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para todos:
Vivências cotidianas
ORGANIZAÇÃO
Sinfonia na Cidade
Musicoterapia
para todos:
Vivências cotidianas
1ª edição
ERECHIM - RS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Even3 Publicações, PE, Brasil)
DOI: 10.29327/533260
ISBN: 978-65-5941-195-5
CDD 615.8
CDU 615.8
Arte na capa:
Val Schneider
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versos artigos sobre o assunto e dedicou um livro medicina, ela partia do princípio de que a música
especificamente relatando a relação da música influenciava os afetos humanos e atuava no trata-
com pessoas de síndromes e dificuldades varia- mento de estados depressivos.
das. Vários músicos, por sua vez, ingressaram na Atualmente a musicoterapia está presente
área de saúde e atuam utilizando a música com em diversos hospitais e clínicas particulares, aten-
bastante desenvoltura. A musicoterapia é uma ati- dendo uma diversidade muito grande de pessoas.
vidade terapêutica que utiliza e observa como a Cursos de graduação e pós graduação estão sendo
música atua no indivíduo, podendo ser indicada abertos cada vez mais no Brasil. Enfim, a música
para diversos de tipos de transtorno: autismo, sín- acompanha a humanidade, reinventa-se e trans-
drome de down, Alzheimer, entre outros. forma-se com ela nos diversos tipos de cultura,
O conhecimento e a utilização de que mú- participam intrinsecamente da vida das pessoas e
sica pode trazer uma melhora espiritual e corpo- mesmo aqueles que não tem o hábito de cultuar a
ral é bastante antigo. Pesquisadores, antropólogos arte musical podem estar envolvidos com a músi-
e arqueólogos trouxeram à tona imagens e relatos ca e o som que as rodeiam. Para a musicoterapia,
da música acompanhando a humanidade desde o conceito de música precisa ser ampliado. A or-
a pré-história, antiguidade e idade média. Um questra sonora dos ruídos da cidade, os sons das
exemplo dessa relação com música com a saúde florestas e mesmo o ambiente sonoro do entorno
poderíamos citar “Celsus (25 a.C.-50), que em da nossa casa servirão de matéria para interagir
seu “De medicina” sugere a utilização de música com os pacientes.
e o uso de ruídos para aliviar os pacientes com
queixas depressivas decorrentes de sua doença. 1.2 A INFLUÊNCIA E IMPORTÂNCIA
DO AMBIENTE SONORO
Particularmente me surpreendi, quando conheci
a música de Hildegard von Bingen (1098-1180),
uma abadessa mística que também praticava a
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“Acordamos com a música do rádio dos nos- voltada em outras direções. O estado de espírito
sos relógios, depois a usamos durante o café das pessoas, seu modo de agir, de se relacionar,
da manhã, para juntar energia durante a hora
de falar, de interagir com o outro e com o mundo,
do rush, para nos acalmar, durante o traba-
está diretamente ligado com o ambiente sonoro
lho para anestesiar, e para relaxar, no fim do
dia. E somos bombardeados com música não em que se vive. Por isso, sempre que atendo uma
solicitada. Uma hora vendo televisão é acom- pessoa, durante a entrevista, pergunto entre ou-
panhada por dúzias de melodias projetadas tras coisas, como é o som ambiente da casa, do
para atrair adrenalina, lágrimas ou dinheiro. seu entorno. Não raramente essa resposta só me
A música é usada para fazer operários de fá-
é dada posteriormente. É necessário que a pessoa
bricas produzirem mais engenhocas e as gali-
retorne para casa e passe então a perceber a sono-
nhas porem mais ovos. Já foi usada para curar,
hipnotizar, reduzir a dor e como auxiliar de ridade do seu lar. Essas informações me ajudam a
memorização. Dançamos ao som da música, construir o perfil sonoro/musical do paciente, que
compramos com música, limpamos a casa muito me ajuda no contexto do atendimento.
com música, fazemos ginástica com músi-
O “som que nos rodeia” está presente em
ca e amamos com música. E, vez por outra,
nossas vidas desde que nós nascemos, e até mes-
nos sentamos e ouvimos atentamente música.
