Você está na página 1de 165

INDICE

Criança e Infância
Criança e Infância-1
Criança e Infância-2
Criança e Infância-3
Criança e Infância-4
Criança e Infância-5
Criança e Infância-6
Criança e Infância-7
Criança e Infância-8
Criança e Infância-9
Criança e Infância-10
Criança e Infância-11
Criança e Infância-12
Criança e Infância-13
Criança e Infância-14
Criança e Infância-15
Criança e Infância-16
Criança e Infância-17
Criança e Infância-18
Criança e Infância-19
“Do ponto de vista do homem, que vive sempre no intervalo entre o passado e o
futuro, o tempo não é um contínuo, um fluxo de ininterrupta sucessão; é partido ao
meio, no ponto onde ele está; e a posição “dele” não é o presente, na sua acepção
usual, mas, antes, uma lacuna no tempo, cuja existência é conservada graças à
“sua” luta constante, à “sua” tomada de posição contra o passado e o futuro”

“A criança possui para o educador um duplo aspecto: é nova em um mundo que


lhe é estranho e se encontra em processo de formação; é um novo ser humano e é
um ser humano em formação”

(Hannah Arendt – Entre o passado e o futuro)


As reflexões de Criança e Infância dedico

a David, tão especial e que me proporciona tantas alegrias: são imensos seu apoio, sua compreensão e
participação na intimidade de minha vida e nos meus interesses profissionais. Com ele fiz a importante
descoberta da Daseinsanalyse e sempre o tenho por perto para esclarecer as dúvidas pequenas e grandes
que teimosamente sempre voltam a aparecer. Quando não me via muito dedicada à tarefa de escrever,
não deixava que o desânimo crescesse em mim, voltando sempre a perguntar “Como vai indo o livro?”;

aos meus filhos queridos, Eduardo e Rafael, um dia crianças, que continuamente trazem para mim
oportunidades maravilhosas para a descoberta de sentimentos muito mais profundos do que eu jamais
pude imaginar da excepcional experiência de ser mãe;

aos meus netinhos Laura, Artur e André, que chegaram confirmando o sentido do cuidado amoroso
sem limites, surpreendendo a cada momento com a simplicidade e espontaneidade de suas reações,
observações, perguntas, queixas ou pedidos.

Não posso imaginar viver sem amá-los.


Agradeço esse meu trabalho, sobretudo,

a Guto (João Augusto Pompeia). A minha gratidão é imensa ao querido amigo, professor psicólogo e
terapeuta daseinsanalista, que há tantos anos, incansável e generosamente, tem enriquecido a busca de
todos aqueles que procuram ampliar o entendimento pessoal e dos demais e que, pacientemente, tem
acompanhado a minha trajetória na Daseinsanalyse. Com ele compartilhei conversas inestimáveis que
me apontavam caminhos novos e originais a seguir em meus projetos. Várias citações para ilustrar as
reflexões aqui apresentadas foram sabiamente sugeridas por ele;

e a todas as crianças que, por quarenta anos, tenho acompanhado com a dedicação especial do cuidado
clínico na busca da superação de suas dificuldades e sofrimento. Junto a seus pais, elas me aceitaram em
cumplicidade na tarefa do próprio crescimento e me incentivaram a ousar novos entendimentos.

Jamais os esquecerei.
APRESENTAÇÃO

João Augusto Pompéia1

Conheci Maria Beatriz, a Bia, no começo dos anos 1970, na Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), onde ela estudava Psicologia. Por meio dela e de David, na época seu namorado,
entrei em contato com Solon Spanoudis, que iniciava então seu trabalho de divulgação e
desenvolvimento da proposta de psicoterapia de Medard Boss, a Daseinsanalyse.
Nessa época, tivemos o primeiro contato direto com Boss na fazenda de seu filho, em Avaré. Esse
encontro, como os demais que se seguiram nos anos posteriores até 1989, moldaram meu trabalho
como psicoterapeuta e professora.
Meu contato com Bia é, portanto, parte fundamental da minha formação e se confunde com minha
trajetória como daseinsanalista.
Dito isso, vamos falar um pouco desta obra que você, caro leitor, tem em mãos e que se dispõe a
começar a ler. Acredito que ela tenha começado a nascer num diálogo entre Bia e Boss, num encontro
em 1974. Nessa ocasião, Bia perguntou a Boss sobre o trabalho com crianças na perspectiva da
Daseinsanalyse. A resposta de Boss foi que era tarefa ainda por realizar.
A partir desse diálogo, então, Bia assume o desafio de começar a realizar essa tarefa, ao mesmo tempo
tão envolvente e complexa. Durante 40 anos foi pacientemente desenvolvendo o trabalho que aparece
aqui como resposta a esse convite/desafio de Boss.
O desenvolvimento de uma proposta de psicoterapia com crianças a partir da ontologia fundamental
de Heidegger é uma tarefa particularmente difícil, principalmente em função dos conhecimentos já
estruturados sobre as crianças, seus modos de experimentar, interpretar e relacionar-se com o mundo e
com os outros.
Em função disso, o trabalho de Bia começa debruçando-se sobre o entendimento já estruturado sobre
a criança, para abrir o espaço para uma nova compreensão que esteja fundamentada na visão de
Homem que se abre no conceito Dasein.
Compreendendo o Homem como sendo história em curso, como diz Bia na página 75 “Ser humano é
essencialmente construção de sua própria história”, o entendimento da criança vai apresentar-se numa
nova configuração. Por exemplo, considerando a relação entre Psicologia da criança e Psicologia do
desenvolvimento, Bia aponta na página 72 que “não mais ser e ainda não ser constituem fundamentos
condição humana, não especificamente das crianças” e abre a oportunidade de uma nova proximidade
entre adulto e criança ao mesmo tempo que revela o movimento de restrição que o entendimento
genérico sobre a criança estabelece.
Quanto ao modo como se articulam historicamente Patologia e Infância, seja na estrutura clínica dos
manicômios dos séculos 18, 19 e 20, seja nos conceitos psicanalíticos de Regressão e Fixação, Bia nos
lembra na página 51 que “Um adulto imaturo não é uma criança que não cresceu; o imaturo é um adulto que
não cresceu”.
Trazendo para perto o mundo da criança na sua autenticidade própria, Bia vai permitir ao leitor um
modo original de compreender a criança tal como se mostra, por exemplo quando diz na página 143
que

“talvez este seja o mais verdadeiro sentido da teoria freudiana do Princípio do Prazer que é o Princípio do
Imediato. Tudo tem que acontecer já e sem considerações intermediárias”.

A compreensão da temporalidade própria da criança pode abrir novas e fecundas vias de acesso à
compreensão das angústias e reações extremadas das crianças.
Do mesmo modo, o entendimento da questão dos limites, um tema sobre o qual tanto se tem falado e
escrito ultimamente, pode apresentar-se de uma nova maneira como quando afirma, na página 152:

“No entanto, além de encerrar e impedir, limite pode ser compreendido de modo diferente, como a partir de
algo ou de onde algo se dá”.

Visto nesta perspectiva na página 153, “dizer não pode libertar outras possibilidades de vida”, justamente
o contrário da interpretação corriqueira que se tem. E para que fique mais claro o papel fundamental
do adulto na tarefa de por limites e dizer não, aponta também na página 154: “é bom lembrar que o
tempo do cuidado não é restrito ao imediato”.
Bem, deixo ao leitor a oportunidade de descobrir diretamente a riqueza inestimável deste texto,
lembrando apenas que este trabalho não só apresenta um modo original e fértil de aproximação e
entendimento das crianças para todos os que se dedicam ao cuidado com elas, mas também faz um
convite e um insistente apelo a que nos mantenhamos sempre abertos ao novo que permanentemente
emerge, principalmente nas crianças, e nos convoca a permanecermos disponíveis ao mistério do “ainda
não”, com tudo o que isso comporta de angústia e maravilhamento.

1 Psicólogo pela Pontifícia Universidade de São Paulo, membro fundador da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, terapeuta
daseinsanalista e professor.
INTRODUÇÃO

Este livro não pode ser iniciado sem uma referência especial a Solon Spanoudis (1922-1981) e seu
precursor Medard Boss (1903-1990), médicos psiquiatras que se dedicaram ao desbravamento dos
novos caminhos que a Daseinsanalyse – elaborada a partir do pensamento fundamental de Martin
Heidegger (1889-1976), em Ser e Tempo – propiciou para a prática da psiquiatria e da psicologia. Os
dois foram incansáveis na divulgação do pensamento original fenomenológico para a compreensão do
existir saudável e doente, a partir da observação de cada caso, considerando os fundamentos da
existência – Dasein (ser-ai) – como poder-ser e ser-no-mundo. Para isso, consideravam, inicialmente, a
necessidade de superar os pressupostos gerais, mesmo aqueles que parecem inquestionáveis, presentes
na psicologia científico-natural.
Comprometido com o desenvolvimento da clínica daseinsanalítica, no início dos anos 1960, na Suíça,
Boss organizou grupos de estudos e criou a primeira Associação Internacional de Daseinsanalyse.
Poucos anos depois, Solon descobriu o trabalho de Boss publicado em artigos e livros; encontrou-o
várias vezes e recebeu seu apoio para fundar, em São Paulo, a ABATED, Associação Brasileira de
Análise e Terapia Existencial – Daseinsanalyse, posteriormente renomeada ABD, Associação Brasileira
de Daseinsanalyse.
Para Solon, querido mestre, a efetivação de um pensamento e de uma prática daseinsanalítica
especialmente dedicada às crianças e à clínica infantil era um desafio imperativo, ainda a ser iniciado.
Para isso, era necessário partir das bases da Daseinsanalyse e encontrar o modo original de expressão
relativo à infância.
Desde o início do diálogo com Boss encontrei o apoio entusiasmado de quem acreditava na
importância desse projeto. Posteriormente, em meio a vários de seus trabalhos, encontrei frases incisivas
sobre a criança que me restituíam a confiança de ser possível compreender as experiências da infância a
partir de uma ontologia fenomenológica-existencial.
Pela visão ampla e atuação inovadora de ambos, pelo inequívoco lugar que ocupam no campo do
cuidado com a saúde humana, presto aqui, mesmo que tardiamente, uma homenagem aos dois.

Criança e Infância é produto de muitos anos de dedicação ao estudo da infância. Tem o propósito
de compilar diversas reflexões que podem abrir caminhos mais apropriados para o entendimento das
crianças e a convivência com elas, seja no âmbito do trabalho profissional – terapêutico e educacional –
ou da orientação da família; seu objetivo é a apresentação de um modo de pensar a criança a partir de
suas singularidades existenciais e não como um protótipo de um sujeito previamente acabado,
decorrente de teorias morais ou psicológicas.
Este livro começou a surgir, timidamente, nos primeiros anos de estudo na faculdade de psicologia,
como decorrência da profunda estranheza que experimentava ao observar o distanciamento entre os
textos teóricos da psicologia infantil e a realidade vivida das crianças. O que parecia inadequado
estimulava constantemente a procura por outro caminho.
Convivi, naquela época, com alguns professores e colegas que também não aceitavam algumas teorias
sobre a infância, mas que não se dedicavam ao questionamento da inadequação daquelas formas de
pensar. Ao mesmo tempo, questionavam o pensar da psicologia limitado ao âmbito explicativo e
científico, quando dirigido à existência humana adulta. Perguntava-me como isso era possível e acabei
entendendo que as sistematizações teóricas das experiências e do mundo dos adultos, por serem mais
próximas de nós, facilmente nos atingem e podem ser, ou não, imediatamente reconhecidas e aceitas.
Por outro lado, quando se trata de desvendar o misterioso e distante universo das crianças e da infância,
do qual estamos mais afastados, aceitamos mais facilmente o princípio de que, para a sua verdadeira
compreensão, precisaríamos da comprovação de uma teoria assegurada cientificamente.
Certa ocasião, ouvi a seguinte pergunta de um professor: “Quando o bebê (ou a criança) se torna
humano?”. Para mim, aquela pergunta se referia a um questionamento anterior: “Se os bebês e as
crianças não existem como adultos, pois não compreendem e não possuem linguagem própria para se
expressar, podem ser considerados humanos?”. Lembro que fiquei muito assustada, pois aquela não era
uma simples provocação para animar uma discussão de aula. A pergunta tinha sido lançada com grande
seriedade e, ao fazê-la, o professor esperava um melhor entendimento do “ser-humano”, questionava a
origem do ser humano. Uma vez que o nascimento não poderia ser em si considerado o início da
humanidade, a tarefa de compreender quem somos e como somos partiria da descoberta do sentido
original de nossa própria condição humana (origem entendida como onde se dá o início).
Aquele questionamento, justamente, levantava dúvidas sobre a condição existencial dos bebês ou das
crianças, uma vez que fundamentado em aspectos ainda não revelados. Isto é, pensava a criança a partir
de um estado de ainda não, pois perguntava quando ela se tornaria humana. Além disso, de imediato,
também nos levava a pensar não somente nas crianças sadias, mas naquelas que já nascem de modo
claro, ou não, com privações que as impedem de desenvolver as mais diversas potencialidades humanas,
como a fala e a expressão comuns. Nessa direção, podíamos perguntar também se as pessoas, quando
vitimadas gravemente por algum acidente não fatal, ou por alguma doença que as privam da
comunicação, deixariam de ser humanas.
Todo esse questionamento, por mais que possa parecer ingênuo, provocava uma enorme reviravolta
em meus pensamentos. Mostrava que, por vezes, acreditamos en-contrar um caminho para o melhor
esclarecimento do ser humano que somos e, sem perceber, aceitamos certas ideias que banalizam
experiências pessoais mais radicais ou ignoram a singularidade das experiências, atitudes, cuidados e
preocupações.
Decidi aceitar o desafio e procurar outro caminho para pensar as crianças e a infância que pudesse
aproximar e preservar os modos do existir mais próprios das mais tenras idades. Tal caminho deveria
estar livre da “infantilização” do pensamento que surge daqueles que tem como meta desvendar todos
os mistérios. Para isso, foi muito importante a leitura de reconhecidos autores de psicologia infantil,
como J. H. Van den Berg, Virginia Axline, Maud Mannoni, M. Merleau Ponty, Jean Piaget, Violet
Oklander, Françoise Dolto, René Spitz, Melanie Klein e D. W. Winnicott, tanto no sentido de neles
encontrar indícios de outros modos possíveis de compreender, como também de como construir uma
psicologia infantil esquecendo-se da própria criança.
A orientação inicial de Solon ofereceu-me o apoio para uma aproximação própria da criança e do
trabalho clínico, na perspectiva de um entendimento mais singular. Isso acontecia especialmente nos
grupos de estudos que organizava na ABD sobre os fundamentos do método fenomenológico do
filósofo Heidegger e as propostas da Daseinsanalyse de Boss e também nas supervisões regulares dos
atendimentos clínicos. Entre suas considerações decisivas, era provocante a lembrança de que um
grande problema do conhecimento, da filosofia e das ciências é a repetição frequente de algo que pode
fazer com que isso se torne a própria verdade. Dito de outro modo, a partir da insistência do que se diz,
o que parece ser surge como se sempre tivesse sido a verdade. Destacava-se aí a possibilidade da
liberdade necessária para perceber que também no campo da psicologia infantil, muitas vezes
afirmações são repetidas e consagradas como verdades absolutas, mesmo que seus significados não
sejam muito bem compreendidos.
A liberdade necessária para perceber refere-se à condição que motiva a procura pelo sentido próprio
das experiências de cada criança e não, como dizia Solon, a procura de explicações gerais que
assegurariam um conhecimento suficiente de qualquer coisa.

Sobre o entendimento mais pleno e o desprendimento em relação à necessidade das verdades comuns
e regulares, asseguradas por explicações teóricas prévias, expressa o poeta Rainer Maria Rilke
(1875-19260), em Cartas a um jovem poeta:

“As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior
parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou”.

O modo de pensar próprio da fenomenologia encontra referências pouco comuns nos estudos da
psicologia. A literatura, com a liberdade e o desprendimento que a origina, cada vez mais se apresenta
como uma fonte inesgotável que estimula e enriquece a reflexão sobre a complexidade do existir
humano e ajuda a ultrapassar as linhas convencionais das explicações comuns das ciências. Entre tantos
autores, livros e personagens que simplesmente convidam a outros entendimentos, foram
inesgotavelmente ricas as leituras de Fernando Pessoa, Rilke, Drummond, Borges, Guimarães Rosa (em
Campo Geral), Clarice Lispector, Shakespeare (em Hamlet e Romeu e Julieta), das diversas mitologias e
contos infantis – das mais clássicas Chapeuzinho Vermelho, dos irmãos Grimm, às mais novas como
Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, entre outros. A criatividade de uma nova descrição, nova
fantasia ou detalhe singular podem provocar a liberdade para um pensamento novo que aproxima a
possibilidade de ver a infância e as crianças, elas mesmas e sua própria história.

A possibilidade de um novo entendimento da infância e das crianças foi assim amadurecendo em


minha vida profissional e tomando corpo, tanto na experiência clínica, como nas posteriores
preparações de textos e aulas. O objetivo de maior aproximação e melhor compreensão de quem é a
criança e de nossa relação com ela permanece o mesmo até hoje.
Nos capítulos que compõem este livro é possível encontrar passagens já referidas por outros autores
da ABD sobre o pensamento fenomenológico da Daseinsanalyse. Isso se deve à grande proximidade do
grupo, que há 40 anos se dedica aos estudos e elaborações da prática clínica daseinsanalítica em torno
dos mesmos fundamentos existenciais, com o projeto comum de ampliar e difundir seu alcance. No
entanto, a especificidade que diferencia as reflexões aqui contidas é o seu foco único: a compreensão da
criança e de seu mundo, visando um melhor entendimento dos modos do cuidado com ela e, em
especial, da possibilidade da terapia.

Nas reflexões que introduzem este trabalho, não posso ainda deixar de agradecer a querida Ida
Elizabeth Cardinalli, ao amigo/irmão Edu (Carlos Eduardo C. Freire) e ao saudoso Casimiro
Angielczyk, tão próximos nas histórias de muitas alegrias e comemorações. Além deles, lembro aqui
todos os demais parceiros da ABD presentes no longo percurso para esta publicação: Marcos Oreste
Colpo, Maria Inês Guida, Maria de Fátima de A. Prado, Bilê Sapienza, Fernanda Vianna, Angélica
Gawendo, Ivete Hashimoto, Edgard Faya, Rubens Borges, Miguel Perosa, Danielle Pisani de Freitas e
Marina Gênova.
Não posso esquecer também dos psicólogos que, na busca de rumos próprios para a formação
profissional, confiaram em minha orientação. Com eles, foi possível compartilhar a descoberta de
caminhos mais significativos para o exercício do cuidado clínico. Com cada um, nas atividades de
supervisão de casos ou em grupos de estudo, encontrei a oportunidade de aprofundar e desenvolver o
entendimento do mundo das crianças e da clínica infantil.
PARTE I
CAP. I
SOBRE A PSICOLOGIA INFANTIL
E O DESENVOLVIMENTO

1. Psicologia Infantil: ainda não ser ou ter que deixar de ser

Desde os primeiros estudos sobre o desenvolvimento infantil – caracterizado por processos, fases ou
estágios incompletos, insuficientes, indiferentes ou imaturos, ou pelas noções dos anos iniciais de vida,
marcados por ausências de responsabilidade ou de capacidade de entendimento claro – as crianças são
consideradas como um estado inicial psicológico, físico ou mental que deverá ser superado na
perspectiva de um bom crescimento. Assim, carente de boa reputação, a criança parece viver de um
modo inferior ao do adulto. Sendo incompleta ou em desequilíbrio, ela é reconhecida tanto a partir do
que se tornará quando crescer, como pelo que ela já é, mas tem que deixar de ser. Isto é, teria de não
mais ser quem ela é, como se o modo como existe não pudesse mostrar claramente e ser percebido
como o mais importante.
Os estudos em torno da infância, mesmo aqueles que foram elaborados antes da psicologia científica,
se dão com a referência prioritária de um modelo construído de um adulto ideal. A criança teria que se
modificar para se transformar em alguém – pessoa, ser humano, adulto –, segundo o modelo já
constituído. Em torno de tal ideal, a criança é compreendida pelo que ainda não é ou terá que deixar
de ser, ressaltando-se o que nela ainda não se pode ver.

As teorias sobre a infância têm o objetivo comum de serem construídas na tentativa de explicar as mais
diversas condutas infantis, desde as mais explícitas até as mais obscuras. Para isso, o ponto de partida são
os conceitos, crenças ou ideais do viver adulto, para os quais o desenvolvimento deve dirigir-se. Além
desse início, as descrições de fases ou estágios da vida infantil continuam tendo lugar preponderante e
parecem o mais seguro nas análises, sempre comparativas, das crianças.
Podemos ver que nas mais diversas e conhecidas teorias psicológicas do séc. 20, de Freud a Winnicott,
a infância está associada a estágios iniciais – de emoções não diferenciadas, de estruturas psíquicas
instáveis, de ideias incoerentes ou de relações simbióticas – que deverão ser transformados para que o
homem, idealmente pensado, possa se desenvolver.
Em resumo, diversas teorias na psicologia parecem compreender a criança a partir do que ela não é e
terá que deixar de ser, reafirmando um certo ideal de adulto a ser alcançado pelo desenvolvimento.
Ou seja, é a partir de elaborações de um estado de amadurecimento, considerado superior e mais
representativo da condição humana, que a criança poderá ser compreendida. Com essa perspectiva, a
psicologia infantil estaria perseguindo a ideia de um padrão de ser humano mais verdadeiro, o que será
melhor explicitado no capítulo II.
A partir dessa compreensão das noções e padrões gerais e do princípio científico de uma verdade
universal, distanciada do que se pode observar diretamente na existência das crianças, o conceito de
desenvolvimento normal de crescimento e de conduta foi construído. Nesse âmbito, padrões de
comportamentos normais e anormais puderam também ser elaborados.
Assim, tanto nas teorias de desenvolvimento, como na psicologia em geral, os princípios e parâmetros
científicos das ciências naturais deterministas acabaram por favorecer as comparações entre as diversas
manifestações humanas e a homogeneização dos entes humanos em processos gerais que se
constituíram como verdades absolutas.
No entanto, nem a origem nem o sentido de tais teorias e processos, descritos como verdades
necessárias para o crescimento e saúde ou para o esclarecimento da realidade vivida em cada caso,
podem ser encontrados na observação existencial direta das crianças. Mesmo que se conheça, entre
outras proposições, as chamadas funções primárias ou secundárias, as tipificações prévias de condutas, a
superação de fases, as aquisições de determinados processos para um equilíbrio superior, ou as
aquisições regulares de potencialidades, não é possível a priori compreender o sentido das experiências
de cada criança em seu modo particular.

O que antes podia intrigar quanto à psicologia da criança ser chamada de “psicologia do
desenvolvimento”, finalmente é esclarecido. As condições de transformação e crescimento
determinantes do existir humano foram consideradas como características específicas da vida infantil.
Entretanto, a transitoriedade e as transformações humanas do crescimento para se chegar a algum
outro lugar de amadurecimento devem ser entendidas como condição fundamental da existência em
qualquer época da vida. Boss considerou, na conferência de 5 de dezembro de 1971 para estudantes de
Medicina2:

“Como na imaturidade da fruta, a existência do homem já é também o seu “ainda não”. A ambas pertence
continuamente o seu “ainda não” como a sua própria possibilidade. Mas com o amadurecimento a fruta se
completa; em comparação, o homem geralmente morre incompleto ou esgotado. É óbvio que também pela
botânica nada se pode descobrir sobre a morte do homem como morte humana. O homem existe e morre
de uma forma toda própria, reservada somente a ele.”

Boss ressaltava nesta passagem o caráter necessário de incompletude de toda existência. Esta é a
condição de transformação que nunca se esgota em qualquer momento do viver. O adulto não é mais
completo que a criança. Assim também a condição fundamental do morrer humano está tão próxima
do adulto como da criança. O que se pode dizer da infância, é que as possibilidades de transformação e
de mudanças se apresentam aí de modo marcadamente mais intenso. Assim, transformar-se e mudar
foram vistos, mais facilmente, como características específicas da fase ou do estágio inicial de
crescimento e as novas aquisições foram interpretadas como características finais a serem adquiridas por
meio da realização natural de um impulso em direção ao desenvolvimento.

A partir das considerações acima, o ponto de partida para um novo modo de entender a infância se
apresenta como falar das crianças a partir do que elas já mostram. Nessa perspectiva, ainda não
ser pode ser entendido como condição humana fundamental de ter que ser e não, especificamente,
como aspecto infantil de deixar de ser que qualifica todas as crianças. Tais aspectos dizem mais
diretamente sobre as crianças e o crescimento infantil quando são considerados, a partir deles mesmos,
como modos que se dão especial e mais intensamente no existir humano no tempo da infância. Assim,
são a observação e a descrição das maneiras mais especificas como as crianças vivem as transformações
básicas existenciais que podem dizer mais claramente sobre o viver no tempo da infância, ao contrário
do que é mais comum, a consideração a priori de processos, fases ou estágios com suas características
gerais determinantes do desenvolvimento.

2. Um novo caminho: outro jeito de olhar

No livro Metablética, de 1955, o médico psiquiatra holandês J. H. Van den Berg (1914-2012)
apresenta um modo totalmente diferente de analisar a infância e considerar a criança. Ele escreveu sobre
o que denominou psicologia histórica, afirmando que “nem sempre houve psicologia da criança” e que
somente passou a ser necessário falar sobre a infância quando o mundo das crianças e o dos adultos se
distanciaram. Ele afirmou:

“Bem cedo e sem obstáculo, a criança tinha acesso ao mundo do adulto, não havia abismo que
necessitasse uma ponte científica para o entendimento mútuo.”3

Pode-se considerar que o mesmo ocorreu com a adolescência que, somente entre o final do século
dezenove e início do século vinte, foi considerada como fase do desenvolvimento humano. Até então,
somente havia os ritos de passagem, que conferiam a responsabilidade da vida adulta aos mais jovens.
Nas análises de Van den Berg são encontradas indicações para um outro modo possível de estudar a
infância. E suas considerações podem levar a outras indagações:
– Será que, quando falamos em Psicologia de Desenvolvimento, o ser humano e a criança são melhor
compreendidos?
– Será que os jovens, desde que foram chamados de adolescentes, diferenciados dos adultos e das
crianças, são mais compreendidos?
– O que significa dizer que, na atualidade, a infância está diminuindo com a chegada precoce da
adolescência e que esta está cada vez mais longa? O que esta mudança significa para os adultos, para as
crianças e para os adolescentes?

Como dito antes, o modo de pensar propriamente fenomenológico encontra referências pouco
comuns aos estudos da psicologia. Assim, foi a filósofa Hannah Arendt (1906-1975), pensadora
original das questões humanas no mundo – da política, autoridade, liberdade, verdade e educação – a
influência decisiva para uma nova visão da infância. Em seu livro Entre o Passado e o Futuro, ela
apresenta um pensamento profundo e original a partir do qual pode-se compreender apropriadamente
as crianças, seu mundo e seu crescimento e também o significado de educação e do cuidar dos que são
por elas responsáveis. Especialmente no capítulo cinco, “A crise na educação”, com o objetivo de
examinar as mudanças da educação nos Estados Unidos, no mundo moderno, H. A. leva o leitor a
refletir profundamente sobre as crianças, descritas inicialmente como “novos seres humanos” e
“recém-chegados”. Com a simplicidade impactante de suas afirmações, ela abre um caminho que
provoca uma reflexão mais essencialmente verdadeira sobre as crianças:

“A criança possui para o educador um duplo aspecto: é nova em um mundo que lhe é estranho e se
encontra em processo de formação; é um novo ser humano e é um ser humano em formação. Esse duplo
aspecto não é de maneira alguma evidente por si mesmo e não se aplica às formas de vida animais;
corresponde a um duplo relacionamento, com o mundo, de um lado, e com a vida, de outro. A criança
partilha o estado de vir a ser com todas as coisas vivas; com respeito à vida e seu desenvolvimento, a
criança é um ser humano em processo de formação... Mas a criança só é nova em relação a um mundo
que existia antes dela, que continuará após a sua morte e no qual transcorrerá sua vida.”4
Nessas afirmações, a especificidade da vida da criança e do que lhe é fundamental, sem agregar o que é
lhe é estranho, é demonstrada. O caráter original de ser da criança é a novidade de um novo ser humano
que nasce em um mundo que já existe. Falar da criança é pensar na peculiar novidade de um
recém-nascido em relação a um mundo previamente existente. O nascimento de cada criança é, assim,
um acontecimento sempre novo de duplo significado: da novidade de um novo ser e, ao mesmo tempo,
da preservação de um mundo que já existia antes. Considerar a especificidade da relação da novidade
que constitui a criança ante o que já existe é a proposta original de H. A.
O que significa essa relação de novidade de cada criança com o mundo? Inicialmente, a filósofa
considera a relação entre pais e filhos:

“Os pais humanos não apenas trouxeram seus filhos à vida mediante a concepção e o nascimento, mas
simultaneamente os introduziram em um mundo. Eles assumem na educação a responsabilidade, ao
mesmo tempo pela vida e desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo. A responsabilidade
pelo desenvolvimento da criança volta-se em certo sentido contra o mundo: a criança requer cuidado e
proteção especiais para que nada de destrutivo lhe aconteça da parte do mundo. Porém, também o mundo
precisa de proteção, para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a
cada nova geração. Por precisar ser protegida do mundo, o lugar tradicional da criança é a família, cujos
membros adultos diariamente retornam do mundo exterior e se recolhem à segurança da vida privada entre
quatro paredes.”5

Cabe aos pais, portanto, a dupla responsabilidade trazida com a novidade de cada recém-nascido: o
cuidado pela nova vida e seu desenvolvimento próprio e o cuidado com a continuidade do mundo.
Neste cuidado de duplo significado se dá a preservação de um mundo pessoal, próximo, familiar e de
um mundo comum. Inicialmente, este cuidado com cada criança se dá no âmbito mais restrito e
familiar do mundo; nele pode-se encontrar as referências e o sentido dos projetos familiares anteriores
que antecederam a ela mesma e que, então, podem se manter. Desse modo, no âmbito da educação
familiar, as crianças crescem e aprendem tanto sobre si mesmas, como sobre o mundo comum que,
com ela, tem a sua continuidade.
Além do âmbito na vida privada, normalmente a família na qual a criança no início se encontra, ganha
lugar o âmbito da vida pública, comumente representada pela escola.
Com a consideração inicial do âmbito familiar e posterior da vida pública, torna-se cada vez mais
evidente que o entendimento de cada criança envolve o seu mundo e que para falar sobre a infância é
necessário partir do sentido e dos significados próprios que se mostram sempre nas relações e não partir
de pensamentos pré-concebidos ou de pressupostos teóricos subjetivos. Para compreender
verdadeiramente o humano é necessário considerar o fundamento existencial da relação essencial com o
mundo, o que não pode ocorrer quando se pensa a criança como um ente psicológico-subjetivo em si.

Nos capítulos seguintes, o que aqui foi denominado de mundo comum e mundo da criança, serão
melhor esclarecidos.

3. Fenomenologia

A fenomenologia – criada por Edmund Husserl (1859-1938) no raiar do século 20 – é um método


que se propõe a compreender as coisas e não elaborar juízos ou conceitos sobre elas, conforme foi
explicitado nas Investigações Lógicas. No caminho fenomenológico, o ponto de partida é sempre o
fenômeno que se mostra diretamente, isto é, aproximar e se deixar tocar pelo que é percebido em toda a
sua riqueza e limitações.
À primeira vista, ver o que se mostra diretamente é ver simplesmente. Primeiramente, é necessário
descrever o que aparece para, então, esclarecer o que é entendido, sem alterar ou ultrapassar o sentido
do que se mostrou. Mas, isso não é ver o mais fácil. Ver simplesmente não se dá pelo enquadramento
em categorias que pressupõem uma organização prévia de dados já conhecidos, nem que assegura
conclusões aplicáveis a qualquer situação ou pessoa. Para compreender algo, não devemos ultrapassar
ou deixar para trás aquilo que olhamos.
Pode parecer que ver simplesmente se trata de coisa do senso comum, óbvia ou fácil de se fazer. Mas
não é bem assim. Como escreveu Clarice Lispector (1920-1977) em A hora da estrela, “Que ninguém se
engane: só se consegue a simplicidade através de muito trabalho”.
A literatura oferece momentos especialmente ricos que ajudam ao esclarecimento de olhar os
acontecimentos simplesmente, como a fenomenologia desde o início se propõe. Os fenômenos não se
mostram igualmente para todos nem ao alcance de todos. É necessário esclarecer que o simples não se
confunde com o que é óbvio. Assim, a simplicidade não se manifesta de modo óbvio. Os significados
não são obviamente simples. Pois perceber o que é simples pode não estar facilmente ao alcance de
todos e do senso comum que permanece no consensual. O que parece óbvio e que salta igualmente aos
olhos de todos é justamente uma construção, algo comum. A simplicidade muitas vezes fica escondida
por expectativas de compreensão às vezes mais intelectualizadas, que submetem automaticamente o
que aparece a toda uma sorte de conceitos que, inadvertidamente, modificam o sentido original.

A descrição fenomenológica tampouco diz respeito à descrição dos dados empíricos do mundo
físico-natural, mas a tudo que pode ser percebido da totalidade da existência. Ao investigar como as
ciências humanas podiam ser desenvolvidas, Husserl ressaltou as diferenças fundamentais entre o
homem e as coisas naturais, reafirmando a inadequação de comparar e reduzir a compreensão das
experiências humanas às do campo natural.
Heidegger, aluno preferido e seguidor da obra de Husserl, aos 20 anos tornou-se assistente do mestre.
Ele levou adiante o pensamento original da fenomenologia husserliana, examinando a condição
fundamental necessária de ser como pressuposto para qualquer questionamento e conhecimento do
homem. Entretanto, o pensamento heideggeriano aprofundou as questões epistemológicas
fenomenológicas iniciais, considerando-as no campo de uma ontologia hermenêutica fundamental. Sua
obra Ser e Tempo6, de 1927, constitui uma rigorosa e importante análise das questões do Ser e da
Existência. Heidegger aponta que tudo que é dito sobre algo – da natureza, das ciências, do que se
constrói – sempre começa com “isto é”, uma referência inicial ao próprio ser. Mas, dizer que “uma
coisa é” não significa o mesmo que afirmar que “o homem é’. A mesma afirmação é (do verbo ser) tem
significados fundamentais diferentes quando referida ao ser humano e às coisas. Há uma diferença
ontológica, fundamental, entre a existência humana e todas as coisas encontradas no mundo.
Heidegger se propõe a esclarecer esta diferença e descreve o ser dos homens como ser-ai (Dasein),
existir, existência. Em Ser e Tempo, o sentido de existir está minuciosamente descrito como
ser-no-mundo.O ser humano tem uma relação especial com o mundo e é o único ente que se
preocupa e pergunta o que significa ser alguma coisa ou ser quem é. Nem as coisas, nem os animais se
perguntam. Ser homem, como ser-ai, se constitui desde sempre como uma abertura para o mundo.
Nesta relação original, ser humano como existência está sempre lançado. Assim, se encontra
permanentemente em estado de ser-lançado que nunca está pronto ou acabado. Isto é, homem existe
como poder-ser, como possibilidade de ser sempre de algum modo tendo que cuidar de si numa
específica relação com o mundo. De outra maneira, tudo o que é, todas as coisas que aparecem no
mundo estão prontas e podem ser definidas. Aprofundando a hermenêutica fenomenológica
existencial, os fundamentos da temporalidade, historicidade, espacialidade, compreensão, afinação
(angustia, temor), cuidado, culpa e ser mortal são rigorosamente explicitados em Ser e tempo.
Ainda é necessário ressaltar a explicitação empreendida por Heidegger, no sétimo parágrafo desse
livro, sobre o que quer dizer fenômeno no âmbito de sua metodologia fenomenológica. Nesse âmbito,
fenômeno não quer dizer um acontecimento espetacular ou, objetiva e simplesmente, um
acontecimento, fato ou objeto. Objetividade corresponde ao entendimento metafísico e não ao
pensamento fenomenológico. Nesse caminho, ao qual pertencem os significados e o sentido dos
acontecimentos, fenômeno quer dizer o que vem a se mostrar do que acontece, o que pode ser
desvelado.
A partir do rigor das análises desenvolvidas em Ser e Tempo, a fenomenologia se constituiu como
método para compreender a existência em sua totalidade, junto ao mundo e no convívio com os
outros.

Como decorrência dessas observações, a Daseinsanalyse na clínica médica e psicológica pode ser
entendida como um caminho fenomenológico de atuação que considera os fundamentos da existência
como ser-ai, como poder-ser e ser-no-mundo em cada caso. Assim, o método fenomenológico se
constitui como caminho possível para o entendimento existencial que permite o reconhecimento dos
aspectos humanos mais originais que nos constituem – adultos, bebês e crianças – sadios ou doentes,
como ser desde sempre no mundo, em relação e numa totalidade.
Boss constantemente reafirmava a importância do pensamento heideggeriano para o saber e a prática
da psiquiatria e psicologia. Em uma conferência para médicos e psicólogos, ele disse:

“O que é anterior é o entendimento da existência humana em sua totalidade. Depois é que podemos
entender o doente e a doença como privação de uma condição humana de saúde”.

Ele ainda lembrava que a fenomenologia existencial, diferente das demais abordagens, não é uma
proposição explicativa-causal da realidade, não se propõe a explicar porque algo acontece de uma
determinada forma e não de outra, nem se pretende como uma teoria explicativa. Ela é um método,
palavra que tem sua origem no grego: um caminho (odós) em direção (meta). Com a fenomenologia
não se aprende sobre o que pensar; mas o importante é aprender o modo como se pensa e se olha para
aquilo que aparece.
Ainda recorrendo à literatura, Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa (1888-1935),
em O guardador de rebanhos, diz:
“O que nós vemos das cousas são as cousas
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?”

Alberto Caeiro aqui dizia que o importante é perceber que vemos o que vemos e não outra coisa que
não vemos, ou seja, é preciso saber ver.
O importante é saber ver o que aparece, que é sempre em cada caso, em cada situação; e não algo geral
ou um protótipo do que somente depois pode ser transformado. Assim, por exemplo, primeiramente
não vemos nem podemos falar de causa, nem de efeito. Uma causa ou uma relação causal não pode ser
observada no acontecimento mesmo, pois somente é constituída numa correlação estabelecida
posteriormente entre duas coisas que já aconteceram. Podemos muito bem conhecer algo sem
nenhuma relação causal. Para que as emoções, reações ou escolhas humanas possam ser percebidas de
um certo modo não é necessário determinar causas. A suposição de que é necessário antes conhecer a
determinação causal para compreender o fato não é original, mas é uma conclusão a partir do que já era
conhecido antes, como dois acontecimentos sucessivos. Isto é, um fato causador somente pode ser
pressuposto como tal, depois que algo se realizou. Isso pode parecer contraditório com a noção
costumeira da anterioridade causal.
Na observação direta da existência humana muitos aspectos podem ser aproximados, mas muitos
outros podem ficar para trás. Isso acontece também em relação à vida diária das crianças. Às vezes, com
certa estranheza chegamos a perguntar “Como essa criança pôde fazer o que fez”?
O horizonte que orientou as reflexões contidas neste livro se traduz no esforço por considerar e
descrever diretamente o mundo da criança e encontrar os sentidos mais próximos das experiências
infantis. Como pensar e falar das crianças – e não de crianças – sem ultrapassar os sentidos de sua
própria existência infantil e sem adentrar as preocupações estrangeiras adultas?
O método fenomenológico não carrega a “suposição” de uma criança subjetiva, ou objetiva, idealizada
ou determinada por processos psíquicos ou de aprendizado incessante. Mas, com a fenomenologia, a
criança pode ser compreendida a partir dela mesma, em sua totalidade existencial, no seu próprio
mundo e na referência de seu convívio.

Nessa perspectiva, é necessário que esteja presente o esforço por não deixar para trás o que se mostra
diretamente de modo mais simples – a novidade do novo que cada criança é –, sem seguir orientações
que são meramente do mundo intelectual adulto. Este é o maior desafio para a compreensão das
experiências infantis: manter a proximidade com o mundo infantil.

2 O médico e a morte: Um ensaio analítico-existencial”, em Angústia, Culpa e Libertação.


3 Metablética, p. 93.
4 Cf. Entre o Passado e o Futuro, A crise na Educação, item III, p. 235.
5 Idem nota 4.
6 Cf. Ser e Tempo, primeiro capítulo. Preferimos a tradução ser-ai para o alemão Dasein, não seguindo a sugestão de Marcia de Sá
Cavalcanti (Presença).
CAP. II
A CRIANÇA E O DESENVOLVIMENTO

1. A primeira articulação da Educação

Muitos séculos, milênios atrás, muito antes dos estudos da psicologia e das teorias de
desenvolvimento, há registros em pinturas rupestres que ilustram a presença característica das crianças
em meio ao cotidiano humano. O cuidado com as crianças pode ser apreciado ainda hoje em pinturas
rupestres de diferentes sítios arqueológicos.

Nas antigas civilizações e culturas, a educação das crianças já se constituía como uma importante
questão. Há escritos antigos que tratam desse tema e consideram a sua importância na continuidade e
futuro das tradições de um povo, fazendo recomendações específicas sobre a tarefa de acompanhar o
crescimento das crianças. Nos livros cinco e sete da obra República, Platão (427 a.C. – 347 a.C.)
dedica-se à educação dos mais jovens que considera vital para o futuro da República. Mas não somente
os escritos revelam a preocupação com os menores nas culturas mais antigas, pinturas em murais
antigos de diferentes culturas, encontradas nas pesquisas de arqueólogos, também atestam a presença
dos que ainda estão em crescimento.

Entre as comunidades indígenas, práticas e costumes que se perpetuaram de geração em geração


também foram transmitidas no cuidado direto e desde cedo com as crianças.
Fica o alerta, no entanto, que aqui não estão sendo privilegiados os aspectos da educação formal
escolar, pois esta é apenas uma das formas de educar. Mas, o que está sendo ressaltado é que desde
sempre há uma profunda integração quando se fala de criança, crescimento e educação.
Essa observação preliminar tem por objetivo três aspectos. Inicialmente esclarecer que, para
compreender o que significa ser-criança é preciso, de antemão, apreender o que significa crescimento e
educação.
Para os antigos gregos , as palavras criança (pais, paidós) e educação (paideia) têm a mesma origem
7

(o verbo paideno), que significa educar. Na acepção grega, paideia (educação) podia significar tanto a
ação de instruir, como a de alimentar (criar) uma criança e paidós designava também o crescimento
humano, a partir do nascer. Assim, paidós, como o modo peculiar do crescimento dos homens,
referia-se ao âmbito em que a criança é sempre a questão, assim como alimentar e educar estão
intimamente ligados.
Nessa acepção, a criança está sempre com e não à parte do mundo e do cuidado da comunidade.
Cuidar de uma criança e de sua vida se dá sempre com ela integrada em um mundo que a acolhe e que
lhe oferta condições – melhores ou piores –, para que ela se descubra e cresça. Mas, cuidar é também
criar. A cria ou a criatura são maneiras de dizer a criança; e criação é também como mundo é
denominado. Criatura e criação, como criança e mundo, têm a mesma origem. Este entendimento era
possível quando homem e mundo ainda podiam ser percebidos originalmente imbricados, antes de
serem isolados pela ação do conhecimento humano. A visão subjetivista do homem foi uma empreitada
que se deu em época ulterior.
Assim, a compreensão do mundo compartilhado das crianças é fundamental para que elas possam ser
melhor compreendidas. As crianças crescem em um mundo comum com os outros. Essa condição
indissociável de existir e mundo foi retratada no aforismo do pensador original grego Heráclito (540
a.C. – 470 a.C.), em compilação do filósofo Gerd Bornheim (1929-2002) no livro Os filósofos
pré-socráticos:

“O homem, na noite, acende a si mesmo uma luz, quando a lua dos seus olhos se apaga. Vivo, toca na
morte, quando adormecido; acordado toca os que dormem”.

Se dormindo, o homem volta-se para si mesmo, acordado, ele está sempre com os outros.

Também no latim8, as palavras creantia (criança), crescere (crescer, brotar, nascer) e creationis
(criação) têm sua origem no mesmo verbo creare (criar, fazer crescer, procriar). Assim, as palavras
crescimento, criação e criança estão originalmente juntas, em um único sentido. Tanto a ação de criar,
de tirar do nada (criação), como a de fundar ou alimentar (criar) uma criança se encontram na mesma
origem.
No entanto, com origem distinta, as palavras educar e educação se distanciaram de criança e criação.
Educar no latim provêm de educare que significa: criar animais ou plantas, alimentar, ter cuidado,
cuidar de; educar, formar, instruir, produzir, conduzir para fora, tirar; fazer sair. Esse verbo tem a sua
origem em duco, are que significa levar para algum lugar, conduzir. No latim não mais se diferenciou,
com a palavra educare, o que pertence aos homens do que se refere à natureza. Essa indiferenciação
não foi mais questionada, caindo no esquecimento geral. Com isso, para o entendimento objetivante
do homem e do mundo, tão frequente na atualidade, educação se tornou uma modalidade de formação
ou condução com regras já conhecidas e crescimento foi transformado em um processo determinado de
desenvolvimento de todas as crianças.

Ainda é necessário ressaltar que o mundo cotidiano e do viver compartilhado constituem a base para o
crescimento das crianças. A partir disso, as condutas e experiências devem ser consideradas enquanto
correspondem às solicitações constantes que cada criança vive e percebe, no âmbito da realidade
compartilhada. Assim, as proposições referentes a um mundo infantil interno, subjetivamente separado
ou isolado da realidade vivenciada, é algo que somente pode ser construído por análises intelectuais
posteriores. Como fenômenos, as condutas e experiências de uma criança mostram diretamente o
modo como ela vive as solicitações de seu mundo e a explicação comum decorrente de fatos gerais que
se ocultam ou se mascaram em acontecimentos isolados não constituem o seu sentido. É possível
entendê-las a partir da observação em cada caso, do que já é possível, do que falta ou do que ainda não
se formou. De qualquer modo, a criança já se revela e se anuncia com suas possibilidades e limitações.
Tais aspectos se fundem, um sempre interferindo no outro. Somente assim é possível considerar,
adequadamente, o que ainda não se concretizou e pode vir a se realizar.

2. A Psicologia Moderna

Com a psicologia moderna, no final do séc. 19 foi inaugurada uma nova base para o entendimento das
condutas humanas. A priorização da psicopatologia sobre a noção de saúde, com a observação de
aspectos doentios e de desvios da normalidade, provocou mudanças que se refletiram de modo
marcante nos estudos sobre as crianças. Elas foram, assim, “reinventadas” como criaturas não acabadas,
à espera da superação de sua incompletude infantil.
Tendo percebido os caminhos seguidos pela psicologia, Boss foi um crítico dessa posição e questionou
também o entendimento comum da teoria freudiana relativa à infância. Ele dizia que “para
compreendermos verdadeiramente o modo de ser patológico, precisamos compreender antes e mais
plenamente o que significa a saúde”, e não o inverso. Assim, as noções da psicopatologia não poderiam ser
consideradas como ponto de partida de uma estrutura autônoma inicial, à parte e independente da
compreensão da existência humana e do aspecto da saúde.
É emblemática a suposição formulada, a partir da teoria freudiana, sobre a correlação de uma
“amnésia infantil” da sexualidade e da “amnésia histérica neurótica” provocada pela repressão no
adulto, a partir dos relatos dos pacientes denominados neuróticos, que viviam os chamados processos
de regressão a estágios infantis. Sigmund Freud (1856-1939) elaborou A sexualidade infantil, obra que
trata sobre as fases do desenvolvimento infantil, depois de analisar e organizar uma seleção de relatos de
lembranças de pacientes adultos “regredidos” à infância e de seus “traumas infantis” Esse trabalho dos
9

princípios explicativos da chamada Metapsicologia, fundamentado em suposições sobre os desvios de


conduta, as neuroses dos adultos e o mecanismo de regressão, foi o ponto de partida para a psicologia
infantil. Encontra-se aí a premissa que não pode ser desconsiderada, de que o adulto mentalmente
doente é aquele que não cresceu. No entanto, há uma grande confusão se concluirmos que, nesse
estado mental doente, o adulto regride e se torna uma criança. Um adulto imaturo não é uma
criança que não cresceu; o imaturo é um adulto que não cresceu. Assim, não é adequado
compreender a criança e os modos de conduta infantis a partir das regressões ou neuroses dos adultos.
Possíveis ou eventuais semelhanças poderiam ser melhor descritas se, ao mesmo tempo, fossem
conservadas as especificidades que distinguem os adultos e o entendimento próprio do viver na
infância.

Ainda na vigência das determinações de processos psicopatológicos comuns às ciências da psicologia,


as condutas das crianças se dariam a partir de seus desejos mais inconscientes ou suas intenções gerais e
objetivas. “Exibicionismo, manipulação ou voluntarismo” descreveriam as condutas infantis e as
crianças, agindo “sempre com ganhos e objetivos perversos”, tornariam os outros “presa” de suas
próprias intenções. Essas considerações afastam outras possibilidades. Uma criança pode gritar ou
chamar, insistentemente, pela atenção da mãe, que se mantém mais distante quando ocupada com
alguma tarefa ou atenta com outra pessoa, por estar simplesmente desejosa da volta imediata da
proximidade materna. Pode parecer mais natural pensar que a criança que insiste ou grita age de modo
voluntarioso por “não ter limites” ou “querer aparecer”. No entanto, ela simples e desesperadamente,
percebendo a distância que a desampara, deseja a volta do amparo que advêm com a proximidade
materna. Considerar o sentido do que quer a criança, ou o que significa a sua ação, é sempre em cada
caso. Qual é o sentido da proximidade materna e de sua falta, percebida em cada caso? Qual é a
motivação de uma criança que insiste pela atenção de sua mãe? É possível responder a essas indagações
de diferentes modos. Mas, primeiramente, é preciso considerar que motivações e faltas presentes nas
diversas ações são sempre originárias: a criança sempre quer algo que está faltando para ela.
Querer intensamente a atenção e a proximidade materna é um desejo genuíno quando uma criança se
percebe distanciada. Buscar ou reencontrar a proteção e a segurança de uma situação conhecida ou mais
familiar é um sentido original das condutas infantis. É certo que, em algum momento, no convívio com
o seu mundo, as crianças também descobrem a manipulação e o poder de fazer ou dizer coisas com
propósitos determinados. No entanto, isso não significa que manipular o outro seja a finalidade
implícita de qualquer conduta infantil.
O sentido do desejo de recuperar para si o amparo pela disponibilidade materna – possibilidades que
momentânea ou constantemente faltam ou estão retraídas – não é considerado se, a princípio, já se
compreende a manipulação ou a birra da criança que voluntariamente quer chamar a atenção para si
como determinante das condutas infantis. Criança e mãe, uma em relação a outra, se complementam
no cuidado materno. Quando a mãe fica “perdida” em afazeres ou conversas com outros e,
insistentemente, é solicitada pelo filho, neste momento este percebe a falta de sua proximidade familiar
que promove a condição de segurança e conforto para si próprio. A criança necessita do outro para se
completar de modo mais intenso.

