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Núcleo de Prática Jurídica em Direitos Humanos – FDUSP

[artigo pendente de publicação – favor não circular]

A lei brasileira de inclusão e a efetividade do direito à educação inclusiva no Brasil:


conceitos, avanços, perspectivas e desafios
Ana Laura Pereira Barbosa, Cecília Barreto Lima, Fabiane Midori Sousa Nakagawa, Giovana Costa Serra, Helena Costa
Rossi, João Pedro Viegas de Moraes Leme, Kaique Rodrigues de Almeida, Letícia Ueda Vella, Lucas Rebouças de Oliveira,
Luiza Pavan Ferraro, Mariana Marques Rielli, Stephani Galgliardi Amantini, Talita Salgado da Rocha, Tamiris Pinheiro de
Lima, Victor Antonio Del Vecchio, Victor Maffei Matsumato Gonçalves e Lívia Gil Guimarães1

Resumo: Esse artigo interdisciplinar discute o direito à inclusão de pessoas com deficiência na rede
regular de ensino brasileira. Por conta da reprodução de imprecisões terminológicas e de dificuldades
em compreender os conceitos nucleares envolvidos no tema da educação inclusiva, constata-se a
existência de uma sistemática resistência ao reconhecimento daquele direito como uma garantia
fundamental. O artigo analisa como a judicialização, no STF e em algumas instâncias judiciais inferiores,
pode estar envolvida nas dificuldades em se efetivar o direito à educação inclusiva. Por fim, ao analisar
criticamente a decisão, o contexto e os argumentos sustentados na Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) nº 5357, o artigo discute os discursos que obstaculizam a implementação deste direito.

Palavras-Chave: Educação inclusiva, ADI 5357, Direito à Educação, Inclusão, Pessoas com deficiência

1
Este artigo é produto do trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Prática Jurídica em Direitos Humanos (NPJ-DH),
atividade de extensão universitária da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que tem por objetivo, em
linhas gerais, a prática de litígio estratégico em direitos humanos e a participação social no Supremo Tribunal Federal
(STF). Em 2016, o foco dos trabalhos do grupo foi a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5357 e o tema da educação
inclusiva. Este artigo é a concretização dos debates com convidadas e convidados e discussões do grupo sobre a temática.
Nossos agradecimentos à disposição de cada uma das pessoas convidadas ao longo do semestre - Evorah Cardoso, Pedro
Hartung, Liliane Garcez, Guilherme Perisse, Thais Dantas, Eugênia Gonzaga, Lívia Gil Guimarães, Virgílio Afonso da
Silva, Conrado Hübner Mendes e Diogo Rosenthal Coutinho - em compartilhar um pouco de suas experiências e
conhecimentos conosco, todos essenciais à elaboração do artigo e ao aprimoramento de nossos estudos. Nosso
agradecimento também a Mayra Gramani, que colaborou nas revisões finais deste trabalho. Parte das atividades do grupo
consistiu em um conjunto de entrevistas semi-estruturadas exploratórias realizadas nos meses de abril, maio e junho de
2016, na cidade de São Paulo, com profissionais da área da educação, coordenação de escolas e pais e mães de estudantes
do ensino infantil, médio e fundamental. Relatos obtidos por meio dessas entrevistas serão utilizados ao longo deste
artigo como indicativos de situações existentes na sociedade brasileira. Não há, no entanto, qualquer pretensão de
generalizar as situações encontradas. Nosso especial agradecimento também às entrevistadas e entrevistados, que não
serão plenamente identificados dada a existência de pedidos de anonimato. O grupo é coordenado por Lívia Gil
Guimarães, Ana Laura Barbosa e Mayra Gramani e supervisionado pelo Professor Virgílio Afonso da Silva, todos da
Faculdade de Direito da USP. Maiores informações sobre o grupo e sobre suas atividades podem ser encontradas em
http://constituicao.direito.usp.br/extensao/ e em https://npjdh.wordpress.com.
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Sumário

Introdução
1. Panorama conceitual
1.1. O paradigma da inclusão
1.2. Educação Regular e o Atendimento Educacional Especializado
1.3. Os resultados da educação inclusiva na prática
2. Panorama normativo da educação
3. A ADI 5357
3.1. Argumentos da CONFENEN
3.1.1 Judicialização em Instâncias Inferiores
3.2. Análise crítica da decisão
3.3. O que faltou na decisão do STF?
3.3.1. O custo da inclusão para as instituições privadas de ensino
3.3.2. Os limites à iniciativa privada
3.3.3. A inserção na rede regular de ensino
4. Desafios à implementação da inclusão
4.1. Análise dos efeitos da decisão
4.2 Desafios práticos
4.2.1. A Medicalização das Necessidades Educacionais Especiais
4.2.2. Tratamento diferenciado ou discriminatório?
4.2.3. Necessidade de capacitação dos professores: um discurso que demonstra a dificuldade de
adaptação ao novo
4.2.4. O discurso da inclusão como “artigo de luxo”
Conclusão
ANEXO – Roteiro de entrevistas

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Introdução
Este artigo apresenta um aprofundamento da discussão do direto à educação no Brasil sob a
perspectiva da inclusão de pessoas com deficiência na rede regular de ensino2. A discussão desta
temática no âmbito jurídico, a despeito da evolução legislativa, parece ainda repleta de imprecisões
terminológicas e dificuldades de compreensão dos conceitos nucleares para o debate. Uma análise do
julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5357 é capaz de confirmar essa afirmação
e evidenciar essas dificuldades. Esta ação, ajuizada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos
de Ensino (CONFENEN), questionava a vedação da cobrança de valores adicionais na matrícula ou
mensalidade de pessoas com deficiência, consagrada nos artigos 28, §1º e 29 da Lei Brasileira de
Inclusão (Lei nº 13.146/2015).

Assim, o objetivo do presente artigo é o de apresentar o panorama normativo e conceitual sobre


a educação inclusiva no Brasil, de forma a desmistificar as barreiras existentes por detrás das imprecisões
terminológicas que reproduzem um discurso discriminatório e revelam retrocessos ao direito à educação.
A fim de ilustrar os questionamentos, argumentos e discursos que atentam contra os avanços normativos
obtidos no campo da educação inclusiva, serão analisados o caso e o julgamento da ADI 5357 e,
posteriormente, será discutida a possível existência de obstáculos na efetiva implementação da inclusão
de crianças com deficiência em sala de aula do ensino privado regular.

O artigo se estrutura em 4 tópicos. O tópico 1 apresenta um panorama dos conceitos básicos da


educação necessários à compreensão da discussão sobre a educação inclusiva. Em seguida, no tópico 2,
é desenhado um panorama normativo do direito constitucional à educação. No tópico 3, são feitas uma
introdução ao contexto do ajuizamento da ação e, em seguida, uma análise da decisão e de seus pontos
controvertidos. O tópico 4, por último, aponta alguns desafios que parecem envolver a implementação
da política pública educacional de inclusão de pessoas com deficiência em sala de aula.

2
De acordo com o Parecer do Conselho Nacional da Educação/Câmara de Educação Básica nº 11/2000, entende-se por
“ensino regular” aquele que atendem aos requisitos da Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 9434/1996). O oposto de ensino
regular é o ensino livre, ou seja, aquele ensino fora da Lei de Diretrizes e Bases, como é o caso das escolas de língua
estrangeira, por exemplo. (Parecer CNE/CEB 11/2000, publicado em 9.06.2000, pp.30, nota de rodapé nº41.). Trata-se,
portanto, da educação básica obrigatória (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) e da educação superior, na
forma como previsto no art. 21, I e II, da Lei de Diretrizes e Bases, que prevê:
Art. 21. A educação escolar compõe-se de:
I - educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio;
II - educação superior.

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1. Panorama conceitual
Antes de adentrarmos no debate sobre os contornos constitucionais da educação inclusiva, é
importante fazermos alguns esclarecimentos preliminares. Por isso, primeiramente, serão definidos
conceitos-chave, como educação inclusiva - com base na oposição entre integração e inclusão, e
atendimento educacional especializado (AEE).

1.1. O paradigma3 da inclusão


Inicialmente, o tratamento destinado às pessoas com deficiência era guiado por uma concepção
médica e a educação não era considerada prioritária - era tida, até mesmo, como impossível para aquelas
com deficiências cognitivas, múltiplas ou distúrbios emocionais mais severos4. O trabalho educacional
tinha como principal escopo a criação de autonomia para as atividades cotidianas da vida, sem qualquer
perspectiva de ingresso em uma cultura letrada formal5.
Paralelamente à aplicação do modelo médico, a obrigatoriedade de frequentar a escola regular e
a evidente incapacidade do ambiente escolar em garantir uma aprendizagem de todas6 originaram as
denominadas classes especiais7 nas escolas regulares. Eram classes que recebiam estudantes que não se

3
Importante notar que, de acordo com Rosana Glat e Leila de Macedo Varela Blanco, ao tratarmos do panorama histórico
devemos ter em mente que “um paradigma não se esgota com a introdução de uma nova proposta, e, na prática todos os
modelos [que serão expostos a seguir] coexistem, em diferentes configurações nas redes educacionais de nosso país”
(BLANCO, Leila de Macedo Varela; GLAT, Rosana. “Educação Especial no contexto de um Educação Inclusiva”, in GLAT,
Rosana (Org.) Educação inclusiva: cultura e cotidiano escolar. Rio de Janeiro: 7 letras, 2007, p. 19)
4
Os primeiros registros da educação especial no país remontam ao final do século XIX, com a criação do Instituto dos
Meninos Cegos, em 1854. Nos anos seguintes (respectivamente, em 1874 e 1887) foram criados o Hospital Juliano Moreira
e a “Escola Médica”, que iniciam a assistência médica a indivíduos com deficiência intelectual e física. Durante o período
colonial, porém, persistia o descaso do poder público quanto ao oferecimento de educação em geral. Já existia, à época, duas
vertentes de posicionamento sobre o enfoque da educação de pessoas com deficiência: a vertente que entendia ser
competência de médicos ditar também o âmbito das práticas escolares, e a vertente psicopedagógica, que enfatizava o papel
dos princípios psicológicos, mas não desconsiderava a importância de médicos. Na prática, prevalecia a medicalização.
(Mendes, Enicéia Gonçalves. "Breve histórico da educação especial no Brasil." Revista Educación y Pedagogía 22.57 (2011):
pp. 93)
5
BLANCO, Leila de Macedo Varela; GLAT, Rosana. “Educação Especial no contexto de um Educação Inclusiva”, in GLAT,
Rosana (Org.) Educação inclusiva: cultura e cotidiano escolar. Rio de Janeiro: 7 letras, 2007, p. 19.
6
Desde já, explicitamos que este artigo fará o uso gramatical do feminino universal. Assim, sempre que possível, serão
utilizados termos como professoras, coordenadoras, educadoras, alunas, etc. Já que o artigo discute inclusão, é importante
ressaltar que o uso da língua também, muitas vezes, reproduz as marcas sociais da desigualdade e ratifica a invisibilidade de
grupos sociais minoritários. É o caso das mulheres e, mais ainda, é o caso de mulheres com deficiência.
7
“Enquanto que a sociedade civil se organizava em iniciativas comunitárias difundindo o modelo de instituições privadas e
filantrópicas, a escola pública, vai estendendo as matrículas às classes populares. O crescimento do índice de reprovação e
de evasão vai alimentar as teses que associavam o fracasso escolar e deficiência intelectual de grau leve, e que serviu como
justificativa para a implantação de classes especiais nas escolas públicas” (Mendes, Enicéia Gonçalves. "Breve histórico da
educação especial no Brasil." Revista Educación y Pedagogía 22.57 (2011), pp.99.
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enquadravam nas normas do ensino regular8. Tais espaços, com o passar do tempo, tornaram-se mais
como ambientes de segregação do que como possibilidades de ingresso de estudantes com deficiências
nas classes comuns9 e foram duramente criticados.
Assim, em suas primeiras concepções, a educação voltada às pessoas com deficiência se
consolidou como um sistema educacional paralelo ao sistema geral, até que então, surgiram as bases
para uma proposta de unificação10. Conquanto o processo de expansão de instituições privadas de ensino
especial tenha já se intensificado a partir da década de 1950, a institucionalização do ensino especial tem
como marco reconhecido a década de 1970 por conta do aumento da legislação e do envolvimento do
poder público na questão11.
Essa concepção de ambientes escolares segregados, porém, a partir da década de 1960, já passou
a ser criticada a partir de reflexões, por parte da sociedade, sobre os prejuízos decorrentes da segregação
de grupos minoritários. Isso criou alicerces para o fortalecimento das propostas de integração escolar12
e, posteriormente, do paradigma da inclusão.
A proposta de integração buscava garantir a estudantes com deficiência um ambiente escolar que
fosse o menos restritivo possível. Por meio desse modelo, estudantes com deficiência deveriam ser
escolarizados em classes comuns, porém, só seriam integrados quando demonstrassem condições de
“acompanhar a turma”. Assim, as expectativas não eram que a escola se adaptasse às individualidades
de aprendizado das estudantes, mas sim que estudantes se adaptassem ao ensino. Entretanto, esse modelo
mostrou-se segregador, já que as classes especiais, que deveriam ser um meio para alcançar o ensino
regular, tornaram-se ambientes para isolar alunas com dificuldade de adaptação e garantiam que as
escolas não precisassem alterar suas práticas para incluí-las13.

8
MENDES, Enicéia Gonçalves. A radicalização do debate sobre inclusão escolar no Brasil. Rev. Bras. Educ. 2006, vol.11,
n.33, pp.387-40, p. 387. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v11n33/a02v1133.pdf> último acesso em
12/08/2016.
9
BLANCO, Leila de Macedo Varela; GLAT, Rosana. “Educação Especial no contexto de um Educação Inclusiva”, in GLAT,
Rosana (Org.) Educação inclusiva: cultura e cotidiano escolar. Rio de Janeiro: 7 letras, 2007, p. 21.
10
MENDES, Enicéia Gonçalves. A radicalização do debate sobre inclusão escolar no Brasil. Rev. Bras. Educ. . 2006, vol.11,
n.33, pp.387-40, p. 387.
11
Mendes, Enicéia Gonçalves. "Breve histórico da educação especial no Brasil." Revista Educación y Pedagogía 22.57
(2011): 99.
12
MENDES, Enicéia Gonçalves. A radicalização do debate sobre inclusão escolar no Brasil. Rev. Bras. Educ. 2006, vol.11,
n.33, pp.387-40, p. 388. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v11n33/a02v1133.pdf> último acesso em
12/08/2016.
13
BLANCO, Leila de Macedo Varela; GLAT, Rosana. “Educação Especial no contexto de uma Educação Inclusiva”, in
GLAT, Rosana (Org.) Educação inclusiva: cultura e cotidiano escolar. Rio de Janeiro: 7 letras, 2007, p. 22-23.
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A partir das críticas direcionadas ao modelo de integração14 e das novas demandas e expectativas
sociais, foi criada a proposta de educação inclusiva15. De acordo com Enicéia Gonçalves Mendes, “a
ideia central era a de que, além de intervir diretamente sobre essas pessoas, se fazia necessário mudar
também a escola, para que esta possibilitasse a convivência dos diferentes. No âmbito da educação,
passou-se a defender um único sistema educacional de qualidade para todos os alunos, com ou sem
deficiência”16.
O princípio básico desta concepção escolar é, portanto, que todas as alunas, independentemente
de suas condições socioeconômicas, raciais, culturais ou de desenvolvimento, devem ser acolhidas nas
escolas regulares com adequada oferta de estrutura que lhes garanta condições de aprendizado17. Dessa
forma, cabe às instituições de ensino, públicas e privadas, se adaptarem para atender às necessidades de
cada indivíduo18, combater atitudes discriminatórias, e, como consequência, construir uma sociedade
inclusiva e atingir a educação para todas19. Em conformidade com as afirmações acima, Ronaldo
Negrão20, Diretor da Escola Planeta Terra, localizada no município de São Paulo, afirma:

14
Para Claudia Werneck as ideias de integração e inclusão podem ser compreendidas por meio de dois sistemas: o de cascatas
e o de caleidoscópio. O processo de integração é definido pelo chamado sistema de cascatas. Nele, todos as alunas têm o
direito de entrar na corrente principal e transitar por ela em função de suas necessidades específicas. A inclusão questiona o
conceito de cascatas por tender à segregação, porque um sistema que admite diversificação de oportunidades para as alunas
que não conseguem ‘acompanhar a turma’ no ensino regular não força a escola a se reestruturar para mantê-las. Inclusão é,
assim, o termo utilizado por quem defende o sistema caleidoscópio de inserção. Nesse sistema não existe uma diversificação
de atendimento. A criança entrará na turma comum do ensino regular e caberá à escola encontrar respostas educativas para
as suas necessidades específicas (WERNECK, Claudia. Ninguém mais vai ser bonzinho na sociedade inclusiva. Rio de
Janeiro: WVA, 1997, p. 51-53, apud SANTOS, Monica Pereira. Educação inclusiva: Redefinindo a educação especial).
15
BLANCO, Leila de Macedo Varela; GLAT, Rosana. “Educação Especial no contexto de uma Educação Inclusiva”, in
GLAT, Rosana (Org.) Educação inclusiva: cultura e cotidiano escolar. Rio de Janeiro: 7 letras, 2007, p. 23.
16
MENDES, Enicéia Gonçalves. A radicalização do debate sobre inclusão escolar no Brasil. Rev. Bras. Educ. 2006, vol.11,
n.33, pp.387-405, p. 393. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v11n33/a02v1133.pdf> último acesso em
12/08/2016.
17
Neste sentido: “Inclusion is a concept which views children with disabilities as true full-time participants and members of
their neighborhood schools and communities. The inclusion philosophy proposes that there not be a range of placements but
rather all students be educated with their peers in the same physical location. Inclusionists espouse that inclusive schools ‘are
based on the belief that the world is an inclusive community with people who vary not only in terms of disabilities but in
race, gender, and religious background’ (Mercer 1997, p. 201). With inclusion, students come to the regular classroom with
all the specialized services they require. Every child has unique learning needs requiring an educational program implemented
to take into account the wide diversity of their characteristics and needs.” (Bruce Allen Knight, Towards inclusion of students
with special educational needs in the regular classroom, vol. 14, 1999, .1)
18
Importante notar que, conforme afirmam Rosana Glat e Leila de Macedo Varela Blanco, a educação inclusiva tem uma
proposta muito mais ampla do que aquela voltada a estudantes com deficiência. “O fracasso escolar não é simplesmente uma
consequência de deficiências ou problemas intrínsecos dos alunos, mas resultante de variáveis inerentes ao próprio sistema
escolar, como metodologias de ensino inadequadas, ou currículos fechados que ignoram as diversidades socioeconômicas
e culturais da população ou região onde a escola está inserida” (BLANCO, Leila de Macedo Varela; GLAT, Rosana.
“Educação Especial no contexto de um Educação Inclusiva”, in GLAT, Rosana (Org.) Educação inclusiva: cultura e cotidiano
escolar. Rio de Janeiro: 7 letras, 2007, p. 25).
19
GLAT, Rosana (Org.) Educação inclusiva: cultura e cotidiano escolar. Rio de janeiro: 7 letras, 2007, p. 16.
20
Em entrevista concedida ao NPJ-DH no dia 7 de junho de 2016.
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[...] para nós todos os alunos são alunos de inclusão. Esse é um primeiro princípio da
nossa escola, alguns necessitam de determinadas demandas, outros de outras, mas a
atenção do cuidar nada mais é do que o princípio de incluir, no sentido mais amplo. É
assim que a gente vê a escola de inclusão.

