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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUCSP

Clayton Antonio Santos da Silva

A Complexa Trama da Pixar:


Cinema e Condição Humana

Doutorado em Ciências Sociais


São Paulo - SP | 2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUCSP

Clayton Antonio Santos da Silva

A Complexa Trama da Pixar: Cinema e Condição Humana

Tese apresentada à banca examinadora da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) como
exigência parcial à obtenção do título de Doutor em
Ciências Sociais, área de concentração em Antropologia,
sob a orientação do Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho.

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

SÃO PAULO - SP

2013
Caubói Woody

Banca Examinadora

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Agradecimentos

AAs pessoas que se seguem, em menor ou em maior escala, direta ou indiretamente,


em momentos e em formas variadas e distintas, contribuíram de forma decisiva para
a conclusão deste trabalho. A todos, expresso minha gratidão: Álvaro Machado, Ana
Dayse Dórea, Carlos Melo, Christianne Duarte, Eli Vila Nova, Gilson de Souza Leão (in
memorian), Eurico Lôbo, João Medeiros Lêdo Júnior, José Niraldo de Farias, Josealdo
Tonholo, Luiz André Medeiros, Manoella Neves, Marcello Bentes, Neander Telles, Pedro
Nunes, Regivan Rodrigues, Renato Miranda, Rui Palmeira, Sônia Cândido (in memorian)
e Wellington Charles.

Agradeço também às instituições Universidade Federal de Alagoas, Governo


de Alagoas, Prefeitura de Maceió, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e CDN – Cia. de Notícias.

Ao Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho, um agradecimento especial pela


compreensão e pela generosidade.
Dedicatória

EEste trabalho é dedicado, com amor onipresente, a Maria de Fátima.

Here, There And Everywhere


(Lennon/McCartney)

To lead a better life


I need my love to be here
Here, making each day of the year
Changing my life with a wave of her hand
Nobody can deny that there’s something there
There, running my hands through her hair
Both of us thinking how good it can be
Someone is speaking but she doesn’t know he’s there
I want her everywhere
and if she’s beside me I know I need never care
But to love her is to need her
Everywhere, knowing that love is to share
each one believing that love never dies
watching her eyes and hoping I’m always there
I want her everywhere
and if she’s beside me I know I need never care
But to love her is to need her
Everywhere, knowing that love is to share
each one believing that love never dies
watching her eyes and hoping I’m always there
I will be there, and everywhere
Here, there and everywhere
Clayton Antonio Santos da Silva
A Complexa Trama da Pixar: Cinema e Condição Humana

Resumo
EEsta tese de doutorado, intitulada A Complexa Trama da Pixar: Cinema e Condição
Humana, procura fazer reflexões sobre os filmes produzidos pelo Pixar Animation
Studios no período situado entre 1995 e 2011. Ao todo são analisados 12 filmes, a
saber: Toy Story (Toy Story, 1995); Vida de Inseto (A Bug’s Life, 1998); Toy Story 2
(Toy Story 2, 1999); Monstros S.A (Monsters, Inc., 2001); Procurando Nemo (Finding
Nemo, 2003); Os Incríveis (The Incredibles, 2004); Carros (Cars, 2006); Ratatouille
(Ratatouille, 2007); Wall-E (Wall-E, 2008); Up – Altas Aventuras (Up, 2009); Toy Story
3 (Toy Story 3, 2010) e Carros 2 (Cars 2, 2011). As análises e as reflexões feitas têm
como base e guia de orientação teórica e metodológica o Pensamento Complexo, tal
qual como formulado por Edgar Morin. O objetivo do estudo é ampliar a compreensão
sobre estes filmes, que começaram a ser produzidos em longa escala a partir de 1995,
apresentando-os como veículos de narrativas que ajudam a construir o imaginário
do homem contemporâneo, levando-se em consideração o potencial de onirismo,
duplicação, projeção-identificação e comércio mental que o cinema possui. As análises
e reflexões contidas nesta tese são feitas com base em pensadores de diversos campos
do conhecimento, em uma perspectiva transdisciplinar. Após uma introdução intitulada
Onirismos, a tese se desdobra em três blocos analíticos: em Bravuras, discorremos
sobre os atos bravos ou heroicos de Toy Story, Vida de Inseto, Os Incríveis e Carros.
Em Saberes, dissertaremos sobre visões do conhecimento, memória ou da tecnociência
de Toy Story 2, Monstros S.A., Wall-E e Carros 2. Já em Paroxismos abordamos os
momentos de ápice existentes em filmes como Procurando Nemo, Up – Altas Aventuras,
Toy Story 3 e Ratatouille. Por fim, são apresentadas considerações finais e, como anexo,
ficha técnica dos filmes aqui estudados.

Palavras chave: Pixar, cinema, animação, complexidade, pensamento complexo,


cinema eletrônico, Ciências Sociais.
Clayton Antonio Santos da Silva
The Complex Plot of Pixar: Cinema and the Human Condition

Abstract

TThe present doctoral thesis, entitled The Complex Plot of Pixar: Cinema and the
Human Condition, aims to make reflections on the films produced by Pixar Animation
Studios in the period between 1995 and 2011. In total, 12 films are analyzed: Toy Story,
1995; A Bug’s Life, 1998; Toy Story 2, 1999; Monsters, Inc., 2001; Finding Nemo, 2003;
The Incredibles, 2004; Cars, 2006; Ratatouille, 2007; Wall-E, 2008; Up, 2009; Toy Story
3, 2010 and Cars 2, 2011. The basis and methodological and theoretical orientation
guide of the analyses and reflections is the Complex Thought, as formulated by Edgar
Morin. The study aims to expand the understanding on these films, which began to
be produced in large scale from 1995, introducing them as vehicles of narratives that
help in building the imaginary of the contemporary man, taking into consideration the
potential of onirism, duplication, projection-identification and mental trade that the
cinema presents. The analyses and reflections contained in this thesis are based on
thinkers from several fields of knowledge in a transdisciplinary perspective. After an
introduction entitled Onirisms, the thesis unfolds in three analytical blocks: in Bravery,
we discourse about the brave or heroic acts in Toy Story, A Bug’s Life, The Incredibles
and Cars. In Knowledge, we will discourse about the visions of knowledge, memory
or technoscience of Toy Story 2, Monsters, Inc., Wall-E and Cars 2. In Paroxysms, we
approach the existing apex moments in films such as Finding Nemo, Up, Toy Story
3 and Ratatouille. Finally, we present the final considerations and, as an annex, the
production credits of the films studied herein.

Keywords: pixar, cinema, animation, complexity, complex thought, contemporary,


electronic cinema, social sciences.
Clayton Antonio Santos da Silva
La Trame Complexe de Pixar: Cinéma et Condition Humaine

Résumé

CCette thèse, intitulée La Trame Complexe de Pixar: Cinéma et Condition


Humaine, développe une réflexion sur les films produits par Pixar Animation Studios
au cours de la période 1995 - 2011. On y analyse un ensemble de 12 films, à savoir :
Toy Story (Toy Story, 1995); 1001 pattes (A Bug’s Life, 1998); Toy Story 2 (Toy Story
2, 1999); Monstres & Cie (Monsters, Inc., 2001); Le monde de Nemo (Finding Nemo,
2003); The Incredibles (The Incredibles, 2004); Cars : Au pays des 4 roues (Cars, 2006);
Ratatouille (Ratatouille, 2007); Wall-E (Wall-E, 2008); Là-haut (Up, 2009); Toy Story
3 (Toy Story 3, 2010) e Cars 2 (Cars 2, 2011). Les analyses et les réflexions ont pour
fondement et guide d’orientation théorique et méthodologique la Pensée Complexe, telle
que formulée par Edgar Morin. L’objectif de cette étude est d’élargir la compréhension
de ces films qui ont commencé à être produits à grande échelle à partir de 1995, en
les présentant en tant que porteurs d’histoires qui aident à construire l’imaginaire de
l’homme contemporain, tout en considérant le potentiel d’onirisme, de duplicité, de
projection-identification et de commerce mental que possède le cinéma. Ces réflexions
sont réalisées dans une perspective transdisciplinaire, en s’appuyant sur des penseurs
dans les plus divers champs de connaissance. Après une introduction intitulée Onirismos,
cette étude se développe en trois blocs d’analyses: Bravuras, qui discourt sur les actes
de bravoure héroïque de Toy Story, A Bug’s Life, The Incredibles et Cars; Saberes, où
l’on discute sur les visions de la connaissance, mémoire ou de la techno-science de Toy
Story 2, Monsters S.A., Wall E et Cars 2; enfin, en Paroxismos, on aborde les moments
d’intensité existant dans des films tels que Finding Nemo, Up, Toy Story 3 et Ratatouille.
Pour conclure, on présente un ensemble de considérations finales, les fiches techniques
des films étudiés se trouvant en pièces annexes.

Mots clés: Pixar, cinéma, animation, complexité, pensée complexe, cinéma


électronique, sciences sociales.
Sumário

11 Onirismos
Eletrônico e Digital 12
Pixar Anination Studios 18
Complexidade e Roteiro 25

29 Bravuras
Toy Story 32
Quem Somos Nós 34

Vida de Inseto 38
A Arte da Guerra 40

Os Incríveis 43
Nós Poderemos Ser Heróis, Apenas Por Um Dia 45

Carros 49
Por Isso eu Corro Demais 51

57 Saberes
Toy Story 2 60
Mnemosine 62

Monstros S. A. 66
Cegueiras do Conhecimento 68

Wall-E 72
Lixo Não Extraordinário 74

Carros 2 78
Pobre Verde 81

87 Paroxismos
Procurando Nemo 90
Mares de Solidariedade 92

Ratatouille 96
Ode aos Ratos 98

Up-Altas Aventuras 102


Amores Serão Sempre Amáveis 104

Toy Story 3 108


Amigo Estou Aqui 111

Palavras Finais 116


Bibliografia 118
Anexos: Fichas Técnicas dos Filmes 125
A s dificuldades quanto às tentativas de se traçar uma rota no desenvolvimento
inicial do cinema são apontadas por Machado (1997) como sempre presentes. Isto
porque, defende o autor, os primórdios do cinema não estão unicamente localizados
nos experimentos e nas audiências públicas dos irmãos Lumière.

Quanto mais os historiadores se afundam na história do cinema,


na tentativa de desenterrar o primeiro ancestral, mais eles são
remetidos para trás, até os mitos e ritos dos primórdios. Qualquer
marco cronológico que possam eleger como inaugural será sempre
arbitrário, pois o desejo e a procura do cinema são tão velhos
quanto a civilização de que somos filhos (MACHADO, 1997, p. 14).

Assim, quando do aparecimento do cinematógrafo no final do século XIX, o


cinema já possuía uma longa jornada percorrida, principalmente se considerarmos todo
o engenho empreendido pelo homem a fim de projetar imagens e, deste modo, fazer
desta tecnologia um veículo de expressão.

Neste contexto, as
transformações provocadas pela
chamada Industrial Cultural
no decorrer do século XX
agregaram novos elementos ao
cinematógrafo, diversificando
sua potencialidade no processo
de construção do imaginário.
Chegamos ao século XXI com
o cenário de uma cultura na
qual a imagem, em especial a
proveniente do audiovisual, é Poster do cinematógrafo Lumiére.
Fonte: www.festival-cannes.fr
elemento preponderante em nossa vida cotidiana.

Uma primeira inferência, por exemplo, pode creditar a Georges Méliès o rótulo
de um dos cineastas inaugurais na estratégia da desconstrução do cânone do cinema
enquanto ilusão da realidade, enquanto reprodução da imagem real.

De fato, Méliès foi um incompreendido em seu tempo. A América, nos primórdios


da linguagem fotográfica, fez de D. W. Griffith um dos pais fundadores da arte do cinema
e o mundo concedeu aos irmãos Lumière a glória inicial da sétima arte. O ilusionismo
inicial e fantástico de Méliès, reduzido e mordaz, sucumbiu perante a imagem especular,
mimética, real narrativa.

De seu cinema feérico, questionava-se o que seriam imagens como as daquela


expedição à lua de Le voyage dans la lune (1902). E que astro lunar sarcástico era aquele
a ser visitado pelos exploradores? E mais: quem eram aqueles alienígenas e aqueles
expedicionários fanfarrões? O que aquelas trucagens diziam e, ao dizerem, sugeriam pensar?

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Fotogramas de Méliès. Fonte: www.festival-cannes.fr

Pioneirismos como os de Méliès são fatos, porém é necessário ressaltar que o


seu onirismo no cinema já era, de certo modo, presente em face de outros meios de
projeção e ilusionismo existentes na Europa, mesmo e já na era do pré-cinema. Meios
estes que, inclusive, já desvirtuavam o império do ator e da representação unicamente
verossímil se empreendida por seres humanos por meio da projeção de suas próprias
imagens e semelhanças.
Na verdade, esse era exatamente o cinema que estava no horizonte de
mágicos, videntes, místicos e charlatães, que durante todo o século XIX
fascinaram multidões em estranhas salas escuras conhecidas por nomes
exóticos como Phantasmagoria, Lampascope, Panorama, Betamiorama,
Cyclorama, Cosmorama, Giorama, Pleorama, Kineorama, Kalorama,
Poccilorama, Neorama, Eidophusikon, Nausorama, Physiorama,
Typorama, Udorama, Uranorama, Octorama, Diaphanorama e a
Diorama de Louis Lumiere, nas quais se praticavam projeções de
sombras chinesas, transparências e até mesmo fotografias, fossem elas
animadas ou não. Certamente, o que atraía essas massas às salas escuras
não era qualquer promessa de conhecimento, mas a possibilidade de
realizar nelas alguma espécie de regressão, de reconciliar-se com os
fantasmas interiores e de colocar em operação a máquina do imaginário
(MACHADO, 1997, p. 14).

13
Ou seja, mesmo quando
tentara nos seus tempos iniciais
em fins do século XIX se impor
como mimesis da realidade (o
trem que vaza a tela ao sair da
estação e assusta a plateia), o
cinema já carregava por inerente
a si o código genético do sonho,
do devaneio, do ilusionismo... do
onirismo.

Mais de século se
passou e neste ínterim teorias,
semiológicas e semióticas, além de
reflexões sobre o cinematógrafo
se sucederam. Movimentos e
opulência, independência e
mercado, blockbusters, Nouvelle
Vague e Cinema Novo. E o
desenvolvimento da já citada
Indústria Cultural possibilitou ao
cinema a expansão da experiência
onírica indissociável desta sétima
arte. Capa do livro O Cinema ou O Homem Imaginário. Fonte: www.relogiodagua.pt

De D. W. Griffith a Charlie Chaplin, nos tempos áureos de sua formação enquanto


indústria, o cinema se consolidou enquanto portador da narrativa ficcional, sempre nos
incitando o sonho. Nascido como entretenimento de classes baixas e sem pretensão
ao star system, o cinema agregou a si elementos da dramaturgia, migrou para a sala
escura, construiu uma sintaxe própria e adaptada ao seu meio de produção e virou
entretenimento de grandes audiências.

Com fases de incremento no período antecessor e em especial sucessor da II


Grande Guerra na Europa e nos Estados Unidos, desembocando na introdução das
tecnologias das imagens primeiro eletrônicas a partir da década de 1960, depois digitais
com da onipresença da computação e da informática subsequentemente, o cinema
incorporou novos elementos em seu modo de fazer.

E é no pós II Guerra Mundial, como alerta Morin (1997), que a Indústria Cultural
fez presente de modo intenso sua ação junto no cinema, ampliando o processo de
projeção-identificação de espectadores com as imagens mitológicas emanadas pela
chamada cultura de massa própria do século XX. Com a produção em série de filmes,
a afirmação do happy end enquanto arquétipo e a eleição de homens e mulheres
olimpianos, o cinema se enquadrou nas expectativas do mercado e do consumo.

14
Cinema que, ainda para Morin (1970), tal qual o avião, expoente da técnica,
também é expoente da técnica elevando-se à projeção estelar.

“O filme é que ascende, cada vez mais alto, a um céu de sonho, ao


infinito das estrelas – das stars –, a esse céu banhado pela música,
povoado por adoráveis e demoníacas presenças, que assim se escapa
daquele terra-a-terra do qual, segundo todas as aparências, deveria
ser o servo e o espelho”. (Morin, 1970, p.14)

Este cinema, cultura de massa como atenta o autor, evoca relações profundas e
referenciais quanto a nossa condição humana. Deparar-se com a(s) história(s) de um
filme significa nos lançar ao território do onírico capaz de revelar nossa natureza íntima
e essencial.

Pois que a imagem projetada (e a história contada) na tela nos remete ao


duplo amplificando nossa capacidade cognitiva. E “o duplo é efetivamente universal
na humanidade primitiva. Talvez seja mesmo o único grande mito humano universal”
(Morin, 1970, p. 30).

“O duplo é, efectivamente, essa imagem fundamental do homem,


imagem anterior à íntima consciência de si próprio, imagem
reconhecida no reflexo ou na sombra, projectada no sonho, na
alucinação, assim como na representação pintada ou esculpida,
imagem fetichizada e magnificada nas crenças duma outra vida, nos
cultos e nas religiões” (Morin, 1970, p.30).

Morin nos alerta para a idéia de que o filme e a experiência fílmica nos duplicam.
O filme e a experiência fazem com que nossa imagem e nossa natureza humana, por
meio da projeção fotogênica do cinema tradicional e ou proporcionada pela computer
graphics nos filmes inteiramente produzidos por computador, contraponham-se e
energizem nossas vivências mais grandiloquentes, ou mais banais, mais memoráveis,
ou mais cotidianas.

Ora, o cinema, por meio de seu


sistema de projeção-duplicação-identificação-
evocação da imagem, liberta a nós e a nossa
psique, potencializando nossas imagens
mentais e irradiando nossas vidas por
meio da constituição de nosso imaginário.
Assim, ao assistirmos a um filme, confluímos nossa subjetividade pessoal, os nossos
mais profundos anseios, magias, devaneios para um processo emancipador de nossa
existência.

15
Cinema que, ainda de acordo com Morin (1970), leva o homem à prática de um
comércio mental para com o mundo, inseparável do rito que nos leva à completude
enquanto sapiens demens. Compreender que em sua gênese o filme nos conduz a
esta prática onírica, apresentando-nos sua magia e nos levando ao aflorar de nosso
imaginário, é compreender a sua importância enquanto manifestação da consciência
humana.

Tudo a partir da oferta de enredos (polifônicos) visíveis na tela, tais como


proposto por Morin, cineasta-autor. Por isso o cinema, arte oriunda de um fenômeno
pilar da modernidade – a reprodutibilidade técnica tal qual a pensou Benjamin (2010)
– é tão impactante na configuração da condição humana contemporânea.

O cinema, ao transgredir o tempo e o espaço, ao potencializar feitiço, fantasia,


alucinação, convoca-nos à participação e nos restitui nossa face demencial e lúdica,
necessária e inseparável, todavia negligenciada em especial pela ciência em sua busca
de racionalidade.

Daí ser ele, o cinema, não só objeto como elemento de uma antropologia
capaz de compreender o homem contemporâneo, seu espírito e suas cosmogonias. Tal
compreensão se dá mediante o aporte destes elementos, os filmes, fundamentais na
cultura de massa de nosso século XX e XXI.

Filmes que ao nos remetermos a um onirismo nos ajudam a nos libertarmos e a


transgredirmos.

O cinema desvenda e desenvolve as estruturas intelectuais da


participação, as estruturas participativas da inteligência, e assim,
tal como a teoria da magia e da afectividade, aclara também a
“teoria da formação das idéias e a do seu desenvolvimento”. O seu
movimento natural e fundamental não é mais que o movimento
natural e fundamental do espírito humano na sua origem, ou seja,
na sua totalidade primeira. Por toda a sua participação desembocar
ao mesmo tempo numa subjectividade e numa objectividade, numa
racionalidade e uma afectividade, é que uma dialética circular
conduz o filme como um sistema objectivo-subjectivo, um sistema
racional-afectivo (Morin, 1970).

O cinema é a zona obscura antropocósmica que fornece pistas para


a decifração dos enigmas da cultura e para busca de uma antologia
do sujeito, cravadas na dualidade não-antagônica do sapiens e do
demens, do ego e do super-ego, do animus e da anima, do coração e
do espírito, da razão e da paixão. (Carvalho, 2003, p.93)

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Eletrônico e Digital

Neste mais que centenário trajeto da indústria do filme, inúmeros foram os


desafios enfrentados desde a inauguração do cinematógrafo e desde os primórdios do
pré-cinema. A chamada sétima arte viveu até a primeira década do século XX sem a
afirmação de uma narrativa linear e ficcional e voltado ao entretenimento das classes
menos favorecidas, como aponta Machado (1997).

Nas primeiras décadas dos anos 1900, ainda, é que o cinema migra dos espaços
menos nobres dos vaudevilles para os primeiros nickelodeons. O cinema ganha som e
estrutura mais complexa de narração de histórias. Nomes como D. W. Griffith e Serguei
Eisenstein tornam-se, entre outros, pais fundadores da sintaxe do filme, influenciando
de maneira inaugural os debates
sobre montagem e dramaticidade
da narrativa fílmica. O cinema se
consolida enquanto manifestação
cultural com forte presença
no território europeu e norte-
americano, expandindo-se mundo
afora.

Após a II Guerra Mundial,


a arte de fazer filmes torna-
se onipresente cultural e
economicamente, catalisando
movimentos e expressões da cultura
global. Neste processo de construção Poster de Star Wars. Fonte: www.starwars.com
coletiva, o desenvolvimento
tecnológico teve um papel preponderante, conduzindo o cinema às possibilidades do
atual: a produção de filmes 100% digitalizados e 100% digitais.

Nunes (1996), ao refletir sobre aquilo que denominou relações estéticas no cinema
eletrônico, aponta este processo pelo viés do que ele chama de viragens sígnicas, no
qual a técnica e, sobretudo, a tecnologia associaram-se ao gênio criativo de produtores,
atores e roteiristas rumo à mutação do cinema do fotoquímico para o cinema eletrônico.

A partir dos anos de 1960 e 1970 a eletrônica analógica começa a se fazer


presente no universo cinematográfico, com movimentos de grandes estúdios, em
especial, realizando investimentos na agregação da eletrônica ao suporte fotoquímico
da fotografia, base do cinema desde sua criação. À imagem gravada na película passam
a ser acrescidos efeitos proporcionados pela eletrônica, multiplicados com o aporte do
digitalismo e da computação. O cinema transforma-se pouco a pouco em eletrônico e,
pouco a pouco, em digital.
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Essa nova forma de se fazer cinema, efetuando uma espécie
de trânsito em mão dupla, situa-se em um eixo móvel de
passagens que opera na esfera do universo fotoquímico e
que passa do analógico ao digital ou vice-versa (NUNES,
1996, 203).

Neste contexto, o cinema agrega importantes elementos tecnológicos, unindo


a imagem registrada na película aos efeitos realizados em pós-produção, eletrônica
e digitalmente. Na década de 1970 temos os filmes da saga Star Wars (1977), com
o cineasta George Lucas inovando na inserção da tecnologia no cinema; nas décadas
seguintes, filmes como Tron (1982), de Steven Lisberger; O Exterminador do Futuro
2 (1991), de James Cameron; e Jurassik Park (1993), de Steven Spielberg, com seus
produtores materializando e definindo a entrada do computador no panorama da
produção cinematográfica.

Mas é a partir da década de 1990 que o cinema, enfim, será por completo
digitalizado. E muito neste campo se deve ao pioneirismo de um grupo de cientistas da
computação e animadores que se aglutinaram nos Estados Unidos, desenvolvendo há
mais de 40 anos um conjunto de tecnologias que possibilitou a um cinema, chamado
comercialmente de cinema de animação, entre outros nomes, ser capaz de situar um
novo tempo na indústria cinematográfica mundial.

E a Pixar Animation Studios é o epicentro criativo e empresarial deste movimento.

Pixar Animation Studios

U m movimento novo, inaugurado na década de 1990, ergue-se mediante a produção


em série de filmes, todos longas-metragens, inteiramente computadorizados. O filme,
um centenário após seu nascimento, vê a ele acrescidos elementos da computação, e
um movimento que culmina com o descarte da película fílmica-fotográfica original,
substituída por pixels de computador.

O nome permanece: filme, ou filme


de animação, como popularmente ele
também é chamado. Mas o seu suporte
de captação, produção e armazenamento
se transmutam. Saem câmeras, lentes,
objetivas, bitolas e películas para entrarem
em cena computadores, softwares e talento
de programadores, designers, desenhistas.
Sede da Pixar, Emeryville, Califórnia. Fonte: www.pixar.com Os cenários e os atores de carne e osso são

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substituídos por animações computadorizadas. No caso dos atores, as contribuições de
interpretação ficam no campo da dublagem, sendo a corporeidade física um elemento
descartado, de modo único, na indústria do filme.

Como outros inovadores da história


do filme e como Georges Méliès no final do
século XIX e início do século XX, os artistas
da computação da Pixar Animation Studios
introduziram a partir dos anos de 1990
um novo tempo na indústria do cinema,
Ed Catmull, Steve Jobs e John Lasseter. Fonte: www.google.com
possibilitando a criação de uma nova forma
de se produzir longa metragens. Pioneiro neste processo, o estúdio de animação digital
lançou em 1995 aquele que se converteu no primeiro longa mundialmente reconhecido
por ser inteiramente feito por computação gráfica: Toy Story.

No filme, as amarguras e aventuras do cowboy Woody, brinquedo preterido após


a chegada do astronauta Buzz Lightyear à casa do menino Andy. Ao infinito e além,
é o lema de Lightyear. E ao infinito é além é a direção em que estes filmes parecem
nos levar, explorando uma gama de temáticas que, há muito, afastam-no do rótulo
reducionista de desenho animado, de simples filme infantil.

Até mesmo porque estes filmes não são unicamente assistidos por crianças. O
público adulto tem reiterado interesse nestas produções, sendo também um alvo mirado
pelas indústrias cinematográficas quando de suas realizações.

Integrante do conglomerado da Walt Disney Company, a Pixar Animation


Studios, com sede na California, Estados Unidos, teve suas origens alicerçadas em 1979,
como integrante da Lucasfilms, empresa fundada por George Lucas, mago dos efeitos
especiais de Star Wars (1977) e da saga de Indiana Jones (1981).

Entretanto, falar da Pixar significa falar do desenvolvimento desta companhia


por meio de uma trinca de empreendedores. O primeiro destes é, talvez, um dos menos
conhecidos do público consumidor destes filmes e seu nome é Ed Catmull.

Graduado em Física e Informática em 1969,


Catmull tinha o sonho de infância de ser animador da
Disney. Sem nenhum talento para o desenho, fez dos
computadores, nascentes à época, o passaporte para
entrar no mundo da animação. Em 1972, em um curso
de pós-graduação, fez algo inteiramente inovador à
época: um filme de animação de quase 1 minuto, de
uma mão que se abria e se fechava, algo que para aquele
tempo era surpreendente.

Naqueles anos, Catmull colaborou com a


Disney em projetos de uma montanha russa para a
Ed Catmull. Fonte: www.utah.edu

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Walt Disney World, já que não havia
interesse da empresa em animações
computadorizadas. Neste meio tempo,
Catmull desenvolvia sua tese de
doutorado, criando ferramentas até
então inigualáveis na busca para que
o computador realizasse animações
de objetos. E os estudos de Catmull o
fizeram, em 1974, assumir a direção do
Computers Graphics Lab do New York
Institute of Technology.
John Lasseter. Fonte: www.forbes.com

Em 1979 Ed Catmull foi convidado por George Lucas para comandar a Lucasfilm´s
Computer Division, grupo formando por cientistas da computação encarregados do
desenvolvimento de soluções para agregar a computação à indústria fílmica. Entre as
metas de George Lucas, além de efeitos especiais, estava a criação de métodos de edição
não lineares de imagens e de áudios na indústria de cinema.

Em 1983, um outro personagem da história da Pixar Animation Studios é


incorporado à equipe da Lucasfilm´s Computer Division. E este nome é John Lasseter.
Nascido em 1957 em Hollywod, na Califórnia, Lasseter sempre fora apaixonado
por desenhos animados e fora estimulado pela família a seguir em frente. Sua mãe,
professora de Artes em escolas do ensino médio, incentivava-o a buscar seu sonho e em
1975 o jovem foi estudar em uma faculdade de Artes concebida por Walt Disney.

Ele começou a enviar cartas e desenhos para estúdios e recebia


bilhetinhos de incentivos. Em seu último ano de escola, Lasseter
recebeu uma carta da California Institute os the Arts (ou CalArts –
como era conhecida) convidando-o a se inscrever no novo programa
de animação de personagens. A oportunidade era sob medida para ele,
que passou o verão de 1975 trabalhando como assistente do diretor
de programa, Jack Hannah, auxiliando nas atividades de fotocópia e
tarefas do gênero, e depois começou a estudar no outono. A CalArts
era fruto da imaginação de Walt Disney; ele iniciara o planejamento
da instituição no final dos anos 1950, e tomou providências generosas
nesse sentido, em seu testamento. Walt e seu irmão Roy formaram a
faculdade em 1961, por meio de uma fusão de suas instituições em
crise em Los Angeles: a Los Angeles Conservatory of Music e Chouinard
As Aventuras de André e Wally B.
Art Institute (Price, 2010, p. 37).
Fonte: www.pixar.com

No final da década de 1970,


Lasseter tornou-se animador dos
estúdios Disney, embora a empresa
não vivesse mais seu período áureo.
E saído da Disney, foi na Lucasfilm´s
que Lasseter passou a integrar a
equipe que desenvolveu o protótipo

20
e primeiro dos filmes inteiramente computadorizados: o curta-metragem As Aventuras de
André e Wally B (1984).

Com 2 minutos de duração, o filme apresentava grandes inovações para o seu


tempo. Já produzido em primórdios de 3D, utilizando elementos geométricos como
cones e esferas na criação dos personagens, o filme conta a historieta de um boneco
medroso e astuto chamado André sendo acordado e perseguido por uma abelha chamada
Wally B. As Aventuras de André e Wally B,
da Lucasfilm´s, é o considerado o primeiro
filme do posterior Pixar Animation Studios.

Em 1986, um outro personagem é


unido à história da companhia, fundando-a e
consolidando o caminho do cinema digital. E
este é Steve Jobs, hoje mundialmente famoso
pelos iMacs, iPods, iPhones e iPads da sua
empresa, a Apple Computers. Jobs tornar-
se-ia um dos grandes ícones da tecnologia
dos séculos XX e XXI.
Steve Jobs. Fonte: www.google.com

E foi em 1986 que Jobs comprou a Divisão de Computação Gráfica de George Lucas
por US$ 10 milhões, batizando-a de Pixar. Entre os principais sócios no negócio, dois
já agora ex-funcionários de George Lucas: Ed Catmull e John Lasseter. Estava formado
o trio que faria da companhia o maior produtor de animações computadorizadas do
mundo.