Ainda é importante ressaltar na presente análise a excelente visão histórica da doença e da patologia,
na psiquiatria e na psicologia que Michel Foucault (1926-1984) desenvolve, em Doença Mental e
Psicologia. O capítulo II desse livro é dedicado à importância da psicanálise nessa questão. Foucault diz:
“A psicanálise acredita poder escrever uma psicologia da criança, fazendo uma patologia do adulto.”10

O autor foi ainda mais adiante quando escreveu:

“Se a regressão à infância se manifesta nas neuroses, é somente como um efeito. Para que a conduta
infantil seja para o doente um refúgio, para que seu reaparecimento seja considerado como um fato
patológico irredutível, é preciso que a sociedade instaure entre o presente e o passado do indivíduo uma
margem que não se pode nem se deve transpor; é preciso que a cultura somente integre o passado
forçando-o a desaparecer. E nossa cultura tem bem esta marca. Quando o séc. XVIII, com Rousseau
(1712--1778) e Pestallozzi (1746-1827), preocupou-se em constituir para a criança, com regras
pedagógicas que seguem seu desenvolvimento, um mundo que esteja a sua altura, ele permitiu que se
formasse em torno das crianças um meio irreal, abstrato e arcaico, sem relação com o mundo adulto... As
neuroses de regressão não manifestam a natureza neurótica da infância, mas denunciam o caráter
arcaizante das instituições que lhe concernem.”11

Tal entendimento forma-se, sempre, na separação entre a criança e o mundo como se, assim, ela
pudesse ser essencialmente apreendida. Foucault aponta a relevância da compreensão do mundo em
torno para o entendimento da conduta infantil e do desenvolvimento.
Esse entendimento das crianças e das experiências infantis, elas mesmas, foi negligenciado pelas visões
que objetivaram a infância e transformaram as crianças em “seres subjetivos”, como se assim
constituíssem, originalmente, questão da ciência e do conhecimento. Nesse contexto, não tem lugar a
existência, a história e as próprias experiências da criança. O fundamental nas experiências infantis não
pode ser apreendido a partir de noções de um já conhecido adulto, de um estado psicológico a ser
alcançado, ou de princípios prévios psicopatológicos, mesmo que elaborados nos modos mais
sofisticados. Tampouco o conhecimento de teorias de desenvolvimento, isoladas do mundo existencial,
pode assegurar a compreensão da vida de uma criança, do que é importante para ela, de seus medos,
pesadelos e sonhos.

3. Teorias de desenvolvimento infantil

As teorias sobre a infância têm, como visto no capítulo anterior, o objetivo comum de compreender a
infância e explicar as mais diversas condutas infantis em seus significados mais explícitos ou mais
obscuros. Mas nem sempre as crianças foram compreendidas como na época atual e nem sempre se
falou em teorias de desenvolvimento infantil.
Algumas considerações são importantes para melhor entender a formulação de desenvolvimento
infantil que as teorias têm como objetivo explicitar.

No livro Metablética12, Van den Berg aponta diferentes concepções da vida infantil. Diz que nos
séculos 15 e 16 as crianças não constituíam uma preocupação específica para os adultos como as de
hoje. Elas compartilhavam um cotidiano comum e um mesmo mundo de ocupações com o adulto.
Assim, elas cresciam em meio aos adultos, desde cedo aprendendo os cuidados e ofícios do pai e da
mãe. Apenas algumas crianças da nobreza ou filhas de ricos mercadores tinham a tarefa pedagógica
especial de aprender a ler e escrever. Mas, esta também se desenrolava de um modo que não diferenciava
os mundos das crianças e dos adultos: não havia, por exemplo, uma literatura infantil específica como
na atualidade. O aprendizado da leitura e da escrita se dava a partir de textos clássicos gregos ou latinos
de filosofia e de poesia ou da Bíblia. Além disso, era “naturalmente” aos doze anos que as meninas
casavam e, antes dos quinze, os garotos já arcavam com as próprias responsabilidades. Não haviam
mundos separados de crianças e de adultos, como uma diferença estrutural inicial que deve ser superada
por meio de processos sucessivos para que a criança conquiste e adentre à fase adulta. Assim, as noções
atuais de desenvolvimento não podem ser adequadas para se compreender a existência infantil desde
sempre.

Desde que a infância se tornou um tema de estudo, já se disse muito sobre as crianças a despeito do
que se pode em realidade acompanhar ou observar. Como já foi dito, as teorias acabaram por se
sobrepor ao próprio existir, tornando-se a referência principal da compreensão da infância e de cada
criança, suas condutas, reações e emoções. Acompanhar e compreender a criança em sua realidade, o
que elas trazem de particularmente significativo não tem lugar.
Mas, como aponta Van den Berg, isto já acontecia com Rousseau, quando a infância foi entendida
como uma época de vida primitiva, tanto no âmbito de sua história individual, como da história da
humanidade. Isto é, o “primitivismo” que era observado na infância era referido tanto ao estágio inicial
da vida, como aos estágios mais antigos da humanidade pois, nesta época, forças humanas primitivas ou
instintivas se sobrepunham às condições social e cultural. Nessa visão, as análises etiológicas e genéticas
e as comparações etológicas da biologia animal ganhavam precedência, sendo as condutas pessoais
consideradas como determinações de forças naturais. Desse modo, a educação e a vida social tinham a
função preponderante de lapidar o chamado “pequeno selvagem”.

Ainda e, sobretudo no campo do pensamento religioso e moral, a infância foi compreendida como
estado puro de inocência e definida, em princípio, como uma época da vida caracterizada por
ausência de responsabilidade. Essa interpretação é também determinada pelo critério cronológico,
sendo a inocência considerada fator próprio dos primeiros anos de vida, independentemente do
significado ou sentido ético e da responsabilidade própria de cada conduta infantil. A noção da
ausência de responsabilidade de ser permanece ainda hoje, o que pode ser observado por ocasião das
discussões morais e jurídicas sobre culpa, castigo e o mal, quando a criança é isentada de sentimentos de
culpa, de culpabilidade e do sentido do mal. No entanto, o filósofo e teólogo Agostinho (354-430), no
século 4, já questionava tais posições. Em seu livro As Confissões, no capítulo 7, ele se dedica aos
“Pecados da primeira infância” em uma longa e clara reflexão sobre a inadequada atitude do adulto que
não considera a responsabilidade ou as intenções das crianças. Ele alega uma “tolerância indulgente”
em relação às faltas infantis não porque elas sejam pequenas, mas porque espera-se que elas
desapareçam. Agostinho diz:

“Quem me há de lembrar o pecado de minha infância, já que ninguém está diante de ti limpo de pecado,
nem mesmo a criança, cuja vida conta um só dia sobre a terra? Quem mo recordará? Acaso alguma
criança ou menino de hoje, em quem vejo o que não recordo de mim? E em que eu poderia pecar nesse
tempo? Acaso por desejar o peito chorando? Porque se agora eu suspirasse com a mesma avidez, não
pelo seio materno, mas pela comida própria de minha idade, seria justamente escarnecido e repreendido.
Logo, eram dignas de repreensão o que eu então fazia; mas como não podia entender a quem me
repreendesse, nem o costume, nem a razão permitiam que eu fosse repreendido. A prova está em que,
segundo vamos crescendo, extirpamos e afastamos de nós essas coisas, e jamais vi homem sensato que,
para limpar uma coisa, a prive do que tem de bom.
Acaso, mesmo para aquele tempo, era bom pedir chorando o que não se me podia dar sem dano,
indignar-se acremente com as pessoas livres que não se submetiam, assim como com pessoas
respeitáveis, e até com meus próprios pais, e com muitíssimos outros, que, mais prudentes, não davam
atenção aos sinais de meus caprichos, enquanto eu me esforçava por ofendê-las com meus golpes, quanto
podia, por não obedecerem às minhas ordens, por me serem prejudiciais? Daqui se segue que o que é
inocente nas crianças é a debilidade dos membros infantis, e não a alma... Mas costuma-se tolerar
indulgentemente essas faltas, não porque sejam nulas ou pequenas, mas porque espera-se que
desapareçam com o tempo. Pelo que, embora tais coisas sejam perdoáveis em um menino, se as achamos
em um adulto, mal as podemos suportar”. 13

Agostinho chama atenção para a inadequação do olhar totalmente tolerante e indulgente para com as
crianças e da visão de inocência infantil – um estado de isenção ou ausência de responsabilidade pelo
que elas almejam ou fazem. No entanto, se não se deve desconsiderar nas crianças o sentido de
responsabilidade, isso não significa que ele seja igual ao dos adultos, pois o entendimento de cada um
da sua vida e de suas ações se amplia com o desenvolvimento constante das relações dos seres humanos
com o mundo. Para melhor esclarecer essa diferença da responsabilidade característica das crianças e dos
adultos é importante perguntar o que significa inocência.

Em O Conceito de Angustia, Soren Kierkegaard (1813-1855) examina o que nos faz errar, o conceito
do pecado, a angústia, o deparar-se com a própria humanidade e liberdade.
Ele diz: “...é através da culpa que cada um de nós perde a inocência.”
14

Continua o pensador:

“A inocência não é uma perfeição cuja volta deva aspirar-se, porque desejá-la é tê-la perdido e perder
tempo com aspirações é pecar outra vez. Igualmente não é imperfeição que seja necessário vencer
superando-a, porquanto é bastante a si mesma, e quando a perdemos ...seria tanta a ousadia que
fôssemos cantar hosanas em honra de nossa própria perfeição, à custa da inocência?”15

E mais adiante completa: “Inocência é ignorância... apenas se perde incessantemente por meio do salto
qualitativo do individuo.”16
Recorrendo ao mito bíblico da criação, o filósofo lembra que experimentar da árvore proibida da
ciência do bem e do mal fez nascer o pecado em Adão que despertou, então, para a possibilidade da
liberdade, a aflitiva possibilidade de poder e do castigo. Perder a inocência é conhecer que os próprios
atos implicam em algo, que se pode ganhar, que se pode perder, que se pode ser gratificado ou que se
pode vir a ser ameaçado, isso é o que se diz conhecer o bem e o mal. A perda da inocência se dá, assim,
com a descoberta do indivíduo de sua condição de poder escolher e de não estar determinado. O que
pode ser conhecido de início? Isso não pode ser dito ou previsto. O que se pode dizer de antemão é que
a criança já está em relação, interagindo desde o início, desde quando o seu primeiro choro é esperado e
que pode acontecer ou não. Desde esse momento, de extrema angústia para alguns, a criança está aberta
para receber e atuar, mesmo que nesta ação, o seu entendimento intelectual não se encontre, a
princípio, claro para os demais. No entanto, constante e progressivamente espera-se da criança – em
suas manifestações desde as mais infantis, expressadas no sono ou no choro pelo recém-nascido ou bebê
– que a expressão dos seus entendimentos venha a superar os primeiros sinais de conforto e
desconforto. Isso significa que esses sinais de conforto ou desconforto – que não significam sempre o
mesmo para todas as crianças – presentes nas experiências infantis são superados, desde sempre, pelo
próprio entendimento da criança. Nos primeiros sinais de expressão de entendimento em uma
interação ativa e reativa junto ao outro ocorre a perda da inocência.
Mais tarde, com base nos estudos da fisiologia, da neurologia e da motricidade que se iniciaram no
final do século 19, surgiu uma nova visão científico-natural, sendo a criança e a infância observadas
como organismo em estágio de desenvolvimento humano ainda incompleto, insuficiente ou imaturo.
Nesse estágio, o organismo ainda incompleto explicaria a ocorrência dos eventuais desequilíbrios
comportamentais e emocionais, até que as forças internas naturais tivessem concluído o
desenvolvimento.
Finalmente, a partir do início séc. 20, com os estudos da psicologia e com as teorias de
desenvolvimento, a infância passou a ser interpretada e explicada como estado mental ou psicológico
que deve ser superado na perspectiva de um bom crescimento. Assim, confirmou-se a infância como
uma espécie de status inferior ao adulto, e a psicologia da criança foi denominada Psicologia do
Desenvolvimento.
Mas, o que que significa, nos estudos denominados de psicologia do desenvolvimento, a palavra
desenvolvimento? Pois esses estudos são realizados em diferentes âmbitos de análise e consideram
processos diferentes de desenvolvimento humanos:
– Desenvolvimento físico-corporal ou do corpo mate-rial, caracterizado pelo que pode ser medido e
pesado, que tem funcionamento adequado e que produz substâncias diversas. Para esse, os critérios
observáveis como altura, peso, temperatura ou coloração e suas correlações quantitativas como
aumento ou perda de massa corporal ou das substâncias (sangue, hormônios etc.) são considerados
determinantes e indicativos gerais da condição individual.
– Desenvolvimento intelectual, âmbito que determina parâmetros como capacidades mentais, noções
de aprendizado, interesses de estudo, classificações tipológicas e quocientes de inteligência. A partir de
critérios dedutivos e comparativos, busca-se a definição de desenvolvimento normal.
Além desses, há os parâmetros específicos social, cultural e econômico que indicam também índices
de correlação e comparação de desenvolvimento de maioria ou minorias de uma população.

Nos diversos campos de análise das psicologias do desenvolvimento, padrões e determinantes de


conduta estão correlacionados frequentemente a modelos a partir de sequências cronologicamente
delimitadas e comuns para as crianças em geral. Isto é, a ordenação sequencial do tempo cronológico
mensurável e geral – que estabelece as divisões de fases ou idade – surge como critério essencial às
diferentes noções de desenvolvimento infantil.
Por vezes, com maior ou menor complexidade, as diferentes perspectivas e conceitos de
desenvolvimento infantil envolvem tanto aspectos de crescimento natural e experiências emocionais
que já foram observadas, como a previsão de outras possibilidades que ainda não ocorreram.
Pode se perceber então como os parâmetros comuns de normalidade e anormalidade e dos chamados
comportamentos normais e anormais infantis são construídos a partir de noções gerais. Quando isso
acontece também o cuidado dos adultos já fica direcionado e suas proposições de atividades e rotinas
oferecidas para as crianças em cada idade estão previamente decididas.
No séc. 20, foram concebidas diferentes teorias de grande repercussão sobre o desenvolvimento
infantil, ordenado em fases sequenciais cronológicas, que estabeleceram processos, capacidades e
aspectos físicos, psíquicos e intelectuais que, até hoje, são utilizados como princípios de educação, de
pesquisa e de atuação clínica e pedagógica.
Para o conhecido psicólogo suíço Jean Piaget (1896-11980):

“O desenvolvimento é uma equilibração progressiva, uma passagem contínua para um estágio de equilíbrio
superior. Assim, do ponto de vista da inteligência é fácil se opor a instabilidade, a incoerência das ideias
infantis à sistematização de raciocínio do adulto. No campo da vida afetiva, notou-se muitas vezes quanto o
equilíbrio dos sentimentos aumenta com a idade. E finalmente também as relações sociais obedecem a
mesma lei de estabilização gradual.”17

Apesar da lógica que caracteriza essas afirmações, é importante refletir e considerar o âmbito
epistemológico em que se situavam, antes de aplicá-las, automaticamente, no campo da psicologia ou
da educação. O ponto de partida – a definição de desenvolvimento como “equilibração progressiva”
que deve ser alcançada por uma estabilização gradual na fase adulta ou a direção ao estágio de equilíbrio
superior, em relação ao qual o desenvolvimento infantil deve caminhar – não deve ser considerado no
âmbito original pertinente às experiências da criança. A partir dessas noções, de um modo geral, as
ideias das crianças aparecem como instáveis e incoerentes e os sentimentos são menos equilibrados com
a pouca idade. O que quer dizer “equilíbrio” quando se quer conhecer uma criança e o que significam
as suas ações? No que implica dizer que o estágio de equilíbrio é uma decorrência do seu crescimento?
Como compreender o crescimento de uma criança como passagem de um estado inferior para estados
superiores e mais completos e que a ela falta coerência? A base desta compreensão é outra ideia geral e
claramente determinada, do adulto estável, equilibrado e estabilizado. Quando, em que âmbito, esta
interpretação parece adequada?

Mas, ainda é atual e frequente as referências à teoria freudiana.


A partir de Freud, a época infantil é caracterizada pela sucessão de períodos de diferentes
manifestações do impulso sexual. Do período inicial de busca de prazer pela sucção ao autoerotismo da
fase anal e genital até o período de latência,

“A meta sexual do instinto infantil consiste em gerar a satisfação por meio da estimulação apropriado da
zona erógena escolhida de uma forma ou de outra” 18.

Assim, na infância, haveria a predominância de um autoerotismo.


Mas, também no viver da fase infantil os impulsos sexuais que o recém-nascido traz consigo em
germens
“continuam a se desenvolver por algum tempo, mas depois sucumbem a uma progressiva supressão, que
pode ser ela mesma interrompida por verdadeiros acessos de desenvolvimento sexual e também detida por
peculiaridades individuais”
e

“Estabelecemos o conceito de libido como uma força quantitativamente variável que poderia medir
processos e transposições no âmbito da excitação sexual. Considerando a sua origem especial,
diferenciamos essa libido da energia que deve subjazer aos processos psíquicos em geral, e assim lhe
emprestamos também um caráter qualitativo” 19.

De um estágio determinado por forças instintivas “indiferenciadas” de busca de prazer pela satisfação
da privação, a libido chega à fase de complexidade da estrutura individual na última fase da organização
sexual quando a satisfação erótica se realiza com o outro (objeto exterior), homem ou mulher.
Ainda em Freud:

“O resultado do desenvolvimento é a chamada vida sexual normal do adulto, na qual a obtenção do prazer
ficou a serviço da função reprodutiva...”20

É necessário refletir sobre essas formulações preliminares e perguntar: como, no âmbito existencial,
uma experiência humana poderia ser apreendida como processo progressivo ou prazer naturalmente
indiferenciado? Como falar de prazer “indiferenciado” quando o entendimento das experiências
mesmas, em cada caso, ainda é obscuro? Como falar sobre “indiferenciação” de quem ainda não pode
comunicar e se expressar? (Pois crianças “indiferenciadas” ainda não poderiam dizer de si, de como
percebem e de sua relação com o outro.) Como poderia alguém reter na memória qualquer lembrança
de experiências daquela época “obscura e indiferenciada” para que na vida adulta – quando o adulto já
poderia dizer de si – elas pudessem ser referidas como daquela época?
Na psicologia, especialmente considerada como uma ciência da época moderna – de tradição
universalista do pensar e de verdades gerais válidas para todos – os aspectos individuais particulares e
mais singulares são (des)considerados como representações secundárias. Seguindo o modelo das
ciências naturais que privilegia as generalizações comuns, a objetividade, a previsão e o controle dos
acontecimentos, nas teorias psicológicas, as experiências humanas são também observadas a partir de
princípios objetivos em que predominam a regularidade e a sequência linear dos acontecimentos. Com
estas características do pensamento moderno-científico e das ciências naturais, as teorias psicológicas de
desenvolvimento oferecem um conhecimento geral de comportamentos, atitudes ou emoções infantis
que podem servir como referências básicas ou modelos de comparação entre os casos particulares e os
padrões esperados. No entanto, esses parâmetros de condutas gerais são apresentados, comumente,
como base para o estabelecimento de planos de ação imediata nos casos individuais das atividades
clínicas e avaliações psicopedagógicas. Linha diagnóstica, delimitação de prazos e urgência de certos
modos de intervenção são, assim, estabelecidos visando a solução dos casos específicos ainda não
devidamente esclarecidos em sua história particular.
Com parâmetros gerais e comuns se faz necessário explicitar como poderiam surgir modos pessoais,
singulares ou criativos do interior de processos inesgotavelmente repetidos, em cada “reedição humana”
com formulações teóricas cada vez mais complexas. Como as mudanças qualitativas do geral e
indiferenciado podem se dar para a individualidade de cada ser humano? Para isso também é frequente
a busca de fundamentos na teoria freudiana, especificamente nos trabalhos sobre “o princípio do
prazer”, formação do ego, id e superego. Sem entrar nas minúcias das análises daqueles trabalhos, das
suposições que visam os processos psíquicos de constituição do ego, do consciente e das percepções
pré-conscientes e conscientes21 a partir da tensão entre as chamadas forças internas e externas, não
dizem nada a respeito nem das diferenças fundamentais de cada pessoa nem de como algo como a
singularidade pode se dar. Como surge o sentido, em cada caso, que pode nortear a superação do
princípio do prazer imediato pelo principio da realidade ou da necessidade da repetição, em cada caso?
Essa questão de fato fundamental não tem sido contemplada.
Encontra-se também no médico austríaco, René Spitz (1887-1974), novas investidas explicativas. Para
ele, o “self” é um produto da consciência que tem seu início a partir do 15º mês de vida, quando surge
“a consciência que o sujeito tem que é uma entidade que sente e age, separada e distinta dos objetos e
ambiente”.

No entanto, com esse conceito geral sobre a origem de uma consciência pessoal inicialmente
inexistente, que se dá a partir de processos comuns e repetidos, entre os quais o recurso da criação seria
um estágio naturalmente mais avançado, o crescimento singular humano permanece como desafio.
Como compreendê-lo originalmente?
Se crescimento é pressuposto como processo de repetições e variações previamente determinadas,
como compreender as diferenças, originalidade e criatividade que caracterizam cada um de nós
humanos? O entendimento de tais características permanece sempre como um desafio, sobretudo nas
teorizações sobre o desenvolvimento humano que determinam quais processos devem acontecer. Nem
mesmo formulações mais complexas conseguem explicar como, do interior de um processo
inesgotavelmente repetido, podem surgir as especificidades que caracterizam cada ser humano.

Como tais conceitos de desenvolvimento passaram a ser aplicados como características infantis
inequívocas? Essas afirmações podem ser formuladas somente a partir de conclusões que seguem a
trilha de pressuposições teóricas sobre a determinação das experiências humanas que desconsidera o
que se mostra diretamente em cada caso.
Parece não ser mais possível na época atual a experiência de aguardar, calar-se e admirar o que surge
pela primeira vez... Para os homens do mundo moderno o pensamento científico que supervaloriza a
racionalidade e a técnica frequentemente ocupa um lugar de privilégio que impede a possibilidade de se
permanecer nas não certezas. A urgência de intervenção desconsidera a possibilidade da espera que
favorece o entendimento mais singular de cada criança. Mas, tanto na urgência da intervenção que
desconsidera o singular, quanto na espera que pode favorecê-lo, riscos e incertezas estarão sempre
envolvidos.
Fala-se de fases de desenvolvimento, descreve-se comportamentos específicos de cada fase e indica-se
critérios adequados para cada idade. Fala-se sobre uma criança em geral e a infância é um termo geral
que se refere a um processo comum e determinado – que pode ser chamado de interno ou externo –,
que sempre se repete em cada indivíduo, nas mais diversas situações.
A objetivação da criança e da infância, transformadas em questão teórica da ciência e do
conhecimento, distanciou o entendimento do mundo da criança e das experiências infantis, tornando o
objetivo das teorias, a construção de uma boa matriz ou de um bom início que possa servir para explicar
como as crianças se transformam naquele adulto conhecido. Assim, as teorias são como construções
que preenchem com crenças, conceitos e ideais de adultos, o que aparece, inicialmente, como obscuro
nas experiências infantis.
A partir dos processos de desenvolvimento que se dão em fases ou estágios, as características
emocionais e intelectuais da infância, consideradas incompletas, insuficientes ou imaturas, devem ser
transformadas com o crescimento normal e o acúmulo das experiências vividas para o surgimento do
adulto ideal. Mas, para que haja modelos prévios de desenvolvimento infantil, é necessário pressupor
potencialidades posteriores, consideradas adultas. Pois, somente com o conhecimento e análise das
características consideradas finais é que as iniciais podem ser estabelecidas de antemão.
Com base neste projeto ideal de vida adulta – um status de amadurecimento considerado superior e
mais representativo da condição humana –, o desenvolvimento normal tornou-se padrão de
crescimento e conduta e a descrição de comportamentos normais também se constituiu. Nessa
perspectiva, tanto as teorias de desenvolvimento como a psicologia em geral, tornaram-se seguidoras de
parâmetros que favorecem as expectativas de comparação e homogeneização do ser humano. Assim, a
criança deve ser observada: a partir do que ela ainda não é e do que tem que deixar de ser, para crescer e
se tornar ideal; a criança terá que perder para se transformar em alguém, uma pessoa, ser humano. Mas,
tais perdas estão determinadas e asseguradas nas noções ideais ou em um estado previamente descrito a
ser alcançado. Seguindo este trajeto, dificilmente se pode encontrar o que já é mais fundamental em
cada criança: o ainda não conhecido dela mesma, exatamente por ser ela, ela mesma.

Pode-se ver, então, que conhecer teorias de desenvolvimento não é o mesmo que compreender o que é
mais fundamental nas experiências infantis. Como, então, compreender o crescimento de cada criança?
Como teorias de desenvolvimento cognitivo ou emocional, de diversas correntes psicológicas que
apresentam padrões de normalidade de crescimento e de conduta e leis que determinam normas do que
deve ser esperado das crianças, podem dizer sobre o que elas não podem ou não devem viver? De onde
surgem as prescrições de “desenvolvimento normal”?
Ainda no contexto teórico do desenvolvimento infantil, transformação e crescimento são
características específicas do existir humano nas suas fases iniciais. Essa observação torna-se também
relevante quando se constata que teorias de desenvolvimento geralmente se referem aos seres humanos
até a idade próxima dos doze anos. O que deixa a dúvida se, depois dessa idade, não haveria processos de
desenvolvimento ou em que categorias se encaixariam as transformações dos adolescentes ou adultos.É
necessário esclarecer que não mais ser e ainda não ser constituem fundamentos da condição
humana, não especificamente das crianças.
As perguntas que podem aproximar a compreensão de cada criança devem ser então reformuladas:
como as possibilidades de crescimento e mudança – condições humanas fundamentais – se dão na
infância? Como uma criança vive? O que é importante para ela? Quais são seus medos, seus sonhos e
que sentido isso tem em sua vida? Essas são indagações que são pensadas ao longo deste livro.

4. Desenvolvimento numa perspectiva fenomenológico-existencial 22

Como compreender a criança que se torna adolescente e este que se torna adulto, mas que sendo
criança já é inteiramente do próprio jeito de ser ela mesma? Como falar do adolescente, ele mesmo –
que é ele, mas que também não é – e que este “não é” não se refere à criança nem ainda ao adulto, mas
justamente ao que ele mesmo já, como os seus projetos? Como falar da maturidade, em sua
especificidade, sem referi-la a qualquer ideal humano geral?O que falar – e como falar – da infância, da
adolescência e da maturidade que mantenha a abrangência para todos, mas que também possa
preservar a especificidade de cada um? Como aproximar a compreensão mais fundamental do existir
humano em-cada-caso e sempre-já-na-totalidade em um âmbito do conhecimento – que, em sua
tradição, entendeu e continua entendendo o homem a partir de leis gerais e de forças comuns, como
tratasse de uma realidade objetiva qualquer?
A fenomenologia é um método de compreensão que favorece a aceitação dos limites ante as
experiências e os fenômenos humanos mais obscuros ao entendimento. As experiências compartilhadas
com outro, de modo ainda não claro, somente podem ser compreendidas verdadeiramente se não
recusarmos, mas respeitarmos, os limites de nosso saber. Aceitar o que é obscuro ou o que ainda está
por vir, exatamente como o que ainda não se manifestou e que ainda está por se manifestar, é o
princípio para o entendimento existencial.
A descrição em Ser e tempo dos chamados fundamentos existenciais do homem – vir a ser, caráter
temporal, histórico e compreensivo – possibilita a superação dos limites impostos pelos pressupostos
de objetividade e subjetividade, das mais diversas correntes teórico-científico-psicológicas sobre o
desenvolvimento e as condutas humanas. A especificidade de cada ser humano não pode ser
determinada por sequências causais de experiências psicológicas, isoladamente ou em si mesmas. Os
sentidos e significados dos acontecimentos humanos envolvem a totalidade existencial histórica em
cada caso. Assim, conhecer o ser humano no tempo da infância, adolescência e maturidade, na
perspectiva humana, requer conhecer quem é a criança, o adolescente e o adulto, de um modo tal que
preserve a sua condição de poder ser histórico fundamental, isto é, de ser aquele que é, nos diferentes
momentos de sua existência.

5. Singularidade, crescimento e futuro

Como compreender que cada criança/pessoa é única e diferente uma das outras? Como pode ser
considerada a singularidade humana?
Quando o desenvolvimento da criança é compreendido como processo geral, perde-se o seu sentido
mais original. Este é o acontecimento próprio da existência que não pode ser apreendido puramente
como um processo comum repetido infinitamente. Pois existir não significa, simplesmente, seguir um
processo, processar de algum modo, ou surgir a partir de um processo. Compreender cada ser humano
se faz, sempre, que se compreender também a sua história. Ser humano é essencialmente construção
de sua própria história.
Processo significa ação de ir para frente, ato de avançar, seguimento ou marcha, que pode ser
observado e pré-definido. Existir, por outro lado, envolve mais do que ação ou ato determinado. Ir
adiante, no sentido existencial, além das possibilidades já desenvolvidas em cada caso, refere-se
juntamente àquelas não desenvolvidas – que ainda poderão, ou não, serem desenvolvidas. Este é o
significado de ser livre que cada um é, como condição indeterminada, de ter que ser si mesmo sempre
em cada caso. Desenvolver-se a si mesmo de modo próprio se dá com a descoberta constante das
próprias possibilidades e limitações. Isto é, ninguém pode fugir da condição de desenvolver-se sempre e
à sua maneira. Mesmo que esta maneira seja como a de um outro, ainda assim, a tarefa de ser si mesmo é
a tarefa inalienável que cabe a cada um.
Na sua mais ampla generalidade, o desenvolvimento humano somente pode ser descrito como
possibilidades e não como processo determinado de uma possibilidade. Esse sentido, aparentemente,
não tem sido considerado nas teorias psicológicas generalistas. Pois, não se pode jamais de antemão
garantir qual será a direção seguida por cada desenvolvimento.

É importante dizer que o desenvolvimento das possibilidades humanas, entendido como processo que
privilegia determinadas fases, é também uma possibilidade entre outras que vem a servir à comparação e
avaliação de um padrão de conduta, no amplo conjunto das atuações comuns e não comuns dos
indivíduos. Na educação institucionalizada, o estabelecimento de padrões e objetivos comuns para
todos os alunos é uma necessidade de um projeto comum escolar. Cabe aos adultos as escolhas das
atividades escolares possíveis, pois as metas educacionais se referem e estão direcionadas ao futuro do
aluno e da preservação do conhecimento comum. Isso implica no comprometimento do adulto com o
próprio projeto de ensino e educação. É somente alguém que conhece mais plenamente o sentido da
educação que pode refletir e escolher as metas para a educação e incentivar o interesse dos novatos pelos
ensinos específicos.
Assim, a escola, segundo Hannah Arendt, representante do mundo público e geral, em certo sentido
não funciona sem o mínimo de uma organização geral estabelecida.

A escola Summer Hill, fundada na Inglaterra pelo escritor e educador escocês S. A. Neil (1883-1973)
em 1921, foi a primeira experiência não tradicional alternativa da educação institucional estruturada a
partir de normas prévias impostas pelos adultos. Uma nova organização escolar foi criada, propondo
um mínimo de normas e algumas condições gerais básicas como subsídio financeiro, prédio, quadro de
professores disponíveis e funcionários gerais. O funcionamento geral – desde a frequência dos alunos
nas aulas à escolha das atividades e o seu vestuário – era resolvido pelas crianças. Depois de algum
tempo, o projeto teve que ser modificado, pois avaliou-se que a experiência quase acabara em “total
fracasso”. Na época, foi dito que houve “uma completa infantilização de todo o sistema e consequente
desmoronar de qualquer sentido educacional”, pois faltavam naquela proposta metas claras.
Ainda é importante observar que para a avaliação da saúde de todo mundo no campo da Medicina, o
parâmetro do crescimento normal é muito valioso. Mas, talvez devido à própria natureza da clínica
médica e à emergência das situações críticas que exigem a observação particular dos exames do paciente
e de sua história individual, os padrões gerais são mais facilmente afastados.
Não é demais dizer que quanto mais cuidadoso o profissional, mais atento ele está na observação
clínica particular. Isso faz pensar que as situações críticas mais iminentes forçam o olhar para a direção
mais singular, deixando de lado o que é geral e menos significativo em cada caso. Nas crises, a média se
retrai e o singular se acentua. Essa é uma experiência com a qual os médicos, particularmente, estão em
frequente contato.
A perspectiva de caráter geral do desenvolvimento psicológico ou intelectual, que define normalidades
de crescimento ou conduta, pouco nos diz do modo de ser em cada caso e não parece a mais adequada
para entender cada criança em particular. Para isso, é necessário olhar a criança desde o seu nascimento,
como um acontecimento singular. De início, já se encontra um ser humano, sempre singular, por
inteiro e em relação a um certo mundo. Pode-se dizer dessa relação, inicialmente, que quando uma
criança nasce, ela chega com um conjunto de “promessas de realização”: os pais e familiares, de início, já
procuram com quem ela se parece e, logo, imaginam que futuro terá e como será quando crescer. Esses
familiares percebem algo que, de algum modo, para eles aparece, mesmo que ainda não tenha se
mostrado concretamente na criança. Neste novo encontro, o pequeno recém-nascido surge como uma
promessa para aqueles que, numa visão adiantada, se lançam para possibilidades que ainda não se
realizaram e que não têm garantia de realização. Encontrar-se com o recém-nascido provoca o
surgimento de possibilidades entre as quais algumas serão desenvolvidas, outras jamais serão. Nesse
sentido, no nascimento de cada criança já se faz presente algo novo e o futuro desvelado sem a menor
segurança de que, de fato, acontecerá. Em uma perspectiva ainda mais ampla, pode-se dizer que o
nascimento de uma criança revela a promessa do desenvolvimento mas que, somente no próprio
desenvolvimento, podem ser indicadas as realizações possíveis ou não.
Para compreender o crescimento da criança, o importante é aproximar e observar a continuidade dos
envolvimentos e “des-envolvimentos” e os cuidados voltados para o futuro e para a realização dos
projetos da própria criança e daqueles comuns à família e ao relacionamento social da comunidade.
É com vistas para o futuro que cuidar da criança pode ser melhor compreendido. Quando um adulto
cuida de uma criança, seu cuidado tem alcance para além do imediato. Quando alimenta, quando
acalenta, quando repreende, quando estimula, em qualquer forma de cuidar o adulto está envolvido
com o des-envolvimento da criança. No envolvimento que se entrega à tarefa do des-envolvimento, isto
é, na intensa e decisiva correspondência e solicitação – chamada por vezes de simbiótica23 –, o
des-velamento das possibilidades futuras de cada criança pode ser facilitado ou dificultado.

Desde o nascimento e em todo o percurso de seu crescimento, a criança como recém-nascida e em


des-envolvimento existe junto-com de modo especial. Neste modo o cuidado constante do adulto com
ela é compreendido como uma incumbência original. Na proximidade, o cuidado do adulto se parece
com uma missão ou mandato que se responsabiliza pela criança e favorece o crescimento em direção ao
seu futuro mais próximo e distante. Missão tem a mesma origem latina da palavra promessa – mitto –,
que significa enviar, lançar.24 Missão e promessa estão comprometidas com o que virá e, assim, são
empreendidas na perspectiva do que ainda não se conhece. Assim, o compromisso do adulto com a
criança tem, por um lado, algo – o sentido – de prometer um melhor futuro para quem não pode ainda
dar conta das escolhas de sua própria vida e, por outro lado, tem a segurança de que os cuidados
empreendidos são os melhores.25
Na relação entre os dois, não é o adulto nem a criança que determina o desenvolvimento, mas
é o próprio envolvimento entre ambos, no jogo de solicitar e corresponder, que guarda o
mistério do que é desconhecido e o desvelar das possibilidades do crescimento em cada caso.
Não é ao adulto que cabe determinar o que será possível para a criança, mas escolher, entre os caminhos
desvelados, quais poderão ser favorecidos. Sem nenhuma garantia – condição inalcançável para o ser
humano – o cuidado dedicado pelo adulto à criança não se dá de modo fácil e também provoca tensões,
medos, angústia e dúvidas sobre a efetividade de sua própria responsabilidade. Pois decorre do cuidado
do adulto, conduzido pela sua responsabilidade, esperança e confiança, a manutenção e fortalecimento
da possibilidade de ser de modo mais próprio da criança. Isto é, com a dedicação cuidadosa do adulto
que considera o des-envolvimento da criança mesma, voltado também para o seu futuro, que pode se
dar o crescimento dela na direção do que melhor ela puder e almejar.
Se faz ainda necessário levar em conta no crescimento das crianças, os fatores prévios como os
genéticos. Mas, nem mesmo estes podem ser descritos, isoladamente, como agentes determinantes
objetivos e independentes do crescimento, pois estão também sempre referidos e copertencem ao
entendimento próprio da criança no mundo – do mais restrito ao mais amplo.

6. Desenvolvimento como descoberta do próprio caminho

“Temos no olhar
a prisão de imagens
e no coração
sede de liberdade...
a emoção do voo.”
(Raimundo Gadelha
– Um estreito chamado horizonte)

Nesse poema, encontra-se descrita a movimentação do existir humano que, ao mesmo tempo, se fecha
como uma prisão de imagens e se abre, como sede de liberdade; uma movimentação em que prisão e
liberdade convivem na emoção do voo que esconde e mostra. Isso não é exatamente a descrição de um
movimento qualquer, mas oferece uma descrição essencial do existir humano que se dá, ao mesmo
tempo, encobrindo e revelando, limitando e possibilitando. Assim entendemos o desenvolvimento e o
desenvolver-se, o conhecimento e a liberdade acontecendo concomitantemente na existência. Nesse
sentido, desenvolver-se se dá tanto descortinando o próprio caminho e aproximando peculiaridades,
como no afastamento e encobrimento de outras possibilidades. Nesse encobrimento, possibilidades
podem permanecer restritas tão radicalmente, até o ponto de se perderem. Isso é o que acontece, com
bastante frequência, com a possibilidade do brincar para os adultos.
Pode-se ver também que o desenvolvimento próprio caminha na direção do próprio convívio, com os
outros e com o mundo comum. Ou seja, a existência humana, desde a sua origem e continuamente,
caracteriza-se como poder-ser, que se mostra de um modo tal e sempre compartilhado em um mundo
junto a outras pessoas e coisas. Tais referências são estruturas fundamentais do ser humano e não
aquisições que podem simplesmente deixar de ser, ou serem omitidas, na vida de cada um. Cabe a cada
um de nós, por condição e não por simples decisão, a cada momento desde o nascimento, articular ou
configurar a própria existência. Tal configuração é a própria história. Nela estão revelados as próprias
limitações e possibilidades, nos mais variados graus de clareza.
Ao mesmo tempo, quando a história de cada um é constituída, algo peculiar acontece: permanecemos
escorregadios, escapando ao já configurado na direção de ser para além do que já somos revelados. Por
isso não podemos ser, pela nossa própria condição existencial, compreendidos somente pela história
construída. Não somos assim por opção, desejo ou por determinação de uma força externa ou interna.
Mas, são o desenvolvimento e o desenvolver-se melhor entendidos como estar voltado para o futuro e,
ao mesmo tempo constituindo a própria trajetória histórica.
No âmbito da fenomenologia, desenvolvimento ou desenvolver-se está referido ao homem – não
criança, não adulto, mas tanto criança como adulto.
Como o desenvolvimento, no sentido de acontecimento humano, não pode ser descrito por um
projeto previamente conhecido, pode agora ser melhor descrito não como um caminho, mas como o
caminhar mesmo, ou seja, abertura para um caminho novo e próprio. É somente em cada caminhar que
pode ser descoberto o que é trilhado pela primeira vez. Tal caminhar, que se dá em cada caso na
descoberta e encobrimento das próprias possibilidades, é uma tarefa obrigatória que não tem idade:
aparece no nascimento e acompanha o ser humano até a morte.
Por vezes essa tarefa é solitária, outras vezes é compartilhada por pessoas mais próximas ou pelas que se
distanciam. Mas, nem sempre o caminho trilhado permanece descoberto, podendo ser logo encoberto.
Isso se dá por diferentes motivos: pelo esquecimento, pelas dificuldades ou pela desatenção de quem
não pode ver. Assim, também as possibilidades que foram descobertas no decorrer do caminho nem
sempre permanecem como algo imutável ou são percebidas claramente e algumas reaparecem depois,
outras não. Caminhar não é uma tarefa fácil. Quase sempre a descoberta de si mesmo e do próprio
caminho não se dá em harmonia: crises e desilusões povoam os caminhos. Nem sempre o que é
descoberto corresponde ao que é querido ou imaginado. Muitas vezes é difícil ir contra o que se espera,
por exemplo, ao sentir-se considerado fora do normal. Quando alguém se rebela, a rebeldia e a afronta
podem constituir tanto em tentativas de descobrir ou manter o que é chamado de “a própria cara” ou
“o próprio jeitão”, como também podemos entender a rebeldia como recusa que grita contra o jeitão
“normal”, contra a “cara que se deve ter”, contra a regra. Como uma tarefa sofrida, o próprio caminhar
pode ser experimentado com receio. Descobrir as próprias possibilidades e as reais oportunidades que o
mundo oferece muitas vezes aparece como ameaça presente em cada tentativa.
Cada caminhar se dá em seu ritmo próprio. Aproximando possibilidades já realizadas,
compreendendo a realização do desenvolvimento próprio como caminhar e não como o resultado final
ou ponto de chegada, é que podemos começar a falar da criança em seu sentido mais peculiar.
Cada pessoa segue o seu ritmo próprio, sofrendo também as interferências de fatores que vem do
mundo. As condições em torno, as privações, as solicitações, as companhias, podem estimular ou inibir
o próprio caminhar.
Nas relações entre pais e filhos, crianças e adultos, o próprio caminhar das crianças sofre interferências
que podem dificultar a descoberta do próprio caminho. Por exemplo, uma criança superprotegida que
tem todas as suas experiências controladas ou sempre asseguradas, mesmo que seja com o sentido da
proteção das ameaças, tem o seu crescimento dificultado na limitação de suas possibilidades de
enfrentar situações adversas. Quando isso acontece, a criança tem reduzida a sua condição de
experimentar mais livremente a sua tarefa mais original de descobrir quem e como pode ser. Pela falta
de familiaridade consigo e com o mundo, os caminhos sempre descobertos estão aquém ou além da
medida possível, desde a maior retração provocada pelo temor até a desmedida e o exagero dos
enfrentamentos.

Há ainda a ilusão e desilusão dos pais e dos filhos. Quando pais frequentemente se iludem e se
desiludem com seus filhos, podem acarretar dificuldades no enfrentamento da própria vida. Mas,
também nesses casos, compreender-se como responsável pela desilusão dos pais pode assumir um
caráter extremamente pesado para a criança.
O filho esperado e o filho que nasceu nunca são o mesmo. Não se tratam do mesmo! Quando os pais
desejam e esperam um filho, estão cheios de sonhos, ideias e projetos próprios. Esta é uma condição
espontânea e plena do afeto próprio da espera de um filho que chega trazendo possibilidades de
realizações das mais preciosas para os pais. Mas, quando nasce, pouco a pouco, o filho começa a mostrar
quem é e, logo, aparecem as diferenças entre aquele que foi tão esperado e aquele que nasceu. Quase
sempre, os pais não conseguem perceber ou aceitar que há uma diferença entre o filho que eles tanto
desejaram e o filho que nasceu. Para isso, os pais precisam abandonar o filho que tanto queriam e
aprender a conhecer e aceitar o filho que nasceu. Mas também cabe aos filhos aprender a conhecer os
próprios pais. Se ambos não se dispõem nessa aprendizagem, pais e filhos permanecerão desiludidos e
iludidos e, assim, se encontrarão sempre distantes um em relação ao outro e distanciados da própria
possibilidade de aceitar quem são.

Mais uma vez, o poeta Gadelha, de modo expressivo e inquietante, evoca a presença e ilusão de nossas
esperanças constantes:

“Constato triste:
enquanto envelheço,
todos os dias,
renasce mais querido
o filho que não tenho.”

7 Cf. Dicionário Grego-Português e Português-Grego.


8 Cf. Dicionário de Latim-Português.
9 Cf. Três Ensaios para uma teoria sexual (1905-1920), parte 2, vol. 6, p. 76 e 77: “Por outro lado temos que supor ou podemos nos convencer
pela investigação psicológica em outras pessoas, que as mesmas impressões que esquecemos deixaram, todavia, os mais profundos traços em
nossa vida psíquica, e se tornaram determinantes para todo o nosso desenvolvimento posterior. Não pode se tratar, então, de um verdadeiro
desaparecimento das impressões da infância, mas sim de uma amnésia semelhante à que observamos nos neuróticos em relação a vivências
posteriores cuja essência consiste num mero afastamento da consciência (repressão)... De todo modo, não deixaremos de sublinhar que a existência
da amnésia infantil fornece um novo ponto de comparação entre o estado psíquico da criança e o do psiconeurótico. Outro ponto já vimos
anteriormente, quando chegamos à fórmula de que a sexualidade dos psiconeuróticos manteve a situação infantil ou foi conduzida de volta a ela.”
10 Cf. cap. II, “As dimensões psicológicas da doença”, p. 27.
11 Cf. Foucault, em Doença Mental e Psicologia, p. 91.
12 Cf. cap. II, “Adultos e Crianças”.
13 CF. Santo Agostinho, As confissões, p. 48.
14 Cf. Kierkegaard, Sören – O Conceito de Angústia, p. 39.
15 Idem 12, p. 41.
16 Idem 12, p. 48.
17 Cf. Piaget em Seis Estudos de Psicologia, p.11.
18 Cf. Três ensaios para uma teoria sexual, parte 2, “A Sexualidade Infantil”, vol. 6, p. 89.
19 Cf. Em Três ensaios para uma teoria sexual, parte 3 (1915-1915), “Teoria da Libido”, vol. 6, p. 78 e p.135.
20 Cf. nota 18, p. 107.
21 Como explicitado nas passagens:
1- Cf. Freud em “Além do principio do prazer”, 1920, p. 162, vol. 14: “Na teoria da psicanálise não hesitamos em supor que o curso dos
processos psíquicos é regulado automaticamente pelo princípio do prazer; isto é, acreditamos que ele é sempre incitado por uma tensão
desprazerosa e toma uma direção tal que o seu resultado final coincide com um abaixamento dessa tensão.”
2- Cf. Freud em “O ego e o id”, 1923: “Ora, acredito que muito lucraríamos seguindo a sugestão de um escritor que, por motivos pessoais,
assevera em vão que nada tem a ver com os rigores da ciência pura. Estou falando de Georg Groddeck, o qual nunca se cansa de insistir que aquilo
que chamamos de nosso ego comporta-se essencialmente de modo passivo na vida e que, como ele expressa, nós somos ‘vividos’ por forças
desconhecidas e incontroláveis. Todos nós tivemos impressões da mesma espécie, ainda que não nos tenhamos dominado até a exclusão de todas
as outras, e precisamos não sentir hesitação em encontrar um lugar para a descoberta de Groddeck na estrutura da ciência. Proponho leva-la em
consideração chamando a entidade que tem início no sistema pré-consciente e começa por ser consciente, de ego e a outra parte da mente, pela qual
esta entidade se estende e que se comporta com se fosse inconsciente, de id.” “...aquela parte do id que foi modificada pela influência direta do
mundo externo, por intermédio do pré-consciente e do consciente; em certo sentido é uma extensão da diferenciação da superfície. Além disso, o ego
procura aplicar a influência do mundo externo ao id e às tendências deste, e esforça-se por substituir o princípio de prazer, que reina irrestritamente
no id, pelo principio da realidade. A percepção é para o ego o que o instinto é para o id.” (tradução do autor).
22 Esse tema foi apresentado na ABD, em São Paulo, em abril de 1993 e posteriormente publicado na revista da Daseinsanalyse nº 9. A
sequência de palestras denominada “Trajetória Humana” teve como perspectiva
desenvolver uma compreensão fenomenológico-existencial do homem na infância, na adolescência e na maturidade, procurando-se
preservar a especificidade da totalidade própria em cada caso, a partir dos fundamentos existenciais comuns. As aulas seguiram a seguinte
sequência: Tempo da Infância, por mim apresentada; Tempo da Adolescência e Tempo da Maturidade, apresentadas respectivamente
pelos professores e daseinsanalistas Carlos Eduardo Carvalho Freire e João Augusto Pompéia.
23 Simbiose: palavra de origem grega (sim = com e bios= vida).
24 Cf. Dicionário de Latim-Português.
25 Cf. Arendt, A Condição humana, na página 255: “A imprevisibilidade eliminada, pelo menos parcialmente, pelo ato de prometer, tem dupla
origem: decorre ao mesmo tempo da ‘treva do coração humano’, ou seja, da inconfiabilidade fundamental dos homens, que jamais podem garantir
hoje quem serão amanhã , e da impossibilidade de se prever as consequências de um ato numa comunidade de iguais, onde todos têm a mesma
capacidade de agir. O fato de que o homem não pode contar consigo mesmo nem ter fé absoluta em si próprio (e as duas coisas são uma só) é o
preço que os seres humanos pagam pela liberdade; e a impossibilidade de permanecerem como senhores únicos do que fazem, de conhecerem as
consequências de seus atos e de confiarem no futuro é o preço que pagam pela pluralidade e pela realidade, pela alegria de conviverem com outros
num mundo cuja realidade é assegurada a cada um pela presença de todos”; e na página 259: “O milagre que salva o mundo, a esfera dos negócios
humanos, de sua ruina normal e ‘natural’ é, em última análise, o fato do nascimento, no qual a faculdade de agir se radica ontologicamente. Em outras
palavras, é o nascimento de novos seres humanos e o novo começo, a ação de que são capazes em virtude de terem nascido”.
CAP. III
A CRIANÇA NO MUNDO

1. O mundo da criança

Como compreender o mundo da criança? O que significa mundo da criança?