Assim, a educação inclusiva corresponde a um novo modelo de escola, em que é possível a


permanência de todas e no qual mecanismos de seleção e discriminação são substituídos por
procedimentos de identificação e remoção de barreiras de aprendizagem. É uma nova cultura escolar
que busca o desenvolvimento de respostas educativas que atinjam a todas as alunas e propõe um processo
de reestruturação completa dos aspectos constitutivos da escola21.

1.2. Educação Regular e o Atendimento Educacional Especializado


A evolução dos paradigmas que se desenvolveram no país paralelamente às expansões e reformas
históricas na educação culmina no atual ideário de inclusão de pessoas com deficiência em salas de aula
regulares. A premissa deste paradigma é a de que deixem de existir ambientes de ensino segregados e,
para além da mera convivência em um mesmo ambiente físico de ensino, haja efetiva estrutura necessária
ao atendimento das necessidades educacionais especiais22. Por isso, a extinção da segregação dos
ambientes de ensino não significa que as diferenças devam deixar de ser consideradas. O atendimento
educacional especializado (AEE), previsto no Decreto nº 6.571/2008, é projetado com o objetivo de
complementar o ensino regular com atividades no contraturno que, de acordo com as necessidades
educacionais especiais de cada estudante, estimulem o desenvolvimento das habilidades necessárias para
a efetiva participação em sala de aula regular23.

21
GLAT, Rosana (Org.) Educação inclusiva: cultura e cotidiano escolar. Rio de janeiro: 7 letras, 2007, p. 17.
22
Necessidades educacionais especiais não são sinônimo de deficiência. Deficiência é um conceito que decorre de
determinada classificação médica. Já as necessidades educacionais especiais estão relacionadas à interação da aluna à
realidade de ensino. Por outro lado, necessidades educacionais especiais podem ou não ter origem em diferenças no
desenvolvimento decorrentes de deficiências. Estudantes que migram para comunidades com línguas, costumes ou valores
diferentes ou estudantes que provieram de sistemas de ensino menos flexíveis, por exemplo, costumam apresentar
necessidades educacionais especiais. Neste sentido, é pertinente mencionar o conceito de Rosana Glat de necessidades
educacionais especiais: “Necessidades educacionais são as demandas apresentadas pelos sujeitos para aprender o que é
considerado importante para sua faixa etária, pela comunidade à qual a escola faz parte. Necessidades Educacionais Especiais
são aquelas demandas exclusivas dos sujeitos que, para aprender o que é esperado para o seu grupo de referência, precisam
de diferentes formas de interação pedagógica e/ou suportes adicionais: recursos, metodologias e currículos adaptados, bem
como tempos diferenciados, durante todo ou parte do percurso escolar”. (GLAT, Rosana (Org.) Educação inclusiva: cultura
e cotidiano escolar. Rio de janeiro: 7 letras, 2007, p. 26)
23
O AEE pode ser consubstanciado em diversos tipos de atividade, a depender da faixa etária e da necessidade educacional
de cada estudante. Ele pode visar, por exemplo, o desenvolvimento de habilidades motoras, de convivência, ou o aprendizado
de Libras ou Braille. Neste sentido: “Do nascimento aos três anos, o atendimento educacional especializado se expressa por
meio de serviços de estimulação precoce, que objetivam otimizar o processo de desenvolvimento e aprendizagem em
interface com os serviços de saúde e assistência social. Em todas as etapas e modalidades da educação básica, o atendimento
o educacional especializado é organizado para apoiar o desenvolvimento dos estudantes, constituindo oferta obrigatória dos
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O AEE pode ser definido como “o conjunto de atividades, recursos de acessibilidade e pedagógicos
organizados institucionalmente, prestado de forma complementar ou suplementar à formação dos
alunos no ensino regular”24. O AEE não tem por objetivo substituir a educação na rede regular, mas sim
complementá-la25, já que as atividades desempenhadas não são as mesmas.26
Em um sistema inclusivo, algumas estudantes podem precisar de ajuda para que possam aprender
conteúdos específicos, concomitantemente ao ensino regular27, tendo assim pleno acesso à educação.
Esse apoio é dado pelo AEE, por meio da disponibilização de serviços, recursos de acessibilidade e
estratégias, que eliminem os obstáculos à plena participação da aluna na sociedade e ao desenvolvimento
da aprendizagem. Trata-se de estudantes com transtornos funcionais específicos28, com deficiência de
natureza física, mental ou sensorial, com transtornos globais do desenvolvimento, bem como de pessoas
com altas habilidades/superdotação29.
O AEE surge como uma reformulação da antiga educação especial. Historicamente, a
denominada educação especial caracterizava-se pelo isolamento dos indivíduos em um ambiente de
ensino segregado e com pouco enfoque no currículo ou estratégias pedagógicas30. Ao invés de

sistemas de ensino. Deve ser realizado no turno inverso ao da classe comum, na própria escola ou centro especializado que
realize esse serviço educacional. (...) O atendimento educacional especializado é realizado mediante a atuação de
profissionais com conhecimentos específicos no ensino da Língua Brasileira de Sinais, da Língua Portuguesa na modalidade
escrita como segunda língua, do sistema Braille, do Soroban, da orientação e mobilidade, das atividades de vida autônoma,
da comunicação alternativa, do desenvolvimento dos processos mentais superiores, dos programas de enriquecimento
curricular, da adequação e produção de materiais didáticos e pedagógicos, da utilização de recursos ópticos e não ópticos, da
tecnologia assistiva e outros.” (MEC. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, 2008,
p.13)
24
Ministério da Educação, Resolução 4 Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação
Básica, modalidade Educação Especial, 2009.
25
Ministério da Educação, Resolução 4 Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação
Básica, modalidade Educação Especial, 2009.
26
O atendimento educacional especializado tem como função identificar, elaborar e organizar recursos pedagógicos e de
acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos estudantes , considerando suas necessidades
específicas. As atividades desenvolvidas no atendimento educacional especializado diferenciam-se daquelas realizadas na
sala de aula comum, não sendo substitutivas à escolarização. Esse atendimento complementa e/ou suplementa a Formação
dos estudantes com vistas à autonomia e independência na escola e fora dela.( (MEC. Política Nacional de Educação Especial
na Perspectiva da Educação Inclusiva, 2008, p.13)
27
FAVEIRO, Maria Eugênia. R. CEJ, Brasília, n. 26, p. 27-35, jul./set. 2004, p. 30.
28
Como dislexia, disortografia, disgrafia, discalculia, transtorno de atenção e hiperatividade, entre outros, de acordo com a
Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, Brasília, 2008.
29
Marcos Político-Legais da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, Brasília, 2010.
30
“(...) o sistema de educação especial parecia se limitar a generalizar a partir do rótulo básico, e se concentrar na recuperação
ou remediação de supostas etapas que faltavam ao aluno, surgindo daí a propensão de não se trabalhar assuntos acadêmicos,e
de enfatizar supostos pré-requisitos para tais habilidades (Ferreira, 1992).(...) .Conforme já havia apontado Ferreira (1989)
sob o termo “educação especial” ainda se encontrava no Brasil até o final de década de noventa vários procedimentos para,
primeiramente isolar indivíduos considerados deficientes / diferentes, e serviços centrados na função de efetuar diagnóstico
para a identificação,na montagem de arranjos, enquanto que não se discutia currículo e estratégias instrucionais. Ao isolar os
indivíduos em ambientes educacionais segregados, rotulandoos de deficientes e tratando-os como crianças pré-escolares, a
educação que lhe era oferecida acrescentava-lhes um duplo ônus: o rótulo e estigma da deficiência com a consequente
exclusão social, além da minimização das suas potencialidades através de uma educação de qualidade inferior”.(Enicéia
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frequentarem escolas regulares, o atendimento a essas alunas era realizado em um ambiente separado e
especializado, prestado por instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas com atuação
exclusiva na educação especial, como as APAEs (Associação de Pais Amigos dos Excepcionais).
A partir dos anos1990, a função das antigas escolas especiais passa então a ser reformulada de
acordo com a ótica da inclusão, não mais como substitutiva, mas sim como um complemento oferecido
na própria rede regular de ensino, na forma do atendimento especializado em salas de recursos
multifuncionais e em centros especializados de referência31.
É importante ponderar que essa transição - do modelo das escolas especiais para o do AEE, como
complementação da rede regular - não ocorreu sem que houvesse objeções e resistências de grupos de
pressão que questionavam tanto do ponto de vista econômico, quanto da viabilidade dessa política
pública32. Isso demonstra que a educação inclusiva é o resultado de uma constante disputa (social e
política) pela igualdade, concretizada em normas que visam alterar a realidade e implementar uma
política pública educacional de inclusão.

1.3. Os resultados da educação inclusiva na prática


A inclusão é paradigma educacional capaz de promover o desenvolvimento intelectual e social
de alunas com deficiência, bem como de efetivar mudanças no ambiente escolar em geral. Como
exemplo, apresenta-se pesquisa33 que observou crianças que estudaram durante um ano em escolas
especiais da APAE-SP e que passaram a frequentar, nos dois anos seguintes, outras escolas, especiais
ou inclusivas.
O objetivo da pesquisa era comparar o desenvolvimento dessas alunas em relação à escola em
que estudavam anteriormente. Enquanto o grupo de estudantes que foi para escolas inclusivas apresentou
resultados positivos nas áreas avaliadas pelas pesquisadoras (identidade e autonomia, socialização,

Gonçaves Mendes, Breve histórico da educação especial no Brasil, Revista Eduação e Pedagogia, vol.22, num 57, maio-
agosto, 2010, p.103-104.)
31
PLETSCH, Marcia. A dialética da inclusão/exclusão nas políticas educacionais para pessoas com deficiências: um
balanço do governo Lula (2003-2010). Revista Teias vol. 12, n. 24, jan./abr. 2011, pp. 39-55 (46)
32
Os avanços legais da educação inclusiva passaram por disputas no âmbito do Poder Legislativo. Para exemplificar, a
procuradora Eugênia Gonzaga conta em vídeo disponível online que na aprovação da Meta Quatro do Plano Nacional de
Educação, que tratava da expressa obrigatoriedade da inclusão, o Plano teve seu texto modificado na Câmara dos Deputados,
de modo a adotar uma redação que chancela a possibilidade de crianças serem segregadas, por força de lobby das APAES e
instituições de educação especial, que possuem uma grande projeção política. A procuradora também atenta para a questão
econômica, já que essas instituições recebem verba pública, além da mensalidade paga pelas mães dessas alunas. O vídeo
está disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=P-ZO7kMksQo> Último acesso em 31 jul. 2016.
33
OLHER, Roseli e GUILHOTO, Laura M. F. F.. Educação inclusiva e a transição da escola especial: A convivência em
classes comuns e o trabalho complementar em salas de apoio à inclusão favorecem o desenvolvimento dos alunos com
Deficiência Intelectual. Revista Deficiência Intelectual, ano 3, volume 4-5 janeiro/dezembro de 2013, p. 6-11.
9
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comunicação e expressão), o grupo que foi estudar em escola especial não demonstrou evolução
significativa nos mesmos critérios.
O estudo apontou que as crianças com deficiência que frequentaram escolas inclusivas tiveram
uma melhora de 25% no Índice de Mudança Confiável34, ou seja, que a melhora decorreu da intervenção
realizada, não sendo, portanto, modificação ocasional. Já em relação a estudantes que permaneceram em
instituições especializadas, houve queda de 9,1% no mesmo índice.
No estudo citado, também se concluiu que estudantes que continuaram em escolas especiais
tiveram poucos avanços quanto à autonomia, aprendizagem e comportamento social. Nesse sentido, elas
permaneceram com vocabulário restrito e dificuldades para se fazerem entender perante colegas e
pessoas adultas. Constatou-se, ainda, que havia evidências de que a convivência apenas em ambientes
segregados não favorece e não estimula o desenvolvimento integral - que engloba o aprendizado
intelectual, físico, social e emocional - de alunas com deficiência da mesma forma que os ambientes
educacionais inclusivos.
Acerca das alterações verificadas no ambiente escolar em geral, essa mesma pesquisa verificou
que houve, nas escolas inclusivas, uma mudança com relação aos conhecimentos, atitudes e organização,
devido à presença de estudantes com deficiência. Professoras, diretoras e coordenadoras buscaram se
informar sobre a educação inclusiva e compartilhar experiências a fim de atender melhor às necessidades
de todas as crianças.
Outra pesquisa, esta realizada com alunas e alunos com Síndrome de Down incluídos na rede
pública de ensino35, analisou o contato social de crianças com a deficiência e crianças com
desenvolvimento ‘típico’36, em um município no interior do estado de São Paulo. Foram observadas seis
crianças com Síndrome de Down, entre três e seis anos, comparadas com outras seis crianças com
desenvolvimento ‘típico’, que frequentavam a mesma sala de aula.
O estudo concluiu que, em geral, as crianças com Síndrome de Down obtiveram resultados tão
positivos quanto as crianças às quais foram comparadas. Nas categorias analisadas, como “interação
com outra criança” e “interação com o objeto” (ações que envolvem manipulação de objetos diversos
durante a realização de atividades lúdicas e pedagógicas), as pontuações foram as mesmas na primeira

34
O Índice de Mudança Confiável indica se realmente ocorreu alguma alteração em termos de melhora ou piora no
desenvolvimento escolas das alunas. Ele é utilizado em pesquisas interventivas a fim de identificar se a mudança na pontuação
individual, antes ou depois da intervenção, é estatisticamente relevante ou não. Assim, compara-se se as mudanças verificadas
podem ser atribuídas aos procedimentos utilizados, não sendo meras oscilações. Dados retirados do site:
<http://www.psicoinfo.ufscar.br/conteudo/indice-de-mudanca-confiavel>. Acessado em 04/07/16.
35
ANHÃO, P. P. G; Pfeifer, L. I; Santos, J, L. Interação social de crianças com Síndrome de Down na educação infantil.
Revista Brasileira de Educação Especial, v.16, n.1, p.31-46, 2010
36
Conforme terminologia utilizada originalmente na pesquisa citada.
10
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categoria (15) e muito próximas na segunda (respectivamente 14,5 e 15). Os comportamentos


observados pelo grupo de estudantes com Síndrome de Down inserido na educação regular apresentaram
características de interação social semelhantes às crianças com desenvolvimento típico estudadas,
reforçando a importância da inclusão escolar.
Ainda que ambas as pesquisas tenham sido desenvolvidas com uma amostragem restrita, nota-se
que as experiências relativas à educação inclusiva apontam para significativas melhoras quantitativas e
qualitativas no desenvolvimento integral de alunas com deficiência.

2. Panorama normativo da educação


A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5357, como mencionado anteriormente, questionou
os artigos 28, §1º e 29 da Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015), os quais instituíram a vedação
à cobrança de valores adicionais na matrícula ou mensalidade de pessoas com deficiência.

Esta lei foi aprovada em 6 de julho de 2015, após intensos debates ocorridos durante os 13 anos
de seu trâmite no poder legislativo37. Dentre seus dispositivos, a lei consagrou a vedação à cobrança,
por parte de escolas particulares, de valores adicionais de qualquer natureza em suas mensalidades,
anuidades e matrículas para viabilizar a estrutura educacional para inclusão (art. 28, § 1º da Lei
13.146/1538), assim como instituiu a obrigatoriedade de adoção de um conjunto de medidas inclusivas
por parte de instituições de ensino superior e educação profissional e tecnológica (art. 3039). Mais do

37
A lei foi fruto de intensos debates no Poder Legislativo. Sua redação original (projeto de Lei 6/2003, apresentado em
fevereiro de 2003 pelo senador Paulo Paim) possuía significativas diferenças com relação à redação final, aprovada, em
virtude de alterações durante os anos decorridos desde o protocolo legislativo até sua aprovação, moldando-se aos embates
políticos ocorridos no legislativo e também atentando-se à busca por adequação aos paradigmas educacionais. A adesão, pelo
Brasil, em 25 de agosto de 2009 (por meio do Decreto 6949/2009), à Convenção Internacional da ONU sobre os direitos das
pessoas com deficiência, com status de emenda constitucional, impôs a necessidade de adequação ao teor da lei, alterando
significativamente um conjunto de artigos.
38
Art. 28, § 1o Às instituições privadas, de qualquer nível e modalidade de ensino, aplica-se obrigatoriamente o disposto nos
incisos I, II, III, V, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV, XV, XVI, XVII e XVIII do caput deste artigo, sendo vedada a
cobrança de valores adicionais de qualquer natureza em suas mensalidades, anuidades e matrículas no cumprimento dessas
determinações.
39
Art. 30. Nos processos seletivos para ingresso e permanência nos cursos oferecidos pelas instituições de ensino superior
e de educação profissional e tecnológica, públicas e privadas, devem ser adotadas as seguintes medidas:
I - atendimento preferencial à pessoa com deficiência nas dependências das Instituições de Ensino Superior (IES) e nos
serviços;
II - disponibilização de formulário de inscrição de exames com campos específicos para que o candidato com deficiência
informe os recursos de acessibilidade e de tecnologia assistiva necessários para sua participação;
III - disponibilização de provas em formatos acessíveis para atendimento às necessidades específicas do candidato com
deficiência;
IV - disponibilização de recursos de acessibilidade e de tecnologia assistiva adequados, previamente solicitados e escolhidos
pelo candidato com deficiência;
V - dilação de tempo, conforme demanda apresentada pelo candidato com deficiência, tanto na realização de exame para
seleção quanto nas atividades acadêmicas, mediante prévia solicitação e comprovação da necessidade;
11
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que a inovação substancial no ordenamento, o texto desta lei representa a consolidação de um conjunto
de garantias fundamentais que já possuíam raiz constitucional e infraconstitucional.

