, outro pelas professoras Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho, funda-
curso de especialização, na Universidade Federal da Bahia. A es- dora do Cecor-UFMG, e Myriam Ribeiro de Oliveira, doutora-
tagiária Claudina Maria Dutra Moresi, química do Cecor-UFMG da pela Universidade de Louvain-La-Neuve, professora da UFRJ
frequentou o IRPA em 1986/1987, juntamente com seu marido, e pesquisadora do Iphan. Em 1985, acontece o seminário sobre
Silvio Luiz Rocha Vianna Oliveira (atelier de pintura). Claudi- adesivos naturais, vernizes e utilização de solventes em restau-
na desenvolveu um trabalho no Cecor-UFMG baseado em sua ração, ministrado por Liliane Masschelein-Kleiner, do IRPA, e
experiência na Bélgica. Voltou ao IRPA em 1991 para uma pes- coordenado por Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho, no Ce-
quisa específica. Silvio Luiz Rocha Vianna Oliveira foi professor cor-UFMG. Em 1989, realiza-se o seminário Taller de actuali-
da Fundação de Arte de Ouro Preto. Luiz Antônio Cruz Souza, zación para América Latina: escultura policromada, organizado
químico do Cecor-UFMG, esteve no IRPA em 1987/1988 e em pelo Getty, Programme des nations unies pour le développement
seguida estagiou no Getty Conservation Institute, em Los Ange- (PNUD), Unesco e UFMG, também no Cecor. Participaram des-
les, EUA. Luiz Antônio é atualmente professor do Cecor-UFMG te seminário o belga Jean-Albert Glatgny, restaurador autônomo
e representante do Brasil no conselho do Iccrom. Marcos Cézar formado no IRPA, Myriam Serck-Dewaide, Monique Péquignot
de Sena Hill, diplomado do Cecor-UFMG, estagiou no atelier de e Agnes Grafin Ballestrem.
escultura policromada em 1987/1988, sob a direção de Myriam O I Congresso Internacional do Ceib em Mariana (1998),
Serck-Dewaide. Diplomou-se pela Universidade de Louvain-La contou com a participação do professor Ignace Vandevivere (1938-
-Neuve e é professor de História da Arte na Escola de Belas Artes -2004) da Universidade de Louvain-La-Neuve e diretor do Museu
(EBA-UFMG). Kathia Berbert Sant’Ana foi estagiária do atelier de de Louvain-La-Neuve.
pintura do IRPA em 1988/1989, sob direção de Nicole Goetghe- O III congresso do Ceib em São João Del Rei (2003) teve a
beur. Trabalhou no Museu de Arte Sacra de Salvador, na Bahia, participação de Myriam Serck-Dewaide, responsável pelo atelier
e no Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac). Beatriz de escultura policromada e em seguida diretora do IRPA. Ela tam-
Gonçalves Gaede estagiou no atelier de escultura policromada em bém publicou no Boletim do Ceib Breve história da evolução dos
1990/1991, sob a direção de Myriam Serck-Dewaide. Erika Benati tratamentos das esculturas.
Rabelo, diplomada pelo Cecor-UFMG, estagiou no atelier de es- O IV congresso do Ceib em São João Del Rei (2005) contou
cultura policromada em 1992/1993. Domiciliou-se na Bélgica e com a participação de Michel Lefftz, atual professor da Fundep
colabora com o IRPA desde 1997, onde foi responsável por vários (Facultés Universitaires Notre-Dame de la Paix), de Namur. Sua
projetos de restauração. Realizou pesquisas e publicações sobre a conferência foi publicada na revista do Ceib, Imagem Brasileira,
escultura barroca na Bélgica. Erika Santos estagiou no atelier de com o título “Análises morfológicas dos drapeados na escultura
escultura policramada em 2007/2008. Domiciliou-se na Bélgica portuguesa e brasileira. Método e vocabulário”.
e estudou na Artesis Hogeschool de Antuérpia. E Karen Barbosa,
diplomada pelo Cecor-UFMG, estagiou no atelier de pintura em Myriam Serck-Dewaide, responsável pelo atelier de esculturas poli-
2010/2011. Karen atualmente é coordenadora da área de conser- cromadas do IRPA (1973-1999); Responsável pelo Departamento de
vação e restauração do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Conservação do IRPA (1999-2002); Diretora do IRPA (2003-2011);
co-autora de Les techniques utilisées dans l’art baroque religieux des
Considerações finais XVIIème et XVIIIème siècles au Portugal en Espagne et en Belgique, dans
Policromia. A esculptura  policromada religiosa dos séculos XVII e
O relatório de Paul Coremans de sua missão ao Brasil e à XVIII. Actas do Congresso Internacional Policromia em 2002, Lis-
América Latina como conselheiro da Unesco em 1964 é um do- boa, IPCR, 2004, p. 119-157, e autora de ‘Les techniques utilisées
cumento interessante. Além de descrever o que viu no Brasil e dans l’art baroque religieux des XVIIème et XVIIIème siècles au Portugal
sugerir medidas protetoras para os sítios históricos visitados, ele en Espagne et en Belgique’, Policromia. A esculptura  policromada
analisa em profundidade o funcionamento do antigo Dphan. Ha- religiosa dos séculos XVII e XVIII. Actas do Congresso Internacional
via, nos anos 60, uma dependência do Brasil, nos níveis teórico e Policromia em 2002, Lisboa, IPCR, 2004, p. 119-157, e ‘Breve história
financeiro (bolsas de estudo), em relação aos países onde a estru- da evolução dos tratamentos das esculturas’, Boletim do Ceib, Belo
tura patrimonial estava mais organizada. A relação belgo-brasileira Horizonte, vol. 9, n. 31, juillet 2005.
desse período inscreve-se nesse âmbito. Observa-se a dependência
internacional para os assuntos patrimoniais do Brasil. O IRPA e a Erika Benati Rabelo, Master em Conservação Preventiva (Paris I-
Unesco forneceram recursos materiais e humanos para a capaci- -Sorbonne), Restauradora do IRPA em Bruxelas; autora de ‘Les imita-

148
ensino e pesquisa

tions de marbre dans le baroque en Belgique’, Policromia. A Escultura Referências


Policromada Religiosa dos Séculos xvii e xviii. Actas do Congresso Ceulemans, C. Historiek van de stage,  Bulletin de l’Institut royal du Patrimoine artis-
Internacional Policromia em 2002, Lisboa, IPCR, 2004, p. 95-102, tique, 27 (1996/1998), Bruxelles, 2000, p. 208.
e ‘L’Ange Gardien et la Sainte Hélène de Cornelis Vander Veken Masschelein-Kleiner, L. Les cinquante ans de l’IRPA, Bulletin de l’Institut royal
du Patrimoine artistique, 27 (1996/1998), Bruxelles, 2000, p. 18 e 25.
(1666-1740). Analyses stylistique, technique et matérielle, traitement Archives KIK/IRPA – Bruxelas.
de conservation’, Bulletin de l’IRPA, 31, 2004/05 (2006).

A cooperação acadêmica, científica e técnica entre Bélgica e Brasil


Claude Misson

A s relações entre o Reino da Bélgica e a República Federativa


do Brasil sempre foram marcadas pelo respeito, pela amizade
e pela cooperação.
encontros. Esse acordo prevê, além disso, o desenvolvimento da
colaboração nos domínios das biociências, da agroindústria, da
engenharia mecânica, do transporte e da logística e, por último,
Após a Grande Guerra, em que o Brasil, neutro, defendeu a da aeronáutica e da espacial.
nossa integridade territorial, e a visita de Estado dos nossos So- Ainda em 2009, as visitas à Bélgica de representantes da Em-
beranos em 1920, sendo a primeira de um Rei e uma Rainha ao presa Brasileira de Pesquisa Agropecuária-Embrapa e de uma
Brasil republicano, deu-se um impulso que se traduziu por um importante delegação do Foro das Assessorias das Universidades
crescimento considerável dos nossos investimentos e das nossas Brasileiras para Assuntos Internacionais-Faubai ampliaram o co-
trocas comerciais. Se, hoje, estas trocas não correspondem ainda nhecimento mútuo e aceleraram a aproximação entre instituições
inteiramente ao potencial dos nossos dois países, convém observar dos nossos países.
que, de acordo com o Banco Central, a Bélgica situa-se entre os O interesse manifestado pelas duas partes para uma colabo-
mais importantes investidores no Brasil. ração mais intensa induziu as principais universidades belgas a
participar – fato inédito – de uma missão econômica presidida por
A cooperação acadêmica e científica S. A. R., o Príncipe Philippe (2010). Essa “estreia” foi valorizada
pelos encontros e seminários organizados em São Paulo, Rio de
Nestes últimos anos, foram nos domínios acadêmico e cientí- Janeiro, Belo Horizonte e Brasília; além disso, demonstrou a von-
fico que progressos essenciais foram registrados. A Bélgica atribui, tade das nossas universidades de reforçar as relações transatlânti-
com efeito, uma grande importância à cooperação com o Brasil cas. Sobretudo, sublinhou a relação necessária que deveria existir
nestes domínios e diferentes iniciativas foram tomadas para inten- entre a atividade acadêmica, a pesquisa e a economia.
sificar e reforçar as nossas relações. Procedendo de uma mesma lógica, esforços foram envidados
Nesse contexto, foram organizadas as primeiras visitas de tra- para estimular cooperações em setores de alta tecnologia. As pri-
balho dos presidentes do Conselho Nacional de Desenvolvimento meiras visitas à Bélgica do presidente da Agência Espacial Brasi-
Científico e Tecnológico-CNPq e da Coordenação de Aperfeiço- leira-AEB e em seguida do presidente da Comissão Nacional de
amento de Pessoal de Nível Superior-Capes. Os encontros com Energia Nuclear-CNEN permitiram constatar o interesse para
as autoridades belgas permitiram aos parceiros brasileiros desen- colaborações entre cientistas belgas e brasileiros nos domínios da
volver as principais linhas de ação para o futuro e conduziram à pesquisa espacial e da pesquisa nuclear.
assinatura, em 2009, dos acordos de cooperação entre o CNPq, Negociações entre a AEB e o Centre Spatial de Liège e, poste-
por um lado, e os seus homólogos belgas (FWO e FNRS-FRS), por riormente, entre a CNEN e o Centre d’Etudes Nucléaires (SCK-
outro lado. Estes acordos preveem, entre outras formas de colabo- -CEN) conduziram, primeiro, a um acordo sobre um programa
ração, a implementação de projetos comuns de I+D, o intercâm- de cooperação no domínio espacial (2009). Este cobre áreas como
bio de pesquisadores e de cientistas, a organização de seminários educação e formação nas ciências e técnicas espaciais, técnicas de
e outros encontros, assim como publicações científicas conjuntas. observação da Terra, concepção de instrumentos espaciais, testes
Foram seguidos, no mesmo ano, da assinatura de um acor- de instrumentos, cargas úteis e satélites, “nanossatélites estudan-
do entre a Capes e a Wallonie-Bruxelles International, que visa tes”, técnicas ópticas (metrologia, revestimentos ópticos, estrutura-
igualmente o financiamento e a implementação de um progra- ção de superfícies, concentração solar…) e tecnologias específicas
ma conjunto de intercâmbio de professores, de pesquisadores e ligadas ao espacial.
de estudantes entre as instituições de ensino superior e de pes- Em matéria de pesquisa nuclear, os esforços foram coroados
quisa. Para efetivar a cooperação, estão previstos instrumentos pela assinatura de um Memorando de Entendimento na presen-
como bolsas, projetos conjuntos de pesquisa e organização de ça de S. A. R., o Príncipe Philippe, quando de sua passagem por

149
parte 4 – colaboração científica

Brasília (maio de 2010). O texto aprovado estabelece as condições Center-APEC, merecia ser melhor estruturada. A fim de dar-lhe
para um programa de colaboração, a longo prazo, em domínios de um quadro formal e um caráter privilegiado, a Secretaria de Por-
pesquisa, como armazenamento de resíduos radiativos, dosimetria, tos assinava com o APEC – mais uma vez na presença de S. A.
corrosão, qualificação dos combustíveis, educação e formação e ir- R., o Príncipe Philippe – um acordo de cooperação técnica para
radiações. Uma missão anterior dos altos dirigentes do SCK-CEN a formação de pessoal e a troca de informações (maio de 2010).
ao Brasil (2011) detalhava as formas de colaboração nessas áreas. Esse acordo, renovado para um período de dois anos em julho de
A ação da Bélgica insere-se num quadro europeu mais amplo: 2011, permite a dezenas de especialistas familiarizarem-se com as
é neste contexto que deve ser colocada a nossa presença nas fei- técnicas modernas de gestão das operações portuárias mais diver-
ras Euro-Pós (2011) e Estude no Exterior (2012), que tinham por sas. Deveria, além disso, favorecer o desenvolvimento de investi-
objetivo apresentar aos estudantes universitários brasileiros uma mentos belgas no Brasil nesse setor.
larga gama de possibilidades de formação na Europa. À margem da visita oficial do Presidente Luis Inácio Lula
Diante destes sucessivos desenvolvimentos, não é, por conse- da Silva a Bruxelas (2009), os altos dirigentes do Ministério dos
guinte, surpreendente constatar que a Bélgica figure na primeira Transportes do Brasil efetuaram uma visita que lhes permitia
fila dos países parceiros quando do lançamento do ambicioso pro- estudar as técnicas e obras desenvolvidas na Bélgica para assegu-
grama brasileiro Ciência sem Fronteiras, que deve oferecer mais rar eficazmente o transporte de mercadorias por vias navegáveis.
de 100 mil bolsas em quatro anos a estudantes brasileiros que de- Começaram, então, negociações que levaram à conclusão de um
sejem completar sua formação em Ciências Exatas no estrangeiro. Protocolo de Intenções com os Governos regionais flamengo e va-
Este assunto foi abordado com detalhe, por ocasião da visita oficial lão (2011). Contemplava uma interação sobre, designadamente,
que a Presidente Dilma Rousseff realizou à Bélgica na inaugura- o Plano Diretor brasileiro de vias navegáveis, o projeto de canal
ção do festival Europalia Brasil (outubro de 2011). navegável, as construções, operação e manutenção das vias na-
O simpósio Belgium-Brasil Networking in Science, Technolo- vegáveis, os projetos de vias navegáveis ecologicamente corretas,
gy and Innovation for a Better Future, seguido de encontros entre o transporte multimodal. Foram igualmente previstos estágios de
os presidentes do FWO e do FNRS com o presidente do CNPq, formação e aperfeiçoamento de conhecimentos no domínio dos
entre o presidente da Capes e o representante do CNPq com re- transportes por vias navegáveis.
presentantes de todas as universidades belgas e, por último, um Para consolidar essas novas relações, o segundo Seminário Bel-
encontro entre as universidades e centros de investigação belgas go-Brasileiro de Vias Navegáveis foi organizado em Brasília, em
com delegações das associações Andifes e Abruem permitiram às abril de 2012.
duas partes discutir sobre as condições de futuros intercâmbios.
As negociações foram rapidamente iniciadas para tornar pos- Conclusão
sível, no princípio de 2012, a assinatura de acordos para o acolhi-
mento desses bolsistas na Bélgica. A sua progressiva implemen- Esperamos que estas diferentes iniciativas deem frutos e que
tação terá sido facilitada pelas conversações entre os Reitores de o movimento não somente seja mantido, mas também ampliado.
universidades brasileiras membros da Associação Brasileira dos Essas trocas têm um efeito muito importante para o futuro das nos-
Reitores das Universidades Estaduais e Municipais-Abruem e to- sas relações com este grande parceiro que é o Brasil. A esse respei-
dos os homólogos belgas quando da missão dos primeiros na Bél- to, é muito agradável sublinhar que, primeiro, o Presidente Luís
gica (em julho de 2012). Inácio Lula da Silva, quando de sua visita oficial em 2009, e, em
seguida, a Presidente Dilma Rousseff, quando de sua visita oficial
A cooperação técnica em 2011, manifestaram, pessoalmente, o interesse e prometeram
apoio a esta cooperação bilateral acadêmica, científica e técnica.
Note-se que a cooperação bilateral igualmente desenvolveu-se Não há nenhuma dúvida de que esta colaboração deva desenvol-
no domínio técnico. Tendo em conta a importância que represen- ver-se sempre mais, para maior benefício dos nossos dois países.
tam as infraestruturas de transporte nos nossos dois países, e tendo
em conta a experiência adquirida pela Bélgica durante séculos, Claude Misson é embaixador honorário da Bélgica. Jovem diploma-
pareceu útil organizar visitas de responsáveis brasileiros aos nossos ta sucessivamente em Jeddah e Brasilia, foi nomeado embaixador em
portos e infraestruturas fluviais. Abu Dhabi, Lisboa e Madrid; foi diretor geral do Institut Egmont
A formação de especialistas brasileiros em gestão portuária, em Bruxelas antes de encerrar a carreira em Brasília. Vive atualmen-
oferecida há mais de 20 anos por Antwerp/Flanders Port Training te em Madri.

150
parte 5 – influências ideológicas e religiosas

parte 5

Influências Religiosas
e Ideológicas

151
parte 5 – influências religiosas e ideológicas

152
Jesuítas belgas no Brasil colonial
Eddy Stols

‘S e existir um purgatório, deveria ser neste engenho entre tanta


gente ruim’, lançou Antonio Billiet aos companheiros em
Pernambuco por volta de 1590. Com este e outros ditos descrentes
sobre padres, missa, confissão ou imagens de santos, vários jovens
flamengos, marcados pelos questionamentos do humanismo e da
Reforma, desafiavam o catolicismo conformista dos portugueses
(Stols, 1988). Presos nas visitações da Inquisição em Pernambu-
co e na Bahia em 1592 e 1618 e remetidos ao tribunal de Lisboa,
foram lá assistidos por jesuítas conterrâneos seus. Foi apenas um
dos episódios em que se cruzaram os percursos religiosos do Brasil
e dos Países Baixos meridionais ou da atual Bélgica. Estes foram,
depois da tomada de Antuérpia em 1585 pelas tropas espanholas
de Alexandre Farnese, privados da liberdade de culto e reduzi-
dos à ortodoxia católica da Contra-Reforma. Na mesma época, as
vitórias portuguesas sobre os franceses e holandeses procuraram
purgar o Brasil do pluralismo religioso, ensaiado no seu primeiro
século de convivência entre gentios, cristãos, judeus e africanos.
Em ambas as partes, a nova ordem jesuíta tomou as rédeas
desta reconversão. Particularmente, as duas províncias jesuíticas
flandro-belga e galo-belga incentivaram, com novas igrejas bar-
rocas e devoções, o fervor e a ação missionários, que tomariam o
lugar do sonho medieval de cruzada e reconquista, frustrado pelo
avanço otomano com a tomada de Constantinopla.
A evangelização dos índios brasileiros apareceu no seu hori-
zonte, pelo menos desde a publicação em Lovaina em 1566 das
Cartas do jesuíta Manoel da Nóbrega (Cartas). Em Flandres, este
pedia livros que vinham de Lisboa para os estudos em seus colégios.
Sua igreja em Salvador (BA) estava, em 1567, ricamente decora-
da com ‘guademecis e mapas de Flandres’, ao passo que Nóbrega
comparou a paisagem brasileira a um tapiz de verdura flamenga.
O padre Anchieta vigiava a conduta dos feitores dos Schetz no
engenho deles em São Vicente, que, em contrapartida, enviaram
caixas com pinturas, estampas e imagens religiosas (Cartas; Laga).
Já em 1544, Inácio de Loyola enviou nove jesuítas belgas pa-
ra estudar em Coimbra. O primeiro a partir como missionário na
Bahia foi, em 1559, Joannes Dicius, que voltou logo em 1562 para Ilustração colorida do jesuíta Francisco Pinto entre os índios publicada no livro
Coimbra (Leite, I, passim). Em 1577 partiram mais dois, Gedeão de Cornelius Hazart.

153
parte 5 – influências religiosas e ideológicas

de Cristo e outras obras na sacristia da igreja de São Francisco


Xavier em Belém, Pará. Gastavam geralmente bastante tempo
aguardando a licença real, indispensável para padres estrangei-
ros, um barco e também na preparação de mantimentos para a
tripulação. Às vezes decidia-se lá mesmo a partida para a Índia
ou para o Brasil. Assim, Ferdinand Verbiest, o futuro astrônomo
da corte celestial em Pequim, destinou-se primeiro ao Brasil para
finalmente embarcar para a China. Para o Brasil, o rei deu licen-
ça a uma dezena de padres flamengos.
O mais influente deles foi João Felipe Bettendorff, luxembur-
guês e ingressado como noviço na província galo-belga dos jesuí-
tas (Arenz). Permaneceu quase todo o ano de 1658 em Lisboa, no
Colégio de Santo Antão, antes de partir para o Maranhão junto
com outro luxemburguês, Gaspar Misch. Subiu várias vezes pe-
lo Amazonas e passou por ser o fundador de Santarém na foz do
Tapajós. Com um bom olho para o potencial econômico, desco-
briu o uso do guaraná pelos índios, plantou o cacau silvestre e a
laranjeira da China e explorou as salinas.
Como seu confrade Antônio Vieira, Bettendorff disputava com
os moradores portugueses o monopólio da mão de obra indígena,
que os jesuítas pretendiam agrupar em aldeias e preservá-las das
influências maléficas. Bettendorff registrou as desavenças com os
colonos, como também com seus superiores e confrades e com o
próprio bispo do Maranhão, na Crônica da missão dos padres da
Companhia de Jesus no Estado do Maranhão, inédita até 1910.
Expulso em 1684 do Maranhão pelos colonos levantados por Be-
quimão, passou nova temporada em Lisboa, onde publicou em
1687 um Compendio da Doutrina Christam na lingua Portugueza
& Brasilica. Pelo beija-mão e pela oferta de um mapa do Amazo-
nas em repetidas visitas a D. Pedro II e à rainha Sofia Maria de
Neubourg, conseguiu ganhar sua confiança e negociar um novo
Regimento das Missões, que lhe permitiu finalmente voltar para o
Maranhão em 1688. Mais pragmático e disposto a compromissos
que Vieira, mostrou-se também mais cético a respeito do interesse
religioso dos índios.
Estampa colorida do jesuíta José de Anchieta publicada no livro de Cornelius Uma tese sobre a ação missionária, contrária à Vieira, foi de-
Hazart. fendida por outro padre nórdico, Jacobo Rolandus, que, fugido de
sua família protestante na Holanda e ingressado na ordem jesuíta
Lobo e João Baptista. Este último serviu primeiro no colégio de em Antuérpia, julgou a escravidão dos índios como mais segura
Olinda e posteriormente como superior em Ilhéus até 1599. Ja- para sua evangelização. Seu panfleto Apologia pro Paulistis, que
come do Vale, depois de sua entrada em 1594, estudou no Rio de lhe valeu como punição o exílio para a Ilha de São Tomé, o co-
Janeiro, mas deixou a Ordem em 1599. O protestante converso, locou em franca oposição a outro jesuíta flamengo e filho de um
João Baptista, ingressado na Ordem em 1606 em Olinda, foi ativo mercador de Antuérpia, Josse Van Suerck, aliás Mansilla. Este
como pintor, falecendo em 1609. foi em 1629 denunciar em São Paulo e até em Salvador ao go-
Até meados do século XVIII mais algumas dezenas de belgas vernador ‘las crueldades y tiranias de los Portugueses’ dos bandei-
rumaram para o Brasil ou para as reduções fronteiriças do Para- rantes paulistas liderados por Amador Bueno e Raposo Tavares,
guai através de Lisboa, onde a residência dos confrades portugue- que invadiram as reduções jesuíticas na região do Guaíra (Anais
ses era uma espécie de filial da Ordem. Lá mesmo, dois belgas do Museu Paulista; Furlong). Não somente roubaram camisa, al-
entraram na Ordem: em 1619 Remacle Le Gott, aliás Inácio La- mofada, guardanapo e garfo do missionário, mataram em plena
gott, nativo de Marche-en-Famenne, que partiu para o Brasil em quaresma porcos e galinhas, fazendo festa noturna com tambor e
1628, produziu pinturas na Bahia e voltou expulso de Pernam- cornos e zombando dos padres como ‘pobretones’, além de leva-
buco pelos holandeses, e em 1639 o irmão Baltasar de Campos, rem também seus índios evangelizados. Os conflitos dos jesuítas
nativo de ‘s-Hertogenbosch, a quem é atribuído o quadro Vida com os paulistas não cessaram e foram divulgados na Europa pelas

154
parte 5 – influências ideológicas e religiosas

Litterae Annuae, as cartas ânuas destes padres. Na mesma época, três vezes amarrado para ser morto pelos Bárbaros’. A última vez,
fundaram-se novas missões, como Santo Ângelo pelo flamengo já amarrado nu num tronco de árvore, foi salvo pelos neófitos. Es-
Diogo de Haze em 1706. tes ameaçaram os bárbaros com o relâmpago, que os mataria se
Nem todos os jesuítas belgas destinados às missões do Paraguai não desamarrassem o padre. Acreditaram, e vários se converteram.
falaram mal dos portugueses. Um deles, o músico e pintor Louis Este imaginário de índios selvagens e de milagres jesuíticos
Berger, se gabou em janeiro de 1617 da boa recepção em Lisboa, foi manipulado pelos confrades belgas para suscitar um culto a
onde ‘querem bem à Nação flamenga’ e, na escala da Bahia, onde Anchieta com livros como a tradução francesa de sua biografia,
‘os padres ao par de nossa chegada foram ao nosso encontro com um La vie miraculeuse du P. Joseph de la compagnie de Jésus, do pa-
barco’ (Histoire du massacre). Antes tiveram a agradável surpresa dre Pedro Rodrigues, aumentada pelo padre Sébastien Beretaire
que ‘à quase uma légua de distância do porto nosso navio foi cerca- (Douai, 1619), e com as relíquias de seus escritos, conservados
do por uma armada de jangadas, feitas cada uma de três peças de em Antuérpia ainda no final do século XIX (Kieckens). Inspirou
madeira, e algumas de uma peça só escavada como uma selha onde estampas como as de Abraham a Diepenbeke na Kerckelycke His-
comem os cavalos. Em cada barquinho tinha um brasileiro e um toriae van de gheheele wereldt, de Cornelius Hazaert (Antuérpia,
negrinho que pescavam e era coisa admirável como ficavam em pé 1652-1671). A visão de um Brasil perigoso e propício ao enaltecido
sobre estes paus. Fizemos entrar alguns no nosso navio, que saíram martírio se fortaleceu ainda mais com a passagem por Antuérpia
muito contentes com os presentes que lhes fizemos’. No porto, des- dos jesuítas portugueses, presos pelos piratas ingleses ou holande-
carregou-se muita artilharia e Berger foi honrar a sepultura de José ses na Bahia, em 1624, e em Pernambuco, em 1630, e resgatados
de Anchieta: ‘Tinha ouvido falar de sua vida e miráculos, quando pelos confrades flamengos.
eu estava em Tournai. É nada em comparação com as maravilhas O prestígio dos jesuítas deve ter incitado a nova ordem dos
que contam aqui deste santo padre. Tenho uma carta escrita de sua capuchinhos a lançar-se na evangelização do Brasil com uma pri-
própria mão junto com um pedaço de osso, de roupa e camisa que meira participação na expedição colonial dos franceses no Mara-
me deu o padre reitor daqui’. Ouviu lá mais notícias sobre o padre nhão. A província belga dos capuchinhos se deixou seduzir pelas
Francisco Pinto, ‘martirizado pelos Bárbaros, e beijei o bastão com perspectivas na África, mas recorreu para chegar lá às conexões
o qual lhe romperam a cabeça... os Bárbaros não querem devolver entre Lisboa, Recife e Angola, uma ligação triangular recorrente
o corpo, que veneram muito. Quando falta chuva nas suas lavras, nas relações entre a Bélgica e o Brasil. O continente africano con-
rezam para este padre’. Falou ainda ‘com um bom padre, que já foi tinuaria presente em filigrana na evangelização belga do Brasil.

As missões flamengas no Congo e a cultura afro-brasileira


Jeroen Dewulf

A ligação mais conhecida entre a Bélgica e o Brasil no que diz


respeito à cultura negra é, sem dúvida, o Terreiro do Gantois.
Este famoso terreiro do candomblé Gêge-Nagô em Salvador, na
Retrato de
missionário
flamengo no
Congo.
Bahia, deve seu nome ao proprietário belga – oriundo da cidade
de Gand – do terreno onde o templo religioso foi construído em
1849 sob direção da ialorixá Maria Júlia da Conceição Nazaré.
A ligação belgo-brasileira no contexto da cultura negra vai,
porém, muito além deste detalhe curioso. Também as atividades
missionárias flamengas na África Central no século XVII influen-
ciaram de forma indireta a cultura negra no Brasil. Missionários
flamengos contribuíram não só para o desenvolvimento de uma
variante africana do catolicismo mas até causaram o envio da
população inteira de uma aldeia africana como escravos para
o Brasil. Hoje, muitos milhares de brasileiros são descendentes
de um grupo de africanos levados para o outro lado do Oceano
Atlântico devido a uma tragédia que tinha como figura central
um missionário flamengo.
A chegada de missionários flamengos ao Reino do Congo –
que correspondia a um território que hoje se situa junto à frontei-

155
parte 5 – influências religiosas e ideológicas

sua chegada, em 1651, adoeceu e morreu de febre. Van Geel se


manteve com boa saúde, mas rumores sobre o envolvimento de
capuchinhos numa conspiração impediu o início de sua missão.
Van Geel aproveitou o tempo para levar a cabo uma obra que aca-
bou por ter uma importância histórica: a transcrição do primeiro
dicionário da língua bantu, elaborado pelo mulato congolês Ma-
nuel Roboredo, o Vocabularium kongoense, hispanicum et latinum
(1648). Quando sua missão foi finalmente liberada, van Geel foi
mandado para a área de Matari.
A chegada a Matari foi uma desilusão. O capuchinho flamen-
go não podia aceitar que o catolicismo que se tinha desenvolvido
no Congo representasse uma variante africana dessa religião. Para
os congoleses, o catolicismo não funcionava como substituto da(s)
O missionário incendeia a cabana de um feiticeiro em um manuscrito anônimo velha(s) crença(s), mas, antes, como um complemento. O tipo
do início do século XVIII. de religião que van Geel encontrara era, de fato, uma espécie de
catolicismo creolizado. Enquanto a presença de elementos afri-
ra de Angola com a República Democrática do Congo – foi uma canos no catolicismo congolês pouco preocupara aos missionários
consequência direta da política colonial portuguesa que combi- portugueses, para van Geel tal mistura era inaceitável.
nava a expansão militar com a expansão religiosa. A procura de Profundamente influenciado pelo espírito intransigente da
aliados na África subsaariana por parte dos portugueses levara a Contra-Reforma na sua nativa Flandres, van Geel iniciou uma
um pacto com o rei do Congo, ou Manikongo, Nzinga a Nkuwu campanha feroz de purificação do catolicismo congolês, decisão
em 1485 (Vansina). Seu filho Mvemba a Nzinga (c.1456-c.1542) esta que selaria sua sorte. Indignado pelo fato de van Geel ter incen-
foi responsável pela espetacular expansão do catolicismo no Con- diado um local de culto tradicional, a população da aldeia de Ulo-
go. Adotando o nome lusitano de Afonso I, o jovem rei mandou lo espancou o missionário até levá-lo à morte, alguns dias depois.
construir igrejas e capelas, fabricar crucifixos, rosários e estátuas A tentativa por parte dos ololenses de evitar um castigo levan-
de santos, observar festas religiosas e fundar irmandades (Newitt, do o corpo para fora da área foi em vão. O Rei Garcia II, que não
2010). Encorajada por este sucesso surpreendente, a ambição por- queria ver a missão capuchinha comprometida, decidiu impor a
tuguesa de espalhar o cristianismo nos quatro cantos do mundo, punição máxima e condenou a população inteira da aldeia, umas
no contexto de sua política colonizadora, recebeu grande supor- 200 pessoas, à morte. Após a insistência dos capuchinhos, que
te por parte do Vaticano. Isto explica a atribuição ao Reinado de alegavam que van Geel, antes da sua morte, tinha perdoado a po-
Portugal do padroado na África Central por parte do Papa Leão pulação, o rei congolês revisou sua sentença e decidiu vender os
X, em 1514, dando-lhes o direito exclusivo de representar a Igreja habitantes como escravos. Todos eles foram então transportados
Católica nessa parte do mundo (Thornton, 1992). para o Brasil (Hildebrand).
Os reis do Congo rapidamente perceberam que o padroado Não foram estes os únicos missionários flamengos que che­
lhes impunha uma situação de dependência total de Portugal em garam ao Congo no século XVII. Outra missão, desta vez com-
assuntos religiosos e que os portugueses se aproveitavam dessa posta por três franciscanos, foi à África Central a pedido do prín-
situação para, gradualmente, aumentar sua influência na região, cipe de Soyo. Os príncipes de Soyo, antigos vassalos do Rei do
em atrito com a ambição congolesa de criar uma diocese própria Congo, utilizaram sua posição estratégica na costa africana pa-
e de negociar assuntos religiosos diretamente com o Vaticano. ra seguir uma política autônoma no comércio transatlântico. A
Embora o Papa Urbano VIII simpatizasse com a ideia de au- venda de escravos para europeus não católicos punha, porém,
mentar a influência do Vaticano na África, também percebia o um problema ético e político (Thornton, 1998). Daí as tentati-
perigo de apoiar publicamente uma proposta que violava o padroa­ vas por parte da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais
do português. A luta entre Portugal, o Vaticano e a monarquia de construir uma base de confiança em Soyo por intermédio
congolesa pelo domínio religioso levaria a um compromisso em de missionários católicos flamengos. A ideia parecia trazer van-
1640: daí por diante, Roma enviaria missionários da Ordem dos tagens para todos: os flamengos poderiam converter africanos
Frades Menores Capuchinhos diretamente ao Congo, sem inter- ao catolicismo e, ao mesmo tempo, o príncipe de Soyo poderia
venção portuguesa. Estes capuchinhos representariam, portanto, fazer negócios com uma companhia holandesa protestante sem
uma força neutra no conflito entre Portugal e Congo e a garantia ter escrúpulos religiosos.
da manutenção do catolicismo na região (Jadin, 1975). Porém, o que parecia bom no papel tornou-se um fracasso
Apesar dos capuchinhos eleitos para a missão no Congo serem pois nem os capuchinhos italianos nem os jesuítas portugueses
predominantemente italianos, dois flamengos também participa- viam com bons olhos a chegada de uma terceira força católica
ram da missão: Erasmus [Weyns] van Veurne e Joris [Willems] à África Central, e impediram, com sucesso, que os flamengos
van Geel. Para van Veurne, a missão acabaria cedo pois, logo após iniciassem sua missão. Após chegar em Soyo em 1673, Cornelius

156
parte 5 – influências ideológicas e religiosas

Wouters, Gerardus Corluy e Willem Lambrechts não puderam


fazer nada senão esperar pelo primeiro navio que os levasse de
volta à Europa. Assim terminava a ambiciosa missão flamenga na
África Central (Jadin, 1966).
Dois séculos depois, porém, estes planos foram retomados em
condições bem diferentes. Após a criação do Congo Belga em
1908, as autoridades coloniais deram prioridade à missão católi-
ca. Centenas de jovens belgas, quase todos flamengos, partiram
para o Congo numa missão evangelizadora gigantesca. Pouco ti-
nha ficado do antigo fervor católico, mas o encontro de crucifixos
e estátuas de Santo Antônio levou vários missionários belgas a se
aprofundarem no estudo do antigo Reinado do Congo e das raízes
católicas na África Central.
Nos últimos anos, historiadores brasileiros têm mostrado ca-
da vez mais interesse nos trabalhos de pesquisa de Jean Cuvelier
(1941), Joseph de Munck (1956), François Bontinck (1972), Louis Um padre capuchinho reza missa no Reinado do Congo, aquarela pintada pelo
padre Bernardino Ignazio, 1740.
Jadin (1965, 1975) e outros padres belgas. Este interesse correspon-
de a uma virada na historiografia brasileira no que diz respeito à
população negra. Enquanto outrora acreditava-se que os escravos bantu. Daí o reconhecimento da importância do trabalho dos
africanos só se familiarizavam com o catolicismo após a chegada padres belgas que hoje se encontra nos acervos do Museu Real
ao Brasil, historiadores hoje reconhecem que muitos deles trouxe- da África Central, em Tervuren, e nos arquivos da Universidade
ram consigo elementos afro-católicos para o continente americano Católica de Lovaina.
(Souza; Kiddy; Heywood e Thornton, 2007). Se, à primeira vista, as relações entre a população negra do
Assim, a mistura de elementos africanos e europeus – que Brasil e a Bélgica não parecem ir para além de um detalhe curio-
desde Gilberto Freyre (1933) era considerada um fenômeno cul- so no nome de um terreiro baiano, hoje se sabe que historiadores
tural tipicamente brasileiro – é hoje reconhecida como carac- brasileiros poderão vir a encontrar nos arquivos belgas pistas im-
terística da zona transatlântica inteira, no contexto do tráfico portantíssimas para melhor compreensão da identidade histórica
de escravos entre os séculos XVI e XIX. Essa nova perspectiva de grande parte de sua população.
sobre a África deu origem a um interesse crescente no impacto
da obra missionária católica dos séculos XVI e XVII nos povos Jeroen Dewulf é professor da University of California, Berkeley.

Dom Gerardo van Caloen e sua reconquista do Brasil beneditino


Eddy Stols

N os três últimos decênios do século XIX a Igreja Católica lan-


çou uma forte contraofensiva ultramontana para recuperar
o terreno perdido para o liberalismo e o livre-pensamento dali em
século das Luzes, e fundou seminários e escolas, principalmente
internatos com uma disciplina rigorosa e uma pedagogia bastan-
te tradicional.
diante ainda mais ameaçado pelo avanço do socialismo entre as O Brasil entrou na mira dessa ação restauradora e regenerado-
classes populares. Orquestrada pelo Vaticano, desde 1870 sob Pio ra tanto por seu crescimento econômico como pelos avanços do
IX e com novo ímpeto sob Leão XIII, uma ‘internacional negra’ positivismo entre suas elites, sobretudo quando se livrou da tutela
(cf. Lamberts) mobilizou todas as forças religiosas para impor a imperial após a proclamação da República e a separação entre o
participação ou influência católica na educação e vida cultural, Estado e a Igreja. A partir dos anos de 1890 seguiu uma verdadei-
nas organizações profissionais e sociais, na imprensa e nos parti- ra investida de congregações, como os lazaristas, salesianos, re-
dos políticos, na expansão econômica e colonial. Um novo ven- dentoristas, às vezes solicitadas por bispos e sacerdotes brasileiros,
to missionário soprava particularmente sobre a América Latina que, depois da questão religiosa com Dom Vital, em 1870, postu-
para restaurar o predomínio católico sobre os liberais, maçons e laram maior disciplinamento da religiosidade brasileira. Por sua
positivistas, e preservar os emigrantes católicos destas influências vez, a Bélgica, país de tradição católica com um clero abundante,
perniciosas e do protestantismo em alta. A hierarquia católica re- devia, nos olhos do Vaticano, desempenhar papel de liderança,
abriu tradicionais conventos, fechados ou despovoados desde o tanto mais quando passou em 1884 de um governo liberal para o

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parte 5 – influências religiosas e ideológicas

predomínio de 30 anos do partido conservador católico e quando No final de agosto de 1895, Dom Gerardo desembarcou em
suas elites se enriqueciam com os primeiros dividendos de sua in- Recife liderando uma caravana de 17 monges, conversos e pos-
dustrialização exitosa. tulantes, além de dois padres seculares, Moreau e Van Emelen,
Proeminente pioneiro nesta romanização belga do catolicis- e o agrônomo franco-polonês Schönowsky. Essa viagem custou
mo brasileiro foi o beneditino belga Gerardo van Caloen (1853- cerca de 16.500 francos belgas, pagos por Frei Domingos. Res-
-1932), hoje mais conhecido por dar nome a uma rua no Rio tauraram logo a clausura e o culto, despediram os empregados e
de Janeiro do que por suas façanhas no Brasil durante quase 25 Dom Gerardo sucedeu ao abade Botelho. Os três primeiros anos
anos. Sua figura, mais do que o mais citado beneditino alemão foram desanimadores pelas dívidas encontradas e pelos conflitos
Miguel Kruse, tem o perfil dos empire builders coloniais, como com as autoridades sobre os regulamentos higiênicos e sobre uma
Cecil Rhodes, econômicos, como Edouard Empain ou Percival escola técnica, aberta e logo fechada em 1897. Nas suas igrejas
Farquhar, ou religiosos, como Mgr Lavigerie. Van Caloen deixou dependentes de Prazeres e de Nossa Senhora do Monte tornou-se
uma pletórica correspondência e um diário bastante minucioso, penoso disciplinar as devoções populares arraigadas. Desgostavam
conservado nos arquivos da Abadia de Zevenkerken. Inspiraram ao da liturgia dirigida por um seminarista, da música mundana, das
beneditino Christian Papeians de Morchoven uma valiosa biogra- festas de São João e do barulho na igreja, como num ‘mercado
fia crítica, que aqui se resume, completa e contextualizada com de peixes’. Estranhavam a superstição dos fiéis contra padres que,
outras fontes, algumas brasileiras. montando a cavalo, faziam este animal ‘ressecar-se’. Em suas ter-
Joseph van Caloen (1853-1932) foi o primogênito de pai bel- ras de Prazeres o administrador Schönowsky foi suspeito de roubo.
ga e mãe francesa, numa família de pequena nobreza e de ricos Aí a preguiça dos trabalhadores deixava na saudade ‘humanidade
proprietários de terras, ativos na política na região de Bruges. à parte, o tempo dos escravos’. ‘Não trabalhavam antes das 7 nem
Cresceu no novo castelo em estilo neogótico que seus pais man- depois das 5, descansavam quanto mais podiam e pela mínima re-
daram construir em Loppem, onde se levantaria mais tarde a preensão iam-se embora’. Eram desonestos e todas as padarias do
abadia ‘brasileira’ de Saint-André de Zevenkerken. Neste meio Recife se serviam do carvão roubado dos seus bosques. Religiosos
cultivado e multilingue, de saúde frágil mas curioso de tudo, com belgas e alemães se desentendiam e alguns abandonaram. Vários
até seu ‘Petit Musée’ no parque, entusiasmou-se pela história, par- adoeceram e dois morreram de febre amarela.
ticularmente dos monges medievais, exaltados por Montalembert O clima mortífero motivou ainda mais Dom Gerardo a con-
como os verdadeiros fundadores do Ocidente europeu. Bastante siderar, em 1899, a fundação, no interior mais sadio do Ceará, de
viajado, ainda jovem, andou pela Palestina, depois pela Espanha, uma nova abadia, Santa Cruz do Quixadá. Esta, mais adequada
Inglaterra e Alemanha, empolgou-se pela reforma beneditina ini- para acolher o noviciado na tradição espiritualista, começaria tu-
ciada em 1870 em Beuron, no sul da Alemanha. Em 1872 se fez, do de novo e formaria um contrapeso às abadias urbanas. O que o
sob o nome de Dom Gerardo, o primeiro monge da suntuosa visionário Van Caloen entreviu nesta primeira visita como a futura
filial belga dessa congregação em Maredsous, custeada pela no- Maredsous do Brasil, começou num casario de taipa, mas deveria
breza e burguesia católica belga. Diferentemente dos confrades, estender-se sobre dois morros. Um seria destinado a um colégio,
sonhava combinar a vida monástica com a ação missionária e que se tornaria a grande instituição do Norte do Brasil. Contava
fundar um mosteiro entre os ‘bárbaros’. Para isso propôs, já em no início com a doação do terreno e o apoio da elite da província,
1886, ao colaborador de Leopoldo II, o Barão Lambermont, a do bispo, do chefe local, Coronel Cravo, e com dinheiro empres-
fundação de uma escola apostólica para preparar a implantação tado pelo Barão de Studart.
dos beneditinos no Congo. Ao mesmo tempo entusiasmou-se pela Este êxito parece ter dado vento em popa às ambições de
reconciliação das igrejas ortodoxas orientais com Roma, para a Van Caloen, que se fez designar adjutor e sucessor de Dom Do-
qual pensava construir uma nova abadia. mingos como abade-geral da Congregação Beneditina brasileira.
Sua guinada de rumo para o Brasil seguiu um pedido de ajuda Apenas chegavam mais alguns monges e ele os destinava à abadia
feito a Roma por Frei Domingos da Transfiguração, abade da Bahia da Bahia e sua dependência de Brotas, que deveriam sediar res-
e abade-geral da congregação beneditina brasileira. Esta dispunha pectivamente uma ‘Faculdade Metropolitana’ e um orfanato ou
de apenas dez monges de idade avançada em cinco abadias e sete escola agrícola. A abadia abriu suas portas aos feridos da Guerra
priorados, parcialmente ocupados por seus familiares ou descen- de Canudos. Em 1900 foi lançado um jornal, O Estandarte Ca-
dentes. Temia-se pelo seu descalabro total com a provável expro- tólico, com duas edições, na Bahia e em São Paulo, destinado a
priação pelo novo poder republicano. Roma se sensibilizou e dele- ser um equivalente do La Croix francês, com mais um periódico
gou em 1893 ao impetuoso van Caloen a tarefa de examinar uma para crianças, O Anjo da Guarda. Van Caloen aconselhou em
restauração beneditina no Brasil. Dom Gerardo aceitou, familiari- Pernambuco o prócer do paternalismo católico, Carlos Alberto
zando-se antes, durante quatro meses, com a língua portuguesa em de Menezes, que, em sua fábrica de Camaragibe, queria aplicar
Lisboa. No Brasil constatou que os confrades brasileiros queriam a encíclica Rerum Novarum e contratou freiras e padres franceses.
apenas uma assistência temporária de Beuron para dirigir um no- Recuperou também a abadia da Paraíba, cobiçada pelo bispo lo-
viciado-geral. Finalmente aceitaram ceder a abadia de Olinda para cal, Dom Adauto. A morte em 1900 do ‘escandaloso’ abade Mo-
reformá-la com uma dúzia de europeus que seriam naturalizados. reira de São Bento em São Paulo abriu o caminho do sul e dos

158
parte 5 – influências ideológicas e religiosas

A abadia ‘brasileira’ de Saint-André, Zevenkerken, 2011.

priorados de Santos, Sorocaba, Jundiaí, Parnaíba e Campos. Este presidente Rodrigues Alves enviou uma força armada sob o co-
era seu maior opositor dentro da Congregação brasileira junto mando do Marechal Hermes da Fonseca para escoltar e instalar
com o frei secularizado Joaquim do Monte Carmelo, autor de O Van Caloen como novo abade. O próprio Barão do Rio Branco
Brazil mystificado. Acusavam os monges estrangeiros de rapacida- veio à rua para aplaudir sua posse. Enquanto se manteve a proteção
de e de tratar os brasileiros ‘como selvagens, ignorando sua longa militar, ainda durante a Revolta da Vacina, reorganizou o culto e
história sob a cruz’. Van Caloen, entretanto, combateu sua influ- a vida monástica. Construiu um novo colégio, equiparando seu
ência e conseguiu participar do capítulo geral ao mesmo tempo programa ao ginásio nacional e aberto ‘gratuitamente’ a mais de
em que obteve o fim da autonomia das abadias. Na São Bento de 500 alunos. Para fugir do grande calor comprou na Tijuca várias
São Paulo, que a prefeitura queria tomar, expulsou o liquidante, casas e as transformou em um pequeno convento de vilegiatura
improvisou uma pequena comunidade e instalou Miguel Kruse com escola noturna de catecismo. Assim acalmou um pouco a
como prior. Este revidaria os ataques do positivista Luiz Pereira hostilidade geral. Numa visita de cortesia a Rodrigues Alves, este
Barreto, ex-estudante da Universidade de Bruxelas. se declarou ‘católico de coração’, ao passo que o jornalista Carlos
Faltava apenas a bela e bem localizada abadia do Rio. Quan- de Laet defendia os beneditinos belgas.
do seu ex-abade João Ramos teve seu protesto contra a invasão Com a morte de Frei Domingos em 1908, Dom Gerardo tor-
estrangeira rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal, Dom Ge- nou-se o abade-geral vitalício e nomeou outro belga, Chrysostome
rardo entrou, junto com o abade-geral Dom Domingos, em 12 de de Saegher, como seu adjutor no Rio. As quatro principais abadias
maio de 1903, para tomar posse. Circulavam rumores que prepara- estavam agora nas mãos de monges belgas ou alemães. Fez con-
vam uma futura invasão alemã e que fechariam a escola gratuita. sertos em Santos e em Sorocaba, que oferecia mais tranquilidade
Aos gritos de ‘Morram os frades estrangeiros’, foram assaltados por aos noviços de São Paulo. Em Campos reanimou a presença be-
uma malta enfurecida de partidários do ex-abade excomungado. neditina na Fazenda de São Bento e no santuário de Santo Amaro
O belga conseguiu escapar dos ‘200 assassinos’ por uma portinha com o monge Mauro Desrumaux, que abriu centros de catecis-
traseira e refugiou-se na casa do arcebispo Arcoverde. Alertado, o mo, batizou e celebrou casamentos (Lamego, 238). Na Bahia, em

159
parte 5 – influências religiosas e ideológicas

1905, arrancou Brotas das mãos dos posseiros com a promessa ao que ‘O Brasil fará renascer a velha abadia extinta’, o seu abade Van
governo de criar um orfanato ou escola agrícola. Caloen dizia na sua homilia da ceremônia da pedra fundamental
Como se esta reconquista fosse pouca, Van Caloen pretendia ‘ouvir o gemido de dor dos índios’.
ainda missionar entre os índios. Entre outubro de 1900 e final de A nova abadia nasceu dependente juridicamente da congre-
1901 interessou-se pelo supracitado projeto de Leopoldo II para gação brasileira, inclusive com um subsídio pecuniário, e adotou
uma concessão no Araguaia-Tocantins e se encontrou a este res- mesmo o idioma português para a comunicação entre postulantes
peito com o coronel Thys e com o próprio rei. Ao mesmo tempo, e noviços de diversas nacionalidades. Estes eram, no início, sobre-
em agosto de 1901, Dom Gerardo defendeu em Roma seu pla- tudo calabreses, já que os filhos dos camponeses da região de Bru-
no de missões entre os índios. Desarmaria as campanhas contra ges ‘resistiam aos apelos dos sinos’ (d’Ydewalle). Mesmo assim, des-
os frades pela utilização patriótica de suas rendas. Em audiência de setembro de 1899 rumaram as primeiras caravanas de monges
com o Papa Leão XIII junto com o embaixador brasileiro Augusto para o Brasil. Dos 280 beneditinos europeus, enviados entre 1895
Ferreira da Costa, este último manifestou seu apoio, mas o pro- e 1914 ao Brasil, 118 passaram por Saint-André ou foram formados
jeto não vingou. Van Caloen descartou uma oferta do bispo do lá, na sua maioria belgas e alemães, mas também suíços, italianos
Espírito Santo para uma missão entre os botocudos e preferiu, e franceses. Tem-se notícia de apenas dois brasileiros, um noviço
depois de um encontro em 1904 com o bispo de Manaus, novas e um converso, Baltasar de Araújo, que faleceu em Rio Branco.
perspectivas no território de Rio Branco. No início de 1906 obte- Entretanto, Van Caloen, construtor obsessivo tal qual um em-
ve de Roma sua nomeação de bispo coadjutor de Manaus, sendo presário imobiliário, deixou suas marcas no Brasil, de obras de sa-
consagrado em 18 de abril daquele ano em Maredsous pelo bis- neamento até pinturas murais. Na abadia do Rio, joia do barroco,
po de Belém. Entretanto, as resistências do episcopado brasileiro este ‘vendaval’ (cf. Ramalho Rocha) reformou o telhado, instalou
levaram a transferir este estrangeiro, bispo de Phocéa, à Prelazia iluminação a gás e água encanada, desmanchou os alpendres da
do Rio Branco, criada em 1907 como dependência direta da aba- portaria, revestiu as escadas e os pavimentos com mármores – al-
dia nullius do Rio de Janeiro. Com o status de bispo, Van Caloen guns falsos –, restaurou o dourado das imagens, instalou estalas
foi em 1908 a Manaus conhecer a Amazônia, mas não seguiu até no coro, mas suprimiu nas celas dos monges os aprazíveis bancos
Boa Vista. Os primeiros três monges chegaram lá em 1909, Dom de cantaria junto às janelas, mandou talhar na rocha uma nova
Acário, Dom Adalberto e Dom Boaventura, seguidos em 1911 ladeira de acesso e construiu o novo Colégio São Bento. Mais tar-
por outros, acompanhados de um pedreiro flamengo, contratado de, a pedido do Sphan, foram parcialmente eliminadas estas inter-
por três meses. Entrementes, Van Caloen não apreciou que o aba- venções no estilo barroco, que o belga abominava. Ao contrário,
de de Salvador, Dom Mayeul de Caigny, imitasse na Bahia seu deu livre curso à sua preferência pelo neorromânico à la Beuron
exemplo com a fundação, em 1909, de um posto entre os índios no claustro de Tijuca, conservado como Cela São Gerardo ou
em Angelim, no Rio Pardo. Capela da casa de São Bento no Alto da Boa Vista. Pode também
Para dar fundamento e credibilidade a seu império benediti- ter influído o estilo neorromânico dos três prédios, os números
no brasileiro, precisava recrutar mais pessoas e assegurar-lhes um 1-17, 29-33 e 51-55 da Avenida Central, construídos pelo arquiteto
mínimo de conforto em construções reformadas ou novas. Como Gastão Bahiana numa sobriedade eclesiástica contrastante com o
os poucos postulantes brasileiros não pareciam idôneos ou não pomposo ecletismo dos outros edifícios. No entanto, Van Caloen
aguentavam a disciplina, procurou monges e noviços sobretudo não recusava o modernismo e para Rio Branco encomendou, em
nas próprias abadias de Beuron e Maredsous. Solicitou também Hamburgo, à casa Backhome, uma igreja e duas casas em ferro
as abadias francesas ameaçadas de expulsão e cogitou incorporar a sobre planos do arquiteto Moers, que tinha desenhado o palácio
portuguesa de Cucujães. Sem êxito, apostou na criação de ‘procu- episcopal de Manaus. Foi especialmente a Hamburgo, mas os
ras’ próprias para iniciar jovens à vida monástica no Brasil. Criou planos não tinham chegado lá. Em sua viagem a Georgetown,
uma em Siena e outra em Wessobrunn, na Baviera, mas a maior encantou-se pelas construções de madeira e planejou comprar
e mais querida seria Saint-André, ressuscitando uma abadia me- algo semelhante para Rio Branco.
dieval extinta perto de Bruges. Publicou no ‘Courrier de Bruxelles’ Todas essas viagens e obras custavam evidentemente somas
um apelo às vocações para o Brasil e começou, em 1899, primeiro colossais. Van Caloen aplicou com certeza seu próprio patrimô-
numa casa de sua família. Um senador aparentado, Van Ocker­ nio e repetidas doações de sua mãe, como as destinadas ao altar
hout, doou um grande terreno em Loppem para a nova constru- de S­ aint-André. Para custeá-la lançou uma subscrição nos jor-
ção. Em menos de dez anos, entre 1902 e 1910, surgiu, com um nais e passou a coleta entre parentes, conhecidos e os brasileiros
orçamento de 250.000 francos, a monumental Zevenkerken (Sete de Paris, como os Nioaques. Uma nobre de Bruges, Peñaranda,
Igrejas), com um claustro, ladeado por alas térreas de celas, uma emprestou a juro muito baixo. Se Leopoldo II e o coronel Thys
igreja, com torre e sinos e sete igrejas-capelas simbolizando as prometeram doar cada um 100.000 francos sob a condição de
basílicas romanas, das quais três realizadas. Contra a vontade de Saint-André preparar também padres para a China e o Oriente
Beuron e Maredsous, mas aprovada pelo papa para ‘servir ao bem Médio, finalmente o rei limitou-se a 5.000 francos, sem outro
do Brasil’, Saint-André foi promovida como ‘o Brasil na Bélgica’. compromisso. Além do subsídio anual, a congregação beneditina
Enquanto em 28 de abril de 1901 o jornal La Patrie jubilava-se brasileira foi solicitada para pagar os juros de um empréstimo e

160
parte 5 – influências ideológicas e religiosas

garantir hipotecas. É bem provável que Van Caloen tenha trans-


ferido, na sua contabilidade nada transparente, recursos brasilei-
ros, ainda mais quando em 1910 o subsídio terminou em con-
sequência da autonomia alcançada por Saint-André em relação
à congregação brasileira. Acusações e insinuações neste sentido
circularam continuamente entre seus inimigos anticlericais como
também entre os próprios monges, que o responsabilizavam de
dilapidar as riquezas das abadias brasileiras.
Estas tinham efetivamente a reputação de serem muito ricas,
alimentando cobiças por toda parte. Somente a abadia do Rio
era proprietária de 164 casas, se bem que pequenas, antigas e em
descalabro, mais a metade da Ilha do Governador, uma imensa
propriedade em Iguaçu, terras em Maricá, Quissamã, Cabo Frio,
Campos e São João da Barra e ainda uma zona urbana em Niterói
e em Campos. Contavam com uma renda de 200 contos, que
seu predecessor Ramos dissipava com uma mesa diária aberta a
50 pessoas, banquetes e gastos de seus familiares. Bahia teria uma
renda de 60 contos, Olinda, de 40, e Paraíba, de 80 contos. Um
conto seria equivalente a 1.500 euros atuais, mas o câmbio oscilava
muito. Encontravam-se, frequentemente, aluguéis a preço muito
baixo ou pré-pagos por vários anos e dívidas sobre impostos do go-
verno, como em Pernambuco ou na Bahia. Além disso, os belgas
subestimavam a carestia de vida no Brasil.
No Rio, Van Caloen não encontrou dinheiro em caixa e não
podia vender para prevenirem-se suspeitas. Em bom entendimen-
to com o ministro de Obras Públicas, Lauro Müller, procurou va-
lorizar o patrimônio graças às generosas indenizações pelas expro-
priações para as obras de modernização do prefeito Pereira Passos,
alguns 1.000 contos, além de terrenos na nova Avenida Central.
Um monge brasileiro falecido na Bélgica, fotografia de 2011.
Investiu o dinheiro nos supracitados prédios. Infelizmente, os loca-
tários Lloyd Brasileiro e Jornal do Brasil ficaram devendo aluguéis
na faixa de 200 contos. Outras casas continuavam vazias, ao passo intermédiário brasileiro, G. Reidy, de Paris, e seu advogado, Lei-
que indenizações insuficientes ou aluguéis atrasados sobre a Ilha tão da Cunha, levantou do Lloyd’s Bank em novembro de 1909
do Governador levaram a processos contra o governo. Na contes- nada menos que 300.000 libras esterlinas a 5% sobre hipotecas de
tação sobre um terreno do Arsenal da Marinha, o novo presidente propriedades estimadas em 600.000 libras e a reembolsar a partir
Afonso Penna se irritou, colérico com este abade estrangeiro, que do quinto ano em meio século.
interpretava dentro do viés belga qualquer oposição como obra da Isto permitiu saldar os empréstimos no Brasil, mas logo surgi-
maçonaria. As campanhas na imprensa contra os frades redobra- ram novas necessidades para melhorar o ginásio e readaptar um
ram-se com o segundo Congresso Católico, em julho de 1908, no edifício da Avenida Central e reparar os grandes danos sofridos
qual participou um professor de Lovaina, Emiel Vliebergh, acon- entre 23 de novembro e 10 de dezembro de 1910 pela ocupação
selhando a formação de organizações agrícolas e partidos católicos militar da abadia e pelo bombardeio dos marinheiros revoltados na
no modelo belga. Van Caloen incitou Lauro Müller a formar uma Ilha das Cobras, além de gastos urgentes em Rio Branco. O presi-
bancada católica na Câmara, mas este preferiu tornar-se sucessor dente Nilo Peçanha, interessado nas terras de Iguaçu para um pro-
do Barão de Rio Branco. jeto de melhoramentos, mostrou-se mais benevolente e facilitou
Enquanto circulavam rumores de falência, propagados inclu- novos avanços do Banco do Brasil. Indenizou a expropriação da
sive pelo abade Kruse de São Paulo, Van Caloen resolveu o aper- Ilha do Governador por 1.000 contos, mas saiu do poder sem pagar.
to com pequenos empréstimos locais conseguidos com o Banco Assim, Van Caloen quis repetir em 1911, em Londres, um
do Brasil, mas a juros altos de 8%. Como o Núncio se opôs a um grande empréstimo de 150.000 libras, alegando que hipotecas
grande empréstimo, foi negociar na Bélgica com a casa von Bary contratadas no exterior dificultariam o confisco dos bens das
de Antuérpia. Constatando que as financeiras belgas desconfiavam ordens religiosas como estava ocorrendo em Portugal. De fato,
de operações com ordens religiosas e hipotecas no exterior, procu- muitos advogavam no Brasil a expulsão dos monges, ainda mais
rou a City de Londres. Com cartas de apresentação do ministro com os conflitos em Rio Branco e no próprio Rio de Janeiro so-
Müller a outro político influente, Joaquim Murtinho, e com um bre a ponte para a Ilha das Cobras. Sobre esta o ministro Barão

161
parte 5 – influências religiosas e ideológicas

do Rio Branco reclamou em Roma, ao passo que Van Caloen Autocrático e algo maquiavélico, deslocava numa valsa contínua
solicitou a proteção e intervenção dos ministros belga e prussia- abades e priores como peões num tabuleiro de xadrez para afastar
no de Relações Exteriores. Desta vez, se Van Caloen encontrou os críticos. Paralelamente se deterioravam suas relações com os
disponibilidade financeira do lado inglês, tardou meses a autori- bispos brasileiros. Estes vieram a preferir os franciscanos a estes
zação do Vaticano, alertado pelas denúncias do Núncio no Rio potentados mitrados belgas e alemães. Van Caloen ressentia parti-
e de seu próprio abade adjutor, Chrysostome de Saegher. Este cularmente a hostilidade de Arcoverde, para quem tinha pleiteado
cria ter descoberto o desaparecimento de 400 contos das recei- junto ao Papa Leão XIII o chapéu cardinalício. Acusava de chan-
tas extraordinárias. Além do mais, queria restringir as atividades tagem o bispo da Paraíba, quando este ameaçava com o confisco
do mosteiro e suprimir Tijuca, onde Van Caloen preferia residir da abadia pelo governo.
para escapar da hostilidade dos monges no mosteiro. Junto com Oficialmente, o capítulo geral e a visita apostólica o descri-
outros monges pediu a demissão de Van Caloen. Este resistiu minalizaram e foi seu opositor De Saegher quem voltou à Bél-
primeiro e defendeu, num relatório de 3 de junho de 1912, sua gica. Mesmo assim, van Caloen sentia-se cada vez mais isolado
gestão, salientando que deixava um patrimônio de 99 casas em pelo prior e pelos outros monges e apresentou finalmente sua
bom estado. Quis até afastar De Saegher como vigário-geral em demissão. Foi aceita pelo Vaticano no início de 1915, sendo que
Rio Branco, mas o fim de seu reino onipotente estava chegando. van Caloen se ocuparia doravante somente de Rio Branco. Na
Se o novo Papa Pio X ainda abençoou Van Caloen, este perdeu sua costumeira tática de escapatória, o bispo van Caloen já tinha
seus apoios tanto na Cúria vaticana como do Cardeal-Arcebispo ido antes, no meio da crise em maio de 1914, tomar posse de sua
Arcoverde. O abade de Seckau, Dom Zeller, foi encarregado de prelazia em Rio Branco.
fazer uma visita apostólica. Enquanto o segundo grande emprés- Esta precisava mesmo de sua presença. Logo no início, em
timo de Londres não se efetivava, surgiu, em 1914, com a baixa 1909, os primeiros monges se desentenderam em Boa Vista com
do câmbio e a diminuição das rendas, novamente o espectro da o chefe político Bento Brasil, que administrava para a diocese de
falência. Em desespero, Van Caloen vendeu as valiosas terras de Manaus a grande fazenda de gado Calungá e se negou a entregá-la
Maricá por apenas sete contos (Ramalho Rocha). junto com a contabilidade aos novos donos beneditinos (Vieira).
A animosidade por parte de De Saegher e de outros monges Sua recusa em aceitar um maçom como padrinho de batismo
devia-se não somente às suas opacas transações financeiras como envenenou ainda mais a relação com o Brasil. Sua casa foi me-
também às suas frequentes viagens e longas ausências. Van Caloen tralhada em 10 de dezembro e os monges tiveram que fugir para
atravessou 23 vezes o Atlântico, de preferência nos mais modernos a fazenda nacional de Capela. Foram viver um tempo entre os
steamers ingleses ou franceses, em primeira classe, onde celebrava índios na Missão de Surumu, cuidando de ‘4.000 a 5.000 almas’,
no salão missas para a alta sociedade a bordo, enriquecendo seu enquanto Van Caloen obteve proteção militar através do ministro
caderno de endereços. Suas repetidas viagens de trem pela Itália belga de Relações Exteriores. A morte de dois monges por febre
e Alemanha se justificavam no seu espírito para ganhar a bene- amarela em Belém em fevereiro de 1911 prolongou a inatividade
volência dos poderosos e ricos. Teve audiências com os papas e da missão tão distante. Van Caloen foi, aliás, estudar em George-
os cardeais da Cúria, duas vezes com o Rei Leopoldo II, com os town, uma ligação através da Guiana inglesa, mas preferiu ainda
presidentes brasileiros, de Campos Salles a Hermes da Fonseca. desta vez a rota do Amazonas. Nesta segunda viagem, em plena
Peçanha o recebeu quatro vezes em seis semanas. Aonde passava, crise da borracha, ficou bem impressionado como, perto de Ita-
visitava abades, bispos, governadores e até o Lord Mayor em Lon- coatiara, esta se superava pela valorização da agricultura. Esta re-
dres. Frequentava o rico barão bávaro von Cramer Klett e homens dimiria, no seu entender, Manaus do seu paganismo e favoreceria
de negócios. Em almoços com diplomatas belgas tratava dos in- a evangelização. Assim seus monges deveriam transformar tanto
teresses econômicos da Bélgica no Brasil e lhes pedia consulados os seringueiros como os índios em meeiros, um pouco como os
para seus amigos. Fazia sua mãe convidar no castelo de Loppem agricultores nas terras de sua família perto de Bruges. Em Manaus,
o embaixador Oliveira Lima ou o ex-governador de Pernambuco. visitou as autoridades e se aproximou do doutor Amoura, um dos
Nas longas viagens marítimas podia descansar e recuperar-se de chefes do Serviço de Proteção aos Índios. Se opinava que Rondon
suas crises cardíacas. Para a cura destas foi tomar cinco vezes um o tinha criado para contrariar a influência dos padres, preferia, no
mês de banhos em Bad Neuheim na Alemanha. Gostava também Brasil, flexibilizar sua aversão à maçonaria e manter relações, pe-
de banhos de mar, até nadar em pleno inverno na praia de Dieppe. lo menos, desde que recebesse acesso às colônias para ensinar a
Em toda parte fazia compras de objetos litúrgicos e livros. Esta religião. Fez também as pazes com Bento Brasil e seus agregados
intensa vida social, mundana demais e incompatível com o ideal e cortejou outros poderosos de Rio Branco, como o comerciante
monástico, o afastava de seus monges, ainda mais que, no Rio, dis- J. G. Araujo, que lhe facilitaram alojamento e transporte até Boa
punha de um apartamento abacial, além de seu retiro na Tijuca. Vista. Para um sexagenário doente a longa viagem em barcos sofri-
Se nos primeiros contatos encantava seus noviços e monges, dos, até num batelão sobre 200 bois, e o contorno a pé das catara-
estes, pouco depois, descobriam um abade altivo e severo, que lhes tas se revelaram uma penosa aventura. Aguentou firme, dormindo
recriminava continuamente falhas, neuroses ou outras indisposi- na rede, no barco, anotando no diário os batismos e casamentos a
ções para a vida monástica. Tratava seus secretários com aspereza. realizar e os lugares para a construção de capelas.

162
parte 5 – influências ideológicas e religiosas

Interior da Basílica Abacial de Nossa Senhora da Assunção do Mosteiro de São Bento, na cidade de São Paulo.

Na sede de sua prelazia fez em julho sua entrada solene de bis- aos índios e mais recursos aos monges para sua catequese, e ainda
po, preocupou-se com a igreja a reconstruir e consagrou o primei- melhorar a navegação e construir uma estrada de ferro de Manaus
ro sacerdote. Ainda fez expedições pelo rio e a cavalo com ­peões a Rio Branco e de Rio Branco a Georgetown. Esta era apenas
nas redondezas para sopesar o melhor lugar para a construção do uma quimera, mais de concessionários fantasiosos que chegaram
mosteiro São Bonifácio no morro São Bento e para os pastos do a interessar até o grupo belga da Banque de l’Outremer. Em Boa
gado. Nas fazendas Calungá e Capela teve enfim contato com os Vista, seu vigário-geral Bonaventure Barbier e, a seguir, o prelado
índios, que pareciam ter medo do homem branco. Pretendia evan- Pedro Eggerath conseguiram realizar algumas obras, uma escola,
gelizá-los e discipliná-los. Assim, proporcionaria uma mão de obra um hospital, um jornal e uma fábrica de charque, mas um pro-
abundante e regular aos agricultores das terras demarcadas. Seu jeto em 1925 de uma Companhia agroindustrial mais ambiciosa
convívio pessoal se limitou a uma dúzia de curumins. malogrou logo. Em 1948, os beneditinos entregaram o Rio Branco
Numa noite de agosto, armando sua rede, lhe alcançou a no- nas mãos de uma ordem italiana.
tícia da deflagração da guerra e da Bélgica incendiada. Logo re- Van Caloen regressou definitivamente à Europa em 1919 e
solveu voltar ao Rio. Passando por Manaus procurou obter uma terminou seus últimos anos na Côte d’Azur, em Antibes, onde
estrada e um caminhão para contornar as cataratas do Rio Branco. construiu uma capela bizantina para os emigrados russos. Lá fa-
No Rio de Janeiro, se implicou numa ‘Sociedade de Melhoramen- leceu em 1932, não muito longe das faustuosas Villa Léopold e
tos do Rio Branco’, mas que nunca funcionou. Ainda, em 3 de de- Villa des Cèdres de Leopoldo II. À primeira vista, Monsenhor Van
zembro de 1918, numa conferência na Sociedade de Agricultura, Caloen se parece algo com um clone clerical do rei dos belgas
publicada no Boletim da Câmara de Comércio belga no Rio de e famigerado fundador do Estado Livre do Congo. Nutria uma
Janeiro, advogava a valorização de Rio Branco. Além do sanea- ambição expansionista quase tão megalomaníaca e um gosto si-
mento com uma missão médica, propunha demarcar as terras, dar milar de construções, de viagens marítimas e balneários. Exibia,
títulos e repartir as grandes propriedades nacionais, dar trabalho inclusive, a mesma barba comprida do missionário, se bem que

163
parte 5 – influências religiosas e ideológicas

era de estatura baixa e bem mais novo. Se Leopoldo era um con- o projeto do arquiteto Richard Berndl em estilo neorromânico e
victo ensimesmado e autoritário por herança dinástica, o presun- decorada pelo monge de Maredsous, Adalbert Gressnigt, e por um
çoso Van Caloen se sentia investido pela providência divina. Esta leigo, Adrien van Emelen, irmão do monge Amaro van Emelen.
o acordava de noite para comunicar um encargo novo. Apenas O mosteiro do Rio de Janeiro se estabilizou sob o abade Egge-
chegou num Ceará castigado pela seca que choveu de imediato rath e manteve um colégio bem cotado; ao mesmo tempo, seria o
e tudo verdejou. Escapava de navios que naufragariam, como o melhor sucedido em suscitar vocações entre os próprios brasileiros
Sirio. Interpretava mortes imprevistas de adversários seus, como o e nacionalizar seu recrutamento de monges. A abadia da Bahia
presidente Pena ou o Núncio Bavano, como sinais providenciais. sofreu no conflito entre o arcebispo com seu abade, Dom Mayeul
Entretanto, o diário do impávido ativista atrai alguma curio- de Caigny, que acabou partindo em 1912 para fundar uma nova
sidade, sensibilidade e simplicidade mais humana, sobretudo na abadia em Barbados, Mount Saint Benedict. A de Olinda contou
Amazônia. Em 1914, no Tocantins, o prelado vai morar dois dias mais três mortes numa epidemia de febre amarela em meados de
em Pinheiro numa casinha muito simples e pôs até um curativo 1904. Sob seu severo abade Peter Roeser, criou uma escola supe-
no pé ferido de um menino, se bem que logo pensou em levá-lo rior de agricultura e medicina veterinária, dirigida em 1927 por
como doméstico. Na serra de Araraquara, em Rio Branco, voltou Amaro van Emelen, conhecido por seus trabalhos sobre a apicul-
a ser umas horas o monge sonhador, imaginando construir seu tura, e mais tarde incorporada pela Universidade Federal Rural
mosteiro num promontório em meio à natureza selvagem. Quan- de Pernambuco. Malogros seriam as abadias da Paraíba e, sobre-
do os confrades belgas e alemães lhe resistiam, era às vezes capaz tudo, a de Santa Cruz de Quixadá. Esta acabou fechando devido
de humildade e obediência. Com o tempo os primeiros monges às secas repetidas, ao isolamento e aos altos e baixos de seu colé-
brasileiros amansaram sua voluntariosa restauração beneditina nu- gio em consequência de campanhas hostis em Fortaleza com sua
ma espiritualidade tradicionalista. suspensão final em 1909. Faltou-lhe um abade de pulso, segundo
Van Caloen tinha confiado o mosteiro de São Paulo a Dom Van Caloen, uma vez que não conseguiu levar para lá o empre-
Miguel Kruse em 1907, um alemão de forte personalidade e em- endedor Dom Jean de Hemptinne. O abade Lucas Heuzer não
preendedor, que durante mais de 20 anos firmou-se na paisagem soube aproveitar a visita do padre Cícero, e sua difamação junto
religiosa e intelectual desta futura metrópole. Além de um colé- ao bispo de Crato fizeram o profeta do Cariri legar parte de sua
gio, bem frequentado e reputado, abriu em 1908 uma faculdade fortuna para os salesianos.
com o primeiro curso de Filosofia, para o qual contratou com um Quanto à abadia ‘brasileira’ de Saint-André, Van Caloen a co-
bom salário o padre belga secular Charles Sentroul, discípulo do nectou em 1910 com uma nova missão beneditina em Katanga,
Cardeal Mercier, capaz de malabarismos entre o neotomismo, o no Congo, que cresceu em importância uma vez que em 1912 se
kantismo e a ciência, mas também brincalhão, apreciado até pe- deixou substituir como abade por Dom Théodore de Neve. Este
lo jovem Oswald de Andrade, e briguento durante a guerra com ainda solicitou ajuda pecuniária do Brasil, mas o destino brasilei-
o abade alemão. Quando voltou à Bélgica em 1919, somente em ro dos monges minguou pouco a pouco no horizonte em favor de
1922 reabriu o curso com outro belga, Léonard van Acker, e com missões em outros continentes. Os poucos retornados do Brasil
o português Alexandre Correa, dois leigos formados em Lovaina. cultivaram algum tempo as memórias do país, hoje quase com-
Em 1910, Kruse começou a construção de uma nova igreja com pletamente apagadas.

Os cônegos brancos e outras ordens belgas


Eddy Stols

O s premonstratenses ou norbertinos, mais conhecidos como


cônegos ou padres brancos, prosperavam na Bélgica em meia
dúzia de abadias. Tradicionalistas tranquilos e menos intelectuali-
paróquia, poderia em parte financiar a construção de um colé-
gio. Este veio a ser monumental, com uma capela e a mobília
em estilo neogótico, algo destoante com o barroco tradicional
zados que os beneditinos, figuravam um pouco como manda-chu- da igreja abaixo. Logo serviu também de seminário menor, que
vas no meio rural, mais ainda entre seus próprios arrendatários. deveria levar centenas de jovens ao sacerdócio, até 1948 quan-
Em 1896 Van Caloen recomendou aos premonstratenses da aba- do este preparo lhes foi retirado. Paralelamente os cônegos pro-
dia de Averbode o pedido do bispo de São Paulo, Joaquim Arco- curavam recrutar para sua própria ordem e enviavam noviços à
verde, para que tomassem a direção de seu seminário. abadia mãe em Averbode, até que, em 1930, criaram seu próprio
Os dois primeiros, Vincent Van Tongel e Rafael Goris, che- noviciado em Pirapora.
garam em dezembro de 1896 e o bispo lhes confiou o santuário Entrementes, vieram mais religiosos de Averbode, o suficiente
Bom Jesus de Pirapora, interior de São Paulo, que, elevado a para encarregarem-se em 1901 do Colégio do Espírito Santo em

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parte 5 – influências ideológicas e religiosas

Vista de Pirapora do Bom Jesus, interior de São Paulo.

Jaguarão, no Rio Grande do Sul, bem perto do Uruguai. Este teve fundação de um priorado em Jaú, elevado a abadia em 2000. Em
algum êxito e, depois da compra de um edifício maior, em 1903, Pirapora já não exploram o santuário, mas mantêm sua casa para
teve mais de cem alunos, mas, por falta de equiparação com o en- retiros e museu de arte sacra com obras do irmão José Withofs.
sino estadual, fechou em 1912. Foram então abrir outro colégio Outra abadia premonstratense, ‘t Park ou Abadia do Parque,
em Jaú, Estado de São Paulo, mas por falta de êxito fechou em na periferia de Lovaina, seguiu a senda brasileira a convite do bis-
1968. Antes, em 1909, assumiram a pedido do Núncio a direção po de Mariana, Silvério Gomes Pimenta, e, em 1898, o próprio
de um colégio em Petrópolis, para o qual alugaram o Palácio Im- abade, Quirinus Nols, acompanhou os três primeiros cônegos.
perial, vazio na época. Primeiro assumiram o serviço pastoral em Congonhas do Campo
Quando, em 1939, o edifício foi requisitado pelo governo para (MG), que, em conflito com a mentalidade local, abandonaram
instalar o museu imperial, construíram, em 1941, um novo prédio em pouco tempo. Tampouco persistiram no colégio aberto em
na estrada para o Rio. Este colégio fechou em 1992. Como na Bél- 1900 em Sete Lagoas (também no Estado de Minas), logo fecha-
gica, alguns cônegos prestavam também serviço paroquial, como do por falta de alunos. Finalmente, seduzidos pelo bispo de Dia-
na igreja de São José, na cidade de São Paulo. De 1898 a 1905 mantina, Joaquim Silveira de Souza, assentaram-se, em 1903, no
partiram de Averbode 35 religiosos, quase a metade de irmãos, que norte de Minas, em Montes Claros. Desta base prestavam serviços
assistiam os cônegos como marceneiros, cozinheiros, alfaiates e pastorais em Bocaiuva, Morrinhos, Salinas, Januária, Tremedal,
domésticos. Os últimos reforços chegaram nos anos de 1950. De Jequitaí e outras missões pelo Alto São Francisco. Batizaram e ca-
um total de quase cem religiosos, a grande maioria voltou à Bél- saram, restauraram ou melhoraram diversas igrejas e organizaram
gica. As repetidas tentativas de montar uma abadia de vida regu- novas confrarias. Em Montes Claros mesmo fundaram o Colégio
lar no modelo belga se frustraram, mas resultaram finalmente na São Norberto, com um observatório meteorológico, compraram

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parte 5 – influências religiosas e ideológicas

Ao fundo, Santuário do Senhor Bom Jesus e Seminário Premonstratense em Pirapora do Bom Jesus, interior de São Paulo, 2013.

uma tipografia e lançaram o semanário A Verdade (1907-1917). le sertão de Minas (Lovaina, 1910), transparecem maior convivên-
Pretendiam concentrar-se na fundação de um convento, mas não cia e curiosidade com a cultura popular que entre os beneditinos.
resistiram a novos convites em 1919 para cuidar de paróquias na Schoenaers se deixou fascinar pela cultura negra em terras gaú-
periferia do Rio de Janeiro, que trocaram, em 1921, por Teresópo- chas. Gaspar, um Guimarães Rosa avant la lettre, se encantou pe-
lis. Por falta de mais padres belgas, priorizaram novamente Montes las andanças por serras e chapadões mineiros em caravanas com os
Claros, que, com uma escola apostólica, facilitou o recrutamento camaradas e pela hospitalidade generosa nas fazendas. Gostavam
de brasileiros, a sobrevivência da ordem no Brasil e a criação re- dos encontros e das entradas com fogos de artifício, das congadas
cente de um priorado. de negros e de procissões, desde que as dirigissem.
Se os premonstratenses enviaram mais religiosos que os bene- Mesmo assim, segundo o antropólogo Darcy Ribeiro, nativo
ditinos, seus resultados foram modestos, devidos em primeiro lu- de Montes Claros, ‘o movimento da ortodoxia romana comanda-
gar à instabilidade de suas fundações e às contínuas viagens pelo do pelos padres de batinas brancas que nem se casavam, falavam
Brasil ou de volta à Europa. Poucos ficaram para temporadas mais mal português e só sabiam perseguir as formas tradicionais de re-
longas. Em Minas, quase como padres ambulantes, andavam por ligiosidade popular quase matou o catolicismo em Montes Claros.
muitos dias a cavalo e vários sofreram problemas de saúde, inclusi- Nos espaços abertos por eles se multiplicaram o espiritismo, o can-
ve paludismo, com algumas mortes prematuras. Misturavam o ser- domblé e ultimamente o protestantismo, cada vez mais vigorosos’
viço paroquial com o ensino, sem ter formação ou experiência pe- (Confissões, Rio de Janeiro, 1997, p. 58-63). Efetivamente, algo
dagógica. Seus colégios se destacavam antes em bandas musicais prepotentes, como suas aldeias flamengas, enfrentavam tradições
ou em teatro, como o grupo São Genesco, em Montes Claros. Em e líderes locais e reagiam com uma virulência, pouco brasileira,
suas cartas para a revista de propaganda ‘t Park’s Maandschrift, no contra protestantes e maçons. Em Jaguarão e Salinas, sustentaram
seu uso da fotografia e nos livros dos padres Thomas Schoenaers, polêmicas imprudentes sobre pretensas bíblias falsas. Em Congo-
Drie jaar in Brazilië (Averbode, 1904), e Maurice Gaspar, Dans nhas do Campo, mandaram desenterrar um maçom sepultado na

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parte 5 – influências ideológicas e religiosas

Vista da fachada posterior do Seminário Premonstratense em Pirapora do Bom Jesus, São Paulo, 2013.

igreja. Paralelamente, seus projetos de vincularem-se à imigração à presença de uma companhia agrícola belga. Se retiraram em
e aos investimentos belgas, como no apelo do cônego Peffer aos 1936. Outras ordens francesas ou italianas levaram membros bel-
industriais belgas da metalurgia, não vingaram (Peffer). gas para o Brasil como os lazaristas, dos quais alguns belgas se en-
Falta examinar se a crítica de Darcy Ribeiro atinge também contram sepultados na cripta do Colégio do Caraça, em Minas
as outras congregações, que enviaram padres belgas para o Brasil. Gerais; os salesianos no Mato Grosso, ou os barnabitas no Pará.
Os Missionários do Sagrado Coração de Jesus, de origem france- Estes últimos, expulsos da França para Mouscron, embarcaram
sa, mas com um convento em Borgerhout, chegaram em 1911 para Belém em 1903. Lá alçaram sua igreja de Nossa Senhora
como professores do seminário em Pouso Alegre (MG). Logo se de Nazaré, a basílica, e relançaram o Círio. Entre os irmãos das
encarregaram de paróquias como a de Bauru, a partir de 1913, as escolas cristãs ou lasallistas, que saíram da França em 1907 para
de Campinas e de São Paulo e abriram, em Pirassununga, uma organizar escolas em Porto Alegre, havia belgas, como o irmão
escola apostólica. Nos anos de 1950 se disseminaram no Paraná. Justino, que partiu depois para o Congo. Ainda foi o caso entre os
Já depois da Primeira Guerra Mundial, os Josefitas, uma con- maristas, que em sua escola em São Luís do Maranhão tinham,
gregação belga reputada por seus prósperos colégios, empreen- em 1914, como diretor um irmão, Paul Berckmans, e um ‘time
deram em 1924, no sul da Bahia, em Una, uma fundação ligada belga’ de futebol entre os alunos.

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parte 5 – influências religiosas e ideológicas

O excêntrico padre Júlio Maria de Lombaerde


Eddy Stols

T al qual um solitário cavaleiro andante da devoção cordima-


riana, abriu seu caminho o padre Julio Maria de Lombaerde
(1878-1944). Filho de pequenos camponeses de Beveren, perto
de Waregem, começou com apenas 17 anos um noviciado como
irmão dos Pères blancs na Algéria. Doente, acreditou-se curado
pela Virgem Maria e decidiu dedicar-lhe doravante sua vida. Se
fez padre na congregação francesa de vocações tardias, a Sagra-
da Família, que o destinou ao Brasil. Em 1912 chegou a Recife,
aprendeu o português em Natal, conheceu em São Gonçalo a
religiosidade sertaneja e seguiu, em 1913, para Macapá.
Percorreu essa região amazônica de pouca presença eclesiás-
tica a cavalo ou de bote, relatando em crônicas Vers les Amazones
suas visitas à colônia indígena dos capuchinhos e suas observações
de cerimônias afro-brasileiras. Na cidade inventou seu método
missionário de catecismo e escola, batismos e casamentos, assis-
O padre Júlio Maria de Lombaerde a cavalo na região amazônica.
tência higiênica e diversões com banda, grupo teatral e até cine-
ma. Para atrair os negros, lançou uma confraria de São Benedito.
Às mulheres, marginalizadas numa religião popular, a seu ver, 1926, e, depois, em 1928, a convite do bispo de Caratinga, para
dominada por homens, oferecia seu culto da Virgem Maria. Não Manhumirim, em Minas Gerais.
encontrando freiras para auxiliá-lo na fundação de um colégio, Nessa região de imigração recente, em parte alemã, entrou lo-
organizou sua própria congregação em 1916, as Filhas do Cora- go em choque com o prefeito, os protestantes, maçons e espíritas
ção Imaculado de Maria. e lançou suas diatribes num novo jornal, O Lutador, e em vários
Já nessa época acostumou a confrontar-se com inimigos, no panfletos, como O diabo, Lutero e os protestantes, distribuídos pe-
caso, um farmacêutico espírita. Com a morte de uma freira e de lo Brasil inteiro. Alto, esbelto, com pequenos óculos, longa bar-
alunas, surgiram mais críticos, até que ele transferiu sua escola em ba e crucifixo no peito – versão nórdica do padre Cícero –, este
1923 para Pinheiro ou Icoaraci, bairro de Belém. Nesse colégio, o Terror dos herejes fulminava temores escatológicos em O fim do
Nossa Senhora de Lourdes, ainda existente, não faltou nem a répli- mundo está próximo? Em Anjo das trevas desmascara as seis pragas
ca da gruta, construída com suas próprias mãos. Novos problemas, finais da maçonaria, do protestantismo, espiritismo, divorcismo,
talvez financeiros, e outras desconfianças, ainda não elucidadas, sen­sualismo e comunismo. Proteção e salvação oferecia o Cora-
levaram-no primeiro a um posto de pároco em Alecrim (RN), em ção de Maria, que acreditava estar presente junto com o filho no
tabernáculo do sacramento.
O padre Júlio Maria de Essa devoção, algo heterodoxa, lhe inspirou a fundação de
Lombaerde. mais duas ordens, os missionários sacramentinos e as irmãs sacra-
mentinas. Entrementes, se revelou também um construtor incan-
sável. Além de concluir, em 1930, a primeira igreja em concreto
armado – mas em estilo neogótico –, levantou um seminário apos-
tólico, um hospital e o Colégio Santa Terezinha. No início teve
um sobrinho como auxiliar por três anos, o padre Hyppolite De-
poorter, e em 1931 recebeu a visita do irmão Achille, missionário
na Mongólia, o outro sobrevivente de nove irmãos.
Em 1941 celebrou sua naturalização brasileira. Sua morte na
véspera de Natal, em 1944, em acidente na direção de seu auto-
móvel, alentou seus fiéis a cultuá-lo em relíquias, livros e até nu-
ma opereta. Nos murais de seu museu aparece exaltado como um
profeta-protetor no meio de um grupo de padres, freiras e curu-
mins. O movimento dos ‘juliomarianos’ procura sua beatificação,
desculpando seu fanatismo antiprotestante como comum a tantos
outros líderes católicos da época.

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parte 5 – influências ideológicas e religiosas

O sonho monástico de José Moreau


em Tabatinguera (Cananeia)
Eddy Stols

O congestionamento de vocações no final do século XIX em-


purrou alguns sacerdotes diocesanos a procurar cargo e sus-
tento no Brasil, como Eugène Tyck, vindo da África e ativo no Rio
Depois do malogro com os belgas, e queixando-se de ‘inimigos
maçons e protestantes’, Moreau esperava vender a uma congrega-
ção religiosa a metade dessa propriedade e utilizar o dinheiro na
Grande do Sul em 1907-1908, ou Jean-Baptiste Van Esse. Este exploração do resto pelo irmão. Sua oferta ao abade Van Caloen,
parece ter inspirado um colega seu de seminário, José Moreau, a em 1899, para estabelecer uma comunidade ‘num lugar mais
seguir seus passos. Seu atribulado percurso brasileiro – fragmen- sadio que o Ceará’ foi descartada, mas logo pensou nos monges
tário pelas poucas cartas disponíveis – destoa da história conven- olivetanos ou trapistas. Talvez tivesse conhecimento de um proje-
cional da romanização (Arquivo Saint-André; Amaeb, 2.806, IV). to anterior quando, em 1858-1859, o governo do Império aceitou
Como Moreau não encontrou na Bélgica uma paróquia de uma proposta do superior trapista belga Van State para abrir um
renda suficiente para sustentar sua mãe e falhou na tentativa de ou dois estabelecimentos coloniais no Brasil, que, a exemplo da
fundar um convento no Congo, juntou-se, em 1895, ao abade Bélgica, exerceriam uma boa influência sobre seus vizinhos la-
Van Caloen com a intenção de se fazer beneditino no Brasil. Mais vradores (Relatório do Império). Além das passagens, receberiam
preocupado em resolver suas dívidas, deixou o noviciado e foi ga- terras perto da colônia militar de Pimenteiras, em Pernambuco,
nhar a vida como vigário de Iguape, no litoral paulista, um posto mas sua vinda não se concretizou. Em maio de 1903 Moreau
já ocupado pelo compatriota Van Esse. Brigas com outros padres se encontrou, na França, com Dom Chautard, que estava pro-
a respeito de emolumentos sobre batizados e casamentos e do rou- curando para onde transferir seus monges da Abadia trapista de
bo de uma imagem de São Miguel fizeram-no mudar para Porto Sept-Fons, ameaçados de expulsão pela Loi Combes. Conseguiu
Alegre em 1897, onde serviu por vários anos na paróquia de Nossa seduzí-los a vir para Cananeia, mas, uma vez lá, os monges jul-
Senhora dos Navegantes e reanimou sua famosa procissão fluvial. garam o lugar isolado demais.
Lá vieram também residir sua mãe e o irmão Adolphe, farmacêuti- Nova ideia sua, exposta numa ‘Notice sur le domaine de Taba-
co. Van Caloen, que se reencontrou com Moreau no Rio em 1903, tinguará’, de 14 de julho de 1905, era doar a propriedade ao rei
sabia que seu bispo estava contente com este padre inteligente, belga Leopoldo II como uma ‘colonie congolaise’, onde religiosos
mas demasiado preso às ‘affaires temporelles’. Segundo o cônsul belgas educariam umas 20 crianças para tornarem-se colonos no
belga em São Paulo, era interditado de missa e teria explorado vá- Congo. Leopoldo II tampouco aceitou. Em 1909, Moreau voltou
rios compatriotas ‘chamados em 1898 para uma fazenda’. a procurar imigrantes belgas, mas sem a confiança do cônsul de
Mais do que provável, tal fazenda era a de Tabatinguará, em São Paulo, Robyns de Schneidauer, que o conheceu nesse mesmo
Cananeia, uma área de 709 alqueires ou 2.420 hectares, que Mo- ano em Porto Alegre, ‘possuído pelo espírito mercantil’. Pouco
reau comprou, ‘com um fim humanitário’, de Maria Isabel Ca- depois, foi à Bélgica buscar a filha do irmão, que agora atuava co-
margo em 3 de julho de 1897, sendo vigário em Iguape. Pelas suas mo médico e farmacêutico em Garibaldi (RS). Numa inesperada
notas seria ‘vasta como metade da Bélgica, muito pitoresca, de clima peripécia, em agosto de 1911 estava em Recife (PE) de partida
temperado e salubre, sem epidemias, outrora visitada por Martim para ocupar no Congo o posto de pároco em Elisabethville. De
Afonso, rica em restos do ouro, mármore branco, sambaquis para lá, publicou efetivamente cartas no Bulletin des Oeuvres et Mis-
servir de cal de construção, madeiras preciosas, pastos para gado, sions Bénédictines au Brésil de 1911-1912. No início da Primeira
muito pescado, inclusive lagostas e ostras, muita caça como a anta, Guerra Mundial, reapareceu como vigário em Bananal (SP), pro-
de carne e pele parecidas com o boi, as pacas, de carne mais fina curando dinheiro e subsídios para buscar órfãos e agricultores na
que o porco, e até pássaros de plumagem valiosa’. Bélgica, França e Inglaterra. Neste sentido pressionou, em carta
Dizia ainda que até a abolição suas terras férteis produziam de 27 de outubro de 1914, o ministro belga das colônias, que co-
arroz, açúcar, mandioca, feijão, algodão, tabaco e até trigo, mas nhecia de Elisabethville, com uma proposta sobre Tabatinguera,
com a falta de braços estavam abandonadas. Os proprietários te- mas este a julgou pouco séria.
riam migrado para a cidade e seus moradores viviam da pesca à Em mais um episódio misterioso, Moreau subscreveu em se-
espera de um novo empresário. Assim a fazenda tinha comunica- tembro de 1917 uma carta, enviada de ‘Nova Lerina’ – sem dú-
ção fácil e podia sustentar uma comunidade numerosa. Cananeia vida sua fazenda de Tabatinguera –, como ‘père Marie Honorat
não seria tão isolada: havia quatro vezes por mês um vapor de Moreau, o. cist.’ Pelo visto, convenceu finalmente um outro aba-
passagem e correio terrestre três vezes por semana. Tabatinguará de trapista, Patrice Léron, de Saint-Honorat na Ilha de Lérins,
se encontraria a quatro horas de canoa, que um pequeno vapor na Costa Azul, a instalar uma filial em Cananeia. Dom Patrice
reduziria a uma hora. morreu pouco depois, mas, em 1918, Moreau dizia continuar

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parte 5 – influências religiosas e ideológicas

sua obra como ‘superior’. Após ter recebido um padre de coro o futuro poeta Géo Libbrecht, mas estes logo se desencantaram
e dois conversos, planejou ir a Lérins para fazer sua profissão e abandonaram Tabatinguera.
eterna, mas a saída de ‘dois falsos irmãos’, a falta de noviços e a Pouco depois, em 29 de abril de 1921, o novo abade de Lérins
‘caixa vazia por causa de um traidor’ fizeram periclitar seu mos- se queixou a Van Caloen que Moreau conseguira captar a confian-
teiro. Pensava sacar novos fundos de uma ‘Piedosa Liga para o ça de seu predecessor abade Patrice por pelo menos 60.000 francos
Livramento das Almas do Purgatório’, que se estabeleceria no Bra- em numerário e mais um material considerável. Destinou o dinhei-
sil inteiro, em Campinas (SP), em Minas e no Piauí, talvez até ro para melhorar sua propriedade e estava vendendo o material.
em Rio Branco. Para construir uma igreja dedicada às Almas do Mesmo assim, em 18 de maio de 1921, Moreau seguiu usando o
Purgatório, servida pelos cistercienses, pediu o apoio a seu velho hábito branco cisterciense e recolhendo inscrições para sua piedosa
conhecido Van Caloen, que o convidou a vir descansar com ele. liga. Desvanecido o sonho monástico, teve que assumir novos car-
Em janeiro de 1919 estava em Dakar a caminho de Lourdes. Des- gos paroquiais em Porto Ferreira e Rio das Pedras, cidades de São
ta vez conseguiu atrair jovens belgas escapados da guerra, como Paulo, onde teria terminado a vida e provavelmente está sepultado.

A Trapa Maristela (1904-1931)


J o s é E d ua r d o M . M a n f r e d i n i Jú n i o r

A Trapa Maristela foi um mosteiro da ordem cisterciense da


Estrita Observância, mais conhecida como ordem trapista,
fundado em 19 de agosto de 1904 na cidade de Tremembé, Es-
brasileiro, uma vez que ele vinha incentivando a policultura co-
mo meio de diminuir a produção de café. Para Tremembé, por
exemplo, a produção de arroz traria, pela influência dos monges,
tado de São Paulo. Seu fundador foi o abade Dom Jean-Baptiste a construção do desvio da Estrada de Ferro Central do Brasil.
Chautard, responsável pelos mosteiros franceses de Sept-Fons e Contrariando as orientações do governo de importar mão de
Chambarand. obra europeia, para branquear a população brasileira, optou-se por
Em 1903, as ações da Terceira República francesa contra a empregar o trabalhador nacional. Mão de obra barata e de fácil
Igreja e as ordens religiosas se acentuaram, fazendo com que Dom exploração, contudo marginalizada pela elite. No início, foram
Chautard passasse a procurar um refúgio para os monges em caso empregados cerca de 500 trabalhadores, entre homens, mulheres
de expulsão. Concentrando suas buscas na Europa, não obteve e crianças. Muitos destes já se encontravam na fazenda quando
sucesso. Incentivado pelo abade Moreau, de origem belga, dono os monges chegaram e, na sua maioria, eram ex-escravos (Gaffre,
de uma propriedade em Cananeia, litoral sul de São Paulo, Dom 1912, p. 293). Posteriormente, o número de trabalhadores dimi-
Chautard veio para o Brasil, mas descartou essa propriedade (Au- nuiu para cerca de 300, variando de acordo com a necessidade
drá, 1951, p. 35-36). das atividades desenvolvidas.
No início de 1904, foi escolhida em Tremembé a antiga e fa- Seguindo as orientações da encíclica Rerum Novarum, do Papa
lida fazenda de café ‘das Palmeiras’, cuja extensão ia das margens Leão XIII, a comunidade religiosa e a Companhia proporciona-
do Rio Paraíba até a encosta da Serra da Mantiqueira. Em maio ram aos trabalhadores uma série de ‘benefícios’, como meio de
daquele ano, a propriedade foi comprada pelo conde francês Hen- aumentar a produtividade e o lucro, além de colocar em prática
ry de Legge, com quem os monges fizeram uma sociedade que o que a Igreja pregava. Na década de 1910, a Trapa Maristela se
contava com a participação de alguns brasileiros. Em 1906, foi tornou também uma referência na utilização da mão de obra na-
fundada em Londres, pelo Conde de Legge, a ‘Companhia Pal- cional (Limongi, 1916, p. 367), aumentando, ainda mais, o fluxo
meiras Limitada’, que passaria a contar com acionistas ingleses. de visitas oficiais dos governos estadual e federal.
Entretanto, coube aos trapistas administrar e explorar a fazenda Em 1925, com o alto custo da produção de arroz e sob a pres-
de pouco mais de 2.500 hectares. são da Ordem, que havia decidido fechar os mosteiros que não
Em 1905, a Trapa Maristela passou a produzir arroz na vár- tivessem conseguido vocações locais, decidiu-se vender o Berisal.
zea – numa área chamada de Berisal –, pelo sistema irrigado por No ano seguinte, os monges começaram a retornar à Europa em
inundação. A partir da Trapa, a rizicultura se expandiu por toda pequenos grupos. A princípio, o destino era Portugal. Mas, devido
a extensão da parte paulista do Vale do Rio Paraíba, fazendo com à reconstrução da abadia de Orval, parte dos monges foi enviada
que a região se tornasse uma grande produtora desse cereal. Na para a Bélgica, onde, certamente, foi empregado o dinheiro da
fazenda, a rizicultura era acompanhada da criação e seleção de venda do Berisal. A outra parte voltou para Sept-Fons. No fim de
diversos tipos de animais, da produção de café e de vários tipos de 1928, a comunidade de Orval já contava com 28 religiosos.
frutas, além de mel, vinho e cerveja. Com isso, a Maristela passou Em 1931, a parte alta da fazenda, onde se localizava o mos-
a ser considerada um polo agrícola de referência para o governo teiro, foi vendida pela Companhia a um grande industrial de

170
parte 5 – influências ideológicas e religiosas

Taubaté, Mario Boeris Audrá, por 150 contos de réis. Já os ani- Atualmente, a parte alta da antiga Trapa Maristela, particular-
mais, os maquinários, as ferramentas, os móveis, dentre outras mente o local onde era o mosteiro, é a sede de um hotel fazenda.
benfeitorias, foram vendidos pelos monges a Audrá por 160 Já no Berisal, conserva-se a capela construída pelos monges em
contos de réis. 1917, e ainda pode-se ver, em estado de grande deterioração, o so-
Destarte, o último grupo de monges retornou à França, fi- lar construído em 1908 para abrigar os monges que gerenciavam a
cando apenas um monge em terras brasileiras, o holandês irmão produção de arroz, que ainda continua vigorosa em toda a região.
­Leonard Van Lier, que se transferiu para o mosteiro de São Bento,
na cidade de São Paulo, onde faleceu em janeiro de 1948. Em José Eduardo Manfredini Júnior, graduado em História pela Uni-
suma, a Trapa Maristela foi uma referência durante os 27 anos de versidade de Taubaté (Unitau), é professor de História na rede muni-
sua existência, proporcionando a Tremembé e à região grandes cipal de ensino de Taubaté-SP e na rede pública de ensino do Estado
avanços econômicos e sociais. de São Paulo.