Nos capítulos iniciais a criança é considerada, desde sempre, já no mundo.26 Ser-no-mundo não é
uma característica que se apresenta em algum momento posterior ao nascimento, conforme Heidegger
apresenta em Ser e Tempo. Ser-no-mundo nomeia a constituição fundamental e determinante da
existência humana, isto é, o caráter radical de ser do homem que sempre existe junto, numa certa
relação. A unidade indissolúvel da existência e do mundo, de sempre “ser junto a” implica no caráter do
existir de estar sempre apreendendo o que vem ao seu encontro a cada instante. “Familiarizar-se com” é
o modo mais original de todos os homens apreenderem o próprio mundo. A familiaridade se dá desde
o nascimento, quando a existência ainda está muito restrita à própria condição do recém-nascido. É
importante que se entenda que essa relação não é a mesma das concepções de sujeito ou de entidades
“em si mesma” que, ao deparar-se com uma realidade objetiva, transcendem para compreendê-la. O
caráter de “ser junto”, que sempre apreende o mundo de algum modo, é também diferente das coisas
construídas ou naturais. Pois, para qualquer coisa não significa absolutamente nada o lugar em que ela
está ou foi colocada relativamente às outras coisas: estar dentro, fora, em cima, embaixo, de um lado ou
de outro não faz a menor diferença.
O mundo que o ser-no-mundo se compreende não é um conceito geral determinado objetivamente
pelo que se encontra dentro ou fora dele, como uma realidade exterior ou interna, nem um conjunto
do que pode ser descrito em categorias naturais, como vegetais, animais, seres animados ou inanimados.
Tampouco é aquilo que pode ser previamente configurado, como as coisas construídas, ou dotadas de
valor ou que podem ser agrupadas por interesses ou assuntos gerais, como o espiritual, o humano, a
matemática ou a natureza. Essa diferença leva Heidegger a afirmar, em Ser e Tempo, que:

“Dois entes que se dão simplesmente dentro do mundo e que, além disso, são em si mesmos destituídos
de mundo, nunca se podem ‘tocar’, nunca um deles pode ‘ser e estar junto’ ao outro.27

O mundo, como fundamento existencial, não pode ser compreendido como uma relação do tipo
sujeito-objeto ou interior-exterior. O mundo existencial, aqui referido, é aquele dotado sempre de
significações, sendo constantemente descoberto por cada ser humano. Em Ser e Tempo, ele é descrito
como o “mundo circundante”28. Mundo que é apreendido, inicialmente, por cada um a partir do seu
em-torno, nos acontecimentos factuais que constantemente estão se apresentando na história de cada
um. Com esse caráter de constância, o mundo que está sempre sendo renovado é também sempre
histórico. Isso é, o mundo de ser-no-mundo se constitui pela totalidade das referências significativas e
históricas de cada um. Assim, descobrir mundo não é, de início, um exercício intelectual, uma
observação distanciada, nem um estudo analítico, mas se dá sempre para alguém que está envolvido no
cuidado com a própria vida.
Essas considerações têm o objetivo de esclarecer que mundo como fundamento existencial é
constituído numa relação de proximidade e significatividade e não, simplesmente, algo que está
determinado, a priori, por alguma condição anterior ou situação natural ou social. Assim, o mundo da
criança é aquele que, desde sempre e em cada caso, vai sendo apreendido em sua história original.
No mundo de envolvimentos e de relações de proximidade com pessoas e coisas, mais ou menos
familiares, a criança está sempre descobrindo a si mesma, o lugar onde vive, as coisas que manuseia, os
cheiros que gosta e as coisas que não gosta, suas preferências e dissabores.
Esta formulação considera dois aspectos essenciais para o entendimento das crianças. Por um lado, é
importante compreender o “mundo próximo”, aquele que se apresenta mais constantemente na
história da criança; por outro lado, se refere também ao entendimento próprio da criança – por mais
que ainda vago – do seu mundo descoberto nos envolvimentos no seu existir cotidiano. Assim,
conhecer a criança como ser-no-mundo se dá no horizonte do seu mundo familiar descoberto em seu
cotidiano. Somente conhecendo o mundo cotidiano pode-se melhor compreender a criança e o seu
mundo próprio e as suas possibilidades mais significativas de crescimento.
Assim, a relação mais significativa de cuidado entre adulto e criança se dá no cotidiano e na
compreensão dessa condição humana fundamental. Para ela, as considerações e delimitações
conceituais e a priori de idades ou fases de vida nunca podem ser suficientes, pois é somente na
proximidade do cuidado que as verdadeiras necessidades e condições individuais podem ser
apreendidas.
É no horizonte da necessidade do cuidado do adulto em relação ao viver da criança que surgem as
implicações conceituais de dependência e simbiose. Mas estas serão consideradas mais oportunamente
no decorrer do capítulo.

2. Criança: ser-no-mundo

Diversos são os modos de entendimento da criança no viver comum, mais ou menos do cotidiano,
que expressam características aparentes das crianças ou, ainda, que denunciam expectativas do adulto
em relação a ela.
Algumas vezes, curiosamente, elas parecem figuras estranhas ou entes naturalmente distintos do
humano destituídos de entendimento, sem querer ou que não sabem dizer o que se passa a seu redor:
“Criança não tem querer”, ”Criança não sabe o que quer”, “Criança não tem que falar”, “Ela ouve, mas
não entende nada”. Essas afirmações parecem referir-se a uma “espécie de gente” na qual o “sem” – a
negação do querer, do saber ou do falar – é o que importa; o que se pode encontrar no que afirmam é o
que falta, sempre um não de quem “não compreende”, “não tem querer” ou “não pode dizer”. Como
algo incompleto, como um estranho ou um E.T. , a criança terá que aguardar um momento futuro em
29

que, aí sim, estará pronta e constituída como pessoa já crescida que pode ser reconhecida
positivamente. Essa criança negativa que não é ou incompleta que é falta ainda pode ser vista quando
o adulto se encontra mais impaciente e “saca” de sua autoridade o lugar de submissão, recriminando-a:
“Você ainda é uma criança!”. Tanto ao ente estranho ou ao submisso falta um já é e sobra um vai ser!
Pode-se encontrar também a criança como um “adulto em miniatura, considerada assim pela sua
aparente pequena estatura. Dela são esperadas ou exigidas condutas “responsáveis” mais próprias de
alguém mais amadurecido. São muitos os modos como a criança “adulto em miniatura” pode ser
descrita. Em referência a um menino de seis anos, a mãe disse: “É o homem da casa. Já sabe fazer tudo
sozinho. Ele não precisa de ninguém para se cuidar”. Uma menina “miniadulta” de sete anos foi assim
descrita: “É uma mamãezinha. Já sabe perfeitamente o que quer”! Essas mães talvez quisessem
incentivar a independência das crianças, mas não podiam disfarçar a expectativa, ou exigência às vezes
exagerada, de responsabilidades inadequadas. Do “pequeno adulto” se espera que ele nunca falte às suas
obrigações e cumpra sempre seus compromissos; e as possíveis surpresas “infantis” não são bem
toleradas. Esse é o caso de uma mãe que se referia ao filho de 10 anos: “Eu não aguento quando ele
assume compromisso e depois desiste... Ele já tem idade, já tem responsabilidade para saber o que quer.
Como pode desistir tanto?!”. Aquela mãe estava inconformada com o seu filho, pois a sua expectativa
era de que o crescimento dos dez anos fosse condição suficiente para que a desistência e o descontrole,
características naturais humanas, desaparecessem e fossem substituídas pela responsabilidade. A
maturidade seria uma condição “natural”, comum e espontânea do crescimento. Nos casos, como os
apresentados, há uma recusa da própria criança, ela mesma, considerada a partir das possibilidades que
já pode experimentar, esperando-se que ela tenha que ser de um modo ainda não possível para ela.
De uma forma não muito distante, encontram-se também as “crianças exemplares”. Elas são descritas
por um modelo geral do que as crianças são, o que devem ou podem aprender e conhecer e como
devem se divertir. As pesquisas e resultados estatísticos que correlacionam idades e comportamentos
são de grande utilidade para a determinação da “criança exemplar”. Esta é uma criança sem vida, sem
história e sem mundo próprio e servem bem a todos os adultos que procuram garantias antecipadas
para o sucesso de seu cuidado. Pois, considerando as indicações gerais, eles podem decidir de modo
aparentemente mais seguro, por exemplo, sobre o melhor momento para o início do início da vida
escolar ou quais as atividades mais adequadas para oferecerem às crianças, ante a preocupação de que a
criança não “fique para trás” ou que “não perca oportunidades próprias para a sua idade”.
Por vezes, ainda se considera um certo tipo de “crianças ingênuas”. Nesta “inocência”, elas estão
liberadas, a priori, sobretudo de suas intenções e de seus erros, pois não sabem, não conhecem as
implicações do que querem e do que fazem. As crianças são inocentemente sem responsabilidade por
suas ações, sempre desprovidas de intenções negativas; para elas não é possível se opor ao outro ou
machucar alguém e as artimanhas e transgressões parecem não dizer respeito. A “criança ingênua” é
sempre desculpada, ora porque “ainda é uma criança”, ora porque “é menor e o outro maior deve saber
mais”

Mas, afinal, qual o modo mais adequado que nos permite aproximar o entendimento, o pensar e o
falar mais verdadeiros da criança e o cuidado com cada uma na singularidade de sua própria existência?
Nos primeiros choros e nas primeiras manifestações de agrado ou desagrado, nos primeiros sinais
interpretados e correspondidos pelo outro, os bebês já comunicam algo que somente eles mesmos, a
partir do próprio existir, podem expressar de si. Gradativamente, com a amplitude do próprio
crescimento, os recém-nascidos vão descobrindo outras possibilidades de expressar o que sentem e
entendem, o que querem e o que não querem. O entendimento de si e o cuidado do próprio viver não
devem ser vistos, originalmente, na perspectiva existencial, como uma conquista intelectual ou um
exercício intelectual aprendido com o crescimento.
Em alguns momentos, as crianças parecem não se conformar com a condição de “ainda não poder” ou
com os limites por elas vividos e, impacientes, querem logo “ser grandes”. Nesses momentos, elas
chegam a desafiar as ordens que devem seguir e reagem: “Por que eu não posso?” ou “Por que eu tenho
que fazer isto?”; ou, então, reclamam: “Você não manda em mim!” e “Eu faço o que quero!”. Outras
vezes, se assustadas ou amedrontadas, chegam a dizer “não quero crescer!”. Tais manifestações, muitas
vezes tomadas como simples reclamações de crianças malcriadas, revelam um entendimento de si e
constituem cuidado consigo. Com suas imposições, seus poderes ou seus temores, no modo pessoal
como somente cada criança percebe dela mesma, ela já se descobre sendo ela mesma. Quando isso se dá,
ao mesmo tempo, ela descobre também que pode ser diferente de como era antes. Ela já se compreende
no mais peculiar poder ser “diferente”: não sendo mais e sendo assim ela mesma. E, mesmo que não
tenha a clareza, ela já entende que existe em sua história própria. Então, ela pergunta de modo pessoal e
direto: “Como eu nasci?”, “Onde eu estava antes de nascer?” ou “A mamãe foi criança!?”, “O papai
também foi bebezinho?!”. Com esses questionamentos, as crianças buscam um entendimento maior de
si mesmas e da própria origem. Esse entendimento de si é originalmente referente ao seu próprio existir
e, portanto, nunca é geral. Assim, também, deve ser correspondido. A forma geral e conceitual por
meio de perguntas como “Quem é a criança?” ou “O que significa ser criança?” é sempre de um adulto
e não corresponde à busca pelo entendimento mesmo de crianças mais habituadas e solicitadas em um
mundo intelectualizado.
A partir de uma perspectiva fenomenológico-exis-tencial, é necessário que alguém já tenha algum
entendimento de ser criança para poder questionar ou responder sobre isso, pois nenhuma pergunta
sobre qualquer interesse pode ser articulada sem que haja uma inicial proximidade que desperte o
menor interesse. Não é possível que qualquer pergunta possa surgir da escuridão do total
desconhecimento. Assim, também, quando o adulto se questiona sobre “ser criança”, ele já se
compreendeu tendo já sido, ele mesmo, uma criança. Nesse entendimento se inicia a resposta para a sua
pergunta “Quem é a criança?”. Cada um de nós, adultos, quando faz essa pergunta, encontra a própria
condição existencial de ter sido um dia uma criança. Assim, os questionamentos “Quem é a criança?” e
“Quem sou?” estão intimamente ligados. Ser criança, ou já ter sido criança, correspondem à condição
existencial original de cada um. A condição de já ter sido um dia não corresponde a algo que passou,
mas permanece como referência significativa que constantemente pode vir à presença.

As formas de pensar a criança a partir de uma natureza diferente, fundamentalmente distinta da do


adulto, como um “ser” com características essenciais regidas por critérios específicos infantis são
enganosas. Essas interpretações esquecem o que não pode ser desconsiderado: a condição humana da
continuidade histórica, conforme apresentado em Ser e tempo . Considerando o peculiar significado da
30

continuidade histórica humana podemos compreender como o nosso “passado” se apresenta com o
vigor próprio e atual integrante de nossa existência “presente”, justamente como tendo sido. Assim,
entender a criança e a infância é fundamentalmente indissociável da compreensão de si, do
entendimento próprio de “quem sou eu agora”, de ter sido já uma criança que agora é um adulto.
Assim, entender a criança e a infância amplia a compreensão de ser si mesmo do adulto que, além de
perguntar “antes quando criança, como eu era (formulação do verbo ser), o que eu fazia, como reagia
ou como eu sentia?”, questiona “agora quem sou eu, como é a minha vida?”. Tanto o que volta à
lembrança, de algum modo pode ser novamente vivido, como relembrar a infância pode constituir uma
nova oportunidade para esclarecer possibilidades que não mais serão experimentadas. Nesse caso,
encontra-se a espontaneidade ingênua presente nas observações infantis que provocam embaraço nos
adultos.
Considerar a lembrança da própria infância como referência que amplia a compreensão da própria
vida e do tempo da infância não significa considerar a vida sob a determinação direta de fatos que antes
ocorreram. De modo diferente de buscar determinações, tão comum nas tentativas de explicar os
acontecimentos, relembrar a infância é o início do caminho mais significativo para o entendimento de
ser da criança, pois considera possibilidades existenciais já desveladas de fato, em um mundo
compartilhado com outros, adultos ou crianças, familiares ou distantes, favorecendo assim, uma
compreensão existencial mais ampla tanto da própria vida, como do tempo da infância e das
possibilidades vividas por outras crianças. Por outro lado, rememorar os modos de relação da infância
deve considerar também a possibilidade de esquecer e a percepção do próprio esquecimento; pois nem
tudo o que antes foi descoberto e desenvolvido pode ser lembrado. Preferências, inseguranças,
especificidades de relações ou os passos dados na direção de algumas conquistas da infância podem
permanecer na escuridão do esquecimento. Na distância provocada pelo esquecimento, o adulto pode
não mais estar familiarizado, não entender ou estranhar, de imediato, o que uma criança apresenta.
Mesmo assim, compreender melhor uma criança – filho, paciente ou aluno – está intimamente ligado a
ampliação do entendimento próprio de si.
Relembrar os modos de ser a criança que fomos um dia, assim como observar as crianças atuais, são
caminhos que iniciam a resposta da pergunta “quem é a criança”.

Numa passagem do poema “O Reno” (“Der Rhein”), um dos maiores poetas da língua alemã,
Hölderlin (1770-1843), já dizia o mais fundamental a respeito do ser humano:

Quando diz “Como principiaste, hás-de permanecer”, refere-se à condição mais fundamental de cada nova
existência: estar destinada a ser si próprio. Não aponta uma determinação de um destino, conteúdo ou algo
conhecido de antemão; o poeta considera “a necessidade”31 e “a disciplina”, mas enfatiza que “o mais
poderoso” (ou o que é mais fundamental) é, desde o princípio, o nascimento e o raio de luz. O nascimento e
o raio de luz originalmente juntos: o recém-nascido é aquele que no nascimento é já iluminado e iluminante
e, assim, existe. Isso é o mais essencial. Envolto de luz, iluminado e iluminante, o recém-nascido surge, sendo
a luz o que lhe é mais poderoso em seu próprio existir. Esta luminosidade já está diante da existência que se
oferece como uma abertura iluminada para tudo que pode aparecer, inclusive os sons.

3. Uma fenomenologia da criança

No poema não publicado “Infância”, de Miguel Perosa, psicólogo, professor e poeta, a existência na
infância é simplesmente completa e inteira. Isto é, as brincadeiras, os esforços e todas as emoções são
plenamente vividas quando ainda se é criança:

Quando eu era pequeno


Eu jogava bola
E o jogo e a bola
Eram toda a minha vida
Quando eu era pequeno
Eu brincava de mãe-de-rua
E o brincar e a brincadeira
Completavam a minha existência
Quando eu era pequeno
Cada pequena parte do mundo
Absorvia todo o meu esforço
Todo o meu riso, toda a minha tristeza
Quando eu era pequeno
A minha vida era profundamente vivida
Intensamente vivida
Absolutamente vivida.

O que o poema descreve do cotidiano na infância não aparece nas referências mais gerais das teorias e
pesquisas científicas. Nestas as crianças mais parecem figuras estranhas, seres diferentes, ou um tipo sem
entendimento, sem querer, sem fala, sem história pessoal e sem mundo próprio. Elas são descritas como
“mini adultos”, adultos em miniatura, ou como “inocentes” e “sem culpa”, para quem as artimanhas e
transgressões não dizem respeito; ou ainda são tratadas como “crianças cronológicas”, exemplares de
uma construção geral, a partir de resultados de pesquisas em que os parâmetros são a idade e os
comportamentos, aspectos isolados e sem vida própria.
Como tratado no capítulo anterior, o objetivo daqueles estudos é demonstrar como as crianças têm
que ser. Embora as considerem de formas distintas, partem de um ideal da essência infantil cuja
incompletude irá ser superada pelo adulto idealizado, como se a este pertencesse a existência humana
mais fundamental. Como as crianças elas mesmas são e como são as suas experiências parece
inadequado. Quem são, como podem ser, quais são os seus apelos próprios? Essas são questões que
permanecem distantes ao entendimento mais comum. Desse modo, as crianças permanecem também
sem ter para quem se mostrar e compartilhar.

No entanto, considerar tanto os des-entendimentos mais usuais e os teóricos apresentados, como a


descrição que o poema “Infância” aproxima do cotidiano, ainda não responde à questão sobre o que se
pode dizer de mais fundamental de cada criança, a partir dela mesma. O esforço aqui se faz para
aproximar primeiramente a criança em seus modos específicos de existir, desde sempre
sendo-no-mundo em totalidade. Por isso é que devemos dizer e descrever apenas o que se mostra dela
mesma, as peculiaridades dos seus modos de existir e de suas experiências vividas. Descrever mais
especificamente o existir da criança já no modo como ela vive o seu aí é o essencial. Portanto, isto é
mais importante do que considerá-la a partir de processos naturais – fisiológicos, psicológicos, sociais
ou cognitivos – ou de comportamentos aprendidos – que irão determinar que as crianças se
transformem em quem hoje não são.
Como compreender uma criança a partir do que já se mostra dela mesma? Para a compreensão das
crianças e da infância, as descrições fundamentais do existir-humano contidas no livro Ser e tempo
servem como excelente ponto de partida.
Ser criança não constitui uma “essência” diferente do existir humano. Assim, mesmo que pareça uma
tarefa de difícil execução, a existência na infância deve ser compreendida a partir dos mesmos
fundamentos do existir na adolescência, maturidade ou envelhecimento. Para isso, primeiramente,
temos que considerar que criança já é gente! Como os adultos:
A criança é sempre inteira, vive o seu tempo em sua totalidade e já se mostra na completude
de sua existência.
Em uma referência particular e não externa, cada criança já é desde sempre inteira, em cada momento
e junto ao que já se mostra. Entretanto, na completude de sua existência humana presente, ao mesmo
tempo, já se anuncia como ela poderá vir a ser, o seu futuro possível. Isto é, não é preciso esperar a
chegada de um futuro já determinado e previsto para que algo sobre ela possa ser dito, suas limitações e
possibilidades, o que ela quer ou o seu sofrimento que agora a faz chorar. Não é preciso considerá-la
como uma fase inicial de um processo futuramente mais completo, nem esperar que ela cresça para
compreender o que ela anseia ou teme. O advir de seu futuro e a formação de seu passado começam a
ser constituídos imediatamente, juntos. O agora, o futuro e o passado de cada criança desde que ela
nasce se constroem singular e conjuntamente.

A criança já é mortal.
A criança não é menos mortal do que o adulto ou o velho, por mais que não seja fácil pensar em sua
mortalidade. De modo radical, Heidegger, em Ser e Tempo, esclarece que32 “A morte é um modo de ser
que constitui o homem logo que ele existe”. Na sequência, o filósofo cita “Ackermann da Bohemia”, obra
medieval alemã revisitada no início do séc. 20 por K. Burdack: “Para morrer basta estar vivo” ou “Tão logo
como um homem entra na vida, ele é já bastante velho para morrer”.
No parágrafo seguinte , Heidegger diz:
33
“A morte em seu mais amplo sentido é um fenômeno da vida”.
Mas ser mortal não significa “ter chegado ao seu fim”, mas, sim, “ser relativamente ao fim”.
Ao homem enquanto “ser-ai” é inerente um “ainda não”, a falta em cada caso que ele será, isto é, “o
que falta” constantemente. Assim, o homem existe constantemente sendo já o seu “ainda não”, ele é
também sempre já seu fim. Essa formulação a respeito do ser mortal do homem explicita, ao mesmo
tempo, tanto a condição de ser relativa ao próprio fim, como o constante “ainda não” e o poder ser
pertencentes à cada existência. A criança como todo existir humano é essencialmente poder-ser, que se
mostra sempre de um modo tal, sendo também já limitada, pois sendo de um modo, não pode ser de
outro. A condição humana da falta é preenchida incessantemente e a cada momento em cada existência
e corresponde constantemente a cada solicitação. Diz Heidegger: “Mais elevada do que a realidade está a
possibilidade”.34
A partir deste entendimento pode-se dizer que a constituição fundamental do ser humano de
poder-ser (a possibilidade) e poder-não-ser (a limitação) não é inferior à realidade que dela surge.35
Assim, a vida dever ser sempre compreendida como um possível modo de ser inerente ao
ser-no-mundo e não como uma realidade já dada. Como condição original de ser-no-mundo, o
poder-ser se dá sempre em um mundo compartilhado e a ele é referido.

Como ser-no-mundo vivido em sua totalidade, desde sempre a criança é junto a.


Como a criança vive, o que ela diz ou faz é pleno de significado em um mundo que ela descobre
sempre afetivamente. A descoberta deste mundo não se dá no modo do conhecimento meramente
intelectual, pois ele é originalmente constituído e organizado pela significação e afetividade. Assim, é
sempre necessário compreender, de algum modo afetivo, o que se passa a sua volta. Nesse sentido, o
mundo da criança é tão completo ou incompleto como o de um adulto; e, se não é possível
compreendê-lo, não é por sua incompletude, mas por alguma falta de entendimento do adulto ou da
própria relação entre ele e a criança. Desse modo, a dificuldade de entendimento da criança não
comprova que ela é um ser humano ainda inferior ao adulto.
Desde recém-nascida, a criança compartilha um lugar, uma época e uma história. Ela nasce em uma
família. Assim é com cada pessoa, cada criança, não importa a sua idade. Como ela existe desde sempre
em um mundo de relações, para conhecê-la é necessário conhecer como é o seu mundo e os seus modos
de responder e corresponder a esse mundo; é necessário perceber o que aparece livremente nesse
mundo e os apelos de seu ser livre, seus sonhos e seus desejos do futuro que ainda permanece
encoberto, bem como as suas limitações.
Quando se diz que o mundo da criança é inteiro isso significa que ela vive inteiramente com os outros,
brincando com suas coisas e se ocupando, fantasiando, com seus medos e seus desejos; e é somente ela
mesma que pode vivê-los. Ela vive seu dia a dia e vê sua vida do seu jeito; às vezes é confusa e às vezes é
impressionantemente clara. Ela fala muito ou parece um “túmulo”. Foge do desconforto e da solidão.
Não gosta de ficar sozinha no escuro ou no fechado. Se mostra ou se esconde e, às vezes, engana ou
tenta enganar. E também se engana. A criança também sente culpa e não gosta de se sentir culpada.
Em qualquer idade a criança é responsável. Ser responsável quer dizer responder e corresponder de seu
modo próprio ao seu mundo. Assim, é importante que se diga: cada criança tem sempre
responsabilidade, ao contrário do que se costuma dizer.

O que se diz das crianças tem que valer para os adultos.


O que se pode atribuir de verdadeiro à criança é o que também cabe, primordialmente, a cada um de
nós, adultos; mesmo que somente depois isso possa ficar mais claro. Mesmo antes do nascimento,
quando uma criança ainda é esperada, a reconhecemos como sendo humana, como nós. Já mantemos
com ela uma relação especialmente diferente do modo como nos ocupamos e preocupamos com todas
as outras coisas; ante ela encontramos as nossas aflições e expectativas que já conhecemos em relação a
nós mesmos: nos preocupamos que ela não passe mal, que sobreviva e seja saudável, pensamos como ela
será, que futuro ela terá e quais serão as suas realizações; nos vemos tão implicados com ela que às vezes
chegamos até a não desejar a criança que ainda se anuncia.
Quando nos referimos a modos de vida na infância, estamos compreendendo possibilidades que
também pertencem à vida adulta, que antes nos foram próximas e agora permanecem como
experiências mais distantes. Nesse sentido, pode-se dizer que a melhor compreensão da infância amplia
a compreensão da vida adulta. Pois somos também o que podemos perceber somente depois, quando a
compreensão já envolve maior amplitude de possibilidades para além das mais próximas ou imediatas
descobertas iniciais na infância. A amplitude da compreensão envolve descobertas ocorridas em dias
longínquos e que ainda podem ser de modos diferentes aproximadas pelas lembranças, ou presenciadas
junto ao que se passa com alguma criança, nos cuidados familiares ou profissionais que se constituem
uma realidade constante ou intensa.
No entanto, as descobertas das crianças nem sempre são acessíveis e podem ser compreendidas.
Sabemos que quanto menor é a criança, mais encobertos são tanto o seu mundo, como o seu dizer.
Assim, quanto menor a criança, mais a sua expressão e comunicação podem ser alcançadas somente a
partir das relações de maior proximidade. O que faz a criança chorar, o que ela sente ou percebe ou
como ela está sendo tocada pelos acontecimentos, nem sempre podem ser esclarecidos de imediato.
Para isto são as pessoas mais próximas que se encontram em melhores condições: para perceber o que
está acontecendo. É na proximidade que a criança pode ser melhor compreendida e, assim, protegida.
Apesar do objetivo proposto de esclarecer como ser criança não é essencialmente diferente de ser
adulto ou ser adolescente, não podemos passar por cima da constatação que se evidencia em certas
expressões de uso comum: “Quando eu era criança”, “Eu não sou mais criança” ou “Estou como uma
criança”. Nessas expressões que apontam possibilidades anteriores não mais vividas já está evidente uma
diferença de ser das crianças. No entanto, esta não é uma diferença essencial da existência. O que se
pode perceber são diferenças dos modos mais característicos da tarefa de ser ou de como a criança existe.

4. A tarefa de ser criança

O que mais podemos dizer a respeito da criança que não a lese em suas possibilidades existenciais de
ser cada uma ela mesma, na totalidade de seu próprio ser-no-mundo?
Quando uma criança nasce, ainda na maternidade, no primeiro dia de vida, passado o momento
crítico do nascimento, quando surge a pergunta: “O bebê está bem, é normal?”. É muito comum que
familiares ou mesmo pessoas mais distantes perguntem “Com quem se parece o bebê?” ou que
imaginem numa antecipação sobre o futuro “Será que vai ser jogador de futebol? Vai ser atleta... Vai ser
doutor... Vai ser artista... Vai ser professor?...” Nesses momentos as pessoas parecem ansiosas com
aquilo que não veem e procuram afastar os incômodos trazidos pelo que não conhecem. Quem é
aquele recém-nascido que acabou de chegar? Assim, as pessoas se apressam em dar uma cara, uma
feição ao que não conhecem. Às vezes, já há uma torcida sobre o futuro do esperado, mesmo antes do
pequeno nascer: “Seria tão bom se ‘puxasse’ o pai” ou “ Seria bom que levasse o jeito da mãe”. O bebê
já nasce com uma cara!
Mas, logo-logo, já nos primeiros dias, o bebê começa a surpreender. Certa mãe se sentia inconformada
com o seu filhinho que dormia sem parar e mal acordava para comer. Logo começaram as suas
preocupações: “Será que ele vai ficar subnutrido? Não é possível ser assim: vai morrer de inanição”.
Outra mãe se estressa quando a sua filhinha “chorava sem parar”. Elas tinham a impressão de que algo
não estava certo. Algo tinha saído errado, anormal. Bebês não dormem tanto! Bebês não choram tanto!
Mas, quem disse isso? Quem decidiu? Na verdade, não foi ninguém. Mas aquelas mães, como todas as
mães, esperavam um bebê com uma cara, com um certo “jeitão”. E aqueles bebês eram muito diferentes
do imaginado antes.
Logo de início, cabe ao pequeno bebê mostrar-se, apontar quem ele é, desvelando e revelando-se. Esta
é uma tarefa que ninguém pode executar por ele. Nem por procuração. Do jeito que cada bebê existe,
somente ele mesmo pode ser. E para que isso se realize, não é necessário que ele saiba o que está fazendo,
que aprenda ou que decida fazê-lo. A ele cabe apenas e, sobretudo, realizar a tarefa de ser.
Assim se inicia a tarefa de todos os bebês, os que já estão aí, os que ainda virão, e os que já foram:
serem eles mesmos em seu mais peculiar e único modo. Mas essa não é uma tarefa simples, estando
desde sempre já em jogo um sim e um não, mostrar e esconder-se, aceitar e recusar, que advêm da
própria constituição do bebê como ser humano. Tanto a condição histórica, que se apresenta em seu
caráter de herança, como a tarefa de criar-se a si próprio pertencem inseparavelmente à existência
humana. Nessa tarefa, vivendo o seu presente mais imediato, a criança já vive o seu amanhã, seus
sonhos e desejos, bem como consuma a sua história e suas lembranças.
Essa não é uma tarefa como as outras: não tem lugar nem hora certa, não é determinada por alguma
coisa ou pessoa específica e não tem objetivo prévio. Isso é o verdadeiro movimento contínuo de vida.

CAP. IV
BRINCAR: A IMAGINAÇÃO, A FANTASIA E A REALIDADE

Muito se tem dito sobre o que é o brincar.


É senso comum que “criança vive no mundo da brincadeira”, “ser criança é brincar”, “brincar é ser
criança”, “brincar é coisa de criança”, “a linguagem da infância é brincar” ou “os adultos falam e as
crianças brincam”. Com essas expressões o brincar é entendido como uma atividade naturalmente
infantil, ou que a fala da criança não merece credibilidade. Porém, com isso não se entende melhor o
seu significado.
Há estudos que procuram demonstrar que a criança brinca porque brincar é uma atividade natural de
todos os seres vivos e concluem que não somente os homens brincam, mas também os animais. Outras
análises interpretam o brincar como uma função que serve para fins específicos como, por exemplo,
desenvolver e promover a socialização humana. Ou ainda, como é comum na psicologia, o brincar tem
a função de projetar e representar conteúdos inconscientes que determinariam os significados das
brincadeiras. Como esses significados não se mostram diretamente, eles seriam acessados por meio de
técnicas psicoterápicas que requerem o conhecimento dos mecanismos de transferência inconscientes.
As brincadeiras permitiriam, assim, que os chamados “sentimentos e desejos profundos originais”
irrealizáveis, bem como acontecimentos traumáticos, viessem à tona e pudessem ser interpretados. A
partir desse entendimento, a brincadeira é um jogo de aparências de conteúdos primários ou
traumáticos.
Nas técnicas ludoterapêuticas, brincar é um jogo que segue regras gerais determinadas, muitas vezes
associadas a conceitos de forças instintivas inconscientes e de sexualidade latente. Nesse contexto, cada
brinquedo é transformado em objeto de um prazer reprimido, sendo todos os brinquedos analisados
como objetos cujo verdadeiro significado não se mostra de imediato, para as crianças ou para aqueles
que desconhecem a chamada “psicologia profunda”. Assim também, tanto as brincadeiras como as
fantasias e os sonhos teriam um significado oculto e seguiriam as regras da satisfação de desejos. Uma
brincadeira com uma espada, por exemplo, expressaria a agressividade já dada e manifesta na escolha
“inconsciente” específica daquele objeto. No entanto, a escolha dos brinquedos ou de uma brincadeira
não é algo para se entender por uma análise prévia guiada pela lógica. As diversas ludoterapias,
orientadas por visões técnicas ou funcionais, não estão aptas a corresponder ao brincar das crianças
mais originariamente observado. Nessa simples observação, uma espada pode aparecer para a mesma
criança como uma arma e, em outro momento, pode servir como uma ferramenta para prender ou
martelar algo, ou ainda como uma coisa atraente para impressionar ou chamar atenção de outra
criança.
Assim, compreendendo as crianças como entes em desenvolvimento – que ainda não alcançaram o
status emocional, intelectual e fisiológico dos adultos e que vivem uma realidade incompleta –, o
entendimento do brincar e da brincadeira e dos mundos da fantasia e da imaginação se constituem
também a partir de uma visão distanciada da existência na infância. Nessa perspectiva, o brincar é
percebido como algo não verdadeiro ou não real, uma atividade característica infantil em oposição à
realidade que diferencia as crianças dos adultos.

De fato, pode-se observar que o brincar acontece de modo privilegiado na infância. É certo que as
crianças vivem e se entregam intensamente quando brincam. Elas brincam com qualquer coisa: com as
mãos, com os sons que a voz cria, com os brinquedos, com um barbante, um fiozinho de linha, um
papel e até mesmo os brinquedos manufaturados ou comprados. Tudo pode ser brinquedo! No
entanto, tal constatação deve ser bem compreendida para não levar a afirmações impróprias como “a
criança vive no mundo da brincadeira” ou que “a linguagem da infância é brincar”, enquanto a dos
adultos é a fala e que o brincar é algo naturalmente infantil. Não é correto pensar que brincar é algo
natural ou da natureza da criança, assim como dizer que a fala é algo natural do adulto. Pois, tanto a fala
completa a brincadeira das crianças como o brincar é uma possibilidade que pode ser compartilhada no
mundo do adulto. Tanto é possível falar quando se brinca, como brincar quando se fala. Não há
oposição entre brincar e falar. Mas, ambos se completam e pertencem conjuntamente à existência no
tempo da infância e da maturidade. Brincar e falar são possibilidades originais copertencentes da
existência humana. Enquanto a fala é expressão e comunicação que deixa manifesto o próprio
existir, o brincar é um modo de relação que descobre um mundo significativo mais original e cria
histórias pessoais. Desse modo, pode-se considerar que brincar e falar pertencem essencialmente à
condição humana existencial de se encontrar sempre em relações significativas.

A palavra infância é composta em sua origem etimológica por In-Fans, Fos. É comum entender o
prefixo In como de negação e o substantivo Fans como fala. Desse modo, infância significa “sem fala”.
No entanto, além de indicar negação, In designa também relação e Fans, Fos podem significar
claridade ou luminosidade (como nas palavras fósforo ou fosforescente). Desse modo, infância além de
ser referida a “sem fala” pode ser entendida em relação à claridade, à luz ou à luminosidade.
Não é raro que a escuta infantil e a precisão e a inventividade de certas falas das crianças surpreendam
os adultos. Quantos diálogos podemos relembrar!
– Uma menina de quatro anos pergunta a mãe, que se prepara para a viagem com os filhos: “E a babá
não vai?” A mãe responde pacientemente: “Ela não vai. Mas, a prima vai ajudar a mamãe com vocês” E
a pequena diz: “Então vai ter babá!” A mãe pedagogicamente pergunta: “Minha filha, você sabe o que é
babá?” E a filha: “Claro que sei!” A mãe indaga: “O que é, então?” E a pequena imperturbável
responde: “É a salvação!”. De onde a pequena tirou esta palavra? O que ela significava? A mãe logo se
lembra que este é o modo como se refere à chegada da babá quando está em casa sozinha com os filhos
de quatro e dois anos.
– Um menino de 4 anos, em pé, atrás de seu pai que estava sentado, expressa surpreso a sua nova
descoberta: “Papai, olha! Estou vendo o chão de seu cabelo!”
– Outro pequeno criativo, atendendo ao apelo insistente da mãe, esclarece: “Agora está na hora de
‘desbrincar’ e depois tomar banho!”
– Um avô, preocupado, pergunta ao seu netinho de dois anos que estava muito quieto: “Você está
bem”? O pequeno respondeu: “Não, vovô. Estou velho e estou cansado!” O avô intrigado com a
resposta depois lembrou que quando queria encerrar uma brincadeira, dizia para o netinho: “Estou
cansado, o vovô está muito velho!”
Esses são exemplos de apreensão, expressão e comunicação de um modo muito singular e perspicaz de
algumas crianças do sentido original da fala. Não é possível desconsiderar que em todos esses diálogos
as crianças compreenderam o sentido do que antes haviam escutado, expressando-o de modo original:
“a salvação” significava a pessoa que ajuda a sua mãe no cuidado trabalhoso com os dois filhos
pequenos; o “chão” como o lugar onde brotam, nascem ou sustentam, no caso, os cabelos na cabeça do
pai; assim como o sentido do desfazer uma brincadeira como a condição para seguir as ordens, na
criação da nova palavra “desbrincar”; e o cansaço ligado à velhice que o avô expressava quando não
estava mais disposto para brincar. A novidade dessas expressões, ou a nova relação do sentido das
palavras faladas pelas crianças, ampliaram o entendimento comum delas – considerado mais pertinente
à realidade –, ao ponto de provocar estranheza.
Há crianças que acentuam o seu pedido pela compreensão do outro solicitando de início: “finge
que...” Se uma criança diz “finge que você é uma criança, aí acabou a luz e você não via nada, aí você viu
que estava sozinho...”, ela está apenas pedindo “ponha-se no meu lugar” ou “imagine comigo”. Ela não
está pedindo que você saia da realidade ou viva de mentira. Diferentemente, ela solicita que o outro
compartilhe proximamente com ela a sua realidade mais verdadeira para que ela possa ser
compreendida.
Com o crescimento, pouco a pouco, as possibilidades de sentido e compreensão das palavras também
são ampliadas para além das referências pessoais mais imediatas, o que é mais característico da infância.
Desse modo, as palavras podem se tornar conceitos universais repetidos por muitos. No entanto, o
desenvolvimento das possibilidades de compreensão também encontra nas palavras o modo
privilegiado de expressão de relações significativas. Pois o dizer e as palavras aproximam e tornam
presentes significativamente acontecimentos ou coisas cuja realidade sensorial permanece distante. Este
é justamente o sentido do dizer comum: “crianças brincam e adultos falam”.
No entanto, também na vida adulta, a relação vigorosa das palavras como expressão de significados
mais originais pode ser percebida com maior clareza nas realizações humanas que fogem às experiências
mais habituais do viver comum. Estas são encontradas nas experiências chamadas mais criativas ou
inventivas, ocasiões em que a previsibilidade e consenso usuais e cotidianos são rompidos. Pode ser que
tais experiências sejam mais facilmente encontradas nos poetas, artistas criativos, gênios ou cientistas
inventivos. Mas isso não significa que pertençam exclusivamente a eles. O viver chamado “comum” é
mais preenchido pelas tarefas e ocupações habituais que tomam o tempo e distanciam as possibilidades
de corresponder mais originárias e as novidades e descobertas são encobertas pelos afazeres dos
compromissos prévios assumidos. Ao contrário, pode-se encontrar na dedicação à poesia a entrega ao
que é mais originário, assim como as crianças se dedicam ao brincar. O poeta Hölderlin, em carta para
sua mãe, em 1799, escreve: “A poesia é a mais inocente de todas as ocupações”.36
BRINCAR e BRICANCADEIRA vêm do latim VINCULUM, palavra que tem sua origem no
verbo VINCIO, IRE, que pode significar tanto ligar, atar, amarrar e prender como paralisar, tolher,
tirar e conter; mais ainda, encantar e seduzir.
Na origem, BRINCAR significa: ligar, fazer ligações, prender, encantar, enredar. Todo brincar e cada
brincadeira são modos de ligação. Dos mais simples aos mais elaborados. Uma folha de jornal numa
brincadeira pode ser usada para fazer surgir um barco que levará a imaginação para as ameaçadoras
águas do alto mar, ou para a oficina de trabalho, onde se prepara cuidadosamente uma viagem segura.
Ou ainda pode se tornar com uma hábil manipulação com cola e espetos de madeira, uma casa especial.
Não importa o que a criança usa, o fundamental é para que serve aquilo que ela pega no contexto de
uma brincadeira específica. Esta está sempre enredada no contexto que se apresenta de imediato na
própria brincadeira. Ao mesmo tempo, o contexto surge de um certo encantamento da criança pela
história que aparece. Assim, em cada brincadeira há sempre um encantamento que, ao mesmo tempo,
“sustenta” o próprio enredo. Esse não é uma representação de um passado vivido, pois em cada
brincadeira estão sempre “fundidos” originalmente, pela fantasia e imaginação, o que já foi
experimentado junto às expectativas de futuro. Desse modo, quando não há uma ligação intensa, o
brincar se torna sem graça, chato e parece que tem que acabar logo.

Brincar é sempre um modo de ser-no-mundo. Como um modo de relação original com o mundo,
brincar não significa estar fora da realidade. Nesta relação originária e vigorosa com o mundo, a
realidade pode aparecer com maior potência. Neste sentido brincar aproxima e familiariza mais
plenamente a realidade, pois apreende significados que as experiências mais comuns abafam. A
realidade considerada no brincar não se limita aos parâmetros do senso comum, que tendem a
uniformizar e imprimir o caráter considerado verdadeiramente real das coisas. Nas brincadeiras, as
coisas não se limitam a uma única realidade significativa e as relações pessoais também não se fixam em
determinações anteriormente estabelecidas. O brincar preserva sempre a liberdade e o vigor do poder
ser de modo próprio na relação significativa com o mundo.
A realidade no brincar pode apresentar situações ou experiências já conhecidas, mas sempre
ampliadas pelas possibilidades imaginadas ou desejadas. Desse modo, brincar amplia a realidade para
uma dimensão mais clara do possível e do impossível. Com isso, as crianças podem se sentir mais
familiarizadas ante seus estranhamentos de um mundo que de início pode parecer temeroso ou
ameaçador. Assim elas também podem se perceber mais potentes.

Brincar é coisa muito séria!


Heidegger, no livro Introdução à filosofia, 37 fala de uma maneira muito especial do brincar como a
possibilidade mais livre da relação do homem com o mundo. Ao explicitar o significado do brincar
(jogar), a intenção do filósofo é a análise do conceito filosófico de transcendência do mundo, a partir da
expressão “jogo (Spiel) da vida” de Kant (1727-1804). Mas, para melhor compreender essa expressão, é
necessário entender o que nela a palavra Spiel38 quer dizer, uma vez que na língua alemã, dependendo
do contexto, ela pode significar tanto jogar, como representar, tocar (instrumento) ou brincar.
Assim, foram descritos os diferentes contextos de significação: a partir de regras fixas que devem ser
seguidas (o jogo), do acaso (os jogos da sorte e do azar), da atuação com papeis definidos (a
representação), do agir sem responsabilidade dos animais e, finalmente, das crianças (do brincar).

Heidegger segue aprofundando a sua análise:

“O brincar tem relação com a compreensão de si mesmo e representa um acontecimento específico e


marcante. Na brincadeira (jogo), as regras e aquele que brinca (jogador) não devem apenas estar juntos, há
mais do que isso em questão (jogo): trata-se, antes de mais nada, de algo originário. Dizemos que há uma
certa alegria na brincadeira (jogo), mas não apenas nela ou apenas no próprio brincar (jogar)... A alegria
não se encontra apenas na brincadeira (no jogo), mas em toda a alegria – e não somente nela – em toda e
qualquer afinação encontra-se algo parecido com a brincadeira (o jogo)” (tradução da autora)39.

Poder-ser é ser-livre e brincar é a sua manifestação mais original. A liberdade aqui referida necessária
para o brincar não deve ser confundida como algo no âmbito do fazer o que se quer. Mas ela deve
compreender o âmbito dos significados possíveis a partir da livre manifestação da própria afinação
afetiva da criança que brinca. Todo jogo necessita de regras, mas as regras de cada brincadeira não se
constituem a partir das experiências comuns do mundo geral. Brincar preserva sempre a liberdade para
poder ser e realizar de modo original, sem seguir papeis ou regras anteriores. Assim, também para
brincar junto não basta estar junto e que as regras sejam decididas conjuntamente, mas que as relações
afetivas características sejam compartilhadas.
Há brincadeiras – como pega-pega, quatro cantos, estátua, roda, pula sela, escravos de Jó, caça ao
tesouro, esconde-esconde – nas quais não há brinquedos, mas regras gerais. Nesses casos, também é
necessário que as regras sejam reorganizadas a cada vez e que, em cada brincadeira, haja a aceitação das
novas regras. Trata-se de um requisito para o brincar junto.

“Nas brincadeiras, quando as histórias vão se alinhando, a criança descobre o mundo e a si mesma,
descobre o mundo em que vive e descobre o que pode e o que não pode. Quando brinca, a criança
experimenta – relembrando, modificando, inventando, atualizando – o que quer e o que não quer ante o que
se impõe e tudo o que aparece. É assim, deste modo que chamamos de criativo, que a criança cresce e se
constitui.
“No mundo do brincar e da fantasia, encontramos o lugar e a disposição máxima para a aproximação das
possibilidades próprias e do mundo, intrínsecos ao crescimento de cada criança. O brincar, como a fantasia,
é um modo de atuação em que a realidade ganha maior proximidade. Pois, na fantasia aproximamos e
‘experimentamos’ a realidade a partir dos limites do que nos é possível e não dos limites apresentados pelo
conhecimento geral, de todos. É neste sentido que na fantasia, a criança pode ficar mais amparada e a
realidade então aproximada tornar-se mais familiar e acolhedora.
“A FANTASIA APROXIMA E FAMILIARIZA A REALIDADE E AMPARA A CRIANÇA”40

A brincadeira liga, cria e descobre significados mais originais e não se limita a uma atividade concreta,
ou a fazer algo. Brincar é um modo de estar envolvido numa disposição afetiva específica com o mundo
e, assim, numa compreensão pessoal da realidade. Assim, cada brincadeira envolve sempre o que está
presente para a criança e o seu contexto específico e imediato é o que determina a “escolha” dos
significados específicos de cada coisa ou brinquedo, de acordo com aquilo que servem. Essas “escolhas”
se dão entre as possibilidades já descobertas anteriormente, que agora são ampliadas pela própria
fantasia da brincadeira.
Como o brincar é uma atuação livre, não é o brinquedo (a coisa) que determina nem o que é
necessário para a brincadeira da criança. O brinquedo não tem primazia sobre o brincar. É o brincar
que torna as coisas brinquedos. Isso significa que não brincamos porque os brinquedos existem, mas ao
contrário, os brinquedos existem porque brincamos. Os brinquedos não são objetos com significados
estritos. Mas é a partir das relações significativas engendradas em cada brincadeira que os brinquedos
ganham um significado único. Uma espada, por exemplo, serve como arma de defesa ou de ataque se a
criança está envolvida em um contexto de lutas ou de batalhas. Mas se ela está envolvida com uma
construção, a espada pode ser excelente ferramenta para apoiar ou prender algo.
Qualquer coisa que geralmente é reconhecida pela sua utilidade comum pode se transformar pela
fantasia e imaginação em algo diferente. Assim, também uma simples caixa de papelão ou de isopor, ou
uma mesa, podem ser tanto uma casa, um avião supersônico, um submarino, o fundo do mar, como
também uma prisão para os criminosos, um castelo, uma floresta ou uma caverna que abriga as pessoas
dos animais ferozes – tantos lugares quanto a imaginação permitir.