Quanto mais somos cercados por música me- mo ainda na barriga de nossas mães. Em meu li-
nos dela participamos.” (JOURDAIN, 1988)¹ vro O Bebê e a Música, eu chamo atenção para o
detalhe de que se em uma creche se venha a tocar
A invisibilidade do som, consequente- campainha 20 vezes por dia. observaremos que
mente da música, favorece a nossa distração, di- por mês esta mesma campainha, que geralmente
gamos assim, da influência da música em nossas não tem um som muito agradável, tocou 400 ve-
vidas. Mesmo não percebendo, ela nos rodeia e zes. Por aí podemos observar, a falta de atenção
nos influencia mesmo que nossa atenção esteja em relação a influência do som no local de traba-
¹JOURDAIN, R. Música, cérebro e êxtase: como a música captura nossa imaginação. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.
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lho e de acolhimento das crianças. Neste contexto to está tão repleto de outros “sons” que a música
poderíamos pensar em outras fontes sonoras se que se quer tocar não consegue entrar. A música
manifestando diariamente: Campainha, rádio, te- precisa de um espaço silencioso para preencher.
levisão, liquidificador, choro, falas, gritos, risadas, Nos atendimentos que realizo, trabalho com algu-
telefone, descarga, água caindo, portas batendo, mas pessoas, crianças e adultos, que não falam, ou
ventiladores, ar refrigerado... Pense agora em to- que se expressam através de sons que só com o
das emitindo som ao mesmo tempo sem nenhum tempo podemos codificar. Me guio nos detalhes
cuidado, sem nenhuma atenção. As pessoas ten- das feições, dos gestos, de linguagens que criamos.
dem a se acomodar com a poluição, seja ela ar- Numa das minhas anotações há alguns anos atrás,
quitetônica, sonora, olfativa, enfim, simplesmente escrevi assim sobre minha ansiedade por respos-
vamos nos acostumando, nos adaptando. tas sonoras, depois de um atendimento com uma
senhora com Alzheimer:
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VIVÊNCIA 2:
MUSICOTERAPIA E
A MÚSICA CONTEMPORÂNEA
JOSÉ HENRIQUE NOGUEIRA
Musicoterapeuta e mestre em educação mu-
sical pelo Conservatório Brasileiro de Mú-
sica (CBM-CEU).
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E como a música contemporânea pode que por motivos diversos, seja por dificuldade fí-
contribuir com a musicoterapia? Quando a mú- sica ou psíquica, possam por meio dos sons pos-
sica contemporânea trouxe novas possibilidades síveis de serem produzidos, organizarem estru-
sonoras, um novo conceito para o que vem a ser turas que possam vir a ser chamadas de música.
música (mais amplo), uma nova escuta e novas Essas atividades trazem para muitos uma sensa-
possibilidades gráficas para a música, ampliou ção positiva, de bem estar, fazem com que consi-
de certa forma as possibilidades musicais para as gamos juntos organizar as possibilidades sonoras
atividades de musicoterapia. A música contem- que antes pareciam caóticas e sem organização.
porânea não é algo simples. Pelo contrário, as Essa, para mim, dentro do meu contexto musical
estruturas sonoras compostas para serem inter- terapêutico é a mais importante contribuição que
pretadas pelos músicos são extremamente com- a música contemporânea trouxe para a musicote-
plexas e necessitam de horas de estudo e de prá- rapia; a ampliação da estética musical.
tica. Porém, podemos oferecer aos pacientes de Importante ressaltar que a música tradi-
musicoterapia, alegrias musicais com as constru- cional continua viva e sendo utilizada na prática
ções sonoras, composições terapêuticas ou peda- da musicoterapia, suas estruturas continuam tra-
gógicas com a sonoridade que música contempo- zendo muito prazer para aqueles que conseguem
rânea trouxe para o cenário musical. Sigo sempre ingressar neste universo. É terapêutico poder vir
um princípio básico para fazer música com meus a tocar uma bela melodia num instrumento, um
pacientes, que não se modificou com o decorrer pandeiro, uma bateria. Inclusive a música tradi-
dos tempos: música é uma estrutura sonora or- cional pode vir a ser mesclada com a contempo-
ganizada, com início e fim bem determinados e rânea e vice versa.
