Você está na página 1de 1

FOUCAULT, Michel. A água e a loucura in: Ditos e escritos. Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise.

MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Tradução de Vera Lúcia Avelar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. v. 1, p.
186-189.

A dualidade entre a razão e a loucura estabelece na imaginação ocidental uma relação


entre a terra firme e a água. A razão, pertencente à terra firme, ilha ou continente, ela é sólida,
maciça, real e só concede a água a sua areia. A loucura, por sua vez, sempre foi aquática e,
sendo mais preciso, oceânica, pois carrega o valor de espaço infinito e incerto, figuras
moventes e logo apagadas, deixando apenas uma espuma, também representa tempestades ou
tempos monótonos, assim como estradas sem caminho.
Para Foucault, a loucura é o exterior líquido e jorrante da rochosa razão, sendo
essencial para paisagens imaginárias relacionadas à embriaguez, modelo breve e provisório da
loucura; os vapores, loucuras ligeiras, difusas, enevoadas em via de condensação num corpo
muito quente e uma alma abrasadora; a melancolia, água negra e calma, lago fúnebre; a
demência furiosa do paroxismo sexual e de sua efusão.
Atribuindo um valor símbolo a partir de enunciados científicos ou vice-versa, a água
e a loucura tornam-se cumplices, mas ao mesmo tempo, a água é utilizada contra a loucura. A
hidroterapia da loucura, instalada no século XVII a partir da observação de Ettmüller, atribui
a cura da loucura pela violência de um aguaceiro, que, por sua vez, torna-se eficaz contra o
oceano venenoso da loucura. A chuva, advinda do céu e entendida como pura, é fresca e
detém capacidades de refrescar os espíritos agitados e as fibras retorcidas, em vez de deixar
flutuar (como o oceano), ela lava, escorre, devolvendo a verdade aos seres e, o mar, carrega
esse “mal” para outros horizontes.
À vista disso, Foucault atribui quatro funções para a água: 1) ela é dolorosa, dessa
forma, reconduz o sujeito a esse mundo da percepção atual a qual ele pretende escapar; 2) ela
humilha, colocando o sujeito diante da própria realidade desiludida; 3) ela reduz ao silêncio,
corta a palavra, esta palavra que é verborreia insensata não é apenas um signo, mas é a
loucura inteira; 4) ela castiga, assim, decretada pelo médico, sob vigilância, é aplicada e
interrompida quando o sujeito alcança a resipiscência.
Portanto, a água torna-se instrumento da confissão: o escoamento das impurezas, as
ideias inúteis, todas essas quimeras que são tão próximas das mentiras. A água, no mundo
moral do asilo, conduz a verdade nua; ela é purifica, é o batismo e a confissão ao mesmo
tempo.
“O louco, grande peixe sacodido, a quem se faz escancarar a boca, em forma de sim”
(FOUCAULT, 1999, p. 189)

Você também pode gostar