Nascido em San Francisco, em 1955, Steven Paul Jobs era filho adotivo, de pais
adotivos que sequer haviam concluído o nível superior. O próprio Jobs jamais concluiria
o ensino superior. Apaixonado por eletrônica, conheceu ainda estudante um outro jovem
aficionado pela assunto, de nome Steve Wozniak. Juntos, trabalharam em engenhocas
no campo da telefonia e da nascente computação, fundando em 1976, junto a um outro
amigo, a Apple Computer. Entretanto, mesmo fundador, anos depois Jobs foi afastado
da empresa devido a divergências internas. Controverso, até hoje sua história desperta
admiração e polêmica.

Embora muitos profissionais na Apple admirassem a visão e o


perfeccionismo de Jobs, ele tinha um lado detestável que contrariava
os empregados de todos os níveis. Jef Raskin, criador do projeto
Macintosh, fez uma lista de 11 itens, motivos pelos quais era
impossível trabalhar com Jobs e, mais tarde, pediu demissão da
empresa. (Item 3: “Não dá crédito quando deveria”. Item 4: “Muitas
vezes reage destilando críticas pessoais contra outra pessoa...”
Item 10: “Geralmente, irresponsável e egoísta.”). Jobs costumava
estacionar sua Mercedes em uma vaga reservada somente para
deficientes físicos, na frente do prédio da Macintosh porque,
segundo comentários na época, se ele estacionasse em uma das
vagas normais, nos fundos ou as laterais, certamente alguém poderia
aparecer furtivamente e trancar seu carro (Price, 2010, p. 57).

21
Em 1986 a novata Pixar Animation Studios, então com
44 empregados, finaliza mais um projeto: o filme Luxo Jr.
Luxo Jr. Introduz na iconografia da empresa a imagem da
luminária animada, presente até hoje na abertura de seus
filmes e sua marca icônica referencial. O curta de 2 minutos
traz um pai e seu filho, ambos luminárias. O filho luminária
brinca com uma bola pequena, que fura, murcha e o deixa
triste. Até que uma nova bola, muito maior que a primeira,
aparece para a felicidade da criança e a satisfação do pai
luminária. Até hoje o personagem objeto é o símbolo da
companhia.

Poster de Luxo Jr..


Fonte: www.pixar.com O filme viria dos experimentos de Lasseter ao modelar sua luminária
Luxo. Ele teve a inspiração quando, certo dia, Tom Porter trouxe seu
filhinho para o trabalho, e Lasseter, ao brincar com a criança, ficou
fascinado com seu tamanho físico. A cabeça do bebê era enorme
em relação ao restante do corpo – percebeu Lasseter. Aquilo parecia
muito engraçado para Lasseter e ele começou a se perguntar como
seria uma jovem luminária. Alterou as dimensões de todas as partes
de seu modelo Luxo – tudo, exceto o bulbo, uma vez que as lâmpadas
são fornecidas por uma loja e não crescem – ponderou ele – e deu
vida a um segundo personagem, Luxo Jr. (Price, 2010, p.78).

Os filmetes da Pixar intitulados Red´s Dream (1987), Tin Toy (1988) e Knick
Knack (1989) também fazem grande sucesso, sendo apresentados em eventos da
SIGGRAPH (Special Interest Group on Graphics and Interactive Techniques). Em
1989 a Pixar também se consolida como desenvolvedora de aplicações próprias para
a produção de animações computadorizadas, lançando o software RenderMan®. A
trajetória da empresa culmina na assinatura em 1991 de um acordo com a Disney, para
que o grande estúdio financie a produção
e distribuição de filmes de animação feitos
exclusivamente por computador.

Entretanto, sem um mercado de


cinema, a Pixar se devotava à produção
de softwares, comerciais e parcerias com
produções do audiovisual. A situação
da empresa não era boa e a parceria era
ainda desvantajosa para o iniciante estúdio
digital. Mesmo assim, Toy Story já estava a
caminho.

Poster de Toy Story.


Fonte: www.pixar.com

22
A Disney fora intransigente nas negociações. Os termos financeiros
do contrato de 13 páginas eram tão descabidos que, a menos que
o filme fosse um sucesso no nível de “A Pequena Sereia”, os ganhos
da Pixar com o filme seriam insignificantes. A Disney teria o direito
“exclusivamente a seu critério” de “abandonar o filme a qualquer
momento”, mesmo após o início dos trabalhos de produção. Nesse
caso, a Pixar receberia por seu trabalho apenas os custos incorridos
em uma “taxa de desistência” de US$ 350 mil. Embora o contrato
fosse explicitamente um acordo de três filmes, o segundo e o terceiro
seriam escolhidos pela Disney (Price, 2010, p. 108).

Todavia, se pairava desconfiança por parte da


Disney quanto a Pixar, os números alcançados pelo
primeiro projeto da parceria contrariavam quaisquer
previsões pessimistas. Toy Story lançado em 1995,
primeiro longa-metragem feito inteiramente por
computador pelas companhias, lucrou US$ 192
milhões somente no mercado doméstico norte-
americano e outros US$ 362 milhões ao redor do
mundo. O filme foi agraciado com 3 indicações
ao Oscar nas categorias Melhor Trilha Sonora em
Comédia, Melhor Roteiro Original e Melhor Canção,
recebendo também 2 indicações ao Globo de Ouro
como Melhor Filme em Comédia e Melhor Canção.
Poster de Valiant.
Fonte: www.disney.com

No final de 1993, a Disney ordenou à Pixar que encerrasse a


produção do filme dirigido por Lasseter, “Toy Story”, devido a
problemas no roteiro – deixando a diretoria e a equipe da Pixar sem
saber se um dia existiria um longa da Pixar. Muitos em Hollywood
tinham dúvidas se haveria público para um longa-metragem de
animação feita em computador. Havia a suspeita de que a animação
por computador seria uma novidade insossa e sem futuro. Contudo,
não demorou muito para a Pixar abandonar definitivamente o papel
de pedinte. Uma série de longas de estrondoso sucesso comercial,
a começar com o lançamento em 1995 de “Toy Story” e também
de “Vida de Inseto”, “Toy Story 2”, “Monstros S.A.”, “Procurando
Nemo” e “Os Incríveis”, transformou a Pixar no maior estúdio de
animação do mundo (Price, 2010, p. 2).

Hoje, a Pixar é líder no segmento de filmes de animação computadorizada,


arrebatando legiões de espectadores por todo o mundo. Seus lançamentos são envoltos
de grandes e vultosas estratégias de marketing, com licenciamento de produtos como
roupas, brinquedos e jogos para computador, lançamento de kits para entretenimento
doméstico (boxes de DVDs, por exemplo) e seriados com produção de médias e
curtas metragens voltados para a televisão, inspirados nas produções lançadas para,
originalmente, o espaço do cinema.
23
A partir do marco que foi Toy Story vários
conglomerados e produtores norte-americanos,
europeus, asiáticos e até brasileiros (no Brasil há o
filme Cassiopéia (1996), que disputa com Toy Story o
lugar de primeiro longa metragem do gênero), grandes
ou médios, disputam o mercado de animações, todos
com produções instigantes.

Por exemplo, de uma co-produção de estúdios


de Hong Kong, Japão e Estados Unidos surge Astroboy
(2009), filme revival do desenho animado inspirado
no mangá de Osamu Tezuka. Um pai vive a dor do
filho morto e cria um menino robô, substituto da
criança falecida. Corpo pós-humano com dilemas
Poster de Astro Boy. Fonte: www.imagi.com.hk existenciais em um mundo em degeneração ambiental
quase irreversível. Astroboy (2007) surge.

Ou Valiant (2005), filme que reconstrói episódio da Segunda Guerra Mundial


sendo produzido por estúdios norte-americanos e ingleses, e mais de 50 anos depois do
grande conflito ainda se faz propositalmente delineador de um tom pejorativo e caricato
quanto à imagem germânica. Imagem descrita na história como algoz e presunçosa
frente aos vizinhos europeus.

Ou ainda um irreverente, agora de um grande estúdio: Madagascar (2005),


do DreamWorks. Animais do zoológico do Central Park, em plena Manhattan, vivem
humanizados e com hábitos nova-iorquinos, antissépticos, xenófobos e de uma
arrogância ferina travestida
de humor. Mas, uma viagem
inesperada levará Alex, o Leão
rei dos animais, e seus amigos
de zoo de volta a seus habitats
na África, lançando-os a seus
instintos mais primitivos, por
anos sufocados pelos modos
de fuga, ou sublimação, do
animalesco.

E muitos outros: Shrek


(2001), Os Croods (2013), Poster de Madagascar. Fonte: www.dreamworksanimation.com

FormiguinhaZ (1998), Meu


Malvado Favorito (2010), Espanta Tubarões (2004), Os Sem Floresta (2006), Dinossauro
(2000), Kung Fu Panda (2008), Enrolados (2010), O Gato de Botas (2011), A Era do
Gelo (2001), Megamente (2010), Rio (2011), Bee Movie ((2007), Hotel Transilvânia
(2012), Como Treinar seu Dragão (2010)...

24
A lista é extensa e em muito extrapola tais títulos, comprovando o empenho da indústria
do filme em avançar neste norte. Mais ainda, mostrando o infindável de possibilidades abertas
à imaginação por este vasto conjunto de produções. Definitivamente, tais filmes são realidades
no atual cenário da produção cinematográfica. E como mostra deste universo, os selecionados
para este estudo foram os produzidos pela fonte do primogênito em sua categoria: a Pixar
Animation Studios.

Doze são estes exemplares, conjunto fiel das obras produzidas pela Pixar entre 1995
e 2012, período no qual se concentra este trabalho: Toy Story (1995); Vida de Inseto (1998);
Toy Story 2 (1999); Monstros S.A (2001); Procurando Nemo (2003); Os Incríveis (2004);
Carros (2006); Ratatouille (2007); Wall-E (2008); Up (2009); Toy Story 3 (2010) e Carros 2
(2011).

O porquê desta seleção reside no fato não somente de a Pixar ser a maior no gênero, mas
também pelo fato de suas produções representarem um conjunto volumoso e significativo neste
campo da cinematografia mundial. Estabelecer ramos e conexões com outros conhecimentos
e levantar a hipótese destes filmes como operadores cognitivos de nosso imaginário é o que se
pretende.

Complexidade e Roteiro

NNeste trabalho buscamos refletir sobre as narrativas apresentadas pelos flmes da Pixar
Animation Studios, em suas tramas e personagem, muitos deles fantásticos, animalizados ou
inanimados, articulando-se como reflexos do atual, em temas que nos remetem à idéia da
polifonia cultural.

É nessa totalidade que assumo a idéia da polifonia cultural como


algo que supera o limite territorial da diversidade, sem contudo
minimizá-lo, ou reduzi-lo a uma mera expressão relativista, para
projetá-lo como mais um duplo no caleidoscópio da universalidade
sapiental/demencial. O papel da polifonia é não se deixar levar pelo
apelo terrorista e alucinado de políticas etnicistas perversas, mas
por um sentimento de humanismo democrático capaz de estender a
solidariedade cívica a todo o planeta (Carvalho: 1999: 27).

Por meio de reflexões acerca dos filmes analisados, pretende-se traçar um quadro que
situe tais animações como retratos de nossa sociedade, consumidora de mensagens emanadas
por estes produtos de uma, há tempos, indústria classificada como cultural. Tais filmes são
fontes de imagens que nos projetam em nosso imaginário, em especial o infantil, mas não
somente deste público uma vez que os adultos se interessam cada vez mais por estes conteúdos.

25
Edgar Morin. Fonte: www.depaginas.es

A metodologia de estudo utilizada foi a seleção dos doze filmes da Pixar,


analisando-os filme a filme, compondo um painel com histórias, personagens e contextos
próprios de cada narrativa. Para isso, as discussões tiveram como norte os dilemas e
encruzilhadas constituintes das paisagens nas quais transita o homem contemporâneo,
local e globalmente situado enquanto membros de uma mesma comunidade mundial.
Cada análise é precedida de um resumo particular do filme em questão.

Nossa tentativa aqui será metodológica e teoricamente ancorarmos leituras


e interpretações realizadas na direção proposta pelo pensamento complexo. A
interdisciplinaridade será a tônica das abordagens dos filmes, contra o composto
disjuntor e redutor aplicável, grosso modo, quando se entra em campo as orientações
estabelecidas nas ciências duras ou mesmo as Ciências Sociais.

Serão admitidas a incerteza e a religação de saberes como método nesta busca


por compreender as narrativas por trás dos filmes da Pixar. Para tanto, o pensamento
de Morin será um de nossos guias de método nesta jornada. Assim como também
serão referenciais nestas argumentações o pensamento de pensadores que buscam
compreender o contexto sócio, político e cultural desde começo de século.

Como nos indica o pensamento complexo (Morin, 2005) é preciso que se


pense os filmes sob o viés do princípio da dialogia (aliança de opostos e extremos),
do princípio da recursão organizacional (a permanente retroação entre ações) e do

26
princípio hologramático (a parte é inseparável do todo), a fim de que possamos inserir
estas produções em um panorama analítico não reducionista.

Ou seja, os filmes da Pixar serão enxergados como produções que ao nos


projetarem enquanto imagens em movimento fazem do cinema este operador fantástico,
configurador de nossas vidas, de nossa imaginação. Neste caminho, este trabalho
contará com 4 capítulos, sendo este denominado de Onirismos como inicial. A seguir, 3
outros blocos, realizaremos as leituras e reflexões sobre produções da Pixar Animation
Studios com base em 3 metatemas de nomes Bravuras, Paroxismos e Saberes.

Em Bravuras, discorremos sobre os atos bravos ou heroicos protagonizados pelos


personagens centrais de Toy Story; Vida de Inseto; Os Incríveis e Carros. Em Saberes,
dissertaremos sobre visões do conhecimento, da memória ou da tecnociência sugeridas
em filmes como Toy Story 2; Monstros S.A; Wall-E e Carros 2. Já em Paroxismos
abordamos os momentos de ápice e os pontos de inflexão nas vidas e nos enredos
nos quais estão envolvidos os viventes de filmes como Procurando Nemo, Up – Altas
Aventuras, Toy Story 3 e Ratatouille. Por fim, são apresentadas breves considerações
finais e, como anexo, ficha técnica das produções.

As imagens dos filmes da Pixar reproduzidas neste


trabalho tem como fonte Kindersley (2011), material
promocional do estúdio e o site www.pixar.com .

27
HHomens, brinquedos, insetos e automóveis movidos por ambições, vaidades,
paixões e devaneios. Todos capazes de atos de bravura, devotando-se a eles em meio a
suas tragédias e sentimentos mais íntimos, mais pessoais. Por vezes assumindo o papel
mítico dos heróis, eles são humanizados e demonstram fragilidades, tensões, incertezas.
Mesmo assim, nas histórias que nos contam a intrepidez é marcante. Enfrentam
infortúnios e, cada um a seu modo, ao final, conquistam glórias.

Gestos heroicos? Por vezes, sim. Não obstante Farias (2012), com base nas
reflexões da mitologia de Joseph Campbell em O Herói de Mil Faces (2002), apresente-
nos com mais profundidade considerações sobre o que seriam gestos de heroísmo na
perspectiva do mito. E Farias nos remete aos monomitos propostos pelo mitólogo norte-
americano com inspiração no escritor James Joyce. Com base nesta proposição, as
lendas heroicas seguiriam um roteiro estruturante próprio, adaptando-se assim a cada
narrativa.

Para Campbell, a estrutura do monomito se divide em três seções:


partida (ou separação), iniciação e retorno. A partida lida com o herói
aspirando a sua jornada; a iniciação contém as várias aventuras do
herói ao logo do caminho que irá percorrer; o retorno é o momento
em que ele volta à casa com conhecimento e os poderes que adquiriu
ao longo da jornada (Farias, 2012, p. 65).

A hipótese do monomito se faz presente, mesmo que de forma difusa, em filmes


como Toy Story (1995), Vida de Inseto (1998), Os Incríveis (2004) e Carros (2006).
Nestas produções da Pixar temos personagens que vão em busca de um objetivo,
enfrentam inúmeros obstáculos e retornam com missões conclusas. Entretanto, como o
caráter sobrenatural e fantástico não é a tona em todas estas produções, atos de bravura
talvez seja a expressão mais apropriada para situá-los. Mesmo compreendendo que em
algumas situações atos heroicos e bravos confundir-se-ão.

Porque nestes filmes há um desafio lançado aos protagonistas, os quais, mesmo


que tentem, não conseguem fugir ou desviar. E são estes atos de coragem e valentia,
de bravura, os diferenciais que farão com que vidas sejam salvas, emoções aflorem,
destinos se encaminhem. Toy Story, Vida de Inseto, Os Incríveis e Carros nos trazem
narrativas de um destemor que coroa os seres com superação, autoconhecimento, paz e
bonança. E também reconstruções de itinerários e repensar de futuros, sejam próprios,
sejam coletivos.

Toy Story, por exemplo, apresenta os atos de bravura da dupla Woody e Buzz
Lightyear, aprisionada pelo temível e perverso menino Sid, vivendo ainda por cima a
ameaça de quebra de vínculo com Andy e os outros brinquedos, estes prestes à mudança
de casa. Coragem e determinação por parte da dupla são essenciais para o sucesso da
fuga e o reencontro com Andy, o amado dono, além de com os seus semelhantes, todos
de plástico e borracha. Contudo, questionamentos sobre suas naturezas e descobertas

30
acerca de limitações forçam os bravos protagonistas, Woody e Lightyear, a ressignificarem
suas identidades.

Vida de Inseto também nos faz refletir sobre o ato de bravura de uma formiga
gauche, Flik, um Da Vinci incompreendido que consegue articular o formigueiro para
uma tática de guerrilha nunca antes pensada. Imagética, a estratégia tem raízes na arte
e nos impele a repensar o cenário de conflitos e guerras. Para combater a força bruta e a
arrogância, a inteligência e suavidade de uma trupe de artistas que encenam guerreiros
com a bravura e a doçura da sensibilidade artística. E mais ainda, um questionamento:
até que ponto a geopolítica mundial não está impregnada de encenação e apelo terrorista
unicamente visual?

Em Os Incríveis, temos algo incomum: o cerceamento exercido pelo Estado


quanto aos atos de bravura e de heroísmo protagonizados justamente por quem tem
o dom de empreendê-los. Assim, os super-heróis passam a viver na clandestinidade,
porque causam prejuízo ao governo. Enquanto isso, uma ameaça nascida narcisista e
infantilizada oriunda do seio da indústria bélica – da cultura de consumo de armamentos
– coloca o mundo e o estatuto dos heróis em jogo. Muita bravura e muita aventura serão
necessárias para virar esta mesa em busca da paz mundial.

Por fim, Carros retrata a soberba dos que se pensam bravos e a humildade dos
que realmente bravos são, em um cenário de bravura geograficamente melancólica,
de uma paisagem que sucumbiu diante da mesma bravura, só que voraz e suicida da
indústria, da tecnologia, da modernidade. Pois que Relâmpago McQueen é o herói de
um tempo pós-moderno, uma vez que mesmo sem referencial, pura presunção, fugidio
e egocêntrico, é lúdico e encara a vida como um jogo. Para ele, não há metanarrativa na
Piston Cup. Há unicamente um eterno presente de provas, corridas, velocidade, mídia
e... solidão.

Juntos, os protagonistas das bravuras destes filmes (o caubói Woody e o astronauta


Buzz Lightyear, o super-herói Sr. Incrível, a formiga Flik e o veloz e pretensioso Relâmpago
McQueen, além dos demais personagens destas tramas) destoam do homem comum,
travestem-se de super poderosos – por poderes fantásticos, ou por habilidades únicas,
ou por raciocínio aguçado e complexo – mas, enfim, são seres dotados das mesmas
incoerências que acometem o homem na contemporaneidade.

Às histórias e às visões.

31
Toy Story

OO tempo de uma vida foi necessário a Buzz Lightyear


para que ele, enfim, percebesse sua condição de brinquedo.
E por condição de brinquedo, compreendesse sua
iniquidade. E por iniquidade, sublimasse sua limitação
pseudo extra humana de defensor do universo. E quem
o fez o alerta foi o caubói Woody, brinquedo preferido
do menino Andy até a chegada do patrulheiro estelar Buzz
ao mundo do dormitório infantil.

Na casa de Andy, os brinquedos revelam sua natureza


de modo clandestino. Longe do menino, eles ganham voz, ação
e sentimento, expondo seus dramas e suas personas. Woody até
certo dia era o brinquedo companheiro preferido de seu dono,
até mesmo porque o caubói se conformara com sua condição
Caubói Woody
de brinquedo, demasiadamente brinquedo.

Seu papel de líder é quase que inconteste no coração da criança e na organização


da comunidade quarto que conta com um Tiranossauro Rex amedrontado, um Senhor
Cabeça de Batata ranzinza, um Porquinho Cofre questionador e um Cachorro de Mola
bonachão, entre outros companheiros de brincadeiras.

Mas é dia de aniversário do menino e os brinquedos se afligem. Toda data


festiva é assim. Andy ganhará novos presentes e, potencialmente, novos brinquedos.
Brinquedos novos significam substituição de antigos. E ninguém, nenhum dos artefatos
de plástico e borracha animados, quer ir para o lixo, para a reciclagem, ou para o bazar
de brinquedos usados e de segunda mão.

Naquele aniversário, até então tranquilo perante uma


patrulha de soldadinhos de plástico que fazia espionagem na festa
para conferir a abertura um a um dos pacotes, a última caixa
aberta trouxe Buzz Lightyear para a casa da família. Eufórico,
Andy comemora a chegada do mais novo brinquedo. De pronto,
Woody perde seu posto de primeiro item na lista de diversão do
garoto. Uma explosão de inveja se avizinha.

Só que um detalhe se destaca no astronauta


autointitulado protetor da galáxia. Ele se crê, de fato, um
astronauta dotado de super poderes. E não um brinquedo
de plástico produzido em larga escala, made in Taiwan, como denota o
registro em relevo que marca seu pulso. O conflito pessoal está gerado. E
Buzz Buzz demorará a despertar para a necessidade de resolvê-lo.
Lightyear

32
Enciumado, Woody arma e faz com que Buzz Lightyear caia da janela da casa de
Andy. Enfurecidos com o ato de traição de Woody, os demais brinquedos hostilizam o
caubói, com razão o responsabilizado pela queda. Woody acompanha Andy e sua mãe,
que saem para um lanche. Buzz consegue alcançá-los. Mas, juntos, os dois brinquedos
se perdem. E o astronauta iludido está com a idéia fixa de encontrar uma nave espacial
para fazer contato com sua base e, assim, poder retornar a sua missão de salvar o
universo. Só que após muita confusão, ambos, caubói e guerreiro intergaláctico, caem
nas mãos do terrível Sid.

E quem é Sid? Trata-se do temível menino vizinho de Andy, conhecido pela sua
relação sádica com seus brinquedos. Woody e Buzz agora estão na mira de torturas,
amputações ou extermínios. Bem ao gosto do malvado Sid.

Mas se Lightyear é capaz de salvar o cosmos, porque não salvar primeiro a ele
próprio e ao amigo caubói? Em busca de fugir da casa de Sid, um voo do astronauta até
o térreo com acesso à rota de fuga é a solução. Buzz se prepara para voar – acreditando
que pode – quando, ocasionalmente, depara-se com a propaganda de si mesmo na
televisão. Que revelação perturbadora e decepcionante!

Não, ele não é sobre humano. Sim, ele tem limitações. Sem acreditar, ele salta
para o voo consagrador de sua verdade. Cai no chão, quebra o braço. Rende-se a sua
fronteira de brinquedo. Consolasse com sua natureza limitada.

A família de Andy está na véspera de uma mudança. A fuga de Woody e Buzz


Lightyear da casa de Sid tem que ocorrer. E rápido. Caso contrário, ou eles ficarão
sob o domínio doloroso e fatídico de Sid, ou viverão ao eterno como brinquedos sem
dono. Com a solidariedade dos brinquedos maltratados pelo menino do mal, ambos
se libertam de seu subjugo. Resta, agora, reencontrar Andy e os amigos de plástico e
borracha.
Sr. Cabeça de Batata e Porquinho Cofre,
brinquedos de Andy

33
Buzz não mais combaterá Zurg, o Imperador do Mal, em sua jornada entre
planetas. Woody dividirá seu posto de primeiro brinquedo. Porém unidos, ambos
conseguem reencontrar a todos após uma perseguição que envolve acidentes de carro e
simulações de voo do caubói e do astronauta.

A lição foi dada. No Natal, nova movimentação dos brinquedos, com soldadinhos
de plástico espionando a entrega de presentes camuflados na árvore natalina. Os
brinquedos são abertos, com Woody e Buzz dissimulando uma falta de preocupação
com uma possível nova surpresa em forma de presente.

Surpresa que chega com a informação de que Andy ganhara um cachorro. Pelo
visto, a disputa por afeto e por identidade não cessará na casa.

Quem Somos Nós?

Toy Story é considerado o primeiro longa-metragem de animação computadorizada


da história. O filme brasileiro Cassiopéia (1996) requer este título, alegando incoerências
técnicas na produção do primeiro longa da Pixar. Incoerências que seriam inexistentes
no pioneiro da animação digital brasileira. Entretanto, é fato que as aventuras de Woody
e Buzz Lightyear chegaram ao cinema alguns meses antes do lançamento do filme do
diretor Clóvis Vieira.

Então, por ser o primeiro de um gênero, Toy Stoy levanta uma série de questões
que merecem relevância. Porém, uma única cena já bastaria para que um debate intenso
sobre a condição humana fosse empreendido no contexto do filme. Na casa do inimigo
Sid, temendo por suas vidas, Woody e Buzz
intentam fuga. O guerreiro interestelar,
crente em ser um combatente cósmico
contra as desumanidades do malvado
Imperador Zurg, este o articulador de uma
ameaça letal contra todo o universo, tenta
voar.

Sim, ele se comunica com o


Comando Estelar, está em missão por toda
a galáxia e tem super poderes ciborgues advindos de uma parafernália que o veste como
segunda pele, com armas de raios, sensores, capacete pressurizado e asas aptas a voos
supersônicos.

Na casa de Andy, quando de sua chegada triunfal como brinquedo recém


presenteado ao menino, Buzz Ligthyear oferta uma mostra de sua condição sobre humana
de super-herói. Por mais que um Woody prolífico em ciúmes tente ridicularizá-lo, há

34
uma gota de advertência em cada senão feito pelo brinquedo mais experiente. O caubói
afirma o que somente todos ali são: simples brinquedos, nada mais. Todavia, Lightyear se
nega a acreditar, porque, para ele, sua condição é de guerreiro interplanetário salvador
das galáxias. E no começo do filme, em uma acrobacia que conta com boa sorte e acaso,
Buzz consegue voar para espantos de todos os demais brinquedos.

Porém Buzz e Woody se perdem e caem nas mãos do terrível Sid. É hora da fuga.
E o boneco astronauta se vê diante de seu duplo fantasmagórico como propaganda.
Lightyear é surpreendido com um comercial de televisão que lhe diz o que ele não
quisera ouvir: ele é um boneco, que não voa de verdade, made in Taiwan e multiplicado
aos milhares, vendido nas melhores lojas do ramo, como a Al’s Toy Barn. Que horror,
que desilusão!

Mas ele não crê, afinal, ele é Buzz Lightyear, vai voar em busca de se conectar com
o Comando Estelar e deixar para trás aquele solo estranho e aterrorizante do planeta
Terra. Ele entoa seu lema de bravura, sobe no corrimão de uma escada para levantar
voo e se lança... ao infinito e além... E a queda da qual se faz vítima é mais que dolorosa,
é emocionalmente traumática. Ele perde seu braço e sua identidade circunstancial de
bravura.

O gesto heroico de Buzz é revelador de nossas limitações face as nossas


fragmentadas identidades, que em tempos de pós-modernidade não mais encontram
referenciais únicos. Somos bonecos, somos super-heróis, somos infalivelmente falíveis.
Compreender estas dualidades que Lightyear nos força a compreender com sua queda
e com a resignação a sua condição de simples brinquedo – não por isso menor – é uma
das mais valorosas contribuições que o filme da Pixar nos lega. Confrontar-se com estas
dualidades e multiplicidades é deparar-se com o processo de construção do sujeito pós-
moderno que, de acordo com Hall (2006), é aquele que se configura nesta humanidade
do final do século XX e começo do século XXI.

35
Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado
como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A
identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados
ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987).
E definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume
identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que
não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós
há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções,
de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde
o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda
estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu”
(veja Hall, 1990). A identidade plenamente unificada, completa,
segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que
os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam,
somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e
cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais
poderíamos nos identificar — ao menos temporariamente (Hall,
2006, p. 13).

Buzz Lightyear é astronauta, é super-herói, é brinquedo, é humano sem ser de


carne, nem de osso, submerso por suas fragilidades no mesmo mar de inconstâncias e
incertezas no qual se encontram nossas identidades pós-modernas. E como espelho, faz
refletir seus gestos de bravura em Woody. A divisão do coração de Andy, fraturado entre
o guerreiro interestelar de plástico e luzes e o caubói de espuma e pano, assinala o início
deste rompimento, com o antes doce e respeitável
brinquedo cavaleiro do Velho Oeste assumindo uma
face dissimulada em busca de aniquilar o inimigo
passageiro.

Com amores, ódios e paixões iguais as


nossas, Woody se revela demasiadamente humano
arquitetando e colocando em prática logo de início
um micro plano para, por meio de uma micro
vingança, livrar-se em definitivo de Lightyear.
O plano da certo e é o remorso de Woody que o
coloca junto com Buzz na liberdade e nos perigos das ruas, acabando por parar na casa
do menino torturador de brinquedos, do qual é necessário se livrar rapidamente se o
objetivo é sobreviver.

Buzz Lightyear é um super-herói com poderes falsos, mas com coração e gestos
de herói de verdade. E sabemos do que são capazes os super-heróis de verdade, inclusive
com suas ações de benevolência, sempre dispostos a ajudar o próximo. Woody é um bom
moço, que pode até ser bom (e realmente o é), mas sua persona má não se esquiva em
se revelar quando seus interesses – o amor incondicional de Andy – são colocados em
risco, mesmo que minimamente. Assim, a representação de Woody também se mostra
volátil, sendo ele também partícipe deste contexto no qual sujeitos pós modernos são

36
impelidos à uma realidade de múltiplas identidades.

Não nos esqueçamos de um fator essencial contido na própria imagem de Woody.


O boneco é um caubói, arquétipo midiático do homem rural norte-americano que a
cultura de massa do século XX nos legou. De um caubói que é símbolo de bravura, mas
como nos alerta Hobsbawm (2013), de um caubói que é também fanfarronice, rudeza
e selvageria.