com intenção musical. A musicoterapia, e consequentemente o musico-
A estética musical terapêutica ganha ou- terapeuta, devem estar preparados e abertos para
tra dimensão com o advento da música contem- receber, utilizar e organizar todas as possibilida-
porânea, fica mais generosa, favorecendo aqueles des sonoras: ruídos, grunhidos, estalidos, sussur
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ros, balbucios, gritos, silêncio, enfim; é possível Nossa cultura ocidental produz e conso-
fazer música com os mais diversos tipos de sons me ruídos sem perceber, sem escutar, os male-
na prática musicoterapêutica. fícios que estes causam ao bem estar. “É muito
mais provável que o esgoto sonoro seja resultado
2.2 PAISAGEM SONORA E MUSICOTERAPIA
de uma sociedade que trocou os ouvidos pelos
“Assim como as imagens e as cores vivas dos
olhos, e ainda vem acompanhado pela devoção
outdoors impedem que vejamos a paisagem,
roubam-na, invadem-na, apoderam-se, recal- pelas máquinas”. (Schafer, 2001)
cam-na, assassinam-na ... do mesmo modo A população urbana está sendo afetada
um ruído parasita impede que se fale e se pelo crescente volume de ruídos indesejáveis e
ouça a pessoa ao lado; ou seja, impede com maléficos a saúde. Até as noites, que deveriam ser
isso a comunicação. Coloquem no meio do
sagradamente silenciosas, estão perdendo esta
hall de um edifício uma televisão funcionan-
qualidade devido a invasão “humano/ruidosa”.
do o tempo todo: ninguém mais consegue o
menor diálogo, cada um olha, ouve a tela com Ou seja, a falta de atenção e desconhecimento
suas transmissões que se apropriam de todas em relação a qualidade dos ambientes sonoros,
as relações”. (SERRES, 2011)² trazem um problema que me parece ser de saúde
A cidade está imersa em ondas sonoras pública.
invisíveis, por isso perigosas, com decibéis altís- A preocupação com a qualidade sonora
simos criando um ambiente favorável aos mais do ambiente que está ao meu redor faz parte da
diversos tipos de distúrbios psíquicos. Muitas minha atenção em relação aos benefícios que a
pesquisas são feitas sobre a influência do ambien- música pode trazer ao ser humano, no caso re-
te sonoro nas reações psicossociais, e revelam da- fletindo sobre paisagem sonora, benefícios aos
dos consideráveis de pessoas (crianças, jovens e seres vivos, pois a perda e o silêncio da “orquestra
adultos), com irritabilidade, baixa capacidade de da natureza” em contrapartida com o incremento
concentração, insônia, dor de cabeça. dos ruídos “maquínicos”, produz um desequilí-
²SERRES, M. O mal limpo. Poluir para se apropriar? Trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
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brio emocional para todos os animais e vegetais. mais normal, pois não é hábito esta pergunta
O projetista acústico deveria ter um lugar fazer parte de uma entrevista terapêutica, nem
de destaque em todos os investimentos em pro- tampouco terem prestado atenção neste detalhe
jetos urbanísticos, implantação de fábricas, agro- a ponto de descreverem os sons que os rodeiam.
negócios, etc, para tentar harmonizar a cacofonia
2.3 RELATO DE CASO
que vem se alastrando, poluindo, criando uma
Já pude observar que o estresse e a ansiedade
paisagem sonora cada vez mais improvável de se
podem estar relacionados com o ambiente so-
viver.
noro. Certa vez um paciente entrou em contato
A musicoterapia traz, no meu ponto de
solicitando sessões da mesa lira e os tubos sono-
vista, duas vertentes de atuação mais claras. A
ros, instrumentos musicoterapêuticos que atuam
primeira é a conscientização do problema, ou
muito bem na terapia de transtornos psíquicos
seja, conhecer e perceber que o ambiente sonoro
tais como irritabilidade, insônia, e outros distúr-
que vive está lhe trazendo e/ou ampliando seus
bios da nossa vida atual. Com o passar das ses-
distúrbios emocionais. E num segundo momento
sões, sob minha orientação, ele começou a perce-
contribuir com suas técnicas sonoras/terapêuti-
ber que sua casa era completamente ruidosa, não
cas para que o paciente possa se harmonizar.
por causa da paisagem sonora externa e sim pelo
A terapia musical trabalha não só com
ruído de dentro da sua própria casa, sua família
música organizada, melodias, ritmos regulares
era grande e todos falavam muito e com muita
etc. É também objetivo da musicoterapia traba-
intensidade. Tal descoberta só foi possível quan-
lhar com ruídos, com todo tipo de som que é
do ele passou a conhecer se relacionar com o seu
emitido e que possa vir a fazer parte do contexto
silêncio. Enfim, foi um trabalho que ganhou des-
terapêutico. Costumo em minha clínica pergun-
dobramentos para além do meu estúdio de mu-
tar sobre o ambiente sonoro dos alunos e pacien-
sicoterapia, pois com o tempo e com meu apoio,
tes, não raramente não sabem dizer como é a
ele conseguiu melhorar a postura ruidosa de seus
paisagem sonora da sua casa, do entorno. Nada
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familiares a partir da sua própria mudança.