Para que a “realidade do mundo” possa ser revelada mais livremente nas relações que cada nova
brincadeira possibilita e favorece, a alegria é essencial. A disposição da alegria favorece a liberdade da
fantasia e do brincar para maior proximidade do mundo.
É importante ainda lembrar que brincar não é algo naturalmente infantil, que se dá igualmente em
todas as crianças. A possibilidade de brincar é dificultada por vezes pelo excesso de regras ou limitações
impostas desde cedo. “Esta criança não sabe brincar” ou “Preciso ensinar esta criança a brincar” são
falas ouvidas no cotidiano. Às vezes, as crianças também não se encontram dispostas a brincar. Crianças
tristes ou deprimidas não brincam. Com esse entendimento, a ONG41 conhecida como “Doutores da
alegria” foi fundada e se dedica a levar aos hospitais de muitos países o cuidado surpreendente da
manutenção do riso e da brincadeira para a recuperação da saúde de muitas crianças.
26 N. A. – O conceito mundo se constitui originalmente como fundamento ontológico existencial. Essa abordagem heideggeriana difere
de todas as análises e proposições tradicionais conhecidas na história da filosofia, sendo necessária para a compreensão do homem como
ser-no-mundo. No entanto, como este livro não é proposto como estudo filosófico, nele procuro apenas oferecer as indicações que
considero mais necessárias e relevantes para o desenvolvimento da compreensão das crianças, tendo como referência os fundamentos
fenomenológicos da ontologia existencial. O leitor que se interessar em aprofundar o entendimento da analítica de mundo heideggeriana
em Ser e Tempo pode seguir as indicações das notas de rodapé e seus desdobramentos.
27 Cf. Heidegger, Ser e Tempo, primeira parte, primeira seção, segundo capítulo, parágrafo 12.
28 Cf. Heidegger, Ser e Tempo, primeira parte, primeira seção, segundo capítulo, parágrafo 13.
29 E.T. – do filme de ficção de Spielberg O Extra Terrestre, 1982.
30 Cf. Ser e Tempo, primeira parte, segunda seção, quinto capítulo, parágrafo 73.
31 A palavra Noth pode ser traduzida por necessidade e também por penúria.
32 Cf. Ser e Tempo, parte I, segunda seção, primeiro capítulo, parágrafo 48, página 26.
33 Ser e Tempo, parte I, segunda seção, primeiro capítulo, parágrafo 49, página 26.
34 Cf. Ser e Tempo, Introdução, segundo capítulo, parágrafo 7, “O método fenomenológico da investigação” – C. “O conceito preliminar
de fenomenologia”, p. 69.
35 Cf. Ser e Tempo, primeira parte, primeira seção, sexto capítulo, parágrafo 43, “Ser-ai, mundanidade e realidade” e segunda seção,
quarto capítulo, parágrafo 67 “O teor básico da constituição existencial do ser-ai e o prelineamento de sua interpretação
temporal”.
36 A respeito dessa passagem, em Hölderlin e a essência da poesia, Heidegger diz: “O poeta se mostra na forma modesta do jogo (brincadeira).
Sem limitações inventa seu mundo de imagens e permanece ensimesmado no reino da imaginação. Este jogo (brincadeira) escapa assim da
seriedade das decisões que a cada momento de um modo ou de outro nos compromete”.
37 Segundo capítulo, “Visão de mundo e ser-no-mundo”, parágrafos 35, “Ser-ai como ser-no-mundo”, e 36, “Mundo como ‘jogo da vida’”, se
detêm no que significa homem como ser-ai e como o compreender – pertencente a todo ser-no-mundo – já acontece sempre numa
totalidade de significados de mundo. Essa compreensão do mundo já transcende aos “entes mesmos”, cada um, pois estes já aparecem e
significam em meio à relação com a totalidade do mundo. O que se chama aqui “transcendência” dos entes em si, Kant entendeu o
mundo existencial com a expressão da linguagem comum “jogo da vida”.
Heidegger considera que a expressão “jogo da vida” certamente brotou do fato de que o coexistir (ser-com) do homem histórico oferece a
perspectiva de uma multiplicidade colorida, assim como a possibilidade de transformações e casualidades, e não de um formato único.
Heidegger pergunta se aquela multiplicidade de afinação e de possibilidades significa, então, que o mundo de ser-no-mundo tem o caráter
de “jogo”. Como “jogo da vida” o filósofo entende o modo da atuação mais livre da existência humana que liberta o sentido do ser
e supera os entes. Isto é, somente quando nós superamos os entes, que podemos estar livres para nos relacionar com o próprio ente que
somos, mais propriamente como poder-ser. Desse modo, o conceito de transcendência significa a superação dos entes em si, não
ocasionalmente, mas enquanto a própria existência (constantemente) numa relação específica com a totalidade dos entes. Enquanto
ser-ai, temos sempre que transcender aos entes para nos encontrar juntos ao ente que somos, sempre numa totalidade de mundo. Assim é
que sendo abertura que constantemente tem que superar os entes e se encontrar consigo está a essência do ser-ai como caráter de jogo.
Esse jogo não é um jogo de azar, em que se joga tudo ou nada, mas ele significa “o modo de ser mais livre do Dasein”. Nesse sentido,
Heidegger também compreende o jogo (brincar) como “jogada do próprio existir”.
“Caráter de jogo” significa ser-no-mundo e a expressão “jogo da vida” significa a condição fundamental de ser-com do homem (Dasein)
histórico que em sua existência constitui a própria historia. Conjuntamente também o mundo, como totalidade do que é apreendido,
tem o caráter de jogo, pois também ele nunca pode estar previamente determinado nem permanecer tal qual se deu.
38 A palavra alemã Spiel, nas traduções em português, geralmente aparece como jogo. Mas, penso que a melhor tradução, no caso especial
do parágrafo 36, é brincar, pelo próprio caráter ressaltado de maior liberdade do ser-no-mundo, que caracteriza o modo do brincar das
crianças. A língua portuguesa, diferentemente da alemã e de outros idiomas, como o inglês, francês ou o espanhol, oferece a riqueza de
palavras distintas, cujos significados apontam para possibilidades humanas muito diferentes: brincar e jogar, brincadeira e jogo ou
representar papeis. Assim, não há necessidade de explicitação do contexto para entender quando se diz “Comece a jogar!” ou “Não é hora
de brincar!”. O mesmo ocorre com a representação no teatro, que envolve sempre regras de papeis estabelecidos: “Nem parece que está
representando!”. Assim, mesmo na brincadeira de teatro ou de campeonato de futebol, isso não é a mesma coisa que representar no teatro
ou disputar um campeonato.
39 Ainda no parágrafo 36, Mundo como “jogo da vida”, o filósofo ressalta:“A interpretação que o brincar traz pressupõe necessariamente uma
associação entre o fenômeno do mundo e o próprio ser” e “Esta interpretação do jogo leva-nos a considerar também o brincar das crianças que, no
seu sentido próprio, é autêntico no sentido positivo, isto é, nós o reconhecemos no horizonte de uma ocupação considerada séria dos adultos”
(tradução da autora).
40 Cytrynowicz ,M. B., em “O mundo da criança – O mundo do brincar e da fantasia” – ver. Daseinsanalyse nº 9 – ano 2000, ABD.
41 Organização não governamental fundada pelo ator Wellington Nogueira, em 1991, a partir da referência internacional Clown Care
Unit.
CAP. V
O CUIDADO E A RESPONSABILIDADE DO ADULTO

1. A responsabilidade do adulto

Cabem aos adultos as escolhas inicias que configuram e conduzem desde a espera pelo nascimento de
uma criança até aquelas que se dão nos primeiros anos de vida e ao longo do crescimento. Os adultos
aqui considerados são todos aqueles a quem cabe o cuidado e a responsabilidade pelo que a criança
ainda não pode plenamente compreender e realizar: pais, familiares, professores, educadores ou tutores.
As palavras “responsável” e “responsabilidade” têm origem no verbo responder. O responsável é
aquele que pode responder e a responsabilidade é a condição ou qualidade do responsável. Responder
significa , originalmente, comprometer-se, garantir por seu lado ou afiançar. No cuidado com a
42

criança, os pais e familiares respondem pela vida da criança. Há uma relação entre responsabilidade e
autoridade, cuja legitimidade é reconhecida mutuamente pela criança e pelo adulto que cuida. Ser
responsável por alguém e ser autoridade é possível para aquele que tem um entendimento mais amplo
do viver e do mundo. Adultos responsáveis podem responder e corresponder, antevendo e antecipando
possibilidades que ainda não estão desveladas suficientemente para a criança, porque eles já “têm mais
experiências”. Realizar escolhas do cotidiano e propor melhores e mais adequadas condições que
orientam a vida da criança, como evitar perigos e situações de riscos desnecessários, podem ser bem
entendidos a partir do esclarecimento a respeito do sentido do cuidado do terapeuta daseinsanalista
para com o seu paciente, feito por Boss:

“Isto se dá quando o terapeuta persiste o bastante, imperturbável e em proximidade conveniente junto ao


paciente, até o empréstimo temporário de sua liberdade até que este possa, novamente, ele próprio, adotar
uma conduta mais livre em face das coisas do mundo”.43

Não se pensa aqui que a criança existe literalmente como um paciente em persistente sofrimento.
Mas, que a afirmação de Boss serve também para esclarecer que a criança – quando ainda não descobriu
e experimentou em amplitude maior as suas possibilidades existenciais necessárias para as suas próprias
decisões – requer o cuidado de quem possa melhor orientá-la até que, gradativamente, alcance uma
condição de maior autonomia. Neste cuidado, a participação dos responsáveis próximos ao mundo dela
é necessária para decidir o modo de vida das crianças, isto é, a rotina, os relacionamentos, a escola e
atividades gerais, assim como a passagem de uma para outra. Para isso, a necessária responsabilidade dos
adultos para decidir é uma tarefa adequada quando consideram as possibilidades específicas da criança e
observam as condições do seu mundo em volta.
Como a existência humana na infância é, especialmente, marcada pelas descobertas constantes da
criança diante das frequentes novidades, de si mesma e do mundo em volta, a presença familiar dos
adultos mais próximos protege e encoraja, tornando o mundo mais seguro. Hannah Arendt diz:

“Na medida em que a criança não tem familiaridade com o mundo, deve-se introduzi-la aos poucos a ele;
na medida em que ela é nova, deve-se cuidar para que essa coisa nova chegue à fruição em relação ao
mundo como ele é. Em todo caso, todavia, o educador está aqui em relação ao jovem como representante
de um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade, embora não o tenha feito e ainda que secreta ou
abertamente possa querer que ele fosse diferente do que é. Essa responsabilidade não é imposta
arbitrariamente aos educadores; ela está implícita no fato de que os jovens são introduzidos por adultos em
um mundo em contínua mudança. Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva
pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação.”44

Como elucida a filósofa, todos aqueles que cuidam da educação infantil respondem também pelo
mundo e pela sua continuidade. Tal responsabilidade pela criança se dá primeiramente na vida familiar,
no âmbito dos cuidados pessoais; depois, na escola, quando o convívio com os outros é ampliado e as
descobertas de si a partir de novas solicitações são ampliadas. Com novas possibilidades do convívio que
surgem nas relações com os outros inicialmente estranhos, outras formas de amizade e de autoridade
não familiares são estabelecidas. Além dessas, as crianças também descobrem novas possibilidades
próprias, como os interesses pelo aprender mais geral e a satisfação de conhecer e do fazer comum,
como atividades do lazer dirigido, dos esportes e das artes. Assim, a vida escolar é oportunidade, tanto
para a ampliação do convívio, como para a descoberta e o desenvolvimento pessoal de aptidões.
Crescendo, a criança descobre o mundo geral – que pertence a todas as pessoas – e o seu mundo
particular em seu próprio modo. Estas considerações apontam para a importância do cuidado
responsável dos adultos próximos, que serve como orientação para o crescimento da criança, pois
antecipa e amplia a visão do futuro que na infância é mais restrita. As possibilidades antecipadas no
cuidado do adulto agem, junto às condições já descobertas pela criança, para o seu crescimento.
Muitas vezes, se diz que o adulto cuida da criança porque esta é dependente. Mas a dependência não
é, isoladamente, uma característica da criança. Melhor dizendo, ela é um modo da relação entre adultos
e crianças. Nessa relação, de um lado, o adulto compreende de algum modo as limitações do viver da
criança e, ante o que ela ainda não alcança, ele a estimula a cuidar da sua existência.45 Assim, o adulto
considera e antecipa, apresentando o seu entendimento daquilo que ainda não foi revelado à criança.
Para ela, ainda é essencial em seu viver cotidiano que alguém antecipe o que está para além do seu
entendimento imediato, tanto para reconhecer as suas necessidades e o melhor caminho para
satisfazê-las, como para encontrar o apoio e encorajamento para descobrir com mais segurança o que
ainda é novo. Em situações extremas, uma criança pequena pode chegar a morrer pela falta desse
cuidado.
Pode-se pensar que a disponibilidade para receber e compreender o que vem ao encontro – o novo ou
o que falta – é uma condição que na criança está frequentemente relacionada à presença cuidadosa do
outro. Na infância, a autonomia do viver é mais restrita. O sentido da codependência entre adulto e
criança desaparece quando se atribui aos adultos “todo o poder e conhecimento” e, à criança, a
impotência e a ignorância. A falta que pertence à criança desde o nascimento não significa “fragilidade
infantil”, uma característica que se extinguirá com o desenvolvimento ou que será substituída ou
ultrapassada com a idade madura. Essa interpretação é uma má compreensão tanto do viver da criança,
como do viver do adulto. Se o recém-nascido ou o bebê – que ainda estão, ambos, começando a
descobrir o mundo e a desenvolver a história própria – constituem um mistério a ser desvendado, o
misterioso se dá também para o adulto. Pois, ante o que ainda não se mostrou e o que falta, ante o que é
misterioso e não assegurado, o adulto solicitado pelo cuidado da criança pode corresponder e se
responsabilizar.
Por outro lado, a responsabilidade do adulto não significa que ele pode qualquer coisa, como prever
ou determinar o futuro. Mas ele cuida da criança do modo como pode; ele não pode tudo, ou qualquer
coisa, e não é ele quem decide sobre os limites do possível. Pois, o modo do cuidado está
intrinsicamente relacionado à própria história do adulto, ao seu entendimento de si e do mundo e de
suas decisões frente ao futuro. O que ele pode, o que almeja, suas limitações, o que não quer e o que
não suporta delimitam o seu cuidado de adulto. Mas, somente cuidando é que ele pode descobrir as
possibilidades e limitações de seu próprio cuidado. Para isso é necessário que ele não esteja indiferente e
se encontre suficientemente disponível para as descobertas e acontecimentos imprevisíveis que
acompanham o crescimento singular da criança.
Assim, ao assumir para si as tarefas dos cuidados com a saúde, com o bem-estar e com o bom
crescimento da criança, além das implicações pertinentes, o adulto quando se depara com condições
ainda não desenvolvidas, defronta-se também com a sua própria possibilidade de se responsabilizar.
Assim, ao mesmo tempo, ele cuida de seu próprio existir. Isto é, quando percebe o que falta à criança e
como pode corresponder nessa falta, ele também está cuidando de si próprio, mesmo que não atento
para isso. Ao atender de bom grado à solicitação, o adulto se preocupa em afastar o que atrapalha para
ele e para a criança e promover o caminho mais sadio para o crescimento. No entanto, além de
favorecer, as suas escolhas podem também restringir ou, mesmo, comprometer a direção do melhor
crescimento na infância. Isso pode ocorrer quando o adulto considera somente as ofertas do mundo,
não observando a criança nas suas singularidades, ou não se dispondo a corresponder, se recusando ou
ignorando as solicitações advindas dela. Isso acontece quando a responsabilidade chega como uma
carga pesada, evocando as próprias limitações e provocando estranheza, angústia, ansiedades ou raiva.
É importante ressaltar ainda que as escolhas do que se quer promover e a oferta de atividades não
asseguram os resultados do cuidado responsável. Antes, este se encontra no acompanhamento próximo
que tem em vista o des-envolvimento dos modos e recursos mais possíveis para a criança; é a partir desse
acompanhamento que se pode avaliar se algo, um lugar, uma atividade ou uma ocasião são
favorecedores ou não, ou tarefa possível para ela. Assim, o adulto pode antecipar possibilidades as quais
a criança ainda não descobriu. Nesse sentido, pode-se dizer que ser criança requer ser “representada”.
Representar, nesse contexto, é um modo próximo e significativo de compartilhar que toma para si a
responsabilidade de tornar presente e aproximar algo ainda distante para o outro. Representar não é
algo natural, nem obrigatório, mas é um modo do agir que envolve a compreensão que se tem do outro
em cada caso. Representar não se limita à relação entre crianças e adultos, mas também ocorre nas
relações entre adultos, como nas procurações que reconhecem legalmente a representatividade de um
pelo outro, ou nas relações informais. Entretanto, nas relações entre adulto e criança, a representação é
mais constantemente necessária, pois aproxima não uma coisa ou um fato, mas um certo caminho a
seguir, cuja decisão não pode ainda ser da própria criança. O “segredo”, isto é, o aspecto mais delicado
da representação é descobrir quando, como e o que antecipar para bem representar a criança. Os pais,
por exemplo, representam os filhos na época da infância nas decisões sobre a escola, nos afazeres do
cotidiano ou nos assuntos de saúde.

Mas, não há um padrão ideal para “representar”, pois não há como assegurar as suas consequências.
Quando o adulto não considera as condições próprias ou as necessidades da criança, negando as suas
possibilidades mais próprias, o cuidado pode ser:
– Mais autoritário e extremamente exigente, impondo regras que devem ser rigorosamente seguidas;
– Indiferente, omitindo posições e desconsiderando necessidades pessoais, na espera pelo curso
natural do desenvolvimento;
– Pouco seguro, encontrando na criança a oportunidade para aproximar o reconhecimento ou a
aprovação geral dos próprios esforços;
– Fragilizado, quando mima e procura poupar dificuldades e sofrimentos, atrofiando possibilidades
próprias e o fortalecimento da criança.
Diante desses modos de cuidar, as crianças podem se tornar inconformadas, teimosas, medrosas,
revoltadas ou apáticas. Mas, também podem não aceitar a direção proposta e expressar que necessitam
de algo diferente. “Não quero mais morar nessa casa” ou “Não gosto mais de você” são expressões que
apontam sua insatisfação.
O cuidado ainda pode ser caracterizado pela falta de paciência, pressa ou receio de não acertar.
Também nesses modos, as necessidades, solicitações e possibilidades existenciais infantis – que não são
abstrações, pois podem ser percebidas pelo olhar cuidadoso – ficam encobertas.
Por outro lado, a conduta mais paciente de quem sabe aguardar pelas oportunidades e pelo que é
possível e de quem está à frente, confiante e próximo da criança, estimula e provoca as descobertas
infantis e favorece o próprio cuidar. Mas, ter cuidado ou cuidar de alguém não tem o sentido de poupar
experiências desagradáveis ou determinar um caminho. O cuidado mais original é aquele que ajuda a
criança a se defrontar com suas limitações para que possa ultrapassar momentos ou aspectos dolorosos
de falta ou de perda de confiança. Pois, quando percebe suas limitações e se sente ameaçada pelos riscos,
a criança pode se abalar com a sua vulnerabilidade e sentir medos variados de pessoas e coisas. Assim, o
cuidado original aponta no final para o regozijo, a alegria, o riso, o contentamento e a comemoração de
crescer.

2. O adulto e o crescimento da criança

Para Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), “assistimos sempre a uma relação entre adulto e criança e não
descrevemos o caráter da criança”46.
No envolvimento entre adulto e criança, ambos encontram oportunidades para descobrirem a si e ao
outro e para o crescimento próprio. E as limitações de um afeta ao outro, que também não estará livre
para compartilhar possibilidades mais amplas do próprio crescimento.
A profunda ligação entre adulto e criança torna mais difícil compreender o que vem de um e o que é
do outro. Quando não há uma mínima atenção para essa diferença, o cuidado com o próprio viver do
adulto facilmente se interpõe ao cuidado da criança. Nesse cuidado, o adulto pode ser movido muito
mais pelas questões que dizem respeito a ele do que por aquelas concernentes à criança. Isso pode
ocorrer de modos distintos ou com intensidades variadas, nas imposições de regras, de “necessidades” e
ações ou na ausência de orientações claras de conduta ou de princípios.
Quando pais orientam seus filhos a resolverem suas desavenças pelo modo mais belicoso do
enfrentamento físico, ou de outro modo “mais tolerante” do diálogo ou da procura pela intermediação
de um adulto, nos dois casos, podem estar atendendo mais às suas próprias necessidades e valores do
que às necessidades, aos medos e às possibilidades circunstanciais da criança de lidar com os próprios
conflitos. Como o adulto cuida da criança do modo como pode e a partir das marcas de sua própria
história de vida – sucessos e realizações, decepções, frustrações e de seus projetos –, esse cuidado está
orientado sempre pelo que ele não quer e pelo que ele não suporta, por sua cautela ou por seu arrojo.
Muitas vezes o adulto acredita que o melhor cuidado é aquele que dá à criança a possibilidade de
realizar o que ele mesmo não pode, ou ao contrário, para que a criança não passe por aquilo que ele
passou.É por esse intenso envolvimento que cuidar de uma criança não é uma tarefa fácil. No caso da
mãe que, em descontrole, referia-se ao seu filho de oito anos: “Como ele pode se descontrolar tanto?”
Ela reclamava que seu filho estava muito inquieto, bagunceiro e que desobedecia às suas ordens, sem
poder ver a sua própria situação emocional advinda de sucessivos desencontros amorosos.
Em algumas situações, o adulto busca acalmar inquietações que o afligem. Para isso, ele pode provocar
uma proximidade que, artificial em seu exagero, somente o afasta da criança que permanece distante.
Dose exagerada ou estranha de expectativas aparece quando as crianças são incentivadas a perceberem e
se manifestarem de um modo que nem sempre condiz com os seus mais próprios interesses. “Não é
gostosinha aquela “gatinha”?! Você quer namorá-la?”, “Mocinha tem que se cuidar! Os garotos não
gostam de meninas sujas e feias”, “Já tem namoradinho na escola?”. Nesse modo, o adulto não percebe
que as crianças não encontram ressonância para os seus próprios apelos.

O que acontece quando a educação segue uma orientação que não admite regras ou referências
claras?O que acontece quando “tudo pode”, “tudo é relativo” ou “a criança é quem decide”? Quando o
adulto não se permite dizer o que para ele é mais importante, a criança percebe a omissão e fica insegura
ou confusa. A criança, então, perde a oportunidade de encontrar um apoio seguro para poder se lançar
ante o que lhe é novidade. Na referência de Ser e Tempo, pode-se dizer que esse apoio oferece a clareza
de um referencial para a criança experimentar a condição de pertencer a um mundo compartilhado
com os pais (ou outros adultos próximos) e constituir significativamente a sua própria história. Isto é,
referências claras conferem à criança a segurança de se encontrar num mundo compartilhado que a
acolhe em sua própria condição de não segurança. Esse acolhimento favorece a que ela se defronte com
novas possibilidades antes não experimentadas, para constituir a sua história própria.
Crianças privadas da clareza de um referencial próximo e significativo podem se perder ou permanecer
inseguras, sem conseguir decidir o que podem e o que não podem, ou impacientes, “batem cabeça” na
procura de suas decisões até que, por força de imposições ou impedimentos advindos do mundo
público e geral, descobrem que nem “tudo pode”, que nem “tudo é relativo” e que “não é tudo que elas
decidem”. Não é raro, nem de se estranhar, quando crianças ou jovens adolescentes chegam aos
consultórios dos psicólogos sofrendo por não poder expressar o que desejam de si, nem para si mesmos,
ou inconformados com as “imposições” do mundo. Como a presença de alguém “mais velho”, que “já
viveu” e “já sabe’, estimula a criança a se lançar de modo confiante nas novidades do próprio
crescimento, na falta do adulto comprometido, elas perdem a oportunidade de compreender o que
ainda não conhecem de modo mais seguro, cabendo a elas se lançarem sem respaldo nas experiências
desconhecidas, ou evitá-las como ameaças. Desse modo, a falta do adulto pode provocar profundo
sofrimento, inseguranças e frustrações, que marcam a percepção de si mesmas e a sua compreensão do
mundo em torno.
A presença do adulto comprometido que oferece parâmetros e referências para a criança é um dos
aspectos mais fundamentais no crescimento infantil. Assim, quando ele falta, as crianças se tornam
carentes da segurança necessária para a orientação de suas procuras infantis, ficando também
comprometida a possibilidade de sua confiança pessoal.
42 Cf. Dicionário de Latim-Português, pág. 999, e Novo Dicionário da Língua Portuguesa, p. 1236.
43 Cf. “Introdução a Daseinsanalyse”, Revista Daseinsanalyse, vol. 8, referindo-se ao trabalho do terapeuta daseinsanalista “imperturbável e
em proximidade” com o paciente, considera para a possibilidade de um relacionamento mais amplo com o mundo, o “...empréstimo
temporário de sua liberdade”.
44 Cf. Entre o Passado e o Futuro, cap.5, “A Crise na Educação”, p. 239.
45 Cf. descrição em Ser e Tempo, primeira parte, primeira seção, quarto capítulo, parágrafo 26: “O “ser-ai-com” dos outros e o “ser-com
cotidiano”, como o cuidado com o outro que não o substitui mas “que se lhe antecipa em seu poder-ser existencial não para lhe retirar o cuidado e sim
para devolvê-lo como tal”.
46 Cf. Resumo de cursos Psicossociologia e Filosofia, p. 215.
CAP. VI
A TEMPORALIDADE NA INFÂNCIA E O TEMPO DA CRIANÇA

1. Tempo e crescimento

Compreender inicialmente a temporalidade na infância é necessário para compreender também o


tempo da criança.
É com a criança e a partir dela que o tempo se instaura em cada existência, constituindo desde sempre
a questão humana mais fundamental. Na criança o tempo se enraíza. Mas não é a criança que cria o
tempo, nem que o possui. Ser temporal não é uma questão infantil, mas humana.
Crescer e se desenvolver tem como fundamento ser temporal, isto que implica no caráter original de
“vir a ser” da existência humana. Esse caráter temporal fundamental de vir a ser, engatado na infância e
com a criança em cada caso, decorre na criação e continuidade de uma vida.A partir do nascimento, o
que se realiza sempre se dá numa específica continuidade e permanência. Qualquer criação humana,
movimentação e realização, desabrocham e acontecem singularmente numa certa duração temporal.
Duração temporal não é fase de desenvolvimento. Fase é um segmento entre dois pontos previamente
definidos e compostos normalmente pela sucessão de fatos ligados numa relação determinada ou
dentro de uma estrutura conceitual determinante. Duração existencial significa continuidade e
totalidade especificamente em cada caso. Esse significado está presente na expressão “duração de uma
vida”, que é o mesmo de “tempo de uma vida”. As duas expressões – duração e tempo – significam o
mesmo, o acontecimento de uma vida. Como podemos compreender mais claramente o tempo como
acontecimento de uma vida na infância?
Há nuances da experiência de tempo que ficaram distantes para o homem das épocas moderna e
tecnológica. O que hoje é apenas tempo, para os gregos da antiguidade constituía três experiências
distintas: CRONOS, KAIRÓS e AION.
CRONOS é o tempo que ainda vigora, delimitando as experiências do homem atual. É o tempo que
se conta, igual para todos, de todo mundo e das coisas comuns, dos horários e dos compromissos.
“Ninguém” vive fora desse tempo e o homem vive preso a ele. É o tempo do convívio geral na
sequência dos fatos, dos prazos e das urgências que os crono-gramas medem e que norteiam as ciências
e as noções de desenvolvimento da psicologia. O tempo crono-lógico se dá num mundo mensurável de
medidas mais objetivas e privilegia as regularidades e a duração linear, como os segundos, minutos,
horas, dias, meses, semestres e anos, nivelando assim as sequências prévias dos acontecimentos do que
vem antes e depois.
Em resumo, CRONOS e o tempo crono-lógico atual caracterizam-se por serem:
– Geral, regular e igual para todos;
– Pontual e dividido em partes iguais;
– Sequencial e linear;
– Mensurável.
Esse tempo serve, assim, para a determinação prévia dos fatos da vida das crianças, como, por exemplo,
a época normal para a aquisição de habilidades ou a idade certa para o início da escola. Mas,
diferentemente do que se costuma pensar, esse tempo não é natural, claro ou espontâneo e as crianças
precisam aprender as noções de limites do tempo cronológico, o que nem sempre é coisa fácil para elas.
Para aprender sequências cronológicas, como as dos dias, são necessárias inicialmente associações com
experiências mais familiares como com cores ou tarefas cotidianas vividas de modo sequencial.
Por outro lado, pode-se observar que as sequências temporais de agora, antes ou depois já estão
descobertas para as crianças de modo mais genuíno. Quando uma criança deseja muito a chegada de
uma pessoa querida, um presente ou um momento especial, ela pergunta se já chegou o “agora”, se “já é
amanhã” ou se já passou o “daqui a pouco”. Isso não significa que haja uma deficiência de compreensão
ou uma confusão mental, que não sabe o que é “agora”, “amanhã” ou “daqui a pouco”. Contudo,
pode-se pensar que as noções de tempo cronológico são bastante restritas para abarcar tanto a
intensidade da chegada do aguardado como a força de algo que somente depois se realizará, que já se
constituem enquanto espera. Isto é, a presença do que será realizado depois, já se impõe em sua espera e
assim é apreendida. Mas, para uma criança que vive uma espera, é sempre já oportuna a chegada do que
ela espera. As noções do tempo cronológico são insuficientes para descrever a eternidade dos momentos
que antecedem tal espera. A oportunidade da chegada do esperado ou a eternidade dos momentos não
são fenômenos cronológicos, mas englobam muito mais. Englobam experiências temporais que
envolvem a totalidade da própria vida e a intensidade de um desejo que em seu acontecer não se limita à
cronologia, mesmo a da menor criança. Essas experiências, os gregos denominavam diferentemente de
KAIRÓS e AION.

AION é o tempo da duração eterna, dos deuses e da imortalidade. É o tempo mitológico, da


eternidade sem limites e que não diz respeito aos homens. A criança, sem qualquer reflexão sobre o
tema, tem uma compreensão vivencial do não limitado. Assim, em alguns momentos, pode-se ouvir
uma criança dizer: “Eu nunca vou querer ir embora! ” ou “Eu gosto mais do que infinito!” ou “Você
não vai embora porque nunca mais vai voltar!”. Nestas expressões está dito que, naquele instante, o
desejo, a preferência ou o temor não morrerão com o tempo, pois são sem limites.

KAIRÓS é o tempo das oportunidades de realização para uma certa possibilidade, para o que se
aguarda. Ele é referente às circunstâncias e não pode ser medido, pois não é igual para todos os mortais,
nem é o mesmo para cada um de nós, em todas as situações. É o momento do possível que somente
pode se dar como o tempo adequado, oportuno para uma certa realização.
Sendo o tempo do possível e da possibilidade, KAIRÓS é o tempo existencial. Assim, não é o tempo
da criança, nem mesmo é uma questão infantil. Ele é o tempo de todos os homens. É o tempo em que
faz sentido a pergunta da criança: “Agora já é amanhã? ”. Esse amanhã não é o dia seguinte, mas é o
momento oportuno em que algo já poderia acontecer. É o tempo em que futuro e presente se unem e
presente e passado se tornam um único.
Esse é o tempo na vigência do qual expressões sem medidas objetivas podem ser ditas, comunicando
algo clara e intensamente: “Nunca mais vou querer...”, “Que demora!”, “A minha vida inteira
esperei...”, “Espera só um pouquinho! ” ou “Mais um pouquinho e chegou!”
KAIRÓS é o tempo do em cada caso, da proximidade e das experiências significativas. A partir da
noção de tempo como decorrer oportuno significativo, podemos compreender melhor o modo de ser
criança, o tempo na infância e o tempo das recordações infantis.

Com os bebezinhos que desde cedo choram ao acordar e sorriem quando alguém se aproxima, ou se
continuam a chorar é porque não estão bem (cólicas, fome, fralda suja), aprendemos que o bebê
mostra de imediato, logo, a satisfação e a insatisfação, o que quer e o que não quer. Talvez esse seja o
mais verdadeiro sentido da teoria freudiana do PRINCÍPIO DO PRAZER que é o PRINCÍPIO DO
IMEDIATO. Tudo tem que acontecer JÁ e sem considerações intermediárias.
A partir do princípio do prazer, a busca da satisfação aparece, de fato, mas ela não tem primazia sobre
a imediaticidade. Assim, princípio do prazer quer dizer: “É PRA JÁ!”. Se está doente, o bebê chora até
que a dor passe. Se está com fome, o bebê reclama até receber comida. Um pouco maior, a criança
insiste tanto que ou leva uma bronca e chora ou acaba “vencendo ou vencido pelo cansaço”. Depois,
quando começa a gostar de histórias, quer sempre a mesma que sabe inteirinha. Quando vai para a
escola, começa a fazer as lições e sente alguma dificuldade, “o mundo cai sobre a cabeça” e chorando
reclama: “Eu nunca vou conseguir!”. Esses exemplos apontam que o tempo da infância é o lugar do já,
da presença imediata, do agora. Isto é, nas experiências infantis, a experiência imediata prevalece sobre
qualquer aspecto passado ou futuro. Na perspectiva existencial, as experiências infantis são fortemente
marcadas pelas presenças imediatas e, assim, as crianças são constantemente atraídas pela novidade das
descobertas constantes. Quanto menor a criança, mais o imediato ganha uma dimensão radical. A
experiência imediata é a que vigora, sendo a mais vigorosa.
Nas experiências infantis não há uma divisão equilibrada de passado, presente e futuro. O viver
temporal da criança exacerba o presente. Costuma-se dizer: “A criança tem todo o futuro pela frente”,
“O futuro da criança é maior do que o do adulto ou do ancião”. Mas, isso não é verdadeiro na
perspectiva existencial. De modo diferente do que se pensa comumente, é o imediato que domina a
vida da criança. Que a criança tenha “todo o tempo pela frente” somente pode ser dito por alguém que
já tenha descoberto uma maior amplitude compreensiva temporal ou a partir de uma certa expectativa
cronológica para uma vida humana em geral.
Em um sentido vivencial, o futuro também ganha um caráter especial na criança. Pois, ele aparece
inicialmente também de modo mais imediato. Assim é que o futuro na infância é tão curto quanto o
passado e ambos vão se abrindo na medida em que a criança vai crescendo e criando a sua história
pessoal. O futuro e o passado da criança são descobertos conjuntamente, na continuidade das
descobertas e realizações que se dão a cada momento.
A dimensão de futuro será também mais ampla conforme o presente que, agora, está se abrindo junto
à história pessoal que também se desenrola. A força do imediato é tão grande que chega a tomar toda a
vida com igual intensidade, desde o desespero com uma dorzinha “à toa” até o desesperado abandono
de uma criança com a saída da mãe: “Você nunca vai voltar!”. Na criança, uma resposta com a
intensidade do desespero é mais comum e, assim, sua importância é mais inespecífica e difusa. O
desespero é uma resposta que pode ser provocada facilmente. Com o crescimento e a ampliação
temporal, o desespero vai se tornar mais singular.
Quando o passado vai surgindo, juntamente às experiências de “ter sido” vão surgindo também as
lembranças, os aprendizados e a descoberta de poder esperar. Com essa experiência da espera, quando o
mundo não é mais reduzido na perspectiva temporal do imediato, ter paciência e poder prever são
possibilidades então reveladas no crescimento. Um futuro mais vigoroso então se abre.
Enquanto espera, paciência e previsão são ainda possibilidades veladas para as crianças, elas podem ser
antecipadas, em cada caso, com a presença cuidadosa do adulto. De modo paciente, o adulto pode
convidar o olhar da criança para que ela se aproxime do ponto que inicialmente parecia tão distante.
Por exemplo, o adulto pode aproximar um objetivo mais distante, descrevendo e estimulando os passos
necessários que a criança deverá percorrer e repetir sucessivamente e comemorar a cada sucesso. Com
esse cuidado, o adulto estará diminuindo a distância para a possibilidade do futuro mais distante e
ampliando o passado do que já foi.
Consideramos até aqui que a infância, entendida originariamente em relação à claridade, à luz ou à
luminosidade, é o tempo das descobertas de cada criança – de si própria e do mundo. As constantes
descobertas no crescimento se dão conjuntamente em relação às possibilidades dos diversos âmbitos do
existir da criança, tanto em relação às pessoas – mais familiares e mais distantes – como às coisas do
mundo em volta.

2. A primazia do imediato na vida da criança

Na relação com o mundo, a criança descobre as próprias possibilidades e a diversidade de significações


do mundo.
Ao contrário do que se pode pensar, a primazia do imediato na infância não traz imobilidade à vida
das crianças nem determina uma relação restrita com um mundo.A primazia do presente no
envolvimento com o imediato é a experiência mais radical de flexibilidade dos significados em sua
constante e rica possibilidade de renovação. Assim, o que é agora, logo-logo pode não ser mais. O
brincar e as brincadeiras, o imaginar e as fantasias, com as suas sempre inusitadas e múltiplas
articulações, mostram de modo especial a rica mobilidade dos significados do mundo.
Na infância, a flexibilidade dos significados das coisas e o fascínio pelas novas descobertas se fundem
com o presente. Daí comumente se caracterizar a infância como o tempo da imaginação e da fantasia,
como se verá mais adiante.
Além disso, o envolvimento prioritário com o imediato no tempo da infância implica sempre numa
ampliação das possibilidades descobertas em constante rearticulação de seus significados. Assim, cada
nova descoberta se realiza em uma nova totalidade de significados, na qual se encontra também, de
algum modo, o que já estava descoberto.A rearticulação constante dos significados do mundo – das
relações com as pessoas e coisas – implica sempre numa ampliação dos significados ante a novidade e as
surpresas de novos desafios. Essa rearticulação e ampliação dos significados e as constantes descobertas
das próprias possibilidades constitui o próprio crescimento. Nessa movimentação de seu crescimento, a
criança está voltada para o próprio advir e a possibilidade do novo, isto é, para o seu futuro.
Se, por um lado, é revigorante descobrir um mundo mais rico de significados e a si mesmo mais
potente para enfrentá-lo, isso pode aproximar também a experiência individual e particular da angústia
e do desamparo.

Boss escreve em seu livro Angustia Culpa e Libertação:

“Todavia, por mais amparado que tenha sido o lactente, a criança brevemente terá que experimentar a
angústia, ora em menor ora em maior medida. Mesmo uma criança de três ou quatro anos pode acordar
sobressaltada noite após noite, em virtude de nos seus sonhos ver repetidamente aproximar-se a mesma
bola gigantesca e escura. Este acontecimento onírico corresponde a aproximação turbulenta de todo o seu
futuro humano. No entanto, na sua fragilidade infantil, ela ainda não sente capacidade para aceitá-lo e
suportá-lo. Por isso, sonhando, ela teme sua carga como a uma monstruosidade esmagadora. Nos
pesadelos infantis com animais ferozes, assaltantes ou incêndios devastadores, que de vez em quando
perturbam as noites de praticamente todas as crianças, elas temem a destruição de sua condição humana
regular e conhecida, no caos de forças compressivas, dominantes e incontroláveis de sua vitalidade
natural”47

Nessa passagem, Boss considera o lado “difícil” das experiências do crescimento infantil: a ampliação
do mundo e a descoberta das próprias possibilidades podem também desamparar a criança.
Pois, ao mesmo tempo que o “mundo cresce”, em sua grandiosidade ele pode surgir como ameaçador
e destrutivo e evocar sentimentos de impotência e desconfiança ante a falta do amparo mais familiar. A
intensidade do envolvimento com a proximidade imediata de situações que se apresentam seja nos
sonhos, nas noticias ou nas conversas familiares, de ameaça frente às quais a criança se sente só, tornam
as limitações próprias da criança mais explícitas, provocando impotência e desamparo e levando-a ao
desespero.
Nessas ocasiões, o mundo da criança se amplia para além do mais familiar, numa intensa e nada
tranquila possibilidade vivencial. O choro de uma criança ante a aproximação de um desconhecido ou
quando percebe a falta de um familiar como a proximidade imediata de situações de ameaça é também
exemplo desses momentos. “Ela está estranhando” ou “Ela está com medo” são expressões do
entendimento mais comum da reação da criança. Há também algumas crianças que se desesperam
quando percebem que o pai ou a mãe vão sair de casa ou aquelas que quando ouvem sobre guerras,
explosões, assaltos, catástrofes ou histórias do extraordinário, sentem extrema angústia. Esses
momentos apontam para o precoce deparar-se com a própria finitude humana.

3. Crescer e o futuro

Crescer é abrir-se para o futuro. Isso quer dizer que o crescimento está voltado para as possibilidades
do novo, do que ainda não é. Assim, em cada nova experiência, em cada nova relação, a criança vai
48

descobrindo a si mesma, os outros e as coisa e ampliando o seu entendimento de si e do mundo em


torno. Frases como “Quando eu crescer...”, “Quando eu era bebê...”, “Eu agora quero isso!”, “Eu sei
fazer!”, “Você não manda em mim!” expressam um entendimento da criança do próprio crescimento,
de que deseja e das possibilidades conquistadas por ela. Nessa ampliação das possibilidades que
constitui o crescimento, a história própria e particular também vão se constituindo. Desse modo,
49

crescer significa ao mesmo tempo abrir-se para o futuro e para a condição histórica de poder-ser em sua
continuidade livre e significativa.
Mas, como entender que a história no sentido existencial humano se faça originalmente na direção do
futuro e não na sucessão do passado determinante? No crescimento, pleno das possibilidades do novo,
o sentido do que ainda não é, do que se busca em cada caso e do que se espera alcançar, prevalece
originalmente sobre tudo, revelando então o que é possível ou impossível, realizável ou não. Nessa
direção, a cada momento o passado, como o já experimentado ou conhecido, em suas diversas nuances
– do que se quer manter ou excluir – também se apresenta como integrante próprio da história. Assim,
a história caminha na direção do futuro, desvelando concomitantemente o passado. A partir da
realização da própria história e do advir que o origina, o crescimento pode ser compreendido também
pela presença do imediato, isto é, do que é agora.
Quando se diz que a criança quer crescer, que imita o adulto e não quer ser mais criança, isso significa
que ela quer deixar para trás suas próprias limitações, que quer deixar de ser quem ela já é para
continuar a ser ela mesma. Pois, como todas as pessoas, a criança existe como poder-ser, sendo
pro-vocada pelo que ela ainda não é. No entanto, uma vez que o mais familiar de suas próprias
possibilidades é momentaneamente abandonado pela sua própria condição de crescimento, do advir do
que ainda não é, a pro-vocação do crescer aproxima também a experiência de desamparo e de angústia.
Assim, por vezes as crianças dizem: “Eu não quero crescer!”, “Eu sou bebê, não quero tomar leite no
copo!”
No entanto, o crescimento nunca está de antemão assegurado. Quando uma criança é privada das
condições favoráveis de descobertas ou das boas descobertas, ela experimenta restrição para seu próprio
crescimento. Isso pode ocorrer devido à falta de condições adequadas sociais, ambientais, de
relacionamento ou de saúde. Há casos vitais de privação que podem levar até à morte tal o grau de
carência do cuidado, solicitações ou estímulos do mundo próximo.

4. Crescimento e a descoberta dos limites

Junto ao próprio crescimento, o mundo também se amplia, alcançando uma dimensão que envolve o
que antes não havia. Esse crescimento, junto ao mundo, se constitui tanto na direção do que é possível
alcançar como do que não é possível. Isto é, no próprio crescimento pode-se encontrar e perceber o
próprio poder e as próprias limitações e assim, conforme esta compreensão, reagimos de algum modo
ao que aparece em nosso viver.
Com a palavra limite comumente se entende linha de demarcação, fronteira, extremo, final ou
confinamento, isto é, até onde. Esse significado situa as relações de espaço físico das coisas e dos corpos
que podem ser mensurados e é o mesmo da lei física que determina que “dois corpos não podem
ocupar o mesmo lugar no espaço”. No entendimento comum e mais frequente do corpo humano
como “limite físico do homem”, ele é “limitado pela pele que o envolve”. Esse entendimento, no
âmbito do existir humano, demarca também os direitos e deveres de cada um. Assim compreendido, o
limite pode significar impedimento ou exclusão do outro. No campo da educação, nas discussões das
questões relativas às crianças, o limite determina até onde elas podem ir e até onde a conduta delas
constituem prática de liberdade e não um excesso indesejável que desrespeita os outros. Ainda no
campo da psicologia infantil, os limites são assim necessários, estando presentes tanto nas conhecidas
expressões diagnósticas da “falta de limites”, como na regra inicial da terapia infantil da “colocação
prévia de limites”.

No entanto, além de encerrar ou impedir, limite pode ser compreendido de modo diferente, como a
partir de algo ou de onde algo se dá. Nesse caso, o limite constitui a referência que de-limita as relações
humanas com o mundo e, assim, que possibilita ou favorece que algo venha a ocorrer. Por exemplo, no
âmbito do corpo humano, a superfície do corpo “abre” o entendimento como percepção e sensação
das condições em torno e, assim, favorece ou dificulta que alguém vá de um lugar para outro. Nesse
caso, o corpo humano, mais do que ter o seu espaço de ocupação delimitado pela superfície coberta
pela pele, está desde sempre em relação aberta e direta com o seu entorno.
Os limites, entendidos assim como condição existencial de todos os homens, não significam
primeiramente o que configura o que está dentro de um corpo, mas aquilo que é configurado a partir
deles. É sempre a partir de uma condição de abertura com os outros e as coisas em volta – condição
50

que envolve a relação que se realiza por meio do corpo sensível e também da própria história – que
somos quem somos, isto é, que existimos sempre de algum modo.
O modo como percebemos e cuidamos concretamente de nosso corpo está intimamente ligado com o
que percebemos a partir dele. Assim, dizemos que nossa existência não se encerra nos limites de um
corpo.

A partir desse entendimento, dizer não pode libertar outras possibilidades de vida para uma criança.
Por exemplo, se uma criança pergunta se pode ir a um determinado lugar e recebe uma negativa, pois
“aquele lugar não é apropriado para ela”, este não pode constituir uma resposta mais ampla, envolver a
consideração de uma circunstância e de suas implicações, e não simplesmente apontar no sentido da
restrição do “você não pode”. Não pode significar muito mais que mera negativa ou cerceamento da
liberdade da criança. A partir da amplitude da exposição do adulto, a negativa pode envolver muito
mais do que as conquistas imediatas. (Afinal, é necessário lembrar que não é a falta de permissão que
impede que uma criança deixe de fazer o que ela quer) Embora não haja condições favoráveis em certo
momento para os esclarecimentos, é bom lembrar que o tempo do cuidado não é restrito ao imediato.

De modo similar, as discussões sobre a rotina escolar devem sempre levar em conta que a ordem não
significa cerceamento da liberdade dos alunos. Tanto pais como professores podem exercer o cuidado
com as crianças a partir de suas responsabilidades. Isso não questiona ceder aos apelos coletivos e
imediatistas da noção superficial de que não se deve impor nada a uma criança sem a sua concordância,
ou que os alunos têm o direito de decidir qualquer coisa que querem da escola.
Os limites oferecidos de modo mais claro podem posicionar e dar referências às crianças a partir das
quais elas podem caminhar com mais desenvoltura e segurança. Assim, trata-se de uma questão mais
fundamental que não pode ser acabada simplesmente com uma negação, um não.
Todas as questões humanas implicam em uma amplitude de sentido e, assim, não podem ser
esclarecidas simplesmente com um não ou um sim. Limite (não poder ser) e liberdade (poder ser) são
igualmente fundamentais. Para entender o que significa liberdade humana, é preciso também entender
o que significa o limite humano. Liberdade, como condição humana, é poder ser em diferentes modos
existenciais: não mais poder ser, ainda não poder ser ou poder ser ainda.
No campo da psicologia, especialmente da terapia infantil, se de antemão já deixamos estabelecido o
que a criança pode e o que não pode, ou o significado do que ela faz ou não faz, como poderemos
esperar que ela compreenda, aceite e experimente as suas possibilidades e as suas limitações como
condição própria, de ser ela mesma? Se a terapia deve ser uma oportunidade para as descobertas que
favorecem o próprio crescimento, aproximar as próprias limitações, seu sentido e significados faz parte
do processo terapêutico. Uma criança que sofre as dificuldades advindas das inseguranças de seu
crescimento facilmente se opõe a experimentar tanto possibilidades como restrições pessoais, na
tentativa de não se arriscar para além do que já conhece. Assim, podem surgir no decorrer do processo
terapêutico embates que não devem ser evitados por princípio, sendo a sua superação e resolução uma
experiência pessoal de crescimento da criança. Para essa experiência, aproximar e acolher a limitação não
tem o sentido de eliminação ou buscar formas de impedimento, mas de encontrar o seu entendimento.
Dessa maneira, apontando outras possibilidades mais próprias de se entender e conviver, a terapia pode
favorecer a criança em seu mundo.

Os limites como exclusão e impedimento aparecem frequentemente no entendimento das


diversidades das experiências humanas. Isso se dá a partir de uma avaliação do que é melhor ou pior,
menos ou mais, certo ou errado. Desse modo, as diferenças e as posições diferentes humanas são
percebidas como oposições ou antagonismos que devem ser evitados ou eliminados. No entanto, o
percebido como diferente pode também levar a experiências ricas para o crescimento pessoal – de
adaptação, aceitação ou superação das tensões criadas e vividas –, sempre na direção de outros modos
em que o convívio se torna mais possível.

47 Capítulo III, “Tentativa de uma nova reflexão”.


48 É comum em diferentes contextos práticos ou teóricos nomear a busca em direção ao que se quer alcançar como motivação ou aspecto
motivacional.
49 História aqui não quer dizer a sucessão de fatos ou vivências datadas ou determinadas por acontecimentos comuns do presente ou do
passado. Mas, a partir de Heidegger, em Ser e Tempo, parte I, segunda sessão, primeiro capítulo, parágrafo 46, história é uma condição
existencial advinda do fundamento da temporalidade do poder-ser original em cada caso, isto é, de cada existência humana. O original
poder-ser se dá cotidianamente entre o nascimento e a morte. Outro modo como o poder-ser histórico pode ser referido é “contexto de
cada vida” – que nunca está pronto ou terminado mas que vai se constituindo continuamente ante a pro-vocação, ao mesmo tempo, do
que ainda não é e o que pode vir a ser (futuro), ante o imediato presente e o retorno ao já vivido (passado).
50 Cf. Heidegger e Boss em Seminários de Zollikon.
PARTE II
CASO CLÍNICO

História de Valéria

Esse é o nome fictício de uma menina que iniciou atendimento terapêutico daseinsanalítico com oito
anos e seis meses. Esse registro não constitui a totalidade do processo terapêutico vivido e nem tem
como objetivo demonstrar a eficácia da Daseinsanalyse terapêutica de um caso bem solucionado.
Mas, por meio do resgate de anotações de algumas sessões e de considerações desenvolvidas, sobretudo
em momentos mais significativos e de importantes mudanças na história dessa criança, proponho este
material no intuito de oferecer pontos para reflexão da Daseinsanalyse com crianças e de aprofundar o
entendimento clínico daseinsanalítico. Não vou me deter em interpretações pontuais das diversas falas
ou das diversas pinturas, argilas ou brincadeiras aqui descritas. O que mais considero é poder fazer uma
indicação de minha compreensão da relação clínica daseinsanalítica, a partir de um processo ocorrido,
em que o fundamental é a disposição verdadeira, atenciosa e afetiva, para receber cada criança em sua
singularidade, no sentido da superação dos sofrimentos vividos por ela.

O primeiro encontro com os pais – final de fevereiro

Recebi o casal.
O pai começa a entrevista dizendo que procurou uma psicóloga por estar muito preocupado com a
sua filha V. de oito anos, a qual tem tido pesadelos constantes que já vêm ocorrendo entre seis e doze
meses. “Ela sonha com um homem com cara de bicho. Acorda chorando e diz que está com muito
medo”. Constantemente, à noite, uma “babá eletrônica” fica ligada no quarto dos filhos. Assim, os pais
ouvem quando, no meio da noite, V. acorda e os chama chorando; a mãe ou vai buscá-la para o quarto
deles ou vai para o quarto da filha para acalmá-la ou para repreendê-la. A reação da mãe varia “conforme
estou mais cansada ou mais paciente”.
O pai esclarece que a filha dorme num quarto muito amplo, junto à irmã (de cinco anos e meio), o
irmão (de três anos) e uma babá. Nesse quarto, as camas e os espaços de cada filho estão separados por
estantes de brinquedos e de livros.
O pai também se queixa que V. “parece que não sente nada, não gosta de nada, ela não é expansiva em
seus sentimentos” e isso o deixa extremamente irritado. Ele não vê o reconhecimento dela de qualquer
coisa que ele faça, nem de modo positivo nem negativo. “Tudo para ela parece ser indiferente. Ela
parece que não curte nada”.
Na escola, nos últimos dois anos, o aproveitamento de V. não foi bom. Nos últimos semestres ela
ficou em recuperação de alguma matéria.
O pai conta que há um ano e meio teve um sério problema cardíaco, o que o levou a ser hospitalizado
e, depois, ficar de repouso por dois meses em casa.
Conta também que, desde que V. era pequenina, o avô paterno está gravemente enfermo e, há seis
meses, foi internado em um sanatório. Quando vai visitar o pai, faz questão de levar junto os filhos.
A mãe, que pouco falou, diz que ainda é importante dizer que V. teve uma babá durante seis anos, até
que a moça se casou e deixou o trabalho. A menina sentia muitas saudades e chorava a sua falta. Nessa
época, por mais ou menos um ano, uma outra moça ficou trabalhando no cuidado das crianças. Porém,
certo dia, a mãe descobriu que a moça ameaçava as crianças com histórias assustadoras.
Atualmente, uma nova babá trabalha com a família. Com ela, V. tem ótimo relacionamento, mesmo
que não mais necessite dos cuidados de uma babá.
Ela ainda tem outro irmão, filho do primeiro casamento do pai, que atualmente mora com a mãe.

Depois dessas informações iniciais, faço algumas perguntas para compreender melhor o que os
preocupava. A queixa geralmente se refere a um problema pontual. Assim, é importante procurar saber
o que na queixa preocupa os pais.

Eles informam que os pesadelos de V. começaram a ser uma preocupação quando perceberam que se
tornaram mais constantes desde o ano anterior. Além disso, os medos têm crescido cada vez mais,
sobretudo à noite, quando V. não quer ir sozinha da sala, para o quarto dela ou a lugares da casa que
estejam escuros. Ela não entra em alguns lugares da casa como o quarto do irmão ou uma saleta pouco
usada. Ela também passou a sentir muito medo de ladrão e, às vezes, chora desesperadamente quando
tem que descer do carro na rua, em frente da casa, e chegou a ter medo de um dos cachorros da família,
com o qual tinha uma relação especial.

Com relação às colegas da escola, V. é muito reservada, “não é de ter muitos amigos”. Ela tem duas
amigas mais próximas que frequentam a sua casa, mas, a grande amiga não é da escola, é filha de uma
amiga dos pais, e é um pouco mais velha do que ela.
V., além da escola que frequenta no período da manhã, tem todas as tardes da semana preenchidas
com outras atividades: almoço com a avó, inglês, teatro, natação e esportes. Para mim, havia apenas o
horário depois do almoço semanal com a avó. Anteriormente frequentava aulas de balé, agora
substituídas pelas de inglês.

Quando pergunto sobre a escola em que V. estuda, o pai diz que confia muito nela pois antes o filho
mais velho também havia estudado lá e que “graças à diretora havia superado fases muito difíceis”. Essa
é uma instituição de ensino reconhecida que segue uma pedagogia tradicional e é frequentada por uma
elite social.

