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ÉDIPO AFRICANO
Tradução de Claudia Berliner
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i f *. © Otdip* qfricain by L’Hannattan, 1984
© by Editor* Escuta, da edição em língua portuguesa
Ortigues, Marie-Cécile.
Édipo africano / Marie-Cécile & Edmond Ortigues; tradução de
Claudia Berliner. — São Paulo: Editora Escuta,
1989.
Bibliografia.
I S B N -85-7137-013-3
CDD-616.8917096
-154.24
-301.09663
89-0156 NLM-WM 460
1
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................. 11
Capítulo I - QUESTÕES METODOLÓGICAS............ 19
1. A população de consultantes....................... 26
2. A entrevista com os p a is .............................. 28
3. A entrevista com a c ria n ça.......................... 53
Capítulo H - DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES
DAS POSIÇÕES ED ÍPIC A S............................ 65
1. O falo co letiv o .............................................. 66
2. O ancestral inigualável................................. 73
3. O drama de superar “os irmãos” ................. 86
Capítulo m - A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LU
GAR DO P A I....................................................... 123
1. Os ritos de possessão ................................... 124
2. A psicoterapia de uma criança s e re r............ 142
3. Entrevistas com um p sicó tico ....................... 169
Capítulo IV - AS INTERPRETAÇÕES PERSECU-
TÓRIAS ......... .......................... . . . . . v . ------ 195
1. A bruxaria ....................... „............................ 200
2. A m arabutagem ............................................ 221
3. C o n clu são ........................................... 234
Clpftulo V - AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA
ANÁLISE DOS D ELÍR IO S............................ 241
1. O surto delirante em psiquiatria africana . . 243
2. Dois casos clínicos: tentativa de um método
de an álise............................................................ 247
Capítulo VI - A INDIVIDUALIDADE HUM ANA___ 273
Fevereiro de 1984
INTRODUÇÃO*
* Texto de 1984.
1. É grande a nossa dívida para com o professor H. Collomb que ofereceu
generosamente seus serviços a M.-C. Ortigues. Agradecemos também os psi
quiatras do Centro hospitalar de Fann, e especialmente os Drs. H. Ayats, Moussa
Diop, P. Martine com quem uma amigável colaboração sempre nos foi útil. Ao
Dr. Moussa Diop devemos, além disto, inúmeras informações sobre os dados
culturais senegaleses. Agradecemos profundamente os psicólogos A. Leval-
lois-Colot, J. Rabain, N. Le Guérinel, E. Pierre, M .-T. Montagnier, A. Zemple-
ni que colaboraram com nossas pesquisas.
13 ÉDIPO AFRICANO
and Social Psychiatry and lhe Problems o f Mental Health in África, Vancouver,
1964.
M.-C. Ortigues e H. Collomb, “ Psychologie clinique en milieu africain” ,
BuOetins et mémoires de Ia Faculté rrixte de m ídècine et de pharm ade, DAKAR,
XI, 1963, pp. 175-178.
M.-C. Ortigues e P. Martino, “ Psychologie clinique et psychiatrie en mi
lieu africain” , Psychopathologie africaine, 1 ,1965, pp. 240-250.
4. Para situar o marco de nossa pesquisa, digamos algumas palavras sobre a
clinica neuro-psiquiátrica do Centro hospitalar de Fann. Situa-se no centro da ci
dade, num bairro de Dakar em recente expansão. Único serviço de psiquiatria
existente na África Ocidental, tem uma capacidade de 140 leitos (somente para a
psiquiatria) e recebe principalmente grandes doentes mentais. Por falta de lugar,
no entanto, muitos doentes psicóticos são tratados externamente. O número de
consultas mensais em psiquiatria 6 da ordem de 1.000. Não existe no Senegal
condutas de internamento, trata-se, portanto, de um serviço aberto. A atmosfera
acolhedora, calorosa, inclusive familiar que nele reina, surpreende todos os visi
tantes.
22 ÉDIPO AFRICANO
A s dificuldades da língua
Quando ele fica grande, dois anos, trés anos, é um menino, é pre
ciso que vá para longe de mim para saber bem o que se faz. Se ele fi
ca, diz para si mesmo: “Meu pai, minha mãe estão aí”* diz tudo o que
quer e o tem; não trabalha, vai para a escola mas não aprende suas li
ções.
As referências sócio-culturais
O fato de perguntar
As descrições de comportamento.
A identificação inter-cultural
A anamnese
48 ÉDIPO AFRICANO
dia seguinte quando ele passa para ter notícias. Frente à minha per
gunta, a mãe esclarece que não disse nada quando o padrinho veio pe
gar Mamadou, que ela “não pensou em nada de mau” .
Permanece, portanto, dos seis aos nove anos com seu padrinho. É
ele que o faz entrar na escola. Moram sucessivamente em Pikine e na
Grande Dakar. Durante toda esta época, a mãe não o vê pois “ se você
vai ver a criança, o sobrinho (padrinho) pensa que você não confia e
está vigiando” .
Nesse entretempo, quando Mamadou tem sete anos, a mãe se di
vorcia oficialmente do pai. Mamadou tem então dois irmãos e uma ir
mã consangüíheos. O padrinho parte para a Monrovia quando Mama
dou tem por volta de nove anos. A criança fica com a mulher do pa
i drinho. Torna-se malcomportado e foge algumas vezes durante dois
ou três dias no decorrer de. alguns meses. A mulher previne então o
pai, que decide retomá-lo. Ele tem nove anos. Neste ano repete de
ano. As fugas continuam durante algum tempo e depois desaparecem.
Na casa do pai moram agora sua primeira mulher com seus qua
tro filhos e os outros filhos da mãe de Mamadou que estão confiados à
primeira mulher. Sua mãe não o vê: “Pois se você vai lá pode chegar
num dia em que estão tratando mal teu filho e você não pode fazer
nada, ou acham que você está viciando” . É somente desde que Mama
dou está “no colégio” (no 69) que e k vem ver sua mãe todas as quintas
e sábados à tarde. Neste momento, a criança não se entende com sua
madrasta que o acusa de desprezá-la, “ela me acha burro, ela não me
considera como um de seus filhos” . [Observação J. Rabain]
.Ji|
50 ÉDIPO AFRICANO
falecimentos, percebemos que o esforço que fazem para nos
responder falsifica as respostas; o que nos é dito não corres
ponde mais ao que os consultantes vivem; pesquisam e nos
respondem para nos agradar e por deferência, no limite eles
arrumariam as coisas, suas lembranças, para satisfazer nossa
idéia de ordená-las numa sucessão. É relativamente fácil in
duzir reconstruções, vale mais a pena registrar os brancos, os
grandes e confusos brancos que permanecem. É menos im
portante registrar informações objetivas do que discernir os
traços significativos através dos quais cada um se situa na vi
são que tem da família ou dos acontecimentos.
Idem, 2- entrevista
Gritou de noite durante sua crise. Parecia querer brigar. Sua mãe
não é boa, a pus para fora no mês passado durante mais ou menos um
mês, mais ou menos duas vezes. Durante a crise, a mãe já tinha volta
do. Ele está doente desde que deixou a escola. Vai ao hospital de tem
pos em tempos; em 1960 com a avó materna. Antes de sua mãe partir,
já estava doente; desde então, está sempre doente, é por isto que ele
não faz nada; desde que parou de mamar as coisas não andam bem.
Os intérpretes
Yaye que tem dez anos parecer ter oito. É o segundo ano que vai
para a escola, compreende e fala mal o francês. Sua mãe vem consul
tar porque os resultados escolares de sua filha são irregulares, porque
é sonhadora e chora freqüentemente.
Yaye entra sem me olhar, senta-se muito reta, com os olhos bai
xos, aspecto preocupado e submisso. Digo-lhe algumas palavras, ela
me dá umas olhadas furtivas, às vezes com um esboço de sorriso.
Aceita desenhar. Quando lhe peço que conte sobre seu desenho, enu
mera: a casa, a escola, a árvore, o pote de flores, o peixe.
Também aceita se submeter a alguns testes de nível, mas fica
dura, contraída, sem recusar a cooperação. Faz tudo o que pode para
me satisfazer e duas ou três vezes sinto, sob seu silêncio, o medo de
responder maL Incito-a a falar wolof e há um relaxamento. Recorro
então à intérprete. Yaye parece evidentemente aliviada ao vê-la che
gar. A intérprete senta-se ao seu lado, acaricia seus braços, as costas,
pega sua mão. Explicando para a intérprete os limites de suas inter
60 ÉDIPO AFRICANO
venções, pergunto a Yaye se sonha de vez em quando. Inclina-se ime
diatamente para a intérprete e murmura algumas palavras, que esta
não traduz, e a entrevista continua em wolof. Intervenho para saber o
que é dito. A intérprete me responde espantada: “Eu disse exatamente
o que você me disse, a mesma coisa, mas Yaye não quer responder,
‘ela tem vergonha’ de contar sobre o que sonha e eu explico para ela
que não precisa ter vergonha com você, que está aqui para dizer tu
do.” Na verdade, julgando minha pergunta breve demais, a intérprete
a havia comentado, explicado. As reticências que Yaye expressava
pareciam não ter interesse, não precisavam ser traduzidas. Passava-
lhe um sermão para que desse uma boa resposta, sendo o importante
para ela a informação a ser obtida e não todas estas “pequenas histó
rias de criança”. Retomando então a iniciativa, tranqüilizo Yaye, e
esta, abaixando a cabeça, com uma voz quase inaudível, a boca gruda
da no ouvido da intérprete, lhe conta, por fim, seu sonho - a morte de
sua irmã menor - ele me é traduzido mas não posso impedir a intér
prete de fazer comentários para a criança: “ Ah! este drama todo por
isto, mas isto não é nada, não é nada!” Diz isso, aliás, muito gentil
mente consolando Yaye que começou a chorar e que ela conforta
apertando-a contra si.
Antes de ir embora, Yaye aceita fazer um desenho; a intérprete
sai Quando o desenho termina, Yaye o comenta dizendo em francês
que não queria nunca sair de perto de sua mãe, que não gosta de dei
xá-la para ir à escola.