Orval, uma grande abadia belga, com substrato brasileiro


Peter Heyrman

A abadia trapista de Orval (Vale de Ouro) se situa efetivamente


num vale pitoresco e fértil no sudeste da Bélgica, a pouca
distância da fronteira com a França, na região da Gaume, que
goza de um microclima de temperaturas em média mais altas
que nas Ardenas. Nos últimos anos sua fama cresceu bastante
graças à cerveja que produz desde 1931, em quantidade limitada.
Entre as seis cervejas trapistas belgas reconhecidas, é apreciada
pela sua qualidade artesanal, pelo menor teor de álcool e por seu
gosto mais seco.
A abadia de Orval tem um longo e perturbado passado. Sua
fundação dataria de 1070, em plena guerra de investidura. Os pri-
meiros monges, beneditinos italianos, preferiram logo voltar para
o sul mais quente. Em 1132 chegaram os primeiros sete monges
cistercienses, enviados e talvez acompanhados por seu fundador,
Bernardo de Clairvaux. Orval foi a primeira fundação desta ordem
nos Países Baixos. Nos séculos seguintes a abadia aumentou pro-
gressivamente suas terras de exploração agrícola e suas fundições
de ferro se destacaram entre a metalurgia europeia. A abadia par-
ticipou ativamente dos movimentos de reforma da ordem depois
do Concílio de Trento e adotou desde 1593 as regras severas da
‘estrita observância’. Bastante exitosa, Orval contava 130 monges
em 1723. As rendas crescentes da comunidade foram investidas
desde 1760 em um imponente conjunto abacial, projetado pe-
lo arquiteto ‘ilustrado’, Laurent-Benoît Dewez. Entretanto, este
nunca se concluiu, porque foi pilhado e destruído em 1793 pelas
tropas revolucionárias francesas. A comunidade fugiu e as terras e
as ruínas foram vendidas pelas autoridades francesas.
Durante o século XIX, período do revival religioso, numerosas
comunidades religiosas conseguiram reocupar suas antigas funda-
ções, mas não foi o caso de Orval. A abadia trocou várias vezes de
proprietários, que exploraram sem vergonha as ruínas como pe- A abadia de Orval, no sudeste da Bélgica, vista do cláustro e da torre da igreja.
dreiras. Estas, no meio da floresta, atraíam cada vez mais turistas,
ainda mais depois das visitas de Victor Hugo em 1862-1864. Foi às primeiras obras de restauração. Este interesse público se devia
publicado em 1913-1914 um decreto de proteção, dando início em boa parte ao pároco da aldeia vizinha de Villers-devant-Orval,

171
parte 5 – influências religiosas e ideológicas

trução e um dos líderes do movimento católico das classes mé-


dias na Bélgica antes da Primeira Guerra Mundial. Em agosto de
1914, este celibatário de 40 anos se apresentou como voluntário e
fez uma carreira militar notável na frente de batalha do Yser. Em
novembro de 1918 voltou a Gand como tenente e famoso herói
de guerra e retomou seu compromisso social e político. Dispu-
nha de diversas e largas redes de amigos e de bons contatos na
ala direita do partido católico. Como ex-combatente desfrutava
efetivamente de boa reputação na corte. Podia ambicionar um
mandato no parlamento. Mas em 30 de outubro de 1919, Van
der Cruyssen surpreendeu amigos e inimigos por sua repentina
partida de Gand. Umas semanas mais tarde soube-se que entrou
na La Grande Trappe em Solignies (Normândia). O noviço de
45 anos recebeu o nome de Marie-Albert e foi ordenado padre
em dezembro de 1925. Em razão de sua experiência profissio-
nal, o novo monge foi encarregado pelo abade Jean-Marie Clerc
(1882-1971) dos problemas materiais (cellarius).
Os dois visitaram em 8 de maio de 1926 as ruínas da abadia
de Orval. Se entenderam também com os proprietários do antigo
complexo abacial, a família de Harenne. Esta tinha pouco antes
contatado a abadia de Solignies. Seu desejo de devolver a con-
trovertida propriedade à ordem se relacionou logo com os planos
de reconstrução da abadia e, levando em conta o passado de Van
der Cruyssen, lhe foi confiado o dossiê. Ele formou, em 8 de ju-
lho de 1926, com alguns bons amigos de Gand, uma sociedade
sem fins lucativos. Onze dias depois a família de Harenne doou
Marie-Albert Van der Cruyssen e o arquiteto Henry Vaes na Abadia de Orval.
sua propriedade a essa entidade jurídica. A iniciativa já corres-
pondia à necessidade de um lugar para os monges de Sept-Fons,
Nicolas Tillière (1845-1916), que organizava peregrinações e co- que regressavam do Brasil. Em 6 de novembro foi acertado defi-
memorações para o culto de Nossa Senhora de Orval e escrevia nitivamente que os monges de Maristela alojar-se-iam em Orval
poesias românticas sobre o lugar, seu profundo significado reli- e que Sept-Fons forneceria também o indispensável para formar
gioso e seu trágico passado. O tema da abadia, mártir da violência a nova comunidade.
revolucionária, cultivado nos meios católicos conservadores. A reconstrução de Orval foi uma empreitada impressionante,
Tillière esperava o regresso dos cistercienses e uma primeira dirigida por Marie-Albert Van der Cruyssen de maneira enérgi-
ocasião se apresentou quando, em 1901, o abade Jean-Baptiste ca, mas nem sempre correta. Van der Cruyssen mobilizou para
Chautard (1858-1935), da trapa de Sept-Fons, se informou sobre o projeto todos os seus contatos de negócios e de amizade. Sabia
o estado das ruínas. Ele procurava um bom lugar para fundar um recolher dinheiro em todas as partes. Começou uma exitosa cer-
priorado. O ambiente na França de crescente anticlericalismo – o vejaria (1931) e uma queijaria (1932). Mobilizou a nobreza e a
Combismo – incitava a comunidade de Sept-Fons a emigrar para casa real e sabia, com pregações, festivais de todo tipo, venda de
o exterior. Seus correspondentes belgas divergiam a respeito da selos e uma equipe de ajudantes voluntários muito ativos, envol-
excelente localização, da habitabilidade das ruínas e do potencial ver quase toda a comunidade católica belga nessa iniciativa. Orval
econômico e religioso da região. Assim, Chautard começou a pros- foi, ao lado da basílica de Koekelberg, em Bruxelas, sem dúvida o
pectar outras localizações na Escócia e na Polônia, mas decidiu- projeto católico mais presente na mídia no período entre as guer-
-se finalmente pela fundação de um priorado no Brasil. Em 19 de ras. Realizou um conjunto monumental numa estética moderna.
agosto de 1904 a abadia de Sept-Fons enviou um pequeno grupo Renomados artistas belgas, como Albert Servaes (1883-1966) ou
de monges para Tremembé, perto de Taubaté, no Estado de São Oscar Jespers (1887-1970), foram convidados. A colaboração entre
Paulo. Lá fundaram o mosteiro de Nossa Senhora de Maristela, Van der Cruyssen e o arquiteto Henry Vaes (1876-1944) foi deci-
que não se revelaria um êxito vocacional. siva em todo o projeto.
Na mesma época em que Chautard decidiu chamar a comu- Van der Cruyssen, bastante ocupado com o projeto de cons-
nidade de Maristela de volta, o dossiê do destino das ruínas de trução e seu financiamento, se encontrava frequentemente em
Orval avançou de novo. E, desta vez, a ‘ressurreição de Orval’ Bruxelas e seu nome aparecia também, nos anos de 1930, em
prosseguiu. A figura central nesta história foi o gandense Karel muitos dossiês políticos. O bem-estar de sua jovem comunidade
Van der Cruyssen (1874-1955), empresário de decoração e cons- religiosa o preocupava bem menos. Esta nunca contaria mais de

172
parte 5 – influências ideológicas e religiosas

58 membros, em desproporção com o monumental conjunto com o barulho do gigantesco canteiro e as frequentes visitas de
levantado. Os primeiros monges chegaram em 11 de março de turistas e personalidades. Por isso o prior Van der Cruyssen e o
1927. De Sept-Fons partiram finalmente 14 religiosos para Or- abade Chautard entravam frequentemente em conflito. Depois do
val, de Maristela vieram 20 padres de coro e irmãos. Em 28 de falecimento deste último, em dezembro de 1935, a comunidade
setembro lhes foi instalada uma capela de São Bernardo e, em foi desligada da matriz de Sept-Fons, o que abriu caminho para a
dezembro de 1927, um noviciado. No início, os monges mora- consagração, em maio de 1936, de Van der Cruyssen como aba-
vam em condições precárias no prédio da portaria. Somente em de da ‘ressurrecta’ abadia de Orval. Se a maior parte dos monges
1928 pôde a comunidade ocupar um edifício próprio, onde se vindos de Sept-Fons voltou para a matriz, aqueles regressados de
situaria mais tarde o noviciado. Maristela parecem ter ficado todos em Orval.
Na comunidade surgiram tensões tanto entre os padres de coro
e os irmãos como entre os grupos de diferentes origens, os france- Peter Heyrman é doutor em História e dirige a Seção de Pesquisas
ses, os ‘brasileiros’ e as vocações belgas. Muitos monges criticavam do Kadoc – Centro de Documentação Católica da Universidade de
o prior sobre como sua vida dedicada a Deus podia conciliar-se Lovaina.

Os colégios das freiras belgas


Eddy Stols

T anto Van Caloen como os premonstratenses do Park empe-


nharam-se bastante para trazer congregações femininas ao
Brasil. As primeiras, solicitadas pelo bispo de Gand, Stillemans,
de saias, além das longas rezas para santos belgas e de não falar
com protestantes.
Quase simultaneamente chegaram em Olinda outras freiras
foram as Irmãs de São Vicente de Paulo, de Gijzegem, perto de belgas, as Damas da Instrução Cristã, que se notabilizaram por
Aalst, ou vicentinas. Doze freiras, recebidas em Recife por Van escolas mais elitistas. Foi o caso da terceira congregação a de-
Caloen, em maio de 1896, instalaram-se no convento da Concei- sembarcar no Brasil, em dezembro de 1906, as cônegas de San-
ção, salvo a madre superiora, que caiu no desembarque e teve que to Agostinho ou Damas de Jupille – nome de sua matriz belga.
voltar. Abriram uma escola primária e profissional, um orfanato Forçadas pela concorrência dos pensionatos abertos por freiras
e intervieram numa epidemia de varíola. Já em 1897, a convite francesas exiladas, cogitaram a expansão no Brasil, sempre com
do Bispo Arcoverde, de São Paulo, as primeiras se deslocaram a mediação de Van Caloen. Este julgou as cinco primeiras como
para lá. Patrocinadas por Monsenhor Passalacqua e sua família, muito ativas e de boa instrução. Elas receberam logo reforço e,
instalaram uma Casa Pia no bairro de Santa Cecília, cuidaram em 1907, compraram em São Paulo, da família Uchoa, sua Vila
do instituto oftalmológico do doutor Pignatari para imigrantes para abrir um internato.
na Vila Mariana, abriram escolas paroquiais e externatos, um Este colégio Des Oiseaux ganhou rapidamente boa reputação
dispensário e um asilo. Uma irmã contagiada pela lepra teve que entre as elites paulistas tanto pelo requinte das regras numa casa
voltar à Bélgica. art-nouveau do arquiteto Victor Dubugras como pelo bom nível
Como conseguiram rapidamente recrutar jovens brasileiras, da educação intelectual. Também Santos ganhou, em 1924, um
começaram, em 1911, um noviciado na Penha que se tornaria sua colégio desse tipo, o Stella Maris, e em 1933 as cônegas lança-
sede principal e até monumental no Brasil. Enquanto em 1915 ram até mesmo a Faculdade Sedes Sapientiae, com prédio próprio
deixaram Olinda, expandiram a partir de 1914 suas atividades para projetado por Rino Levi em 1941, incorporada à Pontifícia Uni-
outras cidades paulistas, Mogi das Cruzes, Jundiaí, Pindamonhan- versidade Católica em 1971. Fomentavam entre suas alunas mais
gaba, Santos e São Roque. ambição intelectual do que costumeira e algumas, como Ruth
Em 1927 entraram em Mato Grosso, nas cidades de Bela Vis- Cardoso e Marta Suplicy, se destacaram na vida pública. Conse-
ta, Aquidauana e Miranda, onde trabalharam em escolas e em guiram também recrutar moças brasileiras de boa família como
catequização nos aldeamentos. Para tudo isso receberam reforço religiosas, algumas famosas como Madre Cristina, pioneira da psi-
da Bélgica, com mais de 50 irmãs até 1956, das quais restavam canálise, e Ivone Gebara, teóloga feminista, capaz de enfrentar o
sete em 1975. Naquele ano, contavam com 266 freiras brasileiras, conformismo da hierarquia brasileira.
depois de ter recrutado desde 1910 mais de 550 moças, um êxito Dentro desta ordem serviam abaixo das cônegas também dia-
notável, ainda mais que durante muito tempo não aceitavam ne- conisas, encarregadas dos serviços materiais. Uma delas, Irma
gras, mulatas, filhas naturais ou de pais desquitados. Às noviças Jehaes, uma limburguesa, chegada ao Brasil em 1934, ficou famo-
brasileiras custava aceitar a língua francesa, receber pouca água sa como a Madre Aline dos pobres. Fundou uma creche no bairro
para a higiene, ter a cabeça raspada careca e vestir muitos metros afastado de Itaquera para os filhos de mães trabalhadoras, susten-

173
parte 5 – influências religiosas e ideológicas

tada com donativos. Com o prêmio ganho por volta de 1960, no dido, oferece uma crônica saborosa da intrusão de freiras belgas,
programa O céu é o limite, de João Silvestre na TV Tupi, Madre algo altivas, na simplicidade material e na complexidade política
Aline decorou a vida do Papa Pio XII. do interior de São Paulo (Quelques notes ...).
Monitoradas por premonstratenses do Park, chegaram em Bem recebidas, mas com alguma curiosidade sobre suas vesti-
Montes Claros em 1907 as quatro primeiras irmãs do Sagrado mentas diferentes, estranharam a improvisação, as mulheres sem
Coração de Maria de Berlaar, que já tinham experiência de ensi- chapéu na igreja, a simplicidade do palácio episcopal e da catedral
no e uma primeira missão no Congo. Sua nova escola pretendia, e as promessas financeiras incorretas. Com quase nada preparado,
segundo advertia o jornal A Verdade dos premonstratenses, ensinar abriram o colégio em três casas pequenas sem conforto algum, mas
as moças ‘alguma coisa mais do que biscoito de goma, bôlo sovado, felizmente apareceram somente 16 internas, em vez das 50 previs-
bolo de arroz e outras saborosas mas antiquissimas guloseimas: por- tas. Com alguma valentia as freiras se emanciparam dos olhares
tuguês, francês, aritmética, geografia, desenho, bordados, flores de dos inspetores locais, ao mesmo tempo em que pressionavam as
pano e pintura aquarela’. O preço, de 5.000 réis para as externas, alunas e seus parentes para uma prática religiosa regular.
de 35.000 para as internas e de 3.000 para o curso Froebel, era alto Erguendo a partir de 1922 um prédio próprio, suficiente pa-
demais e a escola acabou sendo fechada pouco depois. ra acolher mais internas, ficou difícil entrar na posse real da boa
Chegando mais irmãs, tentaram uma escola em Januária área doada e fazer chegar da Bélgica os materiais de construção.
(MG) em 1914, mas também abandonada em 1918. O bom fô- Problemático foi também o reconhecimento legal de sua escola
lego veio somente em 1919 com o convite para abrir um colégio normal em 1928. Para a solução ajudaram um padre português
em Araguari, Minas Gerais, com internato para a boa sociedade expulso de sua terra e o chefe político local. Apesar dessas dificul-
do Triângulo Mineiro e mais uma escolinha modesta para crianças dades dos primeiros anos, logo vieram convites para abrir filiais em
pobres, um patronato e um asilo. Sob a enérgica superiora Blan- Araraquara (1916), em São José do Rio Preto (1920) e em Barretos
dina seu êxito estimulou a criação de mais colégios em Montes (1936), no Estado de São Paulo.
Claros (1927), Patrocínio (1928), Belo Horizonte (1941) e Pará Finalmente, no Rio de Janeiro havia algumas belgas, como
de Minas (1942), enquanto sua escola normal preparava moças madre de Potter, da congregação francesa Soeurs du Sacré Coeur
para o trabalho profissional. de Jésus. Esta se recolheu por causa da Loi Combes na sua filial
A congregação Dames de Saint-André, de Ramegnies-Chin, de Bruxelas (Jette) e lá encontrou reforços para abrir um colégio
perto de Tournai, se engajou no Brasil através dos contatos do je- no Rio de Janeiro em 1904.
suíta português Antonio de Menezes com o bispo de São Carlos. No conjunto a presença das freiras belgas na eduação femini-
Este enviou um cheque e assim as cinco primeiras damas chega- na não ficou muito atrás da francesa ou italiana. Outra questão a
ram em fevereiro de 1914. Uma síntese de seu diário, hoje per- pesquisar é sua relação com a emancipação feminina.

As Damas da Instrução Cristã em Pernambuco


Marcelo Lins

J ornal do Recife de 16 de outubro de 1896: Fundeou no Lama-


rão... [o] vapor inglês “Nile” de 3.425 toneladas, comandante J.
Spooner, equipagem 163. O Diário de Pernambuco da mesma data
para que participassem da reforma da América do Sul, abalada pela
ignorância e imoralidade, asseverando que o melhor meio de conse-
guir esse fim é o de sacrificar-se pela educação e instrução cristã da
trás a lista dos passageiros chegados de Southampton: Maria Loyo- juventude (Mesquita, 1996, p. 87).
la Steyaet [sic], Marie Alphose Cloes, Marie Elisabeth Dobbelaere, A convocação feita pelo bispo pôs nas mãos das freiras a obri-
Maria Barbe Duchaine, Gabrielle de Vreese, Roaslie Buyens, Livi- gação de fundar um novo colégio, só que desta vez nas terras lon-
ne Dirckx, Hubertine Schrooten, Silvie Goethals. Quando o Nile gínquas da América.
lançou âncoras diante do porto de Recife naquela quinta-feira, 15 Mas onde na América? A resposta veio em 14 de junho de
de outubro de 1896, chegava ao fim a primeira etapa da aventura 1895, quando em visita ao convento de Dooresele, o monge bene-
das nove religiosas belgas através do Atlântico e iniciava-se a his- ditino de Maredsous, Dom Gerard Van Caloen, recém-nomeado
tória das Damas da Instrução Cristã no Brasil. prior do convento dos beneditinos belgas de Olinda, em Pernam-
No entanto, o preâmbulo desta história nos remete a 19 de buco, convidou as irmãs da congregação para fundar sua escola
novembro de 1894, quando a Madre Ignace Pollenus, superiora- em Olinda, com a ajuda e proteção dos beneditinos. Convite
-geral da ordem, atende ao convite do Monsenhor Antoine Stil- prontamente aceito. A convocação papal vinha ao encontro dos
lemans, bispo de Gand, que leu uma carta do Papa Leão XIII, na apelos dos bispos brasileiros para que as ordens europeias envias-
qual convocava as congregações religiosas dedicadas à educação sem religiosas e religiosos para ocupar os conventos e mosteiros

174
parte 5 – influências ideológicas e religiosas

abandonados e ajudassem na reestruturação e romanização da feliz decepção que tiveram, pois “na Bélgica alertaram-nos sobre
Igreja no Brasil (Lira, 2009). os mosquitos, mas até agora... não nos incomodam absolutamen-
No final do século, o papel tradicional da Igreja na educação, te” e o clima, apesar do calor forte, era amenizado “por uma brisa
principalmente na educação da elite, encontrava-se ameaçado pe- deliciosa” (Mesquita, 1996, p. 77).
los avanços da educação laica. Foi dentro deste contexto que as Já o português, era outro obstáculo a ser superado. Apesar dos
novas congregações chegaram ao Brasil, voltando suas atividades esforços para aprender a língua, vez por outra as irmãs viam-se
para o trabalho educacional e para a manutenção de escolas cató- envolvidas em situações descritas com bom humor por madre
licas, internatos e externatos, masculinos e femininos. Loyola como Cenas dramáticas! Durante uma entrevista com
No contexto cultural lusitano, o papel da mulher estava restrito pais que vieram matricular suas filhas ela diz: “Eram quatro a
a cuidar da casa, dos maridos e dos filhos. Voltadas exclusivamente explicar e três a responder. Não conseguimos entender-nos! A
para os afazeres domésticos, isoladas do convívio social e subme- entrevista terminou sem ter começado”. Noutra ocasião, num
tidas à autoridade do marido, a mulher no mundo português co- café oferecido ao vigário-geral da diocese, monsenhor Marcolino,
lonial estava condenada à ignorância. No início do século XIX, a a irmã notou que faltava manteiga, enviou o funcionário à venda
transferência da família real portuguesa para o Brasil e o Decreto mais próxima com uma nota escrita. Pouco depois ele voltou, e
de Abertura dos Portos às Nações Amigas trouxeram novos hábitos prontamente colocou sobre a mesa um pedaço de madeira com
para a sociedade brasileira. exatamente 300 gramas. Diante da surpresa geral, a irmã com-
Em Recife, em fins de 1811, o inglês Henry Koster nota como preendeu que havia copiado a palavra errada do dicionário, pro-
as damas de algumas famílias portuguesas e inglesas recém-che- vocando o riso de todos.
gadas da Europa “davam o exemplo”, as primeiras indo a pé para O Colégio da Sagrada Família de Olinda iniciou oficialmen-
a igreja, enquanto as inglesas tinham o hábito de passear todas as te suas atividades em 15 de fevereiro de 1897 com o ingresso de
tardes. Ainda assim a educação feminina continuava direcionada sua primeira aluna, Filadélfia de Paula Lopes. Ao longo do ano
para a formação de donas de casa. A Lei Imperial, de 15 de outu- o número de internas foi acrescido de mais nove alunas com ida-
bro de 1827, limitava o currículo das meninas à leitura, escrita, des que variavam entre nove e 16 anos. O currículo pedagógico
quatro operações, moral cristã, doutrina católica e prendas do- daquela primeira turma incluía: História Sagrada, Instrução Reli-
mésticas (Lira, 2009). giosa, Francês, Aritmética, Inglês, Geometria e Português (Silva,
Só em 1875 as mulheres foram admitidas na Escola Normal, 2012). Ao fim daquele primeiro ano letivo, o reduzido número de
até então restrita ao sexo masculino. Para a oligarquia brasileira os internas dificultava o sustento do colégio. E esta não era a única
colégios religiosos supriam seu desejo de “educar suas filhas para preocupação. Logo no início de 1898, recebem a notícia de que
a modernidade sem permitir que elas se envolvessem com as ten- o Papa havia autorizado a abertura do seminário da diocese no
dências negativas trazidas pela mesma modernidade” (Lira, 2009, Convento Franciscano de Olinda, o que significava que as irmãs
p. 36). Entre os anos de 1872 e 1920, 58 congregações religiosas teriam que encontrar outro prédio para seu colégio. A solução, no
femininas europeias se estabeleceram no Brasil, entre elas, as Da- entanto, foi a mudança para o antigo Palácio Episcopal de Olinda,
mas da Instrução Cristã, vindas da Bélgica. cedido às Damas pela diocese.
Voltemos às nove religiosas belgas que sob a liderança de Ma- Mas nem tudo eram aperreios; com o início do novo ano le-
dre Loyola Steyaert (1860-1943), ex-superiora de sua comunida- tivo novas alunas ingressaram no colégio. Em fins de março já
de de Antuérpia, eram aguardadas no cais por Dom Gerard Van eram 19 e no segundo semestre, 34. A questão da residência não
Caloen. A Recife do final do século XIX tinha uma população de estava de todo solucionada, o projeto era comprar o edifício de
mais de 110 mil habitantes. Apesar dos esforços modernizadores forma definitiva e assim evitar novas mudanças inesperadas. No
das várias administrações, como a iluminação a gás carbônico, entanto, a legislação não permitia que imóveis do patrimônio da
água encanada, telégrafo e o serviço telefônico, inaugurado em diocese fossem vendidos a congregações religiosas. Fazia-se, por-
1883, para as recém-chegadas à cidade, a estação e os vagões do tanto, necessária a busca de outro imóvel para o abrigo definitivo
trem pareciam-lhes sujos: é como se tivéssemos recuado ao menos da residência e do colégio. Em meados de 1901, foi comprado o
meio século da nossa querida Bélgica, nas palavras da madre Loyola sobrado da Ponte d’Uchoa, nos arredores de Recife, local aprazí-
em seu diário (Mesquita, 1996, p. 71). vel, que contava com estação e linha de trem. A casa pertencera
Inicialmente elas instalaram-se no convento franciscano de ao comerciante Luiz Morais Gomes Ferreira, um dos fundadores
Nossa Senhora das Neves de Olinda, fundado no ano 1585 e que da Associação Comercial de Pernambuco e falecido em 11 de
se encontrava desocupado. Nesse edifício funcionou o Colégio dezembro de 1899. A nova casa tinha vários cômodos: salas de
da Sagrada Família de Olinda, primeira escola fundada pela con- visita, de jantar, de bilhar, copa e sete quartos e, o mais impor-
gregação das Damas da Instrução Cristã no Brasil. As primeiras tante, um vasto terreno que permitiria os acréscimos necessários
semanas foram dedicadas a pôr o velho edifício em condições ha- ao crescimento do colégio.
bitáveis e aos preparativos para a abertura do internato. As freiras Em 31 de julho daquele ano foi assentada a pedra fundamen-
enfrentaram, também, os problemas de adaptação ao clima e, é tal do novo pensionato a ser construído no vasto terreno. Em 23
claro, a barreira da língua e dos costumes. Madre Loyola fala da de dezembro, com o prédio já pronto, as irmãs instalaram-se de

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parte 5 – influências religiosas e ideológicas

forma definitiva na nova residência. No dia 24 foi celebrada a culada Conceição. Em 21 de janeiro de 1967, foi oficialmente
primeira missa na capela do novo internato, agora denominado inaugurado o Ginásio Regina Mundi, em Maringá, no Paraná.
simplesmente Colégio Damas. Em 1921, foi comprada a casa Durante as primeiras oito décadas de Brasil, as Damas dedi-
vizinha que pertencia ao Barão de Casa Forte, praticamente do- caram-se exclusivamente à educação feminina, aspecto que viria
brando a área de terreno. a modificar-se com a adoção do ensino para ambos os sexos em
Sob a direção de madre Loyola, as Damas expandiram-se com 1970. Passados 116 anos daquela pequena aventura das nove freiras
a fundação de novas escolas. Em Pernambuco foram fundados belgas que cruzaram o Atlântico a bordo do Nile, o projeto Damas
os colégios Santa Sofia, em Garanhuns (1912); Colégio Santa da Instrução Cristã está mais do que solidificado no Brasil. Man-
Cristina, em Nazaré da Mata (1922); Colégio Santa Maria, em tendo a tradição de suas fundadoras, as irmãs Damas fundaram no
Timbaúba (1922), e Colégio Nossa Senhora da Graça, em Vitó- final dos anos 90, em Recife, a Universidade Damas.
ria de Santo Antão (1928). Em 1931, o Colégio de Timbaúba foi
transferido para Campina Grande, Paraíba, com o nome de Ima- Marcelo Lins é jornalista em Recife e escreve sobre a história da cidade.

Presenças belgas no catolicismo do Brasil contemporâneo (1945-2010)


Eddy Stols

A pesar dos contatos interrompidos pela Segunda Guerra Mun-


dial e da urgente reconstrução da Bélgica, o interesse missio-
nário pelo Brasil não tardou muito a reativar-se. Desta vez, numa
Igreja Católica manteve seu predomínio sobre o ensino e até o
reforçou durante a ‘guerra escolar’ deflagrada pelo governo libe-
ral-socialista em favor das escolas estatais em 1954-1958. Assim,
conjuntura de Guerra Fria, se articulou uma investida bem mais os colégios diocesanos e as escolas apostólicas forcejavam, ma-
ampla, implicando as dioceses e seus padres seculares, os movi- traqueando os cérebros e reprimindo a sexualidade, abundantes
mentos de ação católica, como a JOC, o sindicalismo cristão, as vocações entre seus alunos.
organizações caritativas, a cooperação institucionalizada, as orga- Paralelamente, os conventos femininos não se esvaziavam. O
nizações patronais e os líderes políticos. recrutamento somente diminuiu pouco a pouco a partir dos anos
O refundado partido democrata-cristão formou com seus con- de 1960 com o mercado de trabalho em expansão, a sociedade de
gêneres na Holanda, França, Alemanha e Itália uma nova inter- consumo e a liberalização de ideias e costumes. Já na Bélgica do
nacional democrata-cristã, que esperava implantar-se na América início do século XXI, a prática católica caiu abaixo de 10% e as
Latina, inclusive com subsídios a partidos similares presentes na vocações desapareceram, ainda mais com o impacto dos escân-
Venezuela e no Chile. Juntos, e ainda incentivados pelos norte- dalos de pedofilia.
-americanos, como o cardeal Spellman ou a própria CIA, ergue- Mesmo nos anos faustos, o Copal nunca teve muita procura
riam uma frente católica contra o bloco comunista, que parecia como seminário, porque as dioceses e as ordens preferiam os seus
penetrar na América Latina depois da vitória de Jacobo Arbenz na próprios. Assim prevaleceu, sobretudo, um curso de formação de
Guatemala em 1951. Um dos primeiros a alertar sobre o perigo vários meses para padres já formados, freiras e voluntários da coo-
comunista na periferia de Buenos Aires foi um sociólogo de Lo- peração, belgas, mas também franceses, holandeses e poloneses. A
vaina, cônego François Houtart, que se faria conhecer mais tarde pedido do Papa Pio XII, as dioceses belgas colocaram como Fidei
por posições esquerdistas. A respeito do Brasil, foi significativo o Donum padres belgas à disposição dos bispos latino-americanos.
contato do democrata-cristão belga Auguste De Schrijver com Entre 1955 e 1983, partiram para o Brasil 115 padres, dos quais 67
Alceu Amoroso Lima. belgas. Mais alguns seguiram até meados dos anos de 1990. Em
Nesse contexto, em 1953 fundou-se em Lovaina o Colégio 2002 o colégio foi fechado e vendido.
para a América Latina (Copal), retomando um projeto de 1895 Em pouco tempo, a primeira motivação anticomunista se
de abrir lá, junto à abadia beneditina do Keizersberg, um semi- transformou, através da descolonização traumática do Congo,
nário orientado sobre este continente. Instalou-se o novo colégio paulatinamente em terceiro-mundismo, até mesmo à esquerda
em 1955 num antigo convento neogótico na Tervuurse Straat, do Partido Comunista. Na Universidade de Lovaina os cursos de
em Lovaina. Devia acolher seminaristas belgas, como também sociologia, demografia e economia do desenvolvimento, em alta,
de países vizinhos ou mesmo latino-americanos, enviados por descobriam temas como a reforma agrária e as favelas. Nessa ma-
bispos, como Eugênio Salles e José Távora, bem relacionados téria, alguns professores aconselharam bispos latino-americanos e
com a JOC belga. Num país predominantemente católico, cer- montaram centros de pesquisa sociológica em Bogotá e no Chile.
tamente durante a guerra e, salvo o curto intervalo eufórico da No que diz respeito ao Brasil, as traduções de Geografia da fo-
libertação em 1944-1947, novamente durante a Guerra Fria, a me, de Josué de Castro, de Barracão, de Carolina de Jesus, e dos

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parte 5 – influências ideológicas e religiosas

romances de Jorge Amado sensibilizaram jovens leitores belgas. zação desta disciplina no Brasil e a projeção de seu Departamen-
No Copal residiram por algum tempo Camilo Torres, futuro gue- to de História com uma revista e a primeira reunião da Anpuh
rilheiro na Colômbia, e Gustavo Guttierez, pioneiro da Teologia (Associação Nacional dos Professores Universitários de História).
da Libertação. Esta fez prevalecer doravante a ‘opção preferencial Michel Schooyans, professor de Filosofia na PUC de São Paulo,
pelos pobres’. curioso das coisas brasileiras, colecionador de livros e de obras de
Em 1970, Hélder Câmara, bem relacionado com o cardeal arte e ainda bem introduzido nos meios da burguesia industrial
belga Suenens, recebeu em Lovaina um doutorado honoris causa, nacionalista de São Paulo, analisou, em Le destin du Brésil, La
pregando um outro ‘socialismo humano’. Seguiram mais douto- technocratie militaire et son idéologie (Gembloux, 1973) e De-
rados para Paulo Freire em 1975, Oscar Romero em 1980, Aloíso main le Brésil? Militarisme et technocratie (Paris, 1977), crítico e
Lorscheider em 1982 e Jon Sobrino em 1985. premonitório, os problemas do Brasil como potência emergente.
Jovens idealizaram a revolução cubana de Castro, a morte de Entusiasta do potencial demográfico brasileiro, defendeu, de volta
Guevara, mais tarde as de belgas na guerilha em El Salvador e na à Universidade Católica de Louvain-la-Neuve, posições controver-
Guatemala. Na análise desta radicalização poderiam entrar tantos tidas em matéria de ética e política populacional.
acontecimentos e fatores, desde uma pitada de nacionalismo fla- Larga repercussão teve o ensaio Formação do catolicismo bra-
mengo – que reconvertia sua aversão à cultura latina em rejeição sileiro, 1550-1800 (Petrópolis, 1974), de Eduardo Hoornaert, que
ao imperialismo ianque – à chegada de refugiados latino-ameri- se enquadrou a seguir, junto com José Oscar Beozzo – que aliás
canos ou, até, conflitos íntimos como aqueles descritos pelo ex- estudou em Lovaina – e outros, na nova História da igreja no Brasil
-seminarista Conrad Detrez no romance L’herbe à brûler. Tanto (Petrópolis, 1977). Esta pretendia romper com o tradicional insti-
a secularização como o consumismo da sociedade belga empur- tucionalismo e construir uma história a partir do povo. Na prática,
raram jovens inconformados numa fuga escapatória, com a ilusão Hoornaert investiu menos em novas pesquisas do que recuperou
de que o Brasil estivesse ainda a salvo desses males. e selecionou, num viés catequético e ainda clerical, uma religio-
No Brasil os padres belgas se dispersaram pelo país inteiro, do sidade, desde sempre bastante autônoma e diversa e já valorizada
Maranhão até o Paraná, mas se concentraram mais no Nordes- por historiadores leigos em edições de crônicas coloniais e de vi-
te, particularmente na Bahia. Alguns eram recém-formados, ou- sitações inquisitoriais.
tros tinham mais idade e experiência ou mesmo uma formação Em pesquisa patrocinada pelo Conselho Nacional de Desen-
profissional como agrônomo. Como vigários, tomaram conta de volvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Frans Gistelinck
paróquias e engajaram-se nas comunidades eclesiais de base, na estabeleceu em Carajás, usinas e favelas (São Luís, 1988) um
pastoral da criança, da juventude, das equipes de casais, da terra primeiro balanço crítico do Programa de Desenvolvimento do
e das prisões. Construíram casas e centros comunitários, creches, Maranhão. A obra de Etienne Samain, que passou no Brasil da
jardins de infância e escolas profissionalizantes ou agrícolas, às teologia à antropologia, se apresentou no capítulo anterior.
vezes com o apoio de uma retaguarda de simpatizantes na Bélgi- Paralelamente aos padres seculares, as congregações regulares
ca. Alguns ensinaram em seminários e em universidades católi- se empolgaram de novo pelas perspectivas brasileiras. Nos anos de
cas. Vale registrar que um número significativo deixou a batina e 1950 os supracitados missionários do Sagrado Coração se concen-
constituiu família no Brasil ou de volta, na Bélgica. traram no Paraná, formando uma quase província belga. Em 1966,
Quatro belgas assumiram a direção de uma diocese brasilei- em Francisco Beltrão (PR), Jef Caekelbergh criou a Associação de
ra: o beneditino José Cornelis – ex-arcebispo de Lubumbashi, no Estudos, Orientação e Assistência Rural (Assesoar), particularmen-
Congo – em Alagoinhas (BA), de 1974 a 1986; Eugène Rixen, te ativa entre os pequenos agricultores junto com cooperantes bel-
primeiro como auxiliar em Assis (SP) em 1995 e, depois, como gas. Os Aumôniers du travail (Capelões do trabalho), que, surgidos
bispo de Goiás Velho (GO) a partir de 1998; André De Witte, co- no final do século XIX na parte industrial da Bélgica, ofereciam
mo bispo de Ruy Barbosa (BA) desde 1998, e Philip Dickmans em aos filhos dos operários escolas técnicas e albergues, abriram em
Miracema do Tocantins (TO), desde 2008. No âmbito da CNBB, 1963, com semelhante preocupação, uma escola com o nome de
Johan Konings, que ensinou exegese bíblica na Pontifícia Universi- Universidade do Trabalho em Coronel Fabriciano (MG). Quan-
dade Católica (PUC) de Porto Alegre (RS) e passou no Brasil para do esta foi incorporada pela diocese de Belo Horizonte, em 1976,
a ordem jesuítica, responsabilizou-se pelas traduções da Bíblia, ao estabeleceram outra em Conselheiro Lafaiete, além de um semi-
passo que outro jesuíta, Thierry Linard de Guertechin, demógrafo nário em Contagem, com três a quatro padres belgas.
de formação, com longa vivência na favela da Rocinha, no Rio Os missionários da ordem do Imaculado Coração de Maria
de Janeiro, e diretor do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento, é (ICM), conhecida como Scheut, do nome do bairro de sua sede
consultor em matéria do descenso do catolicismo no Brasil. em Bruxelas, dirigiram-se sobretudo à China, às Filipinas e ao
Vários padres belgas participaram intensamente da vida inte- Congo. Expulsos da China por Mao e com dificuldades no Con-
lectual. Carl Laga, doutor em bizantinismo, em 1959 foi convi- go independente, aumentaram sua presença na América Latina,
dado para uma instituição estadual de São Paulo, a Faculdade de onde já tinham missões no Haiti (1944), na Guatemala (1955) e
Filosofia, Ciências e Letras de Marília, e contribuiu como titular na República Dominicana (1958). Em 1963, tomaram conta de
de História Antiga e Medieval durante um decênio para a valori- paróquias em Nova Iguaçu e, logo depois, em Volta Redonda e

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parte 5 – influências religiosas e ideológicas

Itabira. Receberam assistência de freiras também da Scheut e de Também as cônegas de Santo Agostinho continuaram a recru-
algumas Grauwzusters de Roeselare. Estas, com muito pouco pre- tar brasileiras.
paro social, ficaram desnorteadas com os contrastes brasileiros, Outro fato novo foi a presença de leigos ao lado dos religiosos.
mas pouco a pouco se engajaram em projetos sociais, inclusive Logo depois da segunda guerra, jocistas belgas vieram propagar
em Marabá (PA), em 1979. Com a queda das vocações belgas, no Brasil os métodos da JOC belga. A partir dos anos de 1960, a
Scheut trouxe para o Brasil filipinos e outras nacionalidades. Um cooperação com o desenvolvimento foi institucionalizada com um
dos belgas, com 32 anos de experiência no Brasil, Gaby Gheyssens novo Ministério do Estado belga. Dezenas de jovens cooperantes
foi escolhido em 2013 como vigário-geral para a reestruturação vieram trabalhar como auxiliares dos padres e lhes davam maior
mundial de sua ordem. sustentação na Bélgica.
Outras freiras integraram a ofensiva evangelizadora a partir de A principal organização, Samenwerking Latijns-Amerika ou
1952-1953, como as Filles de la Croix de Liège em São Paulo e as Coopération Amérique Latine (SLA e CAL), reconhecida e subsi-
Filles de Notre-Dame du Sacré-Coeur de Bruxelas ou mesmo as diada pelo governo belga como ONG em 1964, mantinha, por vol-
contemplativas, beneditinas de Schoten em Ribeirão Preto (SP) ta de 1980-1990, de 20 a 30 voluntários em serviços variados. Foi
e clarissas de Flandres oriental em Porto Alegre. As Zwartzusters absorvida por outra organização, Volens, que continua ativa e que
ou irmãs negras agostinianas de Bruges escolheram a Bahia em leva também jovens por períodos mais curtos. Mais organismos,
contatos com seu arcebispo, Eugênio Salles. Depois de um está- como Copibo, com ajudantes na construção, ou Vredeseilanden
gio no Copal, as duas primeiras tomaram conta da paróquia São ou Îles de Paix, atentos às experiências rurais, se interessaram pe-
Gonçalo do Retiro, em Salvador, em 1966. A partir de casinhas, lo Brasil, enquanto as campanhas de fraternidade de Broederlijk
como a Casa da Paz, trabalharam com clubes de mães e centros delen, um organismo caritativo das dioceses belgas, recolhiam sus-
comunitários, com ensino e enfermaria, e souberam, assim, ainda tento financeiro. Este se beneficiava também dos contatos entre
mais pelo seu nome de Irmãs negras, atrair moças negras ou mu- patrões católicos belgas e brasileiros.
latas como noviças. Logo pensaram em expansão, primeiro para Avaliar aqui o impacto destes aportes belgas ao catolicismo
Maragojipe (BA) e depois para Ruy Barbosa (BA) e Oiticicas, no brasileiro seria prematuro e presunçoso, ainda mais na atual crise
Ceará. As freiras brasileiras começaram a participar dos capítulos da Igreja Católica, do seu descalabro na Bélgica e do avanço das
da congregação em Bruges, prontas a repovoar e rejuvenescer os igrejas evangélicas no Brasil. Faltam mais transparência e pesqui-
conventos belgas. sas. Pelo menos já se pode constatar que, em comparação com a
Este abrasileiramento ocorreu também com ordens já pre- primeira romanização, por volta de 1900, a presença belga duran-
sentes no Brasil desde o começo do século XX e em franca ex- te este último meio século foi mais ampla, diversa, persistente e
pansão. As Dames de Saint-André, ou irmãs de Santo André, se sobretudo se dedicou cada vez mais aos brasileiros desfavorecidos.
disseminaram por São Paulo e até em Recife. Um terço de sua Neste engajamento social, frequentemente em parceria com
congregação no mundo é brasileira. As irmãs do Sagrado Cora- leigos belgas, surgiram conflitos, mas com o tempo também uma
ção de Maria de Berlaar recrutaram uma centena de brasileiras, convivência mais compreensiva e serena com a cultura e religio-
das quais somente as primeiras fizeram seu noviciado na Bélgica. sidade brasileiras. A trajetória mais significativa desta aculturação
Agruparam seus colégios como Rede Berlaar de Educação, com aos pobres brasileiros parece ter sido a do ‘teólogo da enxada’, Jo-
sede em Belo Horizonte, e formaram em 1969 uma província seph Comblin. Pediu para ser sepultado no Santuário do padre
brasileira, com um representante no capítulo geral na Bélgica. mestre Ibiapina, na Paraíba.

Joseph Comblin (1923-2011)


Carl Laga

‘J ’ai décidé, il y a 30 ans, sous le regard de Dieu, de ne plus ja-


mais travailler dans des séminaires. Plus jamais’ (Decidi, trinta
anos atrás, sob o olhar de Deus, nunca mais trabalhar em semi-
colega – recentemente e, por ter sido companheiro – durante
poucos anos – e amigo – pelo resto da vida – de Comblin, me pus
a lê-lo, venerabundo. Não cabe aqui avaliar o conteudo teológi-
nários. Nunca mais.). Foi o que disse Joseph Comblin aos con- co da conferência, mas me sinto interpelado pelo grito: ‘Nunca
gregados para lembrar os 30 anos passados desde o assassinato de mais, nunca mais!’
Dom Oscar Romero em El Salvador. Ressoa a frase como tirada Vejamos, pois, se, porventura, da parte de um sacerdote bem
de um testamento e, na realidade, vem do texto que se verificará qualificado, essa aversão ao ensino teológico, praticado sempre nos
provavelmente ser o último de Comblin, falecido em 2011 com estudos de preparação ao sacerdócio, tenha se manifestado antes.
88 anos e poucos dias. Recebi o texto – gentileza de um jovem Não é o contrário que deveria verificar-se? Antes de se apresentar

178
parte 5 – influências ideológicas e religiosas

para servir na América Latina, Joseph Comblin, recém-doutora-


do em Teologia na Universidade Católica de Lovaina, ensinou a
Sagrada Escritura no Instituto Teológico dos Seminaristas belgas
aos recrutas no exército. Meus amigos que atenderam às suas aulas
falam em uníssono: um grande Professor!
Chegado a Campinas, acho que no mês de junho de 1958,
ou seja, no meio do ano acadêmico, estreou Comblin no ensi-
no em língua portuguesa. Descobriram que ele possuía um grau
‘em ciências’ e encarregaram-no das aulinhas dessa matéria, no
seminário menor. Da exegese do Livro do Apocalipse à elite do
clero belga, à explicação da bomba para levar água aos meninos
do interior paulista... não é grande elevação de posto. Mas já que
tomou essa forma seu primeiro confronto com o ensino no Bra-
sil, Padre José – assim foi conhecido por mais de meio século – se
conformou, com uma dose de humor discretamente velado que
lhe era tão típico.
A Teologia mesma ele ensinou parte dela na casa de forma-
ção dos dominicanos de São Paulo, na Faculdade de Teologia da
Universidad Católica de Chile – 1962 a 1965 ou 1966 –, e depois José Comblin na Escola Missionária de Mogeiro, 2007.
de sua volta para o Brasil, bem mais tarde, no Instituto de Teo-
logia, fundado em Recife por Dom Hélder Câmara, mas que ia Campinas, indiferente ao zumbido dos insetos e à temperatura
ser suspenso por Roma. Por fim, não esqueçamos que foi profes- que fazia. Uma visita inesperada? Uma vassoura intrépida? – alu-
sor em tempo parcial, até chegar a aposentadoria, da Université gamos a casa de uma proprietária que não permitia que padres
Catholique de Louvain. Pois bem, nenhum desses institutos era inquilinos fizessem a limpeza – José interrompia, bem civilizado
um Seminário Maior no sentido clássico. Não é impossível que como era, seu labor, o tempo necessário para logo depois voltar,
José Comblin tenha ajudado num Seminário desta forma duran- sereno, a seu mundo das ideias.
te uma de suas múltiplas e breves estadas no Brasil ou num outro Releio agora sua primeira produção impressa em português e
país latino-americano, mas conhecimento disso não temos. Não que ali elaborou. Um ano e poucos meses depois de nossa che-
é fácil ver, então, a que experiência infeliz se referia, revelando gada a Campinas, propôs-nos um texto, prudentemente impres-
em 2010 que tinha feito, ‘30 anos já’, a tal promessa de nunca so pro manuscripto, isto é, para não ser divulgado, com o título
mais trabalhar num instituto desse tipo. Seja como for, temos a A Vocação Cristã do Brasil. Ter guardado essa brochura redime
impressão de que ensinar não lhe foi atividade intelectual prefe- um pouco minha negligência para com suas obras posteriores,
rida. Escrever, sim, foi. bem maiores e bem melhor publicadas. Que mensagem trouxe a
A nós não cabe fazer a bibliografia completa de Joseph/José plaqueta? Suficiência de europeu recém-chegado ao Brasil? Pois,
Comblin. Não temos capacidade para opinar sobre as obras mais vejamos as teses nela desenvolvidas. A primeira: a Igreja católica
extensas e bem planejadas. Entendidos na matéria me disseram brasileira terá necessariamente que desempenhar o papel de líder
que sua Théologie de la Ville, publicada em 1968, nas Éditions do catolicismo mundial (p. 1). Nada menos... Lemos logo depois
universitaires, em Paris, depois dos dois volumes de sua Théologie que realizar essa vocação mundial é um desafio atualíssimo, ur-
de la Paix, é inovadora no campo; além disso, não recusou contri- gentíssimo, pelo qual o País tem de se preparar desde já. O autor
buir com coleções de mais fácil acesso, visando o maior número estima que o prazo outorgado para essa preparação é o espaço, no
possível de cristãos. Aí pensamos na coleção Comentário Bíblico, tempo, de uma geração! O catolicismo europeu, continua, não
que, na mente dele, teve também a vantagem de ser lançada por tem nenhuma possibilidade de tomar essa liderança, pois sofre
um grupo ecumênico. Nem sei quantos são seus Opera Minora de uma doença incurável: [na Europa] há dois sistemas... de insti-
separados. Do estilo do autor saudoso, livre a cada um de se fa- tuições, umas cristãs, outras anticlericais e antirreligiosas (p. 10);
zer uma ideia pessoal. No que me diz respeito, tendo vivido com mas, aí – nos países da Europa – fracassou miseravelmente o esfor-
ele na intimidade da mesma casa e tido o privilégio de ouvir em ço da inteligência cristã de denunciar e de refutar o pensamento
conversações sua opinião sobre mil coisas, não posso omitir de re- alheio ao cristianismo, em marcha já há três séculos. Porém, Deus
petir aqui minha admiração – às vezes misturada, confesso, com reservou-a [a Igreja brasileira] para – essas – tarefas futuras (p. 17),
um pouquinho de inveja – em sua agilidade com a pena. Tinha enunciadas na primeira página. Longe, então, de constituir uma
o dom de se concentrar num assunto e de confiá-lo ao papel com expressão de ufania, o que se escutava aqui era a voz do profeta
a mesma facilidade que temos, nós, de respirar. Nem lhe eram proclamando: ‘Quando soar sua hora, brasileiros, não façam como
indispensáveis boas condições físicas. Até agora eu o vejo escre- nós fizemos!’ Mais uma vez, era profeta ‘clamando no deserto’, pois
vendo numa parte qualquer da mesa comum de nossa casa em conhecemos a história da Igreja brasileira, durante as duas gera-

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parte 5 – influências religiosas e ideológicas

ções passadas. Quem nunca se conformou com essa ‘desistência’ de sua morte. A fase da Teologia da Libertação foi exaltante para
brasileira foi o profeta Comblin. Comblin, mas relativamente breve. Já a Conferência de Puebla,
Mas um profeta não transmite sua mensagem sem andar ao que seguia aquela de Medelin, dez anos depois, o decepcionou
encontro de gente. Andar... como Comblin o fazia! Permaneceu – e não só a ele ...
– não seria mais exato falar em passagens? – em Campinas, em Como já dissemos, o golpe militar em 1964 e os temidos Atos
São Paulo, em Santiago do Chile – bis, com cerca de dez anos de Institucionais que se sucediam afogavam em boa parte a vida po-
intervalo –, em Recife – ou será que foi também Olinda? –, antes lítica normal. Não é de se estranhar, nesse silêncio político, que
de encontrar seus horizontes de preferência, o Nordeste profundo, umas vozes de representantes da Igreja – evitemos sugerir que a
a Paraíba. E mesmo aí parecia que se tratava mais de paragens: a Igreja falava alto e de uma voz! –, que ousavam ocupar um lugar
Capital, Serra Redonda, Santa Rita e Bayeux, para terminar sua no palco recebiam maior atenção e encontravam bom ouvido em
odisseia na humilde diocese baiana de Barra. A postura dele, pa- parte da população, que ficava quieta por medo, mas injuriada
recendo frágil, era de uma resistência extraordinária para viajar: por aquela prosa continuamente repetida a respeito de um ‘Brasil
memorizava alegremente os horários de avião, e as longas horas que, agora sim, anda direito e progride no desenvolvimento’. Em
de ônibus e de carro empoeirado não lhe provocavam mal estar. São Paulo e no Recife, percebia-se este som de independência.
Será que era andejo mesmo? Teve a coragem o Arcebispo da maior cidade do País, Dom Evaris-
Mais ainda que andar, o profeta deve falar, e, de preferência, to Arns, de dizer non licet quando a polícia militar prendia gente
falar alto. A condição e a figura de Comblin, de acesso não real- indiscriminadamente e torturava sem dar contas a ninguém. E no
mente fáceis, frequentemente dando mostras de timidez defensiva, Nordeste, a eloquência de um bispo baixinho muito irritou os mi-
se transformavam desde o momento que dirigia a palavra a um litares, repetindo que na sua região a massa empobrecida, apesar
público. Não se esperava uma voz tão forte e consonante saindo de todas as proclamações grandíloquas de Progresso e de Patriotis-
desta figura, físicamente não muito imponente. Porém, captavam mo, só ficava um pouco mais pobre ainda. Dom Helder Câmara,
a assistência – ou a irritavam... – aquele seu discurso cáustico, su- homem santo – porém, ‘não rebelde’, precisava José Comblin –,
as afirmações lapidárias e frequentemente incomodantes. E não era intelectual de grande curiosidade, de modo que sem dúvida
raramente a repercussão ia além da simples assistência física, para já conhecia a obra de Comblin, e foi naquela época que a cola-
irritar certas autoridades políticas. Pena que, por descuido nosso, boração do teólogo belga, oficialmente expulso do País, com um
perdemos o texto dos ataques no poderoso jornal O Estado de S. arcebispo, em vias de tornar-se o símbolo da coragem resistente,
Paulo, que entrou numa verdadeira polêmica, citando nome e fun- tornou-se mais intensa. Mas conosco, Comblin não pormenoriza-
ções de Comblin. Soubemos que, infelizmente, era um sacerdote va o assunto e nós não temos revelação a fazer nesse ponto.
húngaro, fugido de sua pátria depois da revolta de 1956, que os Tenho motivo para supôr, em compensação, que naqueles
inspirava. Nos anos nos quais vigorava a Doutrina da Segurança anos começou a surgir no peito de Comblin uma nova inclina-
Nacional com toda sua força, os sucessivos Atos Institucionais im- ção, versão que virou conversão e que pode bem ter sido a maior
pediam o ressurgimento da vida democrática, sempre prometida na sua vida brasileira, e, quem sabe, a maior da sua vida tout court.
e sempre adiada. Naquela fase de suspeição generalizada, quando O brilhante intelectual, o autor com estupenda facilidade de con-
a polícia militar descobria ‘subversivos’ em todo campo, em 1972 ceber e de realizar livros, não se dava mais por satisfeito com sua
José Comblin foi proibido de entrar no País ao chegar da Europa, produção livresca. Deve ter sido o que vamos chamar sua vocação
em Recife. A proibição nunca foi suspensa – li em algum lugar de nordestino, vontade de deixar aí mesmo uma marca dele, de
que ela foi, sim, em... 2010 –, apesar de seu trabalho durante 38 pôr ponto às grandes teologias – ‘Teologia da Revolução’, ‘Teologia
anos no Nordeste não ter sido clandestino. Então, vemos um Jo- da Cidade’ – para pegar na humilde ‘teologia da enxada’ – instru-
sé Comblin, suspeito, perigoso para a nação, um Comblin que mento que, naquela terra, evoca nada de grandioso mas, isto sim,
amava cada vez mais, que adorava um país que continuava ofi- o penoso, tedioso curvar-se para a terra –, vontade de construir algo
cialmente considerando-o durante 40 anos como perigoso – só com as próprias mãos, curvando-se, até pedindo ajuda financeira
que não fazia nada para eliminar esse perigo. Sutileza brasileira. de outros – o que na vida anterior nunca teve de fazer, tirando do
Mas, entrementes, em 1968, havia se realizado a Conferên- ordenado e da aposentadoria de professor de tempo parcial o su-
cia Episcopal da América Latina de Medelin e os horizontes não ficiente para um sóbrio solteiro como ele. Saíram aos poucos os
eram mais os mesmos. Aquilo que ia chamar-se Teologia da Liber- Centros de Formação Missionária para leigos masculinos e femi-
tação tem aí uma das suas origens. José Comblin, não há dúvida, ninos. Fato é que com esta nova atividade surpreendeu um pouco
participou ativamente dela, tinha contatos frequentes com Gus- os velhos amigos europeus que o visitavam. Conseguia também
tavo Gutiérrez e outros protagonistas, lutou por ela, escrevendo, – não sei como – a admirável ajuda de dona M. M. e de outras.
discursando, explicando. Tudo isso foi importante pelo resto de Graças a elas não passava fome, acho, mas me lembro bem de uma
sua vida. Mas do ponto de vista do autor destas linhas, que pre- passagem minha de um dia e meio com aquele regime: já sonhava
tendem ser uma homenagem de amigo, assim como um olhar – parecia fartura! – com a comida que tinhamos em nossos anos
interrogativo sobre toda a vida de José Comblin, não se pode parar de Campinas e São Paulo. Somente agora, lembrando as outras
aí, como o fizeram a maioria dos comentadores na oportunidade fases de sua vida, é que começo a ver que esta foi a fase mais de-

180
parte 5 – influências ideológicas e religiosas

cisiva e mais durável do seu curriculum. E bem poderia ter sido e autossuficiente de hoje. E um celebrante, assistido por um par
a fase mais feliz, apesar das limitações materiais evidentes. Não de bispos do Nordeste e por dezenas de sacerdotes, se mostrando
é repentinamente, num dia de calendário, que geralmente uma feliz com toda a naturalidade; difícil reconhecer nele o professor
pessoa se acostuma a um novo estilo de vida. Mas proponhamos europeu, ponderando tudo, hesitando em muito. A conversão ao
prudentemente que essa ideia bem pode ter começado a infiltrar- Nordeste funcionava.
-se em sua cabeça a partir do momento em que, na sua intuição, ‘Preciso me converter’, se defendia, quando seus amigos pru-
a Teologia da Libertação, como ele a concebia, não tinha mais dentemente opinavam contra mais uma mudança de casa, desta
futuro. Não foi muito tempo depois de ‘Puebla’ que já teve essa vez num esconderijo baiano, fora do qual – excluindo sua viagem
intuição. ‘A Teologia da Libertação? Ela já morreu!’, repetia. A costumeira para ver sua família e uns amigos na Bélgica – uma
partir do momento em que se convencera disso, até o fim da vida, vez só se deixou tirar. Jon Sobrino, companheirão de luta nos
contamos uns 25 anos. Significa que, durante a quarta parte de dias de Medelin, foi quem o convenceu, na ocasião do trigésimo
século, dedicou-se à sua obra, dando-lhe a melhor parte do seu aniversário – já! o prazo de uma geração inteira – do assassinato
tempo e de seus talentos. Os centros missionários do Nordeste – a de Dom Oscar Romero, em El Salvador. A alocução de Comblin
sua pátria, agora – multiplicavam-se, partindo de ‘sua’ Serra Re- já mereceu um breve comentário acima, mas dará mais trabalho
donda. Na minha mesa tenho o relatório pormenorizado de um aos teólogos que a lerão.
mês de Formação Pastoral intensiva em duas dioceses, Juazeiro ‘Preciso me converter’ – não houve tempo para isso nas vidas
e Guarabira, respectivamente na Bahia e na Paraíba. Aí, não se anteriores? Comblin queria não ficar abandonado, mesmo quan-
tratava de só passar o tempo. Essas escolas de formação organiza- do morto. Queria juntar-se – assim falou –, fecundando a terra,
vam-se em qualquer lugar, onde se ofereciam boas oportunidades, ao humilde padre – sem maiúscula – Ibiapina, declarado santo
conformando-se às circunstâncias diocesanas, criadas, na prática, pela gente nordestina, onde ‘sempre tem gente visitando o padre...
pelas preferências pastorais do bispo local. Precisei de um bom aproveitarei do movimento’ (comunicação eletrônica de Mônica
mapa para localizar as dioceses de Juazeiro na Bahia – não aquele Maria Muggler, 05.04.2011).
Juazeiro do Padre Cícero! –, de Bonfim – o Brasil está cheio de Ouso concluir com uma lembrança pessoal. Sempre vinha
‘Bonfins’! –, de Guarabira, ‘perto da capital’, cujo título de glória visitar-nos e passar um meio dia em Lovaina, na ocasião da sua
é o santuário do Padre Ibiapina, um santo – proclamado pelo po- viagem estival – no mês de junho ou julho na Bélgica: ‘Nordestino
vo – paraibano, sobre o qual ler-se-á no fim deste depoimento. A tem medo do frio, sabe!’. Nisso, como em muitas coisas da vida,
fase mais penosa da vida? Bem pelo contrário, pode ter sido a fase era de uma regularidade exemplar. Lembro-me bem da última
mais feliz: nas fotografias que guardei desse período, aparece um vez. Quando a Mônica me comunicava um novo endereço, mais
Comblin com largo sorriso, feliz daquela vida. uma vez, e por causa de mais uma mudança, agora porém para
Trabalhando dentro deste novo horizonte, identificando-se um lugar no interior baiano, que eu nunca ouvira mencionar e
com a gente humilde, não por isso se tornou eremita. O Nordes- no qual, para mim, Judas podia ter lá perdido as botas, perguntei
te, em nossos dias de comunicações sociais, está longe de ser um com toda inocência: ‘Não foi difícil, então, o transporte da biblio-
deserto egipcíaco. Reuniões, assembleias, celebrações não falta- teca tua para tal buraco?’. ‘Oh, essa!’, respondeu, ‘eu a deixei,
vam. A celebração dos 80 anos de sua vida, nos dias 20-22 de mar- ficou em Bayeux’. Que susto que me deu tal declaração! Fiquei
ço de 2003, ficarão para sempre na minha memória. No campus sem entender. Para mim, ver Comblin abrir mão da biblioteca –
da Universidade Paraibana Estadual – acho que o ‘Padre’ nunca foi ampla, variada, atualizada, mesmo em Serra Redonda, onde eu
professor aí, mas sabia-se que escreveu livros e livros e ‘é dos nos- o vi lutar, enfurecido, contra o cupim que a invadira... –, com a
sos’ –, que punha à disposição seus salões, se entregou o Festschrift qual ele parecia ter-se identificado, era ver um artista de renome,
com inúmeras contribuições, nacionais e internacionais. Mas é a repentino desprezador do seu instrumento preferido, jogando-o
concelebração de Ação de Graças que me deixou a impressão mais fora. Com o tempo, pouco a pouco – com José, as manifestações
profunda. A missa em si mesma nada tinha de cerimônia revolu- sobre si mesmo ficavam sempre a meio caminho entre brincadeira
cionária – Comblin nunca achou que fazer pulos acrobáticos na e afirmativa... – permeou-me o suspeito de que, nesta fase da vida,
liturgia fosse idêntico à evolução necessária e frutífera. Mas foi a que sabia ser a última, recluir-se num buraco baiano, juntar-se a
dignidade, misturada com uma alegria de poder realmente par- um bispo conhecido por ter tido o jejum como única arma con-
ticipar do ato litúrgico – como a da moça, cujo pai não a tinha tra o poder e a pobreza como único cartaz, era, para o andante,
deixado frequentar a escola até uns três anos antes –, pronuncian- seu caminho de despojo, prova de que seu compromisso com os
do a maioria das leituras, e, mais ainda, a do movimento lento de pobres era conclusivo.
dança sacramental da velha pretinha, que vinha apresentar pão
e vinho litúrgico da parte traseira da tenda para o altar, que me Carl Laga, bizantinista, é Professor Emérito da KULeuven; entre
comoveu. Não me acho ser do tipo sentimental, mas, no fim da 1959 e 1968 foi professor de História Antiga e Medieval na Facul-
ceremônia, tinha lágrimas nos olhos. Liturgia digna e comovente dade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, atualmente campus
ao mesmo tempo, parece impraticável em nossa Europa cética da Unesp.

181
parte 5 – influências religiosas e ideológicas

A contribuição dos jocistas belgas


M y r i a m Va n d e n N e s t

C om seu método de ‘ver-julgar-agir’, a JOC (Juventude Ope-


rária Católica) deixou, nos anos de 1960, inegavelmente sua
marca na pastoral do povo. Graças à participação de tantos jovens
tholica e Jocismo, esteve em Lovaina e manteve correspondência
com os capelães belgas da JOC. Estes enviavam suas publicações,
lidas com fervor, se bem que Ortiz achava que ‘a JOC/F brasileira
operários se produziu uma radical inversão dentro da Igreja Católi- não podia ser uma caricatura do modelo belga’ (Ortiz).
ca brasileira, que resultou na elaboração e no impacto da teologia O Estado Novo (1937-1944) e a Segunda Guerra Mundial
da libertação até na Bélgica (Bidegain de Uran). perturbaram os contatos entre o Brasil e a Bélgica. Mesmo assim
Para compreender sua origem é preciso remontar aos primei- os esforços dos pioneiros brasileiros não foram infrutíferos: em
ros anos da JOC e seguir a evolução deste movimento, a partir da 1942 fundou-se no Rio de Janeiro a JOC/F com Odette Azevedo
Bélgica, berço do jocismo e de seu mentor espiritual, Cardijn. Pa- Soares, Yolande Bettencourt e Francisco Mangabeira, que conhe-
ra realizar seu sonho de ser um sacerdote para os operários, Jozef ceu a JOC durante seus estudos em Paris. Bettencourt dirigiu, por
Cardijn (1882-1967) começou, em 1919, como vigário em Laken, volta de 1944, a JOC/F no Rio, tendo entre seus membros prin-
um movimento precursor, os Jovens Sindicalistas (1925). Sua atu- cipalmente domésticas.
ação entusiasta repercutiu rapidamente no exterior e vários países O fim da Segunda Guerra Mundial abriu para Cardijn e a JOC
contataram o secretariado belga. Vários padres e outros visitantes um período de maior internacionalização: de 1946 até sua morte
na Bélgica observaram seus métodos. em 1967 Cardijn viajou pelo mundo inteiro apesar de sua idade
Assim, duas moças de São Paulo, Albertina Ramos e Maria avançada (Kadoc, Cardijn). Quando visitou pela primeira vez as
Kiel, que estudavam em Bruxelas na Escola Social Superior (1932- três Américas, de julho a setembro de 1946, ficou muito comovi-
-1935), ficaram conhecendo a JOC. De volta ao Brasil, organiza- do pela pobreza, pelos contrastes chocantes e pelas condições de
ram grupos de jovens operárias católicas, que foram as primeiras vida desfavoráveis dos operários na América do Sul. Sua visão da
tentativas do jocismo em terras brasileiras. Não empregavam ain- problemática operária se ampliou para uma dimensão terceiro-
da um método definitivo, mas contribuíram na sensibilização a -mundista. Realçava a necessidade de uma solidariedade universal.
respeito da situação social dos desfavorecidos (carta de José Go- Em outubro de 1948 pisou pela primeira vez em solo brasilei-
mes – aliás, Zezé – Morais, 25.04.1986). Publicaram um boletim ro, por ocasião da I Semana de Estudos Nacional da JOC brasi-
mensal, Jocismo, a partir de maio de 1934. O padre Carlos Ortiz, leira, em São Paulo. Das diversas dioceses afluíram cerca de 600
que organizou a primeira JOC em Taubaté e publicou Acção Ca- delegados para analisar juntos a situação da JOC. Se elegeu uma

Conselho Nacional da Juventude


Operária Católica (JOC) no Brasil
reunido em novembro de 1961; ao
centro o sacerdote Jozef Cardijn.

182
parte 5 – influências ideológicas e religiosas

direção nacional: José Gomes de Morais Neto como presidente


da JOC, Odette Azevedo Soares como presidente da JOC/F e
José Távora como capelão nacional. A aprovação dos estatutos,
votada na presença de Cardijn, marcou o reconhecimento oficial
da JOC/F brasileira. Cardijn aproveitou sua estada para estreitar
suas relações com a Igreja, num dia de estudos com 400 padres
e seminaristas, no Ipiranga, e numa alocução para 75 bispos e 3
cardeais, em Porto Alegre. Dizia que a JOC devia poder contar
com o apoio de um grande grupo de padres e aproveitar todos os
meios para lutar contra ‘esta igreja a-histórica que fugia na cari-
dade’. Recebeu o título de doctor honoris causa das universidades
católicas do Rio e de São Paulo.
Desde 1948, Cardijn se esforçou para que padres e militantes
leigos viessem da Europa para implantar a JOC em países como
o Brasil, mas numa colaboração que não fosse colonial: ‘A JOC
no Brasil deve ser brasileira’. A este apelo responderam membros
da JOC, como Jacques Jerome, originário de Visé, que, com 20
anos em 1948, na difícil conjuntura do pós-guerra, planejava ir
trabalhar como eletricista na Argentina. Tinha sido ativo na pré-
JOC de Seraing. Como o consulado do Brasil em Antuérpia des- A Juventude Operária Católica (JOC) no Brasil com o sacerdote Jozef Cardijn.
pachou mais rapidamente seu visto, acabou chegando ao Rio de
Janeiro, onde foi considerado uma dádiva do céu pelo capelão da
JOC brasileira, Távora. Alguém com tão rica experiência jocista nal dos Bispos do Brasil adotou, em 1955, o ‘ver-julgar-agir’ como
preferiam guardar por lá! Com a equipe da JOC/F participou método, iniciou-se um processo que transformou radicalmente a
da supracitada semana de estudos e Cardijn conseguiu conven- atitude da igreja brasileira.
cê-lo a ficar dois anos mais e instalar a JOC na região de Belo Em 1953, o Secretariado Internacional concordou em enviar
Horizonte. No ano seguinte foi liberado como propagandista da a primeira jocista belga para a América Latina a pedido da secção
equipe de São Paulo, junto com o padre Mélanson, Zezé Morais, JOC/F do Rio de Janeiro. Denise Verschueren foi recebida por
Bartolo Perez e Tibor Sulik. Fundou várias seções no interior e uma equipe bem organizada. Sua tarefa consistia em assistir o
serviu de intérprete na preparação da Conferência Internacional movimento na formação de militantes e sobretudo de dirigentes.
em Braine-l’Alleud. Desde fevereiro de 1952 era ativo no Rio de Depois de alguns meses de adaptação, padre Távora lhe encarre-
Janeiro como responsável pelas manifestações externas, na pre- gou a responsabilidade dos grupos paroquiais de operárias da Zo-
paração da conferência da JOC/F sul-americana em Petrópolis e na Norte. Precisamente como Cardijn, consagrava muito tempo
da peregrinação a Aparecida. Depois, em 1955, dedicou-se ao Es- às visitas a padres e bispos para convencê-los que jovens operárias
tado de Minas Gerais. Jacques impressionava-se frequentemente eram capazes de se organizar. Desde novembro de 1955 explicava
‘com a generosidade, religiosidade e disposição ao sacrifício dos em todas as seções da Zona Sul em que deviam consistir as reu­
militantes brasileiros’ (JOCI). niões de núcleos e direção.
Voltando ao Brasil em 1951, Cardijn falou na semana de estu- Como membro da equipe nacional, Denise era também res-
dos da Ação Social Arquidiocesana. Se os problemas da juventude ponsável pelo trabalho com as domésticas. A situação das domés-
operária eram do mundo inteiro, tratou de casos especificamen- ticas a tinha comovido logo no início: os baixos salários, um quar-
te brasileiros percebidos em suas visitas às fábricas e às seções da to pequeno, a falta de liberdade, seu analfabetismo… Na Zona
JOC. Fez suas palestras em francês, mas, mesmo assim, sua men- Norte e na Zona Sul havia centenas de milhares destas domésticas
sagem era compreendida pelos jocistas brasileiros por sua fala ca- e existiam seções da JOC específicas para elas. A maior parte vi-
tivante e entusiasta e por seu carisma. Bartolo Perez, presidente nha do interior, sem família, para trabalhar nas casas das classes
nacional da JOC em 1952, constatou que ‘muitos jovens se com- média e alta. Desde março de 1956 organizavam-se dias de estu-
prometeram depois do discurso de Cardijn: suas visitas tinham do com o tema ‘Também eu sou filho de Deus’ ou ‘Tenho uma
grande significado para a direção da JOC/F e os capelões, foi um resposta a oferecer’; desde abril se publicava a revista Para você,
enorme estímulo para nós encontrá-lo e nos sentimos fortalecidos jovem doméstica. Foi neste zelo pela melhora de suas condições
na nossa obra pioneira’. Segundo Angelina de Oliveira, Cardijn fez de vida que Denise mostrou suas grandes qualidades pedagógi-
os bispos brasileiros compreenderem a dimensão da problemática cas. Conseguia que moças analfabetas executassem, a partir de
operária, como também a necessidade de se organizar em nível sua própria experiência de vida, tarefas importantes na JOC/F.
nacional. Tudo isto colocou a hierarquia a refletir sob a direção A partir de 1959 organizaram-se no Brasil inteiro pesquisas sobre
de Hélder Câmara e José Távora. Quando a Conferência Nacio- as experiências destas domésticas e seguiram campanhas como

183
parte 5 – influências religiosas e ideológicas

para ‘obter uma cadeira na cozinha’. Estas ações resultaram no próprio desenvolvimento. Nos anos de 1960, a JOC existia em
primeiro congresso para domésticas no Alto de Boa Vista (1961), mais de 90 países!
que formulou o Manifesto das domésticas e deu origem ao seguro A situação brasileira era totalmente diferente da belga e a JOC
social para este grupo. tinha que se adaptar. O fato de a JOC/F ter sobrevivido a tantos
Denise se dava conta de que não veio para transplantar ao problemas e à repressão militar prova que o movimento se adaptou
Brasil um modelo belga. Ela procurou viver como uma brasileira realmente a esta sociedade. Na medida em que a JOC/F brasileira
no espírito de pobreza e evitava fazer muitas comparações com crescia no nível da direção e em influência, alcançou sua autono-
a JOC/F belga. Era consciente de que a JOC brasileira já havia mia, também graças ao apoio dos comitês regionais e do Centro
realizado muito durante sua curta existência e observava que os de Informação América Latina (1955). O fato de Bartolo Perez ter
jovens brasileiros apenas tinham tido o tempo para ser crianças sido eleito em 1961 presidente internacional no Segundo Con-
despreocupadas. Em 1961, depois de uma estada de oito anos, selho Mundial da JOC/I, com participantes vindos de 85 países,
voltou à Bélgica e recebeu um mandato no Secretariado Interna- mostra como se tinha fortalecido a JOC/F brasileira.
cional em Bruxelas.
Na sua etapa inicial a JOC/F brasileira ficou grata pela ajuda Myriam Vanden Nest obteve licenciatura em História na KULeuven
de fora e precisava de publicações jocistas belgas. Entretanto, não com um trabalho de conclusão sobre “Os belgas na JOC brasileira”, é
se tratou de uma transplantação, que seria contrária aos princípios formada também em Ciências Religiosas, professora do ensino médio
de Cardijn e da JOC/I. Sua estratégia era seguir em cada país seu e ativa na pastoral da igreja católica.

A Uniapac e o Brasil
Peter Heyrman

A s primeiras organizações de empresários católicos surgiram


no anos de 1880-1890 na França e na Bélgica. Na senda de
Léon Harmel (1829-1915) e frequentemente assistidos por jesuí-
al, no Canadá, em setembro de 1957, decidiu formar uma cúpula
regional (CCDAL) em Buenos Aires (Argentina). A reunião mun-
dial seguinte da organização em Santiago (Chile), em setembro de
tas, examinavam como podiam adaptar sua prática empresarial à 1961, deu novo impulso. Nesse ano fundou-se também no Brasil
doutrina social da Igreja. Na Bélgica, data de 1894 a Association a Associação de Dirigentes Cristãos de Empresas (ADCE), ten-
des Patrons et Industriels Catholiques. A similar flamenga surgiu do entre seus administradores Ernesto Diederichsen (presidente),
em 1925, o Vlaamse Algemeen Christelijk Verbond van Werkgevers. Elias Corrêa de Camargo e Haroldo Falcão. Depois de São Paulo
Em 12 de junho de 1931, 40 anos depois da Rerum Novarum, e do Rio de Janeiro, seguiram seções na Bahia, em Recife (PE), na
foi fundada a primeira internacional de patrões católicos, as Con- Paraíba, em Natal (RN), Fortaleza (CE) e Belo Horizonte (MG).
férences Internationales des Associations des Patrons Catholiques. A ADCE organizou a partir de setembro de 1962 seminários para
Depois da guerra, em maio de 1949, esta organização foi reforça- empresários e pleiteou, entre outros, um sistema de salário família.
da por holandeses, belgas, franceses, alemães e italianos na Union Alguns belgas desempenharam papel de primeira importân-
Internationale des Associations Patronales Catholiques, a Uniapac, cia na expansão deste movimento empresarial cristão na América
com uma cúpula ainda exclusivamente europeia, mas que já nu- Latina. Em 1955, o jesuíta e assistente espiritual da Uniapac, Je-
tria ambições mundiais. Em 1962 a organização se rebatizou como an-Marie Laureys (1897-1956), percorreu o continente e manteve
International Christian Union of Business Executives. conversações com várias associações de patrões católicos, como
Sem esquecer a África, a Uniapac procurava nesses anos de no Brasil. No seu rastro seguiram entre outros o fabricante de fios
1950-1960 sobretudo expansão na América Latina. Através dos de aço Léon Bekaert (1891-1961) e Jacques De Staercke (nasci-
bons contatos com os jesuítas, os patrões católicos europeus espe- do em 1927). O professor de Gand, André Vlerick (1919-1990),
ravam encontrar lá correligionários para suas aspirações de uma cooperou desde 1959 em iniciativas para formação de empresá-
ordem mundial cristã, na linha das encíclicas Mater et Magistra rios junto com a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e o
(1961) e Gaudium et Spes (1965). Essa aproximação ocorria pa- Centro Nacional de Produtividade na Indústria (Cenpi). Entre
ralelamente com o movimento operário cristão e as Nouvelles os assistentes espirituais da ADCE encontrava-se o belga Michel
Equipes Internationales democrata-cristãs. Naturalmente, inspi- Schooyans (1930-), que lecionou de 1959 a 1969 na Pontifícia
ravam-se nos interesses de negócios. Universidade Católica (PUC) de São Paulo.
Criaram-se então associações de patrões católicos no Chile O mediador mais importante foi, sem dúvida, Rik Vermeire
(1948), no Uruguai (1952), na Argentina (1953), no Peru (1956) e (1920). Graças a Bekaert e ao industrial alemão Peter H. Werhalm
no México (1957). O congresso mundial da Uniapac em Montre- (1913-1996), foi nomeado em 1958 secretário-geral da Uniapac.

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parte 5 – influências ideológicas e religiosas

Esta função o levou várias vezes à América do Sul. Mesmo de- o Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo
pois de sua passagem para a empresa Bekaert, em 1965, Vermeire (CLAD). A ‘Declaração de São Paulo’, de novembro de 1963, de-
continuou a intermediar os contatos através da Fundação Léon fendeu uma integração econômica latino-americana mais forte,
Bekaert (1962) e da Maison de l’Amérique Latine. A Uniapac pro- algo no modelo europeu e correspondente às ideias do economista
curou o fortalecimento da organização patronal latino-americana argentino Raul Prebisch (1901-1986). O avanço da Uniapac na
e maior colaboração com o patronato europeu e com a Comuni- América Latina se consagrou no congresso mundial no México,
dade Econômica Europeia. Em novembro de 1962 ocorreu em em outubro de 1964.
Bruxelas o Fórum Europeu para a América Latina, que resultou
na fundação do Comité Européen pour la Coopération avec l’Amé- Peter Heyrman é Doutor em História e dirige a Seção de Pesquisas
rique Latine (CECAL, maio de 1963). Meio ano depois se reuni- do Kadoc – Centro de documentação Católica da Universidade de
ram 400 empresários latino-americanos em São Paulo e formaram Lovaina.

Os vínculos entre os mundos maçônicos


e laicos da Bélgica e do Brasil
N i c o l e t ta C a s a n o

C omo ‘produto’ europeu, a Maçonaria foi introduzida no Bra-


sil no final do século XVIII (Oliveira Marques; José Catella-
ni e William Carvalho). Figuras decisivas ou muito influentes
federar-se, criando entidades internacionais. Nestas, a Bélgica de-
sempenhou um papel importante. Na mesma época, a entrada
do Brasil nesses contextos internacionais devia facilitar a ligação
na história do país, desde a Independência até a Proclamação da entre os mundos maçônicos e laicos dos dois países. No Bulletin
República, eram maçons, desde o próprio Imperador Pedro I e o du Grand Orient de Belgique desse período pode-se ler como a
‘patriarca’ José Bonifácio de Andrada e Silva até o Marechal De- maçonaria belga seguia com interesse a evolução do movimento
odoro da Fonseca, os presidentes Prudente de Moraes, Campos maçônico no Brasil, constantemente contestado pela propaganda
Sales, Hermes da Fonseca, passando por tantos outros, como o clerical ultramontana. Por falta de documentos resulta difícil, por
Duque de Caxias, o Visconde do Rio Branco e seu filho, o Barão enquanto, traçar mais a fundo os vínculos anteriores a 1930. Nessa
do Rio Branco. data, o Grande Oriente do Brasil entrou na Associação Maçônica
Entretanto, os historiadores brasileiros discordam sobre a con- Internacional, fundada em Genebra, onde a maçonaria belga sem-
certada direção maçônica desses eventos, ainda mais que as lojas pre foi muito ativa (Bulletin de l’Association Maçonnique Interna-
brasileiras passaram por contínuas rivalidades e dissidências, fu- tionale, nº 32, 1930, p. 31; nº 34, 1930, p. 4). Outra pista seriam
sões e novas cisões. Numa dessas, um maçom exilado na França, os papéis pessoais de influentes maçons belgas e brasileiros, como
Francisco Gomes Brandão (1794-1870), aliás, pelo seu nome in- o pioneiro do ensino leigo e primeiro ministro da educação Pierre
digenizado, Gê Acayaba de Montezuma, conseguiu, do Conse- Van Humbeek (1829-1890), que tinha parentes brasileiros, ou o
lho Supremo do Rito Escocês Antigo e Aceito nos Países Baixos, arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo, que estudou em
uma carta de legitimação em 12 de março de 1829 para instalar Gand e manteve boas relações com empresários belgas.
um Conselho Supremo semelhante no Brasil. No seu regresso foi Mais aparentes são os vínculos nas associações do livre-pen-
reconhecido por outra carta vinda da Bélgica em 12 de novem- samento, acercadas à maçonaria. Grande parte destas, espalha-
bro de 1832 como 1º Soberano Grande Comendador brasileiro. das pelo mundo, se federaram em 1880, criando em Bruxelas a
Ainda em 1858, o Conselho Supremo belga confirmou o re- Fédération Internationale de la Libre Pensée. O Brasil integrou
conhecimento do congênere brasileiro, mas naquela altura este esta Federação no início do século XX, uma vez que se cons-
se tinha afastado, há muito tempo, de Montezuma, e voltara à tituíam as ligas anticlericais em oposição à ingerência clerical
política como deputado, ministro da Justiça e dos Estrangeiros e na vida social e política do país. Nas cidades onde se instalaram
diplomata na Inglaterra. Sobre as relações deste com os maçons se aproximavam muito dos meios maçônicos. Em particular, a
belgas, valeria a pena investigar, tanto mais que foi enobrecido Liga Anticlerical do Rio de Janeiro, fundada em 1911, se filiou
como Visconde de Jequitinhonha, sendo o único mulato, filho à Federação Internacional do Livre-Pensamento em 1912 (La
de um português e uma negra, a alcançar um título e que intro- Pensée, 17.11.1912, nº 407). Pode-se seguir a evolução e as ativi-
duziu no Senado as primeiras propostas para abolir a escravatura. dades destas ligas brasileiras por meio de seu semanário La Pen-
No final do século XIX, tanto na Europa como nas Américas, sée, dirigido por seu secretário, o livre-pensador e maçom belga
algumas associações maçônicas e laicas nacionais começaram a Eugène Hins (1839-1923).

185
parte 5 – influências religiosas e ideológicas

Hins conhecia relativamente bem o Brasil por ter nele residido siva em matéria escolar, mas seus educadores já elaboravam, nas
em 1863, quando, com 24 anos, teve que interromper seus estu- escolas municipais e na Universidade de Bruxelas, novas ideias e
dos por problemas de vista. Tirou de sua estada como preceptor métodos pedagógicos laicos. Advogavam a coeducação e a ginásti-
num engenho da província de Pernambuco material para as cartas ca. Para quebrar o monopólio católico, pensavam na organização
publicadas na Revue de Belgique e, mais tarde, em 1884, reunidas de orfanatos ‘racionalistas’. Muita atenção recebia o modelo das
num livro com o título Un an au Brésil. ‘Escolas Modernas’ formulado pelo mártir do Livre-Pensamento
Este tratava da natureza e da sociedade escravocrata pernam- espanhol, Francisco Ferrer.
bucana e não tinha ainda nada a ver com o Livre-Pensamento. A Estas novas propostas podiam experimentar-se na América
seguir, Hins partiu em 1872 para a Rússia, onde lecionou numa Latina e uma missão laica nesse sentido foi dirigida por Georges
escola militar. Em 1880 participou em Bruxelas do congresso da Rouma, a partir de 1909, na Bolívia e em seguida em Cuba. Na
primeira internacional. pauta deveriam surgir iniciativas no Brasil, onde os métodos ino-
Em La Pensée, Hins assinalava regularmente as atividades dos vadores de Ovide Decroly e, sobretudo, o livro Méthodes américai-
livres-pensadores brasileiros, observando o modo como as ligas nes d’éducation (1908), de Omer Buyse, tiveram forte impacto na
festejavam todos os aniversários do mundo laico europeu, como, nova pedagogia propugnada por Lourenço Filho e Anísio Teixeira.
por exemplo, as comemorações de Francisco Ferrer, em 13 de ou- Este último evoluiu assim do tradicionalismo religioso para a de-
tubro, e de Giordano Bruno, em 14 de fevereiro, mas também o fesa da escola nova pública nos seus cargos de inspetor e diretor
20 de setembro, data da queda da Porta Pio em Roma, em 1870, de ensino, o que lhe valeu acusações de comunista por parte dos
e do fim do Estado pontifical. Vale notar que esta última data é católicos da revista A Ordem e que, bem mais tarde, levou à sua
lembrada pela Liga Anticlerical do Rio de Janeiro por significar morte misteriosa no regime militar em 1971.
‘a queda do poder temporal dos papas, […] um dos feitos mais im- O Estado de Minas Gerais contratou ainda nos anos de 1930
portantes da história da Humanidade’. Além disso, Hins publicava uma missão pedagógica belga, liderada por Buyse, mas logo o Es-
a correspondência de seus correligionários brasileiros a respeito tado Novo de Getúlio Vargas e sua política mais favorável à Igreja
da ingerência dos jesuítas na vida social do Brasil e preocupava- Católica e, em seguida, a Segunda Guerra Mundial interrompe-
se com as alternativas à ofensiva ultramontana na educação da ram este diálogo entre belgas e brasileiros adeptos da laicização.
América Latina.
Aliás, na própria Bélgica, depois da vitória do partido católico Nicoletta Casano é Doutora em História pela Universidade Livre
em 1884, os maçons e livre-pensadores se encontravam na defen- de Bruxelas.

As igrejas brasileiras de Bruxelas


Anne Morelli

N os últimos dois decênios muitos brasileiros vieram viver na


Bélgica e particularmente em sua capital. Pertencentes em
sua maioria às classes populares e frequentemente relegados a uma
nas cédulas brasileiras de reais da fórmula ‘Deus seja louvado’,
inserida em 1986, por iniciativa do então presidente José Sarney,
suscita hoje debates. O ministério público de São Paulo, pela voz
situação administrativa de ilegalidade, se ocupam nos nichos pro- do procurador Jefferson Aparecido Dias, pediu que esta menção
fissionais normalmente reservados, no século XXI, aos imigrantes não figurasse mais a partir de março de 2013 nas cédulas, a fim
recém-chegados aos países menos afetados pela crise: trabalho na de proteger a liberdade religiosa de todos os cidadãos brasileiros.
construção, na jardinagem, na limpeza, nos restaurantes, na as- Neste clima de questionamento do monopólio católico, as di-
sistência às crianças, às pessoas de idade e aos doentes, no serviço ferentes igrejas ligadas ao protestantismo se desenvolveram rapida-
doméstico interno e na prostituição. mente. Trata-se essencialmente de evangélicos, de pentecostalistas
Como emigrantes, evidentemente, levaram consigo suas cren- ou testemunhas de Jeová que acumulam progressos sobretudo nos
ças. Se no século XX o Brasil era ainda considerado como país ca- meios populares. A divisão religiosa dos imigrantes brasileiros na
tólico – com somente traços de sincretismo com os cultos africanos Bélgica reflete esta evolução recente. Em Bruxelas, ao lado da
e locais –, hoje não é mais o caso. Os católicos somam 64,6% (123 comunidade católica brasileira reunida em torno da paróquia de
milhões de brasileiros), os protestantes, 22,2% (42 milhões de pes- Jesus Trabalhador, encontram-se os presbiterianos renovados, os
soas), enquanto 8% da população se define sem filiação religiosa testemunhas de Jeová, as igrejas pentecostalistas (Deus é Amor,
(La Raison, nº 577, 2013, 6). Deus é Fiel) e diversas igrejas evangélicas (Semade, O Brasil pa-
O pluralismo religioso avança. Se a Constituição brasileira de ra Cristo, Comunidade Cristã, Renascer em Cristo, Assembleia de
1988 foi mesmo promulgada ‘sob a proteção de Deus’, a menção Deus Missionário...).

186
parte 5 – influências ideológicas e religiosas

Presença em certos bairros trística, a exegese, a homilética ou a heurística antes de tornar-se


pastor. Os carismas da comunicação são geralmente suficientes
Geograficamente estas igrejas se concentram, logicamente, para o êxito do fundador. Sua esposa e seus filhos são quase sem-
nos bairros de Bruxelas que têm longa tradição de acolher imi- pre associados à sua predicação e à gestão do grupo. Deste mo-
grantes recém-chegados. De fato, as comunas de Saint-Gilles e do David Miranda fundou a igreja pentecostalista Deus é Amor,
Anderlecht (Cureghem), depois de terem sido a moradia de nume- sua mulher é ‘conselheira’, seu filho é pastor e sua filha, Debora
rosos judeus, italianos e espanhóis, acolheram muitos poloneses, Miranda, canta para a igreja. Quando o fundador da Semade
marroquinos, portugueses e brasileiros. Assim, a paróquia católica na Bélgica morreu prematuramente, o magazine ilustrado AB
de Jesus Trabalhador é uma das paróquias de Saint-Gilles, situada destinado aos brasileiros da Bélgica – o mensal gratuito declara
na Chaussée de Forest, ao passo que a igreja pentecostalista Deus é imprimir 11.000 exemplares; vive de abundantes publicidades
Amor se encontra na mesma rua (rue Gheude) em que a Semade, para as diversas igrejas – anunciou muito espontaneamente que
em Anderlecht, comuna onde se situam também a grande Comu- os três filhos do pastor Edvaldo Tavares Gomes – que apoiou o
nidade Cristã (rue des Deux Gares), os presbiterianos renovados projeto da revista desde o início – vão continuar seu trabalho e
e Deus é Fiel (rue Van Lint para estas duas últimas). Deus é Amor já são legitimados (AB, janeiro de 2013, 54).
tem também uma sala de culto em Ixelles (rue de La Cuve) e a
Semade uma segunda sala em Anderlecht (chaussée d’Alsemberg). Uma mídia eficaz
Estas igrejas procuram naturalmente os endereços de mora-
dia ou, pelo menos, de encontros de seus potenciais fiéis. Elas As igrejas brasileiras de Bruxelas se dirigem a um público de
oferecem serviços sociais e os serviços religiosos são fervorosos e trabalhadores modestos, mas que dominam a internet e geralmen-
frequentes. Assim, a paróquia católica brasileira de Saint-Gilles, te possuem celulares, smartphones e laptops. Utilizam estes ins-
que todas as noites oferece sessões abertas depois das jornadas de trumentos para divulgar as diversas igrejas. Assim existe um site
trabalho, se sobressai sobre suas homólogas belgas, em vias de qua- para a paróquia católica da Comunidade Jesus Trabalhador (www.
se extinção da prática religiosa. Às 19h30 durante a semana, às 18 ccbbruxelas.be) como também para a Comunidade Cristã (www.
horas nos fins de semana, pode-se rezar, cantar, estudar ‘a palavra ccbnet.eu) ou as igrejas pentecostalistas (Deus é Amor...). Lá se
de Deus’, fazer música, se confessar ou participar da missa. Trata- podem encontrar as homilias, informação sobre a agenda das ati-
se de um grupo da renovação carismática, que, confrontado com vidades do grupo ou dos horários do culto. A Comunidade Cristã
a situação de muitos de seus paroquianos, se implica ativamente se comunica com seus fiéis através de uma rádio que transmite 24
nas lutas pela regularização dos “sem-papéis” e na sua ajuda social. horas diárias (www.radioccbnet.com). Durante as sessões é possível
comprar os DVDs de cantos ou de predicações para ouvir em casa.
Pentecostalistas evangélicos A revista dos brasileiros na Bélgica (AB Magazine) serve tam-
bém de transmissora das atividades religiosas, anunciadas em ple-
A igreja pentecostalista Deus é Amor foi fundada em 1962 por na página de publicidade ou até na capa. Assim, a vinda a Bruxelas
David Miranda. Ela tem sua sede mundial em São Paulo e pre- do cantor Lázaro foi manchete da revista para anunciar seu con-
tende ter construído lá o maior templo do mundo, previsto para certo no dia 23 de fevereiro de 2013 no Tour e Taxis, numa sala
140.000 pessoas e inaugurado em 2004. Se as duas salas de Bruxe- para 5.000 pessoas. Sua vinda à Bélgica foi organizada pela igreja
las são modestas, elas oferecem o culto no sábado à noite e no do- Comunidade Cristã. Ele é um embaixador cantante da igreja,
mingo à noite e mantém laços de auxílio mútuo entre os membros como Debora Miranda o é para Deus é Amor. A morte súbita do
(ofertas de trabalho, alojamento, babás para as crianças, roupas...), pastor Edvaldo durante sua volta momentânea a Goiânia teve seu
aos quais propõem também atividades religiosas excepcionais, vi- culto fúnebre filmado. Alguns fragmentos do filme foram posta-
gílias de rezas, visitas às outras comunidades fora da Bélgica... A dos no Youtube para permitir aos fiéis residentes em Bruxelas as-
Semade é um ramo da missão da Assembleia de Deus na Europa, sociar-se ao culto. A cada instante é possível consultar os sites e as
sob invocação do Espírito Santo, criada em 2000 na Bélgica por eventuais novidades enviadas pelo correio eletrônico. O uso desses
Edvaldo Tavares Gomes, originário da cidade de Goiânia, e fale- instrumentos modernos estreita evidentemente os laços entre os
cido prematuramente no final de 2012. A Comunidade Cristã se membros, muitas vezes isolados durante a semana.
apresenta como jovem e moderna e, além de sua sede em Bru-
xelas, que oferece quatro sessões por semana, tem também filiais Os serviços sociais
em Antuérpia, Liège e Turnhout.
Para encontrar um trabalho, um alojamento, uma solução pa-
Empresas familiares ra seus filhos, uma ajuda administrativa ou mesmo roupa quente
de inverno, os brasileiros de Bruxelas podem contar com suas
Os fundadores das igrejas mencionadas geralmente gostam igrejas. Muitos fiéis vivem na precariedade e precisam de apoio.
de empregar os membros de sua família na sua empresa religio- As igrejas transmitem também a seus fiéis as informações mais
sa. Para tanto não é preciso debruçar-se longos anos sobre a pa- interessantes: Quais são os requisitos para sair da clandestinidade

187
parte 5 – influências religiosas e ideológicas

e obter papéis; Onde fazer um curso de francês; Por qual fron- pode-se encontrar nesse “ambiente familiar” interlocutores para
teira fazer chegar sua família; Qual é o meio mais barato para exprimir, em seu idioma, suas alegrias, suas dores e suas saudades.
enviar dinheiro; Como alugar um apartamento em Bruxelas e Uma questão se coloca, da mesma forma que, como para to-
conseguir relógios de eletricidade e de água para quem não tem das as situações religiosas em migração: essas igrejas específicas
os documentos em ordem. favorecem a integração ou isolam seus membros da realidade bel-
Para todas estas questões vitais para o recém-chegado é possível ga? Além do papel que elas se atribuem, de que ajudam muitos
encontrar respostas nas igrejas, através de outros brasileiros que já brasileiros a ultrapassar situações difíceis ou mesmo a sobreviver,
tiveram esses problemas e podem comunicar suas experiências e algumas dessas igrejas são etapas progressivas para a mistura. As-
seus “jeitinhos”. As mensagens fornecidas não têm nada de aber- sim a grande comunidade Cristã Brasileira de Anderlecht (Rue
tamente político ou, ainda menos, revolucionário. Mas não dizia des Deux Gares) reúne um público internacional. Várias outras
alguém há 175 anos (antes de acrescentar seu celebre: a religião é igrejas são igualmente ‘mistas’. Lá se encontram, ao lado dos bra-
o ópio do povo): A miséria religiosa é, por uma parte, a expressão da sileiros, cidadãos portugueses ou originários das antigas colônias
miséria real e, por outra, o protesto contra a miséria real. A religião portuguesas na África negra ou ainda de outros países. O idioma
é o suspiro da criatura oprimida, o calor de um mundo sem coração, português não é utilizado exclusivamente e dá lugar ao francês ou
como é o espírito de condições sociais, dos quais o espírito é excluído. ao inglês. O francês pavoneia-se no letreiro em algumas fachadas.
Que ligação têm os brasileiros com suas igrejas? Que papel Para a incipiente segunda geração, o português muitas vezes não
têm estas em suas inserções? Pode surpreender que na realidade é o idioma de melhor compreensão. Assim o ‘recuo’ sobre essas
muitos brasileiros não tenham um apego exclusivo a uma única igrejas comunitárias pode também abrir portas sobre o ‘diferente’,
igreja, mas podem circular entre várias delas. A proximidade geo­ ser ponte entre o ‘por lá’ e o ‘por aqui’.
gráfica facilita esta mobilidade. Se hoje não tem um culto na mi-
nha igreja ‘habitual’ posso atravessar a rua e assistir numa outra Anne Morelli é historiadora, professora na ULB-Universidade Livre
igreja, onde vou encontrar algumas de minhas referências e... co- de Bruxelas, onde dirige o Centro Interdisciplinar dos Estudos das Re-
nhecidos brasileiros. As diferenças dogmáticas desaparecem diante ligiões e da Laicidade – CIERL. Um de seus cursos trata da História
das semelhanças comunitárias e sociais. O grupo religioso age aqui das igrejas cristãs contemporâneas. Entre suas obras sobre as minorias
como um substituto do grupo familiar. Como todos os seus mem- religiosas se destaca o livro Lettre ouverte à la secte des adversaires
bros se encontram numa situação parecida de desarraigamento, des sectes (Carta aberta à seita dos adversários das seitas).

Grupos espíritas criados por brasileiros na


Bélgica e o movimento espírita belga
Fa b i o M e n d e s F u r t a d o

O movimento espírita é composto por membros que se unem


em grupos para o estudo e a reflexão sobre as obras do fran-
cês Allan Kardec. Esses grupos espíritas não contam com nenhum
sociação sem fins lucrativos) em dezembro de 2000. Atualmente
encontra-se na Rue Louis Hap 134, em Etterbeek, e conta com
várias atividades semanais em francês.
tipo de apoio financeiro de outros órgãos. Em 2001 chegou à Bélgica Marcia Alves, casada com o bel-
Em 1995 o brasileiro Franciso Bosco e sua esposa, Carolina ga Luc Mary, nativo das Ardenas. Desde a sua chegada sentia a
Bosco, chegaram a Bruxelas por questões profissionais. Espíritas necessidade de encontrar outros companheiros de ideal espírita,
desde criança, procuraram logo um grupo para continuar seus visto já ser espírita e membro do Grupo Caminho da Esperan-
estudos espíritas. Encontraram, assim, um grupo de amigos que ça no Rio de Janeiro. Por estar em Auby-sur-Semois, longe dos
se reuniam semanalmente na casa de um de seus participantes. grandes centros urbanos, levou vários anos para que isto acon-
Com o passar do tempo o grupo cresceu, os estudos e a prática da tecesse. Em 2008 com a participação de uma amiga médica e
Filosofia Espírita exigiram uma organização mais estruturada. Foi outra enfermeira no Congresso de Medicina Espiritualista em
nesse momento que nasceu a ideia da criação de um centro de Liège, o Espiritismo veio à sua porta. Suas amigas solicitaram
trabalho e estudos aberto ao público em Bruxelas. A ideia desse uma reunião de esclarecimentos que foi realizada em sua ca-
centro de estudos começou a se concretizar em fevereiro de 1996 sa, com a presença de 21 pessoas, para ouvir Jean-Paul Evrard,
quando alugou-se uma pequena sala. Assim, o CESAK-Centre presidente da União Espírita Belga. Assim, naquele dia nascia
d’Études Spirites Allan Kardec, o primeiro grupo espírita criado o Groupe Philosophique Spirite ‘Nosso Lar’, atuante na região
na Bélgica por brasileiros, se tornou oficialmente uma ASBL (as- de Auby-sur-Semois.

188
parte 5 – influências ideológicas e religiosas

Em 2005 um terceiro grupo espírita começa a se criar em tor- gica desde então. Os grupos CESAK, NEECAFLA e Nosso Lar,
no de um grupo de amigos brasileiros que também se reuniam que foram criados por brasileiros, se únem ao movimento para o
semanalmente em Saint Gilles, Bruxelas. Liderados pela brasilei- avanço das ideias espíritas neste país.
ra Flavia Veríssimo, um local foi alugado para acomodar o grupo Por seu caráter livre e desprovido de hierarquias, o movimento
nascente que crescia. Por volta de 2006 é criado o NEECAFLA – espírita cresce pelo esforço e pela união de seus próprios membros.
Núcleo de Estudos Espíritas Camille Flammarion. Com o crescer As atividades caritativas deste movimento se baseiam principal-
do grupo e de suas atividades, o NEECAFLA se torna uma ASBL mente no apoio moral e espiritual ao público participante. Eventu-
em 2010, época em que o grupo contava com aproximadamen- almente são realizadas atividades de caridade para dar apoio finan-
te 10 membros ativos. Atualmente encontra-se na Rue d’Albanie ceiro a movimentos de auxílio ao próximo, como, por exemplo,
103, em Saint-Gilles, e promove diversas atividades semanais em o programa STOP Famine Corne de l’Afrique e o grupo Coeurs
português e em francês voltadas para o público. SDF ASBL de Liège.
Esses grupos se integram e trabalham em conjunto com o mo-
vimento espírita belga com a adesão à União Espírita Belga, que Fabio Furtado é Engenheiro de Computação pela Universidade Fe-
se encontra na cidade de Liège. A União Espírita Belga realiza deral de São Carlos, atuando há vinte anos na área de desenvolvimen-
reuniões trimestrais para a reflexão e troca de experiências entre os to de sistemas no Brasil, França e Bélgica. Participa ativamente no
diversos grupos espíritas existentes no país. A União Espírita Belga Movimento Espírita Belga e é atualmente presidente do NEECAFLA
foi criada em 1882 e mantém vivo o movimento espírita na Bél- – Núcleo de Estudos Espíritas Camille Flammarion em Bruxelas.

Deuses em exílio: notas biográficas de um candomblé na Bélgica


Arnaud Halloy

A princípio, nada predestinava Alain, professor de Moral na


cidade operária de La Louvière, a tornar-se pai de santo e,
ainda menos, a abrir um terreiro de candomblé de caboclo em
segunda viagem marcou o início de uma série de acontecimentos
que impuseram a Alain, na época ateu convicto, a integrar esta
dimensão espiritual à sua própria existência.
Carnières, pequena cidade valona situada próximo à cidade de Entre os eventos importantes, podemos citar o episódio aconte-
Binche (conhecida por seu carnaval...). Mas os orixás lhe fixaram cido no dia 23 de abril de 1979, dia de São Jorge, no qual Oxóssi ‘se
um outro rumo. É este percurso religioso fora do comum que manifestou’ através de uma incorporação no meio da cozinha da
pretendo relatar aqui. Todo texto biográfico, descrito em poucas casa dos pais de Alain, que ficaram bastante impressionados com
linhas, encontra o desafio da escolha dos fatos a relatar, pois é a cena. Em decorrência deste evento, seus pais convenceram-no
nos detalhes de cada evento que se traça a trama de uma vida. a consultar um psiquiatra. Para tranquilizá-los, Alain foi consultar
Me contentarei, então, à imagem de um ‘story-bord’, em orientar o doutor Jean Dierkens, professor emérito em psicologia médica
a descrição naquilo que me parece terem sido os momentos de- na Universidade Livre de Bruxelas (ULB), bastante conhecido
terminantes do encontro entre Alain e o mundo do candomblé. na época por suas apresentações na televisão. O resultado dessa
Alain é um ativo participante do carnaval de La Louvière on- entrevista foi positivo, pois o eminente psicólogo encorajou Alain
de desenvolveu muito cedo uma paixão pelo folclore. E foi esta a ‘insistir no erro’, ou seja, continuar a experiência, como conta
paixão que o levou a viajar pela África e também pelo Brasil, on- Alain com bastante humor.
de, em 1974, visitou pela primeira vez um terreiro de candomblé: Nos anos seguintes, Alain realizou diversas viagens a Alagoi-
‘Achei engraçado... Para não dizer interessante... Sem mais’. Após nhas e, a cada uma de suas visitas, ele ia gradativamente mer-
quatro anos, ele retornou ao Brasil, desta vez para visitar sua irmã, gulhando no mundo do candomblé, desenvolvendo assim suas
que havia se instalado na pequena cidade de Alagoinhas, interior capacidades mediúnicas. Depois de uma década de frequência
da Bahia. E foi durante esta segunda estadia que os eventos to- assídua, Alain adquiriu o direito de abrir seu próprio terreiro e de
maram um rumo inesperado. Desta vez, o encontro com o can- iniciar seus próprios adeptos. Foi assim que pouco a pouco, e não
domblé ocasionou-lhe uma verdadeira revelação espiritual: por sem dificuldades, ele edificou o que viria a ser o candomblé de
várias vezes, Alain apresentou sinais de uma ‘aproximação’– os caboclo de Carnières.
signos precursores de uma possessão religiosa. Esta situação era Em consequência de uma série de decepções e dificuldades
surpreendente pois, na época, era bastante difícil para um bran- relacionais entre os membros da comunidade religiosa formada
co – salvo talvez alguns etnólogos! – ter acesso a estes cultos, e ao longo dos anos, Alain decidiu fechar o terreiro de Carnières
ainda mais raro que um estrangeiro fosse ‘tomado’ por uma divin- em 2000 e vender a casa familiar que abrigava o culto e também
dade africana, no caso o orixá Oxóssi, a divindade da caça. Esta um museu dedicado à escravidão transatlântica e às religiões afro-

189
parte 5 – influências religiosas e ideológicas

-americanas. Após vários anos de reflexão e hesitação, pontuadas de seu companheiro brasileiro, ele próprio iniciado no candomblé.
por uma longa estada em Salvador e a abertura de um restauran- A eles eu exprimo aqui toda a minha admiração.
te brasileiro em Carnières, Alain fundou uma nova casa de culto, As informações mencionadas acima fazem parte de uma pesqui-
desta vez em La Louvière. sa etnográfica realizada no candomblé de Alain entre 1998 e 2000.
Como testemunham a breve história do terreiro de Carnières Esta pesquisa resultou na redação de uma dissertação de Mestrado
e também, numa escala mais ampla, a escravidão transatlântica, na Universidade Livre de Bruxelas (“Dieux en Exil. Adaptations et
as crenças e práticas religiosas não têm nem fronteiras nem na- apprentissage rituel dans un candomblé de caboclo en Belgique”)
cionalidades: elas parecem, tanto quanto o ser humano desde há e na publicação de um artigo (“Um candomblé na Bélgica. Traços
dezenas de milhares de anos, destinadas a migrar e a se transfor- etnográficos de uma tentativa de instalação e suas dificuldades”,
mar ao longo dos encontros e das circunstâncias sócio-históricas. na Revista de Antropologia – USP, 2004, 47(2): 453-493).
Escolher a Bélgica como domicílio não é um negócio fácil para as
entidades afro-brasileiras, mas este desafio foi vencido há mais de Arnaud Halloy é antropólogo na Universidade de Nice Sophia-An-
30 anos por Alain. E hoje ele pode contar também com o apoio tipolis.