O pai se diz extremamente preocupado em garantir para os filhos todas as condições que ele imagina
possíveis para eles se desenvolverem e se prepararem para o futuro. “Eu tenho que dar para os meus
filhos tudo que puder”, diz ele.
Chama a minha atenção o que ele diz “tenho que dar tudo que puder”. Ele não cogita no que pode
ou quer dar, nem no que é mais adequado para ele dar para os filhos. Então, pergunto “Você tem ou
quer dar tudo que puder”? Esta diferença essencial, que poderia tornar cada iniciativa do pai em um
cuidado mais significativo e liberto de deveres pré-estabelecidos com a própria filha, não tem lugar.
Aparentemente, ele mais parecia estar voltado para suprir sem limitações a educação dos filhos, do que
com o que é necessário ou que falta e que pode ser mais adequado para cada filho. Para isso também
não aparecia nele nada que indicasse reconhecimento de alguma preocupação ou limitação. Essa atitude
de aparente onipotência está presente, também, no modo como o pai se dirige à mulher. Ele a
interrompe corrigindo-a com um “não é isso”, quando ela fala expressando uma opinião, como se ela
soubesse sempre menos ou como se o que ela tem a dizer não fosse importante; assim, para ele a mãe
teria que saber cuidar dos filhos até nas situações em que ela se considera incapaz, como, no caso, no
acompanhamento das lições.
A mãe, uma mulher suave, esguia e bastante bonita não se dedica a nenhuma atividade profissional,
mas, antes do casamento trabalhava na área de moda. Na entrevista ela teve uma presença pequena e
sempre ofuscada pela do pai, um homem forte, com estatura grande e com um vozeirão que abafa o
que se ouve em volta. Além disso, ele é um empresário bem-sucedido.
No final da entrevista, bastante incomodados, os pais dizem que ainda têm algo sério para contar. É a
respeito do irmão maior. Quando ele era menor, “mexeu” com V., que tinha por volta de três anos.
Eles, muito constrangidos, contaram o que aconteceu. O irmão tinha feito a irmã tirar as roupas e havia
tocado em suas partes íntimas. “V. nunca comentou nada sobre isso, nem ficou claro que marcas esse
acontecimento poderia ter deixado”. Os pais souberam do fato pela babá. E, muito preocupados,
levaram o filho a um psicólogo que, depois de algumas sessões, disse que o garoto não precisava mais de
terapia. A mãe diz que nunca tinha gostado daquele psicólogo e acha que o filho mais velho do marido
tinha problemas que necessitavam de ajuda.

A situação descrita pelos pais em relação ao filho era importante, mas não parecia ser mais relevante do
que tudo o mais que eles haviam dito sobre a filha. Ela nunca tinha dado qualquer sinal ou feito
qualquer referência de que trazia aquele acontecimento como um problema e não havia outras histórias
anteriores ou posteriores a respeito. Ainda que eu saiba que a incidência silenciosa de episódios dessa
ordem ocorre, procurei ter o cuidado de não considerar aquela informação, supondo previamente
significados que muito facilmente poderiam nos levar a criar uma história fantasiosa fundada em
preconceitos sexuais. O fato poderia ter sido vivido pela filha aos três anos, mais como uma brincadeira
inconsequente de exploração corporal e que eram os pais que tinham ficado apavorados. Talvez a
preocupação com o filho maior constituísse o aspecto mais significativo daquela história, criando uma
tensão sobretudo no pai. Desse modo, pelo menos por enquanto, aquele fato não devia ser
dramatizado.

Outra informação trazida parecia de grande e constante importância. A preocupação daquele pai com
os filhos no sentido do controle da vida deles e de supri-los com tudo o que decidia parecia tão intensa
como a “impossibilidade” da filha V. de aproveitar ou “curtir” os afazeres de sua infância ou a
“ignorância” dela – própria da época de descobertas que caracteriza o crescimento. Ele parecia acreditar
que precisava controlar toda a vida da filha – suas amizades, as atividades de sua vida e os riscos a serem
enfrentados, até a direção da escola –, para que ela estivesse segura e preparada para o futuro. Ele
parecia não se conformar por não dominar os sentimentos ou pensamentos da filha. Ele não estava
atento para o que a filha precisa, mas para o que ele precisava. Ela estava constantemente pressionada
pelo pai a aprender e saber sobre tudo, tendo que sempre deixar para trás a sua ignorância de criança
como algo desastroso. Além disso, com aquele controle exacerbado, V., há muito já não podia ser
inocente como uma criança. A sua infância parecia como uma deficiência que devia ser superada ou
ultrapassada o mais rápido possível. Assim, as dificuldades de V. pareciam situar-se mais na
impossibilidade de ser quem ela era – uma menina livre para viver a infância, as “ignorâncias” infantis e
encontrar-se segura e confiante com os adultos familiares. Desse modo, ela não teria pressa de crescer.

Nesse momento, depois de ter conhecido os pais de V. e a preocupação deles com ela, eu queria
conhecê-la e tentar descobrir suas próprias preocupações ou algo mais, a partir dela mesma e de suas
aflições. Os contatos iniciais com a criança são necessários para o entendimento de como ela percebe,
ou não, seus sofrimentos e dificuldades e para que eu possa estar posicionada para encontrar o caminho
mais adequado para ajudar aqueles pais que me procuraram para ajudá-los no cuidado de sua filha.
Combino que terei dois ou três encontros com V. e que, em seguida, voltarei a encontrá-los para
decidirmos qual o melhor encaminhamento para o caso.

Primeiro encontro com V. – início de março

V. tem oito anos, mas é bastante alta para o padrão de sua idade. Chama atenção. Chega muito quieta,
calada. Parece muito tímida.
Eu digo quem sou, meu nome. Digo que imagino que ela não está à vontade e que este encontro
também não é muito fácil para mim, pois, como para ela, eu também não a conheço e não sei se ela vai
gostar de estar aqui, mas que, mesmo assim, eu gostaria de conhecê-la. Percebo em mim uma
preocupação de não a assustar.
Num “fio de voz”, ela vai respondendo às perguntas que faço numa tentativa de me aproximar,
perguntando sobre a sua família e a escola que estuda. Pergunto se ela pode desenhar a família. Muito
tímida ela faz um rabisco da configuração familiar. Não faço nenhum comentário.

Pergunto sobre o que ela gosta. Consegue dizer que gosta de histórias, desenhar, de fazer argila e
teatro.
Conto que os seus pais me procuraram. Pergunto se ela sabia por quê? Ela responde que “É porque
tenho muito medo e tenho pesadelos”. Pergunto se ela pode me falar desses medos. Ela me diz que
sonha com um homem que parece um bicho. Não diz o que ele faz, mas que “ele dá muito medo”. Ele a
deixa assustada. Pergunto como ele é. Ela diz que ele tem cara de bicho e nada mais.
Mantendo o cuidado de não confrontá-la com a necessidade de respostas difíceis que trarão
constrangimento, digo que podemos, se ela preferir, deixar para outra vez esta conversa e fazer alguma
outra coisa. Descrevo o que podemos fazer naquela sala (jogar, brincar, conversar, desenhar).
Convido-a a decidir o que fazer. Ela não diz nada. Espero e, então, proponho: desenhar.
Mas ela me surpreende. Não quer desenhar porque “não sei fazer o que quero”. Então pergunto o que
era aquilo que ela não sabia. Ela diz que queria desenhar um foguete, mas que não sabe como. Fico
surpresa com aquele desejo: desenhar um foguete! Que coisa inusitada, uma menina querer desenhar
um foguete! Nunca tinha ocorrido isso no meu consultório. Mas seria mesmo isso que ela queria? Ou
simplesmente ela não queria aceitar o meu convite para desenhar? Não digo nada sobre minhas dúvidas
que nem eu mesma entendia.
Começamos, então, a conversar sobre o que mais ela não quer e que não sabe. Dizia, por exemplo,
que nunca fazia nada direito, que não queria mais ter pesadelos ou que o pai brigasse com ela, que não
sabia muito bem matemática e queria ir bem nas provas.

Nesse primeiro contato a sua insegurança me pareceu estar no sonho com o monstro que lhe dá
muito medo e também quando diz: “não sei fazer o que quero”. Chamava-me atenção também o modo
como ela falava de tudo, sempre com insatisfação e ressaltando o que não sabia. Reclamava de si mesma
e do que não dava certo.
Segundo encontro – uma semana depois

Houve um mal-entendido sobre o horário da sessão:V. chega muito atrasada.


Entramos na sala de brinquedos e logo V. começa a mexer na argila, moldando e desfazendo o que
fazia, totalmente calada. Aguardo um pouco, faço alguma pergunta do que ela estava fazendo, mas sem
muito sucesso nas respostas. Ela parecia não querer conversa. Então, pergunto se ela gostaria que eu lhe
contasse uma história enquanto ela trabalhava com a argila. Ela aceita e eu pego o livro de uma história
muito interessante de uma menina muito medrosa – “Chapeuzinho Amarelo” –, que tem medo de
51

tudo a sua volta, inclusive de lobo, mas que ao final, de modo muito engraçado, consegue brincar mais
confiante com o que antes lhe parecia tão ameaçador. Ela ouve atentamente, totalmente em silêncio e
sem fazer nenhum comentário, continuando a moldar o pedaço da argila. Quando termino de ler, ela
me olha e diz que já conhecia aquela história e que tinha o livro em sua casa. Algo me surpreende
naquele comentário. Ele não foi dito naquele tom de voz quase inaudível do encontro anterior, mas
com firmeza.
Não faço comentários, não faço nenhuma pergunta.
Logo chega o final da sessão, aviso que o nosso tempo acabou, mas que eu gostaria de encontrá-la
outra vez, antes do próximo encontro com seus pais, para conversar mais com ela. Pergunto se ela
gostaria e ela aceita meu pedido.
Já na saída, no corredor, a mãe pergunta para V. se ela havia me contado sobre a viagem da escola. Ela
diz que não. Então a mãe se explica: o pai não queria deixar V. ir num acampamento de dois dias com a
escola.

Anoto: “Voltar ao assunto na próxima semana. Ela quer ir ao passeio com a escola? Por que o pai não
quer que ela vá? Ela já falou com o pai? Ou ela não quer ir? O que ela já fez para mostrar o que quer?”.

Terceiro encontro – depois de uma semana

Ela apareceu de outra maneira, parecia outra menina, quase o oposto daquela muito tímida, quase
paralisada de medo que eu já conhecia do primeiro encontro, que falava num “fio de voz”, e da
segunda, em que parecia mais assertiva. Pensei nesse novo jeito como uma “espécie de distância
superior” de alguém indiferente. Assim foi quando, tentando conversar sobre as suas atividades, eu lhe
perguntei se ela gostava das aulas de teatro que frequentava e ela me respondeu imediatamente: “Você
acha?! Se eu não gostasse das aulas, eu não faria. Era só dizer para minha mãe. Eu não preciso fazer a
aula que eu não gosto!”. “Ah!”, foi o que pude dizer.
A mãe voltava a aparecer, agora na sessão, como alguém em quem V. confiava e tinha cumplicidade.
Talvez V. percebia a mãe tão impotente quanto ela, frente às decisões e postura autoritária de seu pai.
Nesse dia, V. quis pintar as argilas que havia moldado na semana anterior. Pintava com várias cores.
Num determinado momento, ela decreta: “Já estão prontas!” Mas não me parecia que o seu trabalho
estivesse terminado e pensei que ela, apenas, havia se desinteressado e queria fazer outra coisa. Esperei
sem fazer comentários.
Sem demora, pegou uma cartolina amarela clara.E então pergunta: “Não tem preta? Nem branca?”
Não havia. Mas eu tive a impressão de que ela não fazia questão nem de uma cor nem da outra. Então,
ela pinta com tintas de diferentes cores como se um movimento ascendente. De modo muito
cuidadoso e curtido; ela faz um desenho estético e muito bonito. Aquela foi a sua primeira pintura.

Como sempre, quando as crianças desenham, pintam ou constroem alguma coisa, pergunto o que é
aquilo, e peço um nome. Por que nomear? Nomear é possível quando nos detemos no acontecido ou
no que fizemos. Nomear revela uma certa proximidade compreendida. Penso que quando damos um
nome, de alguma maneira, nos apropriamos de algo que deixa de ser impessoal e revelamos um
significado pessoal.
Ela se recusa, dizendo prontamente: “Não é nada. Não tem nome, eu só gosto de pintar”.
Digo: “Então eu já sei o nome, é Gostosura. É bom quando a gente gosta de ficar pintando com a
tinta e não precisa falar ou fazer nada, uma coisa, somente ficar pintando as cores como você fez!”. Ela
ficou em silêncio, não fez qualquer comentário. Então passei a descrever a sua pintura, seu cuidado e
atenção com as cores e as formas e que, de fato, estava vendo que ela tinha gostado muito de fazê-la.

Mas, foi depois da sessão, enquanto eu fazia as minhas anotações, me dei conta de que tinha havido
uma mudança no seu jeito de se colocar, no andamento do encontro.
Em seguida, aproveitei para conversar sobre o próximo encontro que teria com seus pais.
Primeiramente perguntei como poderíamos combinar os nossos encontros. Eu precisava saber se ela
gostaria de continuar a vir às sessões, para decidirmos o que fosse melhor para ela. Ela disse que queria
continuar.
Pergunto ainda se ela gostaria de me contar algo mais sobre aqueles pesadelos, por exemplo, como eles
começavam. Ela diz que eles aconteciam “quando sonho com o homem que é metade bicho com garras
e chifres”. Ela dizia como o pesadelo aparecia, mas não me falava mais nada sobre ele. O medo do sonho
era pela própria aparência daquele monstro estranho metade animal, metade homem. Não era do que
ele fazia. Eu não sabia se havia uma história, ou somente aquela figura que, aparecendo, já a despertava
aterrorizada. Depois, ela diz que não havia mais tido os pesadelos desde que estava vindo às sessões.

Considerei esta observação bastante importante. Não que acreditasse no milagre que pouco mais de
duas semanas seriam suficientes para transformá-la numa pessoa mais segura e sem tantos medos.
Entretanto, considerei alguns aspectos que poderiam já ser responsáveis por alguma modificação em
sua vida: 1) V. perceber que os seus pais tinham procurado alguém para ajudá-los em relação aos medos
não recentes que a faziam sofrer intensamente e que pareciam não poder melhorar; 2) que o jeito do pai
de frequentemente querer obrigá-la a enfrentar o que a aterrorizava tinha outra alternativa; 3) que
podia experimentar o acolhimento de uma situação nova para ela, para o que mostrava ou dizia, sem a
pressão para o enfrentamento do que era considerado negativo.
Antes do final de nossa conversa, falamos sobre a viagem da escola ao acampamento. Ela queria muito
ir, mas desde que o aviso da escola chegou, o pai tinha negado a autorização. Contou que o pai não a
deixa dormir fora de casa. Isso acontece somente quando toda a família viaja. O pai lhe dizia que “não
quer que aconteça nada comigo”. Ela estava muito chateada e completou “já combinei com as minhas
amigas que vamos jogar e conversar muito no acampamento”. Perguntei se ela havia dito ou se não
queria dizer isso para o pai. Ela respondeu que não havia dito e que não sabia se poderia dizer.
Prontifico-me a falar mais sobre essa viagem no encontro que terei com os pais.
Ela referia-se ao pai como alguém que impedia que ela levasse avante os seus projetos, mas também
que ela não sabia se poderia enfrentar isso.
Ela ainda me conta que tinha duas grandes amigas na escola e outra, mais velha “de treze anos”, filha
de uma amiga de seus pais. “Mas esta não vai ao acampamento”, esclarece.

Quarto encontro – final de março

Por dificuldade de horário em comum com o pai naquela semana, houve mais uma sessão com V.
Antes de entrarmos na sala de brinquedos, a mãe antecipa uma boa notícia: o pai autorizou a viagem
de V. com a escola. Mais tarde considerei que o trabalho de terapia com criança, não é raro, também
provoca mudanças dos pais, o quais passam a se sentirem mais encorajados a se entregar com confiança
na lida com o crescimento dos filhos.
Na sala de brinquedos V. não faz qualquer referência ao que tinha acabado de ouvir. Ela se encaminha
para a estante de materiais e diz que vai mexer na farinha com água, “mas sem fazer nada”. Seleciona
todo o material que precisa: o pote de farinha, a bacia e a caneca para a água e colheres. Então leva tudo
para a mesa onde começa a misturar, em silêncio. Depois, ela diz que prefere ir para a lousa “para treinar
para quando a professora me chamar na classe”. Começa treinando a letra “que sempre sai feia”. Então,
aceita falar sobre as coisas que ela faz que saem feia e não dão certo. Ela as enumera: os exercícios e as
provas de matemática, os trabalhos da escola que nunca parecem bons, as broncas do pai e os desenhos
que não consegue fazer.
Continuamos a conversar. Ela também contou que está ensaiando uma peça de teatro em seu clube:
“Sonhos de uma noite de verão”. Pergunto se ela está gostando e ela responde afirmativamente. Peço
que ela me conte sobre o que é a história. Ela faz um breve resumo e me diz que o seu personagem foi
escolhido pela professora e que não era o que ela queria. O seu envolvimento com o teatro não aparecia
no modo mais efusivo de falar, mas no simples e único fato de falar sobre ele. Ela preservava a sua
curtição escondida.

À medida que nos aproximávamos, V. parecia cada vez mais estar aprisionada e contida pela escola ou
por um padrão da sua família. Assim, eu pensava que terapia, psicoterapia, ludoterapia, qualquer que
fosse a designação, somente serviriam para V. se fossem uma oportunidade de libertação, isto é, se
trouxessem para ela a possibilidade de experimentar o que não estava de antemão decidido,
pré-estabelecido ou obrigado pela segurança e controle do pai. Assim, ela poderia experimentar o que
de imediato sempre parecia impossível. Impressionavam-me as suas ideias originais, como desenhar um
foguete ou sobretudo as cores fortes e vibrantes de seus desenhos, junto ao modo crítico e impotente
expressado em suas constantes expressões “não sei” e “não posso”.
Em todas as sessões, V. desenhava ou construía com material de sucata sempre com cores vibrantes.
Dar nome aos desenhos ou a qualquer coisa que fazia lhe era ainda impossível, mas eu pensava que
seria algo muito bom a ser alcançado. Pois nomear não é algo que aprisiona, mas que pode situar,
ampliar e expressar uma fantasia, uma ideia ou um pensamento original. Para nomear, é preciso, de
algum modo, se deter e apropriar-se de um entendimento ou percepção expressos.

Retorno com os pais – final de março

Começo convidando os pais a dizerem o que eles achavam importante. O retorno com os pais depois
dos primeiros encontros com V. não era uma ocasião de final de avaliação diagnóstica para fornecer
uma explicação para a queixa inicial ou um enquadramento conceitual do caso, mas entendo que é uma
oportunidade de esclarecimento, para compartilhar ou confrontar percepções e entendimentos dos
encontros com a filha e as informações anteriormente trazidas.
Eles dizem que não havia nenhum dado que tinham esquecido em nosso primeiro encontro. Mas eles
comen-tam que estão em dúvida sobre a necessidade da terapia uma vez que a queixa do medo de V.
andar sozinha em casa havia regredido. “Os poucos encontros já tinham dado resultado”.
Acreditei que V. estivesse com menos medo de andar pela casa, mas não acreditava que esta mudança
pudesse ser realmente significativa frente à intensidade do que tinha ouvido dos pais e visto em V. Senti
a preocupação de fazer com que eles pudessem entender que aquelas boas e rápidas novidades
precisariam de mais atenção para de fato se consolidarem.
Comecei a descrever as minhas primeiras e segundas impressões daquela menina. Falei da timidez, do
retraimento, da quase paralisia e fio de voz do primeiro encontro. Depois descrevi aquela “distância
superior”, aquele modo conhecido do pai de V. se colocar aparentemente indiferente, como ela se
referia ao que estava em volta. Disse aos pais como me intrigava uma criança que mostrava tantos
recursos criativos – que gostava de desenhar, de teatro, de ler e de moldar com argila e farinha –
estivesse tão aprisionada e com tanto medo de não acertar ou de se arriscar. E me arrisquei em um
entendimento que, numa visão de totalidade, integrava modos aparentemente contraditórios ou
ambivalentes de V. reagir. Não havia “duas V.”, ela não apresentava uma “dupla personalidade”. Mas o
que podíamos perceber eram reações ambivalentes em diferentes momentos.
A primeira impressão de V. se referia ao primeiro encontro, momento para ela de total
desconhecimento, ameaça e pressão. A esta difícil situação ela reagia somente permanecendo encolhida
numa “distância protegida”. No segundo momento já conhecido, V. poderia até experimentar uma
sensação de poder, mas ainda assim permanecia numa “distância indiferente”, talvez por sentir-se
pressionada por expectativas que tinha que corresponder e às quais fortemente lutava contra. Assim,
nos dois diferentes momentos ela parecia vulnerável, não se sentindo segura e confiante para uma
proximidade mais livre.
Eu queria muito que aquele pai pudesse perceber a riqueza e as solicitações que vinham originalmente
daquela criança e que ele não se sentisse tão amedrontado com o que não podia ainda conhecer e que
somente o crescimento próprio de V. poderia mostrar.
No final, combinamos que V. seguiria em atendimento de terapia e que somente depois de três meses
voltaríamos a nos encontrar. Isso seria se não houvesse antes algum imprevisto que tornasse o nosso
encontro importante.

Final de abril

Os encontros com V. seguiam regularmente. V. gostava deles, embora isso somente aparecesse no
modo como prontamente ela se soltava e conquistava a sala e decidia sobre suas atividades. Mas se eu
fazia alguma pergunta, prontamente ela dizia que estava tudo bem e que não queria deixar de vir. Ela
falava muito pouco sobre os acontecimentos de seu cotidiano. Às vezes se referia com preocupação a
alguma prova difícil de matemática, enquanto desenhava ou “treinava” escrevendo letras ou fazendo
contas na lousa ou na cartolina.

Eu entendia que as contas de matemática e os exercícios de português eram a parte de suas


preocupações em que ela pessoalmente podia estar mais envolvida, pois contava com soluções mais
claras.
Do que mais claramente ela gostava de falar era de seus cinco cachorros, disse o nome de todos,
esclareceu que dois eram dela, dois do pai e um da irmã. Ela contou como adorava ficar na cozinha de
sua casa e ajudar a fazer bolos. Contou também que, quando estava chateada, gostava de ficar sozinha,
“lá no fundo do quintal”, e que ninguém sabia disto. De vez em quando, rapidamente, contava alguma
coisa que tinha acontecido na aula de teatro que ela também gostava. Às vezes ela me pedia para contar
uma história e, às vezes, também desenhava.
Certa sessão, V. pegou uma cartolina, dividiu-a ao meio e, na primeira metade fez uma linda pintura,
muito colorida, como um arco-íris vibrante. Na segunda metade pintou um coração, como sempre
cuidadosamente, numa sequência harmoniosa de tonalidades de cores diversas que acompanhava o
formato da borda até o interior. Recusou-se, como sempre, a dar um nome ou dizer algo sobre as
pinturas e, como sempre, eu mesma descrevia o que via, as cores, as formas, sobre o seu gosto de pintar
e, algumas vezes, sugeria um nome ou uma história, mas dizia sempre que aquele nome ou aquela
história eram da minha imaginação e que para ela poderiam ser outros.

Dois encontros de maio

Na sessão seguinte, li a história de amor de “Romeu e Julieta”. V. escutava atentamente a minha


52

leitura, pedindo que eu repetisse alguma frase ou fazendo algum comentário curto. Enquanto isso, fazia
contas na lousa
Quando decidi propor contar-lhe essa história, que ela aceitou prontamente, eu pensava numa
história de um envolvimento muito forte de uma jovem que se desentendia com a família em relação
aos seus sentimentos. Pensava ajudá-la a compreender e se preparar para a chegada de emoções
importantes e distintas das de seus pais.
No entanto, o que mais me chamou atenção quando terminei a história foram os comentários
penalizados de V. ante o desencontro final entre Romeu e Julieta e a morte de ambos e do primo de
Julieta, Mercúcio, que diziam da tristeza dos pais e de todos que deles gostavam, como o frade e a ama.
Ela não fez qualquer referência à intensidade daquele amor, mas somente à morte e à tristeza que os
pais sentiram.
Logo entendi por que esta é uma história de amor totalmente diferente. É uma história de
possibilidades e de promessas de amor, exatamente porque os enamorados morrem antes de realizarem
aquele amor.
Questionava-me se os comentários que V. fizera diziam respeito apenas à história de Romeu e Julieta,
ou também ao modo (distante) como ela mesma levava a sua vida? Será que ela podia sentir, fantasiar e
realizar algo como amor?
Decidi pedir que, em nosso próximo encontro, ela contasse uma história da qual gostasse muito.

Uma semana depois

Comecei com o meu pedido decidido antes. Ela não aceitou. Disse-lhe então que, se ela quisesse,
poderia contar a sua história de Romeu e Julieta. Ela responde que “a história de Romeu e Julieta era
muito triste porque ela fingiu que estava morta e que depois eles morreram. Mas isso era também
legal”.
Pergunto como isso era legal e ela disse que gostava da história assim como ela é.
Na sequência, quis fazer contas na lousa para “se preparar para a revisão de matemática”. Ela estava
muito preocupada com a única matéria que já tinha ficado em recuperação. Isso ocorreu no ano
anterior. Pergunto como foi, o que ela sentiu e o que fez quando soube. Ela conta que ficou com raiva e
que xingou, mas que não falaria a quem xingou, nem o que tinha xingado.
Nesse momento comecei também na fala a brincar com ela e passei a chamá-la de Senhorita Mistério
cada vez que ela assumia aquela posição rígida que eu chamava “distância superior”. Com isso eu queria
apontar que ela não precisava dizer o que não queria, mesmo que ela soubesse de algo e que eu soubesse
disso. Era importante que ela pudesse se sentir à vontade e próxima. Para isso, procurava me expressar
de um modo receptivo e não crítico, convidando-a para uma cumplicidade que tornaria as suas decisões
mais leves.
Logo em seguida, V. passou a pegar pedaços de cartolina de diferentes cores, com as quais fez uma
colagem. Enquanto cortava e colava o papel, ela disse que o pai, às vezes, era “muito chato”. Ela conta
que estava com a amiga, em sua casa; estavam conversando, aí o pai queria que ela dissesse sobre o que
estavam cochichando. Mas como ela não disse, o pai começou a fazer de conta que cochichava com o
irmão e a irmã. “Ele pensava que isso ia fazer eu dizer o que a gente falava. Mas eu não liguei. Eu não
tenho que dizer para ele o que falo com minha amiga”
Pensei sem dizer: “Ela ganhou a disputa dos segredos com o pai”. Pensei logo que com os segredos, os
mistérios e o escondido, ela se protegia. Ninguém podia fazê-la dizer o que não quisesse.
Então, quando acabou a colagem, ela disse “É uma casa com porta e janela fechada. Ninguém mora
nela”. Peço um nome para aquela casa com porta e janelas fechadas. Pela primeira vez, ela dá um nome:
“A casa abandonada”.

Depois, começou a fazer outra coisa: ela recortava várias vezes com o seu jeito de insatisfação, até que
trocou a cartolina por outro tipo de papel, mas continuava sem encontrar satisfação. Perguntei o que
ela estava fazendo ou que queria fazer. Ela nada respondeu. Ficou assim até que avisei o final da hora e
ela guardou todo o material.

Algumas anotações
Matemática: é constante em nossos encontros não porque V. gosta da matéria, mas porque ela é uma
preocupação constante. V. mostra então sua vulnerabilidade, seu medo e fragilidade.
Julieta: outro tema de vulnerabilidade; abandono do abrigo dos pais e do familiar com a descoberta
dos próprios interesses. Responder de modo mais autônomo às novas possibilidades poderia se
constituir em ameaça, como para ela aconteceu na história de Julieta e Romeu, que culmina na morte
de ambos e sofrimento dos pais, da babá e do frade amigo.
A realidade se torna então muito mais complexa e ameaçadora.
O crescimento de V. para o pai aproximava temores como o “perigo da sexualidade” e a imposição do
homem sobre a mulher. Esse temor estava presente na proibição da filha participar da excursão com a
sua turma de colegas da escola aos oito anos. “Eu conheço meninos e o que eles podem fazer”, dizia ele.
Na preocupação e controle do pai, fica encoberto o seu próprio temor frente ao crescimento de V.
Esse temor encoberto do pai ecoava na vulnerabilidade de V. de tal modo que ela encontrava seu foco
em tudo que tem caráter de perigo e destruição de vida. Tudo se torna arriscado.
Me pergunto: Com aqueles segredos e mistérios escondidos ela não estaria se sentindo muito sozinha?
Será que eu devia perguntar sobre as sensações que esta sala lhe provocava?
Deveria propor outros jogos, talvez os mais interativos, ou ficar mais atenta ao que ela propunha?
Deixar seus trabalhos anteriores mais disponíveis e até retomá-los, uma vez que são uma coisa em que
ela tinha se empenhado em fazer?
Relembrei:

“Quem vai à luta precisa se proteger, se esconder, mas quem quer se aproximar precisa se mostrar e
buscar intimidade.” (João Augusto Pompéia)

Dois encontros de junho

No início da sessão, enquanto pega uma cartolina e arruma os potes de tinta na mesa, V. anuncia:
“Vou fazer uma casa”. Começa a pintar, mas logo, parecendo insatisfeita, desiste da casa e passa a usar,
em sequência, cores diferentes como um arco-íris.
Enquanto pinta, pede para que eu leia uma história. Por escolha dela, continuo a leitura de uma
história que já havia começado algumas sessões antes. Leio “Ana e suas bonecas”53, uma história de uma
menina que gostava muito de brincar com suas bonecas até que, num certo dia, percebe que elas “se
calam”, isso é, que as bonecas não mais são os personagens “vivos” que antes participavam de sua
brincadeira. As tão queridas criaturas se transformam em simples bonecas, que Ana arruma sobre sua
cama. Ana se sente estranha e não entende o que está acontecendo. Quando acabo de ler a história, V.
pede que eu leia uma outra e escolhe “Rumpelstichen”54, que ela já conhecia. Essa é a história de uma
linda moça, filha de um moleiro, que é ajudada por um anão para se salvar da ameaça de morte do rei.
Em troca da ajuda, o anão exige que ela lhe entregue o seu primeiro filho, quando se tornar rainha. Mas,
ela se esquece da promessa e então ele reaparece cobrando a sua dívida. Para livrar-se da promessa, ele
determina que a rainha teria que adivinhar o nome dele. No final, depois de grande sofrimento, ela
consegue ser liberada.
Enquanto leio a segunda história, V. permanece sem dizer qualquer coisa e interrompe a pintura que
fazia. Vai à lousa fazer contas. Depois, desenha com giz uma borboleta e uma árvore. Não faço nenhum
comentário, mas, como sempre, peço que ela dê um nome para o desenho. Ela diz que não tem nome.
Ainda no final dessa sessão, pergunto se ela sabia que os pais haviam me telefonado para dizer que ela
ia entrar em férias e que, antes, eles gostariam de conversar comigo sobre a continuidade dos nossos
encontros depois das férias. Para essa definição, esclareço que dependia do que ela quereria. Pergunto
também se ela se incomodava com a minha próxima conversa com os pais. Ela disse que sua mãe já
havia lhe dito e que, para ela, não tinha problema eu falar com os seus pais. Diz também que queria
continuar a vir depois das férias.
Fico contente com a impressão que os nossos encontros estavam sendo de alguma forma importantes
para aquela menina tão trancada.
Nas sessões seguintes sempre se dedicava a desenhar enquanto conversava. Seus desenhos
continuavam muito coloridos.

Duas semanas depois

V. falava muito pouco dos acontecimentos de sua casa ou com seus irmãos. Mas nesse dia ela diz que
seu pai queria fazer uma mudança na arrumação de seu quarto, porque ela já estava ficando mocinha.
Peço que ela me conte como era o seu quarto. Ela começa a desenhar a divisão interna de todos os
cômodos de sua casa. Ela se confunde e se corrige. Acompanho os seus erros sem fazer qualquer
comentário, mas penso que a dificuldade no arranjo da casa não é uma dificuldade de relação espacial,
mas das relações humanas vividas em sua casa.
As relações humanas são móveis e o móvel é que confunde, porque implica em continuidade não fixa,
em sentimentos diferentes, da alegria à frustração e também de um desejo. Esta complexidade
características das relações humanas as tornam totalmente diferentes de uma relação espacial. V. faz um
esforço enorme para não bagunçar, não tirar nada do lugar. Mas mudar, bagunçar, sair do lugar, não é
uma escolha que ela pode determinar, pois é uma determinação do próprio tempo, da vida, do
crescimento dela.
Quando chega ao lugar de seu quarto ela diz: “Este quarto eu detesto”. Pergunto se ela gostaria de
mudar. Ela, muito cautelosa, dizendo que não sabia se seria possível, fala que queria um quarto só para
ela, onde pudesse ficar com as suas amigas, mas não sabia se ia conseguir dormir sozinha. Percebo um
desejo de mudança, de viver a própria intimidade, e também incerteza se poderia dar conta.

Depois do desenho, ela diz que quer trabalhar com argila e já trata de providenciar aquilo que precisa.
Por coincidência, nessa ocasião, eu também deveria mudar a sala para o atendimento das crianças.
Assim, acabo a sessão avisando que quando ela voltasse das férias nós iríamos para uma outra sala no
mesmo prédio.

Volta das férias

Estava claramente contente. De imediato, retoma o seu trabalho feito em argila da última sessão
anterior às férias. Mas logo fica desgostosa quando o observa e comenta que havia rachaduras. Quer
destrui-lo, numa reação imediata e silenciosa de raiva. Então digo que ela fica com muita raiva quando
algo não sai como ela esperava. Digo também que sua raiva não acabaria se ela simplesmente quebrasse
e jogasse fora aquilo que ela tinha feito com tanto cuidado. Peço que ela não destrua e que tente
experimentar uma outra coisa: consertar as rachaduras. E, depois, caso ela não gostasse poderia jogar
tudo fora. Com relutância ela aceita a minha sugestão e passamos a lixar as peças e passar cola nas
rachaduras.
Foi um reencontro marcado por emoções intensas de contentamento, frustração, raiva e, depois, de
aceitação confiante e verdadeira que permitiu que ela aceitasse uma sugestão minha.

Na sessão seguinte, V. chegou e diretamente foi verificar as suas argilas. Ficou muito feliz com o
resultado e começou a pintá-las.
Em alguns momentos, fazia observações rápidas e indiretas: “Ele quer que o papagaio fale primeiro o
nome dele!”, “O papagaio é também machista... se for papagaio fêmea, ela não vai falar!”. Pergunto de
quem ela está falando. Depois que repito a minha pergunta, V. conta que o pai comprou um papagaio e
já disse que a ave vai falar primeiramente o nome dele.
Me ocorre como V. é tão sensível às condutas ou ao que o pai diz. Mas também percebo como ela
começa a expressar seu descontentamento com a autoridade e as imposições paternas. Ela está
claramente mais expressiva.

Outubro

Nessa sessão, V. estava muito insatisfeita pois não conseguia saber o que desenhar. Sem parar, ela fazia
rabiscos e ficava mau humorada. Decido falar algumas coisas que tinha observado desde que estávamos
nos encontrando:
1. Como ela sentia raiva quando não fazia o que queria;
2. Como ela não suportava olhar o que tinha feito quando saía diferente do que inicialmente queria,
achando que estava errado, mesmo que tivesse ficado muito bom;
3. Que ela não sabia gostar das coisas que fazia, mesmo que tivesse feito com muito esforço. Que ela
não sabia gostar de suas pinturas feitas com cores tão bonitas. Que ela não sabia reconhecer e querer o
que ela mesma podia fazer;
4. Que gostar é diferente de acertar, fazer o certo, do jeito certo, com resultado certo. Se na escola os
exercícios tinham que ser repetidos até que ela chegasse ao resultado correto, tudo o mais não era assim.
Nem quando ela fazia redação, não havia um resultado igual para todos os alunos;
5. Que o importante não era pintar certo, mas era curtir e mostrar o que ela sentia, queria e fazia.

Novembro

Já na sessão seguinte, quando ela vai escolher as cartolinas e tintas, ela “descobre” as velas, que sempre
estiveram na estante. Pergunta para que servem. Respondo que podemos brincar de modos muito
diferentes com as velas. Podemos acendê-las e descobrir o que podemos fazer com elas. Ela parece
encantada quando descobre que temos fósforos e que ela pode acendê-los. Mas logo ela se recusa,
dizendo que não sabe e que vai se queimar. Diz que tem medo de fogo. Pergunto se ela gostaria de
aprender a acender o fósforo e que eu poderia ensiná-la a fazer isso sem perigo. Ela sente medo, mas
aceita. Preparo uma base para fixar as velas. Depois, fico atrás dela, bem junto, seguro com uma mão a
sua mão, que segura a caixa, e com minha outra mão seguro a sua mão que segura o palito de fósforo.
Fazemos algumas tentativas até que ela encontra a pressão adequada para riscar a caixa, sem que o palito
se quebre ou que o movimento seja tão leve que não acenda. Afinal, conseguimos, e ela pede várias
vezes para repetirmos a nossa proeza. Ela está visivelmente contente, enche a mesa de velas e, junto
comigo, vai acendendo cada uma; depois, permanece observando todas as velas acesas.
Na sessão seguinte, providencio uma bacia com água. V. fica cada vez mais encantada, descobrindo
como pode construir várias formas com os pingos de cera que caem na água e que vão se juntando.
Ela aprendeu a acender o fósforo e, depois, ela começou a brincar com a vela acesa e com o giz que se
derretia em cera quente e que ela também controlava na forma como ela caia.
Nas sessões seguintes, gradativamente, V. vai prescindindo de minha ajuda, descobrindo nas várias
maneiras de brincar com a vela acesa, o encanto de não sentir mais medo. Ela deixa a sala escura para
iluminá-la com várias velas acendidas por ela. Às vezes ela diz que é noite e vai haver uma grande festa,
outras vezes que estamos num acampamento. Às vezes, ela simplesmente derrete as velas, colhendo a
cera líquida em forminhas. Depois que essa cera esfria, geralmente na sessão seguinte, ela brinca que fez
uma torta.
Ela também descobriu que podia amolecer o giz de cera na chama da vela para pintar um papel ou que
podia derreter o giz e simplesmente ficar admirando a cera caindo na água ou em um pedaço de
cartolina.
A experiência com o fogo dos fósforos foi muito rica. Inicialmente, ela mostrava o medo e, ao mesmo
tempo, a vontade de enfrentá-lo. Aprender a acender o fósforo foi uma experiência para V. de
entregar-se à confiança e enfrentar a ameaça que o medo traz. Ela ficou fascinada por controlar o fogo,
brincando com o fósforo, acendendo a vela e derretendo o giz de cera. Tanto no sentido do
compartilhar intenso de confiança e cumplicidade, quanto na descoberta que ela mesma podia
aprender a se defrontar com uma situação que ela achava perigosa e, assim, superá-la sem sofrer.
Assim, o medo do fogo e a fascinação pelo seu controle expressavam, ao mesmo tempo, algo que pode
ser desejo e ameaça. Há um risco em brincar com o fogo, mas é também fascinante poder controlar esse
risco com o cuidado constante necessário para tal experiência. Afinal, onde havia risco, havia também o
fascínio de controlar o risco.
Essa experiência mostrava que é necessário se arriscar para se conquistar algo e que havia um encanto
especial em não sentir mais medo. Ela experimentava a liberdade de arriscar-se para uma conquista.
Quase sempre eu acompanhava o que ela fazia, eventualmente comentando o prazer que eu percebia
nela ou algum detalhe do que ela fazia. Às vezes eu perguntava se ela queria a minha ajuda para alguma
coisa. Quase sempre dividíamos as tarefas iniciais de cada encontro. Enquanto uma ia buscar água num
recipiente, a outra ficava arrumando, na mesa, os materiais necessários e já definidos por ela.
No final do mês de novembro, V. entrou em longas férias de dois meses e meio. Conversamos e
decidimos que nos veríamos na volta, em fevereiro.

De fevereiro a junho
Na volta das férias, apareceu um intenso envolvimento com a culinária que permaneceu por várias
sessões. V. brinca que é uma especialista de culinária em um programa de TV e eu sou a sua assistente
que lê as receitas e as cartas enviadas pelos telespectadores para ela responder.
Há uma intensa produção de tortas e também de trabalhos artísticos na confeitaria. As receitas de
morango são as preferidas. Argila, água, tintas, velas, fósforos, papel, canetas, forminhas, tigelas, não
podiam faltar naquelas intensas produções!
A “especialista de culinária” também experimentava novas receitas para atender às solicitações dos
telespectadores, enquanto eu – a sua assistente – as anotava.

Não parei de pensar que aquele intenso contato com os telespectadores era como um contato com os
outros, intermediado e protegido pela “câmara” e pela assistente.
Nesse semestre, além da brincadeira de culinária,V. também recorria à lousa para os exercícios de
matemática ou queria jogar forca (adivinhação de palavras).

Certo dia, V. conta uma “história muito triste” de quando sua avó era criança, ocorrida na 2ª Guerra
Mundial e que ela tinha tido muito azar pois tinha ficado soterrada por três dias. Quando ela acabou,
sem esperar, eu disse: “Que grande sortuda é a sua avó! Precisamos comemorar e você precisa dizer a ela
que ela tem muita sorte, pois depois de tudo que aconteceu ela sobreviveu, cresceu, casou, teve os filhos
e os netos! Que sorte!” Aquela era uma história de sobrevivência: a ameaça do viver transformada em
história de sorte. V. somente me olhou e nunca voltou a falar daquela história ou da guerra...
Minhas provocações continuavam quando a chamava de “Senhorita Mistério” ou dizia quando ela
ficava brava com o que fazia “É melhor ver o que você não gostou para, depois, tentar fazer diferente ou
perceber que você não tinha olhado direitinho, com cuidado e paciência”.
Minhas anotações: percebo os medos, mas também curtição e prazer.

2º Semestre – Depois de férias longas de quase dois meses

Setembro

Insatisfeita com o que faz. Nada está bom. Desiste, não sabe a que se dedicar.
Às vezes, parece entediada – as mudanças em sua vida são muito poucas e as possibilidades
controladas. Não deixo de pensar em certo vazio provocado pela angústia e no conflito entre o mundo
do crescimento, que aparece cheio de ameaças, e o infantil, que ela tem que segurar por medo de crescer
e se tornar aquela adulta cheia de medos.

Outubro
O interesse pela culinária voltou e se ampliou para além das tortas e bolos feitos nas brincadeiras.
Fizemos um bolo de chocolate na cozinha da clínica – com fogão de gás, depois de um cuidadoso
planejamento anterior em que decidimos que V. traria a receita e que eu providenciaria os ingredientes.
Logo depois, os pais comunicam que decidiram mudar de residência para outra cidade no início das
próximas férias.

Novembro

Passamos a conversar sobre as mudanças que estavam para ocorrer, além da interrupção de nossos
encontros.
No final do mês, V. se afasta definitivamente da terapia. Se considerarmos a motivação inicial dos pais
para a terapia de V. como a procura para a superação dos medos crescentes da filha, já nas primeiras
sessões isso acontecia. No entanto, o sentido da terapia para V. foi sendo descoberto na continuidade
dos nossos encontros, ocasiões nas quais ela se percebia mais confiante para sentir, falar e fazer o que lhe
parecia importante. Brincar, pensar, reclamar, desenhar, pintar, experimentar novidades, se descobrir
junto a alguém que a acompanhava, a respeitava e a provocava sem recriminá-la, incentivando-a a olhar
para o que temia, é como podemos descrever o processo terapêutico de V. Aos poucos, ela se sentia
menos ameaçada pelo mundo em que, antes, tudo parecia um grande perigo. Desse modo, pode
recuperar a confiança necessária para o próprio crescimento.
Nesse sentido, posso dizer que o processo terapêutico de V. foi uma experiência muito favorecedora
para que ela pudesse crescer com mais autonomia e enfrentar as dificuldades que surgem no lidar da
própria vida.

51 Livro infantil de Chico Buarque de Hollanda.


52 De William Shakespeare, na edição juvenil especial de Charles e Mary Lamb.
53 Conto de Miguel Perosa.
54 Conto dos Irmãos Grimm.
PARTE III

AULAS E SEMINÁRIOS
I – TRANSTORNOS DE CONDUTA: VISÃO DASEINSANALÍTICA 55

Transtornos de Conduta

As queixas de Transtornos de conduta – com todas as variações diagnósticas presentes no universo


clínico da psicologia e psiquiatria – têm sido uma presença cada vez mais constante em nossos
consultórios. É significativa a variedade de casos diagnosticados como TC (Transtorno de conduta),
TDAH (Transtorno do déficit de atenção e hiperatividade) ou TOD (Transtorno opositivo desafiador)
que são medicados com Ritalina e outras drogas.
É constante o aumento desses diagnósticos e isso se deve, em parte, à amplitude dos sintomas que os
transtornos de conduta abarcam e, por outro lado, à necessidade atual da classificação das condutas que
inspiram a preocupação e o cuidado como uma perturbação, geralmente de agressividade da criança ou
do adolescente, em quadros diagnósticos comuns e gerais.
Não desconsideramos aqui as pesquisas sobre fatores neuroquímicos ou fisiológicos, os estudos da
área da genética e aqueles sobre os problemas biopsicossociais decorrentes relacionados aos
denominados transtornos de conduta. Também compreendemos que, muitas vezes, em nosso trabalho
clínico, sejam necessários aplicativos ou medidas de caráter mais imediato para cessar situações difíceis
ou queixas que tragam algum risco.
No entanto, antes de classificar os transtornos de conduta dessas crianças ou jovens como sintomas
doentios ou efeitos de determinantes patológicos, é necessário compreendê-los como possibilidades de
corresponder às solicitações, restrições ou imposições do mundo em torno. Desse modo, descrições
empíricas, a partir de conceitos ou propostas de natureza científica, acabam por transformá-los em algo
diferente do que inicialmente são, uma conduta.

Sendo a Daseinsanalyse um método fenomenológico para a compreensão e descrição do que aparece


no existir humano, ela é, antes de tudo, um meio de acesso ou uma abordagem para o conjunto dos
fenômenos humanos, chamados comumente normais ou patológicos. Muitas vezes, esses fenômenos
aparecem de modo muito estranho. No entanto, a estranheza mesma de certos fenômenos humanos
deve permanecer em nosso horizonte quando procuramos compreendê-los melhor. Algumas vezes, não
podemos compreender de modo claro certas experiências. Se nos dispomos a buscar o seu
entendimento, não podemos explicar o que, de antemão, ainda não conhecemos. Nesses casos, é
importante não recusar, mas respeitar as limitações de nosso saber já constituído.
Na perspectiva da fenomenologia, é importante aceitar os limites de nosso entendimento,
sobretudo frente a situações ou fenômenos que nos são mais obscuros, uma vez que sempre partimos
do que se mostra, sendo o mais claro e evidente ou o que se mostra mais difícil de ser compreendido.
Isso não significa paralisar ante o que não compreendemos bem. Ao contrário, encontramos com a
fenomenologia um caminho para superar essas limitações, quando recuperamos a importância da
possibilidade de sermos surpreendidos diante do que aparece sempre de novo.

Quando nos defrontamos com “transtornos de desatenção ou de agressividade” é importante afastar


inicialmente qualquer interpretação moral de agressividade ou de violência.
Em seu primoroso livro Sobre a violência, Hannah Arendt contribui para o esclarecimento do sentido
desse fenômeno que, como lembra a autora, é interpretado mais comumente em si mesmo como a
exacerbação do poder e da força. Ao contrário, ela evidencia que “A violência não é fruto do poder, mas
da impotência”. Acolhendo esse pensamento radicalmente inovador, o psicólogo americano Rollo
May, em seu livro Poder e inocência, continua: “Pois a violência se nutre da impotência e da apatia. É
certo que a agressividade vem sendo levada para a violência com tanta frequência e regularidade que se
compreende facilmente o medo que inspira na maioria... Quando tornamos as pessoas impotentes,
promovemos mais a sua violência do que o seu controle”56
Seguindo essa relação original entre a violência e a impotência, no prefácio do livro de R. May
encontramos o seguinte poema de Jacob Bronowski, “The face of violence”:

“A violência está aqui,


No mundo dos sãos,
E a violência é um sintoma.
Eu a ouço no longo choro dos homens que fracassaram.
Eu a vejo nos sonhos terríveis de meninos
Cuja adolescência repete toda a história”.

Em sua cuidadosa análise, R. May considera a interligação entre a violência e a comunicação. Ele diz:

“O poder e o sentido de significação estão interligados... Quando o sentido de significação se perde, o


indivíduo transfere sua atenção para formas quase sempre pervertidas ou neuróticas de poder.”57

Encontramos em tais considerações a importância radical da palavra que, em sua falta, gera a violência.
Assim, a violência é apreendida originalmente como uma limitação ou ruptura, não de
comportamento, mas da condição existencial básica de poder-ser que se desdobra na fala. Podemos
tomar esse pensamento como ponto de partida para uma reflexão mais profunda sobre a conduta das
crianças e jovens, que se percebendo impotentes ou carentes na escuta da própria fala, reagem
agressivamente.

Visão Daseinsanalítica
Como entendemos a criança e o adolescente? O que podemos dizer de suas experiências? Como
podemos compreendê-los a partir do que já se mostra deles mesmos? Qual o sentido de sua reação? O
que eles querem? O que os desagradam? Que falta sentem? Como se sentem tolhidos? Quem não os
considera?
Para responder às questões acima, podemos inicialmente descrever as peculiaridades dos modos de
relação e das experiências das crianças e dos jovens junto aos outros em seu mundo. O que podemos é
descrever o existir da criança e do adolescente. Mas isso não significa elaborar uma descrição delimitada
por processos de desenvolvimento fisiológico, psicológico, cognitivo ou de interação social, nem por
classificações de comportamentos.
O que pretendemos é observar e compreender quem nos procura, a partir do que e como nos diz de si
ou de outro (no caso do adulto que fala de uma criança).O entendimento clínico se desenvolve, assim, a
partir de uma continuidade no âmbito da palavra e da busca do sentido em cada caso. Esse
entendimento difere da interpretação prévia do conjunto de sintomas enunciados e não busca
estabelecer uma intervenção imediata e pré-determinada. Assim, o que se busca aqui não é uma
explicação, uma determinação, nem uma causa para alterar.
Como nos alerta Guto (João Augusto) Pompeia, em comunicação oral em junho de 2017,

“é primordial que tenhamos já esclarecido o que significa compreender. Pois compreender não significa
explicar, tampouco quer dizer se submeter. A perspectiva compreensiva não é de submissão, aceitação
incondicional ou de não confrontação. Pois, quem se subordina ou justifica permanece externo ou se
distancia, abrindo um maior distanciamento com o sentido. De modo diferente, compreender é aproximar
para esclarecer o que se mostra.”

Compreendendo a queixa a partir da Daseinsanalyse

a) Prioridade da saúde

Medard Boss, em Existencial Foundations of Medicine and Psychology, é muito claro quando afirma
que o ponto de partida para a compreensão do ser humano é o ser sadio, e não a doença, e que devemos
abandonar todas as referências iniciais de qualquer psicopatologia. Pois, a doença ou os chamados
problemas psicológicos ou psicopatológicos não são algo em si mesmo, como uma estrutura à parte e
diferente da saúde ou um comportamento específico e diferenciado nele mesmo. Mas é uma restrição
das possibilidades de existir de alguém que não consegue agir e reagir de modo mais livre aos diferentes
apelos ou imposições da própria vida. Essa restrição que impede o viver mais rico em possibilidades
diferenciadas e adequadas, conforme a sua amplitude, pode provocar mais ou menos dificuldades e
sofrimento.
Assim, os modos de ser-doente representam um aspecto privativo para as realizações de determinado
modo de viver. Para eles serem compreendidos, temos que conhecer primeiramente o existir de cada
um, isto é, como é a pessoa e o seu mundo e, então, entender o seu adoecer.
Para Boss, os seguintes aspectos devem ser colocados para o terapeuta:
– Qual é a possibilidade de relação existencial que está perturbada? (Relacionamentos interpessoais,
restrição de autonomia, atividade escolar ou profissional, mobilidade);
– Qual é o âmbito existencial que está comprometido nessa relação? (Afetividade, corporeidade,
compreensão);
– Como tal perturbação se manifesta? (Violência, agressividade, medos, pânico, ansiedade,
impulsividade, dores específicas, enxaquecas, distúrbios de sono ou de alimentação).