Na entrevista seguinte, também começada sem intérprete, Yaye,
mais confiante do que a primeira vez, consegue se expressar em fran
cês através de frases curtas sobre o desenho que fez ao chegar. Mas
esta expressão não é espontânea, é sempre a resposta às minhas per
guntas; por exemplo: "Quem está na escola? - Fatou. - E sua mãe? -
A mãe de Fatou está em casa.”
Depois de um teste de nível, recorro novamente à intérprete. Es
ta, ao chegar, cumprimenta a menina que lhe responde longamente se
gundo o costume e, sem que eu entenda exatamente o que é dito, sinto
imediatamente que Yaye tem coisas para dizer e que a intérprete as
toma para si. Sinto-me absolutamente excluída e, antes mesmo de ter
tempo de intervir, a intérprete pega Y aye por um braço e a leva para
O corredor. Frente aos meus protestos surpresos, a intérprete me res
ponde peremptoriamente: “Deixa, ela quer me dizer umas coisas.”
Alguns segundos depois de fato retornam, a intérprete rindo e
comentando: “Oh! não é grave, não tem por que fazer um drama por
Istol" Conta-me então o sonho de Yaye: “ Sonhou que sua casa quei
QUESTÕES METODOLÓGICAS 61
mava!” Digo, então, muito incisivamente à intérprete que ela não deve
me substituir mas apenas traduzir da melhor maneira possível. Res
ponde-me cheia de boa fé: “Ela não queria falar na sua frente, então a
levei para fora.”
Recomeça a entrevista e a partir deste momento o que é dito em
wolof me é traduzido, a intérprete continua sentada perto de Yaye;
várias vezes pega sua mão ou o braço e quando percebe que Yaye não
consegue se expressar, cola seu ouvido à boca da criança. Yaye conta,
assim, que sonha com pessoas que vêm matá-la com facas e acaba di
zendo que na escola “um garotinho quer fazer amor com ela” . Tem
muito medo. Toda esta segunda parte da entrevista se dá sem a inter
venção da intérprete.
Na terceira entrevista, decido descartar a intérprete. Yaye faz um
desenho que não consegue acabar de colorir. Sinto-a muito ansiosa.
Falo com ela: alguns comentários sobre as fantasias trazidas na entre
vista precedente, visando desculpabilizá-la. Seu rosto baixo no come
ço se ergue, olha-me diretamente e sorri diversas vezes. Depois, ten
tando fazê-la associar sobre seu desenho, faço-lhe uma pergunta, re
trai-se imediatamente, abaixa novamente a cabeça, sinto que ela não
pode falar; a mesa entre nós é uma distância intransponível; propo
nho-lhe então sentar-me perto dela, no lugar que a intérprete ocupa
va. Sem nem mesmo esperar que eu me levante, sai de sua cadeira e
vem se enroscar em mim. Retomando então os gestos que vira a intér
prete fazer, tomo sua mão, o braço e lhe digo, por fim: “ Você quer fa
lar no meu ouvido?”
E é assim que, num murmúrio, conta-me de seu medo das facas
que enchem sua barriga para matá-la, seu medo da morte de seu pai,
seu medo de diabos assassinos que querem devorá-la. Yaye, sem
chorar uma única vez, falará durante uns vinte minutos, com longos
intervalos de silêncio. Parece que o contato físico comigo lhe permitiu
ligar minha imagem com a de uma mãe africana por intermédio de sua
experiência com a intérprete.
No fim da entrevista, começou a modelar e foi sorridente que
veio me trazer suas obras. [Observação A. Colot]
*
* *
Mostramos como uipa série de entrevistas - que pode se
estender por dois meses ou mais - era necessária para reco
lher os materiais do diagnóstico. Durante este tempo desen
62 ÉDIPO AFRICANO
1. O FALO COLETIVO
2. O ANCESTRAL INIGUALÁVEL
5. Observação J. Rabain.
74 ÉDIPO AFRICANO
O pai é comerciante, proveniente de uma família de ma-
rabutos, autoridade na sua aldeia. Tem cinco mulheres e vinte
filhos. Alioune é o segundo dos sete filhos de sua mãe.
A mãe é a segunda mulher, a preferida do pai. “É a mão
direita do pai” , diz um filho mais velho. Alioune também é o
filho preferido.
Os filhos da primeira mulher continuam seus estudos se
cundários e superiores, enquanto que Alioune e seus irmãos
são “moles” , menos bem dotados, com exceção de um menor
de 13 anos.
Sobre a primeira infância de Alioune sabemos que “não
se mexia, não reclamava” . Só andou com 2 anos.
Dos 7 aos 8 anos, Alioune foi confiado a um marabuto de
uma aldeia vizinha. Este ano de escola religiosa foi marcado
por uma série de experiências que apresenta como traumati-
zantes para ele e que evoca com angústia: ficou sozinho per
dido na floresta durante a noite, foi freqüentemente espanca
do e às vezes chicoteado pelo marabuto e, por fim, o mara
buto tirou dele presentes que sua mãe lhe havia trazido.
É na volta para sua família que a enurese foi constatada
pelos pais.
No exame, Alioune mostra-se muito ansioso e muitas vezes
prestes a chorar. Seu nível intelectual é médio, baixo demais
para que possa ter sucesso nos estudos secundários mas, assim
como sua família, não aceita renunciar a eles. Tem uma rivali
dade, pessoal poder-se-ia dizer, com um irmão mais velho de
mesmo pai, que tem muito sucesso. Através do seu problema
escolar expressa-se também a rivalidade das mulheres: a mãe
de Alioune inveja sua “rival” cujos filhos são mais dotados do
que os seus e esta sabe que o sucesso de seus filhos os designa
como objetos de eventuais marabutagens. Constata-se também
que a imagem traumatizante do marabuto está, em Alioune,
deslocada para a do professor. Este deslocamento sugere que o
sucesso escolar de Alioune que valorizaria sua mãe como mãe
e como esposa é, ao mesmo tempo, exigido e interdito sadica-
mente pela imagem composta de professor-marabuto.
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 75
Alioune, durante cinco entrevistas, fala de uma série de
fantasias:
- Situa-se primeiro como irmão maior que ataca seú ir
mão menor, bate nele, embora isto seja uma conduta conde
nável.
- Depois, o ônibus em que se encontra com seus irmãos
sofre um acidente, um irmão se machuca, o motorista é con
denado.
- Caça o leão, vence-o; mas “o pai de uma criança” ti
nha sido ferido por este leão, ele leva o pai ao filho desolado.
Digamos que, da caça ao leão, voltam um pai ferido, um fi
lho vencedor e um filho desolado. Esta fantasia constitui a
fronteira da afirmação fálica expressável. A angústia a ela li
gada leva a um movimento de retração e a uma fantasia de
submissão à sociedade dos homens.
- Por fim, uma terceira fantasia justifica esta posição
mostrando o perigo que se cone por bater e vencer um irmão
menos forte: a mãe e o diretor da escola te mandam para a
polícia onde se é castigado.
Acrescentemos que, assim como os temas, a feitura dos
relatos não indica uma personalidade neurótica, mas sim uma
procura trabalhosa e inquieta que subtende uma situação ob
jetivamente difícil. A ansiedade está bastante bem controlada.
Cada um dos relatos carregado de forte tensão é precedido
por um outro em que aparece o mesmo personagem ou a
mesma situação, mas de maneira mais neutra.
Queremos retomar agora a fantasia que expressa o equilí
brio atualmente encontrado pela criança, a submissão ao pai e
à sociedade dos homens:
76 ÉDIPO AFRICANO
Um dia uma criança que não conseguia subir, tenta subir. Ao su
bir, senta-se num pequeno galho, o galho quebra e a criança cai com a
perna quebrada.
Todas as crianças que estavam lá em cima descem rápido e vão
chamar seu pai e o seguem. Põem-na num carro e a levam até um ho
mem que trata fraturas de perna. Tendo chegado, deitam-na e a se
guram firmemente. É o pai que segura suas pemas. O homem que
trata prepara suas coisas. Puxa sua perna e diz ao pai que o tornozelo
destroncou. Fica lá durante alguns dias e mal consegue andar. Quando
está curada, volta para a aldeia onde todos estavam muito inquietos e
proíbem as crianças de subir na mangueira e dizem que se vocês que
rem pegar mangas, peguem um pau e cortem mas não devem subir.”
“E sua mãe todas as noites sonha: todos seus sonhos são o pai e o
filho. Fala de seus sonhos ao marabuto. O marabuto lhe diz para não
f a l a r muito alto na rua porque há homens que falam a sua voz quando
você falou. Se se fala sua voz e você responde a voz, você vai sofrer
algum dano. E o marabuto dá uma grande casa para a mulher e seu
filho, e a mulher não sonha mais.”
E a criança expüca: “Porque lá onde ela estava não era bom; há
árvores demais. Se você fala lá, às vezes as sombras das árvores não
táo boas: há monstros; é por isto que vão te causar dano. As vezes, se
você sai de noite, você cai sozinho, é por causa dos monstros. As ve
n s , a tua boca ainda não pode falar. Você não pode falar o que quer
falar. Nfio falar não é bom. Você precisa falar. Se te dizem algo, você
nlo escuta, fica surdo.”
E frente à pergunta de quando acontece de não poder falar, ele
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 79
responde: “Quando você fala alto demais na rua com seus colegas;
também acontece às 7 horas se você sai de noite sob as sombras. Às 7
horas proíbe-se inclusive as crianças de passarem a noite sob as ár
vores.”
Associações:
90 ÉDIPO AFRICANO
no entanto, no ano passado no exame por causa de um erro
grosseiro na sua melhor matéria. Já que sua família não pos
sui os meios, não continuará até o “baccalauréat” como de
sejaria. É o único da família que cursou estudos secundários.
Seu pai é um agricultor aposentado, muçulmano fervoro
so, seu füho diz que ele é marabuto: ensina o Alcorão para as
crianças e cuida de alguns doentes. Tem três mulheres. A mãe
de Momar é a terceira, tendo se casado uma primeira vez com
um irmão menor de seu atual marido e tendo sido herdada
quando de sua morte.