Desta forma, o ato de bravura de Woody em se irmanar com Lightyear rumo à


libertação da dupla e à reconstituição com o grupo de brinquedos, e por tabela com
Andy, ocorre em paralelo à canalhice inicial por ele protagonizada, de viabilizar o
acidente que faz o astronauta sair do conforto e segurança do lar do menino.

Assim, as dualidades de Woody, que são também nossas dualidades, estão


presentes. E a própria figura do caubói, onipresente nas imagens dos Estados Unidos
inclusive fora deste país (registre-se neste cenário a importância do cinema de western
que projetou o ícone do caubói em escala global), surge como inerente a uma pós-
modernidade, já que instável e polifônica.

Antes de fazer conjecturas em busca de uma resposta, quero dizer


uma palavrinha ou duas sobre esses outros mitos de caubói. Faço
isso em parte com o objetivo de chamar a atenção para o que todos
eles têm em comum, mas sobretudo para lembrar a flexibilidade
ideológica e política desses mitos ou dessas “tradições inventadas”,
aos quais voltarei num instante no contexto americano. O que eles
têm em comum é óbvio: tenacidade, bravura, o uso de armas, a
prontidão para infligir ou suportar sofrimento, indisciplina e uma
forte dose de barbarismo, ou ao menos de falta de verniz, o que
gradualmente adquire o status de nobre selvagem. Provavelmente
também esse desprezo do homem a cavalo pelo que anda a pé, do
vaqueiro pelo agricultor, e esse jeito fanfarrão de andar e se vestir
que cultiva como sinais de superioridade. Acrescente-se a isso um
distinto não intelectualismo, ou mesmo anti-intelectualismo. Tudo
isso tem excitado mais de um sofisticado filho da classe média
citadina. Caubóis — mesmo caubóis da meia noite — são brutais.
Mas, além disso, remetem os mitos e as realidades das sociedades a
que pertencem (Hobsbawm, 2013, p. 205).

Os atos de bravura de Toy Story nos incitam a repensar quem somos. Ou, ao
menos, que identidade expressamos. Todos somos guerreiros interestelares, caubóis... e
também indulgentes... e também malévolos.

Quarto de Andy

37
Vida de Inseto
UUma política de defesa circense em armação e fanfarronice.
Flik é um trapalhão. Em tudo se mete, mas tudo o que propõe sai errado. Espécie
de Da Vinci gauche, suas invenções para maximizar a colheita de alimentos são vítimas
de descrédito. Midas ao contrário, tudo o que ele toca vira pó. Até que em um certo dia é
confiada a ele a tarefa de recrutar guerreiros para combater os inimigos do formigueiro.

Os gafanhotos exploram as formigas em uma forma de dominação nada legítima.


Eles obrigam estes insetos menores a colherem e armazenarem grandes quantidades
de comida, recolhidas periodicamente pelos mesmos gafanhotos, mortais predadores
liderados pelo famigerado Hopper.

E Flik arruína uma destas grandes


quantidades de comida colhida com esforço
descomunal e coletivo. Tudo na véspera da
prestação de contas, para a ira dos invasores e
desespero geral das formigas.

As formigas são obrigadas pelos


gafanhotos a coletarem comida em dobro, sob
pena de extermínio geral na próxima temida
Flik e a trupe circense
visita. Flik é julgado por seu delito, mas a pena
consensual a que a corte chega é liberá-lo para que em terras distantes ele arregimente
bravos combatentes capazes de afugentar os inimigos gafanhotos.

Condenado ao degredo semi voluntário ele parte em sua tarefa de headhunting,


com a aprovação da princesa Atta, futura rainha. Só assim o trapalhão estaria longe,
sem causar problemas ao coletivo.

E na cidade dos insetos, distante do formigueiro, Flik encontra seu destemido


exército. Mas este exército nada mais é que um grupo de artistas de circo fracassados,
expulsos pela Pulga dona do empreendimento após esta quase ter sido incinerada em
um número desastrado com manipulação de fogo. O convite de Flik para a luta contra
os gafanhotos é compreendido como uma oportunidade de encenação em terras muito
distantes. A animação é total por parte dos artistas carentes de trabalho, de carinho e,
principalmente, de aplausos.

Flik e sua trupe de combatentes marcham rumo ao formigueiro sendo recebidos


com espanto inicial, convertido momentos depois em redenção. Enfim, todos se veriam
livres da dominação dos gafanhotos face a coragem do grupo de libertadores.

Os intrépidos e corajosos guerreiros assim são muitíssimo bem tratados, sem


saber que são vistos como esperança de libertação. Compõem o exército insetos artistas

38
como uma Joaninha macho, um Louva Deus, um Bicho Pau, uma Lagarta, uma Viúva
Negra, uma Borboleta...

Todos artistas sem projeção, atuantes em produções sem glamour, sem dinheiro
e totalmente desconectados do mainstream e do esquema de grandes espetáculos.
Todavia, todos artistas que fazem de suas artes a essência de suas vidas, fazendo da
encenação o objeto primeiro de suas existências.

Quando este grupo descobre o engano e a farsa que se passa no formigueiro,


momentos depois de Flik perceber seu equívoco, todos os considerados guerreiros
tentam fugir, amedrontados e descontentes com a missão de guerrilha a eles reservada.
Mas o ataque de um pássaro faz todos recuarem.

De volta ao formigueiro, mais uma idéia de Flik é posta em prática: já que um


pássaro é também predador de gafanhotos, que tal construir um pássaro cenográfico
para, assim, expulsar os inimigos?

Toda a comunidade de formigas se empolga e o pássaro é construído. Trata-


se, portanto, de uma estratégia de defesa circense e pirotécnica, que faz do pássaro
alegórico uma realidade, mas capaz de converter a credibilidade do grupo em pilhéria
e frustração.

E isto acontece quando a Pulga mambembe dona do circo aparece no formigueiro


em busca de seus artistas. A farsa dos grandes guerreiros cai por terra e todos são
desmascarados. O grupo inteiro é expulso do formigueiro e Flik, desolado, segue para
sua nova vida de inseto artista.

Enquanto Flik está inconsolável na companhia da trupe de insetos artistas já


longe do formigueiro, os gafanhotos liderados pelo cruel gafanhoto Hopper chegam
e passam a aterrorizar a comunidade. Foram cobrar o que lhes acham devido. A irmã
mais nova da princesa, a formiguinha Dot, sai em busca de Flik e do grupo de artistas.
Estimulado por Dot, o herói se lembra de um de seus ensinamentos: de que nunca se
deve desistir diante de desafios.

Flick, Hopper, Princesa Atta e a trupe circense

39
Daí o grupo regressa e depois de uma luta imensa os gafanhotos são expulsos.
Não pelo pássaro fictício, que como todo plano de Flik acaba por naufragar. E sim,
de modo derradeiro quanto ao algoz Hopper, por um pássaro de verdade que faz do
gafanhoto líder comida para passarinhos filhotes.

O formigueiro está liberto mediante uma ação guerreira cênica e visual, que tem
o poder de despertar sentimentos então adormecidos nos corações de todos.

A Arte da Guerra
Em fins de 2012 e início de 2013, o líder norte-coreano Kim Jong-
un recrudesceu para todo o mundo o seu discurso contra os inimigos
do Ocidente, em especial contra os Estados Unidos e seus aliados no
Oriente Médio e demais países da Oceania, Coréia do Sul e Japão. A
ordem do “grande líder” era guerra contra os algozes do povo norte-
coreano.

Em 15 de abril de 2013, data festiva em Pyongyang em


comemoração aos 101 anos do nascimento de Kim Il-sung (pai de Kim
Jong-Il e avô de Kim Jong-un), o primeiro dos ditadores em série da
Coréia do Norte, o olhar global aguardava notícias de um bombardeio
norte-coreano contra um inimigo de sempre, a Coréia do Sul, ou
contra os aliados japoneses, ou até mesmo contra uma base norte-americana no
Pacífico. Mas no dia D nada disso aconteceu.

E restou à imprensa global ironizar veiculando que o único e solitário tiro ouvido
no país de Kim Jong-un fora o deflagrado a fim de iniciar uma maratona. Na mesma
data, nada de exercícios com armas nucleares na televisão do país, e sim imagens de
uma dança tradicional encenada em imenso grupo pela população local.

As estratégias bélicas de Vida de Inseto, atos de bravura presentes no filme,


representam as encenações de estratégias bélicas e de atos bilaterais celebrados na
atualidade entre nações. Tão blefe quanto o falso pássaro de Flik era, ao menos naquele
dia, a ameaça nuclear norte-coreana.

E a figura dos bravos combatentes de guerra, ou dos grandes estrategistas


militares-geopolíticos, cede espaço para lideranças inseguras como Atta e a corte de
formigas, ou para deslocados, caricatos e embusteiros como Flik. Ou ainda para o bando
mambembe que assume o lugar de tropa combativa e guerreira.

Também, os exércitos são entidades não mais concretas como nas grandes
guerras do passado e, quando existentes, igualmente se dão à simulação imagética.
Na invasão do Iraque pelos Estados Unidos, aponta-se a existência de até 50.000

40
“soldados” terceirizados a serviço do Pentágono em solo iraquiano, contratados pela
empresa Blackwater (Scahill, 2008). Quantos “artistas de circo” não existiriam entre
estes mercenários alugados para combater na epopeia circense da Guerra ao Terror?

Por sobre a intenção de nos espelhar em uma história de superação e amor –


Flik, o enjeitado engenhoso, salva a nação dos invasores carrascos e exploradores e, de
quebra, consegue o amor de Atta, tornando-se um humilde futuro rei (embora no filme-
animação fora suprimido o ato de ele ser coroado, já que esposo de princesa-rainha
se tornaria) – Vida de Inseto fabula argumentos sintomáticos da coragem nesta já não
mais tão nova ordem mundial.

Jean Baudrillard (1997, 2003) é um dos que elenca este caráter de hiper-realidade
aurática concedido aos objetos e transcendente para com as sociedades, também
inseridos e visualizáveis no contexto de guerra. No caso da ameaça à comunidade de
Flik e Atta, a ideologia da defesa deu-se pela espetacularização da brava performance
dos atores circenses, alçados à categoria de bravos guerreiros por seu dotes de caserna,
anedóticos e midiatizáveis na comunidade.

Flik sabia da farsa, mas foi impotente (ou dissimulado) para dissuadi-la a tempo.
Manter o simulacro de bravura e destemor era mais importante, ou necessário, naquele
momento. E Como na ameaça nuclear de Pássaro real no formigueiro

Kim Jong-un, o pássaro criado por Flik


sob o incentivo da criativa e escrachada
trupe de guerreiros é mais um elemento
de valor fractal, unicamente simbólico e
usado como máquina de terrorismo de
estado. Assim, o terror se mostra mais
como imagem, que como concretude.

A guerra sob o comando de Flik


é espetacular – e por isso midiática,
com alegorias e pantomimas. Existe
mais em visualidade, aqui referindo-
se unicamente e a princípio ao artefato bélico central utilizado na batalha: o grande
pássaro cenográfico usado como elemento beligerante e farsesco.

A epifania do ataque liderado por Flik e sua trupe de artistas é essencial para a
harmonização daquele coletivo, aprisionado em uma rotina de espoliação pelos seus
inimigos, porém domesticados e acostumados a este sistema de servidão de modo
não muito diferente ao imposto pelo capitalismo transnacional à quase 7 bilhões de
habitantes do planeta.

Além das questões bélicas, Flik faz o papel de Professor Pardal da comunidade
de formigas. Seu intento, por vezes incompreendido, por vezes mal sucedido por
desastrado, é criar instrumentos para maximizar a produção. Engenhocas bem ou mal
arquitetadas, capazes de otimizar a colheita ou causar desventuras coletivas.

41
Mas não é a racionalidade instrumental de criar novas ferramentas e engenhos
o que vai salvar todas as formigas, da mais plebeia à Rainha- Mãe e a princesa Atta.
O que vai salvar a todos não é nem o acúmulo de produção destinado aos gafanhotos,
muito menos o poder militar do pássaro. Por salvar, leia-se, restituir a vida, aprisionada
ao cotidiano de modo de produção a qual o formigueiro está atrelado, ou condenado,
a viver.

A salvadora aqui será a arte e o ato de coragem que é estimulá-la em um mundo


tão hostil à arte e ao artista. Seus protagonistas serão os membros deste exército tão
inacreditável quanto o exército de Brancaleone. Francis, a Joaninha, Manny, o Louva-
Deus, Slim, o Bicho Pau, Chucrute, a Lagarta, Rosie, a Viúva-Negra e Cigana, a Borboleta.
Sem contar o Sr. P. T. Pulga, manager do grupo. São estes os heróis do circo que, aliados
à Flik, salvam o formigueiro. Porém mais com o poder
da arte, que com a potência de tiros. Todo o engenho
e valentia tímida de Flik não beira os pés da potência
emancipadora emanada pela arte dos artistas.

Vida de Inseto é uma ode a arte, irretocável em


sua abordagem elevadora quanto à arte circense, já que
a trupe de insetos soldados é composta na totalidade
por artistas de circo. Artistas cujos fiéis retratos feitos
Flick
são os de seres entregues, em um ato de destemor cada
vez mais necessário, ao único compromisso da expressão da sensibilidade, em toda a
sua faceta marginal, desapegada, outsider, economicamente desfavorável.

O circo de P. T. Pulga vive em crise e o próprio proprietário arrisca sua vida


em um número quase suicida em busca de plateia. Quando cooptados como terríveis
mercenários dispostos a salvar a comunidade de Flik, assim sendo apresentados à Rainha
- Mãe, à princesa Atta e as demais formigas, o que os bravos e intrépidos combatentes
levam àquela gente nada mais é do que a sublime risada e o deslumbramento com as
cores, formas, sons e gestos transformadores pela emoção.

Francis, Manny, Slim, Chucrute, Rosie e Cigana materializam junto às formigas


a ideia da escola como idealizada por Edgar Morin. Uma escola onde o ensino
principalmente compreende e valoriza o quão vultosa pode e deve ser a contribuição da
cultura das humanidades para a educação. Não à toa, são as crianças formigas e alunas
as mais encantadas com o novo tempo proporcionado pelos “guerreiros”.

As artes levam-nos à dimensão estética da existência e – conforme o


adágio que diz que a natureza imita a obra de arte – elas nos ensinam
a ver o mundo esteticamente. Trata-se, enfim, de demonstrar que,
em toda grande obra, de literatura, de cinema, de poesia, de música,
de pintura, de escultura, há um pensamento profundo sobre a
condição humana (Morin, 2003, p. 40).

42
Necessário reforçar que o próprio pássaro artificial gigante construído com o
intuito de afugentar os gafanhotos inimigos em uma estratégia de guerra imagética é,
ele mesmo, a grande obra de arte coletiva do formigueiro, espécie de totem para qual
o fazer envolveu todos os integrantes daquele grupo de pertença. Sua conclusão, como
ícone artístico-utilitário é celebrado por todos.

Em verdade, os artistas são originalmente os guerreiros do filme, já que


estes circenses não se esquivam da luta contra o inimigo comum. A arte que salva é
reconhecida ao final do filme-animação, fazendo justiça ao começo da história, quando
Flik, o criativo, vê seu gênio criador banido em nome do equilíbrio, das normas, das
convenções coletivas.

E na dualidade entre Flik e Hopper, entre a racionalidade criativa e a arrogância


exploradora, a primeira somente se faz vitoriosa após a intervenção visual, fantasmagórica
e poética – corajosa e mágica – dos circenses mestiços.

Os Incríveis

CCom sua força descomunal, o Senhor Incrível, ou Beto Pera, tem como rotina
proteger o próximo e salvaguardar o planeta. Ao menos enquanto o Estado a ele isto
permite.

Em sua Metroville, ele é um dos que exerce o papel de benfeitor na comunidade.


Mas uma destas ações heroicas representará, antiteticamente, a perdição e a ruína de
todos os super-heróis. O Estado, mão-de-ferro, irá se impor como agente regulador até
mesmo do heroísmo público e voluntário.

Um suicida atenta contra a própria vida. Antes, na tentativa de prender um


assaltante, Senhor Incrível é levado a (novamente!) repelir o menino Bochecha ou
Gurincrível, seu maior fã (seu futuro algoz) e permanente candidato mirim a seu
assistente.

Família Incrível

43
De volta ao suicídio: estilhaçando paredes luxuosas de vidro, Senhor Incrível
salva o homem que se joga de um arranha-céu. Mesmo sendo salvo, o homem reclama
que ficou ferido pela ação do super-herói. Revoltado por não ser aceito como assistente,
Bochecha/Gurincrível acaba por atrapalhar a ação de captura do bandido, levando o
Senhor Incrível a cair com uma bomba sob uma linha de metrô. A explosão arruína por
completo partes dos trilhos e o super-herói faz parar uma locomotiva em alta velocidade,
evitando mortes, todavia ferindo passageiros.

Após a ação heroica, a inimaginável punição legal. O suicida aciona o Judiciário.


Alega que tinha o direito de morrer, mas viu esta liberdade
individual sendo cerceada pelo ato do super-herói, e ainda se
viu com ferimentos e dores em decorrência do salvamento
forçado. Afinal, não pedira socorro a ninguém.

Como reação em cadeia, os passageiros do metrô


ajuízam ações questionando o episódio do quase
acidente, pois foram também feridos e mereceriam
indenizações do Estado. E aí, por todas as partes,
surgem litígios, reclamações de perdas e danos,
questionamentos na Corte Suprema contra
os super-heróis tutelados poder público.
Acossado, o governo não titubeia: coloca
os benfeitores, todos, na clandestinidade,
proibindo-os de exercer o heroísmo,
alterando suas identidades, lançando-os à
atividades cotidianas, comuns, em nada incríveis
e, por tabela, nada heróicas.

Beto e Helena, a ex-super heroína Mulher


Elástica, tornam-se um casal comum, cercados por
rotina, tédio e as contingências da vida conjugal.
Passam-se anos e nascem filhos com super poderes.
Mas eles não podem utilizar seus dotes sobre-humanos
devido ao veto do governo extensível a todos os super-
heróis, segurados por um mecanismo de reinserção
estatal, o Programa de Recolocação de Super-Heróis.

Assim, Beto torna-se agente de uma seguradora,


Helena dona de casa e seus filhos Flecha e Violeta
Senhor Incrível
tentam ser estudantes e adolescentes triviais. O bebê
Zezé é aparentemente inofensivo.

Desprovido da dádiva de executar seus dotes incríveis, tudo é monotonia na vida


de Beto. Até o dia em que ele é demitido e, na iminência de ser novamente “reinserido”
pelo Programa de Recolocação de Super-Heróis, recebe uma mensagem ultra-secreta.

44
Uma misteriosa e sedutora mulher quer contratá-lo para uma missão sigilosa: desativar
uma versão do Omnidroid, robô dotado de inteligência artificial, mortífero e que saíra
do controle em uma sessão de testes feitos em uma ilha isolada.

Clandestinamente até para a esposa, Senhor Incrível aceita a missão, a qual


é executada com sucesso, rendendo-lhe um bom dinheiro. Porém mal sabia ele que,
em verdade, estava a realizar um test drive com fim de aperfeiçoar a arma que fora
projetada para, também, promover sua própria morte. E o criador do Omnidroid é tão
somente o vilão Síndrome, fabricante de armamentos. Que se revela como sendo o
menino Bochecha/Gurincrível, agora dono da ilha, ex-maior fã rejeitado pelo herói.

Pelo plano de Síndrome – o Projeto Kronos – o destruidor Omnidroid partirá


para destruir Metroville, logo após matar o Senhor Incrível. Para tanto, inúmeros outros
super-heróis foram mortos em testes de versões anteriores do Omnidroid. E com o
extermínio dos super-heróis, sobraria a
Síndrome a glória como herói-mor da
humanidade, uma vez que só ele saberia
como deter o robô.

Síndrome quer acabar com o mito


dos super-heróis vendendo super armas
para os cidadãos. E depois que todos
tivessem seus super poderes artificiais,
ninguém mais os teriam de verdade. Beto, Helena e filhos

Helena nota algo de errado e com a ajuda da excêntrica estilista Edna, que
inseriu localizadores de posicionamento global (GPS) nos uniformes de toda a família
Incrível, localiza o marido e parte em seu socorro. Escondidos da mãe, os filhos Violeta
e Flecha seguem juntos. Começa uma grande aventura que terminará com Síndrome
desmascarado e uma Metroville semi-destruída, porém salva pelo poder onipresente
dos super-heróis.

E é a inocência do bebê Zezé quem dá a lição final ao malfeitor Síndrome, uma vez
que mesmo os heróis salvando a cidade e o mundo, caberá aos políticos resolverem os
deles e os nossos destinos, como adverte o agente estatal do Programa de Recolocação.

Nós Podemos Ser Heróis, Apenas Por Um Dia

Os Incríveis certamente é um dos filmes mais provocadores da Pixar e é um


dos que tem como central a figura de heróis e heroínas em sua acepção clássica: seres
dotados de super poderes em defesa dos fracos, oprimidos e afins em todo mundo. Mas
a narrativa de heroísmo é desconcertante na medida em que descortina problemáticas

45
referentes ao poder em diversas esferas, entre elas na dimensão do estado-nação e
também na dos afetos.

O mundo não pode prescindir dos heróis. É fato que eles povoam nosso imaginário
simulando nossas redenções e materializando nossos salvamentos individuais, coletivos,
oníricos ou reais. Mas em Os Incríveis os heróis são punidos justamente em virtude do
dom que possuem e da ação magnânima e heroica que executam. É o Estado Leviatã
como que na concepção de Hobbes (1998) que cerceia o direito de eles, os super-heróis,
realizarem seus atos heroicos.

Desde que contratualizamos enquanto sociedade a submissão a um soberano a


fim de nos protegermos de nós mesmos, este soberano representado também no filme
de maneira ubíqua decide retirar os heróis das ruas. Isto porque uma vez subvertidas
suas atuações heroicas, tais práticas estariam causando prejuízos e impondo óbices aos
direitos da pessoa humana, (exemplo: o direito de retirarmos nossas próprias vidas)
como afirma e decide o Judiciário de Metroville.

Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens


concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a
qualquer homem ou assembleia de homens a que seja atribuído
pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja
de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram
a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar
todos os atos e decisões desse homem ou assembleia de homens,
tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem
em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens
(Hobbes, 1998, p.107).

Um Estado onipotente que pode cometer incoerências ou absurdos para


cumprir seu papel estabelecido no contrato coletivo e subjetivo firmado por homens
e mulheres. No filme, este poder se mostra como absoluto e exercido de forma direta,
com os julgamentos públicos e a exposição midiática; ou subterrâneo, com os agentes
secretos do Programa de Recolocação de Super-
Heróis sendo responsáveis por manter heróis
e heroínas na clandestinidade, ao mesmo
tempo impedindo o também direito que
eles têm de realizar suas bravuras.

É o suicida, que tem seu direito de


se suicidar negado em virtude da ação
de coragem do Senhor Incrível, quem
apela ao Estado via Judiciário para exigir
que o soberano pactuado no contrato
social garanta o seu direito indivisível e
inquestionável de retirar a sua própria
Bebê Zezé vida. São os passageiros do metrô

46
que questionam o modo como foram salvos de um trágico fim, alegando ferimentos
inaceitáveis e dignos de reparação, todos de dolo proporcionalmente muito menor que
as mortes trágicas evitadas pelo herói.

E mais: o capital reiterando sua ojeriza à perda e ao déficit de lucro é quem


impetra uma avalanche de ações contra este mesmo Estado, subscritas por homens
e mulheres que se sentem prejudicados financeiramente devido aos estragos físicos
causados pelo heroísmo. Heroísmo que protege o bem mais valioso que temos: a vida.

É tamanha a inversão de papéis impostos pela medida estatal que são os


heróis e heroínas que passam a agir à
escondidas, cometendo os “delitos” e
“crimes” de salvarem as pessoas e, assim,
desrespeitarem o poder totalizante deste
Estado. E quando são descobertos, a
punição é reiterada, com o Programa de
Recolocação repreendendo-os, alterando
suas identidades falsas e os transferindo,
novamente, de cidade, de casa, de
emprego...
Síndrome entre heróis
Necessário destacar outro ponto
valioso e instigante da narrativa, que é a
privatização das ações de heroísmo e bravura implementada por este Estado Leviatã.
Na ausência de heróis, todos condenados ao banimento e ao anonimato forçado, quem
assumirá as suas funções? E a resposta é a sagaz e faminta indústria bélica, cada vez
mais tecnologicamente refinada como demonstra por meio do Projeto Kronos e do letal
robô Omnidroid o antes menino Bochecha/Gurincrível, agora magnata dos armamentos
e pseudo super-herói Síndrome.

Mas Síndrome quer um pouco mais, que é também promover a desaparição dos
heróis e a banalização dos atos de bravura por meio da multiplicação de armas na
sociedade. Assim todos seriam potenciais heróis e, deste modo e com este paralelismo,
ninguém mais o seria.

No plano comercial, a tática do vilão guarda raízes também em uma estratégia


apta à crítica que é apregoada mediante orientações políticas do neoliberalismo defensor
do conceitual estado-mínimo. Caberia ao Estado unicamente a salvaguarda da justiça
e da segurança, a fim de proteger valores inalienáveis do ser humano em sociedade. E
não bancar as estripulias dos super-heróis, por mais necessárias que estas fossem, já que
situadas muito além do possível em um Estado de Bem Estar Social.

Síndrome é a personificação desta suposta estratégia privatista. Sem heróis em


circulação, ele realiza sua perversão sádico e vingativa represada desde de criança,
provocada pela rejeição do Senhor Incrível ao seu amor nos tempos em que ainda

47
sonhava em ser herói (sim, porque homem feito o dinheiro lhe proporcionará este status
e este poder). Matar aquele que ele amara e lhe rejeitara, exterminar todos os heróis e
brilhar impassível como estrela solitária de uma constelação heroica dizimada é a meta
do infantilizado senhor das armas.

Não obstante, oportunista, ele implementa como fornecedor de armamentos de


destruição em massa, das quais o robô Omnidroid é a sua criação mais perfeita, sua
meta de lucro. Para que proteger, não intervir e manter heróis na ativa, se terceirizar a
ação heroica pode ser mais vantajoso, politica e economicamente?

E o que Síndrome vai fazer é saciar a fome do Estado em delegar economicamente


à iniciativa privada àquilo que se acredita poder ser delegado, em nome dos princípios
da eficiência, da economicidade e do combate à corrupção.

Corrupção inclusive de valores morais: seria inaceitável em nossa era de direitos


e liberdades um super-herói impedir o suicídio de um homem em depressão!

Mas, além deste debate, os atos de bravura de Os Incríveis reverberam na


seara dos afetos. Isto porque há uma infidelidade conjugal que paira na aura do filme,
concretizada ainda que em desejo pleno, mesmo que não em corporeidade.

A estonteante e dietética funcionária de Síndrome seduz o Senhor Incrível,


incitando no super-herói castrado em seus super poderes e vivente de um casamento
de rotina padrão o desejo de se reconstituir enquanto herói e enquanto homem.
Mesmo monogâmico, Beto Pera é tentado a ceder. Se é fato que o dinheiro ofertado
pela mulher para que ele faça o test drive
no robô Omnidroid é tentador, muito mais
atraente e excitante é o sex appeal da linda
agente, com seu poder de sedução exercido
de forma insinuante, provocativo, de sutil
libido.

Helena Pera, a heroína Mulher


Elástica, parte em busca do marido. Porém,
mais ainda, sai com a meta de salvar seu
casamento, uma vez que a desconfiança da
traição já se avizinhara da relação conjugal
em início de crise. Há também o salvamento dos afetos dos filhos, corpos, poderes e
hormônios heroicos em ebulição contida em virtude do forçoso interdito estatal. Por
fim, há a descoberta do afeto heroico do bebê Zezé, despropositadamente cruel para o
desconcerto da babá, mas irrepreensível no desfecho de controlar Síndrome e, assim,
salvar Metroville.

E, salvando Metroville, salvar o mundo. Mesmo que todo o esforço não garanta
a libertação dos heróis. E somente lhes reserve mais uma remoção a ser empreendida
pelo hobbesiano Programa de Recolocação.

48
Carros Relâmpago
e Sally

UUm preciso instrumento de velocidade e aerodinâmica. E de presunção. Este é


Relâmpago McQueen, jovem participante da final da Piston Cup, campeonato de corrida
acompanhado por toda a sociedade do automóvel.

Ególatra, Relâmpago não brilha sozinho na prova. Seus concorrentes são o


Rei, Strip Weathers, membro da escuderia Dinoco, todo em azul, campeão absoluto e
prestes a se aposentar. E Chick Hicks, todo em verde e com um bigode canastrão, sendo
acompanhado neste distintivo por todos os membros de sua escuderia.

A corrida se realiza com lances de expertise e também de trapaça. Chick tumultua,


mas o Rei Strip Weathers está na dianteira. McQueen surpreende com manobras
inimagináveis e chega a assumir o 1º lugar. Porém Relâmpago, que diz preferir “trabalhar
sozinho”, ignora sua equipe e não efetua troca de pneus, vendo-os, minutos depois,
explodirem. Diante da crise, Strip e Chick aceleram. A prova termina empatada. Strip,
Chick e McQueen cruzaram a linha juntos em 1º lugar.

Deste modo, os três vencedores terão que correr nova prova, em uma semana,
na Califórnia. O vencedor leva dois prêmios: a taça da Piston Cup e o lugar do semi-
aposentado Rei Strip, na Dinoco.

Com a demissão coletiva de sua equipe, que não suporta sua arrogância,
Relâmpago fica sozinho. Restam sua soberba, o apoio de Mack, caminhão-carreta que o
conduz, e as palavras ausentes de Harve, seu empresário e advogado. Relâmpago não
tem amigos. E a imagem das dezenas de carros velhos e decrépitos que o aguardam
após a corrida no estande de seu patrocinador, a “loção” antiferrugem Rust-eze, causam
repugnância ao moço carro de corrida.
Carros de Radiator Springs

49
Finalizada a prova, rumo à Califórnia. O herói tem pressa de chegar logo ao destino
e assim tentar negociação antecipada com a Dinoco. Mack quer dormir, mas McQueen
sugere prosseguir viagem noite a dentro. Mack cai ao sono ao volante e o caminhão é
alvo de um grupo de jovens arruaceiros. A carreta balança na pista e sem querer provoca
a queda de Relâmpago. O herói está
sozinho perdido e acaba em um lugar
qualquer na lendária Route 66.