Bibliografia Geral da Parte 5


Sobre os jesuítas Sobre os beneditinos
Juarez Donizete Ambires. ‘Jacob Roland: um jesuíta flamengo na América Portuguesa’. Saint-André de Zevenkerken, Loppem. Arquivo, Fonds Van Caloen; Nouvelles bénédicti-
Revista Brasileira de História, t. 25, n. 50, 2005, p. 201-216; Anais do Museu Paulista, nes, 1895-1897, t. 12-14; Gerard Van Caloen. ‘Le Brésil vécu. Souvenir d’un vétéran
I, 239-246 e II, 254-257; José de Anchieta. Cartas, Informações, Fragmentos Históri- des tropiques’. Bulletin des Missions, 1920-1923, 6, p. 13-16, 52-56, 94-98 e 138-140;
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de plusieurs religieux de S. Dominique, de S. François et de la Compagnie de Iesus… neiro, 199; Mark Tierney e Filip Vandenbussche. Longing to belong. The Life of Dom
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François Bontinck. Histoire du royaume du Kongo. Lovaina, 1972; Jean Cuvelier. Het Ou- fer au Brésil? Une solution? Lovaina, 1908; Hubert Peffer. Une conférence sur le Brésil,
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190
parte 5 – influências ideológicas e religiosas

Sobre José Moreau Sobre o jocismo


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Relatório do Império. Rio de Janeiro, 1858, p. 33; 1879, p. 73. entre 1930-1955. Louvain-la-Neuve, 1979 ; Kadoc jaarboek 1982. Cardijn. Een mens,
een beweging. Leuven, 1982; Kadoc, Lovaina, Arquivo Cardijn, 388/1, rapport van
Sobre Maristela 1936; 1433, diário de viagem de Cardijn, outubro de 1948; Juventude Trabalhado-
ra, abril de 1956; 924, diário de Denise Verschueren e suas cartas de 21.03.1955 e
A. Audrá. Maristela: O Convento da Trapa. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 19.12.1953; 884, Pour une promotion d’une JOC véritable latino-laméricaine; Carta
1951; L. A. Gaffre. Visions du Brésil. Paris, Aillaud, Alves e Cia., 1912; J. P. Limongi. de Bartolo Perez, 15.05.1986; C. Ortiz. Ação católica e jocismo. Taubaté, 1936; Entre-
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foi elaborado a partir de documentos originais manuscritos existentes no colégio do
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191
parte 5 – influências religiosas e ideológicas

192
o brasil entra em cena

parte 6

O Brasil Entra em Cena

193
parte 6 – o brasil entra em cena

194
o brasil entra em cena

O Brasil entra em cena


Eddy Stols

M arcus van Vaernewyck, cronista de Gand, comparava as lu-


tas entre Tupin Imbas oft Tupin Ikins com a briga violenta
e o maltrato dos presos entre católicos e protestantes nas ruas da-
quela cidade, em 22 de dezembro de 1566, no primeiro ano dos
distúrbios religiosos em Flandres. Esta conexão, à primeira vista
insólita, se devia, sem dúvida, à leitura de um dos dois livros se-
minais da primeira brasiliana, André Thevet, Les Singularitez de
la France Antarctique, e Hans Staden, Warachtige Historie ende
beschrijvinge eens lants in America ghelegen, wiens inwoonders wilt,
naeckt, seer godloos, ende wreede menschen eters zijn...
Tinham saído do prelo em Antuérpia, em 1558, ainda no apo-
geu desta florescente metrópole do comércio internacional. Em
edições baratas, língua vernácula, capítulos bem articulados e de-
zenas de gravuras, descreviam os modos de viver e o meio am-
biente natural dos índios brasileiros e obtiveram maior êxito que
as obras mais doutas em latim. Sobretudo o livro de leitura fácil
do artilheiro alemão Staden, que, na volta de sua catividade entre
os canibais, passou por Antuérpia e lá contou suas aventuras na
casa dos Esquetes. Ganhou muitas reedições, uma primeira em
Antuérpia em 1563.
Com estes livros o Brasil irrompeu com um perfil mais nítido e
uma temática própria na representação da América. Antes, apenas
descoberto, o Brasil já havia entrado no imaginário de Flandres,
mas de maneira confusa e mesclada com outras terras do ultramar.
Em 1503 um pintor ou comerciante flamengo de Lisboa, João
Draba, ofereceu, segundo Valentim Fernandes, uma imagem de
índio e uma pele de jacaré à Capela do Santo Sangue em Bruges,
mas não se sabe se foram expostas lá como ex-votos.
Uma crônica de Bruxelas registrou, em 1506, a descoberta
de uma grande ilha, onde os homens andavam nus. Anos depois,
nas tabernas de Antuérpia, Thomas Morus ouviu do marinheiro
português Raphael Hythlodaeus histórias do ultramar que lhe ins-
piraram o cenário de sua De Utopia, 1515. Se índios mexicanos
talvez se apresentaram em espetáculos nos Países Baixos, inspiran-
do as máscaras do palácio do príncipe-bispo de Liège, nada consta
de seus congêneres brasileiros. Nas famosas festas de Binche, em Gravura de Jacobus Sluperus no Livro dos Costumes, de Abraham de Bruyne,
1549, os nobres dançaram ainda vestidos de peles como os selva- impresso em Antuérpia por G. van Parijs por volta de 1570.

195
parte 6 – o brasil entra em cena

gens dos balés medievais. Na segunda metade do século XVI, jun- nato locais, seu papel indispensável no abastecimento de maté-
to com os livros, o mapa do Brasil ganhou presença e volume na rias-primas, ao passo que os artistas plásticos inventavam e desen-
cartografia de Mercator e Ortelius. Ao mesmo tempo, traziam-se volviam a temática dos Quatro Continentes na pintura, gravura
do Brasil, em abundância, saguis, macacos, papagaios e araras co- e arte efêmera. No arco do triunfo dos portugueses na entrada de
mo animais de companhia, ao ponto de vendê-los na feira, como Antuérpia, do Arquiduque Ernesto, em 1594, Brasília, antes ainda
registrou uma pintura de Joachim Beuckelaer em 1566. representada sob o vulto da América, acedeu, num desenho de
Mercadorias brasileiras, do pau-brasil ao açúcar, agora mais Maarten de Vos, ao seu próprio status em pleno, ao lado da Índia,
abundante e barato, entraram no consumo corrente, enquanto Etiópia e Mauritânia.
se experimentavam em cachimbos as primeiras pitadas do tabaco Entretanto, a guerra religiosa e civil em Flandres e o crescen-
brasileiro. Formavam-se gabinetes de curiosidades como o Museo te antagonismo entre católicos e protestantes que, além de tudo,
instructissimo de Jacobo Plateau, em Tournai, com tatus e colibris, repercutiram no bloqueio ou na pirataria do comércio marítimo
ou a coleção do Duque de Arenberg, especializada em armas e regular com o Brasil, fizeram abortar esta equanimidade huma-
plumaria dos índios. Artistas como Hans Bol, Philippe Galle e Jan nista, algo respeitosa da alteridade indígena.
van der Straeten imaginavam suas pescarias, enquanto o natura- Com a Contrarreforma triunfante nos Países Baixos meridio-
lista Carolus Clusius inseriu as novidades brasileiras numa síntese nais, seus poderosos, sua nobreza e sua igreja esvaziaram o desafio
enciclopédica, Exoticorum libri decem, 1605. cultural do primeiro Brasil e reduziram as interrogações a meros
Se um aparente nivelamento entre uma sociedade cristã e estereótipos alegóricos. Confinaram os índios numa ciranda de
uma selvagem surpreende – como na supracitada referência de plumas, ao passo que domesticaram as araras insolentes como
Van Vaernewyck aos flamengos como índios –, este aflorou mais emblema da fidelidade conjugal.
explicitamente nas comparações feitas por Jean de Léry e Mi-
chel Montaigne sobre o canibalismo dos índios brasileiros e as Referências
barbaridades entre cristãos. Vaernewyck, Marcus Van. Van die beroerlicke tijden in de Nederlanden en voorname-
Algum relativismo cultural, subjacente e mais pragmático, se lijk in Ghendt, 1566-1568. Ed. E. Vanderhaeghen, Gand, 1872.
Stols, Eddy. ‘De triomf van de exotica of de bredere wereld in de Nederlanden’. Eds.
veiculou pela mesma época em Antuérpia na exaltação do comér- Werner Thomas e Luc Duerloo, Albert &Isabella, 1598-1621, Essays. Turnhout,
cio internacional pacífico e do intrépido mercador viajante pelo 1998, p. 291-301.
mundo e em contato com civilizações diferentes. Textos como os Stols, Eddy. ‘Alegorias fossilizadas o redivivas? Las cuatro partes del mundo en las artes
visuales de los Países Bajos (siglos XVI-XVIII)’. Eds. Scalett O’Phelan Godoy e Car-
prólogos do Landjuweel, o grande festival de teatro popular em men Salazar-Soler, Passeurs, mediadores culturales y agentes de la primera globaliza-
1561, justificavam, perante as resistências da agricultura e artesa- ción en el Mundo Ibérico, siglos XVI-XIX. Lima, 2005, p. 853-885.

Brasileiros barrocos
J o h a n Ve r b e r c k m o e s

E m 5 de dezembro de 1634, no palácio Nassau, em Bruxelas,


alguns membros da alta nobreza abordaram o palco fantasia-
dos de Topinanbour no Balet des princes indiens, apresentado em
da, uma índia trajada com uma tanga de plumas, uma couraça
com peitos, um manto de plumas, um chapéu de plumas e uma
ligadura em cada joelho. Além da força selvagem da amazona,
homenagem ao novo governador-geral dos Países Baixos meridio- chama a atenção sobretudo seu adorno com plumas, doravante
nais o cardeal-infante Ferdinando da Áustria. Infelizmente, não característico do índio para todo o mundo.
se sabe como, andavam ataviados no meio de um elenco exótico Esse rico vestuário contrasta com as gravuras sobre os tupis
com escitas e mouros. Como o balé dos príncipes índios foi exibi- ou tupinambás, que nos supracitados livros populares de Thevet
do quando Gastão de Orléans e Marie de Medici se encontravam e Staden eram sempre representados nus, com apenas enfeites
ainda em Bruxelas, devia ter um toque francês. de plumas no corpo como única roupa. Semelhantes imagens de
Nos meios da corte francesa e de seu balé, os tupinambás se índios nus e armados de bordunas, flechas e arcos foram reprodu-
tornaram populares desde o final do século XVI, dentro da fac- zidas também no livro do huguenote Jean de Léry, Histoire d’un
ção dos povos menos civilizados. Estes Topinanbours enfeitaram- voyage fait en la terre du Brésil, publicado em 1578 e de larga di-
-se provavelmente com fantasias de plumas, a exemplo de uma fusão europeia com tradução para o neerlandês em 1597. Mes-
gravura sem data impressa em Antuérpia no início do século por mo proibido pela censura, o livro entrou também em bibliotecas
Jacob de Gheyn. privadas dos Países Baixos meridionais e foi até mencionado no
Numa mascarada carnavalesca aparece, entre um selvagem início do século XVII como livro escolar.
com cabeça de coruja e uma velha mulher luxuosamente vesti- Num livro flamengo de trajes, impresso por volta de 1570 em

196
o brasil entra em cena

Dançarinos brasileiros nas ruas de cidades flamengas durante cortejos e desfiles, que atraíam milhares de espectadores.

Antuérpia, tanto por Guilliam van Parijs como por Joannes Bel- lianen e a gravura mostra uns 14 andando na frente e ao lado de
lerus, o gravador Jacobus Sluperus apresenta o homem e a mu- etíopes, sobre camelos e precedendo seu rei em cadeirinha. Os
lher brasileiros nus e qualificados como monstruosos. Somente o brasileiros somente trajam tangas e dançam gesticulando com
homem leva um pequeno penacho na cabeça e um enduape ou seus braços, tocando música ou levantando espelhinhos para o
coroa de plumas no traseiro. rei etíope. Estes brasileiros, gingando alegremente, se tornaram,
Num outro livro antuerpiense de trajes de 1581, de Abraham por volta de 1600, em pleno período barroco, um supletivo cons-
de Bruyn, se vê um casal parecido de índios brasileiros. As varian- tante nas festividades.
tes mais horríveis de índios emplumados surgem nas gravuras dos Em Bruxelas, em 31 de maio de 1615, participaram num carro
livros sobre a América, de Théodore de Bry, de Liège. Esta foi a alegórico do Ommegang – um desfile tradicional nas principais ci-
primeira coleção pan-europeia de livros de viagem sobre outros dades flamengas –, em homenagem à Arquiduquesa Isabela, com
continentes e as suas gravuras mostravam com muita minúcia o o maior requinte indumentário. A pintura por Denijs van Alsloot
canibalismo, a idolatria e a crueldade dos índios. As gravuras de (antes de 1593-1626) mostra quatro índios porta-estandartes atavia-
Bry mostraram ainda por vários séculos os autóctones brasileiros dos com uma túnica curta de plumas de diferentes cores e de uma
como canibais desnudos. deslumbrante manta de plumas vermelhas, que desce da coifa e
Mesmo assim, a outra representação dos índios brasileiros cobre suas costas e pernas por inteiro. Seus estandartes com o mo-
muito bem vestidos se adequava melhor às festas em terras da nograma IHS, da ordem jesuítica, parecem simbolizar a expansão
Contrarreforma católica. Em 1613 o senhor de Rasilly levou da religião cristã entre os índios americanos. Na parte traseira do
alguns índios do Maranhão a Paris, onde foram batizados. Na carro senta um soberano branco com cetro, que se deixa abanar
ocasião foram convidados a dançar. O desenhista Joachim Du- por um menino africano com um para-sol de plumas vermelha-
viert (1580-1648) e o gravador Pierre Firens (1580-1638), ambos ças. No meio, uma grande gaiola prende um jovem índio pagão
antuerpienses trabalhando em Paris, registraram, num retrato ao debaixo de um bando de papagaios e araras. Estes reaparecem em
natural, os diferentes passos de sua dança. Pela roupa parecem abundância na decoração do pano, que cobre a carroçaria.
quase europeus: meias longas, calças curtas bufantes, camisa de Aos jesuítas dos Países Baixos meridionais, que tinham fre-
manga longa e gola alta. De índios, têm somente sua coifa curta quentes relações com o Brasil, visto como terra de missão e de
em quatro deles, e longa, com plumas cobrindo as costas, nos índios a vestir, convinha uma imagem intermediária, nem escan-
outros dois. Primam nesta imagem o prazer de dançar e a hu- dalosamente nu, nem adornada demais. Ainda mais quando, fes-
manidade desses índios. tejando em 1640 o centenário da ordem, os jovens da retórica
Dançarinos brasileiros eram vistos também nas ruas das cida- em Bruges representaram, no seu teatro escolar, temas brasileiros
des flamengas durante os cortejos e desfiles, que atraíam milha- como a figura de José de Anchieta.
res de espectadores. Na entrada triunfal do Arquiduque Ernesto Na sua grande igreja de Francisco Xavério, construída em Ma-
da Áustria em Antuérpia, em 14 de junho de 1594, um cortejo lines nos anos de 1670, o arquiteto jesuíta integrou, com exube-
de brasileiros emplumados chamou a atenção com suas danças rância, índios no programa iconográfico do interior. O banco de
exuberantes. O livro de homenagem os menciona como Brazi- comunhão é decorado com emblemas de índios com cocares.

197
parte 6 – o brasil entra em cena

O gigante índio no
cortejo Ros Beiaard de
Dendermonde.

Mostra ainda um missionário, que carrega nas costas um menino do século XVII, como uma terra onde as fronteiras da civilização
índio. Como um dos representantes dos quatro continentes, um podiam ainda avançar. Como tal, se confundia frequentemente
índio, de forte bigode e braços musculosos com pulseiras emplu- com a África. Assim o pintor Jan van Kessel justapõe no seu painel
madas, sustenta o púlpito. Numa série de pinturas sobre a vida América, da série Os quatro continentes (1666), índias mais claras
de Francisco Xavério se encontram também índios com cocares com homens negros de cocares índios. Filhos deste fascínio confu-
reconhecíveis entre a multidão extasiada pelo santo. so são os dois gigantes tapuyas com cocares que se carregam ainda
Esta propaganda em Malines para estimular as missões ao Bra- nos cortejos de Dendermonde, os dançarinos índios representan-
sil também é tributária do belo livro que o jesuíta antuerpiense do a Ásia na toalha de damasco de Courtrai ou, ainda, o menino
Cornelius Hazart tinha publicado, a Kerckelycke Historie van de índio com arco e flechas no lustre rococó dos Quatro continentes
gheheele wereldt (A história eclesiástica do mundo inteiro). No de Frans Allaert (1770), do Museu de Arte Decorativa de Gand.
primeiro dos quatro volumes, publicado em 1668, um capítulo so-
bre o Brasil trata de José de Anchieta e de três martírios de alguns Johan Verberckmoes é professor de História Cultural da Época Mo-
jesuítas. Três gravuras ilustram o texto. Em duas se representam derna na Universidade Católica de Lovaina. Escreveu um doutorado
índios perigosos com tangas de plumas, flechas e arco, e na tercei- sobre o Riso, o Humor e os Livros de piadas nos Países Baixos espa-
ra, Anchieta no meio de animais selvagens. Hazart tinha predicado nhóis nos séculos XVI e XVII. Suas pesquisas tratam do humor e das
também sobre estes temas na igreja jesuítica de Antuérpia e não é emoções na cultura da época moderna, dos intercâmbios culturais dos
excluído que, por essa ocasião, se mostraram imagens desses índios Países Baixos meridionais com os impérios português e espanhol, das
selvagens, por exemplo, em grandes telas de pano. correspondências privadas e da vida cotidiana das famílias nobres nos
Desta maneira o Brasil era visualmente presente, até o final Países Baixos meridionais.

198
teatro, dança, circo

A da n ça na Bél g i ca a pa r t i r d o s é c u l o X X
Te x t o s o r g a n i z a d o s p o r C r i s t i n a D i a s

N o intuito de traçar os intercâmbios ocorridos no domínio


da arte da dança entre o Brasil e a Bélgica, abordaremos
o assunto a partir deste período, no qual se observa grande flu-
foi convidado a se instalar em Bruxelas pelo diretor do Théâtre
Royal de la Monnaie, Maurice Huisman, e fundou o então Ballet
du XXe siècle, dando início a um período glorioso para a dança
xo de migração de artistas brasileiros, tanto nas áreas da dança belga. Logo no começo da formação deste balé já se encontrava
clássica, moderna e contemporânea como na área das danças ao lado de Maurice Béjart uma brasileira, a grande bailarina Laura
populares brasileiras. Proença, que interpretou inúmeros balés ao lado do próprio Bé-
Percorreremos as diferentes etapas da história da dança na Bél- jart e de bailarinos que marcaram a história da dança, como Jor-
gica até os dias de hoje, através dos percursos artísticos individuais ge Don, Suzanne Farrell, Tania Bari, Paolo Bortoluzzi e Rosella
e de alguns depoimentos de profissionais ligados a esta arte, que Hightower entre outros.
participaram ou ainda participam ativamente da cena da dança Outra figura importante da dança mundial que também in-
nos dois países. Inevitavelmente, evocaremos o papel importante terpretou as obras de Béjart é a brasileira Márcia Haydée, que foi
que teve a Bélgica especialmente na evolução da dança contem- uma das grandes bailarinas atrizes de sua geração, aclamada como
porânea a partir dos anos de 1980 e as eventuais repercussões na a “Maria Callas da dança”.
dança brasileira.
Cristina Dias é formada em dança no Rio de Janeiro e em Nova York,
A era Maurice Béjart vive na Europa desde 1986. Foi assistente coreográfica de Frédéric Fla-
mand durante 20 anos no centro coreográfico da comunidade francesa
O intercâmbio entre os dois países na área da dança foi marca- Charleroi-Danses e no Ballet National de Marseille. Hoje em dia se
do pelo ano de 1960, quando o coreógrafo francês Maurice Béjart dedica à direção de filmes de dança.

Depoimento de Rachel da Costa Cunha

A ssim como os pássaros deixando-se reger pelos ventos que os


conduzem longe das histórias às vezes contraditórias dos ho-
mens, os bailarinos se deixam levar pelos voos que determinarão
da na inovação perpetuada por Maurice Béjart, revolucionário
da dança moderna. Assim como os pássaros entre céu e terra, os
bailarinos integram esta disciplina, esta humildade, esta busca
uma certa evolução que nos escapa; caminhos de sofrimentos, mas final incontrolável num êxtase que ultrapassa o implante em tal
que inspiram energias novas. ou tal hemisfério.
Assim vivi no Brasil esse mergulho numa arte extraordinária;
assim configurei quando, chegando à Bélgica, as impressões que Rachel da Costa Cunha é Pedagoga de dança, licenciada em Filo-
tento exprimir nesta pequena descrição comparativa com um sofia pela Universidade Católica de Lovaina. Atualmente é diretora
voo rasante, mergulhando uma segunda vez numa época diluí- do Centre de Ballet Mimésis, em Wavre, Bélgica.

199
parte 6 – o brasil entra em cena

A Escola Mudra
Cristina Dias

B éjart criou em 1970 a escola internacional Mudra, escola


superior pioneira na Europa, onde foram formados grandes
coreógrafos e bailarinos, tais como Maguy Marin, Ohad Naha-
Municipal do Rio de Janeiro, Francisco Timbó; a coreógrafa Célia
Gouvêa; o bailarino Linhares Junior que, após uma imensa carreira
na Bélgica e Holanda, voltou para o seu Ceará natal e continua a in-
rin, Anne Teresa De Keersmaeker, Michèle Anne de Mey, Pierre centivar este intercâmbio artístico, colaborando com seu irmão Da-
Droulers, Michèle Noiret e Nicole Mossoux. vid Linhares (diretor da Bienal de Dança do Ceará, festival no qual
Obviamente deveremos citar alguns dos muitos brasileiros que a participação de companhias belgas é intensa). Outra figura que
fizeram parte desta aventura e que voltaram para o Brasil, como a se destaca é o coreógrafo e bailarino Claudio Bernardo, diretor da
bailarina e atriz Juliana Carneiro; o primeiro bailarino do Teatro Cia As Palavras, que completará 20 anos de existência na Bélgica.

Depoimento de Claudio Bernardo

E m 1981, quando deixei Fortaleza para continuar meus estudos


de dança em São Paulo, já levava na mala o livro Um instante
na vida do outro, do coreógrafo francês radicado na Bélgica Mauri-
O bailarino
Claudio
Bernardo,
que fundou a
ce Béjart, e me dizia secretamente que a Bélgica seria meu Ceará Companhia
na Europa. Outros fatos e coincidências relevantes esclareceram As Palavras em
mais tarde este destino. Durante os anos vividos entre São Paulo 1995.
e Rio de Janeiro, trabalhando com o Ballet Stagium e Victor Na-
varro, pude encontrar com dois brilhantes intérpretes da dança no
Brasil, Robson Rosa e Francisco Timbó, ambos cearenses, que me
aconselharam a seguir seus passos e ir estudar na escola interna-
cional Mudra, fundada por Béjart em Bruxelas.
Assim, em 1986 cheguei ao coração da Bélgica e, logo no
ano seguinte, minha primeira coreografia feita com os alunos da colaborações com artistas belgas e de diferentes países alimen-
escola, com apresentações na África e na Europa, me consagrou taram esse processo. Minha chegada à Bélgica, com 21 anos de
coreógrafo e Béjart me levou para a Suíça, onde recebi o prêmio idade, foi decisiva para a minha formação profissional, para minha
“Philipe Maurice” pela minha segunda criação no concurso ali família e minhas amizades. Penso que a distância das minhas raí­
realizado. Meu retorno a Bruxelas marca uma ruptura de estilo zes foi fundamental para a minha formação como coreógrafo e
importante na minha carreira artística, com a visão de trabalhos artista; isso me permitiu analisar minha cultura ao mesmo tempo
dos novos coreógrafos belgas, tais como Anne Teresa De Keers- em que encontrei outra, buscando novos espaços de descobertas
maeker, Jan Fabre e Nicole Mossoux, como também o trabalho e reflexões sobre meu enquadramento no mundo.
com Frédéric Flamand. Seu olhar inovador entre dança e novas Os cearenses são considerados despretensiosos, humoristas e
tecnologias foi precioso para minha formação. trabalhadores, adoram desbravar fronteiras e estão sempre em êxo-
Desde 1991, dedico-me inteiramente à formação do meu re- do pelo mundo. Na Bélgica, mesmo distante da minha geografia e
pertório como coreógrafo. Nesse mesmo ano tornei-me artista as- do meu clima, encontrei um povo parecido com o meu, generoso,
sociado do teatro Atelier Sant’Anne, sob a direção de Serge Rango- com grande senso de humor, chegando a desarmar o outro rindo
ni, o qual, além de termos uma sólida cumplicidade profissional, de si mesmo. Uma gente que concilia diferenças na tolerância e
veio a tornar-se meu companheiro. Em 1994, a adoção de nosso no respeito, contornando os conflitos com constância dentro da
filho, Benjamin, marcou um passo decisivo para uma construção formação das suas comunidades e do seu acolhedor posicionamen-
familiar neste país. to como sede da comissão europeia. O cidadão belga que agora
Fundando minha companhia As Palavras em 1995, meu traba- sou, o cearense que continuo a ser e esse trajeto que continuo a
lho se consolidou junto à comunidade francesa da Bélgica e, dois traçar, constituem uma grande parte do que define a minha obra
anos depois, com a residência artística em Mons, veio um número e a minha posição em relação ao humano. Estas duas culturas me
importante de criações premiadas e de sucesso internacional. As formaram e sou-lhes infinitamente grato.

200
teatro, dança, circo

A e vol ução da da n ça c o n t e mp o r â n e a na B élgi ca


Te x t o s o r g a n i z a d o s p o r C r i s t i n a D i a s

E m 1991, a dança contemporânea belga viveu um momento


decisivo. Este grande movimento artístico, que se manifestava
desde os anos 80 com o aparecimento da chamada vague flamande
O espetáculo “La
Chute d’Icare”,
que contou com
os bailarinos
obteve importante apoio político. Podemos dizer que assistimos a brasileiros
uma verdadeira explosão de produções coreográficas de qualidade Linhares Junior e
inovadora e intensa, que sacudiram os códigos preestabelecidos, Claudio Bernardo
com a formação de importantes companhias de dança representa- em sua criação.
das até hoje no contexto internacional. Esta riqueza de produções,
inevitavelmente, atraiu para este pequeno país um fluxo enorme
de artistas. A circulação de bailarinos e coreógrafos vindos dos
quatro cantos do mundo, inclusive do Brasil, no território era e
continua sendo evidente.
Como exemplo do interesse dos artistas belgas pelos artistas
Cena do
brasileiros não podemos deixar de mencionar o coreógrafo Frédéric espetáculo
Flamand que, desde quando dirigia sua Cia. Plan K, fundada em “Cesena”, que
1973 em Bruxelas, já colaborava com alguns artistas brasileiros, tais contou com a
como Elisabete Santos, o maravilhoso bailarino Ricardo de Carva- participação de
Carlos Alberto
lho (que nos deixou precocemente) e os bailarinos Linhares Junior
Paniz Garbin em
e Claudio Bernardo (já citados) que, após terminarem a escola sua criação.
Mudra, fizeram parte da criação do espetáculo “La Chute d’Icare”.
Estas colaborações continuaram mais tarde, quando Frédéric
Flamand fundou o primeiro centro coreográfico da comunidade
francesa, Charleroi-Danses, com os bailarinos Gustavo Miranda,
Marcelo de Sá Martins, Anderson Santana – que também dan-
çou no Royal Ballet de Flandres e hoje dirige a escola Brussels
International Ballet – e Milton Paulo, que chegou à Bélgica por
Ricardo Ambrosio,
intermédio de Claudio Bernardo. que dança com
Outros artistas brasileiros, que participaram intensamente da Wim Vandekeybus.
evolução desta arte no país, voltaram para o Brasil, como o coreó-
grafo e professor Airton Tenorio; outros continuam atualmente co-
laborando com o desenvolvimento da dança belga, como Juliana
das Neves, assistente e intérprete de Alain Platel; Ricardo Ambrosio,
que dança com Wim Vandekeybus; Carlos Alberto Paniz Garbin,
que cursou PARTS e é bailarino de Rosas há alguns anos, tendo par-
ticipado da criação de The Song, En Atenden, Cesena e da remon-
tagem de Drumming; e Flávia Ribeiro Wanderley, que criou várias
coreografias com bailarinos profissionais, mas também com pessoas
que não praticam a dança, incentivando-as a descobrir esta arte.

201
parte 6 – o brasil entra em cena

Depoimento de Milton Paulo

C omecei a dançar em 1994 na cidade de Fortaleza, tendo uma


formação eclética. Fazia parte da primeira turma do Colégio
de Dança do Ceará, um projeto piloto para a dança nessa cidade,
O bailarino Milton
Paulo, nomeado
“artista conselheiro”
em 2011 em matéria
quando resolvi participar da audição da companhia As Palavras, de dança no projeto
de Claudio Bernardo. Fui aceito e trazido para a Bélgica. Fiz par- “Danse à l’école”
te dessa companhia de 2000 a 2005 e, neste meio tempo, escolhi para trabalhar
Bruxelas como cidade adotiva. A cena belga se apresentava como juntamente com o
Centre Dramatique de
uma grande potência, as propostas estéticas me pareciam bem
Wallonie por l’Enfance
interessantes: a proximidade das fronteiras europeias, o fluxo de et la Jeunesse.
informação e o contato com as diferentes abordagens de dança
me pareciam vitais.

Milton Paulo é formado no Método das Cadeias Musculares e Arti-


culares G.D.S. Colaborou com Claudio Bernardo (BR/BE), Fréderic
Flamand (BE), Kyung-a Ryu (KOR), Bud Blumenthal (USA), Ari
Numminen (FIN), Kristian Smeds (FIN), Elizabeth Czerczuk (POL)
e Marie Martinez (FR). Como coreógrafo, criou vários espetáculos
com a bailarina Raffaella Pollastrini. Em 2011 foi nomeado “artista
conselheiro” em matéria de dança no projeto “Danse à l’école” para
trabalhar juntamente com o CDWEJ (Centre Dramatique de Wallo-
nie por l’Enfance et la Jeunesse).

Pa rts
Cristian Duarte

“E m 1995 Anne Theresa de Keesmaeker fundou a escola in-


ternacional PARTS (Performing Arts, Research and Trai-
ning Studios), escola que continua até hoje a contribuir com a
O bailarino
Cristian
Duarte, que
integrou
formação de grandes nomes da dança, como Sidi Larbi Sharkaui,
a escola
Akram Kram e brasileiros como Cristian Duarte, baseado hoje em internacional
São Paulo, e a coreógrafa Maria Clara Villa Lobos, que continua PARTS –
em Bruxelas” (Cristina Dias). Performing
Penso que o que aprendi, no período em que estava estudan- Arts, Research
and Training
do em PARTS, foi entender que podemos fazer muito com muito
Studios.
pouco. Pensar nas propostas e rigorosamente elaborar a sua práti-
ca no estúdio, com empenho e disciplina. Aprendi também a me
desafiar, tanto como bailarino quanto como coreógrafo, e não
considerar as coisas como garantidas. O ambiente da escola me Cristian Duarte é reconhecido pelos principais prêmios de pesquisa
incentivou a expandir minhas possibilidades técnicas e conceitu- em dança no Brasil: APCA 1998/2003/2008/2011; Programa de Fo-
ais, não só através das informações que eram oferecidas aos alunos mento à Dança para a Cidade de São Paulo 2008/2010/2011/2012;
durante o período escolar, mas também através da intensidade das Prêmio Funarte Klauss Vianna 2007/2011; Festival Cultura Inglesa
informações que experimentávamos na cidade de Bruxelas, pela 2011; Rumos Itaú Cultural 2012, entre outros. Coordena o projeto de
sua oferta em quantidade e diversidade de produções em dança, residência artística LOTE#, subsidiado pelo “Programa de Fomento
teatro, artes visuais, exposições e música. à Dança para a cidade de São Paulo”.

202
teatro, dança, circo

Depoimento de Maria Clara Villa Lobos

M inha conexão com a Bélgica começou antes do meu nasci-


mento, através da minha família. Meu pai, diplomata bra-
sileiro, serviu em Bruxelas nos anos de 1960 e foi assim que meu
irmão, Dado Villa Lobos, músico, nasceu em Bruxelas.
Na época, meus pais haviam conhecido Laura Proença, uma
das solistas do Ballet du XX Siècle. Tornaram-se amigos e assistiram
a vários balés de Béjart, na ópera La Monnaie.
Em 1995, vim estudar em Bruxelas para cursar a escola PARTS.
Um dos motivos desta escolha foi a influência que as companhias
belgas, como Rosas e Última Vez, que viajavam pelo mundo com
suas criações, tiveram na minha formação como artista. Estar em
contato direto com essas companhias e com esses criadores foi
muito intimidante no princípio, pois não era fácil, sendo uma jo-
vem bailarina com aspirações a coreografar, estar rodeada perma-
nentemente por grandes nomes da dança contemporânea. Além
Maria Clara Villa Lobos, que fundou em 2000 a companhia “XL Productions”,
das muitas companhias e artistas de fama internacional na Bélgica, baseada em Bruxelas.
Bruxelas ocupava um lugar central na Europa, muitas companhias
estrangeiras se apresentavam na cidade.
Isso tudo criou um contexto muito fértil para a descoberta de
novas formas e linguagens cênicas. Acho que todas essas influên-
cias se concretizaram na minha peça “XL, because size does mat-
ter”, criada em 2000. Nela, tentei falar da abundância de propostas
devido à comercialização da dança como um produto de consu-
mo e também, de forma irônica e crítica, da angústia que essa
hegemonia dos grandes nomes representa para um jovem artista.
Eu tinha a impressão, na época, de que não era mais possível
criar um passo de dança sem que houvesse alguma referência co-
nectada a ele. Foi a partir destas questões, e de outras mais, que
criei o espetáculo que lançou minha carreira como coreógrafa na
Bélgica. Acho bem provável que se não tivesse vivido em Bruxe-
las, nesse contexto tão específico da dança contemporânea, meu
trabalho não teria tomado esse caminho. Em todo caso fica claro
A bailarina Maria Clara Villa Lobos, em “M, Une pièce moyenne”.
que o ponto de partida do meu trabalho como coreógrafa esteve
totalmente conectado ao contexto no qual ele foi criado, contex-
to de extrema liberdade no âmbito da criação, mas também de Maria Clara Villa Lobos é atualmente artista em residência no tea-
grande exigência de nível artístico. tro “Les Tanneurs”, em Bruxelas. Seu último trabalho, o espetáculo
Tive, então, a possibilidade, graças ao apoio do governo belga, infantil “Têtes à Têtes”, foi apresentado com êxito em três cidades bra-
de mostrar meu trabalho em vários festivais no Brasil, tais como o sileiras em novembro de 2012. A partir de 2000, ano da criação de sua
Panorama de dança no Rio de Janeiro, a Bienal de Dança de Forta- companhia “XL Productions”, baseada em Bruxelas, criou uma série
leza, o festival Dança Brasil no Centro Cultural Banco do Brasil e de espetáculos que foram apresentados por quase toda a Europa, além
no Serviço Social do Comércio (Sesc), em São Paulo. de Coreia do Sul, Canadá, Estados Unidos e Brasil.

203
teatro, dança, circo

O pa p e l d os p r o du t o r e s , o s i n t e r câ mb io s
d e com pa n h i a s d e dan ça e o s f e s t i vai s
Te x t o s o r g a n i z a d o s p o r C r i s t i n a D i a s

Espetáculos brasileiros na Bélgica


Rodrigo Albea

Q ual o impacto da dança brasileira nas plateias, imprensa e


instituições belgas? Traçar as relações entre os dois países no
campo da coreografia passa necessariamente por este âmbito. Por-
portadores de novas audácias coreográficas e Bruxelas, capital eu-
ropeia da dança. Último elemento contextual, e importante por
vezes até hoje, é o fato de que a confecção das temporadas nos
tanto, qualquer abordagem exclusivamente estética seria inválida teatros e festivais europeus exige um planejamento de produção
sem uma visão econômica. A dança cênica, cujas origens no Oci- que vai de oito meses a dois anos em média: um sistema com o
dente podemos identificar com a criação da técnica clássica e do qual podem dialogar somente artistas ou instituições com uma
ballet na França de Luís XIV, construiu sua identidade ao longo rea­lidade organizacional e financeira raras no Brasil. Ou seja, sal-
dos séculos como uma arte sem fronteiras. No entanto, é óbvio que vo exceções é compreensível que tanto o norte flamengo quanto
o processo mundial de globalização das últimas décadas acentuou o sul valão, ou na capital Bruxelas, não convidaram grupos brasi-
a circulação de espetáculos entre continentes. leiros aos seus palcos.
Na Europa, desde os anos 80 o Festival de Avignon, na Fran- O grande marco para a mudança de paradigmas nesse sistema
ça, contribuiu para esta abertura de horizontes e para o interesse foi a programação da Bienal de Lyon de 1996, em homenagem ao
por outras estéticas mundiais, porém raramente brasileiras. A dis- Brasil. Dois anos antes, o Grupo Corpo se apresentava em Lyon e
tância e a instabilidade econômica são duas hipóteses críveis para em Bruxelas, com grande êxito. A partir da Bienal, observou-se um
justificar esse desinteresse, sobretudo quando comparado à músi- dinamismo até então desconhecido da cena brasileira. Ao mesmo
ca, produto cultural de escala industrial e comercial. A exceção à tempo em que as singularidades coreográficas se multiplicavam,
regra seriam os trabalhos de cunho mais político e social, durante intercâmbios foram organizados, as trocas de informação torna-
o período da ditadura militar, quando, por exemplo, Maria Maria ram-se menos intermitentes, políticas setoriais e de exportação
(1976) do Grupo Corpo foi vista e bem recebida em várias capitais começaram a germinar.
europeias. Mas em Bruxelas, não... e isto por vários fatores que in- É impossível elaborar uma lista de espetáculos brasileiros apre-
fluenciaram desde então a relação dos teatros belgas com os artistas sentados na Bélgica. Alguns marcaram o público e os profissionais.
estrangeiros: nos anos 70, o federalismo belga transferiu a política Lia Rodrigues, por exemplo, gravou na memória de Liège sua pas-
cultural do Estado central para as comunidades linguísticas do sagem pelo festival da cidade com “Aquilo do que somos feitos”, em
país; a dança na Bélgica foi dominada até o final dos anos 80 por 2003, mais tarde apresentado em Bruxelas, numa capela mítica
Maurice Béjart, com pouca abertura a outras escrituras cênicas; para o meio da dança da cidade. A coreógrafa estabeleceu uma
com a verdadeira explosão criativa provocada pelos alunos de Bé- boa relação com o país, voltando várias vezes, sobretudo durante
jart na escola Mudra, a paisagem começou a mudar, e os poucos o Kunsten Festival, verdadeiro termômetro anual das tendências
festivais estavam mais atentos ao movimento local e europeu. mundiais. Durante esse festival, vivi um dos momentos mais eletri-
A Bélgica tornou-se nessa época um dos principais países ex- zantes com a recepção de uma obra. O meio da dança de Bruxelas

204
teatro, dança, circo

é bastante característico e Bruno Beltrão conseguiu surpreender Nesse teatro, sob a direção de Serge Rangoni e com o apoio
a todos e criar uma verdadeira explosão na plateia com seu H2 de uma equipe de produção extremamente competente, brasi-
(2005). Havia ali uma síntese dos conceitos mais em voga na dan- leira e belga, conseguimos a verdadeira proeza de mostrar três
ça e, ao mesmo tempo, uma fronteira nova para a qual apontava, apresentações das “Bacantes”, de José Celso Martinez Corrêa,
longe de todo e qualquer exotismo dos quadris brasileiros. e seu Uzina Uzona de mais de 50 pessoas. Um espetáculo tea-
O apogeu recente dessa nova relação, mais de igual para igual tral, operístico, carnavalesco, coreográfico. Total. As referências
– inclusive entre os festivais, com o interesse crescente suscitado à antropofagia cultural brasileira e à imensa influência de José
pelo Panorama, no Rio –, foi toda a programação durante a tempo- Celso no meio artístico brasileiro justificam ele aqui ser citado.
rada Europalia (outono-inverno 2011-2012). Marcelo Evelin, Lia O evento encerrou as festividades do Europalia e marcou esse
Rodrigues, Membros, Quasar, Dani Lima, Marta Soares... apre- novo modo de relação, de interesse e de produção da cultura
sentaram suas singularidades fortes, sobretudo durante a bienal de brasileira na Bélgica.
Charleroi-Danses e num programa por mim elaborado no Théâtre
de la Place de Liège. Rodrigo Albea é jornalista, produtor e curador de dança.

Danças populares brasileiras


Cristina Dias

A Bélgica transformou-se ao longo dos anos em um centro in-


contestável da dança contemporânea na Europa. Como po-
demos notar, essa dinâmica de migração de bailarinos e coreógra-
fos brasileiros continua extremamente importante, fato explicado
pelo incentivo existente ao desenvolvimento da dança contem-
porânea e, como veremos mais adiante, pela receptividade e pelo
interesse pelas danças populares brasileiras.
Nesta área observamos um grande fluxo migratório de artistas
que vieram do Brasil em grupos já formados e que, pouco a pouco,
se dispersaram pelo país formando novos grupos.
O grupo Brasil Tropical, que chegou à Bélgica em 1973, e tinha 40 integrantes.
Brasil Tropical

No ano de 1973, chegou à Europa a companhia Brasil Tropi-


cal, formada por Edvaldo Carneiro e Silva, Camisa Roxa, Grão
Mestre da Abada capoeira, na intenção de trazer para o público
europeu a arte da capoeira, como também apresentar a enorme
paleta de danças populares brasileiras com seus diferentes ritmos,
como o samba, o maracatu, as danças dos orixás.
A primeira formação dessa companhia tinha 40 membros, en-
tre músicos, cantores e bailarinos. A base principal da companhia
na Europa ficava na Bélgica, por seu ponto estratégico e também
pela imensa receptividade que teve por parte dos belgas.
A partir de então e até meados dos anos de 1990, essa com-
panhia viajou pelo mundo e se renovou ao longo do tempo com
outros membros, artistas originários principalmente da cidade de
Salvador, Bahia. O próprio Edvaldo Carneiro não tem noção do
número exato de brasileiros que trouxe para a Europa durante esse
período, mas nos confirma que foram muitos. Edivaldo Carneiro e Silva e o coreógrafo Domingos Campos.
Inúmeros destes artistas deixaram o Brasil Tropical, se instalan-
do principalmente na Bélgica, como o bailarino e professor Ruy
Basílio – que agora dirige seu próprio grupo de danças brasileiras

205
parte 6 – o brasil entra em cena

O bailarino e professor Cleber Santos, que ensina o afrojazz, participou do A baiana Patrícia Argolo, conhecida como Bombom, foi eleita em 2010 rainha
espetáculo “Bolero de Ravel” em 2000, quando Béjart (à esq.), de passagem por do CarnaBruxelas.
Bruxelas, o apresentou no Forest National.

Oya Brasil –, e o bailarino e professor Cleber Santos – que ensina sil Tropical; em 2010 foi eleita rainha do CarnaBruxelas e conti-
o afrojazz –, e teve a grande oportunidade de participar do espetá- nua seus estudos superiores de Educação, com especialidade no
culo “Bolero de Ravel” em 2000, quando Béjart, de passagem por acompanhamento psicoeducativo, com o objetivo de utilizar a
Bruxelas, o apresentou no Forest National. dança e o esporte como terapia para pessoas com deficiência mo-
A baiana Patrícia Argolo, conhecida como Bombom, também tora ou cognitiva.
começou a ensinar dança após ter viajado pelo mundo com o Bra- Outras histórias como esta nos descreve Arlene Rocha a seguir.

Grupos e companhias de espetáculos


Arlene Rocha

E m 1994, a companhia de teatro Marombar desembarcou em


Bruxelas, após ter estado um ano em cartaz em São Paulo,
com o espetáculo “Farsa para Guignol”, de Lorca, para participar
ana Angélica e diversos outros ex-integrantes do Balé Brasil Tro-
pical de Salvador. Também integraram Matalumbo o professor
de gafieira Anderson Bairros e sua companheira Aocione Ferrei-
do Festival du Rire em Rochefort. A trupe era composta pelos ar- ra; o bailarino e pesquisador musical gaúcho Mano Amaro e a
tistas brasileiros Vanderlan Marques, Emilia Rocha, Simone Li- jovem dançarina Bruna Fernandes, que desenvolveram sua arte
ma, Emiliano Benevides, Paulinho da Cuíca, Flavio de Sousa e na própria Bélgica.
pelo belga Reynald Halloy. Era dirigida por Alexandre Amaral e A companhia Matalumbo existiu até o ano de 2007, criou vá-
Arlene Rocha. rios espetáculos e trabalhou em colaboração com diferentes gru-
Para a maioria dos componentes da trupe Marombar, o ano pos de percussão, como a Batucada Terra Brasil e o grupo Batu-
de 1994 marcou o início de uma nova fase: entre teatro, música e queria, ambos dirigidos por Paulinho da Cuíca.
dança, os artistas se instalaram em Bruxelas e desenvolveram cada
um o seu projeto artístico, marcando assim um intercâmbio entre O grupo Maracatu Mix!
a Bélgica e a cultura popular brasileira.
Após uma viagem de um ano a Recife, Pernambuco, Arlene
Companhia Matalumbo Rocha e seu marido, o antropólogo belga Arnaud Halloy, trouxe-
ram na bagagem o gosto e o amor pela cultura de Pernambuco e,
Em 1995, em Bruxelas, Arlene Rocha criou a companhia em especial, pelo maracatu de baque virado, seu ritmo, sua dan-
de dança popular brasileira Matalumbo, da qual fizeram par- ça, sua história...
te diversos dançarinos, como Elionara Pessoa e Augusta Braga De volta a Bruxelas, em 2004 nasceu Maracatu Mix! (MMix!),
(Balé Folclórico da Bahia), Livia Carvalho, Nêga Bombom, Jo- projeto formado por músicos de diferentes experiências percussi-

206
teatro, dança, circo

Maracatu Mix! (MMix!), fundado em 2004 em Bruxelas e formado por músicos de diferentes experiências percussivas e bailarinos com experiência na dança afro-brasileira.

vas e bailarinos com vasta experiência na dança afro-brasileira, em jetos europeus e brasileiros. Atualmente, desenvolve três projetos
particular na dança sagrada dos Orixás. culturais: Maracatu Mix!, companhia de dança Alma Brasil (cria-
No seu desfile, Maracatu Mix! traz um ambiente musical e da em 2009, em Bruxelas, e dirigida por Arlene Rocha e Bruna
coreográfico particular, marcado pelo som grave das alfaias, pela Fernandes) e projeto Pedro Moura.
potência do ritmo do maracatu e por um visual inspirado na cul-
tura tradicional pernambucana, redesenhado na dança por Arlene Companhia Alma Brasil
Rocha e na percussão por Arnaud Halloy.
Hoje o projeto Maracatu Mix! se compõe de duas formações: Companhia de dança brasileira criada em 2009, em Bruxe-
Maracatu Mix! France e Maracatu Mix! Bruxelas. Ambos apre- las, é dirigida por Arlene Rocha e Bruna Fernandes. Guarda o
sentam o mesmo repertório musical e coreográfico. mesmo objetivo artístico da companhia Matalumbo: valorizar a
diversidade e as raízes da cultura brasileira através da dança e da
ASBL Alma Brasil música popular.

Maracatu Mix! é um projeto cultural produzido e divulgado Arlene Rocha é Coreógrafa, nascida em Goiânia, formada em Artes
pela associação sem fins lucrativos Alma Brasil, instalada nas Ar- Cênicas pela Universidade do Rio de Janeiro (UNI-Rio), residente
denas belgas e criada em 2011. Tem como objetivo valorizar a na Bélgica.
cultura brasileira na Europa e promover o intercâmbio entre pro-

Depoimento de Mano Amaro

“U m dos componentes da companhia de dança popular bra-


sileira Matalumbo, Mano Amaro nos conta um pouco da
sua história de migração” (Cristina Dias)
Mano Amaro durante evento
de dança em sua juventude
no Rio Grande do Sul.

Nasci no Rio Grande do Sul, na cidade de Pelotas, a mais im-


portante cidade no período do processo das charqueadas (carne
salgada). Lá os negros escravos trabalharam muito e enriqueceram
a cidade, era muito frio e tinham que trabalhar com o sal, o que
dava-lhes um tempo curto de vida.
Cresci em uma vila chamada Castilhos, filho de zeladora de

207
parte 6 – o brasil entra em cena

religião afro-brasileira e de pai funcionário público. Ali aprendi


a ter respeito pelo próximo e conviver com as diferenças, que na
época eram grandes. Desde pequeno frequentava lugares restri-
tos a negros, como clubes e discotecas. Assim foi minha infância,
pois em certos lugares nós, negros, não entrávamos e vice-versa.
Desde cedo convivendo com esta atmosfera, comecei a envol-
ver-me com a dança dos guetos e com o carnaval da cidade. A par-
tir dos seis anos desfilava em blocos infantis, escolas de samba, fui
passista, mestre-sala, ritmista: bons tempos! Na época, encontrei a
dança funk, que era muito forte; desde então não parei.
Tive contato com a dança contemporânea através de Beka Ka-
naan, pessoa que me ensinou a ver coisas que, no meu dia a dia,
eu não percebia, como o racismo que estava à minha volta, com
aquela carga pesada que subestimava a todos nós.
Passei a ser um cidadão da sociedade e não apenas aquele ne-
grinho que dançava funk!
Daí para frente interessei-me mais pela nossa cultura e pela Mano Amaro no espetáculo “Ori dança”, em Bruxelas, 2010.
dança; fiz parte de movimentos negros e fui o próprio movimen-
to; viajei bastante: São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador. Trabalhei mano e a natureza. Assim, a dança é a representação da existên-
como professor educador em um projeto em Porto Alegre, com cia de cada pessoa, se fazendo presente em todos os momentos
crianças de rua. Aí conheci Môa do Catendê – baiano, grande da vida. Em todos esses momentos dançantes se faz presente o
mestre –, encontro que me estimulou a perceber aos poucos as tambor, cujo som é utilizado de diferentes maneiras, em diversas
diferenças da dança afro nas diversas regiões do Brasil. tonalidades e intensidades.
Em 1996 recebi um convite para ministrar um workshop de A dança afro no Brasil adquiriu várias formas, variando segun-
dança afro-brasileira na Bélgica, em Antuérpia, onde estou até do as nações africanas que contribuíram para a formação do povo
hoje, construí família... Aqui fiz muitos cursos de dança africana negro, de acordo com o ritmo e as características dos Orixás (deu-
com ótimos professores do Senegal, Benin, Nigéria, Togo, e meu ses), e segundo as recriações feitas no interior de uma sociedade
trabalho como pesquisador em dança afro avançou bastante. pluricultural e pluriétnica como a brasileira.
Mantenho contato e troco informações com pessoas no Bra- Por meio do desenvolvimento de um trabalho de conscienti-
sil, pois continuo, mesmo morando aqui, sempre atento à cultura zação através da dança, venho propondo a dança afro-brasileira a
afro-gaúcha, pesquisando e bebendo desta fonte que é muito rica toda a comunidade europeia.
e que o Brasil ainda não conhece. Como prova do grande interesse dos europeus por nossas dan-
A cultura negra propicia uma relação profunda entre o corpo ças populares devemos citar o belga Alain Taillard, que se apaixo-
e a dança, com sentido de vida baseado na relação entre o ser hu- nou pelo carnaval do Rio de Janeiro.

O homem do carnaval do Rio


Régis Lemaire

“Como prova do grande interesse dos europeus por nossas danças


populares devemos citar o belga Alain Taillard, que se apaixonou
pelo carnaval do Rio de Janeiro”. – Cristina Dias

D esde sua infância, o belga Alain Taillard se banhou com seus


pais no ambiente carnavalesco de algumas cidades belgas,
como na festa da Cavalgade de Herve, no Lundi des Roses, da cida-
de de La Calamine. Sua paixão pelo carnaval logo o levou a Nice,
Veneza, Santa Cruz de Tenerife e, sobretudo, ao Rio de Janeiro,
onde desembarcou em 1992, primeiro como simples espectador
no berço das escolas de samba. Alain Taillard desfila no carnaval no Rio de Janeiro.

208
teatro, dança, circo

Em 2001, teve a sorte de conhecer o destaque Nabil Samir Alain é um dos raros europeus a ter o privilégio de fazer parte
Habib, personagem principal que desfilava no alto de um carro do círculo fechado dos destaques das escolas de samba do Rio,
alegórico: uma verdadeira estrela para os brasileiros. Este encon- principalmente numa das mais populares, a Mangueira. Atual-
tro permitiu que, desde o ano de 2004, Alain Taillard desfilasse mente, Alain Taillard trabalha na SNCB (Sociedade Nacional dos
como figurante numa grande escola de samba. Em 2008, a gran- Caminhos de Ferro Belga) e é reconhecido como especialista e
de surpresa! Nabil Samir Habib fez a proposta para que Alain o embaixador do carnaval do Rio na Bélgica. (Tradução e adapta-
substituísse, o que foi o ponto de partida de uma longa aventura, ção de Cristina Dias.)
rica em encontros e em emoções intensas.

Depoimento de Cristina Dias

M e formei em dança no Rio de Janeiro, cidade onde nasci.


Depois de estudar alguns meses em Nova York, vim para a
Europa em busca de mais informações no aprendizado da dança
contemporânea. Bruxelas, em meados dos anos 1980, se encon-
trava em ebulição neste campo artístico.
Minha passagem pela Bélgica, prevista para ser de apenas al-
guns meses, já dura 26 anos. Vários encontros adiaram a minha
volta ao país natal e um dos mais importantes foi o encontro com
o coreógrafo belga Frédéric Flamand, com o qual colaborei artisti-
camente durante quase 20 anos. Esta aventura, composta de mais
de 15 criações cênicas, apresentadas nos quatro cantos do mundo,
me proporcionou a chance de ter um contato intenso com grandes
artistas belgas e internacionais.
O fato de trabalhar com outros criadores, além de bailarinos,
videastas, arquitetos, músicos, compositores e artistas plásticos,
com o intuito de compor um projeto artístico multidisciplinar,
integrando sistematicamente vídeos e filmes nas obras criadas, fez
Cena de filme de Cristina Dias.
aumentar cada vez mais meu interesse pela linguagem cinemato-
gráfica e me abriu novos horizontes de reflexão.
Assim, há oito anos me dedico inteiramente à direção de filmes como uma ficção dançada, na qual o personagem principal ques-
de dança, filmes experimentais, cenografia e vídeo, por meio dos tiona a sua própria duplicidade, o que é real e o que é sonho, a
quais continuo a investigar o movimento, a composição, o ritmo, inconsistência do tempo.
a luz. Meus três últimos curtas-metragens, L’instant suspendu, Acredito que o motivo principal que me levou tão natural-
L’autre e Le rêve du roi, que penso serem os filmes mais represen- mente ao encontro do suporte cinematográfico foi ter descoberto
tativos da minha linha de trabalho, abordam o tema do “Duplo”, que este último me abre novas portas e me ajuda a continuar a
e formam assim uma trilogia, inspirada livremente em textos do desenvolver temáticas que me atraem e que tenho necessidade
escritor argentino Jorge Luis Borges. Cada um deles é construído de explorar.

209
teatro, dança, circo

A amizade entre o Brasil e a Bélgica no circo


Ve r ô n i c a Ta m a o k i

O circo brasileiro foi constituído por famílias tradicionais vin-


das, em sua maioria, da Europa, e que aqui chegaram, a
partir do início do século XIX, como saltimbancos ou integrando
espetáculo!”, do Centro de Memória do Circo. Mas, sem dúvida,
as estrelas que mais brilharam no firmamento do circo brasileiro-
-belga foram Lison e Carola.
grandes companhias que percorriam o mundo. Quando essas fa-
mílias começaram a viajar, indo a lugares aonde só o circo chega- Madame Lison
va, foram incorporando artes, expressões e artistas dos lugares por
onde passavam, diluindo o caráter internacional do espetáculo Elisabeth Josephine Gallemaert Knockaert nasceu em Bru-
circense em criações locais. xelas, Bélgica, em 20 de setembro de 1921. Filha do chefe de
Assim, o circo de origem europeia, que quando aqui chegou cozinha do rei, desde pequena demonstrou talento musical, can-
recebeu o nome de “circo de cavalinhos”, foi se transformando, tando inclusive numa banda de sua cidade. No início da década
abrasileirando-se. E entre as diversas contribuições brasileiras à lin- de 50, casou-se com Nani Brasso que integrava o trio cômico “Les
guagem internacional do circo, vale destacar o circo-teatro, gênero Chabris” – considerado na época um dos melhores do mundo
de espetáculo que consiste na apresentação de números circenses
na primeira parte e de um ato teatral na segunda.
A partir do decênio de 1950, muitas famílias tradicionais se re-
tiraram do picadeiro, interrompendo uma tradição que perdurava
por várias gerações e privando a população de vários circos itine-
rantes que percorriam todo o território nacional. As que resistiram
adaptaram-se aos novos tempos e, entre outras mudanças, elimi-
naram a segunda parte do seu espetáculo, o teatro, e passaram a
apresentar apenas o ato circense.
De lá para cá, o acontecimento mais significativo no que se
refere ao circo é sem dúvida o surgimento das escolas de circo, a
partir de 1978, que apontou novos caminhos para a arte circense
no Brasil.
No fluxo e refluxo do circo entre Brasil e Europa, precisamen-
te entre Brasil e Bélgica, que afinal é o tema deste texto, é preciso
ressaltar que muitos dos nossos talentos têm, nos últimos tempos,
optado pela escola ESAC (Ecole Supérieure des Arts de Cirque,
Bruxelas) para sua formação.
É o caso de Maíra Benozatti Campos, uma das nossas me-
lhores aramistas da atualidade. Por outro lado, começamos a nos
acostumar com as visitas de grupos belgas que têm nos encantado
com sua arte, como o ShakeThat! E Duo POLINDE. Assim como
temos nos acostumado com a parceria de belgas que vivem hoje
no nosso país, como Anne Loeckx que, entre outros trabalhos,
colaborou com a pesquisa e a montagem da exposição “Hoje tem Madame Lison em cena com palhaços.

210
teatro, dança, circo

Carola Boets tocando acordeon.

–, com quem Lison percorreu várias cidades da Europa, Ásia e ceu em Santo André, no dia 14 de fevereiro de 2008, ao lado de
África, até chegar ao Brasil, em 1953, para integrar o elenco do sua filha Jeanine, suas netas Carmem e Lissete, muitos bisnetos
Circo Garcia. e tataranetos.
No Brasil, La Lison se destacou como apresentadora, papel em
que foi pioneira e marcou época. Trocava de roupa a cada número, Dona Carola
anunciava o espetáculo em oito idiomas e tinha uma elegância
que até hoje é lembrada pelos colegas. Atuou nas maiores com- Andréa Françoise Carola Boets nasceu em 1937, na Bélgica.
panhias circenses da época, com as quais viajou por todo o País e Filha de acordeonistas performáticos, Carolus Boets e Ernestine
parte da América do Sul. Maria Ryckaert, que se apresentavam com o nome de Scandallis,
Após quase 50 anos de ausência, Lison retornou à sua terra na- começou ainda menina sua carreira artística, fazendo imitações
tal, onde reencontrou Carolus Leon Van Reet, seu namorado de de Maurice Chevalier e, seguindo a tradição familiar, tocando
adolescência. Começaram a manter contato e em 1991 Carolus acordeons dos mais variados tamanhos. Carola também tocava
fez uma visita surpresa a Lison no Brasil. No ano seguinte, casa- saxofone, dançava, interpretava, adestrava animais (cobras, cabras,
ram-se em uma cerimônia católica dentro do circo de Federico elefantes, chimpanzés).
Orfei, com quem sua neta Lissete era casada. Seis meses depois, No Brasil, aonde chegou em 1953, casou-se com Antolin Gar-
como num conto de fadas, casaram-se também no cívil, em um cia (1904-1987), proprietário fundador do Circo Garcia (1928-
Castelo de Antuérpia. -2002), na época considerado um dos maiores circos do mundo.
Daí em diante, Lison passou a viver uma nova rotina, residin- Indubitavelmente, dona Carola, como era chamada nos
do metade do ano no Brasil e a outra metade, na Bélgica. Fale- bastidores, foi a primeira dama do circo brasileiro nas últimas

211
parte 6 – o brasil entra em cena

décadas do século XX. Seu amor incondicional pelos animais


rendeu a piada que circulava entre os empregados e artistas do
Garcia de que, na próxima encarnação, queriam nascer maca-
cos da Carola.
Em 2002, com a morte de seu enteado, Rolando Garcia, que
sucedera o pai na direção da companhia, dívidas financeiras, au-
sência de terrenos adequados para circos nas grandes cidades e
leis proibindo a presença de animais no espetáculo circense fize-
ram com que Carola tomasse a mais difícil decisão de sua vida:
baixar de vez a lona do Garcia, após quase 75 anos de existência.
Seu desejo era construir um santuário para acolher os animais do
seu e de outros circos. Não teve tempo. Fora do picadeiro, viveu
pouco tempo, vindo a falecer em 2006, na cidade de São Paulo.

Verônica Tamaoki é jornalista, atriz e diretora circense, escreveu o


livro Circo Nerine ao lado de Roger Avanzi. É fundadora e coordena-
dora do Centro de Memória do Circo da cidade de São Paulo. Carola Boets com chimpanzé.

Circo social belgo-brasileiro


Anne Loeckx

N o dia 11 de maio de 2010, o Centro do Circo de Flandres


organizou em Antuérpia um intercâmbio entre organizações
flamengas e brasileiras que se dedicam ao circo social. A reflexão
índios e dançar com eles”. Pena não termos conseguido manter tal
convívio lúdico e pacífico...
No que me concerne, já trabalho há quatro anos como peda-
examinava o êxito do circo como metodologia em muitos projetos goga em vários projetos com crianças e jovens em zonas carentes
sociais. Zonas de risco, gangues, tolerância zero… Ainda que não brasileiras, tais como o projeto Crescer e Viver, no Rio de Janeiro,
se comparem à “barra pesada” das favelas cariocas, cidades como o Movimento Bixigão, em São Paulo, o projeto Circo, Arte e Ci-
Bruxelas e Antuérpia têm bairros com muitos problemas sociais, dadania, em Ouro Preto. Organizações bem diferentes, mas que
culturais e econômicos. Felizmente, tanto a região de Flandres acreditam no circo como meio de desenvolvimento pessoal, em-
como o Brasil possuem a arma do Circo! bora em geral recebam apoio e meios insuficientes para se man-
Alguns ateliês de circo nas cidades flamengas se estabelecem ter. Penso que, nas mesmas condições, organizações belgas teriam
justamente nesses bairros difíceis para organizar, em colaboração provavelmente desistido há muito tempo. Mas que esta luta no
com outros parceiros, projetos de circo com as crianças e os jo- dia a dia vale a pena se comprova pelo entusiasmo dos meninos
vens da vizinhança. A expressão “circo social” surgiu nas comu- participantes desses projetos.
nidades carentes brasileiras, quando alguns entusiastas, poucas Uma possível explicação da popularidade do circo no Brasil
décadas atrás, utilizaram o circo para oferecer mais chances às é a sensação de se ser apreciado, não apesar da diferença, mas
crianças e aos jovens. Se bem que atualmente, no Brasil, acha-se precisamente por se ser diferente. Desde sempre o circo é o lu-
graça do termo, uma vez que, de certo modo, todos os circos são gar para os que são “diferentes”. Mas o circo tem também a ver
sociais, já que interligam as pessoas. A pista é redonda, de ma- com liberdade. Em nenhuma parte se sente maior liberdade do
neira que todos os espectadores se confrontam olhos nos olhos. que quando o artista consegue, depois de muito suar, realizar o
Em seu livro O elogio da bobagem, Alice Viveiros de Castro re- salto almejado. Uma imensa liberdade, acompanhada da sensa-
laciona o circo com o primeiro encontro entre os portugueses e ção de controle. O que falta tanto a crianças e jovens de bairros
os indígenas de Pindorama: desfavorecidos é ter o controle de uma situação em casa ou no
“O Brasil começou – e não podia ser de outro modo – com uma bairro, o que podem experimentar intensamente no circo. Mais
festa! Índios e portugueses dançando juntos, de mãos dadas, ao som ainda porque, no picadeiro, os sentimentos de orgulho e liber-
de uma gaita. E quem armou a grande roda foi um palhaço. Pois dade são apreciados pela sociedade, que aplaude de pé. Lá onde
é. Devíamos construir uma estátua, um monumento a Diogo Dias, a sociedade determina o que pode e não pode, o circo insiste:
o cômico gracioso que viajava com Pedro Álvares Cabral e que, no “Pode mais, e melhor”. O circo, por si só, não tem utilidade social,
Domingo de Páscoa, no início da tarde, resolveu tomar a mão dos mas oferece a qualquer um o direito ao desenvolvimento pessoal,

212
teatro, dança, circo

Uma possível explicação da popularidade do circo no Brasil é a sensação de se ser valorizado não “apesar da diferença”, mas precisamente por se ser diferente.

o direito de expressão e, sobretudo, o direito ao prazer. Esta é a


magia do circo social.

Anne Loeckx possui formação em Psicologia e em Pedagogia do Cir-


co. Na Bélgica, em Flandres, esteve ativa em diferentes projetos de
circo com grupos sociais em situação delicada. Há quatro anos atra-
vessou o oceano para ganhar experiência de vida no Brasil, onde tra-
balha como supervisora e coordenadora de projetos de circo social no
Rio de Janeiro, em São Paulo e em Ouro Preto. Links úteis: <www.
circuscentrum.be>; <http://crescereviver.org.br>; <http://circoarteedu-
ca.wordpress.com>

Em nenhuma parte se sente maior liberdade do que quando o artista consegue,


depois de muito suar, realizar o salto almejado; uma imensa liberdade,
acompanhada da sensação de controle.

213
parte 6 – o brasil entra em cena

214
música clássica

parte 7

Música

215
parte 7 – música

216
música clássica

Músicos belgas no Brasil e brasileiros na Bélgica


Anna Maria Kieffer

Reichert e Callado: dois flautistas irmãos cólogo e diretor do Conservatório de Bruxelas quando Reichert
lá fez seus estudos:

Q uando o flautista belga Mathieu-André Reichert desembar-


cou no Rio de Janeiro em 8 de junho de 1859, encontrou
uma cidade em grande ebulição musical. Desde o porto, a cidade
“Reichert (Mathieu André), nascido em Maestricht, em 1830,
um dos virtuosos flautistas mais hábeis e extraordinários do século
XIX (...) “Não foi à toa que o jovem Carlos Gomes compôs o En-
fervilhava de sons, a começar pelos cantos dos carregadores e pe- treato da ópera Joana de Flandres, peça de grande dificuldade téc-
las cantigas dos escravos de ganho que enchiam as ruas com seus nica, especialmente escrito e dedicado ao insigne flautista Reichert”.
pregões, até a música praticada nas casas, nos teatros e na corte. Por outro lado, é possível que sua primeira formação musical,
O compositor Francisco Manuel da Silva tinha conseguido como filho de um músico ambulante que se apresentava em cafés,
reerguer a antiga Capela Imperial, esfacelada depois da abdica- tenha contribuído para que se sentisse à vontade junto de músicos
ção de D. Pedro I, e fundar o Conservatório. As temporadas de populares, em formações instrumentais que, em pouco tempo, se-
ópera foram retomadas, após quase dez anos de silêncio, e nelas riam conhecidas como grupos de choro. O mais importante dentre
se apresentavam divas como Augusta Candiani, Rosina Stolz e esses músicos foi o flautista Joaquim Antonio da Silva Callado.
Anna de La Grange. Carioca, 18 anos mais moço que Reichert, o autor de Flor
José Amat acabava de criar, com o apoio de Francisco Manuel amorosa estudou flauta e piano primeiramente com seu pai, mes-
da Silva, de professores do Conservatório e de membros da socie- tre da Banda Sociedade União de Artistas, depois, composição e
dade carioca, a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional, regência com Henrique Alves de Mesquita. Em 1867, foi publi-
cujo objetivo era montar óperas em português. Multiplicavam-se cada sua primeira polca, Querida por todos, dedicada a Chiqui-
as lojas de instrumentos musicais e as casas editoras de música nha Gonzaga. Em 1873, Callado compõe o Lundu característico,
que forneciam material para os saraus familiares, em coleções de primeiro lundu a ser apresentado em sala de concerto. Professor
nomes sugestivos, como O ramalhete das damas, Prazeres do bai- de flauta no Conservatório, é condecorado pelo imperador com
le, Abelha musical, Ninfas brasileiras, Ilustração dos pianistas, O a Ordem da Rosa.
livro de ouro dos flautistas, entre outros. A amizade fraterna entre Callado e Reichert durou toda a vida
Contratado pelo Imperador D. Pedro II junto com outros de ambos, uma vez que foram vítimas de uma epidemia de menin-
músicos europeus com o intuito de formar uma orquestra de al- goencefalite perniciosa que assolava o Rio de Janeiro e faleceram
ta qualidade na Real Quinta da Boa-Vista, o jovem Reichert se com poucos dias de diferença, em 1880. Sua relação se traduziu
viu, em pouco tempo, também tocando na orquestra do Teatro numa interinfluência profíqua, uma vez que Reichert passou a
Lírico Fluminense (antigo Provisório) e realizando recitais solo Callado procedimentos técnicos sofisticados, inclusive o uso da
pelo Brasil. flauta com sistema Boehm, processo praticamente desconhecido
Tendo sido aluno de Jules Demeur, no Conservatório Real de no Brasil até então, e Callado levou-o a absorver a música brasi-
Bruxelas, e lá obtido o primeiro prêmio, era considerado, à época leira de salão, como se pode observar na polca La coquette, com-
de sua contratação, um dos mais importantes flautistas da Europa, posta por Reichert, que durante anos fez parte do repertório dos
apresentando-se com grande sucesso principalmente na Bélgica, grupos de choro.
Holanda, França e Inglaterra. Reichert viajou pelo Brasil de norte a sul, nunca deixando de
A flautista Odette Ernest Dias, que mais profundamente estu- compor, inclusive peças de estudo; seus Estudos e Exercícios Diá­
dou a obra e a vida de Reichert, transcreve o verbete do dicionário rios, como suas peças de concerto, ainda hoje são adotados em
de François-Joseph Fétis, importante regente, compositor, musi- conservatórios europeus e brasileiros.

217
parte 7 – música

Cabe à flautista dos com perfeita e rigorosíssima afinação, execução firme, excelente
francesa Odette
sentimento, o que honrava a escola de seu professor, Charles de Bé-
Ernest Dias o mérito
de ter redescoberto, riot. O público carioca festejou-o com delirantes aplausos. No dia
pesquisado e seguinte, o Imperador D. Pedro honrava-o, presenteando-o com um
interpretado Reichert. anel cravejado de brilhantes e ornado com suas iniciais”.
Como professora Outros artistas estrangeiros que aqui se apresentaram, como o
da Universidade de
português Eduardo Medina Ribas, o holandês Gustav Van Mark,
Brasília (UnB), em
1985 ela dedicou o a francesa Madame Freery, também foram alunos de Bériot, en-
disco “Afinidades quanto Paul Julien, que se tornou amigo de Carlos Gomes, trazia
brasileiras” à sua em seu repertório obras dos representantes da escola franco-belga
obra, lançado pela de violino, como Bériot e Vieuxtemps. Portanto, nada mais natu-
própria UnB.
ral para alguns brasileiros que queriam se aperfeiçoar no exterior
do que escolher Bruxelas como seu destino.
Manoel Joaquim de Macedo nasceu em Cantagalo, Rio de
Janeiro, em 1847. Estudou composição no Conservatório Real
de Bruxelas com François-Joseph Fétis (1784-1871) e violino com
Em 1863, por ocasião do 33º aniversário da Independência Huber Leonard (1819-1890) e Henry Vieuxtemps (1820-1881),
da Bélgica, apresenta-se, com o pianista Carlos Schramm, após recebendo medalha de ouro. Há notícias de que tenha, ainda, se
o banquete oferecido pelo Cônsul-Geral da Bélgica no Rio de aperfeiçoado com Joseph Joaquin (1831-1907) e com o próprio
Janeiro, Edouard Pecher, aos membros da Sociedade Belga de Auguste Bériot (1802-1870). Vieuxtemps o indica para a função
Beneficência. de violinista spalla da orquestra do Covent Garden, em Londres,
Em São Paulo, onde se apresentou por duas vezes, em 1863 o que estende sua estadia na Europa por um total de nove anos.
e 1871, teria entrado em contato com os jovens do curso de Di- Quando volta ao Rio, em 1871, é nomeado por D. Pedro II
reito, pois eram eles que formavam o público mais expressivo dos mestre da Capela Imperial. Na capital do império compõe a ope-
concertos e que escreviam críticas e artigos musicais no Correio reta Antonica da Silva com libreto de seu tio, o romancista Joa-
Paulistano. Cursavam a Faculdade de Direito, em 1863, o poeta quim Manuel de Macedo, apresentada no Teatro Fênix Dramática
Fagundes Varela e o compositor Venâncio José Gomes da Costa em 1880. Três anos depois, se estabelece em Minas para dedicar-
Júnior. Em 1871, o compositor Antônio Frederico Cardoso de Me- -se, principalmente, à composição. Sua obra inclui sonatas, fan-
nezes pôs em música a célebre Hebréia, de Castro Alves. tasias, um álbum para piano, canções e, segundo Camila Frésca,
Reichert teve vários alunos no Brasil. Entre eles Duque Estra- que o estuda, oito concertos para violino, dos quais sete deles estão
da Meyer, que também foi aluno de Callado e famoso professor desaparecidos até agora. Seu poema sinfônico Floriano Peixoto foi
no Conservatório de Música, tendo, por sua vez, entre seus alu- apresentado com grande sucesso em Minas e no Rio de Janeiro
nos o grande flautista e compositor Patapio Silva. Por essa razão, e foi publicado em versão para dois pianos. Em 1897 termina de
Odette Ernst Dias afirma: “Reichert pode ser considerado, junto compor sua ópera, Tiradentes, com libreto de Augusto de Lima
com Callado, o fundador da escola de flauta brasileira”. (1859-1943) e obtém uma bolsa de trabalho do governo brasileiro
e mineiro para orquestrá-la na Bélgica, onde permanece por lon-
Um violino que veio do mar gos anos, só voltando ao Brasil pouco antes de sua morte, em 1925.
O prelúdio e alguns trechos dessa ópera foram apresentados por
Segundo Vincenzo Cernicchiaro (1855-1928), violinista, mu- Alberto Nepomuceno no Festival de Música Brasileira, na Expo-
sicólogo e compositor italiano radicado no Rio de Janeiro e pro- sição Internacional de Bruxelas, em 1910.
fessor do Instituto Nacional de Música (antigo Conservatório), Entre seus alunos destaca-se João Augusto Campos que foi
foram muitos os violinistas a se apresentar no Rio de Janeiro no tio e professor do violinista e compositor mineiro Flausino Vale.
século XIX. Entre eles, estava um “violinista de superior importân- Grande virtuose de violino e compositor injustamente esqueci-
cia, trazendo novidades de escola, elegância de estilo e novas obras do, deve-se a Villa-Lobos a lembrança de homenageá-lo com a
musicais para violino. Era ele Charles Wynem, jovem belga que um cadeira nº 21 da Academia Brasileira de Música, no momento
forte temporal – quando viajava para as ilhas orientais – lançou à de sua criação. Macedo foi o primeiro de uma série de violinis-
praia da Bahia, sem ter podido salvar outra coisa além de seu vio- tas que introduziram e sedimentaram a escola franco-belga no
lino e o repertório musical. Brasil. Outros foram:
“Na Bahia, onde realizou dois concertos, obteve grande sucesso, Francisco Chiaffitelli (1881-1954). Estudou no Conservató-
passando depois ao Rio de Janeiro, onde chegou em 19 de março [de rio Real de Bruxelas, na classe do renomado violinista Eugène
1846]. Seu primeiro concerto teve lugar dias depois de sua chegada. Isaye, obtendo o primeiro prêmio de violino do Conservatório em
(...) Em seu último concerto, em 25 de agosto, tocou o Rondó russe 1897. No Brasil, foi professor do Instituto Nacional de Música,
do segundo concerto de Bériot, além do célebre Tremolo, executa- destacando-se entre seus alunos Paulina d’Ambrosio, nascida em

218
música clássica

1890, em São Paulo, matricula-se aos 15 anos no Conservatório de Gelisette (sic, 1895), de Aglavaine et Sélizette. Foi seu primeiro
Real de Bruxelas. Ao voltar, em 1907, dedica-se principalmente ao contato com a Bélgica.
ensino, como professora do Instituto Nacional de Música. Como Não foi possível saber se Nepomuceno se encontrou pessoal-
intérprete, participou da Semana de Arte Moderna, executando, mente com Maeterlinck na França ou na Bélgica, mas tudo leva
inclusive, obras de Villa-Lobos. Teve como alunos, entre outros, a crer que tiveram algum tipo de contato, uma vez que Chanson
Guerra Peixe, Nathan Schwartzman, Henrique Morelenbaum, de Gelisette foi composta um ano antes da publicação de Aglavai-
Mariuccia Jacovino, Ernani Aguiar e Paulo Bosísio que, por sua ne et Sélizette (1896).
vez, foi professor do violinista mineiro especializado em música De volta ao Rio, realiza – no Instituto Nacional de Música –
barroca Luís Otávio Santos, atualmente professor no Conservató- um concerto com obras suas, na qualidade de compositor, pianista
rio Real de Bruxelas. e organista, apresentando, também, um punhado de canções com
texto em português. Inicia, assim, sua campanha pela composição
A ponte para o Modernismo de canções com texto em vernáculo, sustentando: “Não tem pátria
um povo que não canta em sua língua”.
Difícil tentar colocar em poucos parágrafos a grandeza da vida Alberto Nepomuceno foi um homem de grande cultura e um
e da obra de um compositor como Alberto Nepomuceno. Nascido compositor incansável. Criou obras para todas as formações vocais-
em Fortaleza, CE, em 1864, fez seus primeiros estudos de piano -instrumentais, incluindo ópera (Ártemis, Abul), música sinfônica,
e violino com o pai e, adolescente ainda, frequenta o meio aboli- vocal e de câmara. É autor da mais importante coleção de canções
cionista do Recife. Tobias Barreto o inicia em Filosofia e Alemão. da história da música brasileira, pela quantidade, qualidade e pela
A morte do pai faz com que a família retorne ao Ceará onde con- associação feita com os mais expressivos poetas seus contempo-
tinua suas atividades políticas. Em função delas, o pedido enviado râneos, desde Machado de Assis a Coelho Neto e Olavo Bilac.
pela Assembleia Legislativa cearense ao Governo Imperial para Suas obras estão perfeitamente sintonizadas com a estética inter-
que Nepomuceno pudesse aperfeiçoar-se na Europa é negado. nacional do período, permanecendo, no entanto, extremamente
Parte, então, para o Rio de Janeiro, onde continua seus estudos pessoais e utilizando elementos de raiz brasileira.
e é nomeado professor de piano do Club Beethoven. Data dessa Atuou ainda como regente, professor e diretor do Instituto
época sua amizade com Machado de Assis, então bibliotecário do Nacional de Música. Executou estreias brasileiras de obras con-
clube, com o violoncelista Frederico Nascimento e com os irmãos temporâneas de autores internacionais, como Debussy, Dukas,
Rodolfo e Henrique Bernardelli. Todos exercerão importantes pa- Roussel, Glazunov, Rimsky Korsakov, e primeiras audições de
péis em sua vida. obras de compositores brasileiros como Araujo Viana, Barro-
Em maio de 1888, executa no Club Iracema, em Fortaleza, zo Netto, Francisco Braga, Alexandre Levy, Henrique Oswald,
a 1ª audição de sua Dança de Negros, para piano, que se tornará, Leo­poldo Miguez, entre outros. Estimulou novos talentos, como
mais tarde, o Batuque da Série Brasileira para orquestra. Nesse Glauco Velazques, Luciano Gallet, Lorenzo Fernandez e Heitor
mesmo ano, parte para a Europa com os Bernardelli em viagem Villa-Lobos.
de estudos. Em Roma, matricula-se no Liceo Musicale Santa Ce- Em 1910, por ocasião da Exposição Internacional de Bruxelas,
cilia. No ano seguinte, obtém do Governo Provisório uma pensão realiza no Teatro La Monnaie o Festival de Música Brasileira, co-
que lhe permitirá inscrever-se na Academia Meister Schule, em missionado pelo então embaixador e grande intelectual Oliveira
Berlim, e, em seguida, no Conservatório Stern. Nas provas finais Lima. Rege obras de sua própria autoria, de Carlos Gomes, Ma-
rege obras suas à frente da Filarmônica de Berlim. noel de Macedo, Leopoldo Miguez, Henrique Oswald e Francisco
Durante sua estada na Alemanha, conhece sua futura esposa, Braga. Também se apresenta diante da corte belga, num concerto
a pianista norueguesa Walmor Bang, que o aproxima de Brahms particular, com obras suas e de outros compositores brasileiros.
e de Grieg. Este reforça a ideia já demonstrada por Nepomuceno Durante a guerra de 1914-18, Nepomuceno participou do
em seu Batuque: a importância de compor obras a partir de um grande movimento de simpatia para com a Bélgica, inclusive or-
patrimônio brasileiro. ganizando concertos em favor do país que tão bem o recebeu. Por
Antes de voltar ao Rio de Janeiro, segue para Paris, aperfei­ ocasião da visita dos reis da Bélgica ao Brasil, em 1920, Nepomu-
çoando-se na Schola Cantorum com o célebre organista Alexan- ceno recebeu do Rei Alberto a Medalha de Ouro pela “devoção
der Guilmant. Conhece Saint-Saëns, Vincent d’Indy e Debussy, que fez prova durante a guerra pela causa belga”.
de quem assiste a estreia mundial de L’après – midi d’un faune, Alguns meses depois, Alberto Nepomuceno escreve sua úl-
obra que seria o primeiro a revelar no Brasil em 1908. Durante tima canção, A jangada, com versos do poeta cearense Juvenal
sua estada na França, compõe, a convite de Charles Chabault, Galeno, obra que o coloca definitivamente na história da música
catedrático de grego na Sorbonne, a música incidental para a tra- do Brasil como o elemento de ligação entre o Romantismo e o
gédia de Sófocles, Electra. Também musica, ao mesmo tempo, Modernismo.
uma série de poemas em português e em francês, alguns deles Tendo se separado de Walmor Bang e residindo, desde então,
com texto do poeta e dramaturgo belga Maurice Maeterlinck: na casa de seu grande amigo, Frederico Nascimento, não resiste a
Desirs d’hiver Oraison (1894), de Serres Chaudes, e La chanson um agravamento de seu estado de saúde, já precário desde 1916, e,

219
parte 7 – música

cercado por amigos e discípulos, falece em 16 de outubro de 1920. Segundo a pianista Berenice Menegale, que estreou sob a re-
O musicólogo Luiz Heitor relata através da testemunha ocular de gência de Bosmans aos 11 anos, o maestro era um grande impro-
seu passamento, Otávio Bevilacqua, que ele cantava na hora da visador, capaz de criar em tempo real pequenas obras à maneira
morte, tal como fizera José Maurício Nunes Garcia. de compositores do passado. Oiliam Lanna, compositor que foi
aluno e amigo de Bosmans, relata ter sido ele um homem de
Um compositor marinheiro e um músico-viajante grande cultura não só musical, mas também no campo das artes
do século XX em geral, possuindo uma imensa biblioteca. Foi amigo de artistas
plásticos, como Guignard e Chanina – que pintou um retrato seu
Entre os compositores belgas que estiveram no Brasil no século – e de compositores seus contemporâneos, como Edino Krieger,
XX, destacam-se dois nomes cujo trabalho se encontra mesclado, Francisco Mignone e, principalmente, Radamés Gnatali. Sua vida
de forma particular, às duas culturas. Trata-se do compositor e re- de marinheiro teria contribuído para seu interesse em outras cul-
gente Athur Bosmans e do compositor de música eletroacústica turas e influenciado no colorido de suas obras. Embora não fosse
Leo Kupper. um compositor nacionalista, no sentido estrito da palavra, durante
Arthur Bosmans nasceu em Bruxelas em 1908. O fato de não sua estada em Portugal compôs a Sinfonietta Lusitana, baseada
ter seguido cursos regulares de música não o impediu de participar, em cantigas tradicionais portuguesas. Oiliam ressalta o papel de
já aos 12 anos, como violinista, da Orquestra Sinfônica de Mons. Bosmans como divulgador da obra de compositores belgas no Bra-
Além do violino, tocava com grande desenvoltura piano, clarine- sil (Peter Benoit, Joseph Jongen, Marcel Poot e Gaston Brenta),
te e trompa. Em 1926, ingressou na Marinha Belga, na qual per- assim como o de compositores brasileiros no exterior.
maneceu por cinco anos, ao fim dos quais resolveu abandonar a Os títulos de suas obras sugerem um certo humor e mesmo al-
carreira militar para se dedicar unicamente à música. Estudou por guma irreverência, como La vie em bleu, O cavaquinho bem tempe-
conta própria composição e regência e, em 1933, recebeu o Prê- rado, Clavinedoctes, Valsa...da outra esquina – para violão –, segun-
mio Cesar Frank, em Liège, por sua rapsódia La rue, o que o tornou do o violonista Edelton Gloeden, uma homenagem a Mignone.
conhecido em todo o país e propiciou a edição de várias obras suas. Sérgio Freyre, Alice Belém e Rodrigo Miranda, que o estuda-
Durante a Exposição Mundial de Bruxelas, em 1935, foi or- ram mais profundamente, admitem ter sido Bosmans um gran-
ganizado o Festival Arthur Bosmans, no qual apresentou várias de de admirador de Gershwin, Bartok e Ravel, podendo-se notar a
suas obras sinfônicas com grande sucesso. Nessa época, tornou-se influência desses compositores em sua rica e ao mesmo tempo
regente assistente e depois titular da Orquestra Filarmônica de clara sonoridade orquestral. A linguagem de sua obra, entretanto,
Antuérpia, tendo apresentado seu scherzo sinfônico James Ensor, despreza os experimentos das correntes de vanguarda pós-Scho-
Cymbalum para piano e orquestra e a suíte orquestral La vie em enberg, valendo-se de combinações politonalistas e timbrísticas
bleu. Em 1939, torna-se membro do conselho editorial da Revue como elementos de construção.
Musicale Belge e diretor do Ballet Bellowa. Arthur Bosmans casou-se com uma brasileira, Walkyria – que
Com a eclosão da Segunda Guerra, voltou à Marinha e, após mantém o acervo de suas obras – e naturalizou-se brasileiro em
uma operação no Canal da Mancha, chegou acidentalmente a 1954. Faleceu em Belo Horizonte em 1995.
Lisboa. Lá encontrou Darius Milhaud, que pretendia ir para os Boa parte do registro de suas obras feitas na Bélgica perdeu-se
Estados Unidos. Era o ano de 1940 e, através de Milhaud, con- durante a Segunda Guerra Mundial, com os bombardeios sobre
seguiu um visto para o Brasil. Aqui chegando, encontrou-se com Antuérpia e Bruxelas. No entanto, seu filho, Jaak Bosmans, tem
Villa-Lobos que o ajudou a integrar-se no meio musical do Rio de restaurado e digitalizado as gravações ainda existentes, trabalho
Janeiro. Nos dois anos seguintes regeu, deu aulas e compôs músi- complementado pela Escola de Música da UFMG, que tem rea-
ca para cinema e dança. Enquanto isso, suas obras continuavam lizado novas gravações de algumas de suas obras.
a ser apresentadas na Bélgica ocupada, nos Estados Unidos, no Leo Kupper nasceu em Nidrum, Bélgica, em 1935, e fez
Canadá e Uruguai. seus estudos de Musicologia e História da Arte nas Universida-
Em 1944, foi convidado a reorganizar a Orquestra Sinfônica de des de Liège e de Bruxelas. A partir de 1962, colaborou com
Belo Horizonte, como diretor artístico e regente estável. Transfe- Henry Pous­seur no Studio Apelac, o primeiro estúdio de música
re-se então para Minas Gerais, onde exerceu grande atividade na eletroacústica da Bélgica. Foi diretor de sonorização da Rádio
vida cultural de Belo Horizonte. Em 1965, começou a lecionar e Televisão Belga, compondo trilhas sonoras para filmes e pro-
composição, regência e música de câmara na Escola de Música gramas de televisão. Em 1967, funda o Studio de Recherches et
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), tendo se apo- de Structurations Électroniques Auditives, em Bruxelas, no qual
sentado em 1980. realiza uma série de experiências relacionadas à música e à cria-
Nos anos 1960, Bosmans realizou várias turnês na América ção sonora, como Música Digital Pública: realizações de músi-
Latina e Europa e gravou com a Orquestra da Rádio e Televisão cas coordenadas pelo público ou autoestimuladas por máquinas
Belga várias de suas obras. Em 1975, conquistou o primeiro prê- que engendram um ambiente sonoro complexo, através de um
mio do 7º Concurso Internacional de Composição da Académie grande número de fontes sonoras (na Bienal de Veneza, em 1987,
Internationale de Lutèce, em Paris, com sua Toccata para piano. até 350 canais de áudio).

220
música clássica

A partir de 1977, estuda a divulgação da música no espaço, Os materiais vocais da terceira obra, Anamak, foram criados a
através da construção de quatro cúpulas sonoras (Roma, 1977, partir de temas musicais de índios do Brasil, recolhidos por viajan-
Avignon, 1979, Linz, 1984, Veneza, 1987). A maior delas foi a tes e antropólogos, desde o século XVI, completados por blocos
construída para o festival “Ars-Electronica”, em Linz, Áustria, com vocais estimulados por trechos musicais gravados entre os Kaiapó
104 canais de áudio. por Fuesrt, Love, Rosseels e Verswijwer. No entanto, Kupper ex-
Cria, ainda, máquinas musicais de fabricação original como plica, “o conjunto das vocalizações, das fonemizações e das arti-
o Game (Gerador Automático de Música Eletrônica) por estimu- culações musicais é absolutamente abstrato. É uma sequência de
lação vocal (analógica e numérica, depois MIDI), 1970-1980; os invenções a várias vozes, a polifonização da voz de uma mesma e
Autômatos sonoros, estimulados pela voz humana, 1970-1976; os única cantora”.
Muvis: instrumento de visualização espectral da música, 1976-78; Rezas populares do Brasil teve a colaboração do baixo brasi-
o Kinéphone: instrumento musical com teclado para a interpreta- leiro Eduardo Janho-Abumrad. A maior parte delas são rezas de
ção da música no espaço através de cúpula sonora, 1983. cura coletadas por Núbia Pereira de Magalhães Gomes e Edmil-
Realiza, a partir de 1968, uma longa série de concertos de mú- don de Almeida Pereira, em Minas Gerais, nas décadas de 1970 e
sica eletroacústica na Europa, nas Américas e no Oriente, com 1980. Foram ainda utilizados cantos fúnebres recolhidos por Al-
solistas e grupos musicais. Tem sido, durante toda sua vida, um ceu Maynard de Araújo, no Ceará, na década de 1940, e cantos
viajante incansável, se interessando pela música dos lugares que religiosos populares recolhidos por mim em Cananeia, litoral sul
visitou, principalmente o Irã – cuja cultura influenciou sua espi- de São Paulo, em 1982. Segundo Kupper, “uma seleção delas foi
ritualidade e sua arte – e o Brasil. fonemizada e parcialmente cantada. Os sons gerados pelo baixo fo-
Em 1978, vem pela primeira vez ao Brasil, convidado pelos ram posteriormente, transformados por máquinas eletrônicas, com
organizadores da 8ª edição dos Cursos Latino-Americanos de Mú- o intuito de criar seu próprio acompanhamento. Uma das técnicas
sica Contemporânea, realizados cada ano em uma cidade latino-a- utilizadas foi a da granulação sonora, realizada por um programa
mericana, no caso, São João del Rei, em Minas Gerais. Em 1981, criado pelo compositor belga e professor de arte digital da Universi-
é convidado pelo compositor Gilberto Mendes a participar do dade de Mons, Todor Todoroff. Este programa permite armazenar
Festival Música Nova com o Grupo de Música Fonêmica e Vocal na memória do computador um pequeno fragmento do original e
do Studio de Recherches, do qual faziam parte o baixo Paul Gé- trabalhá-lo. Todos os sons da obra foram extraídos da declamação
rimont e o ator Jean-Claude Frison. e do canto dos intérpretes”.
Conheci Leo Kupper durante o festival. Desse encontro nas- Essas quatro primeiras peças foram reunidas no CD Ways of
ceu uma colaboração artística que completa 30 anos, em busca the voice, e deram origem ao espetáculo do mesmo nome, ence-
de uma linguagem vocal que pudesse ser, ao mesmo tempo, nado pelo diretor brasileiro radicado na Bélgica, Caio Gaiarsa,
abstrata e afetiva e que servisse de matéria-prima para posterior com imagens digitais em movimento criadas por Alessandra Ga-
elaboração eletroacústica. Testemunho desse trabalho são cinco lasso, Eduardo Campos e Chico Escher. O espetáculo foi apre-
obras nas quais temas da cultura brasileira são tratados através sentado em São Paulo, no Sesc Vila Mariana, no Centro Cultural
dos procedimentos de música fonética, desenvolvidos anterior- do Museu Reyna Sofia, em Madri, e no Festival Au Carré, em
mente por Kupper. Mons, Bélgica.
As duas primeiras, Amkea e Annazone, necessitaram de uma A última das obras realizadas em conjunto com Leo Kupper,
longa fase de exercícios e procedimentos microtonais oriundos de Kamana, parte de um universo afro-brasileiro, através dos vissun-
novas técnicas vocais e respiratórias a partir dos quais brotaram gos (antigos cantos de trabalho das minas) recolhidos por Ayres
grafismos vocais, gestos sonoros, miragens resultantes da livre as- da Matta Machado, em São João da Chapada, Minas Gerais, na
sociação com insetos, pássaros, bichos do mato, árvores e pedras. década de 1920. No caso dessa obra, o processo usado para sua
Segundo Kupper, “Amkea se exprime em linguagem absolutamente composição não foi o de polifonia, mas o de multifonia, represen-
abstrata, não tendo pois – como resultado – nenhuma significação tada por sete diferentes vozes superpostas colocadas num eixo ho-
nacional, internacional ou figurativa: fonemas, fonátomos, alofo- rizontal e integra voz, sons instrumentais de diferentes culturas,
nes, vocalizes, gritos e chamados constituem a essência da lingua- sons eletroacústicos e sons eletroacústicos originários da voz trata-
gem abstrata mas lembram em suas entoações, seus timbres e seus da. De acordo com Kupper, “embora vários sons como os de metal,
ritmos, a origem brasileira da cantora”. madeira, e sons eletrônicos sejam oriundos da vida contemporânea,
Em Annazone, Leo Kupper mescla materiais sonoros criados através dos processos compositivos, se tornam referência a aspectos
por mim a pios de pássaros e sons eletrônicos. Comecei partindo inerentes aos reinos animal e vegetal”. A estreia dessa obra se deu
da memória de cantos de pássaros, zumbidos de insetos, coaxar em Bruxelas, no encerramento da Semaine du som, na grande
de batráquios, passando a uma linguagem de invenção da sono- sala do complexo cultural Flagey no dia 27 de janeiro de 2013.
ridade de flores, plantas e borboletas. A obra é enquadrada por Leo Kupper veio inúmeras vezes ao Brasil e vários técnicos,
um acorde sinfônico, no começo e no fim dela, como se “ouvís- compositores e cantores brasileiros participaram de suas produções
semos” um quadro no qual a sonoridade de uma mata imaginária ou estagiaram em seu estúdio, em Bruxelas, ao lado de artistas
se desenrola. belgas. Além dos já citados, não posso deixar de lembrar nomes

221
parte 7 – música

de compositores como Helio Sizkind, Vania Dantes Leite, Rodol- CORREA, Sérgio Alvim. Alberto Nepomuceno: Catálogo geral. Rio de Janeiro: Funarte,
fo Caesar, Vanderlei Lucentini e cantoras como Kátia Guedes e 1985.
DIAS, Odette Ernst. Mathieu-André Reichert: um flautista belga na Corte do Rio de Janeiro.
Cláudia Todorovo, o que o torna um verdadeiro promotor de in- Brasília: Editora UNB, 1990.
tercâmbio musical entre o Brasil e a Bélgica. FORSTER, Maria Thereza Diniz. Oliveira Lima e as relações exteriores do Brasil: o legado
de um pioneiro e sua relevância atual para a diplomacia brasileira. Brasília: Fundação
Alexandre de Gusmão, 2011.
Anna Maria Kieffer é musicóloga, pesquisadora e cantora lírica FREIRE, Sérgio / BELÉM, Alice / MIRANDA, Rodrigo. Do conservatório à escola. Belo
brasileira, participou de turnês por Alemanha e França como mez- Horizonte: Editora UFMG, 2006.
zosoprano. Estudou musicologia na década de 1960 e lançou vários REZENDE, Carlos Penteado de. Tradições musicais da Faculdade de Direito de São Paulo.
São Paulo: Edições Saraiva, 1954.
CDs, entre os quais Ways of the Voice (1999), produzido na Fila- CDs/CDs-livros
délfia, com o compositor belga Leo Kupper, reunindo rezas popula- KIEFFER, Anna Maria. In: Encarte do CD A. Nepomuceno-canções. São Paulo, AKRON,
res do Brasil carregadas de heranças múltiplas da Ásia, da Europa 1997.
KUPPER, Leo. In: Encarte do CD-livro Ways of the voice. São Paulo, AKRON, 2004.
e da África. É responsável pela trilha sonora do filme O Retorno, KUPPER, Leo. In: Encarte do CD Digital voices. Nova York, POGUS, 2012.
de Rodolfo Nanni.
Referências Eletrônicas
Referências DEWILDE, Jan e FCQUAERT, Annelies. Bosmans, Arthur: Biographie. Disponível em:
AZEVEDO, Luiz Heitor Correia de. 150 anos de música no Brasil (1800-1950). Rio de <http://www.svm.be/content/bosmans-arthur?display=biography&language=en>. Acesso
Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1956. em: 15 jan. 2013.
ANDRADE, Ayres de. Francisco Manuel da Silva e seu tempo (1808-1865). Rio de Janeiro: FRÉSCA, Camila. Uma gênese do violino no Brasil: a escola franco-belga e o desenvol-
Edições Tempo Brasileiro Ltda., 1967. vimento do violino como instrumento autônomo. Disponível em: <http://www.pos.
CERNICCHIARO, Vincenzo. Storia della musica nel Brasile: dai tempi coloniali sino ai eca.usp.br/sites/default/files/jornada_discente/ppgmus/camila_fresca-mus_etno.pdf>.
nostri giorni (1547-1925). Milano: Fratelli Riccioni, 1926. Acesso em: 07 fev. 2013.

Álvaro Guimarães (1956-2009)


K a t r i j n Fr i a n t

N ascido em Araguari, Minas Gerais, Álvaro Guimarães mu-


dou-se aos 13 anos de idade, depois da morte do pai, com
sua mãe e as irmãs para São Paulo, onde continuou seus estudos
Álvaro
Guimarães,
fundador do
KaG e professor
de música no Mozarteum e obteve uma formação universitária de no departamento
artista executante. Estudou com Hans-Joachim Koellreutter, Co- de música da
riun Aharonian e Klaus Huber. Ele foi um dos co-fundadores do Hogeschool Gent
Núcleo Música Nova de São Paulo. Com este grupo introduziu, (Escola Superior
nos anos de 1980, entre outros, John Cage e sua obra no Brasil e de Gand).
colaborou com o próprio Cage.
Em 1990 veio à Bélgica com a intenção de escrever um dou-
torado sobre o contexto sociocultural da música brasileira na Uni-
versidade de Gand sob a orientação do professor Herman Sabbe.
Apesar de ter sempre pesquisado sob este ângulo sociocultural o
fenômeno da música erudita, a redação de um doutorado lhe pa-
recia demasiado teórica.
Muito rápido começou a organizar, na Bélgica, concertos,
workshops e palestras sobre a música brasileira enquanto introdu-
zia a música belga no Brasil. E esta última consistia principalmen-
te em obras compostas na parte flamenga do país e tinha muito a
ver com a política cultural federalizada.
Seu objetivo principal era romper com os estereótipos, nos
quais se pensava a cultura dos outros países. Assim o Brasil pare-
cia sempre carregar a associação com carnaval e não ultrapassava Oliveira. Ousava mesmo tocar compositores mais antigos como
na música clássica o nome de Heitor Villa-Lobos. Por isso Álvaro Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno e Luciano Gallet. Assim
gostava de divulgar a obra de Gilberto Mendez e Willy Corrêa de organizou em Gand, em janeiro de 1999, um festival de música

222
música clássica

de câmara sul-americana. Nisto colaborava com o conjunto Spec-


tra, do qual foi co-fundador, como também com Katrijn Friant,
Françoise Vanhecke, Pier van Bockstael e muitos outros músicos
de formação clássica.
Alguns auditores por aqui ficaram chocados com os elemen-
tos expressamente teatrais das partituras brasileiras. Por exemplo,
a Opera Aberta de Gilberto Mendez é uma obra para soprano e
body-builder, na qual os dois executantes mostram seu lado mais
vaidoso e procuram numa forma fugato tomar o trono. Entretan-
to, a maior parte dos ouvintes benevolentes se deram conta que
este modo de musicar era original e mais socialmente engajado
do que era usual na Bélgica.
Na introdução da cena musical belga contemporânea no Bra-
sil, Álvaro gostava também de sair das veredas batidas. Assim, cons-
cientemente, preferia trabalhar com músicos jovens dispostos a
interpretar obras novas de seus colegas compositores. Paralela-
mente lhes pedia também para tocar obra de nomes respeitados
na Europa. Desse modo, os frequentadores do Festival Música
Nova em São Paulo, Santos e outras cidades puderam conhecer ex-
tensamente a obra de Maurizio Kagel, György Kurtàg, Karlheinz
Stockhausen e muitos outros. Sempre procurava enquadrar estes
concertos com palestras, workshops e repetições abertas.
Em 2003, fundou em Gand seu próprio grupo KaG (Kuns-
tarbeidersgezelschap ou Companhia de Trabalhadores Artistas).
Este se originou da necessidade de fazer música num coleti-
vo. Por isso a KaG funcionava como uma plataforma de e para
artistas, que eram ativos em diferentes áreas. Seus projetos de
música contemporânea cresciam sempre de uma necessidade
intrínseca de contribuir com a arte para um mundo melhor e
Cartaz do concerto Les Indiennes Galantes ou Les Folies Flamandes, de 1996.
isto com atenção especial para os aspectos multidisciplinares,
sociais e teóricos.
Com este grupo queria, a exemplo de Cornelius Cardew, pela editora Moeck. Em sua totalidade, a obra ilustra como ne-
trabalhar não somente com artistas das diversas disciplinas, mas nhuma outra a mistura de suas raízes brasileiras com sua perma-
também com profissionais e amadores. Sobretudo, amava abrir nência na Bélgica:
as fronteiras dentro da Europa e seu grupo era tão internacional Les Indiennes Galantes ou Les Folies Flamandes (1996) (As
quanto possível. O seu projeto mais ambicioso foi a encenação de Índias Galantes ou As Folías Flamengas)
Maulwerke de Dieter Schnebel. A obra foi observada pelo próprio 1. La question de la canne à sucre à la mer sous dominó blanc…
compositor e foi apresentada na Bélgica, na Alemanha, na Suécia (A questão da cana de açúcar no mar sob dominó branco…)
e, naturalmente, também no Brasil. Com esta obra conseguiu fi- 2. La Sonate sous dominó bleu… (A Sonata sob dominó azul…)
nalmente envolver performances da parte francófona do país e de 3. La Consonanza: sous dominó vert… (A Consonanza sob
romper os limites culturais da política federal. dominó verde…)
Álvaro Guimarães foi professor no departamento de música da 4. La réponse de la mer à la canne à sucre: sous dominó noir…
Hogeschool Gent (Escola Superior de Gand) e faleceu prematu- (A resposta do mar à cana de açúcar: sob dominó negro…)
ramente em Gand em 2009.
Terminamos citando os títulos do seu quarteto de flauta, que, Katrijn Friant, viúva de Álvaro Guimarães, é pianista e professora
depois da primeira execução, foi quase imediatamente impresso de música em Gand.

223
parte 7 – música

Biografia: Eliane Rodrigues

E liane Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro. Seu talento musi-


cal foi descoberto muito cedo e dirigido por Arnaldo Estrella
(aluno de Alfred Cortot e amigo de Villa-Lobos). Aos seis anos de
idade estreou na televisão (Mozart KV488 com a Orquestra Sin-
fônica Nacional). Foi laureada nos EUA com o “prêmio especial”
do júri no concurso Van Cliburn.
Como laureada do Concurso Musical Internacional Rainha
Elisabeth, na Bélgica, em 1983, Eliane não demorou a atuar no
Concertgebouw Amsterdam, no Berliner Schauspielhaus, em Paris,
Hamburgo e no Leipzigs Gewandhaus. Em 1985, já foi caracteri-
zada como “brilhante e tecnicamente perfeita” (Die Welt).
Atuou também nas cidades de Antuérpia, Amsterdã, Berlim,
Bruxelas, Haia, Moscou, Nova Iorque, Paris, Rio de Janeiro, Roter-
dã, São Petersburgo, Volgogrado, Zurique. Compôs um concerto
para piano e orquestra de quase uma hora que estreou mundial-
mente em 9 de agosto de 2000.
De setembro a abril de 2002, tocou em São Petersburgo os
cinco concertos para piano e orquestra de Sergei Prokofiev, tendo
sido gravados dois CDs. Repertório: 61 concertos para piano, dos
quais 58 foram executados. Atualmente, Eliane Rodrigues é pro-
fessora no Conservatório Real, em Antuérpia, Bélgica.