Dezessete pessoas vivem numa grande posse. Parece rei
nar a concórdia; as saúdes são boas. Momar está “de acordo
com todo mundo” . É estimado pela sua seriedade. Sempre
K saudável, é esportista (peso e salto). Dispõe de um quarto “de
estudante” na casa de sua mãe, onde recebe seus inúmeros
amigos. Durante a invemada, vai cultivar amendoim e man
dioca, e diz fazê-lo com prazer, atividade e gosto, raríssimos
para um estudante.
Trata-se, portanto, de dificuldades surgidas recentemente
num sujeito até então particularmente bem adaptado e satis
feito com seu destino.
Momar é encaminhado pelo atendimento escolar ao setor
de neurologia. A sintomatologia vertiginosa cede rapidamente
com um tratamento, mas outros sintomas, bastante discretos
até então, acentuam-se: cefaléias e impressão de não conse
guir mais entender o que lê ou o que o professor explica.
Sente-se muito incomodado no seu estudo: “ Em alguns mo
mentos perturbo-me muito, não entendo fiada, e então quero
ficar sozinho.”
E então que uma psicoterapia é proposta a Momar sob
forma de entrevistas semanais. Percebe rapidamente que seus
males não se devem ao ofuscamento pelo sol ou à fadiga, mas
à própria apreensão em que se encontra e a contradições nos
seus pensamentos ou sentimentos, e esforça-se por esclare
cê-los.
Nunca se perturba quando está sozinho, mas se alguém o
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 91
* *
Através dos casos de Fari, Momar e Daniel assim como
através do conjunto do material de que dispomos, parece-nos
que a rivalidade edípica se dá por vias sensivelmente diferentes
das que são habituais na Europa.
A rivalidade parece, inicialmente, estar sistematicamente
deslocada para os “irmãos” que polarizam as pulsões agres
sivas.
Nas fantasias, a rivalidade edípica pode ser formulada na
relação com o pai - com uma imagem de pai mais òu menos
reabsorvida na da autoridade coletiva - mas tudo ocorre como
se o confronto direto com a imagem do pai fosse impossível ou
sem saída e tivesse que ser deslocado para outras imagens para
que tenha uma saída viável, ou seja, uma saída que permita ao
sujeito assumir um lugar de homem na sociedade. O desloca
mento se dá primeiro do pai para os “tios” , o que aparecería
como: os pais das crianças que tiveram menos êxito do que eu
me querem mal. Depois dos “tios” para os “irmãos” : meus ir
mãos me querem mal, me marabutam, tentam me eliminar.
Tanto em Fari, Momar, quanto em Daniel, o deslocamento da
rivalidade para os “irmãos” é tão evidente que nem são preci
sos comentários para percebê-lo. Consideramos tratar-se aqui
de um esquema geral, complementar ao do Ancestral inigualá
vel: na medida em que a imagem paterna é inacessível à rivali
dade, os “irmãos” constituir-se-ão como rivais.
A agressividade expressa-se principalmente sob a form a
de reações persecutórias. A culpa é pouco interiorizada ou
constituída enquanto tal.
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 99
O anseio de superar um “irmão” , um colega, raramentelse
expressa diretamente. Tais anseios são projetadoá e invertidos
em reações persecutórias cujas formas tradicionais descrevere
mos no capítulo V. A dificuldade ou a impossibilidade de as
sumir como pessoais as pulsões agressivas aparece como uma
característica geral. O mecanismo da projeção é privilegiado
pela cultura como meio de formular o problema do mal. O
conjunto das relações interpessoais está fortemente marcado
pelo fato de cada um se perceber facilmente como perseguido.
Poder-se-ia dizer que uma parte da energia que, num outro
contexto, seria utilizada para se afirmar através da ação, é con
sumida aqui para se defender. Em qualquer circunstância, con
vém se proteger das intenções ameaçadoras. As somas conside
ráveis gastas com os marabutos ou na compra de vários amu
letos pelos mais pobres, a constante preocupação dos pais -
principalmente das mulheres - que, durante toda a vida, tentam
achar quem agiu, quem prejudicou, quando e como, compro
vam isto. Para ter êxito na escola, um bom amuleto é mais im
portante do que uma inteligência viva. Mais da metade das
famílias que vieram consultar por fracasso escolar incriminam
marabutagens13; e aqueles que consultam por causa de uma
“doença” (enurese, ansiedade, fugas...) ffeqüentemente vin
culam o desencadeamento das perturbações a uma marabuta-
gem suscitada pelos ciúmes dos colegas de escola. “Esta doen
ça é para estragar meus estudos...” , “Ele não quer que seus
filhos sejam menos do que eu, então fez um trabalho...” Não
são necessários êxitos marcantes ou uma rivalidade específica
entre dois alunos para que esta interpretação se manifeste, ela
está sempre presente ou latente; poder-se-ia dizer que faz parte
da situação escolar e faz uso de qualquer elemento, por menor
que seja, para se atualizar ou se desenvolver: um olhar mais
intenso, uma palavra menos cordial do que de costume, um do
14. A expressão “ ter vergonha” que equivale a “ saber se colocar no seu lu
gar” , comporta também a idéia de não trazer à tona uma tensão, de não pôr o ou
tro numa situação embaraçosa de confronto. Assim, Afssatou (p. 55), por respei
to, evita colocar seu tutor na situação dé ter que lhe recusar algo; não pedindo, ela
evita o desagrado, o mal-estar que o tutor sentiría ao lhe recusar uma permissão.
Submete-se assim a uma das regras fundamentais da arte de viver. Como ela, 08
doentes no hospital têm vergonha de pedir ao médico uma saída ou permissão.
102 ÉDIPO AFRICANO
eles, estar “bem” (feliz, dinâmico) é fazer parte de um grupo,
de uma multidão. Muitas vezes pouco importa se se trata de
uma reunião esportiva, dançante, de conversas intermináveis
(“passar a noite em claro” )... A presença dos outros 6 tran-
qüilizadora, necessária, ela repele ou permite deixar de lado
as fantasias agressivas latentes.
Ligada às modalidades e condições da aculturação, pode-
se encontrar numa mesma família senegalesa urbanizada, uma
defasagem considerável entre a capacidade de interiorização
de uma criança e dos seus pais. Dentro da perspectiva de uma
psicoterapia este dado inicial se reveste de uma importância
primordial. Daremos o exemplo de Samba, garoto de catorze
anos, hospitalizado há um ano por causa de severas perturba
ções. Os pais tinham esgotado seus recursos com muitos ma-
rabutos; tinham inclusive dado uma parte de suas roupas. O
estado da criança era alarmante, estavam muito motivados a
confiá-lo a nós. Este tratamento, atualmente em curso, é, en
tre os que realizamos, aquele que mais se aproxima de uma
psicanálise clássica. Tivemos numerosos encontros, embora
não regulares, com Samba. Pede um tratamento, tanto ou mais
(mais lucidamente) do que seus pais. Somente a gravidade do
caso, as decepções sofridas depois dos tratamentos tradicio
nais, podem explicar a continuidade da psicoterapia. Com
efeito, podemos prever, na medida em que se cure, que Sam
ba, depois do tratamento, terá resolvido suas tensões intema-
lizando-as e, com isto, tomar-se-á radicalmente diferente de
sua família.
CASO 80: Samba C., 14 anos, woloflmouro, muçulmano |
As perturbações de Samba começaram no dia em que,
passando sob um grande baobá ao voltar da escola, escutou
uma voz que o chamou três vezes pelo seu nome de família.
Felizmente, não respondeu pois “quando se responde é ruim,
fica-se louco, ou sujo e só no mato” (como um homem que
Samba viu outrora); tampouco olhou para trás. Teve muito
medo e voltou para casa correndo, deitou-se tremendo e vo
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 103
mitou a noite toda. Desde este dia e durante meses, Samba
mantém seus olhos fechados como se temesse uma visão ater-
rorizante: “como crianças, algo grande, um diabo” . Sofre de
cefaléias intensas, recusa alimentos e de forma nenhuma leva
ele mesmo aos lábios o pouco de comida ou de bebida que
absorve. Fica inerte, prostrado, com as costas encurvadas,
gemendo. Seus gemidos podem, durante horas, se amplifica
rem em longas queixas monótonas. As poucas palavras que se
consegue arrancar dele são murmuradas, quase inaudíveis e
acompanhadas de um movimento de negação da cabeça.
Como este quadro persiste durante vários meses, segundo
os pais, Samba é levado ao atendimento de neurologia e hos
pitalizado. Todos os exames feitos são negativos. Com seu
estado inalterado três semanas depois, Samba sai em função
de sua insistente demanda, depois de cotidianas tentativas de
fuga. Pouco depois é hospitalizado na psiquiatria. No período
de um ano será hospitalizado três vezes e acompanhado no
entretempo extemamente. Em cada hospitalização é feita uma
série, de eletro-choques, paralelamente à psicoterapia. Tam
bém segue um tratamento com neurolépticos.
No caso de Samba, é legítimo falar de psicoterapia psica-
nalftica no sentido mais clássico do termo. A demanda da
criança é clara: vem “falar para ser curado” . Uma relação
transferenciai rica estabelece-se rapidamente. Nesta data o
tratamento já dura um ano e comportou 51 sessões. Samba
é inteligente e tenta verbalizar tudo o que vive.
Depois de um primeiro período de dois meses (9 sessões)
durante o qual Samba não pôde ultrapassar a evocação das
visões ou alucinações que espreitam suas noites (crianças ou
uma cobra ou um homem negro muito, muito grande, vêm
meter medo nele, como um diabo), diz sobre o homem negro:
“ Metia medo. Mostrou-me a felicidade” . Durante os dias que
se seguem, Samba fica imerso em alucinações visuais e audi
tivas que o põem em pânico: serpentes estão dentro do seu
corpo, sobre seu corpo, vão mordê-lo, bebem seu sangue, vai
morrer em seguida.