Sem farol, já que na dianteira


ele só usa adesivos decorativos,
sem orientação, pois ele só conhece
pistas de corridas, McQueen se
perde. Forasteiro, é perseguido por
Sheriff, único carro policial da cidade
Mate
esquecida de Radiator Spring. Em
alta velocidade e destruindo a pista
de entrada da cidadela esquecida, Relâmpago é perseguido e acaba preso por dano ao
patrimônio coletivo da cidade. Condenado, sua pena é reformar, ele mesmo o ele que
quebrou.

No outro dia, em Los Angeles, mistério. Onde estaria Relâmpago McQueen? Esta
pergunta é feita pela imprensa mundial? Mas enquanto o planeta procura pelo herói,
na esquecida Radiator Spring relâmpago é um desconhecido. A cidade sumiu do mapa
com a decadência da estrada mãe dos Estados Unidos. E junto com este sumiço, seus
habitantes desbotaram seus viços.
Vivem de memória. Perderam a
dimensão do futuro. Relâmpago McQueen

Quem condena McQueen


é carro juiz Doc Hudson. Doc
odeia carros de corrida. A
promotora da cidade, um modelo
Porsche de nome Sally, é autora
da acusação contra o presunçoso
carro de corrida. Resta a ele
a solidariedade do guincho Mate, caipira de bom coração, que o presenteia desde o
primeiro momento com sua sincera e descompromissada amizade.

McQueen tenta fugir, é recapturado, quase morre de esforço para recapear a rua
que destruíra, e aprende lições de humildade e companheirismo. Mas seus principais
aprendizados serão o sentimental por meio da paixão que passa a sentir por Sally e
do exemplo de simplicidade e partilha que Doc Hudson lhe oferta. Doc, ex-carro de
corrida, ex-tricampeão da Piston Cup, cansado do mundo de celebridade descartável,
transmite-lhe a mensagem de valorização da essência das pessoas e das coisas, o que o
campeão Relâmpago desconhecia.
50
McQueen se envolve com todos. Além de Mate, que se torna seu grande amigo,
ele se aproxima de Flô, dona do posto de gasolina; de Filmore, viúva do fundador da
cidade; de Luigi e Guido, italianos da Casa Della Pneus; e de outros habitantes veículos
como Lizzie e Sargento.

Radiator Spring, fim do mundo, passa ser seu vasto mundo. Lugar de sua
revelação. Seu lugar.

Doc Hudson avisa à imprensa. McQueen é localizado e corre a final, ganhando a


Piston Cup e todas as benesses embutidas na conquista. Mas volta a Radiator e se une a
Sally. Um outro carro-homem se ergue, mais humano, travestido de campeão.

Por Isso eu Corro Demais

Nos extras de Carros, o próprio John Lasseter, diretor do filme, conta emocionado
que o apelo da história tem forte ligação com suas reminiscências infantis. O pai de
Lasseter era trabalhador do ramo automobilístico e viajava de férias com a família
pelas autoestradas norte-americanas rememorando o típico movimento do pathfinder,
homem que explorou o território dos Estados Unidos em busca de conhecer o interior
prometido da terra do destino manifesto.

Assim, a imagem de uma Route 66 decadente já fazia parte do imaginário


do diretor. Transpô-la às telas foi uma homenagem a seu pai, a sua família e ao se
passado. E também um gesto de bravura com relação à memória das pequenas cidades,
condados e vilas dos Estados
Unidos, que sucumbiram frente ao
apelo das megalópoles interligadas
por grandes rodovias e grandes
aeroportos.

A idealização de Radiator
Spring é, desta forma, uma ação
corajosa de denúncia contra o
processo de morte dos lugares,
Carros em corrida
como nos sugere Davis (2007). De
acordo com o autor, na modernidade as cidades eram eldorados, pois que epicentros
da dinâmica econômica e local seguro diante de um campo repleto de perigos, com
ambiente hostil e natureza em estado selvagem e indômito. Porém, hoje, são as cidades
que são os habitats de uma ecologia do medo.

A chegada de McQueen à pequena e esquecida cidade é obra de um acaso,


intempestivo e contingencial, não aceito a priori pelo carro campeão. Entretanto, ao

51
final do filme, percebe-se que são as metrópoles os lugares ameaçadores e adversos, e
não as pequenas localidades perdidas, repletas de afetos e solidariedades.

Percepção esta que se dá no filme sem nostalgia pós-moderna de um passado


que se foi, e não mais voltará. Percepção que se dá, em Carros, com o ato heroico de
aceitação da comunidade como lugar, como casa e como abrigo. McQueen adotará
Radiator Springs fazendo lá os amigos, e vivendo os amores, que jamais tivera, que
jamais vivera.

Nos grandes centros urbanos o processo agressivo do capitalismo e da economia


de consumo, o desrespeito ao meio ambiente, a degradação das condições hidro
sanitárias e a favelização tornaram inóspitos estes lugares. E a passagem do astro por
Radiator consegue imprimir uma nova dinâmica na cidadezinha, inclusive econômica,
mas sem desrespeitar seu apelo comunitário essencial inerente ao lugar onde se refugiou
Doc Hudson, mito ex-tricampeão da
Sally
Piston Cup.

Competir para Relâmpago


McQueen é vital. Hedonista e
midiática, a presença de Relâmpago
na Piston Cup é espetacularizada
pela cobertura e pela multiplicação
de sua imagem via mídia, seja na
glorificação feita pelo jornalismo,
seja na mitificação feita pela publicidade e propaganda a qual, inclusive, destoa do caráter
egocêntrico e antropófobo de McQueen. Não nos esqueçamos de que o carro pretere o
público de seu patrocinador antiferrugem, uma vez que composto essencialmente por
velhos sem glamour e sem jovialidade, espelhando ele próprio em sua velhice.

O carro de corrida vive assim, no dizer de Débord (2013), uma condição de


vedeta, desvinculada de uma aura própria de subjetividade, a serviço da cultura de
consumo e superficial ao suscitar desejos inalcançáveis. Em Carros, tanto McQueen
quanto outros corredores da Piston Cup como Chick Hicks exercem este poder simbólico
dado, exclusivamente, por suas condições de ícones, de imagens, de objetos de quase
veneração.

Condição esta inacessível para a maioria dos comuns carros mortais e


encarceradora para quem a exercita, compreendida assim há tempos pelo grande
campeão em voga e, por isso, tão oportunamente Rei, Strip Weathers. Por sábio, o Rei é
avesso à carga excessiva de mediatização.

A condição de vedeta é a especialização do viver aparente, o objeto


da identificação com a vida aparente sem profundidade, que deve
compensar as infinitas subdivisões das especializações produtivas
efetivamente vividas. As vedetas existem para figurar tipos variados
de estilos de vida e de estilos de compreensão da sociedade, livres

52
de se exercerem globalmente. Elas encarnam o resultado inacessível
do trabalho social, ao arremedar subprodutos deste trabalho que
são magicamente transferidos acima dele como sua finalidade: o
poder e as férias, a decisão e o consumo, que estão no começo e
no fim de um processo indiscutido [...]. O agente do espetáculo
posto em cena como vedeta é o contrário do indivíduo, o inimigo
do indivíduo, tanto em si próprio como, evidentemente, nos outros.
Passando no espetáculo como modelo de identificação, renunciou
a toda a qualidade autônoma, para ele próprio se identificar com a
lei geral da obediência ao curso das coisas. A vedeta do consumo,
mesmo sendo exteriormente a representação de diferentes tipos de
personalidade, mostra cada um destes tipos como tendo igualmente
acesso à totalidade do consumo e encontrando aí, de igual modo, a
sua felicidade (Débord, 2013).

Por isso que o encontro de Relâmpago McQueen com outros personagens de


Radiator Springs – Mate, Flô, Filmore, Luigi e Guido, Lizzie, Sargento, Doc Hudson
e Sally, por quem ele se apaixona – é revelador. Diante dos demais, após uma longo
processo de aprendizado e libertação liderado pela amizade de Mate, pela paixão para
com Sally e pelo exemplo de humildade de Doc Hudson, Relâmpago se sente emancipado
da opressão da mídia e da escravidão a qual estava submetido enquanto celebridade.

Culto à personalidade que se desfaz também por meio dos encontros


protagonizados em um cenário jamais imaginado por Relâmpago, carro jogador por
excelência. E exercendo de modo total esta característica de jogador, o carro campeão
se configura como homo ludens, como conceitua Huizinga (2000). McQueen, com sua
devoção às pistas, demonstra como o jogo, a disputa e a competição são inerentes à
cultura, configurando um complexo contexto de representação da condição humana.

Relâmpago McQueen não somente joga como se joga no jogo da Piston Cup. Claro
que a super exposição de sua imagem, o dinheiro e a tietagem o fascinam. Entretanto, o
que lhe atrai para as pistas não é somente a recompensa material ou narcísica. O que faz
de McQueen um carro de corrida único e por isso vitorioso é a sua completa paixão pelo
ato de correr, exercida por ele em cada prova, curva ou ultrapassagem como um ato de
coragem extrema em enfrentar adversidades e perigos. Para ele, sua vida se resume a
jogar, sendo a prova mais que um desafio, uma vez que é pelo componente lúdico do
ato de correr que ele se faz vivo.

Filmore

53
Está tudo muito bem, mas o que há de realmente divertido no jogo?
Por que razão o bebê grita de prazer? Por que motivo o jogador se
deixa absorver inteiramente por sua paixão? Por que uma multidão
imensa pode ser levada até ao delírio por um jogo de futebol?’
A intensidade do jogo e seu poder de fascinação não podem ser
explicados por análises biológicas. E, contudo, é nessa intensidade,
nessa fascinação, nessa capacidade de excitar que reside a própria
essência e a característica primordial do jogo. O mais simples
raciocínio nos indica que a natureza poderia igualmente ter
oferecido a suas criaturas todas essas úteis funções de descarga de
energia excessiva, de distensão após um esforço, de preparação para
as exigências da vida, de compensação de desejos insatisfeitos etc.,
sob a forma de exercícios e reações puramente mecânicos. Mas não,
ela nos deu a tensão, a alegria e o divertimento do jogo (Huizinga,
2000, pag. 6).

Doc Hudson abandonou o mundo das corridas não por causa de um acidente ou,
ainda, devido à futilidade do universo de espetacularização do circuito Piston. Estas são
as desculpas que o enredo do filme nos apresenta nos limites de sua narrativa ficcional.
O ato de bravura do campeão em abdicar do status de mito das pista se dá muito mais
pela completa perda, para ele, do referencial lúdico próprio dos autódromos.

Referencial que para McQueen somente se agiganta. Fazendo-o ainda mais


destemido nas acelerações e derrapagens, após a experiência de crescimento na
cidadezinha morta, às margens da imponente Route 66.

54
HHá uma linha que por mais que difusa revela uma ligação entre quatro filmes da
Pixar: To Story 2 (1999), Monstros S.A. (2001), Wall-E (2008) e Carros 2 (2011). E esta
linha é a que se estende ao debate dos saberes evocados por estes filmes.

Nestas narrativas temos personagens ressignificados em sequências de filmes


anteriores (Toy Story 2 e Carros 2), mas que nem por isso deixam de apresentar
contribuições originais ao pensamento sobre a condição humana.

Também temos filmes que abordam, de modo diferente, problemáticas inerentes


aos modos de compreensão dos saberes contemporâneos, com contribuiçõs ímpares
para a reflexão aqui buscada.

Saberes que vão no curso da tecnociência, da memória e da sustentabilidade...


entre outros horizontes, por exemplo, revelando o quanto a trama da Pixar pode nos
lançar em debates polifônicos sobre o contemporâneo e sobre a tríade indivíduo,
sociedade e espécie. E em assim sendo, tais debates têm o poder de nos emancipar
perante os dogmas, os sensos comuns, as falhas ideias.

O poder imperativo e proibitivo conjunto dos paradigmas,


das crenças oficiais, das doutrinas reinantes e das verdades
estabelecidas determina os estereótipos cognitivos, as idéias
recebidas sem exame, as crenças estúpidas não-contestadas,
os absurdos triunfantes, a rejeição de evidências em nome da
evidência, e faz reinar em toda parte os conformismos cognitivos
e intelectuais (Morin, 2000, p. 27).

Reformar o pensamento, pensar na aleatoriedade e na necessária religação dos


saberes, de forma a se integrar aos operadores da complexidade. Toy Story 2, Monstros
S.A., Wall-E e Carros 2 nos provocam a este exercício, pois suas histórias proporcionam
leituras dialógicas, por meio do entrelaçamento de aparentes pares opostos. Ou
recursivas, com a sucessão de causas e efeitos gerando novas causas e novos efeitos. Ou
hologramáticas: as secções dos enredos se envolvem com seus todos, e seus todos se
bifurcam em suas partes.
Pensemos em Toy Story 2 e visualizemos o debate sobre a memória e sobre a
preservação dos afetos, das lembranças e do conhecimento. Woody reencontra o passado
por ele desconhecido. Que descoberta! Mas o que fazer a partir de então?
Sair da vida e entrar na história, seguindo para o museu, ou abandonar os seus e
seguir rumo ao eterno presente de Andy. Estas são as alternativas. Memória em debate
no filme, em tempos de reafirmação do passado.
Ou então em Monstros S.A. e seu discurso que se desdobra na corrida por saberes
e saídas socioambientalmente assertivas, mesmo quando não saibamos, por cegueira, o
que elas seriam, ou como alcançá-las.
James P. “Sulley” Sullivan e Michael “Mike” Wazowski, por meio de sua
convivência com a “monstruosa” Boo, acabam por descobrir de forma inesperada uma
nova, potente e revolucionária fonte de energia para o mundo monstro. Mas o caminho
58
até esta descoberta será bastante tortuoso. Além disso, há os erros e incoerências de se
enxegar esta ciência monstro como mais evoluída por substituir gritos por risos.
Wall-E delineia um futuro sombrio para a humanidade, que vive no ano 2805
d.C. longe da terra-pátria, confinada na nave espacial Axiom, de propriedade da
megacorporação Buy-n-Large (BnL).
O robô EVA consegue a chave para a tão sonhada recolonização da Terra. Contudo,
o cérebro computacional Auto é contra a recolonização, cabendo ao enferrujado
robozinho Wall-E a missão de liderar a luta por trazer o sapiens demens de volta ao seu
habitat natural.
Saberes da tecnociência que fazem do homem escravo da tecnologia. E, em
especial, escravo do consumo exacerbado, que faz de toda mercadoria comprada uma
candidata ao descarte próximo. Montanhas de lixo emolduram paisagens de cidades,
ainda com vida. Habitadas e habitáveis por humanos.
E Carros 2 com um enredo de intriga, heroísmo e espionagem internacional
em torno da estratégia de sabotagem empreendida para o não uso do combustível
renovável Allinol. Relâmpago McQueen e Mate são envolvidos em uma saga que revela
articulações espúrias contra um saber necessário para o bem da humanidade, que é o
desenvolvimento de tecnologias limpas em contraposição ao petróleo.
Os obstáculos postos ao uso do Allinol talvez metaforizem o modo de ação das
empresas gigantes do setor energético, pouco preocupadas com a sustentabilidade do
planeta. Entretanto, há a outra face da moeda: que fazer com o enorme número de
carros excluídos e velhos inadaptáveis às tecnologias limpas por precariedade material
e desinteresse da indústria?
Toy Story 2, Monstros S.A., Wall-E e Carros 2 são questionadores de conceitos
pré-estabelecidos no campo do conhecimento humano, incidindo sobre nossas certezas
e sobre nossos aprendizados. Cabe-nos compreendê-los.
Às histórias e às visões.

59
Toy Story 2

NNo futuro, pode ser que a paixão de Andy pelo boneco Woody se abrande, sendo
até mesmo o brinquedo jogado na lata do lixo, doado ou vendido como peça de bazar.
Mais adiante na sequência histórica de Toy Story, esta hipótese se confirmará, mas não
como ato de abandono, e sim como amorosa doação.

Mas até lá, o que fazer? Não se render ao tempo que tudo muda e buscar no agora
alternativas no horizonte de um incerto futuro? Ou dobrar-se e se voltar ao passado,
no qual a única certeza é o vivido e acessível pela memória, em especial pela memória
coletiva?

Encontrar esta razão será a difícil escolha do caubói de pano. As marcas do tempo
já se fazem presentes na estrutura do brinquedo preferido do menino. Brinquedo Woody
que, em virtude de um ato de companheirismo – a salvação de um colega Pinguim de
borracha que ruma para ser vendido – se vê igual e acidentalmente colocado à venda,
acabando por ser sequestrado pelo vilão Al McWhiggin.

Travestido de galinha na televisão, Al McWhiggin é, ele mesmo, garoto propaganda


de sua loja de brinquedos, a Al’s Toy Barn.

Ganancioso, Al quer completar toda a coleção da série de televisão de bonecos


marionetes do Velho Oeste que era sucesso na década de 1960. Fazem parte da série
os bonecos Bala no Alvo, um cavalo típico de desenho animado, uma cowgirl chamada
Jessie e Mineiro, vovô egocêntrico mantido até então intacto em sua caixa. Resta somente
um precioso boneco para que a coleção esteja em sua versão integral, certamente o mais
valioso do grupo. E este boneco é o caubói Woody.

Mineiro, Jessie e Bala no Alvo vivem, há anos, nas trevas do interior das caixas
guardadas por Al, aguardando a tão esperada chegada do último item da coleção.
Suas vidas são puras lembranças, evocadas por
propagandas, vídeos e peças promocionais da
série televisiva.

Woody, libertador, representa a possibilidade


de um futuro de luz e de revanche, pois se nenhuma
criança mais quer o trio, milhares de visitantes
do museu do brinquedo japonês querem
ver expostos os bonecos, ícones do
passado televisivo dos Estados
Unidos.
Jessie
Com o sequestro de Woody,
não falta mais nenhum item para

60
que Al McWhiggin execute seu plano: vender a coleção, na íntegra, ao museu no Japão
que paga quaisquer valores pelo catálogo histórico que possui bonecos e toda a sorte de
souvenir. Com a ida para o museu, lugar de memória, o grupo será idolatrado, algo que
há tempo nenhuma criança o faz.

Mas com sumiço de Woody os bonecos, liderados pelo astronauta Buzz Lightyear,
saem em seu resgate enquanto Andy passa alguns dias em seu acampamento de férias.
Buzz e os demais identificam o sequestrador e partem em seu encalço. Woody é levado
para a casa de Al e lá ocorre o encontro revelador do caubói com Jessie, Bala no Alvo
e Mineiro.

Woody se descobre, pois constata que fora um astro de televisão. Sua vida de
brinquedo de um dono, por inteiro, ressignifica-se. O passado o convida a um futuro
diferente. E o dilema se define entre voltar para Andy e contrariar seus amigos do
Velho Oeste, ou abdicar do amor do menino e seguir para um retiro em exposição
permanente junto aos seus semelhantes, a despertarem lembranças de gerações de
turistas e visitantes do museu.

Buzz Lightyear e os demais, após muitas trapalhadas e encontros entre brinquedos


iguais no interior da loja Al’s Toy Barn (um outro Buzz crente em ser defensor da galáxia
duela contra um outro vilão Imperador Zurg, também de brinquedo), encontram Woody
e o trio do seriado de televisão. Falta pouco tempo para Al despachá-los, todos, para o
Japão.

Mas no reencontro, Woody faz sua escolha e prefere seguir para o museu e ser
objeto de memória. Ao abraçar a alternativa de ser venerado em uma sala de exibição,
o caubói abre mão de um amanhã incerto e possivelmente descartável, análogo ao que
se passou com Jessie, hoje amarga por ter sido abandonada
há anos por sua ex-dona.

Os brinquedos de Andy, com Buzz a frente,


desesperam-se. Mas a decisão está tomada.
Woody não mais voltará. Porém logo depois
o caubói se arrepende e ao tentar
voltar atrás é aprisionado por
Mineiro, que revela seu
egoísmo e vilania obrigando
todos a seguirem rumo
ao Japão. O velho não
crê no amanhã e prefere
um eterno presente com
base no passado prestes
a acontecer na permanente
exposição japonesa.
Bala no Alvo

61
Uma perseguição se prolonga até o aeroporto e somente termina com o fim de
Mineiro entregue a uma menina detentora de Barbies, e com o resgate de Jessie, já
dentro do bagageiro do avião que taxia para levantar voo em direção à Ásia.

Woody volta para Andy junto a todos os demais brinquedos, inclusive Jessie
e Bala no Alvo, incorporados à coleção do menino e de sua irmã. Entre a frieza do
estrelato de museu e o calor da temporal paixão infantil, o caubói fez sua escolha. Al
McWhiggin perde sua grande venda e os brinquedos reconquistam suas razões de vida.

Serem somente brinquedos, abertos ao devir.

Mnemosine

O fio condutor do enredo de Toy Story


2 nos apresenta como eixo central o saber da
memória, para além das intrigas e perseguições
e da solidariedade de grupo dos brinquedos
quanto ao resgate de Woody após o sequestro
empreendido por Al McWhiggin.

Em questão está uma dúvida que


aterroriza Woody: ficar com o amor presente
de Andy e em suspenso quanto ao seu futuro
incerto (ele não sabe se será amado pelo
garoto quando de sua vida juvenil e adulta,
se terá o mesmo destino de Jessie, ou se será
doado, ou jogado no lixo) ou viver no eterno
presente da memória coletiva sacralizada no
espaço do museu japonês.

A escolha inicial do brinquedo é por


viver embalado pelas lembranças em um
fluxo contínuo de memória, imortalizado
em um espaço de exposição como aquelas
ambiências que Nora (1993) chama
poeticamente de lugares de memória. Frente
a um desaparecimento das lembranças e do
passado, é preciso instituir marcos, artefatos,
discursos, traços, sentimentos, lugares aptos
à preservação dos acontecimentos pretéritos,
antes que eles sejam esquecidos.

62
Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há
memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso
manter aniversários, organizar, pronunciar elogios fúnebres, notariar
atas, porque essas operações não são naturais. (Nora, 1993, p. 13).

O Mineiro convence o caubói. E ele decide partir com os seus de origem: o velho,
o cavalo e a mocinha. Em verdade, Woody, até então, era um ser sem referencial de
memória pessoal e, principalmente, de memória coletiva. Sua vida não se dividia entre
diversos antes e depois. Ela somente se materializou em suas lembranças no momento
posterior de seu desembalar por Andy.

Como um feiticeiro, o movimento do menino é análogo ao conceder alma a um


ser inanimado, tornando sagrados os rituais da abertura da caixa invólucro d’alma e
da inscrição do seu nome, com uma cicatriz, no pé do brinquedo. Woody é vivente só
após estes feitiços serem praticados por seu dono, em uma relação inicial e única entre
ambos, já que não compartilhada por mais ninguém.

Mas mesmo assim falta ao boneco, justamente, a partilha que nos faz sentirmos
membros de um mesmo grupo e circunscritos no mesmo círculo de recordações grupais,
comunitárias ou societárias, todas
Al McWhiggin travestido de galinha
emancipadoras. Falta-lhe este saber
imprescindível ao ser humano, o
qual só é conhecido pelo caubói no
instante mágico em que ele conhece
a coleção de Al McWhiggin.

Sua vida tem sim um antes de


Andy, é que o lhe revela a montanha
de souvenirs, revistas, vídeos e
demais bonecos da série televisiva
de heróis do Velho Oeste. E nesta
sua vida memorável houve grupos
que sustentaram as narrativas que o
fizeram ser vivente. Esta descoberta
fascina Woody e lhe franqueia um sentimento de pertença por ele jamais vivenciado. E
este sentimento é o de partilhar memórias.

A memória coletiva só existe nos grupos. É o que pontua Halbwachs (1990).


Nossas memórias pessoais passam por um processo de validação para com os coletivos
com os quais interagimos e com os quais vivenciamos. É como se amparássemos nossas
lembranças nas lembranças dos outros. E este amparar é o que não nos permite esquecer.

Woody parece ter encontrado este amparo ao conhecer o Mineiro, Jessie e Bala
no Alvo.

63
Um homem, para evocar seu próprio passado, tem frequentemente
necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros. Ele se reporta
a pontos de referência que existem fora dele, e que são fixados pela
sociedade. Mas ainda, o funcionamento da memória individual
não é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as
idéias, que o indivíduo não inventou e que emprestou de seu meio
(Halbwachs, 1990, p. 54).

Ao ser presenteado com este saber, Woody vive a reversibilidade do tempo,


experiência humana por natureza. Somos animais capazes de trazer o tempo de volta,
fazê-lo ser recomposto por meio das elaborações mentais que nos causam a sensação
nostálgica seja de tristeza ou de alegria, de saudade, de reviver. Seja para avançar, ou
para retroceder, sempre para reanimar na etimologia do termo: restituir o ânimo, a
anima.

Andy desconhecia por completo esta faculdade. É natural, portanto, que o apelo
de Mineiro, de Jessie e de Bala no Alvo lhe seduza ao lhe proporcionar um intenso
retorno, um mergulho inédito e inesperado em seu passado compartilhado entre os
demais bonecos da série e milhares de pessoas ao redor do mundo. Inclusive no Japão.

64
O tempo em que se dizem os mitos e o tempo em que se cultuam
os mortos também se caracterizam por ser uma composição de
recorrências e analogias. A sua nota principal é a reversibilidade.
Reversibilidade que é estrutural, pois abraça retornos internos.
[...] A reiteração dos movimentos, feita dentro do sujeito, faz com
que este perceba que o que foi pode voltar: com essa percepção
e com o sentimento da simultaneidade que a memória produz
[...] nasce a ideia do tempo reversível. O tempo reversível é,
portanto, uma construção da percepção e da memória: supõe o
tempo como sequência, mas o suprime enquanto o sujeito vive
a simultaneidade. O mito e a música, que trabalham a fundo
a reversibilidade, são “máquinas de abolir o tempo”, na feliz
expressão de Lévi-Strauss (Bosi, 1992, p. 27).

Se nos livrarmos do aspecto da fábula que prega um fim punitivo e moralizante


para Mineiro o apresentando como vilão da história, concluiremos que o final da trama
para o personagem fora injusto. Afinal, a ele nunca fora dada a dádiva de, na perspectiva
da saga Toy Story da Pixar, ter um dono. Um dono que o ganhasse, desembalasse e
inscrevesse seu nome abaixo de seu pé de plástico e borracha, tal qual Andy (feiticeiro)
fizera com Woody.

Muito pelo contrário, Mineiro viveu


toda sua vida embalado na sua caixa original,
somente partilhando memórias com seu
grupo primário (os brinquedos da série de TV,
menos Woody, o desaparecido e “resgatado”
por um ganancioso Al McWhiggin).

O encantamento de brincar nunca a


ele foi concedido. Daí seu ressentimento e
sua opção natural e justificável de seguir para
o museu, de ser alvo de idolatria por parte
de japoneses e turistas, em sua grande parte
norte-americanos.

Já a opção de Woody fora a mais


óbvia. Com ela, ele fez uma aposta que, no
desenrolar da série da história do brinquedo,
se mostrará correta. Tanto que quando o
momento da separação chegar, ficará patente
Mineiro
que Andy, Woody, Buzz Lightyear e os demais
brinquedos, todos juntos, constituíram uma
comunidade de memoráveis, compartilhando suas vidas, emoções e lembranças.

Lembranças que dificilmente desaparecerão, mesmo com a divisão do grupo,


no tocante momento em que Andy virar adulto e ter que doar seus bonecos caubói e
astronauta.

65
Monstros S. A.
UUma crise de energia é iminente e
Monstrópolis tem como principal matriz
energética o grito aterrorizado de crianças,
coletado pelos horripilantes funcionários
da empresa Monstros S.A.. É este grito
que gera energia elétrica e faz toda
a cidade funcionar. Sem ele, que já
se encontra escasso devido a baixa
capacidade atual da infância em
sentir medo, tudo para na cidade em
um apagão energético de trevas e de
caos. Mike e Sulley

Nada mais choca as crianças como antes chocava. E se o temor infantil é cada vez
mais raro, resta buscar formas de amplificá-lo.

Detentora de portas dos armários dos quartos infantis de todo o mundo,


a companhia possui ainda um time seleto de assustadores responsáveis por obter a
energia que move a cidade. Realidade paralela na qual se crê que meninos e meninas
são seres tóxicos e letais aos seus monstros habitantes. Desta forma, qualquer contato
com crianças é motivo de pânico, sendo repelido com fervor por todos os monstros.

Mas a ciência, de trajeto tortuoso e incerto, mais uma vez se mostra como
construção e, por este motivo, falha em sua narrativa. Em verdade o riso de uma criança
tem poder energético 10 vezes superior ao seu grito amedrontado.

E nos subterrâneos da pesquisa científica da empresa, a orientação dominante é


estudar a possibilidade de maximizar a coleta de gritos por meio de sucção mediante
tortura, sendo para tanto necessário o sequestro de menores.

O grandão James P. “Sulley”


Sullivan é quem ocupa o
primeiro lugar entre os melhores
aterrorizadores da Monstros S.A.,
sendo assessorado pelo redondo e
ciclope Michael “Mike” Wazowski.
A paranoia em torno do contato
dos monstros com crianças é geral
sendo implacável a vigilância da
CDA (Child Detection Agency),
agência governamental que atua
Sr. Waternoose contra esta temível ameaça. Mas

66
por um aparente descuido uma menina atravessa a porta entrando no universo dos
monstros. O terror se instala na cidade.

A menina é apelidada de Boo e significa um grande perigo para todos em


Monstrópolis. Sulley e Mike tentam escondê-la de toda forma, buscando conduzi-la de
volta para seu mundo. Mas nesta busca pela reintegração da menina a seu quarto pela
porta correta de um armário, a caçada da CDA se torna cada vez mais intensa.

Vigilância e controle da CDA que são totalizadores. A cada mero indício de vida
infantil, agentes com pesados artefatos correm em busca de descontaminação dos locais
onde, supostamente, meninos ou a meninas, ou quaisquer objetos por eles ou por elas
tocados, tenham sido encontrados.

Só que um detalhe merece atenção:


a chegada de Boo não foi involuntária. O
monstro Randall, mal caráter, invejoso e
sempre segundo colocado no ranking de
melhores coletores de gritos da empresa,
está aliado ao presidente da Monstros S.A.,
Sr. Waternoose, no desenvolvimento da
máquina de sucção de gritos para tortura.

A mesma que necessitará do sequestro


de crianças para se fazer testar e, a posteriori,
funcionar, gerando energia e lucro para a
empresa. E a menininha já seria uma das
vítimas cobaias deste experimento-armação.

É preciso proteger Boo, custe o que


custar. Até mesmo porque o laço afetivo
entre a pequena e o grandalhão Sulley é
cada vez mais forte. Quando a trama de Sr.
Waternoose e Randall vem a tona, Sulley e
Mike chegam a amargar o exilio junto ao
Abominável Homem das Neves. Mas Sulley
resiste e, determinado, consegue voltar
para Monstrópolis a fim de salvar Boo e
desmascarar os farsantes. E Mike, também
contrariado, acaba por acompanhá-lo.
Boo

A ciência estava equivocada. O modelo


de sucção de gritos mediante tortura era inapropriado. Sr. Waternoose é preso e, para
espanto de todos a antipática Roz, até então burocrata responsável pela cobrança dos
relatórios de produtividade dos assustadores, revela-se como a toda poderosa chefe da
onipresente CDA.