O direito à educação é previsto no art. 6º da Constituição40 como um direito social, ou seja, um


direito enunciado em normas constitucionais e concretizado por meio de prestações positivas
proporcionadas pelo Estado, direta ou indiretamente, com o intuito de igualar situações socialmente
desiguais41. Essas normas constitucionais são, além do art. 6º, os arts. 205 e seguintes. Além desses
artigos constitucionais, há também o art. 24 da Convenção Internacional da ONU sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência42, ratificada em agosto de 2009, conforme o procedimento do art. 5º, § 3º da

VI - adoção de critérios de avaliação das provas escritas, discursivas ou de redação que considerem a singularidade linguística
da pessoa com deficiência, no domínio da modalidade escrita da língua portuguesa;
VII - tradução completa do edital e de suas retificações em Libras.
40
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição
41
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 285.
42
24. 1.Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à educação. Para efetivar esse direito sem
discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os Estados Partes assegurarão sistema educacional inclusivo em
todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida, com os seguintes objetivos:
a) O pleno desenvolvimento do potencial humano e do senso de dignidade e auto-estima, além do fortalecimento do respeito
pelos direitos humanos, pelas liberdades fundamentais e pela diversidade humana;
b) O máximo desenvolvimento possível da personalidade e dos talentos e da criatividade das pessoas com deficiência, assim
como de suas habilidades físicas e intelectuais;
c) A participação efetiva das pessoas com deficiência em uma sociedade livre.
2.Para a realização desse direito, os Estados Partes assegurarão que:
a) As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças
com deficiência não sejam excluídas do ensino primário gratuito e compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de
deficiência;
b) As pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino primário inclusivo, de qualidade e gratuito, e ao ensino secundário,
em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem;
c) Adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais sejam providenciadas;
d) As pessoas com deficiência recebam o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua
efetiva educação;
e) Medidas de apoio individualizadas e efetivas sejam adotadas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico
e social, de acordo com a meta de inclusão plena.
3.Os Estados Partes assegurarão às pessoas com deficiência a possibilidade de adquirir as competências práticas e sociais
necessárias de modo a facilitar às pessoas com deficiência sua plena e igual participação no sistema de ensino e na vida em
comunidade. Para tanto, os Estados Partes tomarão medidas apropriadas, incluindo:
a) Facilitação do aprendizado do braille, escrita alternativa, modos, meios e formatos de comunicação aumentativa e
alternativa, e habilidades de orientação e mobilidade, além de facilitação do apoio e aconselhamento de pares;
b) Facilitação do aprendizado da língua de sinais e promoção da identidade lingüística da comunidade surda;
c) Garantia de que a educação de pessoas, em particular crianças cegas, surdocegas e surdas, seja ministrada nas línguas e
nos modos e meios de comunicação mais adequados ao indivíduo e em ambientes que favoreçam ao máximo seu
desenvolvimento acadêmico e social.
4.A fim de contribuir para o exercício desse direito, os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para empregar
professores, inclusive professores com deficiência, habilitados para o ensino da língua de sinais e/ou do braille, e para
capacitar profissionais e equipes atuantes em todos os níveis de ensino. Essa capacitação incorporará a conscientização da
deficiência e a utilização de modos, meios e formatos apropriados de comunicação aumentativa e alternativa, e técnicas e
materiais pedagógicos, como apoios para pessoas com deficiência.
12
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Constituição, que conferiu hierarquia constitucional à Convenção. Esta última tem o propósito de
assegurar que todas as pessoas com deficiência exerçam de modo pleno e equitativo todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais.
Os objetivos da educação estão presentes no art. 205 da Constituição e no art. 24.1 da Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, dentre os quais estão o pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania, o fortalecimento do respeito pelos
direitos humanos, pelas liberdades fundamentais e pela diversidade humana e o máximo
desenvolvimento possível da personalidade e dos talentos e da criatividade das pessoas com deficiência,
assim como de suas habilidades físicas e intelectuais e a participação efetiva das pessoas com deficiência
em uma sociedade livre.
A educação, portanto, cumpre um papel de base na construção social, pois proporciona a
formação da pessoa como cidadã. A escola não só é responsável por transmitir os conteúdos mínimos,
fixados pelo Estado43, mas também por promover a socialização de estudantes entre si e com as
profissionais da educação. Para tanto, o art. 208, I da Constituição prevê a obrigatoriedade da educação
básica dos 4 aos 17 anos de idade e o art. 55 do ECA impõe aos pais a obrigação de matricular seus suas
filhas e filhos menores na rede regular de ensino. A Política Nacional para a Integração da Pessoa
Portadora de Deficiência de 1999 esclarece, ainda, que a matrícula compulsória também se aplica às
pessoas com deficiência44.
É preciso, portanto, reconhecer que o aprendizado dos conteúdos e a socialização são
inseparáveis45 e possuem o mesmo grau de importância em nosso sistema educacional, sendo essenciais
à concretização dos objetivos elencados anteriormente. Todas têm o direito de aprender em sala de aula
regular e de conviver com os outros no ambiente escolar.
Ao dispor sobre os princípios que regem a educação, o art. 206 elenca a igualdade de condições
para o acesso e permanência na escola como o primeiro item. Esse princípio é reforçado pelo art. 24.1
da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que estabelece que o Estado

5.Os Estados Partes assegurarão que as pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino superior em geral, treinamento
profissional de acordo com sua vocação, educação para adultos e formação continuada, sem discriminação e em igualdade
de condições. Para tanto, os Estados Partes assegurarão a provisão de adaptações razoáveis para pessoas com deficiência.
43
Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e
respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
44
Decreto 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Regulamenta a Lei no 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política
Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências.
45
Fala da convidada Liliane Garcez ao encontro do Núcleo de Práticas Jurídicas em Direitos Humanos - mestre em educação
e consultora do Instituto Rodrigo Mendes.
13
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assegurará o sistema educacional inclusivo em todos os níveis para efetivar o direito das pessoas com
deficiência à educação, sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades.
Para a realização desse direito, o art. 242 estabelece que as pessoas com deficiência não devem
ser excluídas do sistema educacional geral sob alegação de existência de qualquer deficiência. Pelos
dispositivos elencados anteriormente, bem como pela incidência do princípio da não discriminação,
previsto no art. 3º, IV da Constituição e do princípio da igualdade do art. 5º, conclui-se que o direito à
educação é assegurado a todas as pessoas indistintamente.
As normas infraconstitucionais, além de reafirmarem os direitos das pessoas com deficiência,
desenvolvem e abordam de maneira mais específica os princípios vigentes na Constituição Federal. A
Lei 7.853/89 garante, em seu o art. 2º, o acesso de estudantes com deficiência aos benefícios conferidos
às demais educandas, a compulsoriedade da matrícula, em cursos regulares de estabelecimentos públicos
e particulares, de pessoas com deficiência capazes de se integrarem no sistema regular de ensino46,47.
Já em 2001, o Governo Federal editou as Diretrizes Nacionais para Educação Especial na
Educação Básica, que regulamentou a organização e a função da Educação Especial nos sistemas de
ensino, bem como as modalidades de atendimento, e apresentou a proposta de flexibilização e adaptação
curricular. Assim, as escolas promovem modificações conforme as necessidades específicas de cada
estudante e realiza-se um planejamento individualizado capaz de permitir o acesso à grade curricular.
Sobre o tema, sustenta a coordenadora pedagógica de um colégio na zona sul da cidade de São Paulo48:

A gente faz avaliação dessas crianças assistida e adaptada. Então, a gente usa dois
termos: flexibilização e adaptação. [...] Por exemplo, eu to trabalhando a adição e o
algoritmo. Qual o meu objetivo? Que a criança saiba operar, né? [...]. Pro grupo eu dou
seis operações, pra ele, escolho duas. [...] Chega um momento que eles tão
multiplicando e a criança não consegue. Então eu mantenho a adição, isso já é
adaptação, é o que ele pode.

Ainda nesse contexto de positivação e reafirmação dos direitos das pessoas com deficiência, o
Ministério da Educação editou normas mais específicas em relação à inclusão nas escolas, como as
Orientações sobre Atendimento Educacional Especializado na Rede Privada de 201049. Por meio desse

46
Essa redação poderia dar margem à interpretação de que capacidade a que diz respeito a lei é uma condição anterior ao
acesso, mas, de acordo com o art. 24.2.a da Convenção, a deficiência não pode ser usada como uma barreira ao ingresso na
escola. Deve-se fazer uma leitura do dispositivo conforme a Convenção, afastando essa interpretação.
47
A Lei 9.394/96, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, garante a prestação de atendimento educacional
especializado gratuito, preferencialmente na rede regular de ensino, a crianças com deficiência, transtornos globais do
desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação em seu art. 4º, inciso III, e art. 58.
48
A entrevistada pediu confidencialidade de seu nome e da escola em que trabalha. A entrevista foi concedida ao NPJ-DH
em 13 de junho de 2016.
49
Nota Técnica 15/2010 – MEC/CGPEE/GAB.
14
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dispositivo, estabeleceram-se diretrizes50 para a adoção da educação inclusiva pelas instituições


privadas. O órgão também retomou diversos dispositivos que asseguram o acesso ao ensino regular e a
oferta de atendimento educacional especializado.51
O Capítulo IV da Lei Brasileira de Inclusão, que trata do direito à educação, portanto, não é uma
inovação, mas uma consolidação de regras que já existiam na ordem constitucional. Aponta para um
caminho de promoção de igualdade material por duas vias: por um lado, a partir da garantia de acesso e,
por outro, da permanência de estudantes com deficiência na rede regular de ensino.
Ao analisar o panorama normativo e o conceito de educação inclusiva, percebe-se que não é
possível conceber a concretização do direito à educação de todas sem ter a inclusão como pressuposto.
Assim, a expressão “educação inclusiva” é um pleonasmo, por se tratar de redundância de termos, já que
a “educação”, se não for “inclusiva”, isto é, não garantir o acesso e permanência de todas as crianças
indistintamente, não é “educação” efetivamente.
Depois do exame conceitual e da legislação existente a respeito da educação inclusiva,
passaremos à análise da decisão da ADI 5357. Esta decisão, que confirmou a constitucionalidade dos
artigos 28, §1º e 29 da Lei Brasileira de Inclusão, pode ser valorizada por seu resultado, mas merece
críticas quanto à dificuldade em aprofundar sua argumentação, considerando a importância do tema e do
caso como precedente em favor da não discriminação de pessoas com deficiência.

3. A ADI 5357

Em 4 de agosto de 2015, antes mesmo da entrada em vigor da Lei Brasileira de Inclusão52, a


Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN) ajuizou a ADI 5357 com pedido
de liminar, por meio do qual impugnava a vedação à cobrança de valores adicionais por parte de escolas
particulares prevista nos arts. 28, §1º e 30 da Lei Brasileira de Inclusão53. A CONFENEN alegou que
estas obrigações imporiam medidas de alto custo para as escolas privadas, em violação aos arts. 5º,
caput, XXII, XXIII, LIV; 170, II e III; 205; 206, caput, II e III; 208, caput, III; 209 e 227, caput, § 1º,
II, todos da Constituição.

50
A norma determina, em linhas gerais, que toda escola regular deve garantir acesso de estudantes com deficiência à classe
comum, assim como promover a articulação entre a educação regular e especial. Além disso, a instituição de ensino deve
arcar com todos os custos de implementação de adaptações, manutenção e desenvolvimento necessários.
51
Também, nesse sentido, os decretos 5.296/2004, 5.626/2005, 6.571/2008 e 6.949/2009 e a Resolução CNE/CEB 4/2009.
52
De acordo com o artigo 127 da Lei 13.146, ela entraria em vigor após decorridos 180 dias de sua publicação.
53
Como já adiantado, embora ainda não tenham sido divulgados os votos escritos dos Ministros e Ministras do Supremo
Tribunal Federal, tomaremos como base o vídeo da deliberação em confronto com os argumentos trazidos pela
CONFENEN em sua peça inicial.
15
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O ajuizamento desta ação foi acompanhado de um conjunto de orientações transmitidas às


escolas particulares para que repudiassem e questionassem a lei aprovada, sem que dessem início à
aplicação das novas diretrizes54. Em 20 de novembro de 2015, a liminar foi indeferida monocraticamente
pelo relator, ministro Edson Fachin, e, em 9 de junho de 2016, o plenário do Supremo Tribunal Federal
(STF) referendou tal decisão, ou seja, manteve o entendimento anteriormente dado pelo relator. Na
mesma sessão de julgamento, os ministros e ministras converteram o julgamento da medida cautelar em
julgamento de mérito, tendo como resultado final a improcedência da ADI 5357.

3.1. Argumentos da CONFENEN


O ponto central da argumentação da CONFENEN é o de que as escolas privadas são entidades
que atuam no regime da livre iniciativa, o qual requer apenas autorização do Poder Público, não sendo
concessão, delegação ou mesmo favor. Por este motivo, estariam sujeitas somente aos dispositivos
constitucionais que expressamente se aplicam à iniciativa privada no campo da educação, como o art.
209 da Constituição, que estabelece que o ensino é livre à iniciativa privada, desde que respeitadas as
normas gerais de educação nacional e autorização e avaliação pelo Poder Público.

Nesse sentido, o regime estabelecido pela Lei Brasileira de Inclusão constituiria verdadeira
ingerência sobre suas atividades, pois não a consideram como uma dessas normas gerais previstas no
mencionado artigo. Representaria um verdadeiro óbice ao cumprimento das funções sociais relacionadas
aos estabelecimentos de ensino, como a concessão de empregos, a regulamentação trabalhista e o
recolhimento devido dos tributos. Em relação a este último ponto, a CONFENEN também contrapõe o
direito das pessoas com deficiência ao bem-estar físico e psíquico de profissionais que seriam
“obrigados” a se adequar a uma situação inteiramente nova, reforçando o argumento de suposta
irrazoabilidade da exigência prevista na lei.

Destacam que a atendimento à pessoa com deficiência seria atividade exclusiva do Estado,
conforme art. 208, caput e III e art. 227, § 1º, II, da Constituição, pela sua excessiva onerosidade e alto
custo, que não poderá ser dividido entre as demais estudantes e famílias. Para a CONFENEN, essa
situação geraria o fechamento de instituições, o endividamento dos estabelecimentos, o abalo emocional

54
Em cartilha orientativa disponibilizada no sítio eletrônico da Confederação, afirmava-se que: “Honestamente, pode a
escola comum e até algumas especializadas atender a qualquer tipo e garantir ao portador desenvolvimento e sucesso
que representem verdadeira inclusão? Já há intromissão e ingerência demais na escola particular. SE ELA, SEUS
PROFESSORES E SUAS ENTIDADES REPRESENTATIVAS NÃO GRITAREM E ALARDEAREM MUITO, ALTO
E BOM SOM, IMEDIATAMENTE, A DIMENSÃO DO PROBLEMA E AS DIFICULDADES, AGORA, DEPOIS
SERÁ TARDE DEMAIS.” (sic) (Disponível em:
<http://media.wix.com/ugd/38d9a9_a436287e79524c949df6ee2b833f160a.pdf> Último acesso: 5 de julho de 2016.
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e desemprego de profissionais da área da educação, além de uma inclusão apenas aparente, pois as
escolas privadas não saberiam efetivamente incluir as pessoas com deficiência.

Afora os pontos apresentados em sua petição inicial, mesmo após a deliberação e decisão do
STF, a CONFENEN manteve seu posicionamento e publicou documentos em seu sitio eletrônico como
o denominado “Informações e procedimentos”. Nele, a entidade informa que aguarda a liberação do
acórdão para tomar medidas processuais a fim de reverter a decisão, além de sinalizar a judicialização
em primeira instância por todo país:

I - ADI 5357-DF - Ainda não acabou e não transitou em julgado. Falta o acórdão.
Conforme ele, caberá o recurso de embargos declaratórios. [...]
IX - Honestidade - Preferível e mais honesto, a escola que não tiver condições de atender
o deficiente, até o atingimento de seus limites e capacidade plena, clara e
comprovadamente, informar à família que não tem competência para exercer o que lhe
é exigido.
X - Juízes de 1ª Instância - Se defrontarão com múltiplos e variados casos de conflito
que um dia, por mais tempo que decorra, acabarão desaguando no Supremo Tribunal
Federal.55

3.1.1 Judicialização em Instâncias Inferiores

O contexto do ajuizamento da ADI 5357 é complementado pela existência de controvérsia


jurisprudencial na interpretação que tribunais inferiores conferiam a dispositivos da Lei 13.146/15. A
existência de interpretações divergentes depositou na decisão proferida, posteriormente, pelo STF a
possibilidade de uniformizar a jurisprudência, de forma a guiar a atuação de juízes em todo o território
nacional.

A existência desta divergência foi identificada a partir de um levantamento jurisprudencial com


o objetivo de verificar como os tribunais inferiores56 haviam decidido controvérsias relacionadas à

55
CONFENEN. Informações e Procedimentos. 2016. Disponível em:
<http://media.wix.com/ugd/38d9a9_7e4364beb2ce45cbadd5adbd6bdac7bb.pdf>. Acesso em 4 jul 2016.
56
A pesquisa exploratória foi realizada nos Tribunais de Justiça do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do
Sul, Santa Catarina, Paraná, Bahia, Rio Grande do Norte, Ceará, Maranhão, Pará, Amazonas, Distrito Federal e Territórios e
Mato Grosso (pesquisa por agravos de instrumento e recursos de apelação contra decisões de primeiro grau) e no repositório
jurisprudencial de primeiro grau do Tribunal de Justiça de São Paulo, a partir das palavras-chave "estatuto da pessoa com
deficiência" ou "13146" OU " 13.146" OU "Lei 13146” e “educação”, estabelecendo o filtro temporal de 6 de junho de 2015
(data de aprovação da Lei Brasileira de Inclusão) até 4 de julho de 2016. Apesar de não partir da base de julgados de todos
os Estados do país, foram selecionados tribunais de justiça provenientes de todas as regiões brasileiras. O recorte levou a um
conjunto de 15 acórdãos pertinentes, um deles tramitando em segredo de justiça (e, assim, impossível acesso sequer ao teor
da ementa de julgamento). É pertinente a ressalva de que como o recorte tinha por enfoque a análise de como a jurisprudência
interpretava a educação sob a perspectiva da inclusão de acordo com a lei 13.146, optou-se por partir de palavras-chave que
resultassem somente no universo de decisões em que a lei foi, de algum modo, mencionada. É possível, porém, que existam
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educação que envolviam a interpretação de dispositivos da Lei Brasileira de Inclusão, antes e depois de
sua entrada em vigor, envolvendo escolas públicas e privadas. A pesquisa, no entanto, evidenciou um
pequeno número de julgamentos envolvendo estabelecimentos privados, mas confirmou a hipótese de
grande divergência nas decisões57.