A pianista Eliane Rodrigues, que em 2002 tocou em São Petersburgo os cinco


concertos para piano e orquestra de Sergei Prokofiev, tendo sido gravados dois CDs.

224
música popular brasileira

MPB
Daniel Achedjian

É bastante confortável ser belga no Brasil. Um certo conforto


que aumentou com o tempo e que reside no fato de não ser
vítima de nenhum preconceito associado a um país do qual não
Bluesette de Toots Thielemans era regularmente tocada em to-
das as boates de jazz do Rio e de São Paulo, mas era, com frequên­
cia, atribuída ao bossa-novista Roberto Menescal, cuja maneira de
se conhece muita coisa. tocar violão possui semelhanças com o nosso gaitista.
Em 1989, quando aterrizei pela primeira vez na pista do Ga- Quanto a Ne me quittes pas, a canção em língua francesa mais
leão do Rio de Janeiro (atual aeroporto Antônio Carlos Jobim), interpretada e gravada pelos artistas brasileiros, era preciso que eu
poucos cariocas podiam situar precisamente a Bélgica em um esclarecesse que pertencia a Jacques Brel e ao patrimônio de seu
mapa, ou mesmo associá-la a algumas personalidades ou produtos país plano (Le Plat Pays, outra obra-prima do cantor belga), e não
culturais, quaisquer que fossem. a um eventual compositor francês, como ela era frequentemente
Em seguida, o futebol (na época dourada dos Scifo, Preud­ apresentada. Maysa (1936-1977) gravara uma versão ao vivo no fi-
homme e Gerets, entre 1986 e 1990), o chocolate, a moda dos ba- nado Canecão, sala mítica do Rio de Janeiro, e ela teve inúmeras
res com cervejas belgas e, mais recentemente, a revista em quadri- versões diferentes, até a da jovem paulista Maria Gadú em 2010,
nhos (Tintim, Os Smurfs), trouxeram alguns elementos de ajuste passando por Jards Macalé, Cauby Peixoto, Bibi Ferreira, Ângela
de identidade condizentes com o reino do surrealismo. Rorô e muitos outros, com versões com êxitos diversos...
Musicalmente, quando alguém me perguntava, eu tinha cer- Quanto a Toots Thielemans e Bluesette, os dois álbuns The
ta dificuldade em achar características que pudessem definir um Brazil Project de 1992 e 1993, nos quais ele convidou a nata da
estilo próprio da Bélgica. Pois não existia realmente um… MPB, eles propunham uma versão de mais de nove minutos do
grande clássico, cuja letra em português tinha sido escrita por Ivan
Edu Lobo e Daniel Achedjian. Lins. Tive a oportunidade de assistir aos shows de apresentação dos
álbuns tanto no Rio, no Hotel Nacional de São Conrado, como
em Bruxelas, no Palácio de Belas Artes.
Em 1989, então, eu tinha alguns anos de jornalismo na mi-
nha bagagem – principalmente no Télémoustique – dedicados às
músicas pop, rock, new wave e soul, inglesas e americanas, e eu
demonstrava certa falta de interesse em escutar Jorge Ben, Sérgio
Mendes e João Gilberto, que eram ouvidas sem parar por meus
familiares.
Naquele ano, houve essa primeira viagem ao Rio, quase que
por acidente, e uma conexão imediata foi feita em mim, que me
fez procurar no acervo de discos dos meus pais o que se tornaram,
na época, meus dois álbuns de cabeceira: Vinícius, Toquinho e
Maria Creusa/Maria Bethânia, en La fusa, gravados em 1970 em
Buenos Aires, dos quais escutei cada mínimo detalhe, até estra-
gar os vinis.
Minha compulsão doentia fez o resto. Escutar e estudar em
profundidade os mestres da Bossa-Nova, os diferentes tipos de sam-
ba, o choro, as músicas do Nordeste, os outros estilos regionais e

225
parte 7 – música

os grandes clássicos da MPB, abandonando tudo que era cantado Oscar Castro-
-Neves e Toots
em inglês.
Thielemans,
Entre 1988 e 1994 foi também a época do festival “Viva Bra- que gravou
sil” na Bélgica e dos cartazes de sonho que reuniam, entre muitos três álbuns em
outros, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, João homenagem
Bosco, João Gilberto, as jovens Marisa Monte e Daniela Mercury, à música
brasileira.
mas também Toninho Horta, Egberto Gismonti, Hermeto Pas­
coal, Nana Vasconcellos.
Como um digno filho do rock e da soul, eu me abri rapidi-
nho aos outros estilos, de influências mais claramente estrangeiras,
muitas vezes misturados aos ritmos e harmonias do Brasil, para me
dar conta que a riqueza implantada musicalmente naquele país
continente não tinha equivalente no mundo.
Se eu estudava com paixão e compulsão mais de um século de
história da música popular brasileira (me levando a adquirir mais
de dez mil CDs), eu vivia igualmente com intensidade, através
de minhas inúmeras viagens durante os anos 90, uma das décadas
mais ricas e produtivas do século XX no Brasil.
O aparecimento do Mangue Beat de Pernambuco, a afirmação
nacional da música axé de Salvador, Bahia, o cenário rap de São
Paulo e Rio de Janeiro, o amadurecimento da música eletrônica,
a bossa lounge na Europa; o nascimento de uma nova geração de
cantoras compositoras como Adriana Calcanhotto, Marisa Monte,
Zélia Duncan, Fernanda Abreu, Cassia Eller, Ana Carolina; uma bém artistas da novíssima geração, como Rodrigo Campos, Tiê,
chegada importante de artistas carismáticos vindos do Nordeste Rodrigo Bittencout, Sílvia Machete, Mariana Aydar, Cris Aflalo,
como Lenine, Zeca Baleiro, Chico César; a consolidação do rock Verônica Ferriani e Chico Saraiva da nova cena independente de
nascido nos anos 80 (Barão Vermelho, Legião Urbana, Paralamas São Paulo. Em suma, por volta de uns 200 nomes, conhecidos e
do Sucesso, Titãs) e os primórdios muito importantes do grupo menos conhecidos. Pode-se dizer que, geralmente, foram encon-
Los Hermanos no Rio de Janeiro que influencia toda a cena in- tros bem à vontade, informais (embora todos gravados) e com di-
dependente e indie carioca até os dias de hoje. Na realidade, tra- reito, de vez em quando, a sessões privadas de música.
tava-se de uma década que após ter visto o nascimento do rock Tudo isso devido à confiança que me foi dada pelos produto-
influenciado pelo cenário inglês, e a chegada da MTV Brasil, em res, presidentes de selos, assessores de imprensa e artistas que ha-
1989, mais uma vez conseguiu integrar magnificamente os estilos viam tomado conhecimento do site Tropicália MPB – precedido
estrangeiros às raízes brasileiras. pelo blog “Art et Musique Populaire Brésilienne” –, redigido em
Após ter feito uma pausa na carreira jornalística, retomei mi- duas línguas, francês e português, onde também se encontram os
nhas atividades no início dos anos 2000, atuando em diferentes podcasts dos programas transmitidos na Rádio Judaica Bélgica.
rádios independentes, ainda hoje na Rádio Judaica Bélgica (90,2 Os cadernos culturais de jornais importantes como o finado
FM), na qual tive a liberdade de produzir programas de duas a Jornal do Brasil (que ainda existe na internet), O Dia e O Globo,
três horas semanais. O que não é muito comum, diria até mesmo me honraram publicando alguns artigos sobre meu trabalho, e boa
inédito, em francofonia. O programa foi muito tempo ao ar no parte das minhas resenhas de discos e de shows encontram-se nos
domingo à noite, em seguida, na segunda-feira, enquanto, atual- sites oficiais dos artistas e das gravadoras.
mente, ele é gravado no Rio de Janeiro, e colocado no ar, sendo Há dois anos resido, principalmente, no Rio de Janeiro, e é
várias vezes retomado em diferentes horários, em função da atua- com um prazer levemente dissimulado que continuo, como Her-
lidade frequentemente perturbada, típica da natureza da estação. cule Poirot, a corrigir com malícia aqueles que acham que sou
Tendo aperfeiçoado meu português do Brasil, pude retomar o francês. Pois se a Bélgica é um país tão complexo para ser defini-
exercício das entrevistas e, foi com bastante surpresa que vi as por- do, ela possui ao menos a vantagem, devido a isto, de escapar das
tas se abrirem com entusiasmo. Tive a oportunidade de encontrar, ideias preconcebidas. Verdade seja dita, continuo a pensar que é
para longas conversas, artistas como Paulinho da Viola, Gilberto particularmente confortável dizer que se é belga no Brasil.
Gil, Gal Costa, Martinho da Vila, Beth Carvalho, Francis Hime,
Edu Lobo, Roberto Menescal, Carlos Lyra, João Donato, Alceu Daniel Achedjian, doutor em História da Arte, se apaixonou pela
Valença, Ney Matogrosso, Ed Motta, Frejat, Marina Lima, Arnal- música e arte popular brasileira. Constituiu uma grande coleção em
do Antunes, Zeca Baleiro, Lenine, Paulinho Moska, Adriana Cal- Bruxelas, onde, como radialista, mantém o programa “Tropicalia”
canhotto, Zélia Duncan, Los Hermanos, Leila Pinheiro, e tam- na Rádio Judaica.

226
música popular brasileira

A descoberta da Bossa-Nova na Bélgica


B a r t P. Va n s p a u w e n

A Bossa-Nova ganhou fama na Bélgica com Toots Thielemans


e Elis Regina, com a gravação deles de 1969 e com sua atua-
ção em Bruxelas em 1979; com o Festival Viva Brasil em Bruxelas
nos anos 1980; com o guitarrista belga Philippe Catherine; com o
Two Man Sound, o grupo dos músicos belgas Lou Deprijck, Syl-
vain Vanholmen e Yvan Lacomblez; com o compositor, músico e
produtor Henri Greindl, em formações diferentes como Cheiro de
Choro, Parfum Latin e Henri Greindl Quintet; com o saxofonista
John van Rymenant; com o DJ Buscemi (Dirk Swartenbroekx),
e com Vincent Kenis e sua editora discográfica Ziriguiboom, ba-
seada em Bruxelas.
O jazzista Toots Thielemans, conhecido por tocar violão e
harmônica de boca, produziu em 1969, juntamente com a diva
brasileira Elis Regina, o álbum Aquarela do Brasil – Elis Regina
& Toots Thielemans, que foi gravado na capital sueca, Estocol-
mo, durante a turnê europeia de Elis no mesmo ano. A dupla
foi acompanhada pelo quinteto Conjunto de Roberto Menescal,
que se chamou Elis Cinco para essa ocasião. O álbum foi uma Toots Thielemans recebeu uma encomenda na Embaixada do Brasil na Bélgica
mistura de jazz belga e Bossa-Nova. Thielemans foi responsável em 23 de janeiro de 2006, tocou junto com Gilbero Gil (fotografia de Vivian
por três solos de harmônica de boca e violão, incluindo um tri- Oswald).

buto a Elis Regina.


Thielemans gravou mais dois álbuns em homenagem à mú- Martini & Papagaio & Denise Azul. Houve atuações no Clube do
sica brasileira: Brasil Project 1 (1992) e Brasil Project 2 (1993). Brasil, Travers, o Palácio de Belas Artes, e Mirano. E o Viva Brasil
Neles, Thielemans tocou com colegas músicos brasileiros, como 1992, finalmente, realizado de 30 junho a 10 de julho. A noite de
Ivan Lins, Djavan, Oscar Castro-Neves, Dori Caymmi, Ricardo abertura coincidiu nessa ocasião com a noite de encerramento do
Silveira, João Bosco, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Caetano festival multicultural Couleur Café. Jorge Ben Jor e a Banda do Zé
Veloso, Luiz Bonfá, Edu Lobo e Eliane Elias. Pretinho e Kaoma atuaram na sala Halles de Schaerbeek; Marisa
O Festival Viva Brasil foi organizado em Bruxelas de 1988 a Monte e Batucada na Praça Muntplein; Cheiro de Choro na sala
1992. A primeira edição teve lugar de 29 de junho a 1º de julho Beurscschouwburg; Rita Lee e Ricardo Silveira e The Latin-Ame-
de 1988 no Palácio de Belas Artes, com Beth Carvalho, Jorge Ben, rican All Stars na Ancienne Belgique; Marito Correa no Do Brasil,
Astrud Gilberto e Milton Nascimento no cartaz. Kaoma e Batucada na cidade costeira de Blankenberge; Denise
A segunda edição – em 21 e 29 de junho e 3, 5 e 6 de julho de Blue na Les Tréteaux de Bruxelles; Ana Caram & Zizi Possi na
1989 –, foi aberta por Marcia Maria na Grand Place de Bruxelas. Ancienne Belgique; Assa Brothers & Uakti no Estúdio 4 da então
Escola de samba Galeria, Maracatu Elefante Porto-Rico e Frevo chamada emissora de televisão nacional BRT (na Praça Flagey).
Abanadores do Arruda também atuaram. O restaurante Do Brasil Ara Ketu, Nazaré Pereira + Sivuca também atuaram. Por fim, um
organizou uma noite musical quando recebeu no palco Hermeto lugar especial foi reservado para o Brazilian Project de Toots Thie-
Pascoal Grupo, bem como João Bosco & Caetano Veloso, com lemans, contando com a participação de Gilberto Gil, Chico Bu-
Carlinhos Brown na percussão. Astrud Gilberto & João Gilberto arque, Eliane Elias, João Bosco, Ivan Lins e Oscar Castro-Neves.
atuaram no prestigioso Palácio de Belas Artes. O guitarrista de jazz belga Philippe Catherine substituiu, no
A terceira edição, de 21 de junho a 10 de julho de 1990, trou- início do ano de 1976, Jan Akkerman na banda de rock holandesa
xe Ritmistas Pernambucanos (Escola de Samba do Recife), Tania Focus durante a gravação e a turnê do álbum Focus con Proby em
Maria e Djavan ao palco na Grand Place; Mexe com Tudo e Joyce 1977 e 1978. Com Catherine, a banda atuou para mais de 60 mil
no Clube do Brasil; e Margareth Menezes, Gilberto Gil, Marisa pessoas no Palácio das Convenções do Anhembi, durante o Inter-
Monte e Jorge Ben no Cinquentenário. national Jazz Festival of São Paulo (também conhecido como São
A quarta edição do Viva Brasil, de 5 a 12 de julho de 1991, Paulo-Montreux Jazz Festival), ao lado de músicos como Hermeto
teve no cartaz Flávio Dell’Isola, Cheiro de Choro, Fuzuê, Mar- Paschoal, Egberto Gismonti, Stan Getz, Milton Nascimento, Raul
gareth Menezes, Gilberto Gil e Márcia Maria, além de Milton de Souza, Luiz Eça, Helio Delmiro, Márcio Montarroyos, Wagner
Nascimento e Nana Vasconcelos, Osmar, Pau Brasil, Stéphane Tiso e Victor Assis Brasil.

227
parte 7 – música

Em 1990, Catherine recebeu, junto com Stan Getz, o Bird Pri- dos e vocais), Charles Loos (piano e teclados), Jan de Haas (ba-
ze, durante o Northsea Jazz Festival. Catherine compartilhou seu teria, percussão e marimba) e Henri Greindl (baixo), novamente
amor pela Bossa-Nova repetidamente no palco com Toots Thie- com influências musicais brasileiras.
lemans. Por exemplo, em 1993, durante um concerto na Flanders Finalmente, o terceiro projeto de Greindl, Henri Greindl
Expo, em Gand, com Thielemans e amigos. No seu primeiro ál- Quintet, tem como membros Daniel Stokart (sax, flauta), Pierre
bum solo, Guitars Two (2008), Catherine interpretou igualmente Bernard (flauta), Theo de Jong e José Luis Montiel (baixo), Luc
números do guitarrista brasileiro Guinga, de Stephane Grappelli Vanden Bosch (bateria, percussão) e Henri Greindl (violão). Du-
e de Fiszman Nicolas, além de composições originais (tal como rante suas apresentações no Brasil, Greindl foi acompanhado por
a música acústica Lendas Brasileiras). Catherine voltou repetida- músicos locais: Vitor Alcantara e Josué dos Santos (sax e flauta),
mente a São Paulo, como em 2010, com interpretações de Guin- Zeli (contrabaixo) e Alexandre Damasceno (bateria).
ga e Pixinguinha, juntamente com a orquestra Jazz Sinfônico no Além disso, Greindl fundou em 1997 o selo independente
Auditório Ibirapuera. ‘Mogno Music’, que produziu as obras discográficas de seus dife-
Two Man Sound foi um grupo belga pop constituído pelos rentes grupos. Na compilação Inspiração Brasil (2005), Greindl
músicos Lou Deprijck, Sylvain Vanholmen e Yvan Lacomblez. tocou ao lado de músicos brasileiros ou outros músicos que se
Tanto Deprijck como Vanholmen já tinham ganho alguma fama inspiraram na música brasileira (Tom Jobim, Benoit Mansion,
como produtor musical: o primeiro com músicos como Liberty Ronaldo Boscoli, Weber Iago, Pixinguinha, Baden Powell, Jose
Six, Lou & the Hollywood Banana’s e projetos como Viktor La- Eduardo Gramani e Charles Loos). Os rendimentos do álbum
zlo, Plastic Bertrand; o segundo com The Wallace Collection, foram inteiramente transferidos à comunidade Corumbau, no Es-
Octopus, e mais tarde com The Machines, Jo Lemaire & Flouze. tado brasileiro da Bahia.
A banda registrou seus maiores sucessos na década de 1970 com O saxofonista John van Rymenant gravou o álbum Memory
influências de disco, samba e bossa-nova. Mais elogios o trio re- Stop (1982) durante oito meses de estadia no Brasil, em 1979,
cebeu com as canções “Copacabana” (1971), “Charlie Brown” período no qual mergulhou no mundo dos sons brasileiros, crian-
(1976) e “Que Tal América” (1979). O medley “Disco Samba”, do do uma fascinação pelo berimbau, que usou extensivamente nas
álbum homônimo (1978), por outro lado, se tornou um grande gravações e depois tratou eletronicamente no estúdio em Bruxe-
sucesso na Europa no início dos anos 1980, com posições altas las. O LP é classificado como de gênero de música eletroacústica,
nas diferentes euro-charts entre 1983 e 1986, depois do grupo já contendo músicas como “Electro Samba” e “Capoeira”.
ter parado de atuar. Desde 1996, Buscemi (pseudônimo de Dirk Swartenbroekx)
Henri Greindl, além de ser compositor, arranjador, produtor ganhou fama com seus álbuns remix sob influência brasileira,
musical e engenheiro de som também ativo como músico (violão, chamados Late Nite Reworks, incluindo remixes no estilo bossa-
baixo, cavaquinho), trabalhou com numerosos músicos de jazz -nova de canções de músicos brasileiros como Marcos Valle, Ro-
no Brasil (Marimbanda, Caito Marcondes, Marito Correa, Léa salia de Souza, e Electro Coco. Juntamente com sua banda Squa-
Freire). Greindl, casado com a curadora de exposições brasileira dra Bossa (trompetista Sam Versweyveld, baixista Hans Mullens e
Cristina Barros Greindl, foi membro fundador das bandas Cheiro baterista Luuk Cox), DJ Buscemi atuou repetidamente em muitos
de Choro, Parfum Latin, e Henri Greindl Quintet, todas influen- festivais de grande dimensão na Bélgica bem como no exterior.
ciadas pelo gosto musical de Greindl por bossa-nova, jazz e rock Finalmente, Ziriguiboom, um sub-rótulo da editora discográ-
progressivo dos anos 1970. fica belga Crammed Discs, foi fundado em 1998 por Vincent Ke-
O grupo Cheiro de Choro é composto por Daniel Stokart (flau- nis em colaboração com o produtor musical brasileiro Beco Dra-
ta, sax), Anne Wolf (piano), Tonio Reina (bateria e percussão) e noff. A editora foca em sons brasileiros inovadores que mesclam
Henri Greindl (violão, baixo eletrônico, contrabaixo, cavaquinho). tradição e pop com elementos eletrônicos, sendo a bossa-nova
O flautista brasileiro Beto Cavalcante (Heriberto Cavalcante Porto uma parte importante dessa mistura. Músicos internacionalmente
Filho) também foi envolvido na fundação do grupo em 1990. Des- conhecidos como Bebel Gilberto (cujo álbum Tanto Tempo, de
de então, Cheiro de Choro tocou em vários festivais na Bélgica e 2000, criou um avanço nacional), Trio Mocotó, Celso Fonseca,
no Norte da França (Viva Brasil, Belga Jazz Festival, Bruxelas Jazz Bossacucanova, Zuco 103, Cibelle, DJ Dolores, Apollo Nove e
Rallye, entre outros), com interpretações de Tom Jobim, Egber- Suba são alguns dos nomes famosos. Ziriguiboom já editou mais
to Gismonti, Hermeto Pascoal, misturando o jazz com diversas de 30 CDs e compilações, tais como Samba Soul 70, Brasil 2 Mil:
variantes da música brasileira, tais como samba, frevo, marcha Soul Of Bass-O-Nova) e Ziriguiboom: The New Sound Of Brazil.
rancho, partido alto, chorinho, maracatu, xote e baião. Depois
do primeiro álbum, Chorinho para Tina (2001), a ênfase passou Bart Vanspauwen, graduado em Estudos Literários e em Estudos Cul-
do choro ao jazz. turais pela Universidade Católica de Lovaina, é Mestre e Doutorando
O segundo projeto musical de Greindl, o grupo Parfum Latin, em Etnomusicologia pela Universidade Nova de Lisboa, com pesquisa
é composto por Pierre Bernard (flauta), Anne Wolf (piano, tecla- sobre a integração de músicos migrantes de língua portuguesa.

228
música popular brasileira

A descoberta do Mangue Beat na Bélgica


B a r t P. Va n s p a u w e n

M angue Beat é uma denominação para a cena musical eclé-


tica do Recife, capital de Pernambuco. Em 2000, foi apre-
sentada pela primeira vez ao público através da emissora nacional
cialistas de marketing e tecnologia do mundo inteiro no período
de carnaval.
Além disso, Cucamonga e Club Tropical também aborda-
flamenga Rádio 1 em dois programas semanais sobre músicas do ram fatos socioculturais e históricos sobre Recife que, de 1630 a
mundo: “Club Tropical” (desde 1984) e “Cucamonga” (desde 1654, foi a capital do Brasil holandês e era conhecida por Mau-
1993), ambos produzidos e compilados por uma equipe lidera- ritsstad. Como referido pelos radialistas, foi nesse período co-
da por Zjakki Willems, que estudou ciências políticas e relações lonial que os maracatus surgiram, cerimônias com influências
internacionais na Universidade Livre de Bruxelas (ULB). Ele fez europeias, africanas e indígenas em duas variantes: o maracatu
sua primeira série musical sobre Frank Zappa na década de 1970 urbano (maracatu nação), em homenagem aos reis africanos e
para a emissora holandesa KRO e a emissora belga (flamenga) como se tornaram escravos nas plantações de cana de açúcar; e
BRT 2. Como jornalista freelancer, ele também publicou nas re- maracatu do campo (maracatu rural), com a figura central do
vistas Knack e Oor. mestiço indígena (caboclo).
Entre 1986 e 1997, Willems estava na base da EBU World Mu- Maracatu é tipificado musicalmente pela alfaia, um grande
sic Workshop e participou da World Music Charts Europe. Além tambor portátil onipresente nos desfiles de maracatu durante o
disso, ele produziu as gravações da emissora belga (flamenga) VRT carnaval do Recife. Chico Science e seu grupo Nação Zumbi in-
nos festivais Cactus Festival, Couleur Café, Sfinks Festival, Antillia- corporaram essa alfaia no mangue beat, junto com outras percus-
anse Feesten, Open Tropen e Belgium Rhythm & Blues Festival. sões indígenas. Segundo Willems, velhas e novas influências cul-
Entrementes, o programa Cucamonga recebeu os prêmios Zamu turais foram recicladas musicalmente para reforçar a identidade
Award e Deutsche Welle Award, entre outros. local do Recife.
Com a alteração do perfil da Rádio 1 em 2007, os programas de Think of One, um grupo de Antuérpia, foi inspirado pelo
rádio de Willems foram substituídos por ‘Exit’, ‘ExitPlus...’ e ‘Exit­ ecletismo popular do mangue beat. Estimulado por John Erbuer,
PlusWorld’, que em 2011 se transformariam em ‘Closing Time o cineasta de Cucamonga, o coletivo, que já havia colaborado
World’. Em 2010 e 2011, Willems foi curador musical do festival com músicos marroquinos sob o nome Marrakech Emballages
cultural internacional Europalia.Brasil em Bruxelas. Ensemble, decidiu fazer dois álbuns com músicos locais no Reci-
Willems entrevistou Chico Science, um dos fundadores do fe, seguido de duas turnês pela Bélgica e Europa. A BBC World
Mangue Beat, no Recife, em 1994. Desde então, o radialista fez Music Award, em 2005, apenas aumentou o reconhecimento
cinco séries de rádio sobre a música brasileira: Rádio Brasil (2000), do grupo.
Rádio Mangue (2002), Sintonize Pernambuco (2003), SamPa Be- A equipe de Cucamonga também fez um documentário so-
ats (2006), Rádio Mauritsstad (2009, para a emissora holandesa bre as estadias de Think of One no Recife. Para o primeiro álbum,
Rádio 6) e Rádio Mauritsstad (2011, versão francesa). Chuva em Pó, a banda passou seis semanas no Recife para ensaiar
Nessa série de rádio, a ênfase foi particularmente colocada na com os músicos de lá, gravar um CD e fazer uns shows. Durante
expressão musical no Recife, com a história do Mangue Beat, por as últimas quatro semanas, o cantor-guitarrista do grupo, David
Willems designado como o movimento recente mais importante Bovée, falou semanalmente por telefone sobre o avanço do projeto
na música brasileira desde o Tropicalismo do final da década de e a interação musical durante a emissão de Cucamonga.
1960. Como referido por Willems e seus colaboradores, tais como John Erbuer registrou essa aventura musical em um docu-
Jeroen Revalk e John Erbuer, Mangue Beat é sinônimo de uma mentário que foi exibido no lançamento de Chuva em Pó no dia
geração de músicos que, desde a década de 1990, ganharam fama 25 de maio de 2004, na sala de concertos Ancienne Belgique em
com uma mistura de música tradicional do Nordeste, pop e rock Bruxelas. O álbum trouxe ritmos e instrumentos (como a alfaia e
e outras influências do mundo inteiro. o agogô) do Recife, e contando igualmente com uma participa-
Dos programas de Willems surgiram Chico Science & Na- ção de Siba, ex-cantor do mangue beat grupo Mestre Ambrósio.
ção Zumbi e Mundo Livre S/A, dois dos grupos principais, que Durante a turnê belga, Think of One compartilhou o palco com
elaboraram um manifesto cultural no qual viram o ecletismo do a Dona Cila do Coco, então com 60 anos, o percussionista Car-
Nordeste como um motivo de orgulho, no nível regional, nacio- ranca, e as backing vocals Christina Nolasco e Lulu Araújo. Think
nal e internacional. Por isso, festivais locais como Abril Pro Ro- of One, por sua vez, tinha como membros David Bovée (voz e
ck e Rec Beat, focaram em grupos inovadores de Pernambuco, violão), Eric Morel (saxofone), Roel Poriau (bateria, kwita, reco
Brasil e América Latina, enquanto a conferência Porto Musical -reco), Tobe Wouters (trombone, tuba), Tomas De Smet (violão,
(organizada pela Womex-World Music Expo, sediada em Berlim baixo). O grupo ainda atuou em Antuérpia (na sala Roma), Lovai-
desde 2005) juntou anualmente músicos, investigadores e espe- na (festa do mundo no parque Bruul), Kortrijk (Sinksen 04), Gand

229
parte 7 – música

John Erber filmando em Pernambuco.

(Vooruit), Mol (Het Getouw), Bruges (De Nacht) e em festivais em 2007, no Cactus Festival (Bruges), desta vez sob o nome de
de projeção nacional como Afro Latino, Polé Polé, Gentse Feesten, DJ Dolores & Aparelhagem.
Dour e Dranouter. Aliás, vários outros artistas e bandas pernambucanas passaram
Para o próximo álbum, Tráfego, que foi lançado pela editora por Sfinks Festival, como Chico Science e Nação Zumbi (1995),
belga Crammed Discs (que também editou discos de outros mú- Mestre Ambrósio (1996), Lenine (2000), Mundo Livre S/A (2000),
sicos brasileiros, como Zuco 103, Bebel Gilberto, DJ Dolores e Cordel do Fogo Encantado (2001), Silvério Pessoa, ex-cantor do
Suba), Think of One voltou para o Brasil. O programa Cucamon- grupo Cascabulho (2003) e a Banda Eddie (2006).
ga novamente transmitiu um telefonema semanal com o grupo a Diversos grupos de maracatu e outros desfiles tradicionais tam-
partir de Recife e trechos musicais exclusivos. bém chegaram até Sfinks, entre eles: Maracatu Nação Pernambu-
Participaram do álbum novamente Dona Cila do Coco (voz), co (1998, que também tocou no Festival Couleur Café no mesmo
Alê Oliveira, Lucie e Carolina de Renesse, Fernanda Boechat, ano), Maracatu Leão Coroado (2002), Maracatu Estrela Brilhante
Ganga Barreto, Sheyla Vidal e Cris Nolasco (backing vocals), (2005) e a Afoxé Iyê de Egba de Olinda (2006).
Ricardo Lourenço (violão), Sergio Lemos, Dom Carlos e Hugo O programa Cucamonga, entretanto, tentou construir uma
Carranca (percussão), David Bovée (violão, teclados, voz), Tomas ponte musical entre RecBeat e a Bélgica: o grupo belga Maden-
De Smet (baixo, teclados), Bart Maris (corneta, trompete), Bruno suyu na edição de 2010 de RecBeat, em Recife e São Paulo, e
Vansina (saxofone barítono), Eric Morel (saxofone), Jon Birdsong havia também grupos do Recife nos palcos do festival Gentse Fe-
(corneta, trompete), Marc Meeuwissen e Stefaan Blancke (trom- esten em Gand.
bone), Tobe Wouters (trombone, tuba), Michael Weilacher (ma- Finalmente, em 2011, foram programados vários atos musicais
rimba, vibrafone), Peter Vandenberghe (órgão Hammond), Pitcho de Recife no Europalia.Brasil em Bruxelas, do qual Zjakki Wil-
Bovée (efeitos de som) e Roel Poriau (bateria, teclados, triângulo). lems era o curador musical. Ficaram agendadas apresentações da
Think of One atuou como showcase na conferência musical Banda Eddie, DJ Dolores e Renata Rosa em Gand (na sala Han-
Porto Musical em março de 2006 no Recife. Na Bélgica, a ban- delsbeurs), Turnhout (Warande) e Amsterdã (Melkweg), que, no
da atuou nas principais salas de concertos de Bruxelas (Ancienne entanto, foram cancelados na última hora pela organização. Para
Belgique), Antuérpia (Petrol), Gand (Vooruit), Lovaina (Het De- outras atuações, como a de Siba em Bruxelas (Palácio de Belas
pot), Diksmuide (Ten Vrede), bem como em festivais multicultu- Artes), apareceram poucas pessoas, que também foi o caso de Re-
rais como Mano Mundo (em Boom) e Couleur Café (Bruxelas). nato Borghetti, Olivinho e Lulinha Alencar. Willems observou
Entretanto, outros músicos do Recife também vieram à Bél- que, embora houvesse grandes concertos de músicos brasileiros
gica. DJ Dolores e Orquestra de Santa Massa atuaram, em 2002, como CéU, Samba Chula de São Braz e Tom Zé, estilos musi-
nos clubes Nijdrop em Opwijk e 4AD em Diksmuide, em 2003 cais como maracatu, funk carioca, bossa-nova, DJ sets ou hip hop
no festival multicultural Sfinks (Boechout, perto de Antuérpia) e, foram pouco promovidos.

230
música popular brasileira

A música brasileira nos festivais


B a r t P. Va n s p a u w e n

O s irmãos Stephen e David Dewaele, DJs fundadores dos gru-


pos de eletro-rock Soulwax e 2 Many DJs, são frequentes em
São Paulo (por exemplo, com Soulwax no Ultra Music Festival na
Ao vivo, o grupo fez sucesso com a ajuda da cantora Leonie Gy-
sel, com o público recitando as letras em português. Atuou várias
vezes no maior festival belga, Rock Werchter, bem como em outros
Arena Anhembi, em 2011). festivais como Pukkelpop, Marktrock, Dranouter e Lokerse feesten.
Soulwax conta, além dos irmãos Dewaele (filhos do celebrado O Festival Sfinks em Boechout (perto de Antuérpia), dedica-
radialista belga Zaki), com Stefaan Van Leuven (baixo) e Steve do à ‘música do mundo’, divulgou desde os anos 1980 vários gru-
Slingeneyer (bateria). Com o 2 Many DJs, têm uma parceria com pos e artistas brasileiros, como Banda Eddie, Carlinhos Brown,
o Mixhell, projeto eletrônico paulista de Iggor Cavalera (ex-Sepul- Chico Science & Nação Zumbi, DJ Dolores & Orchestra San-
tura) e sua esposa, Laima Leyton. ta Massa, Fernanda Abreu, Gilberto Gil, Jorge Benjor, Lenine,
As contínuas viagens a São Paulo resultaram em um remix in- Maracatu Leão Coroado, Maracatu Nação Pernambuco, Mestre
titulado ‘Batuta Discos’, no qual os irmãos Dewaele fazem mash Ambrosio, Mundo Livre s/a, Olodum, Pedro Luis e A Parede,
ups de discos raros de MPB (Tom Zé, Caetano Veloso e Milton Samba de Coco Raízes de Arcoverde, Skank, Ylê de Egbá, Zeca
Nascimento, entre outros) que compraram nas galerias do rock Baleiro e Zuco 103.
paulista. O disco vem acompanhado de um documentário que Anualmente, o festival dedica uma noite à música brasileira
os Dewaele fizeram andando por São Paulo. sob o nome ‘Festa do Brasil’. Outros festivais belgas também re-
Lieven Verstraete, apresentador do jornal de televisão flamen- ceberam músicos brasileiros, como foi o caso de Couleur Café
ga, também viajou a São Paulo em 2007 para o programa Cuca- em Bruxelas, que projetou no palco Daniela Mercury (1998 e
monga de Zjakki Willems (Rádio 1). Sua pesquisa na cena mu- 2002), Carlinhos Brown (2001), Zuco 103 (2001 e 2002), Gil-
sical underground da cidade resultou em uma série de relatórios berto Gil e Ivete Sangalo (2006). O Festival Braziliaanse Feesten
apresentados em Cucamonga, e nas compilações Braz-ill (que em Brecht (perto de Antuérpia), também trouxe ao palco música
redigiu para a revista de música belga Gonzo Circus em 2007) e brasileira desde 2008.
Satanic Samba – São Paulo extravaganza (publicado pelo rótulo A popularidade dos projetos musicais em torno dos irmãos
Lowlands, de Antuérpia, em 2008) –, com artistas como Tom Zé, Max e Iggor Cavalera (Belo Horizonte/São Paulo), nomeadamen-
Cidadão Instigado, Bonde do Rolê, Vurla, Krautdemonish, Can- te as bandas Sepultura, Soulfly e Cavalera Conspiracy, apesar de
sei de Ser Sexy e Instituto vs DJ Dolores. Verstraete, desde então, ser considerada música ‘pesada’, ganhou evidência a partir de
não só divulgou seu trabalho como DJ em clubs e festivais belgas 1994, com passagens quase anuais nos principais festivais e clubs
(por exemplo, Jazz Festival Ghent 2009 e Dranouter 2013), como da Bélgica até 2012. Especialmente a obra Roots (1996) foi tocada
apresentou o programa ‘ExitPlusWorld’, também sob tutoria de pelas importantes rádios nacionais, fazendo com que Sepultura
Zjakki Willems. fosse a primeira banda de metal a estar nos festivais mainstream
A banda Arsenal, projeto dos produtores Hendrik Willemyns belgas, com destaque para o festival duplo Rock Torhout/Werchter
e John Roan, fizeram a ligação com o Brasil através de uma mis- em 1994 e 1996.
tura de pop, hip hop e música do mundo nos discos Oyebo Soul Muitos jovens conheceram melhor o Brasil pelo grupo, não
(2003) e Outsides (2005). só pela bandeira do Brasil no palco e os instrumentos usados, tais
Os singles “A volta”, uma colaboração com Mario Vitalino como o berimbau e a alfaia, mas também pelo relato da história
dos Santos, um cantor e compositor de Salvador, Bahia, e “Mr. sociocultural e racial do Brasil nas músicas. Para a faixa “Roots
Doorman” se tornaram hits. Com Outsides, acompanhado de um Bloody Roots”, Sepultura tocou junto com Carlinhos Brown (Tim-
DVD em que foram apresentados vocalistas convidados – incluin- balada), enquanto o primeiro guitarrista da banda Soulfly era Lú-
do Vitalino dos Santos, em Salvador –, Arsenal em 2005 ganhou cio Maia, da banda recifense Nação Zumbi, ícone do mangue be-
o prestigioso Zamu Award. at. Além disso, os irmãos Cavalera se tornaram fortes amigos dos
irmãos Dewaele (Soulwax, 2 Many DJs).

231
parte 7 – música

Os músicos brasileiros residentes na Bélgica


B a r t P. Va n s p a u w e n

S ão vários os músicos ou grupos brasileiros que residiram, per-


manentemente ou não, na Bélgica, resultando em diversas
gravações, colaborações e projetos.
Latina em Bruxelas, o Trio Santa Pua. São vários os cantores de
MPB, como Sergio Bastos, Dioni Costa, Pedro Moura, Solania,
Cintia Rodriguez, o belga Reynald Halloy, Maria Teresa e Grafite.
Marcelo de Vasconcelos Cavalcanti Melo, violão e voz predo- Outros músicos brasileiros se dedicaram na Bélgica a determi-
minante do grupo de música do Norte do Brasil, Quinteto Violado, nados instrumentos ou repertórios. Osman Martins, especialista do
passou uma temporada de estudos na Bélgica e na França antes cavaquinho, já gravou vários CDs, se apresentou no Festival Cou-
de decidir apostar na música. Em Paris, fez contato com a canto- leur Café, e está na programação da asbl Muziekpublique, onde
ra francesa Françoise Hardy, que lhe abriu portas para gravações também dá aulas de música. Seu último CD, Motivo de Alegria
de discos e apresentações nas mídias locais. Na Bélgica, conhe- (2008), consiste em chorinhos. Martins também é ativo com os
ceu músicos cabo-verdianos engajados na luta de libertação das grupos Parceria e Samba de Candei, tendo tocado muito com o
colônias portuguesas na África, gravando em conjunto o LP Stora músico belga Max Blesin.
Stora, em Roterdã, na Holanda. Alexandre Boff, sobrinho de Leonardo Boff, criou o grupo
O grupo Samboa, de Augusto Gonçalves e sua esposa belga Li- Alek et les japonaises, juntamente com sua companheira japo-
liane Fontaine, toca vários gêneros musicais do Nordeste brasileiro, nesa, cantando em japonês.
sem esquecer o samba. Samboa também criou uma escola de sam- No campo do jazz, o compositor e guitarrista Daniel Miranda
ba, desfilou muito, se apresentando, por exemplo, no Parc Royal no gravou vários CDs e toca com músicos brasileiros e belgas. Seu
dia 21 de julho (feriado nacional da Bélgica). Gravaram três CDs. espetáculo ‘Le Brésil en 17 Cordes’ foi integrado no quadro das
O grupo Sergio Lemos e Goiabada, formado por cinco músicos, ‘Jeunesses Musicales de Belgique’.
toca samba tradicional e popular. Lemos dirigiu, durante muitos Victor da Costa é professor de guitarra nas Academias de Bru-
anos, a escola de samba da Vila Isabel, e se casou com uma belga. xelas e Antuérpia; e também gravou um CD com composições
Pau Xeroso canta forró tradicional. O grupo foi fundado por suas, chamado Caçamba, com uma participação do guitarrista
três brasileiros – Augusto Rego (zabumba e canto), Paulinho da de jazz belga Boris Gaquere, Cláudio Rocha (saxofone e flauta,
Cuíca (percussão e canto) e Dioni Costa (canto) – que se especia- instrumentos de metal) e Osvaldo Hernandez, um mexicano que
lizaram no forró tradicional de Pé de Serra, mas também interpre- se especializou em percussões brasileiras. Em 2011, Boris Ga-
tam outras músicas e danças típicas do Norte do Brasil. O grupo quere gravou o CD Tempo Feliz com o percussionista brasileiro
conta ainda com o belga Maurice Blanchy, mais conhecido como Renato Martins.
‘Zé Momo’ (acordeão), Marat Araujo (baixo e canto) e Flávio de Sobre os corais, a brasileira Maria Helena Schoeps dirige o
Souza (viola e canto). Paulinho da Cuíca também é responsável coral Anaconda, com um repertório variado – canções francesas,
pelo grupo ambulante de percussões Batuqueria, com elementos música popular e sacra brasileira – enquanto Flávio de Souza, que
brasileiros e belgas, tocando um repertório tradicional. canta, toca violão e é compositor, dirige igualmente, com sua es-
Fora isso, há muitos grupos de forró contemporâneo, assim posa, Ylva Berg, um coral onde cantam músicas de vários países,
como de música sertaneja, que se apresentam nos numerosos ca- resultando no CD Ritmus Project.
fés e restaurantes populares brasileiros na Bélgica. Em 2012, por Por fim, muitos músicos brasileiros estudaram na Bélgica, co-
exemplo, o ViaVia Café-Micro-Marché, em Bruxelas, foi o palco mo, por exemplo, a pianista Elizabeth Fadel e o saxofonista Fi-
de vários projetos musicais, como a ‘Roda de Choro de Bruxelas’, lipe Nader.
projeto animado pelo músico carioca Pedro Moura, e o ‘Via MPB’
com o grupo que conquistou o 1º lugar no Festival de Música (Agradecimento a Susana Rossberg pelas informações.)

232
cinema atual

parte 8

Cinema e Televisão

233
parte 8 – cinema e televisão

234
cinema atual

Pequeno panorama atual do cinema sobre o Brasil na Bélgica


Susana Rossberg

A Bélgica tem uma tradição pictural importante, e o cinema


belga não escapa a essa tendência. Quando cheguei em Bru-
xelas, em 1967, eram os documentaristas da televisão belga que
brasileiros, que se formaram no INRACI (Institut National de Ra-
dioélectricité et Cinématographie).
A Bélgica, um pequeno país, possui muitas escolas de cinema.
iam filmar no Brasil. Muitos deles, como Roger Beeckmans e An- O interesse pelo Brasil, na Bélgica, é crescente. Atualmente existe
dré Dartevelle, são conhecidos e respeitados. um programa de intercâmbio, Visões Cruzadas, entre alunos de
Entrei na escola de cinema INSAS (Institut National Supé- cinema da Universidade de São Paulo (USP) e das escolas belgas
rieur des Arts du Spectacle) ao mesmo tempo que duas cariocas, INSAS e Sint Lukas.
Eunice Gutman, documentarista que retornou ao Brasil, e Regina Poucos dos que aqui estudaram permaneceram, mas nos últi-
Veiga Ribeiro. Estudávamos edição de filmes. Penso que fomos mos anos chegou uma nova leva de cineastas, tais como Barbara
os primeiros brasileiros nessa escola, mas outros passariam por lá Ferreira Avelino, Cristina Dias, Diego Tchole e Heron Ferreira.
assim como por outras instituições: Gustavo Mesquita de Siquei- Maïa Martins, que estudou no IAD (Institut des Arts de Diffu-
ra, atualmente diplomata; o diretor de fotografia Edgar Moura; o sion), tornou-se diretora na televisão belga RTBF. Além dela e
editor Antonio Carlos Bernardes, que se tornou diretor de teatro de mim, que fiz carreira sobretudo como editora, poucos conse-
infantil no Rio; dois latino-americanos que se radicaram em São guem viver de cinema. Felipe Mafasoli acaba de terminar seus
Paulo: o diretor de fotografia argentino Hugo Kovensky e a edi- estudos de diretor na escola flamenga RITCS, e também atua
tora equatoriana Veronica Saëns. Estudou igualmente no INSAS como ator. Ermeson Vieira, chegado há pouco, após estudos de
Aube Dierckx, belga criada em São Paulo, que se tornou editora, direção em Londres, está começando a lançar sua carreira aqui.
depois chefe do departamento de edição na televisão RTL, assim Como no Brasil, trabalhar em cinema na Bélgica, em tempos de
como dois de seus sobrinhos, Veronica e Felipe Dierckx, ambos crise, não é fácil.

Acima, “Capoeira”, e à direita “Cantores com Fabinho” (fotos de Simone Krunas).

235
parte 8 – cinema e televisão

O Brasil sempre interessou aos belgas, ávidos assistentes de um engajados e preocupados com os problemas sociais do nosso país.
projeto cinematográfico chamado Exploração do Mundo, criado Uma das grandes lacunas nessa série de depoimentos é Jean­-
em 1950. No entanto, a maioria dos diretores cujos filmes são ain- -Pierre Dutilleux, eminente documentarista, particularmente in-
da hoje apresentados é francesa. teressado pelas tribos indígenas. Seu documentário Raoni, feito
Diversos antropólogos belgas se empolgaram pelo Brasil e fize- em 1978, muito premiado, foi candidato a um Academy Award
ram filmes como parte de seu trabalho – por exemplo, Dominique nos Estados Unidos. Dutilleux fez diversos filmes na Amazônia e
Tilkin Gallois, professora na USP, e Gustaaf Verswijver, curador escreveu um livro, Raoni, les Mémoires d’un Chef Indien, infeliz-
do Museu de Arte Africana de Tervuren, na Bélgica. Ambos tra- mente ainda não traduzido para o português.
balham com indígenas brasileiros. Outros cineastas belgas, tais Outra lacuna é a falta de um depoimento de André Dartevelle,
como Damien Chemin, Nicodème de Renesse e Nicolas Hallet, infelizmente doente e incapacitado de escrever. Dartevelle reali-
se radicaram no Brasil e construíram suas vidas lá. zou dois documentários que nos dizem respeito: um, nos anos de
Seguem depoimentos de algumas dessas pessoas, cineastas 1980, sobre o retorno do sindicalista José Ibrahim, refugiado na
experimentados ou principiantes. Nota-se que os documenta- Bélgica, ao Brasil; o outro, sobre a grande seca de 1984 no Nor-
ristas belgas que filmaram no Brasil tendem a ser politicamente deste e as revoltas da fome que dela resultaram.

“Capoeira, Bel Horizon”


Basile Sallustio

F ui confrontado pela primeira vez com a capoeira em 1994


durante o festival Couleur Café, por intermédio de um amigo
participante dessa arte, e fui conquistado por ela. O que me im-
pressionou, como todo neófito face ao espetáculo desses dançari-
nos-acrobatas, foi a beleza bruta dos corpos lustrosos viravoltando
ao rés do chão e no espaço. Este encontro teria permanecido como
a lembrança de um bom momento visual artístico no qual se mes-
clam cantos subjugantes, músicas enérgicas e piruetas estéticas se
os membros do grupo que se apresentava não estivessem movidos
por um projeto social destinado a ajudar crianças de rua em Belo
Horizonte, Minas Gerais.
A ideia do filme nasceu da conjunção desses dois elementos: a
beleza do gesto artístico, baseado numa filosofia de busca de equi-
líbrio do indivíduo, aliado à generosidade de um projeto social.
Todos os ingredientes necessários e reunidos para que eu iniciasse
um filme, o que me faltava era realizá-lo.
Durante a elaboração do roteiro e, em seguida, do filme, eu
não devia apresentar a capoeira como a panaceia para os pro-
blemas que afrontam as megalópoles brasileiras no que se refere
ao destino das crianças abandonadas e tudo o que diz respeito
à sua educação. Precisava apresentá-la como uma ação positiva
e construtiva destinada a recuperar, às vezes até inculcar, nos
adolescentes e nas crianças os fundamentos de uma identidade
pela cultura, sem a qual é bem difícil chegar a se posicionar na
sociedade.
Não se tratava, tampouco, de fazer uma apologia da violên-
cia dos bairros vulneráveis de Belo Horizonte, e de se comprazer
numa espécie de voyeurismo doentio, mas de expor um método,
de abordar o problema da educação das crianças e, sobretudo, de
divulgar os resultados e as esperanças encorajadores obtidos pela
utilização da arte e, em particular, da capoeira. Cartaz do filme “Capoeira, Bel Horizon”, de Basile Salusttio.

236
cinema atual

A associação brasileira “Porto de Minas”, em Belo Horizonte, percurso de um jovem capoeirista de Belo Horizonte, que a “ex-
propunha não somente um complemento possível ao sistema edu- porta” para a Europa, que a seguimos em Bruxelas. Em terceiro
cativo, que o apresentava desde 1984, de uma maneira original, lugar, esse filme, que se debruça sobre a problemática das crian-
como propunha um novo estilo de colaboração dentro da socie- ças de rua no Brasil, não as mostra sob os tristes chavões, como
dade. O procedimento utilizava todas as características do setor frequentemente certos documentários e certas revistas os fazem,
informal – eficiência, entusiasmo, o método de “dar um jeito” –, isto é, como delinquentes, ladrões, drogados e assassinos. Essa dura
mas cultivava, no entanto, a ambição de consolidar sua estrutura, realidade não é iludida no filme, porém, esse aspecto não podia
a fim de assegurar a perenidade do projeto. ser considerado como a única verdade. Capoeira, Bel Horizon é,
Três eixos principais regeram a fabricação desse filme. Em nesse sentido, uma resposta a essa situação, e uma tentativa de
primeiro lugar, o aspecto de descobrimento que representa a ca- reequilibrar a informação.
poeira. Poucos estrangeiros, hoje em dia, conhecem o fenômeno Enfim, trata-se principalmente de um filme que nos faz ver
brasileiro, a sua origem e a sua evolução durante os séculos. Em protagonistas generosos e, sobretudo, portadores de uma ideia de
segundo lugar, o aspecto “retorno à nossa sociedade”, ou seja, de esperança. No mundo (audiovisual) no qual vivemos, feito, mais
que maneira as sociedades ocidentais eram e ainda são solicitadas do que no passado, de abundância e ebulição de imagens, preci-
pela capoeira. É por intermédio de seus praticantes brasileiros que samos e muito de imagens construtivas e positivas.
a encontramos, que a descobrimos, e, particularmente através do (Tradução Susana Rossberg)

O meu Brasil
Roger Beeckmans

N o avião que me leva paro o Brasil, estou sentado entre Pierre


Manuel e um jornalista alemão do qual esqueci, rapidamen-
te, o nome. Partimos para uma reportagem para o programa 9 Mi-
tê-las visto no cinema. No primeiro dia, cruzamos com um jeep
militar. Deitado em cima do capô estende-se um homem morto.
Um camponês. Filmamos, e nos inteiramos da violência que rei-
lhões, da Westdeutscher Rundfunk – WDR. Não me lembro da data na na região. O que me impressiona nos vilarejos é a pobreza, as
exata. Só sei que o Brasil está vivendo sob a ditadura de Castelo casas de terra pisada e os cemitérios com lápides de mármore. A
Branco, pouco depois do golpe de estado militar, com a bênção explicação nos é dada rapidamente: vive-se na terra, na miséria,
dos Estados Unidos. Estamos em plena Guerra Fria e a ditadura durante 40 ou 50 anos, e no paraíso eternamente. Regressamos
evoca a luta contra o comunismo em nome da segurança nacional. com essa reportagem, dedicada a essa luta.
O que sei do Brasil, para onde vou pela primeira vez? De No- Voltei várias vezes para o Brasil, com o apoio da Unicef. Filmei
va York até o Rio, tenho o tempo de me informar e de sonhar. crianças procurando comida no lixo, no meio da indiferença ge-
Conheço o Cinema Novo, Lima Barreto e Glauber Rocha. Vi O ral. O que revoltava os transeuntes era a presença de uma equipe
Cangaceiro e Deus e o Diabo na Terra do Sol, li Jorge Amado, Do- de televisão, necessariamente estrangeira. Íamos dar, novamente,
na Flor e seus dois maridos, antes, ou depois, dessa viagem. Tive a uma imagem negativa do país, enquanto havia tanta coisa bonita
sorte, mais tarde, de encontrar Jorge Amado duas vezes. Li os re- para mostrar. Coisas que também filmei, para o programa Visa
latos sobre filmagens no Brasil de um dos meus autores favoritos, pour le monde.
Blaise Cendrars. Eu conheceria Brasília, capital criada em pleno No Brasil, reencontrei Maurice Vaneau. Maurice tinha partido
deserto, durante uma segunda viagem. com a companhia teatral Rideau de Bruxelles, como ator e dire-
Descubro primeiro os cartões postais do Rio: o Pão de Açú- tor. Estabeleceu-se no Brasil, nos teatros do Rio e de São Paulo,
car e a praia de Copacabana. Logo em seguida, com o jornalista e tornou-se diretor do Teatro Brasileiro de Comédia – TBC. Seu
alemão, “o exército ao serviço da população” em Minas Gerais trabalho, durante anos, numa novela, o tornaram célebre. Sua fa-
e, com Pierre Manuel, o Sertão, os nordestinos e Dom Helder ma nos foi bem útil. Graças a ele, pude filmar jovens prostitutas
Câmara. A Teologia da Libertação fez dele um adversário do nas ruas de Recife.
regime. Padres ao seu redor, engajados na luta para devolver Com Marc Augé e Jean-Paul Colleyn, filmei o candomblé, as
a dignidade aos pobres, foram assassinados. Dom Helder nos idas e voltas religiosas entre a África e o Brasil, em Belém, onde
emprestou seu jeep para irmos filmar nos vilarejos nordestinos. pude contemplar o Amazonas, esse rio lendário, majestoso.
As primeiras imagens do Nordeste me parecem familiares por (Tradução Susana Rossberg)

237
parte 8 – cinema e televisão

As questões indígena e ambiental


Te x t o s o b r e B a b i A v e l i n o

N ascida em 1975, em São Paulo, e graduada em Ciências da


Comunicação, Babi Avelino sempre esteve interessada na
imagem fotográfica e audiovisual. Depois de atuar, em 1996 e
1997, como fotógrafa publicitária, lança-se no fotojornalismo, tra-
balhando como free-lance para diversos jornais e revistas de São
Paulo e da Europa, na Bélgica, na Holanda e na França.
Em 1999, surge-lhe a ideia de estudar cinema. Babi decide
deixar o Brasil e muda-se para Bruxelas. Como autodidata, come-
ça a realizar vídeos documentários independentes. Seu primeiro
trabalho, São 9.859,47 km, é um documentário filmado no Brasil
e na Bélgica, em 2004-2005, cujo título evoca a distância exata
entre a cidade de Liège e a megalópole de São Paulo, dois luga-
res, em ambos os lados do Atlântico, onde Babi vive e trabalha.
Em 2002, depois de uma viagem ao coração do país natal,
cresce nela o desejo de mostrar e divulgar o Brasil. Assim, torna-se “Ikp 2”, de Babi Avelino.

artista membro da ONG Nhandeva, que incentiva projetos para


o resgate das tradições do povo Guarani M’bia do Rio de Janeiro.
Desde então, seu trabalho é um espelho militante da causa indí-
gena e da questão da diversidade cultural.
Desenvolve a instalação fotográfica Mensagens, apresentada
pela primeira vez na 5ª Bienal Internacional de Fotografia e Artes
Visuais de Liège, que é o resultado do encontro, em 2004, com
diversas nações indígenas do Brasil. Em 2006, Babi torna-se tam-
bém membro da ONG belga ICRA International, que luta pelos
direitos dos povos indígenas ao redor do mundo.
De 2006 a 2008, Babi Avelino realiza um segundo docu-
mentário independente, denominado Elo, em parceria com o
videasta Marica Kuikuro e o músico Douglas Froemming. Este
trabalho foi exibido em diversos centros culturais da Europa e
no programa A’UWE da TV Cultura, destacando-se pelo fato
de traçar, através de múltiplos pontos de vista, um retrato da re-
lação extremamente frágil entre os indígenas e as áreas rurais e
urbanas do Mato Grosso.
Há dez anos, Babi Avelino está plenamente envolvida com a
questão indígena e ambiental no Brasil, enfocando em seu tra-
balho de artista/documentarista (foto e vídeo), as questões socio-
ambientais. Em Amazonien, exposição individual apresentada na
5ª Bienal Internacional do Design de Liège, em dezembro de
2010, Babi divulga fotos e vídeos questionando nossa relação com
a diversidade cultural dos povos indígenas e com a natureza, tão
degradada pela ação do não indígena. Essa mesma exposição foi
apresentada em dezembro de 2011, no âmbito do festival Euro-
palia.Brasil, no Espace Senghor, em Bruxelas, para a abertura do
concerto de Marlui Miranda.
Em outubro de 2011, Babi finaliza, com o apoio da Fundação
Cartaz do filme “La visite du Roi”, design gráfico de Deborah Avelino e fotos de Leopold III para a Conservação da Natureza de Bruxelas, um novo
Leopoldo III e Babi Avelino. projeto documentário independente em vídeo, A Visita do Rei.

238
cinema atual

Fotografia “Interior”, de Babi Avelino.

Abaixo, fotografia “Mão”, de Babi Avelino.

O filme relata de maneira singular a história de um rei belga em


visita à região do Xingu em 1964. Quarenta e cinco anos depois,
Babi Avelino, com algumas fotos da época debaixo do braço, parte
em busca destes personagens, testemunhas de uma história des-
conhecida. Em junho de 2012, o filme é premiado como melhor
direção de média-metragem na 7ª Edição do Festival Cine MuBE
Vitrine Independente de São Paulo.
De modo geral, utilizando a fotografia e o vídeo como fer-
ramentas para transmitir reflexões sobre questões ecológicas e a
diversidade cultural, Babi Avelino documenta, com imagens plás-
ticas, estéticas e com certa fascinação por planos fechados, o uni-
verso contemporâneo dos povos indígenas do Brasil, mostrando
assim toda sua sensibilidade de artista/documentarista engajada.
Sua última obra audiovisual, Dimension Nord, é um curta-
-metragem documentário realizado no âmbito de um seminário
com o documentarista belga Thierry Michel, em 2012, na ULG
Universidade de Liège.
Considerando-se pluridisciplinar, Babi Avelino está em cons-
tante busca, criando espaços para expressar, da maneira mais au-
têntica possível, as experiências vividas em suas imagens. Já não
lhe basta a imagem propriamente dita; por isso Babi Avelino se
aproxima do transdisciplinar, participando de oficinas e de algu-
mas residências na Academia Real de Belas Artes de Liège, onde
o vídeo e a escultura se fundem para proporcionar novas possibili-
dades criativas em videoarte. Trabalha, assim, a imagem fotográfi-
ca e audiovisual de maneira mais plástica e não menos engajada.
Babi é uma artista belgo-brasileira. Após oito anos de casamen-
to com um belga, torna-se mãe. Ela vive e trabalha entre Liège
e São Paulo.

239
parte 8 – cinema e televisão

A mensagem poética de Oscar Niemeyer


M a r c - H e n r i Wa j n b e r g

A pós ter realizado um filme sobre o fotógrafo judeu soviético


Evguény Khaldéi, que tirou a foto símbolo do fim da Segunda
Guerra Mundial, aquela na qual se vê um soldado soviético segu-
Niemeyer, o arquiteto do século, que significa outra coisa que não
um arquiteto “engajado no século”.
Uma relação muito amigável se formou com Oscar. Dez anos
rando uma bandeira no alto do Reichstag, procurei novamente um após ter realizado o filme, em 2010, voltei para o Rio, com mi-
assunto sobre um homem para o qual a vida, a obra e a história de nha filha Lucie, para cumprimentá-lo. Imediatamente, ele sugeriu
seu país estavam intimamente ligadas. que fizéssemos um novo filme juntos. A ideia me entusiasmou;
Foi assim que tive a ideia de fazer um filme sobre Oscar Nie- enquanto o primeiro falava de Niemeyer, de sua obra e de seu
meyer. Me surpreendi, pois não existia um verdadeiro filme so- compromisso político, o novo, independente do primeiro, falaria
bre ele. Havia numerosas reportagens, mas um filme que falasse da galáxia de engenheiros, técnicos e arquitetos que gravitavam
de sua vida, de seu aprendizado em Arquitetura, da arquitetura em torno de Oscar.
moderna, do Rio de Janeiro, do seu amor pelas mulheres, de sua Era fascinante ver esse homenzinho, de 103 anos, desenhar
relação com Juscelino Kubitschek, da ditadura, do Tropicalismo um projeto que, em seguida, era discutido tecnicamente e filoso-
etc., esse filme ainda não tinha sido feito. O caminho estava livre, ficamente com seus colegas e amigos arquitetos e poetas: Haron
me precipitei nele com muito interesse. Cohen, Jair Valera e muitos outros. Porque um gesto arquitetural,
Como não ter prazer fazendo um filme num país cuja sim- para Oscar, não se limitava a uma obra arquitetural, mas devia,
ples evocação do nome, Brésil, Brazil, Rio, Pampulha, faz via- igualmente, se traduzir numa mensagem poética.
jar, sonhar, dançar. E, quando o guia se chama Oscar Ribeiro Oscar se empolgou pelo projeto e as pessoas que o cercavam
de Almeida Niemeyer Soares, todos os componentes da mesti- igualmente: Vera, Jair, Haron. Eles sentiam a excitação de Oscar
çagem, do gênio, da poesia, do humor, do exotismo e da consci- por esse novo trabalho. Cada encontro cotidiano trazia consigo no-
ência estão presentes para fazer uma viagem, uma bela viagem vas ideias. Fiquei fascinado em ver que ele não esquecia nada do
inteligente pela história de um país que afrontou a ditadura, que que tínhamos dito. Não hesitava em voltar a falar de ideias discu-
inventa, que pulsa. tidas na véspera; tinha refletido, e me propunha novas perspectivas
O filme que fizemos juntos, Oscar Niemeyer, un Architecte En- de roteiro. Filmei essas entrevistas com Oscar, provavelmente as
gagé dans le Siècle (Oscar Niemeyer, um Arquiteto Engajado no últimas longas entrevistas que ele tenha aceitado fazer. Já estava
Século) deu a volta ao mundo, recebeu muitos prêmios interna- doente, um colete cingia-lhe o peito. Não achei financiamento
cionais, mas nunca foi mostrado na América Latina ou na América para esse novo filme. Uma pena, uma grande pena.
do Norte. O produtor brasileiro preferiu utilizar o material filmado Obrigado, amigo Oscar, pela confiança que me deste.
para fazer outros filmes sobre Oscar, como, por exemplo, Oscar (Tradução Susana Rossberg)

Marc-Henri Wajnberg e Oscar Niemeyer. Um gesto arquitetural, para Niemeyer, devia se traduzir numa mensagem poética.

240
cinema atual

Sobre as “pessoas sem voz” no Brasil


Lazhari Abdeddaïm

E m 1998, a Casa da América Latina de Paris pediu-me para


participar, como fotógrafo, da exposição organizada pelos 500
anos da descoberta do Brasil. Fui enviado ao Brasil para trazer de
flagrante racismo e essas injustiças sociais? Na verdade, tinha en-
contrado uma pessoa consciente e que reagia a tudo isso, o can-
tor de samba Bezerra da Silva, muito conhecido no Brasil, mas
volta à Bélgica a minha visão do país: sozinho, passei seis meses posto de lado pelas mídias justamente por causa de suas posições
viajando pelo Brasil inteiro. Pensava, na época, que a melhor ma- julgadas muito críticas.
neira de representar a essência dessa cultura era mostrando o rosto Ao regressar à Europa, decidi mostrar minha visão do Brasil,
dos artistas do país. mas não aquela dos retratos de artistas e sim aquela dos “esque-
Aprendi o português e tive a sorte de encontrar muita gente, cidos” desse país gigantesco. No contexto brasileiro, me refiro à
sobretudo artistas, diretores de cinema, escritores e cantores. Todos maioria da população, principalmente aos afro-brasileiros. Cons-
tinham uma vida relativamente confortável. Praticavam sua arte ciente dos chavões habituais de praia, futebol e corpos bronzeados,
inconscientes, ou pior, não se sentindo concernidos pelo que es- abri a janela para o crime e a pobreza que fazem parte integrante
tava acontecendo fora de seu círculo protegido. Saí desse meio, e do cotidiano brasileiro. Fotografei todos com o mesmo cuidado
foi então que encontrei a “fauna” perigosa, sobre a qual ninguém em respeitar cada um, fosse qual fosse sua classe social e o cenário
falava, ou somente de leve. Pessoas normais, trabalhadores, crian- no qual evoluíam.
ças, mulheres, gente sem teto... Um amigo, que trabalha em favelas no Brasil, me pediu um dia
Fotografei cenas de pobreza, crianças de rua, a brutalidade e para fazer o papel de intérprete de um cantor de rap brasileiro que
a repressão da polícia, e só o que vi foram pessoas abandonadas passava por Paris, para uma conferência. Foi quando encontrei o
ao seu destino. Ao rever os artistas que tinha conhecido, minha Lamartine. Ele me contou o que fazia no Brasil, como estava ten-
decepção aumentou, pois percebi que, após ter visto tantos con- tando transformar a sociedade, se servindo da música como meio
trastes no país, nenhum deles sentia-se tocado pela miséria à qual de expressão. Fiquei admirado com seu empenho, seu compro-
eu tinha assistido. Por que nenhum deles se revoltava contra esse misso com a causa. Na sua luta encontrava-se a expressão de toda

Foto “Sombras no Muro”, de Lazhari Abdeddaïm: um cinema sobre juventude e justiça.

241
parte 8 – cinema e televisão

uma geração de pessoas conscientemente excluídas das grandes prestes a tirar-nos a vida para obter um par de tênis novos! Muito
decisões políticas de um país. ao contrário, os habitantes das favelas são formigas que permitem
Examinando mais de perto como Lamartine e o seu movi- ao gigante econômico se desenvolver, e não os marginais que se
mento, o MHHOB, se serviam da cultura como um “instrumento vê, todas as noites, nos programas sensacionalistas que seguem as
de transformação social”, me veio à mente as imagens de outro equipes de polícia. Eu ia de surpresa em surpresa. Evidentemente,
movimento nascido nos anos 1970, nos Estados Unidos, o Black vivemos situações de tensão, mas poucas, afinal, comparadas com
Panther Party. Só que estava acontecendo hoje, como herdeiro o que tínhamos imaginado.
espiritual, com o MHHOB, no Brasil. Eu tinha uma porção de perguntas, e devia achar elementos de
Foi na Bélgica que decidi realizar um filme sobre o compro- respostas na aventura documentária que iniciei. O hip-hop brasilei-
misso dessa juventude sofrendo de dor de justiça. O produtor, ro poderia, um dia, fazer parte da máquina política? Caso afirmati-
que eu tinha encontrado durante uma formação de escrita de vo, se tornaria um partido político tradicional? Ou: Lamartine veria
documentários, me propôs trabalharmos juntos no projeto, que o seu sonho se tornar realidade graças ao seu movimento, ou seja,
interessava. Após meses de escrita, de contatos e de encontros, che- um fator de melhora das condições de vida de milhões de pessoas?
gamos a um acordo. Tínhamos a opção de sermos acompanhados Confesso que encontrei, diante de muitas perguntas e dúvidas
por uma produção local, mas, por motivos de leveza de filmagem que eu tinha, respostas bem mais complicadas do que esperava.
e de discrição, preferi evitar essa possibilidade. Em todo caso, tive a sorte de ser testemunha privilegiada do desen-
Fiz as primeiras viagens sozinho, acompanhado, quando ne- volvimento do MHHOB, por ter obtido sua confiança. Continuo
cessário, por uma técnica de som brasileira. A ideia era ser ul- esperando, profundamente, que sua experiência tenha um alcance
tradiscreto, pois a maioria das filmagens ocorria nas favelas. No que vá além das fronteiras brasileiras, e que esse filme possa, mo-
entanto, não era por segurança pessoal, pois quando chegávamos destamente, contribuir para isso. Ele transmite as palavras destas
nesses bairros, ditos sensíveis pela imprensa, éramos muito bem pessoas “sem voz” e, sobretudo, oferece uma visão de uma parte
recebidos. Foi quando compreendi que a favela era composta de do Brasil muito pouco conhecida.
uma população de renda baixa, e não de bandidos de todo tipo, (Tradução Susana Rossberg)

Paixão pelo Nordeste


Jo h n E r bu e r

C heguei ao Brasil pela primeira vez em 2002. Só tinha cin-


co dias para filmar o festival RecBeat em Recife. Não falava
nem uma palavra de português e, exceto o fato de conhecer um
um “vídeo jam” com o DJ Dolores (Hélder Aragão) e convenci a
banda belga Think of One a voltar comigo para gravar um CD em
Recife. Desta maneira fiz contatos com muitos músicos de Recife
pouco sobre a música, não sabia quase nada sobre o país. Não sa- e Olinda, em Pernambuco, e comecei a aprender o português na
bia que essa viagem seria o começo de uma paixão cultural que rua. Realizei um documentário, O Som do Maracatu, um curta
nunca me deixaria. para o CD e, nos anos seguintes, mais um clipe em Olinda e gra-
A história do Mangue Beat, na Rádio 1 da Bélgica, tinha me vações no Porto Musical – Womex.
interessado muito e eu esperava descobrir mais na programação Depois de um encontro em Recife com o belga Bart Vet-
do festival RecBeat. Chico Science, o líder carismático desse mo- suypens, que já tinha trabalhado durante cinco anos em projetos
vimento do início dos anos 1990 – que foi mais do que música! sociais com jovens, comecei a dar oficinas de vídeo e fotogra-
– havia morrido em 1997, mas, surpresa, depois de cinco anos fia, como voluntário, no Centro de Comunicação e Juventude –
o Mangue Beat ainda estava onipresente na periferia da cidade. CCJ. Em 2008 fiz um documentário sobre o RecBeat, misturado
Nunca havia imaginado que as influências tradicionais que tinha com a realidade que tinha encontrado durante o meu trabalho
ouvido, nos diferentes estilos do Mangue Beat, se apresentassem social nas favelas.
todas nas ruas do carnaval: Maracatu, Frevo, Forró, Ciranda, Pí- Meu interesse pela música continuou, mas meu envolvimen-
fanos, Bumba Meu Boi, Afoxé ... to social aumentou a cada viagem. Em Recife há muitas fave-
Voltando para a Bélgica, com 13 horas de gravações e a cabe- las no mangue, perto dos rios, e os problemas aumentam com
ça cheia de impressões confusas, não parava de falar do Nordeste o aquecimento global. Quando o mar avança sobre a cidade, a
do Brasil com todos os meus amigos. Utilizei meus contatos pro- água entra nas favelas com todo o lixo que a cidade joga nos rios.
fissionais para divulgar a cultura nordestina através da história do Documentei isso, com fotografias, num projeto de arte, Yemanjá,
Mangue Beat. Junto com os produtores da rádio, Zjakki Willems rainha de todos as águas.
e Jeroen Revalk, organizei apresentações nos clubes de música, Em 2009 participei da Caravana de Comunicação e Juventu-

242
cinema atual

Filmagem de John Erbuer no Morro da Conceição. “Rumbanda”, de John Erbuer.

des de Recife, atravessando Pernambuco, Ceará, Piauí, Maranhão, hapox, enquanto se formava uma turma itinerante, no Brasil, da
até chegar ao Fórum Social, em Belém, no Pará. No Pará, filmei exposição Rua na Rua.
um curta sobre a poluição causada pela indústria de alumínio na Hoje estou iniciando um novo projeto de arte social. Copa
área de Barcarena, em terras dos ribeirinhos. Com o jornalista Lie- Favela 2014 é um projeto de arte contemporânea, uma interven-
ven Verstraete, da televisão belga, fiz um curta sobre as crianças ção na cidade, que será fabricada sem dinheiro, sem ajuda es-
catadoras de lixo durante o carnaval. trutural – uma pesquisa sobre o poder das ideias na arte popular
O festival belga Europalia.Brasil me convidou para fazer um das comunidades. Também é uma plataforma para reunir tudo
projeto de arte com dez pequenos vídeos, Retratos Brasileiros. Rea- que tem a ver com a Copa do Mundo no Brasil e o povo da peri-
lizei isso através de uma oficina para o CCJ de Recife. Os vídeos fo- feria. Enquanto a FIFA está divulgando as boas notícias sobre a
ram mostrados durante quatro meses no Club Brasil em Bruxelas. Copa do Mundo 2014, Copa Favela 2014 vai mostrar as realida-
Na “Zwarte Zaal”, da academia de arte KASK, em Gand, con- des das comunidades e os impactos no meio ambiente. A ideia
videi o artista de rua brasileiro José Cleiton Carbonel para criar seria unir essa iniciativa ao projeto Welvaert, ao lado do museu
comigo uma instalação, Rua na Rua, no final de 2011. Em 2012 MAS, em Antuérpia.
continuei esse trabalho na galeria de arte contemporânea Crox­ O Brasil vive em mim, nunca me largará.

Em busca de uma arte global


Icaro Alba

S ou da família de Francisco de Almeida Fleming, cineasta


considerado entre os primeiros a realizar filmes mudos, fala-
dos, coloridos, fora de estúdios, além de outros pioneirismos no
tudar e trabalhar a confluência das artes plásticas, teatro, dança,
literatura e filme, deveu-se a diversas razões essenciais: primeiro
devido aos sacrifícios e desapontamentos políticos crescentes de
Brasil. Sou formado pela Escola de Comunicações e Artes da nossa geração, filhos que éramos dos restos da ditadura militar,
Universidade de São Paulo (ECA-USP), que possui, desde sua esperançosos e lutadores pelas “Diretas Já”, logo frustrados com
fundação, reconhecida vocação multicultural e multimídia. Ao a morte de Tancredo Neves. Obrigados a engolir na sequência
estudar Rádio e TV, tínhamos cursos paralelos com a turma de trágica: José Sarney e Fernando Collor de Mello, presidentes do
Cinema, Jornalismo, Artes Plásticas e Teatro, além de frequentar Brasil, com seus costumeiros escândalos, corrupções, planos eco-
as faculdades de Arquitetura, Teologia e Filosofia. Daí talvez o nômicos aberrantes, levando o Brasil ao caos e provocando o im-
amor à criação em equipe, multidisciplinar, à imagem em suas peachment final, oferecendo a posse presidencial ao apocalíptico
diversidades, interrogando tabus, contando histórias ou docu- vice-presidente, Itamar Franco. Neste ciclo infértil, degenerado,
mentando. Sem fronteiras, sem ‘pré’ conceitos. repetitivo e autodestrutivo, a criatividade ficava comprometida
A decisão de trocar o Brasil pela Bélgica, para continuar a es- pelo pessimismo, pelo sectarismo ou ainda pela ironia. Para so-

243
parte 8 – cinema e televisão

Icaro Alba e a capa


baseada na original
de Arthur Bispo
do Rosario em
um filme-teatro-
-conferência.

Icaro Alba e Coral Pastoreaux, coral infantil belga de música erudita, no Brasil.

Quando aqui cheguei, “eu nada entendia”, deste país dividido,


que parecia condenado eternamente ao surrealismo, sem uma
única coerência nacional interna. Talvez justamente devido a isso,
oferecia uma liberdade de expressão extrema, ideal para a criação,
um “no man’s land”, sem os constrangimentos nacionalistas mo-
breviver, mudar, necessitávamos fugir para novos sonhos, mais fados, exaltados, que viriam com tudo, por todas as partes, anos
realizáveis de imediato. Foi assim, ainda de cara pintada após mais tarde.
uma manifestação anti-Collor, que veio a decisão definitiva – Outra razão de morar na Bélgica foi a possibilidade de reali-
nada fácil – de partir. zar o mestrado no Centro de Estudos Teatrais da Universidade de
Foi o saudoso bailarino baiano Ricardo Carvalho, do Grupo Louvain La Neuve, sobre a obra dramática de Pina Bausch e seu
Plan K, através de sonhados projetos conjuntos, sempre ligados à companheiro igualmente cenógrafo, Rolf Borzik. A relativa pro-
pós-modernidade, um dos primeiros, ainda no Brasil, a me apre- ximidade em trem da Bélgica até Wuppertal facilitaria as idas e
sentar as potencialidades teatrais da vida na Bélgica. A Bélgica vindas de estudos e trabalhos ao lado da mestra do teatro-dança e
seduzia, despertava os instintos criativos, independentemente da toda sua equipe. Esta tese universitária se tornou, a pedido de Pina
meteorologia, justamente por sua qualidade de vida – humana e Baush, o primeiro livro publicado pela companhia de Wuppertal
profissional – acostumada às vanguardas artísticas; talvez devido sobre a influência determinante do multidisciplinar artista Rolf
à sua posição geográfica estratégica na Europa, próxima e acessí- Borzik em sua inovadora linguagem (Rolf Borzik Und Das Tanz-
vel, permitindo o contato saudável, franco e aberto entre culturas theater. Paris: L’Arche, Wuppertal: Tanztheater, 2000).
divergentes. A Bélgica, através do Kaaitheater, apresentou-se de Assim como nos meus filmes iniciantes para a TV Cultura de
imediato como uma opção muito provável e desafiante ao nos São Paulo, os filmes produzidos na Bélgica foram feitos, quase
convidar e acolher, após a apresentação da peça El Señor Presi- sempre, em relação, a propósito, ou no contexto das criações de
dente, adaptação teatral do livro de Miguel Angel Astúrias, com o teatro, dança, ópera ou artes plásticas. Na busca de uma arte glo-
Grupo Boi Voador, em Hamburgo. bal, total. O conceito é simples: usar a tecnologia atual, temáticas
Na Bélgica, residências, projetos, estágios, cursos e treinamen- atuais, universais ou particulares, recaminhando, no entanto, em
tos artísticos eram contínuos, o ambiente favorecia o trabalho con- rotas bem traçadas e sinalizadas pela tradição teatral, via a tragédia
sistente e era catalisador de intercâmbio europeu e internacional. grega, via Shakespeare, via Wagner ou Nietzsche.
Verdade é que aos vinte e poucos anos as oportunidades vinham de No filme-teatro-dança-concerto Macbeth, com o grupo La Fu-
todos os lados, todas interessantes, e não havia porque perdê-las. ra Dels Baus, nos Matadouros de Anderlecht e de Bruxelas, reali-
Tais como foram as vivências com os grupos: La Fura Dels Baus, zamos, ou melhor, nos aproximamos deste difícil equilíbrio, onde
Odin Teatret e com diretores inovadores como Robert Wilson, imagens ao vivo de três simultâneas apresentações teatrais, em três
Lev Dodin, Peter Brook, Peter Stein, Grotowski, Luca Ranconi, cidades, via satélite, relacionavam-se com atores reais e imagens
Giorgio Strehler, Dario Fo, Ingmar Bergman, entre tantos outros gravadas. Nesta lógica, também filmamos para instalações de arte
mestres das artes cênicas e visuais. contemporânea, em diversas proporções, como foram os trabalhos
Foram seguramente os amigos antigos e novos que fizeram conjuntos com a premiada artista belga Marie Jo Lafontaine.
da Bélgica um porto estratégico para aprofundar, iniciar e apren- Fizemos o megafilme I Love The Word para a abertura da copa
der. Como esquecer o apoio da escritora Martine Renouplez e da de futebol da Alemanha, em Frankfurt, exibido nos arranha-céus
tradutora Angela Munhoz nas intermináveis noites de inverno? da cidade transformados em telas, num raio de quatro quilôme-

244
cinema atual

tros. Mais intimista, sempre com Marie Jo, fizemos o filme-ins-


talação-artística The Ball, na qual recriamos uma sala de baile,
com telas envolvendo o público, obra exposta em diversos museus
pelo mundo, tendo como sujeito diversas modalidades de danças
confluentes: o flamenco, a dança do ventre, o dervish e o tango.
Ainda no mesmo objetivo, a peça Opera Canibal, que escrevi
e dirigi, foi toda filmada em Bruxelas, editada em Kortrijk em cola-
boração direta com a empresa Barco, especialista em telas digitais
panorâmicas. Usamos para este trabalho, apresentado durante o
Festival d’Avignon, cinco telas gigantes que dialogavam entre si.
Testando sempre os limites da linguagem cênica, da tradição, do
sentimento e da tecnologia, realizamos também o filme-teatro-
-conferência abordando a vida e a obra do brasileiro Arthur Bispo
do Rosario, que foi apresentado no Espace Senghor em Bruxelas.
Recentemente, com o grupo Pastoureaux, coral infantil belga O megafilme I Love The Word realizado para a abertura da copa de futebol da
de música erudita, estamos experimentando a utilização de filmes Alemanha, em Frankfurt, por Ícaro Alba e Marie Jo Lafontaine.
temáticos, com cores e imagens de natureza, distribuídos pela sala
em telas cinematográficas durante as apresentações de seus con- assassinados na porta da igreja da Candelária, violência mundial-
certos. Numa viagem pelo Brasil com o coral, por nós organizada, mente conhecida como Chacina da Candelária. Esta homenagem
filmamos, em colaboração com a TV Cultura e a Rede Globo, uniu uma vez mais Bélgica e Brasil, países que historicamente
uma participação especial na homenagem aos meninos de rua sempre se encontram.

Sem-Terra
Jean Timmerman

F ui atraído para o Brasil pela música, mas o músico que me


fascinava na época era norte-americano, estava começando
a tocar saxofone e meu modelo era Stan Getz, isso foi em 1982
gido da ditadura, e que trabalhava “lá onde se precisava de mé-
dicos”. Se estabeleceu em São Félix do Xingu, no sul do Pará, e
construiu um hospital fora do comum, no meio da Amazônia. Foi
e eu tinha 25 anos. Aproveitei uma filmagem no Peru, em 1987, lá que encontrei, pela primeira vez, indígenas, os Kayapós. Anos
na qual era técnico de som, para prolongar minha estada sul-a- depois, levaria minhas filhas.
mericana ao Brasil. Eu tinha um contato no Brasil, a Rosa Bran- Dois anos mais tarde, penetrei muito mais profundamente na
dão, uma carioca que se tornou brasiliense. Seu pai, igualmente floresta. Fomos a Tabatinga, fronteira entre o Brasil, a Colômbia
folclorista e poeta, foi um dos construtores da nova capital. Rosa, e o Peru, região onde se explora a madeira preciosa. Foi onde re-
cantora lírica, tinha estudado música em Bruxelas, tornou-se mi- digi meu primeiro dossiê de produção de filmes, O Preço da Ma-
nha companheira e, dois anos depois, deu-nos duas filhas mara- deira, que tratava do trabalho escravo dos lenhadores. O projeto
vilhosas, Iara e Cecy. interessou a um ateliê de produção belga, mas não se chegou a
As meninas tinham apenas três meses quando atravessaram o um acordo interno para fazê-lo. Foi talvez o que me salvou a vida,
Atlântico pela primeira vez. Sempre cuidei para que elas e o irmão porque o assunto era muito barra pesada.
mais velho, Gabriel, de um primeiro casamento da Rosa, pudes- Nesse meio tempo, recebi uma subvenção europeia para es-
sem explorar suas duas culturas. Íamos para o Brasil a cada dois crever um projeto cinematográfico em Rondônia. O Banco Mun-
anos. Como as viagens eram caras e eu queria conhecer o país, dial emprestava, pela segunda vez, dinheiro para a região, para
sobretudo a Amazônia, resolvi “profissionalizá-las”. “reparar” os desgastes causados pelo primeiro empréstimo, para
Em 1991, em Brasília, tive a sorte de encontrar dois grandes es- o asfaltamento da BR-364 entre Cuiabá e Porto Velho. Eu tinha
pecialistas em Amazônia, Ezequías Heringer Filho, dito Xará, an- intitulado o projeto de On the Road again, e imaginava o filme
tropólogo, e Victor Leonardi, historiador da Universidade de Brasí- como um “road-movie” sobre a BR-364.
lia. Graças a eles obtive contatos em todas as regiões da Amazônia Estava fazendo prospecção para o filme em 1995 quando ocor-
que, em seguida, visitei. Deixamos as meninas com um irmão de reu o massacre de Santa Elina, em Corumbiara (RO). Um Coman-
Rosa e partimos para nossa primeira experiência amazônica. do de Forças Especiais, com a ajuda de jagunços, tinham expulsa-
Visitamos outro irmão de Rosa, André, médico que tinha fu- do, a mão armada, centenas de famílias de camponeses sem-terra

245
parte 8 – cinema e televisão

“A aula”, cena de filme de Jean Timmerman, “Sem Terra”.

que estavam ocupando as partes improdutivas de uma fazenda. Fui


para Corumbiara com um responsável sindical da CUT.
Em Rondônia, segundo as regras do Instituto para a Coloniza-
ção e a Reforma Agrária-Incra, não deveriam existir propriedades
de mais de 2.000 ha. A Santa Elina tinha 20.000 ha. Encontran-
do as famílias sobreviventes alojadas às centenas nos porões da
igreja de Colorado do Oeste, resolvi consagrar o projeto à ques-
tão agrária. Um ano depois, em 1996, voltei para filmar. Minha
estada duraria três meses. Foi o ano do massacre de Eldorado de “Sem-Terra”, de Jean Timmerman, filmado em 1996, ano do massacre de
Carajás, no sul do Pará. Minha equipe, inteiramente brasileira, Eldorado dos Carajás.
estava esperando o meu sinal. Era fim de junho; deveríamos co-
meçar a filmar em agosto. causa da ocupação da sede do Incra em Jaru, com um refém que,
Eu me perguntava se não filmasse no Pará, onde tinha havido afinal, não estava sendo totalmente forçado.
o massacre, mas em Rondônia eu poderia mostrar aspectos mais Filmamos tudo isso. Apesar de muita prudência, fomos pressio-
variados da reforma agrária. Nem todas as famílias tinham sido nados. Uma família citadina de Theobroma foi ameaçada porque
inscritas num plano de reforma agrária. As que estavam inscritas nos ajudava. Atiraram na direção do técnico de som e de mim, para
precisaram ir para o norte do Estado, a mais de 800 km de Co- nos intimidar, em Jaru. No entanto, estávamos alojados na casa de
rumbiara. Estavam acampadas, isoladas, esperando a divisão dos uma amiga, então candidata nas listas do PT! A maior pressão que
lotes. Sem ajuda financeira, teria sido impossível sobreviver até sentimos foi na sede do Incra: sabíamos que, a qualquer momen-
a primeira colheita. Perto de lá havia um grupo ocupando terras to, uma operação policial podia ocorrer, e que podia ser violenta.
improdutivas de um latifúndio composto, em parte, de sobreviven- Eu mandava para fora as fitas magnéticas na medida em que as
tes do massacre de 1995. Eu poderia mostrar as dificuldades da terminávamos, para colocá-las a salvo. Houve muitas armadilhas,
reforma agrária, que não pode limitar-se à distribuição de terras. tanto durante a filmagem quanto durante a pós-produção, mas o
Poderia mostrar a luta dos que tentam beneficiar-se dessa reforma filme existe e se intitula, simplesmente, Sem-Terra.
fazendo ocupações, e poderia mostrar também a violência das re- Agora a Rosa e eu estamos separados, as crianças cresceram e
lações com as vítimas do massacre. viajam sozinhas. Tenho menos razões para voltar ao Brasil, mas
Fui para Theobroma, perto de Jaru, onde se encontravam fa- uma parte de mim tornou-se brasileira. É indelével – axé Brasil!
mílias que tinham recebido terras. Estavam no fim de uma pista Após o massacre de Corumbiara, dois sem-terras foram con-
traçada na floresta por exploradores de floresta com uma escava- denados pela morte de dois policiais durante a ação. Um deles,
deira para terraplenagem. Todas as passagens naturais de água Claudemir Ramos, vive, desde então, na clandestinidade, fugin-
tinham sido aterradas. Esses aterros iam certamente ser levados do dos jagunços e da justiça. Em 10 de agosto de 2011, 16 anos
no início da estação das chuvas, e a pista tornaria-se impraticável. depois do massacre, o Congresso Nacional decretou a anistia para
As famílias ficariam, então, isoladas até a estação seca. Foi o que todos os sem-terras incriminados. O pai de Claudemir foi assas-
aconteceu, e uma criança faleceu por falta de tratamentos. sinado, no mesmo ano, após a denúncia de extração de madeira
Eu sabia que chegaria a filmar ações sociais. Foi o caso, por ilegal em Rondônia.
um lado, durante a ocupação de uma fazenda, e, por outro, por (Tradução Susana Rossberg)

246
cinema atual

Descobertas do Brasil entre o som e a antropologia


Nicodème de Renesse

C resci na Bélgica entre pessoas de teatro, com as quais aprendi


muito e herdei um insaciável desejo de conhecer e compre-
ender aquilo que desconheço e não compreendo por aí, mundo
afora. Adolescente, quando comecei a fazer meus próprios expe-
rimentos, que incluem experiências de cinema, descobri que re-
gistrar sons era uma maneira de explorar o mundo. O som passou
então a ocupar o centro dos meus interesses, embora nunca por
si só, sem fazer uma ponte com outros domínios.
Não estudei o som, mas Antropologia. Ingressei na Universida-
de Livre de Bruxelas (ULB), cursei dois anos e parei para passar um
ano na Rússia, onde trabalhei, entre outros, com Catherine Mon-
tondo, uma cineasta belgo-americana que fazia filmes em Moscou.
Finalmente voltei para a Bélgica e prossegui meus estudos. Foi no
final desse período que o Brasil surgiu no meu caminho. “Lampião, sonhos de bandido”, de Nicodème de Renesse e Damien Chemin, foi
Posso dizer que conheci o Brasil, em grande parte, pelos ou- produzido pela produtora Tarantula na Bélgica.
vidos. Em 18 anos, aprendi a encontrar os lugares e as pessoas, e
a conhecê-las, pelos sons. Meu itinerário no Brasil começa em Durante esses anos, do Brasil só conheci o Nordeste. No iní-
Recife, Pernambuco. Em 1994, eu e minha mulher, Alessandra, cio de 1998 voltamos ao Brasil com nossas filhas para trabalhar
viemos passar uma temporada junto de sua família com nossa num filme documentário sobre a cena musical de Recife nos anos
filha recém-nascida. Eu tinha 22 anos e estava ainda no último 1990, de Helder Aragão (DJ Dolores) e Sérgio Oliveira. Eu devia
ano de graduação em Antropologia na ULB. Pretendia aproveitar fazer o som direto, porém as filmagens pararam logo por falta de
a viagem para coletar os dados do meu mémoire de licence, uma financiamento. Fiquei rapidamente sem dinheiro e decidi descer
monografia obrigatória de conclusão de curso, e tinha levado um para São Paulo, onde fui hospedado por um amigo fotógrafo. Vivi
gravador DAT para esse fim. Andava com ele por todo lugar, na meu período de migrante nordestino e descobri um outro Brasil.
mochila ou a tiracolo. Comecei a trabalhar como técnico de som direto em filmes co-
Dessa época, guardo a gravação de momentos que nunca saí­ merciais, documentários e de ficção, longas e curtas, com Andrés
ram da minha memória: uma cantiga de sapos numa lagoa no- Bukowinski, Ugo Giorgetti, Edgar Navarro e outros.
turna do agreste pernambucano, um canavial em fogo e um coco Ao mesmo tempo, passei a captar e fornecer sons para diversas
de roda puxado por Seu Sedo, pescador, poeta e tirador de coco, produções. Com o renascimento do cinema brasileiro, alguns edi-
numa praia de Olinda (coco é um ritmo e uma dança da região). À tores, na finalização, careciam de sons específicos que não podiam
medida que meu português ia melhorando e que eu compreendia produzir facilmente em estúdio e não encontravam em bancos de
o que tinha gravado, a magia do coco, sua poesia e seu ritmo me se- sons, pois não existem coletâneas de sons brasileiros, ou mesmo
duziram. Decidi que o coco de roda seria o tema do meu mémoire. porque envolvem ambientes muito particulares. Tive a chance de
Passei a percorrer morros e ladeiras à procura dos puxadores chegar exatamente nesse período. Míriam Biderman e, mais tarde,
de coco, gravando fartas histórias e cocos. Olinda era, neste as- Waldir Xavier me passaram algumas encomendas.
pecto, na parte popular atrás do farol, um verdadeiro ninho. Vol- Foi assim que, a partir de 1999, voltei a fazer o que eu mais
tamos para a Bélgica, concluí a monografia e meu orientador, gostava, isto é, percorrer becos e estradas em busca de sons: um
Didier Demolin, um etnomusicólogo e eminente linguista que, Brasil campestre do século XIX para o filme Memórias Póstumas
bem mais tarde, por coincidência, também veio ao Brasil para de Brás Cubas; sons da caatinga para Eu, Tu, Eles; ruas popu-
ensinar na Universidade de São Paulo (USP), me propôs gravar lares no Rio de Janeiro dos anos 1920 para Madame Satã etc.
um disco de coco. Para mim, esses trabalhos eram verdadeiras explorações sonoras
Com o material que eu já possuía, produzi dois programas de do mosaico de camadas históricas e sociológicas que compõem
rádio para a BRT (Bélgica) e para a VPRO (Holanda) graças aos o Brasil; não apenas porque era preciso uma boa noção acústica
quais financiamos a viagem. Em 1996, com equipamento em- daquilo que se buscava, mas porque, toda vez, era preciso com-
prestado, voltei para o Brasil para gravar o disco com Dona Sel- preender a organização sonora do real para encontrar os lugares
ma, num terreiro no alto de Olinda. O disco foi lançado em 1997 e os horários adequados.
pela Fonti Musicali, gravadora belga especializada em músicas À medida que os anos iam passando, procurei outras aborda-
do mundo. gens. Em Lampião, um documentário que codirigi com Damien

247
parte 8 – cinema e televisão

Chemin em 2005, produzido por Tarantula, na Bélgica, deixei de na que evoluiu para um projeto de doutorado em 2012. Por coin-
fazer o som para experimentar uma outra maneira de explorar o cidência, minha orientadora, Dominique Tilkin Gallois, seguiu
mundo, um outro ponto de vista. um percurso parecido: graduou-se em Antropologia na ULB, antes
Aos poucos, comecei a cultivar o desejo de retomar o caminho de migrar para o Brasil nos anos 1970, onde prosseguiu com um
deixado para trás e voltar para a Antropologia. Nas minhas andan- mestrado e um doutorado na USP, até tornar-se professora nessa
ças, descobri um Brasil indígena que eu desconhecia e, em 2009, universidade. Quanto a mim, a questão de saber de que lado ficar
entrei na USP com um projeto de mestrado em etnologia indíge- ainda não recebeu uma solução definitiva.

Lampião, sonhos de bandido


Damien Chemin

F oi durante minha primeira viagem para Pernambuco que fi-


quei intrigado pelo personagem. Quis saber mais sobre ele, sa-
ber por que fascinava tantos brasileiros, qual era a parte de lenda e
qual a parte de história. Com Nicodème de Renesse, antropólogo,
técnico de som e diretor, que já vivia no Brasil, resolvemos fazer
um documentário para tentar captar o personagem, não do ponto
de vista histórico, mas do ponto de vista sociológico.
Foi a dimensão imaginária do personagem que nos interessou
particularmente. É, pois, através do encontro com diversas persona-
lidades, todas apaixonadas pelo cangaço, que o filme procura fazer
um retrato coletivo e subjetivo de Lampião. No final, é o sonho de
liberdade que ele leva consigo, mais do que a sua história fac­tual,
que nos interessou, porque ela se refere a aspirações universais. “A Pelada”, de Damien Chemin, com os atores Kika Farias, Mariana Serrão e
O filme, produzido principalmente por Joseph Rouschop, da Bruno Pêgo, produtora Tarântula, Bélgica.
produtora Tarantula, de Liège, é uma coprodução de três socieda-
des francófonas belgas, de um apoio oficial e de uma coprodução essa cultura musical e poética forte. Felizmente, uma editora de
flamenga. No Brasil, tivemos a colaboração de uma produtora de discos parisiense, dirigida por um especialista do acordeão, Philip­
São Paulo. O técnico de som foi um belga instalado no Brasil, Ni- pe Krümm, se interessou pelas gravações, e editou em CDs dois
colas Hallet, e a edição de som foi feita por uma editora brasileira volumes chamados Forró Acústico vol. 1 e vol. 2. Os CDs tiveram
que vive na Bélgica, Susana Rossberg. uma grande difusão internacional, sem dúvida por causa da qua-
O filme é distribuído no Brasil. Foi mostrado no Museu da lidade dos artistas, como também pelo caráter autêntico das gra-
Imagem e do Som (MIS) de São Paulo, em festivais de Fortaleza vações, feitas nos lugares onde os artistas viviam, o que causou o
e Salvador e participou de um programa itinerante, sobre o tema sucesso inesperado dos discos.
do cangaço, em diversas cidades brasileiras. Foi, igualmente, apre- Este trabalho apaixonante me convenceu a me instalar em
sentado em diversas manifestações e festivais europeus. Aracaju, onde comecei a trabalhar, entre outros, para a televisão
pública local, Aperipê TV, para a qual dirigi diversos programas
Sergipe documentários.
Também colaborei com diversas produtoras locais, como di-
Foram encontros feitos durante a filmagem de Lampião, so- retor ou diretor de fotografia, sempre continuando meu trabalho
nhos de bandido que me deram vontade de voltar para o Brasil, de diretor de filmes de ficção para a produtora belga Tarantula.
para conhecer melhor a cultura nordestina. Eu tinha sido marca- Uma vez instalado, produzi, a pedido de Philippe Krümm, um
do, particularmente, pelo forró pé-de-serra, tal qual é praticado nos novo CD, consagrado inteiramente ao virtuoso sanfoneiro Cobra
povoados do interior de Sergipe. Essa região é pouco conhecida Verde, um dos artistas mais marcantes do CD Forró Acústico. Esse
e pouco valorizada, sem dúvida por causa da proximidade dos gi- CD, distribuído, como os anteriores, por L’Autre Planète, ocasio-
gantes culturais vizinhos, Bahia e Pernambuco. nou, em maio de 2010, uma turnê do grupo Forró de Cobra Verde
Colaborei novamente com Nicolas Hallet e Nicodème de Re- à Bélgica e à França. Foi, para mim, motivo de grande felicidade
nesse para gravar diversos músicos e aboiadores da região. A maio- o fato de ter criado esse encontro e de ver a excelente recepção
ria deles era pouco conhecida do público; nós queríamos valorizar que o grupo recebeu do público belga e francês.

248
cinema atual

“A Pelada”, de Damien Chemin, com os atores Bruno Pêgo e Tuca Andrada.

