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Equipe de realização

Capa: Yvoty Macambira


Foto da capa: Betty Leirner
Tradução: Claudia Berliner
Revisto: Elaine G. Paiva
Bdi(lo: Manoel Tosta Berlinck
Maria Cristina Rios Magalhães
Froducto: Araide Sanches
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Marie-Cécile & E d m o n d O rtigues

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ÉDIPO AFRICANO
Tradução de Claudia Berliner

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i f *. © Otdip* qfricain by L’Hannattan, 1984
© by Editor* Escuta, da edição em língua portuguesa

Dados de Catalogdção na Publicação (CIP) Internacional


(Cfimara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ortigues, Marie-Cécile.
Édipo africano / Marie-Cécile & Edmond Ortigues; tradução de
Claudia Berliner. — São Paulo: Editora Escuta,
1989.

Bibliografia.

1. Antropologia-Senegal 2. Complexo de Édipo


3. Psicanálise - África I. Ortigues, Edmond. II. Título.

I S B N -85-7137-013-3

CDD-616.8917096
-154.24
-301.09663
89-0156 NLM-WM 460

índices para catálogo sistemático:

1. Á frica: Psicanálise: Medicina 616.8917096


2. Complexo de Édipo: Psicologia 154.24
3. Senegal: Antropologia 301.09663

Editora Escuta Ltda.


Rua Dr. Homem de Mello, 351
QS007 São Paulo, S.P.
T*l.: (011)257-6370
1989

1
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................. 11
Capítulo I - QUESTÕES METODOLÓGICAS............ 19
1. A população de consultantes....................... 26
2. A entrevista com os p a is .............................. 28
3. A entrevista com a c ria n ça.......................... 53
Capítulo H - DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES
DAS POSIÇÕES ED ÍPIC A S............................ 65
1. O falo co letiv o .............................................. 66
2. O ancestral inigualável................................. 73
3. O drama de superar “os irmãos” ................. 86
Capítulo m - A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LU­
GAR DO P A I....................................................... 123
1. Os ritos de possessão ................................... 124
2. A psicoterapia de uma criança s e re r............ 142
3. Entrevistas com um p sicó tico ....................... 169
Capítulo IV - AS INTERPRETAÇÕES PERSECU-
TÓRIAS ......... .......................... . . . . . v . ------ 195
1. A bruxaria ....................... „............................ 200
2. A m arabutagem ............................................ 221
3. C o n clu são ........................................... 234
Clpftulo V - AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA
ANÁLISE DOS D ELÍR IO S............................ 241
1. O surto delirante em psiquiatria africana . . 243
2. Dois casos clínicos: tentativa de um método
de an álise............................................................ 247
Capítulo VI - A INDIVIDUALIDADE HUM ANA___ 273

ANEXO I - Nota sobre as etnias wolof, lébon e serer . . 303


ANEXO II - Um rito para os súcu b o s............................ 311

OBRAS CONSULTADAS (1 9 6 6 )................................... 315


LÉXICO ............................................................................ 325
TRABALHOS DOS A U TO RES..................................... 329
NOTA

A terceira edição de Édipo africano reproduz, sem


modificações, as observações clínicas e etnográficas recolhi­
das entre 1962 e 1966. As exposições teóricas de introdução
e conclusão (capítulo VI) foram refeitas para dar conta do de­
senvolvimento de nossas reflexões nos últimos vinte anos.

Fevereiro de 1984
INTRODUÇÃO*

O estudo que apresentamos é uma reflexão sobre quatro


anos de prádca psicanalítica num meio hospitalar em Dakar
(1962-1966).1
A proposta deste trabalho não é explicar a psicologia de
um povo nem atribuir aos indivíduos uma mesma “personali­
dade básica” , um mesmo tipo coletivo. Propõe-se a relatar
uma experiência clínica na qual o doente e o clínico, o con-
sultante e o consultado, acabam tendo que questionar alguns
esquemas de suas respectivas tradições. O doente, porque re­
corre ao “médico europeu” por não estar satisfeito ou não
esperar ficar satisfeito com os tratamentos tradicionais. O clí-

* Texto de 1984.
1. É grande a nossa dívida para com o professor H. Collomb que ofereceu
generosamente seus serviços a M.-C. Ortigues. Agradecemos também os psi­
quiatras do Centro hospitalar de Fann, e especialmente os Drs. H. Ayats, Moussa
Diop, P. Martine com quem uma amigável colaboração sempre nos foi útil. Ao
Dr. Moussa Diop devemos, além disto, inúmeras informações sobre os dados
culturais senegaleses. Agradecemos profundamente os psicólogos A. Leval-
lois-Colot, J. Rabain, N. Le Guérinel, E. Pierre, M .-T. Montagnier, A. Zemple-
ni que colaboraram com nossas pesquisas.
13 ÉDIPO AFRICANO

DÍCO, porque é obrigado a reconsiderar tudo o que ligava sua


prftiça a um certo contexto social.
Este livro é, portanto, principalmente uma introdução à
prática clínica na África. Existem alguns trabalhos que utili­
zam a psicanálise para fins etnológicos; paírtimos de uma
perspectiva contrária, encontramo-nos na obrigação de recor­
rer a fontes de informação etnográfica para responder às
questões cotidianamente levantadas pelas observações clíni­
cas. As necessidades práticas do atendimento nos levaram a
empreender um trabalho de pesquisa que não estava previsto
inicialmente.
O primeiro capítulo lembra algumas das dificuldades que
marcaram o começo da pesquisa. Este período de tentativas e
erros foi, para nós, de grande importância metodológica pois
as relações entre etnologia e psicanálise não são óbvias. As
duas disciplinas estão submetidas a exigências opostas. O et­
nólogo busca informações; o clínico recebe consultantes que
desejam se dirigir a ele, e ele não pode avaliar de antemão a
possibilidade e os limites do campo psicanalítico gerado pela
demanda do paciente. Aqui as preocupações de pesquisa de­
vem dar lugar a outras exigências. A necessidade de respeitar
a extensão variável do campo psicanalítico é um dado funda­
mental do problema. Pode-se sempre fazer etnologia; pelo
contrário, o psicanalista não pode garantir de antemão que,
em determinadas circunstâncias, seu instrumento não possa se
esvair, por entre seus dedos. Esta situação precária não é,
aliás, particular da África. Não se prescreve uma psicotera-
pia; pode-se apenas indicar a possibilidade no caso em que os
interessados a desejem.
O segundo capítulo é uma espécie de introdução geral
aos dados da clínica africana comparados às noções conheci­
das na Europa. Perceber-se-á que, de uma sociedade para a
outra, não são as mesmas coisas que parecem familiares ou
estranhas. Os parâmetros não são os mesmos. Em contraparti­
da, nos capítulos seguintes (III - V) o ponto de vista compa­
rativo passa para segundo plano. O leitor tem que aprender a
INTRODUÇÃO 13

deixar de lado suas referências para seguir os dédalos de um


trabalho analítico inscrito nas categorias próprias às tradições
africanas.
No começo de nossa estadia no Senegal e antes de em­
preenda: um trabalho clínico, tendíamos a pensar, como todo
mundo, que o complexo de Édipo provavelmente não existia
na África. Não tínhamos uma idéia precisa a respeito. Ainda
estávamos sob a influência dos cursos dados por Maurice
Merleau-Ponty sobre a escola culturalista americana, onde as
questões eram abordadas desde um ponto de vista totalmente
diferente daquele que se nos impôs em seguida. As observa­
ções clínicas em Dakar nos mostraram que a questão do pai
aparecia no meio africano com a mesma constância que na
Europa, e entre os Serer matrilineaies tanto quanto entre os
Wolof patrilineares. A constante referência ao pai era um
teste decisivo, um fato inquestionável.
Exporemos no capítulo VI nossas conclusões gerais e
nossas hipóteses. Mas para permitir que o leitor se oriente no
longo estudo descritivo das observações clínicas, seria útil
definir aqui algumas noções.
Chama-se “complexo de Édipo” ao processo psicológico
de diferenciação sexual entre menina e menino que se mani­
festa através de uma atração da criança pelo pai do sexo
oposto, acompanhada de ambivalência ou de rivalidade pelo
pai do mesmo sexo. Esta definição é puramente sintomática
ou etológica. O aparecimento da sexualidade infantil parece
corresponder a um período de sensibilização pelo congênere
comparável ao que os etólogos observaram nos animais. Os
jogos de sedução e de rivalidade sexuais não são próprios à
espécie humana, e a inibição que impede o jovem macho de
copular com sua mãe pôde ser observada entre os macacos ou
outras espécies. O que distingue o homem do animal é que a
referência ao pai se inscreve de uma maneira estável na lin­
guagem e nas instituições, o que faz surgir uma importante
diferença entre inibição e interdito.
O uso da palavra confere ao processo de diferenciação
14 ÉDIPO AFRICANO

■tXUll uma função simbólica na gênese das regras sociais. O


que K entende por “função simbólica” ? Essencialmente duas
coisas: por um lado, o uso de uma sintaxe e de um vocabulá­
rio linguístico, por outro lado, a possibilidade, inerente à lin­
guagem, de marcar posições pessoais de maneira tal que re­
gias sociais possam ser distinguidas de intenções individuais.
Para o clínico e o antropólogo este é o ponto mais importante
na prática e requer algumas explicações. Não se deve con­
fundir os procedimentos de representação e aquilo que se faz
sodalmente utilizando estes procedimentos. Para que um pro­
cedimento de representação ou de dicção adquira um valor
simbólico é preciso que possa ser aceito socialmente introdu­
zindo uma forma de comunicação. O símbolo se define essen-
cialmente pelo que faz. O que faz o símbolo valer é uma forma
de ação que repercute sobre si mesma dando aos indiví­
duos a possibilidade de se reconhecerem, quer seja de manei­
ra geral como pessoas, membros da comunidade humana,
quer seja de maneira mais particular, como parceiros ligados
entre si por um certo tipo de convenção ou de solidariedade.
O batizado nos faz cristãos, o registro civil nos confere a ci­
dadania etc. O símbolo tem um valor duplo, representativo e
pragmático. Quando distinguimos uma pluralidade de senti­
dos, o sentido próprio ou literal e uma diversidade de senti­
dos figurados, não devemos cair na armadilha desta enumera­
ção: o “ sentido” não é uma espécie de coisa que pode ser
contada, há apenas diversas formas de falar, diversas expres­
sões. Quando Victor Hugo diz que o infinito é “uma boca de
sombra” , ele não muda o valor léxico das palavras, ele con­
vida o leitor a im aginar algo que não é fisicamente, mas sim
figurativamente, uma cavidade bucal. A metáfora é uma obra
aberta assim como a música; o compositor precisa de um exe-
cutante para “ interpretar” sua obra, assim como a obra poéti­
ca só se realiza com a participação do leitor. O símbolo re­
quer nosso consentimento; se um leitor julgar inaceitável a
expressão utilizada por Victor Hugo, não acontece nada, mas
se aceitar a convenção poética estará convidado a participar
INTRODUÇÃO IS

da criatividade da linguagem. Se vocês me perguntarem o que


significa: “o infinito é uma boca de sombra” , responderei que
isto depende da sua imaginação; cabe a vocês saberem se
aceitam ou não entrar no jogo, mas se vocês aceitarem, parti­
ciparão da criação poética assumindo seus riscos. Isto não
significa que o símbolo representa qualquer coisa, mas sim
que autoriza diversas paráfrases, assim como uma obra musi­
cal pode receber diversas interpretações, sendo algumas jul­
gadas melhores do que outras segundo os gostos e as compe­
tências. O que é simbólico é social.2 O exemplo citado sugere
isto superficialmente: o símbolo convida aqueles que aceitam
participar de uma certa atividade a se reconhecerem como li­
gados entre si por determinadas cumplicidades, certas formas
de comunidade cultural, moral ou religiosa. Para que um sím­
bolo seja vivo, é preciso aceitar entrar no jogo. E não é pos­
sível de outra forma, pois a relação de similitude (base da
metáfora) não é uma relação conceituai (qualquer coisa pode
se parecer com qualquer coisa). Tanto em ciência quanto em
literatura o pensamento criativo utiliza analogias ou similitu-
des antes de poder dizer “ sob que aspecto” ou “ de que ponto
de vista” as coisas se parecem; é preciso aceitar participar do
risco da criatividade antes de saber se se conseguirá justificar
a descoberta. A posteriori (après-coup) podemos explicar a
metáfora através de comparações, mas neste momento passa­
mos para o comentário; não há m ais convenção atual a ser
aceita, basta adequar-se às convenções habituais da gramática
ou do léxico. Também a relação de contigüidade (base da
metonímia) é indiferente à natureza das coisas e, portanto,
também funciona como uma disposição prática a aceitar ou
recusar certas aproximações prévias a qualquer justificação
conceituai. De qualquer maneira, o simbolismo social ultra­
passa a questão dos procedimentos retóricos. É a função sim­