De todo modo, conforme os resultados levantados, há 8 decisões que aplicam a interpretação da


forma como determina a Lei 13.146/15 e determinam que escolas particulares custeiem as adequações
de ensino necessárias para inclusão da estudante. Por outro lado, a interpretação desta obrigatoriedade
foi desconsiderada em 6 casos do universo analisado. Destaca-se decisão proferida em maio de 2016 –
depois da entrada em vigor da Lei 13.146 - determinando que o Poder Público teria responsabilidade
solidária pelos custos de adequação do ambiente escolar, condenando o município a arcar com os gastos
no fornecimento de profissional especializado para acompanhamento de criança, em conjunto com
escola particular que alegou insuficiência de recursos.58

No histórico jurisprudencial, a resistência ao reconhecimento do direito à inclusão em salas de


aula regular parece ser maior quando envolvidos estabelecimentos privados de ensino. Em comparação
entre decisões de casos envolvendo escolas públicas e particulares, parece ser possível identificar maior
número de decisões59 que interpretam a lei 13.136/15 para determinar a necessidade de oferecimento de
professor auxiliar e adequações necessárias à inclusão quando estão envolvidos estabelecimentos de
ensino público. Isso é especialmente verdade para estabelecimentos de ensino estadual, porque em geral
existe regulamentação60 dos Estados sobre este tema.

Mesmo em casos envolvendo escolas públicas, há incertezas da jurisprudência na interpretação


dada aos artigos 28, §1º e 29 da Lei Brasileira de Inclusão, em especial quando se discute a obrigação
de assistência por estabelecimentos de ensino municipais. Essas decisões indicaram distanciamento dos
conceitos envolvidos na Lei Brasileira de Inclusão, bem como da distinção entre educação especial e

decisões na temática nas quais não houve menção à lei. Uma pesquisa com espectro mais amplo seria capaz de analisa-las.
Não foi, contudo, o propósito dessa pesquisa, que teve por enfoque somente o tratamento da Lei 13.146 a partir de uma
pesquisa exploratória em TJs de todas as regiões do país.
57
Das 15 decisões, 6 foram contrárias à tomada de providências para a inclusão e 8 favoráveis, determinando a realização de
providências para a inclusão (seja a matrícula, seja a adequação da estrutura do estabelecimento). Um dos processos tramitava
em segredo de justiça, o que tornou o acesso ao teor de sua decisão impossível.
58
Trata-se da Apelação Cível 0008664-85.2014.8.19.0014, TJRJ, julgamento em 11.05.2016. Inteiro teor indisponível por
tramitar em segredo de justiça.
59
Nesse sentido, podemos destacar as seguintes decisões: (i) Apelação nº 0002779-03.2014.8.26.0562 (TJSP),(ii) Apelação
nº 00116461-89.2016.8.21.7000 (TJRS) e (iii)Apelação nº 0362246-27.2015.8.21.7000 (TJRS).
60
A título de exemplo, podemos citar as Resoluções nº 182/13/CEE/SC, 499/02/CEE/SC e 112/06/CEE/SC, do Conselho
Estadual de Educação do Estado de Santa Catarina.
18
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educação regular61, em postura oposta a outras decisões judiciais proferidas no Estado. Identificou-se
com alguma frequência que em decisões que determinavam o oferecimento da estrutura necessária à
inclusão em escolas públicas, usou-se a fundamentação com base em argumentos que ressaltavam o
dever de poder público em garantir o acesso aos direitos fundamentais. A generalização deste raciocínio
para outros casos envolvendo escolas particulares pode levar à errônea conclusão de que essas
obrigações se restringiriam aos estabelecimentos públicos, o que é incompatível não só com o texto da
Lei 13.136/2015, como também com todo o arcabouço normativo já anteriormente discutido.

Desse modo, o contexto de controvérsia jurisprudencial no qual a ADI 5357 foi ajuizada, assim
como o posicionamento da CONFENEN mesmo após o julgamento liminar da ação, apontam para a
importância da compreensão dos argumentos envolvidos na decisão. Assim, ganha especial relevo o
entendimento sobre as questões trazidas à Corte e quais foram efetivamente rebatidas no julgamento –
o que será feito a seguir.

3.2. Análise crítica da decisão


A decisão pela constitucionalidade dos dispositivos da Lei 13.146/15 pode ser considerada um
avanço no plano dos direitos humanos para pessoas com deficiência, num contexto em que o processo
histórico para o estabelecimento do paradigma da inclusão reflete diversos desafios, tanto no plano legal,
quanto no plano fático. Nessa linha, para a luta pelos direitos das pessoas com deficiência, o julgamento
da ADI 5357 era importante, pois, para além de um receio de retrocesso na matéria, as razões
argumentativas do STF poderiam pautar um importante precedente e trazer visibilidade para a causa.
Consideramos, contudo, que os fundamentos da decisão foram insatisfatórios para esses objetivos. Por
esse motivo, os votos proferidos62 merecem análise e crítica.

Em sustentação oral que precedeu a votação, o representante da CONFENEN sustentou sua


posição com base no argumento jurídico-econômico do exercício da livre iniciativa dos estabelecimentos

61
Em decisão do Processo 0000515-41.2015.8.26.0412, julgamento em 09.11.2015, envolvendo o Município de Palestina,
no Estado de São Paulo, afirmou-se que: “Desse arcabouço normativo depreende-se que o que se exige do Poder Público
em relação à pessoa com deficiência não é – e nem poderia ser – tratá-lo da mesma forma que a um aluno sem essa limitação,
mas, sim, fazer as adaptações razoáveis, promovendo a conquista e o exercício de sua autonomia. Por adaptações razoáveis,
consideram-se, conforme a própria lei, as que não acarretem ônus desproporcional ou indevido. (...) A APAE seria a escola
especial preconizada pela lei e recomendada pelo médico que assinou a solicitação de fls. 10. Mas ela não existe no
Município de Palestina, não sendo razoável exigir que o Município o leve diariamente e acompanhado à de Icem. Tal decisão
está intimamente ligada à escolha alocatícia de recursos que é feita pelos administradores, conhecida como Reserva do
Possível, que, embora não sirva para retirar-lhe determinados deveres, aqui pode ser aplicada.”.
62
A análise feita neste tópico tem como a base o debate dos ministros e ministras transmitido no canal TV Justiça, já que a
íntegra dos votos não foi publicada até o momento da escrita deste artigo. Cabe ressaltar que é possível que a redação dos
votos se diferencie da manifestação oral feita em plenário. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=OpG_TIHzIL0. Acessado por último em 01/08/2016.
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de ensino para a recusa de atendimento de estudantes com deficiência e para a proteção dos direitos
fundamentais das pessoas (diretoras, coordenadoras, professoras, pedagogas, por exemplo) que teriam
que lidar com essas crianças, pois, supostamente, o convívio com elas ocasionaria traumas63 no corpo
docente despreparado para atendê-las. Alega também que a lei, ao estabelecer o atendimento das crianças
com deficiência na rede regular64 de ensino, exclui as escolas privadas, pois a referência seria restrita às
escolas públicas.

Posteriormente, na sequência das sustentações ocorridas no plenário do STF, vieram a Advocacia


Geral da União, amicus curiae da Federação Nacional das APAES, Conselho Federal da OAB e
Procuradoria Geral da República. Estas entidades se posicionaram pela improcedência do pedido da
autora, e forneceram argumentos complementares em apoio à Lei de Inclusão, que consolida e especifica
o dever das escolas particulares em relação ao recebimento de estudantes com deficiência. Defenderam,
ainda, que a declaração de inconstitucionalidade implicaria uma autorização para a discriminação das
pessoas com deficiência; e que essas crianças têm o direito, conforme suas capacidades de aprendizagem,
ao desenvolvimento no ambiente escolar.

Na decisão, o principal argumento trazido pelo relator, ministro Edson Fachin, que permeou os
demais votos, foi o da educação inclusiva como meio para uma sociedade plural, diversa e democrática,
gerando o enfatizado “direito ao estranhamento e à estupefação”65 daqueles que passarão a conviver
com a diversidade.

O Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, que incorpora no ordenamento brasileiro a


Convenção Internacional Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, também serviu como base para
a fundamentação das ministras e ministros. Este decreto, segundo o STF, já teria introduzido a educação
inclusiva em todos os níveis educacionais, conforme proclama seu art. 24. Ao lado da Convenção, foram

63
A CONFENEN, em sua petição inicial, destaca o suposto sofrimento psíquico ao qual os educadores despreparados
estariam sujeitos, definidos no Parecer CNE/CEB nº 3/2015, onde se lê: “Aqui se pode dizer, ad argumentandum, que o
tempo empreendido nos estudos e a frustração, ao perceber que a prática profissional decorrente de uma opção inadequada e
não orientada corretamente, não se coaduna com as efetivas possibilidades e dificuldades individuais, gerariam alto nível de
negatividade em relação à inclusão das pessoas com deficiência. Pior ainda seria descobrir que essas frustrações poderiam
ser perfeitamente evitadas com o aconselhamento de profissionais competentes e comprometidas com os efeitos ideais da
educação inclusiva”.
64
Como será discutido mais adiante, no ponto 3.3.3, entendemos o conceito de “rede regular de ensino”, basicamente, como
o conjunto de estabelecimentos públicos e privados que atuam em conformidade com as Diretrizes Básicas de Educação e
ministram, pelo menos, os conteúdos previstos na Base Comum Curricular Nacional (BCCN) do Ministério da Educação
(MEC). Excluem-se dessa definição, por exemplo, as escolas de idiomas.
65
Parte do voto oral do ministro Edson Fachin na sessão de julgamento de 09/06/2016, na qual o STF referendou a liminar
concedida monocraticamente pelo ministro e decidiu pela improcedência da ação por meio da conversão da cautelar em
mérito. Vídeo do julgamento disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=OpG_TIHzIL0>

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mencionados os art. 3º, I e IV, e o art. 1°, ambos da Constituição, para tratar da dignidade da pessoa
humana e da não discriminação.

O relator mencionou a submissão do serviço educacional prestado pelas entidades privadas à


regulamentação estatal e à avaliação constante por parte da autoridade competente, como explicita o art.
209 da Constituição Federal. Assim, contrapôs os argumentos econômicos trazidos pela CONFENEN
(i) de que as escolas particulares gozam de livre iniciativa absoluta e (ii) de que a lei violaria o direito à
propriedade dos agentes econômicos que atuam no ramo educacional.

Os ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio66 também não trataram com maior profundidade
os conceitos do campo da educação, mas abordaram as dificuldades práticas da aplicação da Lei
13.146/15. O ministro Gilmar Mendes acompanhou no mérito o voto do relator, mas demonstrou
desconfiança quanto aos efeitos da decisão e quanto à eficácia da Lei Brasileira de Inclusão. O ministro
criticou a inexistência de algum tipo de cláusula de transição que permitisse uma suposta adaptação às
mudanças trazidas pela nova lei. Em sua opinião, essa é a razão pela qual, não apenas nessa lei como
também em outras nas quais isso ocorre, as previsões legais falham na implementação e acabam sem
eficácia. A ausência desse tipo de estado intermediário, para ele, leva ao fenômeno que ele denomina
“legislação simbólica”67. Para o ministro, o prazo de 180 dias para a entrada em vigor da lei previsto
no artigo 127 da Lei Brasileira de Inclusão68 seria insuficiente para possibilitar uma adaptação69.

66
Importante ressaltar que o único voto vencido na ADI 5357 foi o do Ministro Marco Aurélio. O resultado final da
votação foi, portanto, 9 a 1. Estava ausente o ministro Celso de Mello.
67
De acordo com o trecho do voto do ministro: “Eu devo dizer, presidente, que não só em relação a essa lei [a Lei Brasileira
de Inclusão] mas em relação a várias reformas que ocorrem no Brasil, talvez nós devêssemos atentar para transformações
tão sérias e importantes para que essas transformações devessem vir acompanhadas de algum tipo de cláusula de transição.
O que se vê, é evidente, que a Convenção [Convenção da ONU sobre Direitos da Pessoa com Deficiência] e a Lei [Lei
Brasileira de Inclusão] tentam fazer essa implementação. Mas muitas das imposições da lei de julho de 2015 [Lei Brasileira
de Inclusão] dificilmente poderão ser atendidas de imediato e certamente vão gerar polêmicas que ficarão pelas instâncias
ordinárias. Então, a mim me parece, mas, não neste caso, o legislador acaba por adotar uma opção por aquilo que a doutrina
chama de uma ‘legislação simbólica’, porque ao fim e ao cabo não se realiza, não se efetiva. Então, eu gostaria de deixar
isso como obter dictum.” (transcrição de trecho do voto oral do ministro Gilmar Mendes na sessão de julgamento de
09/06/2016, na qual o STF referendou a liminar concedida monocraticamente pelo ministro Edson Fachin e decidiu pela
improcedência da ação por meio da conversão da cautelar em mérito. Vídeo do julgamento disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=OpG_TIHzIL0)
68
Art. 127. Esta Lei entra em vigor após decorridos 180 (cento e oitenta) dias de sua publicação oficial.
69
De acordo com o trecho do voto do ministro: ”Vai falar-se que houve o prazo de 180 dias, que é o período de vacatio legis.
Mas esse, também, será um período certamente insuficiente para as mudanças exigidas, por isso eu gostaria de fazer esse
registro que acaba incidindo, afinal, na impossibilidade e às vezes na ineficácia de normas de grande valia. Mas era um
registro que eu gostaria de fazer, mas reconheço que nós muitas vezes criticamos o Congresso Nacional devemos reconhecer
a importância de um diploma como este que efetiva direitos de minorias tão fragilizadas e atingidas não só pela realidade
mas também por tudo que decorre de discriminação, de dificuldades.” (transcrição de trecho do voto oral do ministro Gilmar
Mendes na sessão de julgamento de 09/06/2016, na qual o STF referendou a liminar concedida monocraticamente pelo
ministro Edson Fachin e decidiu pela improcedência da ação por meio da conversão da cautelar em mérito. Vídeo do
julgamento disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OpG_TIHzIL0)
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Essa afirmação, porém, parece desconsiderar o contexto normativo no qual insere-se a Lei
Brasileira de Inclusão. Como já discutido, essa lei não inovou consideravelmente no ordenamento, mas
sim consolidou um arcabouço de garantias existentes que já asseguravam o direito à inclusão em salas
de aula de ensino regular e a necessidade de que as escolas estejam aptas para tal. Existem, de fato,
desafios à implementação da inclusão em sala de aula, porém, a raiz desses desafios parece ser mais uma
dificuldade em compreender o conceito de inclusão e difundir uma cultura inclusiva do que uma
deficiência legislativa. Aguardar uma suposta disposição à adequação a previsões legislativas já
existentes equivale a inverter a lógica da função do direito nas políticas públicas70.

O ministro Marco Aurélio, por sua vez, defendeu a visão do Estado minimalista71, tendente a
garantir um regime diferenciado entre a educação no âmbito privado e no âmbito público. Em sua
opinião, a ação deveria ser julgada apenas parcialmente procedente, para interpretar a lei conforme a
Constituição, de modo a não serem obrigatórias, mas indicativas, as medidas estipuladas no art. 28, § 1º
e no art. 30, caput.

Afora esses dois ministros, os demais ministros e ministras enfatizaram a dignidade da pessoa
humana e os benefícios da diversidade e pluralidade para toda comunidade escolar. Com isso, refutaram
a ideia trazida pela CONFENEN de que o convívio de crianças com deficiência no ambiente escolar
regular proposto pela lei seria prejudicial. Logo, acompanharam o voto do ministro Edson Fachin.

3.3. O que faltou na decisão do STF?


O resultado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal foi acertado e importante para
o desenvolvimento do valor da igualdade entre pessoas na sociedade brasileira, traduzido sob a forma
de princípio jurídico inclusive. Assim, foi condizente com o ideal de educação estabelecido na

70
Nas políticas públicas, o direito desempenha o papel de definir dos objetivos, distribuir as competências, assegurar a
participação social e também, no nível executivo, oferecer os instrumentos e veículos para a implementação de seus fins.Sobre
a função do direito nas políticas públicas, vf Coutinho, Diogo R. O direito nas políticas públicas, a ser publicado em Eduardo
Marques e Carlos Aurélio Pimenta de Faria (eds.)‘Política Pública como Campo Disciplinar’, São Paulo, Ed. Unesp, no prelo.
Disponível em:
<http://www.cebrap.org.br/v2/app/webroot/files/upload/biblioteca_virtual/item_766/14_05_12_15O%20direito%20nas%20
pol%EDticas%20p%FAblicas%20FINAL.pdf> Último acesso: 01/08/2016.
71
Uma possível definição para o termo é formulada por Robert Nozick no livro “The crisis of democracy”, que assim o
descreve: “Minhas conclusões principais sobre o Estado são que um Estado mínimo, limitado às estreitas funções de
proteção contra a violência, o roubo e a fraude, ao cumprimento de contratos, etc., se justifica; que qualquer Estado mais
abrangente violaria o direito das pessoas de não serem obrigadas a fazer certas coisas e, portanto, não se justifica; que o
Estado mínimo é inspirador, assim como correto” (grifos nossos), p.7. Outra definição famosa é a proposta por Adam Smith,
que concebe o Estado mínimo como aquele que se limita a três tipos de intervenção: (i) financiar as forças militares para
garantir a segurança nacional, (ii) garantir o cumprimento das leis, evitando, assim, injustiças cometidas entre cidadãos e (iii)
manter investimentos e instituições que sejam benéficos para a sociedade, porém pouco lucrativos/atrativos para a iniciativa
privada.
22
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Constituição, repelindo uma interpretação da Lei Brasileira de Inclusão que permitia a segregação de
pessoas com deficiência. No entanto, dada a importância do tema da inclusão na seara educacional e a
histórica dificuldade em garantir a eficácia dos direitos da pessoa com deficiência, bem como a
representatividade da decisão da Suprema Corte do país, cabe ressaltar, em maior detalhe, a ausência de
diversos elementos estruturantes da discussão de fundo desse debate.