104 ÉDIPO AFRICANO
No entanto, a partir desta equação medo-felicidade, para
ele misteriosa, Samba produzirá progressivamente um mate
rial associativo muito rico e coerente. Compreende-se que a
voz do baobá, a voz do diabo é a de um colega, mais velho,
Malik, que encarna aos olhos de Samba ao mesmo tempo to
das as virtudes viris de audácia, de foiça física, de coragem, e
todas as tentações, as que podem levar à loucura, ou seja, a
uma des-socialização. Malik, com efeito, incitava os mais jo
vens, entre eles Samba há alguns anos, a desobedecerem, a
enganarem os pais, a serem insolentes, a passearem na noite
povoada de diabos (as crianças são proibidas de sair à noite),
a ir para o mato em lugares considerados perigosos por serem
residência de espíritos muito malfeitores, a serem grosseiros
com as moças etc. Acrescentemos que a leadership (lideran
ça) inconteste deste rapaz era exercida numa tonalidade sádi
ca acentuada. Acrescentemos também, e é este para Samba o
principal elemento fascinante, que ninguém - nem pai, nem
mãe, nem professor, nem amigos, nem parentes - conseguiu
dominar ou fazer ceder Malik.
O problema de Samba é claramente exposto e ligado a
uma grande quantidade de experiências antigas e recentes,
muitas vezes revividas intensamente durante o relato que faz
delas. Está aterrorizado com seu desejo de se parecer com
Malik, de ser um Malik. A tentação é projetada: é o “diabo” .
Militar pacífico e limitado, o pai de Samba também fica de
sarmado frente ao diabo; inquieta-se pelo seu filho, leva-o
aos marabutos, reza e constata aterrado: “O diabo veio no
vamente ontem à noite.” É claro que muitos marabutos con
firmaram tratar-se de um saytané querendo prejudicar a crian
ça. Para o pai e a mãe de Samba, para todo o grupo, a exis
tência dos djiné e saytané é uma evidência cotidiana desde
a infância; cada um tem uma ou várias experiências a este
respeito.
Eis a questão que queremos levantar aqui a propósito do
caso de Samba, questão que surge do próprio andamento da
psicoterapia: será possível que no contexto familiar e social
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 105
que lhe é próprio, Samba consiga internalizar o conflito que
expressa claramente e cujas implicações explicita? Será pen-
sável que chegue a internalizar sua culpa?
Em várias ocasiões, Samba chegou ao limiar de uma in-
temalização. Percebeu que o diabo “era como Malik” , que
lhe dizia as mesmas coisas com a mesma voz, que queria lhe
fazer mal como Malik. Percebeu que admirava Malik e que
este era um vadio ignorante; que se sentira ao mesmo tempo
orgulhoso e temeroso de segui-lo no mato e na montanha da
Mauritânia, que teria esperado que seu pai percebesse mais
vezes suas escapadas e as impedisse etc. Nas suas fantasias, o
personagem do diabo, inicialmente monolítico, aterrorizante e
fascinante, desdobrou-se progressivamente e depois se cindiu
num grupo de 3 ou 4 pessoas, o que permitia a Samba um jo
go cada vez mais flexível onde se projetava ém diversas posi
ções com respeito ao seu desejo e à sua ansiedade. Ao mesmo
tempo, tornava-se cada vez mais evidente para ele que “a
idéia do diabo é como a idéia de Malik” . Esta evolução fez-
se por si só, com um mínimo de intervenções relacionadas
com aproximações formais.
Não descreveremos a procura concomitante de uma ima
gem viril de identificação aceitável (oscilando entre uma ima
gem individualizada e uma imagem de grupo), nem as res
pectivas posições das duas imagens do casal parental... Não
queremos argumentar sobre este caso, mas apenas sublinhar a
questão que coloca: pensamos poder afirmar que a análise já
podería ter terminado, se só levássemos em consideração os
dados internos ao tratamento. Mas, cada vez que a passagem
está a ponto de ser feita, que Samba está prestes a falar do
diabo em primeira pessoa, pára e o mecanismo da projeção
retoma com força.
Poder-se-ia objetar que as perturbações de Samba decor
rem da psicose. Samba atravessou estados psicóticos agudos;
eletro-choques e neurolépticos sem dúvida o socorreram.
Mas, nem por isto, podemos afirmar que seu estado é, por de
finição, irreversível. Talvez, na verdade, o prognóstico psi
106 ÉDIPO AFRICANO
quiátrico é ruim mas isto não nos pode impedir de perguntar
se a cultura de Samba não lhe impõe ou não lhe propõe de
maneira privilegiada a solução da psicose alucinatória de te
ma persecutório.
Efetivamente é muito difícil imaginar Samba curado gra
ças a um tratamento psicanalítico, depois de ter internalizado
suas tensões, tê-las resolvido “pessoalmente” . Isto suporia
que, enquanto único da família, de seu meio, abdicasse das
crenças comuns, que se singularizasse de tal maneira que se
tornaria um estrangeiro entre os seus, que tivesse tido acesso
a um nível de consciência pessoal que o situaria “adiante de
seus pais” (verifica-se que não se pode esperar nenhuma
evolução do grupo familiar). E isto possível? E isto conve
niente?
Podemos apenas responder isto: tudo aconteceu como se
Samba, sentindo-se acuado, tivesse posto no diálogo nascente
das primeiras entrevistas toda sua esperança, toda sua deman
da; como se assumisse o risco da saída desconhecida. À
mesma insistência aparecia por parte dos pais depois do fra
casso dos tratamentos tradicionais: ansiosos, impotentes e
transtornados em certos momentos pelos comportamentos
auto-agressivos de Samba, também eles não queriam outra
coisa do que confiá-lo aos “ doutores” e aceitavam todos os
riscos. Acrescentemos que durante o processo analítico, Sam
ba nos informava dos tratamentos tradicionais ou consultas
que continuavam acontecendo. Frente ao projeto de uma via
gem para consultar um marabuto “mais forte” do que os pre
cedentes, nossa atitude foi de concordar. Esta conduta assim
como as precedentes não interrompeu a psicoterapia: ela con
tinua e o estado de Samba melhorou consideravelmente. No
entanto, a melhora nos parece frágil, o “ diabo” permanece
discretamente presente...
Passados dez meses, o estado de Samba continuou melho
rando. Mas ele se recusa a sair a não ser por breves períodos;
passa apenas algumas horas por semana em casa quando po-
deria dispor do fim-de-semana. Não suporta constatar, quan
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 107
do está junto dos seus pais, que está descontente a zangado
sem saber por que: “É como se algo me pegou que faz eu não
gostar dos meus pais... é algo que pega meu coração e o faz
ficar zangado” , explica ele. Lamenta fireqüentemente seu
atraso escolar, comparando-se a seus antigos colegas “ que ti
raram seu certificado” , mas para ele é impossível estudar em
bora se esforce. “É como se algo me dissesse para abandonar
os estudos” (a fórmula “algo me dissesse” conota um senti
mento e não uma alucinação auditiva); da mesma forma,
quando acontece de passar perto de sua escola: “ É como se
algo me puxasse para não ir lá.”
O material da psicoterapia mostra que tendo chegado ao
limiar de um confronto assumido pessoalmente, Samba, assim
como Amadi, situa a imagem paterna e a castração na relação
com os ancestrais: o baobá da visão inicial, num sonho (apa
rece em muitos sonhos), exige que se enterre “ o morto” ao
seu pé e não no cemitério; o personagem aterrorizante das
alucinações transformou-se num homem com um olhar bom
que pronuncia apenas estas palavras: “ É o pai dos pais” .
15. Muitos estudantes “ sustentam” suas famílias com suas bolsas de estu
do. Não é raro que um jovem casal tentando viver à moda ocidental, tenha 5, 10,
15 pessoas a seu cargo. Renunciar a esta carga seria romper com toda a família.
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 109
Em todos nossos sujeitos a referência ao pai ou ao tio tem
o caráter de um espetáculo, de um testemunho oferecido ao
olhar dos outros. Ter um pai é ser vestido por ele. Quer o
costume que seja o pai quem compra as roupas de seus filhos
(assim, costuma-se comprar roupa nova para toda família para
a Tabaski,16 ainda que sejam contraídas dívidas por meses). A
criança se sente sob a autoridade do pai, amada pelo pai,
quando está bem vestida, quando imagina os outros vendo-a
bem vestida. Este dado está presente em todos os casos. Entre
nós, segundo a idade, um menino pensará: “ Meu pai é mais
forte do que um leão... meu pai tem o maior carro... meu pai é
rico e comanda...” Aqui a criança pensa: “Meu pai vai me
comprar uma bonita camisa, um bonito temo.”
Doudou: “Cuido-me para que não vejam que meu pai não se preocupa
comigo. Se não venho bem engravatado, me tratarão como filho de
pobre.”
Assane, wolofi 24 anos, caso 94: “O velho (o pai) se zanga com todo
mundo, mas não se interessava por mim: nunca me vestiu; eram meus
irmãos maiores que me vestiam.” '
Fadei, 14 anos, peul-fouta, caso 28: Fadei é acusado de roubo. Vive
com sua madrasta em Dakar. Seus pais se divorciaram e vivem na
Guiné. Roubou roupas para ir ao cinema. Sobre sua madrasta diz:
“Para a Korité17 ela não me compra roupas. Quando meu pai está, ele
sempre me compra roupas.”
Ele desenha dois meninos, um colorido, vestido com uma calça,
com um casaco, com sapatos; o outro com um short e pedindo esmola.
Comenta: “Ele está com seu pai, veste-se, faz tudo. Um dia seu pai
morreu, fica com sua madrasta; não tem nada, anda pela região assim,
pedindo dinheiro. Quando está com seu pai, tem sapatos, calças, tudo;
agora anda com roupas rasgadas, tudo isto, não tem casa para dor
mir.”
Tierno: falando de um menino mal vestido: “A gente pensa, será
que ele não tem roupas? Será que não lavam as roupas deste menino?
A gente pensa que ele é um vadio, que é preciso chamar o pai dele
para repreendê-lo. Observa-se seus gestos e sua brutalidade. A gente
* *
26. Sobre os Bambara ver G. Dieterlen, Essais sur Ia religion bambara. Pa
ris, P.U.F., 1951. A obra do padre H. Gravrand sobre os Serer do Sine está em
preparação.