2. Sobre a noçSo de símbolo na antropologia e na história das religiões, ver


E. Ortigues Le discours et le symbole, Paris, Aubier, 1962 e 1977, III, cap. 2, pp.
188-228.
16 ÉDIPO AFRICANO
bólica, por exemplo, que nos permite conceber que um perso­
nagem seja substituível por outro num mesmo estatuto. Na
medida em que um símbolo se define pelo que faz ao introdu­
zir regras de comunicação, compreende-se que possa ser um
instrumento organizador da atividade humana.
Para retomarmos nosso problema, os jogos de sedução e
de rivalidade sexuais, comuns a diversas espécies animais,
vêm acompanhados, no ser humano, de um simbolismo orga­
nizador. Quando se fala de uma sucessão de fantasias pré-
edípicas, depois edípicas, alude-se a uma série de transforma­
ções onde a relação a dois (na qual cada um remete ao outro
sua imagem invertida como num espelho, ou sua imagem
complementar como numa relação da parte com o todo) dá
lugar a uma relação a três, um conjunto ordenado onde se di­
ferenciam alternativas permitidas ou interditas, posições pes­
soais e obrigações sociais. A primeira tarefa da análise é a de
explicitar estas diferenças de estruturas relacionais. Mas seria
um erro limitar-se ao inventário dos personagens e de suas
relações ou às anedotas do romance familiar. A finalidade da
análise é chegar a perceber o tipo de problema que o indiví­
duo se coloca e a sua maneira de tentar resolvê-lo. O que ca­
racteriza a afabulação é dar respostas a perguntas que, na
maior parte do tempo, nunca foram formuladas. Certos mitos
de origem, por exemplo, contam que os primeiros seres pro­
vêm do ovo primordial e que apenas depois vieram seres nas­
cidos de um casal sexuado. Vocês poderíam considerar isto
como um curso realista de história natural, mas se tomarem o
relato como um mito, será necessário restituir a pergunta
subjacente: nascido de um? Ou nascido de dois? O mito loca­
liza a questão das origens sob a forma de uma alternativa re­
ferente às relações entre os descendentes e seus ascendentes.
O importante não é tanto o que o mito conta (a história natu­
ral) mas o que ele faz simbolicamente: localiza a questão das
origens dando-lhe uma certa forma social ou socializável e,
ao mesmo tempo, permite falar de algo que, de outra forma,
permanecería no indizível; fornece à inquietude humana uma
INTRODUÇÃO 17

referência simbólica, um meio de se tomar comunicável indi­


retamente (mesmo se não é suficiente para expressar o as­
pecto pessoal, biográfico desta inquietude). De maneira aná­
loga, o que procura aparecer nas fantasias edípicas são as
questões mais gerais da vida humana: o que é ser um homem
ou uma mulher?; o que é bom ou mau, permitido ou interdito?
Todas estas questões dizem respeito à ética, e é por isto que
Freud diz que o complexo de Edipo se resolve na gênese da
consciência moral ou do supereu. Na verdade, há aí um equí­
voco. Se se entende por “consciência moral” um certo poder
de deliberação e de decisão, convém então precisar que o su­
pereu é algo diferente, não é diretamente acessível à argu­
mentação. Freud definiu o supereu como a interiorização da
autoridade parental (por um processo que compara ao do luto:
a interiorização do objeto de amor perdido). Neste sentido, o
supereu é uma regulação inconsciente que funciona por meio
da inibição e da censura. E a sobrevivência de uma moral in­
fantil que personifica a autoridade e cuja única justificação
ou “razão” é a de manter um laço de dependência para com
os ascendentes. Neste sentido, o supereu será tanto mais fe­
roz, exigente ou escravizante quanto mais ficar personificado
em perseguições infantis. Mas, por razões que aparecerão no
curso deste livro, a questão do supereu não deixa de ter rela­
ções com certos aspectos do sentimento religioso. E, assim
sendo, veremos que remete a uma questão subjacente, mais
fundamental que a ética do sexo e que é a questão das ori­
gens. É esta a questão que reaparece, de maneira privilegiada,
na psicose.
Estas são algumas das indicações que nos pareceram úteis
para introduzir a leitura deste livro que não é apenas um es­
tudo sobre a África, mas também o resultado de uma expe­
riência que nos fez ver muitas coisas da vida sob um novo
ângulo.
QUESTÕES METODOLÓGICAS

Para o praticante da civilização ocidental, a prática psi­


quiátrica na África, em Dakar, está marcada por pesados
handicaps entre os quais a existência de apenas um pequeno
número de estudos em psicopatologia e menos ainda a res­
peito da psicologia “normal” 1; existem apenas trabalhos et­
nológicos sobre a questão. Neles são descritas constantes de
comportamento mas não os caminhos adotados pelos sujeitos
para se construírem numa determinada sociedade e resolve­
rem as tensões de suas vidas. Da mesma forma, toda a zona
das neuroses e das perturbações mentais menores é pouco co­
nhecida, pouco explorada; os psiquiatras, em número reduzi­
do na África, estão sobrecarregados com as tarefas assisten-
ciais e tratam, principalmente, dos casos mais graves ou da­
queles menos tolerados pelo meio.
1. Entre os trabalhos que nos trouxeram elementos preciosos no começo,
citemos dois dos Drs. Geber e Faladé a respeito dos lactentes, seu desenvolvi­
mento psicomotor, o desmame; os estudos de F. Moreigne e S. Valantin sobre
testes de desenvolvimento e de nível; o estudo de M.-Th. Knappen sobre a crian­
ça Mukongo e, naturalmente, os trabalhos etnológicos a respeito das etnias do
Senegal.
20 ÉDIPO AFRICANO

Não é preciso postular diferenças “raciais” para pensar


que uma criança ou um adulto senegalês possam ter um ritmo
de desenvolvimento, um tipo de equilíbrio psicossomático, de
adaptação social, modos de reação, sensivelmente diferentes
daqueles de seus contemporâneos europeus. A história, as
culturas tradicionais, as estruturas e costumes familiares, os
modos de educação, sem falar do processo de aculturação rá­
pida em curso, levam a indagar sobre a originalidade da psi­
cologia africana (ou melhor, da psicologia de tal ou qual po­
pulação africana). Trata-se de um problema de psicologia di­
ferencial que pode contribuir para esclarecer, por comparação,
certos aspectos da psicologia européia.2
As dificuldades da prática psiquiátrica na África, da qual
apenas mencionamos um aspecto, foram várias vezes descri­
tas pelo professor Henri Collomb3 que, para responder a elas,
estabeleceu em 1962 um conjunto de pesquisas em sociolo­

2. Um exemplo: em Dakar, cidade de 400.000 habitantes, pode-se estimar


atualmente em um mínimo de 15.000 o número dos homens jovens de 14 a 24
anos sem emprego ou tendo apenas empregos temporários (com 25 anos, há ainda
28% de ociosos); muitos dentre eles perambulam desocupados pelas ruas; muitas
vezes vieram do interior na esperança de encontrar trabalho na cidade. Ora, a de­
linquência juvenil £ mínima e não tem as mesmas características da Europa. Tra­
ta-se de uma delinquência essencialmente primária, com ausência de bandos com
estrutura estável, ausência de comportamentos agressivos e reivindicativos. Estas
características também foram encontradas nas outras cidades africanas onde fo­
ram feitos estudos. A marcante diferença com o que sabemos dos adolescentes
europeus delinqúentes obriga o sociólogo e o psicólogo a se perguntarem sobre
ela, talvez em proveito de uma melhor compreensão dos dois grupos. Cf.: a) Es­
tudo das condições de vida da criança africana em meio urbano e de sua influên­
cia sobre a delinquência juvenil: pesquisa feita em Madagascar, na República dos
Camarões e na Costa do Marfim de 1954 a 1957 pelo Centro Internacional da In­
fância, com a ajuda dos serviços sociais da França de além-mar. Centro Interna­
cional da Infância, Travaux et Documents, XII, Paris, 1959; b) E. Pierre, J.-P.
Flamand e H. Collomb, “ La délinquance juvénile à Dakar*', Revue intemationcde
de poüce criminelle, ns 20; c) M.-C. Ortigues, A. Colot, M.-T. Montagnier, “ La
délinquance juvénile â Dakar, étude psychologique de 14 cas” , Psychopathologie
africaine, 1 ,1965, pp. 85-129.
3. H. Collomb e J. Zwingelstein, “ Assistance aux malades mentaux et aux
épileptiques au Sénégal” , III! Jornada médica de Dakar, Còlóquio de saúde pú­
blica, 9-10 de janeiro de 1963, pp. 51-56.
H. Collomb, “ Psychiatrie en Afrique” , in Psychiatrica in África, Clinicai
QUESTÕES METODOLÓGICAS 21

gia, etnopsiquiatria e psicologia. O “atendimento psicológi­


co” , aberto na clínica neuro-psiquiátrica do Centro hospitalar
de Fann e confiado a M.-C. Ortigues, constituía uma parte
deste conjunto.4
O fato de dar à pesquisa a forma de um atendimento não
se devia apenas a circunstâncias externas mas a uma escolha
deliberada; respondia a certas exigências teóricas referentes
às relações entre a psicanálise e as ciências sociais. Explica­
mos a seguir a posição adotada.
Não se pode conceber de forma dtil a colaboração entre
etnólogo e psicanalista se não se percebe claramente, desde o
início, não apenas o que os distingue mas o que os opõe.
O etnólogo busca informações. Com relação às popula­
ções a quem se dirige, o etnólogo é demandante. Para o psi­
canalista, pelo contrário, é a demanda emanando do sujeito
que é a condição primeira indispensável para que se estabele­
ça uma situação analítica. O psicanalista recebe a demanda,
escuta-a e tenta entendê-la, isto é, procura deixar que, pouco
a pouco, da demanda manifesta surja o desejo latente.
É claro que procuramos dirigir para o atendimento “de­
mandas” já existentes e não suscitá-las diretamente. O exame
clínico tal como o descrevemos e, a fortiori, a situação de

and Social Psychiatry and lhe Problems o f Mental Health in África, Vancouver,
1964.
M.-C. Ortigues e H. Collomb, “ Psychologie clinique en milieu africain” ,
BuOetins et mémoires de Ia Faculté rrixte de m ídècine et de pharm ade, DAKAR,
XI, 1963, pp. 175-178.
M.-C. Ortigues e P. Martino, “ Psychologie clinique et psychiatrie en mi­
lieu africain” , Psychopathologie africaine, 1 ,1965, pp. 240-250.
4. Para situar o marco de nossa pesquisa, digamos algumas palavras sobre a
clinica neuro-psiquiátrica do Centro hospitalar de Fann. Situa-se no centro da ci­
dade, num bairro de Dakar em recente expansão. Único serviço de psiquiatria
existente na África Ocidental, tem uma capacidade de 140 leitos (somente para a
psiquiatria) e recebe principalmente grandes doentes mentais. Por falta de lugar,
no entanto, muitos doentes psicóticos são tratados externamente. O número de
consultas mensais em psiquiatria 6 da ordem de 1.000. Não existe no Senegal
condutas de internamento, trata-se, portanto, de um serviço aberto. A atmosfera
acolhedora, calorosa, inclusive familiar que nele reina, surpreende todos os visi­
tantes.
22 ÉDIPO AFRICANO

psicoterapia individual, têm implicações sociológicas evi­


dentes. Supõem que a demanda é formulada num âmbito hos­
pitalar, no frente a frente de um consultório. A relação trans­
ferenciai que se estabelece entre o consultante e o clínico
convida aquele a assumir, de forma mais pessoal, mais cons­
ciente, a sua própria vida; leva-o a uma interiorização maior.
Mas, esta orientação da evolução individual pode ser muito
diferente daquela que determinado meio tradicional propõe
aos indivíduos, muito diferente daquela que o grupo pode to­
lerar. Pode inclusive levar a uma ética diferente da do grupo,
pela sua própria lógica interna. Assim, o indivíduo bem inse­
rido numa estrutura social ainda muito coletivista, terá que
levar em consideração as necessidades de sua mãe ou de suas
irmãs antes das de sua esposa, obedecer às ordens dos mais
velhos a respeito das opções importantes de sua vida. Depois
de uma série de entrevistas, tenderá freqüèntemente a se defi­
nir mais em relação a si mesmo do que ao grupo... Percebe-se
os problemas que isto trará para ele. Não cabe a nós levan­
tá-los. Mas, e é preciso insistir, o convite a uma interioriza­
ção maior é uma exigência da situação de exame e de psico­
terapia, não é uma exigência do clínico, que ele podería do­
sar de acordo com os consultantes que o procurassem. Não
nos damos o direito de colocar nesta situação alguém que não
o demande. Nos nossos exames nunca ultrapassamos - pelo
menos intencionalmente - a demanda dos consultantes; nunca
prolongamos exames “para ver” , “para compreender” , nunca
iniciamos uma psicoterapia porque o caso nos parecia “itite-
ressante” . Trata-se não apenas de respeitar uma ética profis­
sional, mas também de garantir a coerência de nosso material,
pois a compreensão psicanalítica, rigorosamente entendida,
aplica-se apenas ao discurso de alguém que se interroga (ou
que interroga) sobre sua própria vida. É a interrogação do su­
jeito que cimenta e estrutura a situação.