67
E fica decretado por Roz que os subterrâneos do caso jamais deverão vir a público.
O jogo inaparente da política, da economia e em especial da ciência deve ficar ocultado
da população.

Após uma tumultuada perseguição, Randall é expulso de Monstrópolis e Boo


volta para seu quarto, com sua porta sendo triturada a fim de jamais Sulley poder revê-
la.

A verdadeira descoberta cientifica se dá por acaso. Enfim, ganha corpo e dá


resultado a tese de que o riso infantil tem largamente maior potencial energético que o
grito de horror. A indústria Monstros S. A. se adapta facilmente a estes novos tempos. Os
funcionários deixam de ser assustadores, para serem divertidores, com imenso ganho
de produção.

No fim, Sulley ganha a chance de reencontrar Boo. Um encontro emocionante e


filial. Em nada monstruoso.

Cegueiras do Conhecimento

Monstrópolis inteira habita a caverna, com as sombras desvirtuando a percepção


dos monstros e os impedindo o acesso ao conhecimento. A sociedade dos monstros não
se trata de uma sociedade paleolítica, medieval, muito menos carente de tecnologia
moderna, eletrônica, computacional.

Pelo contrário, ela se ergue como coletivo de desenvolvimento tecnocientífico


ímpar. Inclusive hiper refinado no quesito fontes de energia e detecção de ameaças
letais, em estratégia contraterrorista por
meio da ação paranóica e implacável da
CDA (Child Detection Agency).

O grito aterrorizado das crianças


é o que move a cidade inteira, sendo esta
fonte energética renovável explorada sob o
monopólio da empresa Monstros S. A. Com
profissionais experts na tarefa de extrair
gritos de crianças, a empresa até poderia ir bem. Exceto pelo fato de que o mundo passa
por sucessivas transformações em um cenário de superabundância de acontecimentos
(Augé, 1994) e, neste contexto, assustar crianças na contemporaneidade exige mais que
caretas, gritos e faces monstruosas.

Uma nova tecnologia se faz necessária a fim de maximizar a produção de


energia. E no filme, esta tecnologia é proposta por meio de uma dinâmica de corrupção

68
engendrada pelo assustador Randall em associação com o leviano presidente da
Monstros S.A., o Sr. Waternoose.

Ambos arquitetam o desenvolvimento de uma máquina sugadora de gritos, a fim


de aumentarem suas lucratividades. O protótipo está pronto e a menina Boo será de
modo covarde usada no experimento inicial da nova parafernália.

Tudo bem. Este é o enredo. Mas a problemática central merece um deslocamento,


uma vez que nada há de anormal no contexto de Monstrópolis quanto a coletar gritos
de medo das crianças.

Admitamos que a sucção, uma vez que ameaça a segurança nacional ante a
alardeada extrema letalidade do contato dos monstros com meninos e meninas (todos
armas de destruição em massa), até que merece ser tratada como questão de Estado.

E de fato o é por meio da ação de investigação e espionagem de resultado efetivo


implementada pela Child Detection Agency. Até Roz, dirigente de poder supremo na
Agência, infiltra-se na corporação a fim de apurar o plano sórdido e perigoso em curso
pelas mãos de Randall e Sr. Waternoose.

A questão que merece destaque em Monstros S. A. é um problema de conhecimento


do conhecimento e de entendimento dos erros inerentes ao pensamento e à ciência.
Randall e Sr. Waternoose cometeram delitos sob bases falsas de culpabilidade. A
presença sadia, imune e benéfica de Boo na sociedade monstro revelou ser cega a visão
de que toda e qualquer criança era portadora de uma letalidade total com relação aos
monstros de Monstrópolis.

69
E além deste fator ambos foram incapazes
de, por meio de todo o arcabouço tecnocientífico à
disposição na mega empresa, perceberem o sentido
inverso – e errado de todo – da pesquisa científica a
que se dedicavam. Recursos, tempo e pulsões foram
gastas pela dupla em direção oposta ao que seria
efetivo quanto à resolução da crise energética da
cidade.

A saída não era o empreendimento de novas


tecnologias para amplificar a extração de gritos de
horror. E sim uma mudança metodológica, resultante
na descoberta de uma nova fonte energética não
somente renovável como, sobretudo, multiplicável: o vasto riso infantil.

Morin (2000) nos alerta, no contexto dos saberes necessários à educação do


futuro, que todo e qualquer conhecimento vive sob a ameaça do erro e da ilusão, de
suas cegueiras inerentes.

Compreender esta condição basilar a respeito do conhecimento e suas propensões


a erros mentais, intelectuais ou da razão, no contexto de paradigmas definidos, é
passo essencial rumo à educação e à necessária religação dos saberes, ao combate das
visões disjuntivas e redutoras. Randall e Sr. Waternoose desconheciam esta realidade e
fracassaram na eleição de paradigmas e na busca pelo conhecimento pertinente.

O conhecimento não é um espelho das coisas ou do mundo


externo. Todas as percepções são, ao mesmo tempo, traduções e
reconstruções cerebrais com base em estímulos ou sinais captados e
codificados pelos sentidos. Daí resultam, sabemos bem, os inúmeros
erros de percepção que nos vêm de nosso sentido mais confiável, o
da visão. Ao erro de percepção acrescenta-se o erro intelectual. O
conhecimento, sob forma de palavra, de idéia, de teoria, é o fruto de
uma tradução/reconstrução por meio da linguagem e do pensamento
e, por conseguinte, está sujeito ao erro. Este conhecimento, ao
mesmo tempo tradução e reconstrução, comporta a interpretação,
o que introduz o risco do erro na subjetividade do conhecedor, de
sua visão do mundo e de seus princípios de conhecimento. Daí os
numerosos erros de concepção e de idéias que sobrevêm a despeito
de nossos controles racionais. A projeção de nossos desejos ou de
nossos medos e as perturbações mentais trazidas por nossas emoções
multiplicam os riscos de erro (Morin, 2000, p. 20).

Os protagonistas James P. “Sulley” Sullivan e Michael “Mike” Wazowski se


inserem neste debate, com a descoberta da intensa carga energética do riso das crianças
ocorrendo como que acidentalmente. Mas, no filme, cabe a Sulley e Mike derrubar um
mito fundante da ciência, da natureza e da condição humana de Monstrópolis, que é a
idéia da letalidade infantil contra a população monstro.

70
A chegada da menina Boo é o passaporte para esta descoberta feita aos poucos
pela dupla, sem descartar o medo do desconhecido e o potencial complexo da visão de
progresso da ciência e do conhecimento. Sim, porque em Monstros S. A. a mensagem
implícita é de uma irrazoabilidade quanto à idéia de que as crianças contêm algo de
químico-biológico e mortífero em relação à vida monstro.

Por isso o aparelhamento estatal é arrojado, com a Child Detection Agency


atuando com vigor inexorável, mas também sob o signo da paranoia ou da mistificação.

E esta é uma armadilha inserida no roteiro do filme, exemplar para um amplo


debate sobre os saberes e sobre o conhecimento. Porque é próprio da ciência o
movimento de idas e recuos, que descredencia o pensamento linear caracterizador da
ideia de progresso como avanço deste mesmo conhecimento e desta mesma ciência. Ou,
ainda, como vetor de melhoria ou aperfeiçoamento, qualitativa e quantitativamente,
deste que é sobretudo algo acumulável e reversível.

Há também que dizer que, no universo físico, biológico, sociológico


e antropológico, há uma problemática complexa do progresso.
Complexidade significa que a idéia de progresso, aqui empregada,
comporta incerteza, comporta sua negação e sua degradação
potencial e, ao mesmo tempo, a luta contra essa degradação. Em
outras palavras, há que fazer um progresso na idéia de progresso,
que deve deixar de ser noção linear, simples, segura e irreversível
para tornar-se complexa e problemática A noção de progresso deve
comportar autocrítica e reflexividade (Morin, 2005, p. 97-98).

A sociedade do filme é dos monstros, não dos humanos. A conciliação é defensável


e a contaminação de corpos (com mortandade de monstros por contato com crianças)
pode até ser, de fato, fantasiosa.

Devemos pregar a união, o respeito e a compreensão dos seres e espécies em


nossas consciências antropológicas, telúricas, ecológicas e cosmológicas (Carvalho,
2003). Entretanto, a visão de que a ciência e o conhecimento monstro evoluíram rumo
à aceitação saudável da infância (e por isso melhor, aperfeiçoada, sem possibilidade de
retorno ou recuo) em sua comunidade abre o flanco para debatermos os modos como
este progresso se processa.

No campo dos saberes a humanidade já demostrou reversões e mudanças de


rotas, chanceladas pelo conhecimento científico.

Monstros S.A. é uma aventura que alegoriza no mínimo a movimentação e a


eclosão de dois fatos relevantes para a ciência: a alteração por completo da matriz
energética e a reconfiguração das relações entre espécies em uma mesma sociedade.

Pretensão de monta para um filme visto inicialmente como uma historieta de


amor filial entre um ser azul peludo e bonzinho e uma menina sem fala, encantadora
em sua inocência.

71
Wall-E
AA humanidade não mais habita o planeta. Tomado pelo lixo, o mundo, quase
se findou. Ilusões do consumo provocados pela mega corporação Buy-n-Large (BnL)
fazem com que no ano de 2805 em toda a superfície terrestre não mais sobreviva nem
um ser vivo sequer.
Aqui, na superfície do globo, o caos não é mais pai da criação.
E é neste ecossistema que uma unidade solitária do robô Waste Allocation Load
Lifter - Earth Class (algo como Levantador de Carga e Distribuição de Dejetos - Classe
Terra), ou Wall-E, “vive”, quase sem fala. Sua rotina é compactar lixo, empilhá-lo, e
repetir este movimento ad infinitum, como em uma alegoria do mito de Sísifo. Em sua
“casa”, lembranças de uma humanidade perdida são evocadas pela máquina por meio
do cinema, com o musical Alô Dolly (1969) de Gene Kelly sendo o veículo de (nossas)
reminiscências enquanto espécie.
Na Terra, na vida e na morada, uma barata e uma planta são as vivas companhias
sobreviventes de Wall-E.
Até que dos céus surge a nave que deixa na terra a robô Eva. E ela é enviada pela
Axiom, veículo interplanetário construído pela BnL, simulacro de habitat que recebeu
todos os humanos após a diáspora da terra sucumbida.
A missão de Eva no planeta sem vida é encontrar um ser vivo, uma planta, objeto
sagrado que ao ser encontrado será a prova de que o ser humano poderá viver mais
uma vez na Terra, quase um milênio depois. Se uma planta nasceu, a fertilidade do solo
se regenerou, não sendo mais inviável uma nova habitação do solo terrestre. Uma nova
humanização, enfim, voltara a ser possível.
Humanização porque na Axiom, controlada por um cérebro artificial tirano e
robô, humanos obesos, sedentários e inebriados por uma vida de ultra consumo e hiper
tecnologia sequer mais andam, sequer mais amam, sequer quase mais vivem. A nave
foi construída pela BnL para ser a morada infalível e universal, catedral do consumo e
da letargia. Sair dela e repovoar a Terra é a pretensão onírica. Um capitão guia a nave
e espera ser como Moisés, protagonista de um novo Êxodo.

Humanidade na Axiom

72
E Wall-E, solitário, já havia
encontrado uma diminuta planta. A
chegada de Eva desperta a paixão humana
Capitão da Axiom
na pequena máquina de compactuar
detritos. Wall-E, pleno de amor e sem
saber, presenteia Eva com a fonte da vida.
A robô entra em epifania, com o símbolo
verde do viver aceso no peito. Enfim,
a Terra será repovoada. Mas para isso
é necessário levar a materialização da
possibilidade de viver para a nave mãe.
Eva é resgatada por um veículo
que a conduz até a Axiom. Louco de amor,
Wall-E se agarra ao equipamento e segue
viagem para se juntar à Eva. Na nave,
o capitão descobre a planta e, enfim,
poderá conduzir a humanidade de volta a
sua morada original. Entretanto, o piloto automático da Axiom, o computador Auto, é
contra o plano e tentará não mais reabitar o planeta.
O capitão se anima com a descoberta, mas Auto ordena que a planta seja roubada.
Wall-E se indigna e luta para preservar tanto a planta, como sua paixão por Eva, que
não compreende os atos do robô. Mas quando ela percebe os planos de Auto, reconcilia-
se com Wall-E. Agora, o robô tem uma aliada.
Antes lançado para fora da Axiom, Wall-E e Eva conseguem voltar para a nave
mãe. A meta é devolver a planta para o capitão, inseri-la no equipamento chamado
holo detector e dar início ao mitológico hiperssalto, mergulho galáxia a dentro rumo ao
planeta Terra.
O capitão da Axiom é pura nostalgia consultando imagens de uma humanidade
que, em sua visão, já passou da hora de se reconstituir. Mas Auto, cérebro eletrônico,
tem não só um plano como se rebela contra o comando humano da nave. O capitão não
consegue mais capitanear, Wall-E e Eva devem ser exterminados e o destino do sapiens
deve ser a inércia high tech possibilitada pelo capital e pelo consumo da BnL.
Uma luta se instaura, com o capitão, consciente de sua tarefa neste decisivo episódio
da humanidade, enfrentando Auto. Padrão da subespécie criada em oitocentos anos de
Axiom – obesos sem movimentos e sem sensibilidade – o capitão surpreendentemente
reage. Enquanto isso, Wall-E é massacrado pelos dispositivos e pelas máquinas sob o
comando de Auto.
No ponto central da Axiom uma batalha é travada. Auto prende Wall-E na entrada
do holo detector. O robô é esmagado, sendo liberto após a ação de Eva. A planta é
lançada ao compartimento. E, assim, a nave começa sua jornada emergente de volta ao
planeta há mais de oito séculos não habitado.
Em solo terrestre, Eva reconstitui Wall-E fisicamente com peças de reposição.
Falta reconstruir a memória, já que o ato de esmagar danificou muito a cognição do

73
único compactador de lixo restante após anos de solidão e completo vazio humano no
planeta. Um gesto de paixão faz soltar uma fagulha elétrica, e a memoria do robô se
reconstitui. Eva e Wall-E, Wall-E e Eva, como em Alô Dolly, poderão enfim viver uma
paixão de cinema.
E aos humanos resta a hercúlea tarefa. Repovoar, reconstruir, humanizar
um mundo por todos desconhecido, que um dia foi dilacerado pelo consumo nada
sustentável.

Lixo Não Extraordinário


A imagem do robô Waste Allocation Load Lifter - Earth Class, ou Wall-E, sozinho no
planeta a realizar um esforço aparentemente inútil e que se repete de forma ininterrupta
nos enseja a lembrança do mito de Sísifo como discutido por Camus (2010).
Wall-E metaforiza nossas jornadas de trabalho, por vezes inúteis ao manipular
um devir de lixo descartável e não extraordinário no próximo ou no imediato do pós-
consumo. E também metaforiza nosso destino enquanto humanidade legado a nós pelo
tempo moderno do século XX. Somos, segundo o escritor franco-argelino, estes homens
do absurdo acorrentados à tarefas insanas e infindáveis como recolher e compactar
entulho em uma terra completamente desabitada.
Sísifo desafiou os deuses e, capturado, teve como pena imputada o subir com
uma pedra até o topo de uma montanha para, ao deixar rolá-la livremente abaixo, ter
que reconstituir este esforço de modo sem limite. Wall-E é este Sífifo de um tempo em
que a hecatombe da produção, da tecnologia e do consumo desenfreados nos legou um
cenário de uma Terra de impossibilidades à vida humana.

Wall-E

74
Encontrar uma planta, por mais diminuta que seja, será se deparar com um sinal
sagrado de vida, talvez de religação com divindades, talvez de incitação a uma nova
cosmogonia, ambas capazes de reabilitar a vida humana, animal e vegetal, enfim a vida
plena no planeta.
Eva, a robô por quem Wall-E se apaixona (a sua Barbra Streisand, materialização
imaginária do onirismo oriundo de sua fixação no musical Alô Dolly), terá este papel
messiânico fundamental e precisará de todo o empenho do robô amado para ser a
portadora da mensagem do novo Êxodo.
Mas enquanto isso não ocorre, somente Wall-E e uma barata parecem ter
sobrevivido à desgraça travestida de benesse vendida (e comprada por todos) pela
megacorporação da tecnologia e do varejo chamada Buy-n-Large.
Com a saída integral da população após a ruína do mundo, outra solução
casada com a maximização da cultura de consumo fora ofertada e implementada
(comercializada) pela tirana empresa: a construção de uma nave espacial para abrigar
toda a população global, a ser satisfeita pelos produtos e pelas tecnologias da própria
BnL.
Produtos que
aplacam desejos universais
dos habitantes da nave
chamada Axiom, espécie de
Canaã ultra tecnológica e
informacional, responsável
por manter vivo enquanto
espécie, por cerca de 8 Eva

séculos, o homo sapiens


demens. Quase um milênio após sua diáspora programada tecnocientificamente e
comercialmente pela Buy-n-Large, este sapiens demens transmutou-se.
Este animal tornou-se mais obeso pois que sedentário, inercial e hipercalórico,
viu esfacelada sua qualidade de bípede, descartou a sexualidade e criou o mito de uma
Terra originária desconhecida e acessível somente por meio de imagens emanadas pelo
cérebro informacional presente na nave.
E com todas estas mutações, tornou-se insensível. Seu repertório cultural está
inteiramente digitalizado, sendo acessível por meio de telas, de gadgets, de utensílios
eletrônicos e computacionais e por uma enxurrada de monitores e luminosos.
Cumpriu-se desta feita a profecia de Virilio (1999) que já proclamava, em tempos
em que o planeta ainda era habitável (o hoje), os perigos da iminente informática. No
plano pessoal, o prejuízo à nossa sensibilidade e subjetividade seria inevitável devido
à mediação cada vez mais onipresente da tecnologia em direção a nossas experiências.

Assim, com a progressiva digitalização das informações


audiovisuais, táteis e olfativas, indo de par com o declínio das
sensações imediatas, a semelhança analógica do próximo, do
comparável, cederia lugar à verossimilhança digital do longe, de
todos os longes, poluindo assim, de forma definitiva, a ecologia
do sensível (Virilio, 1999, p. 111).

75
No comando da Axiom está um cérebro eletrônico, autônomo supremo que a tudo
governa, inclusive se rebelando quanto ao líder humano do grupo, o capitão da nave
mãe. A sua natureza orwelliana faz de Auto um opressor. Nem mesmo o comandante
consegue domá-lo. E esta entidade eletrônica algoz tenta barrar o hiperssalto e assim
negar a recolonização do mundo. Tudo em prol da perpetuação da compra e venda sem
fim patrocinado pela BnL, e que nos legou uma terra morta.
Homens, mulheres e robôs foram subjugados e catequisados a uma vida para o
consumo (Bauman, 2008a). A multiplicação das ações de consumo e a conversão dos
cidadãos em consumidores, inclusive com o intricado jogo de auto afirmação embutido
no ato de consumir exige que os sujeitos sejam, também eles, vendáveis. Mais ainda,
tais sujeitos vendáveis nunca devem se dar e nunca se dão por satisfeitos, encontrando
a instância suprema do mercado sempre apta a satisfazê-los com mercadorias.
Paulatinamente, criam-se cada vez mais objetos e necessidades, mesmo que
artificiais, para serem satisfeitas nas lojas, supermercados e sites de e-commerce.
Amplifica-se o ato de comprar e também se cria o fenômeno da obsolescência permanente
dos objetos, com seus descartes e substituições sendo ações de conforto ao egocentrismo
e à exacerbação do desejo de exposição inerente a esta sociedade.
Consumimos muito, não somente de modo irresponsável, como também
hedonista, levando, de acordo com o filme, a Terra ao desaparecimento total da espécie
humana e fazendo o castigo de Sísifo recair sobre o último ser sensível a habitar o
planeta: o coletador e compactador de entulho Wall-E.
O fruto de nosso descarte fez apodrecer o solo e dizimar de homens, mulheres,
animais e plantas. Talvez neste quesito resida um dos grandes saberes apresentados
nesta produção da Pixar. Aquele que nos força a pensar no ato de responsabilidade, e
não de narcísica celebração, que é comprar em excesso e jogar os produtos no lixo.

76
Consumidores plenos não ficam melindrados por destinarem algo
para o lixo; ils (et elles, bien sûr) ne regrettent rien. Como regra,
aceitam a vida curta das coisas e sua morte predeterminada com
equanimidade, muitas vezes com um prazer disfarçado, mas às
vezes com a alegria incontida da comemoração de uma vitória. Os
mais capazes e sagazes adeptos da arte consumista sabem que se
livrar de coisas que ultrapassaram sua data de vencimento (leia-
se: desfrutabilidade) é um evento a se regozijar. Para os mestres
dessa arte, o valor de cada objeto e de todos eles está tanto em suas
virtudes como em suas limitações. As falhas já conhecidas e aquelas
a serem (inevitavelmente) reveladas graças a sua predeterminada
e preordenada obsolescência (ou envelhecimento “moral”, para
distinguir do envelhecimento físico, na terminologia de Karl Marx)
prometem uma renovação e um rejuvenescimento iminentes,
novas aventuras, novas sensações, novas alegrias. Numa sociedade
de consumidores, a perfeição (se tal noção ainda se sustenta) só
pode ser uma qualidade coletiva da massa, de uma multiplicidade
de objetos de desejo; o prolongado ímpeto da perfeição agora
requer menos o aperfeiçoamento das coisas do que sua rápida e
profusa circulação. E assim, permitam-me repetir, uma sociedade de
consumo só pode ser uma sociedade do excesso e da extravagância
– e, portanto, da redundância e do desperdício pródigo (Bauman,
2008a, p. 112).

A sociedade global pagou muito caro por esta abundância e por esta extravagância.
Mas graças a Wall-E e a Eva (como Adão e Eva no Gênesis) e ao que restou de consciência
e sensibilidade humanas no capitão da Axiom, o hiperssalto foi possível e a reconquista
do planeta tornou-se realidade.
Que não tenhamos o mesmo destino. Que aprendamos com estes saberes.

Wall-E e Eva

77
Carros 2
UUma intriga internacional que tem como pano de fundo a necessária utilização
em escala global das chamadas energias limpas amarra o enredo de Carros 2. Um vilão,
o mega empresário Miles Eixo de Roda, promove um campeonato de corridas para
publicizar o uso do novo combustível renovável por ele desenvolvido, chamado de
Allinol.

O maior amigo do astro das corridas Relâmpago McQueen, o caipira caminhão


reboque Mate, velho, enferrujado e dentuço, entra ao vivo por telefone em um programa
de televisão para desafiar o carro de corrida italiano Francesco Bernoulli.

Bernoulli desdenha do desempenho de Relâmpago no World Grand Prix


promovido por Miles Eixo de Roda. O desafio é proposto e aceito na hora por McQueen,
que segue rumo a Tóquio para a prova com Mate junto à equipe.

Mas antes uma ação de espionagem britânica está em curso. O agente inglês Finn
McMissile descobre em alto mar um conjunto imenso de plataformas de petróleo, nas
quais o temível Professor Zündapp faz experimentos, sob salvaguardas de um grupo
de carros velhos, pobres e de modelos fora do ano, todos movidos à gasolina comum.
McMissile é descoberto, consegue fugir ao modo James Bond 007, mas não desvenda
o mistério.

Em Tóquio, está para ocorrer a primeira prova do World Grand Prix de Miles Eixo
de Roda, com todos os carros movidos a Allinol, combustível ambientalmente sustentável,
não derivado de petróleo. Relâmpago McQueen, ainda arrogante, envergonha-se com o
comportamento espontâneo, atrapalhado e caipira de um Mate sem riqueza financeira

78
e sem modos refinados, que se deslumbra com o universo milionário e midiático das
corridas de automóvel cometendo inúmeras gafes.

E será em Tóquio, na primeira corrida do World Grand Prix, que o agente inglês
McMissile e sua assistente Holley buscarão pistas sobre os planos malignos do Professor
Zündapp. Um espião norte-americano entregará uma pista valiosa à dupla. Porém, há
um equívoco e ambos se deparam com o atrapalhado Mate, pensando ser ele o agente
da CIA ou do FBI, ali infiltrado na prova de corridas disfarçado de membro da equipe
de Relâmpago McQueen.

Mate em verdade é membro da equipe de McQueen. Mas confundido com um


espião, passa a ser o portador da pista que é colada em sua lataria, mesmo sem ele
próprio saber.

Holley passa instruções por fone de ouvido a Mate, que já enamorado dela se
confunde e reproduz as falas no microfone conectado ao campeão Relâmpago. McQueen
ouve as instruções, toma as atitudes erradas
e perde aprova. Raivoso discute com o Mate
que, humilhado, tenta voltar para a sua
Radiator Springs.

Todavia, no aeroporto Finn McMissile


e Holley “resgatam” aquele que ambos
acreditam ser o agente americano Mate,
um pseudo expert em disfarces, brilhante
ao emular um carro caipira do interior
americano. E Mate, caminhão reboque velho e antiquado que é, é fluente em analisar
os carros velhos e antiquados que acompanhavam Professor Zündapp. Análise essencial
para que o mistério em torno de Zündapp fosse desvendado.

Nesta busca por elucidar a trama ordinária os agentes secretos McMissile, Holley,
e também Mate, percorrem Paris, localidades na Itália e, por fim, Londres. Enquanto
isso os carros de corrida que participam do World Gran Prix e são movidos a Allinol
explodem sem explicação durante as provas.

O que ocorre é que estes corredores são vítimas de sabotagem pelos criminosos
orientados por Zündapp. Nas primeiras cenas do filme, McMissile identifica um artefato
similar a uma câmera, que é um emissor de raios capaz fazer o Allinol dos carros de
corridas entrar em combustão e, assim, explodir.

No meio da confusão,
Relâmpago McQueen vence uma
disputa sobre Francesco Bernoulli,
acirrando a competição entre
ambos. Mas a mesmo tempo em que
comemora a conquista, o campeão

79
sente falta do amigo caminhão reboque. Mate, involuntariamente, está envolvido na
investigação sigilosa, estando prestes a protagonizar o seu desfecho.

Após a prova vencida por Relâmpago e que teve Bernoulli como segundo colocado,
na qual todos os carros ou explodiram sabotados, ou se envolveram em acidentes, o
uso do combustível limpo Allinol é por demais criticado devido a um possível risco de
explosão próprio e desconhecido em seu uso.

Em meio à suposta decepção da utilização do Allinol no World Grand Prix, o


magnata e promotor da prova Miles Eixo de Roda abandona a idéia do combustível
verde, fazendo anúncio
público de sua posição. Mas
McQueen afirma que confia
no Allinol e que vai correr a
próxima prova movido a esta
fonte de energia. E esta prova
é o grande prêmio de Londres.

Relâmpago entra na
lista de morte da quadrilha de
Zündapp. Mas a tentativa de
matá-lo por meio da explosão
do Allinol durante a corrida
em Londres fracassa. A esta
Carro velho a serviço da trama de Zündapp e Miles Eixo de Roda
altura, os espiões – McMissile,
Holley e o neófito Mate, foram
presos pelo bando do gangster e amarrados às engrenagens do Big Ben. E como os
criminosos sabem que um McQueen cheio de remorso irá ao encontro de Mate, a saída
para eliminar Relâmpago foi acoplar uma bomba ao caminhão reboque que deverá
explodir e matar o campeão.

Os espiões se libertam e prendem Zündapp. Mas ele não sabe desarmar a bomba,
desarmável por comando de voz e que não reconhece o tom do Professor. Ora, quem
é então o malfeitor e qual é o plano em curso? Quem descobre é Mate, que revela o
verdadeiro vilão da história: o empresário Miles Eixo de Roda. E a meta dele seria
desacreditar mundialmente as tecnologias limpas mediante o fracasso proposital do
Allinol.

Dono das inúmeras plataformas de petróleo descobertas por McMissile no começo


do filme, Miles quer ver o domínio absoluto do petróleo e da gasolina no mundo.

Mate ganha reconhecimento, vira Sir do Império Britânico, sela a amizade


com McQueen e ganha a paixão de Holley. E o planeta poderá caminhar rumo à
sustentabilidade.

80
Pobre Verde

Mais uma vez os saberes da sustentabilidade emergem de um filme da Pixar.


Miles Eixo de Roda se apresenta no começo de Carros 2 como herói da preservação
ambiental ao propor um combustível limpo, não derivado do petroléo, lançando-se a
uma ação global de marketing – o World Grand Prix – a fim de promover o produto e
conscientizar a sociedade mundial sobre a importância da conservação da biosfera.

Entretanto, ao final do filme, revela-se a farsa de que Miles Eixo de Roda e


as motivações sustentáveis do empresário são puro engodo. Ao sabotar criminal e
sorrateiramente o Allinol, o que ele intenta é desacreditar o combustível perante a
opinião pública do planeta. E desacreditado, tido como combustível estoura motor,
comercialmente o Allinol tenderia ao fracasso.

Temos sim a defesa das tecnologias limpas e sustentáveis enredadas na trama


do filme. Porém, esta é a constatação óbvia que Carros 2 nos deixa de legado. Há,
sobretudo, um outro questionamento implícito na história de vilania de Miles Eixo de
Roda e de heroísmo matuto de Mate. Este questionamento é o saber sobre o que nos
será necessário para conciliarmos desenvolvimento sustentável e inclusão social.

Porque em um mundo no qual a natureza já foi demasiadamente sacrificada em


prol do desenvolvimento econômico, em séculos de poluição e destruição ambiental, a
equação humana ainda não foi resolvida.

Ainda há imensas hordas de miseráveis pelo mundo, de pobres em condições


sub-humanas de moradia e com fome, muita fome. Refugiados, expatriados, párias e
vítimas de xenofobia,
violência e exploração.
O continente europeu e
a zona euro enfrentam
há anos uma crise
que se agudiza em
alguns países (o caso
espanhol é exemplar)
e os Estados Unidos
não acompanham
mais a pujança que era
crescente desde o pós Segunda Grande Guerra. A crise econômica se dissemina pelo
mundo.

Miles Eixo de Roda encampa o discurso ambiental como farsa porque, na


verdade, ele queria era desqualificar o Allinol para, assim, poder vender ainda mais
gasolina e diesel. Se assim o fazia, era na certeza de que sua estratégia empresarial

81
seria condenável porque anti-ética, mas
seria lucrativa diante do fato de que a
grande maioria dos automóveis “vivos”
imprescindiam e imprescindem de
gasolina e diesel para sobreviver.