A Pelada é composta principalmente de atores e técnicos de Sergipe, com


a participação de alguns atores mais conhecidos na área nacional,
Depois de viver vários anos em Aracaju, escrevi um filme ins- como Tuca Andrada, Karen Junqueira, Edmilson Barros e Luci
pirado em histórias e personagens dessa cidade muito pouco co- Pereira. Nos papéis principais, temos Bruno Pêgo e Kika Farias.
nhecida. Trata-se de uma comédia romântica, chamada A Pelada, Foi, mais uma vez, uma ocasião para unir a Bélgica e o Brasil,
que conta os desgostos de um jovem casal, de origem modesta, pois o diretor de fotografia Marc de Backer e os produtores Joseph
tentando dar uma nova vida ao seu casamento, meio encalhado. Rouschop e Michel de Backere estiveram presentes durante a fil-
Fiz o filme inteiramente em Aracaju no início de 2012. magem no Brasil. A pós-produção inteira foi feita na Bélgica. Mais
Essa obra é o fruto de uma coprodução inédita entre a Bélgica uma vez, o belga Nicolas Hallet, que mora no Brasil, fez o som,
e Sergipe, entre Tarantula e WG Produções, de Sergipe, com a aju- em colaboração com sua esposa, Simone Dourado.
da de órgãos oficiais e estaduais dos dois países. A equipe técnica (Tradução Susana Rossberg)

Baiano, brasileiro e bruxellois


D i e g o Sa n ta n a C l a u d i n o

A cho difícil falar sobre a minha relação com a Bélgica sem


perder um pouco a imparcialidade que inibe julgamentos
apressados. O momento em que escrevo não é o mesmo que vivi
outro. Amor? Não sei, diria que não, ou melhor, que sim. Tenho
um amor sem tesão pela Bélgica. Mas sim, por que não amor? Ela
faz parte de mim e respira comigo. Chego a criticar, mas sempre
quando cheguei, nem é igual ao que está por vir. a defendo. Somos família. E como toda relação familiar, temos lá
Eu e a Bélgica somos um casal que se conhece muito bem e nossos problemas. Mas, sim, nos amamos.
que teve uma bela jornada com pontos bem altos e mergulhos bem Nos amamos, mas não morreria por ela. Enquanto visse fogo
baixos. O que nos segura juntos é o respeito que temos um pelo nos seus olhos, lutaria ao seu lado até o fim. E isso é o que creio

249
parte 8 – cinema e televisão

Cenas de trabalhos realizados por Diego Santana Claudino na Bélgica.

faltar aqui. Fogo, chama, calor, autoconfiança. A Bélgica te in- quem sou acalma essa recorrente dúvida. Na Bélgica aprendi quão
centiva pela dúvida e não pela confiança cega. E acho que isso se pequeno é o mundo, e como não há limite para o que podemos
reflete na atitude das pessoas, na integração do país como um todo fazer; basta querer. Na Bélgica me assumi artista, me comprometi
e na sua arte em geral. A Bélgica precisa se amar mais. comigo mesmo e aprendi a apreciar a jornada muito mais que o
Cheguei à Bélgica por amor e resolvi ficar por teimosia. Lar- seu destino. Tomei gosto pelas curvas da estrada, mesmo como o
guei um trabalho em ascensão no Brasil, na prestigiada O2 Fil- impaciente e inconformado que sou. Hoje eu sou “eu”. E parte
mes, onde era editor e assistente de direção, por amor a uma desse eu devo à Bélgica. E mais que um diretor de filmes, me con-
jovem belga que conheci no Rio de Janeiro e por amor à aven- sidero um artista, e me expresso nos meios que me convêm: foto,
tura. Pelo desejo de enfrentar o desconhecido. Pela curiosidade desenho, pintura e filme. No momento, flerto com os pincéis e as
infantil que pulsa dentro de mim e faz coro à minha ode ao “por telas enquanto bailo sobre as teclas que coreografam o que pode
que não?”. E de “por que não?” em “por que não?”, estou aqui algum dia se tornar o roteiro de um longa-metragem. Sou Diego
há seis anos. Santana Claudino. Baiano, brasileiro e bruxellois.
Às vezes me pergunto como seria a minha vida se não tivesse Link: www.selfishbastards.tumblr.com e www.vimeo.com/
tomado tal decisão. Mas a certeza de que certamente não seria dieego

Documentário e mal-entendido: retorno sobre


uma primeira filmagem no Brasil
Jeremy Hamers

E m 2003, Dorothée Luczak, então diretora artística da Bie-


nal Internacional de Fotografia e de Artes Visuais de Liège,
me propôs coproduzir um projeto de filme documentário que eu
que vai ser cortada no dia seguinte, para eliminar as folhas que
quase não produzem suco.
Obcecado por esse espetáculo, que eu tinha visto somente de
queria dirigir no Brasil. Naquela época, eu já tinha viajado para longe durante minha primeira viagem, comecei a preparar a roda-
a região de Goiás a fim de passar algumas semanas com os traba- gem de um filme sobre a produção de biocombustível na região
lhadores rurais sem-terra de lá. de Goiás. Naquela época, minha intenção era dupla. Por um lado,
Foi durante esse primeiro périplo brasileiro que tive a oportu- eu me interessava por essa produção que, tal era minha esperança,
nidade de descobrir um fenômeno que ocuparia uma parte essen- nos permitiria, a longo prazo, libertar-nos da hegemonia das gran-
cial do meu projeto documentário chamado A Verdade do Gato des sociedades petrolíferas. Por outro lado, e após diversas conver-
(2005): a queima noturna dos campos de cana de açúcar. Cada sas com Benoît e Inès Rixen, um casal de agrônomos belgas que
ano, durante os seis meses da colheita, se produzia um espetáculo tinha trabalhado durante anos na região, queria denunciar a con-
interessante: quilômetros de campos queimavam durante a noite. dição dos cortadores de cana de açúcar, essencialmente trabalha-
Durante a noite que precede a colheita, coloca-se fogo na cana dores sazonais, que sofriam, de maneira evidente, em condições

250
cinema atual

Cena de A Verdade do Gato, de 2005, de Jeremy Hamers, sobre a cremação noturna nos campos de cana de açúcar.

de trabalho catastróficas: eram empregados por um recrutador rava como recursos da reportagem tradicional, infiéis a uma situa-
(chamado “gato”) que tinha um estatuto jurídico totalmente nebu- ção complexa. Contava com o que diriam as pessoas que ia filmar.
loso, com um salário proporcional ao metro de cana cortado, sem No entanto, apesar do aprendizado do português ter consti-
direitos sociais, com uma deterioração da saúde devido ao trabalho tuído uma parte importante da preparação para a filmagem pela
cotidiano num cinzeiro gigante. Uma condição que lembrava, sem equipe inteira, não tínhamos nos preocupado com a relação com
ambiguidade, o tratamento infligido aos trabalhadores das minas as pessoas que íamos encontrar. Estava unicamente inquieto com
de carvão imigrados na Bélgica alguns decênios antes. a liberdade que teríamos para filmar os trabalhadores labutando.
O projeto estava, pois, marcado por uma contradição que eu Porém, chegando lá, todas as portas foram abertas com uma fa-
achava interessante, e que deveria me permitir escapar ao regis- cilidade desconcertante. Tudo podia ser filmado. Nunca tivemos
tro maniqueísta da reportagem televisual clássica. A produção do que usar estratagemas, ou sermos discretos, para filmar o trabalho.
biocombustível oferecia ao Brasil uma independência financei- Passado nosso primeiro entusiasmo, percebemos que parecia
ra que achávamos de excelente agouro no cenário do primeiro impossível estabelecer qualquer comunicação com os sazonais.
mandato presidencial de Lula e, concomitantemente, a explora- Sempre sorridentes, dispostos a repetir um gesto quando julgáva-
ção da cana de açúcar ocorria em condições sociais e ecológicas mos necessário para a filmagem, brincalhões apesar do trabalho
amedrontadoras. extenuante, eles nos davam a impressão de estar interpretando
No anteprojeto do filme, que nos proporcionou algum finan- uma opereta num filme que tinha a pretensão de ser uma ópera.
ciamento, as coisas eram apresentadas de maneira muito simples. Uma primeira explicação dessa estranha situação nos veio de
O filme seria composto de imagens da colheita manual e da cre- nosso encontro, no terceiro dia de filmagem, com o diretor da
mação dos campos, ambas espetaculares (penso, hoje, que é o que exploração agrícola na qual filmávamos. Alguns minutos de con-
causa, em parte, o sucesso do filme nos festivais). Naquela época, versa informal foram suficientes para compreender que o homem
eu recusava toda Voice Over clássica e toda entrevista, que conside- nos considerava como poderosos meios de retransmissão publi-

251
parte 8 – cinema e televisão

Jeremy Hamers: “Sabemos que a história do documentário está repleta de tentativas de não levar em conta o abismo que separa a pessoa que filma daquilo que é filmado”.

citária vindos de uma Europa (onde tinha feito seus estudos) e durante a Mostra de Cinema de São Paulo, mencionava A Verda-
que fantasiávamos, então, a propósito dos biocombustíveis. Antes de do Gato como um dos filmes imperdíveis da seleção oficial.1
da nossa chegada, tinha encarregado os contramestres de anun- Essas duas recepções brasileiras de meu filme sintetizam bem o
ciar nossa visita aos cortadores. Eu nunca teria imaginado que abismo que minha ingenuidade tinha eliminado mesmo antes do
o peso das categorizações clichês pesaria tanto na nossa relação primeiro dia de filmagem.
com os sazonais. Atualmente penso que a filmagem de A Verdade do Gato no
A este primeiro mal-entendido, que nunca conseguimos des- Brasil repousou num conjunto de mal entendidos e de elementos
construir totalmente (mesmo em situação de entrevista anônima, a priori, com os quais um documentarista – certo de suas boas in-
a prudência dos trabalhadores era impressionante), juntou-se um tenções – pode se aproximar de um lugar, de uma situação e de
segundo problema. Frequentemente, diante da câmera, os traba- uma comunidade que lhes são estrangeiros. Sabemos que a história
lhadores paravam de trabalhar e assumiam uma pose. Retrospec- do documentário está repleta de tentativas de não levar em con-
tivamente, essa situação problemática (afinal, estávamos lá para ta o abismo que separa a pessoa que filma daquilo que é filmado.
filmar o movimento do trabalho) me parece totalmente interes- Alguns documentários camuflam esse problema para colocar a
sante, na medida em que espelhava minha própria ingenuidade. matéria filmada unicamente a serviço de um relato. Outros tentam
Evidentemente, eu não podia pedir a esses homens que fossem implicar o filmado para fazer um filme a duas, ou mais, vozes, na
naturais, que agissem como se eu não estivesse lá. tradição dos autores que revolucionaram o documentário etno-
A carga aviltante desse tipo de injunção contraditória e grotes- gráfico a partir dos anos 1950. Mais raros são os que colocam essa
ca é evidente. Hoje me parece que, adotando um comportamento relação no centro de sua obra, problematizando-a e tornando-a o
que eu achava absurdo e inadequado, esses homens responderam assunto do filme, sem jamais perder de vista a causa que defendem.
à minha intrusão ingênua no seu cotidiano de trabalhadores. Até Me parece que a filmagem de A Verdade do Gato deveria ter che-
hoje não tenho a certeza de ter podido estabelecer a origem de gado a tal problematização. Em vez disso, o filme se refugia numa
tal comportamento. No entanto, acompanhando um grupo de encenação que transforma o cortador numa silhueta, num robô,
cortadores a uma sessão de televisão que encerrava o dia, me pa- num escravo sem personalidade, para sublinhar, por falta de coisa
receu que o imobilismo que eles ofereciam à câmera, em certas melhor, a exploração humana que está na origem de um sistema.
circunstâncias, me lembrava as encenações extremamente petrifi- Nesse sentido, o filme não trai os trabalhadores da cana de açúcar.
cadas das telenovelas melodramáticas que consumiam em massa. Mas ele constitui somente uma primeira etapa no caminho de um
Mais tarde, quando o filme foi mostrado no povoado de Car- tratamento real do que é o encontro entre dois mundos.
mo do Rio Verde, onde tínhamos filmado, informaram-me que a (Tradução Susana Rossberg)
maioria dos cortadores tinha ficado desapontada com o documen-
tário, constatando que nele não acontecia nada. Quase no mesmo Notas
momento, Leon Cakoff, que eu tinha tido a sorte de encontrar 1. http://media.terra.com.br/imprime/0,,OI1220750-EI7774,00.html

252
cinema atual

“Primeira vez que eu ouvi Bluesette, tinha eu dezessete,


ah foi bom, meu coração ficou feliz...”*
Reynald Halloy

E m 1992, o tocador de harmônica belga Toots Thielemans gra-


vou The Brasil Project, álbum que descobri, com alegria, quan-
do voltei para a Bélgica, após um longo périplo pelo Brasil. Este
ra, que continuam até hoje a alimentar minha inspiração. Flavio
Maciel de Souza, Arlene Rocha, Emilia Rocha, Simone Lima,
Vanderlan Marques e Paulinho da Cuíca, que voltaram comigo
encontro magnífico entre um artista belga e uma irmandade de para a Bélgica para apresentar El Retablillo de Don Cristobal, uma
músicos brasileiros se tornaria o símbolo da minha busca artística. farsa de Garcia Lorca, no Festival do Riso de Rochefort, em 1994.
Em 1992 eu acabava de completar 18 anos. O Brasil tinha co- Após algumas deambulações na Espanha, a companhia se estabe-
locado um violão nas minhas mãos e dito “vai, canarinho belga, leceu, finalmente, em Bruxelas, onde seus projetos não pararam
canta!” Eu tinha deixado Rochefort, minha cidadezinha natal bel- de se multiplicar, e de raiar pela Europa inteira.
ga de cinco mil habitantes, sem olhar para trás, para me encontrar Por minha parte, comecei a estudar cinema na École de Re-
num palco em São Paulo, no Teatro Bela Vista, onde descobriria cherche Graphique (ERG, Bélgica) e no Institut National Supé-
as bases da minha criação artística atual. rieur des Arts du Spectacle (INSAS, Bélgica), mas compreendi,
Fazia parte de uma companhia de teatro brasileira onde apren- rapidamente, que ia me sentir constrangido entre os muros de
dia, de improviso, o violão, o canto, a interpretação do ator e a ce- uma escola. Por isso, preferi fundar minha própria produtora de
nografia. Uma formidável escola! Com essa companhia aprendi a filmes e música: Grimoire asbl. Em 1996, compus minhas primei-
nadar me jogando na água, encarando a dura realidade da cultura ras canções e dirigi meus primeiros curtas-metragens, ainda muito
alternativa no meio de uma megalópole, me virando diariamente, influenciados pela cultura brasileira. “Os Fogos do Céu”, conto
sem subsídios do governo, com somente fé e coragem. pastoral, entre ficção e documentário, lançava uma ponte entre
Eu fazia fotos, e a fotografia me permitiu afrontar cara a cara os fogos de São João no Brasil e a queima das corcundas de palha,
“a dura poesia concreta” de São Paulo. Graças à imagem foto- durante o carnaval no Borinage, na Bélgica.
gráfica, tentava resolver o enigma que essa cidade me colocava: Em 1998, voltei ao Brasil com minha esposa, para fazer uma
“Decifra-me, ou devoro-te!” Percorria as ruas do Bexiga, onde fo- prospecção fotográfica e sonora dos últimos mamulengueiros do
tografava tudo o que não se parecia comigo: tudo me parecia tão Estado de Pernambuco. Viajantes sedentários, tomamos o tempo
estranho... Felizmente, já havia para mim a canção Sampa, de que nos parecia necessário para encontrar os habitantes e viver
Caetano Veloso, a minha mais completa tradução: “Alguma coi- com eles no ritmo da terra e da água estagnada. Não chovia no
sa acontece no meu coração que só quando cruza a Ipiranga com Sítio do Açude Grande fazia dois anos. No entanto, torrentes
a avenida São João...” de ondas surdas tinham-se abatido sobre as terras áridas do Nor-
Foi durante essa experiência fundadora na escola da vida que deste, trazendo o risco de afogar, pouco a pouco, as palavras de
encontrei meus irmãos e irmãs de coração, minha família brasilei- seus habitantes.

Acima, esquerda: Iniciação de meu irmão Arnaud Halloy, antropólogo, num quarto de santo de um candomblé de Recife, registrado no documentário “Iyawo” (2004),
consumido por um incêncio. Experiência inédita de “antropoesia”. Acima, direita: Reynald Halloy.

253
parte 8 – cinema e televisão

Severino na sua casa de barro: um filme de arquivo sobre os últimos representantes


de 300 anos de tradição oral em terras da cultura do açúcar. “Ondas Surdas”, 2000. Estelita e foto do Zé Mudo, cena de “Ondas Surdas”, 2000, de Reynald Halloy.

A chegada da eletricidade nesse vilarejo isolado havia, igual- Em seguida filmei um documentário do qual não me restou
mente, permitido a chegada da televisão. Zé Lopes, mamulenguei- nem um rastro. Em 2005 “Iyawo” desapareceu num incêndio,
ro em Glória do Goita, nos falava de sua dificuldade para transmi- junto com meu apartamento, em Bruxelas. Era consagrado à ini-
tir sua arte à jovem geração, que preferia os jogos televisuais aos ciação de meu irmão Arnaud, antropólogo, num candomblé de
jogos de rua. Estelita, artesã que criava flores cortando garrafas de Recife. Filmado na intimidade do culto dos orixás, esse filme teria
Coca-Cola, sonhava também em comprar esse movelzinho lumi- sido pioneiro na história do cinema etnográfico, uma experiência
noso para ocupar suas noites. Severino sonhava em construir, para inédita de “antropoesia”.
sua esposa, uma casa de tijolo com uma cozinha equipada, como O grande roteirista desse filme era Ifá, o oráculo que, através
nas telenovelas. Ele morava numa casa de taipa, feita pelas suas do jogo de búzios, autorizaria, ou não, a filmagem das sequências
mãos, com terra que tinha achado sob seus pés. rituais. Meu irmão antropólogo, seu pai de santo e eu ficamos sur-
Nossa prospecção fotográfica e sonora se tornou um documen- presos, pois o oráculo nos abria todas as portas, até a do Quarto do
tário, “Ondas Surdas”, em torno da influência devastadora das Santo, onde nenhuma câmera nunca tinha penetrado. O segredo
mídias em meio rural. Depois de ter apresentado o filme no Bilan do culto talvez não devesse ser revelado; o mistério devia, e deve,
du film ethnographique, de Jean Rouch, eu quis voltar ao vilarejo provavelmente permanecer inteiro!
para mostrá-lo aos habitantes – na sua nova televisão. Talvez tivesse O Brasil foi o berço da minha inspiração musical e cinema-
sido uma maneira de despertar o olhar crítico deles. Infelizmen- tográfica, a terra onde nasci artista, entre encanto e desencanto.
te, a aldeia tinha desaparecido. Os habitantes tinham ido viver na (Músicas, filmes e fotografias na internet: www.reynaldhalloy.be)
cidade e suas casas tinham sido engolidas novamente pela terra, (Tradução Susana Rossberg)
como se nada tivesse, jamais, existido. Sem saber, tínhamos feito
um filme de arquivo sobre os últimos representantes de 300 anos Notas
de tradição oral em terras da cultura do açúcar. * Extrato de “Bluesette” de Toots Thielemans, The Brasil Project, Private Music, 1992.

O Brasil, terra de energia e de cinema


Th i e r r y M i c h e l

O Brasil foi primeiro, nos anos 1970, na Bélgica, uma extraor-


dinária mobilização do que hoje se chama a sociedade ci-
vil, para manifestar contra uma grande feira comercial que estava
que negavam as aspirações do povo brasileiro à democracia, assim
como os direitos humanos elementares.
Conscientemente, eu participava, no início dos meus vinte
havendo em Bruxelas, e que se chamava Brazil Export. Fazíamos anos, e levado pelos entusiasmos militantes da época, destas ma-
questão, nesses tempos longínquos, no qual o fundo do ar era nifestações de solidariedade com um povo que pouco conhecia,
vermelho, de denunciar a ditadura dos generais no Brasil e as re- exceto pelo cinema e a lembrança de um dos raros filmes que fa-
lações estreitas que ela tinha com numerosos poderes ocidentais, zem com que um dia alguém decida de tornar-se cineasta: Orfeu

254
cinema atual

Cena do filme “Gosses de Rio”, de Thierry Michel.

negro, visto quando eu era adolescente, e do qual a música con- mundo, do envolvimento, no Brasil, de um jovem belga que partiu
tinuava a me trotar na cabeça. O filme falava, evidentemente, de com um ideal religioso, mas sobretudo social, e que, no Brasil, ia
amor, tendo como fundo o Rio, as favelas e o carnaval. se imergir na luta contra a ditadura, ao ponto de arriscar sua vida,
Essa grande manifestação, Brazil Export, me levou, igualmen- de ser preso, torturado, expulso. Foi um dos poucos livros que me
te, à Cinemateca de Bruxelas, onde descobri, com avidez, os fil- abalou e, num dado momento da minha carreira, eu quis fazer
mes de Glauber Rocha, Carlos Diegues, Ruy Guerra e Nelson dele uma obra de ficção cinematográfica. Me baseando nesse li-
Pereira dos Santos, todos inspirados no cinema social neorrealista vro, parti para o Brasil pela primeira vez.
italiano e na liberdade de tom da “nouvelle vague” francesa. Dois Meu desejo era preparar essa grande ficção, essa adaptação do
filmes me impressionaram particularmente: Deus e o Diabo na romance de Conrad Detrez. Mas, como se tratava de uma obra
Terra do Sol e Terra em transe. ficcional, igualmente muito autobiográfica, me pus, desde que
Foi também o que me orientou, alguns anos depois, a ler um cheguei no Rio, a buscar as pessoas reais sobre as quais o romance
escritor belga, além do mais de Liège, coroado com um prestigio- nos contava a história, a resistência, a oposição política, a coragem,
so prêmio literário, o Prêmio Renaudot, por seu livro L’herbe à a abnegação. Foi assim que pude encontrar vários companheiros e
brûler. O livro falava da Bélgica profunda, aquela que eu conhecia, camaradas de Conrad Detrez, que haviam compartilhado sua luta
aquela que fazia parte da minha identidade, a Bélgica das contes- e os sofrimentos da repressão. Foram eles que me fizeram desco-
tações políticas, aquela do conflito linguístico flamengo e valão, brir o Rio profundo, o das favelas, das prostitutas, das lutas polí-
aquela da divisão da Universidade de Louvain, na época Leuven, ticas, da emergência do que se tornaria o grande partido político
em duas universidades – enfim, o pão de cada dia deste pequeno no poder, o Partido dos Trabalhadores; mas igualmente o Brasil
país sujeito à guerras étnicas de baixa intensidade. Mas o livro fa- dos grupos de traficantes de drogas que reinavam sobre os bairros
lava, igualmente, de um envolvimento num país dito do terceiro pobres, das prostitutas organizadas em sindicatos, dos padres bra-

255
parte 8 – cinema e televisão

Cena do filme “A fleur de terre”, de Thierry Michel.

sileiros missionários no seu próprio país, no coração das zonas e


dos bairros mais violentos da cidade, das escolas de samba; e essa
cultura brasileira feita de energia, de criatividade, de solidarieda-
de profunda, sobretudo nas classes populares, do sentido da festa,
e de uma liberdade da qual compreendi melhor como ela pôde
embriagar o jovem Conrad Detrez, que tinha deixado as ordens
religiosas para afirmar sua revolta e sua homossexualidade.
Nunca fiz o filme de ficção para o qual partira ao Brasil, mas
trouxe de volta, nas minhas malas, vários projetos documentários Thierry Michel filmando “Gosses de Rio”.
que me permitiriam imergir no mais profundo da vida brasileira,
e de ser um cronista internacional dela. Fiz dois filmes: A fleur seio da igreja católica, entre os defensores da Teologia da Liber-
de terre, focado sobretudo na vida cotidiana da favela Mangueira, tação, na linha de Monsenhor Dom Hélder Câmara, arcebispo
cuja escola de samba venceu diversas vezes o desfile do carnaval. de Recife, engajado ao lado dos mais pobres, e da igreja oficial,
Trouxe, igualmente, um segundo filme, feito quase sem querer, decidida a combater, sob ordens do Papa, esses padres turbulen-
Gosses de Rio, que teve uma fabulosa carreira internacional, di- tos, socialmente engajados, que batalhavam sem dó contra a ins-
vulgado por quase 30 televisões no mundo, e que contava a vida tituição de uma igreja próxima demais do poder e das oligarquias.
de um grupo de crianças de rua do bairro da Lapa, no âmago Esses projetos, e muitos outros, nunca os realizei – assim é o
do Rio. destino. Voltando do Rio, de Salvador, de Recife, de Belém, parti
Inicialmente, filmando as crianças de rua, eu somente queria para o Congo/Zaire, onde deviam ocorrer eventos excepcionais
mostrar, no filme sobre as favelas, que também havia os excluídos devido ao fim do reinado do Marechal Presidente Fundador Guia
da miséria, os mais miseráveis dentre os pobres, essas crianças re- Supremo Mobutu Sese Seko, que ia perder o poder, e do qual eu
jeitadas dos bairros populares e das favelas para ir sobreviver, por queria filmar o tombo. Mas o ditador não caiu e fui embarcado na
seus próprios meios, nos centros das cidades. Durante a edição história tumultuosa desse país, do qual sou hoje, e há mais de vinte
percebemos que essa parte inteira da filmagem de A fleur de terre anos, uma testemunha e um cronista cinematográfico privilegiado.
poderia fazer um filme em si, porque as crianças exalavam a ver- No entanto, o Brasil permanece ancorado profundamente no
dade, a vida, o entusiasmo, a energia mas, igualmente, carregavam meu coração, meu espírito, minha cultura, minha maneira de ser,
consigo um destino trágico. de ver a vida. Revejo regularmente Israel Tavares, um dos diretores
Tive outros projetos no Brasil, seja o retrato de Joãozinho Trin- da Mangueira, emigrado na Suíça há muitos anos. O Brasil con-
ta, um dos mais prestigiosos mestres de carnaval, ou o retrato de tinua, continuará sendo um país do qual me sinto próximo, um
padres missionários brasileiros empenhados, no Pará, pela causa país e um povo cúmplice e amigo, onde espero, num dia futuro,
dos trabalhadores rurais sem-terra, expulsos pelos grandes proprie- imergir novamente, com a câmera em punho.
tários latifundiários. Também desenvolvi um retrato do conflito no (Tradução Susana Rossberg)

256
cinema atual

Mover-se com a câmera, mudar o ponto de vista


H e r o n Fe r r e i r a

F oram quase cinco anos de universidade e trabalho em em-


presas de engenharia. Não aguentava mais as integrais e as
derivadas, as máquinas e seus protocolos, as redes e seus proces-
nos documentários “Além Mar” e “Música do Brasil”, dos quais
participei como assistente de câmera e assistente de produção.
Ingresso num curso de Assistente de Direção I e II, ministrado
sos repetitivos. Queria o humano, o palpável, as histórias, as ima- pelo mestre Jorge Monclair, no Instituto Templo Glauber, em Bo-
gens invisíveis neste mundo em que me havia colocado. Percebia tafogo. No final dos estudos, escolhemos a peça de Plínio Marcos,
mais claramente que não seria esta profissão que iria exercer no “O Abajur Lilás”, e a adaptamos para o cinema. Cada aluno dirige
futuro e que Porto Alegre, Rio Grande do Sul, estava ficando duas sequências do filme de 30 minutos, com atores profissionais
pequena demais. e todo o trabalho de A até Z. Depois disso escrevo, produzo, filmo
Estamos em 1997, “águas de março fechando o verão é pro- e dirijo alguns curtas-metragens e documentários com um grande
messa de vida no teu coração”. Embalado por uma carioca que amigo e cineasta, Rodrigo Infante.
havia conhecido em um encontro de capoeira em São Paulo, jun- Minha ida à Bélgica deu-se por causa de uma amiga do Rio
to com a vontade de retornar à minha cidade natal, decido minha que fazia doutorado em Antropologia na UFF e que estava de
mudança para o Rio de Janeiro, cidade dos contrastes, minha terra, férias em Liège. A ideia era passar três meses visitando amigos
Morro do Estácio, Santa Teresa, onde aterriso depois de 18 anos. espalhados pelo continente europeu, e Liège fazia parte do ro-
Tinha cinco anos quando partimos para Porto Alegre. teiro. Depois de ter visitado Marselha, Gênova, Roma, Milão e
Trabalho como técnico em Telecomunicações na empresa Paris, decidi passar o final do meu visto em terras belgas. Bruxelas
Victory. Considerava este emprego temporário, pois estava à pro- me impressionou com suas línguas e suas cores diferentes. Fiquei
cura do que queria fazer – talvez estudar Cinema. Conversando curioso e interessado em falar melhor a língua; comecei um curso
com amigos, decido fazer um curso de vídeo no Senac, durante de francês na VUB (Universidade Livre de Bruxelas).
dois meses, todas as noites. Trabalhamos do VHS ao Betacam, edi- Em setembro de 2004, na embaixada do Brasil, descubro que
tamos em mesas de edição linear etc. O professor superaplicado existe um encontro da comunidade brasileira todas as quintas-fei-
percebe meu interesse e, ao terminar o curso, me indica para fazer ras. Fico conhecendo pouco a pouco a comunidade e os artistas
uma formação de assistente de câmera 16 mm e 35 mm, minis- residentes, entre eles Sidney Tendler, Susana Rossberg, Inêz Olu-
trado por Cesar Elias, na Fundição Progresso, no centro do Rio. dê e outros. Através desta nova rede, sou contratado para organizar
Termino dois anos mais tarde, depois de ter assistido ao curso o primeiro festival Cine Brasil, em 2005, no Cinema Aventure.
de Cinema na UFF (Universidade Federal Fluminense) como De visita ao Rio de Janeiro, no outono de 2005, juntamente
aluno ouvinte e ter seguido os cursos de assistente de câmera e de com um amigo videasta napolitano, Gigi Mette, criamos a Não
diretor de fotografia na Fundição Progresso e no Templo Glau- Tem Zoom Autoproduções, a NTZ. A ideia motriz deste coletivo
ber. Continuo trabalhando com alguns fotógrafos que conheci é estar próximo das situações mais interiores e tão perto quanto

Heron Ferreira diante do Museum of Modern Art. Cartaz de “Esse pequeno vislumbre”, de Heron Ferreira.

257
parte 8 – cinema e televisão

possível da realidade, sem a necessidade de lidar com zoom re- Cartaz de “Le meme chapeau que
toi”, de Heron Ferreira.
moto. A realidade é mais “real” quando estamos próximos dela.
Nosso primeiro filme juntos aconteceu em junho de 2006.
Gigi veio me visitar em Francorchamps, no sul da Bélgica, per-
to de Verviers, onde ocorrem as corridas de automóvel. Era um
dia ensolarado, o segundo dia do verão. Estava levantando uma
graninha extra, trabalhando como garçom. O restaurante tinha
um belo lago redondo no centro. Estava quase na hora de abrir o
serviço do jantar quando um cozinheiro me pede para ajudá-lo.
Era para preparar um esquentador de pratos, no qual um gel-com-
bustível era utilizado para manter a comida quente. Coloquei a
quantidade a olho e tentei acender e nada. O cozinheiro me disse
que era necessário colocar mais gel no copo para que o gel-com-
bustível permanecesse durante todo o jantar. Sinto um frio que
me atravessa, mas sigo suas ordens. Quando viro o galão de três
litros a flama sobe e explode no meu rosto. Só tenho o reflexo de
levantar a cabeça e de me jogar no lago. A partir de lá, muita dor, noite de embriaguez: Gigi Mette, napolitano, Heron Ferreira,
o fim do verão, e o nascimento de um filme sobre meu acidente, brasileiro, e Nikola Buric, servo-bósnio. Naquela noite nasce um
Le Même Chapeau Que Toi (2007), Prêmio Especial do Juri no curta-metragem que conta a história de um menino da Sérvia,
Festival CinEsquemaNovo 2007. na verdade a história de muitos jovens sérvios. O filme rodou o
Anoto no cartaz do filme: “Vítima da explosão de um esquen- mundo e foi premiado em 2010, em Belgrado. Após o festival, foi
tador de pratos, Heron Ferreira é queimado em segundo e tercei- guardado na videoteca nacional de Belgrado para lembrar que a
ro graus no rosto, pescoço e mãos. Para não cair no desespero e Sérvia esteve um dia fora do espaço Shengen (aderiu em 2009).
em depressão, decide filmar o que aconteceu com ele. As trocas Em fevereiro de 2009, fui convidado pela jornalista belga Ma-
de curativos e os cuidados diários, um encontro nos corredores rie-Martine Buckens para acompanhá-la na pesquisa para seu do-
do hospital e sua recuperação vão ajudar a recuperar a esperan- cumentário, Sementes, na Amazônia. Em Manaus, entrevistamos
ça e a confiança.” escritores, responsáveis ambientais, artistas e ribeirinhos. Seu fil-
O pequeno Elias e seu pai, o incentivo da doutora Anne Pier- me questiona a relação do homem com a natureza e as reservas
lot e de sua equipe, o apoio da família e o trabalho conjunto com ambientais, das quais o homem que ali vive deve se retirar para
Gigi Mette na câmera e na edição foram fundamentais na reali- preservar a natureza.
zação deste filme. No mesmo ano, em Paris, entrevistamos Franz Krajberg, que
Em setembro de 2006, ingresso na Académie de Dessin et Arts nos falou da sua fuga do ser humano, da guerra e de seu re-nasci-
Visuels de Molenbeek Saint-Jean, Bruxelas, em Videografia, onde mento quando conheceu o Brasil e a floresta. Foi emocionante.
estudo durante dois anos. O interessante desta escola é que você é Em meados de março de 2010, fui convidado pela Associação
quase forçado a ter o seu próprio projeto, a descobrir o seu olhar Vision e por ZinTV para fazer um filme sobre um grupo de jovens
sobre o mundo. O singular dentro do plural. Aprendi muito, tive de Bruxelas, de origem marroquina, que partiriam para Quebec
cursos com Thierry Zeno sobre crítica, e com Jean Timmerman para aprender teatro e improvisação. Através dessa viagem eles
sobre a importância do som. descobrem um país, uma cultura e aprendem a arte do entreteni-
Em junho de 2007 conheço Jean-Pierre e seus companhei- mento. Além da improvisação e, sobretudo, da troca, a comunica-
ros. Eles vivem em autogestão nas bordas do Canal Saint-Mar- ção entre os jovens está no centro do projeto. O filme, rodado em
tin, na décima circunscrição administrativa de Paris, desde 2006. Bruxelas, Montreal e Nova York, se chama Au Coin de Ma Rue
Exigem a garantia dos direitos fundamentais, o monitoramento (Na Esquina da Minha Rua).
da saúde em todos os acampamentos de Paris e a existência de Nosso coletivo de autoproduções audiovisuais, Não Tem Zoom,
um acampamento permanente, assim como o direito de viver de procura contar fragmentos da realidade. O desejo de experimen-
uma forma diferente. Após o encontro com Marianne Col nasce tar, aprender, participar e criar comparações tem muito a ver com
um fragmento do cotidiano deste acampamento no coração de a capacidade de mudar seu ponto de vista: o mesmo objeto, even-
Paris, Sans Doute Fous (Sem Dúvida Loucos), em 2007. Um mês to, pessoa, pode-se ver de uma maneira diferente, dependendo dos
após as filmagens eles foram despejados e nunca mais tivemos óculos que usamos e da perspectiva em que estamos. É preciso se
notícias de Jean-Pierre. aproximar ou se afastar, se inclinar ou dar alguns passos para ver
Em fevereiro de 2008, Este pequeno vislumbre dos Balcãs de- o mesmo fenômeno de maneiras diferentes e entender sua com-
corre de um projeto comum, e de um movimento composto por plexidade. Afinal, a chave é uma questão de atitude: a gente pode
muitos olhos, mãos e vozes. Tudo começa e termina nas margens se mover com a câmera, mas não adiantará nada se não se é capaz
do Danúbio, com o encontro de três estrangeiros durante uma de mudar seu ponto de vista, dentro de si.

258
cinema atual

Filmando nas aldeias Kayapó


G u s t a a f Ve r s w i j v e r

O filme Nanook of the North, de 1922, descreve a vida quoti-


diana de Nanook e de sua família Inuit, no Polo Norte cana-
dense. Apesar de algumas sequências terem sido encenadas, foi o
primeiro longa-metragem etnográfico digno desse nome. Durante
os decênios seguintes, muitos documentários magníficos e valiosos
foram feitos sobre povos do mundo. Na maioria eram documentos
isolados, produzidos por cineastas independentes.
O canal britânico Granada Television escolheu outra opção
quando, em 1970, produziu uma verdadeira série de documentá-
rios sobre sociedades tribais. Para cada episódio, um cineasta de
Disappearing World (1970-1993) trabalhava em conjunto com um
antropólogo especializado. A série conheceu um sucesso inespera-
do, de modo que a BBC resolveu lançar, igualmente, sua série, Un-
der the Sun (1989-2002), que se consistiu de mais de 80 episódios.
Graças ao sucesso das duas séries britânicas, nos anos 1980 e
1990 muitos documentários etnográficos foram difundidos, nos
melhores horários, em muitas televisões europeias e americanas. Durante o ritual kuarup, os Mehinako enfeitam o tronco que representa o Rei
Nunca antes culturas diferentes haviam obtido tanta atenção nos Leopoldo III da Bélgica, Aldeia Utawana, Parque Indígena do Xingu, Gustaaf
países ocidentais. Editoras aproveitaram essa tendência para pu- Verswijver.
blicar magníficos livros de fotografias, nos quais um povo era, a
cada vez, posto em evidência. de difícil acesso, percebia que a pesquisa antropológica não com-
Mas essa atenção foi passageira e hoje em dia documentários binava bem com filmagens.
sobre povos indígenas são mostrados raramente nas televisões eu- Durante o período de 1974 a 1981 permaneci, ao todo, 37 me-
ropeias e americanas. O papel desses povos parece servir agora ses com os Kayapó. Trabalhava numa aldeia onde uma só pessoa
sobretudo como cenário das séries ditas “de realidade”, nas quais falava um pouco de português, de modo que fui, literalmente,
brancos, de preferência totalmente despreparados, são jogados no obrigado a aprender a linguagem indígena. Foi um aprendizado
meio de uma suposta sociedade “primitiva”, e gradualmente tor- lento, mas a necessidade de comunicar continuamente me apro-
nam-se membros da tribo. ximou muito das pessoas. Os laços com uma certa família torna-
Isso não exclui, evidentemente, que ainda sejam feitos docu- ram-se mais fortes do que com as outras; depois de mais de um
mentários etnográficos esplêndidos. Muito pelo contrário, como ano de pesquisa de campo me deram alguns nomes indígenas e
se vê pelo sucesso dos festivais etnográficos internacionais organi- fui, lentamente, adotado pela família. Os direitos assim adquiridos
zados anualmente. Característico, nas produções recentes, é o fato eram, evidentemente, ligados a obrigações: esperava-se, sobretudo,
de que as populações filmadas participam ativamente da decisão uma contribuição na área econômica e ritual.
do conteúdo dos filmes. Passaram-se muitos anos antes que eu conseguisse atingir mi-
Foi na série Disappearing World que, em 1987, o primeiro do- nha ambição de filmar os Kayapó. Foi em 1989, quando mais de
cumentário sobre os índios Kayapó, do Brasil Central, viu a luz. 600 Kayapó juntaram-se na cidade de Altamira para protestar con-
Eu mesmo tinha feito uma pesquisa antropológica entre os Kayapó tra a construção de uma grande barragem na região. Com Lode
entre 1974 e 1981. Teria gostado de filmar durante essas viagens, Cafmeyer, um cineasta independente belga, produzi então The
mas era praticamente impossível, porque não dispunha dos meios Green Puzzle of Altamira, filme que foi indicado ao festival Mar-
financeiros para comprar a custosa aparelhagem e também por- garet Mead, em Nova York, em 1993.
que, naquela época, filmar não era tão fácil quanto agora. Ainda Depois ainda contribui com diversos programas de televisão,
se trabalhava com grandes câmeras, colocadas em pesados tripés, tais como o relatório da viagem aos Kayapó de Vera Dua, ministro
e o som tinha de ser gravado com outro aparelho. Era a época flamengo do Meio Ambiente, e cinco documentários de longa-
das bobinas de filme em 8 mm e 16 mm, grandes e de manejo -metragem, dos quais o foco central era sempre um ritual Kayapó
complicado. Também era extremamente difícil conservá-las em diferente. Essa escolha era consciente, porque os rituais Kayapó
circunstâncias tropicais. A época digital ainda era uma ficção, e são apresentações impressionantes, durante as quais os dançarinos
de estabilizadores de imagem, DVD ou HD, ainda não se tinha aparecem com pinturas corporais diferentes e complexas, assim
ouvido falar. Visto que eu sempre viajava sozinho nessas regiões como uma série de adornos, inclusive imponentes cocares.

259
parte 8 – cinema e televisão

Nosso patrocínio subentendia o estabelecimento de um longo


laço econômico com as comunidades que organizavam as festas,
como também com uma série de pessoas que preenchiam certos
papéis durante os rituais. Atualmente, 15 anos depois, o processo
continua em andamento, e os Kayapó ainda exigem, regularmen-
te, compensações de Martine e de mim.
Honrar crianças brancas, num ritual indígena, ocorre muito
raramente, porque significa que a sociedade indígena investe nas
crianças, dando-lhes, assim, seu próprio lugar, dentro da rede da
sociedade. Trata-se de uma avançada forma de adoção.
Desse ponto de vista, as imagens que filmamos durante as
celebrações de meus filhos são exclusivas. Mesmo assim, foram
Martine sentada ao lado de Kyra ‘Nhàktu’ e Filip ‘Bepgogoti’ durante a festa das pouco difundidas, de maneira que esses fatos passaram pratica-
‘mulheres pintadas’, Aldeia Pukanu (Kayapó), 1997, Gustaaf Verswijver. mente sem serem notados. Talvez isso esteja relacionado com a
falta de ostentação belga; nós, os belgas, somos demasiadamente
De todas as filmagens das quais participei, duas merecem modestos, e não ousamos mostrar devidamente as nossas reali-
menção especial. Trata-se do longa-metragem The Feathers from zações. Vivenciei isso novamente, em agosto de 2012, quando
the Sky (2001), que produzi com Lode Cafmeyer e a produtora os índios Mehinako, do Parque Indígena do Xingu, organizaram
ITP, de Bruxelas; e de certas sequências do programa de interesse uma homenagem muito especial para honrar a memória do Rei
humano Napels Zien (2002), da produtora Woestijnvis, no qual Leopoldo III, da Bélgica, no grande ritual chamado kuarup. O so-
se segue algumas pessoas flamengas que empreendem uma via- berano havia visitado o território em 1964 e tinha tido um papel
gem que vai mudar suas vidas. Nesses filmes igualmente destaca- importante na história daquele Parque Nacional, que mais tarde
vam-se os rituais Kayapó, mas o excepcional foi que meus filhos se tornou um ícone brasileiro, em termos de respeito às culturas
foram celebrados durante esses rituais. Atendendo a um pedido originais do país.
dos Kayapó, eu tinha dado aos meus dois filhos nomes Kayapó: Somente seis brasileiros tinham sido homenageados da mesma
para Kyra ‘Nhàktu’, e para Filip ‘Bepgogoti’. Segundo a tradição maneira pelos índios do Parque do Xingu; o Rei Leopoldo III fora
kayapó, minha esposa, Martine, e eu deveríamos organizar uma a primeira pessoa não brasileira incluída na seleta lista de brancos
cerimônia de nomeação antes das crianças atingirem a idade de, assim honrados. Quando se honra um brasileiro dessa maneira, o
mais ou menos, 12 anos. A maioria dos grandes rituais kayapó são fato é difundido, detalhadamente, na mídia nacional. No entanto,
cerimônias de nomeação que, de certa maneira, podem ser con- no caso do Rei Leopoldo III, tudo se desenrolou serenamente, sem
sideradas festas de batismo. Os Kayapó diferenciam diversas cate- jornalistas ou câmeras de televisão. Assim, o fato não foi destacado
gorias de nomes pessoais que são ligados a cerimônias específicas. e passou despercebido.
Para Martine e para mim, isto resultou que tivemos de patro- As imagens que filmamos durante as celebrações de meus fi-
cinar duas festas: a “festa das mulheres pintadas” para nossa filha lhos podem não ser conhecidas nos países ocidentais, mas elas têm
e a “festa da onça” para nosso filho. Tudo isso era orquestrado e um sucesso enorme entre os Kayapó. São os documentários que
decidido pela minha família Kayapó adotiva. eles mais assistem nas aldeias. Esse sucesso tem a ver com o fato
Cerimônias de nomeação são grandes eventos, e os diversos que ambos foram filmados em um momento no qual, segundo os
rituais ocorrem durante várias semanas, às vezes meses. Para cada Kayapó, as tradições ainda eram seguidas de maneira bastante es-
uma das duas festas me dirigi para uma aldeia Kayapó com mi- trita, justo antes de uma série de profundas mudanças. Aos olhos
nha família, durante algumas semanas, a fim de acompanhar a dos Kayapó, essas imagens são o último testemunho de “como era
celebração das crianças. Aconteceram em junho e julho de 1997 antigamente”, o que provoca certa nostalgia.
e em julho e agosto de 2002. (Tradução Susana Rossberg)

O fascínio pelo Nordeste


Nicolas Hallet

Q uando estudava na Bélgica, eu morava numa república estu-


dantil de um projeto humanitário da ONG OXFAM, organi-
zação que trabalha com os países do Sul numa relação de comér-
cio justo (fair trade) com pequenas comunidades, na Universidade
de Louvain-La-Neuve, onde estudei Geografia e Sociologia. Nessa
república estudantil havia gente do mundo inteiro. Um dia convi-

260
cinema atual

Bisavó de Nicolas Hallet, Irene de Nangy (3ª pessoa sentada da esquerda para a direita), na chegada do navio ao Brasil.

dei um amigo brasileiro, Paulinho Lupifieri, para almoçar na casa ele a riqueza chegou. Nunca se casou, era uma mulher indepen-
de meus pais, uma casa velha e bagunçada no interior da Bélgica. dente já no início do século XX.
Ele ficou impressionado com a quantidade de objetos do Brasil Voltaram para a Bélgica no final dos anos 1920. Ela transfor-
que havia lá: quadro do Pão de Açúcar, Santo Antônio de madeira, mara todos os seus bens em diamante e mandara costurar uma
boneca negra da Bahia... Esses objetos não haviam me chamado cinta para sair do país com essa fortuna clandestinamente, pois,
a atenção antes. Foi quando minha mãe esclareceu a relação da nesse período, o Brasil não permitia a saída de valores. Assim que
família com o Brasil. Minha bisavó, Augusta Leclercq, havia imi- chegou à Bélgica, comprou três casarões em Bruxelas.
grado da América do Sul em 1910. Ela nasceu em 1888 na provín- Morreu em 1942, provavelmente de um câncer, e meu avô
cia do Hainaut. Depois da adolescência mudou-se para Bruxelas, foi morar na mata para se esconder dos alemães, que recruta-
onde era modiste, fabricava chapéus e participava de um grupo de vam jovens para trabalhar nas usinas de armas durante a Segunda
teatro, La Compagnie Du Bois Sacré. Frequentava a boemia de Guerra Mundial.
Bruxelas, onde começou a cantar acompanhada de um pianista. Meu avô morreu em 1973 com muitas saudades do Brasil, sem
Numa relação com um homem da burguesia teve um filho, meu nunca ter voltado. Cheguei ao Brasil em 1997 com 26 anos, mais
avô, Jean Lebrun Leclercq. Como ele não assumiu a relação, ela ou menos a idade em que meu avô saíra do Brasil, no final da dé-
deixou a criança sob a guarda da avó materna e pegou um navio cada de 1920. Eu já tinha viajado bastante pelo Leste Europeu,
para a América Latina, somente com a roupa do corpo. Oriente Médio e África, porém nesses países nunca me senti em
No Brasil, começou uma nova vida como cantora fazendo tur- casa, a diferença cultural era muito grande.
nês de Belém do Pará a Buenos Aires, na Argentina, sob o nome Cheguei ao Rio de Janeiro e, no dia seguinte ao desembarque,
artístico de Irene De Nangy. Quando a Primeira Guerra Mundial peguei um ônibus para Salvador, Bahia, a fim de conhecer uma
começou, ela foi buscar seu filho e se instalaram no Rio de Janeiro. cidade de tamanho mais humano e talvez de tamanho mais “bel-
Lá, ela construiu o Hotel Bélgica na Rua das Laranjeiras, e com ga”. O Rio me parecia uma enorme “Paris Tropical”.

261
parte 8 – cinema e televisão

Cartaz de Irene de
Nangy, bisavó de
Nicolas Hallet.

Nicolas Hallet trabalhando no filme “O Som ao Redor”.

Dessa época saíram filmes como As três histórias da Bahia,


de Sergio Machado, José Araripe Júnior e Edyala Iglesias, em 35
mm, ou, na tendência mais experimental, Capitália, de Danillo
Barata, em 16 mm. Fui microfonista no primeiro e diretor de fo-
tografia no segundo.
Hoje a realidade no Nordeste é bem diferente, trabalhamos
O primeiro contato com o Nordeste acendeu em mim uma muito com a formação dos profissionais de cinema. Fui professor
sensação diferente. Senti-me como um imigrante de última gera- do Centro Audiovisual Norte e Nordeste – Canne –, durante anos
ção e não exatamente como um estrangeiro. Faço muitas fotos e ministrei cursos de curta duração para quem já tinha “um pé na
um dos meus grandes trabalhos de fotografia, que resultou em um área” do audiovisual. Esses cursos e a criação de editais melhora-
livro, Nordeste feito à mão, foi feito durante a filmagem de uma ram muito a qualidade dos filmes do Nordeste.
série de documentários sobre o artesanato nordestino. Rodamos O que me chamou para ficar no Nordeste foram as pessoas,
mais de 40 mil quilômetros. Nessa viagem descobri a riqueza, a essa liberdade de pensamento, apesar de uma realidade “pesada”
cultura, a música e as tradições do Nordeste. Cheguei a Salvador em comparação com a Bélgica. O filme de Damien Chemin e
num momento-chave. Era a retomada do cinema baiano, após Nicodème de Renesse, Lampião, sonho de bandido, retrata bem
dez anos sem que quase nada tivesse sido rodado. A maioria dos esse universo livre e pouco racional.
técnicos tinha ido embora para o Sudeste do país ou mudado de Com Simone Dourado, minha esposa, além de dividir a capta-
profissão. Nesse contexto, acabei me especializando em captação ção de som, como no filme de Kleber Mendonça Filho, O som ao
de som e direção de fotografia. Tinha feito, em Bruxelas, um cur- redor, melhor som no festival de Gramado, faço filmes documen-
so de cinema na Académie des Beaux Arts de Molenbeek, que me tários do tipo observacional, como o Carro de boi, melhor filme
ajudou muito. Produtores locais tinham interesse em profissionais do festival 5 Minutos de Salvador, ou o Seca Verde, melhor filme
locais, sem ter de chamar pessoas do eixo Rio–São Paulo cada vez baiano do festival Cachoeiradoc. Nesse filme acompanhamos a
que um filme era rodado. Em Salvador, nessa época, havia duas família de um pequeno agricultor, dentro do seu quotidiano, du-
tendências na produção cinematográfica: a tendência industrial, rante um mês.
criando “set de filmagem com equipe grande e uma certa hierar- Hoje estamos morando em Olinda e participando, em Recife
quia entre as pessoas”, e outra tendência, mais próxima da vídeo- e Salvador, de vários grupos de cineastas. Um belo exemplo desse
-arte ou da turma do super 8 dos anos 1980. cinema coletivo é o filme O menino do 5, de Wallace Nogueira
Rodamos muito, operei muitas câmeras 16 mm e gravadores e Marcelo Matos, melhor curta do festival de Gramado 2012, no
de som DAT. Foi um processo doloroso; nessa época não havia os qual fiz o som, a fotografia, junto com o Wallace, e a Simone fez
incentivos culturais que existem hoje, os filmes demoravam muito a direção de arte.
para ficar prontos. Em todas as áreas do cinema as pessoas estavam Trocar a Bélgica pelo Brasil, no meu caso pelo Nordeste, me
começando ou recomeçando a filmar. Estourava-se os orçamentos. fez arriscar uma aventura de vida mais livre, menos convencional,
Às vezes nem havia orçamento. A gente bancava três latas de nega- baseada na fascinação que eu tenho pelo Nordeste, que o cinema
tivos 16 mm e pronto. E a revelação? E a telecinagem? E a mixa- me possibilitou conhecer a fundo. Não consigo ficar muito tempo
gem? Tem filmes, curtas e longas-metragens, que demoraram mais nas grandes cidades, é o interior que me dá as chaves das grandes
de três anos entre o momento de serem filmados e a finalização. questões da vida.

262
televisão

A difícil e prazerosa tarefa de traduzir o Brasil para os belgas


Daniela Rocha

C ena 1: “O maior problema da Favela da Rocinha não é o


tráfico de drogas. É a falta de oportunidade”, assim uma das
moradoras da comunidade tentava explicar à equipe de TV belga
Cena 9: “É tanta água que a poluição da cidade se dilui”, bió­
loga tentando dar ideia da imensidão do Rio Amazonas, após,
diante da equipe de TV belga, coletar água do rio em Manaus
os desafios de um país cheio de desigualdade, como é o Brasil. para análise.
Cena 2: “Nosso momento é agora. Faremos deste país campeão Cena 10: “Vamos tratar do populismo no Brasil”, proposta
na Rio 2016”, explicou à mesma equipe o presidente da Confede- inicial da equipe belga para tentar explicar a política do então
ração Nacional de Natação, um dos esportes em que o Brasil tem presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus projetos sociais. De-
tradição de medalha olímpica (para além do “futebol-indústria” e pois de esclarecido, o termo “populismo” foi trocado por “gover-
do judô, nos quais o Brasil é celeiro de bons atletas). no popular”.
Cena 3: “Avisa ele que pupunha crua é veneno”, pediu o fei- Todas as cenas acima aconteceram nos bastidores das filma-
rante do tradicional mercado popular Ver o Peso, em Belém, no gens da série de documentários Brazilië voor Beginners, levada ao
Pará, ao ver o chef de cuisine belga levar à boca essa fruta típica ar pelos canais belgas flamengos TV Canvas (2010) e Eén (2011).
da região, normalmente consumida após cozida em água e sal e A ideia de revelar o Brasil para o público belga integrou um
apreciada sem casca, acompanhada de um cafezinho. projeto dedicado aos países do Bric. Depois de China voor Begin-
Cena 4: “O que me surpreende é o otimismo do povo mesmo ners e India voor Beginners, foi a vez do Brasil, seguido da Rússia.
diante dos problemas”, do presidente da Unizo, organização para O formato consistia em ter uma apresentadora que ajudasse um
pequenas e médias empresas na Bélgica, ao conhecer algumas ex- especialista belga flamengo a compreender o país. Eu fui a jor-
periências brasileiras na área de tecnologia e empreendedorismo. nalista escolhida para apresentar o Brasil aos “experts” belgas que
Cena 5: “Vou comentar sobre o politeísmo no Brasil”, tentativa viajaram a uma determinada capital para conhecer o tema da sua
belga de compreender o sincretismo religioso no país, felizmente especialidade no Brasil e, evidentemente, para travar contato com
esclarecido antes da TV filmar o comentário. uma realidade distinta da belga flamenga.
Cena 6: “Isto é uma loucura”, comentário de um artista plásti- Foram quatro meses de filmagem que me permitiram ir a re-
co belga ao visitar o Instituto Cultural Inhotim, em Brumadinho, cantos onde nunca havia chegado. E, se até para brasileiro é difícil
Minas Gerais, local que reúne em suas instalações e em seu jar- entender o Brasil com sua diversidade e suas contradições, para
dim botânico obras dos mais renomados artistas contemporâneos alguns estrangeiros isso se torna, a curto prazo, quase impossível.
do mundo. Pois até o roteiro da série às vezes metia os pés pelas mãos... Uma
Cena 7: “Menina, cê tá de parabéns! Nunca ninguém traduziu das pérolas estava logo no primeiro script, que explicava que os
tão bem o que eu falo!”, do cantor e compositor brasileiro Tom Zé, militares da ditadura só saíram do poder em troca de latifúndios,
a quem aqui vos escreve, durante entrevista para a equipe de TV e sugeria que esses coronéis até hoje determinam os rumos polí-
belga que tentava em vão entender suas complexas explicações ticos do país... Poderia até ser verdade se a ditadura militar não
sobre a Tropicália, importante movimento artístico brasileiro ini- tivesse acontecido entre 1964 e 1985, e os chamados coronéis de
ciado em 1967, do qual foi um dos idealizadores. engenho do Nordeste, vivido no Brasil Colônia, período áureo de
Cena 8: “Ah, eu adoro ter um marido machão”, frase repetida à exportação de açúcar, entre os séculos 16 e 17.
exaustão à equipe de TV belga que buscava entender o fenômeno Apesar do esforço, nem sempre os episódios da série se revela-
(ultrapassado) do latin lover, sem perceber que a mulher brasilei- ram verdadeiramente esclarecedores ao público espectador. País
ra ganha autonomia, e que um homem machão não é o mesmo dos contrastes, o Brasil naturalmente desperta sentimentos múlti-
que um machista. plos a seu respeito... Entre reportagens e resenhas publicadas na

263
parte 8 – cinema e televisão

época da série de TV, tomei de forma aleatória dois exemplos. um pedido do diretor do presídio de Bangu I para que não filmás-
Enquanto uma revista (Uit Magazine) anunciava na capa Brazilië semos os presos nas celas (para garantir o direito à privacidade
is Hot, que remetia a um dossiê de 12 páginas com reportagens deles). Mesmo assim, eles foram filmados, e seus rostos, exibidos,
sobre o país, uma das resenhas críticas sobre a série foi publica- sem que isso trouxesse problemas posteriores.
da pelo site Humo.be com o sugestivo título de Cartões Postais Pensei com meus botões: em que país do mundo uma equipe
do Inferno (Ansichtkaarten uit de hel). Compreensível, uma vez de TV estrangeira ousaria pedir à polícia aérea para acompanhar
que o primeiro episódio a ser levado ao ar teve como tema a seus voos em helicóptero por tempo ilimitado, além de realizar em
criminalidade no Rio de Janeiro, com imagens (de arquivo) de inglês entrevistas em terra e em ar, respondendo questões que iam
tiroteio nas favelas, e entrevistas com policiais, criminalistas e da criminalidade das ruas à corrupção nas corporações da polícia...
educadores que vivem uma realidade de grande violência física Os policiais do GAM (Grupamento Aéro-Marítimo) do Rio de
e psicológica... Janeiro fizeram tudo isso e chegaram a emprestar seus uniformes
Chegaram a me explicar que para que o público belga enten- oficiais para uso da equipe a ser filmada e do diretor.
desse a situação no Rio de Janeiro eu deveria compará-lo à Faixa Essa abertura, essa sinceridade, esse gosto pela exposição,
de Gaza... Eu acreditava que essa comparação mais confundia típicos do Brasil, foram registrados, mas nem sempre bem apro-
que esclarecia (porque os conflitos urbanos do Rio de Janeiro não veitadas na edição final na TV... Porque, para muito além da
têm natureza de guerra civil); felizmente essa frase foi descartada. criminalidade, que foi o tema mais controverso da série, o meio
Depois desse tema, os outros foram bem mais amenos e mos- ambiente, a religião, a política, o empreendedorismo, a gastro-
travam um Brasil que, apesar das adversidades, esbanjava criativi- nomia, o esporte, a sexualidade, a música e as artes do Brasil se
dade e bom humor, tanto nos negócios e empreendimentos das revelavam um campo imenso a ser explorado e mostrado, com
mais variadas naturezas, como na liberdade de culto do chama- seus personagens que aos olhos belgas pareciam tão estranhos
do maior país católico (“não praticante”) do mundo, ou na sua que logo se tornavam simpáticos.
culinária amazônica de peixes e temperos locais, contrastado ao No episódio sobre a sexualidade, houve espanto em ver que
universo musical que derruba fronteiras, ou no ajuste da relação homens e mulheres falam sobre sua intimidade com tamanha
entre homens e mulheres em uma sociedade que já foi patriarcal. desinibição... Ali, perdeu-se a oportunidade de mostrar como a
Convidada a escrever um livro com o mesmo título e os mes- sociedade brasileira vive um tuning point, com mulheres que con-
mos temas da série, vi nele a oportunidade de revelar várias situa­ quistaram autonomia financeira e sexual, definindo parceiros, nú-
ções, inclusive cômicas, que vivi nesse rico convívio de diálogo mero de filhos e quando tê-los. Em paralelo, o homem, que antes
entre Brasil e Bélgica. Tive como meta dar a minha visão de bra- era o provedor, tenta se reposicionar e aprender um novo papel
sileira sobre o meu país e publicar entrevistas que realizei mesmo que, entretanto, não está claro para ele.
quando as câmeras estavam desligadas e que renderam momentos Em empreendedorismo, o espanto ocorre porque, aos olhos
emocionantes. Um deles foi a conversa que tive com um biólogo belgas, seria impensável iniciar um negócio com quase nada de
do Ibama de Manaus sobre a trágica morte de um filhote de peixe recurso financeiro. E o Brasil mostra que muitas das experiências
boi que atrapalhava o abate de sua mãe durante a temporada de que começam precárias conseguem apoio para corrigir seus pro-
pesca desse grande mamífero de água doce, tradição no Amazonas dutos e ingressam no mercado com excelente retorno a médio
que colocou a espécie em risco de extinção. Outro, foi a história de prazo. A cultura de arregaçar as mangas e ir à luta, aceitando os
um caçador de macacos que agradeceu por ser preso e confessou riscos, surpreendeu os belgas. Por outro lado, o jeitinho brasileiro
que tinha pesadelos com os gritos das fêmeas e filhotes ao verem de improvisar ou de pensar que no final tudo vai dar certo prova
os machos mortos a tiros cairem das árvores e serem recolhidos que o país precisa aprender que planejamento e pesquisa urgem
das águas do Rio Amazonas. Ou ainda minha conversa com uma em fazer parte da rotina de quem quer entrar em um mercado
família do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra em cada vez mais competitivo.
Rezende (RJ), e me surpreender com o nível de participação e de A percepção da música brasileira na série, tema filmado em
destemor das crianças, politizadas desde o berço, na busca pela São Paulo, optou por mostrar uma música de raiz, do folclore, um
reforma agrária. Outro ainda foi minha curiosidade para enten- pouco do samba, do jazz, do hip-hop, do rock e da MPB, que re-
der a realidade da violência urbana no Rio de Janeiro e de poder velou um belo recorte no caldeirão de sons e ritmos paulistas. Na
confessar o meu medo em entrar à noite com a equipe de TV em gastronomia, a opção foi registrar a fantástica culinária amazônica,
uma das maiores favelas da cidade para realizar uma entrevista conhecida principalmente por quem é da região, já que demanda
com um ex-traficante e ex-usuário de crack. Existem territórios ingredientes locais e peixes frescos encontrados apenas ali.
onde a licença para entrar não significa garantia de segurança. Mas Minha pesquisa sobre a comida amazônica foi intensa, já que
felizmente, no momento em que chegamos, fomos “recepciona- eu mesma, nascida no Estado de São Paulo, pouco conhecia dos
dos” por uma chuva torrencial e não havia vivalma nas ruelas da sabores amazônicos. Tive dificuldade em decorar tantos nomes de
Rocinha, quase às dez horas da noite. origem indígena das frutas, ervas, temperos e pratos típicos, e mais
Durante as filmagens, em nenhum momento houve censura ainda em descrever o sabor e o preparo deles, já que até o açaí de
ou restrição imposta à equipe belga. O máximo que ocorreu foi polpa congelada servido com guaraná em todo o Brasil não tinha

264
televisão

nada a ver com o creme do açaí fresco consumido na região com De repente, notei nos belgas que eles mesmos deixaram os
farinha de mandioca. estereótipos sobre o Brasil de lado (o carnaval, o futebol e a cai-
A série de TV e o livro Brazilië voor Beginners não satisfizeram pirinha eram meras alegorias, e deixaram de ser o main issue que
por completo a curiosidade dos belgas para entender o país. Ao traduziu durante tantos anos o Brasil). Sem negá-los, busquei con-
longo do ano de 2011, fui chamada a fazer dezenas de palestras, tar da minha experiência, assumindo as precariedades, mas sem
em português, inglês e francês, para belgas em Antuérpia, Gand, ocultar o orgulho que tenho das conquistas do país.
Bruges, Oostende, Aalst e Bruxelas. Alguns já haviam visitado o Um dos comentários que mais me chamou atenção foi de um
Brasil ou tinham familiares por lá. Outros, pouco sabiam, mas que- dos participantes em Bruges. “Pensava que você não tinha muita
riam entender que tipo de fenômeno é esse, de um país que, em coisa a dizer. Mas quando você fala, parece que a gente encontra,
algumas décadas, deixa de ser considerado de terceiro mundo e enxerga e sente o Brasil.”
passa a figurar entre as oito maiores economias do planeta (e ganha
status e poder nas mesas de negociação), um país que inicia um Daniela Rocha é jornalista, autora do livro Brazilië voor Beginners
caminho por maior inclusão social, um país que possui um estra- (Witsand Uitgevers) e apresentadora da série de TV de mesmo título
tégico mercado consumidor, um país que é percebido como amea­ exibida pela TV Canvas em 2010.
ça aos outros quando o tema é agrobusiness ou biocombustível.

265
parte 8 – cinema e televisão

266
pintura e escultura

parte 9

Artes Plásticas

267
parte 9 – artes plásticas

268
pintura e escultura

Rastros flamengos no Barroco mineiro


A l e x Fe r n a n d e s B o h r e r

A s gravuras tiveram papel preponderante na arte colonial bra-


sileira. Era comum os artistas locais se apropriarem de ilus-
trações europeias, usando-as como fonte de inspiração e padroni-
colônia, tratava-se de impressos vindos de outras partes do mundo
(e não somente de Portugal). Nos arquivos paroquiais mineiros
localizei centenas de impressos ilustrados remanescentes, todos
zação iconográfica. Já que as tipografias eram proibidas no Brasil europeus. Tudo leva a crer que, durante o século XVIII e ainda

“Santa Ceia”, de Manoel da Costa Ataíde, Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto, MG.

269
parte 9 – artes plásticas

no XIX, esse número deva ter ascendido a dezenas de milhares, o


que bem demonstraria a magnitude do comércio livreiro entre o
Velho e o Novo Mundo.
Os livros ilustrados, cujos mais belos exemplares saíam dos
prelos de Antuérpia, especialmente da Tipografia Plantiniana,
popularizaram e intercambiaram, pela primeira vez na história,
imagens feitas em série. Das tipografias, os livros eram enviados
aos quatro continentes. No mundo luso-brasileiro, suas belas ilus-
trações serviram de modelos iconográficos a artistas locais, ainda
mais por serem cópias de obras de grandes mestres. Dessa manei-
ra, as pinturas de vários artistas de Minas Gerais têm muita seme-
lhança formal com determinadas criações europeias. É possível ver
influências tão diferentes como Rafael (1483-1520) ou Abraham
Bloemaerte (1566-1651). Todavia, aquele que mais influenciou
os pintores mineiros foi Rubens (1577-1640), cuja obra teve mui-
tas versões impressas e inspirou, por sua vez, toda uma geração
de gravadores.
No antigo Colégio do Caraça, localizado no Quadrilátero Fer-
rífero, zona de intensa exploração aurífera na antiga capitania de
Minas Gerais, encontra-se hoje, nos corredores neogóticos da igre-
ja local, uma interessante ‘Santa Ceia’ do aclamado pintor Manuel
da Costa Ataíde (1762-1830), concebida nos últimos anos de sua
vida. O colorido, a musculatura e o planejamento são típicos de
Ataíde, mas, no cerne desta sua criação, está, sem dúvida, o uso
de uma ou mais gravuras europeias.
Por volta de 1630, Rubens concebeu algumas ‘santas ceias’,
todas formalmente aparentadas entre si, com poucas variações.
O principal exemplar é o que se conserva na Pinacoteca di Brera,
em Milão, que em muito lembra a citada pintura mineira: o con-
junto equitativo dos apóstolos em torno da mesa; o Cristo, com
olhar piedoso voltado aos céus; o ato de abençoar os pães; o olhar
indagador de Judas à direita (mesma posição dos outros estudos de “Santa Ceia”, de Silva F., gravura de Missal lisboeta, inspirada em Missal de
Rubens e da ‘ceia’ de Ataíde). Em suma: mesmo com diferenças Plantin, na Paróquia Senhora do Pilar.
formais e pictóricas (penumbrismo de Rubens X colorido vivaz
de Ataíde), podemos dizer que há um elo entre as concepções do como a do próprio Colégio do Caraça, tida como das mais impor-
mestre europeu e o pintor mineiro. tantes do Brasil por conter obras de acentuado valor histórico e ar-
Certamente Ataíde não viu pessoalmente qualquer obra de tístico, algumas delas, inclusive, incunábulos ainda do século XV.1
Rubens, mas pelas gravuras pôde ter ideia precisa do que havia sido
produzido na Europa, por este e por outros artistas, contemporâne- Alex Fernandes Bohrer, Mestre e Doutorando em História pela Uni-
os ou não do próprio Ataíde. Prova disso está em outra ‘santa ceia’ versidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com estudo sobre a in-
concebida pelo mestre mineiro: na ilharga da capela-mor da Igre- fluência das gravuras europeias na pintura mineira, prepara um dou-
ja de São Francisco de Assis de Ouro Preto o pintor representou torado sobre a talha barroca em Minas Gerais. É professor efetivo do
novamente a última refeição de Cristo, esta nitidamente ligada a Instituto Federal de Minas Gerais e, como historiador da Prefeitura
uma gravura de missal feita na Tipografia Régia, em Lisboa, e cir- Municipal de Ouro Preto, publicou sobre o patrimônio desta cidade.
culante em Minas nos últimos anos do século XVIII e inícios do
XIX, justamente a época em que Ataíde produziu as obras citadas Notas
aqui. É evidente nessa gravura lisboeta a influência do desenho 1. Para mais informações sobre os aspectos esboçados aqui ver Bohrer, Alex Fernandes.
rubensiano, típico das gravuras de Plantin. “Os Missais de Plantin e Outras Reminiscências Flamengas no Barroco Mineiro”. In:
Cabe frisar que, além dos missais dos arquivos paroquiais, Ataí- Thomas, Werner e Stols, Eddy (org.). Un Mundo Sobre Papel. Libros y Grabados Fla-
mengos em El Império Hispanoportuguês (siglos XVI-XVIII). Antuérpia: Acco, 2009,
de também dispunha de algumas bibliotecas ricamente ilustradas, pp. 261 a 279.

270
pintura e escultura

Pedro Américo de Figueiredo e Mello:


conexão Ciência & Brasil & Bélgica
Madalena Zaccara

“Observar é procurar ver nos fatos tudo o que eles nos podem oferecer onde se inscreveu na Faculdade de Ciências da Universidade de
deles mesmos, sob todos os ângulos e em todos os seus detalhes.”1 Bruxelas.
Entretanto, um intervalo de tempo e trabalho se fez necessá-

N a pequena cidade brasileira chamada Areia, perdida nas serras


do brejo paraibano, nasceu Pedro Américo de Figueiredo e
Mello em 29 de abril de 1843. Filho de Daniel Eduardo de Fi-
rio antes de prosseguir seus estudos científicos naquele país. Em
1862, ele terminou os três anos de estudos em Paris aos quais tinha
direito enquanto pensionista do imperador. Pedro II, porém, não
gueiredo (pequeno comerciante que gostava de tocar violão para prorrogou seu prazo na Europa. Ordenou-lhe o retorno ao Brasil.
seu lazer) e de Feliciana Cirne de Figueiredo, ele era membro de Era necessário que ele concorresse ao cargo de professor de De-
uma família com uma inclinação especial para as artes, que, por senho Figurado na Academia Imperial de Belas Artes do Rio de
sua vez, o gerou: um dos mais conhecidos artistas brasileiros e um Janeiro. Ele se submeteu e comunicou a seu protetor que partiria
homem que se notabilizou também por sua busca incessante do para o Rio de Janeiro em 25 de agosto de 1864 obedecendo às
conhecimento em todas as suas vertentes. Américo manifestou ce- ordens imperiais.
do sua vocação artística. Seus primeiros desenhos, nas paredes da Volta ao país, presta exames, é aprovado e consegue uma nova
loja de seu pai, impressionavam seus frequentadores. Uma crian- licença. Agora sem vencimentos. Por sua conta e risco. Viajou, en-
ça especial nascida no interior profundo do Brasil do século XIX. tão, durante algum tempo, por uma grande parte da Europa. Para
Sua curiosidade em relação a outros campos do conhecimen- sua sobrevivência pesquisava por encomenda, fazia ilustrações para
to também se manifestou cedo em sua vida. O naturalista francês teses, pequenos retratos, retoques em fotografia. Enfim, qualquer
Louis Jacques Brunet chegou a Areia em 1852 à frente de uma trabalho que lhe proporcionasse algum rendimento financeiro.
expedição científica que fazia pesquisas na região para o Museu Sempre dividido entre arte e ciência, Américo chegou a Bruxe-
Nacional. A cidade mostrou então ao estrangeiro sua principal las com o objetivo de completar seus estudos. Em 1867, ele foi ad-
atração: a criança. Tanto o naturalista quanto o desenhista da ex- mitido no doutorado da Universidade de Bruxelas para o período
pedição (o alemão Bindseil) se entusiasmaram com aquele talento escolar de 1867-1868. Durante seus estudos passou pelas mesmas
natural e propuseram levá-lo como membro da equipe. Os anos dificuldades financeiras sofridas em suas andanças. Finalmente,
que passou na companhia daqueles pesquisadores nos sertões do em 22 de julho de 1868 recebeu pela Universidade de Bruxelas o
Nordeste brasileiro marcaram a criança e o futuro cientista. Bru- diploma de doutor em Ciências Naturais.
net o recomendou, após a expedição, ao presidente da província Após este fato ele se dedicou cada vez mais aos estudos. Ansia-
da Paraíba, Sá e Albuquerque, e Américo, ainda criança, partiu va obter o grau de professor doutor adjunto da Universidade Livre
– subvencionado pelo governo brasileiro – para a capital do País, de Bruxelas. Para tanto, defendeu em 13 de janeiro de 1869 a tese
o Rio de Janeiro, aonde chegou em dezembro de 1854. Ele ins- intitulada A Ciência e os Sistemas; questões de História e de Filoso-
creveu-se na Academia Imperial de Belas Artes em 1855 onde fia Natural. Obteve um ótimo conceito para o cargo pretendido.
estudou até seus 15 anos quando se sentiu pronto para ir estudar, O trabalho em questão foi publicado em 1869 em Bruxelas e foi
como era de praxe, na Europa. dedicado a Pedro II, imperador do Brasil.
O Imperador Pedro II lhe concedeu uma bolsa de estudos e Na Bélgica, Américo pretendia o reconhecimento científico
Américo partiu para Paris em 1859. Tinha 16 anos de idade. Na que acreditava não obter de seus compatriotas. Afinal, como afirma
bagagem ia uma carta de seu antigo professor, Manuel de Araújo na introdução de sua tese, “a situação moral e intelectual da Euro-
Porto Alegre, para Victor Meirelles de Lima que, na época, era pa difere bastante da nossa”.2 Sua necessidade de ampliação do sa-
bolsista da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro e ber e a necessidade de reconhecimento deste o deixava sem diálogo
estudava em Paris. em seu país natal. A necessidade de expansão de horizontes aliada
Pedro Américo se inscreveu na Ecole des Beaux Arts em 6 ao colonialismo cultural europeu marcante em seu século o fazia
de outubro de 1859. Um ano depois de sua chegada, se inscre- orgulhar-se de ter conseguido obter esse reconhecimento de uma
veu também no curso noturno da Escola Imperial e Especial de universidade europeia. Suas conquistas, entretanto, não escaparam
Desenho e Matemática, Arquitetura e Escultura de Ornamentos da inveja e da maledicência de seus contemporâneos brasileiros.
para as Belas Artes na Indústria e, em 1861, se inscreveu no curso Para ilustrar o impacto que suas conquistas científicas na Uni-
preparatório para o Baccalauréat ès Sciences no Instituto Ganot. versidade de Bruxelas geraram – principalmente após suas expo-
O ecletismo de suas aspirações o acompanhou durante toda sua sições europeias – no meio intelectual brasileiro dentre as vitórias
vida e foi responsável por sua futura estadia na Bélgica, em 1862, atribuídas ao pintor, na polêmica midiática de 1879, que eram con-

271
parte 9 – artes plásticas

sideradas duvidosas, uma das mais discutidas foi o diploma obtido conhecimento em seus mais diversos campos o fascinava e mo-
na Universidade de Bruxelas. Américo, orgulhoso de sua qualidade via. No contexto do Brasil do século XIX o aprendizado artístico
de doutor (posteriormente ele chegou a assinar alguns quadros co- e científico na Europa referencial foi vital para sua trajetória. A
mo Dr. Pedro Américo), escreveu ao diretor da universidade belga, Bélgica, por sua vez, foi fundamental para sua formação científica
G. Tiberghien, relatando as acusações que ele (e o seu diploma) bem pouco estudada em relação ao seu desempenho artístico co-
sofria. O diretor lamenta o fato em carta datada de 30 de setembro mo pintor do Império brasileiro. Para concluir esta breve análise
de 1870. O próprio governador da província do Rio de Janeiro, João tomo emprestado suas próprias palavras como explicação daquele
Ramos Queirós, resolveu tomar parte nesta polêmica e escreveu momento: “Transporte-se pois pelo pensamento através do espaço
a João Couto dos Santos, que habitava então em Bruxelas (prova- e do tempo e julgue estas páginas do ponto de vista que eu mesmo
velmente membro da diplomacia brasileira), pedindo informações me situei para escrevê-las”.4
sobre Pedro Américo e seu amigo Daniel Pedro Ferro Cardoso.
A resposta caracteriza bem a desconfiança que reinava no Bra- Madalena Zaccara é Doutora em História da Arte pela Université
sil e que gerou as perguntas feitas pelo governador. De fato, era Toulouse II, França, Professor Associado do Departamento de Teoria
quase como se o artista tivesse que apresentar um álibi. João Cou- da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernambuco,
to, porém, confirmou as conquistas acadêmicas de Pedro Américo, Coordenadora do Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Vi-
objeto de tanta controvérsia. Diz Couto: suais UFPE-UFPB, autora de vários livros e artigos inclusive um sobre
O Sr. Dr. Pedro Américo de Figueiredo não só obteve os primei- Pedro Américo intitulado Pedro Américo de Figueiredo e Mello: um
ros lugares entre os companheiros como ainda não contente com artista brasileiro do século XIX, baseado em sua tese de doutorado.
tantas distinções que obteve ainda quis defender uma these para
obter o titulo de Doutor agregado, o que fez sendo elogiado por um Notas
júri de nove membros e todos notáveis (...) pela mesma ocasião ob- 1. Mello, Pedro Américo de Figueiredo. A Ciência e os sistemas: questões de história e
teve o titulo de lente agregado da Universidade. Distinção essa que filosofia natural. João Pessoa: Editora Universitária, 1999, p.11.
é muito rara, que não só elle deve estar orgulhoso como nosso país 2. Mello, Pedro Américo de Figueiredo, op. cit., p. 6.
3. Zaccara, Madalena. Pedro Américo de Figueiredo e Mello: um artista brasileiro do
que orgulha-se de o possuir por filho.3 (...) século XIX. Recife: Editora da Universidade Federal de Pernambuco, 2011, p. 77.
Pedro Américo foi um homem à maneira da Renascença. O 4. Mello, Pedro Américo de Figueiredo, op. cit., p. 4.

Benjamin Mary (1792-1846)


Va l é r i a P i c c o l i

N ascido em Mons, cidade da região da Valônia, Bélgica, Mary


passou a infância em Enghien, onde seu tio materno, Joseph
Parmentier, botânico de renome, era responsável pelos jardins dos
em Namur como representante dos interesses financeiros do Du-
que de Arenberg. Desse período datam suas primeiras experiências
com a recém-criada técnica da litografia.
duques de Arenberg. Atribui-se a essa proximidade com Parmen- O método de impressão litográfica, que havia sido inventado
tier o interesse precoce de Mary pela botânica, o que se manifesta e patenteado pelo alemão Alois Senefelder (1771-1834) nos pri-
visualmente em muitos de seus desenhos. Prosseguiu seus estudos meiros anos do século XIX, ganhava então notoriedade na Euro-
em Bruxelas, cursando Direito, e, a partir de 1818, passou a residir pa, em grande parte graças ao trabalho de difusão levado a cabo

“Panorama do Rio de Janeiro”, de Benjamin Mary, c. 1835 / Aquarela, grafite e nanquim sobre papel, 30,3 x 312,4 cm.

272
pintura e escultura

por seu inventor. Alois e seu irmão Karl Senefelder viajaram por nhos, nos quais constam índices manuscritos que acompanham
diversos países europeus formando grupos de alunos de litografia a numeração das folhas. Exceção é o grande panorama do Rio de
e é certo que Mary tenha frequentado o grupo belga, reunido no Janeiro tomado do alto de Santa Teresa, pertencente à Pinacoteca
Musée Central de Minéralogie em Bruxelas. do Estado de São Paulo. Ainda que seja obra avulsa, foi adquiri-
São conhecidos dois exercícios de litografia de sua autoria, da juntamente com seu portfólio, cuja capa traz a gravação em
com inscrições que indicam terem sido realizados nas aulas de dourado “Benjamin Mary. Souvenirs du Bresil I”. Sobressaem, no
Karl Senefelder. Além disso, gravuras feitas a partir de desenhos primeiro plano da composição, várias espécies da flora brasileira,
de Mary ilustram o livro Voyage pittoresque dans le royaume des nativas ou aclimatadas. Podem ser identificados o mamoeiro, a
Pays-Bas de autoria de Jean-Baptiste de Cloet, publicado em Bru- araucária e a jaqueira, assim como vegetação de pequeno por-
xelas entre 1822 e 1830, o que atesta uma já consolidada expe­ te, como cipós, filodendros e outras trepadeiras, e uma grande
riência na prática do desenho. Como complemento indispensável variedade de bromélias. Através desta profusão vegetal, a cidade
de uma educação humanista, Mary empreende viagem à Itália pode ser vislumbrada ao fundo: à esquerda o convento de Santa
em 1823, onde teve aulas com o pintor francês François-Marius Teresa, a cidade baixa, a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar.
Granet (1775-1849), discípulo de Jacques Louis David. A aquarela foi executada em sete folhas separadas, coladas poste-
Ao eclodir a revolução de 1830, que culminou no surgimento riormente pelo artista. Cada uma delas tem tratamento e níveis
do Reino da Bélgica, Mary opta pela carreira no exterior como de acabamento diferenciados, o que confere ao conjunto certo
diplomata. Foi nomeado Encarregado de Negócios no Brasil em aspecto de modernidade.
1832 e sua chegada ao Rio de Janeiro dois anos depois marca a Dentre os álbuns conhecidos de aguadas de autoria de Mary,
abertura do primeiro posto diplomático do Reino da Bélgica na merece destaque aquele adquirido na década de 1970 pelo casal
América Latina. Sua principal incumbência nessa função era ne- Pimenta Camargo, de São Paulo. Contém 63 aguadas represen-
gociar um Tratado de Comércio e Navegação entre os dois países, tando, além de vistas do Rio de Janeiro, raros registros da viagem
celebrado cerca de seis meses depois de sua chegada. Por esta con- que Mary empreendeu pelo litoral paulista. Destacam-se vistas
quista, Mary foi condecorado com a Ordem do Cruzeiro do Sul, panorâmicas tomadas do mar em direção à costa que ocupam
pelo lado brasileiro, e pela Ordem de Leopold, pelo governo belga. folhas duplas do caderno. A paisagem, assunto por excelência da
Nos quatro anos em que viveu no Rio de Janeiro, Mary fixou produção brasileira de Mary, surge como manchas de cor, como
residência no Catete, bairro que se urbanizava pouco a pouco, po- registro sensível de tonalidades. Se há um desejo de definir o ca-
voado por chácaras de cultivo de verduras e casas de campo. Era ráter geral da paisagem, este se realiza por meio da sensação da
a região em que se instalariam muitos estrangeiros, como o minis- espacialidade e das intensidades luminosas.
tro inglês William Gore Ouseley (1797-1866), cuja residência se Esse conjunto de memórias visuais de viagem marcam a per-
pode distinguir em vários desenhos de Mary, e Karl Wilhelm von feita sintonia de Mary com o perfil do naturalista diletante do
Theremin (1784-1852), cônsul da Prússia no Rio de Janeiro. Este, século XIX para o qual, de acordo com o ideário defendido por
um ativo homem de negócios que atuara em Lovaina e Antuér- Alexander von Humboldt (1769-1859), a sensação diante do mun-
pia, era possivelmente já conhecido de Mary. Ambos, assim como do natural é tão fundamental para a compreensão científica da
Mary, são autores de importantes registros iconográficos do Rio natureza quanto o são a observação e a análise racional.
de Janeiro à época da Regência. Curiosamente, não se constata Outro álbum a mencionar seria o pertencente à coleção Pau-
nenhum relacionamento de Mary com o meio artístico brasilei- lo Geyer, hoje parte do acervo do Museu Imperial de Petrópo-
ro, capitaneado, àquela altura, pela Academia Imperial de Belas lis, que traz na capa o monograma de Louis Philippe d’Orléans
Artes, cujo diretor era o francês Félix-Emile Taunay (1795-1881). (1773-1850), rei dos franceses. Desenhos esparsos comparecem
A obra de Mary que se conserva em coleções brasileiras está em álbum de memórias pessoais de D. Francisca de Bragança
concentrada predominantemente em pequenos álbuns de dese- (1824-1898), depois princesa de Joinville.

273
parte 9 – artes plásticas

Contudo, a contribuição mais significativa de Mary para a os pontos de vista mais convencionais no registro da paisagem.
divulgação da iconografia brasileira seria, sem dúvida, sua parti- Após o período brasileiro, a carreira diplomática de Benjamin
cipação na audaciosa obra do botânico bávaro Carl von Martius Mary o levaria para o Oriente Médio. De seu posto em Atenas,
(1794-1868), a Flora Brasiliensis. Ilustrada com 3.811 gravuras onde permanece por cinco anos entre 1839 e 1844, empreende
agrupadas em 130 fascículos, a publicação surgiu em Munique diversas viagens, entre as quais a Constantinopla, Smyrna, Bursa,
entre 1840 e 1906 e resulta de uma vida toda dedicada a estudar Beirute, Chipre e Egito. Todas elas devidamente registradas em
e sistematizar o material coletado em três anos de viagem pelo uma profusão de desenhos. O artista parece ter desenvolvido ali
território brasileiro. Dentre as 59 pranchas que ilustram o primei- um olhar mais atento aos tipos humanos, às cenas urbanas, assim
ro volume da Flora Brasiliensis, 14 são assinadas por Benjamin como aos retratos de personagens com os quais se relacionava.
Mary. Não foi possível apurar com precisão em que condições São notáveis ainda as caricaturas que realiza com destreza e
Martius e Mary teriam se conhecido. O mais provável é que tenha humor de anônimos e músicos que observa, por exemplo, em apre-
sido por meio de Adolphe Quetelet (1806-1874), matemático e sentações teatrais. No entanto, ele nunca descuidaria do registro
astrônomo, fundador do Observatório Real de Bruxelas. Mary se da paisagem, assunto principal de seu trabalho artístico, em que a
aproximara de Quetelet na capital belga e era frequentador do presença da natureza local é sempre privilegiada na revelação de
salão promovido por sua esposa, que reunia renomados poetas e suas formas mais intrigantes e inusitadas. Seu traço expressivo, o
artistas. Quetelet e Martius, por sua vez, mantiveram assídua cor- gesto marcado no papel, o registro sensível da paisagem colabo-
respondência, sendo que Martius menciona visitas feitas a ele em ram para que seu trabalho tenha um aspecto, em última instân-
Munique por Mary. A pedido de Martius, Quetelet teria obtido de cia, tão moderno.
Edouard Mary a promessa de fazer vir de Atenas para Munique Ao final de seu período na Grécia, Mary começou a apresen-
os desenhos de seu irmão Benjamin. tar problemas de saúde. Retornou à Bélgica, via Malta, em 1845.
As obras de Mary reproduzidas na Flora Brasiliensis demons- Não se sabe com precisão quais funções assume em Bruxelas nes-
tram um artista atento aos entrelaçamentos das formas vegetais, as- se período, mas começa a apresentar sinais de alienação mental,
sim como à profusão de espécies. Dedica atenção especial às espé- até que foi declarado inapto para a carreira diplomática. Por re-
cies mais particulares da flora brasileira, registrando-as em termos comendação médica, Mary seguiu para a estação termal de Bag-
de sua inserção no contexto geral da paisagem. É curioso notar nères-de-Luchon, nos Pirineus franceses, onde faleceu em 1846.
que, embora Mary tenha um olhar orientado para a construção de
uma paisagem de viés pitoresco, tão característico daquele perío- Valéria Piccoli, mestre e doutora pela Faculdade de Arquitetura e
do, ele parece ser atraído pelas formações mais excêntricas, tanto Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), é Curadora-
no que diz respeito à topografia como às formas vegetais, evitando -Chefe da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Henri Langerock (1830-1915)


Va l é r i a P i c c o l i

A s especificidades da formação artística de Langerock ainda


permanecem por serem esclarecidas, mas o artista cumpriu
possivelmente um período de aprendizado na Escola de Belas Ar-
no estúdio fotográfico Numa Blanc Fils, situado no Boulevard des
Italiens. Langerock assume o estúdio em 1875 como “successeur
de Numa Blanc Fils”, permanecendo responsável por ele até 1878.
tes de Gand, Bélgica, sua cidade natal. No conjunto de suas obras A publicidade do estúdio afirmava que Langerock era um
conhecidas, prevalece o gênero da pintura de paisagem, e a am- “peintre-photographe” e que sua especialidade residia no “agran-
plitude dos temas representados atesta uma carreira de verdadeiro dissement de toutes espèces de photographies”. Como Langerock
pintor viajante. Sucedem-se paisagens originadas em viagens pela teria adquirido familiaridade com a técnica da fotografia e quando
Europa – notadamente Holanda, França, Suíça, Itália –, bem co- teria iniciado suas atividades nessa área são fatos ainda desconhe-
mo ao Oriente e Norte da África, sem dúvida motivadas pela voga cidos de sua biografia. Contudo, já em 1867, o pintor-fotógrafo
do orientalismo, tão característica da pintura europeia do período. receberia uma medalha na Exposição Universal de Paris e publi-
A partir da década de 1880, as paisagens brasileiras também serão caria, em 1871, um álbum de fotografias de Paris destruído pelos
registradas pelo artista. eventos da Comuna.
Durante os anos de 1860 e 1870, entretanto, Langerock cer- A habilidade na transposição da fotografia para a pintura é,
tamente residia em Paris, pois, além de participações frequentes sem dúvida, o que qualificou Langerock para o grande empre-
em salões pelo interior da França, o artista, a partir de 1869, figura endimento de que tomou parte juntamente com o pintor brasi-
como associado de André François Blanc de Labarthe (1849-?), leiro Victor Meirelles (1832-1903). Não se sabe ao certo como os

274
pintura e escultura

“La montagne de L’Or Noire [Ouro Preto]”, 1888, de Henri Langerock / Óleo sobre tela, 111.7 x 161.3 cm.

dois teriam se conhecido. Meirelles estava em Paris entre 1881 e tas, prevista inicialmente para durar seis anos. Em 1889, quando
1883, pintando a segunda versão de sua Batalha do Riachuelo. o panorama do Rio de Janeiro foi exibido na Exposição Universal
Entretanto, Langerock teria já chegado ao Brasil por essa época, de Paris, sendo agraciado com a medalha de ouro, Langerock já
pois sua primeira pintura de tema brasileiro data de 1881. O fato tinha se desligado do empreendimento.
é que, em 1885, ano em que executa uma fotopintura a partir de Posteriormente, em 1891, uma rotunda foi construída no Lar-
fotografia de Marc Ferrez (1843-1923), Langerock se torna sócio go do Paço, atual Praça XV, no Rio de Janeiro, onde o panorama
de Meirelles para a realização do Panorama circular da cidade do foi exposto durante alguns anos. Doado por Meirelles ao gover-
Rio de Janeiro, uma vista cenográfica de 360 graus, tomada do alto no brasileiro, a tela foi incorretamente armazenada e totalmente
do morro de Santo Antônio, no centro da então capital brasileira. destruída. Do grande empreendimento de Langerock e Meirelles
A impossibilidade de encontrar no Brasil um ateliê de dimen- restam apenas seis estudos a óleo, conservados no Museu Nacio-
sões suficientes para a execução da grande pintura de 14 metros nal de Belas Artes.
de altura por 115 metros de largura leva os dois artistas a se insta- Langerock daria continuidade à sua carreira como pintor-fo-
larem em Ostende, onde trabalharam entre 1886 e 1887. Meirel- tógrafo especializado em paisagens de lugares exóticos. Em 1894,
les e Langerock compuseram o panorama certamente a partir de participou da Exposição do Congo em Antuérpia, expondo lá um
fotografias da paisagem do Rio de Janeiro, talvez de autoria de Ge- diorama baseado no relato de viagem de Henry Morton Stanley
orge Leuzinger (1813-1892) ou mesmo do próprio Marc Ferrez, (1841-1904) à África.
sendo o belga responsável pela pintura da parte oriental da cidade. O artista faleceu em Marselha, França. Há obras de sua autoria
No ano seguinte, o panorama do Rio de Janeiro foi inaugura- em diversos museus brasileiros, entre os quais no Museu Nacional
do em Bruxelas com a presença dos soberanos da Bélgica. Uma de Belas Artes do Rio de Janeiro, no Museu Mariano Procópio
disputa judicial, contudo, pôs fim à sociedade entre os dois artis- em Juiz de Fora (MG) e na Pinacoteca do Estado de São Paulo.

275
parte 9 – artes plásticas

Adrien Henri Vital Van Emelen (1868-1943)


Va l é r i a P i c c o l i

N ascido em Lovaina, na província do Brabant flamengo, na


Bélgica, Van Emelen era filho do escultor Léon Van Eme-
len (1829-1900). Não são conhecidas as etapas de sua formação
soluções formais guardam semelhanças com a obra de Meunier,
especialmente por privilegiar o realismo dos temas sociais e tipos
urbanos. Ainda na juventude, Van Emelen realizou quatro escul-
artística, mas ele foi possivelmente treinado na mesma instituição turas para a decoração da fachada do Hôtel de Ville de Lovaina.
em que seu pai estudara, a Escola de Belas Artes de sua cidade Dentre os sete irmãos de Van Emelen, dois escolheram a car-
natal. Foi ainda discípulo do escultor e pintor Constantin Meu- reira religiosa, tendo sido o mais velho, Jacobus Marie Joseph (ou
nier (1831-1905), e, assim como o mestre, Van Emelen praticaria Jacques), um monge beneditino que se transferiu para o Brasil
tanto a escultura quanto a pintura. na última década do século XIX, adotando o nome de D. Amaro
Em 1892, foi recomendado por Meunier para estudar com seu van Emelen (1863-1943). Alternando períodos de permanência
colega Auguste Rodin (1840-1917). No entanto, a efetiva presen- no mosteiro de Olinda, Rio de Janeiro – onde foi diretor do Colé-
ça de Van Emelen no ateliê do escultor francês ainda está por ser gio São Bento – e São Paulo, D. Amaro foi enviado pelo abade D.
apurada. De todo modo, tanto suas escolhas temáticas como suas Miguel Kruse (1864-1929) para a Bélgica em 1907 com a missão

“Cena do Porto de Santos”, década de 1920, de Adrien Van Emelen / Óleo sobre tela.

276
pintura e escultura

Escultura em gesso e policromia do Apóstolo “Santiago Menor”, 1919-1922, de


Adrien Henri Vital Van Emelen, na Basílica de N.Sra. da Assunção do Mosteiro
“Manuel Preto”, escultura em bronze de Adrien Van Emelen, década de 1920. de São Bento, São Paulo.

de buscar junto à Universidade Católica de Lovaina um professor e Ofícios de São Paulo, o que demonstra que Van Emelen se in-
para a criação da Faculdade de Filosofia e Letras de São Bento. seriu rapidamente no meio artístico local.
Em São Paulo, D. Amaro estava certamente a par das reformas O Liceu era o principal estabelecimento do gênero na cida-
planejadas pelo abade, o grande responsável pela reconstrução do de, onde tiveram origem monumentos públicos de grande im-
edifício do mosteiro de São Bento, empreendida a partir de 1910, portância para São Paulo. Van Emelen manteve um espaço de
segundo projeto do arquiteto alemão Richard Berndl (1875-1955). trabalho no Centro das Artes do Palácio das Indústrias, disponi-
Já em 1912, começavam a ser executadas as pinturas decorati- bilizado pelo engenheiro Ramos de Azevedo (1851-1928). Suas
vas no interior da Basílica, obra do beneditino holandês Adalbert esculturas para o complexo de São Bento foram finalizadas em
Gressnicht (1877-1956). 1922, tendo o artista realizado, além dos apóstolos, uma imagem
Os motivos da transferência de Adrien Van Emelen para o Bra- da Pietà, localizada em uma capela fechada à visitação pública,
sil ainda não são de todo claros, mas não é improvável supor que e outras duas de Sant’Ana e Santa Gertrudes, situadas em capelas
a presença de seu irmão na abadia beneditina em reforma fosse laterais da Basílica.
um estímulo nesse sentido. Sabe-se que outro de seus irmãos, o Sem dúvida, Van Emelen chegou a São Paulo num momento
pastor Léon Charles Victor Van Emelen, visitou São Paulo em de grande pujança econômica e quando a cidade se preparava para
1915 e Adrien Van Emelen talvez o tenha acompanhado. O fato comemorar o centenário da independência. Simultaneamente à
é que o artista estava já em 1919 envolvido com a realização de realização das esculturas para o mosteiro de São Bento, o artista
12 esculturas representando os apóstolos para a decoração da Ba- estava envolvido no projeto decorativo de outro importante edi-
sílica de Nossa Senhora da Assunção, no mosteiro de São Bento. fício público, a Bolsa do Café em Santos. Inaugurada em 1922,
As peças foram moldadas em gesso nas oficinas do Liceu de Artes a Bolsa do Café – hoje Museu do Café – foi construída para cen-

277
parte 9 – artes plásticas

tralizar e controlar as operações do mercado cafeeiro em Santos, zação das esculturas dos bandeirantes Manuel Preto e Francisco
então o principal porto exportador do “ouro verde”. O edifício foi de Brito Peixoto, respectivamente conquistadores dos Estados do
projetado pela Companhia Construtora de Santos sob a direção Paraná e Rio Grande do Sul. As esculturas, de grandes dimen-
do engenheiro Roberto Simonsen (1889-1948), e consta ter sido sões, ressaltam a indumentária do bandeirante, com seu chapéu
dele o convite feito a Van Emelen para a elaboração das figuras de abas largas e botas altas, que ficou imortalizada na imagina-
alegóricas da Indústria, Comércio, Lavoura e Navegação que or- ção popular. Van Emelen foi responsável ainda pela concepção
nam a torre do edifício. Voltadas para os quatro pontos cardeais, do suporte das ânforas de vidro que guardam as águas dos rios
as esculturas se encontram a 40 metros de altura. brasileiros, parte da ornamentação da grande escadaria central
Também em 1919, começava a ser elaborado o ambicioso do edifício. Fundidos em bronze entre 1928 e 1930, os suportes
plano de ornamentação pretendido para o Museu Paulista pelo são decorados com exemplos da flora brasileira compostos com
historiador Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958). O então as figuras de cinco pássaros representando a fauna das bacias
diretor do museu almejava reunir no edifício esculturas e pintu- amazônica e platina.
ras que sintetizassem o papel pioneiro de São Paulo na conquista Além de sua atuação como escultor, Van Emelen foi autor de
do território brasileiro, evocando a história do bandeirantismo, um número expressivo de pinturas. Conhecem-se algumas obras
bem como seu papel no processo de independência do País. Van de temática histórica, mas sobressaem nesse conjunto as figuras po-
Emelen colaborou com o projeto de Taunay por meio da reali- pulares, como vendedores de rua. O artista faleceu em São Paulo.

Georges Wambach e o Brasil


Aldrin Moura de Figueiredo

C onsiderado o último dos pintores-viajantes, o belga Geor-


ges Wambach construiu ao longo de cinco décadas uma
das mais importantes narrativas visuais da paisagem brasileira.
sileira. Porém, nada disso parece ter perturbado Georges Wamba-
ch que logo se envolveu completamente com a cidade e com a
vida carioca. Além dos retratos dos tempos da Bélgica, Wambach
Nascido em Antuérpia numa família de artistas, o pai era Emile se dedicou a pintar paisagens, tema que será uma constante em
Xavier Wambach (1854-1924), violinista, organista, compositor sua obra até o fim da vida e onde o autor revelará impressionante
e regente de orquestra. A mãe era a aquarelista Marie Wambach competência técnica.
de Duve (1865-1857), famosa nos círculos da arte flamenga dos Hoje, revendo suas obras é notável o repúdio do artista ao
fins do século XIX. conteúdo racista e totalitário da ideologia nazista. Wambach foi
Jovem ainda, Wambach se inicia nas artes por volta de 1920, um cultor da diferença, do colorido, da luminosidade. O Brasil
com 18 anos de idade, data de suas mais antigas obras conhe- foi então o paraíso de liberdade e o Rio de Janeiro foi a cidade
cidas. Dessa época são alguns retratos de atrizes e cantoras de escolhida e o principal cenário de exuberância. Mas Wambach
teatro das noites de Antuérpia e Bruxelas, com quem o pintor foi um pintor viajante, por isso mesmo sua obra traz registros de
convivia nos círculos boêmios belgas. Também foi nessa época Fernando de Noronha, Ouro Preto, Olinda, Salvador, Fortaleza,
que se casou com Yvonne Milles, filha de família importante, Belém, Manaus e muitos outros locais. Para ganhar a vida, tam-
com quem teve um filho, Christian. O sustento da família vi- bém trabalhou desenhando rótulos de remédio, cartões postais e
nha do trabalho de contador em um banco, negócios de ações e colaborou com ilustrações para importantes revistas nacionais de
venda de quadros. Mas o casamento durou pouco e Yvonne foi sua época, como A Revista da Semana e Dom Casmurro.
morar em Nice, na França, levando o filho pequeno para longe Em 1938, volta à Europa e expõe em Bruxelas na Galerie da
dos olhos do pai. la Toison D’Or, com grande sucesso de venda. Na volta ao Bra-
Em 1926, Wambach conheceu a francesa Edith Blin de Arru- sil, visita Belém do Pará e pinta uma coleção que hoje pertence
da Nóbrega Beltrão, atriz da Companhia de Teatro Mollière, na ao Museu de Arte de Belém. Muito bem acolhido pela crítica da
qual se apresentava com o nome de Edith Derreine. Edith era en- época, o escritor Raymundo Moraes rende ao pintor um belo tex-
tão casada com o diplomata brasileiro Roberto de Arruda Nóbrega to apreciando sua obra, que vão desde óleos sobre a arte sacra até
Beltrão. Segundo Margarida Cintra, que organizou um catálogo as paisagens urbanas.
de obras de Wambach, a relação entre Wambach, Edith e Rober- Wambach provinha de uma Bélgica marcada pelo art nouve-
to é envolta em mistérios, porém se sabe que foi em companhia au e de uma inspiração nas obras de Félicien Rops (1833-1898),
de Edith, por quem se apaixonou, que o pintor chega ao Rio de Théo­phile Steinlen (1859-1923) e Jean-Louis Forain (1852-1931)
Janeiro em 1935. O ano foi de forte movimentação política, com e sua arte foi logo associada ao improviso e à perfeição do traço.
a Intentona Comunista e com o avanço da Ação Integralista bra- Em Belém, pintou o famoso Teatro da Paz, praias da Ilha do Mos-

278
pintura e escultura

“Avenida Independência”, de Georges Wambach, 1939.

queiro, as avenidas largas sombreadas pelas mangueiras, os hidroa- paisagens brasileiras. Alguns intelectuais, incluindo sua mulher, o
viões da Panair ao tempo da Segunda Guerra Mundial, os palácios consideravam alienado da situação que a Europa vivia. Essa ten-
e o casario colonial da cidade. são talvez tenha provocado, em parte, o fim do casamento com
Apesar de dominar várias técnicas de pintura, Wambach era Edith Blin.
cultor da aquarela e de uma antiga tradição da arte flamenga que Já famoso, tudo o que pintava conseguia vender. Ganhou di-
vinha de sua mãe Maria De Duve. O método era antigo e faz par- nheiro e frequentou as altas rodas do Rio de Janeiro, tanto que a
te ao menos desde o século XVI do repertório cognitivo dos artis- última vez que conseguiu reunir obras para uma exposição foi em
tas de Flandres e depois amplamente empregado em Florença e 1954, na Galeria Montparnasse, em Copacabana. Viajou o Brasil
Veneza. Mas a aquarela só pode resistir ao tempo com a obra de em aviões da Força Aérea Brasileira, daí sua vasta obra por diferen-
Albrecht Dürer (1471-1528), que deixou pelo menos 120 obras tes recantos do País. Entre seus amigos importantes estiveram os
suas; e, destas, algumas retratam uma viagem pelo Rio Reno até jornalistas Samuel Wainer, Osvaldo Orico e Assis Chateaubriand,
Colônia e então para Antuérpia, com inúmeros desenhos em vá- além dos políticos Juracy Magalhães, Virgílio Távora e Magalhães
rias técnicas, com imagens de Bruxelas, Bruges, Gand, Zeeland e Pinto. Por causa dessa inserção no poder, Wambach acabou por
Nijmegen. Imagens que fascinariam o jovem Wambach no início receber o grau de oficial da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul
do século XX. das mãos do presidente Getúlio Vargas em 1956.
Na década de 1940, Wambach descobre o povo brasileiro, Apesar de toda essa notoriedade, Georges Wambach nunca
especialmente a mulata, dialogando com o Movimento Vanguar- fez parte da roda de artistas plásticos e intelectuais brasileiros.
dista da Bahia, de Mário Cravo, Carlos Bastos e Gennaro de Car- Viu, observou e dialogou com vários movimentos nas artes – da
valho. Também viu a obra de Alberto Guignard e Emeric Marcier velha Flandres, passando pelo impressionismo, pela art nouveau
e as montanhas de Minas Gerais, uma imagem que estará presente e pelas vanguardas. Sempre tinha, porém, uma ironia para definir
em suas aquarelas de Ouro Preto, Itabira e Sabará, nas décadas os artistas da moda, como sobre as “lindas mulheres de Picasso,
de 1950 e 1960. contrafeitas, de olhares apavorados, saídas do Hospício Nacional
Muito articulado nos círculos políticos e da elite carioca, de Belas Artes”. De fato, Wambach gostava de ambientes alegres,
Wambach expõe em 1942, em meio à Segunda Guerra, no Mu- como o Cassino da Urca, onde aparecia com vedetes, cantoras e
seu Nacional de Belas Artes uma série de obras, especialmente de também políticos da época.

279
parte 9 – artes plásticas

tipo mignon, falante do francês e outras lembranças excêntricas.


À Francisca, Wambach dedicou quatro cadernos de viagem, com
obras datadas entre 1951 e 1963, nos quais, além de suas famosas
aquarelas, existem endereços e assinaturas de diversas pessoas, ver-
sos de próprio punho de Carlos Drummond de Andrade e João
Guimarães Rosa. Hoje esse conjunto de obras pertence ao acervo
do Banco Itaú, em São Paulo, revelando mesmo uma espécie de
livro de memórias, registro de passagens da vida, recordações do
cotidiano da arte.
Depois da morte do artista, quando seu espólio foi a leilão,
junto com essas aquarelas, veio a público um impressionante ca-
tálogo constando, além de seus quadros, outros de grandes nomes
da pintura clássica europeia, assim como tapeçaria, prataria, por-
celanas e muitos objetos orientais. Algo que foi muito registrado
na sua pintura – as imagens sacras, e também uma bela mobília
brasileira em jacarandá, além de joias antigas e brilhantes de alto
valor foram arrematados.
Estamos, portanto, diante de uma figura invulgar, de uma cul-
tura ampla, de um artista único. Entre o esteta do pincel e o dio-
nisíaco da vida, de sentimentos à flor da pele, de muitas paixões,
de dores românticas dos antigos pintores, Wambach viveu uma
vida em nada sedentária. Anticlerical, odiou a guerra, mantendo
distância do belicismo europeu de sua época. Ironizou muitas au-
toridades e conviveu com amizade com outras tantas, repudiou o
totalitarismo nazista, embora uma fotografia de Hitler estivesse em
seu apartamento, para alguns em sinal de chacota. Teve um olhar
impressionante sobre a natureza brasileira e, sobre ela, deixou uma
das páginas mais prolíficas da pintura no Brasil do século XX.

A pesquisa sobre Wambach em arquivos da Bélgica foi possível com os


auxílios do Ministério da Cultura do Brasil, por meio de um edital de
Intercâmbio, da Maison de l’Amerique Latine de Bruxelas e do CNPq,
“A moça do lenço amarelo”, aquarela de Georges Wambach.
que me concedeu bolsa de Produtividade em Pesquisa. Agradeço tam-
bém a companhia e o debate com Stephen Barris na pesquisa sobre
Foi nessa época, por volta de 1944, que conheceu Francisca Georges Wambach na Bélgica.
Alves dos Santos, uma mulata que foi sua companheira até sua
morte em 1965. Essa mulher que, por vezes, passou por emprega- Aldrin Moura de Figueiredo é Doutor em História. Professor da
da do artista, foi tida pelos amigos como modelo, mulata bonita, UFPA e pesquisador do CNPq.

Um olhar para o meu passado brasileiro


J e f Va n G r i e k e n

E m 1983 eu tive, graças ao marechal da corte na época, Her-


man Liebaers, a oportunidade de viajar num navio de contei-
neres da CMB para o Brasil. Para esta nota consultei meu diário
grafias, esboços e impressões. Depois de dois anos podia olhar para
trás sobre uma produção abundante. Depois de 30 anos consigo
sacar melhor a essência dela. É um álbum com 12 gravuras sob o
de viagem para poder identificar as imagens. Que significam 30 título “Igarapé-Manaus”.
anos para uma memória? Apagar e deformar! Manaus foi o fim de uma viagem que começou em Santos.
Logo depois de meu regresso no outono de 1983 comecei a Depois de São Paulo e do Rio de Janeiro, visitei a região de Minas
desenhar, gravar e pintar. Precisava processar um montão de foto- Gerais e, em seguida, Salvador, Recife, São Luís e Belém.

280
pintura e escultura

“Igarapé-Manaus III”, de Jef Van Grieken, 1984, 22x30cm. “Alcântara I”, de Jef Van Grieken, 1985, 13x17,5 cm, 1985.