Assim, a posição que foi adotada por P. Parin, F. Mor-


genthaler e G. Parin-Matthey para suas entrevistas psicanalí-
QUESTÕES METODOLÓGICAS 23

ticas com Dogons5 nos parece discutível. Pode-se realmente


falar, nestes casos, de entrevistas psicanalíticas? Os sujeitos
não demandavam nada, vinham a convite, para falar... para se
distrair talvez, não sabemos, por um pouco de dinheiro, já
que os autores citados, calcando sua conduta na dos etnólo­
gos, pagavam seus consultantes-informantes. Em outras pala­
vras, neste caso é a demanda do “analista” que estrutura as
entrevistas e é seu desejo latente que deveria ser decifrado.
Não negamos que o material recolhido por P. Parin, F.
Morgenthaler e G. Parin-Matthey possa dar indicações sobre
tal ou qual aspecto da personalidade de seus pacientes-infor-
mantes, por exemplo, sobre os mecanismos de defesa ou as
fixações dominantes. Todavia, para dar conclusões de con­
junto sobre a personalidade dos sujeitos, seria necessário po­
der compreender em que medida o que se constata é induzido,
favorecido, privilegiado pela situação analítico-etnológica. Se
um sujeito aparece em determinada posição pré-genital, se­
gundo determinada identificação privilegiada, é porque estas
são suas posições dominantes ou será esta sua maneira de
responder ao que para ele é, ao que para ele significa a de­
manda do etnólogo? Como resolver esta dúvida?
Parece-nos que as perspectivas psicanalítica e etnológica
são incompatíveis na ação. Em contrapartida, um material re­
colhido numa situação analítica correta deve ser esclarecido
pelas informações etnológicas, mas apenas em seguida, num
segundo tempo. Trabalhamos continuamente para enriquecer
nossos conhecimentos etnológicos que nos permitam melhorar
a qualidade de nossa escuta quando os consultantes se diri­
gem a nós, mas este é um procedimento distinto da própria
èscuta.
Sem dúvida deixamos passar sem investigação aprofun­
dada “belos casos” e aconteceu de lamentarmos que determi­

S. P. Pariu, F. Morgenthaler, G. Parin-Matthey, Die Weissen denken zuviet,


psychoanalytische Untersuchungen bei den Dogon in West-Africa, Zurique,
Atlantis, 1963.
24 ÉDIPO AFRICANO

nado consultante limitasse extremamente sua demanda. Nunca


empreendemos uma análise no sentido clássico do termo: en­
contros freqüentes, paciente no divã, perspectiva de uma lon­
ga duração..., apenas psicoterapias face a face. Poucas dentre
elas chegaram a comportar trinta sessões. Consideramos que
esta limitação imposta à nossa prática pela demanda dos su­
jeitos tem, em si mesma, uma significação positivá. Inscreve-
se num contexto sócio-cultural onde a conveniência do ins­
trumento psicanalítico talvez não seja óbvia.
Não queremos abordar aqui a difícil questão das indica­
ções de psicoterapia psicanalítica para a população de nossos
consultantes, basta sublinhar que consideramos como condi­
ção indispensável de todo trabalho clínico, uma situação de
exame ou de psicoterapia corretamente definida. Também os
analistas que trabalham no seio de sua própria cultura sabem
que, na prática, a preocupação em se informar pode enviezar
o diálogo estabelecido com o consultante e que este é um
problema, entre outros, de controle do campo analítico.
Há, ainda, outro ponto sobre o método que deve ser pre­
cisado. Era necessário começar estudando as crianças e de­
pois tentar seguir seu desenvolvimento psicológico no correr
das idades? Escolhemos a posição contrária, a de estudar
primeiro os adolescentes e as crianças em idade escolar, dei­
xando para um segundo tempo o estudo do período pré-esco-
lar e os primeiros anos. Precisávamos nos dirigir primeiro a
sujeitos que pudessem se encontrar* numa situação analítica
normal, enquanto que com as crianças pequenas teríamos sido
obrigados a proceder através de observações de comporta­
mento e questionários. Na falta de análises de adultos ou de
adolescentes, os dados recolhidos pela observação das crian­
ças pequenas teriam sido dificilmente interpretáveis. A visão
retrospectiva se impõe pelo método psicanalítico. Só se pode
compreender os trajetos da infância com referência à perso­
nalidade dos adultos, numa determinada cultura. Foi esta a
ordem seguida pelas investigações psicanalíticas na Europa.
As observações que acabamos de fazer ajudarão a com­
QUESTÕES METODOLÓGICAS 29
preender porque, antes de apresentar o resultado de nossas
pesquisas, dedicaremos um primeiro capítulo a questões de
metodologia. O fato de abrir um serviço de consultas psicoló­
gicas em Dakar impunha ao psicanalista questionar muitos
pressupostos, tanto de seu estatuto quanto de sua ação. Pro­
veniente de uma cultura diferente da de seus consultantes, de
uma cultura que secretou técnicas que ele utiliza, deve se
perguntar sobre o lugar que ocupa ou que acredita ocupar,
sobre o que pode significar - ao nível tanto sociológico
quanto individual - sua oferta de serviços. Deve se perguntar
como esta se insere no movimento de transformação das so­
ciedades senegalesas. É levado, fato novo paia ele, a pensar a
si mesmo a nível sociológico, isto é, solidário de uma certa
cultura. Precisa se redefinir, assim como redefinir sua ação.
Será apenas na disponibilidade para este questionamento que
ele poderá fundar sua eventual utilidade ou eficácia.
Apenas nos capítulos seguintes poderemos abordar o ob­
jeto propriamente dito deste livro: a presença ou a ausência
do complexo de Édipo em certas etnias do Senegal. A signifi­
cação desta questão não podería ser corretamente percebida
se não víssemos como ela nasce na prática, como ela se impôs
para nós durante nosso trajeto. É por isso que nossa exposi­
ção metodológica será apresentada como um relato dos iní­
cios da pesquisa.
Começaremos descrevendo nossa situação de trabalho:
uma psicóloga européia, num âmbito hospitalar, recebendo
uma família africana geralmente encaminhada por um médico
ou um professor. Definiremos inicialmente a população de
nossos consultantes. Veremos, em seguida, os problemas que
emergem das entrevistas com os pais e depois as com as
crianças.
26 ÉDIPO AFRICANO

1. A POPULAÇÃO DOS CONSULTANTES

Não existia, em Dakar, atendimento psicológico para


crianças. Era, portanto, preciso suscitar uma “clientela” . Os
psiquiatras encaminharam as poucas crianças de seu serviço
de atendimento cujas perturbações orgânicas não prevale­
ciam, também os pediatras nos encaminharam crianças e, num
primeiro tempo, escolhemos lidar com a população escolar,
pelas seguintes razões:
O conglomerado de Dakar está constituído por uma mis­
tura de diversas etnias onde dominam os Wolof e os Lébou,
mas onde também estão representados os Serer, Casamance-
ses, Toucouleur etc.6. Além disto, entre as famílias instaladas
em Dakar, algumas estão fixadas na cidade há uma ou duas
gerações, outras chegam do interior e, inclusive, freqüente-
mente as crianças vêm sozinhas, confiadas a parentes, para
serem escolarizadas. Embora a influência do Islamismo seja
predominante (92% da população), ela é muito desigual, coe­
xistindo com ela uma importante base de animismo.
Assim, raras foram as crianças que examinamos para
quem os “diabos” ou os rab7 pão eram considerados respon­
sáveis por suas perturbações,- pelo menos por uma parte da
família. Alguns marabutos são também bruxos e “charlatães” .
Da influência católica, menos extensa, poder-se-ia dizer a
mesma coisa quanto à sua coexistência com práticas e crenças
tradicionais: na região serer, os bruxos operam paralelamente
aos padres. A heterogeneidade dos hábitos, costumes e graus
de urbanização, acrescenta-se a das religiões.

6. A população de Dakar e sua periferia - em tomo de 400.000 habitantes -


compõe-se de: Wolof 38%, Lébou 12%, Casamanceses 2,5%, Toucouleur 12%,
Peul 5%, grupos sudaneses 5%, Maures 2,5%, Serer 6%, libaneses 2%, europeus
15%. Uma em cada 12 pessoas pertence à população flutuante: imigração sazonal
e pessoas de passagem. A taxa anual de crescimento da população é de 17%. V.
Martin, Recensement dimographique de Dakar, 1955 e suplemento de 1958.
7. Rab ou espíritos ancestrais, entre os Wolof e os Lébou: cf. cap. IV.
QUESTÕES METODOLÓGICAS 27

No entanto, esta população complexa tem por denomina­


dor comum o fato de estar envolvida num rápido processo de
aculturação, de modificação das estruturas familiares: en­
quanto que entre os Serer o regime matrilinear continua ainda
preponderante, está em vias de desaparecimento entre os Lé­
bou; já os Wolof, há mais tempo islamisados, tomaram-se pa-
trilineares. Este processo implica uma transformação de todas
as relações inter-pessoais, a diferenciação da moral familiar e
da moral cívica. Há uma inelutável exigência de que os indi­
víduos acedam a um grau mais diferenciado de indepedência
pessoal, de autonomia. Nossa hipótese foi de que a escola, a
população escolar e os problemas que ela nos traria, permiti-
riam que nos situássemos neste lugar das tensões provocadas
pela passagem entre duas formas de cultura, estruturas tribais
e estruturas ocidentais; que a escola podería ser uma tela de
projeção relativamente estável e privilegiada dos problemas
individuais e familiares mais comum a esta sociedade em
transformação.
Com efeito, a colocação da criança na escola é, ffeqüen-
temente, o ato significativo por excelência através do qual as
famílias escolhem se inserir na corrente de transformação. E a
criança escolarizada que será o suporte das projeções familia­
res relativas ao futuro de cada um e. do grupo.
Veremos na seqüência, que nossas observações estão
centradas ora nesta população escolar, verdadeiro melting pot
étnico mas que tem por característica estar submetida a um
rápido processo de aculturação, e, em outros momentos, em
algumas etnias especificadas: Wolof, Lébou, Serer. Em anexo
resumimos (cf. anexo I, p. 303) as principais características
dessas etnias apoiando-nos nos trabalhos existentes; damos as
ftütões pelas quais as escolhemos.
Além disto, dirigir-se a crianças escolarizadas era garan­
tir uma proporção importante de crianças “normais” . Limita­
mos também o handicap constituído pelas diferenças de lín­
guas, já que as crianças aprendem o francês na escola.
Como nos dávamos conta de que o meio escolar apre­
28 ÉDIPO AFRICANO

sentava características muito particulares ligadas à rápida


evolução do país, empreendemos um pequeno estudo sobre
este meio.8 Estas características estão apontadas em todos os
trabalhos sobre a escolarização na África negra, mas para nós
tratava-se de ter uma percepção e uma compreensão mais pre­
cisa deste meio na região de Dakar, afim de poder distinguir
os problemas decorrentes dos indivíduos, daqueles relaciona­
dos às condições sociológicas.
Além dos escolares e dos estudantes, fomos rapidamente
levados a receber um certo número de adultos neuróticos ou
psicóticos.
No total, foram abertos 260 prontuários, dos quais 192 de
meninos e 68 de meninas; 178 prontuários de meninos foram
considerados aproveitáveis.
Relegamos para mais tarde a exploração dos prontuários
das meninas. Sua quantidade não nos permite suficientes veri­
ficações e comparações. As meninas e moças, menos escola­
rizadas no conjunto do que os meninos, raramente conseguem
se expressar em francês. Além disto, por causa da educação
que recebem, expressam-se pouco e a duras penas na frente
de um estrangeiro, um desconhecido. Nossos prontuários fe­
mininos são também muito menos ricos do que os dos meni­
nos.

2. A ENTREVISTA COM OS PAIS

A s dificuldades da língua

O primeiro obstáculo encontrado foi a língua. Se muitos


homens, pais, falam pelo menos um pouco de francês (em
torno de 50%), poucas mães o falam (em tomo de 10%).

8. A. Colot, “ La classe d’initiation dans 1’agglomération dakaroise” , Psy-


chopathologie africaine, 1 ,1965, pp. 13-150.
QUESTÕES METODOLÓGICAS 29

Exceto na burguesia (funcionários e profissionais libe­


rais), o francês não é falado em casa, mesmo quando o pai ou
os irmãos maiores o falam bem. As crianças entram no “mun­
do do francês” na escola, com 7-8 anos. Isto significa que
com os pais, a maioria das entrevistas são trabalhosas, sendo
freqüente a necessidade de um intérprete. A ajuda deles nos é
preciosa pois podem, muitas vezes, comentar alguns dados ou
completá-los pelas compreensão que têm deles. Em contra­
partida, nos transmitem apenas o aspecto objetivo das infor­
mações e não a maneira como são dadas, e resumem ao invés
de traduzir.

Quem são “ospais” ?

Numa alta proporção de casos, o consultante vem acom­


panhado não por seu pai ou sua mãe, mas por um “avô” , uma
“avó” , um “irmão mais velho” , uma “irmã mais velha” , um
“tio” ... Purante o exame, descobriremos frequentemente que
o “avô” é o pai de uma antiga co-esposa da mãe tendo um la­
ço de parentesco com o avô paterno; que a “avó” é uma “ir­
mã do mesmo pai” da avó materna; que o “irmão mais velho”
é um parente distante confiado aos pais do consultante para
ser educado por eles, que o “tio” , por fim, é um amigo do
pai que é respeitado como um tio (tomamos propositalmente
exemplos simples).
Em outros casos, várias entrevistas ocorrem antes que
descubramos que o “pai” que nos fala não é o genitor da
criança... Assim, o clínico percebe que são chamados “pai” ,
“mãe” , os parentes e aliados (e vizinhos) da geração dos ge­
nitores; “irmãos” , os primos mesmo de graus distantes; “tio” ,
aqueles que são particularmente respeitados e com cujo apoio
se pode contar.
O casamento é menos a constituição de um casal do que a
aliança de duas linhagens; sua finalidade é sua sobrevivência,
seu crescimento e a consolidação de seus laços mútuos. A
30 ÊDIPO AFRICANO

maioria dos casamentos são endogâmicos; o casamento prefe­


rencial com a prima cruzada ainda é amplamente praticado,
mesmo nas populações urbanizadas.9
A instabilidade dos casais é considerável.10 Os cônjuges
separam-se facilmente. O destino das crianças é decidido pelo
costume e a separação entre elas e os pais não é considerada
uma situação particularmente penosa; pelo menos é esta a re­
presentação coletiva, freqüentemente contradita, como cons­
tatamos mais tarde, pelas declarações reveladas a título pes­
soal. Sabe-se que não há “ Órfãos” na África, nenhuma crian­
ça abandonada, haverá sempre um parente mais ou menos
próximo <que oferecerá abrigo. Também as crianças de casais
estáveis são freqüentemente confiadas desde pequenas a tios
ou tias que se considera terem melhores condições de criá-las
dos que os pais. Na região serer, a metade dos meninos ainda
é criada pelo tio materno. Uma mãe nos explica:

Quando ele fica grande, dois anos, trés anos, é um menino, é pre­
ciso que vá para longe de mim para saber bem o que se faz. Se ele fi­
ca, diz para si mesmo: “Meu pai, minha mãe estão aí”* diz tudo o que
quer e o tem; não trabalha, vai para a escola mas não aprende suas li­
ções.