Principalmente os carros velhos,


fora de modelo, mal conservados, longe
da zona primeira de desejo da sociedade
de consumo. Principalmente os carros
que compõem as hordas de automóveis
miseráveis pelo mundo, de carros pobres
em condições sub-humanas de moradia e com sede, muita sede por um litro ou galão
sequer de gasolina ou diesel.

Veículos refugiados, ex-patriados, párias e vítimas de xenofobia, violência e


exploração, com latarias demodés e sem o apelo sexual de McQueen, Finn McMissile
ou Holley. Certamente consumidores potenciais, embora desafortunados, da loção
antiferrugem que tem o jovem campeão Relâmpago como seu garoto propaganda.

Carros velhos do mundo todo, uni-vos!

Em entrevista concedida em 2012 em época próxima à Conferência das Nações


Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, ao jornal brasileiro O Globo,
Edgar Morin colocou que a erradicação da pobreza é um dos vetores para o sucesso e a
universalização de uma política ecológica e de respeito ao meio ambiente.

A erradicação da pobreza é um dos desafios para se atingir o


desenvolvimento sustentável. Ainda hoje há povos em situação de
pobreza extrema e as nações não conseguem solucionar. Por quê?

EDGAR MORIN: É uma lacuna. Não se pode isolar a questão


ecológica da questão social. A pobreza é um problema mundial e
pressupõe a adoção de políticas que combatam a exclusão. Mas as
nações parecem que estão isoladas umas das outras e não conseguem
se aliar para enfrentar questões globais como esta.

Por quê?

MORIN: Por um lado, não temos ainda uma realidade supranacional


capaz de impor medidas adequadas aos Estados. Por outro, os
Estados estão atrelados à especulação financeira. É preciso uma
reforma política para que Estados exerçam o papel para o qual foram
criados: o de garantir os direitos básicos à população (Morin, 2012).

82
O plano de Miles Eixo de Roda inicialmente dá certo porque conta com o auxílio de um
coletivo de carros velhos, prestes à aposentadoria, com escassez de peças de reposição,
que se une ao mal magnata a fim de realizar trapaças, mas também, no fundo, em
defesa de seus “direitos à alimentação”.

Uma vez a vitória do Allinol se consubstanciasse, quem iria bancar as conversões


de motores daquelas velharias sobre quatro rodas? Haveria peças para a conversão de
todos? E os custos destas cirurgias, seriam cobertos pelo Sistema Único de Saúde da
sociedade do automóvel? O Estado de Bem Estar Social, em crise mundial, arcaria com
estas obrigações?

Quem pagaria esta conta?

O discurso da preservação ambiental, sem a inclusão social e sem a minimização


da pobreza, revela-se fantasmagórico e ameaçador para milhares de excluídos ao redor
do globo.

Espião por acaso, Mate detém um conhecimento precioso, o qual nem Finn
McMissile, nem Holley, possuem. Mate é um destes carros velhos consumidores de
gasolina e diesel, que seriam vitimados caso o Allinol imperasse como combustível
totalizante. E por ser um carro velho, além de ser um reboque, ele é especialista em carros
obsoletos e suas peças de reposição. Este saber que falta a dupla de espiões, fruto de
uma inata sensibilidade social vivida
por analogia pelo caminhão caipira
– reconhecer-se em seu semelhante
– é fundamental para o sucesso da
investigação transnacional.

A supracitada Conferência
das Nações Unidas sobre
Desenvolvimento Sustentável,
Rio+20, ocorrida em junho de 2012
na capital fluminense, colocava a
questão da erradicação da pobreza como um dos eixos de destaque para os debates do
evento e para o futuro da sociedade.

O fortalecimento da chamada “economia verde” deve ser meta, afirma a ONU,


entretanto este ideal deve estar alinhado à satisfação das necessidades básicas do ser
humano.
A “economia verde” constitui um instrumento para a aplicação de
políticas e programas com vistas a fortalecer a implementação dos
compromissos de desenvolvimento sustentável em todos os países
da ONU. Para o Brasil, a “economia verde” deve ser sempre enfocada
no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação
da pobreza, uma vez que os temas de economia e de meio
ambiente (“verde”) não podem ser separados das preocupações
de cunho social. O debate sobre “economia verde” apontou para

83
oportunidades de complementaridade e de sinergia com outros
esforços internacionais, englobando atividades e programas
para atender às diferentes realidades de países desenvolvidos e
em desenvolvimento. É importante relembrar que a redução das
desigualdades – em nível nacional e internacional – é fundamental
para a plena realização do desenvolvimento sustentável no mundo
(Rio + 2013).

Carros 2 é panfletário ao defender o Allinol. E de fato, desenvolver e adotar


fontes sustentáveis de energia é um dos maiores desafios de nossa contemporaneidade.
O planeta não suportará por muito tempo a emissão de gases derivados de combustíveis
fósseis e todo o esforço em prol da “economia verde” deve ser empreendido, apoiado e
estimulado. Planetariamente.
Entretanto, enquanto Relâmpago corretamente afirmava sua disposição em
contribuir para a sustentabilidade do planeta utilizando o ecocombustível de Miles Eixo
de Roda, uns outros tantos carros estavam parados por falta de gasolina, ou tensos ante
a iminência de ficar sem dinheiro e, assim, sem combustível.

84
85
PPor paroxismo compreende-se o ápice de uma sensação, de um sentimento, de um
episódio. O paroxismo é o momento do mais alto degrau de determinada experiência,
por vezes imprevisível, por vezes multifacetado perante nossas vidas.

Paroxismo que é tema recorrente da arte, instância transformadora e desconcertante.


Paroxismo que é origem de mudanças, que é marco temporal de ação. Paroxismo que
nos impele a momentos de catarse, a tempos de erupção, autoconhecimento, mutação.

Procurando Nemo (2003), Ratatouille (2007), Up – Altas Aventuras (2009) e


Toy Story 3 (2010), juntos, revelam-nos por meio de suas tramas paroxismos que os
enredam em uma mesma teia de complexas narrativas. Nestes filmes, personagens são
levados a ações extremas, a sentimentos veementes, a gestos profundos e irreversíveis...
a instantes paroxísticos.

Como acima afirmado, paroxismo, substantivo, remete a elevação superior,


ao instante emergente do qual não se recua a fim de se ocupar a mesma posição
anteriormente situada.

Em Procurando Nemo o paroxismo se dá pelo gesto de busca incessante de um


pai, que não mede esforços nem pensa nas consequências quando o objetivo é salvar o
filho indefeso e capturado. Mesmo quando se pensa que este objetivo é inalcançável,
lá está o pai a nadar e a não desistir, com as adversidades o alimentando de vigor,
auxiliando-o na articulação de uma rede de solidariedade impensável pela diversidade
de atores que criam em torno da história uma narrativa mitológica além mar.

Em Ratatouille o paroxismo se dá, por exemplo, no ato de revelação e de aceitação


de um rato chef, genial em sua gastronomia, impensável face sua condição de roedor.
Já em Up – Altas Aventuras, por exemplo, no gesto amoroso descomedido de fazer da
própria casa um balão imaginável, porém inconcebível, carregando-o nas costas até o
local do idílio jamais realizado.

Em Toy Story 3 é paroxístico o momento da separação sempre conhecido,


esperado, mas nunca desejado, sendo por repetidas vezes postergado. A hora da
libertação e da travessia de Andy rumo à vida adulta, e dos brinquedos rumo às suas
ressureições como viventes da razão de brincar.

Os brinquedos de Andy sabem, desde o começo da jornada e desde o dia em que


chegaram como presentes a casa do menino, que o dia do paroxismo da partida e da
separação chegaria. Haveria de existir um ponto em suas vidas em que a distância, de
fato, seria inevitável. Em Toy Story 3, esta ruptura se dá uma vez que os brinquedos são
doados por Andy. Uma vez que os brinquedos, mais que serem doados, aceitam-se e se
resignam como objeto de doação, primeiro para a creche Sunnyside, depois na casa da
pequena Bonnie.

Algo análogo acontece em Up – Altas Aventuras, com Carl Fredericksen ao final


de sua existência, homem velho, tomando a crucial decisão de realizar aquilo que não

88
havia efetivado em vida e enquanto homem jovem com a esposa agora morta, que é
conhecer o Paraíso das Cachoeiras, na Venezuela, e realizar o sonho de infância. Russell,
o menino carente de afeto paterno, não escapa deste momento de inflexão, recebendo
a aventura de acompanhar Carl – e salvar a ave Narceja, aspecto científico-político da
narrativa – como passaporte para um novo tempo de relação filial.

E o rato Rémy e o jovem Linguini, ao encenarem a dualidade entre natureza


e cultura, apresentam aspectos em alto volume desta inicial contradição associada à
antropologia. Homens e ratos, em comunhão, aceitam-se no final do filme como seres
de um mesmo mundo, partícipes da mesma saga da vida, superando adversidades em
conjunto, mesmo que sem conseguirem apaziguar todas as diferenças que os cercam.
Em Ratatouille, paroxismos de amor, de vingança, de devaneio fantasmagórico (a
alucinação do chef Gusteau a orientar o rato Rémy) e de compreensão transbordam da
história contada para a vida vivida dos espectadores, fazendo do ato de assistir o filme
um gesto de duplicação de nossas experiências para com a trama retratada no filme.

Já Marlin, pai de Nemo, não se curva ao fatalismo do destino, fazendo-se


protagonista de sua própria história decidindo ir até o fim em sua odisséia. Na viagem o
pai conta com o apoio de Dory, companheira com dificuldade de lembrar-se do passado
recente, acometida certamente de amnésia anterógrada com uma leve dose de autismo.

Situações limite nas quais o possível se extrapola para que o impossível se faça
realidade ao menos na tela e nos ajude a compreender nosso mundo. Procurando Nemo
(2003), Ratatouille (2007), Up – Altas Aventuras (2009) e Toy Story 3 (2010) revelam-
se como narrativas nas quais as situações parecem se exacerbar ao máximo, e ao se
exacerbarem revelam a necessidade de desenvolvermos uma ética da compreensão
própria ao contemporâneo.

Uma compreensão que admita, frente aos paroxismos que o contemporâneo nos
impõe, o impossível de se compreender da forma como tradicionalmente aprendemos o
que deve ser a compreensão.

Compreender é compreender as motivações interiores, situar


no contexto e no complexo. Compreender não é tudo explicar. O
conhecimento complexo sempre admite um resíduo inexplicável.
Compreender não é compreender tudo, mas reconhecer que há algo
de incompreensível (Morin, 2007, 124).

Os paroxismos de Procurando Nemo, Ratatouille, Up – Altas Aventuras (2009)


e Toy Story possuem diversas faces. Nas relações entre homens e demais seres, sejam
outros animais, sejam brinquedos ou mesmo objetos, podemos ver nos fatos extremos
possibilidades de nos conduzirmos à compreensão da natureza humana em sua intricada
relação com a natureza e o mundo.

Às histórias e às visões.

89
Procurando Nemo
UUma fábula de superação encobre a crítica relação entre pai e filho.
Marlin é um peixe viúvo. Um ataque de um peixe predador matou sua esposa,
Coral, e todas as centenas de ovas que o casal possuía. Restou apenas uma: Nemo,
que nasceu defeituoso de uma nadadeira, e que seria por toda a sua vida alvo da
superproteção do pai.

Mas é chegada a hora de amadurecer e com Nemo não é diferente. A escola é um


dos caminhos rumo à liberação e à libertação do peixe menino superprotegido. Nemo,
enfim, terá novos amigos e conhecerá um mundo para ele ainda de sombras uma vez
que cego pelas sombras da caverna construída pelo pai hiper presente.

Porém, um embate entre filho e pai, com este duvidando da capacidade


do peixinho, coloca Nemo em uma enrascada com o peixe filhote sendo raptado e
aprisionado por um nadador dentista australiano de Sidney.

O filho foi desautorizado na frente dos amigos de escola e como prova de sua
independência perante o pai nadou para domínios até então desconhecidos. E foi neste
momento que o pior aconteceu. O nadador escolheu justamente Nemo como ornamento
para seu aquário de consultório.

Uma única inscrição nos óculos de natação do dentista é a pista para que o
reencontro e o resgate ocorram. E a mensagem de um pai aguerrido em busca do filho,
mitológica, difunde-se por todo o mar, sendo compartilhada por todos os seres da cadeia
marinha.

Aprisionado, o destino de Nemo será virar presente para a sobrinha do dentista,


a menina Darla, assassina de outros peixes anteriormente ofertados a ela. O cronometro
está ligado e a sorte está lançada. Em poucos dias a menina visitará o tio e o peixe,
empacotado em um saco transparente, será entregue a sua algoz mirim.

Dory e Marlin

90
Nemo está sem saída, trancafiado em entre quatro paredes de vidro, recebendo
a solidariedade de seus novos amigos de cárcere: Gill, um mourisco, líder do grupo;
Bloat, um baiacu; Peach, uma estrela do mar; Jacques, um camarão ávido por limpeza,
Gurgle, um peixe Royal, e outros seres aquáticos muito amistosos.

Mas é aí que a determinação paterna encontra forças onde parece improvável. E


a ajuda de um peixe fêmea cativante e alegre com sério transtorno de perda da memória
recente além de déficits de atenção, a peixe Dory, é auxiliar na busca incessante pelo
filho perdido.

Dory, aliás, com brilho próprio exerce o contraponto do pai atormentado. Sua
leveza sinaliza a incerteza do destino e as incontáveis contingências da vida, repleta de
desrazões, reviravoltas, redimensionamentos Tubarão ameaça a dupla

e aberturas. E se há um ser que sempre teve


certezas e convicções, este é Marlin, o pai.

Pai que em desespero por sua cria


viaja por mares nunca antes, por ele,
navegados, enfrenta inúmeras espécies de
ameaças e, ao final, consegue encontrar são
e salvo seu menino, que sem a ajuda paterna
livra-se do dentista. Mas o reencontro ainda
exige esforço para suturar a relação. Nemo
ainda dará a última demonstração de que o pai não é, sozinho, o senhor da razão.

De fato, no buscar por Nemo Marlin é incansável. Duela contra tubarões em


recaída integrantes de uma seita contra a comilança de peixes, enfrenta um exército de
águas vivas, consegue escapulir do intestino de uma baleia e é ajudado por aves da baía
de Sydney.

O pai suporta todas as vicissitudes de uma jornada sem roteiro, com destino, mas
sem conclusões sobre como e sobre o que encontrará no ponto final.

Neste trajeto em busca do filho e, sobretudo, de um eu, Dory é esquecimento


e lembrança que se transforma no porto seguro do Marlin pai. Se foi tempo de
autoafirmação para o peixinho refém, também é tempo de autoafirmação para Marlin
adulto, que vai se deparar com profundos interditos em sua jornada procurando Nemo.

Já liberto das mãos do dentista, contando para isso com um plano meticuloso
criado por Gill e apoiado pelo grupo do aquário, Nemo ainda precisa provar para o pai
sua independência.

E é isso o que ele faz ao se doar para a salvação coletiva de um grupo de peixes
presos em uma rede pesqueira, com firmeza, principalmente ajudando a liderar o
imenso grupo de peixes resistentes ao cativeiro.

Com o retorno ao habitat natural, um novo tempo se inicia para filho e para pai.

91
Mares de Solidariedade

FFace à ameaça de uma nova imensurável perda, Marlin mergulha no desconhecido


de nadar em busca de Nemo. Ele não se dobra. Segue em frente, aconteça o que
acontecer. Encontrar o filho e resgatá-lo é mais que resposta à perda da esposa e da
então prole em projeto. É restituir o sentido de sua vida, agora à deriva e a depender do
acaso na jornada mar adentro.

Neste percurso de rota etérea, a única certeza que se consolida é a solidariedade


dos demais seres marinhos e não marinhos, que se irmanam no horizonte de encontrar
Nemo. A procura do pai e seu aprendizado de valentia inesperada viram mito e ecoam a
partir das profundezas do oceano à Baía de Sidney. E Nemo também faz sua reeducação
sentimental no aquário no qual está aprisionado, superando obstáculos para empreender
fuga e assim reviver.

O trabalho de Marlin em procurar Nemo é a experiência limite de sua vida.


Falhar ele não pode, em especial diante da falha a qual ele se amargura por ter perdido
mulher e ovas em um ataque traiçoeiro e
assassino. Com Nemo há de ser diferente
e seu papel de pai protetor não poderá dar
errado. Daí o desprendimento ilimitado
do peixe em enfrentar toda a sorte de
turbulências, perigos e correntes adversas a
fim de reconquistar seu rebento.

E nos caminhos que percorre, Marlin


é agraciado com a dádiva da solidariedade,
feição humana que necessita de resgate e
universalização em um mundo de “agonia Tartaruga solidária

planetária”, como nos sugere Morin.

Se “durante o século XX, a economia, a demografia, o desenvolvimento, a ecologia


se tornaram problemas que doravante dizem respeito a todas as nações e civilizações,
ou seja, ao planeta como um todo” (Morin, 2003a, p. 63), a solidariedade também se
esfacelou em nossa terra-pátria. Repensá-la e reerguê-la tornam-se ações fundamentais.
O apelo da fraternidade não se encerra numa raça, numa classe,
numa elite, numa nação. Procede daqueles que, onde estiverem,
o ouvem dentro de si mesmos, e dirige-se a todos e a cada um.
Em toda parte, em todas as classes, em todas as nações, há seres
de “boa vontade” que veiculam essa mensagem. Talvez eles
sejam mais numerosos entre os inquietos, os curiosos, os abertos,
os ternos, os mestiços, os bastardos e outros intermediários. O
apelo à fraternidade não deve apenas atravessar a viscosidade e
a impermeabilidade da indiferença. Deve superar a inimizade. A
existência de um inimigo mantém ao mesmo tempo nossa barbárie

92
e a dele. O inimigo é produzido por cegueira às vezes unilateral, mas
que se torna recíproca quando respondemos com uma inimizade que
nos torna igualmente hostis. É verdade que os egocentrismos e os
etnocentrismos, que suscitaram e não cessam de suscitar inimigos,
são estruturas inalteráveis da individualidade e da subjetividade,
mas, assim como essa estrutura comporta um princípio de exclusão
no eu, ela comporta um princípio de inclusão num nós, e o problema
chave da realização da humanidade é ampliar o nós, abraçar, na
relação matri-patriótica terrestre, todo ego alter e reconhecer nele
um alter ego, isto é, um irmão humano (Morin, 2003a, p. 167-168).

Marlin empreende sua busca e nela se depara com inúmeros perigos e ameaças.
Mas uma rede de solidariedade se
forma em seu entorno, colaborando
para que ele alcance seu objetivo.
Peixes, animais marinhos e até não
marinhos dão sua cota de colaboração
para com o gesto heroico do pai
envolto em sofreguidão e, mesmo
assim, em esperança.

Como no poema, todos os


seres da narrativa sabem que é
preciso tecer a manhã em busca
do peixinho perdido e privado dos
seus. “E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação” (Neto,
2001, p. 151).

Excluem-se entre estes os seres humanos, responsáveis pela barbárie de manter


Nemo e outros animais cativos, com requintes de crueldade, sadismo e despropósito.
Diante do ato vil de homens e mulheres, os bichos se “encorpam em tela” em apoio a
Marlin. O dentista é pura insensibilidade na captura predatória de um filhote de peixe,
deficiente ainda por cima, e a menina Darla é pura maldade, em sua versão infantil,
vide o registro dos atos de atrocidade que ela cometeu contra outros peixes ofertados a
ela como presente.

A fuga de Nemo e a queda na


armadilha do dentista australiano têm
como iniciador um ato de rebeldia
do menino peixe ocorrida em aula
de campo. Aliás, é a escola uma das
instâncias primeiras a quem Marlin
permite a socialização do filho
superprotegido. Filho que ao final do

93
Nemo preso no
aqauário em Sidney

filme também dará sua contribuição à solidariedade planetária ao motivar e liderar a


libertação de um cardume preso e condenado à morte em uma rede de pesca lançada
ao mar.

Da escola para o aquário por meio do exercício da solidariedade integral,


Marlin e Nemo exercitam o ideal de uma humanidade que parece perdido em meio às
incertezas do contemporâneo. Da escola para a tela, Nemo e Marlin parecem nos ensinar
a compreensão, a partilha, a doação, a união das espécies, dos povos, dos homens. Pai
e filho, assim, descortinam o ideal daquilo que Morin chama de ética da compreensão
planetária (2000). E de modo revelador, a saga de ambos começa em um ambiente
devotado à educação.

Estamos comprometidos, na escala da humanidade planetária, na


obra essencial da vida, que é resistir à morte. Civilizar e solidarizar
a Terra, transformar a espécie humana em verdadeira humanidade
torna-se o objetivo fundamental e global de toda educação que
aspira não apenas ao progresso, mas à sobrevida da humanidade.
A consciência de nossa humanidade nesta era planetária deveria
conduzir-nos à solidariedade e à comiseração recíproca, de indivíduo
para indivíduo, de todos para todos. A educação do futuro deverá
ensinar a ética da compreensão planetária (Morin, 2000, p 78).

Mas para além de Marlin e Nemo, há um outro personagem que merece destaque
na trama. E este é caso do peixe fêmea Dory. Portadora de amnésia anterógrada, Dory
não se lembra dos acontecimentos recentes, esquecendo-se do que dissera ou fizera
minutos antes. Além deste distúrbio, o peixe apresenta leve carga de autismo, mesmo
que por vezes meio às avessas, já que Dory tem dificuldade em se comunicar em virtude
dos excessos de suas falas e da rapidez e desconexão de seu raciocínio.

Dory será a companheira de Marlin na viagem sem roteiro fixo rumo a resgatar
Nemo. E quantos momentos de apuros Dory proporciona a Marlin, devido as confusões
que faz a dupla de meter. E quanto momentos de doçura, sabedoria e orientação Dory
proporciona a Marlin devido as inconstâncias e incompreensões que seu comportamento
tido como anormal leva a dupla se salvar. Em Procurando Nemo, Dory, irracional, louca,

94
descomedida, é o contraponto de Marlin, centrado, dono da razão, cartesiano.

A presença de Dory na narrativa, além de representar o espelho que projeta os


atos de Marlin e metaforizar o roteiro caótico da jornada rumo ao encontro de Nemo –
paroxismo da trama – auxilia-nos na reflexão sobre a aceitação da face demens do ser
humano, propiciando a compreensão de nossa natureza e de nosso gênero enquanto
espécie, enquanto ser vivo.

A idéia de se poder definir o gênero homo atribuindo lhe a qualidade


de sapiens, ou seja, de um ser racional e sábio, é sem dúvida uma
idéia pouco racional e sábia. Ser Homo implica ser igualmente
demens: em manifestar uma afetividade extrema, convulsiva, com
paixões, cóleras, gritos, mudanças brutais de humor; em crer na
virtude de sacrifícios sanguinolentos, e dar corpo, existência e poder
a mitos e deuses de sua imaginação Há no ser humano um foco
permanente de ‘Ubris’, a desmesura dos gregos. A loucura humana é
fonte de ódio, crueldade, barbárie, cegueira. Mas sem as desordens
da afetividade e as irrupções do imaginário, e sem a loucura do
impossível, não haveria ‘élan’, criação, invenção, amor, poesia. O
ser humano é um animal insuficiente, não apenas na razão, mas é
também dotado de desrazão (Morin, 2002, p. 7).

Tão solitária quanto o peixe pai, Dory se associa a Marlin fazendo-o redescobrir
forças e quebrar barreiras que traumas anteriores lhe impediam de romper. Unir-se
a criaturas tão diferentes de si em busca de um objetivo pessoal, e ver este objetivo
pessoal ganhar em uma espiral solidária a adesão do cosmos marinho, demonstram a
viabilidade e a necessidade da união dos seres. Sejam homens, sejam peixes.
Dory

95
Ratatouille

NNossas semelhanças nos fazem diferentes. Rémy e Linguini

Principalmente em se tratando de espécies do


reino animal. Contudo, inúmeros são os laços
que nos unem enquanto viventes no planeta.
Há um elo que liga, inclusive, o precário e falso
chef humano ao magnífico e sublime chef rato.
Linguini e Rémy se tornam um só na odisseia
do encontro inesperado que resulta em dores,
delícias e emancipações.

Rémy é um rato que sonha em ser chef. Linguini é um jovem órfão que não
sonha. Gusteau foi um grand chef que, como grandes homens da história, quis mostrar
em vida que nosso desejo é alcançável, sempre. “Qualquer um pode cozinhar” diz a
fala e o livro de Gusteau, inclusive o ratinho do interior da França que na infância foi
farejador de veneno a evitar a morte coletiva dos seus. E ser chef é o sonho que Rémy
perseguirá, com sucesso.

O ratinho vai parar em Paris, influenciado pela imagem de Auguste Gusteau,


em busca de ser um cozinheiro de renome. Gusteau morreu após uma crítica negativa
do temível Anton Ego, maior crítico gastronômico do país. Mas mesmo morto, Gusteau
aparece em pensamento, imagem e alter ego para Rémy, aconselhando-o sobre o dever
que o rato tem de jamais desistir de seu ideal. Mesmo que um rato ser um chef seja,
certamente, uma tarefa impossível a priori e a princípio, em um mundo de condenação
das alteridades e de incompreensão coletiva.

Linguini é filho de Gusteau, mas não sabe disso. Sua mãe morre e lhe indica para
o atual chef do Gusteau’s, o mal caráter e ganancioso Skinner, cuja maior preocupação
é transformar a imagem do grand chef morto em uma marca vulgar e mercenária de
congelados. Linguini ganha um emprego de faxineiro no restaurante e, ao desgraçar
Luminoso do restaurante Gusteau’s, em Paris

96
uma sopa, é salvo pelo rato Rémy, que assiste a desventura do rapaz desengonçado.
Como bom gourmet, Rémy acresce ingredientes à panela e cria uma nova sopa ultra
elogiada no restaurante, sendo esta façanha creditada à Linguini.

Linguini e Rémy mantém contato, mesmo se se falarem palavra, somente por


meio de gestos, empatia e intuição. O agora cozinheiro, incrédulo, vê que o rato (!) é
um legítimo chef. Os pedidos da nova sopa crescem e Skinner, mesmo a contragosto,
faz de Linguini novo cozinheiro, aprendiz ao lado da meio amarga Colette, jovem e
única mulher do restaurante. Linguini e Colette irão se apaixonar, mas antes o falso chef
desenvolve um sistema análogo ao usado com marionetes, no qual Rémy, escondido
embaixo de seu chapéu, manipulará e conduzirá as ações do cozinheiro acidental na
cozinha.

Linguini encena. Remy cozinha. O restaurante lota.

Skinner descobre a filiação de Linguini e tenta sabotá-lo de todo modo, mas Rémy
atrapalha o plano do inescrupoloso de herdar o restaurante na condição de sous chef.
Gusteau tem herdeiro e o rato descobre o seu testamento. Linguini passa de empregado
a dono do lugar. Ele ganha fama, se une a Colette, mas renega o ratinho.

Por sua vez, Rémy reencontra o irmão


e o pai, os quais ele havia perdido desde que
fugiu da raivosa dona da casa em que morava
no interior, e que descobriu a colonia de ratos
que habitava seu teto. O pai de Rémy lhe dá
uma lição: um rato jamais deve confiar em
humanos, visto que esta unidade entre seres
é inviável. Mas nossas semelhanças nos fazem
diferentes. Na história, o rato e o homem são tão iguais quanto contrários. De igual têm
a procura por uma razão de viver. De diferentes têm a natureza, o genótipo.

Eis que Anton Ego, que havia rebaixado o Gusteau’s, resolve desafiar o novo
jovem chef. Mas Rémy e Liguini se desentenderam desde que, sentindo-se esnobado,
Rémy permite um saque à dispensa do restaurante por parte de toda a sua comunidade
de ratos. E agora, o que fazer? O mais temido e mal amado crítico gastronômico do país
está, impiedoso e sádico, à mesa do jantar. Mesmo brigado e perseguido por Skinner,
Rémy se rende a sua paixão pela cozinha e vai em ajuda de Linguini.

A farsa é desmontada perante toda a equipe do Gusteau’s. O chef jamais fora o


jovem estranho herdeiro da casa, e sim um rato que se escondia debaixo de seu chapéu.
Ao saberem da história fantástica e abjeta (um rato chef) a equipe abandona, enojada,
o emprego. Inclusive Colette. Na mesa, Anton Ego pede o que de melhor Liguini possa
cozinhar. Mas não há ninguém na cozinha. A não ser o chef Rémy, auxiliado por centenas
de ratos e pela jovem namorada de Linguini, em um espetáculo de união a princípio
repugnante, mas em verdade belo, magistral.

97
O que de melhor oferecer a Anton Ego: uma ratatouille. Prato simplório de
legumes do interior do país. E ao dar a primeira garfada na comida despretenciosa,
rancheira, rústica provençal, uma tormenta devassa o crítico com lembranças de sua
mãe, de sua infância, de uma felicidade irrefutável.

O crítico não acredita naquele gosto inigualável. Quer conhecer o chef, o que
Linguini e Colette só deixam acontecer no final quando a apresentam Rémy a um
Anton Ego satisfeito e atônito. Integralmente
desconcertado.

No outro dia, o jornal traz a crítica de Ego,


que considera Rémy, sem expor detalhes sobre
semelhanças e diferenças, o melhor chef de toda a
França.
Colette e Linguini

O Gusteau’s é fechado porque Skinner


e um fiscal da vigilância sanitária denunciam que o local está infestado de ratos, animais
desprezíveis. Anton Ego cai em descrédito e Linguini perde o empreendimento.

Que renasce em sociedade quádrupla – Linguini, Colette, Rémy e Anton – com


o nome do prato da infância do crítico, do apogeu de Rémy e da liberação de Linguini:
Restaurant Ratatouille. Com mesas grandes e pequenas. Para humanos e para ratos.
Diferentes, porém semelhantes. Se não iguais.

Ode aos Ratos

Um estranhamento
inicial marca todo o percurso
de Ratatouille (2007). E este
estranhamento primeiro se dá
pela linguagem. Constatação
importante, pois no universo
de filmes da Pixar, em geral,
humanos, demais animais e
seres inanimados ou até mesmo imaginários compartilham o código verbal do idioma.
Todos falam e tem suas falas compartilhadas entre si. Porém, isto não acontece entre
Rémy, rato verdadeiramente chef, e Linguini, falsário acidental da haute cuisine.

Ambos dominam um idioma, pensam com base em um idioma (a língua francesa,


no caso, travestida da língua inglesa, falada na pátria da Pixar), mas se comunicam
entre si por gestos, por pantomimas, principalmente de Rémy para com Linguini, que se
torna refém de uma linguagem aleatória de sinais ordenada pelo ratinho, compartilhada

98
para que ambos alcancem seus objetivos e vivenciem seus instantes de irreversibilidade:
Rémy se tornar um chef de verdade e Linguini se converter em chef farsante, contudo
verossímel.