A partir dessas interrogações, podemos elaborar uma patologia mais de acordo para cada um que sofre
restrições em seu próprio existir.
Essa reflexão pode provocar uma mudança radical também nos conceitos do DSM III dos direitos dos
outros e da sociedade constantemente violentados pelos considerados transtornos de conduta.
No caso das crianças e adolescentes, compreendemos o adoecer e os problemas emocionais como uma
limitação tanto de sua própria condição como das oportunidades para a descoberta das possibilidades
sadias de crescimento. Não poder descobrir, experimentar ou desenvolver as próprias possibilidades de
crescimento implica em sofrimento. O sofrimento que a criança experimenta constitui uma ameaça à
sua condição humana. Essa ameaça pode vir diretamente do mundo ou do seu lidar com esse mundo.
Assim, é também preciso, antes de tudo, olhar e compreender como é a vida da criança em cada caso e
como ela se conduz nas diferentes situações, isto é, como se relaciona com a própria vida.

b) História da queixa e a história de vida da criança

As queixas que motivam a procura pelo acompanhamento “psicológico” relativas às alterações de


conduta das crianças surgem de diferentes orientações. Elas podem surgir a partir de recomendação
escolar ou médica ou da observação de situações em casa.
São frequentes as queixas relativas a:
– Dificuldades de entrosamento com colegas, retraimento, timidez, exposição social ou falta de
interesse escolar;
– Inseguranças ou medos crescentes, pesadelos, recusa de dormir na própria cama, enurese noturna;
– Agressividade, desatenção ou desobediência;
– Choros constantes aparentemente sem justificativas.
Muitas vezes essas queixas sobre as condutas das crianças estão relacionadas a mudanças que
ocorreram na família, como nascimento ou crescimento de irmão, separação dos pais, mortes ou
mudanças de moradia, de cidade ou de país. Mas, a preocupação preventiva dos pais também pode
motivar a procura pelo cuidado especializado, ante a possibilidade de alguma mudança.

Mas, a história da queixa não deve ser confundida com a história de vida da criança.
A queixa, por mais aguda ou grave que seja, é apenas uma descrição ou referência ao modo de reagir
da criança que enfrenta ou foge de uma situação difícil para ela ou para o mundo em geral. Assim, a
queixa deve ser compreendida como algo – uma situação ou momento específico. A história da criança
é muito mais ampla. A história da vida é que é fundamental.
Se queremos conhecer melhor a criança, não podemos deixar que a história da queixa tome o lugar de
sua história de vida. Isto é, para compreendê-la, o importante não é colher dados que se seguem numa
sucessão cronológica e pré-determinada por uma anamnese padrão como, por exemplo, obter
informações decididas a priori sobre gestação ou parto podem não fazer a menor diferença em certas
histórias. Conhecer mais amplamente a criança é descobrir como é o seu mundo, como ela reage e
interage com esse mundo e como ela compreende esta relação:
– Com quem a criança se relaciona e como é sua relação, em casa e na escola, com as pessoas próximas
e com o mundo mais amplo;
– Quais oportunidades a criança têm para realizar o que gosta e como reage ao que não quer, mas que
necessita conviver;
– Como é o seu desempenho na escola e em seus aprendizados mais amplos.
Também é importante esclarecer como é a relação dela com ela mesma: como se sente, seu humor (sua
tristeza, sua frustração ou como se mostra feliz), o que diz de si mesma, do que quer e do que não quer;
como ela dorme e come, seus apetites.
Tanto as reações de agressividade como os medos e a vergonha que as crianças sentem somente
poderão ser entendidos adequadamente se conhecermos como elas se sentem quando ameaçadas e o
que é ameaça.
Como poderemos saber o que significa a agressividade de uma criança? A que se refere aquele modo
de reagir agressivo? O que significa o anseio pela disputa, o desejo de se impor, de protestar, ou de se
esconder? Para esse entendimento, é necessário conhecer muito mais do que a história da queixa.
Por exemplo, no caso de uma criança extremamente envergonhada, é necessário compreender o que,
ou quem, a deixa tão exposta e o que nessa exposição a envergonha tanto. Somente assim é que
podemos compreender o que significam as suas recusas às oportunidades que aparecem e o seu pedido
constante da presença de alguém próximo para que ela se sinta protegida.

c) A queixa dos pais


Em todos os casos, as queixas relativas às condutas infantis revelam um caráter original dos fenômenos
humanos. Elas chegam primeiramente pela fala dos pais ou responsáveis que comunicam e expressam o
que eles entendem ou não entendem e o que os preocupam. Isto é, a compreensão da criança se inicia a
partir dos encontros com os adultos responsáveis, das suas preocupações, de suas aspirações e de seus
entendimentos dela e do mundo mais próximo ou mais distante.
Para compreender a queixa trazida é necessário esclarecer:
– Desde quando o adulto percebe as preocupações que motivaram a queixa, isto é, em que momento
elas começaram, o que naquele momento estava acontecendo e como a reação da criança parecia
estranha;
– Como e em relação ao que ou a quem se refere a conduta estranha da criança;
– Como os adultos responsáveis percebem a criança, o que sabem do que ela gosta e do que não gosta,
dos seus sonhos e dos seus pesadelos.

Com esses esclarecimentos, podemos também entender aspectos relevantes como onde e com quem
vive a criança, quais são as preocupações e expectativas relativas a ela, sobretudo ao seu futuro. Isto é,
para onde caminha o crescimento da criança no entendimento do adulto, pois sabemos como
“fantasmas” assombram os adultos em relação ao futuro das crianças. Muitas vezes “assombrações”
ganham um aspecto de incontornável determinação da realidade quando se trata do crescimento das
crianças.

Esse é o caminho para o trabalho do terapeuta com as crianças, mesmo que tenham sido elas que
tenham requisitado essa procura, como tem acontecido mais recentemente. Somente depois é que
podemos nos dedicar ao que a criança mostra dela mesma, quando a encontramos e escutamos o que
ela nos diz.
Desse modo, é do entendimento que temos da procura inicial dos pais ou responsáveis e dos advindos
dos posteriores encontros com as crianças que estarão se delineando os possíveis e mais adequados
caminhos a seguir com relação à queixa trazida.
Consideramos aqui que as possibilidades de atuação terapêutica são muito mais diversas do que o
específico acompanhamento terapêutico, como as oficinas de arte, de trabalhos manuais, música, dança
ou os esportes para a criança e/ou orientação e apoio para os pais ou responsáveis.

Entretanto, qualquer que seja a orientação para encaminhamento, quando aceitamos cuidar de uma
criança, recebemos também a tarefa de acompanhar seus pais ou adulto responsável. Pois, são os adultos
responsáveis, pais ou não, que respondem pela criança. Participando constantemente do mundo dela,
são eles que emprestam a própria autonomia para as escolhas que ela ainda não pode efetivar. Assim, os
responsáveis têm o poder de favorecer ou de restringir o crescimento da criança na sua melhor direção.
E isso acontece independentemente da vontade ou do bem querer deles.
Considerando esse lugar da responsabilidade do adulto, é fundamental ouvi-los, compreender e
aceitar as suas dificuldades e as suas virtudes, sem menosprezar a sua importância na queixa.

Entender o que os preocupam, como percebem essa preocupação e o que esperam de nós terapeutas é
a nossa tarefa inicial quando lidamos com uma criança.
A afobação para encontrar, de imediato, explicações para o que está acontecendo ou sendo dito deve
ser evitada, assim como resistir ao apelo desta necessidade é sempre importante. Desse modo, uma
única entrevista com os adultos pode ser muito pouco para entender a novidade trazida, para a reflexão
e para o encaminhamento mais apropriado. Outros aspectos relevantes podem aparecer após um
primeiro encontro, como também podemos explicitar dúvidas que inicialmente não haviam.

Ao nos dispormos a acolher as preocupações dos responsáveis e aceitar a parceria com eles no cuidar
da criança, a condição fundamental do trabalho terapêutico pode ser instaurada, a confiança dos pais.
Pois, somente numa relação de confiança é que podemos decidir conjuntamente sobre os melhores
caminhos a seguir.

d) Contatos iniciais com a criança

Nessa oportunidade, especialmente preparada em um lugar adequado para o acolhimento de crianças,


podemos melhor conhecê-las a partir delas mesmas, do que dizem ou não de si mesmas, e nos
aproximar para perceber diretamente como elas reagem, as suas dificuldades e as dificuldades apontadas
pelos adultos, sem confrontá-las com o já sabido. Procuramos perceber o que aparece espontaneamente
em seu mundo e o que permanece mais encoberto, as suas limitações, o que e de quem mais gostam, o
que não gostam ou se não gostam de alguém.
Nesses encontros com a criança, podemos também descobrir se as aflições dos pais e de seus filhos
correspondem às mesmas experiências ou evocam as mesmas percepções, uma vez que elas
correspondem e respondem a mundos percebidos de modos distintos. Nem sempre onde mora a
preocupação dos pais é o mesmo lugar onde moram as preocupações ou tensões da criança.

Os desenhos, as brincadeiras e as histórias oferecem excelente oportunidade para nos aproximarmos


das crianças.
A experiência clínica aponta que é importante deixar o mais claro possível logo na primeira ocasião,
para cada criança, que o que ocorre nos encontros terapêuticos é preservado e não será levado para as
conversas com os pais ou responsáveis, a menos que ela decida diferente. Nos encontros com eles
comunicamos apenas o nosso entendimento e não o que ela tiver feito ou falado. É surpreendente
como as crianças entendem essa diferença, confiam e, muitas vezes, até gostam que seja dito para os seus
pais o que elas pensam, gostam ou fazem. Compreendo que, para as crianças, a nova experiência
terapêutica é sempre expressão de cuidado com ela mesma.

Alguns encontros com a criança são necessários antes de nova entrevista com os pais ou adulto
responsável para a decisão do encaminhamento. Antes, porém, é importante esclarecer se a criança quer
continuar a vir às sessões e também o que pensamos sobre isso.
Com esses esclarecimentos e o respeito às promessas feitas, já tem início a fundamental condição da
terapia: a confiança da criança.
Não é raro percebermos alguma mudança na conduta da criança a partir das primeiras entrevistas com
os responsáveis, antes mesmo dos primeiros encontros com a criança, o que se deve a alterações que já
ocorrem também no entendimento dos pais ou dos adultos responsáveis. Pois, na procura dos pais, a
criança pode perceber uma atenção especial para com ela e, assim, se sentir mais confiante. Tal
confiança é fortalecida na própria relação iniciada com o terapeuta.

e) A chamada devolutiva

Na entrevista “devolutiva” com os pais, mães ou responsáveis depois dos encontros iniciais com a
criança, é uma oportunidade de compartilhamos o que nos chamou atenção nos encontros iniciais com
a criança - o jeito, as preferências e as dificuldades dela, sua sensibilidade, seu humor, sua curiosidade,
sua impaciência, seus medos, teimosias ou insistências, sua timidez ou sua criatividade - e esclarecemos
os nossos entendimentos a respeito dela e sobre a queixa.
Mas essa oportunidade não se restringe a comunicarmos as nossas conclusões ou sugestões, servindo
também à explicitação pelos responsáveis das possíveis e significativas alterações ocorridas desde a
procura do cuidado terapêutico. Se a queixa inicial já se alterou, isso não significa apenas que o cuidado
terapêutico seja desnecessário, mas que uma mudança tão rápida pode apontar que a criança já tenha
percebido a preocupação com ela ou que outras questões tenham surgido após a procura pelo cuidado.

A partir dessa entrevista, decisões tanto relativas às condutas dos pais como ao melhor caminho a
seguir pelas crianças são tomadas junto ao terapeuta. Algumas possibilidades podem ser consideradas:
– Início de um processo terapêutico com a criança, decidido agora com mais clareza;
– Terapia para um dos pais ou para os dois;
– Sessões de orientação com os pais;
– Aguardo por mudança na conduta da criança a partir das alterações do entendimento dos pais;
– Outras atividades específicas para favorecer o crescimento da criança: esportes, oficinas de trabalhos
manuais, dança ou teatro, reforço escolar, psicopedagogia etc.

f) Orientação

Algumas sessões com as mães, pais ou adultos responsáveis podem ser suficientes para os
esclarecimentos de dificuldades em relação às quais eles não estavam sabendo lidar com as crianças. As
entrevistas “de orientação” têm como foco o esclarecimento das questões dos responsáveis para
tornar possíveis escolhas mais apropriadas de condutas a seguir.
Em A tarefa do aconselhamento e orientação a partir da Daseinsanalyse, de Solon Spanoudis,
encontramos que orientar não quer dizer apresentar respostas certas para as perguntas trazidas, nem
significa estabelecer o que se deve fazer. Orientar é procurar a claridade para que se possa ver as
melhores possibilidades escondidas das situações ou condições vividas. Nesse sentido, a orientação serve
para ajudar a descoberta dos melhores caminhos a seguir e favorecer as próprias decisões em meio às
tarefas daqueles que têm a responsabilidade pelo crescimento de uma criança.

g) Daseinsanalyse terapêutica

Como a compreensão daseinsanalítica da queixa está voltada para a compreensão do viver em cada
caso, a Daseinsanalyse terapêutica com crianças também deve estar voltada tanto para o que já se
mostrou efetivamente, como para o que ainda é desejo, sonho ou fantasia, mas que pode, ou não, vir a
se efetivar para cada uma delas.
Daseinsanalyse terapêutica significa uma maneira de cuidar de outra pessoa. Quando se trata da
terapia com criança, esse cuidado tem a perspectiva de favorecer o crescimento mais pleno dela, o que
leva à superação das limitações e dificuldades do próprio agir. Isto é, a terapia daseinsanalítica com
crianças não se propõe a suprimir problemas, mas a aproximar os caminhos possíveis para o
crescimento em cada caso. Assim, a meta do trabalho clínico daseinsanalítico não é a doença, mas a
libertação enquanto descoberta e realização de possibilidades mais próprias de existir. Se as dificuldades
da criança são superadas, isso se deve às novas possibilidades ou perspectivas que o cuidado próximo e
significativo do terapeuta favorece, e não à supressão de fatores específicos.

Esse processo terapêutico que se destina à possibilidade do crescer mais livre se inicia com o
reconhecimento das condições singulares em cada caso e, assim, já se constitui em si mesmo como uma
nova experiência vivida pela criança. Quando ela pode compartilhar o cuidado responsável do
terapeuta que oferece o respaldo necessário ante sua própria condição de autonomia ainda encoberta, a
criança encontra a oportunidade de uma experiência quase sempre muito rica de proximidade com o
outro e consigo mesma.

É característica do cuidado terapêutico com crianças a atenção aos modos mais significativos do
tempo e do mundo na infância: as brincadeiras, histórias e conversas, assim como os desenhos e
construções em sucata que surgem em cada momento. Nesse contexto receptivo de aceitação nem
sempre fácil do que se segue em cada relação de modo singular, a criança facilmente se encontra mais
confiante e de modo espontâneo compartilha suas fantasias e seus temores. Podemos ver casas muito
distintas construídas com os mesmos materiais por crianças diferentes. Logo abaixo, as ilustrações.

Como terapeutas atentos à importância da singularidade expressa pela criança e procurando


compreender as suas dificuldades e capacidades mais ou menos vigorosas, podemos compartilhar
proporcionando novas situações e atividades, propondo considerações ou apontando os limites de seu
próprio agir. Assim, de início e de modo geral, não cabe ao terapeuta dizer o que a criança pode ou não
pode fazer no “setting terapêutico”, pois as possibilidades e limitações de cada atuação estão sempre
referidas ao sentido e significados específicos. A única coisa que, de início, pode ser garantida é que a
criança não será obrigada a fazer ou dizer o que ela não queira. Em si mesmo, esse aspecto torna a
relação terapêutica diferente de qualquer conduta didática, pois ao terapeuta não cabe ensinar à
criança o que ela tem ou não tem que fazer ou os melhores e mais aceitáveis modos de se
conduzir. O que cabe ao terapeuta é poder assumir a responsabilidade de favorecer à criança com
dificuldades e restrições a encontrar as próprias possibilidades alternativas e considerar as implicações
de suas escolhas. Desse modo, a terapia estará proporcionando à criança a oportunidade dela se
conhecer e agir com mais mobilidade e autoconfiança nos diversos âmbitos de sua vida.
55 Agradeço ao Dr. Paulo Germano Marmorato pela participação na mesa redonda em torno do tema “Transtornos de conduta e
afetividade”, no 1º Congresso Internacional do Serviço de Psiquiatria da Infância e do Adolescente do Instituto de Psiquiatria do HC da
FMUSP, em março 2007.
Esse tema integrou os Seminários Mensais – Daseinsanalyse e Criança na ABD, em fevereiro de 2014.
56 Cf. Poder e Inocência, parte I, “Loucura e ausência de poder”, p. 22.
57 Cf. nota 57, p. 31.
II – TERAPIA DASEINSANALÍTICA COM CRIANÇA: QUEIXAS DE
MEDO, RAIVA E VERGONHA58

A terapia daseinsanalítica é uma pratica clínica da saúde humana que se diferencia das escolas mais
conhecidas da psicologia pois encontra os seus fundamentos numa compreensão
fenomenológico-existencial do homem. Tais fundamentos próprios do ser humano – de nossas
experiências e condutas – são desde sempre de ordem ôntico-ontológica, sendo assim compreendidos.
Encontramos no livro Ser e Tempo, do filósofo alemão Martin Heidegger, a descrição dos
fundamentos existenciais do homem. Heidegger seguiu inicialmente a proposição da descrição
fenomenológica do filósofo e matemático Edmund Husserl, que apontava a diferença entre o
conhecimento exato, que pode ser desenvolvido pela coerência lógica, e o pensamento rigoroso, que
procura o entendimento de cada fenômeno em seu próprio acontecimento. Husserl não entendia que
as determinações causais para a compreensão do ser em geral e dos homens, em particular, constituíam
um pensamento rigoroso.
Heidegger aprofundou e inovou o pensamento fenomenológico para a compreensão do que significa
ser, voltando-se para o fenômeno do existir humano. Procurou descrever o que nele há de mais original.
A partir desse método, ele descreveu os fundamentos da nossa própria condição humana, que ele
chamou de Dasein – palavra alemã que significa ex-sistir ou ser-ai. A nossa estrutura
ontológico-existencial é sempre uma totalidade indivisível em que todas as “características são modos
existenciais e não propriedades de algo simplesmente dado”59 e estão desde sempre presentes.
No entanto, considerando o foco desta apresentação, ressaltaremos algumas perspectivas dessa
estrutura original sempre total.

I – Fundamentos existenciais da Daseinsanalyse

O homem se constitui como a “sua” abertura . Ser-aberto para a presença de tudo o que pode
60

aparecer é a nossa constituição mais original. Jamais nos encontramos finalizados ou prontos como
um objeto qualquer. O nosso existir nunca está assegurado por nada ou por ninguém. Temos de ser e
somente podemos ser quem somos: não podemos fugir deste modo essencial. Nessa condição
existencial – ter de ser e poder-ser – o existir está lançado. Esta condição implica que a cada um de nós é
que cabe cuidar de si e realizar a própria existência.
O homem é sempre ser-no-mundo. Essa é a nossa própria condição: existência e mundo se dando
originariamente juntos. Toda a ideia de subjetividade é possível somente para alguém que já existe e que
sendo-no-mundo explica, posteriormente, a si próprio e a vida em geral como algo interno e distante de
mundo. Para esta compreensão, fenomenalmente, todo existir já se dá sempre junto no mundo. Não há
existência independente ou sem mundo. Assim, não é mais adequado entender separadamente um
sujeito e um objeto como entes isolados.
Na analítica heideggeriana, o envolvimento constante com o mundo é o modo mais originário do
existir e é chamado de cuidado ou cura. A partir de Heidegger, o homem é aquele ente cujo modo
peculiar de ser se vê determinado pelo modo de ser dos entes dos quais cuida. Ontologicamente, no
cuidar de ser dos entes é de nós mesmos que cuidamos.
Nesse contexto, quando dizemos “mundo” não estamos falando de um conjunto de coisas ou objetos
que se somam, mas de uma região onde existimos numa familiaridade. É junto ao mundo que nos
encontramos sempre e, assim também, nos compreendemos. Ou seja, é sempre junto às coisas no
mundo que nos descobrimos como ou quem somos. Desde o nascimento somos no mundo e é aí que
sempre temos algum entendimento de nós mesmos e do mundo. Se o bebê sente frio ou fome, ele já
percebe o seu frio ou a sua fome e já entende a coberta ou o leite como o que pode acabar com o seu
desconforto, isto é, ele sempre percebe numa relação.
Para esclarecer: quando digo que o bebê “já percebe e já entende” isso não significa que ele tem um
pensamento conceitual ou intelectual sobre as coisas. Pois o entendimento humano mais original não é
primeiramente de ordem intelectual ou racional, mas se refere a um entendimento de si mesmo – sentir
frio ou fome –, a partir dos envolvimentos constantes nas próprias experiências, uma vez que estamos
sempre lidando com o mundo de um modo específico.
Disposição ou afinação é o modo especifico como nos envolvemos. Assim, o envolvimento com o
mundo sempre se dá numa certa disposição afetiva e é a partir desta que podemos entender,
originalmente, os nossos sentimentos e emoções.
Heidegger diz61 que “é um mérito da pesquisa fenomenológica ter recriado uma visão mais livre dos
fenômenos” afetivos, pois desde Aristóteles,

“os afetos e sentimentos passaram a configurar tematicamente entre os fenômenos psíquicos, ao lado da
representação e da vontade. Eles foram rebaixados a fenômenos subsidiários”.

Essa visão aristotélica está presente em toda a história da psicologia.


Ainda no mesmo parágrafo encontramos:

“Disposição é o modo de ser existencial em que o Dasein permanentemente se abandona ao mundo (usual,
ao familiar) e por ele se deixa tocar de maneira a se esquivar de si mesmo”.

Isto é, nesse envolvimento constante com o mundo em que cuidamos dos entes ou das coisas, somos
quem somos “afastados” de nós mesmos, de nosso próprio ser. Tal fenômeno do cuidado dos entes que
ao mesmo tempo distancia o si mesmo é chamado, por Heidegger, de “queda”. Pois, na “queda” do
viver cotidiano, a nossa condição fundamental de ter-que-ser sem garantias é limitada e esquecida por
nós, e nos sentimos seguros com o mundo que nos serve como abrigo e proteção.
Essas considerações a respeito da condição de ser-no-mundo se contrapõe à compreensão do homem
como um sujeito “certo e seguro”, em relação ao qual pode-se fazer afirmações gerais, certas e seguras.
Podemos entender a nós mesmos e nos diferenciamos de todos os entes em torno prioritariamente
quando nos distanciamos do abrigo conhecido e almejado que o mundo favorece e saímos da proteção
do conhecido e do controlado.
Na hermenêutica fenomenológico-existencial há dois modos de disposição existencial privilegiados a
partir dos quais, como ser-no-mundo, nos afastamos do mundo em volta e diminuímos a distância de
nós mesmos. Esses são a angústia e o temor.
Angústia e temor são disposições básicas existenciais fundadas na condição estrutural do existir
humano que aproxima a finitude própria, isto é, os próprios limites. Nessas disposições nos
encontramos mais distantes do abrigo do mundo, ameaçados, inseguros e “abandonados a nosso
próprio destino”.
Mas, a angústia se difere do temor. Na disposição do temor a ameaça se dá na presença intensa do
mundo que se mostra estranho e perde o seu caráter protetor ou que parece faltar. De modo diferente,
a angustia se dá como a disposição em que nos encontramos na retração do sentido do mundo que não
mais preenche a nossa vida com seus significados e, assim, nos encontramos expostos ao caráter próprio
de sermos nós mesmos lançados sem segurança.

II – Angústia e temor no tempo da criança

Em Ser e Tempo, encontramos que a “disposição do temor é reguladora do ser-no-mundo desde que
tira a própria existência do conforto do vivido” .
62

No tempo da infância, há uma primazia da presença do mais imediato sobre qualquer outro âmbito
temporal, do vir a ser (o futuro) ou do já sido (o passado). Sabemos que para a criança a presença mais
imediata é sempre a mais intensa. O caráter imediato que marca as experiências do próprio viver na
infância se dá também sempre em conformidade com o mundo em volta mais próximo. Essa condição
revela que a criança carece de proteção.
Ressaltamos que a condição existencial infantil é descoberta em âmbitos de presenças mais imediatas e
de experiências de alcance de proximidade mais restrita. Desse modo, a criança vai se descobrindo e
conhecendo juntamente um mundo mais próximo e significativo; este lhe confere a proteção e o abrigo
necessários, cujo acolhimento ela pode se sentir segura. Quanto menor a criança, mais imperioso é o já
e, assim, maior a importância do acolhimento na proximidade.
Como diz Hannah Arendt:

“A responsabilidade pelo desenvolvimento da criança volta-se em certo sentido contra o mundo: a criança
requer cuidado e proteção especiais para que nada de destrutivo lhe aconteça de parte do mundo”.63

Quando o futuro (por vir) e o passado (já sido) vão se abrindo com a ampliação das possibilidades
64

desveladas, na continuidade das descobertas e das realizações que se dão e se rearticulam a cada
momento, a criança vai ganhando mais autonomia existencial – que chamamos de crescimento. Nesse
contínuo, tanto as possibilidades e singularidades pessoais como as diversidades do mundo vão se
desvelando. Mas, também o entendimento dos limites humanos, das forças externas e das incertezas se
amplia, o que pode provocar inquietação ou intenso temor.
Como cada ser-humano, a criança é carente de mundo, mas ela carece também da proteção de mundo.
Assim, quando falta a segurança da proximidade mais imediata do mundo, ela já se encontra exposta
em sua fragilidade, sofre e se desespera. Desse modo, ela se encontra na disposição do temor.
A “fragilidade infantil” não tem como base parâmetros cronológicos, fisiológicos ou de
desenvolvimento de uma “curta” existência. Mas, essa expressão considera a condição própria do tempo
na infância quando a criança se encontra em constantes mudanças provocadas pelas contínuas
descobertas de suas possibilidades e limitações e da diversidade do mundo, que chamamos de
crescimento. Nesse tempo, a condição essencial de indeterminação existencial do poder-ser se desdobra
de modo característico e radical, estando a criança carente da proteção do mundo para poder
suportá-la.

Boss descreve:

“Por mais amparado que tenha sido o lactente, a criança brevemente terá que experimentar a angústia, ora
em maior ora em menor medida. Esta é a chamada angústia interna instintiva. Mesmo uma criança de três,
quatro anos pode acordar sobressaltada noite após noite, em virtude de nos seus sonhos ver aproximar-se,
sempre reiterada, a mesma bola gigantesca e escura. Este acontecimento onírico corresponde à
aproximação turbulenta de todo o seu futuro humano. No entanto, na sua fragilidade infantil, ela ainda não
se sente capacitada a aceitá-lo e carregá-lo. Por isso, sonhando, ela teme a sua carga como uma
monstruosidade esmagadora. Nos pesadelos infantis com animais ferozes, assaltantes ou incêndios
devastadores, que de vez em quando perturbam as noites de praticamente todas as crianças, elas temem a
destruição de sua situação humana regulada e conhecida, no caos de forças compressivas, dominantes e
incontroláveis de sua vida natural”65.

Nesses pesadelos, a fragilidade original já se revela. Mas de modo ainda não claro, pois na sua
“fragilidade infantil” a criança se encontra temerosa ou assustada ante as ameaças que advêm da parte
dos acontecimentos ou dos entes do mundo – tanto da presença de animais ferozes, assaltantes ou
explosões como da falta, por exemplo, de pessoas e lugares familiares.
Essa condição existencial – que não pode ser evitada – é experimentada por cada criança do modo
como lhe é possível. Mesmo que não reflita sobre a sua “condição existencial”, a criança cuida de si e se
preocupa consigo mesma em seu próprio cotidiano. Em cada caso, a criança se entende e se diferencia
do que está em volta. No entanto, nem sempre as experiências de ameaça e de falta do abrigo do mundo
têm um caráter permanentemente dramático.
Por exemplo, uma criança se queixava junto à mãe que sempre lhe diziam “não”. Ela se sentia
“desgostosa” com tantos “não” que recebia. Mas, mesmo que se referisse à fala das outras pessoas,
aqueles “não” se dirigiam a ela. Desse modo, a queixa que fazia, se referia primeiramente a ela mesma,
que procurava esclarecer algo de si com a ajuda da mãe. Foi assim que a mãe entendeu quando
considerou: “Será que, quando as pessoas dizem ‘não’ para você, isso não tem a ver com o seu jeito ou
com o que você está fazendo? Será que você não está querendo ouvir as pessoas dizerem ‘não’ para
você?”. Aquela mãe esclarecia para o filho a própria condição existencial da proximidade entre ele e o
seu mundo imediato.

Em outro caso, uma menina de seis anos mais distanciada da ameaça imediata, começou
questionando: “Por que existe maldade?”. Em seguida, aproximando o seu próprio desconforto,
questionou: “O que faz com que a gente fique com medo?”, e conclui, “Quero que todos sejam felizes.
Quando tem gente triste, a gente fica com medo”. Essa garotinha inquieta se sentia desabrigada no
novo mundo de maldades que descobria. Mas, apesar de preocupada, procurava entender o que a
inquietava.

III – Queixas e os diferentes modos de temor

São diversas as queixas de preocupações ou dificuldades referentes a condutas ou sentimentos das


crianças que motivam a procura pelo cuidado terapêutico: medos, agressividade, roubo, enurese
noturna, falta de limites, ciúmes, dificuldades escolares, diagnósticos prévios, entre outros.
No entanto, mesmo que apontem para aspectos ou comportamentos distintos, há algo em comum
que pode ser encontrado em qualquer queixa de um responsável por uma criança: ela se encontra em
alguma relação de dificuldade com alguém ou alguma situação, com todas as pessoas ou situações
diversas. Mesmo que não seja a responsável ou a origem do “problema”, a criança pode se encontrar
com dificuldades e estar em sofrimento. Sofrimento também não se confunde com ser ou ter a causa.
De onde surge o sofrimento?
Quando a criança se sente ameaçada, se pressionada pelas solicitações ou imposições ou se percebe que
não é ouvida ou considerada, pode reagir de diferentes modos, desde o encolhimento que a leva a se
esquivar até reações de revolta, raiva e descontrole.
A percepção das dificuldades também antecipa e provoca temores ou sofrimentos que cada criança
experimenta também dos modos mais diversos. Isso se dá também quando a criança antecipa o que
pode vir a acontecer, relembrando o que aconteceu antes. Com a própria impotência – não-poder ou
não-mais-ser –, a criança pode se encontrar existencialmente frágil.
Como cada ser humano, ela experimenta e responde de modo específico quando se percebe em
perigo, desprotegida ou ameaçada em sua integridade, isto é, quando se encontra na disposição original
do Temor. Medo, raiva e vergonha são modos de reagir frente a aproximação e percepção de estar em
ameaça.

Fenômenos de medo
Medo é descrito como um sentimento de grande inquietação ante a noção de perigo real ou
imaginário, ou de uma ameaça. Do latim, Metu significa também susto, pavor e temor
Nos fenômenos de medo, antecipamos as possibilidades de ameaça (dos fracassos, erros e frustrações)
que “certamente” deverão acontecer e, impotentes, já reagimos procurando evitá-las como se realmente
serão presentes. Essas reações não necessitam de acontecimentos anteriores que as tenham
determinado. Nessa antecipação, o que está em jogo são as possibilidades de experiências futuras que
ameaçam o caráter essencial do não-poder (a exacerbação da im-potência), que se impõe e provocam o
encolhimento das possibilidades de agir, executar ou fazer algo no momento.
No entanto, o medo não se manifesta apenas no sentido de paralização, podendo também provocar
reações agressivas ou de controle que mascaram ou afastam o sentir-se ameaçado. As agressões
provocadas pelo medo têm inicialmente o sentido de evitar, não sendo assim as mesmas das agressões de
raiva.

Ex. 1 – Os pais me procuraram em um mês de março dizendo que desde o ano anterior a filha única
de seis anos se recusava a permanecer na sala de aula, ou na escola, sem a presença da mãe ou do pai.
Diziam que a filha era muito sabida e falante, mas, ao mesmo tempo, ela tinha medo de ficar sem a
presença de um deles, mesmo em casa. Eles estavam desesperados, “já chegando no limite do possível”.
Contaram que a filha desde os dois anos estivera numa escolinha maternal e que eles nunca tiveram
problemas com ela. No ano anterior, com cinco anos, ela mudou para uma escola maior e que o
primeiro semestre correu sem dificuldades.
Eles contaram uma situação de assalto no qual tiveram o carro roubado em frente à casa em que
moravam. Logo depois, mudaram de casa para um apartamento. A filha desde o início se recusava a
descer para o pátio do edifício e somente aceitava ficar sem os pais se fosse com uma moça que
trabalhava para eles desde ela era pequena. Eles entendiam que o assalto era a situação traumática que
provocou o medo da filha. Mas, ao mesmo tempo, não conseguiam entender como isso era possível,
pois a filha não tinha percebido o ocorrido, já que permanecera todo o ocorrido adormecida no colo da
mãe.

Eles pareciam ser um casal bastante unido e com relações familiares muito próximas. Ela bastante
preocupada com a saúde da própria mãe e com o estado mental da irmã. Ele tinha boas relações com os
pais. Os dois trabalhavam juntos em um negócio próprio.
Depois das duas entrevistas de costume com os pais, encontrei aquela menina. Os pais duvidaram que
ela entraria sozinha comigo na sala de brinquedos. Perguntaram como fariam se ela não quisesse entrar.
Eu não sabia e disse que iríamos ver como aconteceria.
Quando a menina chegou com o pai, fui encontrá-la e perguntei se ela sabia quem eu era. Disse-lhe o
meu nome, que já tinha conhecido seus pais e que eles queriam que ela me conhecesse também.
Convidei-a para conhecer a sala onde havia brinquedos, jogos e outras coisas que poderíamos fazer e
conversar. Depois de uma certa indecisão, ela aceitou vir comigo. Mas, antes de entrar na sala, ela disse
que iria chamar o pai.
O primeiro encontro de apresentação ocorreu quase que totalmente com a presença do pai, que
permaneceu em pé, somente olhando e parecendo desconfortável. Ao mesmo tempo em que eu ia
apresentando a sala, os materiais, dizendo o que podíamos fazer, ela mexia em tudo e perguntou como
fazia com os bonecos de marionete. Comecei a mostrar, mas ela não se interessou pela minha resposta.
Começou a desenhar e depois aceitou que o pai a esperasse na sala de espera, ficando com a chave do
carro. Ela desenhou uma menina numa cartolina vermelha.
O segundo encontro foi muito parecido com o primeiro, mas dessa vez com a presença da mãe.
Depois, aceitou que a mãe fosse para a sala de espera mais rapidamente que na sessão anterior tinha
concordado com a saída do pai. Conversamos mais, perguntei como era a escola. Depois perguntei se
ela queria desenhar. Ela desenhava e contava os mínimos detalhes da escola: onde ficava a sala de aula, o
pátio, a sala de professores, o nome de cada funcionário e onde cada um ficava. Também disse onde a
sua mãe ficava sentada no fundo da sala. Ela sabia tudo e tinha tudo sob controle, foi o que pensei.

A partir daí o meu entendimento mudou. Aquela pequena menina não estava fragilizada, à mercê de
um mundo ameaçador. Mais parecia que, frente ao que poderia tê-la deixado insegura, ela resolveu
reagir e controlar, com muita competência. Assim, a mãe e o pai permaneciam como ela determinava.
Enquanto ela se entretinha com os desenhos, que gostava muito de fazer, conversávamos muito. Eu
fazia observações ou imaginava situações das mais ingênuas às mais absurdas, rindo, brincando com
situações irreais e questionando. Seus desenhos eram muito caprichados e coloridos.
Ela dedicou-se por várias semanas a experimentar desenhar o seu cachorrinho, cada vez escolhendo
uma cartolina de cor diferente, até que, satisfeita, misturou tinta e colagem.

Ela gostava de conversar. Contou-me do gatinho de sua tia que tinha desaparecido e que depois tinha
voltado. Ela me disse que não gostava que a sua mãe atrasasse para buscá-la na escola, que a sua avó
estava doente e que não ia mais ficar boa. Nada parecia deixá-la inquieta. Ela parecia sempre segura.
Seguimos conversando e pensando o que poderia acontecer em cada situação. Falamos muito, de sorte,
de bons pensamentos, como eram os seus pais, que ela podia confiar neles. Em todos os encontros,
enquanto conversávamos, ela desenhava.

Certo momento, ela aceitou que seus pais não precisavam mais entrar na sala de aula, nem na escola.
Que iriam buscá-la, sem atraso, no final do período.
Seguimos até o meio do ano quando os pais decidiram que ela não precisava mais de terapia.

Tudo aconteceu a partir do assalto? Não me parecia assim, mas penso que naquele assalto a confiança,
sobretudo da mãe, ficou muito abalada. Aquela garotinha percebera a fragilidade dos pais e procurava
recuperar a sua segurança, mantendo-os em proximidade constante. Ela se encontrava tendo que
assumir o controle para si mesma de seus pais, para que ela mesma pudesse se sentir segura. Felizmente,
eles recuperaram a confiança e puderam deixar que ela seguisse a sua vida com mais autonomia na
escola maior. Para isso, tanto o acompanhamento terapêutico da criança como as poucas conversas com
os pais serviram para esclarecer a confiança não apenas dela, mas também deles.

Ex. 2 – Tomar para si o controle necessário para a própria vida, quando abandonado pelo adulto, foi
o que aconteceu com outra menina também de seis anos, cuja mãe, depois de se separar do marido,
deprimiu-se e permaneceu prostrada na cama. Quando voltava da escola, aquela menina sentava na
cama ao lado da mãe, onde fazia as lições e brincava. Ela contou o seguinte sonho: estava no meio do
oceano num bote com a mãe. De repente, ela viu que estava entrando água por um buraco no fundo
do bote. Ela mergulhou, fechou o buraco e voltou para se sentar ao lado da mãe. Assim, ficaram em
segurança no bote. Podemos entender que aquela pequena de seis anos reagia de uma maneira muito
peculiar tentando recuperar a própria confiança e a segurança na presença da mãe. Para reforçar a sua
própria confiança, mesmo com a mãe fragilizada, a terapia ajudou.

Ex. 3 – Os pais chegaram preocupados com o filho de quatro anos, gêmeo de uma menina. O filho
ainda fazia xixi na cama à noite, enquanto a irmã não. Ele reclamava de tudo e sempre dizia “não
quero”. Fazia o que era proibido e sempre justificava que não tinha sido ele ou acusava a irmã. Por tudo
chorava, mas, insistente, conseguia tudo o que queria. Os pais diziam: “É uma criança muito difícil,
totalmente diferente da irmã”. Tivemos dois encontros de orientação.
Durante a primeira entrevista, quando perguntei sobre os medos do filho, os pais disseram que nunca
tinham pensado sobre isso, mas que, a partir da pergunta, começavam a perceber que o filho era uma
criança medrosa: tinha medo de palhaço, lobo, teatrinho, não gostava de experimentar coisas novas e
não queria ir à natação. Também se recusava a ir dormir. Os pais até então pensavam que isso se devesse
à desobediência, insistência ou rebeldia do filho. Seguimos conversando sobre tais dificuldades e eles
esclareceram que o filho aceitava ir dormir somente depois que eram tirados todos os bichinhos e
bonecos que constantemente ficavam sobre a cama dele.
Perguntei também com o que o filho gostava de se entreter, de brincar. A resposta deles intrigou-me:
ele gostava daqueles bichinhos. Na continuidade do diálogo sugeri que eles poderiam conversar com o
filho para procurar entender se havia algum bichinho para ele especial e que, no mundo do faz de conta
infantil, poderia ser uma boa companhia enquanto ele dormia. Muitas vezes, também as crianças se
apegam, em especial a alguma coisa com o que desenvolveram uma familiaridade capaz de
tranquilizá-los, como o que ocorre com os amuletos para os adultos.

No segundo encontro, os pais queriam voltar a falar dos medos do filho. A mãe tinha aceitado
conversar com o filho, o qual disse que o bichinho mais querido “não ficava acordado porque tinha
medo”. A mãe, muito surpresa, explicava que não havia dito para ele, em nenhum momento, nada
sobre medos e que somente tinha sugerido, “como antes havíamos combinado”, que ele escolhesse um
bichinho que ficaria acordado durante toda a noite para tomar conta dele. Ela insistia sobre esse aspecto
e, na sequência, disse que lembrara que tinha sido uma criança também muito medrosa. Não fiz no
momento qualquer comentário.
Em seguida, os pais disseram que havia “outra novidade”: agora o filho não somente dizia “não”, mas
também outros modos como “agora não”, “não ainda” ou “daqui a pouco”. Ele tinha “ampliado os
‘não’”, mesmo que, “quase sempre, nem sabia o que queria. Parece mesmo só querer reclamar e achar
ruim”.

“Não” pode significar uma simples negação de alguma coisa, como “não quero isto”. Mas, quando a
oposição é constante, também pode apontar uma recusa como um modo geral de ser e se perceber. Para
o que ele dizia aqueles “não”? O que queria aquele menino dizendo não “para tudo”?
Ele não dizia o que queria, mas somente que não queria. Parecia querer marcar uma posição ou se
impor. Assim, entendi que o mais importante não era questionar e repreender aquela criança, tão
confusa, por dizer “não” sem saber o que queria; ela parecia apenas querer se afirmar e ser percebida de
um modo diferente (da irmã?). Mesmo que isso não fosse fácil.
Esvaziar o poder impeditivo do “não”, desdramatizar a oposição, era o principal. Para isso, são
necessárias paciência e calma. Assim, sugeri que nessas ocasiões os pais perguntassem ao filho: “O que
você quer agora? O que você prefere neste momento?”. Poderia ser que ele não tivesse resposta para dar
– e provavelmente não teria, mas a própria pergunta poderia indicar que ele estava sendo ouvido.
Então, os pais poderiam dizer “enquanto você não souber, você pode fazer o que sugerimos e, depois, a
gente ouve o que você tiver descoberto”.
Coincidentemente, os pais lembraram que, durante a gravidez do filho menor de três meses, a irmã
gêmea tinha crises de birra, se jogava no chão e se debatia chorando. Mas isso tinha passado e, agora, era
o filho que estava com dificuldades. Sobretudo a mãe, que poderia estar sentindo a exaustão das
dificuldades advindas com três crianças – um bebê de meses e gêmeos de quatro anos.

Oito meses depois daqueles dois únicos encontros, os pais retornaram. Os gêmeos estavam com cinco
anos e o menor com um ano.
O filho continuava “com problemas, continuava disputando muito, se opondo a tudo e questionando
qualquer coisa, enquanto a irmã era conciliadora”. Eles diziam que o filho: “tem vários recursos para a
gente fazer o que ele quer! Ele é insistente! Persistente! É raivoso e facilmente mostra que está
insatisfeito”. O jeito do filho já prejudicava até os encontros da família com os avós, que nem sempre
tinham paciência para os seus choros.
Os gêmeos haviam mudado para uma escola maior em classes diferentes. No início, frequentemente, o
irmão queria ficar com a irmã na classe dela. Agora estava bem adaptado e tinha seus próprios amigos e,
sem problemas, permanecia em sua própria sala.
Chamei atenção sobre a diferença entre o comportamento difícil do filho em casa e como ele era
querido e tinha amigos na escola nova.

No segundo encontro, os pais começaram dizendo que “a semana tinha sido muito boa”. Mas logo o
pai relembrou que o filho, no dia anterior, havia acabado no pronto-socorro com um corte no dedo,
que foi suturado com cinco pontos. A mãe esclarece que o filho “se comportou muito bem e não
chorou. Ficou muito tranquilo no meu colo, mesmo depois, quando foi colocado na maca”. No
momento, o pai lembrou que quando o filho foi operado das amígdalas, também permaneceu muito
tranquilo e que foram eles, os pais, que estavam nervosos.
O que acontecia com aquele menino que permanecia tranquilo na escola e em situações mais difíceis
como as hospitalares e, em casa, tanto se transformava? Quando ele estava sob os cuidados de outros,
professores e médicos, ele parecia bem tranquilo, mas quando estava em casa, apresentava dificuldades
para os pais, sobretudo para a mãe. Muitas crianças se comportam como aquele garotinho, que não
encontrava em casa o que esperava encontrar: a mesma confiança e segurança que sentia com os
professores e com os médicos. Importante ressaltar que aquela confiança os pais também sentiam
naqueles professores e médicos que cuidavam do filho e que ele percebia. Onde estava a confiança em si
mesmos daqueles pais que eram tão importantes para o filho?

Alguns encontros depois, enquanto os pais continuavam a reclamar da conduta do filho – suas
oposições, as encrencas no café da manhã, o xixi na cama, as disputas com a irmã querendo sempre o
que estava com ela –, a mãe diz como se sentia culpada pelo tempo que passava trabalhando e pela falta
de paciência com as encrencas do filho quando chegava cansada em casa à noite. Muitas vezes ela
brigava e gritava de manhã e depois, na hora do filho dormir, se desculpava com ele dizendo que estava
errada. Algumas vezes chegava a chorar de remorsos. Ela também sofria.
Que afeto confuso que essa criança compartilhava com os pais! Sempre inconstante. Ora cheio de
irritação, ora cheio de culpa. O que ele podia esperar da mãe? Como ele podia confiar?
A mãe também lembrou que muitas vezes o menino dizia que ela era injusta com ele. Ela reconhecia
essa injustiça. Mas esclarecia que não havia uma preferência pela filha e que isso não era verdade, o que
algumas vezes o filho a acusava. Compreendi aceitando o que ouvi. Pois a injustiça com o filho não se
devia a uma preferência dela pela filha. Mas, o que não era justo era a sua atitude impaciente em relação
a ele: era injusto ela brigar tanto com o filho como fazia, a ponto de sentir-se culpada e depois ter que se
desculpar.
Ele sentia-se inseguro com as reações, sentimentos de culpa e falta de segurança da mãe. Por sua vez, a
persistente insatisfação do filho provocava uma constante irritação da mãe, que se agravava cada vez
mais.
A falta de confiança no apoio dos pais pode provocar sentimentos de mágoa – sentimento no qual o
medo e a raiva podem ficar escondidos. Certa vez li que, quando uma pessoa se sente magoada, está se
considerando merecedora além do que obteve ou se acha mais importante do que foi considerada e, ao
mesmo tempo, sente-se impotente frente à consideração faltosa do outro que não deu o que lhe era
devido. Daí compreendi a reclamação que o filho fazia da “injustiça da mãe”.
Era importante que aqueles pais estivessem atentos ao sentido dos sentimentos que sobrepujavam o
cuidado amoroso, tanto deles mesmos como os do filho, para que pudessem superar as dificuldades da
relação com ele. Desse modo, o movimento de insatisfação existente poderia ser interrompido.
Nesse caso, o trabalho de orientação seguiu esse ca-minho.

Ex. 4 – Uma criança de oito anos reclama e briga na hora de dormir, sempre querendo a cama dos
pais. Questiona que não tem que dormir sozinha enquanto os pais ficam juntos. Os pais dizem que a
criança tem medo de dormir sozinha e se sentem perdidos, não sabendo o que fazer.
Procuramos entender o que significa ter medo de dormir sozinha.
Dispor-se a dormir é deixar o mundo compartilhado do real, é entregar-se ao mundo dos próprios
pensamentos, fantasias e sensações, até o abandonar-se total ao sono.
Para essa entrega revitalizante, muitas crianças pedem a presença de um adulto querido ou de outra
criança, sem os quais não se sentem seguras. A companhia próxima de outros em quem confia deixa a
criança sentir-se mais tranquila, ante a possibilidade eventual do que pode aparecer, como os medos e
pesadelos.
O medo de dormir também pode surgir de circunstâncias infelizes ou difíceis para a criança que vê o
dormir assemelhado ao morrer. Essa proximidade não é rara e aparece em expressões como “dormir
eterno” e em situações fatais de crianças ou bebês que, entregues ao dormir, se afogaram. Essas são
experiências que podem tirar a tranquilidade do dormir até para os adultos.
Há ainda desconfortos e fragilidades ocasionais que um estado doentio pode trazer ao dormir, e que é
acalmado pela proximidade do adulto, a qual se faz necessária quando a criança se sente insegura.
Assim, mesmo que presente na queixa inicial, dormir sozinha quase nunca é o “problema”, mas uma
resposta da criança para o que a pressiona.
De onde vem a insegurança que ameaça o dormir da criança?
O “problema” da criança era percebido, no caso, como a recusa de ter que seguir as ordens dadas ou
ter que interromper o que ela estava fazendo. Podemos encontrar reações de rebeldia e recusa até em
crianças menores de dois anos. Rebelar-se contra ou ter que aceitar não podendo decidir são modos
de reação que apontam para a afirmação de ser ou de querer algo para si mesmo, contra a determinação
imposta pelo outro.
Quando a criança se rebela, ela pode ainda não ter claro para si os limites do que pode e do que não
pode, oscilando de posições prepotentes para outras de maior fragilidade. Mas o que ela quer é sempre
sentir-se mais potente. Nessas situações, o entendimento do adulto se faz crucial para a superação da
crise. Assim, ele deve assumir a inequívoca responsabilidade pela criança que tenta afirmar a própria
potência. É possível, além de esclarecer para a criança a sua condição atual e o que ela já pode,
considerar a importância de seu crescimento para que ela possa tomar algumas decisões. Pois, há
decisões que implicam em uma condição de futuro que ela hoje ainda não tem a autonomia de
descortinar. Esse pode ser um bom caminho para que a criança perceba e aceite a presença da
autoridade.
Se o adulto não se sente preparado para dar conta dos questionamentos infantis, sentindo-se inseguro,
culpado ou raivoso quando percebe as suas decisões contestadas, estará reafirmando a sua própria
insegurança e “autenticando” a oposição onipotente da criança. O “braço de ferro” somente reforça a
fragilidade e desconfiança tanto da criança como do adulto enredado em provar que pode mais.

Fenômenos de raiva, agressão, violência


O que podemos dizer da raiva, agressão ou violência?
Nos dicionários encontramos:
Raiva: fúria, violência, impetuosidade ou sentimento violento de ódio, cólera, rancor, grande aversão.
Agressão: ação ou efeito de atacar, assaltar, agredir, pancada, provocação, hostilidade, desafio.
Violência: ato violento, qualidade do violento. Do latim, violentu se origina em vis: força, vigor.
Exercida contra alguém, força militar, influência, poder, valor, da natureza de algo.
As três expressões são reações de alguém que age contra, com ímpeto, com força, de modo agitado,
intenso, veemente ou irritadiço.

Como fenômenos, raiva, agressão e violência são modos de reagir ao mundo quando nos encontramos
ameaçados, na disposição (ou afinação) essencial do temor, que se mostram de modo mais intenso em
muitas crianças. Diferentemente dos desdobramentos característicos do medo – de antecipar para
evitar o que é uma possibilidade –, nos fenômenos de raiva a reação mais característica é se encontrar
constantemente contra como antes em relação ao que já se deu. Desse modo, as reações são ligadas à
permanência do já ocorrido e às experiências temerosas já conhecidas e que constantemente aproximam
a condição da própria impotência e de perigo à própria integridade.
A psicóloga americana Violet Oaklander66 entende que raiva é uma vivência direta da tentativa de
rompimento da impotência: a criança vai contra o que a limita, o que a subjuga e a incapacita.
Essa autora diz que “a criança não sabe lidar com os sentimentos hostis gerados dentro dela pelo seu
ambiente hostil”.
O mais fundamental é que para o mundo parecer hostil, a criança já o percebe desse modo, a partir de
seu próprio sentir-se ameaçada, isto é, a partir de sua própria possibilidade existencial que traz a
compreensão da hostilidade do mundo.
Mas, para compreender o que significa a agressividade ou violência em cada caso, temos
primeiramente que olhar para cada criança. O que motiva as suas reações agressivas?
Quando nos aproximamos e conhecemos o seu mundo, podemos também entender melhor as reações
hostis das crianças em relação ao que está em volta, a sua contrariedade, ressentimentos, mágoas,
ciúmes, suas disputas, protestos, busca de dominação, sentimentos de medo, bem como a sua
impotência para expressar claramente seus sentimentos.