A criança também pode ser “dada” a um parente, a um


amigo solteiro ou idoso para lhe fazer companhia ou para
honrá-lo. Neste caso, o pai e a mãe não o retomarão, mesmo
se constatarem que a criança está muito infeliz ou é muito
maltratada: isto seria fazer uma afronta grave demais ao tutor;
inclusive é decente não inquerir muito sobre as condições de
vida da criança, “pensariam que estou vigiando” , dizia a mãe
de um menino criado longe dela.

9. A taxa de endogamia em Dakar é de: wolof 89,9%; toucouleur 83,2%;


lébou 81,6%; serer 75,9%. V. Martin, Recensement démografique de Dakar,
1955-1958.
10. Em Dakar, os homens de 55 anos divorciàram-se, em média, uma vez.
As mulheres de 50-60 anos casaram-se, em média, duas vezes. V. Martin, ibid.
QUESTÕES METODOLÓGICAS 31

No meio tradicional e ainda de forma muito ampla em


Dakar, a educação das crianças é garantida por todo o grupo
de mais velhos, cada nível etário estando submetido à autori­
dade dos níveis superiores e investido da função de educador
dos níveis inferiores. Isto não exclui que o pai, o tio ou de­
terminada outra pessoa tenha um lugar privilegiado na educa­
ção da criança. “Minha mãe trabalhou bem em mim” , signifi­
ca: minha mãe é uma mulher respeitável e respeitada, que
cumpriu todos seus deveres e eu me beneficio de seus méri­
tos. “Se a mãe faz coisas boas, o mal que recai sobre seu fi­
lho, isto o defende” , nos explica um adulto que ainda se
sente protegido por sua mãe morta há dois anos. Levamos
muito tempo para entender que a mãe, ainda que fosse anal­
fabeta, era considerada por seu marido e por seu meio como a
responsável pelo trabalho escolar de seus filhos.11
Como ligar com nossos arquétipos europeus de “bons
pais” a atitude deste pai modelo?

Militar wolof-toucouleur, tomou uma mulher num país limítrofe


do Senegal. Tem apenas uma esposa “para não prejudicar esta mulher
que não vive no seu país” . O relacionamento do casal é muito bom há
vinte anos. Tiveram 8 filhos; 7 estão vivos e são criados por eles com
toda sua atenção. O mais velho dos filhos apresentou perturbações
mentais severas e eles não pouparam esforços para tratá-lo.
Como se aproxima seu retom o à vida civil, o pai, extremamente
previdente, comprou bens no país de sua mulher, uma casa no Sene­
gal, e pretende, quando chegar a aposentadoria, voltar a ser agricultor
na sua cidade natal.
Como seu filho está hospitalizado na psiquiatria, nós o conhece­
mos há vários anos. Perguntamos a ele: “Está sua mulher contente
com seus projetos?” Ele responde: “Não falo de meus negócios, mi­
nha mulher não sabe sobre o que lhe falei. Acho que ela voltará para
seu país, fará o que quiser. - E as crianças? - Acho que irão com sua
mãe, gostam do país de sua mãe, escuto eles conversando sobre isto
com sua mãe mas não digo nada.”1

11. “ La mère africaine face à la scolarisation” , pesquisa de D. Storper e G.


Ogoundaré, Dakar, 1965.
32 ÉDIPO AFRICANO

A apenas um ano desta virada na vida familiar, nenhuma palavra


foi dita entre o homem e a mulher, e tampouco entre o pai e o filho de
dezesseis anos. O pai considera provável que se separará de todos os
seus e, embora sua ligação com eles não possa ser colocada em dúvida,
parece achar natural que cada um retome ao seu local de origem.

As referências sócio-culturais

Começa a entrevista: o pai, a mãe, um tio ou um avô nos


expõe a “doença” ou o “problema” : “Ele não quer trabalhar,
você bate nele, bate nele mas não adianta.” A questão é colo­
cada de forma simplista: ou má vontade ou doença. As vezes
o parente se contenta em dizer: “Me disseram para vir.” Às
vezes a verdadeira razão não é expressa diretamente, somos
obrigados a encontrá-la sob proposições anódinas ou que as­
sim nos parecem até que descobrimos suas implicações so­
ciológicas.

CASO 9: Birame G., catorze anos e meio, wolof, muçulmano

A mãe de Birame o leva ao psiquiatra, que o encaminha para nós.


Duas vezes a mãe descreve, de forma desordenada, o seguinte quadro:
“Faz xixi na cama. Confunde tudo. Brinca ao voltar da escola, não rica
em casa, é desobediente. É colérico, nervoso, mas isto não dura. Não é
respeituoso. Não é o mais duro da família, é o mais gentil, fala comigo,
me dá coisas. É mentiroso, preguiçoso. Gosta de jogar futebol. Gosta
de ir à escola mas não estuda. Quer ser burocrata. Não tem força. Bi­
rame não se entende com ninguém.”
Durante tuna outra entrevista com a mãe, e depois com a criança,
procuramos localizar neste conjunto os dados importantes. Ficávamos
perplexos diante da ansiedade provocada por este sintoma. Uma maior
familiaridade com o meio africano, sem dúvida, nos teria permitido en­
tender do que se tratava. Mas nossa informação, então insuficiente, nos
tomava incapazes. E foi o pai de Birame que, durante uma entrevista
subsequente, expôs claramente o drama vivido por toda a família nos
últimos dezoito meses: “Birame é impotente.”
A enurese, aqui, é freqüentemente considerada como equivalente
da impotência. No direito consuetudinário, a enurese, assim como a im­
QUESTÕES METODOLÓGICAS 33

potência, são causa de divórcio. A confusão do quadro inicial descrito


pela mãe traduz a ansiedade que experimenta ao revelar “um assunto de
família” de tamanha importância. No entanto, tudo estava dito: “Faz
xixi na cama... Não tem força.” 12
N
As vezes vinculam tudo a um acontecimento específico:

O pai de Birame vindo consultar por causa da “impotência” de seu


filho nos explicava assim a origem da doença: “Num monte que quei­
mamos, veio urinar sobre a areia que estava queimada. A urina sobre o
pó, o diabo não a quer. Se você urina, logo em seguida, ele te torna im­
potente ou outra doença, tremores e você está louco.”

CASO 38: Alioune N., mãe wolof, muçulmano

Aüoune, rapaz de catorze anos, é notado por um professor de 6-


por ter um “comportamento bizarro”: levanta o tempo todo o dedo com
um ar risonho e freqüentemente responde sobre outro assunto. Seus
resultados escolares às vezes são satisfatórios, às vezes nulos.
Assim que o problema foi colocado em termos escolares o pai diz:
“ Desde seu nascimento a criança não teve nenhuma dificuldade, mas
uma teia de aranha urinou nele, e isto é mau; se uma única gota cai
passa para toda a periferia; se urina sobre a comida pode provocar a
morte.”
O pai o levou pra ver o marabuto. Ele se curou. Mas o pai se es­
panta porque desde então “a criança às vezes faz gestos inconscientes.
Fica subitamente zangada, separa-se de todo mundo e briga sem ra­
zão.”

Como quer que fossem as formas de apresentação, era mais


fácil falar do que fazer... pelo menos até que levássemos em
consideração as exigências da polidez africana e a importância
do tempo nos estabelecimentos de contato. Para falar, é preciso
ter tempo, o tempo... o tempo de esperar, o tempo de se conhe­
cer, de se acostumarem uns com os outros, de perceber as in­
tenções. No Senegal as saudações habituais são longas, verda­
deiro ritual em forma de litanias; elas devem durar todo o tem­

12. Cf. p. 66 a exposição do caso de Birame.


34 ÉDIPO AFRICANO
po necessário para que o visitante fique à vontade; sua função
parece ser a de negar qualquer eventualidade de intenção
agressiva. Cabe ao mais velho dosá-las e começar a falar. É
preciso dar tempo ao consultante para tatear quem somos, para
perceber o interesse que temos por sua criança e por ele mes­
mo.

O fato de perguntar

Pois cabe a nós fazer perguntas quando gostaríamos de


nos calar e escutar. Estamos nesta difícil situação: ter que
perguntar sabendo, por um lado, que ignoramos o sentido que
adquirirão nossas perguntas para o interlocutor e, por outro,
que suas respostas, mesmo que fossem dadas em bom francês,
deverão ser decifradas por nós como se fossem uma lingua­
gem desconhecida. Deciframento tanto mais difícil na medida
em que nossas perguntas inadequadas poderão ter confundido
as pistas, mascarando certos dados, valorizando abusivamente
outros.
Mais ainda, o fato de perguntar, de formular questões
“pessoais” outras do que as que visam definir o estatuto, as
coordenadas espaço-temporais daquele a quem nos dirigimos,
não é habitual, é contrário aos costumes. As perguntas diretas
sáo tradicionalmente indiscretas, incorretas, inclusive sentidas
como agressivas.
Nossa colega que observa crianças pequenas na zona ru­
ral13 constatou que no espaço familiar (que é seu único local
de trabalho) onde familiares e vizinhos entram, saem, movem-
se ou dormem, falam, escutam... é quase impossível recolher
informações sobre as crianças por meio de perguntas diretas.
Particularmente, todas as perguntas que tenderíam a pôr em
evidência a saúde, a inteligência, a prosperidade, são consi­
deradas perigosas porque podem suscitar a inveja, os ciúmes
e, portanto, práticas de marabutagem ou de bruxaria. Desta

13. J. Rabain, V enfantdu Ugnage, Payot, Paris, 1979.


QUESTÕES METODOLÓGICAS 35

forma, não se deve perguntar sobre o número de filhos, a não


ser através de uma formulação indireta: não se diz “quantos
filhos você tem?” mas “quantos pedaços de madeira você
tem” ou “quantas sombras você tem?” . Convém nunca aludir
a uma gravidez em curso, nem elogiar ou cumprimentar
crianças ou adultos: se isto for feito... podem lhe responder
rindo: bu ko leek, “não se deve comê-lo”, o que evoca o pe­
rigo sempre latente da bruxaria: o bruxo “come” o que lhe
parece “bom” ... ou senão o outro lhe devolve o cumprimen­
to: “ Teu vestido é mais bonito do que o meu”, o que é uma
forma de fazer o feitiço voltar contra o feiticeiro. Por outro
lado, entre os Wolof, os cumprimentos são expressos ou por
frases desvalorizantes (dir-se-á que uma criança é feia, horro­
rosa, boba etc.), ou por elogios anulados no fim da frase pela
negação kaar. Um tom de gozação, de risadas entrecortando
as frases mais anódinas são as formas correntes de prevenir,
de negar as intenções agressivas latentes.
No hospital, frente a frente, entre as quatro paredes do
consultório, a situação perguntador-perguntado é frequente­
mente bem suportada - não há “ os olhos que estragam o que
vêem” : ngistef, nem “os ouvidos que estragam o que escu­
tam” : ndyógtef dos próximos, e o ‘'doutot-tubaab'’14, pelo
fato de pertencer a um mundo diferente, pode ser considerado
como não perigoso. No entanto, fica claro que a situação é
particularmente complexa, delicada de manejar e muitas vezes
pouco confortável para o consultante. Principalmente as mu­
lheres responderão a nossas perguntas com um “ ah!” jocoso,
com uma entonação muito particular: “ Quem sabe...não posso
dizer...isto não se diz...não se sabe...não me diz respeito...”
ou “isto não te diz respeito...”
É claro que em todo exame deste tipo, mesmo supondo
um clínico experiente lidando no seu pais com um problema
banal, há uma “distância” a transpor, a reduzir talvez. Ainda
é preciso compreender o que precisamente querem dizer estas

14. Tubaab em wolof designa o europeu, o branco.


36 ÉDIPO AFRICANO

perturbações apresentadas, estas palavras utilizadas na entre­


vista, estes comportamentos bem-educados, educados demais,
mal-educados... esta manifestação de ansiedade surgida du­
rante afirmações aparentemente anòdinas..., captar o sentido
do que é dito e para quem é dito.
Assim, uma determinada mãe perguntada sobre a alimen­
tação de seu bebê poderá se sentir ameaçada por um julga­
mento severo e responderá como faria a um juiz. Outra mãe
se sentirá compreendida “como se fosse por uma mãe” ; outra
utilizará todos os assuntos abordados a fim de voltar para a
questão que a perturba etc.
O clínico recolhe, por um lado, informações objetivas:
descrições de fatos, de comportamentos etc. e, por outro, re­
gistra como a mãe - ou o pai ou a criança - situa-se em rela­
ção a eles, o que faz com eles, como os vivem, como seu
mundo está marcado, angustiado, justificado etc. por eles e,
tudo isto, através da decifração da relação que se estabelece
entre ele e seus pacientes e a decifração das relações de seus
pacientes entre si no desenrolar de suas vidas.
Por mais complexo e delicado que seja este trabalho, ele
pode ser levado a bom termo não apenas graças aos conheci­
mentos e técnicas da profissão, mas também graças ao fundo
de referências implícitas que têm em comum as pessoas de um
mesmo país, de uma mesma cultura. Cada informação recebi­
da é situada, primeiro de forma grosseira e, pouco a pouco,
cada vez mais precisamente à medida que o exame progride:
tal sintoma pode pertencer a diversas constelações, sua emer­
gência em tal idade remete a tal tensão desta idade; tal manei­
ra de apresentá-lo ou de dissimulá-lo indica determinada or­
ganização da personalidade, este sintoma geralmente bem to­
lerado em tal meio, por que é ele percebido como intolerável?
Por que tal comportamento geralmente valorizado é escondi­
do aqui? Por que tal expressão discretamente discordante do
meio social reaparece tantas vezes?
Ora, no nosso presente trabalho, os mais elementares re­
ferenciais nos faltam. Não conhecemos nem a sintomatologia
QUESTÕES METODOLÓGICAS 37

comum, nem o que é bem ou mal tolerado pelo meio, nem as


maneiras de expressão próprias a cada etnia, casta ou grupo.
Dissemos, por exemplo, como a enurese podia ser expli­
citamente considerada pela família como idêntica à impotên­
cia sexual ou como suscetível de futuramente colocar em pe­
rigo o cônjuge da criança. Em contrapartida, uma síndrome
que poderiamos relacionar com quadros clínicos de carências
de cuidados matemos, é descrita de maneira coerente e ho­
mologada pela tradição sob a forma de uma revivescência de
um ancestral reencaraado na pessoa da criança com a dupla
valência de promessa de grande futuro e de ameaça de mor­
te.15

As descrições de comportamento.