A comunicação entre rato e humano do filme traz mais que um estranhamento,


pois indica um arrojo da produção do estúdio norte-americano, uma vez que delineia de
modo inicial o debate sobre a superioridade do humano frente os animais. Se nos demais
filmes os bichos se submetem à língua dos homens, em Ratatouille se faz necessário
uma nova linguagem, integradora, desenvolvida por Rémy e Linguini com base no erro,
na experimentação e na insistência quase que exaustivas. E no filme cabe ao humano
aprender a partilhar este código caso queira ter sucesso em sua empreitada.

Este debate sobre a superioridade humana suscitado inicialmente pelo modo


de comunicação entre os protagonistas nos leva a pensar a natureza da própria
humanidade. Morin (1973, 2011) é um dos que nos orienta nesta reflexão. Reflexão
que é um dos paroxismos apresentados pelo filme. O ponto máximo da vida de ambos
é aquele no qual a dupla, rato
e humano, humano e rato, irá
se irmanar como composta por
seres viventes na mesma teia da
vida. Esta junção é impensável
e ainda um dogma. E por
quebrá-lo de forma pertinente,
Ratatouille expõe a questão a
um estágio ímpar.

O antagonismo de Rémy é
essencial para a vida de Linguini.
E vice-versa. Com este estranhamento inerente à Rémy e Linguini, potencializado não
só pelo uso do idioma (no filme o rato pai de Rémy, Jango, é voz sempre contrária ao
homo sapiens), mas que é infinitamente maior porque se refere à condição de seres vivos
habitantes do planeta, Ratatouille nos leva a pensar no paroxismo de compreender,
enfim, a vida na Terra (Morin, 2011). Antagonismo que desemboca no final da história,
quando o restaurante é salvo por uma rataria em comunhão, que solene com seus
esforços coletivos e solidários, junto a humanos, faz com que Anton Ego se delicie com
a melhor ratatouille de toda a sua vida.

Ratos e homens em igualdade enquanto seres que pensam e se auto organizam.


É por meio do desejo de Rémy em ser chef que Linguini dá um sentido a sua vida de
órfão, aparentemente sem sentido algum. E é por meio da posição de Linguini que
Rémy se iguala ao chef Gusteau, sendo reconhecido e saudado por Anton Ego como
“nada menos que o melhor chef da França”. A dualidade limite entre os protagonistas
de Ratatouille nos faz refletir sobre nossa condição humana, que nos lança no dilema
de nossas vidas situadas entre natureza e cultura, apontando para complementaridades
e indissociablidades de ambas.
99
No entanto, esta dualidade antitética homem/animal, cultura/
natureza, esbarra contra toda a evidência: é evidente que O homem
não é constituído por duas camadas sobrepostas, uma bionatural e
outra psicossocial, é evidente que não transpôs nenhuma muralha
da China que separasse a sua parte humana da sua parte animal;
é evidente que cada homem é uma totalidade biopsicossociológica
Anton Ego (Morin, 1973, p. 5).

Anton Ego é outro que em Ratatouille


vive uma experiência em mais alto grau.
Com toda a sua vida dedicada à crítica de
imprensa impiedosa revestida de sadismo,
Ego poderia ser um dos personagens
analisados por Roudinesco (2008) quanto a
uma possibilidade de perversão viabilizada
nele pela escrita mordaz, solitária e
destrutiva do jornalista especializado em
culinária.

Esbelto, “grã-fino de narinas de


cadáver” como no sarcasmo de Nelson
Rodrigues, tipo de uma intelectualidade
afetada e estereotipada, o crítico é também
dual: incorpora o terror da caneta destrutiva e o deslumbre da intelligentsia, presente
em ramos da crítica e também no universo acadêmico.
Mas a perversão é também criatividade, superação de si, grandeza.
Nesse sentido, pode ser entendida como o acesso a mais elevada
das liberdades, uma vez que autoriza aquele que a encarna a ser
simultaneamente carrasco e vítima, senhor e escravo, bárbaro e
civilizado. O fascínio exercido sobre nós pela perversão deve-se
precisamente a que ela pode ser ora sublime, ora abjeta. Sublime,
ao se manifestar nos rebeldes de caráter prometéico, que se negam
a se submeter à lei dos homens, ao preço de sua própria exclusão;
abjeta, ao se tornar, como no exercício das ditaduras mais ferozes, a
expressão soberana de uma fria destruição de todo laço genealógico
(Roudinesco, 2008, p.11).

O crítico perverso – e por isso temível, e por isso fascinante – vive sua epifania
da forma mais inesperada que é provar a ratatouille materna produzida por um chef
desconhecido, que minutos depois se revelará como um simples, asqueroso e desprezível
roedor. A mãe, a infância, a casa de outrora, a sensação de segurança, prazer, redenção
e completude que um amor materno pode proporcionar afloram de tal maneira que
mudam o destino do crítico, em definitivo.

O paroxismo toca de tal forma Anton Ego que ele refaz sua vida, revê sua função
de crítico, faz uma afirmação da necessidade de aceitar o diferente e, sobretudo, o
100
novo. Rémy, o rato chef, é elemento secreto e implícito no texto que o jornalista publica
no dia seguinte à revelação e à reminiscência que ele vive no Gusteau’s. De certo,
para o crítico acostumado à deferência, e à solidão, aquele momento inigualável o fez
repensar sua existência. Exercício materializado na página do jornal. Confiram a crítica
escrita por Ego e veiculada na imprensa no dia posterior a sua experiência gastronômica
indescritível:

De certa forma, o trabalho de um crítico é fácil. Nos arriscamos


pouco, e temos prazer em avaliar com superioridade os que nos
submetem seu trabalho e reputação. Ganhamos fama com críticas
negativas, que são divertidas de escrever e ler, mas a dura realidade
que, nós críticos, devemos encarar, é que no quadro geral, a mais
simples porcaria, talvez seja mais significativa do que a nossa crítica.
Mas, há vezes em que um crítico arrisca, de fato, alguma coisa,
como quando descobre e defende uma novidade. O mundo costuma
ser hostil aos novos talentos, às novas criações. O novo precisa ser
incentivado. Ontem à noite eu experimentei algo novo; um prato
extraordinário de uma fonte inesperadamente singular. Dizer que
tanto o prato, quanto quem o fez, desafiam minha percepção sobre
gastronomia, é extremamente superficial. Eles conseguiram abalar
minha estrutura. No passado eu não fazia segredo quanto ao meu
desdém pelo famoso lema do Chef Gusteau: “qualquer um pode
cozinhar”. Mas eu percebo que só agora, compreendo realmente o
que ele queria dizer. Nem todos podem se tornar grandes artistas,
mas um grande artista pode vir de qualquer lugar. É difícil imaginar
origem mais humilde do que desse gênio que agora cozinha no
Gusteau’s e que é, na opinião deste crítico, nada menos do que o
melhor Chef da França. Eu voltarei ao Gusteau’s em breve, com
muita fome.

Linguini é levado ao extremo em sua farsa, arrastando em sua trajetória


personagens como Colette, a namorada, e Skinner, o ganancioso chef administrador
do restaurante Gusteau’s. “Todos podem cozinhar” diz o fantasma de Auguste Gusteau,
figura que povoa o imaginário de Rémy e o conduz ao paroxismo de se transformar
em grand chef, dono de restaurante, sócio e Linguini e Anton Ego e propositor de
um novo pensar na relação entre humanos e ratos, menos superficial, mais voltada à
complexidade inerente a esta relação.

Somos animais constituídos biopsicossociologicamente. Ratatouille nos lega esta lição.


Rémy em Paris

101
Up – Altas Aventuras
UUm amor de vida inteira que justifica a Carl e Ellie

grande aventura, mesmo que em vida jamais


realizada. Se a velha chama se apagou, o amor
é tudo o que não se pode deixar para trás.
Por isso, fazer flutuar a morada de sempre e
carregá-la suspensa por balões por sobre as
costas é o mínimo que se pode fazer.

Toda a vida de Carl Fredericksen foi


dedicada sua esposa Ellie. Conheceram-se
ainda criança, ela o instigando em sua timidez indissociável. Eles, juntos, nas pequenas
tarefas domésticas, nas pequenas conquistas e nas tragédias cotidianas da vida a dois,
madura e repleta de pequenos momentos em princípio tão insignificantes, depois tão
memoráveis. Carl e Ellie, sempre juntos, no intento jamais realizado de conhecer o
Paraíso das Cachoeiras, situado na longínqua Venezuela.

E é lá que o herói de infância de ambos, o ganancioso explorador Charles Muntz,


vive recluso em busca da grande ave que restituirá sua glória perdida e desbotada de
grande desbravador.

Um amor de vida inteira que, por construção conjunta da vida a dois, despreza
as altas aventuras em prol da segurança material, representada pelo cofre sempre
esvaziado para o custeio das necessidades diárias. Até que chega a velhice. E na hora
de concretizar o sonho registrado desde a infância no álbum dos desbravadores juvenis,
a amada falece. Carl compra a passagem para a tão esperada visita ao Paraíso das
Cachoeiras, mas já é tarde demais. O bilhete fica inválido, pois Ellie morreu.

Viúvo, sobra-lhe a solidão e a


especulação imobiliária que o faz réu por
agressão contra quem quer lhe tirar de
sua casa e obriga-lo a ir para o fim em
um asilo. Resta-lhe também um menino
gordinho e escoteiro tão carente quanto
Carl, a espera de uma medalha que um
pai ausente nunca lhe entregará mediante
a solidão de um amor paterno jamais sentido ou vivenciado pelo garoto.

Diante de tanto tédio e desrazão, um ato de amor e de devoção faz o velho


se livrar das amarras concretas ou imaginadas: na iminência de ir por consentimento
forçado para o temido asilo, o vendedor de balões Carl Fredericksen faz sua casa flutuar
amparada em incontáveis balões que sobem ao ar plenos de gás hélio. O destino é, final
mas não tardiamente, o venezuelano Paraíso das Cachoeiras.
102
Mas o menino escoteiro, de nome Russell, sem querer embarca
na viagem. Que trará surpresas e descobertas para todos.

Enfrentando tempestades e intempéries, Carl Fredericksen e Russell


avistam o tão aguardado Paraíso. A promessa que o viúvo fez à esposa morta esta
prestes a se concretizar. O marido vai fincar a casa no local imaginado e querido
desde a infância. Findará seus dias feliz por ter, mesmo post mortem, realizado o
desejo de ambos, dele mesmo e da esposa falecida, que fundiam-se em um só como
amigos, companheiros e amantes. De quebra, Russell realizará a tarefa do escoteiro de
ajudar um idoso e, assim, ganhar a medalha que em sua mente resgatará o amor de seu
pai sempre ausente.

Só que o pouso se dá em local diferente do apropriado, e


cabe à dupla inusitada “carregar” a casa suspensa por balões
até a proximidade da cachoeira. Só que, no caminho,
cães com coleiras eletrônicas que os permitem falar
interceptam a dupla. Só que, sem advertência, cobiça
ou intenção, Carl e Russell encontraram o que Charles
Muntz buscou, também, por toda a vida: a ave gigante
e colorida, fruto da avidez de décadas do explorador
mítico.

Um embate entre Carl e Muntz se inicia. O


viúvo vendedor de balões logo descobre que o ídolo
Russell e Carl
da infância é um vilão sem caráter, repleto de cobiça
e soberba. Em questão, coloca-se ou realizar o desejo
de Ellie primando por firmar morada no Paraíso das
Cachoeiras, ou salvar a rara espécie de ave da ânsia do explorador.

Posto o conflito, Carl se decide pela missão de vida em defesa da quase extinta
e ameaçada ave Narceja, abandonado a casa que carregara no local desejado, e se
lançando por inteiro na luta contra a famigerada sanha do antigo ídolo Charles Muntz.
E o menino ingênuo Russell se torna um auxiliar importante nesta missão.

Um amor de vida inteira que, por uma contingência, vê seus planos alterados.
No embate entre Carl Fredericksen e Charles Muntz, o vendedor de balões vence. A
ave se vê livre para viver e se multiplicar no Paraíso das Cachoeiras. A casa do casal,
solitária, ficará fincada no solo do Paraíso como registro da missão cumprida, mesmo
que com atraso de décadas e de vidas, porém jamais sem paixão, e com restos de
remorso acumulados pelo tempo perdido.

Na volta para casa, novos aprendizados e a redescoberta de novos amores e


novos horizontes. Os quais, certamente, perdurarão para a vida inteira da dupla. E
Russell será o epicentro desta nova devoção. Carl, que nunca teve filhos com Ellie e
viveu a dor do luto de um filho natimorto, assume, aos poucos, a figura paterna que
para o pequeno escoteiro permanece e permanecerá distante.

103
O ranzinza vendedor de balões, viúvo após um amor de vida inteira, vai, aos
poucos, reaprendendo a sentir. Volta a sorrir e passa seus dias a brincar com Russell,
seu filho não concebido, mas vivente por obra do acaso, por força de uma grande e alta
aventura.

A vida com Ellie ganha sentido, mesmo que paradoxalmente sem a presença física
de Ellie. Carl Fredericksen já é outro. O passado não mais lhe pesa e o futuro, o devir,
o aguarda com um amor de vida inteira que não morreu, mas que, sim, transmutou-se.

Prova de que, em matéria de viver, o caos e o acaso revelam incertezas. E é


necessário vive-las, justamente, para experimentá-las.

Amores Serão Sempre Amáveis

Carregar a casa nas costas, mesmo que suspensa em balões de gás, é a metáfora
que referencia o paroxismo de Carl Fredricksen. Ante a iminência do asilo e a presença
já duradoura da viuvez e da solidão, sobra-lhe o gesto derradeiro de voar com a casa e
as lembranças de Ellie rumo ao distante e quase inacessível Paraíso das Cachoeiras, na
Venezuela.
Dupla com a Narceja no Paraíso das Cachoeiras
Salvar a Narceja,
ave em extinção e fruto
da cobiça de quase uma
vida inteira por parte de
um ex-ídolo de infância, é
a tarefa repentina a que se
dedicam Carl Fredricksen
e Russell após uma viagem
jamais pensada em termos
de formato ao seu destino
final, o território idílico
venezuelano.

E a dupla alcança êxito em sua empreitada. Contra a ganância do anti-herói


Charles Muntz, e todo o seu aparato que inclui até cães ciborgues com fala humana
modulada eletronicamente, Carl e Russell garantem que a ave viverá livre em plena
América do Sul, longe da ameaça predatória do explorador mau.

Este caráter científico-político de Up – Altas Aventuras merece atenção e poderia,


ele próprio, ser objeto de uma reflexão mais apurada. De uma lira em evocação ao amor
e ao sonho da solidariedade entre amantes, o filme se transforma em um semi thriller
para, logo depois, retomar seu percurso de elogio ao encanto das relações afetivas, seja

104
de Carl para com Ellie, seja de Carl para com
Russell, reciprocamente nos dois casos.

Perseguições, lutas, ameaças passam a


dominar o enredo, que se direciona ao discurso
de preservação da espécie em ambientes ainda
não antropizados para depois se encerrar
como reafirmação da narrativa amorosa,
valorizando os amores conjugal e filial.

Só que preservar a Narceja em solo latino-americano, mensagem secundária e


ecossocialmente correta introduzida no enredo de Up – Altas Aventuras, poderia nos
induzir ao debate sobre os desafios da ciência e da preservação e da reprodução das
espécies.

Melhor deixar a ave reproduzir-se ao natural em seu habitat por meio da


reprodução sexual livre, ou transportá-la para os Estados Unidos (ou outros países com
centros de pesquisa avançados ao redor do mundo) e multiplicá-la mediante técnicas
de clonagem?

Afinal, Carl e Russell fizeram um bem ou um mal à Narceja e a sua perpetuação


enquanto espécie? Charles Muntz era um vilão por cobiçar a ave e assim poder restaurar
sua imagem, e riqueza? Ou era um herói ao almejar a multiplicação de Narcejas em
zoológicos, em imagens midiáticas e, no futuro, com população maior de aves garantidas
pela reprodução cientificamente assistida, libertá-las em espaços livres como o próprio
Paraíso das Cachoeiras. Aí, enfim, proporcionar a estas aves raras a reprodução sem
amarras e do modo inerente aos seus biologismos.

Mas retornemos ao grande paroxismo do amor. Um homem que ama sua esposa
no limite de uma aventura sem precedentes a fim de realizar o grande sonho que
remonta à infância, compartilhado ainda e desde que compunham um casal infantil.
Um filho que ama seu pai, mesmo diante de sua repetida e permanente ausência.

Up – Altas Aventuras é um filme que homenageia um amor que se esforça para


ser concreto em um panorama contemporâneo que o norteia, em suas mais diversas
manifestações, para ser líquido, instável, frouxo (Bauman, 2004). Hoje, amar com
tamanha solidez de afeto é um desafio.

O amor que parece nos faltar, que falta a Carl após o falecimento de Ellie, que
falta a Russell pela omissão do pai ausente, e que também falta a um Charles Muntz
recluso e vivente no ostracismo ao lado de cães e vestígios melancólicos de um saudoso
tempo de glória, é um dos principais fios condutores desta história amorosa.

E é Bauman que nos adverte acerca da essencialidade do amor pleno em uma


contemporaneidade de notável fragilidade nos laços afetivos. Precisamos resgatar o
amor, em especial o amor ao próximo, mais que ao semelhante, como condição pilar a
vida no planeta.
105
Aceitar o preceito do amor ao próximo é o ato de origem da
humanidade. Todas as outras rotinas da coabitação humana,
assim como suas ordens pré-estabelecidas ou retrospectivamente
descobertas, são apenas uma lista (sempre incompleta) de notas
de rodapé a esse preceito. Se ele fosse ignorado ou abandonado,
não haveria ninguém para fazer essa lista ou refletir sobre sua
incompletude (Bauman, 2004, p. 97).

Carl e Ellie viveram sim um grande amor. Contudo, o cotidiano, as pequenas


tragédias, as vitórias e as derrotas do dia a dia os consumiram de tal forma que as
grandes metas foram, pouco a pouco, adiadas, sublimadas, transferidas.

O filho que não nasceu, a reforma da casa que nunca se findou, a viagem que
jamais aconteceu, o cofre sempre pronto a ser esvaziado para uma compra repentina.
Consumo e busca do bem estar que, em longo prazo, trouxeram a impotência da não
realização de uma viagem e o fantasma da solidão ao idoso intolerante, que em um
gesto exacerbado e paroxístico de revolta e de bravura – de amor – faz da casa um balão
para realizar a vontade de uma vida, deixada como herança pela companheira morta.

Um amor em seu mais alto grau, de décadas de convivência, aceitação e partilha,


que impulsiona o ser abandonado pela viuvez ao desespero diante da separação causada
pelo falecimento da mulher. Amor
que está presente neste filme talvez
de maneira mais profunda do que
em outros produzidos pela Pixar, e
que nos leva a questionar a forma
como nos relacionamos e nos
amamos neste século XXI.

Se nas demais produções


do estúdio há o flerte, o romance
e o desejo, que para Bauman é
“vontade de consumir. Absorver,
devorar, ingerir e digerir — aniquilar” (2004, p. 23), em Up – Altas Aventuras o amor
se configura como absoluto, convidando-nos a nos questionarmos como amamos, ou se
ainda somos capazes de amar assim.

O amor, por outro lado, é a vontade de cuidar, e de preservar o


objeto cuidado. Um impulso centrífugo, ao contrário do centrípeto
desejo. Um impulso de expandir-se, ir além, alcançar o que “está lá
fora”. Ingerir, absorver e assimilar o sujeito no objeto, e não vice-
versa, como no caso do desejo. Amar é contribuir para o mundo,
cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama. No amor, o eu
é, pedaço por pedaço, transplantado para o mundo. O eu que ama
se expande doando-se ao objeto amado. Amar diz respeito a auto-
sobrevivência através da alteridade. E assim o amor significa um

106
estímulo a proteger, alimentar, abrigar; e também à carícia, ao afago
e ao mimo, ou a — ciumentamente — guardar, cercar, encarcerar.
Amar significa estar a serviço, colocar-se à disposição, aguardar
a ordem. Mas também pode significar expropriar e assumir a
responsabilidade. Domínio mediante renúncia, sacrifício resultando
em exaltação. O amor é irmão xifópago da sede de poder — nenhum
dos dois sobreviveria à separação (Bauman, 2004, p. 24).

Cego em sua devoção por Ellie, contra tudo e contra todos Carl não se curva,
fazendo a casa subir pelos ares, inclusive de início tendo renegado um gesto inocente
e nobre de amor ao próximo empreendido pelo menino Russell. A intenção do garoto
é somente praticar uma boa causa ajudando um velhinho. Quem sabe de posse do
produto de uma ação benevolente o escoteiro não conquistasse o mínimo que fosse do
amor do pai mais que distante. Mas Carl é indiferente à oferta de Russell e a união da
dupla se consolida no acaso da casa que sob aos céus de maneira jamais pensada, a não
ser por seu dono.

Mesmo assim durante toda a saga o menino


se doa, sem cobranças, sem limites, à companhia
rabugenta do frustrado vendedor de balões. Doação
que se dá nas pequenas ações de companheirismo,
pueris por vezes, empreendidas pelo menino instante
após instante ao lado de Fredricksen, inclusive
na tarefa perigosa de enfrentar Muntz e seus cães
ciborgues em proteção à Narceja.

Até porque em síntese a dor de Russell é a


mesma dor de Carl: a dor do desamparo. O homem
desamparado se sente pela perda da esposa. O
menino, pela renúncia do pai. Se Fredricksen vê na
ida ao Paraíso das Cachoeiras levando os objetos
de Ellie uma forma de reconstituir o elo perdido, o
garoto vê em ajudar o idoso uma forma de também
reconstruir uma relação de amor filial que há muito
se rompeu.

O consumismo, a visão de que relações devem


ser investimentos propulsores de resultados com
riscos e possibilidades de prejuízo, os indícios de que
o cenário de pós-modernidade também desestabiliza
nossas mais íntimas relações pessoais por meio da
exacerbação da cultura de consumo são alguma das
proposições do sociólogo polonês capazes de explicar
o porquê do afastamento do pai de Russell, homem
Narceja da pós-modernidade.

107
Os filhos estão entre as aquisições mais caras que o consumidor
médio pode fazer ao longo de toda a sua vida. Em termos puramente
monetários, eles custam mais do que um carro luxuoso do ano, uma
volta ao mundo em um cruzeiro ou até mesmo uma mansão. Pior
ainda, o custo total tende a crescer com o tempo, e seu volume
não pode ser fixado de antemão nem estimado com algum grau
de certeza. Num mundo que não oferece mais planos de carreira e
empregos estáveis, assinar um contrato de hipoteca com prestações
de valor desconhecido, a serem pagas por um tempo indefinido,
significa, para pessoas que saem de um projeto para o outro
e ganham a vida nessas mudanças, expor-se a um nível de risco
atipicamente elevado e a uma fonte prolífica de ansiedade e medo.
É provável que se pense duas vezes antes de assinar, e que, quanto
Charles Muntz mais se pense, mais se tornem óbvios os riscos envolvidos (Bauman,
2004, p. 59).

O desprendimento de Russel em se devotar ao bom gesto de apoiar Carl nada


tem de menor quanto à dolorosa nostalgia da mulher vivida pelo velho viúvo. Ambas se
igualam em grandiosidade e poesia, em compromisso e compaixão, sendo cara e coroa
de um mesmo sentimento amoroso, diferente, porém, paralelo.

Carl demonstra seu amor por Ellie a sua maneira. Assim como também, a sua
maneira, Russel estabelece um vínculo de amor com Carl, que acaba por se tornar
recíproco uma vez que Fredricksen acaba por assumir o lugar do pai do escoteiro
no final do filme. Carl e Russel, de modos distintos, mostram que o amor no mundo
contemporâneo ainda pode remanescer de variadas formas.

Toy Story 3

AAndy vive seu ritual de passagem. A vida adulta, ou o que se considera como ela,
aguarda-o. Hora de ir à faculdade. E deixar sua coleção afetiva e material de brinquedos
para trás.

Na partida, necessário se faz arrumar as malas. E entre as marcas da infância e


da transição, quais perpetuar? O caubói Woody é uma delas. O brinquedo preferido é
selecionado. Ele fora escolhido para ir à faculdade com Andy. Quanta honra, quanta

108
gratidão. Os demais, entre eles o astronauta Buzz Lightyear, ficarão submersos no
mar de memórias a serem lançadas no sótão da casa do menino. Ao infinito e além,
literalmente.

A separação está prestes a se consumar. Dolorida, mas implacável. Porém,


equívocos e uma série de confusões e trapalhadas faz com que os brinquedos todos – Sr.
Cabeça de Batata e Sra. Cabeça de Batata, a cowgirl Jessie e o cavalo Bala no Alvo, o
dinossauro Rex e outros, inclusive Woody e Buzz – sejam levados como doação à creche
Sunnyside.

Na creche, todos são recebidos de modo fraterno pelo urso de pelúcia Lotso. E que
recepção! Sunnyside é o local perfeito para brinquedos, em especial para brinquedos
rejeitados por seus donos, que é como os brinquedos de Andy se sentem. E Sunnyside
é paradisíaca porque na creche jamais faltam crianças. E crianças sempre dispostas
ao brincar quase ininterrupto. Além de tudo, no local o acolhimento do ursinho Lotso
maravilha a todos.

Mas, em verdade, o urso de pelúcia nada tem de fraterno e amoroso. Lotso é um


poço de rancor e, desde que fora enjeitado pela ex-dona terminando por ser acolhido
em Sunnyside, impôs-se como líder de uma gangue de brinquedos em um esquema de
massacre, vigilância, opressão e semi escravização para com os demais.

E como ele o faz? Lançando os brinquedos recém-chegados à ala das crianças


menores, que brincam com mais “ênfase” e “fervor”, acabando por destruir quaisquer
artefatos de plástico e borracha que cheguem as suas mãos. Rasgões, cortes e escoriações,
retiradas bruscas de partes, riscos diversos, arranhões, mordidas, lances aos céus e
quedas desastrosas... estes são alguns dos saldos após a estada na ala das crianças
menores de Sunnyside. E após a recepção calorosa de Lotso e seu grupo, os brinquedos
de Andy vivenciam em pele e plástico todo este terror.
Andy chega à fase adulta

109
Antes desta terrível e dolorosa descoberta, Woody avisa que deixará Sunnyside
em fidelidade a Andy, regressando para casa em busca de seu dono. Todos os demais
brinquedos desdenham do caubói. O sentimento é de que Woody, único escolhido de
Andy, abandonara os demais. E o caubói, à procura do menino, foge de Sunnyside e
acaba parando na casa da pequena Bonnie, filha da diretora da creche.

Enquanto isso, também refém de Lotso, Buzz Lightyear arquiteta um plano


para que todos fujam do local. Mas ele é descoberto pelo urso e por seus comparsas,
que reprogramam o guerreiro interestelar alterando suas configurações eletrônicas
originais. E ao fazerem isso, Lightyear volta a acreditar que é um herói intergaláctico
em missão espacial, usando sua força e inteligência na tarefa de prender e vigiar os
demais brinquedos sob as ordens de um, agora, para ele “Comandante Lotso”.

Na casa de Bonnie, Woody descobre as raízes da maldade do vilão ursinho de


pelúcia, já que um outro brinquedo conhecia o passado do algoz de Sunnyside. E é ele
quem conta que Lotso, ao seu lado e ao lado de
outros amigos, fora perdido pela menina Daisy,
sua ex-dona. E após percorrer quilômetros até
a casa de Daisy, ao chegar lá encontra um novo
urso Lotso recém-comprado em seu lugar.

O trauma da substituição e do suposto


amor não correspondido e facilmente reciclado
teria marcado a vida de Lotso, que assim encontra
Sunnyside, corrompe o lugar, instaura uma
cultura de medo e domina com atos de terrorismo
os demais brinquedos. Enquanto isso, na creche,
a Barbie integrante do conjunto de brinquedos
de Andy descobre um Ken subserviente, fútil,
indeciso e narcisista; os demais brinquedos
vivem sob um sistema de subjugo; e Lotso a
todos humilha e domina, sem compaixão.

Da casa de Bonnie, Woody planeja voltar a Sunnyside e libertar seus amigos. E


o caubói coloca seu plano em prática, com a ajuda de um heroico Senhor Cabeça de
Batata, de um esforço concentrado dos demais brinquedos e de um Buzz Lightyear
latin lover, já que fora, na tentativa de ser novamente reprogramado, alterado para a
programação em língua espanhola muy caliente.

O plano dá certo e os brinquedos de Andy, libertos, empreendem fuga. Mas na


hora fatal, Lotso surge. E Woody lhe diz sobre Daisy, apresentando a todos as razões
para o rancor do ressentido e malvado urso de pelúcia. A fala de Woody desperta a ira
da Boneca Bebê também ex-brinquedo de Daisy. A boneca é auxiliar de Lotso em suas
maldades, convencida que fora pelo urso de que também teria sido trocada pela ex-
dona.

110
Ao saber da verdade, Bebê joga Lotso na lata do lixo, local no qual por sobre a
tampa os bonecos do bem enfrentam o grupo de brinquedos opressores. Mas para salvar
um outro brinquedo, Woody acaba sendo puxado para dentro da lata, levando todos os
demais brinquedos a entrarem no container. E o caminhão de lixo recolhe todos, rumo
à incineração.

Na iminência da morte, Lotso, Woody, Buzz e os demais tentam se salvar. Lotso


é ajudado, safa-se, mas trai a todos e os deixa próximos às chamas. Todos pensam na
morte. Mas todos são salvos por três minúsculos brinquedos pertencentes a Andy que
usam uma garra – análoga àquela que os “pescava” nos parques de diversão – e retira
o grupo com vida.

Salvos os brinquedos, é hora de voltar para a casa de Andy. Especialmente Woody,


que vai para a faculdade com seu dono. Mas o caubói faz com que o agora rapaz doe
seus amigos à menina Bonnie.

A despedida é tocante. Transição e passagem marcantes que fazem Andy se


libertar, também, de Woody, e vice-versa. O caubói é o último a ser doado à menina, em
um gesto de liberdade e compaixão. Catarse e nova vida que se inicia.

Lotso vira enfeite de caminhão de lixo. Andy ruma para ser adulto. Woody e Buzz
Lightyear voltam a ser brinquedos em seus eternos retornos.