Esperava-se a geração de um precedente mais sólido72, que discutisse a matéria de modo a


desmistificar alguns pressupostos discriminatórios por trás dos argumentos trazidos pela CONFENEN e
que fechasse qualquer porta aberta para a rediscussão deste tema no Judiciário. Não foi, contudo, o que
ocorreu. A seguir, exporemos as questões que, em nossa opinião, poderiam ter sido abordadas nos votos
orais proferidos pela Corte na ADI 5357.

3.3.1. O custo da inclusão para as instituições privadas de ensino


A decisão do STF abordou de maneira pouco profunda o argumento trazido pela CONFENEN
de cunho econômico relacionado aos custos que uma criança com deficiência pode significar para o
orçamento de uma escola privada. Conforme tratamos anteriormente73, foi alegado que as adaptações
necessárias para receber as alunas com algum tipo de deficiência gerariam uma série de custos elevados,
o que faria com que vários estabelecimentos privados de ensino fossem à falência74, além de aumentar
significativamente os custos dos pais e mães de outras crianças das escolas.

72
Ronald Dworkin, em seu livro Taking Rights Seriously, cria a ideia da “força gravitacional” de um precedente, isto é, um
conjunto de fatores que torna tal precedente persuasivo e compele futuros julgadores a utilizá-lo como parte da
fundamentação de sua decisão. Como aponta Neil Duxbury em The Nature and Authority of the Precedent, vários podem ser
os fatores que contribuem para uma maior “força gravitacional” do precedente, sendo os mais comuns (i) a posição
hierárquica da Corte que julgou tal precedente, (ii) o fato de a decisão ter sido dada em plenário ou monocraticamente, (iii)
se dada em plenário, a adesão dos demais magistrados ao voto condutor, (iv) o reconhecimento do julgador responsável pelo
voto, dentre outros. Pode-se concluir, assim, que o precedente sólido ou forte é aquele que, por diversas razões, compele
futuros julgadores a considerá-lo como elemento essencial para a análise e decisão do caso em tela. Por fim, observamos que
a importância do precedente sólido não se esgota na relação meramente processual (isto é, inter partes), mas sim em seus
efeitos na sociedade. Neste sentido, nos reportamos à dicotomia apresentada por Gerald N. Rosenberg em seu livro The
Hollow Hope: Can Courts Bring About Social Change?, que diz respeito a como a Corte pode influenciar a sociedade a partir
de sua decisão: (i) a maneira estritamente judicial ou (ii) a maneira extrajudicial. Enquanto a primeira parte do pressuposto
que a mudança social se dará em face da autoridade e do poder da Corte responsável pela decisão, a segunda entende que a
decisão da Corte pode influenciar as pessoas a adotarem tal ponto de vista ou ao menos refletir sobre o tema em discussão,
colocando-o em pauta pública e afetando, assim, o “clima intelectual” da sociedade, isto é, o tipo de ideias sendo discutidas
pelos indivíduos de uma sociedade. Entendemos que, mais do que um precedente altamente persuasivo pelos elementos acima
elencados, esperávamos que o precedente firmado pelo STF na ADI 5357 tivesse seus efeitos principais na esfera
extrajudicial, servindo como uma decisão simbólica na lógica do Estado Democrático de Direito. Sobre a importância dos
precedentes, VOJVODIC, Adriana de Moraes, MACHADO, Ana Mara França, CARDOSO, Evorah Lusci Costa. Escrevendo
um romance, primeiro capítulo: precedentes e processo decisório no STF. Revista Direito GV, São Paulo. p. 21-44. jan-jun
2009.
73
Vide tópico 3.1 deste artigo.
74
“Ou seja, essas determinações se refletem não só nos custos (planilhas) que servem à fixação dos valores das anuidades e
semestralidades (repasse), ferindo o direito de propriedade privada (usar, gozar e dispor) – caput do artigo 5º da Constituição
23
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Esse argumento, porém, não possui respaldo compatível com a realidade e assertivas dessa
natureza dependem de dados que lhes deem suporte. Um elemento que põe em dúvida a afirmação
categórica da CONFENEN, por exemplo, são relatos de escolas privadas e de responsáveis por crianças
com deficiência, que concederam entrevistas ao grupo e apresentaram exemplos práticos da plena
viabilidade de diversas alterações exigidas pela Lei Brasileira de Inclusão. Mais ainda, os relatos
apresentam a informação de que não se pode ter noção à priori dos gastos a serem despedidos pela escola,
uma vez que não há como saber exatamente quais ajustes e adaptações serão necessárias para realizar a
inclusão da criança com deficiência. Como afirma Eliana Carone, professora e coordenadora pedagógica
aposentada da EMEBS Madre Lucie Bray, também da cidade de São Paulo, não é possível rejeitar a
criança com deficiência sem antes conhecê-la:

Eu conheço a criança quando ela vem para mim, quando você começa a lidar
com ela é que você começa a entender o que ela compreende, o que ela não
compreende, o que você pode fazer que vai trazer alguma coisa positiva para
ela ou não. Então, só estando no ambiente de escolarização que você tem
condições de avaliar quanto essa deficiência… não sei se a gente pode falar em
quantidade (de deficiência), mas até onde essa criança pode estar comprometida
e qual o caminho você precisa seguir para ajudá-la no seu desenvolvimento, às
vezes até de tarefas do dia-a-dia, não é você pensar em intelectualizar, mas você
precisa de tudo para essa criança, tudo é importante para ela, desde
pequenininho até adulto.75

O argumento da CONFENEN, portanto, desconsidera que há várias necessidades especiais -


motoras, sensoriais, intelectuais - e que cada uma delas demanda adaptações próprias, com custos
diversos. Além de desconsiderar a especificidade de cada deficiência, o argumento não leva em conta
que alunas com ou sem deficiência podem não utilizar todos os equipamentos da escola e, portanto,
custeiam o uso de outras crianças. Por exemplo, necessariamente todas as estudantes de uma escola
frequentam a biblioteca para suas pesquisas escolares e leituras? Todas as crianças matriculadas bebem
água do bebedouro fornecido pela instituição de ensino? A resposta para ambas as perguntas é não:
crianças com ou sem deficiência podem preferir usar outra biblioteca que não a da escola, ou podem
fazer uso de suas casas ou qualquer outro espaço para realizar suas leituras, como qualquer criança pode
preferir não utilizar os bebedouros.

Republicana de 1988 –, que está à disposição do serviço social, artigo 5o, XXIII, também da Constituição, bem como na
liberdade assegurada à livre iniciativa descrita no artigo 209, I e II, podendo levar ao encerramento da atividade face à baixa
procura dos serviços, por causa dos altos valores que serão obrigados a praticar para atender as exigências da Lei, distribuídos
igualitariamente para todos seus alunos”. Petição Inicial da CONFENEN, p. 6-7.
75
A entrevista foi concedida ao NPJ-DH em 3 de junho de 2016.
24
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Assim, nem todos os gastos de infraestrutura realizados na escola são despesas aproveitáveis
diretamente por todas as crianças matriculadas, no entanto, a escola se dispõe a fazer, ora porque são
obrigadas para cumprir as diretrizes normativas, ora porque entendem que determinadas facilidades
proporcionam uma melhor qualidade do estabelecimento de ensino. Cabe lembrar, ainda, que os gastos
de instalação das melhorias de infraestrutura são únicos, isto é, só são pagos no momento de sua
implantação. Após o desembolso inicial de tal verba, os melhoramentos passam a fazer parte da estrutura
física permanente do estabelecimento, gerando apenas gastos eventuais de manutenção.

Inclusive, é bastante questionável o posicionamento da CONFENEN ao afirmar que as escolas


privadas iriam à falência devido aos altos custos para tornar uma escola inclusiva. Isso porque, os gastos
com a contratação do corpo de apoio necessário para a promoção da inclusão, são suplantados pela
matrícula de pessoas com deficiência76. Sem fundamentação com base em dados empíricos, portanto,
não há como inferir o fim das escolas privadas por incapacidade econômica para suportar a adaptação
que uma estudante com deficiência precisa. Uma discussão da Corte nesse sentido teria sido importante
para afastar argumentos que se respaldam no receio dos custos da inclusão e chamaria a atenção para a
realidade em que os cálculos para a educação inclusiva estão inseridos.

3.3.2. Os limites à iniciativa privada


A CONFENEN utiliza, também, alguns argumentos relativos à sua natureza de entidade privada
e às consequências dela decorrentes. Trata-se de debate igualmente complexo no campo do Direito, que
não foi travado da forma aprofundada esperada quando da decisão deste caso pelo Supremo.

Em síntese, a CONFENEN construiu o discurso de que escolas particulares exercem exploração


de atividade econômica em sentido estrito, isto é, não fornecem um serviço público propriamente dito
por meio de delegação do Estado. Por este motivo, as únicas limitações que se poderiam impor ao
exercício desta atividade seriam aquelas constantes do art. 209 da Constituição Federal77, quais sejam:
o cumprimento das normas gerais de educação nacional e a mera autorização e avaliação de qualidade
por parte do Poder Público. Esse argumento é acolhido pelo ministro Marco Aurélio, que sugere ao

76
Em texto intitulado de “Além de boa ação, a educação inclusiva é bom negócio”, o autor faz alguns cálculos para se
averiguar a viabilidade da educação inclusiva e chega à conclusão de o argumento da CONFENEN não é verídico, posto que
conforme se analisou, as escolas que realizam a educação inclusiva seriam, inclusive, fontes de lucro. O artigo está disponível
em http://jornalggn.com.br/noticia/alem-de-boa-acao-a-educacao-inclusiva-e-bom-negocio. Último acesso em 04/07/2016.
77
Constituição Federal, art. 209: “ O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I – cumprimento
das normas gerais da educação nacional; II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.”.
25
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plenário da Corte o uso da técnica de interpretação conforme a Constituição, sem redução de texto, para
dar parcial provimento ao pedido da CONFENEN.

A partir dessa asserção, há duas questões a serem enfrentadas: (i) não se pode tomar como
pressuposto simples que a escola privada constitua exercício de atividade econômica regida pela livre
concorrência, visto que há posições doutrinárias78 que sustentam se tratar de fornecimento de um serviço
público, delegado pelo Estado ao particular; (ii) ainda que se considere tratar de atividade econômica
em regime de livre concorrência, como tem feito o STF79, cabe a ponderação acerca das consequências
jurídicas desta conformação.

Assim, no caso de ser a organização da escola privada um serviço público delegado (i), o regime
jurídico aplicado afasta a norma geral da livre iniciativa, de forma que não poderia subsistir
posicionamento quanto à desnecessidade de as escolas particulares ajustarem-se à regulação estatal para
além dos requisitos mínimos do art. 209, da Constituição. Entretanto, optamos por focar na segunda
hipótese (ii), qual seja, a de que se trata de exercício de atividade econômica que goza das liberalidades
do regime de livre concorrência, uma vez que é o pressuposto sobre o qual se centra a tese da
CONFENEN e sobre o qual o STF se manifestou superficialmente em sua votação transmitida pela TV
Justiça.

A conclusão que se extrai do posicionamento do relator da ADI 5357 é a de que a educação


privada não pode se valer da livre iniciativa em seu aspecto mais amplo, pois está necessariamente sujeita
à regulação estatal, o que o art. 209 da Constituição, a contrario sensu, demonstraria. Tal linha de
raciocínio sustentou-se na essencialidade do serviço de educação e sua relação indissociável da
disciplina dos direitos fundamentais. Há, contudo, outros elementos que podem ser explorados nesse
sentido.

Pode-se invocar, por exemplo, o julgamento da ADI 319, ajuizada pela mesma CONFENEN. O
objeto desta ADI, discutida no começo década de 1990, era a possibilidade de controle e tabelamento de
preços de mensalidades de escolas particulares. As razões aduzidas pela CONFENEN, à época, foram
muito semelhantes àquelas trazidas ao STF na presente ocasião – (i) natureza da escola particular voltada
ao exercício de atividade econômica livre, e, em decorrência disso, (ii) obrigações limitadas aos dizeres

78
A título exemplificativo, podemos citar Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Celso Antônio Bandeira de Mello, Hely Lopes
Meirelles, Paulo Modesto e Alexandre Santos de Aragão.
79
Este ponto será devidamente demonstrado e exemplificado logo adiante.
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do art. 209 da Constituição. O Estado, nesse sentido, não teria a prerrogativa de impor regulações
concernentes aos preços de mensalidades, algo inerentemente ligado ao exercício da livre iniciativa.80

O relator da ADI 319, ministro Moreira Alves, enfrentou essas questões detalhadamente,
reconhecendo o exercício da livre iniciativa no que toca às escolas particulares, ao mesmo tempo em
que afastou veementemente qualquer pretensão de caráter absoluto ou mesmo preponderante sobre
outros direitos. Disse o ministro:

Portanto, embora um dos fundamentos da ordem econômica seja a livre


iniciativa, visa aquela a assegurar a todos existência digna, em conformidade
com os ditames da justiça social, observando-se os princípios enumerados nos
81
sete incisos deste artigo.

Dentre os incisos do art. 170 da Constituição, referidos na citação acima, estão a proteção do
consumidor e a busca por diminuir as desigualdades sociais, valores que, segundo entendimento do STF,
não se coadunam com uma interpretação extensiva da livre iniciativa. Diante disso, o Tribunal decidiu
pela improcedência do pleito da CONFENEN e, portanto, pela constitucionalidade do dispositivo legal
que determinava regulações específicas sobre o reajuste de mensalidades de escolas particulares.

Tal decisão representa importante precedente para a discussão ora travada no STF, uma vez que
desconstrói argumentos muito semelhantes aos apresentados pela CONFENEN na ADI 5357. Indica-se
que, apesar de se considerar a atividade empreendida pela escola particular uma atividade econômica
regida pela livre iniciativa, de tal afirmação não decorre que a escola está isenta da regulação estatal,
inclusive no que concerne a pontos centrais ao próprio desenvolvimento da atividade econômica, como
o reajuste de preços praticado.

É possível questionar, portanto, se esta construção argumentativa não seria também aplicável ao
caso das vedações de cobranças adicionais em mensalidades ou anuidades para a inclusão de crianças
com deficiência em escolas privadas, objeto da ADI aqui em comento. Nessa perspectiva, (i) a questão
relativa à obrigatoriedade de aceitação de estudantes com deficiência e à adaptação da escola para
atendê-los de forma adequada é ainda mais central ao cumprimento dos deveres constitucionais e
internacionais que devem se alinhar ao exercício da livre iniciativa; e (ii) a questão tocante à

80
A petição inicial da CONFENEN, na íntegra, pode ser acessada a partir do
link:http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjet
oincidente=4818214http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletro
nico.jsf?seqobjetoincidente=4818214. Último acesso em 04/07/2016.
81
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=918 (Último acesso: 29.06.2016)
27
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[artigo pendente de publicação – favor não circular]

possibilidade de determinações do Estado quanto às mensalidades escolares de entidades privadas já foi


apreciada pelo STF no precedente supra analisado.

Estes pontos inserem-se em uma discussão de fundo mais complexa, que não foi elaborada
quando do julgamento da constitucionalidade da Lei de Inclusão, examinada neste artigo: as limitações
impostas pela regulação da ordem econômica aplicáveis à livre iniciativa. Os pontos supramencionados
nos levam a conclusão de que nem mesmo as atividades econômicas “mais livres”82 podem, de fato,
eximir-se do cumprimento de certos deveres constitucionais consagrados.

No julgamento oral da ADI 5357, apenas o ministro Marco Aurélio fez referência ao art. 170 da
Constituição, afirmando que, para a iniciativa privada, as determinações da legislação poderiam ser
apenas indicativas. A exegese do ministro estaria limitando a função de diminuição das desigualdades
sociais do art. 170 da Constituição a um caráter meramente opcional. Existiria, contudo, alguma
atividade econômica totalmente imune ao caráter cogente da regulação estatal? Nos parece que não.
Dessa forma, também não se sustenta o argumento da CONFENEN de que seria lesão grave e
desproporcional à livre iniciativa a obrigatoriedade da matrícula de estudantes com deficiência e a
proibição da cobrança de valores adicionais nas mensalidades.

O principal argumento apresentado pela Confederação para justificar a suposta


desproporcionalidade das normas contidas na Lei Brasileira de Inclusão é, coo já analisado sob outro
enfoque no tópico acima, o suposto alto custo que será imposto às escolas para que possam se adequar
às necessidades de novas estudantes com deficiência. Todavia, a partir do precedente citado e da análise
da Constituição Federal, verificamos que o ordenamento jurídico brasileiro não garante o direito ao
máximo lucro possível. Ainda que o Estado deva garantir a livre iniciativa em casos de serviços básicos
como a educação, isto não significa que a adoção de medidas essenciais para a inclusão das pessoas com
deficiência possa ser afastada com base em uma suposição de possível redução nos lucros da instituição
de ensino.

Assim, por trás do argumento econômico, tanto do que é ou deixa de ser limitação à iniciativa
privada, quanto à interferência ou não nos custos e índices de lucros das instituições de ensino privado
o que subsiste são comentários que induzem ao preconceito e à consequente segregação das pessoas com
deficiência. Ao se afirmar que as pessoas com deficiência são capazes de traumatizar psicologicamente

82
Atividades econômicas “mais livres”, neste sentido, seriam aquelas que, por não caracterizarem a prestação direta ou
indireta de um serviço público ou de interesse público, não estariam sujeitas a regulações tão minuciosas e extensivas para
que possam atuar legalmente, como, por exemplo, a comercialização de alimentos, produtos têxteis, calçados etc.
28
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[artigo pendente de publicação – favor não circular]

professoras, assistentes e estudantes, é imputado a essas crianças a pecha de indivíduos abjetos,


irrecuperáveis, aterrorizantes e com a capacidade de causar danos a terceiros, que estariam obrigados a
conviver com elas. O argumento não só é inverídico e absurdo, como vai de encontro aos princípios
constitucionais relacionados à promoção da igualdade e à não-discriminação.

3.3.3. A inserção na rede regular de ensino


Por fim, o argumento trazido pela Confederação de que as escolas privadas não estariam inseridas
na rede regular de ensino também não é verídico e poderia ter sido melhor explorado na decisão proferida
em plenário pelo STF. Trata-se de mera construção da autora da ADI 5357 para se escusar de obrigação
imposta pela Constituição e segregar as pessoas com deficiência em estabelecimentos específicos.