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 121
res diretamente fecundadas pela árvore nasciam indistinta-
mente plantas, animais ou humanos; a própria fecundidade
não se diferenciava de uma alimentação pois a árvore se nu
tria do líquido seminal das mulheres. A árvore também se
nutria do sangue dos homens e aqui o tema da autoctonia tor
na-se muito explícito: ao absorver o sangue dos velhos, a ár
vore rejuvenecia, invertia o ciclo do tempo fazendo-os toma
rem-se novamente crianças, conferindo-lhes assim uma espé
cie de imortalidade regressiva evocada por um rito bambara,
ainda praticado hoje em dia pelos velhos serer, que consiste
em esfregar o punho contra as rugosidades da casca até fazer
o sangue escorrer pela árvore.27
No entanto, a árvore, ávida demais de se nutrir do sexo
das mulheres e do sangue dos homens, foi vencida por Faro
que instituiu a ordem atual: trouxe a linguagem, a regularida
de das alianças entre homens e mulheres, a normalização dos
nascimentos e todos os valores diferenciados necessários para
o bom andamento da sociedade.
A mudança de reino, a inversão dos ciclos, foi marcada
pela castração celeste do Gênio do ar, origem da circuncisão;
a circuncisão elimina a indiferenciação dos sexos (suprime a
feminilidade do prepúcio e a masculinidade do clitóris), esta
belece as diferenças puras necessárias para as alianças.
A Arvore da autoctonia tem, portanto, uma função re
gressiva; fonte fascinante de vida da qual se teme que seja na
mesma medida devoradora; túmulo no qual se dá o retomo ao
seio materno. No Senegal, os griots, membros da casta dos
trovadores, cantores das genealogias familiares, são enterra
dos no tronco oco dos baobás.
A estrutura do complexo de Édipo pode ser formulada de
duas maneiras: pela oposição entre uma relação a dois
(mãe/criança) e uma relação a três (com o pai) ou, de forma
equivalente, por uma oposição entre “nascido de um” (au
toctonia) e “ nascido de dois” (de um casal sexuado). Neste
27. Sobre a marcha regressiva do tempo no sistema da autoctonia, lembre
mos Omito do Político de Platão (os filhos da Terra e o rei-pastor).
122 ÉDIPO AFRICANO
último caso, todo o problema edípico é pensado em função da
origem: o tema da autoctorúa (retomo à terra-Mãe) situa-se
no mesmo campo retrospectivo que a herança a partir do an
cestral. A mitologia parece, portanto, nos sugerir um comple
xo de Édipo vivido do modo anterior, cada geração vivendo,
através da geração precedente, sua própria relação com a
morte do pai, ancestral legislador que sobrevive na tradição.
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS
E O LUGAR DO PAI
1. OS RITOS DE POSSESSÃO
7. J. Rouch, op. cit,, p. 300. Na verdade, os fracassos não são raros mas
sempre têm boas razões: dir-se-á que, ou os ritos não foram bem observados, ou
que o oficiante-curandeiro não era suficientemente poderoso, ou que uma proibi
ção foi violada etc... Jean Rouch também assinala um fracasso: ao fazer fotos, fez
a operação fracassar (p. 247).
128 ÉDIPO AFRICANO
pode ser obtido sem recorrer à dança; esta nem sempre é ne
cessária; e mesmo onde é amplamente praticada aprendemos
que, do ponto de vista religioso, não é considerada como o
elemento mais fundamental. Com efeito, o que chama parti
cularmente a atenção do observador ocasional é a cerimônia
das danças de possessão que em wolof são chamadas um
ndôp. No entanto, não se pode fazer um ndôp sem antes ter
realizado os ritos do samp ou ereção de um altar. A ereção é
precedida de um rito iniciatório: o postulante, amortalhado
sob tangas, sofre uma espécie de morte seguida de uma ressur
reição; neste momento é consagrado ao rab que o possui, tor
na-se seu suporte e padre, enquanto que o rab, por seu lado,
recebe um nome e um altar. O samp inaugura o culto. O pri
meiro ndôp para um indivíduo inclui sempre um samp, depois
o ndôp pode ser renovado várias vezes. É o samp que auten
tica a possessão, faz do indivíduo um iniciado, um consagra
do, ao mesmo tempo que funda o culto. O iniciado é consa
grado ao serviço do altar, sobre o qual deverá fazer oferendas
regularmente, segunda e quinta-feira; esta consagração o in
troduz na sociedade dos possuídos e a partir de então poderá
participar como oficiante das danças do ndôp. O samp forma
em si mesmo um todo completo independentemente do ndõp;
pode ser realizado sem nenhuma dança, tem em si mesmo seu
pleno valor terapêutico. Esta análise é confirmada pela tradi
ção serer onde a forma arcaica do rito está melhor conserva
da. Os serer têm um equivalente do samp que se chama o lup,
mas não têm equivalente do ndõp. Simplesmente, aquele que
foi iniciado ou consagrado pelo lup terá, em seguida, em
certos períodos, estados de transe ou crises atestando sua
possessão pelo pangol.
Podemos nos perguntar então se não seriam estes transes
comemorativos que foram desenvolvidos e sistematizados nas
danças do ndõp. Entre os lébou, os homens tendem cada vez
mais a abandonar estas práticas sob a influência do islamis-
mo; as cerimônias do ndõp não sendo mais assumidas pela
sociedade global passam a ser, principalmente, realizadas por
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 129
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13. Assim, ele utiliza o termo wolof de rab e não o termo serer de pangol
quando nos fala em francês.
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 143
lhos que deixou com minha mãe.” A mãe de Talla sempre vi
veu com seus pais. Tem uma filha de 15 anos, Talla e um
menino de 7 anos.
Não há nada particular na infância de Talla que hoje é
um belo menino de rosto inteligente, expressivo, curioso. To
dos gostam dele.
Repetiu o ano do certificado de estudos, tendo estado
doente na última primavera. É um aluno muito bom, anima
sua classe, é a esperança de seu professor. Entrará no 6-.
Quer seguir os passos de dois tios matemos que fazem estu
dos secundários e técnicos.
Não há antecedentes familiares psicopatológicos conhe
cidos.
A doença de Talla começou em maio de 1962. De maio a
agosto, diz ter tido uma crise toda quinta e sexta-feira. O re
lato deste primeiro episódio da doença é comentado como
tendo sido muito desagradável mas apenas “para a escola” e,
com efeito, Talla não pôde prestar o certificado de estudos
em 1962.
Em fevereiro de 1963 as perturbações recomeçam. Per
turbações do humor primeiro: Talla chora, canta, fala com
pessoas que diz ver. Depois voltam as crises na cadência de
três ou quatro por dia. E hospitalizado no dia 4 de março.
Teme por seus estudos.
As crises nos foram descritas pela própria criança, pela
sua mãe e pelo seu tio materno. Eis o que escreve o tio:
“ Segundo o garoto, as crises aconteceram depois de ter,
em pleno dia, visto, como se fosse uma visão, um ser extraor
dinário, poderiamos dizer um anjo, pois segundo ele tinha
uma forma colossal, tamanho grande, massivo e com asas. Ao
ver este Ser o garoto ia gritar, pois estava na aula; mas, ainda
de acordo com ele, o gênio lhe fez um sinal para se calar.
Então, ofereceu-lhe uma folha virgem14 mas a criança não
“É uma mulher serer na frente de sua casa que móe grãos, vesti
da com um corpete violeta e uma tanga verde. A casa é muito grande
com uma porta baixa. Está pensando na refeição, no feixe de gravetos
que vai transportar, o que vai levar para seu marido no campo. O pi
lão está cheio de grãos que se espalham pelo chão.
Está triste por causa do trabalho duro e porque não tem filhos. É
148 ÉDIPO AFRICANO
jovem. Pensa que quando seu marido morrer, não há nenhuma criança
que fique com a casa e com o dinheiro que o pai deixará, não há crian
ça para pegar isto.”
Tomou-se mendigo com a morte de seu pai. Era jovem mas não
trabalhava. Seu pai lhe deixou campos. Vendeu os campos para se
alimentar mas o dinheiro acabou. Não tem filhos, nem mulher e a po
breza começa. É raro encontrar um trabalho. Não é instruído; ficará
assim para sempre esperando o destino próximo que o espera, o de
sígnio de Deus.
Seu pai lhe havia dito que guardasse os campos, como dissera La
Fontaine: “ Guarde a herança!”
16. Nariz e cabeleira compridos fazem parte da imagem habitual dos rab.
O pequeno homem tem o nariz comprido mas a cabeça raspada.
152 ÉDIPO AFRICANO
Talla, que se lembra que, desde fevereiro, nas suas crises
graves, escutava os rab cantando. O que cantavam? - “ Você
é o amigo, Talla, é o amigo de Lasmon.”
Pergunto-lhe se pode falar de Lasmon:
“ Sua cabeça está coberta de pêlos até o pescoço. Não sei qual
a sua cor.
Quando aparece, aparece como um pássaro. Mora na água.
É jovem; usa uma camisa curta, branca e uma calça branca. Seus
braços são cobertos de pêlos. A perna esquerda é mais curta, não da
FIGURA 4 - Lasmon
“Vi Lasmon como vejo você.” Lasmon lhe diz que estaria quase
curado se comesse arroz preparado segundo a receita que indicava
e se se banhasse numa água. Minha mãe diz: “Quando as crianças têm
rab é preciso que se banhem na água onde o avô se banhava.” Minha
mãe conhece o lugar, é um grande tamarindo.
(Depois) “Lasmon jurou do fundo dos antepassados que se você
fizer o rito, não terá mais crises. Depois estendeu a mão e me disse:
“Pegue!” Estendi a mão, pôs um papel dobrado na minha mão; depois
desapareceu.”
“Tem crises que os médicos podem tratar, tem crises que eles
aprenderam. Tem crises que não podem tratar. Antes de ir ver os
franceses, é preciso ir à sua raça. Você vai para a sua raça quando tem
crises. Os negros têm mais crises. Para mim os rab dizem a data e é
isto que me mete medo. Na hora marcada, você cai, pensam que está
morrendo. É verdade, você perde a visão, se deita, não mexe a cabeça
“Quando você vê algum rab que você nunca viu por ser jovem,
isto provoca crises; levam- te para o país deles, você o vê num piscar
de olhos e volta.