Amigo estou aqui

Andy chega ao limite da vida infanto-juvenil e, enfim, parece se desfazer de seus


brinquedos. E neste caso a recíproca também é verdadeira. Parece que, finalmente, os
brinquedos, em especial o caubói Woody, desfazem-se de Andy. Todos são entregues à
menina Bonnie. Um ciclo se renova e uma nova etapa começa na vida de todos.
Crianças na creche Sunnyside

111
A despedida é emocionante. A decisão de Andy em dar também o boneco do
caubói à pequena Bonnie ocorre depois de Woody ter optado por ficar com os demais
brinquedos, não seguindo com o agora rapaz para a faculdade. Assim, o gesto de
amizade e desapego é bilateral. A amizade é superior e sobreviverá para sempre, por
sobre todas as coisas.

De fato, uma amizade. A união de Andy e Woody não é ameaçada nem pelo
apelo tecno fake de Buzz Lightyear, nem pela iminência da ida do agora rapaz ao ensino
superior, rompendo a barreira e a proteção doméstica representada pelo lar. Andy e
Woody são e serão sempre amigos inseparáveis.

Lembremo-nos de que é curioso notar que o pai de Andy é figura obscura na saga
de Toy Story. Ele jamais aparece, e ao mesmo tempo não são feitas menções a esta figura
masculina. Talvez a imagem viril de Woody projete no menino-homem a idealização do
pai ausente e, por isso, ele a carregará para sempre dentro de si.

No meio de tantos brinquedos – figuras de dinossauro, alienígenas, cachorro


de mola, homem e mulher batata, porco cofre, soldadinhos de plástico, cowgirl e seu
cavalo desastrado, porém infalível, além de sobretudo um guerreiro interestelar – o
caubói será sempre especial. Isto porque em virtude da amizade Andy e Woody são
quase que um só, sendo a separação um ato extremo em ambas as vidas.

E amizade é o que faz de uma dupla uma unicidade. Agamben (2009) avança
nesta trilha de pensamento. Ao discorrer sobre a figura do amigo, o filósofo afirma, com
base em referências como escritos filosóficos e aristotélicos além de impressões sobre
pintura, que um amigo não é somente um outro com qual compartilhamos preferências,
sentimentos, sensações... Um amigo é mais que isso.

Um amigo seria um outro de nós mesmos. O que se compartilha com um amigo


seria o que compartilhamos com nós mesmos, nossa a própria vida, com nossa existência.
Assim, “com-sentimos” a existência de um amigo (Agamben, 2009) e “com-dividimos”
com ele nosso ser.

112
Nessa sensação de existir insiste uma outra sensação, especificamente
humana, que tem a forma de um com-sentir (synaisthanestha) a
existência do amigo. A amizade é a instância desse com-sentimento
da existência do amigo no sentimento a existência própria. Mas isso
significa que a amizade tem um estatuto ontológico e, ao mesmo
tempo, político. A sensação do ser é, de fato, já sempre dividida e
com-dividida, e a amizade nomeia essa condivisão [...]. O amigo
não é um outro eu, mas uma alteridade imanente na ‘mesmidade’,
um torna-se outro do mesmo. No ponto em que percebo a minha
existência como doce, a minha sensação é atravessada por um com-
sentir que a desloca e deporta para o amigo, para o outro mesmo.
A amizade é essa des-subjetivação no coração mesmo da sensação
mais íntima de si [...]. Os amigos não condividem algo (um
nascimento, uma lei, um lugar, um gosto): eles são com-divididos
pela experiência da amizade. A amizade é a condivisão que precede
toda divisão, porque aquilo que há para repartir é o próprio fato de
existir, a própria vida (AGAMBEN, 2009, p. 92).

A separação física da dupla que ocorre no filme representa a experiência mais


dolorida de suas vidas, uma vez que se trata de um exercício de reorganizar os modos
de “com-sentir” e “com-dividir” que fizeram de Woody e Andy, alegoricamente, um
ser só pois que “des-subjetivados”, amigos de verdade. Muito mais que “amigo estou
aqui”, como canta a canção tema do filme. Mais que estar, a dupla é exemplar desta
“alteridade na mesmidade”.

A compreensão da fortaleza da relação entre Andy e Woody também pode ser


conseguida por oposição, situando a persona do ursinho Lotso como o contrário desta
“condivisão” de si próprio. O inferno de Lotso é a falta da amizade, sacramentada com
o gesto de sua ex-dona, a menina Daisy, entendido por ele como desprezo, desonra,
inimizade, desamor. Quebrado este elo essencial, o perverso urso jamais o reconstruiu,
vivendo a solidão dos temidos e dos malvados.

O sentimento de amizade de Andy e Woody extravasa seus corpos e contamina


todos os demais brinquedos que, por uma vida, acompanharam de modo intenso as
brincadeiras do garoto. Os brinquedos também vivenciam em grau máximo esta amizade,
Brinquedos na caixa para doação

113
Lotso em Sunnyside

sendo únicos até na hora da morte após a traição de Lotso e a quase incineração no
aterro sanitário. A cena é forte: as mãos de todos se unem. Se é para morrer, que
morramos juntos, unidos, únicos e nossa comunhão fraterna.

E Sunnyside é o local onde eclodem estes sentimentos nos corações de todos.


Ou melhor, onde todos se apercebem e se apoderam deste prazer e desta profissão de
serem amigos. A creche, inicialmente considerada um paraíso por parte dos brinquedos
de Andy, logo depois tem sua face infernal revelada por força da rotina de abusos, maus
tratos e opressão imposta de um lado por Lotso e sua gangue, de outro pelas crianças
mais novas que também frequentam o local.

Até porque em contraposição à casa de Andy, Sunnyside não se configura como


próximo ao que se concebe como lugar antropológico, na conformação que Augé (1994)
dá a este termo. Despersonalizada, transitória por meio da rotatividade e efemeridade da
presença infantil, não impulsionadora de referências e lembranças pessoais (lembramo-
nos dos amigos de escola, muito dificilmente dos amigos de creche), desprovida de
grande carga de maiores apelo histórico, a creche tem sua parcela de não-lugar.

Enquanto há vida plena na casa de Andy, e por isso nela há a marca subjetiva
própria aos lugares de pertencimento, na creche ocorre fenômeno análogo aos dos
lugares de passagem, fluxo e fugacidade referenciados por Augé.

Sunnyside não é um grande aeroporto, gare, boulevard, ou shopping center.


Entretanto, a solidão e a transitoriedade pontuam o dia a dia na creche. Tanto que
a alegria do brincar, plena na casa de Andy, anula-se ao soar o toque que assinala
intervalo, lanche ou saída dos pequenos deste não-lugar que é a creche.

114
Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico,
um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como
relacional, nem como histórico definirá um não-lugar. A hipótese
aqui defendida é a de que a supermodernidade é produtora de não-
lugares, isto é, de espaços que não são em si lugares antropológicos
e que, contrariamente à modernidade baudelairiana, não integram
os lugares antigos: estes, repertoriados, classificados e promovidos
a ‘lugares de memória’, ocupam aí um lugar circunscrito e específico
(AUGÉ, 1994, p.73).

Mais que isso, as imagens do filme mostram a creche como cárcere, convertida em
seus períodos de inatividade em campo de concentração logo após a saída das crianças,
em especial no período da noite. De espaço de brincadeira, diversão e principalmente
amizade, esta última o sentimento que a saga de Toy Story prega dever haver entre os
brinquedos e seus donos, Sunnyside à noite se converte em um ambiente hostil, sombrio
e aterrorizador. Tanto que fugir dele se torna meta do grupo. Tanto que a missão de
libertá-los ganha o ímpeto de Woody e de todos os brinquedos.

A amizade encontra seu paroxismo. Ambos Woody e Andy sofrem e os outros


brinquedos sofrem também, por tabela. Passou-se mais de década, mas o dia em o
garoto virara um homem, enfim, chegou. Cabe a Bonnie realimentar o sentimento de
“com-sentir” e “com-dividir”, tarefa que ela começa de imediato a fazer. Woody, Buzz e
os demais amigos estão em boas mãos.

Por fim, cabe registrar: irmanar-se na amizade não é fácil. O exemplo de um


desorientado Ken (e também de uma Barbie em menor escala), fútil e superficial,
é sintomático. No filme ele é aliado de Lotso, por meio de subserviência, omissão e
fraqueza quase criminosas.

Mas a revelação da chegada da Barbie à creche, boneca que integra o grupo


de Andy, incita-o à libertação. Todavia ele fraqueja por diversas vezes e, por um golpe
do destino, e medo, acaba ficando na creche. “Com-sentir” e “com-dividir” requerem
coragem e determinação.

O contemporâneo nos proporciona muitos homens e muitas mulheres como Andy


e Woody. E também como Lotso, nossa face tânatos. Entretanto, há inúmeros homens e
mulheres como Ken (e como Barbie). Estabelecer e reatar os elos de “amizade” com eles
e com elas é, certamente, um dos desafios do nosso século.

115
Palavras Finais
A trama complexa da Pixar nos sugere o repensar da condição humana. Os
personagens que nela se enredam revelam a polifonia do contemporâneo. Suas histórias,
suas vidas e suas ações nos colocam a necessidade de religarmos nossos saberes.
Toy Story (1995); Vida de Inseto (1998); Toy Story 2 (1999); Monstros S.A
(2001); Procurando Nemo (2003); Os Incríveis (2004); Carros (2006); Ratatouille
(2007); Wall-E (2008); Up (2009); Toy Story 3 (2010) e Carros 2 (2011), além das
demais produções deste estúdio, guardam a magia e o poder de projeção-duplicação do
cinema.
Cinema que durante todo o século XX tornou-se um dos operadores simbólicos
de nosso imaginário.

O cinema, caverna simbólica na qual o homem se mostra como ele


verdadeiramente é, fornece o exemplo cabal da retroalimentação das
esferas do real e do imaginário. Em qualquer filme, essa circulação
se atualiza peremptoriamente, como se estivéssemos diante de
um operador simbólico que aciona emoções incontidas, medos
arcaicos, desejos inconfessáveis, ódios reconhecidos. Integrá-lo
na atividade da ciência, como linguagem ampliadora de cognição,
implica considerá-lo articulado ao racional — lógico — empírico,
esse escaninho exclusivo e arrogante em que se movimentam e se
digladiam as explicações científicas (Carvalho, 2003, p. 90).

Cinema que no século XXI vê nas tecnologias eletrônica e digital possibilidades


quase que infinitas de construções de enredos, narrativas e ficções.
Devemos colocar os filmes de estúdios como a Pixar no lugar que a eles é de
direito: de cinema, não de diversão menor. Muito menos de produto meramente infantil.
Basta acompanharmos uma exibição de um filme de estúdios como Pixar
e Dreamworks, por exemplo. O público adulto é presente nas sessões. Muitos para
se deliciarem e sonharem com as comicidades e dramas narrados e vividos pelos
personagens. Mesmo que, alguns ainda, usem o acompanhamento infantil como
desculpa, esta mais imatura que o desdém de uma criança.
Parcela significativa dos filmes deste trabalho eu os vi com meus sobrinhos.
Ríamos e sentíamos em comunhão. A queda de Buzz Lightyear com o astronauta
descobrindo sua falibilidade; a crônica de Anton Ego acerca de Rémy e sobre o papel da
crítica; o hiperssalto da Axiom rumo a uma nova hominização na Terra ou a vitória da
família Incrível sobre o vilão Síndrome – vitória do bebê Zezé, sejamos sinceros – nos
contagiavam com doses necessárias de onirismo.

116
Neste sentido, é essencial que as Ciências Sociais estejam mais abertas não
somente para estes filmes, como em especial para os campos da sociabilidade ainda
pouco explorados.
O cinema “tradicional”, como sugere Stam (2003), já possui um acumulado de
estudos que o reconhece como refinado e complexo elemento da cultura. Cabe a nós
a tarefa de começar a enxergar o cinema dito de “animação” de estúdios como a Pixar
neste mesmo horizonte.
Ao infinito e além, como o lema de Buzz Lightyear. Esta é a direção que estes
filmes parecem nos conduzir.

117
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Toy Story Procurando Nemo Wall-E
Vida de Inseto Os Incríveis Up – Altas Aventuras
Toy Story 2 Carros Toy Story 3
Monstros S.A. Ratatouille Carros 2

Anexos

FICHAS TÉCNICAS DOS FILMES

125
Toy Story

Nome Original: Toy Story


Gênero: Animação
Direção: John Lasseter
Roteiro: Alec Sokolow, Andrew Stanton, Joe Ranft, Joel Cohen, John Lasseter, Joss Whedon, Pete
Docter
Elenco: Andrew Stanton, Annie Potts, Bill Farmer, Brittany Levenbrown, Cody Dorkin, Craig Good,
Danielle Judovits, Debi Derryberry, Don Rickles, Erik von Detten, Greg Berg, Gregory Grudt, Jack Angel,
Jan Rabson, Jeff Pidgeon, Jim Varney, Joe Ranft, John Morris, John Ratzenberger, Kendall Cunningham,
Laurie Metcalf, Lisa Bradley, Mickie McGowan, Patrick Pinney, Penn Jillette, Phil Proctor, R. Lee Ermey,
Ryan O’Donohue, Sam Lasseter, Sarah Freeman, Scott McAfee, Shane Sweet, Sherry Lynn, Spencer
Aste, Tim Allen, Tom Hanks, Wallace Shawn
Produção: Bonnie Arnold, Ralph Guggenheim
Trilha Sonora: Randy Newman
Duração: 77 min.
Ano: 1995
País: Estados Unidos
Cor: Colorido
Distribuidora: Disney
Estúdio: Pixar / Walt Disney
Classificação: Livre
Informação complementar: Vozes na versão original: Tom Hanks, Tim Allen, Don Rickles, Jim Varney,
Wallace Shawn, Bill Farmer
Fonte: http://www.cineclick.com.br/toy-story

126
Vida
de
Inseto

Nome Original: A Bug’s Life


Gênero: Animação
Direção: Andrew Stanton, John Lasseter
Roteiro: Andrew Stanton, Bob Shaw, Donald McEnery
Elenco: David Foley, Hayden Panettiere, Julia Louis-Dreyfuss, Kevin Spacey, Phyllis Diller
Produção: Darla K. Anderson, Kevin Reher
Fotografia: Sharon Calahan
Trilha Sonora: Randy Newman
Duração: 96 min.
Ano: 1998
País: Estados Unidos
Cor: Colorido
Distribuidora: Buena Vista Pictures
Estúdio: Disney / Pixar
Classificação: Livre
Informação complementar: Vozes na versão original: David Foley, Kevin Spacey, Julia Louis-Dreyfuss,
Hayden Panettiere, Phyllis Diller
Fonte: http://www.cineclick.com.br/vida-de-inseto

127
Toy Story 2

Nome Original: Toy Story 2


Gênero: Animação
Direção: Ash Brannon, John Lasseter, Lee Unkrich
Roteiro: Andrew Stanton, Ash Brannon, Chris Webb, Doug Chamberlin, John Lasseter, Lee Unkrich, Pete
Docter, Rita Hsiao
Elenco: Andi Peters, Andrew Stanton, Annie Potts, Bill Farmer, Bob Bergen, Carly Schroeder, Corey
Burton, Debi Derryberry, Don Rickles, Estelle Harris, Hannah Unkrich, Jack Angel, Jan Rabson, Jeff
Pidgeon, Jess Harnell, Jessica Evans, Jim Varney, Joan Cusack, Jodi Benson, Joe Ranft, John Lasseter,
John Morris, John Ratzenberger, Jonathan Harris, Kelsey Grammer, Laurie Metcalf, Lee Unkrich,
Madylin Sweeten, Mary Kay Bergman, Mickie McGowan, Nicolette Little, Pat Fraley, Phil Proctor, R. Lee
Ermey, Rachel Davey, Rodger Bumpass, Sherry Lynn, Sheryl Bernstein, Tim Allen, Tom Hanks, Wallace
Shawn, Wayne Knight
Produção: Helene Plotkin, Karen Robert Jackson
Fotografia: Sharon Calahan
Trilha Sonora: Randy Newman
Duração: 92 min.
Ano: 1999
País: Estados Unidos
Cor: Colorido
Distribuidora: Disney
Estúdio: Pixar Animation Studios / Walt Disney
Classificação: Livre
Informação complementar: Vozes na versão original: Tom Hanks (Woody), Tim Allen (Buzz Lightyear),
Joan Cusack (Jessie), Don Rickles (Senhor Cabeça de Batata)
Fonte: http://www.cineclick.com.br/toy-story-2

128
Monstros
S.A.

Nome Original: Monsters, Inc.


Gênero: Animação
Direção: David Silverman, Peter Docter
Roteiro: Andrew Stanton
Elenco: John Goodman, Billy Crystal, Steve Buscemi, James Coburn, Jennifer Tilly, Mary Gibbs, John
Ratzenberger, Steve Susskind, Frank Oz, Daniel Gerson, Bonnie Hunt, Jeff Pidgeone, Sam Black
Produção: Darla Anderson
Trilha Sonora: Randy Newman
Duração: 104 min.
Ano: 2001
País: Estados Unidos
Cor: Colorido
Distribuidora: Disney
Estúdio: Pixar Animation Studios / Walt Disney Pictures
Classificação: Livre
Informação complementar: Vozes na versão original: Billy Crystal, John Goodman, James Coburn,
Jennifer Tilly, Bonnie Hunt, Mary Gibbs, Steve Buscemi
Fonte: http://www.cineclick.com.br/monstros-s-a

129
Procurando
Nemo

Nome Original: Finding Nemo


Gênero: Animação
Direção: Andrew Stanton, Lee Unkrich
Roteiro: Andrew Stanton, Bob Peterson, David Reynolds
Elenco: Albert Brooks, Ellen DeGeneres, Alexander Gould, Willem Dafoe, Brad Garrett, Joe Ranft,
Allison Janney, Vicki Lewis, Austin Pendleton, Stephen Root, Geoffrey Rush, Bob Peterson, Elizabeth
Perkins, Eric Bana, Bruce Spence, Andrew Stanton, Bill Hunter, John Ratzenberger
Produção: Graham Walters
Fotografia: Jeremy Lasky, Sharon Calahan
Trilha Sonora: Thomas Newman
Duração: 102 min.
Ano: 2003
País: Austrália / Estados Unidos
Cor: Colorido
Distribuidora: Disney
Estúdio: Pixar Animation Studios / Walt Disney Pictures
Classificação: Livre
Informação complementar: Vozes na versão original de: Erica Beck, Albert Brooks, Willem Dafoe, Ellen
DeGeneres, Brad Garrett, Alexander Gould, Barry Humphries, Allison Janney, Richard Kind, Geoffrey
Rush, Eric Bana
Fonte: http://www.cineclick.com.br/procurando-nemo

130
Os
Incríveis

Nome Original: The Incredibles


Gênero: Animação
Direção: Brad Bird
Roteiro: Brad Bird
Elenco: A.J. Riebli, Andrew Stanton, Billy Guardino, Bob Peterson, Bob Scott, Brad Bird, Brad Lewis,
Bret “Brook” Parker, Bud Luckey, Christopher Leyva, Com as de: Craig T. Nelson, Deirdre Warin, Dennis
“D.J.” Jennings, Dominique Louis, Eli Fucile, Elizabeth Greenberg, Elizabeth Peña, Frank Thomas, Holly
Hunter, Jason Lee, Jazzie Mahannah, Jean Sincere, Jeff Pidgeon, Joe Ranft, John Ratzenberger, Juliet
Greenberg, Juliet Pokorny, Katherine Ringgold, Kimberly Adair Clark, Lori Richardson, Lou Romano,
Louis Martin Braga III, Maeve Andrews, Mark Andrews, Mary Elizabeth Clark, Michael Bird, Nicholas
Bird, Ollie Johnston, Pamela Gaye Walker, Patrick Walker, Pete Docter, Peter Sohn, Philip Wong, Randy
Nelson, Samuel L. Jackson, Sarah Vowell, Spencer Fox, Stephen Schaffer, Ted Mathot, Teddy Newton,
Wallace Shawn, Wayne Canney
Produção: John Walker
Fotografia: Andrew Jimenez, Janet Lucroy, Patrick Lin
Trilha Sonora: Michael Giacchino
Ano: 2004
País: Estados Unidos
Cor: Colorido
Estúdio: Pixar Animation Studios / Walt Disney Pictures
Informação complementar: Vozes de Holly Hunter, Samuel L. Jackson, Jason Lee, Craig T. Nelson,
Wallace Shawn
Fonte: http://www.cineclick.com.br/os-incriveis

131
Carros

Nome Original: Cars


Gênero: Animação
Direção: John Lasseter
Roteiro: Bonnie Hunt, Branda Chapman, Dan Fogelman, Dan Scanion, Daniel Gerson, Don Lake, Joe
Ranft, John Lasseter, Jorgen Klubien, Kiel Murray, Phil Lorin, Robert L. Baird, Steve Purcell
Elenco: A.J. Riebli, Adrian Ochoa, Andrea Boerries, Andrew Stanton, Artie Kempner, Bill Farmer, Billy
Crystal, Bob Bergen, Bob Costas, Bob Peterson, Bob Scott, Bonnie Hunt, Brian Fee, Cheech Marin,
Colette Whitakerna versão brasileira de: priscila Fantin, Colleen O’Shaughnessey, Craig Good, Dale
Earnhardt Jr., Dan Scanlon, Daniel Filho, Danny Mann, Darrell Waltrip, Dave Foley, Douglas Keever,
E.J. Holowicki, Edie McClurg, Elissa Knight, Erik Langley, George Carlin, Guido Quaroni, Hooman
Khalili, Humpy Wheeler, Jack Angel, Jan Rabson, Jay Leno, Jay Ward, Jenifer Lewis, Jennifer Darling,
Jeremy Clarkson, Jeremy Piven, Jess Harnell, Jim Ward, Joe Ranft, John Cygan, John Goodman, John
Ratzenberger, Jonas Rivera, Katherine Helmond, Kathy Coates, Ken Schretzmann, Laraine Newman,
Larry Benton, Larry the Cable, Lindsey Collins, Lou Romano, Lynda Petty, Marco Boerries, Mario
Andretti, Matt Staudt, Michael Bell, Michael Keaton, Michael Schumacher, Michael Wallis, Mickie
McGowan, Mike Nelson, Paul Dooley, Paul Eiding, Paul Newman, Ray Magliozzi, Richard Cawood,
Richard Kind, Richard Petty, Rodger Bumpass, Sarah Clark, Scott Clark, Sherry Lynn, Sonoko Konishi,
Stephen Schaffer, Steve Purcell, Susan Blu, Teddy Newton, Teresa Ganzel, Tim Allen, Tom Hanks, Tom
Magliozzi, Tony Shalhoub, Torbin Xan Bullock, Wen Wilson
Produção: Darla K. Anderson
Trilha Sonora: Randy Newman
Duração: 117 min.
Ano: 2006
País: Estados Unidos
Cor: Colorido
Estúdio: Pixar Animation Studios / Walt Disney Pictures
Classificação: Livre
Informação complementar: Vozes na versão original de: Bonnie Hunt, Paul Newman, Richard Petty,
John Ratzenberger, Owen Wilson. Vozes na versão brasileira de: Priscila Fantin, Daniel Filho
Fonte: http://www.cineclick.com.br/carros

132
Ratatouille

Nome Original: Ratatouille


Gênero: Animação
Direção: Brad Bird
Roteiro: Bob Peterson, Brad Bird, Emily Cook, Jan Pinkava, Jim Capobianco, Kathy Greenberg
Elenco: Andrea Boerries, Brad Bird, Brad Garrett, Brad Lewis, Brian Dennehy, Ian Holm, Jack Bird, Jake
Steinfeld, James Remar, Janeane Garofalo, John Ratzenberger, Julius Callahan, Lindsey Collins, Lori
Richardsonna versão brasileira de: Samara Felippo, Lou Romano, Marco Boerries, Patton Oswalt, Peter
O’Toole, Peter Sohn, Stéphane Roux, Teddy Newton, Thiago Fragoso, Thomas Keller, Tony Fucile, Will
Arnett
Produção: Brad Lewis
Trilha Sonora: Michael Giacchino
Duração: 110 min.
Ano: 2007
País: Estados Unidos
Cor: Colorido
Estúdio: Pixar Animation Studios / Walt Disney Pictures
Classificação: Livre
Informação complementar: Vozes na versão original de: Ian Holm, Brian Dennehy, Peter O’Toole, Brad
Garrett. Vozes na versão brasileira de: Samara Felippo, Thiago Fragoso
Fonte: http://www.cineclick.com.br/ratatouille

133
Wall-E

Nome Original: Wall-E


Gênero: Animação
Direção: Andrew Stanton
Roteiro: Andrew Stanton, Jim Reardon, Pete Docter
Elenco: Andrew Stanton, Ben Burtt, Bob Bergen, Colette Whitaker, Donald Fullilove, Elissa Knight, Fred
Willard, Jan Rabson, Jeff Garlin, Jeff Pidgeon, Jess Harnell, Jim Ward, John Cygan, John Ratzenberger,
Kathy Najimy, Laraine Newman, Lori Alan, Lori Richardson, MacInTalk, Mickie McGowan, Paul Eiding,
Pete Docter, Sherry Lynn, Sigourney Weaver, Teddy Newton, Teresa Ganzel
Produção: Jim Morris
Fotografia: Jeremy Lasky
Trilha Sonora: Thomas Newman
Duração: 105 min.
Ano: 2008
País: Estados Unidos
Cor: Colorido
Estúdio: Pixar Animation Studios / Walt Disney Pictures
Classificação: Livre
Informação complementar: Vozes na versão original de: Fred Willard, Jeff Garlin, Ben Burtt, Kim Kopf,
Garrett Palmer, Sigourney Weaver
Fonte: http://www.cineclick.com.br/wall-e

134
Up – Altas
Aventuras

Nome Original: Up
Direção: Brad Bird
Roteiro: Bob Peterson, Brad Bird, Emily Cook, Jan Pinkava, Jim Capobianco, Kathy Greenberg
Elenco: Andrea Boerries, Brad Bird, Brad Garrett, Brad Lewis, Brian Dennehy, Ian Holm, Jack Bird, Jake
Steinfeld, James Remar, Janeane Garofalo, John Ratzenberger, Julius Callahan, Lindsey Collins, Lori
Richardsonna versão brasileira de: Samara Felippo, Lou Romano, Marco Boerries, Patton Oswalt, Peter
O’Toole, Peter Sohn, Stéphane Roux, Teddy Newton, Thiago Fragoso, Thomas Keller, Tony Fucile, Will
Arnett
Produção: Brad Lewis
Trilha Sonora: Michael Giacchino
Duração: 110 min.
Ano: 2007
País: Estados Unidos
Cor: Colorido
Estúdio: Pixar Animation Studios / Walt Disney Pictures
Classificação: Livre
Informação complementar: Vozes na versão original de: Ian Holm, Brian Dennehy, Peter O’Toole, Brad
Garrett. Vozes na versão brasileira de: Samara Felippo, Thiago Fragoso
Fonte: http://www.cineclick.com.br/ratatouille

135
Toy Story 3

Nome Original: Toy Story 3


Gênero: Animação
Direção: Lee Unkrich
Roteiro: Andrew Stanton, John Lasseter, Lee Unkrich, Michael Arndt
Elenco: Adam Joshua Jastrow, Amber Kroner, Aramé Scott, Beatrice Miller, Blake Clark, Bob Peterson,
Bonnie Hunt, Brianna Maiwand, Bud Luckey, Carlos Alazraqui, Charlie Bright, Colette Whitaker, Colleen
O’Shaughnessey, Constantino Bravos, Danny Mann, Don Rickles, Emily Hahn, Erik von Detten, Estelle
Harris, Gia Michailidis, Hannah Unkrich, Jack Angel, Jack Willis, James Kevin Ward, Jan Rabson,
Javier Fernandez Pena, Jeff Garlin, Jeff Pidgeon, Jerome Ranft Lee Unkrich, Jess Harnell, Joan Cusack,
Jodi Benson, John Cygan, John Morris, John Ratzenberger, Kristen Schaal, Laraine Newman, Laurie
Metcalf, Leo Jergovic, Lori Alan, Michael Keaton, Mickie McGowan, Ned Beatty, Nikolas Michailidis, R.
Lee Ermey, Richard Kind, Taiana Huff, Teddy Newton, Teresa Ganzel, Theodore F. Kayser, Tim Allen,
Timothy Dalton, Tom Hanks, Wallace Shawn, Whoopi Goldberg, Woody Smith
Produção: Darla K. Anderson
Trilha Sonora: Randy Newman
Duração: 113 min.
Ano: 2010
País: Estados Unidos
Cor: Colorido
Distribuidora: Buena Vista Home Entertainment
Estúdio: Pixar Animation Studios / Walt Disney Pictures
Classificação: Livre
Informação complementar: Vozes de Tom Hanks, Michael Keaton, Joan Cusack, Tim Allen, John
Ratzenberger, Wallace Shaw, Josi Benson, Ned Beatty, Don Rickles, Estelle Harris, Whoopi Goldberg,
Richard Kind, Ned Beatty, John Morris
Fonte: http://www.cineclick.com.br/toy-story-3

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Carros 2

Nome Original: Cars 2


Gênero: Animação
Direção: Brad Lewis, John Lasseter
Roteiro: Ben Queen, Brad Lewis, Dan Fogelman, John Lasseter
Elenco: Barbara Kottmeier, Bonnie Hunt, Brad Lewis, Brent Musburger, Bruce Campbell, Cheech
Marin, Colleen O’Shaughnessey, Daniel Okeefe, Darrell Waltrip, David Hobbs, de: Larry the Cable Guy,
Eddie Izzard, Edie McClurg, Emily Mortimer, Franco Nero, Guido Quaroni, Jan Nilsson, Jason Isaacs,
Jeff Garlin, Jeff Gordon, Jenifer Lewis, Jess Harnell, Joe Mantegna, John Lasseter, John Mainieri,
John Ratzenberger, John Turturro, Junichi Kajioka, Katherine Helmond, Lewis Hamilton, Lloyd Sherr,
Michael Caine, Michael Wallis, Michel Michelis, Owen Wilson, Patrick Walker, Paul Dooley, Peter
Jacobson, Richard Kind, Sig Hansen, Sonoko Konishi, Stanley Townsend, Teresa Gallagher, Thomas
Kretschmann, Tony Shalhoub, Vanessa Redgrave, Velibor Topic
Produção: Denise Ream
Trilha Sonora: Michael Giacchino
Duração: 106 min.
Ano: 2011
País: Estados Unidos
Cor: Colorido
Distribuidora: Disney
Estúdio: Pixar Animation Studios / Walt Disney Pictures
Classificação: Livre
Informação complementar: Vozes originais de: Owen Wilson, Larry “The Cable Guy”, Michael Caine,
Emily Mortimer, Eddie Izzard, John Turturro, Brent Musburger, Joe Mantegna, Thomas Kretschmann,
Peter Jacobson, Bonnie Hunt, Darrell Waltrip, Franco Nero, David Hobbs, Patrick Walker
Fonte: http://www.cineclick.com.br/carros-2

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