De acordo com a interpretação da CONFENEN, a Constituição estabelece em seu art. 208, III,
“o atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede
regular de ensino”. De acordo com a autora da ADI, deveríamos interpretar rede regular de ensino como
rede pública de ensino, de forma que apenas o Estado estaria obrigado a fornecer esse atendimento
educacional inclusivo. Duas falhas podem ser percebidas de imediato nessa argumentação.

Alegou-se que a rede regular se contrapõe à rede privada, de forma que a Constituição teria
equiparado em sentido as expressões “rede regular de ensino” e “rede pública de ensino”. No entanto,
esse argumento é equivocado, pois (i) rede regular de ensino se refere ao curso escolar obrigatório,
estabelecido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, e do qual nenhuma mãe ou pai pode se escusar
de matricular suas filhas. Em contraposição à rede regular de ensino, temos a rede livre, na qual se
inserem os cursos extracurriculares de línguas e esportes, estes sim sem nenhuma submissão a obrigação
de cunho constitucional.

A asserção da CONFENEN também não se sustenta, porque (ii) se a Constituição desejasse que
apenas as escolas públicas estivessem obrigadas ao atendimento especializado às pessoas com
deficiência, assim teria escrito, sem o uso de expressões obscuras e ambíguas. O caput do art. 213 e seu
§ 1º são exemplos da clareza da Constituição quando quer se referir, necessariamente, a escolas
públicas83.

83
Constituição Federal, art. 213: “Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas
comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que: (...)§ 1º Os recursos de que trata este artigo poderão ser
destinados a bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio, na forma da lei, para os que demonstrarem insuficiência
de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública na localidade da residência do educando,
ficando o Poder Público obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade.” (grifou-se)
29
Núcleo de Prática Jurídica em Direitos Humanos – FDUSP
[artigo pendente de publicação – favor não circular]

É, então, possível concluir que não se trata de obrigação que vincula apenas o Estado, mas todos
os estabelecimentos de ensino, ao contrário do que é afirmado na petição inicial da ADI aqui estudada.
A autora da ação explorou a confusão entre os conceitos e construiu sua argumentação de forma a tentar
legitimar e perpetuar uma situação de segregação que, felizmente, foi sanada pelo STF, ainda que em
decisão insuficiente sob o aspecto da fundamentação84.

4. Desafios à implementação da inclusão


O Direito à inclusão em salas de aula regulares é assegurado por um arcabouço normativo, como
previamente visto. A recente decisão do STF reforça esse direito ao reconhecer a proibição da cobrança
de valores adicionais nas matrículas e mensalidades de pessoas com deficiência. Apesar disso, parecem
persistir um conjunto de obstáculos que dificultam a compreensão do seu conceito e sua efetiva
implementação.

As respostas necessárias às questões enfrentadas pelas instituições de ensino surgirão apenas


com a decorrência do tempo e a partir da experiência prática das escolas e profissionais da educação85.
Esta constatação, no entanto, não pode, e nem deve, servir de escusa para a inaplicabilidade da lei.
Dificuldades apenas apontam para a necessidade de eventuais melhoramentos ou busca por caminhos
que indiquem a plena satisfação dos direitos já garantidos pelo Legislativo e cujo reconhecimento foi
reiterado pelo STF.

Este artigo não se propõe a solucionar as questões identificadas, mas sim a diagnosticar algumas
delas de modo introdutório, para atentar à reflexão sobre a necessidade de superação de imprecisões
conceituais e difusão de uma cultura e sociedade inclusivos para a efetivação deste direito. Conforme
afirma Mônica Pereira dos Santos, “(...) cabe à sociedade também se reformular e se engajar no esforço
de reciprocidade para que a proposta de inclusão se torne realidade.”86

84
Vide nota nº 62.
85
Nesse sentido, Mônica Pereira dos Santos afirma: “(...) tal como precisamos aprender a respeitar os diferentes ritmos de
aprendizagem de nossos alunos para promover a inclusão, também precisamos, para promovê-la internacionalmente,
respeitar os países quanto aos seus ritmos de entendimento e absorção de novos paradigmas, e de ajuste aos mesmos, sem
atropelar sua historicidade.”. SANTOS, Mônica Pereira. Educação Inclusiva: redefinindo a educação especial. Ponto de
Vista (UFSC), Florianópolis. 2002, v. 1, n.3/4, pp. 103-118, p. 109.
86
SANTOS, Mônica Pereira. Educação Inclusiva: redefinindo a educação especial. Ponto de Vista (UFSC), Florianópolis.
2002, v. 1, n.3/4, pp. 103-118, p. 111.
30
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[artigo pendente de publicação – favor não circular]

4.1. Análise dos efeitos da decisão


A existência de desafios à implementação da inclusão em sala de aula mostra que a decisão do
STF na ADI 5357 não é capaz de solucionar todos os problemas envolvidos. Porém, isso não pode levar
à desconsideração da importância da decisão, pois a análise dos efeitos de uma decisão deve levar em
conta tanto suas consequências diretas quanto indiretas. Enquanto os efeitos diretos estão normalmente
ligados à autoridade judicial dos tribunais e de suas decisões, os indiretos tendem a refletir seu poder de
persuasão, legitimação e de promoção de um determinado debate87.

O desdobramento direto da decisão da ADI 5357 é a confirmação da constitucionalidade dos


arts. 28 e 30 da Lei Brasileira de Inclusão. Como consequência, mantém-se a obrigatoriedade da
realização de medidas inclusivas em escolas privadas da rede regular de ensino e garante-se uma
condição mínima necessária para o início da construção de um paradigma educacional inclusivo.

Além disso, o julgamento do STF88, mesmo que tenha deixado de abordar questões relevantes,
cria um importante precedente com relação à compreensão do tema da inclusão e sua integral
compatibilidade com a Constituição. O relator do caso, ministro Edson Fachin, inferiu na ocasião que a
prática inclusiva é imprescindível para a efetiva realização do princípio fundamental da igualdade, de
forma que a decisão se torna importante ponto de referência para outras que venham a tratar da mesma
questão nas diferentes instâncias da justiça brasileira. Assim, o estabelecimento de precedente a favor
da inclusão tem relevância significativa, uma vez que, segundo o mapeamento jurisprudencial exposto
em tópico supra, há divergências nas decisões envolvendo o tema89.

Como efeitos indiretos da decisão da ADI 5357, é possível que ocorra um estímulo à sociedade
civil à realização de uma análise do sistema educacional brasileiro atual e ao debate acerca da educação
inclusiva. Desse modo, a decisão, ao tratar sobre a inclusão, tem o potencial de impulsionar as próprias
cidadãs a, individualmente, refletirem e mudarem suas posições e opiniões a esse respeito90. Ainda,
como efeitos da decisão, pode-se imaginar a formação de coalisão de ativistas que atuaram e
possivelmente atuarão em torno da questão da implementação da educação inclusiva de pessoas com
deficiência, a fim de que tentem opinar e influenciar a população para que enxerguem a questão como
uma questão de direito à educação e de igualdade entre as pessoas. Outro efeito seria ainda o de

87
ROSENBERG, Gerald. The Hollow Hope: Can Courts Bring About Social Change? Chicago: University of Chicago Press,
2008, pp. 7 e 8.
88
Vide nota de rodapé nº 51.
89
Vide item 3.1 deste artigo.
90
ROSENBERG, Gerald. The Hollow Hope: Can Courts Bring About Social Change? Chicago: University of Chicago Press,
2008, p. 7 e 8.
31
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[artigo pendente de publicação – favor não circular]

transformar a opinião pública em relação à urgência e à gravidade do problema e tornar visível as


violações promovidas contra as pessoas com deficiência91.

Mesmo diante de tais efeitos, contudo, a implementação da educação inclusiva é um desafio em


diversos aspectos e apresenta dificuldades que, como já exposto, não se resolvem automaticamente a
partir de uma decisão judicial ou uma lei. O julgamento vem apenas afirmar o aspecto mais básico da
inclusão, que é o acesso de todas à escola, mas não garante as demais circunstâncias necessárias para
sua efetivação, como condições de permanência e sucesso acadêmico daquelas estudantes que, com
deficiência ou não, possuem alguma necessidade educacional especial92. Somado a isso, a decisão
tampouco estipula como as medidas previstas na Lei Brasileira de Inclusão deverão ser realizadas, o que
deixa espaço para diferentes interpretações e dúvidas93.

Assim, ainda existem diversos obstáculos a serem superados pelas escolas para atingir o ideal
inclusivo de maneira plena. A partir da análise das entrevistas realizadas ao longo da pesquisa, foram
mapeadas as seguintes dificuldades centrais para a implementação do paradigma da inclusão: (i) a
medicalização das necessidades educacionais especiais; (ii) o tratamento discriminatório dado às pessoas
com deficiência no ambiente escolar; (iii) a dificuldade de adaptação de professoras aos novos desafios
postos pela prática inclusiva; (iv) a utilização do discurso de inclusão como um “artigo de luxo”. Esse
discurso reflete a resistência em reconhecer que a inclusão não é um diferencial, mas sim uma obrigação
de todas as escolas regulares. Todas estas questões serão detalhadamente tratadas no próximo tópico ,
com o objetivo de dar luz a alguns padrões de raciocínio escondidos por trás destes desafios e promover
um debate quanto aos próximos passos necessários para a realização da inclusão no ambiente escolar.

91
Esses dois últimos efeitos foram imaginados a partir do modelo abordado por César Rodriguez-Garavito em Beyond the
courtroom: the impact of judicial activism in Socialeconomic rights in Latin America. Texas Law Review, 2011, pp. 1679.
92
Nesse sentido - BLANCO, Leila de Macedo Varela; GLAT, Rosana. “Educação Especial no contexto de um Educação
Inclusiva”, in GLAT, Rosana (Org.) Educação inclusiva: cultura e cotidiano escolar. Rio de Janeiro: 7 letras, 2007, p. 17. –
“O objetivo desta proposta (inclusão) é a possibilidade de ingresso e permanência do aluno na escola com sucesso
acadêmico (...)”
93
Esta observação não tem o objetivo de afirmar categoricamente que a Corte devesse ter estipulado a forma de se
operacionalizar a implementação da educação inclusiva nas escolas particulares do país, até mesmo porque, ela poderia ser
criticada por um comportamento demasiadamente ativista. No entanto, a partir dessa constatação somada à existência de uma
elevada potencialidade de judicialização das questões ínsitas ao contexto da educação inclusiva, pretende-se apenas apontar
que pode ter sido uma oportunidade perdida de fechar o cerco para esses questionamentos, que muitas vezes, são a mera
tradução em linguagem econômica ou jurídica, de comportamentos discriminatórios, como já discutido em outra passagem
deste trabalho.
32
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4.2 Desafios práticos

4.2.1. A Medicalização das Necessidades Educacionais Especiais


O fato de o julgamento da ADI 5357 não estipular a maneira como devem ser cumpridas as
exigências da Lei Brasileira de Inclusão esbarra justamente nos diversos desafios práticos para a
implementação de um ensino inclusivo. Não se trata aqui de afirmar categoricamente que era um dever
do Supremo detalhar a maneira de se cumprir a decisão, no entanto, esperava-se alguma orientação geral,
dadas as questões que estão envoltas na própria argumentação trazida pela CONFENEN, bem como em
elementos essenciais quando se discute educação inclusiva enquanto direito e enquanto política pública.

Um dos desafios a serem enfrentados é a medicalização das necessidades pedagógicas de


estudantes com deficiência94,95. Este problema decorre da forma de articulação entre educadoras e
profissionais da área da saúde na criação de melhores condições para o aprendizado das alunas. Apesar
de ser uma preocupação relevante, pode levar a uma invasão médica na esfera pedagógica96 e a uma
tendência a achar limitações clínicas absolutas, que só poderiam ser solucionadas por determinado tipo
de profissional que não a professora. Nesse sentido discorreu Rosana Glat:

Sob esse enfoque (do modelo médico) o olhar médico tinha precedência: a deficiência
era entendida como doença crônica, e todo atendimento prestado a essa clientela,
mesmo quando envolvia a área educacional, era considerado pelo viés terapêutico. A
avaliação e a identificação eram pautadas em exames médicos e psicológicos com
ênfase nos testes projetivos e de inteligência, e rígida classificação etológica97.

Assim, se um laudo médico determinar o que uma criança tem competência ou não para realizar
no processo de aprendizagem, a professora que realiza seu acompanhamento pedagógico acaba sem

94
Em entrevista concedida ao NPJ-DH, em 14 de junho de 2016, a psicopedagoga, Liege Madureira, afirmou: “todas as
crianças são diferentes e numa sala de aula não tem como falar que todos aprendem de forma igual, não é possível, não é o
que acontece nas escolas. Um monte de gente com problema que na verdade não tem problema nenhum, aparece aqui um
monte, que a escola disse que tem isso que tem aquilo, eu faço uma avaliação e pera lá este menino não tem problema
nenhum. E, às vezes, chegam aqui crianças já tomando remédio, eu falo para o pai se fosse meu filho eu não dava nada, às
vezes você tem que provar para o pai por ‘a’ mais ‘b’ que o menino não tem problema, não é que a escola tem que ser
maleável com o menino, mas tem que usar outro modo para a criança aprender”.
95
As entrevistas realizadas identificaram na prática a ocorrência de cenários envolvendo este tipo de medicalização.
96
Nesse sentido: “The form of socialization for persons labeled as severely intellectually disabled, for example, has been
considered medical rather than educational brings to light what is often most submerged about public schooling – that is,
its segregation function. A mind-body dichotomy seemingly gives the school the purview to somehow work on the intellectual
progress of “the majority”. (in Bernadette Baker, The Hunt for disability, Teachers College Record Volume 104, Number 4,
Columbia University, June 2002, p. 681).
97
GLAT, Rosana. “Educação Especial no contexto de um Educação Inclusiva”, in GLAT, Rosana (Org.) Educação
inclusiva: cultura e cotidiano escolar. Rio de Janeiro: 7 letras, 2007, p. 17.
33
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[artigo pendente de publicação – favor não circular]

autonomia para aplicar a técnica de ensino que acredita adaptar-se melhor ao caso, por receio de
contrariar a indicação de uma profissional da área da saúde98.

Outro problema decorrente da medicalização do ensino é a patologização do insucesso na


aprendizagem, sobre o qual afirmou a mesma autora:

Passou-se a responsabilizar a própria criança pelo insucesso da escola. A culpabilização


do aluno pelo fracasso na aprendizagem era, geralmente, justificada por disfunções
intrínsecas, deficiências ou problemas sociais que afetavam as possibilidades de
aprender. A esse fenômeno de busca de causas orgânicas e soluções terapêuticas para o
fracasso na aprendizagem de um grande número de alunos denominou-se
‘medicalização’ do fracasso escolar99.
A reprodução dos sistemas de classificação clínica vem, na maioria dos casos, acompanhada da
segregação da criança100 com deficiência no ambiente da escola e, posteriormente, na sociedade e no
mercado de trabalho. Estudos empíricos mostram que estudantes classificados como deficientes que não
frequentaram salas de aula regulares tiveram oportunidades acadêmicas e profissionais
significativamente reduzidas por conta do estigma e dos prejuízos ao aprendizado101.

Para enfrentar esse desafio, seria necessário mais informação por parte de todas as envolvidas
na educação das crianças com deficiência – professoras, médicas, mães e pais, e estudantes –, a fim de
que se promova uma educação efetivamente inclusiva. Deve-se lembrar que a perspectiva médica é
apenas parte da avaliação da criança com deficiência, e que, muito embora possa apontar-lhe limitações,

98
Ideia inspirada na conversa com a convidada do programa do Núcleo de Prática Jurídica de Direitos Humanos de 2016,
Liliane Garcez, mestre em educação e consultora do Instituto Rodrigo Mendes.
99
GLAT, Rosana. “Educação Especial no contexto de um Educação Inclusiva”, in GLAT, Rosana (Org.) Educação
inclusiva: cultura e cotidiano escolar. Rio de Janeiro: 7 letras, 2007, p. 23.
100
Neste sentido: “Despite universal compulsory education, special education's classification and tracking systems continue
to systematically exclude many children and youth from learning opportunities, high expectations and rich curricula that
would prepare them more adequately for their futures.” (in Powell, Justin J. Constructing Disability and Social Inequality
Early in the Life Course: the case of special education in Germany and the United States. Disability Studies Quarterly,
Spring).
101
J. Powel conduziu um estudo comparado entre a inclusão educacional nos Estados Unidos e na Alemanha. Nos Estados
Unidos, os dados demonstram que 95% das estudantes classificadas como deficientes frequentam salas de aula regulares
(apesar de, na maioria dos casos, passarem a maior parte do tempo de aula segregados em salas distintas). Já na Alemanha, a
maior parte das estudantes classificadas como deficientes frequentam escolas especiais (e somente 10% frequentam salas de
aula regular). Em trecho da análise, o autor conclui que: “Special education school-leavers in Germany and the US have
significantly reduced further educational and employment opportunities. Their limited labor market opportunities result not
only from reduced learning and self-efficacy in lower school tracks, but also from stigmatization and statistical (in
discrimination by employers. Solga (2002: 161) has shown that employment opportunities of people with less educational
attainment can be explained by increasing 'stigmatization by negative selection' due to changes in group size, group
composition, and employers' perceptions of graduates from low-status tracks over the course of educational expansion.” (in
Powell, Justin J. Constructing Disability and Social Inequality Early in the Life Course: the case of special education in
Germany and the United States. Disability Studies Quarterly, Spring 2003, Volume 23, No. 2, p. 59, online.)
34
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[artigo pendente de publicação – favor não circular]

não deve engessar o desenvolvimento do trabalho da educadora, posto que este é feito não com bases
em classificações patológicas, mas pautadas em técnicas pedagógicas e de inclusão social.

4.2.2. Tratamento diferenciado ou discriminatório?


Uma das maiores dificuldades na implementação de medidas inclusivas no âmbito escolar é saber
como se deve tratar uma pessoa com deficiência. Tal desafio provém da falsa percepção da condição da
deficiência como característica definidora da totalidade do indivíduo102.

Em decorrência dessa errônea concepção, busca-se dar um tratamento diferenciado às crianças


com deficiência que extrapola os limites necessários para a construção de um ambiente inclusivo103.
Assim, não vale para essa aluna o vigente para o restante do grupo, de forma a perpetuar o estereótipo
de “vítima de sua deficiência”104 ou, como popularmente conhecido, de “café com leite”.