Em Minas Gerais fui atraído pelas enormes minas de minérios lembro que o ânimo de viajar, a admiração e a curiosidade esta-
de Itabira e seu contraste com o tumulto artesanal nos “rios” dos vam minguando. Mas os passeios pelos leitos secos dos igarapés
pequenos garimpeiros. Folheando de novo minhas notas, constato nessa cidade amazônica marcaram um ponto alto no fim da longa
que me custou bastante esforço e irritação para fazer as imagens. viagem. O implante anárquico destas palafitas ao lado de tantas
Agora, esse nervosismo da época desapareceu completamente. margens é uma benção para um gravador.
Finalmente consegui fazer uma pintura bastante grande das re- Algum tempo atrás, amigos voltaram de Manaus. Falaram da
dondezas de Itabira. bonita ponte iluminada nessa cidade. Uma ponte em Manaus?...
Naturalmente criei obras sobre quase todos os lugares por onde E iluminada? Sim, vi as fotografias. Pois é o que faz 30 anos. Eu
passei. Uma destas em particular devo mencionar: “Alcântara”. Es- tive que desligar um momento.
se pequeno paradeiro dos traficantes de escravos da época, ao lado
de São Luís, foi a razão pela qual Herman Liebaers me enviou Jef Van Grieken é professor na Academia de Belas Artes de Lovaina
para o Brasil... para fazer quatro pequenas gravuras. e artista plástico com uma obra que tematiza cidades, construções,
Para mim, a série sobre Manaus me deu maior satisfação. Me ruinas e arqueologia industrial.

Inscrever os direitos do homem entre o Brasil e a Bélgica


Fr a n ç o i s e S c h e i n

N o Brasil criei numerosas obras artísticas e monumentais com


o objetivo de mostrar e ensinar os artigos da Declaração dos
Direitos Humanos, texto fundador da democracia, num país on-
sucessivamente) para aí realizar um sonho, sobre essa terra ainda
jovem, onde os elementos naturais e os seres que aí habitam nos
impingem a nos superar.
de essas questões estão ainda longe de serem resolvidas: “Todos o É nessa terra BRASILIS, nessa América do Sul, eternamente
seres humanos são iguais”, diz o texto, mas é essa a realidade face em movimento, que se faz, se desfaz e se refaz sem melancolia
às múltiplas oportunidades que a vida oferece? Como fazer para alguma, que pude criar obras inventando diálogos com os habi-
chegar mais perto desse texto? Por onde começar? tantes; criações participativas onde cada um pôde participar e ex-
Porque adotei minha filha, hoje com vinte anos, é que o Bra- primir seus pensamentos, seus sonhos e seus desejos quanto aos
sil me conquistou, com sua língua, sua cultura e sua história – ao direitos humanos.
mesmo tempo sublime e infernal. Eu também, como milhares Se não pode resolver as questões políticas das sociedades, a
de outros antes de mim, emigrei ao Brasil (não emigrei verda- arte pode fazer pensar de maneira crítica e pode abrir os espíritos
deiramente, mas trabalho no Brasil há 13 anos e para aí viajo a novas maneiras de ver e de pensar o mundo. A arte tem a capa-

281
parte 9 – artes plásticas

Montagem da obra na estação de metrô Luz, São Paulo e vista geral da mesma estação.

cidade de fazer compreender ideias por imagens. A arte permite próximo com a família biológica de minha filha, eu posso afirmar
pensar com ferramentas conceituais individuais que seus seis irmãos e irmãs que vivem em uma favela no norte
Desde a adoção de minha filha no Rio de Janeiro, em 2000, da cidade infelizmente não conhecem mais que isso aos 16 anos).
retornei ao Brasil anualmente para engendrar novos projetos sobre A participação na produção de obras artísticas se tornam uma
questões dos direitos humanos. Aí constituí uma equipe de arqui- ocasião de ter acesso à vida cultural da cidade de maneira imedia-
tetos, de artistas, de artesãos e de voluntários para atingir diferen- ta, mais fácil, realizando obras sobre um tema ainda desconheci-
tes objetivos que havia imaginado e que fazem parte de um todo, do. Quais são os direitos de todos os seres humanos, inclusive os
de um só e grande projeto: “O Caminho dos Direitos Humanos”. seus? A questão restou muitas vezes sem resposta quando come-
Tal projeto é imaginado e composto de centenas de obras sobre o çamos o trabalho.
tema realizadas com a população. Uma vez criados, os painéis de A partir desse trabalho artístico, imaginei obras em cerâmica
cerâmica são instalados nos lugares públicos. Esse caminho, em de cores vivas, suficientemente grandes sobre as quais poderíamos
2013, já integra numerosos projetos realizados no Rio de Janeiro e ver elementos realizados profissionalmente, como textos e mapas,
em São Paulo. Alguns são situados nas estações de metrôs das duas ao lado dos quais seriam justapostas outras obras realizadas manu-
cidades e outros nos bairros desfavorecidos chamados ‘favelas’. To- almente pela população. Os elementos artísticos cartográficos e
das essas obras foram produzidas com a participação da população textuais retomam de maneira metódica e legível o mapa do local,
e com profissionais locais interessados em participar do projeto. da favela, onde cada um pode se situar. Os textos são os dos direitos
No Rio de Janeiro, foi com a jovem arquiteta Laura Taves que humanos – em sua totalidade ou em fragmentos – acompanhados
a equipe começou a realizar os projetos que eu havia imaginado de textos literários e poéticos.
a partir da expressão do direito, ou da ausência do direito, entre a Na ocasião dos ateliês participativos, a população dos bairros
população das favelas do Rio: como falar de direitos onde o acesso desfavorecidos foi convidada a inserir nessas obras contribuições
à educação básica é reduzido à sua mais simples expressão: apren- figurativas feitas por eles mesmos, desenhos que exprimem o que
der a ler, a escrever e a contar (tendo guardado contato muito lhes sensibiliza, particularmente sobre questões das origens étnicas,

282
pintura e escultura

Aspectos da obra de Françoise Schein na cidade do Rio de Janeiro.

históricas e culturais. Nesse trabalho em comum desejei permitir o O projeto possibilitou criar uma microempresa de serigrafia, a
acesso à cultura, ou seja, o acesso aos museus, às galerias, às biblio- “Serigrarte”, dentro do ateliê paulista da Associação Inscrire. Esse
tecas, aos lugares de cultura da cidade às pessoas que pensavam não projeto se desenvolve, lenta, mas firmemente, com as dificuldades
ter direito a tais espaços... Os ateliês foram precedidos por diversas e os imprevistos das buscas de patrocínios brasileiros: processos de
visitas culturais, o que atraiu um grande número de participantes. financiamentos complexos e baseados no desconto de impostos,
Ao fim do trabalho, em diversas comunidades, a arquiteta Lau- trabalho difícil mas apaixonante.
ra Taves e uma dezena de mulheres decidiram continuar a expe- O projeto para a estação do metrô Luz é um projeto-piloto,
riência e criaram, dentro do meu ateliê, a “Azulejaria”: um ate- pois leva com ele um trabalho social e educativo. Nosso patroci-
liê de cerâmica que produz artesanato e novos projetos culturais. nador principal é a empresa belga de iluminação Schréder, que
Assim, há dez anos essas mulheres continuam a produzir obras nos acompanha e nos apoia desde o início, à qual agradecemos
cidadãs. Pouco a pouco, passamos de uma obra de artista para o grandemente. A equipe reúne arquitetos, grafistas, artistas, histo-
desenvolvimento estável do ateliê “Azulejaria” e para a sua inde- riadores, serigrafistas, juristas, economistas e professores de escolas
pendência. Penso poder afirmar que essa experiência, nascida de de São Paulo com as quais trabalhamos. Os parceiros-chave são o
ideais utópicos, é um sucesso, pois a estabilidade é garantida na Metropolitano, o CMDHSP (Comissão Municipal dos Direitos
independência da “Azulejaria”. Humanos da cidade de São Paulo) e o Museu da Língua Portu-
Enquanto isso, com a Associação Inscrire (que fundei e dirijo guesa. Também são parceiros investidores privados e novas insti-
desde 1989) iniciei outra importante obra sobre os direitos funda- tuições que se interessam por essa maneira inovadora de fazer arte
mentais em São Paulo: trata-se da primeira estação de metrô do com numerosas mãos para realizar uma obra do interesse de todos.
mundo com a instalação de painéis construídos com a participa- Como para o projeto do Rio, para este da estação Luz, pretendo
ção de milhares de jovens alunos das escolas das comunidades criar uma “Associação Inscrire de São Paulo” e permitir, assim, a
pobres da cidade. O imenso projeto para a estação Luz do metrô continuidade em futuros projetos.
– 500 m2 – em obra desde 2009, permitiu criar novas parcerias, Pouco depois da realização das primeiras obras em cerâmica
como a da ONG “Danyann: Aprender, Evoluir”, e convites a ou- sobre os direitos do homem no Rio de Janeiro, em 2003, com a
tros artistas brasileiros, como Julio Villani e Tatiana Dalla Bona. Associação Inscrire criei um kit pedagógico de ensino sobre o tema

283
parte 9 – artes plásticas

através da arte (a ser feito em papel ou em cerâmica). Ele é difun- educação e de senso da comunidade cidadã é o único caminho
dido nas escolas do ciclo secundário pela Europa e pelo mundo. que a cria. Como em todo lugar, existem apenas indivíduos que
Numerosos parceiros culturais locais, institucionais e privados, acreditam e conseguem, contra tudo e todos, transformar, quando
utilizam esse kit atualmente. No prosseguimento de nossa parceria juntos, suas utopias individuais em realidade comum.
com a CMDHSP, esta começa a utilizá-lo nas escolas municipais.
O que posso dizer da experiência de trabalho com os brasilei- Françoise Schein é arquiteta e urbanista formada na Bélgica e profes-
ros é que eles têm capacidade de se engajar, desinteressadamen- sora na École Supérieure d’Arts et Médias em Caen (França). Como
te, em projetos inovadores e transformando-os em projetos que artista plástica realizou obras com temáticas cívicas em vários metrôs
funcionam em longo prazo. O país, como outros, é jovem ainda nas cidades de Paris, Bruxelas, Lisboa, Esctocolmo, Berlim, Haifa,
e a verdadeira democracia aí se instala lentamente. O trabalho de Bremen e Coventry e também em favelas do Rio de Janeiro.

A visibilidade da arte contemporânea brasileira


na Bélgica: uma história recente
Olivia Ardui

O circuito internacional das artes é tradicionalmente dominado


por um eixo central bipolar constiuído por países europeus
e pelos Estados Unidos que “detêm o monopólio do mercado e
go desta exposição, um problema bem concreto é mencionado:
a logística e transporte de obras entre países tão distantes. Razão
pela qual os organizadores foram levados a selecionar um número
das instâncias de legitimação” (A. L. Fialho, 2006, p. 28 e A. L. limitado de obras, geralmente de pequeno tamanho, e realizadas
Fialho, 2005, p. 690). A partir dos anos 70, esse circuito começa em papel (Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique, 1978, s.p.
progressivamente a se abrir a outros países, devido a um sentimen- [p. 2]). Essa limitação logística, combinada a uma certa indife-
to de saturação e uma demanda crescente de novidades por parte rença geral à arte “periférica” fora desses eventos organizados no
do mundo acadêmico, institucional e do mercado da arte (A. L. contexto de acordos bilaterais, de certa forma deixa claro o porquê
Fialho, 2005, p. 690). O caso da Bélgica segue sensivelmente essa de tão poucas iniciativas de exposições na Bélgica.
tendência geral dos países ocidentais. Sem pretender realizar um A partir do final dos anos 90, com a abertura progressiva da
inventário completo das exposições de arte contemporânea brasi- Europa e dos Estados Unidos a essa arte dita “periférica”, apare-
leira na Bélgica, é relevante percorrer alguns momentos nos quais cem na Bélgica algumas personalidades que começam a manifes-
a arte brasileira esteve em evidência no país, através de exposições. tar um interesse pela arte brasileira. Um exemplo de uma grande
Essa tématica é complexa pela falta de estudos monográficos entusiasta da abertura da Europa à arte latino-americana é Cathe-
relativos à recepção da arte brasileira na Bélgica. Convém subli- rine de Zegher, então diretora do centro de arte contemporânea
nhar desde já que esse artigo é uma primeira pista de reflexão no Kanaal Art Foundation em Courtrai, cidade situada em Flandres
campo, que traça grandes linhas e que, evidentemente, apresenta Ocidental. Ela explica, em entrevista a Katy Deepwell, que nos
lacunas a serem completadas por estudos futuros. anos 80 a maior parte dos curadores de arte contemporânea se in-
Até meados dos anos 80 e os anos 90, havia poucas exposições teressava principalmente pelo intercâmbio com os Estados Unidos
de artistas brasileiros na Bélgica e essas se inseriam em um contex- (K. Deepwell, 1996, p. 57-58). Foi nesse período que, em uma
to de relações internacionais e acordos bilaterais entre os dois paí- viagem a Nova York, ela conheceu artistas sul-americanos com os
ses. Ou seja, as mostras de arte brasileira contemporânea pareciam quais se indentificou, talvez por sentir-se ela mesma um pouco
ser um pretexto para ilustrar a cooperação entre os dois países, e marginalizada em relação à predominância dos Estados Unidos
não resultando de um interesse propriamente artístico. De 24 de no contexto artístico do seu país. Decidiu então convidar artistas
novembro a 18 de dezembro de 1966, por exemplo, em resposta sul-americanos, e entre eles brasileiros, a exporem seus trabalhos
à exposição Quarenta anos de pintura belga, apresentada no ano no Kannal Art Foundation, algo raro à época, o que contribuiu
anterior no Rio de Janeiro, foi realizada no Bozar, o prestigioso para que a instituição se tornasse pioneira nessa tendência de aber-
centro de Belas Artes em Bruxelas, a exposição Arte contemporâ- tura ao multiculturalismo na Bélgica (K. Deepwell, 1996, p. 58).
nea brasileira. Outro exemplo foi a exposição Criatividade na arte Os primeiros artistas convidados por Catherine de Zegher para
brasileira contemporânea, realizada de 10 a 24 de maio de 1978, expor no Kanaal Art Foundation foram Cildo Meireles e Tunga,
no Museu Real de Belas Artes de Bruxelas. A iniciativa foi dada numa exposição coletiva que se estendeu durante o período de 20
pelo colóquio organizado pelo Instituto de idiomas de São Paulo de maio a 22 de outubro de 1989. Se os dois artistas, considerados
Aimav-Yazigi. É interessante notar que na introdução do catálo- entre os mais importantes da sua geração, já haviam realizado ex-

284
pintura e escultura

posições no exterior, eram relativamente desconhecidos na Bélgi- tório belga, que incluiu arte contemporânea brasileira, mas que
ca. Efetivamente, enquanto cinema e música brasileira eram, até ainda estava incorporada na categoria vaga e problemática de
certo ponto, conhecidos do público europeu e norte-americano, “arte latino-americana”.
não se conhecia praticamente nada sobre as artes visuais do Brasil Se Catherine de Zegher foi uma importante intermediária
(G. Brett, 1989, s.p. [p. 33] ). entre o Brasil e a Bélgica no campo institucional das artes, outra
Além disso, o Brasil também não teve artistas com um reco- personalidade importante no estabelecimento de uma ponte en-
nhecimento internacional como Frida, Botero ou os muralistas tre os dois países é Cristina Barros que, diferentemente daquela
mexicanos, que desfrutam de uma popularidade mundial (Depoi- curadora, trabalha de forma independente, sem estar vinculada a
mento de Afrânio Fonseca de Paula e Sidnei Tendler em Bruxelas uma instituição. A especialista brasileira, casada com o belga Hen-
no dia 02/11/2012 ). Esse fator contribuiu para induzir a concep- ri Grendl, vivendo entre Bruxelas e São Paulo, trabalha há muitos
ção errada de que “não há arte no Brasil” (C. de Zegher, 1989, anos trazendo exposições e artistas do Brasil para a Bélgica e vice-
s.p., [p. 2]), salvo aquela considerada como uma continuação da -versa. Ela foi, entre outros exemplos, responsável pela exposição
Europa ou impregnada de exotismo e primitivismo. O objetivo de Marcia Xavier e Albano Afonso em 2002 no centro cultural
dessa exposição foi justamente contradizer e desmentir esse clichê Botanique, dois artistas então pouco conhecidos na Bélgica. Foi
sobre a arte brasileira pois, como explica Paulo Venâncio Filho, também curadora da exposição de Sandra Cinto, Albano Afonso
“quem esperar tematização do Brasil, a cor local, certamente não e Regina Silveira no espaço Médiatine, em 2005.
encontrará isso nos trabalhos [de Tunga e Cildo Meireles]” (P. Além disso, a embaixada do Brasil na Bélgica, que conta com
Venâncio Filho, 1989, s. p., [p. 25]). um espaço expositivo, a galeria Marcantônio Vilaça – Casa do Bra-
Essa exposição parece ter sido um catalisador de outras expo- sil, incentivou a visibilidade da arte contemporânea brasileira se-
sições individuais também realizadas no Kanaal Art Foundation, diando diversas exposições de artistas como Paulo Climachauska,
como as de Waltercio Caldas, em 1991, e de Anna Maria Maio- Sebastião Salgado ou Maria Bonomi.
lino, em 1995. Depois de 25 anos sem representação do país, o Em 2005 aconteceu o ano do Brasil na França, grande ma-
curador da Documenta em 1992, Jan Hoet, fundador do SMAK, nifestação cultural sobre o Brasil no exterior, com a ambição de
museu de arte contemporânea de Gand, deu uma visibilidade reforçar as relações bilaterais entre os dois países em diferentes
sem precedentes a artistas brasileiros na história desse evento, campos, tanto no cultural e acadêmico quanto no econômico.
com obras dos já expostos Waltercio Caldas e Cildo Meireles Pela proximidade da França, este evento foi uma vitrine para ar-
além de Saint Clair Cemin e Jac Leiner (A. L. Fialho, 2006, p. tistas brasileiros na Bélgica, como o prova a Bienal de Fotografia
71). Aliás, nesse mesmo ano, o SMAK adquiriu para o seu arcervo de Liège em sua edição de 2006, que foi dedicada ao Brasil. O
obras de Jac Leirner e de Adriana Varejão (site do SMAK), duas evento reuniu 80 fotógrafos que foram representados em mais de
artistas consideradas até hoje como expoentes da arte brasileira 15 locais diferentes da cidade localizada na região da Valônia. Os
(R. Storr, 2012, p. 104). A importância da Documenta como ve- organizadores desse evento procuraram afastar-se da ideia de exo-
tor de divulgação de artistas é manifesta no caso de Lygia Clark, tismo geralmente associada ao país. Aliás, a dimensão engajada
quando, em 1998, dando prosseguimento à sua participação na dos artistas brasileiros foi o que levou o comitê da Bienal a esco-
10ª edição, lhe foi dedicada uma retrospectiva no Bozar e que lhê-los para sua edição de 2006. Dorothée Luczak, a idealizadora
culminou itinerando pela Europa. do evento, explica que foi sensível ao fato desses artistas abordarem
Nesse mesmo contexto de interesse pela América Latina e de questões de sociedade e se interrogarem sobre a realidade que os
estratégias multiculturais nos anos 90, por ocasião da comemora- cerca. Segundo ela, essa atitude crítica também tem algo a ensinar
ção dos 500 anos da descoberta da América, vários eventos foram aos belgas, já que no seu próprio país há problemas sociais igno-
organizados na Europa (B. H. D. Buchloh e C. de Zegher, 1992, rados, como a existência de sem-tetos e uma importante taxa de
p. 223, e A. Farias, 1997, p. 34). A Bélgica sediou um dos maiores suicídio (Dorothée Luczak citada em G. Duplat).
eventos: uma grande exposição que abordou o intercâmbio entre Outro elemento interessante dessa Bienal foi a vontade de
a América Latina e Flandres: America. Bride of the Sun. 500 years estabelecer um diálogo e uma confrontação entre artistas belgas
Latin America and the Low Countries. No prefácio do catálogo da e brasileiros, uma iniciativa rara. Foi o caso da exposição no Ins-
exposição, Gaston Geens explica que, até aquela data, o públi- tituto de Arquitetura Lambert-Lombard Bruxelles-Brasília: à la
co conhecia apenas as manifestações artísticas pré-colombianas traque des signes de pouvoir que revêt une capitale...(Bruxelas-Bra-
e que pela primeira vez um panorama da arte pré e pós-colonial sília: à procura dos sinais de poder encontrados em uma capital...).
seria apresentado ao público belga (G. Geens, 1992, p. 11). Com Como o título indica, a exposição quis mostrar como a ideologia
efeito, a seção de arte contemporânea, que teve curadoria de e as marcas de poder influenciam a arquitetura e o urbanismo
Catherine de Zegher, trouxe obras de grandes artistas brasileiros de uma capital como Bruxelas ou Brasília (Comunicado de im-
como Lygia Clark, Waltercio Caldas, Regina Vater, Anna-Maria prensa 5ème Biennale internationale de la Photographie et des Arts
Maiolino entre outros, mas que na Europa eram relativamente visuels de Liège).
desconhecidos (B. H. D. Buchloh e C. de Zegher, 1992, p. 233). No entanto, a maior manifestação dedicada ao Brasil até ho-
Esta exposição foi uma das maiores realizadas até então no terri- je foi Europalia, um festival bienal internacional de artes criado

285
parte 9 – artes plásticas

em 1969 destinado a um novo país a cada edição. Depois de duas geiro estabelecer uma imagem da arte brasileira sem cair no risco
edições consagradas a países emergentes, respectivamente, Rús- ou de considerá-la simples mimese dos procedimentos europeus
sia em 2005 e China em 2009, em 2011 foi a vez do Brasil. Com ou sofrer a recorrência fantasmagórica dos temas do folclore e do
eventos em mais de 75 cidades da Bélgica, abrangendo as diversas exótico” (P. Venâncio Filho, 1989, s.p., [p. 24]).
disciplinas como artes plásticas, música, teatro, poesia, literatura Contudo, o festival Europalia.Brasil contribuiu para a divulga-
entre outros, o festival se propôs a apresentar um vasto panorama ção da arte brasileira contemporânea na Bélgica. Desde o encer-
da cultura brasileira. ramento do festival, por exemplo, obras de Cildo Meireles, Zero
A originalidade de Europalia também foi trazer a um público Dollar e Projeto Coca-Cola, que estavam na exposição A Rua, in-
europeu uma perspectiva brasileira da sua própria produção artís- tegraram sucesivamente diversas exposições em Antuérpia, como:
tica uma vez que essas exposições geralmente caracterizavam-se Vis-à-vis (3 de dezembro de 2011 a 21 de janeiro de 2012); Spirits
por um olhar estrangeiro na curadoria. No catálogo de exposição of Internationalism que aconteceu no MuHKA, museu de arte
Art in Brazil, que aconteceu no Bozar entre 4 de outubro de 2011 contemporânea da cidade, antes de ser apresentada na exposição
e 15 de janeiro de 2012, foi ressaltado várias vezes que Europalia. e Extra Muros: Obras-primas no MAS. Cinco séculos de imagens
Brasil seria a primeira apresentação da cultura brasileira nessa es- em Antuérpia (17 de maio de 2011 a 30 de dezembro de 2012),
cala, a ser realizada na Europa com uma significativa participação no MAS, mais recente museu aberto na cidade.
do país, em particular na curadoria das diferentes exposições (R. Contudo, a obra apresentada na última exposição, Zero Dollar,
Brito, G. Bueno e S. Salcedo (ed.), 2011, p. 9-11). ilustrou a tématica da arte como alternativa à economia, mas não
Esse ponto de vista propriamente brasileiro seria a diversidade houve contextualização ou explicação sobre o artista, que aliás não
de um Brasil miscigenado e sincrético, que representa um aspec- teve relações particulares com a cidade de Antuérpia, fio condu-
to menos conhecido do Brasil na Bélgica (R. Brito, G. Bueno e tor da exposição.
S. Salcedo (ed.), 2011, p. 9-12). Essa temática estruturou Brazil. Depois do encerramento de Europalia.brasil, pelo menos du-
Brasil, uma das maiores exposições do festival, que aconteceu no as exposições em Bruxelas foram dedicadas exclusivamente à arte
Bozar, e que retraçou o aparecimento do modernismo no Brasil e brasileira contemporânea. A exposição Brazilian Modern, que reu-
a sua busca por uma identidade artística própria e que incorporou niu prataria, joalheria, moda e artes plásticas nacionais seleciona-
tanto as inovações das vanguardas europeias como a diversidade das por Cristina Barros e Laurence Lachambre.
étnica do país. Essa tématica também esteve implícita em expo- 7SP: 7 Artists from São Paulo, exposição que teve curadoria
sições menores tais como Incorporations: Afro-brazilian contem- de Rejane Cintrão, reuniu os trabalhos de Paulo Climachauska,
porary art que apresentou, de forma pedagógica e didática, obras Sandra Cinto, Albano Afonso, Raphel Carneiro, Ana Elisa Egreja,
contemporâneas relativas à questão da herança negra no Brasil. Wagner Malta Tavares e Rodrigo Bivar. O fato mais relevante, no
Se a Europalia.Brasil reflete uma certa mudança de menta- entanto, é que essa exposição foi escolhida para inaugurar o CAB
lidade em relação ao Brasil pelo fato de o considerar como um – um novo centro de arte contemporânea aberto em Bruxelas –,
país com um grande potencial, inserido no importante bloco dos além de acontecer paralelamente à Art Brussels – principal feira
países emergentes do BRIC e, também, pelo fato de reconhecer de arte contemporânea na Bélgica. Aliás, o Brasil é representado
a necessidade de superação dos antigos clichês impregnados de nessa feira há dois anos pela Galeria Leme de São Paulo, e as obras
exotismo que cercam o país sul-americano (B. De Baere, 2011, p. de Paulo Climachauska e Rafael Carneiro são representadas pela
14), na prática, esses estereótipos ainda povoam as representações galeria belga Bodson-Emelinckx. Seu sócio-proprietário Charles
do público belga em geral. Efetivamente, ainda são projetadas so- -Antoine Bodson explica que foi ao Brasil por interesse próprio,
bre a arte brasileira noções como arte primitiva ou popular, sensu- mas que não foi Europalia.Brasil ou outras exposições que o in-
alidade e cores quentes. Segundo Afrânio Fonseca de Paula, que centivaram, e sim a situação econômica atual do Brasil, que é se-
trabalhou como monitor fazendo visitas guiadas na maior expo- melhante à situação da China há alguns anos. O galerista explica
sição de arte contemporânea do festival, Art in Brazil, que cobria que se antes se falava muito pouco do Brasil, hoje o momento é
a arte brasileira dos anos 50 até hoje, a tendência do público era de um crescente interesse das galerias pelo gigante da América
esperar algo mais “autêntico” e “legitimamente brasileiro” com Latina porque há mercado e uma grande efervescência de novas
uma coloração local e diferente do que se encontra na Europa. inciativas. Tal fato é comprovado, por exemplo, pela abertura em
Esse foi o caso, por exemplo, do confronto do público com o rigor dezembro de 2012 de uma filial da White Cube em São Paulo,
e a geometria do concretismo. Além disso, algumas das obras que uma das maiores galerias mundiais.
faziam referência a situações e vivências propriamente brasileiras Portanto, antes dos anos 90, poucas exposições de arte con-
ficaram herméticas para um público que conhece muito pouco da temporânea brasileira eram realizadas na Bélgica, e mesmo as
história do país e necessitava de mais chaves de leitura para uma que foram realizadas deviam-se a ocasiões de eventos ou acor-
apreensão completa de seu sentido. dos bilaterais. Os artistas brasileiros começam a ter visibilidade a
Tal constatação prova que a problemática e o desafio da reali- partir dos anos 90, num contexto de interesse pela arte dos países
zação de exposições de artistas brasileiros no exterior ainda oscila “periféricos”, relativamente desvinculados do eixo Europa–Esta-
entre dois polos extremos: “Como pode o distante olhar estran- dos Unidos. Porém, a visibilidade da arte brasileira na Bélgica foi

286
pintura e escultura

menos importante do que nos países vizinhos tais como a França Artistas brasileiros vivendo na Bélgica
e a Inglaterra, que já divulgam artistas do país há mais tempo e de
forma mais sistemática. Na Bélgica, as exposições de artistas bra- Depois de um panorama geral (e voluntariamente generalista)
sileiros foram principalmente resultado de iniciativas individuais, sobre a visibilidade da arte brasileira na Bélgica, convém também
como as de Catherine De Zegher, Cristina Barros ou Dorothée abordar alguns casos de artistas brasileiros que lá vivem. Porém,
Luczak, e são permeáveis a outros eventos que puderam contribuir geralmente a compreensão e concepção da noção de “artistas bra-
para a divulgação da arte brasileira na Europa, como a Documenta sileiros” tende a excluir aqueles que vivem e trabalham em outros
ou o ano do Brasil na França. Isso talvez explique a recorrência países, onde eles também não entram na categoria de artistas na-
das exposições de alguns artistas e, talvez, a ausência de manifes- cionais (G. Brett, 1989, s.p., [ p. 33]). Contudo, são esses artistas
tações artísticas incluindo outros. Enquanto artistas como Sandra expatriados que melhor encarnam a ideia de intercâmbio e inte-
Cinto, Albano Afonso ou ainda Paulo Climachauska já têm um ração entre países, às vezes de forma bastante palpável, como ve-
histórico de exposições na Bélgica, artistas como Beatriz Milha- remos em algumas obras. Por essa razão nos parece fundamental
zes ou Adriana Varejão, que desfrutam de um reconhecimento no contexto desta publicação apresentar brevemente seus traba-
nacional e internacional, não tiveram muita visibilidade na Bél- lhos e seus percursos.
gica (segundo o currículo das duas artistas publicado no site da
galeria Fortes Vilaça). Afrânio Fonseca de Paula, entre mémoria pessoal
Com o crescimento econômico do Brasil nos últimos anos e e coletiva
com a realização dos eventos esportivos (Copa do mundo da FI-
FA, em 2014, e Olimpíadas, em 2016), as atenções se voltam para Natural do Ceará, Afrânio Fonseca de Paula cursou dois anos
o Brasil e estimulam um interesse crescente e mais generalizado de História na Universidade Estadual do Ceará seguidos de dois
pela arte brasileira. E ainda que esta afirmação possa ser vista de anos de Desenho e Pintura na Faculdade de Belas Artes de São
forma negativa, é imperativo que o Brasil aproveite esse momento Paulo. Entretanto, ele desejava obter uma formação complemen-
oportuno para ganhar visibilidade na cena artística internacional, tar de uma academia de pintura europeia, onde pudesse adquirir
impondo-se como ator de peso no circuito de arte. Mas para que mais técnica e prática. Se a sua escolha inicial oscilava entre a
essa posição persista e seja coerente, é preciso que o país se faça Royal Academy de Londres, a Kunstakademie Düsseldorf e a Aka-
reconhecer por sua história e sua arte, e não alimentando os cli- demie der Künste em Berlim, o artista sempre manteve uma curio-
chês que ainda persistem. sidade pela Bélgica. Efetivamente, o pequeno país tem uma forte
tradição de pintura a óleo desde os primitivos flamengos como Jan
Bibliografia Van Eyck, até os retratos de Van Dyck e as dramáticas cenas de
Brito R., G. Bueno e S. Salcedo (éd.), Art in Brazil 1950 – 2011, catálogo de exposição, Rubens. Isso o levou a enviar um dossiê para a Academia Real de
4 outubro 2011 – 15 janeiro 2012, Bozar. Centro de Belas Artes, Bruxelas, 2011. Belas Artes de Bruxelas, onde foi aceito.
Comunicado de imprensa 5ème Biennale internationale de la Photographie et des Arts vi- O artista chegou a Bruxelas em 1999, quando a cidade ainda
suels de Liège. BRASIL - Du 19 février au 2 avril 2006.
De Baere B., I. Koeckelberghe N. Van Hout, Images pensées. Cinq siècles d’images à An- não era um centro artístico muito conhecido na cena internacio-
vers, Antuérpia, 2011. nal. Entretanto, ela já oferecia uma grande facilidade de acesso a
Deepwell K., “An Interview with Catherine de Zegher, curator of Inside the Visible: An informações e bibliotecas, além de uma oferta cultural considerá-
Elliptical Traverse of Twentieth Century Art, in, of, and from the feminine”, n. para-
doxa, 1, dezembro 1996, p. 57-67. vel. Além disso, Afrânio Fonseca de Paula também se identificou
De Zegher C., Tunga “Lezarts” – Cildo Meireles “Through”, catálogo de exposição, 20 de com a diversificação e o cosmopolitismo da cidade que criaram
maio – 22 de outubro 1989, Kanaal Art Foundation, Courtrai, 1989. um ambiente propício à sua criação. Por conta disso, Bruxelas teve
Duplat G.,  “ Eux, ils interpellent encore la société” em Culture em Lalibre.be, 16/02/2006,
[ http://www.lalibre.be/culture/global/article/269175/eux-ils-interpellent-encore-la-so- uma grande influência no trabalho do artista.
ciete.html], (15/09/2012). Em primeiro lugar, foi na capital da Europa que Afrânio Fonse-
Farias A., “Brésil: un petit manuel d’instructions”, Art Press, 221, fevereiro 1997, p. 34 – 39. ca de Paula adotou o material de base do seu trabalho atual: peda-
Fialho A. L., L’insertion internationale de l’art brésilien. Une analyse de la présence et de
la visibilité de l’art brésilien dans les institutions et le marché, Tèse de doutoradoapre- ços de porcelana recuperados. O artista coleta fragmentos de louça
sentada na École des hautes études en sciences sociales, Paris (Jacques Leenhardt, em porcelana que são descartados ao final do maior mercado de
orientador), 2006. pulgas de Bruxelas, no bairro popular Maroles. Esses fragmentos
Fialho A. L., “As exposições internacionais de arte brasileira: discursos, práticas e interes-
ses em jogo”, Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n° 3, set.-dez. 2005, p. 689 – 712. são utilizados como cacos de mosaicos para revestir ou compor fi-
Musées royaux des beaux-arts de Belgique, Créativité dans l’art brésilien contemporain, guras tridimensionais. Dessa forma, o artista dá uma segunda vida
catálogo de exposição, Bruxelas, 10 maio-24 de maio de 1978, Bruxelas, 1978. a esses objetos descartados reunindo-os em mosaicos que amalga-
Robberechts C., S. Beele, C. de Zegher e H. Verschaeren (ed.), America. Bride of the Sun.
500 years Latin America and the Low Countries, catálogo de exposição, 1 de feve- mam as diversas histórias associadas aos seus usos anteriores.
reiro – 31 de maio de 1992, Museu Real de Belas Artes de Antuérpia, Gand, 1992. Em segundo lugar, alguns temas iconográficos povoam o tra-
Roelstraete D. (éd.), A Rua. Rio de Janeiro & The Spirit of the Street, catálogo de exposi- balho do artista, como por exemplo o seu emblemático Manne­
ção, MuHKA.Museu de Arte Contemporânea de Antuerpia, Antuerpia, 6 outubro
2011 – 22 janeiro 2012, Antuerpia, 2011. ken-Pis Blanc realizado em 2009, que constitui uma releitura do
Storr R., “The carioca & the paulista”, Art in America, setembro de 2012, p. 104-108. mascote da cidade, literalmente um menininho que urina. O artis-
ta achou uma estátua quebrada do Manneken-Pis e a usou como

287
parte 9 – artes plásticas

Convite para a vernissage de esculturas do artista Afrânio Fonseca de Paula.

base para sua obra. A escultura original foi recoberta por cacos de
objetos utilitários dos quais a função primeira foi desviada. Por
exemplo: o órgão sexual da estátua é representado pelo bico de
um bule de chá.
Talvez esse espírito de desvio e subversão tenha sido algo que
lhe foi transmitido pela Bélgica, e que encontra um eco no traba-
lho de artistas como René Magritte, Marcel Broothaers ou James
Ensor. De toda forma, o artista brasileiro conseguiu conciliar a
figura folclórica que marcou a história coletiva da cidade com
fragmentos de memórias individuais (site Ville de Bruxelles). Es-
sa livre interpretação do mascote da cidade foi apreciada pelos
belgas, tanto que a obra foi adquirida pelo Museu da Cidade de
Bruxelas – Maison du Roi, em 2011, e está exposta na sala consa-
grada ao Manneken-Pis.

Sidnei Tendler, entre paisagens reais e mentais

Viajar sempre foi uma necessidade para o artista carioca Sid-


nei Tendler. Depois de estudar arquitetura na Universidade Santa
O artista Sidnei Tendler.
Úrsula, no Rio de Janeiro, e participar de projetos urbanísticos,
como a reabilitação do bairro do Catete, pelo qual foi premiado,
seguiu alguns cursos em 1982 na Parsons School of Design, em (a flamenga, a francófona e a germanófona) além de sediar diver-
Nova York. Voltou então ao Rio de Janeiro, onde desenvolveu um sas instituições europeias, apresenta uma significativa diversidade
trabalho de pintura e desenho que apresentou na sua primeira cultural e linguística. Com respeito especificamente ao contexto
mostra individual, em 1986. No final dos anos 80, o artista mudou- artístico, a Bélgica conta com uma produção de qualidade que vai
-se para Recife, onde morou por dez anos. da tradição da pintura flamenga até grandes nomes da arte con-
A ligação de Sidnei Tendler com a Bélgica começou em 1993, temporânea, tais como Luc Tuymans, Wim Delvoye e Jan Fabre.
quando um belga descobriu seu trabalho durante uma exposição Paralelamente, o país dispõe de um bom circuito de galerias e
em Recife e o convidou a expor na Bélgica. Depois dessa primeira grandes colecionadores.
mostra, ele é convidado anualmente a dar workshops e apresentar Foi efetivamente na Bélgica que Sidnei Tendler desenvolveu
seus trabalhos, principalmente em Flandres. Durante esse perío- seus projetos mais ambiciosos e que evidenciam uma maior ma-
do, o artista pôde interagir com personalidades do mundo da arte turidade. Entre eles está 365 – Um diário visual, projeto no qual
e se cercar da amizade de artistas belgas, como Luk Vermeerber- o artista pintou uma aquarela por dia durante o ano de 2002,
gen. Por receber boas críticas e aceitação, ele considerou que o quando viajou regularmente, tomado pela vontade de registrar
país podia lhe oferecer mais possibilidades. Tanto que em 2000, sistematicamente o estado de espírito e a espontaneidade do mo-
Sidnei Tendler mudou-se para a Bélgica. mento associado a um lugar em particular. Efetivamente, se a Bél-
O artista explica que o contexto belga foi profícuo para o de- gica foi um ponto de partida para esse projeto, o artista percorreu
senvolvimento da sua produção artística. Primeiro porque a sua vários outros lugares da Europa, tais como Paris, Nice, Veneza,
posição geográfica estratégica, limítrofe com a França, Holanda e Salzburgo e Munique. Portanto, nesse calendário íntimo, o artis-
Alemanha, permite a visita a grandes centros artísticos europeus, ta nos oferece uma vista panorâmica de seu inconsciente, onde
que ficam a poucas horas de trem de Bruxelas. E também porque se misturam paisagens reais e mentais, onde transversalidades se
a situação política da Bélgica, onde convivem três comunidades destacam, ligando diferentes desenhos entre si.

288
pintura e escultura

Além de seus projetos artísticos, Sidnei Tendler também de- de Munich em 2008. Em 2009 também foi comissionado para rea­
senvolve atividades educativas na Bélgica. Em 2001 apresentou lização de Good Luck, para o Museu da Ourivesaria Sterckhof, na
um seminário na escola europeia de Bruxelas aos alunos do último Província de Antuérpia.
ano em Artes Plásticas e, de 2002 a 2004, foi idealizador de diver- Apesar da participação nesses diversos eventos, a obra de Nil-
sos seminários no centro cultural De Warende, em Turnhout. O ton Cunha se situa mais precisamente no cruzamento entre a sua
artista também montou seu próprio ateliê na Bélgica, primeiro na cultura natal brasileira e a cultura da Bélgica, país onde vive e
cidade de Mol e depois em Overijse, antes de se estabelecer em trabalha há 20 anos. A este respeito, o artista explica que o diálo-
Bruxelas, onde atualmente vive e trabalha. Este espaço projetado go e a interação entre essas duas matrizes são fonte de inspiração
para estabelecer diálogos, discussões e trocas entre artistas e pro- que alimentam e estruturam sua arte. Um exemplo significativo
fissionais do mundo da arte, sediou exposições de diversos artistas é a obra intitulada Pomar, que apresenta uma superfície branca e
durante o projeto Ateliê Sidnei Tendler Invites. Agora abre espaço plana de formato retangular, na qual estão fixadas pequenas hastes
para novos artistas no seu projeto mais recente, Showing Young de diferentes tamanhos e sobre as quais estão dispostas taças cir-
Talents, onde o artista espera poder criar um intercâmbio entre culares de prata. Em português, o título remete a um terreno de
a Bélgica e o Brasil, em que os artistas possam expor respectiva- árvores frutíferas, enquanto em francês ele evoca as palavras maçã
mente nos dois países. Esta, aliás, também é a ambição da galeria e arte (respectivamente “pomme” e “art”). Ao mesmo tempo que
TeC – Tendler Contemporânea, nova galeria de arte aberta no Rio a obra remete ao pomar, ela ergue e valoriza cada fruta em vez de
de Janeiro por sua esposa Carla Tendler, que pretende reforçar a apresentá-las de forma amontoada e desordenada. Assim, com esse
ponte entre os dois países. jogo de palavras e línguas, Pomar reflete a maneira na qual Nilton
Cunha “preserva uma cultura e absorve outra”.
Nilton Cunha, entre a esfera linguística Depois de conciliar essas duas esferas de influência e de estar
francófona e lusófona fora do Brasil por tantos anos, o artista deseja compartilhar seu
aprendizado e experiência em seu país de origem, que desde o
Nilton Cunha desenvolveu um trabalho consistente e diversi- século XIX, não teve uma grande tradição em ourivesaria. As téc-
ficado, que vai da prataria até a joalheria contemporânea, e que se nicas que aprendeu na Bélgica e a joalheria contemporânea ainda
destaca pela simplicidade e elegância de suas formas, assim como são pouco conhecidos no Brasil, e é esse manuseio que ele gostaria
pela sua habilidade técnica. Depois de seguir as primeiras aulas de de divulgar na sua terra natal.
ourivesaria, em uma escola particular de Belo Horizonte, o artista
se estabelece na Bélgica em 1992, então com 26 anos. Apesar de Inêz Oludé da Silva e a Bienal de artes
nunca ter planejado se instalar no país, ele expressa a sua satisfa- brasileiras de Bruxelas
ção de ter adotado a Bélgica e ser adotado por ela.
O primeiro aspecto relevante que contribuiu para o seu desen- Se o acaso trouxe à Bélgica os artistas que apresentamos an-
volvimento artístico é o acesso a formações e cursos de qualidade teriormente, o exílio político fez com que Inêz Oludé da Silva se
relativamente baratos em comparação a outros países. Depois da instalasse na Bélgica em 1976. Foi lá que ela encontrou na arte
sua chegada, Nilton Cunha completou a sua formação em joalhe- uma maneira privilegiada de expressar suas ideias e um meio de
ria, esmaltação e cinzel no Instituto Arts et Métiers, em Bruxelas, divulgação do seu engajamento. Autodidata, começou a pintar
de 1994 a 1999. Paralelamente, se especializou em ourivesaria no em 1991, mas tornou-se uma artista polivalente que se dedica
Instituut voor Kunstambachten, de Malines, entre 1998 e 2001. também à música, à dança e à arte postal; linguagem esta que
Desde esse período de formação, Nilton Cunha se destacou pela convém particularmente bem ao seu ativismo e que consiste em
qualidade do acabamento de suas peças e pela minúcia e precisão realizar colagens de pequeno formato com mensagens políticas
de sua realização técnica. Em 2000 sua obra Prato Valeiro venceu que são enviadas a outros artistas no mundo, estabelecendo assim
o prêmio Wim Ibens de ourivesaria contemporânea, e em seguida uma forma de arte livre de qualquer critério estético ou preocu-
foi apresentada no Museu do Design de Gand, onde recebeu uma pação comercial.
menção honrosa. No mesmo ano, o artista voltou ao Instituto Arts Além das ideias engajadas que ela faz circular com sua arte pos-
et Métiers, dessa vez como professor, onde lecionou até 2006 e, tal, a artista explica que vem lutando muito pelos artistas brasilei-
posteriormente, a partir de 2008. ros expatriados. Ela distingue os “artistas oficiais”, aqueles que são
O trabalho de Nilton Cunha também foi reconhecido fora da enviados pelo Brasil em exposições no contexto de acordos de co-
Bélgica, como indica, por exemplo, a sua participação em 2001 e operação, e os artistas “locais”, ou brasileiros residentes no estran-
2004 respectivamente nas 13ª e 14ª Silbertriennale em Hanau, na geiro, que não podem contar com o auxílio governamental mas
Alemanha, além dos diversos prêmios recebidos, como os presti- que na verdade constituem a memória viva do Brasil no exterior.
giosos SNS Bank Silver Day Public’s Prize, em 2006, e o Schoon­ Dois dos principais problemas que recaem sobre os artistas bra-
hoven Silver Award,em 2009, ambos em Schoonhoven, na Ho- sileiros no exterior são, segundo Inêz Oludé, a ignorância relativa
landa, e o Inhorgenta Innovation Award durante a Internationale à arte brasileira e os clichês sobre o Brasil. Efetivamente, a artista
Fachmesse für Uhren, Schmuck, Edelsteine, Perlen und Technologie insiste sobre o fato de que na Bélgica as pessoas desconhecem e até

289
parte 9 – artes plásticas

tor de compreensão recíproca que permite desconstruir clichês e


pré-concepções.
Depois de três edições ainda é difícil avaliar o impacto da Bie-
nal no intercâmbio cultural com a Bélgica. De toda forma, como
a dicotomia entre “artistas oficiais” e “artistas locais” permanece,
sua iniciativa firma-se como uma plataforma interessante para os
artistas brasileiros que residem no exterior. Até porque são eles
que melhor encarnam esse status de intermediários: entre me-
mória pessoal e memória coletiva no trabalho de Afrânio Fonseca
de Paula; entre paisagens reais e mentais no trabalho de Sidnei
Tendler; entre a esfera linguística francófona e lusófona na obra
de Nilton Cunha e entre engajamento pessoal e causa coletiva nas
iniciativas de Inêz Oludé da Silva. De forma consciente ou não,
estes artistas aparecem como mediadores e intermediários entre
duas realidades, entre a Bélgica e o Brasil, o que pode ser perce-
bido com um olhar atento às suas produções artísticas.

Agradecimentos: Afrânio Fonseca de Paula, Albano Afonso, Ana La-


cerda, Ana Leticia Fialho, Charles-Antoine Bodson, Cristina Barros,
Inês Oludé da Silva, Luciana Kujawski, Nilton Cunha, Paulo Cli-
machauska, Sandra Cinto, Sidnei Tendler. Este artigo foi concluído
em dezembro de 2012.

Olivia Ardui, formada em História de Arte pela Universidade Católi-


ca de Louvain-la-Neuve (UCL) com uma tese sobre a obra de David
Claerbout. Atua como curadora em São Paulo.

Bibliografia
As informações dos diferentes textos foram realizados a partir de entrevistas com os artistas e
‘Labirinto’, obra de Inêz Oludé da Silva.
com auxílio de documentos mencionados na bibliografia. As entrevistas aconteceram
em Bruxelas, no dia 2 de novembro de 2012 com Afrânio Fonseca de Paula e Sidnei
Tendler, dia 9 de novembro de 2012 com Inês Oludé da Silva e finalmente no dia 13
se perguntam se existe arte no Brasil. Essa foi a principal motiva- de novembro com Nilton Cunha.
ção que a estimulou a idealizar uma Bienal de artes brasileiras em Atelier Sidnei Tendler, About, 15/11/2012, [http://ateliersidneitendler.wordpress.com/
Bruxelas. Este evento tem como objetivo reunir e divulgar em uma about/], (04/12/2012).
Devoght T., 001. Sidnei Tendler, Turnhout, 1999.
exposição as obras dos artistas brasileiros que vivem e trabalham De Naeyer Ch., “Inêz Olude da Silva. L’expression comme nécessité”, Artenews, n°72,
na Europa, mostrando assim ao público europeu que o brasileiro maio 2011, p. 14.
é portador de uma cultura rica e diversificada. MintenI., “La classe ? C’est la personnalité qui joue avec le beau…”, ISEL, 21, p. 79-89.
Nys W., Nilton Cunha. Good Luck, catálogo de exposição, 25 de outubro de 2009 – 10
Em 2007, com o apoio da embaixada do Brasil na Bélgica e a de janeiro de 2010, Museu de ourivesaria Sterckhof da Província de Antuérpia, An-
Comune de Saint-Gilles, foi realizada a primeira Bienal de artes tuérpia, 2009.
brasileiras em Bruxelas. No catálogo dessa primeira edição, Inêz Oludé da Silva I. (ed.), Bienale des Arts Brésiliens de Bruxelles, Bruxelas, 2007.
Oludé da Silva I. (ed.), Catalogue 2eme édition 2009. Bienale des Arts Brésiliens de Bru-
Oludé expôs seus objetivos. Os principais são a realização de um xelles, Bruxelas, 2009.
mapeamento dos artistas brasileiros residentes na Europa, a di- Oludé da Silva I. (ed.), 3ème Biennale des Arts Brésiliens de Bruxelles. Catalogue 2011,
vulgação dos seus trabalhos no Brasil, assim como no exterior, e Bruxelas, 2011.
Ville de Bruxelles, “Witte Manneken-Pis Blanc” em Musées de la Ville, 01/12/2012, [http://
estimular e estabelecer as trocas entre o Brasil e a Europa. Dessa www.bruxelles.be/artdet.cfm/7156], (01/12/2012).
forma a arte adquire um papel de integração e se torna um ve-

290
pintura e escultura

Fonte de inspiração e temas de Luiz Figueiredo


Fr e d e r i k D e P r e e s t e r e P i e t S l i j k e r m a n

O Museu Dr. Guislain em Gand (Bélgica) tem uma grande coleção


internacional de arte marginal. Além das obras de Adolphe Wöl-
fi, Willem van Genk, Nek Chand, possui uma grande coleção das
obras de Luiz Carlos Pereira de Figueiredo. Em 2009, o museu pu-
blicou um catálogo em três idiomas (português, inglês, neerlandês,
100 p.) sobre a obra deste último. Este catálogo começou com uma
excelente introdução, escrita pelas mãos de Frederik De Preester e
de Piet Slijkerman, que descreve as fontes de inspirações de Figuei-
redo (Patrick Allegaert).

É difícil caracterizar a obra de Luiz Figueiredo. Ela é original


tendo em vista tanto a tradição brasileira quanto a europeia.
Embora possamos reconhecer elementos do barroco em seu tra-
balho, não podemos classificá-lo como sendo de um determinado
estilo. Tampouco basear seu trabalho em artistas do passado, mas
permanecer fiel ao seu estilo espontâneo.
Podemos, sim, notar um desenvolvimento em seu estilo, no
entanto, a linha de trabalho permanece a mesma: a representação
de suas ideias, de suas fantasias e do mundo ao seu redor. Sua obra
nos mostra sua interpretação de diferentes aspectos da vida brasi-
leira: a mundana, a religiosa, a artística e a marginal.
Figueiredo era extremamente impressionado com o barroco
luso-brasileiro. A alegria e a dramaticidade do mesmo podem ser
encontradas em sua obra. Simplicidade e serenidade não fazem
parte do seu vocabulário.
Ele não é muito religioso, pelo menos não é praticante, assim
como a grande maioria dos brasileiros. A religião é usada em caso
de emergência, se há, por exemplo, um problema a ser resolvi-
do, um mal olhado a ser afastado ou uma catástrofe a ser evitada.
Mas, ao mesmo tempo, a religião ocupa um lugar importante em
sua obra: não somente o catolicismo com sua forma barroca, mas
“Iemanjá”, de Luiz Figueiredo, 1982, papier-maché pintado.
também aspectos culturais afro-brasileiros com seus deuses, rituais
e espiritismo. Seu trabalho conta com inúmeras representações de
Cristo, Nossa Senhora e Iemanjá, deusa dos mares. enorme adoração por Josephine Baker, Carmen Miranda e Maria
Artistas de filme e televisão, o circo, o carnaval, a vida noturna Callas. A mesma adoração ele demonstra para as divas da rua e da
movimentada do Rio de Janeiro com seus teatros, cabarés, shows vida noturna: as prostitutas, os travestis e transsexuais, pessoas que
e bordéis são também uma importante fonte de inspiração para desafiam a moral burguesa e desenfreadamente ousam demonstrar
Figueiredo. suas índoles e sentimentos. Sua obra é densamente povoada por
As divas também exercem um grande poder de atração sobre divas, estrelas, prostitutas e artistas circenses. A via sacra, pietás e
o artista e aparecem com frequencia ao seu lado. No Brasil, entre representações natalinas se sobrepõem com cenas de bordéis, ce-
outras, destacamos: Nádia Maria, uma comediante; Watuzzi, dan- nários teatrais e festividades carnavalescas.
çarina e cantora do Moulin Rouge; Zezé Mota, atriz de televisão
e cinema; Elke Maravilha, modelo; Elza Soares, cantora; Wilma O artista plástico
Noel, atriz e escultora; Marisa, fotógrafa; Juliana Wagner, pianista
e numerologista; e Majoy Betancourt, correspondente e escritora. Com excessão ao curto período na academia de belas artes, Fi-
Na Holanda ele aprecia a companhia de Dany Zonewa, uma gueiredo é um verdadeiro autodidata. Ele não somente apresenta
cantora de ópera de origem búlgara. Em Londres é amigo de Moo originalidade na escolha de seus temas, mas também na técnica
Broughton, um arquiteto paisagista, mas também apresenta uma empregada, no estilo e nas cores utilizadas.

291
parte 9 – artes plásticas

Se existe uma característica que não possui é habilidade téc-


nica. Como especialista ele não é ninguém. Ele não possui a ca-
pacidade de preparar suas próprias telas, tampouco de montar
uma moldura. Não são poucas as vezes em que ele imagina uma
determinada obra e acaba necessitando de ajuda de terceiros para
colocar o plano em ação. Suas primeiras esculturas ele constrói
usando para isto garrafas e uma papinha de maizena e grude. Nes-
te momento, ele ainda não conhece a técnica do papier-maché e
esta maneira original usando maizena e grude gera clientes insa-
tisfeitos já que suas esculturas acabam atraindo insetos.
Todo este trabalho de preparação dificulta e limita seu pro-
cesso criativo em detrimento do prazer que tem em criar. Sendo
assim aceita agradecidamente com frequência a ajuda de profis-
sionais que lhe fornecem o material básico e sabem solucionar
problemas técnicos.
Embora aparentemente demonstre ser uma pessoa muito cal-
ma e relaxada, no seu dia a dia, lhe falta muitas vezes a paciência
necessária para deixar uma escultura de papier-maché secar na-
turalmente. Munido de sacos plásticos e secador de cabelo acaba
por levar o trabalho à ruína.
Ele tampouco é capaz de copiar ou imitar seu próprio traba-
lho, reproducões estão fora de questão. Ele raramente aceita en-
comendas e, quando o faz, o resultado geralmente é bem diferente
do que o cliente tinha em mente.
Seu trabalho tem um caráter alegre com exceção de umas
poucas obras dramáticas e, mesmo estas obras apresentam deta-
lhes alegres e amáveis.
Suas obras são muito coloridas e detalhadas. Suas esculturas
também são policromadas. Quando uma de suas coloridas ima-
“Madona Nossa Senhora”, de Luiz Fiqueiredo, 1983, acrílico sobre tela. gens de Iemanjá foi forjada em bronze para ser exposta no calça-
dão de Copacabana, ele lamentou a ausência das cores.
Nem para as pinturas nem para as esculturas ele parte de um Até no preparo de receitas culinárias ele dá mais atenção às
plano previamente elaborado. Impulsivamente ele começa a tra- cores do que aos sabores. Um prato sem cor é por definição um
balhar e sob a influência das circunstâncias, dos materiais dispo- prato insosso.
níveis e de seu humor, o resultado é, como se poderia esperar, Sua necessidade de aprovação, principalmente quando con-
totalmente imprevisível. Ele tem um anseio quase neurótico pa- frontado com uma crítica negativa, lhe gera insegurança. Para
ra desenhar e decorar. Com grande prazer ele passa horas, dias provar seu talento como artista plástico passa a basear seu trabalho
e semanas trabalhando em suas esculturas e pinturas. Isto acaba no estilo de outros artistas. Por exemplo, a fase “Kees van Don-
gerando uma imensurável quantidade de rascunhos, desenhos, gen”. Desta forma tenta provar que consegue pintar no estilo dos
pinturas e esculturas. “verdadeiros pintores”.
Mas também quando conversa ao telefone, ou espera para ser
atendido em um restaurante, ou mesmo deitado em uma esteira Patrick Allegaert é Diretor artístico do Museu Dr. Guislain de Gand.
na praia, ele desenha, usando para isto um livro, um gardanapo,
ou até a areia. Sua casa é cheia de estatuetas, bugigangas, enfeites, Frederik De Preester é Coordenador dos projetos de exposições do
quadros e molduras. Museu Dr. Guislain de Gand e escreve sobre arte, criatividade e de-
A obra de Luiz Figueiredo é uma expressão visual de sua ex- lírio.
pressividade impulsiva. Seu trabalho resulta de ato criativo, a idéia  
se desenvolve durante o processo. Ele encontra dificuldades em Piet Slijkerman foi assistente administrativo da cidade de Rotter-
assinar um quadro ao terminá-lo. Como se estivera lendo um livro dam em matérias de educação, renovação urbana e arquitetura. Pela
muito interessante e não quisesse chegar à última página. amizade com Luiz Figueiredo se interessou pela arte naïf brasileira e
Seu trabalho artístico representa para ele o mesmo papel que passou longas temporadas no Brasil. Escreveu o livro Cariocas. 
o futebol para a maioria dos brasileiros: algo que você não faz obri-
gado, mas, pelo contrário, o faz com prazer.

292
pintura e escultura

A trajetória da Galeria Cravo e Canela


Te x t o s o b r e J a c q u e s A r d i e s

J acques Ardies nasceu na Bélgica, em 1949, de mãe francesa


e pai belga. Diplomado em Ciências Financeiras e Comer-
ciais pelo Institut Catholique des Hautes Études Commerciales
línguas foi determinante para conseguir o emprego. Depois de
alguns meses, numa bela manhã, Jacques foi chamado pela dire-
toria que lhe informou que, por razões de conjuntura, não tinha
(ICHEC) de Bruxelas, complementou sua formação com um ano mais condições de pagar seu salário.
de estudos sobre Economia dos Países em Desenvolvimento na De repente, em alguns minutos, Jacques viu sua vida ser trans-
Universidade de Lovaina. formada em pesadelo. Ele demorou para se recuperar do susto.
Com seus diplomas e 25 anos de idade, Jacques decidiu trans- Alguns dias depois, decidiu que nunca mais viveria uma situação
ferir-se para o Brasil aonde deveria conseguir um trabalho por um parecida, na qual alguém pudesse transformar sua vida tão repen-
período de dois anos numa entidade onde atuaria em formação tinamente, e começou a pensar numa alternativa para se susten-
profissional ou ainda como professor. Esta era a condição imposta tar. Estava aberto a todas as ideias possíveis, inclusive àquelas que
pelo governo belga para ele conseguir a isenção do serviço militar não tinham relação com sua formação acadêmica. Surgiu então
que, na época, era obrigatório na Bélgica. a ideia maluca de abrir uma galeria de arte.
Depois de completar o período de dois anos, pensou na ideia Cliente de uma loja de produtos naturais e sem ocupação for-
de ficar mais um pouco nesta terra tão aconchegante. Trabalhou mal, Jacques foi solicitado pela dona da loja a pedir quadros em-
em um escritório de representação de um grupo bancário fran- prestados que pudessem decorar as três salas do andar de cima,
cês, instalado em São Paulo, durante dois anos. Foi chamado para onde seria feita uma ampliação do salão de chá.
trabalhar numa empresa de exportação que precisava de melhor Na hora ele achou aquilo um pedido absurdo. Como teria ela
comunicação com os clientes da Europa. O fato de falar várias a “pouca vergonha” de pedir a vários artistas quadros apenas para

“Brindando com os noivos”, de Edivaldo Barbosa de Souza, 2012, 90 x 150 cm.

293
parte 9 – artes plásticas

Essa amiga logo se entusiasmou com a ideia e prometeu dar


apoio apresentando os artistas e fornecendo contatos de amigos
executivos e empresários. Jacques voltou à loja de produtos natu-
rais e apresentou uma proposta de sociedade para a proprietária.
Assim nasceu, em poucos meses, a Galeria Cravo e Canela,
que foi inaugurada em agosto de 1979. A galeria ocuparia o espa-
ço do andar de cima da loja de produtos naturais, pagaria a me-
tade das despesas e seria especializada em arte naïf. Os artistas,
graças ao aval da amiga, entregaram todos os quadros solicitados.
A grande sorte foi que, naquele exato momento, não existia uma
única galeria em São Paulo que promovesse, divulgasse e comer-
cializasse a arte naïf. Havia uma oportunidade única e Jacques se
entregou de corpo e alma, com a energia e o entusiasmo dos seus
30 anos, a essa atividade que representava o preenchimento de
uma lacuna no universo das artes naquele momento.
Retrato de Jacques Ardies na companhia de Ernani Pavaneli na Galeria.
No começo, Jacques teve que improvisar e ter jogo de cintu-
ra para fugir das perguntas difíceis. Não tinha nenhuma forma-
esta finalidade? Meio bravo, ele retrucou que não teria a mínima ção em história da arte. Também não tinha ideia de como devia
possibilidade de atender a esse pedido tão surreal e que certamente funcionar uma galeria de arte. Começou a devorar livros de arte,
os artistas nunca aceitariam. dicionários, críticas, viajou bastante e, para o resto, usou o famo-
À noite, sonhou com a abertura de uma galeria de arte e no so “jeitinho brasileiro”, foi se fazendo de entendido, mas sem se
dia seguinte procurou uma amiga que, ele sabia, tinha contatos aprofundar no assunto. Recebeu apoio dos amigos que, de certa
privilegiados com alguns artistas, dos quais, por acaso, ele tinha maneira, admiravam a coragem de trocar uma carreira de um
apreciado as obras alguns meses antes. eventual futuro executivo por uma aventura sem nenhuma ga-

“O lambe-lambe”, de Ana Maria Dias, 2012, 50 x 80 cm.

294
pintura e escultura

“Na praia”, de Ivonaldo Veloso de Melo, 1996, 80 x 100 cm.

rantia de sucesso. E assim foi levando; conseguiu seus primeiros Em 2004, teve que deixar a casa da Rua do Livramento em três
clientes, artigos na imprensa e a reputação de galeria de arte onde meses, pois ali seria construído um prédio. Procurar um novo local
era agradável passar um fim de tarde. transformou-se numa tarefa bem mais complicada do que tinha
Um ano mais tarde, transferiu-se para uma casa mais ampla e imaginado: ou os imóveis estavam deteriorados ou o aluguel estava
melhor localizada, perto do Parque do Ibirapuera, inaugurando além de suas possibilidades. Com muita sorte encontrou uma bela
uma nova galeria à qual deu seu nome. Nessa casa, na Rua do casa de 1925, renovada, maior, mais luminosa e não muito longe,
Livramento, seria realizada uma quantidade importante de ex- no Bairro de Vila Mariana, mais precisamente na Rua Morgado
posições individuais e coletivas durante os 25 anos seguintes. Em de Mateus, onde a galeria está instalada até hoje.
1998, conseguiu publicar um livro sobre a arte naïf do Brasil, que Depois de completar os dois anos obrigatórios no Brasil, Jac-
teve excelente receptividade; o livro foi reimpresso duas vezes e ques pensou na ideia de ficar mais um pouco. Este pouco dura já
hoje encontra-se esgotado. Em 2002, teve também a sorte de po- quase 40 anos e não há perspectivas de modificar este quadro tão
der editar um livro sobre a vida e a obra do artista pernambucano cedo. Jacques é casado com Lucia Diniz, sua esposa e companhei-
Ivonaldo Veloso de Melo, comemorando uma parceria bem su- ra de todos os desafios. Tiveram três filhos: Maité, Joyce e Daniel,
cedida de 22 anos e que se mantém até hoje. todos formados e seguindo carreira profissional.

295
parte 9 – artes plásticas

Sobre a arte naïf, por Jacques Ardies inconsciente coletivo. Há muita poesia, observação encantadora,
uma desajeitada habilidade charmosa, uma mensagem positiva
É uma classificação para definir um grupo de pintores que ex- e, enfim, um mundo encantado. Os olhos agradecem por tanta
pressam livremente suas memórias e suas emoções. Sem a ajuda beleza e sutil emoção. Os meus clientes costumam sorrir quando
de um professor de Belas Artes, eles conseguem superar as difi- observam os quadros expostos.
culdades técnicas e inventam uma linguagem inédita e pessoal. Depois da revolução da arte moderna, vivemos uma implacá-
A palavra francesa naïf significa ingênuo, e foi dada ao estilo apre- vel necessidade de apresentar novidades no mundo das artes. A
sentado por Henri Rousseau, que se juntou aos revolucionários arte conceitual, as performances e as instalações requerem grande
da arte moderna. Rousseau era uma pessoa sensível que vivia um concentração e leitura de muitas explicações esclarecedoras. A ar-
pouco fora do seu tempo. Ele tinha o seu lado bem ingênuo e te virou um terreno fértil para muitas extrapolações que aparecem
sua pintura espontânea encantava pelo talento criativo e inédito. tão rapidamente quanto são esquecidas, assim que os efeitos das
Tenho um fascínio pela arte naïf porque ela se inspira nas modernas técnicas de marketing desmoronam. Neste contexto, a
raízes culturais. Penso também que representa uma expressão ar- arte naïf oferece um sopro de ar fresco, uma obra honesta e dedi-
tística de grande valor pela criativitade e orginalidade de seus ar- cada, uma expressão sem maior implicância intelectual, apreciada
tistas. Cada um apresenta uma obra diferenciada, inconfundível, e admirada pelo povo e também pelos intelectuais e colecionado-
expressiva e que se inspira em sua vivência pessoal e invade o nosso res contemporâneos.

Arte Popular Brasileira


Daniel Achedjian

M inha descoberta e meu interesse pela Arte Popular Brasileira


se devem a um cruzamento de fatores.
Depois de estudar História da Arte no Instituto Real de Belas
nadores – como César Aché, Vittoria Pardal, Vilma Eid –, com
especialistas – como a saudosa Lélia Coelho Freitas (1938-2010)
–, e os marchands que não se tornaram cegos devido ao sistema do
Artes de Bruxelas, nos anos 80, e focando minha paixão pelas ar- mercado da arte – como o dono de galeria Jacques Ardies ou Ana
tes plásticas da época moderna e contemporânea, foi apenas no Maria Shindler –, comecei a juntar, há alguns anos, uma coleção
início dos anos 2000 que me dei conta da riqueza desta arte ain- significativa que, talvez um dia, decida expor de alguma forma. Ela
da injustamente depreciada. A Arte Popular continua sendo, no compreende, entre muitos outros nomes, os pintores José Antônio
entanto, essencial para se poder perceber o Brasil na sua essência da Silva, Júlio Martins da Silveira, Maria Auxiliadora, Miriam,
e identidade, e isto através de obras de grande qualidade estética, Heitor dos Prazeres e Rosinha Becker do Vale; e dos escultores
quando evocamos seus melhores mestres, tanto em pintura como em madeira ou barro Vitalino Pereira dos Santos, GTO, Chico
em escultura. Tabibuia, Artur Pereira e Isabel Mendes de Cunha.
Na verdade, foi através da música que por ela me interessei, Filho de colecionador da escola belga moderna tive, inicial-
e, depois, me apaixonei. Cada escultura de Mestre Vitalino não mente, que me libertar de regras e ideias próprias do mercado da
é um tema recorrente de Luiz Gonzaga, como cada pintura de arte tradicional, como o sistema de cotações, as salas de leilão, as
Heitor dos Prazeres, não expressa a alegria e o convívio de uma estratégias de galerias, os modismos, em suma, tudo o que faz gi-
‘roda de samba’? rar um mercado lucrativo, com seus bons e (muitos) maus aspec-
Através de grandes compositores, como através de inúmeros tos, onde a obra de arte em si deixou de ser o centro de interesse.
mestres da Arte Popular, aprendi a conhecer um pouco melhor Foi preciso, também, reavaliar a ideia de peça única e de atelier.
o Brasil, suas festas, suas tradições, suas lendas, sua história, mas Foi difícil abstrair estes conceitos, visto que a Arte Popular é
também seu cotidiano e o imaginário específico de cada região. concebida por artistas que assinam, produzem e devem também
Cada uma dentre essas manifestações é o cruzamento de várias ser responsáveis pela divulgação. Nos primórdios, os artistas po-
culturas, vindas dos quatro cantos do mundo, que se misturaram pulares não criavam com esta visão, mas o mundo do mercado da
com as tradições locais. Arte se envolveu neste emaranhado, e certos colecionadores não
Após ter consultado inúmeros livros (muitas vezes difíceis de hesitam em afirmar que, tendo se tornado financeiramente inte-
encontrar, pois, com frequência, antigos e esgotados), visitar dife- ressados, os artistas populares de qualidade não existem mais…
rentes espaços culturais – como o Museu Casa do Pontal no Rio O primeiro grande obstáculo que a Arte Popular encontra, ou
de Janeiro, legado do franco-belga Jacques Van den Beuque, e a Arte Naïf, no que diz respeito à pintura, é sua própria definição.
também o Museu Afro-Brasil de São Paulo e o Museu do Folclore Cada obra sobre o assunto dedica páginas inteiras para expli-
no centro da capital carioca –, após ter conversado com colecio- cá-la, para valorizá-la em relação à arte tradicional, como se fosse

296
pintura e escultura

necessário desculpá-la de ser o que é. Perde-se, então, muito tem-


po antes de, simplesmente, falar dos artistas e de suas criações,
o que constituiria, sem sombra de dúvida, um atalho através do
qual o amante compreenderia, por si próprio, o interesse e o valor
artístico de suas criações.
Cada autor aplica a sua teoria – que se resume, geralmente, em
dizer que a fronteira com a arte estabelecida é tão móvel quanto
arbitrária –, mas a definição que permanece como um bom deno-
minador comum é dizer que a Arte Popular é a expressão artística
de pessoas que não possuem formação formal nem acadêmica,
mas cujas obras refletem uma tradição estabelecida de estilo e de
savoir faire (conhecimento).
Podemos acrescentar a isto que o savoir faire em questão é,
frequentemente, transmitido pela família e depende dos materiais
encontrados no meio ambiente natural. Sem ser uma regra abso-
luta, é, de fato, muitas vezes, o caso.
Na verdade, a Arte Popular é uma arte contemporânea nascida
no século XX, a partir do momento em que o artista quis exaltar o
objeto de arte como um fim em si mesmo. Não se deve confundir
com o Artesanato, feito de objetos de uso que possuem, algumas
vezes, qualidades estéticas inegáveis, e menos ainda com a produ-
ção massiva de objetos souvenirs decorrentes da Arte Popular em si.
Enfim, quanto à questão de saber se a Arte Popular Brasileira
não poderia ser anterior ao século XX, observemos ainda a opinião
da escritora e historiadora de arte Lélia Coelho Frota.
Para ela, existiam, de fato, manifestações individuais de inspi-
ração popular, mas a busca de um estilo e o desejo de criar uma
obra global e uma biografia, só datam, de verdade, a partir do sé-
Escultura de Mestre Vitalino.
culo passado. Lélia C. Frota, aliás, assinou o Pequeno dicionário
da arte do povo brasileiro, obra de referência que reúne a biografia
de 150 principais artistas populares do século XX. der que a pintura naïve não é um estilo, mas sim o qualificativo
atribuído a um grupo de artistas que não seguiram uma formação
A pintura: popular, naïve, ingênua, primitiva, artística tradicional. A definição da arte popular, em suma.
bruta, regional? Também é importante ressaltar que a maioria destes pintores
trabalhou e expôs, cada um em seu tempo, com os pintores qua-
Meu primeiro contato com as artes plásticas populares foi com lificados como eruditos – e desde então reconhecidos – e que es-
a pintura dita naïve por intermédio de um pintor que não tinha tes últimos admiravam enormemente estes autodidatas por serem
como não chamar a minha atenção: Heitor dos Prazeres (1898- livres de regras de ensino.
-1966). Este artista, testemunha e ator da vida boêmia do Rio de Infelizmente, com o tempo, os organismos oficiais ocultaram
Janeiro no meio do século XX e da idade de ouro do samba, pos- os naïfs, que podiam prejudicar um cenário artístico que queria
suía uma linguagem que só podia me seduzir. Foi através dele se alinhar com o intelectualismo frenético da cena mundial con-
que tomei conhecimento de outros pintores revestidos do mesmo temporânea. Eles não tiveram direito a exposições individuais de
qualificativo naïf, que eu logo achei incômodo por dar um sentido envergadura, nem a uma biografia digna de suas contribuições
pejorativo e sobretudo diminutivo. para a cultura brasileira. Porém, é bom lembrar que a grande ex-
De fato, em alguns, eu encontrava um expressionismo potente posição de Arte Popular Brasileira do ano do Redescobrimento
(José Antonio da Silva, Maria Auxiliadora), uma visão impressio- do Brasil, em 2000, em São Paulo, ilustrado com um magnífico
nista (Pavaneli, Júlio Martins da Silveira), uma tendência à abstra- catálogo, teve mais sucesso de público do que a mostra dos pin-
ção (Alcides Pereira dos Santos, Sílvia) ou uma linguagem feita de tores modernistas.
alegorias fantásticas (Chico da Silva, Iaponi Araújo) ou surrealista
(Crisaldo Moraes, Paulo Wladimir). Estamos longe das paisagens A Escultura Popular…
coloridas, tranquilas e idílicas com grande teor decorativo, às vezes
tingidas de humor, que para a maioria dos amantes da arte sim- Se a arte dos escultores populares deve ser classificada como
boliza o estilo naïf. Ora – e uma vez por todas! – é preciso enten- contemporânea, não existe, em compensação, um real desejo da

297
parte 9 – artes plásticas

parte destes de mergulhar na vanguarda. No entanto, alguns de- a produção do artista popular data, em geral, da sua maturidade.
les, apesar de tudo, dela participam. Existe um exemplo mais belo Um exemplo entre tantos outros, um dos maiores escultores de
de arte minimalista que a de Nhô Caboclo (c. 1910-1976), genial madeira do Brasil, Geraldo Teles de Oliveira – GTO (1913-1990)
criador de ascendência indígena, que alia modernidade e cultura –, só entra de cabeça no trabalho a partir de 1965 – ou seja, quan-
ancestral naqueles navios de guerreiros e de escravos? do o artista já está com 52 anos –, e ele só atinge a plenitude da
Mas a maioria dos artistas populares partiu dos objetos de uso. sua arte uma década depois. E não se trata de um caso extremo.
Assim, a inspiração das esculturas do Vale do Jequitinhonha (Mi- Pode-se notar que assistimos, para alguns destes artistas, um
nas Gerais) vem das antigas moringas que podiam guardar a água certo efeito rotor: em um momento da sua vida, um artesão aban-
fresca nesta região seca. Por sua vez, Mestre Guarany (1882-1979) dona o seu lado utilitário para se dedicar definitivamente à cria-
esculpiu as famosas carrancas para as embarcações que navega- ção artística. Este, em questão, adquire, então, sua autonomia
vam no Rio São Francisco, mas a grande maioria destas obras foi e pode, algumas vezes, reivindicar um certo reconhecimento. E
criada depois que a utilização destas cabeças de proa fantásticas seu sucesso é tal que a demanda fica cada vez maior. O artista é,
foram descartadas. Essas obras passaram a ser esculpidas enquanto então, forçado a trabalhar sob encomenda, repetindo suas obras
objeto de arte em si. mais populares e perdendo, desta forma, toda sua alma criativa.
Da mesma forma, Vitalino Pereira dos Santos (1909-1963), Ele se vê de volta ao lugar onde começou: rumo à produção em
no início, criava seus personagens com barro para fazer brinque- série, ainda menos interessante que o artesanato.
dos, antes de suas peças se tornarem estas magníficas testemunhas Muitas vezes ele não tem escolha, pois é deixado proposital-
da vida nordestina, muito apreciadas pelos colecionadores atuais. mente nos limites de uma certa pobreza pelos marchands pou-
O artista popular é, geralmente, fruto de condição modesta, que co escrupulosos. Dão-lhes apenas o suficiente para cobrir suas
possui um nível de educação e de cultura um tanto restrito. Ele necessidades e para trabalhar. Os lugares de difícil acesso onde
não tem formação artística. É um criador intuitivo e instintivo que vivem não lhes permitem usufruir de alguma concorrência, nem
produz uma arte autêntica, mas, contudo, muitas vezes, sofistica- de promover sua arte. Grandes nomes, como o famosíssimo es-
da; um homem ou uma mulher que trabalha duro e que se dedica cultor ceramista de Pernambuco, Mestre Vitalino, não escaparam
ao seu meio de expressão (pinturas, esculturas) após suas horas de dessa armadilha. Por isso, os colecionadores de hoje se focam na
‘batente’, ou assim que entram na aposentadoria. Seu ambiente produção que o artista criou quando este não estava sujeito a ne-
de vida é simples e rústico, nos vilarejos remotos do interior do nhuma restrição. Quando ele ainda não havia sido engolido pelo
Brasil, na costa ou nas periferias das grandes cidades. Não se trata comércio e pela superprodução.
aqui de fazer o retrato romântico do artista vivendo em condições
precárias que, na dor e na miséria, percebe que tem, de repente, Daniel Achedjian, doutor em História da Arte, se apaixonou pela
o dom de criação. música e arte popular brasileira. Constituiu uma grande coleção em
Muitas e muitas vezes ele foi, inicialmente, artesão para so- Bruxelas, onde, como radialista, mantém o programa “Tropicalia”
breviver, antes de se tornar artista para se expressar. Vemos que na Rádio Judaica.

Europalia.Brasil 2011-2012 ou como quase um milhão de


visitantes descobrem ou redescobrem a cultura brasileira
Kristine De Mulder

L ançado em Bruxelas em 1969, Europalia é um grande festi-


val internacional que apresenta bienalmente a essência do
patrimônio cultural de um país, na Bélgica e em diversos outros
Enquadrado por acordos com o governo do país convidado, o
programa do festival se prepara com a ajuda de especialistas cultu-
rais internacionais e se elabora num clima de estreita colaboração
países europeus. De outubro a fevereiro, o festival encena todas as entre a equipe do Europalia e a do país convidado. Nestes moldes
expressões artísticas em centenas de eventos: música, artes plásti- o Europalia organizou 23 festivais e festejou quase todos os países
cas, cinema, teatro, dança, literatura, arquitetura, design, moda, da Europa e, ainda, vários do resto do mundo como o México, o
gastronomia... O objetivo do festival é promover o diálogo entre Japão, a Rússia, a China e, em 2013, a Índia. Cada festival tem
as culturas pela apresentação tanto de seu patrimônio cultural recebido o alto patrocínio de S. M. o Rei dos belgas e do Chefe
como de sua cena contemporânea e de lançar pontes para rela- de Estado do país homenageado.
ções duradouras entre o país convidado e as instituições culturais
implicadas na Europa.

298
pintura e escultura

A Presidenta Dilma Rousseff com o Rei Albert II e a Rainha Paola por ocasião do festival Europalia.Brasil.

Ritmos, cores, formas... Em 2011-2012, Europalia fez ra em 2009, na época ministro da Cultura, que deu luz verde ao
a festa do Brasil projeto e determinou suas grandes linhas. Em seguida, em 2011,
Ana Buarque de Hollanda, ministra nomeada pela nova presiden-
24 exposições, 137 concertos, 105 encontros literários e con- ta, Dilma Rousseff, retomou o projeto. Dois comissários-gerais
ferências, 62 espetáculos de dança, 31 apresentações teatrais, 4 investiram toda sua energia nesse vasto projeto: Sérgio Mamberti
espetáculos de circo, mais de 100 sessões de cinema... Quer dizer e Pierre Alain De Smedt.
1.033 artistas e especialistas vindos do Brasil para o festival, 208 Ritmos, cores, formas… patrimônio e arte atual: mais de 200
parceiros culturais na Bélgica, 103 dias de festival, 71 cidades, 5 sítios culturais na Bélgica e nos países vizinhos deixaram o público
países e finalmente 913.000 visitantes e espectadores. O festival europeu descobrir o Brasil, sua vitalidade, seu calor, sua abundân-
Europalia.Brasil foi um verdadeiro ‘fogo de artifício’ cultural. cia de identidades e de culturas.
País em movimento, resolutamente moderno e orientado sobre
o futuro, o Brasil soube valorizar suas origens e o mosaico de povos Exposições ‘sob medida’
que o compõem. Mistura um mundo inteiro: dos herdeiros dos
colonos europeus aos índios da Amazônia, dos afro-brasileiros aos Brazil.Brasil, no Palácio de Belas Artes de Bruxelas, traça a
numerosos imigrantes japoneses, libaneses, italianos ou alemães. busca apaixonante de uma expressão da diversidade e da(s) iden-
O desafio era o de confrontar o público europeu o melhor possí- tidade(s) do Brasil por artistas brasileiros, ansiosos de liberarem-se
vel com esta complexidade. E de ultrapassar os estereótipos que do barroco onipresente e das influências coloniais. Desde o início
somente se limitam a aspectos como o futebol, as favelas, o samba do século XIX, com sua ‘arte nacional’, preconizada pela monar-
e o carnaval. O tema da diversidade se impôs quase naturalmente quia e academia brasileiras, até o início do século XX, quando os
e permitiu ao público perceber o país sob este prisma diferente. artistas brasileiros procuram desvelar a alma de seu país, resultan-
O conjunto do programa foi elaborado em colaboração com do numa arte moderna própria. Os comissários desta exposição,
o Ministério da Cultura do Brasil. O impulso veio de Juca Ferrei- Ana Maria de Moraes Belluzzo, Julio Bandeira, Victor Burton e

299
parte 9 – artes plásticas

Montagem da tela “Primeira Missa do Brasil, de Victor Meirelles, de 1860, na exposição para o festival Europalia.Brasil.

Lorenzo Mammi, fizeram o público europeu conhecer a história ção singular se refletia em todas as expressões artísticas: desenhos,
da arte brasileira, e notadamente do modernismo incontornável. pinturas, esculturas, objetos de arte, ourivesaria e, também, nas
Entre os artistas apresentados: Aleijadinho, Victor Meirelles, Je- ciências. O roteiro da exposição narra 400 anos de história, desde
an-Baptiste Debret, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Cícero a descoberta portuguesa do Brasil, passando pela época holandesa,
Dias, Emiliano Di Cavalcanti, Oswald de Andrade, Vicente do as expedições alemãs, francesas e portuguesas e a longa história
Rego Monteiro, Candido Portinari, Lasar Segall, Oswaldo Goeldi, colonial até o Império brasileiro do século XIX e o início da Repú-
Arthur Bispo do Rosário, Alfredo Volpi… blica. Comissários: Valéria Piccoli, Eddy Stols, Patricia De Peuter.
Índios no Brasil, no Museu do Cinquantenaire de Bruxelas, Art in Brasil, no Palácio de Belas Artes de Bruxelas, esboça a
levou o visitante ao coração da Amazônia brasileira e à descoberta evolução e a revolução na arte brasileira dos anos 1950 até hoje.
da imensa diversidade dos povos indígenas. Um percurso inédito Um tema e uma exposição originais vistos pela primeira vez na
permitiu mergulhar no meio de sua vida cotidiana, de encontrar Europa a partir de uma perspectiva brasileira. Comissários: Ronal-
seus xamãs, de compreender sua organização social e de partici- do Brito, Vanda Klabin, Guilherme Bueno, Sonia Salceido, Cauê
par de seus ritos. Cestarias, cerâmicas, máscaras, instrumentos Alves, Marcus Lontra, Alexandre Dacosta, Luiz Camillo Osório,
musicais ou suntuosos cocares de plumas, objetos utilitários ou Luiz Eduardo Meira de Vasconcellos.
sagrados revelavam aos olhos do público todo um universo desco- A Rua, a exposição apresentada no MuHKA, Museu de Arte
nhecido de uma incrível vitalidade. Comissários: Lucia Hussak Contemporânea de Antuérpia, trouxe cerca de 20 artistas, cuja vi-
van Velthem, Gustaaf Verswijver. da e obra têm relação peculiar com a cidade do Rio de Janeiro. A
Terra Brasilis, no Espaço Cultural ING de Bruxelas, mostrou exposição se concentrou sobre a evolução da cena artística do Rio
a influência recíproca entre a Europa e o Brasil na descoberta, ao longo dos quatro últimos decênios e focalizou a noção da rua e
valorização e exploração da fauna e flora brasileiras. Esta intera- seu papel na produção artística carioca contemporânea. Os artistas

300
pintura e escultura

apresentados: Artur Barrio, Ricardo Basbaum, Waltercio Caldas, por ocasião do festival e contribuíram com 64 conferências, de-
Lygia Clark, Dias & Riedweg, Guga Ferraz, Ivens Machado, Anna bates e leituras. Um êxito e uma surpresa, visto o número limi-
Maria Maiolino, Antonio Manuel, Cildo Meireles, Ernesto Neto, tado de autores brasileiros traduzidos para o francês e sobretudo
Helio Oiticica, Arthur Omar, Rosana Palazyan, Lygia Pape, Paula para o n­ eerlandês. No total, 24 intervenientes, como João Ubaldo
Trope, Alexandre Vogler… Comissário: Dieter Roelstraete. Ribeiro, Augusto de Campos, Bernardo Carvalho, Zuca Sardan,
Vinte outras exposições trataram de temas muito diversos, tais Lourenço Mutarelli, Ricardo Domeneck, Arnaldo Antunes, Da-
como a arte afro-brasileira, a fotografia, a gravura, o design, a ar- niel Galera e Chico Alvim.
quitetura com mostras particulares dedicadas a Lina Bo Bardi, Cinema: Cinco encontros com cineastas brasileiros e pelo me-
Sérgio Bernardes, Paulo Mendes da Rocha e à cidade de Brasília, nos 100 projeções foram organizados durante o festival. Um con-
ou ainda sobre Arthur Bispo do Rosário, os carnavais brasileiros, vidado de honra: Walter Salles.
Copacabana, as joias afro-brasileiras, a febre do ouro, os diaman- Fundamentalmente, Europalia quis, como de seu costume,
tes, as viagens do Rei Leopoldo III ao Brasil e Tintin no Brasil. acentuar os encontros e suscitar ou despertar as colaborações en-
tre os artistas belgas e brasileiros. Dentro desta ótica, dançarinos e
Eventos de artes cênicas… completas! atores brasileiros foram acolhidos para desenvolver os projetos em
residência. O concerto de Thoots Thielemans e de seus ‘Brazilian
Os eventos musicais tiveram um êxito impressionante. Uma friends’ foi um dos momentos memoráveis do festival.
tamanha concentração de cultura brasileira não é pão de todo dia O Clube Brasil, instalado a dois passos da Grand’ Place de
na Europa e os amantes de música se regalaram. Do Norte ao Sul, Bruxelas, foi o coração vivo do festival, com suas irresistíveis cai-
os diversos estilos e tendências atuais puderam expressar-se nas pirinhas, seus cursos de dança, seus concertos e seus ateliês gra-
cenas europeias. Entre os artistas: Teresa Cristina, Tom Zé, Velha tuitos, um lugar de reunião e convivialidade com a comunidade
Guarda da Portela, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Hamil- brasileira na Bélgica.
ton de Holanda, Naná Vasconcelos, Dona Cila, Chico Pinheiro, Europalia.Brasil foi uma aventura artística e humana, apaixo-
Céu, Barbatuques, Marlui Miranda, Chico Correa, Dj Dolores, nante e enriquecedora; um encontro entre a Europa e o Brasil,
DJ Tudo… Samba, forró, choro, coco, dj’s & vj’s, música tradicio- país vasto como um continente que, certamente, não deixará de
nal ou experimental, grandes clássicos ou underground, um pouco surpreender nos próximos anos.
de tudo, para todos os gostos!
Em matéria de dança, Europalia acolheu com orgulho e ad- Kristine De Mulder é formada em Arquitetura de Interiores e em
miração o Grupo Corpo, mas também Lia Rodrigues, Balé Fol- Arqueologia e História da Arte na Universidade Livre de Bruxelas
clórico da Bahia, Mimulus, Quasar e ainda Marta Soares e Mar- (VUB), fez carreira como curadora de arte e de comunicação no
celo Evelin. O teatro também participou da festa com Zé Celso, setor acadêmico, mediático e empresarial e é desde 2003 diretora-
monstro sagrado por excelência, Enrique Dias e Cibele Forjaz. E -geral da Europalia International, além de membro dos conselhos
para os amantes do circo e dos mamulengos: a espantosa Intrépida de administração do Festival van Vlaanderen e do Concours Reine
Trupe, a magia do Grupo Giramundo e da Nau de Ícaros. Elisabeth. Recebeu em 2012, por seu engajamento cultural, o títu-
Literatura: Poetas, escritores, filósofos, professores e especia- lo de baronesa.
listas da literatura brasileira vieram em grande número à Belgica

301
histórias em quadrinhos

O cartunista Ronaldo Cunha Dias

R onaldo Cunha Dias, o médico cirurgião, e Ronaldo, o cartu-


nista são a mesma pessoa. Nasceu em 1951 em Vacaria, Rio
Grande do Sul, onde atua como médico cirurgião há 30 anos.
convidado a participar da publicação dos 80 anos do jornal Le
Canard Enchaîné, na França.
Com várias mostras coletivas e individuais, é autor de vários
Desde sua infância gostou de desenhar, paixão que o acom- livros: O homem que ri, Posso rir agora, doutor?, Sorria... você está
panha até hoje. Sempre diz que o cartunismo é apenas um passa- em extinção e Enquanto seu médico não vem. Participou também
tempo, um hobby que lhe dá imenso prazer, que tudo começou de várias coletâneas com outros autores.
quando, em 1985, ganhou o primeiro prêmio “Revista Playboy Seus desenhos passaram por vários países, entre os quais a Bél-
procura novos humoristas”. gica, onde participou como jurado do 35º Festival Internacional
Incentivado por este prêmio e convidado a colaborar com a de Cartum de Knokee-Heist, e onde foi curador da mostra Brasil
revista, não parou mais. Desde 1995 é chargista do jornal Pionei- Cartoon, que reuniu trabalhos de vários cartunistas brasileiros,
ro, de Caxias do Sul, e colaborador do jornal Zero Hora. Publi- eentre eles Ziraldo, Edgar Vasques, Santiago. Ganhou inúmeros
cou seus desenhos nos Estados Unidos, através do Cartoonist & prêmios no pais e exterior e hoje é considerado um dos cartunistas
Writers Syndicate, e, na Europa, pelo Joker Feature Service. Foi brasileiros mais premiados em salões de humor.

Cartum de Ronaldo Cunha Dias,


médico e cartunista.

302
histórias em quadrinhos

Caatinga
Hermann Huppen

E m novembro de 1991 fui convidado, assim como outro de-


senhista, para um festival de histórias em quadrinhos no Rio
de Janeiro. Nós éramos, de alguma maneira, os representantes
desse tema para uma história em quadrinhos ficava mais precisa.
Eu não queria desenhar a vida de Lampião, mas me servir do qua-
dro histórico da época para inventar uma história. Porém, eu não
das histórias em quadrinhos belgas. Os contatos foram estabele- queria cometer erros.
cidos entre essa organização e o representante da Comunidade Eu precisava de documentação sobre o tema, do qual eu não
Valônia, da Bélgica. conhecia nada além da lembrança do filme. Vasculhei em vão as
Eu já tinha tido contatos com um dos organizadores do festi- livrarias, as bibliotecas. Eu precisava não somente das informações
val, Julio Braz, admirador de meu trabalho quando de sua passa- históricas e sociológicas, mas, igualmente, da ambiência natural,
gem por Bruxelas. Penso que ele deve ter influenciado seus colegas das flores, dos animais se eu quisesse respeitar o quadro da aven-
do festival em meu favor na escolha dos convidados. tura que eu queria ilustrar.
O Rio de Janeiro exerce uma sorte de fascinação sobre nossos Aí, Julio Braz foi providencial. Ele me forneceu os livros que me
espíritos europeus. Minha mulher, então, insistiu em me acom- deram um quadro histórico e sociológico, uma biografia de Lam-
panhar. Sua presença foi importante, pois ela desempenhou um pião e de sua companheira, Maria Bonita, a origem e a evolução dos
papel capital na aventura de Caatinga. cangaceiros para o banditismo, assim como numerosas fotos tanto
Para mim, a estada foi dividida entre turismo e obrigação de desse último como de políticos e militares ligados a tal bando. E
estar presente no festival e nas sessões de dedicatórias. E, claro, um belíssimo livro de fotos do Sertão. E aprendi a ler em português!
a compra de cartões-postais a serem enviados para a família e os Eu também aprendi sobre o poder dos grandes proprietários de
amigos é uma restrição à qual deve se submeter todo turista. terra, sobre a miséria da classe desfavorecida, sobre os pregadores...
Fazendo sua escolha, minha esposa viu reproduções de foto- Todo um mundo que, aos poucos, me invadia e do qual eu sentia
grafias antigas, de um lado, de Lampião e seu bando, mostradas se elevar o desejo de dele me servir para contar a “minha” história.
no jornal O Povo em 1926 e, de outro, de sertanejos dos anos de Uma manhã eu peguei um lápis e comecei a colocar no papel
1960. Ela estava seduzida e os comprou. Assim, esse é seu papel as primeiras ideias do cenário e esbocei as primeiras silhuetas dos
capital para Caatinga. personagens que eu ia fazer viver ao longo das páginas de Caatinga.
A foto dos cangaceiros me lembrou um filme que teve grande
sucesso nos anos de 1960, quando ele estreou na Bélgica, “o Can- Bibliografia
gaceiro”, e a canção “olê mulé rendeira” retornou aos meus lábios. Billy Jaynes Chandler, Lampião, o rei dos congaceiros; Melchiades da Rocha, Bandoleiros
De volta a Bruxelas, essa foto, associada à lembrança do filme, das Caatingas; Eduardo Barbosa, Lampião, rei do cangaço; Carlos Alberto Dória, O
girava em minha mente. Pouco a pouco a vontade de me apropriar Cangaço; Ronald Daus, O ciclo épico dos cangaceiros na poesia popular do Nordeste.

Cartão-postal que inspirou Harmann Huppen


a desenhar Lampião.

303
parte 9 – artes plásticas

Interpretação da
personagem Lapião
pelo desenhista e
cenarista Harmann
Huppen.

304
fotografia

A oficina litográfica de Leon de Rennes


Jamil Abib

A litografia, implantada no Rio de Janeiro na década de 1820,


marcou o mercado gráfico oitocentista brasileiro, principal-
mente na década de 1870.
sucessivamente: para a Rua da Guarda-Velha nº 35, Rua do Ouri-
ves nº 31 e, finalmente, com a abertura da Avenida Central, para
a Rua da Assembleia nº 75.
Papel relevante exerceu nesse desenvolvimento a vinda de téc- Desenvolveu relevantes serviços com as então modernas má-
nicos especializados estrangeiros. A produção abrangia circulares, quinas de tipografia, litografia e cromolitografia. Ampliou os tra-
fac-similes, letras de câmbio, faturas, bilhetes d’adresse, bilhetes balhos com os serviços de encadernação, estereotipia, galvano-
de visita, cartas geográficas, planos topográficos, vinhetas, letrei- plastia, zincografia e fotogravura. Especializou-se na impressão
ros, música etc. de etiquetas de luxo, mapas, diplomas de sociedades, ações de
Nas décadas de 1860-70, tornaram-se populares as práticas de companhias etc.
realizar estampas a partir de fotografias: vistas, retratos e cenas po- À nova razão social, Leon de Rennes e Companhia, agregou o
pulares. Dentre as últimas oficinas litográficas instaladas no Rio sócio titular mais o baiano João Ferreira Pinto, João Alves Feitosa,
de Janeiro, no final do século XIX, encontramos a do belga Leon Adelaide Basten e Ramiro Botelho Aranha. Com a liquidação da
de Rennes & Cia. firma e o possível retorno de Leon de Rennes para a Bélgica, por
Leon de Rennes chegou ao Rio de Janeiro a chamado da anti- volta de 1910, João Ferreira Pinto continuou com a oficina, que
ga casa Paulo Robin, a Companhia de Artes Gráficas. Meses depois se chamou, mais tarde, Ferreira Pinto e Companhia.
de deixar a companhia, abriu seu próprio estabelecimento, na Rua Em 1º de agosto de 1898, a Lei nº 496 definiu e garantiu os
do Carmo nº 16. Em busca de melhores instalações, mudou-se direitos autorais de obras nacionais, estabelecendo o registro feito

A subida da Serra, Teresópolis.

305
parte 9 – artes plásticas

O leiteiro no Rio de Janeiro.

Avenida Central, Rio de Janeiro, onde se vê, perto da esquina, à esq., o


Igreja de Santa Rita, Rio de Janeiro.
estabelecimento de Leon de Rennes, fotografia de Marc Ferrez.

na Biblioteca Nacional como uma formalidade constitutiva do Sua produção distinguia-se pela originalidade das ilustrações,
Direito Autoral. ângulos e objetivos fotografados, tanto no Rio de Janeiro como em
O primeiro registro no Escritório de Direitos Autorais da Bi- outros lugares do Brasil, como Minas Gerais, Bahia, Pernambuco.
blioteca Nacional foi o da “Lithographia e Cromolithographia” da O legado iconográfico-documental deixado por Leon de Ren-
empresa Leon de Rennes e Cia. – requerido em 14 de outubro de nes faz dele um dos editores mais procurados e valorizados pelos
1898, deferido em 7 de dezembro de 1898, com termo lavrado colecionadores e estudiosos do passado brasileiro.
em 16 de dezembro de 1899 (Livro 1, fl 1, nº 1).
No início do século XX, Leon de Rennes estava entre os pio- Monsenhor Jamil Abib é Vigário-Geral da Diocese de Piracicaba e
neiros na impressão e venda de cartões-postais ilustrados, no ata- Mestre em História. Atuou na história da Igreja no Brasil (Cepehib)
cado e no varejo, atendendo assim à enorme demanda que esse e na defesa do patrimônio como conselheiro do Condephaat. Reuniu
comércio experimentou na época. Era, já, a idade de ouro do uma das maiores coleções de cartões postais com temas brasileiros.
cartão-postal também no Brasil.

306
fotografia

Um patrimônio de fontes em comum com o Brasil:


A coleção de fotografias dos premonstratenses da
Abadia do Parque (Parkabdij) de Lovaina
Luc Vints

E ntre os responsáveis pelo patrimônio cultural surgiriam re-


centemente conceitos como source community, patrimônio
de fontes em comum. Trata-se de coleções relativas às áreas extra-
ção abre muitas possibilidades. O KADOC – centro de documen-
tação e pesquisa da religião, cultura e sociedade da KU Leuven,
Universidade Católica de Lovaina – se interessa particularmen-
europeias e/ou que carregam significados transnacionais. Abun- te por esse patrimônio de fontes em comum e guarda muitos
dantes coleções se encontram na Bélgica, tanto em arquivos arquivos audiovisuais destas atividades extraeuropeias, abertos à
públicos como privados. Este país tinha, desde sua origem, em consulta e ao estudo.
1830, contatos intensos com o exterior, ao passo que suas nume- Bons exemplos desse patrimônio, que não se relaciona somen-
rosas ordens religiosas se engajaram plenamente no renascimento te com a ex-colônia belga do Congo, pode-se encontrar no arquivo
missionário do século XIX. dos padres de Scheut, atualmente já integrado ao KADOC. As-
Dessa maneira, muitos institutos religiosos conservam docu- sim, sobre os povos Ifugao da província montanhosa setentrional
mentos e publicações, além de fotografias e filmes de suas mis- na maior ilha filipina de Luzon há material fotográfico datado do
sões, com significação particular para a própria história e a bio- início do século XX, e mesmo um filme documentário dos anos de
grafia cultural das source communities. Nada mais natural que 1930, de um valor inestimável para o etno-historiador. O mundo
estas queiram partilhar esse patrimônio, para o qual a digitaliza- dos Inuit, no Norte polar do Canadá, renasce no arquivo do padre

Praça Doutor Chaves ou Praça da Matriz, em Montes Claros, por volta de 1910, repleta de gente bem vestida, talvez por ocasião de uma das festas religiosas da
Semana Santa relatadas pelos missionários em suas cartas. Na frente de um grupo, caminham meninas de roupa branca, possivelmente de 1a comunhão, cada uma
levando na mão uma bandeira; no fundo, entre as duas casas maiores, vê-se uma fonte, sobre a qual sentam uma dezena de homens para ver melhor o espetáculo.

307
parte 9 – artes plásticas

Esta fotografia foi tirada na frente da Matriz de Montes Claros. A grande cruz e o altar externo, com um padre na sua frente, parecem indicar que a imagem mostra uma
missão organizada pelos norbertinos com a ajuda de redentoristas holandeses, como ocorreu em meados de 1907. A foto é interessante, sobretudo, pelo povo presente, bem
representativo da sociedade brasileira mestiça de brancos e muitos negros; um grupo de mulheres na frente, olhando para o fotógrafo, parece ser de origem índigena.

oblato Franz Van de Velde. Seus diários e notícias oferecem uma em Teresópolis e num bairro operário do Rio de Janeiro. Conser-
imagem da vida cotidiana, do clima, da história e do idioma desse vam atualmente, tanto como seus confrades de Averbode, ativos
povo, completada com fotografias e filmes. em Bom Jesus de Pirapora (SP), Jaguarão (RS), Petrópolis (RJ) e
Também a respeito dos países latino-americanos, os arquivos Jaú (SP), arquivos em sua própria abadia. ‘t Park se encontra pró-
religiosos belgas merecem ser pesquisados a fundo. Os jesuítas fo- ximo aos arredores de Lovaina e atende visitantes.
ram ativos na Guatemala, os redentoristas nas Antilhas, as irmãs de Lá, o fundo Brasil conta com quase um metro de documen-
Champion e os domínicos no Equador, as irmãs franciscanas de tos. Datam desde o período inicial até os anos de 1970, quando a
Gand na Argentina e os franciscanos no Chile. Sobretudo para o maior parte dos religiosos belgas voltaram e seus confrades brasi-
Brasil, a safra promete ser rica, com mais de uma dúzia de ordens leiros montaram seu próprio arquivo. O material é muito diverso:
acima relacionadas. Uma destas, os norbertinos ou premonstra- correspondências dos missionários e dos bispos locais, relatórios de
tenses, atuou no Brasil a partir de duas abadias suas na Bélgica, visitações, documentos sobre o patrimônio, contas, regulamentos,
Averbode e ‘t Park (do Parque). Desta última, os cônegos brancos, todo tipo de folhetos, personalia. Uma menção à parte merecem
como se conheciam no Brasil, passaram em 1898 primeiro por o dossiê e as fotografias da viagem ao Brasil do Rei Alberto I e da
Congonhas do Campo e Sete Lagoas para fixarem-se, em 1903, Rainha Elisabeth em 1920. Essas fotografias não são as únicas e,
em Montes Claros, cidades mineiras, de onde irradiaram sua pas- espalhadas pelo arquivo, podem localizar-se uma centena. Além
toral pelo norte de Minas Gerais. Serviram também em paróquias disso, há ainda dez pastas com fotografias dos anos de 1900 a 1970,

308
fotografia

Os cônegos brancos da Abadia do Parque receberam em 1907 a assistência


das irmãs belgas do Sagrado Coração de Berlaar. Nesta fotografia, publicada
na Revue de l’Ordre de Prémontré et de ses missions de 1908, vê-se a primeira
“caravana” junto com o pároco Charles Vincart e as primeiras alunas. As freiras
de Berlaar foram chamadas primeiro para servir na Santa Casa de Misericórdia
de Montes Claros. Como isto não se realizou, se reorientaram para o ensino
sem ter, no entanto, formação específica para isso. Mais tarde as irmãs tiveram
muito êxito neste setor. Duas freiras que estão nesta fotografia voltaram depois de
alguns meses para Berlaar.

Salão na casa do cônego Charles Vincart, que partiu em 1898 para o Brasil e
em 1903 foi nomeado pároco de Montes Claros, o novo posto missionário dos
norbertinos da Abadia do Parque, tendo como coadjutor Franciscus Moureau
(possivelmente são ambos nesta imagem). Acima deles um retrato, parecido com
o novo Papa Pio X, que em 1903 tinha sucedido a Leão XIII. O interior do salão
O cônego Lenaerts a cavalo, provavelmente em Montes Claros por volta de é ricamente decorado e tem um teto curioso; na mesinha se encontram livros e um
1907, quando chegou à missão. A foto não foi tirada ao ar livre na natureza, globo e as cadeiras são cobertas com uma pele de jaguatirica.
mas diante de uma tela grande dentro ou perto de um estúdio de um fotógrafo
profissional. Através destas extensas paróquias, os missionários viajavam a
cavalo, único meio de visitar os fiéis neste período pioneiro. Nas cartas escritas
para casa frequentemente insistem na importância do cavalo. Assim o cônego
Fessingher pretendia, já em 1901, que o pároco passava metade de seu tempo
a cavalo. Não é de estranhar que o arquivo dos norbertinos contenham várias
destas fotos de cavaleiros.