Como se apresenta a hostilidade do mundo que fragiliza e ao qual a criança se opõe? A seguir, um
exemplo.

Menino de oito anos, gêmeo de uma menina. A queixa inicial era a sua conduta “muito difícil na
escola e em casa” Na escola, ele desafiava os professores, não obedecia, fazia somente as lições que
queria, provocava os colegas e se recusava a falar quando não queria. Já tinha tido vários eventos de
confronto com as diversas autoridades escolares, as quais exigiram um acompanhamento psicológico
para que continuasse na escola. Os pais diziam que o filho: “não faz amizades na escola, é muito arredio,
briga com os meninos e brinca somente com as meninas. Ele é dos mais baixos da turma e é muito
“zoado” pelos colegas”. Os pais falavam de bulling. E, assim, como a irmã gêmea, estava na quarta
escola. Todas as anteriores tinham sido bilíngues.

Em casa, se recusava frequentemente a comer o que era servido na mesa, brigava para dormir e para
fazer as lições. As recusas e desobediências também ocorriam na atividade esportiva que frequentava.

No início da primeira entrevista, a mãe discorreu sobre a gravidez e parto dos gêmeos: queria ter filhos
e fez um longo tratamento para engravidar. Disse que depois se arrependeu e que “nunca deveria ter
tido filhos”. As crianças nasceram de parto prematuro e o menino teve complicações sérias, infecção na
UTI e risco de vida que lhe acarretou uma sequela auditiva. Nasceu também com uma deficiência de
visão e desde cedo usava óculos.
A mãe dizia que o filho “é impossível, agressivo e não faz nada que é para fazer”. Nesse momento da
entrevista, os pais se desentenderam. A mãe criticava o pai de não fazer o que deveria fazer e que fazia
tudo o que o filho queria. Repetidamente ela dizia, irritada: “Eu só quero que você diga o que ele tem
que fazer”
O pai me olhava e dizia: “É assim! Ela sempre acha que eu tenho que fazer o que ela quer”, “Ela é
muito dura e só grita com ele”.
O pai, muito mais velho que a mãe, estava no terceiro casamento e tinha dois filhos mais velhos.
Apesar dos desentendimentos nas atitudes a seguir, os pais concordavam quanto às dificuldades do
filho. Ele foi encaminhado para mim em meio a uma discussão entre médicos sobre usar ou não
aparelho auditivo.

Enquanto ouvia as queixas dos pais, eu pensava naquele menino que eu ainda não havia encontrado e
o seu mundo tão conflitante. Ante os conflitos entre os pais, eu considerava as reações agressivas da mãe
com o filho e com o marido, que também reagia, desqualificando o que ela dizia.
Impactada por tudo o que ouvira e tendo informações anteriores do médico que me indicara,
marquei para encontrar o menino. Pensava nele confrontando e desafiando as ordens da casa, da escola,
do mundo em geral.
Primeiro encontro com o menino.
Ele entrou na sala com facilidade, era um menino afetivo, com voz doce e dizia que os pais disseram
que aqui ele podia brincar. Disse que gostava de brincar de montar, adorava jogar xadrez e que tinha
sido campeão deste jogo na escola.
Assim foi como passamos as primeiras sessões: montando castelos medievais com cavaleiros e guerras
de reinos inimigos, jogando xadrez enquanto ele contava somente sobre as lições e trabalhos dos quais
gostava. Gostava também de cantar em inglês. Algumas vezes ele escolhia um novo jogo, como jogos de
carta. E em resposta a qualquer pergunta que eu fazia sobre dificuldades ou desentendimentos na escola
ou em casa, ele desconversava, ignorava, dizia que não queria falar ou que estava tudo certo. Quando as
sessões com aquele delicioso garoto acabavam eu permanecia pensando como poderíamos nos
aproximar de modo que os nossos encontros pudessem ser oportunidade para que as suas dificuldades
pudessem aparecer.
Depois de algumas sessões, enquanto jogávamos, descobri como podia inovar: chamo para a sessão o
meu “coterapeuta Pinóquio”. Explicando melhor: na sala de brinquedos há um Pinóquio de madeira
que nunca tinha aparecido em nossas brincadeiras. Comecei a conversar com o boneco, dizendo coisas
assim: “Pinóquio, o meu amiguinho vem aqui, mas não quer conversar comigo. Diz para ele que ele
pode confiar em mim. Acho que ele ainda não sabe disso. Ele precisa saber que pode falar comigo, que
quando ele quiser dizer alguma coisa eu vou ouvir e que as coisas que parecem ruins, podemos
descobrir que podem ser melhores”.
De início, ele se surpreendeu, virou-se procurando com quem eu falava, não viu e me perguntou
quem era. Mas, não parecia muito entusiasmado com a minha “brincadeira”. No entanto, a partir
daquela sessão, era para Pinóquio que eu dizia o que o menino não queria ouvir. Isso acabou virando
uma brincadeira nossa. Ele “brigava” ou escondia o Pinóquio e eu continuava falando as coisas mais
variadas que me faziam sentido no momento. Ele parecia gostar de minhas “provocações” com
Pinóquio, ria e, às vezes, perguntava se eu não falaria com o boneco.
Soube naquela época que ele estava menos intolerante na escola.

Alguns meses depois, a mãe pediu uma entrevista, na qual me informou que os pais estavam se
separando judicialmente, mas que continuavam morando na mesma casa. Me surpreendo não com a
deterioração da relação do casal que já havia aparecido desde a primeira entrevista, mas com o desfecho
que estivera totalmente encoberto para mim. Será que a separação não estava sendo considerada por
ocasião das primeiras entrevistas? Pensava o que o filho sabia e como iria reagir?

Na sessão seguinte com ele, perguntei como estavam as coisas em casa. Ele se recusou a falar. Recorri
ao Pinóquio e ele ameaçou que se eu não parasse de falar ele iria embora. Disse-lhe então que
compreendia que ele estivesse tão triste e que eu ia esperar quando ele quisesse falar.
Ele parecia totalmente incapaz de expressar seus temores. Não podia dizer que ele era incapaz, mas se
mostrava assim. Ele resistia, estava com raiva, rigidamente permanecia em sua posição de não falar. Na
terapia quase não tínhamos confrontos, somente os próprios dos jogos e brincadeiras que resolvíamos
naquelas situações. Mas na escola e em casa, ele tinha voltado a não querer escutar, não obedecer, não
comunicar o que queria e negar-se ao que tinha que fazer. Sua conduta tornou-se muito difícil. Mas, eu
não insistia que conversássemos. Dizia-lhe se a mãe ou a orientadora da escola telefonavam e se recebia
recado do pai, que sempre vinha trazê-lo.
Dois meses depois o pai saiu de casa e, no dia seguinte na nossa sessão, o garoto aceitou falar comigo
sobre aquela saída. Estava muito triste, com raiva e, pela primeira vez, chorou.
Não era necessário desculpar a raiva que ele sentia nem as suas reações. Mas compreender e aceitar que
ele se sentia incapaz de resolver aquela situação entre os pais, que para ele era indesejada, e que se sentia
muito contrariado com o que percebia.
Como ajudá-lo a compreender e aceitar seus sentimentos e a fragilidade que queria ocultar? Como
seria possível mostrar-lhe que expressar e compartilhar a sua revolta não o fazia culpado ou responsável,
como muitas vezes a agressividade da mãe o fazia pensar?
Não se tratava de tentar convencê-lo de uma fantasiosa felicidade, como se o sentimento de
impotência não fosse nada. Mas se tratava de aproximá-lo da aceitação da própria impotência sem que
isso significasse a total impossibilidade de sua vida com o pai. Essa foi a direção que tomei até que,
depois de vários projetos da mãe de mudança de moradia, a terapia foi interrompida.
Fenômenos de vergonha, timidez, retraimento
O que significa vergonha?
No dicionário, encontramos os seguintes significados: comedimento, reserva, discrição, ter medo,
recear. Sentimento penoso de desonra, humilhação ou rebaixamento diante de outrem. Sentimento de
insegurança provocado pelo medo do ridículo, acanhamento, timidez. Sentimento da própria
dignidade.
O que diferencia a vergonha dos outros modos do temor é o caráter de retraimento de si próprio,
que está sempre referido ao modo como nos percebemos frente ao olhar do outro. A vergonha é uma
possibilidade que apequena e esconde as possibilidades de reação quando nos sentimos inseguros
perante o olhar ou a presença do outro. Esse retraimento impede um convívio mais pleno com os
outros. A percepção que envergonha pode ser muito restritiva e envolver toda a existência e o
encolhimento absorver todas as possibilidades de reação junto aos outros.
Com a percepção da precariedade e insegurança da própria existência que se dá junto à presença do
outro, nos encontramos envergonhados de nós mesmos, de como somos, ou o que fazemos. Assim,
uma criança envergonhada procura se esconder, como se a sua exposição retirasse a sua própria
segurança e conforto. O simples olhar de alguém estranho – percebendo ou imaginando estar sendo
olhada pelo outro – pode bastar para que a criança se sinta ameaçada.

V. Oaklander lembra como a percepção de certos sentimentos também podem provocar vergonha.
67

Perceber a própria raiva, inveja ou ciúmes pode provocar vergonha quando avalio que não deveria
senti-los. No entanto, é importante considerar que mesmo essa vergonha é também sempre perante o
olhar do outro.
É no entendimento do mundo, em relação ao qual a criança se sente exposta e ameaçada, que
poderemos entender a vergonha de uma criança, as suas recusas aos convites que a solicitam ou a
necessidade da presença de alguém próximo que a proteja, isto é, que possa poupar-lhe de se expor.
Certos gestos simples podem indicar a vontade de esquivar-se, como uma pré-adolescente que esconde
o rosto atrás de sua vasta cabeleira quando conversamos sobre alguns assuntos, como o seu interesse
pelos garotos.

IV – As queixas também encobrem

Algumas queixas não expressam diretamente, mas podem encobrir sentimentos ou acontecimentos
mais significativos. Esse é o caso das queixas de criança “mentirosa” ou que “mente”.
Quando ouvimos que uma criança ou alguém mente, consideramos normalmente que ela falta à
verdade, isto é, que fala ou faz algo que não corresponde à verdade ou à realidade comum objetiva. E os
responsáveis, preocupados com a conduta errônea da criança, se angustiam e questionam: “O que será
desta criança quando crescer?”. Nesse casos, o futuro já aparece restrito e ameaçado pelo caráter
desviante da criança. Sem esperanças, a preocupação com a criança “mentirosa” e com o seu futuro
errado considera apenas o caráter “negativo” do que ela faz ou diz. A partir dessa posição, somente cabe
suprimir o comportamento negativo.
Nos preocupamos, assim, quando uma criança encontra no mentir o seu caminho, pois esse é um
percurso de risco e de desaprovação geral.

O entendimento comum do mentir é tão carregado pelos significados de inadequação moral e de


contradição da realidade que qualquer outra possibilidade de aproximação parece impossível. A
mentira é sinônimo de falsidade ou afirmação que contraria a realidade. Por sua vez, mentir significa
comumente: falsear, ludibriar, falhar, induzir ao erro, iludir, não corresponder, prometer falsamente,
enganar, imitar.

Como esse entendimento que remete ao certo e errado, verdadeiro e falso, contrário a realidade, pode
nos auxiliar a encontrar o sentido e as motivações particulares de uma criança que mente? Nessa
procura, certamente não podemos permanecer aprisionados ao que objetivamente é dito sobre o que a
criança faz ou diz. Podemos ainda perguntar o que ela quer com isso? Qual o sentido de sua conduta?
O que quer a criança ao mentir? O que o mentir aponta?

Como fenômeno, mentir é um modo de agir no mundo que expressa algo diferente do que mostra.
Isto é, o que na mentira é dito nunca deve ser entendido como o que é dito diretamente. Na mentira
se expressa outra coisa, que não é aquilo que diz. Assim, nesse fenômeno, há primeiramente uma
“contraposição” ou uma “contradição”. Mentir esconde e, junto a isso, expressa que há algo escondido
que não foi dito.

O que o mentir esconde? Esconde o que se quer ou se deseja, uma intenção e uma finalidade.
Mas, também, esconde alguém que não-pode mostrar claramente e não-pode mostrar o que
quer claramente. Assim, também o mentir aponta para não-poder, para a impotência e
precariedade.

Podemos entender uma criança que não pode expressar o que quer e engana, como alguém que quer
se proteger de querer aquilo que quer, frente às ameaças possíveis que o seu desejo traz. Nesse sentido,
mentir é uma experiência na qual a criança procura defender-se de sua própria precariedade e
impotência, frente à força de seu desejo.

Em resumo, todo mentir esconde e aponta para uma impotência e, ao mesmo tempo, é marcado por
uma intenção ou um desejo vigoroso de realizar.
As ameaças de impotência que a mentira esconde podem se referir às que amedrontam, às que
revoltam ou às que envergonham.
Assim, podemos ainda perguntar: o que ameaça a criança que mente?
– A insegurança frente a uma situação desconhecida: o medo do que poderá acontecer se for
descoberta;
– A repetição do que antes aconteceu: reprimendas ou ameaças anteriores;
– A percepção da própria condição de não-poder, que não podendo aparecer, se manifesta como
ameaça de ser quem é ou como é.

A partir dessas considerações, cada mentir ou enganar serve como tentativa de controle da criança para
evitar, para se contrapor, para prejudicar ou, ainda, para conseguir o que imagina não ser possível por
via direta.

Tal qual o mentir, quando algumas crianças tiram escondido pequenas coisas (que chamamos
comumente de roubar), aponta para um desejo de algo em falta.
Desejar algo que falta e não poder expressar o desejo ou não aceitar a limitação pode levar uma criança
a decidir pelo caminho aparentemente mais fácil da satisfação, do tirar escondido do outro.
Mas, é bom lembrar que o que falta nem sempre é aquilo que foi tirado.
Por exemplo, uma criança tirava escondido e escondia o presente que o irmão menor ganhava do pai.
Mas ela não aproveitava nem brincava com o que tirava. Deixava o brinquedo escondido sem acesso.
Assim, ela conseguia privar o irmão do brinquedo, mas sobretudo o que ela queria era privá-lo do
cuidado amoroso do pai, que ela mesma sentia não ter.
Outra criança tirava escondido dinheiro da carteira da mãe e levava para a escola. Lá deixava todo o
dinheiro na cantina para que todos os seus colegas comprassem as guloseimas que queriam. Ela
almejava a aceitação e a admiração dos colegas e, assim, fazer amigos.

Se a “mentira” ou o “roubo” visam em geral enganar ou prejudicar – o que tanto assombra os pais –,
traz também algo afirmativo de anseio da criança, que é o que devemos buscar entender em cada caso
no cuidado terapêutico.
V – Terapia Daseinsanalítica com crianças

A partir dessa compreensão fundamental, quando a criança é trazida para o acompanhamento


terapêutico, é muito provável que esteja fragilizada e impotente ante o temor de ser quem ela mesma
pode ser para expressar o que deseja realizar.

Para que serve a terapia


Tendo em vista o crescimento mais saudável da criança, o cuidado do terapeuta se traduz em oferecer,
em cada caso, o apoio específico necessário para que ela possa se lançar em confiança diante das
oportunidades de seu próprio viver, em relação às quais, muitas vezes, sente-se insegura e se esquiva.
Desse modo, o sentido inicial da atuação terapêutica está na busca pela confiança da criança para o que
ainda é novo para ela: o encontro da autonomia ainda encoberta e o entendimento das limitações de
sua condição existencial própria.
Ao mesmo tempo, o desdobramento do cuidado terapêutico se mostra no convívio com a criança.
Nesse cuidado, ela amplia as suas descobertas do que pode, do que não pode ou do que não mais pode.
Esses dois movimentos – do reconhecimento das possibilidades próprias e das dificuldades que
atravancam o crescimento – se dão conjuntamente e já constituem o caminho para a superação dos
próprios sofrimentos da criança. A proximidade e a confiança são simplesmente as condições
necessárias para o trabalho terapêutico com crianças.
Para esse caminho ser percorrido, compreendemos o sofrimento da criança sempre a partir de uma
restrição de seu próprio existir cotidiano. As restrições específicas quase sempre são expressão da
percepção de si mesma ameaçada pelos temores em relação ao mundo. Uma criança experimenta um
sofrimento emocional quando não consegue, de modo mais livre e confiante, descobrir e se desenvolver
em suas possibilidades mais amplas de crescimento, confrontando-se constantemente com a limitação e
inseguranças de seu mundo próximo.
A falta imposta pelas restrições do poder agir e dizer ou daquilo que percebe que
encontramos o sofrimento da criança. Sobre o que significa essa falta, Solon Spanoudis costumava
dizer em aula: “O problema não é o que eu sou, mas o que eu não posso ser”. Para cada criança, há um
caminho específico e próprio a seguir, a partir das diferentes possibilidades não há um único caminho a
seguir.

Daseinsanalyse terapêutica significa simplesmente isto: uma maneira de cuidar do outro visando a sua
própria autonomia. Desse modo, o processo que se destina à ampliação do viver da criança já se
constitui, ele mesmo, em superação de dificuldades anteriores que se dá gradativamente a partir das
descobertas contínuas de experiências possíveis e não possíveis. Assim, o bem-estar não será uma
consequência final e futura de um processo.
Por vezes, para melhor nos arriscarmos nesse processo, temos que nos dispor a recuperar alguns
modos de relação que frequentemente são esquecidos no tempo adulto e que estão presentes no tempo
da infância, no próprio brincar das crianças. Pensamos aqui nas possibilidades da fantasia e da
imaginação – possibilidades que aproximam a realidade de modo mais singular e livre, pois nas
brincadeiras podemos nos imaginar em um mundo que não se restringe ao que é comum e já dado.
Brincando, a criança presencia o que percebe e sente sem os limites da probabilidade, da lógica
pré-estabelecida e das leis morais em vigor e, desse modo, pode corresponder ao que se lhe apresenta,
imaginando soluções e atuações específicas para a brincadeira do momento. Nesse sentido, como já dito
antes, brincar amplia a realidade da dimensão do comum, do geral e de todo mundo para uma
dimensão do possível e do impossível. O brincar, como o mundo da fantasia, não se opõe ao real, mas é
um modo mais livre de considerar a própria realidade. Como também não está delimitado pelas
solicitações e exigências do mundo adulto, quase sempre o brincar se confunde com o tempo da
infância e das descobertas das crianças.
Na espontaneidade característica do brincar, a criança aproxima mais facilmente os seus temores,
desde os mais reais até os mais improváveis. Assim, o brincar constitui um excelente modo de
compartilhar como oportunidade terapêutica para a compreensão das crianças.

Para nos entregarmos à disposição para o brincar, temos ainda que superar algumas dificuldades como
a intensa preocupação com o errar e não saber ver – de ver e fazer errado –, e o medo de perder a
objetividade no meio dos acontecimentos infantis, características da intervenção técnica. Pois, o
controle, o fazer definido e as necessidades de segurança desconhecem os riscos do ser-livre do homem e
do cuidado relativo aos entes humanos. É preciso confiar que as nossas experiências genuínas e as
nossas lembranças pessoais da infância podem oferecer importante apoio para uma compreensão mais
ampla de nós mesmos e dos outros.
Essa compreensão da terapia daseinsanalítica está voltada mais amplamente para a condição existencial
histórica da criança que se desenvolve em cada caso.
Nessa oportunidade, especialmente preparada em uma sala adequada para o acolhimento de crianças,
podemos começar a conhecê-las a partir delas mesmas. Procuramos nos aproximar observando
diretamente como elas reagem e o que dizem ou não dizem de si mesmas, das dificuldades apontadas
pelos adultos e de suas dificuldades.
Assim, também, a compreensão da queixa na terapia daseinsanalítica se dá a partir da compreensão
existencial da história de cada criança. Para essa compreensão, é fundamental tanto aquilo que já se deu
efetivamente como o que de algum modo – nas ameaças e nos desejos – se apresenta, mas que ainda é
possibilidade, podendo ou não vir-a-ser. Assim, para compreender as queixas, é necessário muito mais
do que procurar explicações e causas – biológica, psíquica ou corporal – que determinam as
manifestações das “condutas inadequadas”.
58 Seminário sobre Daseinsanalyse e Criança – ABD, em 22/03/2014, apresentado também com o título de “Saúde mental e a clínica na
infância” no Sedes Sapientiae, São Paulo, em 11/05/2015, e como “Daseinsanalyse como exercício da compreensão clínica”, na PUC-SP,
em maio 2015.
59 Cf. Ser e Tempo, primeira parte, primeira sessão, quinto capítulo, parágrafo 28.
60 Cf. nota 60.
61 Cf. Ser e Tempo, primeira parte, primeira sessão, quinto capítulo, parágrafo 29.
62 Cf. Ser e Tempo, primeira parte, primeira sessão, quinto capítulo, parágrafo 30
63 Cf. Entre o Passado e o Futuro, “A crise na educação”, p. 235.
64 Abertura que constitui a própria história.
65 Cf. Angustia, Culpa e Libertação, p. 27
66 Cf. Descobrindo Crianças, p. 235.
67 Cf. Descobrindo Crianças, p. 235.
III – TERAPIA DASEINSANALÍTICA E O BRINCAR 68

Na conferência para médicos e psicólogos, “Sinais de alarme na psicologia e psicoterapia”, Medard


Boss diz:

“O que é anterior é o entendimento da existência humana em sua totalidade. Depois é que podemos
entender o doente e a doença como privação de sua condição humana de saúde”.69

A partir do horizonte que Boss expõe – compreensão prioritária da existência em relação ao


entendimento da patologia –, a Daseinsanalyse clínica é oferecida como processo terapêutico enquanto
um acontecimento que busca, pela aproximação e entendimento do viver próprio mais amplo, bem
como das possibilidades de relação mais próprias, a superação das dificuldades que restringem o viver
em cada caso. Assim, esse processo terapêutico não se constitui originalmente com o objetivo prévio de
supressão de condutas ou reações indesejadas e determinadas pela queixa –denúncia inicial, mas como
uma maneira de cuidar daquele que está em dificuldades ou sofrimento em suas relações mais
significativas com o mundo próprio e o compartilhado.

Terapia Daseinsanalítica na infância


Algumas considerações para a Daseinsanalyse clínica com crianças:

a) Uma relação de confiança é necessária

A relação entre a criança e o terapeuta é necessariamente de confiança. A criança reconhece e gosta de


compartilhar o cuidado do adulto próximo quando percebe nele, no caso o terapeuta, o apoio e
respaldo ante os seus temores e inseguranças, o que chamamos de sua condição ainda insuficiente para
uma autonomia mais plena. Dessa condição primeira da relação de confiança com o terapeuta, advêm a
possibilidade da atuação terapêutica cuidadosa e responsável que estimula a criança a encontrar os seus
caminhos para o enfrentamento e superação das situações e dos momentos em que a criança se sente
ameaçada, impotente, insegura ou desabrigada.

b) Prioridade da saúde

Medard Boss compreende os chamados problemas psicológicos como o sofrimento de alguém que
não consegue viver de modo mais rico, os diferentes apelos de sua existência no mundo.
Para uma Daseinsanalyse com criança, a existência se mostra inicialmente também pelas possibilidades
saudáveis. Assim, temos que considerar sempre quais motivações e faltas já estão presentes nos modos
como a criança em cada caso sente e age. O que falta ou o que ainda não apareceu são possibilidades
que de alguma maneira já tem presença no existir daquela criança. Não falamos aqui de potencialidades
a priori que terão de ser desenvolvidas na infância normal. Quando se trata de criança, as restrições que
provocam sofrimento referem-se a limitações tanto das próprias condições existenciais como das
oportunidades que lhe são oferecidas para a descoberta das próprias possibilidades de crescimento.

c) Prioridade da história de vida e não da história da queixa

A queixa deve ser entendida como um fenômeno que mostra algo e não como fato objetivo e empírico
composto por sentimentos determinados previamente, muitas vezes encobertos ou mascarados.
Suspender o juízo moral ou psicológico para o entendimento dos problemas é um caminho acertado.
Assim, não devemos ficar aprisionados na investigação de uma queixa, em torno da busca pelas suas
causas. Uma vez que a conduta está no âmbito da realidade impessoal, é a compreensão dos
sentimentos o fundamental para a compreensão da criança e de seu mundo. Os sentimentos são o
modo ou o tom como alguém é tocado pelo que percebe. Isso é inseparável da própria percepção de
qualquer acontecimento vivido em volta. É o tom, o sentimento, que possibilita o sentido pessoal de
toda experiência humana.
Como podemos entender o que se passa? O problema da criança é da ordem da própria compreensão
afinada. Isto é, refere-se a alguém que se sente afetado de algum modo pelas outras pessoas ou pelo
mundo, em geral, e reage de algum modo. O sentido da ação ou o que a criança almeja é o fundamental
para o entendimento dela.

d) A proximidade é a condição necessária para a compreensão da criança

A proximidade com o entendimento da criança deve ser procurada desde os primeiros contatos com
os pais, quando eles apresentam a queixa e as suas preocupações. Depois, a busca da proximidade deve
ser mantida também de modo original nos encontros com a própria criança, que se mostra diretamente
a partir dela mesma.
Esclarecemos aqui o modo da co-dependência entre adulto e criança. Na relação entre pais e filhos,
como diz Hannah Arendt, por um lado, a criança necessita da proteção e do cuidado de quem pode
antecipar as ameaças – que ela ainda não descobriu – do mundo e, por outro lado, o adulto responsável
que compreendendo as limitações do viver infantil, encontra em si mesmo a condição de prover o que
ainda não foi alcançado por ela. Assim, a criança – que ainda solicita ser protegida das estranhezas do
mundo – procura, na presença familiar, a condição para que tanto os seus desejos sejam realizados
como as suas necessidades supridas em proteção. Isso ela espera, mas nem sempre é correspondida
quando o adulto se des-cuida e, por isso, se desculpa ou procura se justificar de sua falta. Desse modo,
podemos dizer que há sempre uma relação de co-dependência entre adultos e criança.
Quando o psicólogo é procurado, o problema da criança já se tornou uma preocupação do adulto.
Mas aquilo que constitui a preocupação do adulto não é a mesma coisa que a dificuldade da criança. O
adulto se preocupa com o que percebe e com os desdobramentos que antevê na vida e no mundo da
criança. Isto é, enquanto a criança reage ao que sente e percebe de imediato, como as ameaça ao seu
mundo e a sua vida, a queixa dos pais ou responsáveis são da ordem da realidade comumente observada
e, assim, diz respeito a ações, reações ou comportamentos da criança. Desse modo, as possibilidades
existenciais da criança são aproximadas inicialmente a partir dos parâmetros do olhar do outro, mesmo
quando este se sinta preocupado.
Assim, as preocupações com a queixa trazida podem ressaltar prioritariamente aspectos e dúvidas dos
angustiados pais ou responsáveis em relação ao futuro da criança e a como imaginam que será o
crescimento dela. Essas preocupações podem ser legítimas ou não.

É necessário ressaltar que a reconhecida importância dos adultos responsáveis não significa que os pais
detêm a razão ou a culpa dos problemas dos filhos. Tal consideração ignora que eles também estão
enredados naquela situação para a qual os responsáveis não encontram saída. Se isso não estiver bem
esclarecido, a “culpa de terem feito algo errado”, que muitas vezes acompanha os pais, é reafirmada.
Em Merleau Ponty na Sorbonne – Resumo de cursos Psicossociologia e Filosofia, encontramos:

“Quando nós observamos uma criança é difícil subtrair de seu comportamento o que depende de nossa
presença de adulto. Assistimos a uma relação de adulto e criança, descrevemos não o caráter da criança,
mas uma relação da criança com o adulto.”

A partir dessa citação, entendemos que as dificuldades pessoais dos adultos próximos estão presentes
inicialmente nas queixas referidas à criança, mesmo que não expressadas. Nem sempre o que é relatado
de início corresponde ao que de fato é o mais importante no momento. Mas, se isso ocorre, não se deve
a uma decisão necessariamente deliberada para encobrir informações, como aqueles pais que, nas
entrevistas iniciais, não revelaram que estavam em processo de separação, somente referindo as
dificuldades do filho.
Por vezes, o peso da responsabilidade pode ser excessivo e os pais dele tentam se esquivar. Como
eles já experimentam o poder de favorecer ou de restringir as escolhas e os acontecimentos importantes
vividos pela criança, também passam a considerar que todo o seu crescimento depende da vontade,
poder ou bem querer deles. Assim, as queixas podem representar uma ameaça para os pais ou
responsáveis que, em sua condição de responsabilidade, podem se sentir culpados pelos problemas que
ocorrem com seus filhos e que ainda não foram bem compreendidos. Nesse caso, a aproximação mais
significativa das dificuldades pode provocar para eles a ameaça de revelações dolorosas ou sentimentos
de estar “em falta”, de constrangimento ou de vergonha.

Entender e acolher as inseguranças e dificuldades, faladas ou não pelos pais – culpas, raivas ou
expectativas em relação ao crescimento dos filhos – e esclarecer que sempre, de um modo ou de outro,
as preocupações deles já interferem no relacionamento com os filhos, constitui um passo inicial decisivo
para o acompanhamento da criança. Nessa disposição já se inicia a parceria com os pais para o
desenvolvimento do cuidado terapêutico fundado na confiança.

e) Desde quando a queixa surgiu e desde quando a conduta da criança é preocupação

Compreender uma queixa não significa buscar o que a determinou, as causas e os porquês, mas
compreender o seu sentido. A pergunta “Por que isto acontece?” é um caminho que quase sempre nos
aprisiona em considerações pré-determinadas, que partem de uma noção geral de causa.
O importante não é perguntar o porquê da criança apresentar o problema, mas desde quando ou em
que momento os pais perceberam e começaram a se preocupar com o jeito que aquilo parecia “errado”.
Antes de tudo, é importante perguntar desde quando a queixa apareceu ou desde quando ela foi
percebida. Quando os pais começaram a se preocupar com aquele jeito do filho? O que estava
acontecendo naquele então? Como aquela reação parecia inadequada ou errada? São perguntas que
podem nos orientar melhor, pois apontam para o fundamento existencial temporal histórico e buscam
compreender a criança em seu mundo. Muitas vezes, as condições próprias da criança estão totalmente
obscuras para os pais preocupados com os aspectos mais aparentes das manifestações indesejáveis. As
perguntas e respostas surgem a partir da singularidade do caso, possível somente depois de uma
aproximação e entendimento mais amplo da história da criança.
Perguntas que permitem aproximar a criança na concretude de sua existência – como do que ela gosta
e do que não gosta, quais são os seus sonhos e pesadelos, o que ela se recusa a fazer, o que tem que fazer,
o que gostaria de fazer e não faz, como reage quando quer algo e quando não quer –, revelam muito
mais da criança, do que informações objetivas e gerais.

f) Como a criança se sente e como ela reage

Medos, choros, raiva, agressividade, ressentimentos, mágoas, ciúmes, vergonha, timidez e retraimento
são modos como somos afetados e sentimos em nosso constante envolvimento com o mundo. Mentir,
roubar, bater, destruir, desobedecer, fugir são possibilidades humanas de reação de sermos no mundo.
Os modos afetivos e as possibilidades de reação que podemos observar nas queixas não são simples
sentimentos ou comportamentos que podem ser excluídos, se indesejáveis. Mas são modos ou
possibilidades da condição existencial de cada um de sempre se perceber afetado pelo mundo. Assim, o
xixi na cama, o cocô na calça quando acordada, as dificuldades de aprender ou hiperatividade, os
hábitos de manipulação do próprio corpo (chamada “masturbação”), não são meras tolices ou birras de
uma criança. Todas essas atuações, salvo limitações inerentes ao desenvolvimento saudável da criança
em questão, somente são possíveis para alguém que em sua própria condição existencial sente e percebe
o mundo de algum modo, mesmo que a sua específica reação não a ajude a superar o que sente ou
percebe, nem que expresse os seus sentimentos. Pelo contrário, nestas ocasiões, as reações podem até
encobrir e dificultar o entendimento dos sentimentos ou intenções da criança que, quase sempre, são
consideradas problemáticas ou indesejáveis. As queixas de “falta de limites” são exemplos comuns nos
quais podemos encontrar crianças cujos sentimentos ficam encobertos e distantes do modo como
reagem.
Somente podemos conhecer o significado dos sentimentos e reações da criança se nos aproximamos
para conhecer o seu mundo. O brincar é uma possibilidade muito rica para este fim.

Por que brincar


Atribui-se ao filósofo grego Platão (427 ou 428 a.C. – 348 ou 347 a.C.) a seguinte frase: “Você pode
descobrir mais sobre uma pessoa em uma hora de brincadeira do que em um ano de conversa”.
O terapeuta daseinsanalista que se dedica ao cuidado com as crianças certamente acata esse
ensinamento. Pois reconhece que as brincadeiras, além de facilitarem a percepção do que a criança
mostra de modo mais livre, também são uma excelente oportunidade para o terapeuta aproximar,
introduzir, considerar ou questionar experiências e situações que o seu próprio entendimento
considera a partir do que pode perceber junto à criança.
Não vamos pensar aqui o brincar como uma atividade natural dos homens como dos animais –
gatinhos, cachorrinhos ou macaquinhos. Também não vamos considerar as brincadeiras como uma
função para desenvolver e promover a socialização humana ou para “passar o tempo”. Não pensamos
aqui a utilização de um recurso técnico ou funcional da brincadeira como uma representação de uma
realidade “real”, objetiva e já conhecida, assim como a expressão de uma realidade desejada ou em
oposição ao real; ou o brincar a partir da chamada psicologia profunda e do princípio da determinação
de forças inconscientes, como uma projeção de sentimentos e significados que não se mostram
diretamente e que permitem a satisfação de desejos mais primitivos. Não nos referimos aqui ao brincar
como jogo de aparências. Assim também toda brincadeira, fantasia e imaginação não contêm um
significado oculto pré-determinado ou uma finalidade de expressão garantida que não levam em conta
a totalidade significativa do contexto da brincadeira de cada criança.
Como já consideramos antes, o brincar, a brincadeira e o mundo da fantasia são pensados comumente
como algo oposto à realidade ou fora dela e não como co-pertencentes. Brincar é
estar-junto-com-mundo. É dessa maneira que cada brincar pode ser uma excelente oportunidade para
a criança compartilhar novas possibilidades de relações mais livres com o seu mundo, guiada
preferencialmente pelas suas fantasias e imaginação, nas quais prevalecem o envolvimento e o seu
próprio entendimento de si e de seu mundo. Desse modo, a brincadeira se constitui também como
oportunidade para a ampliação do entendimento antes mais restrito da criança.

Como o compartilhar mais livre, brincar junto possibilita colher e acolher as histórias contadas ou
desenvolvidas em cada caso, com os seus significados característicos, mesmo que eles pareçam
“absurdos”, impossíveis ou irreais. Para isso, é necessária a superação da visão pragmática que domina e
empobrece o entendimento da criança e do atendimento infantil. Essa compreensão favorece o
caminho a seguir do terapeuta em sua responsabilidade primeira de fortalecer a confiança da criança em
suas próprias possibilidades. Nesse modo de brincar na situação terapêutica, priorizamos o sentido para
o qual aponta o enredo e as relações de cada brincadeira e não os significados mais comuns e prováveis
das situações comuns da “realidade”. Assim, numa brincadeira, uma pequena menina pode ser a
rainha, a mãe ou a princesa e a terapeuta pode ser uma criança, um menino ou, ainda, a professora. Não
faz diferença que papel ou lugar a criança ou o adulto ocupam. O que importa é aquilo que se expressa
nestas relações, isto é, o modo como a criança faz aparecer o que sente, o que deseja e como age. Brincar
terapêutico está mais próximo da proposição de uma brincadeira chamada “seguir o mestre”, na qual a
criança é o guia e ao terapeuta cabe seguir correspondendo o sentido do que vai se descobrindo.
No “faz de conta” das brincadeiras, as ameaças do viver podem surgir e serem aceitas não somente
como tragédias que angustiam e paralisam ou que levam a reações explosivas de agressividade, mas
como situações inusitadas, engraçadas e originais que, mesmo podendo ser rotuladas como “absurdas”,
em sua graça e imprevisibilidade favorecem o surgimento de outros modos possíveis e não restritos de
corresponder na própria vida. Assim, podemos contar também com a criação de histórias simples e
surpreendentes. Uma menininha de quatro anos adorava ouvir histórias assim. Vibrava com a do lobo
mau que escorregou numa casca de banana e, quando caiu, amassou o seu narigão. O lobo chorava
tanto que o porquinho que estava se escondendo de tanto medo que sentia, quis acalmá-lo! Gostava
também da história da formiguinha muito fraquinha que tinha muito medo do elefante grandão. Foi
quando ela ganhou um poder inesperado quando descobriu que o bichão sentia tanta cócega nas
orelhas que o fazia quase morrer de rir. Cada vez que o grande elefante estava bravo, a formiguinha logo
o escalava até alcançar uma de suas orelhas. Histórias assim inocentes, de modo leve e engraçado,
podem aproximar a descoberta de possibilidades mais vigorosas para a criança que se sente sempre
atemorizada.
As crianças maiores podem também ser estimuladas, no sentido da imaginação criativa para a
superação de seus temores, com histórias de aventuras curiosas ou fantasiosas ou construções não
aprisionadas pelas referências objetivas da realidade geral que se impõe.
Os jogos constituídos de regras anteriores – como o xadrez, damas, ludo ou jogo da vida – também
podem servir na terapia quando permitem às crianças a liberdade de escolhas pessoais e quando aceitam
as improvisações oferecidas em cada situação jogada. Desse modo, tais jogos devem oferecer um convite
para uma relação de maior liberdade e proximidade acolhedora com a criança e não como instrumentos
pedagógicos ou morais do senso comum. E, se uma criança constantemente quer levar a melhor,
criando sempre regras novas ou escondendo o que vai atrapalhar, isso não tem que ser evitado ou
repreendido. Ao contrário, é importante que a “nova regra” seja esclarecida, assimilada e válida para os
jogadores envolvidos. Pois o que importa não se encontra nos critérios anteriores de certo e errado, no
ganhar ou perder, mas na possibilidade do compartilhar (o que inclui a “nova regra”), mais confiante e
significativa que dilui as restrições prévias.
Assim, até o sisudo jogo de xadrez pode se transformar com todas as suas regras em uma potente luta
entre dois reinos, seus exércitos, cavaleiros, bispos, torres, reis e rainhas até que um domine e vença.
Mas, como a batalha nunca é definitiva, assim como a relação terapêutica não acaba em uma sessão, o
resultado será válido somente para o jogo jogado e não terá que determinar para sempre o lugar dos
jogadores.
Mesmo que haja vencedor e perdedor, a revolta ou raiva ocasionada pela frustração do perdedor pode
vir a ser superada pela abertura para as novas tentativas que aproximam o sentido da liberdade da
brincadeira. Nesse sentido, jogamos, não como competidores mundiais profissionais de um mundo
exterior que decidem quem é o melhor, mas com a liberdade de brincar que não se encerra ali em cada
partida, mesmo que naquele jogo estivermos jogando como competidores mundiais profissionais de um
mundo exterior. Isto significa: aceitar que ganhar ou perder é somente uma das possibilidades que
fazem parte de algo muito mais importante que é estar junto descobrindo o que ainda pode aparecer.
Na abertura para o poder-ser que se dá no brincar, a criança pode também experimentar e apreender o
que para ela ainda é muito difícil: a espera e a paciência. Essas são descobertas pela amplitude temporal
que se dá com o próprio crescimento. Quando podemos esperar, superamos a primazia do mais
imediato e aproximamos o futuro.
Além disso, como em cada brincadeira, as fantasias se realizam sempre com liberdade, humor e o
envolvimento com o momento específico, a criança mais facilmente pode se sentir mais protegida ou
capaz e, assim, o caráter da própria finitude e das limitações que muitas vezes a ameaçam podem ser
também aproximados mais facilmente.
Heidegger considera, no parágrafo 36 da obra Introdução à Filosofia, que: 1 – Brincadeira quer dizer
brincar, realização de uma brincadeira. O brincar não é nenhuma sequência, mas um acontecimento
livre, sempre ligado a regras; 2 – O essencial não é atuar ou fazer, mas o mais peculiar é o caráter de
estar-jogando junto; 3 – Em todo brincar não há regras fixas, universais ou prévias. Mas todo brincar é
organizado a partir das regras estabelecidas para ele mesmo que se encerram quando aquele brincar se
encerra; 4 – Como o compromisso é livre, o que é mais fundamental para o brincar é que aconteça na
afinação da alegria e do contentamento. Somente há brincadeira com a afinação da alegria.
Nos referimos aqui ao brincar que propicia à criança encontrar a sua liberdade frente ao mundo e o
conhecimento mais amplo de si e do outro. Isso favorece a descoberta e aproximação de quem ela é.
Sendo a tarefa do terapeuta daseinsanalista a busca pelo entendimento mais próprio de cada um e dos
seus modos de realização, é necessário aceitar o desafio de permanecer e pensar primeiramente no que
significa e qual o sentido, em cada caso, da nossa condição existencial fundamental de ter que ser quem
somos. Para isso, seguindo o caminho fenomenológico, temos que considerar sempre as possibilidades e
limitações existenciais, os afetos, entendimentos e desejos de cada um, tanto em seu mundo próprio,
como no mundo compartilhado. Essa orientação serve para todos: no tempo da infância ou da vida
adulta.

68 Seminários Mensais – Daseinsanalyse e Criança – ABD, 22/02/2014. Excluímos aqui algumas partes do seminário apresentado, na
ABD, por já aparecerem em itens anteriores deste livro.
69 Cf. Angústia, Culpa e Libertação.
IV – A FALA E A ESCUTA DO BRINCAR NA DASEINSANLYSE70

Com essa apresentação, a partir da compreensão mais abrangente do significado da possibilidade


originária do brincar, espero poder contribuir para o entendimento mais amplo de nossas
possibilidades existenciais. Com a compreensão do brincar como poder-ser mais livre do existir
humano, espero também ajudar a esclarecer o sentido e a busca, em cada caso, da atuação
daseinsanalítica de modo mais amplo.
Com isso, a fala e a escuta do brincar na Daseinsanalye não devem ser entendidas como um tema
infantil, circunscrito ao entendimento ou à análise das crianças; devem, sim, servir ao entendimento de
todos nós, adultos.

Nunca é demais lembrar que, seguindo o caminho proposto pela ontologia fenomenológica de
Heidegger em Ser e Tempo, consideramos desde sempre as crianças como ser-no-mundo. É condição
fundamental de ser-no-mundo ser livre para o próprio poder-ser. Assim, este está sempre referido ao
horizonte das possibilidades significativas do próprio mundo, que se dá sempre em cada caso. Em Ser e
Tempo, essa relação necessária entre ser livre para o próprio ser e o horizonte de possibilidades já abertas
no mundo é chamada “conformidade significativa”. A partir desta condição existencial fundamental de
ter que ser – e não ser –, cada um corresponde em seus diferentes modos de atuar ou de agir.
Aqui vamos analisar o modo originário e vigoroso do brincar das crianças, como possibilidade mais
livre de descoberta de significados do mundo que o dizer mais comum abafa. Desse modo, o brincar é
muitas vezes comparado à realização criativa e sensível dos poetas, dos artistas e dos cientistas, em suas
descobertas originais frente à riqueza de significados do mundo. Podemos aqui ainda considerar certas
experiências pessoais de plenitude ou de realizações mais significativas dos adultos advindas de
momentos e ocasiões especiais, muitas vezes provocados por sentimentos de angústia, sofrimentos ou
intensas emoções.

No entanto, é muito mais comum pensar em adultos e crianças a partir de diferentes características,
sobretudo daquelas que aparecem ou que desaparecem com o crescimento sucessivo. Essa perspectiva
tem, a priori, que identificar as características determinantes diferentes de cada fase sucessiva de
desenvolvimento; é o jeito mais exato de conhecer verdadeiramente a criança, o adolescente ou o adulto.
Podemos observar também que é muito comum, na vida cotidiana, desvalorizar uma pessoa dizendo
que ela é infantil ou que parece uma criança.
As diferenças observadas nas fases de desenvolvimento, assim como nas expressões de desvalorização,
se referem apenas a comportamentos esperados a partir de uma visão seletiva, comparativa e
determinista do ser-humano em geral. No entanto, não entendemos mais ou melhor uma criança ou
um adulto quando nos detemos especificamente nos diferentes comportamentos que, efetivamente,
podemos observar. Nesse caso, a condição mais fundamental de cada um de poder-ser como
ser-no-mundo não é considerada, pois existir se refere desde sempre e em cada caso a uma totalidade
significativa do mundo em relação a qual podemos agir e reagir – como no modo brincar. Nem o
mundo, nem os modos de reação podem ser previamente determinados. Cada criança, cada adulto ou
adolescente desde sempre e em cada caso existe em conformidade com o seu mundo já descoberto de
acordo com o que lhe é possível.

Em Ser e Tempo, no parágrafo 31, Heidegger esclarece que: “Ser-ai” (Dasein) é a possibilidade de ser
livre para o mais próprio “poder ser”. Compreender é o ser desse “poder-ser”.
No mesmo livro encontramos:

“O ser-ai sempre se compreende a si mesmo a partir de sua existência, de uma possibilidade própria de ser
ou não ser ele mesmo. Essas possibilidades são ou escolhidas pelo próprio ser-ai, ou um meio em que ele
caiu ou já sempre nasceu e cresceu. No modo de assumir-se ou perder-se, a existência só se decide a
partir de cada ser-ai em si mesmo. A questão da existência sempre só poderá ser esclarecida pelo próprio
existir. Para isto é necessária a transparência teórica da estrutura ontológica da existência” (que
compreendemos como a totalidade dos existenciais)71.

Continua Heidegger:

“Pertence essencialmente ao ser-ai, ser-em um mundo. Assim a compreensão do ser-ai inclui de maneira
originária a compreensão de mundo e a compreensão do ser dos entes acessíveis dentro do mundo”.

Seguindo este caminho proposto pela ontologia fenomenológica, em Ser e Tempo podemos dizer que
a essência de cada um de nós é o existir que se realiza sempre em cada caso e em um mundo
compartilhado. Esse mundo é percebido de um certo modo e com uma específica afinação, seja no
tempo da infância ou da vida adulta.

Os fundamentos existenciais das possibilidades de conduta são, assim, de outra ordem.


Se não podemos entender que a existência do ser-ai no mundo em cada caso, tal como se dá na
infância, compreende os mesmos fundamentos existenciais do adulto – e que assim precisam ser
pensados –, estaremos em um abismo sem saída. Pois seria necessário um passe de mágica que em
algum momento transformasse a criança em adulto ou que permitisse ao adulto reconhecer-se como
tendo sido uma criança. Ou ainda, não poderíamos, como adultos, entender uma criança – filhos,
alunos ou pacientes – a não ser com o recurso de uma ponte teórica que “traduzisse” as experiências
infantis para o campo das experiências e entendimento adulto.
Mas todos nós sabemos que não precisamos de nenhuma magia transformadora.
Mesmo antes do nascimento, quando uma criança ainda é esperada, a reconhecemos como sendo
humana, como nós. Já mantemos com ela uma relação especialmente diferente do modo como nos
ocupamos e preocupamos com todas as outras coisas; no contato com ela, encontramos as aflições e
expectativas que já conhecemos em relação a nós mesmos: nos preocupamos que ela não passe mal, que
sobreviva e seja saudável, pensamos como ela será, que futuro ela terá e quais serão as suas realizações;
em certas situações, nos vemos tão implicados com ela que chegamos até a não desejar a criança que
ainda se anuncia.
Quando passamos a entender as crianças de maneira mais originária como ser humano, podemos
também entender mais e melhor a nós adultos. Por exemplo, se percebemos que não temos mais um
certo modo de viver que vemos tão próximo das crianças – como o brincar – é porque podemos
perceber a nossa própria condição ontológica de ter-sido aquela criança que fomos antes; isto é, eu hoje
sou também aquela que já não mais sou. Somente a partir da minha própria condição de ter sido, posso
reconhecer aquele modo distante das crianças como uma possibilidade minha passada, em meio a
outras possibilidades descobertas e desenvolvidas em minha vida pessoal. Perceber que já fui e que
permaneço sendo tanto o que em mim ficou para traz como o que não me foi possível abandonar, pode
nos ajudar a entender melhor quem sou – e também quem não sou –, como poderia ter sido ou como
ainda poderei ser.
Em Encontro com a Daseinsanalyse, Bilê Sapienza diz: “O esquecimento dessa sua condição é o modo
impróprio de ter sido”.
Portanto, o mais importante é compreender como os diversos modos de conduta
estão referidos à nossa condição fundamental de existir no tempo da infância, da adolescência e da
maturidade.

Podemos agora perguntar:


O que podemos ter perdido ou que esquecemos quando crescemos?
Quais outras possibilidades são descobertas e desenvolvidas com o crescimento que podem ter o
mesmo sentido daquelas da infância que estão hoje mais distantes?

À primeira pergunta, a resposta mais comum é o brincar das crianças.


É senso comum pensar que “criança vive no mundo da brincadeira”, que “ser criança é brincar”, que
“brincar é ser criança”, que “brincar é coisa de criança” ou que “a linguagem da infância é brincar”,
enquanto que “os adultos falam e as crianças brincam”. Nessas expressões, o brincar é entendido como
algo naturalmente infantil ou que a fala da criança não merece credibilidade.

O que sabemos sobre o brincar?


– Que diferencia as crianças dos adultos?
– Que é algo inconsequente, sem importância, uma coisa infantilizada, em sua pior
conotação?
– Que é uma característica marcada pela imaginação e fantasia, distantes e em oposição à
realidade, na acepção mais comum de algo infantil?
– Que é uma função definida pelas ciências naturais, pela antropologia e pela psicologia que
serve para o desenvolvimento de sociabilidade ou para expressar forças primitivas ou
conteúdos inconscientes?
– Que é um jogo de aparências, determinado por brinquedos que representam a realidade usual
e comum, ou uma realidade psicológica conforme o entendimento frequente das ludoterapias?
É certo que as crianças se entregam intensamente quando brincam e podemos observar, de fato, que
nelas o brincar acontece de modo privilegiado. No entanto, aproximar o significado mais original pode
nos levar à compreensão mais originária do brincar tanto da criança como do adulto. A partir do
significado original, brincar significa fazer ligações, prender, encantar e enredar .
72

O brincar e cada brincadeira são modos de ligação, dos mais simples aos mais elaborados. Mas, não
importa qual é a brincadeira, quando não há uma ligação intensa, a brincadeira fica sem graça, chata e
logo vai acabar. Assim, em toda brincadeira é necessário o encantamento. O contexto da brincadeira
surge sempre a partir de um certo encantamento pela história que aparece. Esse encantamento
“sustenta” a própria história. Assim, a escolha de uma brincadeira não é coisa que se possa entender por
uma análise guiada pela lógica.
A brincadeira está sempre enredada ou contida no contexto da própria história. Com isso, em cada
brincadeira, os significados presentes estão enredados com as histórias passadas e as expectativas futuras.
Não importa o que se passou antes ou o que possa vir depois. O que importa é o modo de se relacionar
com o que se passou antes frente à expectativa desejada ou temida de futuro. Isso é o que se mostra na
experiência imediata do brincar.
Não é o brinquedo que determina, nem ele é necessário para a brincadeira. É o próprio contexto da
brincadeira que determina a escolha de um certo objeto – uma arma, um boneco, uma ferramenta, um
transporte ou um lugar. Assim, uma faca pode ser uma arma, num contexto de ameaça ou de agressão,
mas também pode servir para cortar um legume para fazer uma sopinha quando se brinca de cuidar do
bebê, ou ainda pode ser uma coisa atraente para impressionar ou chamar atenção. Tudo, qualquer
coisa, pode ser brinquedo, desde uma tampinha de refrigerante até um barbante, as mãos ou os sons
criados pela própria voz e pelos barulhos de fora. Assim, encontramos até mesmo os brinquedos
manufaturados e comprados.