Dessa maneira, as diferenciações no ensino pautadas pela pressuposição de incapacidade da


pessoa com deficiência, nada mais são do que uma prática discriminatória105. Para a sua superação é
importante que todas as alunas sejam tratadas de forma igualitária tanto pela escola, quanto pelas colegas
de turma. Igualmente, seria importante que não houvesse um tratamento pré-estabelecido baseado em
suposições preconceituosas a respeito da capacidade intelectual e física de pessoas com deficiência.
Assim expõe Eliane Carone de Souza, professora e coordenadora pedagógica aposentada de Escolas
Especializadas em Crianças Surdo-Mudas da Prefeitura de São Paulo106:

Tem diversos transtornos hoje em dia que você não consegue olhar para a pessoa e dizer
‘é’ ou ‘não é’, ‘tem’ ou ‘não tem’ e ficar etiquetando as pessoas é uma coisa que dificulta
muito o próprio trabalho. Se as pessoas fossem aceitas como crianças, [como]
adolescentes, como jovens, já seria o primeiro passo. Primeiro eu olho para você, a gente
se comunica, a gente começa a compartilhar algumas atividades juntos e vê o que é
possível ser feito. Se eu não olhar para as pessoas dessa forma, eu tenho que classificar,
aquele tem transtorno de déficit de atenção... é até difícil de você falar, até você terminar
de falar o negócio, já acabou a aula. Eu tenho que em algum momento deixar isso de

102
AMARAL, Lígia Assumpção. Sobre crocodilos e avestruzes - falando de diferenças físicas, preconceitos e sua superação.
In Aquino, J. G. Diferenças e preconceitos na escola. São Paulo. Summus. 1998. p. 17
103
Conforme exposto em entrevista realizada em 9 de junho de 2016 pelo NPJ-DH, “eu vou dizer que tenho refletido muito
ultimamente e eu acho que a inclusão é um conceito que ainda está em construção, mas uma escola inclusiva, para mim, é
uma escola que não trata inclusão como exclusão. Porque você tratando a inclusão com diferenciais muito gritantes, você faz
todo mundo olhar para esse aluno de maneira diferenciada demais e isso é uma exclusão, não é uma inclusão. Então ele
precisa ser inserido no contexto. E é o que a gente tem se esforçado para fazer, incluir de fato”.
104
AMARAL, Lígia Assumpção. Sobre crocodilos e avestruzes - falando de diferenças físicas, preconceitos e sua superação.
In Aquino, J. G. Diferenças e preconceitos na escola. São Paulo. Summus. 1998. p. 18.
105
Em entrevista realizada em 7 de junho de 2016, o diretor da Escola Planeta Terra, Ronaldo Negrão, afirmou que “como
diziam uns professores que eram cegos, o absurdo não é eu ser cego, é as pessoas acharem que eu, sendo cego, não tenho
possibilidade de aprender. O absurdo não é eu ter uma deficiência mental, mas as pessoas acharem que com isso eu não
aprendo, e eu não me humanizo. Não é ter síndrome de down, mas achar que com isso eu não consigo fazer”.
106
Entrevista realizada pelo NPJ-DH em 3 de junho de 2016.
35
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canto e começar a trabalhar, porque no desenvolvimento das atividades e da aula, você


vai ver como as pessoas se comportam e aí você vai entender o que é mais importante
de fazer com aquela criança ou não. E outra, ela não pode se sentir a parte. Você não
pode [dizer] para você não tem isso, para ele tem aquilo. Precisa tomar muito cuidado
também com essas metodologias diferenciadas que, às vezes, são aplicadas só para um
aluno, porque isso frustra a criança, ela percebe que ela está fazendo uma coisa diferente
dos outros e, porque que ela não está fazendo a mesma coisa (ela se pergunta)?107
A possibilidade de conferir tratamento igualitário a todos os estudantes também foi evidenciada
no caso da aluna com Síndrome de Down, Renata Basso, do Colégio Estadual Coronel Pilar. De acordo
com sua irmã Rosane, ela nunca foi tratada como “café com leite”, tendo apenas algumas dificuldades
no que tange ao seu processo de aprendizagem:

Sempre a tratamos como uma criança normal, nunca como pobrezinha que tem
deficiência. Sempre como normal. Nunca tivemos vergonha de sair com ela. Sempre a
ensinamos a ser responsável, não podia faltar na aula.’ Isso nunca significou, para
Rosane, que as peculiaridades de aprendizado de sua irmã não devessem ser levadas em
conta por suas professoras e professores.108
Como toda criança, aquela com deficiência apresenta demandas particulares em seu processo
de aprendizado, exigindo, assim, algumas formas de diferenciação que permitam seu pleno acesso à
educação109.

Entretanto, assim como exposto anteriormente, a necessidade de adaptação curricular não pode
levar colegas e professoras a enxergar alguém como limitado ou de capacidades inferiores. Ao contrário,
a partir do momento que as necessidades educacionais deixam de ser reconhecidas como decorrentes da
deficiência ou do quadro orgânico de cada pessoa110, a capacidade de todas de aprenderem e ensinarem
torna-se evidente.

107
Em entrevista concedida ao NPJ-DH no dia 3 de junho de 2016.
108
MENDES, Conrado Hübner. O caso do Colégio Estadual Coronel Pilar. DIVERSA Educação Inclusiva na Prática, Rio
Grande do Sul. Dez/2014 e LOBO, Luana; NISTI, Marcos; RENNER, Estela; SETTE, Renata; Colégio Coronel Pilar
[documentário]. Produção de Luana Lobo, Estela Renner e Marcos Nisti, direção de Renata Sette. Rio Grande do Sul, 2014.
Disponível em: https://youtu.be/QlUspnzqOJ0.
109
Conforme exposto por Eugênia Favero, “[...] de acordo com o parâmetro relacionado ao princípio da não discriminação,
trazido pela Convenção da Guatemala, espera-se que os aplicadores do direito na adoção da máxima tratar igualmente os
iguais e desigualmente os desiguais, admitam as diferenciações com base na deficiência apenas para o fim de se permitir o
acesso ao seu direito e não para negá-lo. Por exemplo: se uma pessoa tetraplégica precisa de um computador para acompanhar
as aulas, este instrumento deve ser garantido pelo menos para ela, se não for possível para os outros alunos. É uma
diferenciação, em razão da sua deficiência, para o fim de permitir que ela continue tendo acesso à educação como todos os
demais” (FAVERO, Eugênia Gonzaga et al. O acesso de alunos com deficiência às escolas e classes comuns da rede regular.
2. ed. rev. atual. Brasília: Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, 2004, p. 20).
110
Afirmam Rosana Glat e Leila de Macedo Varela Blanco, “necessidades educacionais especiais, portanto, são construídas
socialmente, no ambiente de aprendizagem, não sendo, portanto, consequências inevitáveis da deficiência ou do quadro
orgânico apresentado pelo indivíduo. (...) Isto não significa, certamente, negar que existam condições que tornem o sujeito
mais propenso a encontrar dificuldades para aprender. O aspecto que queremos reforçar é que uma necessidade educacional
não se encontra na pessoa, não é uma característica intrínseca sua, mas sim um produto de sua interação com o contexto
escolar onde a aprendizagem deverá se dar” (BLANCO, Leila de Macedo Varela; GLAT, Rosana. “Educação Especial no
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[artigo pendente de publicação – favor não circular]

Essa linha de raciocínio surge em contraponto à valorização tradicional do conhecimento


cognitivo feita na maioria das escolas, a qual preza apenas pela busca e conquista de resultados em
detrimento da necessidade de prezar pelo desenvolvimento humano111. Ignoram-se as diversidades das
alunas, bem como são ignorados os avanços individuais de cada estudante dentro de suas capacidades.
Ademais, são esquecidas as demais funções das escolas, entre elas, a socialização de crianças, a qual só
se consegue ao se ensinar na prática e a partir da sua própria estrutura pedagógica, o convívio e o respeito
de crianças com ou sem deficiência.

Disso também, concluímos que um único método de aprendizagem e de avaliação não é


suficiente para examinar as estudantes112,113. É preciso considerar as dificuldades apresentadas pelas
alunas, em conjunto e individualmente, para o desenvolvimento de respostas educativas que atinjam a
todas114. Se as diferenças não são trabalhadas, corre-se o risco de ter estudantes bem formadas em
algumas áreas, mas deficientes em outras. Para uma educação inclusiva, é necessário que as diferentes
características presentes na sala de aula sejam valorizadas, de modo que as particularidades de cada uma

contexto de um Educação Inclusiva”, in GLAT, Rosana (Org.) Educação inclusiva: cultura e cotidiano escolar. Rio de Janeiro:
7 letras, 2007, p. 27).
111
Conforme dispõe Eugênia Favero, “a escola que se organiza para receber apenas alunos com determinado nível de
desenvolvimento intelectual exclui até mesmo pessoas sem nenhum tipo de deficiência ou necessidade educacional especial
(são poucos os que terminam o curso na mesma escola); cria situações odiosas de competição entre alunos; privilegia tanto
a transmissão de conhecimentos de uma mesma turma que se esquece do desenvolvimento humano; prejudica o futuro pessoal
e profissional do indivíduo” (FAVERO, Eugênia Gonzaga. Direito à educação das pessoas com deficiência. Revista CEJ,
Brasília, v. 8, n. 26, p. 27-35, set. 2004).
112
Exemplificam Rosana Glat e Leila de Macedo Varela Blanco, “alunos com baixa visão podem necessitar de muita ajuda
em aulas que são desenvolvidas com base na utilização do livro didático; em aulas onde são usados jogos didáticos com peças
maiores e mais coloridas o aluno não apresentará nenhuma necessidade especial, e trabalhará com os demais. Professores
que utilizam alfabetário de letras móveis para o ensino da leitura e da escrita precisam fazer muito poucos ajustes para que
um aluno com problema motor participe das atividades; mas, se alfabetizam usando a cópia de letra cursiva, por exemplo,
eles certamente terão maiores dificuldades” (BLANCO, Leila de Macedo Varela; GLAT, Rosana. “Educação Especial no
contexto de um Educação Inclusiva”, in GLAT, Rosana (Org.) Educação inclusiva: cultura e cotidiano escolar. Rio de Janeiro:
7 letras, 2007, p. 28-29).
113
Conforme relatado em entrevista realizada em 9 de junho de 2016, “[...] não tem um programa pronto. Se você chegasse
aqui pra mim hoje e falasse “meu filho tem uma deficiência intelectual”, eu pego o programa e te apresento. Isso não existe.
Eu apresento o que eu já faço com os outros, que é: reuniões frequentes com especialistas (...) A gente faz uma revisão
curricular, essa datação dessa revisão curricular que vem adaptando o conteúdo para as expectativas de aprendizagem daquele
aluno período a período. (...) a adaptação curricular ajusta as expectativas de aprendizagem, as avaliações são adaptadas para
cada aluno a cada avaliação e a cada área do conhecimento. Essa semana passada eu tava discutindo com uma professora (...)
de história, uma adaptação de uma avaliação de um aluno na disciplina dela. Mas em matemática eu já não preciso discutir
novamente porque de matemática tem uma outra expectativa de aprendizagem do mesmo aluno. Então são questões que estão
o tempo todo em discussão porque o aluno vai evoluindo e a gente tem que ir ajustando as expectativas de aprendizagem.
Então acontece em relação às atividades, acontece em relação a abordagem com o aluno oral em sala de aula, acontece em
relação ao local em que esse aluno senta na sala de aula, acontece no aspecto social, porque em cada instância da vida dele,
como qualquer outro aluno, ele tem uma maturidade diferente e lida de forma diferente”.
114
BLANCO, Leila de Macedo Varela; GLAT, Rosana. “Educação Especial no contexto de um Educação Inclusiva”, in
GLAT, Rosana (Org.) Educação inclusiva: cultura e cotidiano escolar. Rio de Janeiro: 7 letras, 2007, p. 17.
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[artigo pendente de publicação – favor não circular]

das alunas não sirvam como impedimento, mas sim como incentivo, à reflexão acerca do fazer
pedagógico para garantir a aprendizagem de todas115.

Não se pode adotar a concepção de que existem estudantes incapazes de acompanhar ou se


adequar ao método de ensino; mas sim de que há métodos de ensino que devem ser readaptados para
proporcionar um processo de aprendizagem adequado a cada aluna. Conforme expõe Lígia Assumpção
Amaral:

Brincando com as ideias, diria que a educação, como cada um de nós, deve escolher a
roupa adequada para os dias frios, assim como para os de calor, os alimentos
compatíveis com o horário e/ou clima, os comportamentos para as situações de alegria
ou de tristeza, as expressões emocionais para os momentos públicos ou de intimidade…
Enfim, escolher o melhor (para cada um de nós e para aqueles que nos cercam) para um
melhor viver116.

4.2.3. Necessidade de capacitação dos professores: um discurso que demonstra a dificuldade de


adaptação ao novo
Conforme já exposto, a CONFENEN, em sua petição, sustentou o argumento de que as
professoras não estariam preparadas para receber alunas com deficiência, tampouco para fazer um
planejamento pedagógico adequado. Considerando que grande parte das escolas particulares não são
inclusivas e sequer recebem alunas que tenham deficiência, é possível entender a existência deste receio.
Entretanto, as entrevistas realizadas demonstram que essa interação é positiva e que os aspectos
metodológicos se adaptam com a chegada dessas novas alunas. É o que afirma Eliane Carone de Souza,
professora e coordenadora pedagógica aposentada de Escolas Especializadas em Crianças Surdo-Mudas
da Prefeitura de São Paulo117:

Eu acho que isso (a educação inclusiva) leva o professor a fazer novas pesquisas, leva
o professor a entender que é na convivência com o seu aluno que ele aprende muito
mais e ele também ensina, existe sempre a troca. Não dá pra dizer ‘o professor não é
preparado’. A gente pode levar isso até para outras profissões, será que todo mundo é
preparado para as atividades que vai desenvolver? Por exemplo, num escritório, numa

115
De acordo com Lígia Assumpção, “os estudos e reflexõs críticas sobre o chamado ‘fracasso escolar’ desvelaram a força
certos ‘postulados’, repetidos acriticamente por este Brasil afora, que, oscilando entre a patologização/culpabilização do
aluno e do professor, desviaram (e continuam desviando) o foco da atenção de seu legítimo alvo: a necessidade de reflexão
sistemática sobre o fazer pedagógico, nele incluindo todas as esferas de influência - econômicas, políticas, culturais - e não
apenas aquela referidas a condições peculiares ao educando ou ao educador” (AMARAL, Lígia Assumpção. “Sobre
crocodilos e avestruzes: falando de diferenças físicas, preconceitos e sua superação”. In AQUINO, Julio Groppa. Diferenças
e preconceitos na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1998, p. ).
116
AMARAL, Lígia Assumpção. “Sobre crocodilos e avestruzes: falando de diferenças físicas, preconceitos e sua
superação”. In AQUINO, Julio Groppa. Diferenças e preconceitos na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo:
Summus, 1998, p. 22.
117
Entrevista realizada pelo NPJ-DH em 3 de junho de 2016.
38
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[artigo pendente de publicação – favor não circular]

empresa, ou quando você chega lá e, dependendo da situação que você tem, você não
tem que correr atrás porque a empresa espera isso de você? Então está na hora dos
nossos professores também correrem atrás. (...) esse incômodo de ‘como eu vou lidar
com essa criança?’ é o que vai impulsionar o professor a buscar respostas diferentes, a
buscar formas diferentes de dar aula, ou de compartilhar a aula, ou de tentar ensinar. É
isso que vai movê-lo. Esse é o grande desafio do educador, esse aluno que vai exigir de
mim coisas que eu não tenho, então vai me obrigar a ter uma formação diferenciada.
Isso leva o professor a continuar estudando e não a desistir, não a se frustrar. Tem que
me mover, me mover a procurar aquele conhecimento para eu tentar tocar aquele aluno,
tentar desenvolver junto com ele.
A formação das professoras, paulatinamente, tem se dedicado também ao atendimento das
necessidades da aluna com deficiência118. A legislação brasileira reflete uma preocupação com a
preparação das educadoras, com o intuito de que esta seja plural, democrática e atenta às diferenças que
serão encontradas nas salas de aula. Assim demonstram dispositivos de algumas das principais normas
que regulamentam a educação, tais como (i) a Resolução CNE/CP n° 1 de 15 de maio de 2006 que
institui diretrizes para o curso de graduação em pedagogia e licenciatura119; (ii) o Decreto n° 5.626/2005
que regula a Língua Brasileira de Sinais e dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino desta linguagem nos
cursos de pedagogia e licenciatura120; e (iii) a Lei 9.394/96 que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, garante a formação de professoras especializadas no atendimento de alunas com
deficiência121.