É muito difícil obter dos pais descrições do comporta­


mento das crianças. O que é dado é mais um traço de caráter
tendo valor de estatuto social e valor de prognóstico. “Quan­
do você começa a ser teimoso, você continua até a morte” ,
diz uma mãe.
Assim, o termo yaradiku que nos é traduzido por “mal-
educado” (yaru = bem-educado), tem o sentido imediato de
“ desrespeitoso” . Mas desrespeitoso é aquele que não respeita
os mais velhos, que hão tem vergonha, que não sabe ficar no
seu lugar, que vai contia a ordem social. Um informante nos
explica: “ Aquele terá todas as dificuldades na vida, no tra­
balho, nas discussões, não terá amigos, será abandonado,
isolado. Isto leva à loucura. A loucura é estar sozinho. Ele
não tira mais benefícios dos conselhos dos homens.” O adje­
tivo mal-educado não conota apenas um traço de caráter, mas
também um estatuto geralmente sentido como irreversível.

15. A. Zempléni e J. Rabain, “ L’enfant nit ku bon, un tableau psychopatho-


logique traditionnel chez les Wolof et Lébou du Sínégal” , Psychopathologie afii~
caine, 1 ,1965, pp. 329-441.
38 ÉDIPO AFRICANO

Acrescentemos os comentários de nosso informante: “Uma


criança yaradiku provém da negligência dos pais desde o co­
meço; é uma criança que não é corrigida, a quem se deixa fazer
tudo o que quer. Ou então é Deus que a faz assim. Cabe ao pai
educar, ao homem, é ele que tem a palavra. A criança que não
tem pai tem muito mais facilidade de se tom ar yaradiku, mas
tem certas desculpas. Para a sociedade, ela é louca, louca, lou­
ca.”
Da mesma forma, uma criança que se isola inquieta seu
meio; seu isolamento é vivido como carregado de hostilidade.
Falando de seu sobrinho de dezoito anos que ele cria, um tio
diz: “Não é uma criança comum, é taciturno, desinteressado
das atividades da sociedade; ele despreza os outros.”
E, inversamente, o que é valorizado na criança é o que
comprova sua boa inserção no grupo. As fórmulas mais cor­
rentes são: obedece bem, escuta os conselhos, é calmo, não
provoca seus irmãozinhos, não insulta, é companheiro de seus
amigos, é a criança comum, não se mete nos assuntos de seu
vizinho.

Atendimentos psicológicos e atendimentos tradicionais


O que representa para nossos consultantes, os pais, a en­
trevista que ocorre? Que idéia têm eles do “atendimento”, de
seus meios de diagnóstico, de suas terapêuticas? Que imagens
têm dele?
O recurso ao médico vem geralmente depois do recurso ao
marabuto, ao curandeiro e do reconhecimento de seu fracasso
por uma parte da família. Frequentemente conferências familia­
res precedem a decisão de consultar: um avô, ou a família ma­
terna, por exemplo, serão contra a visita ao médico tubaab,
preferindo tentar um outro curandeiro e o pai concordará com
uma última tentativa antes de vir ao hospital.
O caráter gratuito do hospital é um importante elemento da
decisão, as consultas dos curandeiros são onerosas e o enun­
ciado das somas desembolsadas sempre acompanha o relato:
QUESTÕES METODOLÓGICAS 39
Os pais de uma criança débil diziam ter consultado em 1962 dois
marabutos e uma feiticeira: “O primeiro marabuto pediu 1500 F e deu
amuletos e palha para queimar; o segundo marabuto pediu 1000 F; de­
pois fomos ver uma feiticeira que pediu 3000 F e durante dois meses
deu banhos na criança cada segunda e cada quinta-feira.” Não sendo
constatada nenhuma melhora, o pai considerou que estas histórias de
mulheres custavam caro e levou a criança ao hospital.

CASO 54: Astou N., 12 anos, wolof, muçulmana

Foi hospitalizada por perturbações da marcha. Todos os exames


são negativos. Trata-se de manifestações pitiáticas que retrocederam
rapidamente.
O pai nos explica: “Levei-a a uma curandeira em X... Acreditam
que são assuntos de feiticeiros. Ela mandou comprar uma cabra e fazer
quatro buracos, colocar 5000 F em cada buraco. A feiticeira plantou al­
guma coisa na minha casa (um altar) e cada segunda e quinta-feira As­
tou deve tocá-lo e lavar-se com a água. Quando se está doente, deve-se
tentar em todo lugar, com os doutores, os feiticeiros. Agora acho que é
a doença da família, antes eu não sabia.”

Para alguns, somos uma espécie de marabutos que eles es­


peram serem “mais fortes” do que os já consultados. Para ou­
tros, vir ao médico é querer remeter-se à “ciência” . As ima­
gens são elementares, o hospital é “a injeção” , e depois a ra­
diografia. Ora, justamente, não manipulamos nem seringas,
nem aparelhos, não distribuímos nenhum remédio, não “olha­
mos a cabeça” . A decepção é vivamente expressa no primeiro
contato. Um pai nunca voltou porque, na primeira entrevista,
não hospitalizamos seu filho que tinha problemas de elocução.
Quando um pai que consulta deposita sua confiança em
nós, às vezes, ao mesmo tempo, quer nos dar seu filho: “ Você
õ pega, cuida dele, diz tudo o que ele deve fazer.” Assim se
faz com o marabuto de quem a criança se toma o taalibe.16
Entre os Wolof, tradicionalmente, é preferível confiar a educa­
ção da criança a tios e tias do que ao pai e à mãe, principal­
mente se se trata de um menino.
16. Aluno, discípulo.
40 ÉDIPO AFRICANO

Romper com a medicina dos marabutos e curandeiros colo­


ca para as famílias problemas religiosos. Isto é vivido pelo
meio como muita ou pouca falta de fé, de respeito, abandono
das tradições: situação, entre outras, de tensão entre duas civi­
lizações, duas gerações.
A doença da criança pode ser o terreno onde se enfrentam
duas partes da família. Sarar ou não sarar pode, portanto, ad­
quirir para o sujeito o sentido de “dar razão” a um ou outro,
de se situar “do lado dos homens” , ou “do lado dos avós” etc.
Pelo contrário, os parentes que consultam, por exemplo, os
pais, justificam às vezes seu procedimento do ponto de vista
religioso, explicando que a verdadeira fé não tem nada a ver
com a superstição ou a bobagem de condutas absurdas.
Um pai que dizia ter gasto muito com os marabutos e reconhecia
ter vindo ao hospital em desespero de causa, observava: “Há alguns
marabutos que sabem tratar mas os outros são charlatães, dão gotas de
água, amuletos, custa caro e não adianta nada. Não conheço nenhum
marabuto que realmente trata. O negócio dos marabutos é uma mentira.
Não fazem nada, sou obrigado a vir aqui.”
A exploração econômica dos marabutos é uma situação
generalizada no Senegal e é constatada com raiva por certos
crentes. Para outros, a consulta é um procedimento incerto,
uma tentativa tímida ou prudente, a conseqüência de um con­
selho mais ou menos válido dado através de vários parentes, de
uma pressão da qual querem se livrar.
Retomaremos em diversos momentos a questão do sincre-
tismo religioso no Senegal; quase sempre a criança é levada ao
mesmo tempo ao marabuto, ao curandeiro e ao hospital. “Não
quero deixar nada de lado” , nos dizem. Mas a cura que ocorre
é atribuída basicamente aos tratamentos tradicionais. O pai de
um jovem adulto hospitalizado nos dizia: “Façam-no engordar,
acalmem-no, dêem-lhe força, eu trato dele” , e todo dia trazia
ao hospital safaras17 e diversos medicamentos tradicionais, vi­
giando sua utilização.
17. Água que serviu para lavar tábuas do Alcorão ou na qual macerarar
vwifeuloi do Alcorão, e que serve de “ medicamento” .
QUESTÕES METODOLÓGICAS 41

CASO 27: Talla F., 14 anos, serer, muçulmano 18

Um menino serer de catorze anos, hospitalizado por causa de crises


sem dúvida histéricas, de aspecto epiléptico, nos fala de seu rab: “Ele
(seu rab protetor) me mandou fazer uma caridade para meu avô: no
mar, quebrar um ovo onde as ondas chegam. No meio de um círculo
que faço na areia, quebro a gema. Depois estendí a mão, ele me deu um
bastão.”
“Para mim era um remédio - era fevereiro - estamos em março
- lavo-me com ele, depois ele me mandou cortar em três e fazer amu­
letos com os pedaços. Um dia, não sonhei, eu o vi, ele me disse: ‘É pre­
ciso ir aos brancos’; no dia seguinte me mandaram ir ao hospital.”
Durante sua estadia no hospital, seu rab, em sonho, manda-o pre­
parar arroz de uma certa maneira (arroz branco com pimenta e um pou­
co de amendoim), porque é bom para ele. Sua mãe prepara o arroz da
maneira indicada e ele só come isto durante dois dias.
Durante sua estadia no hospital, organiza com sua mãe sua viagem
à aldeia de seus ancestrais, lugar de moradia dos rab familiares e prevê
as abluções e caridades que fará. “Minha mãe diz: quando as crianças
têm os rab, precisam banhar-se na água onde o avô se banhava. Minha
mãe conhece o local, é um grande tamarindo.”
Depois de sua saída do hospital, escreve-nos de sua casa: “Ele (o
rab protetor) me mandou comprar uma cabra mas ainda não me com­
praram.”
Sabemos, por outras fontes, que esta família se arruina com os
marabutos.

A identificação inter-cultural

Somos m arabutos/ somos “doutores” , fazemos parte do


“ hospital dos loucos” , tirando benefício de sua reputação de
eficácia terapêutica e de atmosfera cordial. Somos também e
antes de mais nada brancos.
Nosso estatuto é de prestígio e poder, com o cortejo das
ressonâncias da época colonial. Mas, embora com prestígio e
poderosos, somos “o estrangeiro” , aquele que é outro. E
possível se identificar com ele? Tendemos a considerar esta

18. Cf. cap. III, a exposição da psicoterapia de Talla.


42 ÉDIPO AFRICANO

questão como uma das mais fundamentais da situação que ten­


tamos descrever: consultado e consultante nas suas relações
recíprocas, têm eles possibilidades e identificação comparáveis
àquelas existentes entre dois africanos ou dois europeus?
Percebemos isto claramente no que diz respeito a cada
um de nós pessoalmente, globalmente e através de impressões
intensas ou fugazes. Este é um dado para nós relativamente
controlável, apesar do jogo projetivo recíproco. A consciên­
cia que dele temos nos permite paliar seus efeitos. Assim, po­
demos nos identificar bastante facilmente com uma mãe afri­
cana falando de seu filho pequeno, mas evitamos a identifica­
ção com esta mesma mulher enquanto terceira esposa aban­
donada e que, aparentemente, consente com isto ou que con­
fia seus filhos desmamados a parentes distantes que os cria­
rão.
O africano se pensa socialmente em relação ao mundo
dos brancos; isto não é um traço de caráter mas a conseqüên-
cia de uma situação histórica. Esta referência ambivalente
está em primeiro plano na sua consciência enquanto que, para
nós, ela só surge ocasionalmente.
Acreditamos ser muito importante refletir sobre este
ponto: a identificação do africano ao europeu não seria de
certa forma “excêntrica” , não integrada com relação aos mo­
delos oferecidos por sua própria cultura, com relação às suas
imagens parentais?
Tenderiamos a dizer que os mecanismos da identificação
operam a nível do ideal do eu mais do que como organizador
das pulsões, isto é, concerne mais ao imaginário do que ao
simbólico. Identificar-se com o interlocutor europeu seria se
desdobrar, participar de um desdobramento que afetaria a
consciência coletiva africana.
Na clínica psicanalítica, cada uma de nossas condutas, as
mais mínimas assim como as mais banais, implicam a cons­
ciência da relação que emerge, se enlaça, se organiza, se
reorganiza entre nós e o consultante. O tecido desta relação
está constituído pelas identificações e projeções recíprocas no
QUESTÕES METODOLÓGICAS 43

seu jogo complexo e móvel. O manejo desta relação é nosso


principal instrumento de ação.
Se for verdade que para o africano a imagem que tem de
um europeu não pode ser integradora com respeito à sua pró­
pria personalidade como podería ser uma imagem parental,
nosso instrumento de investigação e nosso instrumento tera­
pêutico se esvai por entre os dedos.
O que ocorre se, como supomos atualmente, o tipo de
identificações possíveis de nosso consultante africano para
conosco permanece essencialmente periférico com relação à
sua própria personalidade, às suas identificações de base?
Uma mãe africana que se sinta valorizada por nós, não o
será necessariamente no sentido de uma homogeneidade
maior, de uma organização mais coerente, de uma reconcilia­
ção com os dados positivos e negativos de sua linhagem ma­
terna (se se trata de suas relações com um lactente). Ela esta­
rá valorizada mas talvez descentrada; valorizada na medida
em que se procura, numa imagem estranha, a ela mesma. Se
assim for, não se exclui a hipótese de que a valorização obti­
da constitui uma maior fragilidade, inclusive um risco poste­
rior de ruptura de equilíbrio.
É claro que também devemos nos perguntar sobre nossas
próprias reações frente à imagem de nós mesmos que nosso
consultante apresenta: imagem sobre-investida por um lado -
ciência, poder - e desinvestida, por outro. Pedem que resol­
vamos rapidamente tal problema limitado mas, inicialmente,
não somos reconhecidos como competentes enquanto conse­
lheiros familiares - no sentido do médico de família - não se
considera que possamos entender os “assuntos da família” .
Rèconhecer-nos-emos nesta imagem? Ficaremos satisfeitos de
Corresponder a ela? Sentir-nos-emos desvalorizados? Senti­
remos os terapeutas tradicionais como concorrentes ou rivais?
Tomar-nos-emos mais estrangeiros porque nos sentem estran­
geiros...?
44 ÉDIPO AFRICANO
A doença