É fundamental que as pessoas percebam,
ouçam, se relacionem de forma reflexiva com a
poluição sonora, ela precisa ser entendida para
que possa ser valorizada, preservada ou modifi-
cada se for o caso. Quando localizamos as fontes
sonoras ao nosso redor, as tornando-as concre-
tas, parte de nossas vidas, como as cores, perfu-
mes e objetos, deixamos de estar ingênuos diante
da paisagem sonora que nos cerca e passamos a
ficar atentos a um perigo invisível ao nosso redor.
Como sempre, a humanidade continua e ago-
ra mais do que nunca precisando entender seus
enigmas, como no mito da Esfinge da Grécia an-
tiga que dizia aos que passavam: decifra-me ou te
devoro.
https://jhnogueira.blogspot.com/2016/02/o-ruido-
-em-belle-de-jour-trilha-sonora.html
http://biologo.com.br/bio/a-paisagem-sonora
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VIVÊNCIA 3:
MUSICOTERAPIA
AMBIENTAL
JOSÉ HENRIQUE NOGUEIRA
Musicoterapeuta e mestre em educação mu-
sical pelo Conservatório Brasileiro de Mú-
sica (CBM-CEU).
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possa ter lucidez em relação a estes sons. Pois só silêncio da madrugada, o som dos poucos car-
se afastando de seu estado de ingenuidade au- ros que passam, de alguns jovens chegando em
ditiva é que será possível perceber a paisagem risadas, cantos e gritos, e a companhia perpétua
sonora que está ao seu redor e fazê-la parte in- do ruído da geladeira; tudo isso somado àquele
tegrante de sua vida. É isso que tento mostrar zumbido agudo constante cerebral proveniente
neste texto que apresento a seguir. Eu trans- das sinapses que se fazem necessárias para esta
formei a paisagem sonora que percebi e regis- minha tentativa de eleger sons que me marcam,
trei e as lembranças sonoras em uma “crônica”. que me fazem lembrar de algo esquecido, de algo
Convido ao leitor a fazer o mesmo. que não sei explicar.
Bons sons!
O som dos sinos
3.2 QUAL SOM VOCÊ MAIS GOSTA? Os sinos badalam para todos, indiferen-
Não sei de qual som eu mais gosto. Como tes aos credos de cada um. Alcançam distâncias,
perfumes, alguns sons trazem sensações confor- levando em sua onda conteúdos informativos e
táveis e incômodas de vida, de passado e de lem- comunicativos, espirituais e estéticos.
branças. Memórias de algo que ficou esquecido Informativos, pois sempre há aqueles que se
lá, bem lá atrás, em algum ruído perdido no tem- guiam em suas tarefas pelos sinos das igrejas,
po. hora do almoço, de trabalhar ou de encerrar al-
Dentro dessas múltiplas e intensas pos- guma tarefa.
sibilidades sonoras, tentarei escolher apenas al- Espirituais pelo fato de que muitos fazem
guns, aqui, nesta noite agradável do bairro das o sinal da cruz, olham para o céu, rezam uma bre-
Laranjeiras, onde vivo e produzo música, sons, ve oração movidos pela emoção sonora dos sinos.
silêncios e ruídos há mais de vinte anos. E certamente há ainda os que se deleitam escu-
Enquanto me preparo para essa tarefa, tando as badaladas, como se estivessem numa
soa agora em meus ouvidos, neste improvável sala de concerto. Escutam como música, contam
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suas batidas, observam os timbres, as alturas, a pontual. Com hora certa para iniciar e acabar.
reverberação e acompanham a duração das bada- E, da mesma maneira que o som dos sinos, sus-
ladas até o último suspiro, o fio sonoro metálico cita também as mais diversas sensações. Medo,
que vai saindo de cena até o duvidoso silêncio. respeito, tranquilidade, paz, tensão são alguns
Engraçadas essas lembranças sonoras, sentimentos que brotam. O imaginário sono-
não fica claro para mim se elas se fixaram numa ro humano transporta o ouvinte para instâncias
escuta recente ou se já foram instaladas num me- desconhecidas da audição. Os sentimentos são
morial sonoro humano que vem transpassando geralmente explicados sem muita fundamenta-
por muitas gerações. Como é o caso dos sons cur- ção lógica.