118
“Nos tempos atuais, construir uma escola numa perspectiva inclusiva – que atenda adequadamente a estudantes com
diferentes características, potencialidades e ritmos de aprendizagem – é um dos grandes desafios dos sistemas educacionais.
(...) Para tanto, é imprescindível investir – dentre outros fatores – na formação inicial dos profissionais de educação para
atuação com a diversidade do alunado, incluindo nesse contexto os educandos que apresentam deficiência, altas habilidades/
superdotação e transtornos globais do desenvolvimento.
Podemos perceber que avanços vêm ocorrendo, neste sentido, no Brasil, no tocante à legislação existente e aos documentos
oriundos de órgãos educacionais. Várias iniciativas foram empreendidas pelo MEC e por diversos órgãos em nível federal,
estadual e municipal, no que diz respeito à formação de docentes para favorecer a inclusão de todos os alunos, na escola
regular” (MARTINS, Lúcia de Araújo Ramos. “Reflexões sobre a formação de professores com vistas à educação inclusiva”.
In GALVÃO FILHO, teófilo Alves; MIRANDA, Therezinha Guimarães (Orgs.). O professor e a educação inclusiva:
formação, práticas e lugares. Salvador: EDUFBA, 2012, p. 25-38).
119
Art. 4º O curso de Licenciatura em Pedagogia destina-se à formação de professores para exercer funções de magistério
na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade Normal, de
Educação Profissional na área de serviços e apoio escolar e em outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos
pedagógicos.
(...)V - reconhecer e respeitar as manifestações e necessidades físicas, cognitivas, emocionais, afetivas dos educandos nas
suas relações individuais e coletivas;
(...)
X - demonstrar consciência da diversidade, respeitando as diferenças de natureza ambiental-ecológica, étnico-racial, de
gêneros, faixas geracionais, classes sociais, religiões, necessidades especiais, escolhas sexuais, entre outras.”
120
Art. 3o A Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o
exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e
privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
121
Art. 59. Os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e
altas habilidades ou superdotação:
(...)
39
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[artigo pendente de publicação – favor não circular]

Além do estabelecido na legislação, o material adquirido com as entrevistas revelou que o


convívio com as alunas que tenham deficiência é, por si, um mecanismo de aprendizagem e adaptação
da professora e da escola. Receber a aluna e detectar quais são suas necessidades específicas é o primeiro
passo para se pensar num projeto pedagógico. Nesse sentido, a professora e coordenadora pedagógica
aposentada de Escolas Especializadas em Crianças Surdo-Mudas da Prefeitura de São Paulo, Eliana
Carone de Souza122, diz:

Exatamente. Ninguém vai te dizer ‘o deficiente auditivo você ensina assim, o visual
assim…’ Eu não sei o que vai aparecer para mim, na minha sala de aula, o que vai ser
o meu grande desafio para eu procurar novas metodologias para aplicar na sala de aula.
O professor é fundamentalmente um grande pesquisador. Precisa ser. Tem que ter uma
certa autonomia para a pesquisa, para trabalhar com esse aluno na sala de aula, para
acreditar que é na convivência que ele faz esse aluno e que ele é capaz de buscar essas
novas metodologias. O que eu não estou dizendo que é fácil. Não é fácil. Mas eu acho
que é isso que move o educador e move outros grandes profissionais, é o desafio.
A experiência de recepção de alunas com deficiência realizada pelo Colégio Estadual Coronel
Pilar123 também reafirma o entendimento de que, na prática inclusiva, as professoras se preparam e, aos
poucos, perdem o receio que tinham num primeiro momento. Sônia Morgental, professora de
matemática, ilustra esse desenvolvimento:

O primeiro passo é aceitar o aluno na sala de aula. Quando a educação inclusiva


começou, havia resistência dos professores. Mas com o tempo, perceberam que era
possível usando caminhos e metodologias diferentes. A resistência ainda está presente,
mas está mudando à medida que as práticas bem sucedidas de outros professores vão
sendo percebidas.
Assim, apesar de existirem dificuldades no preparo de um projeto pedagógico adequado para a
efetivação da educação inclusiva, elas não são intransponíveis, na medida em que basta que a professora
e a instituição de ensino, de uma forma geral, busquem soluções e desenhem uma estrutura de ensino
que seja adequada para a promoção da educação e da inclusão da criança com deficiência.

4.2.4. O discurso da inclusão como “artigo de luxo”

A despeito do arcabouço normativo que determina a inclusão em salas de aula regular, parece
haver uma resistência em reconhecer que a oferta da estrutura necessária à efetiva inclusão é condição
indispensável para o funcionamento de qualquer estabelecimento de ensino.

III - professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como
professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns;
122
Entrevista concedida ao NPJ-DH em 3 de junho de 2016.
123
MENDES, Conrado Hübner. O caso do Colégio Estadual Coronel Pilar. DIVERSA Educação Inclusiva na Prática, Rio
Grande do Sul. Dez/2014
40
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Contrapondo-se a tal apropriação errônea da inclusão, foi possível identificar, dentre as


entrevistas realizadas, uma postura crítica em relação a esse discurso. Nesse sentido, afirma
coordenadora pedagógica entrevistada124:
Assim quando a gente vê nos cartazes: ‘aí tem horta, tem isso, tem aquilo, e tem
inclusão, trabalha como inclusão’. Isso não é um diferencial da escola, isso é para todos,
não deveria nem ser citado que a escola é inclusiva, ela tem que receber todos.

Julgar a inclusão não como obrigatória, mas sim como um diferencial, leva a uma interpretação
que não se compatibiliza com as bases do conceito de inclusão. Em primeiro lugar, esse raciocínio
implica em, indiretamente, reputá-la dispensável. É possível encontrar este tipo de pressuposto por trás
de discursos contrários à inclusão, como aquele sustentada pela CONFENEN. Como exemplo, pode-se
citar trecho de artigo divulgado em sua página da internet no qual sustenta-se que:
Em consequência, não basta que um portador de necessidade especial seja atendido por
qualquer escola; ele precisa daquela que estiver apetrechada e capacitada para atendê-
lo, podendo garantir-lhe seu desenvolvimento e sucesso.
O bom e verdadeiro atendimento do portador de necessidade especial pode ser feito
tranquilamente por qualquer escola pública ou privada, também especializada. Nas
demais, é possível, conforme o caso, examinado individualmente e dependendo de sua
proposta pedagógica, pela qual ela deve ofertar o que oferece.125

Esse discurso parte da premissa de que o oferecimento de uma estrutura apta à inclusão é
facultativo e depende da proposta pedagógica das escolas, apesar do fato de que a lei determina que
todas as escolas devam oferecer este tipo de estrutura.
De fato, a mera colocação de estudantes classificadas como deficientes em salas de aula regulares
não equivale a promover a inclusão e, caso a escola não ofereça uma estrutura adequada de aprendizado,
pode potencializar a estigmatização e a discriminação de estudantes126. O arcabouço normativo, no
entanto, prevê a inclusão em todas as escolas regulares e pressupõe a implementação de uma inclusão
efetiva por parte das escolas. Consequentemente, desenvolver práticas de ensino inclusivas e

124
Trata-se de trecho de entrevista concedida ao Núcleo de Prática Jurídica em Direitos Humanos (NPJ-DH) no dia 6 de
junho de 2016, sob a condição de anonimato.
125
CONFENEN. A aparente inclusão social. Disponível em:
<http://media.wix.com/ugd/38d9a9_14245c3a590b40d38bdb3bc7851d7146.pdf>
126
Neste sentido: “Mere placement of students with disabilities in a physical location with other school students does not
mean that inclusion will follow. (...) The stigmatisation of students with labels will not disappear by simply placing students
in regular schools as they, and their peers, will need to be taught appropriate social and academic skills. Indeed, without
careful management and the development of the included students’ skills, other regular school students may create their own
discriminatory labels for included students. Another kind of stigmatisation can occur when disabled students are not
successful in schools. Students should not be blamed for school failure, but rather there is a need to look at the system and
its expectations and modifications for children with disabilities.” (Knight, Bruce Allan. Towards inclusion of students with
special educational needs in the regular classroom. Vol. 14, No. 1, 1999, p.4)
41
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[artigo pendente de publicação – favor não circular]

individualizadas127 é obrigação de todas as escolas, e não mero diferencial a depender da proposta


pedagógica do estabelecimento128.
Como já discutido anteriormente, a educação especial129 não substitui o ensino regular, mas sim
deve complementá-lo de modo articulado para contribuir com o desenvolvimento das estudantes. Os
objetivos e o foco de aprendizado na educação especial e na educação regular não são os mesmos. De
acordo com a Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva:
O atendimento educacional especializado tem como função identificar, elaborar e
organizar recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a
plena participação dos estudantes, considerando suas necessidades específicas. As
atividades desenvolvidas no atendimento educacional especializado diferenciam-se
daquelas realizadas na sala de aula comum, não sendo substitutivas à escolarização.
Esse atendimento complementa e/ou suplementa a formação dos estudantes com vistas
à autonomia e independência na escola e fora dela.130

Deste modo, a matrícula de todas as estudantes em salas de aula regular deve ser realizada131 de
modo paralelo ao oferecimento do ensino especial (na forma do atendimento educacional
especializado, ofertado no contraturno132). A matrícula de crianças classificadas como deficientes em
ensino regular, assim, deve ser acompanhada de condições de ensino e práticas que promovam uma

127
É o que Smith e Dowdy denominam “inclusão responsável” (cf. SMITH, Tom E. C.DOWDY,Carol A. Educating Young
Children with Disabilities Using Responsible Inclusion. Volume 74, Edição 5, 1998., p.317).
128
Como já discutido, existe todo um arcabouço normativo ao qual tanto escolas particulares quanto escolas públicas estão
sujeitas e que determina a obrigatoriedade da inclusão em salas de aula regulares. Dentre esses dispositivos inclui-se o art.
208, III, CF, que prevê a garantia de: III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência,
preferencialmente na rede regular de ensino;
129
A educação especial é definida pelo art. 58 da Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 9434/1996), cujo texto dispõe que: “Art.
58. Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar oferecida
preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas
habilidades ou superdotação.
§ 1º Haverá, quando necessário, serviços de apoio especializado, na escola regular, para atender às peculiaridades da clientela
de educação especial. “
130
De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica: O atendimento educacional especializado (AEE),
previsto pelo Decreto nº 6.571/2008, é parte integrante do processo educacional, sendo que os sistemas de ensino devem
matricular os estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação nas
classes comuns do ensino regular e no atendimento educacional especializado (AEE). (...) Este atendimento não substitui a
escolarização em classe comum e é ofertado no contraturno da escolarização em salas de recursos multifuncionais da própria
escola, de outra escola pública ou em centros de AEE da rede pública ou de instituições comunitárias, confessionais ou
filantrópicas sem fins lucrativos conveniadas com a Secretaria de Educação ou órgão equivalente dos Estados, Distrito
Federal ou dos Municípios. (Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação
Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SECADI. 2008.)
131
Matricular crianças na rede regular de ensino é uma obrigação das responsáveis, sob pena de configurar infração
administrativa sujeita a multa. É o que dispõe o art. 55, c/c art. 259 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90):
“Art. 55. Os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino” e “art. 249.A
inércia ou omissão destes em relação à regularização da matrícula escolar dos seus filhos configura infração administrativa,
sujeita à multa de três a vinte salários mínimos”
132
Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica / Ministério da Educação. Secretaria de Educação
Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013, p.42
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oferta efetiva de ensino que permita evolução no aprendizado de estudantes133, em harmonia com o
ensino especial, mas não substituída por ele134.
A segunda consequência do raciocínio que vê a inclusão como um diferencial é a legitimação de
discursos que defendem a necessidade de cobrança de valores adicionais na matrícula ou mensalidade.
A cobrança de valores adicionais é modo de, indiretamente, criar empecilhos à matrícula dessas alunas
ao instituir a cobrança de valores para que possam atender a requisitos que, do modo como
regulamentado, são diretrizes prévias que devem orientar o funcionamento desses estabelecimentos.
A necessidade de que as escolas regulares estejam adaptadas e forneçam a estrutura necessária à
efetiva inclusão não implica a impossibilidade de sua implementação. Trata-se somente de mais uma
das diretrizes de regulamentação à qual estão sujeitos e devem atender todos os estabelecimentos de
ensino.

Conclusão
Ao decidir pela improcedência da ADI 5357, consagrando a constitucionalidade dos artigos 28,
§1º e 29 da Lei nº 13.143/2015, o Supremo Tribunal Federal confirma a constitucionalidade da vedação
à discriminação configurada na cobrança de valores adicionais de matrícula ou mensalidade para que
seja promovida a inclusão de pessoas com deficiência em instituições privadas de ensino. O
questionamento, no judiciário, deste direito básico que é decorrência de um arcabouço constitucional
representa uma sistemática resistência em reconhecer a inclusão como consequência de um direito
fundamental. Representa, em última análise, uma dificuldade em reconhecer diferenças sem discriminar.

133
Existe extensa literatura no campo da educação com teorias e estudos empíricos que testam possíveis práticas
implementadas em salas de aula regulares para promover a inclusão. Bruce Allan Knight, por exemplo, enfatiza a necessidade
de práticas de ensino denominadas por ele “effective teaching”, orientadas pelas seguintes diretrizes: “Effective practices as
outlined in the National Competency Framework for Beginning Teaching (Commonwealth of Australia 1997) include: • being
sensitive to students’ academic and emotional needs; • negotiating goals and expectations with students; • making the intent
of activities clear to students; • selecting, adapting and sequencing learning content to suit individual students; • using a
wide range of teaching approaches and pacing to meet student needs; • actively teaching strategies to students”; (Knight,
Bruce Allan. Towards inclusion of students with special educational needs in the regular classroom. Vol. 14, No. 1, 1999,
p.3). Outros textos mencionam a necessidade de adaptação do currículo, do ambiente e a formação de profissionais (cf. breve
resumo da literatura em: “Inclusão da criança com Síndrome de Down na rede regular de ensino. Revista Bras. Ed. Esp,
Marília, Set-Dez 2008, v.14,p.498”,)
134
Como também já discutido, Para além dos dispositivos previstos em lei, estudos empíricos da área da educação já
concluíram que a inclusão efetiva traz benefícios para toda a classe. Nesse sentido: “They [the educators] also reported that
the participation of students with ID in their classes had a positive impact on the whole class. The presence of diverse learning
needs in a classroom can lead to enhanced delivery of curriculum and allow, not just academic gains for the entire class, but
social gains as well in terms of a more tolerant and accepting environment (Freeman, 2000; Wiener & Tardif, 2004).
Participants also felt that students with ID benefitted from interaction with diverse peers and that in a diverse class there were
many opportunities for positive role modelling. (in Bennett, Sheila M., and Gallagher Tiffany L. "High School Students with
Intellectual Disabilities in the School and Workplace: Multiple Perspectives on Inclusion." Canadian Journal of Education /
Revue Canadienne De L'éducation 36.1 (2013), p.116. online.
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Se por um lado a decisão do STF tem grande importância por contribuir com a definição de um dos
pontos basilares dessa discussão, ainda é longo o caminho para a superação de todos os desafios para
concretização de uma educação para todas.

A implementação do projeto de inclusão precisa vencer essa resistência sistemática por parte de
grupos de interesse que defendem a manutenção do status quo a todo custo, como é o caso da
CONFENEN. Além disso, a noção de inclusão na educação precisa também vencer os desafios práticos
decorrentes justamente da dificuldade de compreensão dos conceitos e dos ruídos interpretativos na
legislação base. Como discorrido neste trabalho, incluir faz parte do direito à educação e não é algo
essencialmente custoso. Igualmente, como demonstrado, entender a educação como um serviço
essencial prestado pelo ente privado sem nenhuma restrição e sem nenhuma necessidade de conformação
normativa, também não condiz com o quanto preconizado na legislação e jurisprudência nacionais.

Assim, este artigo procurou contribuir para a discussão da educação inclusiva sob um viés
interdisciplinar, apresentando uma introdução aos conceitos e legislações envolvidas tanto na área da
Educação, como também na área do Direito. Com isso, procurou desmistificar possíveis imprecisões
terminológicas e interpretativas que prejudicam a construção de uma noção real do problema que não
pode ser visto como completamente resolvido e merece evidência. Assim, para ilustrar a construção dos
discursos contrários à efetivação da educação inclusiva, bem como a sua judicialização, foram analisados
o caso da ADI 5357, o seu julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, bem como foi feito levantamento
de casos envolvendo a temática em instâncias inferiores. Por fim, a partir dessas análises e de entrevistas
semi-estruturadas exploratórias realizadas em escolas da rede privada135 de São Paulo136, foram
identificados alguns desafios e barreiras a serem transpostas para a efetiva concretização do ensino
inclusivo.

135
Exceção foi a entrevista realizada com Eliane Carone de Souza, professora e coordenadora pedagógica aposentada de
Escolas Especializadas em Crianças Surdo-Mudas da Prefeitura de São Paulo.

44
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ANEXO – Roteiro de entrevistas

O roteiro a seguir foi utilizado pelo Núcleo de Práticas Jurídicas em Direitos Humanos como
instrumento base para as entrevistas que foram conduzidas. Os integrantes do grupo fizeram entrevistas
semi-estruturadas, ou seja, com um fio condutor, mas também com abertura para que a pessoa
entrevistada ficasse à vontade para desenvolver sua fala sobre o tema. As entrevistas tiveram cunho
exploratório, uma vez que foram usadas para entender melhor a realidade que circunda a educação
inclusiva e, a partir dela, pensar nos problemas e nas hipóteses existentes nos mais diversos discursos a
respeito da educação inclusiva.

1. Perguntas Gerais

Perguntas para compreender o que a pessoa entrevistada entende como escola inclusiva e seu papel
na sociedade:
• O que é uma escola inclusiva?
• Qual o papel das escolas privadas na educação inclusiva?
• Qual sua relação/papel no ensino inclusivo?

Perguntas para averiguar se a pessoa entrevistada possui conhecimento acerca das circunstâncias que
suscitam esse debate:
• Sabe da promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência?
• Sabe do questionamento do Estatuto no Supremo Tribunal Federal (alternativamente, sabe da
existência da ADI)?

2. Perguntas direcionadas para escola, pais e professores

Perguntas direcionadas ao conhecimento do corpo discente e de como a criança com deficiência é


tratada no ambiente escolar:
• A escola atende quais faixas etárias de alunos?
• Quantos alunos a escola atende no total?
o Desses alunos, quantos possuem algum tipo de deficiência? Que tipos de deficiência?
o A escola atende alunos com outras necessidades educacionais, como dislexia e déficit de
atenção?

Perguntas para avaliação de como a instituição escolar se comporta em relação às pessoas com
deficiência:
• Qual a metodologia de ensino da escola?
• Qual o valor da mensalidade cobrada na escola?
o A mensalidade cobrada do aluno com deficiência é a mesma do aluno que não possui
deficiência?
• Você considera a escola como inclusiva? Por que?
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Núcleo de Prática Jurídica em Direitos Humanos – FDUSP
[artigo pendente de publicação – favor não circular]

• Quais as dificuldades para implementação da educação inclusiva?


• Houve alguma mudança após o Estatuto da Pessoa com Deficiência?
o Se sim, quais?
o Se não, por que?
• Como se dá a relação com os pais dos alunos, incluindo aqueles que não possuem nenhuma
deficiência?
o Há algum tratamento diferenciado para os pais de crianças com deficiência?

Perguntas direcionadas a descobrir como a instituição escolar lida com a matrícula de pessoas com
deficiência:
• A escola já recebeu pedidos de matrícula de pessoas com deficiência?
o Como foi a experiência de receber o primeiro pedido de matrícula de pessoa com
deficiência? Como a escola reagiu?
o Em caso positivo, houve efetiva matrícula ou não?
§ No caso de não ter havido matrícula, por que?
• Qual era expectativa anterior à matrícula do aluno? Você achou que a escola o receberia bem?
• Como a escola foi alterada a partir da matrícula do aluno?
o Houve mudanças na estrutura física da escola?
o Houve mudanças no programa de aula?
o Há métodos de avaliação diferenciados para pessoas com deficiência?
o O aluno permaneceu? Se saiu, por qual motivo?

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