A entrevista se dedica à “doença” . Como se pode imagi­


nar, tentamos obter uma descrição dos sintomas, de sua evo­
lução, do momento e das condições de seu aparecimento.
Mas, as informações que recebemos freqüentemente não nos
permitem ter uma idéia clara. Obtemos elementos isolados
cuja duração não conseguimos apreciar, nem tampouco sua
importância ou modalidades.
As questões sistemáticas não dão grande resultado: as
respostas podem ser estereotipadas ou muito vagas, não enri­
quecendo as formulações iniciais. Temos a impressão de que
a orientação geral de nossas perguntas escapa.
E, com efeito, aqui a doença não é uma entidade clínica.
Para as doenças mentais não há classificação a não ser a da
causalidade mágica ou o destino imposto por Deus.19 O ele­
mento de coerência na representação da doença é o rab. Há
referências ou a uma ação que contraria os rab, ou ao “amor”
possessivo dos rab ligados a uma família etc. É por isto que
nossos consultantes ficam desnorteados com nossas pergun­
tas.
O marabuto ou curandeiro formula duas perguntas: onde
a doença começou, em que lugar, e quando, que dia, a que ho­
ras? Lugar e momento de aparecimento'dos distúrbios são os
elementos básicos utilizados para o diagnóstico através dos
diversos procedimentos adivinhatórios, diagnóstico que enun­
ciará as causas da doença. Não entra em consideração o que
o sujeito sente, sintomas, descrição da doença (a não ser para
eliminar alguns problemas orgânicos reconhecidos como da
competência do “hospital”).
Os consultantes têm também uma idéia própria do que
nós, brancos, podemos compreender; selecionam os fatos se­

19. Devemos a A. Zempléni a maioria das informações a respeito dos tera­


peutas e das terapêuticas tradicionais (tese em preparação: “ Les représentations
de la maladie et les soins traditionnels chez lez Wolof, Lêbou et Sérêre du Sêné-
gal”).
QUESTÕES METODOLÓGICAS 45
gundo esta imagem; apresentam um certo número de elemen­
tos justificando-os: “Entre nós, na África, se diz que são os
rab... Diz-se que alguém quer nos impedir de saber... Nós, os
negros, somos supersticiosos...” Esta imagem se modifica ra­
pidamente quando percebem que conhecemos as representa­
ções tradicionais e que as levamos em consideração. “Os tu-
baab não acreditam nos rab, exceto em Fann” , dizem às ve­
zes sobre o hospital; no entanto, alguns acham que falar com
os brancos sobre seus rab pode provocá-los e que a doença
será mais grave, mais longa.
Há ainda um outro “momento difícil” de muitos exames.
Precisamos de quatro a oito encontros antes de tirar conclu­
sões, se é que se pode usar esta palavra. Mas, nossos consul­
tantes esperam um diagnóstico rápido, como os dos marabu-
tos e curandeiros, ou o de consultas médicas de despista-
mento. O fato de serem pedidas tantas “visitas” os leva a
pensar que, ou somos pouco competentes já que não “ vemos”
e que, frente à sua pergunta precisa não nomeamos a doença,
o que pode alterar sua confiança e tomar sua atitude menos
cooperativa, ou então, pelo contrário, podem considerar o
longo tempo empregado como sinal de gravidade da doença e
sua ansiedade cresce à medida que os encontros se sucedem.

A anamnese

Estabelecer uma anamnese é um empreendimento difícil.


As informações relativas à vida familiar nos são dadas e pa­
recem ter sido vividas e memorizadas sem estarem organiza­
das num tempo orientado da mesma maneira que o tempo
“europeu” . Cada acontecimento é relatado em si mesmo, co­
mo um todo fechado e que não está ligado ao que o precedeu
e ao que se segue.
O passado memorizado parece pesar menos, ser menos
importante. A vivência presente, pelo contrário, surge como
irradiante, difundindo sua cor. Assim, quando perguntamos:
“Como está a criança neste momento?” descrevem um traço
46 ÉDIPO AFRICANO
de comportamento com detalhes e insistência que registramos
como característico do período presente do qual se fala mas
que, em seguida, se revela ser muito particular daquele dia,
sem que pareça, mesmo indiretamente, expressar algo impor­
tante. Além disto, se perguntarmos sobre as pessoas impor­
tantes para a criança e que vivem com ela, escutaremos o no­
me de dois parentes. Posteriormente, perceberemos que estes
parentes só estão aí há dois dias e de passagem, enquanto que
outros, vivendo com a criança há muitos anos e atualmente
viajando, não foram mencionados.
Dizem que a amnésia infantil é muito -marcante entre os
africanos e, de fato, quando tentamos mobilizar as lembranças
de infância dos adultos, as respostas são quase inexistentes e
a atitude sorridente mas incrédula, inclusive irônica frente
a tais perguntas, parece dizer: “Para quê, o que tem o passa­
do a ver com o presente?...” Obter-se-á, por exemplo, um
fato da idade de 7-8 anos, uma mudança de residência, a en­
trada na escola, a saída da escola e nada mais.
O grupo familiar compõe-se comumente de 10 a 25 pes­
soas ou mais. Os tios são chamados de “pai” , as tias de
“mãe” , os primos de “irmãos” . A proporção de divórcios é
muito elevada. Numa família que atualmente compreende 2, 3
ou 4 esposas, é comum que o marido já tenha realizado 3 ou
4 casamentos agora dissolvidos, que circule entre suas espo­
sas que podem não morar juntas. A cronologia das diferentes
uniões dos pais pode constituir um verdadeiro quebra-cabeça.
As crianças são freqüentemente confiadas durante anos a
parentes, tios e tias, avós... Se um parente isolado não tem
filhos, como por exemplo a mãe de uma ex-esposa, uma ou
mais crianças de uma esposa atual lhe são “dadas” . Durante
estes períodos, os pais não têm notícias ou então apenas raras
notícias. Muitas crianças nunca viveram com seu pai mas o
“visitam” a cada dois ou três anos.
QUESTÕES METODOLÓGICAS 47

CASO 43: Mamadou S., 14 anos, toucouleur- lébou, mulçumano

Mamadou S. é um menino de 14 anos, encaminhado pela escola


ao Centro Médico Escolar por estar sempre sujo, exposto à zombaria
de seus colegas. Está no 6'-* e seu trabalho escolar é insuficiente. Ele
fuma.
Seu pai, 46 anos, toucouleur, é cobrador.
Sua mãe, 44 anos, provém de uma mãe lébou e de um pai peul. É
a segunda mulher do pai, já foi casada uma vez anteriormente e se di­
vorciou. Teve 4 filhos no seu primeiro casamento, dos quais apenas
um está vivo, um rapaz de 21 anos que vive com seu pai.
Mamadou S. é o mais velho dos filhos de seu pai. Quando tem 4
meses, nasce um meio-irmão, filho da primeira mulher.
A relação da mãe de Mamadou com o pai não é boa. Quando
Mamadou tem dois anos, sua mãe zangada retoma com a criança para
a casa de sua avó materna que a criou (sua mãe morreu quando era
muito pequena). Mas logo em seguida o pai retoma Mamadou e o en­
via paia a casa de sua irmã mais velha em Dakar. Pica lá durante três
anos. Mas, freqüentemente, fica doente. Finalmente, como “o pai te­
me que morra” , diz a. mãe, o traz de volta para viver com ela. Nesse
entretempo ela teve dois outros filhos com o p a i Mamadou tem 5
anos. Fica entre 4 e 5 meses com sua mãe; a doença continua (“é o
peito”). Certo dia, o padrinho da criança que tem o mesmo nome, so­
brinho do pai (foram criados juntos pelo irmão mais velho do pai) e
que é contador, vem visitar a mãe e diz: “Dê-me esta criança”. A
criança tem 6 anos. O pai ignora esta partida, é a mãe que lhe conta no

* O sistema escolar francês organiza-se da seguinte maneira: O 11- ano


corresponde ao pré-primário e é quando se dá, em geral, a alfabetização. Do 10s
ao 7S ano temos o equivalente ao primário ou curso elementar (CE). No fim do T2
ano há um exame de aptidões em diversas áreas chamado “ Certificai d’êtudes”
(certificado de estudos). A aprovação neste exame £ necessária para a passagem
ao 6- ano. Se isto não ocorrer a criança pode fazer uma recuperação e um novo
exame. Se, ainda assim, não passar, repete o 7a ano.
Do 62 ao 32 ano, temos o curso médio (CM) onde a criança pode escolher
estudar latim (clássico) ou Dão (moderno). Findo o 32 ano há um exame: B.E.P.C.
"(Brevet d’études du premier cycle ou brevet élêmentaire). Este exame não £ con­
dição para entrar no 2- ano, mas serve para cursar uma escola técnica ao invés de
se preparar para os cursos superiores. Neste último caso, há ainda 3 anos (22, Ia e
“ terminal” ) depois dos quais se presta um exame oficial: “ Baccalauréat” que en­
cerra este ciclo. O desempenho neste exame condiciona a entrada nas melhores
universidades para as quais se presta um novo exame. Há o “ exame branco” e o
“exame negro”. O bacharelado branco são provas semanais preparatórias para o
exame oficial (“ bac noir”). (N. da T.)
f"

48 ÉDIPO AFRICANO
dia seguinte quando ele passa para ter notícias. Frente à minha per­
gunta, a mãe esclarece que não disse nada quando o padrinho veio pe­
gar Mamadou, que ela “não pensou em nada de mau” .
Permanece, portanto, dos seis aos nove anos com seu padrinho. É
ele que o faz entrar na escola. Moram sucessivamente em Pikine e na
Grande Dakar. Durante toda esta época, a mãe não o vê pois “ se você
vai ver a criança, o sobrinho (padrinho) pensa que você não confia e
está vigiando” .
Nesse entretempo, quando Mamadou tem sete anos, a mãe se di­
vorcia oficialmente do pai. Mamadou tem então dois irmãos e uma ir­
mã consangüíheos. O padrinho parte para a Monrovia quando Mama­
dou tem por volta de nove anos. A criança fica com a mulher do pa­
i drinho. Torna-se malcomportado e foge algumas vezes durante dois
ou três dias no decorrer de. alguns meses. A mulher previne então o
pai, que decide retomá-lo. Ele tem nove anos. Neste ano repete de
ano. As fugas continuam durante algum tempo e depois desaparecem.
Na casa do pai moram agora sua primeira mulher com seus qua­
tro filhos e os outros filhos da mãe de Mamadou que estão confiados à
primeira mulher. Sua mãe não o vê: “Pois se você vai lá pode chegar
num dia em que estão tratando mal teu filho e você não pode fazer
nada, ou acham que você está viciando” . É somente desde que Mama­
dou está “no colégio” (no 69) que e k vem ver sua mãe todas as quintas
e sábados à tarde. Neste momento, a criança não se entende com sua
madrasta que o acusa de desprezá-la, “ela me acha burro, ela não me
considera como um de seus filhos” . [Observação J. Rabain]

Os pais que têm filhos de várias esposas e que cuidam


das crianças de suas esposas divorciadas, podem ter confiado
uma parte de seus filhos a parentes; podem, ao mesmo tempo,
educar os filhos de outros parentes e, às vezes, se confundem
na enumeração do conjunto de moradores da casa. Chega a
acontecer que uma mãe não saiba quantos filhos teve, quantos
faleceram, não sabe mais com que idade os perdeu, nem quando.
A elucidação dos laços de parentesco do grupo exige pa­
cientes esforços: determinado tio, que é o meio-irmão do pai
cujos filhos cria, fala como se fosse o pai e não se pode
questionar isto. Ficamos sabendo, por outro lado, que o pai
esteve com seus filhos durante sete anos. A criança, pergun­
tada sobre seu pai, dá o nome de seu pai e a profissão de seu
QUESTÕES METODOLÓGICAS 49
tio. Lembremos que os casamentos endogâmicos são a maio­
ria, o que complica ainda mais os laços de parentesco.

CASO 63: Paté M, 17 anos, w o b f

Paté está há quatro anos num centro de reeducação para jovens


deünqüentes. Perguntamo-lhe sobre seus irmãos e irmãs. Nos diz:
“Há muito tempo havia mais ou menos 4 irmãs”... em seguida: “Há 4
ou 5 segundo o que diz meu pai, eu não sei.”
Duas investigações tinham sido feitas por assistentes sociais do
Tribunal, uma em Tivaouane de onde Paté é originário, outra em Da-
kar onde vive uma parte de sua família. Eis, segundo estas três fontes
de informações, os diferentes quadros que nos são dados sobre a fra-
tria de Paté:
Segundo Paté:
Paté, menino, 17 anos.
Maram, menina, 14 anos (ela gagueja).
Ali, menino (idade não especificada).
Youssouf, menino, 8 anos.