tos, ligeiros, intermitentes, friccionados (por isso – Os sons da noite me dão medo, não sei por quê.
fantásticos) dos grilos, insetos, sapos e pererecas. Da mesma forma, mas por um outro ângulo, há
Poderia ainda somar a estes alguns outros também.
sons médios, mais longos, também intervalados, – Não consigo explicar, mas adoro ficar ouvindo
de alguns pássaros de hábitos noturnos que ha- este som.
bitam as florestas, ou, para nós, urbanos, que vi- Os sons relacionam-se com nossas emo-
vemos na cidade, os pequenos oásis verdes que ções há muito tempo, muito antes da elaboração,
ainda resistem perto de nossas janelas. Som das da construção, da invenção da maravilhosa músi-
folhas ao vento forte e na brisa leve. As gotas de ca.
chuva caindo ao acaso do tempo nas copas das Não posso terminar sem antes relatar que
árvores. Os gatos pisando sorrateiramente as fo- além desses dois sons, também elegi pra mim es-
lhas secas. Os gambás que de noite caçam e cor- tes outros:
rem feito loucos atrás não sei do quê. Os saguis
que resolvem apitar, e apitam alto de doer. som de bebê sorrindo
Enfim, sons noturnos, uma orquestra som de chuva no telhado
maravilhosa, rica em detalhes e, o mais incrível, som do mar
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Todos esses sons que escolhi foram lem-
branças, e também não saberia explicar a razão
de tê-los como prediletos. Sons que já estão em
mim possivelmente há muito tempo. A ideia de
uma onda contínua sonora em timbres diversos,
originária de fontes variadas acompanhando nos-
sa história desde o nascimento, rica em detalhes,
conteúdos, histórias, me agrada muito.
Escuto aqui e agora, pela minha janela, as
cigarras loucas cantando, anunciando para nós
uma nova manhã, um novo dia, provavelmente
quente. Os sabiás lideram, como de costume, en-
tre cambaxirras, bem-te-vis e outros, a algazarra
sonora matinal dos pássaros. As maritacas ainda
não vieram, os tucanos, pela hora, já deixaram a
entender que não virão.
Uma bicicleta passa veloz. Os carros e
ônibus ruidosos já, já começam seus ruídos. Por-
tas metálicas sobem. Sabiás, caga-sebos, bem-te-
-vis insistem. Um primeiro avião sola e, assim,
uma outra orquestra se anuncia.
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VIVÊNCIA 4:
MUSICOTERAPIA E
MEMÓRIA MUSICAL
JOSÉ HENRIQUE NOGUEIRA
Musicoterapeuta e mestre em educação mu-
sical pelo Conservatório Brasileiro de Mú-
sica (CBM-CEU).
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cífico com 2 ou 3 notas no máximo, como se fosse chamar o porteiro ou zelador quando a por-
uma marca sonora que anunciava a sua chegada. taria estava fechada e era comum todos olha-
Os meus tios, irmãos no meu pai, tam- rem de suas janelas para verem quem tocava.
bém cultivavam esse hábito. Assoviava-se na ja- A brincadeira sonora de tocar a campainha e
nela olhando os transeuntes passando pela rua, sair correndo, devo confessar era uma saudável
na mesa naquele momento de “tristeza” pós refei- estripulia que nos proporciona muita alegria.
ções, geralmente belas e breves melodias que tive O assobio tinha uma função de chama-
a sorte de conviver, ouvir, agora lembrar e escre- do, de aproximação e de comunicação. Cha-
ver, que é como se estivesse ouvindo novamente. mávamos também as meninas, assim como
Quando menino eu e meus amigos asso- nossas namoradas que apareciam na janela
viávamos com prazer, aparentemente por pura com vigor, com o sorriso estampado e ante-
brincadeira. Mas hoje penso que poderíamos es- cipado pois já sabiam quem iriam encontrar.