O avô foi atacado pelos rab quando era grande, ele não tinha me
do: via-os tranqüilamente, falava com eles. O coração de um adulto e
de uma criança não são iguais. Eles não atacam os filhos do antepas
sado mas seus sobrinhos. Atacarão meus sobrinhos... Ainda não vão
me deixar. Se eu tivesse o coração fechado como um homem adulto
não teria medo, não teria crises. Disseram-me que haVeria ainda três
crises e que depois delas eu comprasse uma cabra.”
18. A procura 6 simbólica. No mesmo dia Talla nos diz que reviu seu pai
recentemente.
19. “ O negócio” , expressão corrente para designar o xamb ou altar do
Culto dos rab.
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 159
(Talla indica o gesto de Lasmon: mãos juntas em forma de cálice, co
mo um gesto de oferenda), e me disse: apareço para vocé por parte do
antepassado. Safout partiu de meu avô falecido com todos seus po
deres. A senhora branca era talvez Safout que se escondia.”
palavra do pai: “ Quase diz que não quer filhos quando eu era
jovem.” Um pai não é apenas uma segunda mãe, alguém que
cuida de crianças; o tio materno serviría para isto pois a ele
cabe, tradicionalmente, criar os sobrinhos. O tio pode substi
tuir o pai em tudo, tanto para a subsistência material quanto
para a identificação parcial a um ideal masculino; podería
substituir o pai em tudo exceto numa coisa: não é ele quem
toma significante aquilo que falta à mãe; não é ele que está aí
por aliança, em virtude da troca, por lei de dívida e de dom.
Talla se sente suprimido por seu pai, condenado a perder a
herança, lançado à terra como um morto, aterrado por um po
der sem nome, solicitado pela lei de um outro que permanece
para ele estranho, desumano, aterrorizante.
A primeira entrevista descreve visões de pesadelo: a se
nhora branca e o pequeno homem castrado. São “o irmão e a
irmã” (o tio e a mãe?). Mas são, principalmente, dois perse
guidores desconhecidos; a senhora branca fala uma língua in
compreensível, sua sombra é aterradora. O pequeno homem é
meio agressor, meio protetor.
Mas eis que, das brumas confusas onde se agitam os po
deres de desgarramento e de morte, destaca-se um nome, o
nome do bisavô materno, Diagan Tiaré. O ancestral é um pai
reduzido à pura autoridade de seu nome: “Diagan Tiaré. Seu
nome era conhecido em todo Senegal, em todo Sine, como
Leopold Sédar Senghor. Em todo o Sine te dizem que ele era
muito forte. Inclusive seus filhos são adorados. Todos que os
vêem lhes dão algo” (rendem-lhes homenagem).
A partir da nomeação do ancestral, Talla consegue expli
citar e articular seu problema e o faz numa série de temas en
quadrados por duas nomeações do ancestral: Diagan Tiaré,
aliado dos rab da família; sua mãe abandonada, mulher sem
herdeiro para o marido; ele mesmo mendigo solitário sem he
rança; o ancião da grande árvore que fala sobre antes da
morte de seu pai; novamente Diagan Tiaré, honrado no seu
túmulo como fundador de povoado.
Como Talla poderá se beneficiar da herança? A resposta
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 165
é dada num lapso que faz Diagan Tiaré passar dos matemos
para os paternos (é possível que, de fato, o antepassado se
encontre na junção das linhagens). Este lapso inaugura uma
nova seqüência que se parece à fala de um oráculo enuncian
do o nome dos rab. Nomeia Lasmon, o tuur de Diagan Tiaré.
Lasmon ainda não é um personagem, é um baobá.
Em seguida, aparece um personagem desconhecido, um
boxeador. É difícil aproximar-se desta figura viril que mete
medo, que nos convida (repetindo o convite inaugural) a se
gui-lo até seu quarto escuro, a penetrar com ele mais fimdo
no medo.
Este boxeador é um pai que mostra seu filho, uma filha
de rab que canta. Ela cantava a canção de Lasmon.
Eis, portanto, que Lasmon se toma um personagem vivo,
um amigo que defende Talla contra as bmxas antropófagas e
os meninos desconhecidos. Lasmon anuncia que é preciso fa
zer um sacrifício para o avô e dá o garap, o bastão sagrado.
Este dom vem do fundo dos ancestrais; aceitá-lo é aceitar
a lei dos pais. Talla sabe agora quem lhe propõe aliança; e na
sessão seguinte dá uma descrição detalhada de Lasmon, ima
gem composta onde estão reunidos traços esparsos de todas
as outras figuras masculinas que até então apareceram.
Mas uma severa crise se produz de novo. Lasmon não
veio. Talla pede para sair do hospital para que Lasmon fale
com ele. Os rab têm medo dos brancos, mas “ se eu for para
casa eles falam comigo” .
Uma licença de dois dias é dada a Talla. Na volta diz:
“ Vi Lasmon como vejo você... Jurou do fundo dos ancestrais
que se você faz o rito, depois não terá mais crises. Depois me
deu um papel branco dobrado na minha mão.” O mistério da
visão inaugural se realizou.
Permanece o desconhecido da senhora branca. Talla re
crimina veementemente sua mãe por não tê-lo levado ao tú
mulo do ancestral, “ao fundo dos ancestrais” . Quando mor
rer, os rab atacarão de novo seus sobrinhos (especifica na p.
1 9 0 : não seus filhos, seus sobrinhos). Nesta perspectiva de
166 ÉDIPO AFRICANO
rendas (ao xamb familiar), isto não está bem; vejam Tiné N.
(da família deles), os rab não a perturbam” (porque ela faz
oferendas).
Ornar foi alimentado e carregado por sua mãe. Não teve
nenhuma doença séria na infância. Foi educado por seus pais,
segundo um deles até os quatro anos, segundo o outro até os
nove. Seus pais se divorciam quando ele tem quatro anos, diz
o pai, quando tem oito anos, diz o sujeito.
É então entregue a um primo uterino, no mesmo povoado,
para aprender o Alcorão - e isto, dos quatro aos nove anos,
ou dos nove aos treze. “O tio não era severo, mas eu não en
tendia bem o Alcorão” , diz ele. Com a morte do “tio” , ele é
confiado a um outro marabuto e, lá, “entendia bem um pou
co” .
Ficamos sabendo que foi circunsisado no dispensário aos
doze anos, e que nesta época volta a viver com seu pai que o
descreve como uma criança agitada, brincalhona, sociável,
não apresentando nem doenças nem pesadelos.
Freqüenta a escola francesa durante cinco anos e fracassa
aos dezessete no certificado de estudos.
Seguem-se dois anos de aprendizagem de mecânica e de
pois, de 1951 a 1953, faz o serviço militar em Dakar. Ornar
sai com um diploma de mecânico e, durante sete anos, será
motorista mecânico numa grande empresa de Dakar onde seu
trabalho é apreciado. Com a falência da empresa passa por
um período de semi-desemprego, durante o qual muda diver
sas vezes de patrão. Sua primeira hospitalização situa-se de
pois de mais ou menos dois anos de semi-desemprego, em
março de 1962.
Durante o período de trabalho estável, em 1956, Ornar se
casou. Antes tinha tido apenas experiências sexuais esporádi
cas. Diz ter ficado muito surpreso por não conseguir consu
mar o casamento, pois a moça lhe agradava; pediu a opinião
de seu pai e de sua sogra, depois consultou um marabuto que
lhe deu medicamentos. Um mês depois tudo estava bem. A
impotência reaparecerá com “a doença” . O pai do doente
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 173
conta o casamento assim: ‘‘Quando fazia a corte à sua mu
lher, eram duas amigas. Ele fazia a corte à primeira. A mãe
da segunda veio me ver e me disse: ‘Somos parentes, gosta
ríamos que ele desposasse nossa filha.’ Ornar concordou em
casar-se com ela.”
Todo mundo concorda que Ornar tem “uma mulher muito
boa” ; é muito apegada a ele e o espera apesar da doença,
apesar da insistência de sua mãe que a aconselha o divórcio,
e apesar de que ele não contribui mais com as despesas da ca
sa. O casal sempre viveu na casa da mãe da mulher. Omar
explica que ganhava muito pouco no começo e que, quando
seu salário melhorou, faltava “mobiliar o quarto” e pagar
25.000 F C.F.A. para sua sogra (complemento devido do do
te). Sua mulher várias vezes lhe pediu: “ Vamos para a nossa
casa” , mas a sogra não consentiu em reduzir a soma devida
embora “há outras que fazem por 15.000” , diz Omar. O pai
do doente confirma que a sogra não queria deixar a filha par
tir - também sua filha mais velha fica com ela - mas recrimi
na seu filho nos seguintes termos: “Omar foi fraco ao não
pegar sua mulher e levá-la para a casa dele; ele tinha dinhei
ro, fiz de tudo (alude à sua ajuda financeira), ele não tinha
caráter, tinha um pouco de medo de sua sogra que é perigosa,
e não sou o único a dizer isto... Omar não é previdente:
quando ganhava não guardou dinheiro. Acho-o fraco, sem ca
ráter, sei que está doente, mas nunca pensou em levar sua
mulher para casa, preferia ficar na casa de seus sogros, nem
me escutou. Gastei muito dinheiro para curá-lo.” Numa en
trevista posterior, o pai falará de seu descontentamento e de
leu rancor pelo fato de seu filho nunca ter lhe dado dinheiro
como reza a tradição: o filho deve ajudar seu velho pai.
Omar tem três filhos: uma filha de seis anos e dois meni
nos de quatro e dois anos.
Entrevistas externas
rendeira, porque ele sabe muito bem que tudo isto é uma
doença da família materna.
No entanto, o doente sairá do hospital em 22 de fevereiro
de 1964 sem que nada tenha sido decidido. O pai, no entre-
tempo, consultou um outro marabuto “mais forte” e não fala
mais de sacrifício aos rab. O filho espera sem questionar.
Ao sair, Omar está com boa saúde, perfeitamente coe
rente, bem adaptado no hospital, ajudando de boa vontade
quando requisitado. Seus rab ainda o impedem de rezar e de
fazer suas abluções: “ Se quero rezar, dizem que farão um
muro na minha frente para que não pense nada, para que não
laiba mais nada” , mas também, “eles” o impedem de brigar,
“de fazer o mal.” Continuam a murmurar no seu coipo, mas
isto diminuiu. Pode comer e ir ao banheiro. Em contrapartida,
impedem-no de passar a noite com sua mulher, disseram:
“Não te deixaremos em paz.”