309
parte 9 – artes plásticas

Publicada em 1907 na Revue de


l’Ordre de Prémontré et de ses
Missions, esta fotografia foi tirada
por ocasião da visita pastoral a
Montes Claros de Monsenhor
Joaquim Silvério de Souza, bispo
auxiliar (e mais tarde bispo) de
Diamantina; entre as muitas
festividades, o norbertino Vincart
organizou um cortejo de crianças
que representavam nas vestimentas
ou com emblemas e instrumentos
os diferentes ofícios de Montes
Claros e região (pode-se também
ver um pequeno padre agitando o
incensário).

O trabalho missionário nem sempre é tenso, parece sugerir esta fotografia. É uma das poucas identificadas no verso pelo carimbo do fotógrafo Antonio Quirino de
Souza. Trata-se de um piquenique na Lapa Grande, um complexo de grutas a cerca de 10 km de Montes Claros, ainda hoje procurado pelos turistas. O grupo, bastante
heterogêneo, com dois norbertinos e mais dois outros padres, celebra com caça e vinho.

310
fotografia

Acima: Nesta curiosa fotografia de 1901


posam o cônego Charles Vincart e um
confrade no meio de várias figuras pitorescas.
Parece até uma pequena cena de teatro.
Todos estão muito sérios de olho no fotógrafo,
salvo o homem armado na janela. Apontaria
ele para alguém ou algo? Mais dois homens à
esquerda levam uma arma. Algumas crianças
na frente não têm sapatos, se bem que todos
estão bem vestidos, particularmente as três
mulheres. É uma foto intrigante com muitas
perguntas: Por que carregam estas armas?
Que faz este jovem com o guarda-chuva? E
a pose de pensador de duas figuras? O que
tocaria o violeiro? E o homem de chapéu
branco e óculos escuros parece ter saido de
uma banda de rock.

Ao lado: Os Cônegos Brancos em um


automóvel em sua paróquia de Teresópolis
por volta de 1930.

311
parte 9 – artes plásticas

Fotografia um pouco posterior à construção do mercado de Montes Claros, construído em 1899. Carros de bois e cavalos trazem as mercadorias. Se a foto não está
relacionada ao trabalho missionário dos norbertinos, mostra como coleções de congregações podem ser importantes para a história local, mesmo econômica.

alguns álbuns do padre Siardus Felix Maes e algumas centenas de com uma fotografia. Também as publicações do cônego Maurice
negativos, parcialmente em vidro. Gaspar, Les Prémontrés Belges et les missions étrangères (Lovaina,
Que num arquivo missionário se encontre material fotográfi- 1905), Dans le Sertão de Minas (Lovaina, 1910) e Trente années
co não é excepcional, muito ao contrário. Depois da invenção da d’Apostolat au Brésil par les Prémontrés du Parc (Malinas, 1930),
fotografia, todos os missionários e os superiores de sua congrega- levam ilustração interessante.
ção se deram conta da força dessa mídia. Para promover sua obra As fotografias do fundo Brasil são de qualidade desigual. As
e recolher meios financeiros utilizavam fotografias, tiradas pelos mais velhas do período pioneiro de 1900-1920 são geralmente
próprios missionários ou compradas dos fotógrafos locais. Assim boas. A autoria das fotos quase nunca é mencionada. Tampouco
fizeram os norbertinos da Abadia do ‘t Park. sabemos se os próprios missionários dispunham, na época, de uma
Imediatamente depois do começo da missão do Parque no máquina fotográfica. Apenas excepcionalmente aparece o nome
Brasil, seu abade, Quirinus Nols, lançou a propaganda da obra de um fotógrafo local: Max Rosenfeld (Rio de Janeiro), Symphro-
missionária. De 1899 a 1904 editou a Bibliothèque norbertine, se- nio Coutinho de Castro e Antonio Quirino de Souza (Montes
guida pela Revue de l’Ordre de Prémontré et de ses missions (1905- Claros). As fotos mostram as cidades onde os missionários da Aba-
-1915). Entre 1901 e 1914, Nols publicou ainda em neerlandês ‘t dia do ‘t Park eram ativos, as igrejas paroquiais onde serviam, suas
Parks maandschrift. Estas revistas tinham o propósito explícito de explorações na região – geralmente a cavalo –, seu apostolado de
exaltar a missão no Brasil, geralmente na forma de uma carta de ensino e a vida religiosa que estimulavam. Notável é também a
um dos missionários. Às vezes, mas nem sempre, eram ilustradas presença de muitos cartões-postais, como uma série sobre os povos

312
fotografia

Esta foto foi tirada em Sete Lagoas na frente de uma das capelas – neste caso, a de Nossa Senhora das Dores no bairro da Piedade – desta extensa paróquia, que os
norbertinos receberam sob sua guarda em 1900 e onde começaram uma escola. Sete Lagaos contava então com 7.000 habitantes numa região montanhosa de quase 1.000
km². Quando o missionário chegava a uma destas capelas – o que não acontecia frequentemente por causa da extensão do território – ocorriam manifestações de alegria,
que segundo o cônego Fesingher na revista missionária da Abadia do Parque em 1901, “faziam pensar em nossas quermesses”. Seria uma destas festas retratadas nesta
fotografia? Pelas tendas e pelo acordeonista à direita da capela parece ser o caso. E isto não impede que o cônego na porta da capela continue lendo seriamente um livro.

indígenas da Amazônia, nos álbuns de Siardus Felix Maes, que Publica sobre história do cinema e da fotografia e sobre história e
nos anos de 1930 era sobretudo ativo em Teresópolis e nos anos propaganda das missões.
de 1950, superior em Montes Claros. Sua viagem ao Brasil, em
1952, pode reviver-se a partir dos cartões: de Gênova, passando Bibliografia:
por Marseille, Barcelona, Mallorca, Olinda e Recife até o Rio de S. Van Lani. Witheren van ’t Park in Brazilië. 100 jaar missioneringswerk van de Abdij
Janeiro e, de lá, a Belo Horizonte e, finalmente, Montes Claros. van t’Park. Heverlee: Abdij van ’t Park, 2003. http://www.norbal.org/-Montes-Claros-
L. Vints. ‘Photographs of and with a Mission’ J. Tollebeek, ed. Mayombe. Ritual Sculptures
from the Congo. Tielt, 2010, 45-51.
Luc Vints é mestre em História da KU Leuven (1986). Nessa Uni- L. Vints. ‘Utilisation et valorisation des films missionnaires du KADOC-KU Leuven Trente
versidade dirige a seção de Publicações e Exposições do KADOC. ans d’expériences’. Paris, Karthala, no prelo.

313
parte 9 – artes plásticas

Um botânico, um jardim e uma expedição: Jean Massart e a


“Mission biologique belge au Brésil (1922-23)”
Alda Heizer

“Malgré certaines listes de plantes, listes inévitables dans une étude doux e A. Navez, da Université de Bruxelles –, desembarcou no
du genre, j’espère que les aperçus biologiques et géographiques in- Rio de Janeiro, vinda de Antuérpia (Bélgica). Esse grupo, vindo
téresseront l’Européen curieux de saisir les manifestations de la vie de diferentes instituições e liderados pelo biólogo e médico Jean
végétale sous le jeu libre des forces naturelles et loin de l’influence Massart (1865-1925), conhecido como o primeiro conservador
de l’homme”. (Massart, 1929) da natureza em seu país, se destinava à Amazônia e tinha co-
“A Manaos, elle fut reçue par le Consul de Belgique qui sut mo missão estudar a fauna e a flora do Brasil. Patrocinados pela
mettre à sa disposition tous les moyens de réaliser en peu de jours Monarquia belga e por associações científicas, os integrantes da
plusieurs voyages extrêmement instructifs dans les Igapos du Rio expedição percorreram, durante um ano, parte considerável do
Negro”. (idem) território brasileiro.
“Les cinq premières semaines y furent consacrées au travail dans

E m 16 de agosto de 1922, uma missão de biólogos, pesqui-


sadores e professores belgas – composta, entre outros, por
Raymond Bouillenne, da Universidade de Liège; P. Brien, P. Le-
le célèbre Jardin Botanique de cette ville, dont le savant directeur,
M. le Prof r Pacheco Leâo, et ses collaborateurs firent, avec une
amabilité charmante, connaître toutes les richesses à nos compa-

À esquerda, João Geraldo Khulmann e Paul Ledoux, num momento de descontração dos integrantes da “Missão Jean Massart”; note-se o material fotográfico e alguns
objetos que faziam parte da expedição.

314
fotografia

Jovem índio numa canoa, próximo à floresta de Jeretepaua, na Amazônia, imagem da “Missão Jean Massart”.

triotes, qu’ils emmenèrent, de plus, en de nombreuses et fructueuses de Minas Geraes et de Bahia, recevant partout le plus chaleureux
excursions”. (Marchal, 125) accueil de la part, non seulement des autorités scientifiques et ad-
Ao chegarem ao Rio de Janeiro, Massart e sua equipe se ins- ministratives, mais de la population tout entière.” (idem)
talaram no Jardim Botânico (JBRJ) – criado no século XIX e hoje A viagem ao Brasil permitiu a Massart, identificado por seus
autarquia do Ministério do Meio Ambiente, que tem como missão pares como um “animador de vocações científicas”, bem como aos
“Promover, realizar e divulgar o ensino e as pesquisas técnico-cientí- seus companheiros de jornada constatar hipóteses, propor novas
ficas sobre os recursos florísticos do Brasil, visando o conhecimento interpretações e gerar novos conhecimentos para a Botânica. Um
e a conservação da biodiversidade, assim como a manutenção das exemplo é o fato de um dos integrantes do grupo, o biólogo Ray-
coleções científicas sob sua responsabilidade” – e foram acolhidos mond Bouillene (1897-1972), fazer do resultado de sua viagem
pelo então diretor, o biólogo Antonio Pacheco Leão (1872-1931), à Amazônia a sua tese de doutoramento intitulada Un voyage bo-
bem como por seus pesquisadores, como foi o caso de João Ge- tanique dans le Bas Amazone (Uma viagem botânica pelo baixo
raldo Kuhlmann (1882 -1958), que seguiu com a expedição para Amazonas), considerado por seus biógrafos o primeiro ato de sua
a Amazônia. Além disso, os biólogos utilizaram os laboratórios e carreira científica.
fizeram viagens de reconhecimento a diferentes locais próximos “Tandis que Massart reprenait, le 5 janvier suivant, Le bateau
à cidade do Rio de Janeiro. pour la Belgique, ses compagnons se dirigeaient vers le Nord, vers
“Après avoir acquis cette première initiation à La connaissance Belem de Para, en vue de séjourner quelque temps dans le Bas-Ama-
de la flore et de la faune brésiliennes, les biologistes belges, toujours zone, région qui, à cause de son insalubrité, avait été interdite au
pilotés par de distingués spécialistes du pays, visitèrent un certain chef de l’expédition.” (Marchal, 126)
nombre de régions forestières et de steppes des États de Sao-Paulo, Durante a viagem, a expedição foi bem acolhida por onde

315
parte 9 – artes plásticas

porém, sua produção acadêmica não foi atingida. Ao contrário,


um exemplo é o artigo “Belgian botany a record of war time” na
revista inglesa Nature, de 1923. Suas publicações se encontram
sob a forma de memórias, boletins, anuários, relatórios, nas aca-
demias e sociedades científicas, universidades, jardins botânicos.
A preocupação com a formação de botânicos e com a valorização
do trabalho em equipe foi constante e é notável. Massart atuou e
colaborou em diferentes instituições científicas, como, por exem-
plo, a Universidade Livre de Bruxelas (ULB), o Instituto Pasteur
de Paris e foi diretor do Jardim Botânico de Bruxelas.
Além disso, o biólogo defendeu sua concepção de trabalho de
campo associada a uma preocupação com a proteção das florestas,
monumentos e sítios rurais, na Bélgica e fora do país, que o colo-
caram numa posição de destaque dado a atualidade das temáticas
pelas quais se interessou.
Sua obra abriga textos científicos, didáticos e sua preocupação
Casa de um engenho em Santarém, no Pará, imagem da “Missão Jean Massart”. com o ensino e a difusão do conhecimento pode ser atestada nas
publicações específicas e com a criação de recursos importantes,
como o primeiro laboratório biológico ambulante, o uso do ci-
passou. O material produzido é bastante diversificado: descrição nema como recurso de difusão, entre outras frentes não menos
diária do que viram, cadernetas de coleta, textos, mapas dos tra- importantes.
jetos e fotografias. Os biólogos, eles mesmos, fotografaram o que Jean Massart foi um cientista, um professor e um vulgarizador
viram. Em 1929 e 1930, o material foi publicado em livro, em dois das práticas científicas sem nunca deixar de se preocupar com as
volumes. O Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ) detém um circunstâncias políticas nas quais suas práticas estavam submer-
número considerável de fotografias em seu acervo, como as produ- sas. Em tempos mais atuais, Jean Massart pode ser considerado
zidas pela missão de Jean Massart, entre outras do início do século um homem plural.
XX (registros fotográficos do arboreto e de suas coleções vivas; das
coleções do herbário; dos jardineiros; do interior dos laboratórios Alda Heizer, graduada em História, Mestre em Educação pela PUC-
de química; de instrumentos científicos; do museu botânico, hoje -RJ e Doutora pelo Programa História das Ciências do IG-UNICAMP,
Museu do Meio Ambiente). é professora de História da Botânica no Brasil na Escola Nacional de
“Au point de vue scientifique direct, le voyage de Massart eût Botânica Tropical/JBRJ e historiadora do Museu do Meio Ambiente e
sans aucun doute donné des résultats três importants. Les membres do Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
de la Mission ont recueilli d’innombrables observations du plus haut
intérêt et sont revenus avec 70 caisses de matériaux botaniques et Referências
zoologiques et environ 1,500 négatifs photographiques.” (idem). Diagre, Denis. Le Jardin botanique de Bruxelles (1826-1912), Miroir d’une jeune nation.
Afinado com a sua época, Massart, que não completou o iti- Thèse de Doctorat (section Histoire), Université Libre de Bruxelles, 2006, 2 part.,
nerário traçado pela expedição ao Amazonas por motivos de saú- 855 p. (non publiée).
Gaspar, Thomas, Maurice Streel, Georges Berbier, Cyrille Sironval. Notices. Raymond
de, planejou a viagem ao Brasil num contexto de reflexão sobre o Bouillenne (1897-1972).www.academieroyale.be
lugar das fotografias científicas, da experimentação nos trabalhos Heizer, Alda. “Jean Massart e a criação das reserves naturelles na Bélgica na primeira
de botânica e sobre a proteção de florestas, entre outros temas que década do século XX”. Dossiê “Ciência e Meio-ambiente”. (Jean Luiz Neves Abreu
org.) Dossiê Cadernos de Pesquisa do CDHIS, ISSN: 1981-3090.
lhe eram caros. Heizer, Alda. Notícias sobre uma expedição: Jean Massart e a missão biológica belga ao
“A ce premier contact avec le monde amazonien, s’éveillent en Brasil, 1922-1923. Hist. cienc. saude-Manguinhos [online]. 2008, vol.15, n.3 [cited 
nous les angoisses qu’éprouvaient les anciens voyageurs. Ils ont fait 2011-06-17], pp. 849-864.
Marchal, E., “Notice sur Jean Massart, Membre de l’Académie”, in: Annuaire de l’Aca-
à la plaine de l’Amazonie presque complétement couverte de forêts demie Royale de Belgique, Bruxelles, 1927, p. 141-158 (bibliographie de J. Massart).
et inondée pendant le moitié de l’année, une réputation redoutable. www.academieroyale.be
N-a-t-on pás écrit qu’elle était l’empire de La fièvre, “l’enfer vert”? Massart, Jean. “La création de reserves naturelle”. Recueil de L’Institut Botanique Léo Er-
rera. Tome IX. Bruxelles: Henri Lamertin Éditeur-libraire, 1913.
On La regardait comme une merveille de la nature, mais on en par- Massart, Jean et al. Une Mission biologique belge au Brésil (aôut 1922-mai 1923). Bruxelas:
lait avec une admiration mêlée d’effroi.” (Massart, 1929) Imprimerie Medicale ET Scientifique, 1929.
Longe de ser um homem excepcional, Massart foi um ho- Massart, Jean. Recueil de l’Institute Botanique Léo Errera. Tome VIII. Bruxelles: Henri
Lamertin, Éditeur – Libraire, 1911.
mem de seu tempo, viveu as limitações que a guerra lhe impôs,

316
fotografia

O Rei Leopoldo III e a Floresta Amazônica brasileira


G u s t a a f Ve r s w i j v e r

N o outono de 1920, o príncipe herdeiro e futuro rei, Leopol-


do III (1901-1983), acompanhou seus pais, o Rei Alberto e
a Rainha Elizabete, em visita oficial ao Brasil. Foi sua segunda
exploração de regiões de difícil acesso com encontros com as po-
pulações indígenas. Nos confins da Venezuela e no fundo de sua
floresta amazônica, entrou em contato com os índios ianomamis,
viagem intercontinental, depois de ter ido aos Estados Unidos no um povo cuja maioria dos grupos, nos anos de 1950, ainda não
ano anterior. Durante sua estada no Brasil ele passou alguns dias tinha tido contato direto com os brancos. Durante esta expedição
numa fazenda no interior de São Paulo, que o deixou impressio- amazônica se explorou um lago ainda desconhecido, que foi ba-
nado com a diversidade biológica da Mata Atlântica. Essa viagem tizado, bem a propósito, de Lago Leopoldo.
inspirou seu fascínio pela natureza e seus seres vivos, um interesse Em fevereiro de 1962 Leopoldo se reencontrou com o Bra-
que cultivou a vida toda. sil de sua juventude, ao final de uma missão encarregado pelo
Depois de uma vida atribulada como Chefe de Estado, em re- governo belga que o levou primeiro ao Chile e à Argentina para
clusão e exílio por causa da Segunda Guerra Mundial, foi forçado promover a reinserção de belgas do Congo e a colaboração cien-
a abdicar do trono em 1951 em favor de seu filho, Balduino. Pelo tífica. Ficou algo chocado com a aridez e a arquitetura da nova
menos assim encontrou oportunidades para viver intensamente capital, mas em 15 dias percorreu Belo Horizonte, Rio de Janei-
sua paixão pela natureza. Entre 1952 e 1959 fez quatro viagens à ro, São Paulo e a Bahia, além de Belém, Santarém e Manaus, o
América Central, à Colombia e à Venezuela, onde combinou a suficiente para idealizar já uma nova viagem no final de outubro

O rei Leopoldo III na sua visita aos Kayaó no Parque Nacional do Xingu em outubro de 1964. Raoni (à esquerda), ainda jovem naquela época, serviu de intérprete.
Mais tarde ele se impôs como um reconhecido defensor das terras indígenas na floresta amazônica.

317
parte 9 – artes plásticas

do mesmo ano, centrada somente na Amazônia. Fez, durante seis travam a dinâmica dentro do parque índigena e encontraram em
semanas, excursões a partir de Manaus pelo Rio Solimões e adja- Leopoldo uma testemunha que era felizmente excelente fotógrafo.
centes, acompanhado pelo professor Jean-Pierre Gosse, ictiólogo O rei se encantou com o porte físico destes índios e pelas danças
do Instituto Real de Ciências Naturais de Bruxelas, com a nature- dos Kayapó. Suas poderosas fotografias são de uma rara beleza e
za e principalmente os peixes amazônicos como prato principal. provam sua paixão pelo homem na natureza.
Entretanto, com a autorização do Serviço de Proteção aos Índios, Depois do Xingu foi mais para o Norte, explorar o Cururu e co-
quis visitar Roraima e conheceu lá, através das missões protestan- nhecer os Munduruku, e percorreu o Rio Trombetas e adjacentes,
tes, outros grupos de ianomamis na Serra Parima, perto da fron- prestando agora mais atenção à sua fauna. Passando por Óbidos
teira venezuelana. Foi, ainda, ao Amapá, mais interessado pela e Santarém, deixou o Rio de Janeiro somente em 8 de dezembro
exploração dos minérios e da natureza. para reencontrar-se com sua família. O Brasil, e sobretudo a re-
Apaixonado pelo Brasil, Leopoldo III fez mais duas viagens gião Amazônica, se cravaram no coração de Leopoldo. Ainda em
a esse país em 1964. Na primeira, curta, de pouco mais de uma 1967 voltou para outra viagem, de 14 novembro a 18 de dezembro.
semana, chegou em 23 de março ao Rio de Janeiro, na volta do Desta vez, em várias excursões a partir de Manaus, foi conhecer
Chile. Visitando o Museu Nacional, no zoológico foi mordido na Porto Velho e o Rio Madeira até Guajará-Mirim, e no Acre, foi a
mão por uma onça. Mas seguiu viagem e foi a São Paulo para ver Rio Branco e Cruzeiro do Sul – em sua opinião, a mais romântica
o Museu Paulista, que o desapontou, e seguiu logo para Brasília, cidadezinha do Brasil – e ao Rio Negro.
que achou bem melhorada. De lá fez uma breve excursão para A partir de 1970, Leopoldo orientou suas pesquisas para a Índia
Santa Isabel no Brasil central. Embarcou para a Bélgica em 1º e sobretudo a Indonésia. Essas missões fundamentaram a organi-
de abril, em plena agitação do golpe militar. Isso não o deteve de zação, em 1976, de uma estação biológica permanente numa ilha
planejar, para outubro do mesmo ano, uma expedição mais longa em frente à costa oriental da Papuásia, de onde se estudaram os
com o professor Gosse ao Parque Nacional do Xingu. bancos de coral e a fauna e a flora locais. Entrementes, por volta
No período de 1975 a 1981 encontrei-me diversas vezes pes- de 1970 as três viagens do Rei Leopoldo III à Floresta Amazôni-
soalmente com o Rei Leopoldo III. Suas evocações da viagem ca brasileira suscitaram a ideia de realizar uma fundação. Assim
de 1964 deixavam entender como esta o impressionou profun- surgiu, em 8 de junho de 1972, a Fundação Leopold III, para a
damente até o ponto de ainda considerar uma segunda visita ao pesquisa e a preservação da natureza, uma associação apolítica,
Parque Nacional do Xingu. Este parque foi criado oficialmente sem fins lucrativos, para patrocinar expedições científicas e via-
em 1961, quase no coração do Brasil e do tamanho da Bélgica. A gens de estudos.
delimitação do parque trouxe uma proteção privilegiada e intan- A partir daí a fundação prestou apoio financeiro e material a
gível para os povos indígenas que viviam lá, como também para mais de 150 missões ou expedições científicas, em diversas disci-
os da vizinhança, que estavam ameaçados de extermínio e que os plinas, como a zoologia, botânica, antropologia e entomologia.
idealizadores do parque, os irmãos Villas-Bôas, tinham removido Estes subsídios permitiram a publicação de centenas de artigos
para dentro da segurança do parque. O objetivo oficial do parque científicos e lançaram a carreira de muitos jovens cientistas belgas.
era duplo: a preservação tanto da natureza como do homem; mas Eu fui um dos contemplados.
seus administradores, os irmãos Villas-Bôas, o consideravam desde
o início como um meio para garantir a sobrevivência das culturas Gustaaf Verswijver, doutor em Antropologia pela Universidade de
indígenas. Seria um exemplo a repetir mais tarde em outras áreas. Gand com pesquisas de campo entre os índios Caiapó e Mehinako;
Essa visão foi oficialmente confirmada em 1967, quando o nome desde 1990 conservador na Seção de Etnografia do Museu Real da
do parque foi alterado de Parque Nacional do Xingu para Parque África Central, em Tervuren, com pesquisas de campo entre os po-
Indígena do Xingu, o primeiro desse tipo. Hoje oferece moradia vos pastorais da África Oriental, curador de várias exposições, como
a 16 povos indígenas, com uma população total de cerca de 5.500 “Omo, peoples and design”, 2008-2009, no mesmo museu.
pessoas repartidas em cerca de 80 aldeias.
Leopoldo III chegou em 10 de outubro de 1964 ao Posto Leo­ Referências
nardo, dirigido por Orlando Villas-Bôas. Pensou primeiro em ficar Ed. Roger Bodart, Expédition “Elata”, Voyage de S. M. Le roi Léopold III de l’Orénoque
três dias no parque, mas, uma vez no lugar, mudou seus planos e au Rio Negro, Bruxelas, Vromant, s.d.
permaneceu lá por cinco semanas. Enquanto o professor Gosse Leopold de Belgique, La fête indienne, Souvenirs d’un voyage chez les Indiens du Hau-
t-Xingù, París, 1967.
realizava suas pesquisas científicas, o rei passava seu tempo sobre- Gustaaf Verswijver, Kayapó, the Art of Body Decoration, Catálogo da exposição no Museu
tudo com os índios. Cláudio Villas-Bôas vislumbrou-lhe a possi- Real da África Central, Tervuren-Ghent, 1992.
bilidade de receber antropólogos belgas para estudar as culturas Gustaaf Verswijver, The Club-Fighters of the Amazon, Warfare among the Kayapó Indians
of Central Brazil, Ghent, 1992.
indígenas. Gustaaf Verswijver, Mekranoti, Living among the Painted People of the Amazon, Muni-
Durante essa visita o rei foi testemunha de dois momentos que-New York, 1996.
históricos: os primeiros contatos e a pacificação dos Ikpeng ou Leopold III, Carnets de voyages, 1919-1983, Bruxelas, Racine, 2004.
Léopold III Photographe, ed. Esmeralda de Belgique, Bruxelas, Racine, 2006.
Txicão, um grupo de índios ainda isolado, e a fusão de duas fra- Diários de viagem – Fotografias do Rei Leopoldo III no Brasil (1962-1967), Catálogo da
ções antes separadas do povo Kayapó. Estes acontecimentos mos- exposição no Museu de Arte Brasileira, São Paulo, 2010.

318
fotografia

Frechal, pioneiro da luta quilombola no Brasil


Christine Leidgens

S ituado entre a Amazônia e o Nordeste brasileiro, o Estado do


Maranhão viveu um tráfico negreiro que se intensificou a par-
tir de 1755. Hoje, com uma população cuja maioria descende de
um Decreto presidencial declarou o quilombo Frechal reserva
extrativista, ou seja, uma área de preservação permanente dos re-
cursos naturais.
escravos, esse Estado brasileiro ainda permanece essencialmente Vitória exemplar: Frechal tornou-se a primeira comunidade
agrícola. Das quase 4 mil áreas de comunidades rurais negras exis- rural negra do Brasil a dispor coletivamente de sua terra mãe. Ela
tentes no Brasil – designadas pelo termo genérico de quilombo –, é hoje a matriz referencial do vasto movimento quilombola de
mais de 900 se encontram no Maranhão. Elas correspondem às reivindicação identitária e jurídica.
antigas plantações de algodão e engenhos de açúcar já desapare- Em maio de 2003, o Presidente Lula legitimou o movimento,
cidos. Dentre elas, Frechal destacou-se como pioneiro no movi- assinando o Decreto de regularização das terras de quilombos e
mento de emancipação dos quilombolas e de acesso jurídico à de reconhecimento oficial das comunidades de descendentes de
propriedade coletiva de suas terras ancestrais. escravos, até então excluídas das políticas sociais e fundiárias, uma
Combinando a organização interna à resistência aos grandes medida legal que abrange pelo menos 4 milhões de camponeses
proprietários rurais, Frechal liderou, em 1986, o primeiro encon- e dezenas de milhões de hectares.
tro de comunidades negras do Maranhão. Organizado pelo Centro
de Cultura Negra (CCN), esse evento está na origem do Artigo
68 da Constituição Federal de 1988, à época do processo de rede-
mocratização do país. Um século após a abolição da escravatura,
esse artigo abriu um precedente legal, reconhecendo a posse de
terras de quilombos aos descendentes de escravos.
Nesse período crucial de emergência do movimento quilom-
bola, vivi em Frechal, entre os anos 1989 e 1995, partilhando com
seus habitantes alegrias e tristezas, lutas e vitórias. Depois de viver
em vários países, senti o apelo do Brasil e do movimento negro.
Decidi continuar minha caminhada de fotógrafa itinerante e do-
cumentarista independente, assumindo-me como voluntária no
projeto de cooperação cultural entre a Bélgica e o Brasil.
Na época, fotografei o cotidiano da comunidade de Frechal,
que revelei em sua festa anual, após o primeiro ano de vivência
ali, na exposição de minhas fotografias. Algumas pessoas da comu-
nidade descobriam-se retratadas pela primeira vez em suas vidas,
enquanto moradores de comunidades vizinhas emocionavam-se
ao se identificarem com os frechalenses. Esse encontro, como
outros pelo Brasil afora, reforçou os laços entre remanescentes
de quilombos, suscitando intercâmbios e permitindo que se de-
senvolvesse uma consciência crítica favorável à afirmação de sua
identidade. Mais que tudo, os frechalenses destravaram a língua
e, passo a passo, as palavras preencheram as páginas brancas de
um livro contando suas histórias.
Espelho do cotidiano e catalisador de palavras, as fotografias,
expostas no Maranhão e em outros Estados permitiram que os fre-
chalenses encarassem positivamente sua trajetória e percebessem
o valor cultural dos afrodescendentes. Aquelas fotos e gravações
evocavam memórias sufocadas anos a fio e uma cultura que a so-
ciedade dominante teimava em desconhecer e que podia, final-
mente, revelar-se ao mundo.
Lembramos que um mês antes da Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento Sustentável,
também conhecida como ECO-92, realizada no Rio de Janeiro, Fotografia de Christine Leidgens no quilombo Frechal.

319
parte 9 – artes plásticas

Fotografia de Christine Leidgens no quilombo Frechal.

Essa nova realidade jurídica suscitou oposição virulenta dos ru- so exemplar da comunidade do Frechal, orgulhosa de si, de seus
ralistas que, ao perseguir os quilombos, pretendem, na realidade, valores e de sua história.  
anular as leis que protegem os interesses coletivos dos quilombolas Essa história poderá ser descoberta através de depoimentos
e apropriar-se de suas terras. Desde então, os quilombolas articu- e fotografias colecionados no meu livro, Frechal, Terre africaine
lam-se com o movimento indígena, com seringueiros, pescadores au Brésil (Ed. belga Territoires de la Mémoire, 2014), e na ver-
e ribeirinhos na defesa dos recursos naturais do País. são original brasileira, Frechal, quilombo pioneiro no Brasil, a ser
Na verdade eles já discutem direitos territoriais e estratégias de publicada.
desenvolvimento social com habitantes dos demais países amazô-
nicos. Ao longo de duas décadas e mais recentemente, em 2012, Christine Leidgens, fotógrafa sem fronteiras, nascida na Bélgica,
quando lá estive pela última vez, pude observar as mudanças em pratica sua arte entre as populações diversas numa abordagem de
curso naquela comunidade, hoje dona de seu destino. antropologia sociocultural interativa, a qual procura soltar a palavra
As exposições fotográficas e os seminários organizados na Eu- dos sujeitos fotografados incentivando o reconhecimento de sua iden-
ropa e no Brasil durante o Fórum Social Mundial (FSM) de Porto tidade e a reapropriação de sua plena autonomia.
Alegre (RS), em 2003, contribuíram para a divulgação do percur-

320
fotografia

A obra de Ricardo de Vicq Cumpitch

Ricardo de Vicq de Cumptich (1950, Rio de Janeiro) é


descendente de uma família nobre belga estabelecida no Rio
de Janeiro no começo do século XX. Desenvolveu uma obra
fotográfica muito variada de capas para discos de Nara Leão e
de outros músicos brasileiros, de cenas do mundo do samba, de
figuras populares, de retratos de personagens como Burle Marx,
de nus, de flores, de objetos e de pratos de gastronomia. Seus
trabalhos encontram-se publicados em revistas como Casa Vogue
ou Carta Capital e em livros como Roberto Burle Marx: uma
fotobiografia, de Soraia Cals, 1995. Ganhou vários prêmios
internacionais como, desde 1980, da Graphis Press, em Zurique.
Em 1985 mudou seu estúdio para São Paulo. Ver Simonetta
Persichetti e Thales Trigo (orgs.), Ricardo de Vicq de Cumptich,
Coleção Senac de Fotografia, São Paulo, 2004.

321
parte 9 – artes plásticas

322
parte 10 – arquitetura

parte 1 0

Arquitetura

323
parte 10 – arquitetura

324
Ramos de Azevedo: um arquiteto brasileiro formado na Bélgica
M a r i a A n g e l a P. C . S . B o r t o l u c c i

F rancisco de Paula Ramos de Azevedo era seu nome comple-


to, nasceu na capital da então província de São Paulo, a 8 de
dezembro de 1851 e faleceu a 12 de junho de 1928 no Guaru-
da, mas também muito cordial. Sabia como dar ordens e se fazer
respeitar. Angariava a simpatia de seus subordinados e colegas de
trabalho, talvez por sua grande dedicação em tudo que fazia. Tra-
já, litoral de São Paulo. Apesar de ter nascido na cidade de São balhou sempre de forma incansável.
Paulo, ele gostava de se dizer campineiro, pois sua família era de Fortemente influenciado pelos ideais positivistas, soube ser
Campinas (SP) e lá foi criado. Além disso, lhe fazia bem sentir-se racional na medida necessária e de modo a permitir que, sendo
um moço do interior que teve sucesso na capital devido a muito de família nem tão abastada de Campinas, alcançou de forma
esforço e competência. Era de personalidade forte e determina- vertiginosa uma posição profissional extremamente destacada e

Teatro Municipal de São Paulo, projeto de Ramos de Azevedo, fotografia de 2011.

325
parte 10 – arquitetura

engenharia e arquitetura, entre 1877-1878, frequentou disciplinas


na Academia de Belas Artes para complementação de aspectos re-
lativos a composição, história e desenho. Concluindo seus estudos,
prestou exames para obtenção do título de engenheiro arquiteto
no dia 16 de outubro de 1878. Em função das notas obtidas, o júri
lhe conferiu a honrosa menção “com grande distinção”.
Os anos de convívio acadêmico em Gand marcaram profun-
damente o profissional e o professor Ramos de Azevedo. Entre
os professores de maior influência cabe destacar Adolphe Pauli
(1820-1895), renomado arquiteto em Gand e professor de Ramos
de Azevedo na Escola Especial de Engenharia e também na Aca-
demia Real de Belas Artes. Para a autora Maria Cristina Wolf de
Carvalho “estabelecer um paralelo entre as posturas dos dois não
parece absurdo e, à luz do que manifesta Pauli, é possível entender
muito da mentalidade de Ramos de Azevedo e, consequentemente,
de suas realizações posteriores no campo da arquitetura e de seu
ensino” (Carvalho, 2000, p. 96-103).
Quando Ramos de Azevedo voltou ao Brasil em 1879 e ins-
talou seu escritório em Campinas, estava disposto a contribuir
para mudar a fisionomia das cidades brasileiras. Sua primeira e
marcante obra foi, ainda em Campinas, terminar a construção
da Matriz, que ele conseguiu com muito êxito e uma pomposa
inauguração no dia 8 de dezembro de 1883. Nessa mesma data
era dia do aniversário de Ramos de Azevedo e batizado de uma
de suas filhas. Ele soube se valer bem da autopromoção, uma vez
que este não se constituiu um fato isolado em sua vida tão repleta
de enaltecimentos e homenagens. Ramos de Azevedo mudou-se
para São Paulo em 1886 acompanhado de sua família. Em 1881
A Catedral de Campinas, inaugurada em 1883, finalizada por Ramos de havia casado com Eugenia Lacaze, sobrinha do General Francisco
Azevedo, fotografia de 2009. Glycério, que, por sua vez, tinha três irmãos casados com três ir-
mãs de Ramos de Azevedo. Eugenia e Ramos de Azevedo tiveram
gozou de tanto prestígio na sociedade paulistana a ponto de re- três filhos: Lúcia, Laura e Francisco de Paula.
ceber honras de chefe de Estado em seu funeral. Foi um homem Em Campinas projetou e construiu diversas obras importantes
que soube construir amplo e sólido ciclo de amizades com pes­ (Monteiro, 2009), mas foi notadamente em São Paulo, a partir de
soas bem postas na política e na sociedade em geral, inclusive em 1886, que ele conseguiu as condições ideais para romper os pa-
sociedades secretas como a maçonaria. radigmas da tradição de três séculos de arquitetura. A sólida for-
Desde o início de sua carreira, ainda jovem e antes da ida à mação de Ramos de Azevedo pautada no ideário europeu de fins
Bélgica, já se cercava de amigos importantes e influentes, muitos do século XIX lhe permitiu conceber edifícios e espaços urbanos
deles maçons. Segundo Ana Paula Farah (2003), a sua iniciação construtivamente muito corretos, empregando as novas técnicas
na maçonaria se deu pelas mãos do General Francisco Glycério e as regras de conforto e higiene. Em relação à estética foi mais
(além de aparentado, foi grande amigo e protetor de Ramos de condescendente, sempre aceitando outras tendências estilísticas
Azevedo), no dia 17 de outubro de 1873 e, em novembro do mes- adotadas por colegas, inclusive por seus sócios de escritório, em-
mo ano, foi elevado a Mestre. No período de 1869 a 1872 esteve bora, particularmente, tenha sido fiel à sua preferência pela tra-
na Escola Militar, na Praia Vermelha do Rio de Janeiro. dição clássica.
Em 1872, inicia suas atividades como “praticante” na cons- Também foi em São Paulo que ele concentrou e ampliou seus
trução das estradas de ferro paulistas. Durante sua permanência negócios, os quais foram muito além das atividades do escritório
na Companhia Mogiana, mesmo sem remuneração, foi extrema- de projetos. Em São Paulo, se associando com amigos e parentes,
mente dedicado e despertou a atenção do presidente da compa- Ramos de Azevedo revelou ser um grande empreendedor, uma vez
nhia, Antônio de Queirós Telles, Barão de Parnaíba, que passou a que, paralelamente às atividades do escritório, ele foi instalando
protegê-lo pelo resto de sua vida. diversos negócios com o objetivo de obter a autossuficiência nas
Em março de 1875, Ramos de Azevedo seguiu para a Bélgica. etapas da construção civil: exploração de madeiras, cal, mármores
Foi estudar na École Espéciale du Génie Civil et des Arts et Ma- e granitos; venda de material importado, serraria, fábrica de tijo-
nufactures da Universidade de Gand. Paralelamente ao curso de los, empreendimentos imobiliários, financiamentos de obras etc.

326
parte 10 – arquitetura

No escritório, foram executados centenas de projetos e obras e por isso Ramos de Azevedo se empenhou na estruturação e con-
públicas e particulares, tanto na capital quanto em outras loca- solidação do Liceu de Artes e Ofícios. Assumiu a direção em 1895
lidades do Estado de São Paulo, com a participação de diversos e manteve-se até o ano de sua morte; nesse período ele conseguiu
profissionais, mas sempre sob o controle de Ramos de Azevedo que o Liceu obtivesse muito prestígio e se tornasse uma referência
até 1928, ano de sua morte. Alguns dos principais colaboradores em tudo o que produzia.
de Ramos de Azevedo: Antonio Francisco de Paula Souza, Ma-
ximiliano Hehl, Ricardo Severo, João Frederico Washington de Maria Angela Pereira de Castro e Silva Bortolucci é graduada em
Aguiar, Jorge Krug, Victor Dubugras, Calixto de Paula Souza, Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco
Carlos Wagner, Carlos Shalders e Domiziano Rossi. Quase todas (UFPE), com Mestrado em Arquitetura e Urbanismo na Escola de
as obras importantes de São Paulo nessa época saíram do seu es- Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP) e
critório, algumas delas foram: Tesouraria da Fazenda, Secretaria Doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquite-
da Agricultura, Teatro Municipal, Mercado Central, Faculdade tura e Urbanismo da USP. Atualmente é professora no Instituto de
de Medicina, Correios, entre outras. Arquitetura e Urbanismo da USP-Campus de São Carlos/SP.
Outra importante atuação de Ramos de Azevedo foi na área
acadêmica. Ele gostava muito de ensinar e São Paulo estava caren- Referências
te de profissionais habilitados na construção. Esses foram requi- Carvalho, M. C. W. de. Ramos de Azevedo. São Paulo, Edusp, 2000.
sitos suficientes para ele ter se unido ao amigo Paula Souza para Farah, A. P. A produção do engenheiro arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo
criar a Escola Politécnica em 1894. Este último foi o diretor da na província de São Paulo. São Carlos. Dissertação (Mestrado) EESC-USP, 2003.
Ficher, S. Os arquitetos da Poli – ensino e profissão em São Paulo. São Paulo, Edusp, 2005.
Escola Politécnica de São Paulo até sua morte em 1917 e Ramos Lemos, C. A. C. Ramos de Azevedo e seu escritório. São Paulo, Pini, 1993.
de Azevedo, o vice-diretor. A partir dessa data a direção é assumi- Monteiro, A. M. R. de G. Ramos de Azevedo: presença e atuação profissional em Campi-
da por Ramos de Azevedo até seu falecimento em 1928 (Ficher, nas. Campinas, Unicamp-CMU, 2009.
Santos, M. C. L. dos. Escola Politécnica (1894-1984). São Paulo, Imesp, 1985.
2005). Faltava também a São Paulo o ensino técnico de qualidade

Arquitetura industrial belga no Brasil no século XIX


Bernard Pirson

N a aurora da Revolução Industrial, encontrava-se na Bélgica


numerosas instalações metalúrgicas, cujas implantações re-
sultavam da presença abundante de madeira, água e minério de
permitindo aos seus componentes atender aos principais merca-
dos globais.
No que diz respeito às obras de engenharia civil isoladas, o via-
ferro. O processo de mecanização das instalações, facilitada ainda duto tardio de Santa Ifigênia de São Paulo, construído em 1913
pela presença abundante de carvão de pedra, participou e alimen- por Aciéries d’Angleur (Siderurgia de Angleur, perto da cidade de
tou a transformação industrial do país. A implantação rápida de Liège) com base nos planos dos arquitetos Micheli e Chiappori, é
uma densa rede de estradas de ferro, iniciada em 1835, obrigou mais que uma simples obra técnica: ela participou da estruturação
as empresas, uma vez a rede completa, a se voltar para a exporta- da paisagem paulista por sua qualidade e a obra foi apropriada pela
ção, o que a própria rede ferroviária facilitou ligando as empresas população quando sua destruição foi considerada.
ao porto de Antuérpia. Numerosas pontes, a maior parte ainda existente em diferen-
O material de ferrovias, rodante e fixo, constituiu, pelo me- tes Estados, e algumas declaradas bens tombados pelo Instituto do
nos inicialmente, uma parte importante do mercado industrial Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), foram realiza-
para exportação. No Brasil, companhias privadas belgas de ex- das por empresas distintas, dentre as quais algumas ainda podem
ploração de ferrovias procuraram ir além da simples realização ser identificadas:
de obras de engenharia civil, participando do financiamento da – Ceará: a ponte sobre o Rio Quixeramobim, em Quixeramo-
nova rede de construção, tal como a linha ferroviária de Para- bim, de 1899 (comprimento: 209 m);
naguá-Curitiba. – Minas Gerais: o Pontilhão de Ferro, em Carangola, de 1907;
Trilhos, pontes, viadutos não exclusivamente ferroviários e nu- a Ponte Marechal Hermes, em Pirapora, de 1922 (comprimento:
merosos vagões de passageiros ou de mercadorias foram fornecidos 694 m. Ela seria oferecida pelo Rei Alberto I para fazer parte da
por diferentes empresas belgas que ofereciam para os mandantes e ligação jamais finalizada entre as cidades do Rio de Janeiro e Be-
os chefes de empresas brasileiros produtos particularmente com- lém do Pará);
petitivos. A grande concentração geográfica de empresas belgas – Espírito Santo: a Ponte Florentino Avidos, em Colatina, em
facilita também a emergência de “associações momentâneas”, 1928, sobre o Rio Doce (comprimento: 800 m. Um sistema cha-

327
parte 10 – arquitetura

Viaduto Santa Ifigênia (2012), na cidade de São Paulo, exemplo da arquitetura industrial fabricada na Bélgica e instalada no Brasil. Inaugurado em 26 de julho de 1913.

Estação Bananal, construída em 1888, exemplo da construção industrial do Projeto da nova Estação Inicial de São Paulo da E. F. Sorocabana.
Sistema Danly no Brasil no século XIX.

328
parte 10 – arquitetura

Mercado Modelo de Salvador, Bahia, 1911.

Mercadinho São João, em São Paulo, construído em 1890.

329
parte 10 – arquitetura

Chalé de ferro da Universidade Federal do Pará, em Belém.

mado “dinossauro”, permitindo empurrar os elementos da ponte


até os pilares, foi igualmente fornecido);
– Rio de Janeiro: o Viaduto Dr. Paulo de Frontin, em Miguel
Pereira, sobre o Rio Santana, de 1889 (comprimento: 82 m, altura:
34 m); a Ponte Getúlio Vargas sobre o Rio Paraíba do Sul, em Bar-
ra do Piraí, de 1898 (comprimento: 250 m); a Ponte Dr. Nilo Peça-
nha (Ponte Velha), em Resende, de 1905 (comprimento: 230 m);
– Paraná: o conjunto das pontes da linha ferroviária Parana-
guá–Curitiba construída a partir de 1833;
– Santa Catarina: a Ponte Dr. Dinis Assis Henning sobre o
Rio Negro, de 1896, que liga as cidades de Mafra (SC) e de Rio
Negro (PR) (Comprimento: 71 m. Empresa: Dyle et Baccalan,
de Lovaina). Consoles para candelabros.
Concernente à arquitetura ferroviária, é preciso notar a sin-
gular estação feita de chapas galvanizadas do Bananal (SP), cons- O interessantíssimo Mercado Municipal de Belo Horizonte,
truída em 1888 com o sistema desenvolvido pela empresa Forges construído em metal e estrutura semiaberta em 1907 no local da
d’Aiseau e seu engenheiro, Joseph Danly, e restaurada de maneira atual rodoviária, se mostrou rapidamente estreito e foi substituído
muito rigorosa em 1984 pelo arquiteto S. Kruschin. A estação foi em 1929. Seu construtor belga ainda não foi identificado.
adquirida como um símbolo de modernidade ligada à cultura ca- Em Salvador, o primeiro Mercado Modelo, construído em
feeira que poderia ter construído a estação de modo tradicional, 1911-12 ao lado da Rua do Chile, pelas empresas Baume et Mar-
pois seu projeto não exigia nenhum elemento mais vantajoso a pent, em estrutura aberta, seria a primeira construção metálica
ser executado em metal. da cidade. Seu desenho não pareceu corresponder às expectativas
A consulta de arquivos de empresas na Bélgica revela nume- da população e adaptações foram realizadas já em 1915. Ele foi
rosos projetos de estruturas e de coberturas de estações de trem destruído por um incêndio em 1969 e o mercado foi implantado
brasileiras, como a da Nova Estação Inicial de São Paulo, mas em seu lugar atual.
esses projetos devem ainda ser comparados com as obras realiza- Em São Paulo, o Mercadinho (Mercado São João), de estru-
das. Tal abundância prova o dinamismo das empresas belgas para tura fechada, foi construído em 1890, na baixada do Açu, Praça
responder às encomendas brasileiras. Federal, pela empresa Forges d’Aiseau. Há suspeita de que a en-
O desenvolvimento rápido e, às vezes, subvalorizado das gran- trega foi incompleta e que o prédio adotou, talvez, uma versão
des cidades brasileiras no final do século XIX e as diversas con- reduzida em relação ao projeto original. Deslocado em 1914, ele
figurações urbanas que daí resultam engendram programas de foi definitivamente demolido em 1924.
construção dos quais alguns terão uma vida mais efêmera que No Rio de Janeiro, o Mercado Municipal de 150 m x 150 m
o previsto. É o caso dos mercados que estavam, além disso, con- foi, provavelmente, o maior edifício metálico construído no Brasil.
frontados com rápidos melhoramentos – especialmente relativos Uma empresa inglesa realizou os pavilhões centrais e os Ateliers de
à higiene –, e que resultavam subitamente inadequados. Willebroeck, de Bruxelas, realizaram os torreões octogonais situa-

330
parte 10 – arquitetura

Cúpula do Teatro Amazonas em pré-montagem em Haine-Saint-Pierre.

dos nos quatro cantos bem como o elemento central. Construído que Rodrigues Alves e no campus da Universidade Federal do
em 1903, ele sobreviverá ao cruzamento da Avenida Perimetral, Pará (UFPA), herdaram as tipologias desenvolvidas. Sua data de
mas foi destruído no final dos anos de 1950; subsiste apenas uma chegada a Belém não está registrada, mas, segundo elementos de
das torres de canto, transformada em restaurante a partir de 1933. detalhes, podemos situar sua construção depois de 1890.
É interessante notar o apelo a empresas de construção metálica A estação de Bananal, o mercado de São Paulo e o trapiche
de diferentes nacionalidades para um mesmo prédio. Esta situação de Manaus, bem como os chalés, são construções completamente
que se repete em outras construções no Brasil parece, entretan- metálicas. Se a estação de Bananal e os chalés de Belém foram
to, única na América Latina nessa época e ela demonstra grande considerados como elegantes pela população local, esse não foi o
domínio de diferentes técnicas de construção metálica e a gestão caso do mercado de São Paulo. Na Europa, as construções inteira-
hábil da concorrência pelos arquitetos brasileiros. mente metálicas e fechadas foram consideradas apenas muito es-
Em Manaus, o Trapiche 15 de Novembro (ex-trapiche Prince- poradicamente: os arquitetos concebiam muito excepcionalmente
sa Isabel), foi construído em 1889-90 pela empresa Forges d’Aiseau a utilização do metal em fachada e o relegavam aos elementos
para abrigar numa estrutura fechada os produtos de borracha. Em estruturais e internos. A esse respeito, a posição dos arquitetos la-
bom estado de conservação, ele foi recentemente integrado num tino-americanos é mais coerente em relação à modernidade, não
projeto turístico do porto de Manaus. dando esse status restritivo aos novos materiais.
Os pequenos prédios de habitação ou “chalés de ferro” cor- Os quiosques, muito numerosos na Bélgica, não parecem ter
respondem, como programa, aos primeiros desenvolvimentos da constituído um mercado de exportação, não chegando a vencer a
arquitetura metálica da metade do século XIX. Em meio tropical, concorrência britânica que trabalhava com catálogos. Exceção à
essas habitações integram elementos tipológicos e climáticos dos regra, o elegante Mirante Chapéu do Sol do Corcovado, construí­
pavilhões coloniais ingleses. Os dois chalés de ferro construídos do depois de 1886, e da construção da estrada de ferro de acesso,
pela Forges d’Aiseau existentes ainda em Belém, situados no Bos- demolido na ocasião da construção do Cristo Redentor, em 1931.

331
parte 10 – arquitetura

Projeto do Floral Pavilhão, cerca de 1910.

Ao longo da Baía de Botafogo, as primeiras instalações do Clu- – As escadas do Palácio da Liberdade em Belo Horizonte, de
be de Regatas de Botafogo, fundada em 1894, foram construídas 1897, construídas pelos Ateliers de Jaegher, de Bruges, que foram
no mesmo ano pela Compagnie Centrale de Construction de Hai- igualmente guarnecidas de vitrais coloridos e de elementos es-
ne-Saint-Pierre. Serão demolidas depois de 1910 quando da am- truturais;
pliação das instalações. – Um pórtico, colunas e elementos estruturais de casa da fa-
Diferentes estruturas de cobertura e de cúpulas, assim como mília Brennand, em Recife, pela Compagnie Centrale de Cons-
elementos decorativos, foram realizados por empresas belgas. Es- truction de Haine-Saint-Pierre;
ses elementos, partes de projetos maiores, são identificados mais – Os espelhos bisotados existentes originalmente no Palácio
pelos catálogos de construtoras: de Cristal de Petrópolis, em 1884, e aqueles ainda existentes na
– A cúpula do Teatro Amazonas em Manaus, fabricada depois Confeitaria Colombo (1894) no Rio de Janeiro;
de 1885 pela empresa Compagnie Centrale de Construction de – Os candelabros, aparelhos para iluminação para a S.A. do
Haine-Saint-Pierre; Gaz de Rio de Janeiro, fornecidos pela empresa Baume et Mar-
– O domo do necrotério do Cemitério do Bonfim, em Belo pent, de Haine-Saint-Pierre, em 1926.
Horizonte, pela empresa La Brugeoise, construído em 1900 e Os arquivos das empresas belgas do século XIX e início do
preservado; XX, quando subsistem, são em sua maior parte não classificados.
– A estrutura do telhado, construída por Baume et Marpent em Não há dúvida de que numerosas construções realizadas no Bra-
1906, do edifício da Associação dos Empregados do Comércio do sil poderão ser identifcadas por ocasião de um eventual trabalho
Rio de Janeiro, situado à Avenida Central, e demolido em 1939; sistemático – devendo-se ainda fazer a distinção entre realizações
– A estrutura visível do interior da igreja do Pequeno Grande e projetos – como esse belo “Floral Pavilhão” encomendado per-
em Fortaleza (1898-1903); to de 1910 para as empresas Baume et Marpent por Paul Villon,
– A estrutura da estação triangular de General Carneiro (MG) paisagista francês que trabalhou em criações de parques no Rio
em 1895, demolida nos anos de 1960; de Janeiro, em São Paulo e Belo Horizonte, principalmente, e
cuja construção ou destino não puderam ainda ser identificados.

332
parte 10 – arquitetura

Os empreendimentos belgas e a moradia operária



Te l m a d e B a r r o s C o r r e i a

E mpresas de capital belga ou pertencentes a famílias de origem


belga tiveram papel relevante na história da moradia operária
no Brasil durante o século XX. Criaram vilas e núcleos fabris, do-
de mil (Correia, 1998). Nesse momento o núcleo fabril já tinha
dimensões consideráveis: “Além das aprazíveis vivendas destinadas
ao pessoal technico a Companhia possue cerca de 300 casas que
tados de moradias e equipamentos de uso coletivo, entre os quais são alugadas aos operarios, pagando estes modico aluguel mensal.
Monlevade, cuja concepção revelou-se inovadora em termos de Muitos outros são proprietarios das casas em que residem mediante
forma de eleição do plano e dos padrões urbanísticos adotados. aforamento dos terrenos” (Álbum de Pernambuco 1919, p. 226).
Um exemplo desta ação é a Vila Belga, erguida, a partir de Sobre as formas de lazer em Moreno, consta em livro publi-
1906, pela Compagnie Auxiliaire de Chemins de Fer au Brésil, em- cado em 1919: “Próximo à fabrica ha um grande campo de recreio
presa concessionária que finalizou a construção e operou o ramal onde se realizam constantes matches de foot-ball e outros jogos. No
ferroviário entre Porto Alegre e Uruguaiana, no Rio Grande do aprazivel palacete da Gerencia existe magnifico tennis court e excel-
Sul. Na cidade de Rio Grande, importante entroncamento ferro- lente campo para jogo de Bowling. Como elementos de diversão ha
viário, a empresa ergueu uma vila para abrigar seus funcionários, um cinema onde duas vezes por semana são exhibidos films, e a Phi-
além de escritórios, oficinas, galpões, farmácia e armazém. A vi- larmonica da Sociedade Musical Operaria que aos domingos e dias
la, projetada pelo engenheiro Gustave Vauthier, se estende por de festas realiza retretas na principal praça da localidade, attrahin-
quatro ruas, com suas 80 casas geminadas duas a duas e dotadas do grande concurrencia” (Álbum de Pernambuco 1919, p. 226).
de estreito recuo lateral (Finger, 2009). Algumas são construções Em 1939, Moreno reunia cerca de 700 casas, consultório mé-
desprovidas de ornatos, enquanto outras têm suas fachadas reves- dico, creche, o Societé Sport Club e várias escolas.2 Na ocasião a
tidas de elementos compositivos – cornijas, pilastras, cercaduras revista Cidade Mauricéa considerava que Moreno era “...pelas suas
e ornatos – de viés eclético. Algumas casas, em coerência com condições de hygiene, asseio e cuidados empregados, a mais confor-
padrões de higiene divulgados na época – são dotadas de porão. tável (vila operária) do Paiz (...). Acrescentava que a empresa visava
O Estaleiro Mabilde é outro exemplo de empresa de origem (...) fortalecer o ánimo de seus trabalhadores proporcionando aos
belga que propiciou moradias para seus empregados. Foi fundado mesmos, habitação confortavel e sadia, predispondo-os destarte para
em 1896 por Emilio Carlos Oscar Mabilde, filho do engenheiro um trabalho mais produtivo e vantajoso” (Cidade Mauricéa, 1939).
belga Pierre François Alphonse Mabilde, a partir da crescente de- Localizado em terreno acidentado, Moreno tinha ruas com
manda de serviços e construção de embarcações em uma oficina traçado sinuoso que, dotadas de arborização profusa, remetiam ao
que inicialmente realizava consertos de máquinas e fogareiros. urbanismo das cidades-jardim. Casas de vários padrões, formas e
Em 1921 tinha cerca de 450 empregados. Diante dessa expansão tamanhos foram erguidas. Funcionários em postos de chefia ocu-
havia transferido em 1912 suas instalações de Porto Alegre para a pavam amplos chalés. As moradias dos operários eram grupos de
Ilha da Pintada, a uma distância de 15 minutos de barco da cida- casas semelhantes dispostas em renque, às vezes dotadas de um
de. Na nova localização a empresa ergueu uma vila operária com pequeno jardim.
cerca de 80 casas, armazém de secos e molhados, escola, hotel e O empreendimento urbanístico mais ousado realizado no Bra-
grêmio recreativo. Em 1919, o Estaleiro oferecia a seus emprega- sil por empresa belga – Monlevade – deve-se à ação da Companhia
dos moradia e assistência médica e havia criado o Grêmio Sportivo Siderúrgica Belgo-Mineira, que surgiu em 1921, com a associação
Mabilde (Pesavento, 1988, p. 74-75).1 da ARBED, um consórcio belgo-luxemburguês, à Companhia Si-
Segundo o jornal Notícia, de 25 de outubro de 1917: “Logo derúrgica Mineira, que tinha sede em Sabará. Em Minas Gerais,
a uma distancia de 50 metros, mais ou menos, das officinas, fica a a empresa criou diversas vilas operárias em Sabará e o núcleo fa-
vila operária dos estaleiros. Nella residem cerca de oitenta operá- bril de Monlevade.
rios, installados em casas de madeira, algumas de material, com as Para Sabará, a empresa providenciou a elaboração de um pla-
suas famílias e na mais completa harmonia. Vimos alli duas casas no de conjunto – Plans de Sidérurgique avec Project d´habitation
de negocio, canchas para jogo de bola e uma escola para os filhos ouvrières –, em 1932, o qual definia uma “Cité europèene”, loca-
dos operários ...” (Mabilde, 2009, p. 50). lizada numa encosta junto à fábrica e destinada a diretores, e uma
Um empreendimento urbano de envergadura bem maior foi vila operária em frente à usina (Lima, 2004). Em 1933, a empre-
Moreno, um núcleo fabril em Pernambuco, criado pela Societé sa abdicou da ideia desse plano em favor da construção de vários
Cotonniére Belge-Brésilienne. Essa empresa iniciou em 1909 a cons- grupos de casas nas imediações da fábrica.
trução de uma fábrica de tecido, que em 1910 começou a produzir. Em 1935, um documento da empresa relatava que essas casas
Desde os seus primeiros anos contava com residências, havendo seu “... apresentam um aspecto alegre e risonho e toda a cidade dá uma
núcleo fabril sido erguido entre 1908 e a década de 1940, acompa- impressão de ordem e de propriedade completamente saudável (...).
nhando o crescente número de operários que em 1919 já eram mais Estas residências, evidentemente, não são muito espaçosas: como tal,

333
parte 10 – arquitetura

O núcleo fabril Moreno, Pernambuco, construído a partir de 1909, fotografado Monlevade, construído pela Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, fotografado
em 1994. em 1998.

elas atendem à sua destinação e podem servir de modelo no Brasil, on- igreja, escola e cinema. O edital do concurso determinava que “A
de não se está habituado a conforto semelhante” (Lima, 2003, p. 91). nova cidade deveria transpirar a alegria de viver e o contentamento
Em 1952 havia cerca de 500 casas, distribuídas em várias vilas.3 de seus habitantes, dando uma impressão risonha e clara” (Lima,
A Belgo-Mineira também ergueu um hotel-cassino para hospe- 2003, p. 97-98). Lincoln Continentino definiu seu plano como o
dagem de visitantes e moradia de engenheiros solteiros, a Escola de uma “cidade-jardim industrial moderna”. Criou uma praça em
Profissional, a Pensão Siderúrgica, a Maternidade e Puericultura forma elíptica, com uma igreja no centro e prédios comerciais e
Louis Ensch, um ambulatório, um dormitório para solteiros, o Es- de serviço em torno. O sistema viário composto por passagens para
porte Clube Siderúrgica, a Associação Atlética dos Ex-Alunos do pedestres, ruas residenciais e avenida marginal ao Rio Piracicaba,
Senai (Serviço Nacional da Indústria) e vários clubes de futebol. se conformava em formas retilíneas ou em curvas suaves, incluin-
Na década de 1960 a empresa tinha o Grupo Escolar Cristiano do faixas gramadas com árvores de pequeno porte. Coerente com
Guimarães e subvencionava o Ginásio Santa Rita, além de dois a intenção de diversidade que marca a concepção espacial das ci-
postos de abastecimento e um açougue (Silva, 2004).4 dades-jardim, Continentino propôs ampliar os tipos de casas, dos
Havia nove tipos de habitações: casas para engenheiros, dois três sugeridos pelos organizadores do concurso para sete, todas do-
tipos de casas-padrão (com 2 ou 3 quartos), casas geminadas e cin- tadas de jardins. O engenheiro Louis Ensh dirigiu os trabalhos de
co tipos de casas econômicas. Adotavam várias formas e tamanhos: detalhamento e implementação do plano urbanístico, enquanto
em renque, geminadas e isoladas em meio a jardins; de porta e o arquiteto Yaro Burian projetou escolas, igreja, hospital, hotel e
janela, chalés e bangalôs; de alvenaria ou madeira. Em alguns moradias (Lima, 2003, p. 364).
conjuntos todas as casas eram iguais, enquanto em outros havia Monlevade rapidamente extrapolou os limites do plano origi-
mais de um modelo de moradia. nal, se expandindo sob a ação da Belgo até a década de 1960. Nele
Em 1934 a empresa decidiu criar uma segunda usina – inau- a empresa construiu mais de duas mil casas, alojamentos, cassi-
gurada em 1937 –, construir junto a ela um núcleo fabril – deno- no-alojamento, mercado, igreja, cinema, escolas, praças, hotel,
minado Monlevade – e promover um concurso para o seu plano. clubes, estádio de futebol, hospital, ambulatório, aeroporto e ma-
Ao decidir promover este concurso, a Belgo-Mineira inseriu-se tadouro. No início da década de 1960 a empresa tinha em Mon-
em uma tendência que se firmaria nas duas décadas seguintes, levade quatro grupos escolares, o Ginásio Monlevade e a Escola
de núcleos fabris concebidos a partir de planos previamente ela- Profissional (Lima, 2003, p. 369). Um pequeno comércio – açou-
borados por urbanistas. Foram 13 as propostas que participaram gue, armazém farmácia, barbearia etc. – se estabeleceu no local.
do concurso, vencido pelo engenheiro Lincoln Continentino. A O espaço do núcleo fabril de Monlevade foi marcado pela
proposta concebida pelo arquiteto Lucio Costa, embora não se- segregação social: havia a “vila dos médicos” junto ao hospital, a
lecionada, constitui um documento muito importante na histó- “vila dos engenheiros” na Avenida Aeroporto, um grupo de casas
ria do urbanismo moderno brasileiro. Nele o arquiteto explicita grandes na Avenida Getúlio Vargas e diversas vilas com casas me-
estratégias instigantes de diálogo entre modernismo e tradição, nores. Monlevade se estruturava a partir desses conjuntos de casas
ao mesmo tempo em que formula uma curiosa articulação entre semelhantes, localizados em torno da usina ou em locais mais dis-
procedimentos consagrados na organização de núcleos fabris e fer- tantes: em 1952 existiam 16 vilas operárias. As moradias se diferen-
ramentas de projeto difundidas pela arquitetura e pelo urbanismo ciavam em termos de material, tamanho e padrão de construção.
modernos (Correia, 2000). Havia casas térreas e sobrados, de madeira e de alvenaria, cercadas
O programa proposto pela Belgo-Mineira para o núcleo resi- por jardins, geminadas e dispostas em renque. As casas maiores,
dencial incluía, além de 300 moradias, área para comércio, clube, situadas na Avenida Aeroporto, eram construções térreas amplas,

334
parte 10 – arquitetura

de linhas modernistas e dispostas em meio a grandes jardins. Correia, Telma de Barros. Pedra: plano e cotidiano operário no Sertão. Campinas, Ed.
Monlevade e Moreno se converteram em cidades, enquanto as Papirus, 1998. 320 p.
Finger, Ana Eliza. Vilas Ferroviárias no Brasil. Os casos de Paranapiacaba em São Paulo
vilas operárias em Sabará (MG) e em Santa Maria (RS) continuam e da Vila Belga no Rio Grande do Sul. FAU-UNB, 2009. Dissertação de Mestrado.
existindo, testemunhando a ação das empresas na urbanização e Lima, Fábio José Martins de. Por uma cidade moderna: ideários de urbanismo em jogo no
na reforma da moradia do trabalhador brasileiro. concurso para Monlevade e nos projetos destacados da trajetória dos técnicos concor-
rentes (1931-1943). São Paulo, FAU-USP, 2003. Tese de Doutorado.
Mabilde, Adriano Ballejos. Estaleiro Mabilde – As relações com os funcionários e o Esta-
Telma de Barros Correia é Arquiteta e Urbanista pela Universidade do. (1896-1943). Porto Alegre, PUC, 2009. Dissertação de Mestrado em História.
Federal de Pernambuco (UFPE), mestre em Desenvolvimento Urbano Pesavento, Sandra Jatahy. A Burguesia Gaúcha: dominação do capital e disciplina do tra-
balho (1889-1930). Porto Alegre, Mercado Aberto, 1988.
pela UFPE, doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Silva, Ronaldo A. R. da. “Empresa, cidade e sociedade: uma (re)construção das relações
Universidade de São Paulo e livre docente pela USP. É professora e sociais sob o olhar das vilas operárias”. Memeguello, C. & Rubino, S. Patrimônio In-
pesquisadora no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP-Cam- dustrial: perspectivas e abordagens. Campinas, Unicamp, 2004.

pus de São Carlos/SP e é autora dos livros Pedra: plano e cotidiano


Notas
operário na sertão (Papirus, 1998) e A construção do habitat moder-
no no Brasil – 1870-1950 (Fapesp/RIMA, 2004). 1. Boa parte dos operários morava na vila, a cujo acesso se dava preferência às famílias
numerosas. As moradias eram gratuitas, assim como água, luz e carvão. A fábrica tinha
médico e enfermaria e, nos casos de acidentes de trabalho, fornecia remédios, pagava
Referências e fontes hospital e 2/3 do salário até a volta ao trabalho. Promovia festas, como a de Nossa
Senhora dos Navegantes com procissão naval, o Primeiro de Maio com churrasco e
“A Fabrica de Morenos, pela sua Organização Modelo e pela Assistencia Efficaz que Presta o carnaval com bailes e blocos, o que não a impediu de instituir “Lei Seca” no local
aos seus Operarios, Sobresae-se de suas Congeneres com Grande Destaque”. Cidade (MABILDE, 2009, p. 53-62).
Mauricéa. Anno II, N.15. Recife, julho de 1939. 2. Havia o Externato Societé Cotonniére, Jardim da Infância, Escola Paroquial e o Colle-
“A Siderurgia em Minas Gerais”. O Observador Econômico e Financeiro, Ano V, n. 57, gio Batista de Moreno. As casas eram alugadas e a luz fornecida pela fábrica a preços
São Paulo, outubro de 1940. subsidiados.
Álbum de Pernambuco - Obra de Propaganda Geral. Editor Proprietário: José Coelho. Rio 3. Havia as vilas: Siderúrgica, Santa Cruz e Michel, as casas destinadas a engenheiros e
de Janeiro, Pimenta de Mello & Comp., 1919. um conjunto de moradias situado junto à usina destinado a funcionários em cargos
Continentino, L. “Plano de urbanização da cidade operária de Monlevade”. Revista da de chefia.
Directoria de Engenharia, 5(3): set. 1936. 4. Pelas moradias se cobrava um pequeno aluguel que era considerado módico pela
Correia, Telma de Barros. “O modernismo e o núcleo fabril: o anteprojeto de Lúcio Cos- empresa e incluía água e luz. Além de empregados moravam em casas da empresa o
ta para Monlevade”. Anais do VI Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. diretor da Escola Senai e um padre, enquanto na Vila Michel um posto policial foi
CD-ROM. Natal, UFRN, outubro de 2000. instalado até 1964 em casa da Usina (SILVA, 2004, p. 11).

A Vila Belga de Santa Maria


Anna Eliza Finger

S ituada em Santa Maria (RS), a Vila Belga foi construída na


primeira década do século XX pela empresa belga Compagnie
Auxiliaire des Chemins de Fèr au Brésil. A Estrada de Ferro Porto
Alegre-Uruguaiana foi construída entre 1877 e 1907, tendo che-
gado a Santa Maria em 1885, quando foi construída a Estação.
Em 1898 a Auxiliaire arrendou a linha e, como havia a previsão
de que Santa Maria se transformasse em um importante entronca-
mento ferroviário, por onde passaria outra linha em direção a São
Paulo, transferiu para lá seus escritórios e instalou ali suas oficinas.
Para abrigar os funcionários que trabalhavam no pátio fer-
roviário, a empresa adquiriu uma gleba urbana próxima à esta-
ção para a construção de um conjunto de residências. E como
inicialmente a Auxiliaire não intencionava construir uma vila
autônoma isolada, não foram previstos equipamentos de uso ex-
clusivo para seus funcionários, nem áreas públicas como praças
e largos. Pelo contrário, a empresa investiu na qualificação de
escolas e hospitais da cidade, abertos ao restante da comunidade,
pois partia-se do princípio de que seus moradores se mesclariam Vista da rua e das casas da Vila Belga, em Santa Maria, Rio Grande do Sul,
à população de Santa Maria. fotografada em 2012.

335
parte 10 – arquitetura

Estação Ferroviária da Vila


Belga, 2012.

O projeto foi desenvolvido pelo engenheiro belga Gustave Santa Maria, possivelmente em função das chamadas “posturas
Vauthier, na época diretor da companhia, e não foi concebido municipais” (leis que normatizavam a forma de implantação dos
segundo os preceitos clássicos das vilas industriais, com setoriza- edifícios, acabamentos, coberturas etc.), sua configuração se apro-
ção urbanística e arquitetônica ou hierarquia viária, pois abrigaria xima do restante da cidade, com edifícios construídos em alvenaria
apenas funcionários de uma mesma hierarquia e que não exerciam e implantados no alinhamento dos lotes.
um papel de vigilância uns sobre os outros, pertencendo todos ao Além disso, cada unidade é diferenciada através de detalhes
mesmo nível funcional, o que lhes permitia usufruir certa auto- dos requadros das aberturas, cimalhas e pilastras, que têm dese-
nomia e liberdade individual. nho único e, associados a porões altos em alguns edifícios, pro-
Entretanto, é possível identificar referências aos manuais de porcionam variações que tornam única cada unidade, o que tam-
orientação para a construção de vilas operárias e ferroviárias pu- bém pode ser atribuído a uma possível influência de Cloquet,
blicados na Bélgica ao final do século XIX, com destaque para o que afirmava que a uniformidade das residências era um defeito
Traité d’Architecture, de Louis Cloquet, de 1898, e que constava que geraria banalidade e monotonia, negando-se o direito à in-
do acervo do Liceu de Artes e Ofícios da Cooperativa dos Ferro- dividualidade humana.
viários de Santa Maria. No ano 2000 a Vila Belga foi tombada pelo Instituto do Patri-
Dentre esses, se destaca a integração em relação ao restante da mônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae) como Patrimônio
cidade, evitando o isolamento dos bairros operários, que poderia Cultural do Rio Grande do Sul.
criar “castas” hostis à sociedade e constituir locais de desordem.
Quanto à implantação, as 80 residências foram organizadas em Anna Eliza Finger é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela
blocos de duas, conforme modelo chamado por Cloquet de ac- Universidade Federal de Santa Catarina (2001), especialista em Con-
colée, preservando a ventilação cruzada entre a fachada principal servação e Restauro de Monumentos e Conjuntos Históricos, pela
e o quintal aos fundos. O agrupamento de apenas duas unidades Universidade Federal da Bahia (UFBA), Mestre e Doutora em Teo-
também permitiria o afastamento de uma das laterais do lote, ga- ria, História e Crítica da Arquitetura pela Universidade de Brasília
rantindo certo isolamento e privacidade. (UnB), com o tema Patrimônio Ferroviário Brasileiro. É funcionária
As residências foram divididas em tipos, variando de tamanho do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) des-
conforme o número de ocupantes, mas com os mesmos padrões de 2006, atualmente desempenhando o cargo de Coordenadora-Geral
de acabamento. Como foi construída dentro da área urbana de de Cidades Históricas.

336
parte 10 – arquitetura

Nota sobre Arsène Puttemans


Luciana Pelaes Mascaro

A rsène Puttemans, arquiteto e paisagista belga formado pela


Escola de Horticultura de Vilvoorde (École d’Horticulture de
lÉtat – Vilvoord), trabalhou no Brasil nas duas primeiras décadas
(Lima, 1987, p. 22). Este último parque é o da Esalq. Participou
também do projeto de Aprendizado Agrícola de Barbacena (MG)
e foi auxiliar do diretor dessa instituição (Cimino, 2013, p. 174).
do século XX (na Escola Superior de Agricultura Luiz de Quei-
roz-Esalq, até 1913). Referências
Foi responsável por vários projetos, entre os quais os jardins do Lima, Ana Maria Liner Pereira. (1987). Nosso parque faz 80 anos. Revista ADEALQ, Pi-
atual Museu Paulista (na imagem) – modificados na década de racicaba, 1987, v. 10, n. 6, p. 20-22.
1920 –, o da Praça da República e o da Várzea do Braz, na cidade Cimino, Marli de Souza Saraiva. Iluminar a terra pela inteligência: trajetória do aprendi-
zado agrícola de Barbacena, MG (1910-1933). Tese (Doutorado) – Universidade do
de São Paulo; o da Praça de São Bento, em Niterói, e o do Par- Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Educação, 2013.
que Philippe Westin Cabral de Vasconcelos, em Piracicaba, SP

Jardins do Museu Paulista, em São Paulo, projeto de Arsène Puttemans.

337
parte 10 – arquitetura

Os pavilhões brasileiros nas exposições internacionais da Bélgica


Luciana Pelaes Mascaro

O s pavilhões das exposições internacionais e universais são ob-


jetos privilegiados para o estudo da história da arquitetura.
Aqueles que foram construídos nas décadas próximas à virada do
Primeira Grande Guerra. O grande interesse por parte desse país
nesse tipo de evento se explica pelo fato de que a região da Valônia
(sul da Bélgica) era uma das regiões siderúrgicas mais desenvolvi-
século XIX para o XX estão inseridos num contexto histórico no das do mundo e desempenhou “um papel apreciável na evolução
qual a modernidade e a introdução dessa modernidade nos países universal das ciências e das técnicas”2 (Halleux et al., 1995). Além
sul-americanos são aspectos primordiais. Nesse período, a América disso, exportou suas mercadorias – sobretudo as estruturas metá-
do Sul era destino de imigrações e de produtos industrializados licas para construção – para diversos países.
europeus e as exposições universais e internacionais conheceram No que concerne ao comércio com a América do Sul, a Bélgi-
sua “idade de ouro”. ca partilhou um mercado disputado principalmente pela Inglater-
Dois fatores importantes convergiram e contribuíram para o ra, pela França e pela Alemanha (Kühl, 1998, p. 77). Esse mercado
desenvolvimento do metal para construção: a disponibilidade des- foi destino de produtos belgas que, em conjunto com produtos de
se material e a forte demanda por pavilhões de exposições, que outras origens, ajudaram a transformar a arquitetura sul-americana
eram construções efêmeras e deveriam se adequar a determinadas como nos mostra Pirson, em seu artigo “Arquitetura industrial bel-
facilidades. Esses pavilhões – concebidos e realizados sob as exi- ga no Brasil no século XIX”. Como exemplo, é possível citar uma
gências da rapidez, da economia, da pré-fabricação, da desmonta- série de construções de estrutura metálica de origem belga no Bra-
bilidade – são, portanto, de especial interesse, posto que neles se sil como a estação de trem do Bananal (SP), o Armazém do Porto
desenvolveu o aperfeiçoamento da técnica e da estética. de Manaus, o Mercado São João em São Paulo, o Chalé de Ferro
Na época evocada, as exposições universais e internacionais de Belém – os dois últimos originários das Forges d’Aiseau – e o
eram concebidas como vitrines publicitárias para os países que Viaduto Santa Ifigênia, em São Paulo – procedente da S. A. Aci-
primeiro se engajaram na via da industrialização e se constituíam éries d’Angleur (Pirson, 1986, p.154 a 162; Bruxelles, prouesses...,
como ocasiões privilegiadas para as trocas e para o comércio. Se- 2011). Como nos ensina o professor Geraldo Gomes – pioneiro
gundo Renardy (2005, p. 134), “a sociedade ocidental parece querer nas pesquisas sobre o assunto com seu livro A arquitetura do ferro
cada vez mais se comparar a outras de outros continentes, pois as no Brasil, São Paulo (Nobel, 1986) –, na região da América Latina
indústrias (...) procuram matérias-primas, mas também mercados
consumidores onde verter seus produtos finalizados”.1
Desde a realização das duas primeiras grandes exposições em
Londres em 1851 e 1862, que aconteceram num único pavilhão
comum a todos os expositores, foram utilizadas estruturas metá-
licas. Ainda se tratava de um sistema construtivo em desenvol-
vimento, caro e mal aceito esteticamente como afirma Dantas
(2010, p. 70), sobre a exposição de 1862: “A imprensa nacional
fez várias críticas, chamando a principal atração de ‘tigelas de sopa
colossais’ e ‘uma desgraça nacional’”. Mas o material foi desenvol-
vido e, mesmo em exposições realizadas após a Segunda Guerra
Mundial, o emprego das estruturas metálicas para pavilhões tor-
nou-se incontornável.
A partir de 1867, em Paris, os próprios espaços de exposição
– ou seja, os pavilhões – foram explorados como produtos. Eram
concebidos e realizados para mostrar o nível de desenvolvimento
do país representado e como exemplos do que a industrialização
poderia fazer pela construção. Foi uma época de grande abertura
para outras culturas, de fé no progresso e no desenvolvimento (Re-
nardy, 2005, p. 133, 134). A famosa exposição realizada em Paris
em 1889 – na qual a Torre Eiffel foi erigida – veio a se transformar
numa amostra do apogeu da utilização do metal no século XIX
(Kühl, 1998, p. 37).
A Bélgica, até 1935, já tinha realizado em seu território cinco
exposições internacionais e universais, mesmo com o advento da Seção do Brasil na Exposição Universal de Antuérpia, 1885.

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parte 10 – arquitetura

Cartão-postal mostra as estruturas de ferro retorcidas após o incêndio que atingiu


a Exposição de Bruxelas de 1910.

a arquitetura de ferro produzida naqueles tempos ainda sobrevive e


prenuncia conceitos racionalistas, dentre os quais a pré-fabricação
e a fabricação distante do local da construção.
Nesse clima de corrida por novos mercados – que também
funcionou na mão inversa, ou seja, países não industrializados
procuravam comercializar seus produtos primários –, por um lado,
observamos o impacto do processo de industrialização europeia
no mundo e, por outro, a presença de vários países não europeus
nas grandes exposições citadas. Vamos, então, explorar a presença
do Brasil nas exposições realizadas na Bélgica.
Até o ano de 1939 o Brasil participou de 13 exposições univer-
sais e internacionais, a começar pela Exposição Internacional da
Indústria de Londres, em 1862 (Dantas, p. 67, 2010). Em 1885,
a seção do Brasil na Exposição Universal de Antuérpia, Bélgica,
ainda sem pavilhão próprio, se localizava, segundo o mapa da
exposição – que se encontra na Biblioteca da Universidade de
Gand, Bélgica – à direita da entrada principal da feira, num pavi- Ilustração da Fachada do Pavilhão do Brasil na capa do Livro Pavillon du Brésil,
Exposition Bruxelles, 1910.
lhão voltado ao acesso da Exposição Marítima e partilhado com
países da Europa, como Portugal, Espanha e Suíça, do Oriente
Médio, como a Turquia, e de outros continentes, como Estados mos de arquitetura – através do emprego de características da casa
Unidos, Japão, China. burguesa de fins do século XIX –, não podia deixar de marcar, ao
A publicação semanal sobre a exposição, datada do dia 9 de mesmo tempo, o exotismo e as singularidades do país – através de
agosto de 1885, mostra a seção do Brasil em destaque. Na facha- elementos utilizados para exaltar a exuberância de sua natureza e
da do espaço brasileiro nota-se abundante decoração, muito de de seus recursos. Daí a mistura entre cortinas, painéis e vegetação
acordo com a tendência arquitetônica do final do século XIX, exagerada que, para além de transmitir as mensagens que descre-
constituída, entre outros elementos, pela exuberância dos arranjos vemos, tinha a virtude de servir muito bem à dissimulação da es-
vegetais – que, em certa medida, dissimula a estrutura da constru- trutura metálica: nesse momento, ela era apenas o cabide para o
ção – em associação com a profusão de tecidos aplicados à moda traje de festa. Outras informações sobre a arquitetura desta seção
dos interiores burgueses, com bandeaux e franjas pendentes, e do Brasil requerem pesquisa mais aprofundada.
a dois grandes painéis, provavelmente envidraçados, onde se lê Em 1910 o Brasil estava de novo presente na Bélgica, du-
“Brazil”. Todo esse conjunto de recursos está aplicado sobre uma rante a Exposição Universal de Bruxelas, com pavilhão próprio
estrutura aparentemente metálica, a julgar pela esbeltez e pelo cujo projeto é atribuído ao arquiteto belga Franz Van Ophem na
desenho dos pilares e pela amplitude do espaço que se adivinha publicação “Pavillon du Brésil – Exposition de Bruxelles 1910”.
no interior do recinto. Ficou localizado à direita no sítio destinado ao evento, junto aos
Se a linguagem empregada precisava deixar evidente que o pavilhões de países da África, da Indochina e das Colônias Fran-
Brasil já acompanhava os últimos gritos da moda europeia em ter- cesas, como mostrado no mapa da exposição “Bruxelles 1910

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parte 10 – arquitetura

Vista do Pavilhão do Brasil, Exposição de Antuérpia de 1930.

– L’Exposition Universelles Retrouvée”, uma exposição sobre a facilitada pelo uso da estrutura em metal – nos trazem imediata-
exposição de 1910, realizada em 2010, no Campus da Universi- mente de volta ao século XIX (embora tenha sido construído nos
dade Livre de Bruxelas. primeiros anos do século XX, em linguagem anacrônica). Uma
A exposição de 1910 é característica pela linha política de curiosidade sobre este evento foi o incêndio que atingiu, em agosto
seu Comitê Executivo, que escolheu como arquiteto-chefe Er- daquele ano, um dos seus setores, poupando o do Brasil, e revelou
nest Acker, professor e antigo diretor da Academia de Belas Artes as técnicas construtivas escondidas e a capacidade de reorganizar a
de Bruxelas (em detrimento, por exemplo, de Victor Horta, re- feira rapidamente, sem que a mesma tivesse de ser cancelada. Vasta
presentante da vanguarda em arquitetura) (Douillet; Schaack, p. iconografia da época mostra escombros e estruturas metálicas retor-
7-8). Como resultado, a estética que se manifesta nos pavilhões cidas pelo incêndio, flagrante do interesse geral pela modernidade
da exposição – exceto raras exceções – representa o retorno ao velada do evento, apesar da opção por uma aparência conservadora.
classicismo e à Belle Époque (http://expo1910.be/). Em 1930 o Brasil participou novamente da Exposição Inter-
O Pavilhão do Brasil não fugiu à regra, como se nota por suas nacional em Antuérpia. Nos 20 anos que se passaram desde a fei-
raras imagens. Grandioso, simétrico, com suas estátuas, cúpulas e ra em Bruxelas, a arquitetura eclética estava suplantada e se im-
colunatas nos faz pensar em Palladio, mas as proporções e a altura punham francamente tendências muito menos ornamentadas e
da cúpula principal – que, de acordo com Dantas (2010, p. 108) mais arrojadas. As exposições internacionais eram o reflexo de tais
estava “situada a 52 metros de altura”, deve ter recorrido a conhe- transformações na linguagem arquitetônica, pois os pavilhões for-
cimentos técnicos de engenharia para ser realizada e, talvez, sido mavam um uníssono composto por linhas art déco e racionalistas.

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parte 10 – arquitetura

Fotografia do Pavilhão do
Instituto Nacional do Café
na Exposição de Bruxelas de
1935, publicada na Revista
La Technique des Travaux,
julho de 1935.

O pavilhão do Brasil, projetado pelo arquiteto Pedro Paulo lógica, o pavilhão brasileiro apresentou uma constituição aberta-
Bernardes Bastos, e “no qual lembranças da grandiosa arte pré- mente moderna. Não faltaram grandes áreas envidraçadas, o volu-
colombiana lhe atribuem uma nota muito característica (...) com me retangular sobre pilotis nem o terraço elevado do solo – referên-
galerias baixas e varandas nos transportam à frescura dos abrigos cias inequívocas aos preceitos de Le Corbusier – onde se degustava
à sombra nos países quentes” (La Technique..., 1930, p. 427), foi várias maneiras de se preparar o café. O prédio mereceu uma pe-
um exemplar de tendência art déco. O arquiteto adota formas geo- quena nota elogiosa na revista La Tecniques des Travaux, que o
métricas e linhas retas, reforçando a verticalidade da torre central; descreveu como “muito moderno e muito elegante” (1935, p. 358).
aparecem detalhes decorativos com motivos estilizados de inspi- Em 50 anos – desde 1885 até as vésperas da Segunda Guerra
ração vegetal e, também, máscaras e estátuas indígenas estiliza- Mundial –, portanto, o Brasil se fez presente na Bélgica através das
das. De acordo com o “Livro de Ouro da Exposição Internacional, exposições internacionais, que eram, e continuam sendo, eventos
Colonial, Marítima e de Arte Flamenga”, a participação do Brasil especialmente eficazes de divulgação e catalizadores de relações
nessa exposição foi particularmente brilhante e contribuiu para comerciais entre países. Assim, além de mostrar que são capazes
ampliar o renome do país na Bélgica. de acompanhar as últimas tendências em matéria de arquitetura,
Pouco depois, em 1935, reencontramos o Brasil em Bruxelas pois os próprios pavilhões se tornaram produtos passíveis de co-
para a Exposição Internacional com seu Pavilhão do Instituto Na- mercialização e exemplos de domínio de técnicas e tecnologias
cional do Café, situado próximo à Entrada do Centenário e em construtivas, os países representados nelas expõem os mais diver-
frente aos pavilhões dos Países Baixos e do Chile. Nessa exposi- sos atrativos exportáveis. Nesse sentido, de maneira geral, o Brasil
ção pode-se notar o esforço dos arquitetos em explorar a estética levou à Bélgica, além do café, que era o carro-chefe da exportação
dos materiais e das técnicas então disponíveis que, embora não brasileira no período, amostras de suas outras riquezas, naturais ou
fossem propriamente novos – o concreto e o metal já estavam no processadas, fossem elas oriundas da fauna, da flora ou dos mine-
mercado da construção desde fins do século XIX –, passaram a rais. Além disso, o Brasil mostrou que estava a par das vanguardas
ser trabalhados de forma nova, procurando deixar de lado a carga arquitetônicas, como mostra o estudo dos pavilhões que produziu
historicista e academicista. Esse modo de atuar que caracterizou para tais feiras realizadas em território belga.
a arquitetura dita moderna empregou, entre outros recursos, pa- Em 1958 o Brasil estará presente numa das mais marcantes
nos envidraçados, elementos metálicos aparentes, linhas sóbrias exposições realizada em Bruxelas com um pavilhão de autoria do
e espaços racionais recorrentemente. célebre arquiteto Sérgio Bernardes, sobre o qual o professor De
Concebido por Alphonse Barrez, arquiteto belga, dentro dessa Kooning nos fala no artigo a seguir.

341
parte 10 – arquitetura

Referências La technique des travaux. Revue mensuelle des procédés de construction modernes. Ma-
gazine publié sous les auspices de la Cie Internationale des Pieux Franki, n. 7, 6ème
Bruxelles 1910, L’Éxposition Universelle Retrouvée. Disponível em: <http://expo1910.ulb. année, Juillet 1930.
ac.be/>. Acesso em: 10 maio 2013. _____________. Revue mensuelle des procédés de construction modernes. Magazine
Civa (Centre International pour la Ville, l’Architecture et le Paysage); Université Libre de publié sous les auspices de la Cie Internationale des Pieux Franki, n. 7, 11ème an-
Bruxelles (ULB); Vrije Universiteit Brussel (VUB) (Bélgica). Bruxelles, sur les traces née, Juillet 1935.
des Ingénieurs Bâtisseurs: catálogo-guia. Bruxelas, 2011. 320 p. Guia realizado para Pirson, B. (1986). Architecture métallique démontable au XIX e siècle exportée d’Euro-
a exposição Bruxelles, prouesses d’ingénieurs, 20 de maio e 2 de outubro de 2011. pe vers les pays d’Outre-mer. Une contribution belge: les Forges d’Aiseau. Louvain:
Dantas, A. D. (2010). Os Pavilhões Brasileiros nas Exposições Internacionais. Dissertação KUL, 238 p.
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Douillet, I. Schaack, C. L’avenue Franklin Roosevelt et le quartier du Solbosch Consi- Renardy. Bruxelles: La renaissance du livre, Fonds Mercator, Dexia banque, 317 p.
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architectural, Bruxelles-Extensions Sud. Bruxelles, Ministère de la Région de Bru-
xelles-Capitale, Direction des Monuments et des Sites, Ed. P. Crahay. S/D. Dispo-
nível em: http://www.irismonument.be/pdf/fr/1001-roosevelt_solbosch_bruxelles-ex- Notas
tensions_sud.pdf>. Acesso em: 21 maio 2013. 1. “la société occidentale semble vouloir de plus en plus souvent se comparer à d’autres
Halleux R., Bernes A.-C., Etienne L. (1995). L’évolution des sciences et des techniques continents, car les milieux industriels (…) cherchent des matières premières, mais aussi
en Wallonie. In:  «Wallonie. Atouts et références d’une Région», sous la direction de des marchés porteurs où écouler les produits finis”.
Freddy JORIS, Gouvernement wallon. Namur. 2. “un rôle appréciable dans l’évolution universelle des sciences et des techniques”.
Kühl, Beatriz Mugayar. Arquitetura do ferro e arquitetura ferroviária em São Paulo: reflexões
sobre a sua preservação. 1. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998. v. 1. 438 p .

Sérgio Bernardes e o pavilhão do Brasil na


Exposição Mundial de 1958 em Bruxelas
Emiel De Kooning

E m janeiro de 1956, algumas semanas antes de assumir como


presidente, Juscelino Kubitschek ofereceu uma recepção na
embaixada do Brasil em Bruxelas. Entre os convidados estava o
dial depois da Segunda Guerra Mundial – formaria um esplêndido
mostruário para a apresentação das modernizações mais recentes
em andamento no Brasil: o canteiro de obras da nova capital es-
Barão Moens de Fernig, Comissário-Geral da Exposição Mun- taria em 1958 ainda em plena atividade.
dial de 1958. A participação do Brasil na ‘Expo 58’ parecia ser um Precisamente como em 1939, a arquitetura precisava não so-
negócio do interesse do Estado, como também o foi em 1939 na mente ser ‘moderna’ como também dar expressão à consciência
World’s Fair de Nova York. A Expo 58 – a primeira exposição mun- nacional. Em 1939 Costa e Niemeyer corresponderam com verve
a esta dupla tarefa. Seu pavilhão foi recebido com entusiasmo
nos meios da arquitetura e deu, junto com o novo Ministério da
Educação e Saúde no Rio de Janeiro, origem ao ‘estilo brasilei-
ro’ na arquitetura. Desde o final dos anos 1940 esse estilo obte-
ve reconhecimento mundial, mesmo que criticado, também no
Brasil, por seu caráter formalista. A propaganda que lhe foi feita
desde os Estados Unidos foi recebida com suspeita por alguns
– um arquiteto paulista perspicaz como Villanova Artigas falou
nesse contexto mesmo de ‘manoeuvre of larceny’ (manobra de
apropriação indébita).
No final dos anos 1950 Niemeyer foi totalmente ocupado pela
obra da nova capital, Brasília. Como arquiteto do pavilhão brasi-
leiro em Bruxelas foi indicado Sérgio Bernardes (1919-2002), um
homem definido como ‘um arquiteto humanista, uma mistura de
poeta e utopista’. Até o fim da vida Bernardes elaborou planos es-
petaculares nos quais lidava com os problemas sociais e ecológicos
do Brasil com uma fé incondicional nas potencialidades da técnica.
Produziu uma obra ricamente variada que soube guardar sua vita-
lidade até os últimos anos de vida. Lauro Cavalcanti o considera
Vista da entrada do pavilhão da Exposição Mundial de 1958 em Bruxelas. ‘o melhor arquiteto da segunda geração dos modernistas cariocas’.

342
parte 10 – arquitetura

Quando recebeu o encargo do pavilhão, Bernardes não tinha


ainda se manifestado como um utopista, se bem que ficou famoso,
mesmo nas revistas internacionais, por seu surpreendente uso de
materiais diversos e por suas construções em aço leve. Assim ele
explorou em 1954 o potencial lúdico dos light weight roofs (telha-
dos leves), num magnífico pavilhão que se construiu por ocasião
do quinto centenário de São Paulo no Parque do Ibirapuera e que
pode ser considerado um direto precursor do pavilhão em Bruxe-
las. O caráter inteligível da construção se encaixava perfeitamente
com o quadro dinâmico e livre que a arquitetura deve, segundo
Bernardes, poder oferecer ao homem e à natureza – um credo
que marca toda sua obra.
Na Expo 58 o pavilhão do Brasil foi parar num lugar remoto
do sítio, na parcela mais afastada da seção estrangeira. O terreno
era idílico, mas difícil – e em nenhum outro pavilhão as limitações
foram exploradas com tanta elegância. O lote, com forte desnível
de dez metros, proporcionou um roteiro de exposição em declí-
nio; o foot print (presença) do pavilhão seguia literalmente – mas
de maneira extraordinariamente lúdica e sensual – o contorno si-
nuoso da superfície construível. Tudo se juntava visualmente por
um teto em forma de prato, suspendido em quatro torres angula-
res transparentes de aço e das quais as beiras se inclinavam para
dentro, como um eco da curva do caminho, mas também para
evitar os cumes das árvores presentes. No meio do teto se abriu
um oculus pelo qual podia subir ou descer um balão vermelho.
De acordo com o tempo, pairava livre e alegre acima do pavilhão,
como os balões nas festas juninas de São João, ou fechava como
uma tampa a abertura. Sua leveza e flexibilidade contrastavam
com o espalhafato rígido dos abundantes chamarizes da Expo 58
e formavam um sinal adequado para um pavilhão que foi conce-
bido como um espaço aberto e animado.
Nas fotografias do interior do pavilhão se pode efetivamente Vista da entrada do Pavilhão do Brasil na Exposição Mundial de 1958 em Bruxelas.
notar como todos os elementos se conectavam, num espetácu-
lo total que se experimentava já logo na entrada, num plunging quanto calculada da exposição. E naturalmente também o jardim
view: Bernardes teve a ideia luminosa de fazer com que os visi- de Roberto Burle Marx: centro e final da descida, junção de geo-
tantes entrassem no pavilhão pela parte de cima do terreno e de metria e espontaneidade, como o próprio pavilhão.
conduzí-los para baixo numa reviravolta contínua, contornando A instalação da exposição era tão simples quanto evidente no
um jardim interior, que recebia a água do telhado numa região seu propósito. Painéis e longas mesas se encontravam perpendi-
central – captando a chuva que entrava pelo oculus. O percurso culares ao percurso de maneira que conduziam os visitantes em
circulante proporionava pontos de vista sempre mutantes e uma zigue-zague. O Brasil foi apresentado como uma nação moderna
vivência dinâmica do interior. pronta a integrar-se na corrente dos desenvolvimentos mundiais e
A semelhança com o pavilhão dos Estados Unidos era notável expressamente moldada no exemplo ocidental. Lia-se no catálogo
– lá também a presença do partido interior aberto com um tan- oficial: ‘Le Brésil construit une civilisation occidentale des tropiques’
que central e uma abertura no teto. Entretanto, a elegância altiva (O Brasil constrói uma civilização ocidental dos trópicos). Além
do pavilhão de Edward Stone não se comparava em nada com a do progresso na previdência da saúde, ensino, meios de transpor-
vivacidade do pavilhão brasileiro, que não pretendia encantar ou te, turismo e indústria, se realçavam a arquitetura e o urbanismo
impressionar, mas oferecer um ambiente descontraído para a fes- atuais, com imagens de perspectiva deformada que faziam pare-
tiva reunião de gente e coisas entre si. Numa de suas Braziliaanse cer os novos blocos high rise ainda mais altos do que eram e com
brieven, cartas brasileiras, escrevia August Willemsen sobre ‘a vida panoramas da skyline das metrópoles brasileiras. O ponto culmi-
aberta, sem muros, atrevida’ – o que pode ter sido o mote da par- nante se situava na última curva do percurso, onde se evocavam
ticipação brasileira na Expo 58. Todo o pavilhão era uma mani- as obras de Brasília com dramáticas fotografias em branco e preto
festação disso: a aparência alegre, o interior vigoroso, os materiais e com uma maquete da Praça dos Três Poderes. Depois da Expo
de construção informais, ‘brutalistas’, a apresentação tão lânguida 58, Bernardes realizou em Brasília obras prestigiosas: um mastro

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parte 10 – arquitetura

Interior com o jardim de Roberto Burle Marx, perspectiva a partir da entrada do Pavilhão do Brasil na Exposição Mundial de 1958 em Bruxelas.

de bandeira transparente na Praça dos Três Poderes e um impo- muitas outras obras suas, Bernardes fundiu as ideias divergentes na
nente centro de congressos no Eixo Monumental, perto da torre arquitetura brasileira do pós-guerra numa síntese extremamente
de televisão de Lúcio Costa. pessoal, uma síntese que parecia oferecer uma saída ao impasse
Mesmo tendo o pavilhão do Brasil na Expo 58 grande reper- ao qual a abordagem formalista tinha chegado naquele momen-
cussão nas revistas profissionais internacionais, foi também criti- to. Nesta residem o valor histórico e a atualidade duradoura do
cado pela elaboração construtiva impura. Essa crítica é pertinen- pavilhão do Brasil na Expo 58.
te, mas, de fato, não é relevante: se faz injustiça a Bernardes de
querer compreender o pavilhão somente a partir de uma lógica Emiel De Kooning é professor do Departamento de Arquitetura e
construtiva. O cariz de seu trabalho tem precisamente a ver com o Urbanismo da Universidade de Gand e publicou sobre a Arquitetura
caráter exaltante, e mesmo obstinado, desta repetida combinação e o Design na Bélgica do pós-guerra.
de experimentação construtiva e de intenção formalista. Tampou-
co se deve a isso que o pavilhão de Bruxelas não teve o mesmo Referências
impacto como aquele de Costa e Niemeyer em Nova York. Di- Elisabetta Andreoli e Adrian Forty, eds. Brazil’s Modern Architecture. London/New York:
ferentemente de 1939, as características do Brazilian style (estilo Phaidon Press, 2004.
brasileiro) se tinham tornado os clichês do arsenal de formas da Kykah Bernardes em Lauro Cavalcanti, eds. Sérgio Bernardes. Reinvenção da Arquitetura.
Rio de Janeiro: Artviva Editora, 2010.
arquitetura internacional. Além disso, com seu ‘Burle Marx’, sua Lauro Cavalcanti. ‘Sérgio Bernardes, un moderniste radical’. L’Architecture d’Aujourd’hui,
rampa e suas curvas leves e lúdicas do teto e dos muros, o pavilhão 359 (número temático: Brésil), julho-agosto de 2005, p. 68-75.
de Bernardes pode facilmente ser posto no catálogo consagrado, Rika Devos e Mil De Kooning, eds. Moderne architectuur op Expo 58. ‘Vooreenhumane-
rwereld’. Bruxelas: Mercatorfonds/Dexia Bank, 2006.
mas, entrementes, já contestado, da arquitetura brasileira contem- Márcia Macul. ‘Sérgio Bernardes. Arquiteto+humanista+poeta+utopista’. Arquitetura &
porânea. Entretanto, o caráter informal e o propósito expressamen- Urbanismo 82, 15, fevereiro-março 1999, p. 64-69.
te construtivo faziam uma diferença bem nítida entre Bernardes Paul Meurs, Mil De Kooning e Ronny De Meyer, eds. Expo 58: The Brasil Pavilion of Sér-
gio Bernardes. Gent: Vakgroep Architectuur & Stedenbouw, Universiteit Gent, 1999.
e a maior parte dos arquitetos do Brazilian style. Tanto que, em

344
parte 10 – arquitetura

Frédéric de Limburg Stirum e Paraty


D o m i n i q u e Va n p é e

F rédéric de Limburg Stirum nasceu em 23 de março de 1931


em Huldenberg, filho do Conde Thierry de Limburg Stirum
e da princesa Marie-Immaculée de Croÿ. Frédéric estudou arqui-
tetura na École Spéciale d’Architecture em Paris. Antes de seu ca-
samento, em 5 de julho de 1969, em Fleurigny, com Monique de
Castellane, filha de Louis Provence Boniface, Duque d’Alamzón
de Saint Priest, Marquês de Castellane, ainda queria viver uma
‘aventura’ e foi para o Brasil.
Chegou ao Brasil de navio em 26 de outubro de 1961. Depois
de duas noites num hotel bem caro conseguiu um apartamento
de propriedade de um conhecido. Seria seu ponto de partida du-
rante sua estada brasileira. Conheceu o arquiteto Henrique Min-
dlin. Um parente diplomata em posto no Rio de Janeiro, Serge de
Robiano, tinha um amigo proprietário de um avião, com o qual
sobrevoaram Paraty, sem que os olhos do europeu detectassem
algo de especial (Robiano). Somente mais tarde, numa excursão
de carro, percebeu a extraordinária beleza do sítio ao pé da serra. Frédéric de Limburg Stirum na praia de Paraty, em 1967.
Como qualquer turista que visita o Brasil “ficou surpreso de des-
cobrir cidades que datavam da época colonial ou do Império e que Em janeiro de 1964 ele teve seu primeiro contato com Rodrigo
conservaram até nossos dias seu aspecto intacto. Como tais, apre- Mello Franco de Andrade, interrompido algum tempo por uma
sentam um interesse particular para a história em geral, mas sobre- viagem à Europa. Em novembro de 1964 entregou o relatório ao
tudo para o estudo da arquitetura e do urbanismo, e naturalmente governador Paulo Torres. Entrementes se discutiu muito como
do modo de vida dos portugueses no Brasil desde sua chegada no realizar o plano dentro da legislação e da autonomia municipal.
século XVI” (Limburg Stirum, 1963). Em 29 de janeiro de 1965, Rodrigo M. F. de Andrade apresentou
Como arquiteto, no seu modo de pensar sobre a conservação um projeto de decreto proclamando o município de Paraty co-
dos vestígios do passado, se inspirou na leitura de um livro dos mo Monumento Nacional. Precisava ser assinado pelo ministro
anos 1930 sobre Marrocos, onde a arquitetura de Fez, Meknès e da Educação e Cultura, Flávio Suplicy de Lacerda, mas este se
Marrakech foi preservada. O que os franceses e, particularmente, recusou totalmente. Mais uma viagem prolongou a demora, mas
o Marechal Lyautey – “maior criador de cidades de todos os tem- em julho de 1965 as coisas se precipitaram, quando Frédéric foi
pos” – lá fizeram para separar os bairros históricos dos europeus convidado por uma pessoa muito conhecida no mundo das corri-
por motivos políticos, econômicos, sanitários e estéticos e, no en- das para um evento no Rio de Janeiro com todas as misses de be-
tanto, interligá-los com grandes artérias virou uma referência no leza do mundo. Percebeu que o presidente Castello Branco estava
seu Mémoire pour la défense et conservation des monuments et sites sentado por perto da miss Bélgica e entregou a ela um papelzinho
au Brésil. Turistas à procura de paisagens e cidades diferentes não escrito com as palavras ‘Presidente, salve Paraty’. Esta o passou ao
querem ver estas desfiguradas por construções modernas sem gosto presidente, que viu e entendeu tudo. Logo seguiu uma nota deste
e “uma falsa noção de progresso arrisca sacrificar a cidade antiga presidente para o ministro da Educação e Cultura ‘Peço examinar
e pobre, tirando ao mesmo tempo sua única renda do interesse com urgência este assunto, Castello’. Em 16 de agosto veio a carta
turístico” (Limburg Stirum, 1963). Precisamente nesse período, da Delegacia do Estado do Rio de Janeiro com o pedido para as-
em oito de julho de 1963, o Globo anunciava que vai “ser iniciada sinar o decreto transformando Paraty em monumento nacional.
a Rodovia Angra dos Reis–Paraty”. Em carta de 14 de setembro de 1965, Renato Soeiro, diretor
Planos de 1963 para desenclavar Paraty pela estrada – um peri- substituto do Iphan (Instituto Patrimônio Histórico e Artístico
go? (Limburg Stirum, 1963, p. 15.) Baseado nestas primeiras notas Nacional), tratou da proteção da cidade. Uma semana mais tarde,
pessoais o conde escreveu no final de 1963 seu primeiro relató- em 21 de setembro de 1965, Frédéric de Limburg Stirum ela-
rio Plano de urbanização de Paraty, publicado em 1964 com um borou um segundo relatório para convencer o ministro a assinar
suplemento Proposta visando a um projeto de lei para defesa dos o decreto: Plano diretor em proveito da proteção e do desenvolvi-
monumentos e sítios do Brasil. No prefácio agradece ao governo mento urbanístico de Paraty. Na capa levou uma reprodução da
brasileiro as facilidades concedidas para conhecer Paraty (Lim- fotografia de prospecção, que sempre seria a base de seu trabalho
burg Stirum, 1964). em torno de Paraty.