Lembramos aqui a explicitação original feita por Heidegger no livro Introdução à filosofia, parágrafos
35 e 36 do cap. II, do brincar como a possibilidade mais livre da relação do homem com o mundo, a
partir da expressão de Kant “jogo da vida” .73
Brincar é coisa muito séria!
1.
O Brincar não é nenhuma sequência mecânica de ocorrências, mas um acontecimento livre, isto é
um, acontecimento que está sempre ligado por regras;
2.
Nesse acontecimento, o essencial não é o atuar ou o fazer, mas o decisivo no brincar é justamente o
caráter específico de estar brincando junto numa afinação.
3.
Já que o essencial no brincar não é o comportamento, as regras também possuem outro caráter: elas
se formam somente durante a brincadeira e valem somente para essa brincadeira. A vinculação é
livre num sentido muito especial. A brincadeira deve ser sempre de uma maneira como um sistema
de regras que possa ser modificado. Somente assim a brincadeira surge, mas ela não se configura
como sistema de regras rígidas e de caráter geral.
4.
Como a vinculação é livre, o mais fundamental para o brincar é que ocorra numa afinação de
contentamento. Somente há brincadeira quando a afinação é da alegria.

Pudemos constatar a preciosa descrição de Heidegger a respeito da vinculação livre e os modos de


afinação da alegria e do contentamento quando vimos e ouvimos o emocionante tocar dos tambores
japoneses – taikô. As crianças tocavam com tamanha liberdade, alegria e entrega que pareciam estar
brincando de tocar para nós.

Diz ainda Heidegger:

“O brincar tem relação com a compreensão de si mesmo e representa um acontecimento específico e


marcante. [...] A interpretação que o brincar traz pressupõe necessariamente uma associação entre o
fenômeno do mundo e o próprio ser”.

Com isso, podemos ouvir no brincar uma relação originária e vigorosa do ser-no-mundo, pois brincar
liberta significados do mundo próximo que a compreensão comum e geral abafa.
Enquanto os parâmetros do senso comum tendem a limitar, uniformizar e imprimir um certo caráter
de realidade único às coisas, o brincar preserva sempre a liberdade vigorosa do modo próprio de ser na
relação significativa com o mundo, sendo assim o modo mais originário da expressão do compreender.
Poder-ser é ser-livre e brincar é a sua manifestação mais original.
As experiências de brincar das crianças são modos únicos e criativos da sua compreensão do mundo e
estão sempre referidos às presenças mais imediatas, seja das coisas ou dos acontecimentos emotivos.
Assim, o brincar ultrapassa a necessidade de seguir as regras ou papéis prévios que caracterizam de
modo geral o jogo e o representação. Além disso, as brincadeiras das crianças, estando mais delimitadas
pelo imediato, podem reverberar para aqueles que na proximidade compartilham diretamente com elas.
Podemos encontrar também na referência prioritária do mediato o sentido da expressão “as crianças
brincam e os adultos falam”.

A segunda pergunta: Com o crescimento, podemos descobrir outras possibilidades que tenham o
mesmo vigor do brincar e que em nós adultos é mais distante? Ou somente cabe às crianças a condição
de poder-ser em seu sentido mais original de ser-livre?

Com o crescimento ainda na infância, podemos observar outras brincadeiras que passam a entreter as
crianças: inventar palavras, imitar a sonoridade de palavras estrangeiras, criar rimas, adivinhar “o que é o
que é?”. Tratam-se de brincadeiras que dispensam a presença das coisas imediatas e aproximam
diretamente o vigor das palavras como expressão e comunicação da compreensão do mundo em torno.
A descoberta das palavras em seu vigor de significar acompanha o próprio crescimento humano. Isto
é, no crescimento, as nossas possibilidades de compreensão – de expressão e comunicação – se ampliam
para além do imediato no modo mais privilegiado das palavras. Assim não mais dependemos da
presença imediata do mundo em torno.
Brincar e falar pertencem essencialmente à condição da estrutura existencial da significatividade de
ser-no-mundo. Desse modo, também cabe ao dizer das palavras o vigor do nosso próprio poder-ser que
mantem a disponibilidade e a sensibilidade para a riqueza da significatividade do mundo. Esse vigor é
enfraquecido no dizer habitual, comum e de todo mundo. Mas, em certos modos da existência do
adulto, quando a lógica e a previsibilidade são rompidas como forças dominantes do entendimento, a
compreensão original do mundo expressada nas palavras pode ser preservada.
Voltamos a falar aqui dos poetas, dos artistas, dos gênios e também dos cientistas inventivos. Não é
uma mera metáfora a aproximação entre poetas, gênios, loucos e crianças.
Pois eles são orientados pela atenção singular ao que os surpreendem e os despertam e pelo modo
como são tocados nas relações com o mundo – isso que chamamos de afinação. Temos vários exemplos
de descoberta original da significatividade do mundo a partir do poder-ser mais pleno na vida adulta.

Gaston Bachelard, em seu livro Poética do Devaneio, escreve:

“Que tensão de infâncias deve estar de reserva no fundo do nosso ser para que a imagem de um poeta nos
faça reviver subitamente as nossas lembranças e reimaginar nossas imagens a partir de palavras bem
reunidas. Porque “a imagem de um poeta é uma imagem falada, e não uma imagem que os nossos olhos
veem. Um traço da imagem falada basta para nos fazer ler um poema como o eco de um passado
desaparecido”74

Hölderlin, muitas vezes considerado como o maior poeta da língua alemã e que sofreu desde muito
cedo até a sua morte de hipocondria grave, em uma carta de 1799 para a sua mãe escreve: “A poesia é a
mais inocente de todas as ocupações”.
A respeito desta passagem, Heidegger, em Hölderlin e a essência da poesia, diz:

“A poesia se mostra na forma modesta do brincar. Sem travas, cria seu mundo de imagens e permanece
ensimesmada no reino do imaginário. Esta brincadeira escapa do sério das decisões que sempre de um
modo ou de outro compromete”.75

De modo ainda mais surpreendente, encontramos na poesia japonesa, talvez, o exemplo mais simples e
pujante da criatividade das imagens do mundo.
Ouvimos no haiku do poeta Bashô – Sendas de Oku:

“Meu cavalo ploc ploc


Sobre a relva
Ah! AHaa! Sou parte da cena”

Em três simples linhas: ouço o meu cavalo, vejo a relva e existo. Somente isso para expressar: “Existo!”.
Somente e tudo isso podemos escutar.

As melodias cantadas, mesmo as instrumentais, também podem dizer, de modo único, significados
expressos privilegiadamente pelas palavras. Neste Fórum de Daseinsanalyse, os tambores japoneses
foram tocados também por jovens adolescentes. Era tanta maestria como aqueles jovens tocavam, que o
som que ouvíamos nos despertava para uma experiência marcada por uma emoção significativa sem
limites.

Além dos poetas e músicos, os artistas geniais, a despeito da absoluta clareza da realidade imediata –
mesmo nas suas formas mais cruéis – não permanecem limitados a ela. Eles descobrem imagens que
falam falas totalmente novas, criando obras excepcionais.
Roberto Begnini, no filme “A vida é bela”, conta uma história surpreendente que ensina como a
proximidade e a fantasia podem favorecer a alegria para que a realidade possa ser vivida de modo
mais livre que a dominante no momento.
O filme conta a história de um pai que, percebendo a terrível realidade do campo de concentração e as
atrocidades lá vividas, encontra a sua maior determinação: decide que a sua única tarefa na vida, a
despeito de toda aquela realidade infernal, é o cuidado para que o seu filho possa viver no modo mais
pleno e não privado à alegria própria do brincar de sua infância. Assim, com toda a potência do
cuidado de um pai, transforma o inferno vivido pelos milhares, em uma experiência única e particular
de alegria.
Lembramos ainda de Charles Chaplin, em O grande Ditador, filme de 1940, quando o mundo
estava em guerra. Esse filme é todo uma paródia à figura de Hitler, que submetia o mundo às piores
atrocidades. A história conta como um cadete de um pequeno exército tinha sido hospitalizado e passa
a sofrer de amnésia. Por ser sósia de Hitler, ele é tomado pelo verdadeiro, fazendo as maiores peripécias.
No final, quando está para se apresentar como o grande ditador, diante de uma plateia cheia de oficiais
nazistas, recupera a sua memória e faz um longo discurso emocionantemente transgressor e repleto de
sentido de humanidade.
Aqui uma pequena parte:

“Sinto muito. Não pretendo ser imperador. Não é esse meu ofício! Não pretendo ganhar ou conquistar.
Gostaria de ajudar judeus, gentios, negros, brancos. Todos nós desejamos ajudar-nos uns aos outros”.

E acaba dirigindo-se à sua distante amada, que sofria as consequências daquela guerra:

“Hannah, podes me ouvir? Onde você esteja, levanta os olhos.


O sol vai rompendo, as nuvens já se dispersam.
Estamos saindo das trevas para a luz. Estamos entrando num mundo novo, num mundo em que os homens
estarão acima do ódio e da brutalidade.
Levanta os olhos. A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar.
Voa para o arco-íris, para a luz da esperança, para o futuro,
para o futuro glorioso que se abre a ti, a mim, a todos nós.
Levanta os olhos, Hannah!”

Esse filme foi realizado cinco anos antes do final da guerra (1945). Chaplin não se deixa dominar pelas
evidências mais imediatas e medonhas da realidade e se envolve no apelo das possibilidades humanas de
maior completude. Em uma expressão de sensibilidade única, nos fala de um futuro humano muito
melhor. A genialidade de sua obra está na atualidade permanente dos significados lá expressos. Todos
aqueles que assistiram ou venham a assistir ao filme se deparam com o muito especial e podem se
emocionar ante as possibilidades verdadeiramente humanas nele expressas.

Além dos poetas, entre os artistas geniais, há os pintores e escultores que criam imagens que
inesgotavelmente nos dizem muito em seu silêncio.
Lembramos de Picasso que chegou a esclarecer: “Eu não faço discursos. Eu falo através de minhas
pinturas”. O que ele tinha a dizer já estava dito em suas pinturas.
Lembramos ainda de Michelangelo que, como gosta de contar Guto Pompeia, ao concluir sua
primorosa obra Moisés, bateu no joelho de mármore e ordenou: “Agora, fala!” (“Adesso, parla!”). A sua
obra estava realizada.
Quantos milhões de visitantes não permaneceram e ainda permanecem diante da Guernica, de
Picasso, ou do Moisés, de Michelangelo, ouvindo o que essas obras têm a dizer?
A amplitude temporal em cada caso do poder-ser si, mesmo original, reverbera também no coexistir.

No entanto, não somente os poetas e artistas podem apreender o mundo e dizer de modo vigoroso e
original. Os cientistas inventivos também se deixam tomar pelo impacto do que não compreendem da
realidade e, extasiados, se lançam à procura do entendimento original.
Quem poderia pensar que um acontecimento tão bizarro, como uma maçã caindo na cabeça de
alguém, poderia provocar uma descoberta tão impactante para a humanidade? Diz a história que foi
assim que Newton observou a força da gravidade e formulou a sua lei.
Quem poderia supor que uma pergunta simples e ingênua de um menino de cinco anos poderia ser
ouvida e considerada com tanta atenção a ponto de estimular o pensamento científico de Einstein para
a formulação da teoria da relatividade? Foi o que ocorreu quando Einstein estava com o seu filho em
um pequeno barco, no início de um anoitecer de verão, no lago de Zurich, e o pequeno pergunta: “Pai,
de onde vêm as estrelas e para onde elas vão quando amanhece?” Einstein ouviu o inaudito daquela
pergunta. Então, observou, pensou e criou.
Todas as histórias que lembramos aqui referem-se a homens que admiramos em sua genialidade.
Mesmo que sejam histórias que não correspondem à verdade dos fatos, elas expressam de modo mais
livre a criatividade genuína e prodigiosa de pessoas que puderam apreender, expressar e comunicar
novos significados do mundo em volta. Essas histórias também fazem chegar a original compreensão a
um ilimitado número de pessoas que, em muitas outras ocasiões e épocas, podem vir a ser tocados em
seu entendimento sensível do mundo. Falamos aqui do compartilhar.

O poder-ser que se desdobra em diversos modos de compreensão e atuação pode ultrapassar a presença
do mais imediato, a partir de uma maior amplitude temporal característica do crescimento. Os modos
engendrados com o crescimento, no tempo da vida adulta – que contam com a expressividade plena
das palavras – podem se expandir para possibilidades mais amplas aproximadas pelo coexistir. Assim, os
que não são artistas, poetas ou cientistas criativos, podem ser tocados pela genialidade deles do mesmo
modo como podem compreender o sentido, hoje distante, do brincar das crianças.
Nós, seres humanos comuns, habitualmente vivemos ocupados com as nossas tarefas cotidianas e,
assim, mais distantes da possibilidade de corresponder nos modos mais originários do coexistir. Por um
lado, no modo mais habitual e cotidiano, as descobertas advindas com o crescimento nos tornam mais
consistentes, ou mais prontos e preparados para responder e dar conta dos imprevistos constantes de
nossas ocupações costumeiras. Nesse âmbito, nos sentirmos mais preparados com o legado do que
conhecemos e as certezas comuns advindas com as experiências de vida. Mas, onde mais facilmente
encontramos proteção, por outro lado, encontramos as armadilhas das inevitáveis e constantes
transformação. Somos, por vezes, assaltados pela nossa própria condição de indeterminação, tendo que
ser de algum modo. Sem nenhuma garantia de sucesso, somos tomados de dúvidas e incertezas que, por
vezes, podem nos levar ao extremo da angústia, dos sofrimentos e dos desencontros com a nossa vida
conhecida.

Como o entendimento do sentido do brincar – como modo mais vigoroso de descoberta do mundo
na criança que se mantem com o crescimento, pelo vigor das palavras, nas possibilidades privilegiadas
de compreensão – pode nos ajudar a esclarecer melhor a Daseinsanalyse clínica?

Boss entendeu a formulação fundamental do poder-ser livre do ser-no-mundo, desenvolvida por


Heidegger, como fundamento do cuidado terapêutico. Para descrever o sentido peculiar da tarefa
terapêutica daseinsanalista, ele criou a expressão “libertação terapêutica”. Com essa expressão, Boss
procurava esclarecer que a libertação do paciente para os seus modos mais específicos e próprios deve
ser o foco do cuidado terapêutico. No livro Angústia, Culpa e Libertação, Boss escreve: “Angústia e culpa
são fatores dominantes na vida dos seres humanos” e a Daseinsanalyse busca favorecer a libertação do
sofrimento para a possibilidade de ser mais plena daqueles que se encontram angustiados ou em
dificuldades de se encontrar com a própria vida.

Como o próprio terapeuta pode favorecer, ele mesmo, o poder-ser próprio expresso na fala? Penso
aqui na liberdade do terapeuta.
O cenário terapêutico preparado para o cuidado deve servir, sobretudo, para a espera e a escuta do
sentido das palavras, isto é, para o que elas apontam e não para a realidade comum que elas induzem de
imediato. O que é dito pelo paciente em cada caso deve ser recebido na direção de sua história em
conformidade com o seu mundo pessoal.
Para ilustrar o essencial da conduta da disponibilidade terapêutica que acolhe e liberta aquilo que
aparece, considerando o poder-ser próprio do paciente, recorro a uma lembrança de uma situação real
exemplar. Essa foi contada e vivida por Solon Spanoudis, psiquiatra e terapeuta daseinsanalista e
fundador da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, em 1974.
Durante uma sessão, um paciente acometido gravemente por um transtorno psiquiátrico mais uma
vez se queixava das excessivas cobranças dos familiares para que ele crescesse e se responsabilizasse pela
sua vida. O que o terapeuta poderia dizer diante daquele paciente que não tinha condição de dirigir a
própria vida e, muito menos, a possibilidade de escuta para qualquer intervenção de orientação direta
do terapeuta? Com o seu humor característico, o terapeuta volta-se para uma planta próxima e
pergunta: “Por que você não cresce?”. Isso era o que, no momento, ante as limitações presentes, podia
ser feito por ele: apontar o inusitado fato de ordenar que uma planta crescesse! E nada mais. Sem
qualquer perspectiva de que a planta pudesse decidir crescer.
A liberdade que contêm o humor em seu modo compreensivo mais próximo e espontâneo, de alguém
que compreendeu plenamente as limitações do próprio paciente e do que havia sido dito por ele, é o
que chama atenção naquela atuação terapêutica.
Relembro mais uma vez Boss, quando proferiu a aula “Introdução à Daseinsanalyse”, na Clínica
Psiquiátrica de Basel, Suíça, em 1984:

“Há terapeutas que conseguem recuperar o existir de seu paciente para o abrir-se como uma clareira dentro
da qual relações mais livres entre ele e tudo o que ele encontrou no mundo tornam-se possíveis. Isto se dá
quando o terapeuta persiste o bastante, imperturbável e em proximidade conveniente junto ao paciente, até
o empréstimo temporário de sua liberdade ao paciente e até que este possa novamente, ele próprio, adotar
uma conduta mais livre em face das coisas do mundo.”76

Quanto ao ambiente terapêutico, para o atendimento de crianças, o essencial é que seja propicio às
brincadeiras, o que não está garantido pelas coisas que colocamos na sala. Acolher a liberdade
característica do brincar está mais próxima da atitude receptiva para ouvir e estimular o que a criança
pode mostrar; assim, também o que oferecemos para ela deve constituir oportunidade e convite à
imaginação e à fantasia. As estranhezas e dificuldades vividas pela criança em seu cotidiano podem ser
assim mais facilmente aproximadas. Nessa direção, os jogos e as histórias que podemos também
oferecer são entendidos, sobretudo, como uma oportunidade de realização livre do brincar, nos quais as
regras são necessárias, mas sempre combinadas em cada situação.
Com o acolhimento terapêutico sem julgamentos e sem regras prévias, a criança pode experimentar
uma oportunidade protegida para se lançar de outros modos possíveis e, assim, poder se perceber mais
potente, se aceitar e superar as ameaças que povoam seus pensamentos e sentimentos.

Para finalizar, relembro ainda Solon Spanoudis, que concluiu uma aula sobre os sonhos, em 1981, na
Escola Paulista de Medicina, dizendo:

“Pode parecer que estas reflexões sejam românticas, ingênuas, idealistas. É uma questão que fica em
aberto. Mas se entendermos a psicoterapia como um processo que vai além do tratamento que se
preocupa meramente com o remover sintomas nocivos, corrigir defeitos, substituir peças danificadas,
contrabalançar o excesso ou falta de enzimas; se a terapia zela para o enriquecimento e esclarecimento do
contexto de significados, assim como os vivenciamos, pensamos e concretizamos, então ela tem que
respeitar e assimilar a sensibilidade do poeta e o questionamento dos filósofos, da mesma maneira que
respeita e assimila as informações empíricas e os resultados de pesquisas planejadas e executadas
através das ciências exatas”. 77
Gostaria ainda de acrescentar – e tenho certo que Solon aprovaria: juntamente à sensibilidade do
poeta, à reflexão do filósofo e ao empirismo dos cientistas, encontramos a criatividade ingênua expressa
no brincar das crianças e nas falas infantis.

70 Apresentado no II Forum de Daseinsanalyse, em São Paulo, em 11/06/2016, e repetido na ABD em 21 de setembro do mesmo ano.
71 Cf. Ser e Tempo, Introdução, parágrafo 4.
72 Na presente transcrição, suprimimos as referências específicas da origem das palavras brincar e brincadeira por estarem contidas
anteriormente na parte I, cap. IV, deste livro (notas de rodapé números 38 e 40).
73 Foram aqui também suprimidas as referências dos parágrafos 35 e 36 do cap. II de Introdução à filosofia, por já estarem transcritas
neste livro, cap. IV (nota de rodapé número 36).
74 Cf. A Poética do Devaneio, capítulo III, “Os devaneios voltados para a infância”, parte VI.
75 Cf. “Hölderlin y la esencia de la poesia”, parte I, em Arte y Poesia.
76 Cf. artigo publicado na Daseinsanalyse, nº 8, revista da As. Bras. de Daseinsanalyse.
77 Cf. Abordagem fenomenológico-existencial dos sonhos – I, publicado pela Daseinsanalyse nº 6, revista da As. Bras. de Dseinsanalyse.
V – DIFICULDADES DE APRENDER:
A ESCOLA E A CLÍNICA78

TDAH, dificuldades de aprendizagem e fracasso escolar

Na atualidade, são muito frequentes as queixas de crianças e jovens com dificuldades de aprender e de
fracasso escolar e cada vez mais elas aparecem nos consultórios de psicologia, pedagogia e
psicopedagogia. A conduta seguida geralmente é a elaboração de diagnóstico para definir se o problema
apresentado é de aprendizagem – com ou sem implicações neurofisiológicas – ou de origem
“psicoemocional”.
Entre todos os quadros diagnósticos, atualmente o mais “famoso” é o Transtorno de Déficit de
Atenção e Hiperatividade (TDAH), o qual não faz parte das dificuldades de aprendizagem, conforme o
DSM-IV da Associação de Psiquiatria Norte Americana e o CID-X da Organização Mundial de Saúde.
Mesmo que muitos dos seus “portadores” sofram algum tipo de problema escolar, eles apresentam
inteligência normal ou acima da média. Para a neurofisiologia, a aprendizagem é uma função
determinada pelos padrões naturais gerais com base na biologia animal. Quando as limitações do
aprender são identificadas como uma incapacidade resultante de alguma das funções cerebrais –
atenção, memória ou fixação, raciocínio, entendimento ou expressão –, considera-se que sejam um
problema neurofisiológico ou orgânico, nem sempre acompanhado de uma lesão cerebral.
Mas, mesmo tão diagnosticado, o TDAH é de fato pouco esclarecido. Trata-se de um diagnóstico
muito pouco científico e não se sabe exatamente quando foram observados os primeiros casos. Sabe-se
que, em 1902, o pediatra inglês George Frederic Still, numa palestra no Royal College of Physicians,
expôs pela primeira vez “casos de crianças difíceis de controlar, com sinais de não reconhecimento de regras,
ausência de volição inibitória, sendo ainda geralmente destemperadas, desonestas e voluntariosas”.
Entretanto, foi a partir dos anos 30 e 40 do século passado que encontramos maior numero de
referências médicas sobre observações de crianças com dificuldades de atenção e controle de impulsos,
com ou sem hiperatividade. Em 1980, a partir do DSM-III, o Transtorno de Déficit de Atenção (TDA)
foi oficialmente reconhecido como quadro diagnóstico. Poucos anos depois, com a observação de que
ao quadro de desatenção havia também hiperatividade, surgiu o diagnóstico de TDAH.
A partir daí, as estatísticas de crianças com TDAH somente aumentaram e esse quadro passou a ser
considerado como algo que permanece na vida adulta, não mais desaparecendo na adolescência.
Encontramos pesquisas cujas conclusões impressionam:
“Atualmente sabe-se que este transtorno é uma síndrome neurológica, de origem genética, que afeta 3% a
5% de todas as crianças em idade escolar, sendo que a média é de 3 meninos para 1 menina”,
Garcia (1998)

“Até recentemente esse transtorno era atribuído somente a crianças e dizia-se que ele desaparecia na
adolescência. Hoje, estima-se que apenas 1/3 da população supera-o e 2/3 o apresentam para toda a vida.
As diferenças que se observam nos adultos se devem ao aprendizado adquirido através dos problemas
enfrentados com o passar dos anos. Ou seja, com os anos ele aprende a conviver com suas deficiências e
diferenças”.
Hallowell (1999)

É impressionante o aumento das crianças diagnosticadas com TDAH e que, cada vez mais, são
medicadas a partir de seis anos, com a substância química estimulante do sistema nervoso central
cloridrato de metilfenidato (Ritalina ou Concerta). Em onze anos, segundo dados levantados em 2014,
a venda de Ritalina cresceu 3.200%. Essa situação aponta a tendência organicista e medicamentosa no
tratamento das questões humanas que atinge não somente os profissionais de saúde – médicos e
psicólogos –, como também os professores e os pais.
É importante ainda considerar a força dos laboratórios que apoiam suas pesquisas em estudos diversos
que convencem qualquer um e reforçam o uso do medicamento para os casos diagnosticados de
TDAH.

Em 2014, o TDAH aparecia como a segunda queixa mais frequente que leva crianças à terapia em São
Paulo, segundo a reportagem da revista Veja de 21/05/2014, “Crianças no Divã”. Essa reportagem
também aponta que, segundo a então presidente da Associação Nacional de Dificuldades de Ensino e
Aprendizagem, “Os próprios pais fazem pressão. Se uma criança não aprende, sofre menos preconceito ao
ser tachada de hiperativa”.
Por outro lado, no Brasil, em 2011, o médico neurologista e professor Eduardo G. Mutarelli, do
Hospital das Clínicas de São Paulo, denunciou o aumento dos casos de TDAH em crianças e a
medicalização inadequada numa entrevista de televisão. Ele voltou a chamar a atenção para o
progressivo aumento de ocorrência desse diagnóstico em crianças e adultos na aula apresentada, “A
medicalização do aprender – riscos e abordagens”, em 27/09/2014, na SBPSP. Com o apoio de
importantes pesquisas publicadas em 2013, entre outras pelo National Bureau of Economic Research,
Cambridge, Massachusetts, Mutarelli concluiu que a intervenção de orientação junto aos pais das
crianças com problemas de comportamento apresenta resultados muito mais significativos do que a
administração do metilfenidato.
Encontramos na literatura especializada trabalhos que esclarecem os riscos do diagnóstico fácil de
TDAH, pois não há exames precisos para conclui-lo. Desatenção, hiperatividade e impulsividade que
normalmente caracterizam as crianças portadoras de TDAH, podem também constituir sintomas
significativos de “problemas emocionais” relacionados às dificuldades de aprendizagem e de baixa
autoestima, à censura constante e sentimentos de rejeição de colegas, ao mau rendimento escolar etc.
Considerando essa diversidade, recomenda-se que o psicólogo ou psicopedagogo, ao fazer o
diagnóstico, deva levar em conta os sintomas anamnese, testes de inteligência, levantamento do
comportamento escolar, social e emocional; deva também observar o estágio de desenvolvimento em
que a criança se encontra, sua capacidade de atenção e nível de impulsividade e levar em consideração
outros exames médicos que possam indicar qualquer outro problema. Além disso, é indispensável a
orientação para os pais, professores e pessoas que convivem com as crianças para que sejam pacientes e
persistentes e que eles devem assumir o compromisso de reconhecer quais tipos de intervenção são
possíveis de serem executadas.
Para o diagnóstico e o tratamento das dificuldades de aprendizado e fracasso escolar, a partir das
considerações dos quadros psicoemocionais da “psicodinâmica”, tornou-se padrão a utilização desde a
técnica mais tradicional dos testes projetivos e de inteligência (CAT, Figura Humana, Wisc e Wais,
etc...) e os estudos fonoaudiológicos, até as entrevistas minuciosas com os pais, professores.
Para a psicopedagoga Sara Paín:

“A psicopedagogia se oferece para identificar a complexidade inerente ao não saber e entende tal processo
como oriundo de fatores multicausais como, por exemplo, cognitivos, afetivos, emocionais, metodológicos e
socioculturais, que podem aparecer isoladamente ou em combinação com um ou mais fatores”.

Também para ela, o trabalho psicopedagógico é um “fazer técnico” que tem como objetivo

“fazer com que a criança supere, senão totalmente, o mais possível, as dificuldades de sua habilidade de
aprender, recorrendo ao estímulo da expressão pessoal, ao desejo de aprender e à possibilidade de
amadurecer e tornar-se um ser capaz de enfrentar situações, respeitando sua maneira individual de
apoderar-se do conhecimento e de construir o saber”.

Ainda segundo a psicopedagoga Alicia Fernandes, o aprender é “um processo que permite a transmissão
do conhecimento de um outro que sabe e um sujeito que vai chegar a ser sujeito” e que sofre as
determinações anteriores de fatores externos. A partir desse entendimento, são princípios comuns da
psicopedagogia:
– A consideração do “não-aprender” (TDAH) como sintoma que envolve frustrações, fracassos e
decepções e que o sintoma é o que emerge da personalidade em relação ao sistema social em que está
inserido o sujeito (familiar ou escolar);
– Que é na família que se aprende os primeiros modelos de relação e que é nela que “o sujeito tem seus
primeiros objetos de amor ou horror que nortearão suas inter-relações futuras, constituídas em sua
personalidade”.

O que significa aprender


Até aqui nos referimos a dificuldades de aprender e ao TDAH e procuramos apontar como os
profissionais da saúde mais comumente encaminham essas queixas tão frequentes. Mas, para melhor
entender o “não aprender” em seus diferentes modos, é necessário compreender antes o que significa
aprender.
Perguntamos agora: a que aprender nos referimos quando dizemos que uma criança não aprende?
Podemos pesquisar adequadamente o “não aprender” ou o TDAH sem melhor entender o que
significa aprender de uma criança?
Entender processos de aprendizagem determinados por fatores exteriores e introjetados por um
sujeito ou como função natural são suficientes para descrever o aprender na especificidade humana?

Consideraremos aqui que todo “não aprender” e os TDAH são manifestações em que o aprender,
como condição existencial fundamental, se mostra em restrição ou de modo mais limitado. Assim, com
ou sem implicações neurofisiológicas, essas manifestações podem ser entendidas como sintomas (o que
vem junto) em que prepondera uma disposição existencial, ou afetividade, “colorida” pelo medo,
fracasso, decepções ou frustrações.
Lembramos algumas referências reveladoras sobre o que significa aprender e que podem ajudar a
todos aqueles que se ocupam com as chamadas dificuldades de aprender das crianças e dos jovens.
Vários autores filósofos e psicólogos escreveram sobre o aprender humano de modos ricamente
diferentes.

Platão, no livro VII da obra A República:

“A educação não é de nenhum modo o que alguns proclamam que ela seja, pois pretendem introduzi-la na
alma onde não está, como alguém que desse visão a olhos cegos... Cada um possui a faculdade de
aprender e o órgão destinado a este uso, e que semelhantes a olhos que só pudessem voltar-se com o
corpo inteiro das trevas para a luz, este órgão também deve desviar-se com a alma toda daquilo que nasce,
até que se torne capaz de suportar a visão de ser e do que há de mais luminoso no ser; a educação é
portanto, a arte que se propõe este fim, a conversão da alma, e que procura os meios mais fáceis e mais
eficazes de operá-la; ela não consiste em dar a vista ao órgão da alma, pois que esta já o possui; mas
como ele está mal disposto e não olha para onde deveria, a educação se esforça por leva-lo a boa direção”
(p. 111).

“A aritmética, a geometria e todas as ciências que devem servir de preparo à dialética serão pois ensinadas
a nossos alunos desde a infância, mas tal ensino será ministrado sob forma isenta de coação porque o
homem livre não deve aprender como escravo” (p. 137).

Entendemos que para Platão, aprender de início já pertence ao homem, não sendo introduzida
posteriormente pela educação. Aprender acontece em liberdade. Cada um possui a condição de
aprender. Desde recém-nascida, a criança já é luz que ilumina o que aparece em sua luminosidade.
Assim, ela aprende e apreende desde sempre. A educação é a arte que se propõe à criança a suportar a
sua luminosidade e o que aparece, às vezes orientando, propondo, desviando ou organizando o seu
olhar. Assim, a criança pode “desviar-se com a alma toda daquilo (as trevas) que nasceu, até que se
torne capaz de suportar a visão de ser e do que há de mais luminoso no ser”.

Para os antigos gregos, criança, educação e crescimento somente podiam ser compreendidos
conjuntamente; as palavras pais (criança), paideia, paidós (educação, ação de criar, criação, crescimento)
e paideno (educar, crescer) se formaram da mesma raiz.
No âmbito da educação, cuidar de uma criança e de seu crescimento se dá sempre a partir do mundo
que a acolhe e que lhe oferta as condições melhores (ou piores) para que ela se descubra e se desenvolva.
Na tradição latina, a educação foi considerada separadamente da criança, significando então:
instrução, condução ou formação (do verbo duco, are).
Aprender significa no dicionário: tomar, agarrar, segurar, apoderar-se, compreender, entender.
O verbo aprender tem a mesma origem etimológica latina de apreender Ad+prehendo, ere – junção
do prefixo de aproximação + o verbo (agarrar, tomar, agarrar, ocupar ou atingir).
Aprehendere significa: apreender na memória, reter, tomar conhecimento.
Assim, para que algo seja aprendido, é necessário que tenha sido agarrado pelo entendimento. Para
isso é necessária uma aproximação.
Aprender e apreender como experiência humana se dão a partir de uma aproximação.

Descartes deu um novo e forte fundamento para a visão moderna da aprendizagem. A visão cartesiana
criou um sujeito chamado res cogitans (uma coisa pensante) e um objeto chamado res extensa (uma
coisa com extensão que podia ser calculada). Como sabemos, dessa divisão originou-se todas as
interpretações modernas do homem como sujeito, inicialmente separado do mundo e que, por meio da
transcendência de si alcançar os objetos externos para depois atribuir-lhes significados subjetivos.
Assim, o sujeito apreenderia intelectualmente a realidade agora externa e distante dos objetos.
Na atualidade essa separação distanciada não se constitui mais como uma questão nem provoca
estranheza, pois aprendemos a ver e entender a nós mesmos como sujeitos isolados do mundo e aos
objetos como objetos externos e distantes que alcançamos e construímos seus significados por
processos subjetivos.

No entanto, mesmo depois de Descartes, o aprender em sua especificidade humana foi compreendido
sem recorrer à dicotomia sujeito-objeto.
Na introdução de seu livro A Educação Funcional, ed. Claparède, faz uma sugestiva referência ao
médico e filósofo inglês John Lock, que em 1690 escreveu Ensaio sobre o entendimento humano. Nesse
livro, o filósofo afirmava a necessidade de a criança ser colocada na proximidade das coisas para que
aprendesse: “Pois é pelas coisas e não pelas palavras que a criança adquire ideias”. Para ele, o
conhecimento se dá por meio das experiências diretas com o mundo e não por processos intelectuais,
conceitos ou deduções lógicas.
Não quero aqui entrar em polêmicas sobre esse filósofo, considerado um dos fundadores do
empirismo filosófico que se opõe ao racionalismo. Também não vamos entrar em discussões sobre a
visão do determinismo natural do mundo que deu origem às observações empíricas científicas.
Aqui, ressaltamos a prescrição de Lock quanto à necessidade da proximidade direta da criança com as
coisas a serem conhecidas. Ideias são apreendidas com a experiência com as coisas. Para Lock, não há
uma cisão do “espírito” com o mundo exterior das sensações. O “espírito” é um órgão vivo que reage às
impressões. Entre as várias impressões, o “espírito” exerce suas preferências e vontades. Nas palavras
dele, “significa apenas um poder ou capacidade de preferir ou escolher”. Ele perguntou: “E o que determina a
vontade?”. Ao que respondeu: “Uma inquietação atual, a que é mais urgente”.
Em 1693, ele escreveu em novo tratado sobre educação:

“A curiosidade… excelente meio que a natureza proporcionou para dissipar a ignorância em que as
crianças vem ao mundo. Por estranhas as perguntas que uma criança possa fazer, não devemos repelir
nenhuma com desprezo, nem permitir zombarias. Ao contrário, é mister responder a tudo quanto ela
pergunta… Mas cuidado para não lhe perturbar o espírito com explicações ou ideias que ultrapassem sua
inteligência ou com a apresentação de uma quantidade de coisas sem relação alguma com o que ela
deseja saber na ocasião.
Porque o conhecimento é tão agradável ao entendimento como a luz aos olhos e as crianças, em particular
se comprazem extremamente em adquirir novos conhecimentos, sobretudo se veem que se lhes ouvem
as perguntas. E não duvido que uma das grandes razões pelas quais a maioria das crianças se entrega
inteiramente a divertimentos inúteis e entrega todo o seu tempo em futilidades é o fato de ver que se lhes
desprezava a curiosidade e pouco caso se fazia de suas perguntas. Desde que vos convencestes de que
vosso filho está nesse caso, deveis cuidadosamente observar se ele tem prazer em alguma coisa e
procurar saber de que mais gosta. Se puderdes descobrir que ele tem alguma inclinação particular,
aumentai-a quanto vos for possível e utilizai-vos dela como de um meio para pô-lo em ação e fazer nascer
nele o desejo de dedicar-se a alguma coisa”.

Não encontramos nessa recomendação a ideia de uma determinação do homem pela sociedade, que
foi desenvolvida mais tarde. Podemos perceber uma insistência do filósofo para os pais perceberem a
importância dos interesses e curiosidades da criança, a fim de favorecer o melhor aprender.

Mais tarde, com Martin Heidegger, a partir da hermenêutica fenomenológica do homem como ser-ai
existente desde sempre junto ao mundo, o aprender humano pode ser melhor esclarecido.
No artigo “O contributo pedagógico de Heidegger”, de Anton Mayer, publicado pela revista
Humboldt, encontramos citações feitas por Heidegger sobre a relação entre aprender e existir.
Em Interpretações sobre a poesia de Hölderlin, 1951, Heidegger escreve: “O homem é herdeiro e aprendiz
em todas as coisas”. A seguir, ele esclarece que herdar é aceitar e aprender é uma compreensão; ambas,
em vez de se processarem por um violento arrebatamento em seu proveito, constituem um ato de
tomar posse, uma recepção e um acolhimento cheio de gratidão e acompanhado dum sentimento de ter
cumprido um dever.
Ainda nesse texto sobre Hölderlin, encontramos:

“A possibilidade de aprender pressupõe a possibilidade de perguntar e levantar problemas... Questionar


não significa perguntar por perguntar, um questionamento insistente, mas o caminho que nos aproxima
daquilo que buscamos”.

Em O que significa pensar, 1951, novamente Heidegger trata do aprender. Ele escreve:

“Aprender significa fazer com que a nossa conduta fique em consonância com aquilo que por si nos exorta
em determinado momento ao substancial (ao real)”. Mayer diz: “Heidegger aproxima a aprendizagem da
linguagem, do dizer das coisas que surgem para cada um de nós. A aprendizagem é associada a
linguagem, enquanto ela se refere a algo que pode ser dito. Assim, aprendiz é o indivíduo que escuta, estar
a escuta é sem dúvida mais do que o simples ouvir”.

Desde que compreendemos a nós próprios como ser-no-mundo, compreendemos o existir humano e
todas as suas possibilidades, desde sempre, em relação a tudo aquilo que aparece na abertura iluminada
e iluminante que constitui a própria existência. Como todos os modos do acontecer humano, também
o aprender somente pode ser entendido na referência da relação de cada um com o que lhe aparece.
Nesse sentido, conversar e questionar implica em um diálogo entre nós mesmos e aquilo que nos
aparece em nossa própria existência. Esse diálogo nos aproxima de toda a realidade. Essa consonância se
faz presente constantemente quando dizemos algo daquilo que aparece para nós. Esse entendimento
nos leva a dizer que aprender é uma compreensão que recebe e acolhe todas as coisas. Assim, nessa
compreensão do aprender, a nossa conduta está sempre em correspondência com aquilo que é
recebido. A compreensão do aprender e do ensinar é um caminho que aproxima; quem aprende e
quem ensina precisam questionar e escutar sobre a realidade que se mostra.
Aproximando mais uma vez o homem como ser-no-mundo, como vimos em A crise na Educação, H.
Arendt também nos faz refletir:

“Na medida em que a criança não tem familiaridade com o mundo, deve-se introduzi-la aos poucos a ele;
na medida em que ela é nova, deve-se cuidar para que essa coisa nova chegue à fruição em relação ao
mundo como ele é”.

Percebemos a proximidade indissolúvel do mundo como fundamento para a compreensão humana e


diferencia suas duas instâncias: do mundo privado – o mais imediato, no qual os pais (adultos
próximos) assumem a responsabilidade pelo crescimento e vida da criança e onde ela “pode ser protegida
do mundo velho”; e do mundo público – de todas pessoas nas quais se insere a responsabilidade da
aprendizagem do mundo histórico comum.
A criança necessita para seu próprio crescimento uma boa base, uma referência segura do adulto que
se responsabiliza por ensiná-la sobre o mundo. Para H. Arendt:

“Sob a influência do Pragmatismo que o mundo moderno abraçou e que tem acolhimento na moderna visão
da aprendizagem, só é possível conhecer e aprender aquilo que nós fazemos... Sem que compreendamos
bem, substituímos, na medida do possível, o aprendizado pelo fazer”.

Assim, saber fazer passou a ser o objetivo do ensino e do aprender nas modernas metodologias.
Podemos observar claramente esse objetivo nas propostas técnicas das escolas de modo geral, voltadas
para as atividades e situações do fazer concreto e dos problemas empíricos. Quando os alunos
perguntam, por exemplo “para que vai me servir” saber quais os afluentes da margem direita e esquerda
do rio Amazonas, ou “o que vou fazer com isto?”, quando aprendem raiz quadrada, e os professores
não conseguem encontrar uma resposta esclarecedora, isso se dá quando eles mesmos há muito
carregam essa dúvida, sem entender a que serve aprender senão cumprir um programa passo a passo,
sem nenhum sentido além daquele que pode ser dado por uma resposta pragmática.
Precisamos recuperar o ensinar e o aprender em sua essência, considerando o fato de que “seres
humanos nascem para o mundo”, como diz H. Arendt.

O filósofo brasileiro Emmanuel Carneiro Leão, em seu livro Aprendendo a pensar, no capítulo
“Aprender e Ensinar”, nos diz:

“Somos sempre um empenho de viver. Viver é deixar-se libertar para o empenho… Esta é a questão! E por
isso também é a questão que mora no fundo das questões sobre ensinar e aprender. Que há com ensinar e
aprender que não pode ser explicado pela ciência? Os gregos chamavam o movimento de ensinar e
aprender por um mesmo radical. Assim: o ensino e a aprendizagem (máthesis), o que pode ser ensinado e
aprendido (mathématata) e o aluno, aquele que ensina aprendendo, e o professor, aquele que aprende
ensinando (mathetés)… Em sua essência de formação ensinar e aprender não é outra coisa do que tomar
conhecimento da realidade enquanto já a temos e a sabemos. Neste movimento radical, ensinar passa
sempre de simples informação e explicação para ser formação e criação. Formar é deixar o outro aprender,
integrando no que ele é, os limites do que ele não é. Aprender é muito mais difícil e fundamental que
ensinar. Só quem realmente sabe aprender, e somente na medida em que o sabe, pode realmente ensinar.
O professor é realmente professor enquanto e na medida em que for mais radicalmente aluno… Para
aprender não podemos receber tudo, mas devemos, de certo modo, trazer alguma coisa conosco para o
encontro. Os gregos chamavam esta dinâmica de máthema – o que pode ser contado”. (p.44)

Sabemos certamente que o que hoje é ensinado para as crianças não é o mesmo que em outras épocas.
Antes do século 20 e dos diagnósticos dos distúrbios de atenção, formulados pela neurofisiologia e
psicologia, como as dificuldades de aprender eram entendidas?
O que significa a hiperatividade e como entender o movimentar-se em demasia sem considerar o
mundo que solicita, suas imposições, faltas e exageros? A criança é hiperativa quando resiste fortemente
a executar o que lhe foi solicitado?

Contribuições da abordagem daseinsanalítica para o atendimento de crianças com queixas de


aprendizagem
O conceito de um sujeito cognitivo, isolado inicialmente dos objetos e que pode ser conhecido a
priori em seu interior deve ser superada para que possamos conhecer as verdadeiras relações entre
aprender e ensinar, criança e adulto, aluno e professor.

“Ensinar é primordialmente facilitar o aprender. Quando ensinamos uma criança a nadar, simplesmente a
aproximamos da água e de sua própria possibilidade de se sustentar nela. Aproximar aqui não deve ser
entendido a partir da distância mensurável, pois dentro da água, uma criança pode estar muito distante
dela. O próximo deve ser entendido como o familiar, o confiante, como aquilo que nos envolve e cujo
envolvimento nos acolhe. A tranquilidade que uma criança precisa sentir quando aprende a nadar não é
dada porque alguém a segura o tempo todo. Isso pode ser necessário a princípio, mas depois a simples
presença pode ser o suficiente, pois sentindo-se acompanhada, a criança pode ter a coragem de se
experimentar, de se jogar na água e dar as primeiras braçadas até que esteja tão familiarizada com o nadar
que não necessita mais da presença do outro que a acompanha”, diz D. Cytrynowicz na revista
Daseinsanalyse, nº 4.

Nesse artigo, o exemplo se refere a uma situação não escolar, do âmbito familiar. Isso é importante
ressaltar para que não permaneçamos no entendimento do ensino e aprendizagem determinado por
situações escolares. As citações que descrevem proximidade, confiança e coragem de se lançar e
experimentar se referem a todo aprender.
Podemos ver que aprender é uma arte, uma atividade ou um modo de atuação e compreensão
caracterizado tanto pelo aproximar-se e tomar posse – no sentido de apropriar-se – como também de
cuidar e poder relacionar-se com toda a riqueza da realidade do mundo.
Aproximar tomando posse ou aproximar tomando conta, somente é possível em relação ao que já está
presente chamando atenção. Aprender é, assim, um modo de existir correspondendo desde sempre
junto ao mundo significativo. Desse modo, uma coisa que pode ter surgido e ser muito importante para
todos pode também não ter despertado a curiosidade de alguém.
Por outro lado, encontramos nas queixas de “distúrbios de aprendizagem” que a criança pode também
resistir ao seu próprio aprender.
O que significa resistir? Essa palavra tem raiz latina, formada pelo prefixo re (repetição ou recuo) + o
verbo sisto, ere (estar). Assim, resistir significa estar em recuo, recuar, recusar, permanecer
recuado. Mas, esse significado não deve ser entendido simplesmente como se contrapor ou se opor,
pois indica também a ação de preservar, que visa a manutenção ou permanência de ser si mesmo, de
poder-ser, da preservação da própria potência e da própria segurança. Esse significado pode ser
encontrado nas táticas de defesa.
“Não aprender” pode ser entendido, assim, como resistir a aprender para manter-se onde está.
O sentido da resistência para aprender, de se opor para preservar, somente pode ser visto em cada caso.
Somente em relação a cada criança podemos perguntar a que, como, onde, com quem, ela resiste e não
pode aprender? De que modo ela percebe a sua necessidade de recusa?
Assim, como orientou Medard Boss, para entender os diversos modos de existir deficientes, limitados
ou doentios, também em relação às dificuldades de aprender, compreendemos antes o ser humano
sadio e as possibilidades amplas de ser no mundo.
A partir desse entendimento, as dificuldades de aprender da criança significam não mais um problema
isolado interno ou subjetivo, neurológico ou psicológico que tem que ser resolvido para que ela possa
atingir as metas gerais do aprender.
Podemos perguntar em relação às dificuldades de aprender em cada caso: 1) se o ensino proposto
favorece o aprender da criança, em cada caso, no sentido de suas possibilidades e da familiaridade com o
seu mundo; 2) se a escola desperta a curiosidade pertinente ao mundo próximo da criança; 3) se os
professores, eles mesmos, encontram sentido no que oferecem às crianças, a ponto de elas terem a
curiosidade estimulada para a nova procura.
Perguntamos também como se manifesta o “poder-não-aprender”? Agora? Nunca mais? Ou ainda a
criança não aprende? Como relação existencial, aprender é sempre temporal e mediada por um sentido
que se encontra entre o que se tem a aprender e em como aprender.

É necessário que permaneça válido tudo o que foi dito até aqui sobre a educação e o aprender
também nos casos das crianças que não conseguem dar conta das experiências de aprendizagem como
as demais em geral fazem e que tenham limitações permanentes ou não (deficiências intelectuais,
Síndrome de Down, autismo, surdez etc.), que afetam diferentes possibilidades de relação. Temos
também que considerar o que essas crianças podem e quais as suas limitações, bem como o alcance de
seus limites.
O neurologista Oliver Sacks, no livro Um antropólogo em Marte, ressalta uma recomendação de L.S.
Vygotsky, referente à preocupação dele com a integridade das crianças que tratava:

“Uma criança deficiente representa um tipo de desenvolvimento qualitativamente diferente e único… e para
o pedagogo é particularmente importante estar ciente da singularidade deste caminho pelo qual ele deverá
guiar a criança. Esta singularidade transforma o negativo do deficiente no positivo da compensação”.

Entendemos assim, que os atendimentos de crianças com queixas de dificuldades de aprender ou


fracasso escolar devam ser realizados sempre a partir da compreensão da criança em cada caso e na
totalidade de sua relação com o mundo. Nesse contexto, resistir fortemente à força das imposições da
eficiência geral – o que é quase sempre entendido como “deficiência” e que remete ao diagnóstico de
“criança problemática” – pode ser considerado diferentemente como singularidade de uma certa
existência.
O acompanhamento terapêutico pode ser entendido, então, como uma experiência singular de
aprender onde tanto a criança como o terapeuta são aprendizes e educadores que se aproximam das
novidades trazidas por e com ela e descobrem quem ela é.

Nota final: na modernidade, entre as diferentes possibilidades do ensinar, encontramos as técnicas de


utilização e controle, de produção e eficiência. Isto é, o ensino e o aprender a partir da visão técnica
eficiente são um sistema fechado que visam à instrução, o controle e previsão sucessiva dos
acontecimentos. Essa visão pode levar às programações de ensino com planejamento dos passos a
seguir, objetivos pré-determinados e sistemas de avaliação eficientes. No entanto, todas essas
possibilidades também estão fundadas na condição existencial mais originária de sentido. Esse é
expresso nas seguintes indagações que deveriam orientar a aprendizagem: o que procura o aprendiz? O
que busca o educador?
O ensino na perspectiva de orientar e de conduzir a criança para o crescimento mais pleno se
contrapõe ao ensino técnico e mais pragmático. Esse ensino prioriza incentivar a curiosidade para o
aprender, como dizia o filósofo Lock, ao aproximar e deixar repercutir as coisas que estavam antes ainda
distantes, contando com as possibilidades da criança de corresponder a elas. Para essa aprendizagem, a
confiança no adulto e o reconhecimento dele como alguém de mais experiência e que já conhece
contam muito para a criança. Isto é, com alguém reconhecido como mais experiente, a criança mais
confiante pode se lançar ao encontro de sua nova procura.
78 Seminários Mensais – Daseinsanalyse e Criança – ABD, 24/05/2014. Este texto foi escrito a partir da aula “Aprender e Existir”,
apresentada no grupo Devir, de Santos, em 22/05/2004.

Você também pode gostar