Poucos dias antes de sua saída do hospital, “eles” o dei
xam rezar. Omar parece bastante satisfeito com o tipo de
compromisso ao qual chegou: “eles” não o incomodam mais
como antes, não tenta mais fazer algo que os contradiga. Tem
esperanças de que com o sacrifício planejado, as coisas me
lhorarão cada vez mais. A melhora atual parece, em parte,
ftmdada nesta esperança.
*
* *
a) Imagem do corpo.
b) O mito de origem e a posição do pai.
c) O conteúdo do delírio e a situação sociológica do su
jeito.
182 ÉDIPO AFRICANO
a) A imagem do corpo
25. Sobre o problema das relações entre psicose e castração, cf. S. Lecl
“ A propos de l’épisode psychotique que présenta L’homme aux loups” , La psy-
chanaiyse, IV (1958), 83 a 110.
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 187
1. A BRUXARIA
a) A fantasia de devoração
b) O reino da suspeita
c) Religião e bruxaria
*
14. Um indivíduo pode ser atacado por um bruxo e ser defendido por seu
rab. O conflito rab-demm manifesta-se através de perturbações mentais. Os
demm nunca assistem o ndõp que comportam um rito de caça aos' bruxos: seria
um risco para eles.
15. Sobre a bruxaria e a religião, ver o artigo de Lucy P. Mair, “ Witchcraft
as a Problem in the Study of Religion” , Cahiers efétudes africaines, IV, 1964,
pp. 335-348.
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 209
* *
Ao ingressar em 17.1.64:
16. Agradecemos ao Dr. Moussa Diop por termos podido utilizar a obser
vação psiquiátrica de Yaya.
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 211
que sobe do baixo ventre até o peito. Tem, ao mesmo tempo,
a sensação de falta de ar e uma impressão de morte iminente.
Explica que não tinha sensação de constrição toráxica nem
batimentos cardíacos incômodos. Não perdeu a consciência.
O mal-estar durou alguns segundos e terminou bruscamente.
“ Senti a bola cair de novo a tomar seu lugar e não tive mais
falta de ar.” Tudo aconteceu muito rápido e ninguém perce
beu nada.
O doente pôde, em seguida, continuar seu treino sem
sentir nada mais do que leves dores na barriga.
Na mesma noite, no refeitório, tem a impressão excessi-
vamente desagradável de que teriam “inchado sua pele” . Não
consegue comer. Seu mal-estar dura uma hora e meia mais ou
menos.
Nos dias seguintes sente uma extrema lassidão, dores de
barriga e cefaléias frontais facilmente acalmadas com aspiri
na. Deve se notar que não apresentou mais nenhum episódio
crítico semelhante ao do começo de sua doença.
que podería ser sua mãe e um jovem mais forte do que você.
Ambos são de D... Te pegaram. Você está entre a vida e a
morte. Imploram ao teu rab para te terem, mas o rab recu
sou.” O doente recebeu safara do marabuto que utilizou para
se untar e misturar com a água do banho.
- O segundo marabuto foi consultado em D... O doente, desta
vez, foi acompanhado de seu pai e de sua mãe. O marabuto
disse mais ou menos as mesmas coisas que o primeiro; con
firmou: “E teu rab que te protege, sem isto você estaria
morto.” Acrescentou: “ Os bruxos te deram algo de branco
para comer.”
- O terceiro marabuto foi consultado em Lagnar, de novo
com o pai e a mãe do doente. Disse: “Quem te pegou é uma
mulher de tez clara. É teu rab que recusou.”
- O doente foi ver sozinho o quarto marabuto em D... As
mesmas palavras lhe foram ditas.
- Por fim, ainda em D ..., acompanhado de um amigo, con
sultou uma curandeiia que lhe disse as mesmas coisas.
Acrescentemos que estão previstas outras consultas.
O que chama a atenção nestes discursos é sua estereoti-
pia; a este respeito o caso é exemplar pela sua banalidade.
Quadro clinico que Yaya apresenta, suas crises de angústia
agudas correspondem culturalmente ao diagnóstico de ataque
pelos demm. Todos os marabutos e curandeiros confirmarão a
mesma coisa e é o que se espera deles em primeiro lugar.
Em segundo lugar, espera-se deles que designem o res
ponsável. Nunca o fazem precisamente, dão apenas indica
ções. Indicação de sexo, geralmente combinada com uma
qualificação ou característica tomada das representações tra
dicionais: uma mulher de tez clara, um homem negro, um
homem grande, um homem com um camisão branco, uma
mulher bonita, jovem ou velha... A formulação “te deram al
go de branco para comer” pertence ao mesmo registro; o
branco é a cor das oferendas ou dos malefícios; as iguarias
brancas são incontáveis e as mais comuns: leite talhado, ar
roz, açúcar, farinha, cola, banana... Mas um enunciado deste
216 ÉDIPO AFRICANO
tipo é suficiente para que a suspeita seja lançada, para que a
reflexão dos interessados encontre um ponto de partida ou de
apoio, para que o par fantasmático seja constituído. Assim,
Yaya e seus pais escrutinam o passado próximo e suas lem
branças, passam em revista todas as mulheres de seu meio,
suspeitam de uma e depois de outra, desconfiam de todas.
Acrescentemos que o rab protetor faz parte do diagnósti
co dos cinco consultados; já que o sujeito não morreu depois
de algumas semanas de doença é porque ele está protegido
pelo seu rab, segundo as concepções tradicionais.
Massiva, indiferenciada, siderante, com sentimentos de
destruição dos conteúdos do corpo e sentimento de morte
iminente; assim vimos a angústia de Yaya.
Depois:
“Brigo demais com meu irmão de catorze anos mesmo pai, mes
ma mãe. Ele não gosta de estudar. Nosso pai gosta muito dele, mais do
que de mim. Eu me pareço com minha mãe, ela me prefere. Ele parece
com meu pai e acho que é porque lhe deram o nome do meu pai.
Quando reclamo porque ele me enche, meu pai nem lhe dá bronca.
Mas minha mãe dá bronca nele o tempo todo. Sidi gosta demais de
brigar com os pequenos, perturba a casa. Eu faço a “siesta” , procuro
o amigo, bater papo; de noite vou passar a noite em branco com os
amigos. Respeito as pessoas.”
“Estou melhor.”
“Quando jogo futebol, o tempo todo meu coração bate muito rá
pido. Assim mesmo jogo, ãs vezes me dá falta de ar, paro. Aliás, vou
fazer uma partida contra o 5° B, espero que a gente ganhe.”
“Às vezes tenho idéias extravagantes. Penso nas férias, que irei
descansar em Dakar, que meu irmão mais velho (um primo) vai me
comprar umas calças bonitas, camisas, ele me prometeu. Penso na
dança, as garotas, também as férias em D... onde estão meus pais e
meus amigos. Isto me faz ficar alegre. Também em noitadas com os
amigos e a música. Vou entrar na equipe para disputar partidas.”
“Você ainda pensa nos bruxos?”
- Acho que me deixaram, não sei quem é mas não procuro mais.
- Você pode me falar de teu irmão mais velho?
- Ele não é casado; tem um quarto em Dakar. Às vezes me es
creve cartas para me dizer que estude bem, para me aconselhar. Ele
tem o certificado. Não quer que a gente se divirta muito; quando ele
estava na escola, era turbulento. Acha a vida bela; é órfão de pai e
mãe.
- Você gostaria de ter uma vida como teu irmão mais velho?
- Sim, até mesmo mais, uma boa profissão... Sonhei que tinha
a filha de um colega, que lhe fazia a corte.
- Em M..., você pode ver garotas?
- Sim, eu poderia, eu gostaria, mas eu não quero. Meus pais me
disseram que há antropófagos demais em M... Se faço a corte a uma
garota, se ela é antropófaga, ela pode te pegar. Uma garota atrapalha
os estudos, também custa caro; se o vigilante te pega na cama com
uma garota, você pode ser expulso.
- E teu estudo?
- Não está regular. Esqueço as lições que aprendí. Ainda não
estou alegre como antes: primeiro meus estudos baixaram um pouco,
segundo, me enfraquecí; estou retomando as forças.”
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 221
2. A MARABUTAGEM
23. Não insistiremos aqui sobre o fato de que em cada caso conviría consi
derar como se manifesta o material pré-genital, com que facilidade, de que mo-
do, mais ou menos controlado ou irruptivo... Este é o problema dos mecanismos
dl defesa sobre os quais poder-se-ia fazer um estudo especial.
230 ÉDIPO AFRICANO
na casa do pai; seu marido não está, ela quer voltar para a casa de vo
cês.’ O chefe do cantão tomou providências para procurar o alfaiate
no país, para que fique com ela ou se divorcie. O alfaiate disse: ‘Ara
me precisa me pagar, devolver tudo (o dote).’ Ela pagou, deu inclusive
todas suas roupas, seus brincos. Ficou durante dois anos com seu ir
mão mais velho. Mas o alfaiate a ama, quer ficar com ela. Mas Arame
sabia que ele tinha aprontado muito; ela parte, ele bate nela. O alfaiate
pediu muito para obrigá-la a ficar. ‘Se você não vem comigo, não fi
cará com um outro casamento.’ Ele disse isto. Foi ver um marabuto
(para conseguir que no futuro ela não ficasse com nenhum marido).
Depois há outro sujeito que quer casar com ela. Ele gasta todo
seu dinheiro, compra tudo, uma cama. Seu irmão mais velho (de Ara
me) neste momento gosta deste sujeito, pois são parentes do campo.
Mas Arame recusa. Assim que seu irmão diz: ‘Precisa casar’, Arame
diz: ‘Não, eu não quero’. Seu irmão se zanga pois este sujeito é seu
parente do campo. Os parentes do campo fazem marabutagem. O su
jeito foi inclusive com o irmão para a polícia de Dakar para que Ara
me devolva tudo o que tinha dado.
Depois é um motorista que queria casar com ela. Arame não
queria. Depois ela quis. O motorista fez uma marabutagem para obri
gá-la a aceitar. Mas isto só durou vinte e sete dias. Ela se divorciou de
novo.