Segundo a investigação feita em Tivaouane:


Paté, menino, 17 anos.
N’Dyène, menina, 13 anos (ela gagueja).
Malick, menino, 9 anos.
Ali, menino, 8 anos.
Maram, menina, 7 anos.
Youssouf, menino, 5 anos.

Segundo a investigação feita em Dakar:


Paté, menino, 17 anos.
Malick, menino (idade não especificada).
Ali, menino (idade não especificada).
N’Dèye, menina, 7 anos (ela gagueja).
Maram, menina, 5 anos.
Y oussouf, menino, 2 anos.

Vemos que não é fácil, para um determinado grupo fami­


liar, ordenar todos os elementos ou simplesmente organizar os
principais dados. E quando insistimos na tentativa de esclare­
cer em campo uma série de deslocamentos, de casamentos, de

.Ji|
50 ÉDIPO AFRICANO
falecimentos, percebemos que o esforço que fazem para nos
responder falsifica as respostas; o que nos é dito não corres­
ponde mais ao que os consultantes vivem; pesquisam e nos
respondem para nos agradar e por deferência, no limite eles
arrumariam as coisas, suas lembranças, para satisfazer nossa
idéia de ordená-las numa sucessão. É relativamente fácil in­
duzir reconstruções, vale mais a pena registrar os brancos, os
grandes e confusos brancos que permanecem. É menos im­
portante registrar informações objetivas do que discernir os
traços significativos através dos quais cada um se situa na vi­
são que tem da família ou dos acontecimentos.

CASO 15: Amadou D., 15 anos, lébou, muçulmano

Amadou nos foi encaminhado pelo atendimento psiquiátrico. Tinha


sido levado - carregado - por seu pai durante uma crise histérica de
paralisia generalizada e de mutismo.
Conversamos com a mãe de Amadou depois de tèr, sucessiva­
mente. conversado com o tio materno, o avô materno e o próprio
Amadou. A família que rejeita a mãe de Amadou como sendo uma má
mãe foi muito reticente frente à nossa vontade de vê-la, pensando que
uma entrevista com ela era absolutamente inútil, “ela não sabe nada” .
A mãe, divorciada, tem 26 anos, vive com seu pai. Tem nove fi­
lhos de três pais diferentes; somente os três mais velhos, entre eles
Amadou, são filhos legítimos, d a nos pareceu muito emotiva, volúvel,
manifestando uma certa vontade de aguentar a situação. A entrevista
foi difícil de anotar pois ela falava rapidamente, de maneira entrecor-
tada, num francês pouco compreensível. O que segue é o que conse­
guimos apreender de uma entrevista de mais de uma hora com algu­
mas poucas intervenções de nossa parte:
“Ganhei três garotos vivos, tenho um garoto que morreu, uma
filha que foi antes de Amadou.” Falando de seu marido: “Nunca esti­
ve contente com ele, ganhava um vestido e uma tanga apenas, eu era a
primeira mulher, teve, em seguida, três mulheres, duas mulheres
quando eu ainda estava casada... Estava casada com ele, era o pri­
meiro não conheço nada, não dava o dinheiro, meu coração está mal­
tratado, todas as crianças têm que ser guardadas para a mãe. - Como
é Amadou? - Amadou tem muitas preocupações no meu coração, não
fido. Minha filhinha era bonita, eu a dei para Deus. Meu pai me bate.
QUESTÕES METODOLÓGICAS SI
Toda minha família é calmante comigo, é toda a minha vida. Sempre
morei com meu pai, ia um pouco na casa de meu marido. Mesmo
quando é a festa dos marabutos, Amadou vai visitar seu pai, ele não
dá nada. Em casa, há muitas crianças. Amadou não pode discutir.
Tratei Amadou de uma questão de marabutos com minha mãe. O pai
de Amadou cuida com seus filhos de sua casa, não cuida nem um pou­
co de Amadou. Amadou me diz: ‘Cuida do teu pequeno, você gosta
mais dele do que de mim.’ Eu lhe digo: ‘Eu gosto de você, você é meu
primeiro menino. Preciso cuidar, não é por gostar mais do que de você.’
Tenho medo que Amadou morra porque está cansado demais. Meu
pai se cansa demais com meu pequeno, o dinheiro some por causa de
Amadou. Desde o dia do seu batizado ele está doente. Minha filha que
morreu tinha exatamente três anos.”
- Que homem foi bom para você?
“O pai das últimas crianças está contente comigo, é a mãe do pai
dos três últimos que não está contente, ela não quer saber de m im . Ele
é motorista de ônibus, está fazendo um estágio na França, é chefe de
mecânicos. Meu pai não gosta deste homem. É a mãe do homem que
guarda uma outra mulher para seu filho. O homem, ele me ama. Eu fi­
co sozinha no meu quarto, às vezes choro muito, muito, não estou de
acordo com ninguém em casa, não posso dizer nada. Eu conheço o
caráter de Amadou. O pai de Amadou gosta muito de mim, ele era
corredor.” Começa então a falar de uma cena de ciúmes de seu mari­
do: “Eu estava na feira, encontro um outro homem, um irmãozinho;
meu marido o vê, me bateu na feira até em casa. Meu coração está
maltratado. Na hora abandonei meu marido. Ele volta para me buscar,
fui para a casa de minha tia. Uma outra vez, discuto com um homem,
o pai de Amadou vem quebrar a cara dele. Quando abandonei meu
marido, meu terceiro filho estava na minha barriga fazia um mês. Fi-
quei na minha tia, visito-a de tempos em tempos.”
Voltando ao pai de seus últimos filhos: “Gostaria que este ho­
mem me deixasse, são muitos problemas, às vezes desejo morrer, mas
têm os pequenos. Meu pai sempre me diz que prefiro os três pequenos
e que não cuido dos outros, mas não, gosto de todos da mesma forma.
Meu pai sempre me diz: ‘Se você discutir, te boto para fora de casa.’ Eu
era a única filha; desde que sou pequena meu pai me diz: ‘Fatou, tá er­
rado.’ Eu, é loucura, como a tanga. Meu pai me diz palavrões na
frente de Amadou, o pai de Amadou cuida de todas as mulheres e das
crianças da sua casa. Casei-me e tive meu primeiro filho com 13 anos,
ele gostava de mim porque sou muito jovem. Gostaria de ter um lugar
sozinha, tranquila com minha família.” [Observação A. Colot]
52 ÉDIPO AFRICANO
É prudente não esperar muita informação direta das res­
postas dadas às nossas perguntas, mas sim pensar que o con­
junto tomará forma e cor a partir de detalhes que aparecem
aqui e acolá. É necessário formular várias vezes as mesmas
perguntas para que, por etapas, nos aproximemos do que não
pode ser expresso diretamente.
Convém comparar os dados obtidos dos diferentes mem­
bros da família. Por isto tentamos sempre conversar com o
maior número deles: pais, irmão ou irmã mais velha, tio,
avós... É espantoso como quadros absolutamente diferentes
nos são dados. Chega a acontecer que não consigamos saber
se uma criança foi separada de sua mãe durante quinze dias
ou durante dois anos; o tio afirma que cuidou da criança du­
rante dois anos, a mãe afirma que a levou na sua viagem.

CASO 15: Amadou D., 15 anos, lébou, muçulmano

Aqui estão resumidos brevemente cinco longas entrevistas que


tivemos com o tio, o avô, a mãe, a avô materna de Amadou (acabamos
de relatar a entrevista com a mãe). As informações recolhidas giram
em torno de dois elementos principais: a doença de Amadou, a má
conduta de sua mãe, mas na maior parte das vezes, elas não se entre-
cruzam.

Entrevista com o tio


Ele descreve Amadou como estando doente desde seu nascimen­
to, tem crises, grita, olha fixamente; deita à noite, levanta e grita; tem
coisas que lhe dão medo. Antes ele se queixava de dor nas costelas. A
mãe demonstra total desinteresse. Está divorciada há seis anos do pai
de Amadou que agora está com duas mulheres. Amadou tem uma ir­
mã mais velha e um irmão menor e desde seu divórcio a mãe teve cin­
co outras crianças:
Um menino com um primeiro amante.
Uma menina morta há um ano (tinha 3 anos) com um segundo
amante.
Três filhos com o terceiro amante.
Amadou foi durante quatro anos à escola.
QUESTÕES METODOLÓGICAS 53
Entrevista com o avô materno: 1- entrevista
Há alguns dias Amadou teve crises com gritos; é a primeira vez
que grita desde que nasceu. Fica o dia todo sem se mexer. Tem as
costelas um pouco tortas do lado esquerdo, mas não se queixa. Ama­
dou abandonou a escola há dois anos.

Idem, 2- entrevista
Gritou de noite durante sua crise. Parecia querer brigar. Sua mãe
não é boa, a pus para fora no mês passado durante mais ou menos um
mês, mais ou menos duas vezes. Durante a crise, a mãe já tinha volta­
do. Ele está doente desde que deixou a escola. Vai ao hospital de tem­
pos em tempos; em 1960 com a avó materna. Antes de sua mãe partir,
já estava doente; desde então, está sempre doente, é por isto que ele
não faz nada; desde que parou de mamar as coisas não andam bem.

Entrevista com a mãe


Com meu marido tive três garotos e uma outra, uma filha, morta
antes de Am adou Meu marido teve duas mulheres quando eu ainda
estava casada com ele. Amadou está doente desde o dia de seu batiza­
do. Gosto de Amadou, é meu primeiro menino.

Entrevista com a avó materna


Ele teve uma crise de coma. Está doente desde que nasceu. Faz
dois meses que não fala mais. Um dia acorda com dor nas costelas, o
corpo todo dói, três dias depois a criança não fala mais, não suporta
mais estar com gente no quarto. A criança já está doente quando a
mãe foi mandada embora. Durante as crises, não se move, é como se
estivesse em coma. A primeira crise aconteceu quando sua mãe o le­
vou ao dispensário, ele ainda mamava. Foi hospitalizado quatro vezes:
- com 18 meses com sua mãe (24 dias).
- com 4 anos com sua avó (um mês e meio).
- aos 14 anos com sua avó (um mês e seis dias).
„ - aos 15 anos com a avó (um mês e oito dias).
Tinha febre com crises. Começou a ter dor nas costelas por volta
dos 8/9 anos; elas se deformaram. Faltava na escola porque estava
doente.
Concluindo
Acompanhamos Amadou há três meses e ainda não conseguimos
54 ÉDIPO AFRICANO
saber quando começou sua doença, que formas adquiriu e que curso
seguiu. Mesmo a respeito da crise que provocou a consulta, as descri­
ções não concordam.
No que concerne à escolaridade, pudemos estabelecer, graças a
velhos recibos trazidos pelo avô, que Amadou abandonou a escola em
CG2. A criança estava persuadida que havia sido em CM2 e o resto da
família não sabia.
Soubemos, por acaso, que o irmão menor de Amadou não mora­
va com o avô como o resto da fratria, mas sim com seu pai, embora
nada nas entrevistas permita supor isto. De maneira geral, não conse­
guimos dar conta de todas as incoerências que aparecem nas cinco
entrevistas. Acrescentemos que isto não impediu a evolução satisfa­
tória de um começo de psicoterapia. A compreensão do material tra­
zido pela criança é um outro problema; limitamo-nos aqui a descrever
a situação de exame.
Se é difícil reconstituir uma biografia, também o é ter
uma imagem suficientemente precisa de um meio familiar,
mesmo nos casos favoráveis em que recolhemos numerosas
informações. Uma abordagem das famílias através de investi­
gações e observações domiciliares completaria, de maneira
útil, as entrevistas no hospital: a experiência mostra que são
elementos diferentes que emergem de uma entrevista, caso ela
se dê no hospital ou no domicílio da família. Esta conduta é
utilizada há pouco tempo no serviço, a título de pesquisa con­
fiada a uma socióloga.20 Os poucos casos psiquiátricos estu­
dados até hoje permitem perceber como certas tensões intra-
familiares induzem e dão forma à “doença” , como se deses-
trutura a rede dos papéis tradicionais em relação, digamos, ao
“filho sadio” , para se reestruturar de forma diferente com
relação ao “ filho doente” . Há aí um rico campo de estudos.
Para cada família estudada, o investimento de tempo é consi­
derável, sendo que escolhemos estas famílias entre as de
doentes hospitalizados por um bom tempo, isto é, quando te­
mos a garantia de um prontuário clínico bastante rico e de um
mínimo de estabilidade do doente. Este trabalho só pode ser
empreendido com um número de famílias muito limitado.
20. D. Storper.
QUESTÕES METODOLÓGICAS 55
3. A ENTREVISTA COM A CRIANÇA

As relações da criança com o adulto

Na França, o comportamento de uma criança sozinha com


um adulto desconhecido revela imediatamente seu nível de
autonomia. Separa-se facilmente dos pais? Fica inquieta, imó­
vel, controlada, como se estivesse na escola procurando
fazer o que o adulto espera? É passivamente dócil, ou muito à
vontade, capaz de tomar iniciativas nesta situação nova?
Centra seu interesse na mãe que ficou na sala de espera, no
adulto presente, na atividade que lhe é proposta? Fica ansio­
sa, perdendo todos seus meios e refugiando-se em atitudes
regressivas, ou ansioso tônico, recusando explicitamente a
situação?... Sabemos ler isto rapidamente e com uma grande
precisão.
O jovem senegalês que entra no nosso consultório foi
educado para “ter vergonha” na frente de seus pais e mais
velhos; não deve perguntar, dar sua opinião, não deve julgar,
deve somente obedecer, não deve encarar alguém que respei­
te; “ter vergonha” é saber se colocar no seu lugar.