345
parte 10 – arquitetura

Exemplares desse trabalho foram distribuídos pela DPhan (Di- A CNPI (Companhia Nacional de Planejamento Integrado) en-
retoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) às diferentes volvia Limburg Stirum pelo seu engajamento anterior no plano
autoridades, inclusive ao prefeito de Paraty, Lulu Vieira Ramos, e diretor da zona de expansão da cidade de Paraty, mas entregou a
ao governador do Estado do Rio de Janeiro, Paulo Torres. Numa direção efetiva a Lúcio Costa (Plano diretor, 1972). Colaborou
sessão ordinária, em 30 de setembro de 1965, a Câmara Munici- com eles de setembro de 1971 até janeiro de 1972, quando re-
pal de Paraty discutiu o plano, que na votação “foi aprovado, sen- gressou à Bélgica com o sentimento de ser cada vez mais deixado
do que o vereador Antonio Porto votou contra” e o seu presidente, de lado. Em 1973 Paraty ainda se mostrou na Brasil Export 1973,
Derly, pediu ao presidente para assinar o decreto. Ainda houve em Bruxelas. Suas visitas em 1974 e 1976 ao Brasil e, especifica-
em novembro de 1965 alguma resistência da parte do ministro. mente, ao Rio de Janeiro e a Paraty não o tranquilizaram quanto
Por seu lado, Rodrigo M. F. de Andrade apresentou uma nota ao à preservação futura da cidade. Será que o Brasil ousaria esquecer
ministro do Planejamento, Dos obstáculos para o planejamento e o papel deste estrangeiro no salvamento de Paraty?
de uma primeira solução (Constatações que surgiram na elaboração
do plano diretor em proveito de Paraty). Dominique Vanpée publicou vários trabalhos sobre biblioteca e
Em 14 de janeiro de 1966 a revista Visão publicou um artigo: documentação, informação ligeira como rumores e urban legends,
Um conde quer salvar Paraty, para incitar o ministro a dar sua assi- história local de Huldenberg, alimentação, patrimônio industrial e
natura. Com uma mudança de governo, Pedro Aleixo se tornou o científico, inteligência competitiva, management e estratégia dos co-
novo ministro da Educação. O texto do decreto foi submetido ao nhecimentos.
presidente e em 24 de março de 1966 saiu sob o nº 58.077, con-
vertendo Paraty em Monumento Nacional e assinado por Castello Referências
Branco, Pedro Aleixo, Juarez Távora, Ney Braga, Paulo Egydio Este verbete se baseia principalmente numa entrevista concedida pelo Conde Frédéric
Martins e Roberto Campos. O texto se encontra publicado na de Limburg Stirum ao autor Dominique Vanpée em 11 de fevereiro de 2012 e pre-
senciada por Eddy Stols. Boa parte de sua documentação sobre Paraty foi doada pelo
revista Arquitetura, nº 46 de abril de 1966, junto com uma repor- conde aos arquivos do Heemkundige Kring van Huldenberg (Círculo de história
tagem do arquiteto M. Nogueira Batista (IAB-GB) e com fotos de local de Huldenberg).
Frédéric de Limburg Stirum. F. de Limburg Stirum. Mémoire pour la défense et conservation des monuments et sites au
Brésil. Rio de Janeiro, edição pessoal, 1963.
Quando Michel Parent realizou para a UNESCO algumas Frédéric de Limburg Stirum. Plano de urbanização de Paraty. Rio de Janeiro, edição pes-
missões no Brasil nos anos de 1966-1967 a fim de valorizar e pro- soal, 1964, 57+vp.
teger o patrimônio cultural no contexto do desenvolvimento turís- Frédéric de Limburg Stirum. Plan national de mise en valeur de Paraty dans le cadre
d’un développement touristique. Paris, Unesco, 1968, 774/BMS.RD/SHC/CLT/DEV.
tico e econômico, obteve, junto com Rodrigo M. F. de Andrade, Frédéric de Limburg Stirum. Paraty, son port et la fôret atlantique. Rio ‘92 Forum global.
que o Conde Limburg Stirum pudesse trabalhar para a UNESCO Bruxelas, edição pessoal, 1 juin 1992, 9 p.
em torno de Paraty. Redigiu então um relatório, publicado em Serge de Robiano. Le tour du monde insolite d’un diplomate belge. Bruxelas, Éditions
Racine, 2009, 288 p.
1968 (Parent, 1967, e Limburg Stirum, 1968). Michel Parent. Protection et mise en valeur du patrimoine culturel brésilien dans le cadre
Em 1969 se elaboraram, dentro do programa do primeiro ano, de développement touristique et économique: Brésil (mission) 24 novembre 1966 - 8
as Diretrizes básicas na urbanização de Paraty. Com o falecimento janvier 1967 et 17 avril - 1er juin 1967. Paris, UNESCO, 1968, 492/BMS.RD /CLT.
Plano diretor da zona de expansão da cidade de Paraty. Separata do plano de desenvolvimen-
de Rodrigo M. F. de Andrade a direção do Instituto do Patrimônio to integrado e proteção do bairro histórico de Parati, Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Histórico e Artístico Nacional (Iphan) passou para Renato Sairo. Janeiro, Companhia Nacional de Planejamento Integrado-CNPI, 1972.

Paraty
Cassio Ramiro Mohallem Cotrim

P araty é uma pequena cidade a beira-mar, situada na costa do


Brasil a 23°13’12” de Latitude Sul e a 44°43’ de Longitude
Oeste de Greenwich. Por detrás da cidade, após uma área de pla-
Prosperidade econômica no século XIX

No período entre 1820 e 1870, nas terras vermelhas e férteis


nície de aproximadamente cinco quilômetros, ergue-se a Serra das pequenas cidades ao longo do Vale do Paraíba, floresceu a
do Mar: uma cadeia de montanhas em sentido sudoeste-nordes- cultura do café destinada à exportação, trazendo riqueza para os
te, acompanhada pela faixa litorânea, com altitudes variáveis de cafeicultores e para o Império do Brasil, independente de Portu-
700 m a 1.000 metros. Acompanhando a Serra do Mar no sentido gal desde 1822.
sudoeste-nordeste, separado do alto da Serra por um leve declive Por questões de custo dos transportes, o porto da Vila de Paraty
no sentido noroeste, corre o Rio Paraíba do Sul, passando por uma era usado para embarque de café com destino ao Rio de Janeiro
extensa região denominada Vale do Paraíba. (de onde era exportado para a Europa). Em sentido contrário vi-

346
parte 10 – arquitetura

Patrimônio arquitetônico e paisagístico de Paraty.

nham por mar, do Rio de Janeiro a Paraty, e dali subiam a serra Ainda nesse período de prosperidade: trechos de ruas ganha-
carregados por tropas de mulas até o Vale do Paraíba, todos os pro- ram novo alinhamento, a vila recebeu calçamento construído com
dutos necessários aos fazendeiros de café: desde ferragens e ferra- grandes pedras arredondadas e todas as casas remanescentes do
mentas para a lavoura, até produtos da Europa, como cristais da século XVIII foram reformadas.
Bohemia, porcelanas de Sèvres, bules e talheres de prata, móveis O padrão construtivo de altura das casas e de dimensões das
de jacarandá, tecidos de seda e vinhos do Porto. portas foi estabelecido em 1799. Uma lei de 1829 confirmou esse
Em Paraty desembarcavam-se também grandes quantidades padrão. Desse modo, a vila histórica dos nossos dias foi construída
de escravos africanos com destino à lavoura do café. Os trafican- no século XIX com um padrão arquitetônico português do século
tes desses escravos residiam nos arredores da Vila e abasteciam XVIII. O “palmo” português equivale a 22 cm. A pedra que for-
seus navios com mercadorias compradas dos comerciantes locais. ma o degrau de entrada da casa denomina-se “soleira”. As portas
A famosa aguardente de cana de açúcar produzida em Para- deveriam ter, de espaço livre, cinco palmos de largura por onze
ty servia como “moeda de troca” por escravos na costa da África. palmos e meio de altura acima da soleira. As janelas deveriam ter,
também de espaço livre, seis palmos e meio de altura por cinco
Urbanismo no século XIX palmos de largura.

No período de prosperidade comercial, entre 1820 e 1870, a Decadência econômica


pequena Vila (cidade após 1844) expandiu-se com a construção
de novas casas, muitas das quais sobrados. Nesses sobrados, o piso Entre 1831 e 1850, o tráfico de escravos já era proibido pelos
térreo servia para a loja e para o armazém de mercadorias, en- tratados internacionais entre o Brasil e a Grã-Bretanha, mas era
quanto que a parte superior servia de moradia para a família do tolerado (e mesmo incentivado) por comerciantes, por fazendeiros
comerciante. e por autoridades do Império do Brasil.

347
parte 10 – arquitetura

Os mesmos comerciantes, agricultores e dirigentes do Império


perceberam, em 1850, ter chegado o momento político e (espe-
cialmente) econômico para o fim do tráfico de escravos. Naquele
mesmo ano de 1850, uma lei proibiu definitivamente o tráfico e
o Império passou a perseguir, com muito rigor, os traficantes que
ousassem desembarcar escravos no Brasil.
Em 1877, as cidades do Vale do Paraíba foram ligadas ao por-
to da cidade do Rio de Janeiro por uma estrada de ferro. Entre
1870 e 1890, as lavouras de café do Vale já estavam decadentes.
Concorriam com elas os cafés de outras regiões: plantados com
melhores técnicas agrícolas e com a contratação de trabalhadores
livres e assalariados.
Com o fim do tráfico de escravos, Paraty sofreu o primeiro
choque econômico de decadência. O comércio local deixou de
vender produtos para os traficantes e estes mudaram suas resi-
dências para a cidade do Rio de Janeiro, onde podiam reinvestir
seu dinheiro (anteriormente utilizado na empresa do tráfico) em
outros negócios.
A partir de 1877, a ferrovia passou a levar o café do Vale do
Paraíba diretamente ao Rio de Janeiro. O porto de Paraty deixou
de ter utilidade para os cafeicultores e essa situação trouxe o “gol-
pe fatal” para a economia da cidade. Entre 1880 e 1975, Paraty
esteve esquecida e abandonada. Manteve-se preservada por sua
extrema pobreza.
Patrimônio arquitetônico e paisagístico de Paraty.
Ciclo do turismo
histórico separado dos novos bairros por uma enorme esplanada
Em 1975, a abertura de uma estrada de rodagem pelo litoral de grama verde: cortada por duas vias de acesso ladeadas por aleias
(Rodovia Rio-Santos) ligou Paraty ao mundo “civilizado”, facili- de palmeiras imperiais. Por detrás da vila histórica, os visitantes
tando os interesses dos especuladores imobiliários e prejudicando deveriam ver apenas as montanhas protegidas por mata natural.
a pacata vida do povo pobre de Paraty. Grandes atrocidades foram Problemas políticos, possivelmente associados a interesses
cometidas por esses especuladores imobiliários. econômicos escusos, impediram a realização das obras propostas.
A rodovia foi aberta em função de necessidades macroeconô- Com grande perda para Paraty, o plano do Conde Frédéric foi
micas governamentais (terminal petrolífero, usina de energia atô- abandonado pelo governo do Brasil.
mica, estaleiro de construção naval, porto de descarga de minério Esse Plano ainda serve como referência de proteção paisa-
de ferro e de carvão para um parque siderúrgico). Em face desses gística ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
interesses, as autoridades governamentais desprezaram os projetos mas do projeto original, a única ideia realmente aproveitada foi a
de infraestrutura para as pequenas cidades à beira-mar (que, por enorme curva que manteve a rodovia afastada do centro histórico.
suas belíssimas praias, apresentavam enorme vocação turística). A vila histórica de Paraty permanece relativamente bem pre-
Ciente dos futuros estragos que a Rodovia Rio-Santos pode- servada, atraindo turismo (uma das principais fontes de renda dos
ria causar quando ali chegasse, ainda em 1965 o jovem arquiteto paratienses), mas urbanisticamente sufocada pelos novos bairros
(Conde) Frédéric de Limburg Stirum fez um excelente plano que compõem a cidade.
urbanístico para a preservação de Paraty. O plano não se limitava Permanece, até os dias atuais, a constante ameaça às matas
ao centro histórico. Preocupava-se, também, com a proteção pai- naturais. Permanecem, igualmente, os problemas de infraestrutu-
sagística, com as matas naturais, com a preservação dos rios desde ra (de abastecimento de água, de esgotos e de coleta de lixo) que
as suas nascentes (no alto da Serra) e com a passagem da estrada poderão prejudicar, no futuro, a preservação e o turismo. Mesmo
em local afastado da vila histórica. A área paisagisticamente pro- em face de tantos problemas, é admirável o otimismo do Conde
tegida abrangia uma área de cinco quilômetros de raio em torno Frédéric de Limburg Stirum e sua constante luta – de quase meio
do centro histórico e pretendia a separação física entre a antiga século – pela preservação de Paraty.
vila e os novos bairros.
Quem chegasse a Paraty pelo mar só deveria avistar constru- Cássio Ramiro Mohallem Cotrim é bacharel em Direito pela Uni-
ções (tanto antigas quanto novas) com, no máximo, a altura de um versidade de São Paulo (USP), Analista Tributário da Receita Federal
sobrado. Quem chegasse a Paraty por terra deveria ver o centro e autor do livro Villa de Paraty.

348
parte 10 – arquitetura

Paraty e o plano de Limburg Stirum


Fa b i o G u i m a r ã e s R o l i m

A visão da Serra do Mar coberta pela densa e luxuriante ve-


getação da Mata Atlântica emoldurando o branco casario
ritmado de portas e janelas refletidas no espelho d’água da baía
da Serra do Mar, especialmente nas bacias hidrográficas dos dois
maiores rios que correm pela planície da cidade (Perequê-Açu e
Mateus Nunes); a criação de um sistema de canais de drenagem
é recorrentemente evocada pelo arquiteto Frèderic de Limburg e lagoas de decantação para o controle de enchentes e de afluxo
Stirum como a imagem marcante de Paraty, desde sua primeira de sedimentos; a dragagem da baía defronte ao centro histórico; a
vinda à cidade, em 1962. criação de um cinturão verde atuando como um gradiente entre
Talvez a força daquela imagem integral tenha sido determi- os setores antigo e novo de Paraty; a concentração da expansão
nante para sua compreensão acerca de Paraty, conduzindo-o a um urbana mais adensada e verticalizada na várzea da Jabaquara, se-
plano urbanístico e de preservação que bem pode ser chamado de parada do centro histórico pelo morro do Forte; a consolidação
pioneiro para o Brasil daquela década. de uma atividade portuária condizente com a pesca e o turismo.
Afinal, seria algo absolutamente excepcional no cenário ur- Pois Stirum é taxativo ao afirmar que o problema de Paraty é
banístico brasileiro dos anos 1960 – marcado por um desenvol- o desmatamento originador do gradativo assoreamento da baía e
vimentismo que hoje se reconhece como desenfreado e mesmo da crescente interiorização da cidade, levando-a a perder o con-
danoso sob muitos aspectos – a concepção de um plano de or- tato com a água – crucial para sua identidade de porto urbano.
denamento e expansão urbanos que tivesse como diretrizes pri- Para este entendimento não devem ter passado despercebidas
mordiais a preservação do patrimônio histórico-arquitetônico, a por Stirum as peculiaridades da região para além da dimensão
conservação dos recursos hídricos e florestais e a identidade es- arquitetônica do centro antigo.
tética da cidade. A ocupação de Paraty se deu ao longo de planície de sedimen-
No entanto, são estas as premissas do plano de Limburg Sti- tação situada entre a Serra do Mar e a linha de costa, numa faixa
rum, que podem ser resumidas em: reflorestamento das encostas ora estreita em promontórios que mergulham abruptos em costões

Ordenamento urbano
com sistema de canais
e lagoas previsto pelo
plano de Limburg
Stirum.

349
parte 10 – arquitetura

Foto aérea de 1966 de Paraty mostrando os rios ainda meandrados.

rochosos, ora alargada em várzeas dos diversos rios que vertem das Histórico e Artístico Nacional – Iphan até 1968) e a despeito da
montanhas e afluem à Baía de Ilha Grande, intercalando-se por incorporação de seus principais aspectos pelo “Plano de Desenvol-
restingas e manguezais. Esse território, assim como o de diversos vimento Integrado e Proteção do Bairro Histórico do Município
outros núcleos urbanos situados nessa característica porção do li- de Paraty”, produzido sob os auspícios do Iphan pela Companhia
toral brasileiro entre Santos e a Baía de Guanabara, testemunha Nacional de Planejamento Integrado – CNPI entre 1971 e 1972
exemplarmente os complexos processos de recuos e avanços ma- e convertido em lei municipal em 1973.
rinhos durante os últimos 25.000 anos em que o mar esteve alter- Hoje, o plano de Stirum é referência para a atuação do Iphan
nadamente a cerca de cem metros abaixo e quatro metros acima em Paraty por meio de seu escritório da cidade, notadamente
da atual linha d’água. quanto à visão integral requerida para a gestão da preservação na
Assim, parece ter sido fundamental para o arquiteto belga a in- área municipal, inteiramente tombada em 1974.
tuição de um terreno que já fora alternadamente terra, água e terra Como uma decisiva vitória do plano e da cidade, na década
novamente, bem como da instabilidade geológica da Serra do Mar de 1970 a rodovia BR-101 (Rio-Santos) foi executada distante do
e da dinâmica dos rios, que serpenteiam lentamente pela planície centro. Evitou-se, assim, uma proximidade que seria fatal ao nú-
em móveis meandros, dada a baixa declividade do terreno. cleo urbano original e garantiu a permanência desta área a nos
As premissas de seu plano evidenciam a compreensão e o res- lembrar hoje das lutas pela preservação e pelo futuro de Paraty.
peito a estas condicionantes físicas. Tal postura face ao território
é fundamental para um efetivo controle de suas dinâmicas pró- Fabio Guimarães Rolim, Arquiteto e Urbanista pela Escola de En-
prias e também da ação humana. Casos contrários são os que hoje genharia de São Carlos (USP), com especialização em Jornalismo
infelizmente abundam, conforme atestam as notícias de desliza- Científico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). No
mentos e enchentes que em proporções cada vez maiores abalam Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde 2006,
as cidades brasileiras. atuou em Mato Grosso do Sul e Paraty e é atualmente Coordena-
O plano não foi implementado, apesar dos esforços de Rodri- dor-Geral do Patrimônio Natural no Departamento de Patrimônio
go Melo Franco de Andrade (dirigente do Instituto do Patrimônio Material e Fiscalização.

350
parte 10 – arquitetura

B-architecten
Dirk Engelen

A arquitetura, o design e a arte brasileiros foram, através dos


anos, uma fonte de inspiração para os B-architecten. Ceno-
grafias para exposições no Palácio de Belas Artes em Bruxelas fo-
ram projetadas tendo em mente a obra da arquiteta Lina Bo Bardi.
Seu conhecimento fatual e conceitual em matéria de desenho de
exposições teve uma influência revolucionária. Assim os B-archi-
tecten realizaram em Bruxelas, em 2001, a exposição Rosas XX,
em torno do instituto de dança de Anne Teresa De Keersmaeker,
e em 2003 Rimbaud-Une saison en enfer.
Nos projetos de móveis dos B-architecten surgem também re-
ferências ao uso intemporal e plástico da madeira por Sergio Ro-
drigues como também à reciclagem particular de materiais pelos
irmãos Campana.
A arquitetura da escola de São Paulo inspira os B-architecten
com seu concreto brutalista e seus conceitos cristalinos. Além
destes, se pensa ainda em Paulo Mendes da Rocha e na obra de
Isay Weinfeld e de muitos outros de São Paulo. Suas característi-
cas marcam os projetos dos B-architecten, como no pavilhão em
concreto, junto a uma mansão dos anos 1930, em Antuérpia, e
também na reconversão em prédio de escritórios da casa particu-
lar de um dos parceiros dos B-architecten, Dirk Engelen. O uso
inequívoco e plástico do concreto para realizar uma sinergia en-
tre objeto, luz e função faz destes projetos exemplos de como os
B-architecten entram particularmente em diálogo com o Brasil e
a história de sua arquitetura. Projeto do escritório belga de arquitetura B-architecten, que se inspira em
Links: www.b-architecten.be e www.b-bis.be referências brasileiras.

O Projeto Bamboostic
Sven Mouton

A ONG Bamboostic é uma organização belga que trabalha


desde 2004 em Ubatuba, litoral de São Paulo, no bairro de
Camburi. A ONG belga consiste principalmente de arquitetos e
engenheiros especializados na construção com bambu. Eles tra-
balham numa relação estreita com a Pontifícia Universidade Ca-
tólica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), sob a supervisão do professor
titular Khosrow Ghavami, presidente da NOCMAT (Associação
de Materiais e Tecnologias Não Convencionais) e também profes-
sor do Departemento de Engenharia Civil da PUC-RJ. Os belgas
da Bamboostic trabalharam no projeto de campo de Camburi,
idealizado pelo professor Ghavami e realizado através do Depar-
tamento de Engenharia Civil.
Este projeto de desenvolvimento é concebido como um pro-
cesso integral de longo prazo no qual dois fatores, o bambu e o Detalhe das dimensões dos bambus utilizados nas construções, Camburi.

351
parte 10 – arquitetura

Uma construção de bambu realizada em Camburi, 2004.


O aprendizado da técnica de construção em bambu do Projeto Bamboostic pelos
moradores do bairro de Camburi.
A construção deve ter um design atraente e de valor arquitetô-
nico por duas razões: expandir a atividade econômica (turismo) e
turismo, têm papel importante. O objetivo principal é a redução estimular as pessoas a usar uma madeira barata como material de
da pobreza através da construção de casas de bambu a baixo custo construção eficiente e visualmente atraente.
e a criação de uma renda regular através do turismo. O bambu é um material local disponível, barato, facilmente
A parte do projeto com o bambu é a realização de construções renovável e é uma fonte multifuncional, caracterizado por sua
que serão usadas como abrigo e outras atividades e para o apren- grande força e leveza. O bambu é uma alternativa ecológica de
dizado de várias técnicas. Uma pequena equipe de trabalhado- construção em madeira. Esta planta cresce rápido. Em três anos
res locais desempregados aprenderá as técnicas necessárias para tem-se o material adequado para construção, ao contrário dos 20
construir com bambu, o que servirá como base conceitual para ou até 30 anos para a madeira. Diferentemente das árvores em
levantarem outras construções, que darão teto às pessoas carentes geral, a colheita não mata a planta do bambu, então não há pro-
e acomodarão turistas. O objetivo da primeira construção é ter blema de erosão. O bambu oferece uma oportunidade para que
uma base de operacões, um espaço de ensino e vários quartos pa- se possa “plantar” sua própria casa. Numa área do tamanho da
ra turistas. Desse modo, o projeto pode ser dirigido por uma base construção pode crescer bambu suficiente para erguer essa cons-
autônoma, formada pelos próprios moradores locais, assegurando, trução em cinco anos. No sexto ano pode-se realizar duas cons-
assim, que nenhuma organização governamental, ou de outra na- truções da mesma plantação; no sétimo ano, três construções, e
tureza, será necessária para a continuidade do projeto. assim por diante.

352
parte 11 – esportes

parte 1 1

Esportes

353
parte 11 – esportes

354
Gaston Roelants ganha quatro vezes a Corrida
Internacional da São Silvestre
Roland Renson

G aston Roelants (Opvelp, 5 de fevereiro de 1937) foi o pri-


meiro atleta a ganhar quatro vezes a corrida de São Silves-
tre, realizada em São Paulo: em 1964, 1965, 1967 e 1968. Podia
ter ganhado mais vezes se, em 1966, não tivesse torcido o pé no
trilho do bonde pelo que, cambaleando em vez de correndo,
foi ultrapassado pelo colombiano Álvaro Mejía Florez a uns 30
metros do final.
A Corrida de São Silvestre acontece anualmente desde 1925,
no dia 31 de dezembro, dia patronal de São Silvestre. Esta corrida
de rua, no clima quente e abafado de São Paulo, era originalmente
um evento esportivo puramente brasileiro, mas foi aberta em 1945
para atletas de toda a América do Sul e se tornou, desde 1947,
uma competição internacional. Em 1975, o Ano Internacional
da Mulher, elas concorreram pela primeira vez. Desde 1988 se
organizam competições separadas para homens e mulheres, mas
no mesmo percurso de ruas. O pódio da corida de São Silvestre de 1968; no topo está o vencedor Gaston
Numa entrevista com Gaston Roelants (Meldert, em 19 de de- Roelants, ao lado de Carlos Joel Nelli, diretor de A Gazeta Esportiva, promotora
zembro de 2012) esse ‘barão’, enobrecido pelo rei da Bélgica, olha do evento.
com orgulho para trás sobre suas fantásticas vitórias em São Paulo.
Seu escritório está, aliás, abarrotado de troféus que conquistou e Em suas participações seguintes, em 1965, 1966, 1967 e 1968,
que, naquela época, podia-se levar sem pagar excesso de bagagem. sempre foi recebido como um herói popular. Depois da corrida de
O primeiro belga a ganhar esta corrida de rua foi Lucien rua seguiam ainda um meeting de pista em São Paulo e, às vezes,
Theys, em 1950, o “carteiro ruivo” de Overijse. O interesse de uma turnê pelo Uruguai ou uma participação numa corrida de
Gaston Roelants pela São Silvestre foi despertado pela vitória de praia em Mar del Plata, na Argentina, onde era recebido e laurea­
Henri ‘Rik’ Clerckx, em 1963: “... se Clerckx pode ganhar esta com- do por uma grande delegação flamenga.
petição, então eu com certeza também!” Na linha de partida, em Gaston se torna lírico quando pensa nos seus êxitos brasilei-
1964, já era um favorito. Roelants acabara de ganhar, em 17 de ros. Em 1959 ficou muito apavorado quando, em sua primeira
outubro, em Tóquio, a medalha de ouro olímpica no steeple chase participação – que terminou em quinta posição –, foi puxado por
e estava em plena forma. Quando, no quarto de hotel, perto da seus, na época, ainda longos cabelos, pelos admiradores locais em
sede do jornal Gazeta Esportiva, procurou relaxar antes da partida, busca de souvenirs. Se lembra das chuvas de confetes, que caíam
escutou na rua uma banda tocar continuamente a ‘Brabançonne’, dos prédios, as ‘duchas’ contínuas de cerveja e de vinho que os
o hino nacional belga. Uma empregada lhe explicou o porquê: “ festeiros do Ano-Novo lhe jogavam, o ronco dos motores dos car-
... eles esperam que um grande campeão belga vai ganhar este ano ros dos bombeiros e das motocicletas da polícia, que dispersavam
a corrida e por isso ensaiam, porque o disco da vitrola quebrou.” O em formação “V” a multidão fora de si. Enfim, uma festa atlética
ensaio não parecia desnecessário! com teor de samba!

355
parte 11 – esportes

Roland Renson estudou Educação Física (1965), Fisioterapia (1969) o primeiro presidente do ISHPES (1989-2003) depois de o HISPA ter
e Antropologia Cultural e Social (1973) na KU Leuven (Bélgica), on- sido anexado ao ICOSH. Elaborou cursos de História e Sociologia
de obteve seu Ph.D em Educação Física em 1973. Esteve ativamente da Cultura do Movimento. Fundou e preside o Museu de Esportes
envolvido no “Longitudinal Leuven Boys Growth Study of Belgian ‘Sportiimoinium’, Hofstade-Zemst (Bélgica). É professor emérito da
Boys” (1969-1974). Em 1975 organizou o HISPA, Seminário de His- Universidade Católica de Leuven (KUL) desde 2008, mas continua
tória do Esporte, e tornou-se presidente do HISPA de 1985 a 1989. Foi ativo em pesquisas sobre o conceito de “Ludodiversidade”.

A primeira competição de atletas brasileiros nos


Jogos Olímpicos de 1920 em Antuérpia
Roland Renson

O fundador dos Jogos Olímpicos, o Barão Pierre de Couber-


tin, era estratégica e culturalmente interessado na América
do Sul (Da Costa, 2002). Já em 1911 propôs “uma geografia es-
cinicamente que “mesmo em Verdun houve menos tiros”. Esse co-
mentário deve ter contrariado Coubertin que, depois dos Jogos
de Antuérpia, reduziu drasticamente o número de eventos de tiro
portiva que poderia às vezes diferenciar-se da geografia política”. dentro do espaço olímpico (Renson, 1996).
Num folheto de 1918, “Le projet de Olympie moderne et l’avenir Afrânio da Costa ganhou a medalha de prata no evento de pis-
de Lausanne”, incluiu o continente sul-americano como parte de tola livre individual em 2 de agosto, dando 60 tiros no alvo a 50
seus planos de expansão. Por outro lado, foi fundado, em 1914, metros. Terminou depois de Karl Frederick, mas na frente de Al-
o Comitê Nacional Brasileiro Olímpico junto com a Federação fred Lane, ambos dos Estados Unidos. Teria emprestado o revólver
Esportiva Brasileira, rebatizada mais tarde de Confederação Bra- e a munição da equipe norte-americana (Kluge). O time brasileiro
sileira de Desportos (De Franceschi Neto-Wacker, 1999 e 2009). de tiro livre era composto por Guilherme Paraense, Afrânio Antô-
Levando em conta as boas relações do Brasil com a Bélgica, nio da Costa, Sebastião Wolf, Dario Barbosa e Fernando Soledade.
ainda mais estreitadas pelas visitas recíprocas do presidente Epitá- O relatório oficial sueco mencionava, entretanto, um certo Mario
cio Pessoa e do Rei Alberto I, nada impedia a participação do Brasil Maurity e não Wolf (Bergvall, 47). José Gonçalves, do Brasil, listou
pela primeira vez nos Jogos Olímpicos da Sétima Olimpíada de Mario Machado Maurity e Dermevel Peixoto como competidores
Antuérpia, em 1920. Um time de 16 atletas foi enviado para com- no tiro, respectivamente militar e livre (Mallon, 233). Estes ga-
petir em tiro (5), natação (2), polo aquático (7), salto (1) e remo nharam a medalha de bronze atrás dos times norte-americano e
(5). Quatro brasileiros competiram em dois esportes. Entretanto, sueco, também em 2 de agosto. Guilherme Paraense ganhou ouro
De Franceschi Neto-Wacker e Wacker falam de 21 atletas, que na categoria tiro rápido individual em 3 de agosto, com 30 tiros a
foram transportados no cruzeiro Curvello. Adolpho Wellisch, que 30 m, em cinco sessões de seis tiros cada. Os cinco brasileiros que
vivia em Paris, se juntou ao grupo na Europa. terminaram em quarto lugar no evento de fuzil em equipe, em 3
O secretário-geral da CBS, Roberto Trompowskyr, dirigia a de agosto, eram os mesmos atiradores de pistola livre.
delegação e vinha acompanhado por Ferreira Santos, presiden-
te da Associação Paulista de Esportes Atléticos, como secretário. Nadando contra o frio
Raul do Rio Branco – embaixador na Suíça e filho do Barão de
Rio Branco e de sua esposa belga – já havia representado o Brasil José Gonçalves lista Adhemar Ferreira Serpa, João Jório e
no Comitê Olímpico Internacional desde 1913 e continuaria até Abrahão Soliture como competidores de natação, mas Mallon e
1938. O time brasileiro ficou hospedado – junto com a equipe Bijkerk (2003) supõem que podem ter entrado mas sem compe-
finlandesa – numa das escolas municipais de Antuérpia, situada tir. Angelo Gammaro não se qualificou para as semifinais depois
na Haantjeslei. O atirador Afrânio Antônio da Costa levou a ban- de ter terminado em terceiro na eliminatória dois da competição
deira na cerimônia de abertura em 14 de agosto. de 100 m em estilo livre, ocorrida em 22 de agosto no Estádio
Náutico. Orlando Amendola terminou em sexto na eliminatória
Os atiradores brasileiros nos pampas belgas quatro no mesmo dia.
Os dois nadadores jogaram também no time do polo aquáti-
Os atiradores brasileiros se destacaram nos eventos localizados co, junto com os cinco colegas do time: Agostinho “Mangangá”
na base do Exército de Beverloo, a uns 75 quilômetros de Antuér- Sampaio de Sá, Victorio “Chocolate” Fernandes, Alcides de Bar-
pia, numa área descampada e arenosa da campina. Houve uma ros Paiva, Abrahão Soliture e João Jório. O Brasil bateu a França
grande variedade de tiro. O jornal francês Echo de Paris registrou de 5 a 1 em 23 de agosto. O jogo terminou em 1 a 1, mas o Brasil

356
parte 11 – esportes

Primeira equipe brasileira em Jogos


Olímpicos, os da sétima Olimpíada
realizada em Antuérpia.

ganhou no tempo extra. Perderam a quarta de final da Suécia em terminou respectivamente em oitavo lugar entre nove competido-
24 de agosto. Algumas fontes brasileiras citam nove jogadores, in- res e em sétimo ou último. Avançou para a final de salto ornamen-
cluindo Carlos Lopes e Edgard Ribeiro, mas não foram registra- tal, em 25 de agosto, sem competir primeiro nas pré-eliminatórias
dos no jornal esportivo belga leVélo-Sport (Mallone Bijkerk, 483). (Mallone Bijkerk, 141).
O município de Antuérpia tinha comissionado a construção de
uma piscina nova no final da Avenida Van Rijswijck. A muralha da Reme, reme, reme seu barco...
cidade que se encontrava lá foi parcialmente escavada e utilizada
como uma “praia natural”. A Sport-Revue (8.8.1920) a qualificou Os cinco remadores brasileiros no casco de quatro remos e
sem mais como “realmente a mais bela piscina ao ar livre do mun- um timoneiro eram Guilherme Lorena, João Jório, Alcides Vieira,
do, que custou à cidade de Antuérpia nada menos que 1.100.000 Abrahão Soliture e Ernesto Flores Filho. Jório e Soliture também
francos”. Duas semanas mais tarde, o mesmo semanário falou de participaram do polo aquático. Terminaram em segundo na quar-
mais ou menos meio milhão. Pelo menos Coubertin considerou ta eliminatória das semifinais, no Canal de Willebroek, perto de
o Estádio Náutico como um modelo. Mas essa opinião não era Bruxelas. Em 28 de agosto perderam da tripulação americana, mas
compartilhada pelos nadadores masculinos e femininos america- terminaram antes dos checoslovacos. O canal era um tanto estreito
nos. A saltadora americana Aileen Riggin, de apenas 14 anos na e por isso as regatas se remaram com dois ou, no máximo, três bar-
época, escreveu mais tarde em suas memórias que nunca tinha cos. O Canal de Willebroek, entre os lugarejos de Trois Fontaines
visto coisa semelhante. A piscina era nada mais que um fosso re- e Marly, era longe de ser idílico. Foi descrito por Coubertin como
pleto de água fria e opaca. Os saltadores, tanto masculinos como “a pior paisagem possível... tão horrorosa que todos os esforços para
femininos, se muniram não apenas de toalhas, mas de todo tipo esconder sua feiura foram abandonados” (Coubertin, s. d., 52).
de roupa quente e procuraram esquentar-se entre os saltos com
massagens recíprocas. Mais ainda, lembraram que alguns dos jo- Barulho e alegria em Antuérpia
gadores de polo tiveram que ser resgatados porque desmaiaram de
frio (Carlson e Fogarty, 19-20). Infelizmente, sabemos pouco como a equipe olímpica brasilei-
Adolfo Wellish, o único competidor brasileiro no salto, chegou ra viveu sua iniciação olímpica e sua estada numa cidade portuária
até as finais em salto de plataforma e salto ornamental, nos quais como Antuérpia. Sabemos, sim, de muitos outros participantes,

357
parte 11 – esportes

que não levaram muito a sério o festival olímpico e procuraram distrito sul, vestindo as cores belgas, contra outro do distrito norte,
mais divertir-se. Como a guerra pertencia ao passado, Coubertin no uniforme da Liga Metropolitana (Miranda Pereira).
intitulou seu discurso na 18ª Sessão do COI (Comitê Olímpico O Rei Alberto manteve sua reputação de esportista mergu-
Internaccional), na sala da prefeitura de Antuérpia, em 17 de agos- lhando cada manhã na praia de Copacabana. Em Ribeirão Preto
to, como “O esporte é rei” (Renson, 1995, 96). (SP), os soberanos belgas presenciaram ainda um jogo de futebol,
Junto com a banda do Exército americano, a Idade do Jazz al- ao passo que, na Fazenda de Guatapará, puderam andar a cavalo,
cançou a Bélgica no final da guerra. Essa música sincopada tinha conhecendo a vida rural. Como lembrança de suas visitas ao Bra-
feito sua entrada com o baterista-cantor negro americano Louis sil receberam dois magníficos cavalos, que acomodaram nos está-
Michell e seus Jazz Kings. O jazz era a expressão da nova era dos bulos do Palácio Real de Laken (Le Patriote illustré, 28.11.1920).
roaring twenties, o símbolo de que se podia improvisar livremente
mantendo a harmonia com o grupo. Conclusão
Em 27 de agosto, Roberto Trompowsky Júnior ofereceu um
banquete em honra a Pierre de Coubertin e Edward S. Brown, As relações belgo-brasileiras provavelmente nunca foram mais
do YMCA no qual o COI prometeu apoio oficial aos Jogos Regio- intensas em termos políticos e econômicos como em 1920. O
nais da América do Sul (De Franceschi Neto-Wacker e Wacker). esporte desempenhou um papel catalítico nesta aproximação.
Globalmente, Pierre de Coubertin deixou uma imagem bastante Naquele momento, era a expressão do espírito modernista e ex-
objetiva do “Sturm und Drang” dos olímpicos de 1920. Mencio- pansionista e devia moldar o estilo de vida dos jovens industriais,
nou, por exemplo, que uma noite um grupo de atletas vasculhou empresários e aventureiros coloniais.
a cidade caçando bandeiras olímpicas. Coubertin constatou sa- Tanto a estreia do Brasil nos Jogos Olímpicos de Antuérpia
biamente no seu relatório sobre os Jogos de Antuérpia: “...houve quanto a visita real belga se enquadraram nesta configuração. Es-
muitos outros distúrbios. Mas alguém imagina que antes, no Olím- ta “caipirinha agridoce” de esportes e negócios ficou ainda mais
pio (sic), nunca houve disputas ou escaramuças?” (Coubertin, s. d., evidente nos jogos latino-americanos de setembro de 1922. Pierre
55). Ignoramos se algumas bandeiras foram levadas como troféus de Coubertin tinha delegado o conde belga Henry de Baillet-La-
olímpicos para casa no Brasil. tour como o representante do COI, que exprimiu seu desejo de
manter esses jogos como a melhor maneira de preparo para os
O esporte brasileiro e a visita real de 1920 Jogos Olímpicos e uma única oportunidade de dar à juventude a
educação esportiva que lhe faltava (Costa, 2002).
Como o Rei Albert e a Rainha Elisabeth partiram em 1º de Após a participação memorável do Brasil nos Jogos Olímpicos
setembro para o Brasil, “país das maravilhas” (Le Patriote illustré, de Antuérpia em 1920, os Jogos da Exposição do Rio de Janeiro,
5.9.1920), não puderam assistir à Cerimônia de Encerramento do presenciados por Baillet-Latour, tornaram-se um marco na política
mesmo dia. Entretanto, em pleno mar, assistiram no cruzeiro São geoesportiva da América do Sul e promoveram a criação formal
Paulo a vários divertimentos esportivos. Já o príncipe herdeiro, Le- dos Comitês Nacionais Olímpicos no continente latino-america-
opold, seguiu seus pais 15 dias mais tarde no navio belga SS Pays no. Desta maneira, esse “romance” belgo-brasileiro esportivo e
de Waes, levando a bordo os participantes brasileiros dos Jogos de econômico teve consequências duradouras.
Antuérpia. Para o casal real, foi organizado, no Rio de Janeiro, no
estádio fluminense, em 26 de setembro, um grande festival esporti- Referências
vo com um desfile dos clubes esportivos da Liga Metropolitana. O E. Bergvall. De Olympiska Spelen / Antwerpen 1920. Estocolmo, 1920.
caráter nacionalista e simbólico dessa manifestação foi celebrado Carlson, L. H., e Fogary, J. J. Tales of gold. Chicago, 1987.
no jornal O Paiz de 24 de setembro de 1920: “Nenhuma ocasião Costa, L. da. The IOC geopolitics in South America, 1886-1936. Journal of Olympic His-
tory, 2002, 10(3), 61-67.
se apresenta para uma demonstração do que representamos como Coubertin, P. de. Géographie sportive. Revue olympique, 1911, abril, 51-52.
expressão galharda do que somos, como sport... da parada atlética Coubertin, P. de. The seventh Olympic Games. Report of the American Olympic Com-
de domingo, em homenagem à energia moça e heróica do grande mittee, s. d., 47-58.
Kluge, V. Olympische Sommerspiele: Die Chronik I: Athen 1896-Berlin 1936. Berlim, 1998.
atleta-rei, que é o soberano belga, que ora nos dá a honra de sua Neto-Wacker, M. de Franceschi. Brasilien und die Olympische Bewegung 1896bis 1925.
visita” (Miranda Pereira, 155). Stadion, 1999, 25, 131-137.
A imprensa brasileira destacava que o rei belga, que era ao Neto-Wacker, M. de Franceschi e Wacker, C. Rio de Janeiro goes olympic. Journal of
Olympic History, 2009, 17 (3), 6-20.
mesmo tempo um europeu, esportista e “rei-soldado” podia lá Mallon, B..The unofficial report of the 1920 Olympics. Durham, 1992.
observar uma nova geração de atletas “...flores do Brasil de hoje e Mallon, B., e Bijkerk, A. T. The 1920 Olympic Games: results for all competitors in all
frutos do Brasil futuro”. Por sua vez, a imprensa belga usou super- events, with commentary. Jefferson, 2003.
Pereira, L. A. de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro,
lativos similares: “Todos os atletas e esportistas do Brasil desfila- 1902-1938. Rio de Janeiro, 2000.
ram defronte à tribuna dos reis belgas e do presidente” (Le Patriote Renson, R. War is over, sport is king: the political climate during the 1920 Olympic Games
illustré, 14.11.1920). Como parte da manifestação, foi jogada uma of Antwerp. Stadion, 1995-1996, 11-12, 193-209.
Renson, R. The Games reborn: the VII Olympiad Antwerp 1920. Antuérpia, 1996.
partida de futebol entre dois times escolares, um selecionado no

358
parte 11 – esportes

A capoeira na Bélgica
J a n To l l e n e e r

A viagem que a capoeira fez da África Ocidental através do Bra-


sil para países como a Bélgica é um dos temas mais fascinan-
tes no estudo da mobilidade social e cultural. Que vem fazer este
tóricas se situam na África Ocidental, de onde os escravos eram
deportados para a América do Sul, e o significado que a capoeira
ganhou, depois, para a conscientização do povo afro-brasileiro.
fenômeno de dança, luta e música num país europeu e quais são Propagar esta identidade cultural é, aliás, uma motivação fun-
as motivações dos praticantes da capoeira? O que pode explicar damental dos professores, que deixam o Brasil para ensinar a ca-
seu êxito nas associações, nos festivais urbanos e nos eventos cul- poeira em outros países, onde são também chamados de ‘mestres’.
turais? E limita-se, esta história, a um trânsito em sentido único Mestre Dendê, uma figura central na capoeira belga, testemunhou
entre o Brasil e a Bélgica? essa motivação. Nasceu em 1964, em Salvador, na Bahia, onde,
Um número crescente de belgas se deixa fascinar pelas de- desde seus dez anos, pratica a capoeira. Teve aulas com mestres
monstrações de capoeira nas ruas e nas sessões de exercícios em reputados e fundou, em 1990, o grupo Porto de Minas, que se
pavilhões desportivos. Ficam intrigados pela estranha mistura que reuniu mais tarde à Oficina da Capoeira. Em 1992, abriu uma
apresenta a capoeira: é ao mesmo tempo uma arte marcial e uma academia Porto de Minas em Colônia, na Alemanha, e, depois de
dança, uma arte e uma acrobacia, um happening e um esporte. uma estada nos Estados Unidos, Mestre Dendê chegou à Bélgica.
Isto contrasta com o caráter unívoco de seus próprios jogos tradi- Ele dá aulas em vários lugares do país e forma capoeiristas.
cionais, que são tranquilos, e de seus esportes competitivos mo- A flamenga Debbie Hamerlynck teve um papel notável: depois
dernos, que são regulamentados com maior rigor. de suas aulas com Mestre Dendê no Brasil fundou uma organiza-
O caráter exótico da capoeira tem efeito contagiante. Canto e ção belga Porto de Minas. Abelha, seu nome brasileiro, se tornou
música – sobretudo com o instrumento do berimbau – criam um a esposa de Mestre Dendê e estava na Bélgica na base de Mus-e
ambiente festeiro. A roda, o círculo formado em volta dos dança- Brasil, um projeto orientado para as crianças de rua em Salvador
rinos-lutadores, comunica uma força energética. A roupa branca e que lhes oferece, através da capoeira e de outras atividades, opor-
se associa com paz e concórdia. Wielandts & De Meyer (2006) tunidades de desenvolvimento.
mostraram que os praticantes se interessam particularmente pela Um outro exemplo confirma este trânsito em duplo sentido
história e pela cultura que a capoeira traz consigo: suas raízes his- entre o Brasil e a Bélgica. Nicole Berx, nascida em Flandres em

Um número crescente de
belgas se deixa fascinar
pelas demonstrações de
capoeira, ficam intrigados
pela estranha mistura de
arte marcial e dança, um
happening e um esporte.

359
parte 11 – esportes

1962, conheceu o Mestre Miguel Magado em 2002, um professor e as redes informais. Ensina as pessoas a elevar seus olhares acima
de educação física e famoso pelo grupo brasileiro e internacional das fronteiras das disciplinas esportivas, das formas culturais, das
Cativeiro. O mestre estava então na cidade de Antuérpia para dar épocas, dos países e das raças. Que se estude o fenômeno, seja
aulas de capoeira. Casaram-se em 2007 e começaram juntos, em em nível micro ou macro, os conceitos que sempre voltam são
2004, a Ilê dos Êres, um projeto de desenvolvimento em São Mi- paz, liberdade, controle e desenvolvimento. É o que faz a capo-
guel, um bairro de pescadores em Ilhéus (BA). eira tão contagiante na Bélgica e que lhe dá sua carga simbólica
Uma pesquisa com observação participativa (Van Dyck, Ver- e atração em muitos países.
meulen & Tolleneer, 2007) ressalta que a capoeira é um instru-
mento excepcional para melhorar não somente a motricidade mas Jan Tolleneer é professor das Universidades de Lovaina (KULeu-
também as habilidades sociais e a autoestima de crianças desfavo- ven) e de Gand. Foi membro da presidência da International Socie-
recidas e adolescentes. ty for Comparative Physical Education and Sport (ISPES) e da In-
Projetos como Ilê dos Êres e Mus-e Brasil se conduzem no en- ternational Society for the History of Physical Education and Sport
tusiasmo e idealismo, mas não podem subsistir sem financiamento (ISHPES). Ensina Fundamentos da Educação Física, Estudos Com-
e enquadramento. O primeiro projeto desfrutou nesse período do parativos, História dos Esportes e Ética Esportiva. Coordena o Interfa-
apoio da ONG flamenga SOS Kids International e da Barry Cal- culty Research Group Sport and Ethics (KULeuven). Publicou vários
lebaut, que possui perto de São Miguel uma fábrica que processa livros e artigos em revistas de estudos dos esportes.
sementes de cacau. O segundo surgiu no contexto da International
Yehudi Menuhin Foundation (IYMF). Referências
Como meio para estimular a convivência local e o desenvol- Van Dyck J., Vermeulen E. e Tolleneer J., Capoeira, ontwikkeling en samenwerking in
vimento internacional a capoeira precisa efetivamente de uma Brazilië. Literatuuronderzoek en gevalstudies, Leuven: KU Leuven, tese de mestrado
gestão eficiente e de financiamento substancial. Na Bélgica, leva em Educação Física e Kinésiologia; orientador prof. dr. J. Tolleneer, 2007, 141 p.
Wielandts J. e De Meyer G., Capoeira: van zelfverdediging voor slaven tot populaire sport
um pouco sua vida própria como um valor patrimonial, artístico e in Vlaanderen, Leuven: KU Leuven; tese de mestrado em Ciências da Comunicação;
lúdico. Em comparação com o mundo esportivo moderno, é me- orientador prof. dr. G. De Meyer, 2005, 137 p. 
nos burocratizada e deixa mais lugar para a vivência pós-moderna

Nelson e Rodrigo Pessoa: uma família brasileira


dedicada ao hipismo mundial
Kátia Rubio

O cavalo foi introduzido no Brasil pelos colonizadores portu-


gueses e utilizado basicamente na lavoura, no pastoreio e
foi de muita utilidade para os bandeirantes no desbravamento do
de guerra, o governo brasileiro, a pedido do Duque de Caxias,
mandou importar garanhões puro sangue inglês, melhorando a
criação nacional. O fato estimulou ainda mais a realização de cor-
oeste brasileiro. Os pampas do sul do país constituíam-se local ridas e motivou a criação do Jockey Club Fluminense, em 1854.
ideal para seu desenvolvimento, mas foi no Nordeste, durante a Em São Paulo, incentivada pela Marquesa de Santos, uma adepta
gestão de Maurício de Nassau, que aconteceu a primeira compe- da montaria, a equitação ganharia seu espaço no Campo da Luz,
tição hípica, em 1641, o Torneio de Cavalaria, que levaria holan- em 1875, dando origem ao Clube de Corridas Paulistano, que mais
deses, franceses e ingleses de um lado e portugueses e brasileiros tarde passou a se chamar Jockey Club da Mooca, o precursor do
de outro a se enfrentarem competitivamente. Vale ressaltar que Jockey Club de São Paulo.
a cavalaria foi de grande importância na Batalha de Guararapes, Um novo desenvolvimento da equitação foi experimentado
quando portugueses e brasileiros expulsaram os holandeses do li- quando da chegada da missão militar francesa, após a Primeira
toral do Nordeste brasileiro. Guerra, já no século XX, que organizou um curso de instrução
Nos séculos XVIII e XIX eram comuns as cavalgadas e os tor- especializada em equitação, mais tarde denominado curso espe-
neios esportivos não oficiais, como corridas e simulações de com- cial de equitação.
bates. Com a mudança da família real portuguesa para o Brasil, Fora dos quartéis o hipismo era praticado por fazendeiros e
foi solicitada a vinda de mestres da Europa para servirem de ins- seus familiares, bem como por militares nas sociedades hípicas.
trutores aos fidalgos da corte, iniciativa que foi encerrada com a No Rio de Janeiro existiam o Clube Esportivo de Equitação e o
Independência. Centro Hípico Brasileiro, que se fundiram em 1948 formando a
Diante da importância que o cavalo assumia para as situações Sociedade Hípica Brasileira.

360
parte 11 – esportes

Ainda que os cursos de equitação tenham sido fechados duran- Além de grande atleta, Nelson destaca-se, até o presente, por
te a Segunda Guerra, em 1942 pela primeira vez uma equipe bra- sua performance como técnico e criador de cavalos. É um profun-
sileira disputou torneios no exterior, mais precisamente no Chile. do conhecedor da psicologia do cavalo e um estudioso das linhas
Mas, essa história poderia ter outro enredo, não fosse a presença genealógicas dos cavalos de esporte. Como técnico, alcançou des-
de dois brasileiros ilustres. taque ao orientar equipes em vários países na Europa e no Oriente
Há quem diga que o esporte é uma linguagem universal. Em Médio e ajudou na conquista da primeira medalha olímpica do
certo sentido isso poderia sugerir a inexistência de fronteiras ou esporte equestre brasileiro, bronze em Atlanta.
barreiras uma vez que a comunicação pode se dar pela competi- Em 1981 instalou-se na Bélgica, onde vive até o presente. Lá
ção em si. Alguns atletas brasileiros mostram isso quando vencem ele montou o Haras du Ligny, em Fleurus, importante centro de
as fronteiras dos Estados Nacionais e ganham o mundo com seu formação e treinamento para cavaleiros de todo o mundo.
talento e competência, estabelecendo residência e tendo mais do Rodrigo Pessoa nasceu em 29 de novembro de 1972, em Paris,
que um passaporte, mas mantendo vínculo com o Brasil. na França. Apesar de nunca ter morado no Brasil, aos 18 anos ele
Esse é o caso de Nelson e Rodrigo Pessoa, pai e filho, cavaleiros optou pela cidadania brasileira. Começou a montar aos cinco anos
olímpicos, reconhecidos internacionalmente por seus talentos e e aos nove participou de seu primeiro campeonato, em Hickstead
habilidades e que residem há muitos anos na Bélgica. (Inglaterra), na classe pônei. Aos 12 anos, foi com a família morar
Nelson Pessoa Filho nasceu no Rio de Janeiro, em 16 de de- na Bélgica onde conquistou o campeonato belga de pônei.
zembro de 1935, e muito cedo começou a montar e a se destacar Foi o jóquei mais jovem dos Jogos Olímpicos de Barcelona
nos torneios em que participou. Como dito acima, o hipismo nesse (1992), ficando em nono lugar na classificação individual. Nesse
momento era um esporte praticado basicamente por militares e mesmo ano conquistou seu primeiro grande prêmio na Copa do
os destaques da modalidade eram oficiais do exército brasileiro. Mundo, em Malines (Bélgica). Em 1995 ganhou a medalha de
Foi nesse cenário que no final dos anos 1950 Nelson Pessoa surgiu ouro por equipe nos Jogos Pan-Americanos de Mar del Plata (Ar-
para o esporte, passando a representar a equipe brasileira e defen- gentina) e no ano seguinte venceu o Grande Prêmio da Alema-
dendo o País nas competições internacionais. nha, recebendo o título de melhor cavaleiro em Paris (França) e
Neco, como é conhecido o atleta, iniciou sua carreira inter- Zurique (Suíça).
nacional como cavaleiro muito jovem, ganhando vários torneios Rodrigo fez parte da equipe que conquistou a medalha de
e a vaga para sua primeira participação olímpica em Melbourne, bronze olímpica nos Jogos de Atlanta em 1996 e, em 2004, foi
em 1956, quando tinha 21 anos. campeão olímpico individual. Além dessas conquistas também
Em 1961 mudou-se para a Europa a fim de aperfeiçoar-se, o foi campeão da Copa do Mundo em Helsinque (Finlândia) e do
que o levou não a apenas conquistar o reconhecimento mundial Campeonato Mundial em Roma (Itália), disputado a cada quatro
como também abriu caminho para que muitos outros cavaleiros anos. Em 1999, venceu pela segunda vez a Copa do Mundo em
brasileiros pudessem conquistar esse continente. Nelson ficou co- Gotemburgo, na Suécia, e chegou ao segundo lugar no ranking
nhecido como o Feiticeiro por causa do estilo de conduzir seu ani- mundial de hipismo na categoria sênior.
mal, o que parecia ser uma obra de encantamento. A partir de 2004, junto com o pai, Rodrigo trouxe de volta ao
Nos Jogos Pan-Americanos de Winnipeg, em 1967, pela pri- calendário internacional o tradicional CSI de Bruxelas, evento que
meira vez na história a equipe brasileira de hipismo conquistou reúne os melhores cavaleiros do mundo e revela grandes talentos.
a medalha de ouro, superando os favoritos à medalha. Nelson Nelson e Rodrigo Pessoa são exemplos vivos da mundialização
Pessoa Filho, juntamente com Antônio Alegria Simões, José Ro- do esporte e da fluidez das fronteiras quando o objetivo é a busca
berto Reynoso Fernandes e o coronel Renyldo Ferreira foram os da excelência.
protagonistas desse feito. E na prova individual, Neco conquistou
a medalha de prata. Kátia Rubio é Professora Associada da Escola de Educação Física e
Como atleta, Nelson participou ainda dos Jogos Olímpicos de Esporte da Universidade de São Paulo (USP). É bacharel em Jorna-
Tóquio em 1964, México em 1968, Munique em 1972 e Barce- lismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero (1983) e
lona em 1992, mostrando uma longevidade rara em atletas. Em psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1995).
seu currículo constam duas medalhas de ouro e uma de prata em Fez mestrado em Educação Física pela USP (1998) e doutorado em
Jogos Pan-Americanos, sete vezes campeão (recorde de vitórias) do Educação pela USP (2001). Tem 16 livros publicados na área de
Derby de Hamburgo, tricampeão do Derby de Hickstead, campeão Psicologia do Esporte e Estudos Olímpicos. É membro da Academia
europeu, vencedor de 150 GPs na Europa, foi vencedor de mais Olímpica Brasileira.
de 100 provas de Potência e foi quatro vezes campeão brasileiro.

361
parte 11 – esportes

362
parte 12 – gastronomia

parte 1 2

Gastronomia

363
parte 12 – gastronomia

364
Produtos brasileiros na gastronomia belga
Eddy Stols

Nas últimas décadas do século XVI e nas primeiras do século XVII chegava em Flandres o açúcar dos novos engenhos brasileiros com maior abundância e a melhor
preço. Abastecia as refinarias de Antuérpia e promoveu para as mesas aristocráticas e burguesas uma sofisticada arte de doçaria e confeitaria. Açúcar cristalizado,
biscoitos e conservas de frutas eram celebradas nas pinturas de naturezas mortas de Osias Beert e de Clara Peeters. Entretanto, outro pintor, Pieter Breughel o jovem,
mostrava também um camponês recebendo de presente de seu proprietário um pão de açúcar, já embrulhado no papel e provavelmente de açúcar mascavado. Este
entrou rapidamente no consumo popular, como cobertura de tortas ou até de simples fatias de pão, às vezes assadas como rabanadas ou adocicando pratos populares
com repolho vermelho. No século XIX o açúcar, se bem que agora de beterraba, se generalizou na dieta popular, ao mesmo tempo em que se criaram novas iguarias de
confeitaria como a tarte brésilienne e a glace brésilienne (sorvete). Justificavam seu nome de brasileira pela presença da “noix du Brésil” ou castanha do Pará.

365
parte 12 – gastronomia

“La Maison Antoine”, um dos mais conceituados ‘fritkots’ de Bruxelas – lojas de frituras em vias públicas, onde se encontram as batatas fritas belgas e outras
guloseimas – tem no seu cardápio, entre outros, o molho ‘Brazil’, cujo ingrediente especial é o abacaxi.

A presença de uma grande colônia de brasileiros em Bruxelas fez prosperar


doceiras e quituteiras, vários restaurantes com churrascos, feijoadas e moquecas,
bares com caipirinhas e cervejas brasileiras e até uma barraca de feira com pão
de queijo, pastéis, coxinhas e empadinhas. Perto da estação de trem de Midi,
lojas que vendem produtos espanhóis, italianos ou indianos aumentaram sua
clientela incorporando produtos brasileiros, incluindo até pequís conservados
em vidros para atender ao expressivo número de brasileiros vindos do Estado de
Goiás. Surgiu um pequeno supermercado brasileiro, o Mineirinho, que, além de
picanhas, linguiças calabresas e carne seca, oferece desde biscoito de polvilho,
guaraná, café brasileiro, sonhos de valsa e até queijo mineiro, feito na Bélgica.
Entre seus fregueses encontram-se muitos belgas, que, mesmo sem jamais ter
ido ao Brasil, se familiarizaram, através de amigos brasileiros, com a base da
alimentação brasileira.

366
parte 12 – gastronomia

Interlocuções etílicas entre o Brasil e a Bélgica


Daisy de Camargo

N o campo das bebidas alcoólicas, assim como na gastrono-


mia em geral e em todas as searas econômicas, comerciais e
culturais, a relação entre o Brasil e a Bélgica sempre foi pautada
que teve duração efêmera. Em 1853, na cidade de Petrópolis, foi
inaugurada a cervejaria Bohemia. No ano de 1875, em viagem
pelo Brasil, especificamente Rio de Janeiro e Minas Gerais, o na-
por um rico intercâmbio e uma sede de descobrimento mútuo. turalista belga Walthère de Sélys-Longchamps manifestou, na sua
Os belgas exportavam genebra para o Brasil no século XIX. relação de viagem, sua preferência pela cerveja da terra à inglesa
Tudo indica que este destilado de cereais com trigo e centeio, de e sublinhou a rápida expansão da produção nacional.
altíssimo teor alcoólico, era bastante apreciado no país, dada sua Vale a pena retomar o que o Brasil oferecia de etílicos ao mun-
recorrência entre os inventários de donos de tabernas nesse pe­ do belga. Em relatório endereçado ao Secretário dos Negócios,
ríodo, como de Bernardo Martins Meira, dono de um armazém Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Brasil, A. da Silva Pra-
de molhados na Rua São Bento, em São Paulo. O líquido espiri- do, o Conde de Villeneuve (delegado especial da Seção Brasileira)
tuoso vindo da Bélgica é fartamente arrolado no estabelecimento relata o que o país colocou à prova na Exposição Universal de An-
de Meira, entre garrafas de cachaça, espírito de vinho, rum, co- tuérpia (1885). Constam aguardentes de Sergipe, Pernambuco e
nhaque e outras iguarias. Rio de Janeiro. Cita também vários produtores de licores: Eugenio
O crescimento do consumo de espirituosos no Brasil pode Marques de Hollanda, Freire Aguiar e Antonio José Rodrigues de
ter motivado investidores belgas do setor interessados em produ- Araújo (Rio de Janeiro); Francisco José Pinto Requião (Curitiba).
zir no país. Em 27 de fevereiro de 1899 foi fundada, em Liège, a Há também expositores de vinho: André Gimber (Curitiba) e João
empresa Distilleries brésiliennes, com capital de 300.000 francos, do Amaral Raposo (Pernambuco), além do vinho de caju, por José
para valorizar uma destilaria existente em Jundiaí que se associou Augusto Gomes de Abreu.
com um industrial italiano residente nessa cidade, de nome Ce- Mas a cerveja, interesse mútuo evidente, mereceu destaque es-
lestino Pesce (Recueil Financier, 1913). Entretanto, se o capital pecial do jurado Sr. Denayer, que narrou as apreciações do júri de
foi duplicado a 600.000 francos, no ano de 1913 a sociedade já se classe relativas às cervejas brasileiras em exposição: Pale Ale, pro-
encontrava em liquidação. duzida por Francisco Logos & Comp. (Rio de Janeiro), ressaltado
Mas um dos grandes pontos de interlocução entre belgas e seu sabor fresco, agradável e aroma especial; Nacional de Thomas
brasileiros é a paixão pela cerveja, bebida fermentada que desde Iwersen (Morretes, Paraná), segundo o jurado, digna de rivalizar
a domesticação dos cereais sempre foi um dos alimentos líquidos com as cervejas castanhas belgas; e por fim a Tels Bier, produzida
mais importantes da história da humanidade. Segundo Câmara por Von Goumoens (São Paulo), de preparo superior.
Cascudo, o amor do brasileiro pela cerveja sedimentou-se nos fins Posteriormente surgiram indústrias de maior porte. A Antarc-
do século XVIII. Logo depois de 1808, com a chegada da família tica seria fundada em 1888 e a Brahma em 1904, duas grandes
real portuguesa e a abertura dos portos, as cervejas alemãs, holan- forças centrípetas que mais tarde polarizariam a produção no país.
desas, dinamarquesas, inglesas, norueguesas e belgas alagavam os Quanto às cervejas belgas, no Dicionário de Medicina Popular,
mercados do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Recife. publicado no ano de 1862, Chernoviz cita a bebida dessa nacio-
Vários são os viajantes que citam a experiência da degustação nalidade (entre as inglesas, francesas, alemãs e austríacas) e suas
da bebida no Brasil. John Luccock, em 1809, observa a predileção respectivas gradações alcoólicas: Faro (4.15), Cerveja de Cevada
brasileira pela cerveja forte. Martius saboreou a inglesa Porter no (4.35), Diversas entre as belgas (5.8). Essa atenção de Chernoviz
Tijuco e em Itaparica. dada às cervejas belgas leva a crer que já havia no Brasil nesse pe-
Esse preparado já estava presente no período do domínio ho- ríodo um interesse pelo gosto, a importação e o consumo.
landês em Pernambuco (1630-1654), onde foi largamente citado Durante todo o século XIX os jornais da corte publicavam
nos relatos de festas do governador João Maurício de Nassau por propagandas das casas importadoras. No caso dos belgas vindos
frei Manoel Calado. Entretanto, foi depois de 1808 que o líquido para o Brasil, assim como os alemães, a cerveja fazia parte de um
dourado se espraiou e contaminou o gosto do brasileiro, dada sua hábito alimentar milenar e o processo migratório cria essa deman-
refrescância quando gelada, tão bem-vinda num país de clima da de importação.
quente. Esta mania valorizou o uso do gelo no país. No Brasil vi- A cerveja é para a Bélgica o que o vinho é para a França. A
rou sinônimo de elixir refrescante. produção chegou à região com o Império Romano. Grande parte
No decorrer do século XIX pululavam por todo o Brasil peque- da fabricação artesanal atual é herança do medievo, com história
nas fábricas artesanais, sobretudo em São Paulo, Rio de Janeiro, de larga manufatura nos mosteiros, onde a bebida era consumida
Bahia, Recife, Pará, Rio Grande do Sul. Os primeiros registros de como alimento. O país está situado no que é denominado cinturão
fabricação de cerveja no país numa escala de maior dimensão da- da cerveja, formado também por Irlanda, Reino Unido, Holanda,
tam de 1848, no Rio de Janeiro, com a Vogelin & Bager, indústria Alemanha e Norte da França. Essa região é caracterizada por um

367
parte 12 – gastronomia

ecossistema favorável ao plantio de cevada, lúpulo e certos maltes, Paulo para Santos um Parque Recreio Belgo-Brasileiro. Um belga
com clima moderado e solo propício. de Bruxelas, Pascal Schoeps, introduziu assim no Brasil um tipo
A Bélgica conta com marcas poderosas como a Stella Artois de taberna com música, jogos e bailes, que com suas janelas verdes
(originária da taberna Den Hoorn, fundada na cidade de Lovaina em meio a ipês se parecia muito, segundo o visitante belga Louis
em 1366), já tão presente e apreciada no mercado brasileiro. A Piérard em 1920, com as guinguettes parisienses ou com casas re-
produção industrial fomentou a organização na Universidade de creativas como Moeder Lambic e Ziska, localizadas na praia belga
Lovaina de uma formação universitária de engenheiro-cervejeiro. de Knokke (Piérard e Araújo, p. 321).
Mas a produção artesanal segue sendo uma atração à parte que Outra visita belga que rendeu frutos saborosos foi Emile To-
conta com misturas tradicionais como coentro, alcaçuz, gengibre, bias Morisse, engenheiro agrônomo que nas primeiras décadas
cerejas e framboesas; e a ousadia de novas experiências e misturas, do século XX assumiu vários cargos na Seção de Leiteria do Posto
como a mostarda, o café e o chocolate. Zootécnico Federal(D.O.U, 1910; 1911; 1913). Posteriormente
Esse entusiasmo de produção e consumo que une os dois paí- voltou todos os seus conhecimentos e investiduras em uma socie-
ses já viveu episódios frutíferos. Vários jovens brasileiros foram es- dade com Antoine Daniel Souquières e Landucci, no Grand Hô-
tudar engenharia cervejeira em Lovaina. Em 1905 um deles, Luiz tel e Rotisserie Sportsman, localizado no centro da cidade de São
Englert, adquiriu em Porto Alegre a grande cervejaria Christoffel, Paulo. Esse estabelecimento pretendia ser uma verdadeira misci-
que tinha 45 empregados, e uma produção de 1.500.000 garrafas genação de hábitos e produtos europeus. O cardápio era servido
de cerveja por ano, de cerveja branca e preta simples e dupla, de à francesa. O nome – sportsman – era uma referência ao inglês
Lager Bier, Export Bier, Culmbacher, Chopps simples e duplo supostamente refinado praticante de esportes (o logotipo da casa
(A Redenção, 16.03.1904). Sua caldeira a vapor do sistema Bele- era uma cabeça de cavalo, evocação nítida aos esportes equestres).
vil vinha da Bélgica, da empresa metalúrgica De Nayer & Cia. A adega ficou famosa por sua variedade e sucesso na eficiência das
de Willebroek, que forneceu nessa época também as estruturas regas em festas e banquetes (Barbuy, p. 125)
metálicas para o novo Mercado Municipal do Rio de Janeiro. Se- Novos encontros se fizeram esperar por muito tempo até que
gundo um padre belga em Porto Alegre, Joseph Moreau, no final foi fundada em 1983 na cidade de Botucatu (SP) a Cervejaria
de 1905 Luiz Englert procurou associar-se com capitalistas belgas Belco. A fábrica foi instalada onde anteriormente funcionava a
para aumentar sua produção e conquistar, no Norte do Brasil, um Belgium Co., uma cooperativa que reunia remanescentes da co-
mercado em falta de boa cerveja (Moreau). lonização belga nesse município, iniciada na década de 1960. A
Não podemos aferir se tal empreitada teve sucesso, mas pelo origem do nome é um amálgama e homenagem das primeiras síla-
menos poucos anos depois um grupo de investidores belgas per- bas do nome da cooperativa. Em 1985 foi adquirida pela Destilaria
cebeu que com a alta proibitiva das taxas de importação sobre Schincariol e posteriormente remanejada para São Manuel, onde
cervejas chegava a hora de aventurar-se no Brasil. Se sua produ- permanece. Há também uma filial em Cabo de Santo Agostinho
ção nacional aumentou de forma expressiva, faltava-lhe boa qua- (PE). Essa cerveja que traz a marca feliz da junção do gosto belga
lidade nas cervejas de alta fermentação. Em 22 de julho de 1910 em território brasileiro é exportada para os Estados Unidos, Euro-
foi fundada na cidade de Bruxelas Les Grandes Brasseries du Rio pa e Ásia. Suas principais marcas são: Chopp Belco, Belco Pilsen,
de Janeiro, com capital de 2 milhões de francos belgas (Recueil Tauber, Malzbier Belco e Mãe Preta.
Financier, 1910). Entre os acionistas da nova sociedade encontra- No mais, a influência da cervejaria belga foi incorporada por
vam-se dirigentes de uma das maiores cervejarias belgas daquela algumas fábricas brasileiras. É o caso da Riopretana (fundada em
época e em plena expansão, as Grandes Brasseries de l’Étoile, mas 2005, São José do Rio Preto, SP), que produz a Amber, anuncia-
também um ex-presidente da Província do Pará, José Paes de Car- da como avermelhada e de origem belga. A Whitehead, cervejaria
valho. A intenção era rentabilizar com mais capital e a tecnolo- artesanal de Porto Alegre (RS-2007), comercializa a Witbier, se-
gia das Grandes Brasseries de l’Étoile a cervejaria Guarda Velha, guidora do “estilo belga”, forte, encorpada e aromática.
comprada dos Alves da Nobrega por um contabilista de Bruxelas, Esse namoro etílico desembocou num grande encontro entre a
Léon Requier. Situada num bairro rico do Rio de Janeiro, estava história da cerveja nos dois países, agora no campo do mundo glo-
equipada com material moderno e produzia 1.200.000 garrafas, balizado. Falamos da formação da AB Inbev (sediada em Lovaina),
sendo dois terços de cerveja clara e um terço de stout. companhia de bebidas formada no ano de 2004 com a fusão da
A parte não utilizada do prédio era alugada por 40.000 francos brasileira Ambev e a belga Interbrew. Essa última era uma empre-
e podia, com melhoramentos, render 80.000. Não obstante, em sa de raízes belgas, formada pela junção da flamenga Stella Artois
12 de abril de 1913 a sociedade já se encontrava em liquidação. com a Piedboeuf, da Valônia. Depois de muitas fusões e aquisições
A entrega da cervejaria demorou demais e os primeiros sete meses tornou-se a maior companhia de cerveja do mundo.
de exploração sofreram prejuízo pela forte concorrência alemã. Do lado brasileiro, a Ambev (Companhia de Bebidas das Amé-
Além do mais, houve suspeita de erros em relação à produção ricas) é o resultado da fusão da Companhia Antarctica Paulista e
anterior e aos aluguéis. Companhia Cervejaria Brahma. Com a AB Inbev o brasileiro teve
Mas a presença de belgas aflorou em novas searas de consumo. maior acesso às cervejas belgas, que, traçando um caminho aber-
Em 23 de novembro de 1913 foi inaugurado na estrada de São to pela Duvel (Diabo), viraram verdadeira febre. A lista de oferta

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parte 12 – gastronomia

belga é ampla, dentre as quais destacam-se no mercado brasilei- Daisy de Camargo é Mestre em História pela Pontifícia Universida-
ro: Hoegaarden (com fórmula baseada em sementes de coentro de Católica de São Paulo (Capes), Doutora em História pela Unesp/
e raspas de casca de laranja); Belle-Vue (do tipo Lambic, ou seja, Assis (Fapesp). Trabalhou como historiadora no Museu da Imagem
de fermentação espontânea); Leffe (de alta fermentação, do tipo e do Som de São Paulo e no Condephaat (Conselho de Defesa do
abadia); Malheur 10 (encorpada e marcante); West Malle Dubbel Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado
(trapista); Delirium Tremens (ironicamente frutada); Troubadour; de São Paulo). Publicou o livro Alegrias Engarrafadas: os álcoois e a
Maredsous; La Chouffe; Kwak. embriaguez na cidade de São Paulo no final do século XIX e come-
No rastro de tamanho sucesso de paladar, Xavier Depuydt, ço do XX. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
cervejeiro belga de família tradicional no ofício e com experiên­
cia de mais de dez anos em cervejarias belgas, imigrou para o Referências
Brasil em 1996, instalando-se no Rio de Janeiro. Depois de três Luis Felipe de Alencastro e Maria Luiza Renaux. “Caras e modos dos migrantes e imigran-
anos inaugurou a primeira loja com espaço para degustação de tes.”, in Luis Felipe de Alencastro (Org.). História da Vida Privada no Brasil: Império.
cervejas belgas do Brasil, a Belgian Beer Paradise. O sucesso foi de São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 291-335.
Vicente de Paula Araújo. Salões, circos e cinemas de São Paulo. São Paulo, 1981.
tal envergadura que Depuydt passou a arranjar, no ano de 2010, Heloisa Barbuy. A cidade – exposição: comércio e cosmopolitismo em São Paulo, 1860-
a Belgian Beer Festival, festa para degustação de cervejas e gastro- 1914. São Paulo: Edusp, 2006.
nomia típica belgas. Em novembro de 2013 organizou-se em São Henrique Carneiro. Pequena Enciclopédia da História das Drogas e Bebidas. Rio de Ja-
neiro: Elsevier, 2005.
Paulo uma Semana da Cerveja Belga. Luis da Câmara Cascudo. História da Alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004.
Retornando à permuta de encantamentos etílicos, atualmente Luis da Câmara Cascudo. Prelúdio da Cachaça. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986.
a hora e a vez na Bélgica é da Caipirinha. Na década de 2000 co- Pedro Luiz Napoleão Chernoviz. Diccionario de Medicina Popular (em que se descrevem
em linguagem accommodada á intelligencia das pessoas estranhas á sciencia medica).
meçaram a surgir vários bares brasileiros onde essa bebida impera. Terceira Edição, Paris: em casa do autor, Rua de Passy, 10 bis, 1862.
No livro Xangô de Baker Street, Jô Soares elabora um chiste em http://www. Cervejasdomundo.com/Brasil.htm Acesso em 22 de outubro de 2012.
torno da invenção desse drink. O sábio médico Dr. Watson, amigo Inventário de Bernardo Martins Meira, Arquivo Judiciário do Estado de São Paulo, Pro-
cesso 689/1876.
e assistente de Sherlock Holmes, teria criado a receita na tentativa Joseph Moreau, 30.12.1905, Archives du Ministère des Affaires Étrangères, Bruxelas,
de utilizar o limão e o açúcar como antivenenos para qualquer mal 2806, VII.
-estar que pudesse causar a força da cachaça no corpo de Holmes. Diário Oficial da União (DOU). 17 nov. 1910, p. 14, seção 1; 30 jun. 1911, p. 8, seção 1;
10 maio 1913, p. 44, seção 1.
Mas a Caipirinha surgiu em algum recanto do Estado de São Michael Jackson. Great Beers of Belgium. Philadelphia: Running Press, 1998.
Paulo. A mistura de aguardente, limão e açúcar era primeiro uti- O Estado de S. Paulo, 8 jun. 1919, p. 9; 25 jan. 1920, p. 11; 08 fev. 1920, p. 8.
lizada na Capitania de São Vicente como antídoto para constipa- Louis Piérard. Films brésiliens. Bruxelas, 1921.
Recueil Financier. Bruxelas, 1910-1921.
ções. Com o passar do tempo e o acréscimo do gelo tornou essa Walthère de Sélys-Longchamps. ‘Notes d’un voyage au Brésil’. Revue de Belgique, 1875.
mistura querida e disseminada por todo o Brasil, vertendo-se num Jô Soares. O Xangô de Baker Street. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
dos símbolos da cultura brasileira no exterior. Mário Souto Maior. Cachaça. Brasília: Thesaurus, 2005.
Conde de Villeneuve. Exposição Universal de Antuérpia: relatório apresentado a S. Ex.
Na Bélgica a Caipirinha virou febre nos últimos anos, em Sr. Conselheiro A. da Silva Prado. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Biblio-
bares brasileiros como o Dona Flor em Bruxelas, onde é servida teca Digital do Senado Federal/ Obras Raras. http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/
com feijoada e picantes da Bahia. Outra embaixadora nesta cidade id/242456 [acesso em 22 de novembro de 2012].
Revista Cervisiafilia (A história das antigas cervejarias) Domingo, 2 dez. 2012. http://cer-
dessa fórmula encantatória é o Canoa Quebrada, onde é consumi- visiafilia.blogspot.com.br/2012/12/fabrica-de-cerveja-frederico.html [acesso em 15 de
da como combustível para danças latinas e remédio para fadigas novembro de 2013].
repentinas e renitentes. Mas a poção mágica também é vendida
em um pequeno carro ambulante ancorado no centro de Bruxelas.

Como um chef mergulhou nos sabores dos ingredientes nacionais


valorizando os produtos e a gastronomia brasileira.
Quentin Geenen de Saint Maur

N ascido na cidade de Mbandaka, Congo Belga, hoje Repú-


blica Democrática do Congo, lá vivi a primeira década da
minha vida, sendo alfabetizado em francês.
facilitou minha iniciação, conduzido pelos africanos, em seus ritu-
ais culinários. Assim, registrei na memória afetiva a diversidade de
perfumes, cores, texturas e sabores dos ingredientes que serviram
Desde cedo, me familiarizei com o dialeto usado pelos empre- de referência à formação do meu paladar.
gados da casa, o kikongo, falado na região do Baixo Congo, o que Só os homens trabalhavam fora das aldeias para cuidar das

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parte 12 – gastronomia

tarefas nas casas dos brancos. As mulheres, envolvidas em teci- e cantinas. A gastronomia japonesa estava despontando para um
dos de cores vivas e alegres, de porte altivo, sorrisos reluzentes e público seletivo ainda restrito. A abertura do Hotel Maksoud Plaza
olhar meloso, desfilavam no portão, ao amanhecer, coroadas por e seus cinco restaurantes com cardápios de diversos países sinte-
grandes bacias em ágata, vendendo as frutas colhidas e raízes ca- tizava a virada da gastronomia na capital paulista: um mercado
tadas, folhas e legumes da horta comunitária ninados pelos can- com sede de novidades, o que se confere até hoje.
tos ritualísticos do vilarejo de origem. Os peixes de água doce, as Trazia comigo o aprendizado profissional de uma nova filoso-
tartarugas e os pitus eram trazidos, ainda vivos, pelos pescadores, fia da gastronomia europeia, a Nouvelle Cuisine: movimento da
ao entardecer. Os caçadores vinham com cortes de carnes sangui- culinária iniciado pelo chef Fernand Point, que chefs renomados
nolentas presos a pedaços de couro para identificar sua origem. da Europa abraçaram nos anos 70, para atender a uma clientela
Tinha também a feira a céu aberto, com seu labirinto de ilhas de homens de negócio e mulheres de silhuetas esbeltas, à procura
de tapetes de folhas de palmeira trançadas, amostras dos diversos de uma alimentação mais adequada ao estilo de vida contempo-
produtos com cores variadas e que exalavam cheiros marcantes, râneo. Com um visual mais desenhado, ela acompanhava a onda
provocando um dégradé de emoções, que passavam do enigmático de novidades que estavam revolucionando a alimentação cotidia-
ao deslumbrante, podendo chegar até mesmo ao repulsivo. Du- na, o mundo da moda, da música, da arquitetura e das artes em
as estações compartilhavam o ano, a das chuvas que se alternava geral. Uma brisa de frescor soprou a favor de uma cozinha mais
com a das secas, modelando a imensa paisagem e a natureza com livre, mais leve, mais apurada, temperada com parcimônia e de-
caraterísticas bem definidas. licadeza, cozimento minucioso com ingredientes preparados na
A chegada na Bélgica teve como forte impacto a demarcação hora e com respeito às riquezas nutritivas, com porções menores
das quatro estações e a delimitação das propriedades, assim como e estilizadas, permitindo, assim, a elaboração de vários pratos na
várias sutilezas socioculturais, iniciando minha adaptação pelo composição dos menus degustação. Tudo para estimular os senti-
aprendizado necessário de uma outra língua, o neerlandês. dos e, em destaque, a aparência.
Toda minha educação escolar foi feita por uma maioria de São Paulo, em plena ebulição, oferecia um campo fértil para
professores que demonstravam ter, mais do que um trabalho re- implantação dessa nova gastronomia. Os estilistas da capital pau-
munerado, uma vocação, ensinando a importância do porque, do lista e de Belo Horizonte animavam, com suas criações, o bairro
onde, do como e do pesquisar, sempre. Meus pais valorizaram, dos Jardins, tanto de dia como de noite. As artes plásticas esta-
na minha educação, a constante procura da qualidade e da origi- vam explodindo em cores e novas linguagens e as galerias de arte
nalidade. Durante as férias, a Europa era explorada com o olhar se multiplicavam, a música marcava novos ritmos, os arquitetos
focado na arquitetura, na música, nos museus, nos mercados, nas encontravam um mercado aquecido para propor novas formas e
feiras livres de produtos regionais e nas visitas aos ateliês dos arte- novos espaços; os escritores, roteiristas e jornalistas desfrutavam
sãos. Em poucas palavras: a cultura em geral, natural e humana. da recém-conquistada liberdade de expressão. Toda essa efer-
Todas as refeições servidas à mesa eram realizadas com receitas vescência me motivou a abrir o L’Arnaque, na rua Oscar Freire.
à base de produtos de origem conhecida, o que reforçou o foco Um local apropriado para encontrar um público diversificado,
de ter no mínimo três prazeres epicuristas ao dia. Leite, manteiga, vanguardista e atuante, favorecendo a troca de ideias e informa-
creme de leite fresco, ovos, carnes e aves fornecidos pelas fazendas ções, no seu terraço aberto para a rua, com mesas na calçada,
vizinhas. A carne de caça era trazida pelo meu avô materno na sua máquina de café expresso, seus jornais e revistas nacionais e
estação permitida. As frutas silvestres eram catadas na floresta; os internacionais. Os pedidos dos clientes eram anotados por uma
cogumelos, apanhados nos pastos antes do amanhecer; as frutas, hostess. Os garçons, vestindo jeans e grandes aventais, camisas
colhidas no pomar, e as verduras, na horta de casa. Tudo isso me brancas e gravata borboleta, iniciavam uma nova tendência que
permitiu aguçar e enriquecer a minha bagagem de sabores inicia- se perpetua até hoje. O público do terraço era atendido por es-
da na África, sem preconceito, mas com exigência. tudantes universitários.
Cheguei no Brasil no início dos anos 80 e, como todo estran- Na cozinha, foram implantadas aulas do Mobral para ensinar
geiro, aterrissei na cidade maravilhosa do Rio de Janeiro, onde a a equipe, basicamente formada por uma mão de obra vinda do
influência francesa na culinária já era notória no hotel Copaca- Ceará e do Piauí, a ler e escrever. Trabalhadores assíduos e cora-
bana Palace, da família Guinle, seguido, mais tarde, pelo chef josos que até então só podiam reproduzir as receitas de memória.
Laurent Suaudeau e pelo chef Claude Troisgros. A proposta era inovadora, o público e a mídia apoiaram incon-
Os pratos vedetes da época eram coquetel de camarão com dicionalmente sua ousadia e temeridade. Na época, só havia a re-
molho golf, filé café de Paris, linguado belle meunière e strogonoff vista Gourmet especializada em gastronomia, e colunas assinadas
com batata palha. Na cidade de São Paulo, o restaurante Cassero- por críticos apareciam semanalmente nos jornais. Para manter o
le, da Tuna e do Roger, hasteava a bandeira da cozinha tradicional espaço interagindo com a cidade, eram realizados eventos, como
francesa, e o Rodeio era a grande churrascaria em voga. O restau- lançamentos de livros, exposições de obras de jovens artistas, des-
rante do hotel Ca D’Oro, o La Tambouille, o Massimo e outros files de moda, que constituíam uma moldura para uma culinária
do gênero demostravam a importância da presença italiana, cuja arrojada com um cardápio degustação que mudava radicalmente
culinária se popularizou com a explosão do fenômeno pizzarias a cada mês.

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parte 12 – gastronomia

Durante os primeiros meses, foram apresentados pratos com da Cultura do Governo Fernando Henrique Cardoso. Pesquisa de
raízes no velho continente. Iniciamos uma criação própria de pa- produtos e comidas regionais iniciada desde a minha chegada ao
tos mulard para obter foie gras fresco, e uma horta orgânica abas- país reuniu receitas criadas, revistas e recriadas sob a nova filosofia,
tecia a casa. Uma traineira explorava a baía de Angra dos Reis, agrupadas por região. Sempre fui um viajante dos sabores, levan-
para fornecer os peixes e camarões. A cozinha sempre foi aberta tando ingredientes e receitas do Oiapoque ao Chuí. O reconheci-
para integrar, nas suas criações, novos ingredientes de pequenos mento da nova proposta foi imediato. O livro, talvez em função do
produtores. Com a ajuda da historiadora e pesquisadora Ângela novo conceito, esgotou-se rapidamente. O Embaixador da União
Marques da Costa, pesquisamos receitas, a tendência fusion, hoje Europeia, João Pacheco, e sua esposa, Leonor Pires, ofereceram
consagrada, mas que já existia no Brasil Império, mesclando três na sua residência um jantar, preparado por oito chefs de São Paulo
fontes – tipíco da colonização portuguesa: índios, portugueses e e Brasília, para toda comunidade diplomática europeia e autorida-
negros. Uma paleta de ingredientes brasileiros, sabores, texturas des brasileiras, baseado na proposta do livro. Segundo Maria Ceci-
e perfumes, ainda ignorados pela alta gastronomia, entrou com lia Londres, representante do Brasil nas reuniões de especialistas
força na filosofia da Nouvelle Cuisine no Brasil. O Chef Alex Ata- internacionais na Unesco, para a elaboração da Convenção para
la, recém-chegado da Europa, aluno da escola de hotelaria de a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, “quem estava
Namur, e que mais tarde iria projetar internacionalmente a gas- presente se deliciou com os sabores dos ingredientes inusitados
tronomia brasileira, foi apresentado ao chef em destaque no mo- apresentados e quem não foi perdeu o trem”. Esse evento levou
mento, durante um almoço no L’Arnaque. O empurrão foi dado um dos participantes, o chef brasileiro Henrique Fogaça, consa-
e bem dado. O movimento da Nouvelle Cuisine se espalhou pelas grado como chef revelação do ano em São Paulo, a aproveitar suas
cozinhas dirigidas por jovens chefs, a princípio formados fora do férias para descobrir a gastronomia belga, trabalhando ao lado da
país. Logo os cursos de gastronomia se multiplicaram no Estado, chef Arabelle Meirlaen e do Chef Philippe Fauchet.
e seu o governo investiu em escolas técnicas. A profissão de chef A ponte dos sabores está lançada entre o Brasil da mandioca,
foi tomando um novo rumo, deixando o estereótipo “casa grande do feijão e das frutas de botão e a Bélgica da batata frita, do chicon
e senzala”, para ter o reconhecimento do notório saber e a valori- au gratin e do sirop de Liège. Agora, é só reatar os laços e se deli-
zação do seu ofício e da sua arte. ciar com o exotismo dos ingredientes de lá e de cá para desfrutar
Em Brasília, concretizei um novo sonho: apresentar a diver- e enriquecer nossa cumplicidade gastronômica.
sidade das receitas e o potencial das matérias-primas do país no Boa viagem!
livro “Muito Prazer, Brasil”, publicado com apoio do Ministério Gastronomicalement, Quentin Geenen de Saint Maur.

Mille merci monsieur Quentin


A l e x A ta l a

A inda me lembro, como se fosse hoje, da primeira vez em que


pisei na Grand Place, em Bruxelas, quando comecei a enten-
der a Bélgica. Eu era, então, um brasileiro de família comum, que
horizonte era pequeno e o quanto eu poderia aprender e absorver
daquela experiência.
Os anos da Bélgica foram fundamentais para a minha forma-
naquele momento desconhecia até mesmo os pães, as cervejas, as ção, não só de cozinheiro, mas de homem e de caráter. Da Bélgica
maravilhas que a Bélgica poderia propor. Lembro-me do quanto ganhei voos. Fui para a França, a Itália... Eu me apaixonei, casei! E
embriagado, positivamente, fiquei por aquela cultura. Fascinado, um dia entendi que nunca faria cozinha belga, francesa ou italiana
decidi que não queria voltar para o Brasil e precisava, então, arru- tão bem quanto alguém que nasceu ali. E essa foi a primeira moti-
mar um jeito de morar e de viver. vação para voltar ao Brasil e me debruçar sobre a cozinha brasileira
Para sobreviver, como todo imigrante, fui pintar paredes, tra- – afinal de contas, esse era o sabor que eu tinha, que eu conhecia.
balhar em construção. Grandes aprendizados. Um outro proble- A cozinha tomou conta de mim; eu não tinha entendido, mas
ma era conseguir o visto. E foi assim que me inscrevi na escola já era tarde. Já era um caminho sem volta. Sem volta, mas feliz.
de cozinha Namur. Passam-se mais de 25 anos e hoje tenho o prazer não só de con-
Tão rápido como vocês podem imaginar percebi que era muito tar minha experiência, mas de render uma homenagem a um ho-
mais gostoso cozinhar do que pintar parede. Meu destino estava mem que, além de amante do Brasil, desde meu primeiro contato
traçado, mas eu não tinha entendido. Na Bélgica aprendi muito demonstrou sorriso e generosidade. Nos anos que antecederam a
mais do que cozinhar. Aprendi a me relacionar, e viver em uma estada na Bélgica, trabalhei como DJ em São Paulo numa famo-
pequena cidade cosmopolita – naquele momento, o centro da for- sa rua que se chama Oscar Freire. Nessa rua existia um pequeno
mação da comunidade europeia – me deixou claro o quanto meu bistrô dedicado à alta cozinha, o L’Arnaque.

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parte 12 – gastronomia

Preciso confessar que, nesses anos em que vivi na Belgica,


o L’Arnaque povoava meus sonhos, pensava em um dia voltar e
quem sabe trabalhar lá. De volta para o Brasil, trabalhando como
cozinheiro em restaurantes menores, um dia, com seu tradicional
sorriso, um homem de um tamanho avantajado entra em meu
restaurante e se apresenta. Era o dono do L’Arnaque, Quentin
Geenen de Saint Maur. Tremi, gaguejei, tentei preparar um prato
e para minha surpresa fui elogiado. Com sua maneira simpática,
mas firme, me apontou alguns caminhos.
O mais divertido foi a sua segunda visita. Um pouco mais con-
fiante, resolvi alçar um voo mais alto e levei um puxão de orelha.
Em tempo, quero agradecer. Obrigado Quentin, aquele puxão
de orelha ainda hoje dá voltas na minha cabeça.
O L’Arnaque é sem dúvida um momento da cozinha brasilei-
ra. Marca a transição de um país fechado a produtos importados,
a descoberta e a paixão da cidade de São Paulo pela alta cozinha.
O Quentin tinha tudo para sentar nos louros de um estrangeiro.
Acomodar-se naquela situação e administrar essa vantagem que,
na época, era grande.
Mas um grande homem não se senta em cima de uma gran-
de vantagem. O Quentin mostrou para o Brasil que era possível
acreditar no país. Fazia uma cozinha de base clássica, mas sempre
com interferência de ingredientes brasileiros.
A fase do L’Arnaque se findou, mas o Quentin continua bri-
lhando. Trouxe livros, sabedoria e espalha generosidade e ensi-
namentos da mesma maneira que ensinou um menino brasileiro
que chegava da Bélgica.
Obrigado Quentin. Mille merci monsieur Quentin ou, como
você bem diz, gastronomicalement. Um abraço.

Alex Atala: “Os anos na Bélgica foram fundamentais para a minha formação,
não só de cozinheiro, mas de homem e de caráter”.

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parte 12 – gastronomia

Ensaio do fotógrafo Ricardo de Vicq de Cumptich sobre gastronomia.

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Créditos de imagens

Parte 1 p. 86 em cima: Museu de Armas de Liège, n° 101, env. 16 / Reprodução: Marta C. Vale 02-
M.A.L. : 8005-De 58”. 03-1993
p. 28 à esq.: Acervo pessoal de Regina Lootens p. 86 embaixo: Acervo pessoal de Eddy Stols. p. 112 © Acervo pessoal de Patrick Collon.
Machado. p. 87 em cima à dir. e embaixo: foto de Carlos p. 114 © Magali Romero Sá.
p. 28 à dir.: Acervo Ivana Vervloet Di Francesco / R. Zanello de Aguiar (Macacheira) / Acervo p. 115 Acervo do Museu Paulista da Universidade
http://www.familiavervloet.com.br/fotos.asp pessoal de Eddy Stols. de São Paulo / Fotógrafo da reprodução: Hélio
p. 29 Museu Mineiro / Superintendência de p. 87 em cima à esq.: foto de Marc Ferrez em: Nobre.
Museus e Artes Visuais / Secretaria de Estado http://www.brasil.gov.br/old/copy_of_imagens/ p. 116 Acervo da Biblioteca da Esalq-USP.
de Cultura de Minas Gerais. sobre/cultura/fotografia/marc-ferrez/estrada- p. 117 Acervo da Biblioteca da FEA-USP.
p. 31 Museu Mineiro / Superintendência de de-ferro-de-paranagua-a-curitiba-viaduto-do- p. 118 Acervo do Núcleo de Documentação do
Museus e Artes Visuais / Secretaria de Estado conselheiro-sinimbu-parana-1879/view Instituto Butantan.
de Cultura de Minas Gerais / Fotografia de p. 88 em cima à esq. e à dir e no meio: Coleção p. 119 e 120 @ Dulce Eleonora de Oliveira
Pedro David. Allen Morrison / http://www.tramz.com p. 122 Acervo pessoal de Beatriz Monge Bonini e
p. 40 e 41 http://www.territorioscuola. p. 88 embaixo: Brasil, Cultures and Economies Rogelio Lopes Brandão.
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php?title=Ficheiro:Alvim-correa12.jpg Quatre Continents, editora Acco, Lovaina, 2001, p. 125 Acervo pessoal de Decio Eizirik.
p. 42 http://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.5 fig. 20 e 21. p. 128 e 131 Fotos de Els Lagrou.
/ Attribution: By Diesko Rosa (kexow@hotmail. p. 89 em cima à esq.: Acervo pessoal de Eddy p. 133 e 135 Acervo da Europalia.
com) (Own work) [CC-BY-SA-2.5.] Stols. p. 139 ©Daniel De Vos.
p. 43 e 44 Acervo de Mario Baeck. p. 89 embaixo: Dumoulin, Michel e De Vreese, p. 141, 142 e 143 Acervo da Biblioteca da Esalq-
p. 45 Reproduções de Christine Fellin. Marianne, Franki: een wereld bouwen”, Tielt: USP.
p. 48 Reproduções de Paul Dulieu. Lannoo, 1992. p. 144 © Acervo pessoal de Jacques Gillen, ARC-
p. 51 e 52 Acervo Associação Art N’Ativa. p. 90 foto do lado esq.: “Mina dos Belgas, MUNDA-PV-RBU1900bis
Corumbá/MS”, foto de Fábio Guimarães Rolim p. 146 e 147 ©Erika Benati Rabelo.
Parte 2 /Acervo do IPHAN-Corumbá, MS.
p. 91 Acervo do IPHAN-Corumbá, MS. Parte 5
p. 58 e 59 Acervo da Casa do Patrimônio p. 92 © Bernard Pirson.
Ferroviário do Rio de Janeiro (antigo Museu do p. 94 © Acervo de Jean Suettinni. p. 153 e 154 Cornelis Hazaert, “Kerckelijcke
Trem) / IPHAN – RJ. p. 97 e 98 Acervo Solvay Indupa. Historiae van de gheheele wereldt”, Antuérpia
p. 66 Acervo pessoal de Eddy Stols. p. 99 e 100 Acervo Tractebel Energia. 1652-1671 / Acervo de Johan Verberckmoes.
p. 67 Foto de Eddy Stols. p. 101 Acervo DEME. p. 155, 156 e 157 © Jeroen Dewulf.
p. 102 Acervo Grupo Jan De Nul. p. 159 e 161 Fotografias de Luciana Mascaro.
Parte 3 p. 104 Emile Cosaert e Joseph Delmelle, Histoire p. 163 Acervo da Biblioteca do Mosteiro de São
des transports à Bruxelles, Bruxelas, 1976, t. 1, Bento.
p. 76 Foto de Silvio Luiz Cordeiro. p. 86-87 p. 165 © KADOC, Centre de Documentation et
p. 78 à esq.: “Stadsarchief Antwerpen”, Arquivo p. 106 Acervo Citrosuco. de Recherche: Religion - Culture - Société /
Felix: Arquivo Municipal de Antuérpia, Imagens fornecidas por Luc Vints.
GIC#5704_001 Parte 4 p. 166 e 167 Fotografias de Luciana Mascaro.
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Felix: Arquivo Municipal de Antuérpia, p. 109 Arquivo Público do Distrito Federal. pt.wikipedia.php?title=Ficheiro:Padre_julio.jpg
GIC#5704_002 Notação: ArPDF-B.03.01.c / Localização: ficha p. 171 e 172 © KADOC, Centre de
p. 79 “Stadsarchief Antwerpen”, Arquivo Felix: 0124, env. 21 / Reprodução: Marta Vale 02-03- Documentation et de Recherche: Religion
Arquivo Municipal de Antuérpia, GIC#5929 1993. – Culture – Société / Imagens fornecidas por
p. 81 Acervo do Museu Efgoed, Antuérpia, p. 110 Arquivo Público do Distrito Federal. Peter Heyrman.
reproduzida por Jan Possemiers. Notação: ArPDF-B.03.01.c / Localização: ficha p. 179 ©Monica Maria Muggler.

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créditos de imagens

p. 182 e 183 © KADOC, Centre de p. 251 e 252 © Jonas Hamers. Parte 10


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Culture - Société / Imagens fornecidas por Luc p. 253 à dir.: © France Dubois. p. 325 e 326 Fotos de Mateus Rosada
Vints. p. 254 © Reynald Halloy. p. 328 acima Foto de Luciana Mascaro
p. 255 e 256 à esq.: © Thierry-Michel. p. 328 abaixo à esq.: Foto de Eddy Stols
Parte 6 p. 256 à dir.: © Les Films de la Passerelle. p. 328 abaixo à dir.: Acervo do EcoMusée Bois-
p. 257 à esq.: © Eve Boilard. du-Luc.
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p. 197 © Johan Verberckmoes. p. 258 © Gigi Mete. p. 329 abaixo: foto de Guilherme Gaensly , 1908/
p. 198 © Hendrik De Schrijver / Patrick Segers, p. 259 e 260 © Gustaaf Verswijver. Acervo Iconográfico do Museu da Cidade de
Arquivo do Comité Ros Beiaard, Dendermonde, p. 261 e 262 à esq.: Acervo pessoal de Nicolas São Paulo / Casa da Imagem.
Bélgica. Hallet. p. 330 à esq.: © S. Solano / Acervo do Eco Musée
p. 200 Foto de Celso Oliveira. p. 262 à dir.: © Simone Dourado. Bois-du-Luc.
p. 201 acima: Foto de Carlos da Ponte. p.330 à dir.: Acervo do Eco Musée Bois-du-Luc.
p. 201 no meio: Foto de Anne Van Aerschot. Parte 9 p. 331 Acervo pessoal de Bernard Pirson.
p. 201 abaixo: Foto de Danny Willems. p. 332 Acervo do EcoMusée Bois-du-Luc.
p. 202 acima: Foto de Strange Milena, SOFAM, p. 269 e 270 @ Acervo pessoal de Alex Fernandes p. 334 Acervo pessoal de Telma de Barros Correia /
2006. Bohrer. Fotografias de Philip Gunn.
p. 202 abaixo: Foto de Carolina Mendonça. p. 272 e 273 Pinacoteca do Estado de São Paulo p. 335 e 336 Fotografias de Danielle Faccin.
p. 203 Fotos de Daniele Hustin. / Coleção Brasiliana / Fundação Estudar / p. 337 Acervo do Museu Paulista da Universidade
p. 205 Fotos de Edivaldo Carneiro. Reprodução de Sérgio Guerini. de São Paulo / Fotografia de Hélio Nobre.
p. 206 à dir.: Foto de Patricia Argolo. p. 275 © Christie’s Images Limited (“Christie´s”). p. 338 Le Brésil à l’Exposition d’Anvers,
p. 207 acima: Foto de Arlene Rocha. p. 276 Acervo do Museu Paulista da Universidade 05.08.1885.
p. 207 abaixo: Foto de C. Garmendia. de São Paulo / Reprodução de Hélio Nobre. p. 339 à esq. : Acervo pessoal Luciana Mascaro.
p. 208 acima: Foto de C. Garmendia. p. 277 esq.: Acervo do Museu Paulista da p. 339 à dir.: Pavillon du Brésil, Exposition
p. 208 abaixo: Foto de Bernard Lovens. Universidade de São Paulo / Reprodução de Bruxelles 1910.
p. 209 Foto de Didier Minne. Hélio Nobre . p. 340 “Stadsarchief Antwerpen”, Arquivo Felix:
p. 210 Acervo pessoal de Carmem Navau Torres. p. 277 à dir.: Acervo da Biblioteca do Mosteiro de Arquivo Municipal de Antuérpia, FOTO-
p. 211 e 212 Acervo do Centro de Memória do São Bento. ALBUM # 83_001.
Circo / Departamento do Patrimônio Histórico p. 279 Coleção Museu de Arte de Belém – MABE P. 341 La Technique Des Travaux, Juillet, no. 7,
/ Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. / Reprodução de Aldrin Moura Figueiredo. 11ème année, p.358.
p. 213 Fotos de Angelika Berndt, do projeto p. 280 Coleção Particular de Aldrin Moura p. 342 Foto acervo pessoal de Emeil De Kooning.
Crescer e Viver. Figueiredo, Belém / Reprodução de Aldrin p. 343 e 344 Foto Lucien Willems, Acervo VA&S,
Moura de Figueiredo. Ugent (autorizada por Emeil De Kooning).
Parte 7 p. 281 Acervo pessoal de Jef Van Grieken. p. 345 Acervo pessoal de Dominique Vanpée.
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Mathieu-André Reichert: um flautista belga na Fonseca de Paula © Sidnei Tendler. p. 349 e 350 © IPHAN-Paraty/RJ.
Corte do Rio de Janeiro. Brasília, Editora UNB, p. 290 © Inêz Oludé da Silva. p. 351 acima: Acervo B-architecten.
1990. p. 291 e p. 292 © Fundação “Collectie De p. 351 abaixo: Foto de Hilde Duerinck.
p. 222 e 223 Fotografias de Katrijn Friant. Stadshof”, Museu Guislain, Gand. p. 352 Foto de Sven Mouton.
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307 a 313 KADOC, Centre de Documentation Parte 12
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p. 238 e 239 © Babi Avelino. p. 314 Museu do Meio Ambiente / Jardim p. 366 abaixo e acima à dir.: Fotos de Régis De
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