O sujeito disse: ‘A marabutagem é até a morte. Tudo o que você
for casar, você nunca terá outro marido.’ São três sujeitos que fizeram
a marabutagem contra Arame; foi antes que eu a retomasse...todo
mundo faz marabutagem contra ela e é a mãe de teu filho, ele vai aca
bar ficando louco.”
3. CONCLUSÃO
24. V. Tumer, Les támbours cfafflicúon (trad. M.C. Girard), NRF, Paris,
1972.
238 ÉDIPO AFRICANO
* *
Análise form al
Referência à clínica
socos na barriga e no peito e via que isto o animava. Foi então que as
pessoas intervieram e a briga começou. Foi um verdadeiro duelo con
tra a morte, as pessoas me torturavam, tentavam me derrubar, me
torturavam, eu me debatia com uma força extraordinária, pois quando
as pessoas me seguravam no chão e queriam chegar até minha gar
ganta, via que era a morte que subia até o último alento, mas eu me
debatia, tentando morder dedos que tentavam apertar minha garganta.
E, durante este tempo, Mamadou N’Diaye afastava-se um pouco da
briga dizendo aos homens inocentes e teleguiados por seu espírito
ruim e malvado que acabassem comigo, e eu sem ser escutado pela
multidão gritaya: “Oh, minha mãe, Mamadou N ’Diaye está me co
mendo” repetia isto inúmeras vezes, mas o cruel espírito de Modou
N’Diaye fazia meus gritos de justiça passarem desapercebidos e ao
mesmo tempo dissolvidos nos rumores da multidão. Juro-lhe, Doutor,
que Modou N’Diaye é um bruxo pois eu era sua vítima, há algum
tempo e agradeço enormemente a Deus por ter me salvaguardado até
este momento deste bruxo com o qual morei durante dois anos. Isto é
tudo o que eu tinha a lhe dizer, Doutor, sobre minha recente doença.
Que Deus nos proteja contra o mal e nos dê alegria e felicidade.
Antecipadamente agradeço-lhe, Doutor, com todo meu respeito.
Seu doente Ibnou T.”
Primeira hospitalização
A carta ao médico
DADOS. A origem da corrente de ar está centrada:
Diallo.
Impulso ansioso com fuga do perseguidor e refúgio procurado
na família de sua mulher.
Sentimento de potência, ascendência sobre seu cunhado.
Esvaziamento da garrafa de safara (a água feiticeira).
Compra da limonada, ordem ao cunhado de bebê-la.
Depois da recusa do cunhado, luta corpo a corpo e depois
duelo contra a morte por estrangulamento.
Todos os homens estão contra ele instigados pelo cunhado.
O cunhado é um bruxo que o come.
Invocação de sua mãe.
Agradecimento a Deus.
COMENTÁRIOS. N l: O tema geral ainda é o do bruxo
antropófago, com impulso ansioso (que não provoca sidera-
ção mas fuga fóbica, N2) e impressão de morte iminente com
perda da respiração.
262 ÉÒIPO AFRICANO
Entrevista de 6 de fevereiro
Entrevista de 19 de fevereiro
Entrevista de 24 de fevereiro
Entrevista de 9 de março
Entrevista de 14 de março
Entrevista de 19 de março
Entrevista de 22 de maio
Cura sintomática. Não há mais interpretações persecutó-
rias, nem ansiedade.
O sujeito vive na casa de seu pai, protegido por sua pre
sença, por seu dinheiro, os amuletos e remédios tradicionais
que agora aceita com confiança... Ibnou está, mais do que
antes de sua doença, na dependência de seu pai.
Em resumo, temos:
Análise form al
Referência à clínica
- Não se pode distinguir claramente modalidades dife
rentes de ansiedade relacionadas com diferentes níveis de in
terpretação verbalizada. No entanto, os impulsos ansiosos
acompanham o N I predominante assim como os momentos de
confusão e de agitação psicomotora.
A ansiedade pode ser mínima ao mesmo tempo que a po
sição em NI é afirmada (Diallo é bruxo). Podemos nos per
guntar se este fato, que aparece como uma discordância em
relação ao esquema cultural de ataque pelos bruxos, não é
consecutivo ao eletro-choque.
Notamos também que a ansiedade pode diminuir ou se
intensificar sem que a temática expressa mude.
- Não conseguimos situar precisamente as alucinações
cinestésicas; provavelmente elas acompanham a dominante
N l.
- A cura, ou a remissão, é clinicamente observada quan
do N3 passa a dominar. Acentua-se também, ao mesmo tem
po, em todos os domínios da realidade, a submissão do
AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA ANÁLISE DOS DELÍRIOS 267
doente ao pai.
- Embora a cura, ou remissão, seja clinicamente obser
vada, todos os temas de perseguição continuam presentes.
- Indiquemos como pertencente à vertente psicótica, a
inversão real, muitas vezes observada, dos papéis persegui-
dor-perseguido.
Esta análise, fora de qualquer consideração compreensi
va, exige certos comentários.
As características e a organização das idéias delirantes de
Ibnou contrastam com aquelas que encontramos em Fatou.
Para Ibnou, nenhum dos temas delirantes é homogêneo; há
nebulosidade, confusão entre os diferentes temas, em todos os
sentidos (forma, imagem do corpo, vivência ansiosa). Os di
ferentes temas não se apresentam segundo uma sucessão
orientada; temos geralmente a impressão de um estado de de
sorganização da personalidade. Não há movimento de con
junto que desemboque numa superação das tensões ou da an
siedade. O movimento de conjunto, trabalhoso, feito de idas e
vindas, conduz, todavia, à localização mais precisa das posi
ções persecutórias: a interpretação de bruxaria domina final
mente e, para vencer a ansiedade a ela ligada, o sujeito adota
uma posição de submissão à imagem paterna, assim como de
submissão ao seu pai na vida cotidiana.
É a imagem do pai ou a dos rab que protegem do bruxo e
é a submissão regressiva à imagem protetora que permite o
ieasseguramento e a sedação da ansiedade. Mas podemos pre
sumir que a melhora sintomática é frágil, instável.
- Não houve nem mobilização do núcleo ansiógeno, nem
elucidação da ansiedade, nem iemanejamento dinâmico outro
do que o movimento regressivo que acompanha a emergência
da boa imagem paterna.
- Mas, pudemos ver como a imagem paterna era ambi
valente: poderia facilmente retomar para a vertente persecutó-
ria. O doente afirmou que se sentia “odiando” o pai, mas não
pode assumir isto (ao contrário do que observamos em Fatou
com referência ao marido).
268 ÉDIPO AFRICANO
- Podemos nos perguntar o que significa a posição de
submissão regressiva ao pai no contexto familiar de Ibnou;
para isto é preciso abordar o ponto de vista compreensivo pa
ra o qual nos faltam muitos elementos.
Não pudemos fazer nenhuma hipótese sobre o desenca-
deamento do primeiro ataque confuso-delirante do sujeito. A
pesquisa familiar realizada recentemente por nossa colega so
cióloga permite, em contrapartida, perceber que tensões a
doença de Ibnou cristalizou entre seus próximos.
Obrigada por seus pais, a mulher de Ibnou havia despo-
sado em primeiras núpcias um pretendente velho e rico, já
provido de numerosas esposas. O divórcio se deu sem que o
casamento se consumasse. A opinião que agora corre é a de
que Ibnou foi marabutado pelo pretendente despeitado.
O pai e a sogra de Ibnou são parentes próximos e, por
tanto, o casamento de seus filhos só pode ser um “bom casa
mento” , como diz a sogra: “ A um parente seguimos até o
fim.” Romper o casamento repercutiría sobre todo o paren
tesco; no entanto, o pai de Ibnou pensa nisto, atribuindo a
“culpa” da doença à família da esposa de seu filho.
Por outro lado, o pai de Ibnou e a avó materna da jovem
mulher rivalizam pelo título de chefe do conselho de família;
a avó é a mais idosa e considera que o lugar deve ser seu.
Parece que a doença de Ibnou cristalizou tensões latentes
no grupo familiar, até então cuidadosamente dissimuladas, e
que puderam, então, ser expressas. Cada família toma a outra
responsável pela doença, utiliza a doença para acusar; as po
sições se endurecem dos dois lados e a doença serve de justi
ficativa.
Poder-se-ia pensar, portanto, que nosso sujeito, enquanto
suporte das projeções do grupo, tenha seu lugar marcado mais
pela doença do que pela boa saúde. Sua cura significaria que,
através dele, as tensões do grupo encontrariam uma saída
parcial, que ele contradiria as posições acusadoras e que as
sumiría sua vitória sobre o velho pretendente...
Os elementos de prognóstico revelados pela análise, nos
AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA ANÁLISE DOS DELÍRIOS 269
casos de Fatou e de Ibnou, foram confirmados pela evolução
dos dois sujeitos.
Treze meses depois de sua saída do hospital, Fatou D.
está bem. Separou-se do marido sem que o divórcio tenha si
do pronunciado e sem que as conversações familiares que de
vem tratar do assunto tenham terminado. Vive com sua mãe
em Dakar e cuida dos trabalhos domésticos. Fatou pensa em
se casar novamente mas por enquanto não tem pretendente
oficial.
% Quatro meses depois de sua saída do hospital Ibnou vol
tou para uma nova estadia de quatro meses. Vários episódios
delirantes com agitação e comportamentos agressivos ocorre
ram. A temática delirante continua a mesma mas vai se empo
brecendo. Entre os ataques, a tonalidade do contato e do
comportamento se modificou: Ibnou se instala numa espera
vaga de sua cura e não considera a possibilidade de voltar a
trabalhar um dia. No hospital, seu apragmatismo contrasta
com o caráter prestativo dos meses precedentes. A impressão
geral é que evolui para um estado esquizofrênico. Saiu do hos
pital a pedido da família paterna, para seguir tratamentos ma-
rabúticos.
*
* *
* Texto de 1984.
274 ÉDIPO AFRICANO
3. ANTROPOLOGIA E BIOLOGIA
1
ANEXO I
OS WOLOF
OS LÉBOU
OS SERER
*
* *
J
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