tar demarcando nosso território sem saber. Na rua Embora tivéssemos o assovio comum
onde morei assoviávamos para chamar os amigos do grupo, cada um também tinha seu tipo de
em suas casas, pelas ruas e calçadas. Tínhamos assobio. Era comum ficarmos procurando por
os assobios comuns ao nosso grupo, aconte- timbres diferentes a partir de técnicas diversas;
cia sem nenhum tipo de planejamento, quando com os dedos das mãos, comprimindo os lábios
víamos, ou melhor ouvíamos, o assobio, nos- e a língua, com a mão em forma de concha. En-
sa marca, patente sonora já havia sido definida. fim, sem nos darmos conta, além da alegria do
É importante lembrar que estou falan- momento, marcava-se o nosso território, pois
do de uma região onde os prédios eram baixos, certamente o som era ouvido ao longe. Mui-
quatro andares quase sempre e alguns como tas das vezes, algumas delas no silêncio da noi-
eu, moravam em casas que não havia inter- te, assobiávamos de casa, na janela, no portão e
fone para anunciar a chegada. Casas usavam outros assobios em respostas eram ouvidos. Al-
campainhas, prédios tinham campainhas para guns deles podíamos reconhecer como sendo
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de nossos amigos, outros não, pois havia aque- Fiz questão de ensinar as minhas duas
les assobios que vinham com o som bem fra- filhas a assoviar ainda pequenas. Assoviam até
quinho pois estavam bem distantes, de outras hoje. Conseguem elaborar pequenas melodias
ruas, outros meninos, outros territórios sonoros. e particularmente me sinto muito feliz e or-
Meus assobios são esses: o tradicional gulhoso por terem adquirido esta habilidade.
fazendo bico; com este consigo fazer melodias. Certamente o assobio ainda continua
Sei também utilizando quatro dedos, indicador sendo um hábito cultivado. Alguns povos ain-
e médio de cada mão. Eu consigo também as- da se comunicam através dele, algumas pessoas
soviar utilizando dois dedos um de cada mão: principalmente os que vivem fora dos centros
só dois indicadores, dois médio, até os min- urbanos, conseguem imitar os pássaros com
dinhos. Com os dois polegares não consigo. muita perfeição. Mas não resta dúvida que esta
Com muito orgulho assobio com a mão habilidade sonora vem perdendo seu prestígio.
em forma de concha. Com essa técnica con- Com isso, o som do assobio, deixa de fazer par-
sigo variar as alturas os sons, graves e agudos. te do território sonoro que ocupava. Da mesma
Conseguia, na época, com a mão em forma de maneira que o som do amolador de facas, as vo-
concha com os dedos cruzados, um som úni- zes dos ambulantes com os seus “pregões”, assim
co, com pouca alteração na altura do som. como tantos outros que vem sendo silenciados.
Cheguei a ver alguns assoviando com um O primitivismo sonoro presente no as-
dedo só, outros assoviando comprimindo os lá- sobio nos conecta aos nossos ancestrais, pos-
bios, alguns com a língua pra fora enrolada. Certa- sivelmente os pássaros nos inspiraram, ou sim-
mente existem muitas outras técnicas de assobios. plesmente o acaso de um sopro proporcionou
Ao longo desses anos trabalhando em ins- uma sonoridade que instigou a curiosidade
tituições de ensino pouco ouvi as crianças brincan- humana e fez surgir esta maravilhosa e pou-
do de assoviar, fora alguns momentos das minhas co explorada habilidade sonora; o assobio.
aulas de música que estimulava esta prática sonora. Você sabe assobiar?
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Arte na capa
Val Schneider (artista)
Sobre o trabalho
O título 27°28’45.0”S 51°56’55.8”W refere-se ao lugar nas
margens do Rio Uruguai, no norte do Rio Grande do Sul,
onde vivi na infância (as coordenadas podem ser visitadas
no Google Earth). Neste trabalho busco um “lugar-imagem
da memória” das cheias, das pedras, das brincadeiras, dos
verões e das enchentes daquela época em que o Rio corria
seu curso natural. Atualmente o local está submerso por
conta da Barragem de Itá-SC. As pinturas são mergulhadas
no recipiente com água e resíduos de terra do Rio. São retra-
FOTOGRAFIA DE DETALHE
tos dos participantes e referências pessoais pintadas a óleo
sobre fórmica.O trabalho foi realizado durante o projeto co-
letivo “O lugar do Outro Lugar” e a exposição realizada em
2016 no Espaço Cultural Elefante em Brasília.
Vamos tornar os dias mais saudáveis e musicais? O livro é
um convite à escuta ativa para saúde integral, a partir de
vivências sonoras do cotidiano. Participe das vivências, a
musicoterapia é para todos!