“Não devo desrespeitar um chefe de serviço, nem meu avô. Não


devo discutir com eles. Se encontro um homem na cidade, considero-
o como meu pai e meu avô.”
Um rapaz de 17 anos falando de seu irmão: “Fico tímido com ele
porque ele me educou.”
Pedimos a um “irmão mais velho” - 33 anos — que alberga em
Dakar seu “irmão mais novo” , um estudante de 15 anos, que nos diga
como este se comporta. Ele nos responde: “Nós, os africanos, com um
irmão mais velho você não pode falar antes dele. É preciso ficar sério,
só isto. Não sei, nunca o vi zangado, é calmo, sorri um pouco, só isto”
{Caso 53).

Tradicionalmente, o contato estabelece-se entre um


adulto e uma criança por intermédio de uma ordem dada e
executada. Assim, o visitante que chega numa aldeia, numa
casa, dirige-se a uma criança que estiver lá: “ Dá-me de be-
56 ÉDIPO AFRICANO
ber!” Para nós trata-se, portanto, de encontrar a passagem
entre este tipo de relação que afirma o estatuto de cada um e a
atitude permissiva frente ao que a criança tem para expressar.
Na idade escolar, a criança está menos dependente de
seus pais nos gestos cotidianos do que seu contemporâneo eu­
ropeu, mas é mais solidário dos grupos de crianças aos quais
está integrado. Aparentemente, suas relações com os adultos
são menos pessoais, mais funcionais do que as que conhece­
mos mas, sem dúvida, tudo isto é uma visão externa. Rara­
mente a criança é convidada a expressar o que pensa, o que
sente, o que deseja; e se expressa algo do gênero nunca o faz
espontaneamente, mas apenas a partir de um convite-autori-
zação do adulto.
Ainda nos falta muito para compreender e descrever a
atitude global dos adultos em relação às crianças, às diversas
idades da infância. Os trabalhos em curso, de J. Rabain, per­
mitem pressentir uma posição de interrogação implícita do
adulto: quem é ele? Quais são os traços dos parentes mortos
que reencontramos nele, ou, mais precisamente, que ancestral
revive nele? Os velhos são os que melhor sabem ver estas
coisas, avaliá-las, meditar sobre elas, prever, à luz delas, o
futuro da criança.
Uma outra interrogação latente é: qual é a sua “força” ,
seu poder, seu “conhecimento” ? Pergunta ambivalente ao
extremo, pois pode acontecer que a “ força” da criança ultra­
passe a do adulto.
O pai de um menino wolof de 10 anos (Caso 187), trazido por
enurese, dizia sobre ele: “ Saliou é a criança que mais mimo”, e enca­
deia: “meu irmão morreu com 17 anos, ao morrer estava paralítico;
era muito dotado. Dizem por aqui que era tão dotado que não podia
viver ao mesmo tempo que seu pai que também era muito dotado.”
A temerosa reverência frente ao “conhecimento” da
criança cuja extensão se ignora, é um elemento dominante do
quadro familiar no caso das crianças ditas nit ku bon.21

21. A. Zempleni e J. Rabain, “ L’enfant nit ku bon", op. cit.


QUESTÕES METODOLÓGICAS 57

A criança é observada, seus comportamentos avaliados,


mas silenciosamente e sem que nada seja diretamente expres­
so. Nada deve ser expresso diretamente; dissemos mais acima
e voltaremos a isto, que isto implicaria em evidenciar a crian­
ça para as más intenções do meio. A mãe de Amadou (caso
15, p. 52) diz: “ No batizado de Amadou um amigo do pai di­
zia que ele era muito bonito. Os africanos não gostam disto.
Desde este dia ele está doente.” Um amigo senegalês que vi­
veu na França enquanto terminava seus estudos superiores,
descrevia o mal-estar que tomava conta dele frente à atitude
dos adultos franceses para com as crianças. Elogios, admira­
ção, prognóstico de futuro favorável, pareciam-lhe não ape­
nas fora de lugar mas também inquietantes, sem que pudesse
explicitar seu mal-estar. Relata que todos seus amigos africa­
nos tinham a mesma reação que ele.
E tradicional que o pai não converse com seus filhos: es­
tes devem escutar ordens e conselhos e só responder se são
perguntados; devem sair discretamente de uma sala onde
adultos estejam falando entre si.
Um pai nos diz a respeito de seu filho mais velho de 11 anos:
“Não converso com ele. Só falo de assuntos de estudos, que não es­
tarei aqui para sempre para pagar estudos, para levantar seu moral,
para mostrar-lhe o que o espera”, e acrescenta: “Ele conversa com
seu irmão, e faz perguntas para as pessoas que vêm em casa.”
Aissatou, moça wolof de 19 anos (Caso 177) é interna no liceu de
Dakar. Corresponde-se com sua irmã mais velha e com o marido
desta; desde o 6- passa todos os domingos na casa deles e eis o que diz
disto: “ Não falo com minha tia (designa assim sua irmã, por respeito),
tenho muita vergonha com ela; com meu tutor também tenho muita
vergonha, não falo.” Perguntamos-lhe se ela sala de vez em quando
com colegas: “Gostaria muito de sair com minha prima X... que me
convida, mas não peço, acho que meu tutor terá vergonha de me re­
cusar mas não estará de acordo. Então não digo nada”. Acrescentemos
que Aissatou é uma moça inteligente e séria, todos seus irmãos e irmãs
cursam a escola secundária; seus pais vivem em Casamance.

Dado este tipo de relação com os adultos, o que pensar


da imobilidade da criança no consultório, de seu ar constran­
58 ÉDIPO AFRICANO
gido, de seu olhar desviante, de sua atitude indefinidamente
expectante? Ela não se permite nenhuma pergunta ou iniciati­
va.
E no exame das crianças pequenas que encontramos as
maiores dificuldades. Uma criança de 7, 8 ou 9 anos, que está
no começo de sua escolaridade, fala e entende mal ou quase
nada de francês. Está no período em que a escola é traumati-
zante para ela. Antes de entrar na escola tudo estava bém
desde que obedecesse docilmente. Se não se adaptar à escola,
é desvalorizada, a família fica descontente e, portanto, virão
nos consultar porque estão descontentes com ela. Além disto,
seremos talvez os primeiros europeus com quem terá contato
direto fora das situações médicas (vacinação, hospitalização).
Por fim, talvez se sinta ameaçada com a hospitalização ou
injeções. Podemos dizer que sempre chega assustada, inclusi­
ve aterrorizada. Sua postura é tensa, seu rosto duro e fecha­
do, a menos que um sorriso defensivo não apague qualquer
expressão. As poucas palavras de wolof que conhecemos po­
dem tranqüilizá-la e, frequentemente, a proposta de desenhar
é bem aceita, lança-se sobre o papel e o lápis, é um alívio,
enquanto que a massa de modelar não a ajuda. Quer desenhe
ou se retorça, é preciso dar-lhe tempo, deixar que desenhe
sozinha, ocupar-nos com outra coisa; só suporta nosso inte­
resse em pequenas doses. Na sua casa, nunca pedem que se
expresse fora do registro do que os adultos esperam dela.
Nosso próprio interesse de tentar compreender, e toda a
situação de exame parecem ser vividos pela criança como
uma agressão massiva. Nas primeiras entrevistas, fica muito
cansada, prova da tensão que sente.
Também precisaremos vê-la pelo menos três vezes. Nos­
sas trocas começam a ficar possíveis, e vão se enriquecendo à
medida em que os pais passam a ter confiança e na medida
em que, através de nossas falas, sentem que “compreendem”
melhor seu filho e a situação.
Tínhamos posto uma caixa de brinquedos à disposição
dos menores e dos mais inibidos. O resultado foi pobre: uma
QUESTÕES METODOLÓGICAS 59

exploração sumária, um carrinho que anda e nada mais. So­


mente a bola agrada porque é familiar; é o brinquedo que ca­
da família possui. No fim das contas, nossa caixa de brinque­
dos aumentava, para a criança, a estranheza da situação.

Os intérpretes

A colaboração de um intérprete é indispensável, mas cria


dificuldades suplementares. Por um lado, sua presença é tran-
qüilizadora para a criança e constitui uma mola para o conta­
to. Mas nossos intérpretes ainda não estão bastante formados
para compreender e pôr em ação uma atitude “liberal” ou re­
lativamente não diretiva para com as crianças. Pedem que
“obedeçam” , que respondam às perguntas formuladas e que
respondam “ como se deve” . Não têm a sensação de que a
criança possa ter algo de pessoal para expressar. Dão bronca,
pressionam, insistem. Se se trata de comentar um desenho,
indicam em que sentido fazê-lo, e tudo isto sem que possamos
controlar o que é dito.

CASO 20: Yaye D., 10 anos, wolof, muçulmana

Yaye que tem dez anos parecer ter oito. É o segundo ano que vai
para a escola, compreende e fala mal o francês. Sua mãe vem consul­
tar porque os resultados escolares de sua filha são irregulares, porque
é sonhadora e chora freqüentemente.
Yaye entra sem me olhar, senta-se muito reta, com os olhos bai­
xos, aspecto preocupado e submisso. Digo-lhe algumas palavras, ela
me dá umas olhadas furtivas, às vezes com um esboço de sorriso.
Aceita desenhar. Quando lhe peço que conte sobre seu desenho, enu­
mera: a casa, a escola, a árvore, o pote de flores, o peixe.
Também aceita se submeter a alguns testes de nível, mas fica
dura, contraída, sem recusar a cooperação. Faz tudo o que pode para
me satisfazer e duas ou três vezes sinto, sob seu silêncio, o medo de
responder maL Incito-a a falar wolof e há um relaxamento. Recorro
então à intérprete. Yaye parece evidentemente aliviada ao vê-la che­
gar. A intérprete senta-se ao seu lado, acaricia seus braços, as costas,
pega sua mão. Explicando para a intérprete os limites de suas inter­
60 ÉDIPO AFRICANO
venções, pergunto a Yaye se sonha de vez em quando. Inclina-se ime­
diatamente para a intérprete e murmura algumas palavras, que esta
não traduz, e a entrevista continua em wolof. Intervenho para saber o
que é dito. A intérprete me responde espantada: “Eu disse exatamente
o que você me disse, a mesma coisa, mas Yaye não quer responder,
‘ela tem vergonha’ de contar sobre o que sonha e eu explico para ela
que não precisa ter vergonha com você, que está aqui para dizer tu­
do.” Na verdade, julgando minha pergunta breve demais, a intérprete
a havia comentado, explicado. As reticências que Yaye expressava
pareciam não ter interesse, não precisavam ser traduzidas. Passava-
lhe um sermão para que desse uma boa resposta, sendo o importante
para ela a informação a ser obtida e não todas estas “pequenas histó­
rias de criança”. Retomando então a iniciativa, tranqüilizo Yaye, e
esta, abaixando a cabeça, com uma voz quase inaudível, a boca gruda­
da no ouvido da intérprete, lhe conta, por fim, seu sonho - a morte de
sua irmã menor - ele me é traduzido mas não posso impedir a intér­
prete de fazer comentários para a criança: “ Ah! este drama todo por
isto, mas isto não é nada, não é nada!” Diz isso, aliás, muito gentil­
mente consolando Yaye que começou a chorar e que ela conforta
apertando-a contra si.
Antes de ir embora, Yaye aceita fazer um desenho; a intérprete
sai Quando o desenho termina, Yaye o comenta dizendo em francês
que não queria nunca sair de perto de sua mãe, que não gosta de dei­
xá-la para ir à escola.
Na entrevista seguinte, também começada sem intérprete, Yaye,
mais confiante do que a primeira vez, consegue se expressar em fran­
cês através de frases curtas sobre o desenho que fez ao chegar. Mas
esta expressão não é espontânea, é sempre a resposta às minhas per­
guntas; por exemplo: "Quem está na escola? - Fatou. - E sua mãe? -
A mãe de Fatou está em casa.”
Depois de um teste de nível, recorro novamente à intérprete. Es­
ta, ao chegar, cumprimenta a menina que lhe responde longamente se­
gundo o costume e, sem que eu entenda exatamente o que é dito, sinto
imediatamente que Yaye tem coisas para dizer e que a intérprete as
toma para si. Sinto-me absolutamente excluída e, antes mesmo de ter
tempo de intervir, a intérprete pega Y aye por um braço e a leva para
O corredor. Frente aos meus protestos surpresos, a intérprete me res­
ponde peremptoriamente: “Deixa, ela quer me dizer umas coisas.”
Alguns segundos depois de fato retornam, a intérprete rindo e
comentando: “Oh! não é grave, não tem por que fazer um drama por
Istol" Conta-me então o sonho de Yaye: “ Sonhou que sua casa quei­
QUESTÕES METODOLÓGICAS 61
mava!” Digo, então, muito incisivamente à intérprete que ela não deve
me substituir mas apenas traduzir da melhor maneira possível. Res­
ponde-me cheia de boa fé: “Ela não queria falar na sua frente, então a
levei para fora.”
Recomeça a entrevista e a partir deste momento o que é dito em
wolof me é traduzido, a intérprete continua sentada perto de Yaye;
várias vezes pega sua mão ou o braço e quando percebe que Yaye não
consegue se expressar, cola seu ouvido à boca da criança. Yaye conta,
assim, que sonha com pessoas que vêm matá-la com facas e acaba di­
zendo que na escola “um garotinho quer fazer amor com ela” . Tem
muito medo. Toda esta segunda parte da entrevista se dá sem a inter­
venção da intérprete.
Na terceira entrevista, decido descartar a intérprete. Yaye faz um
desenho que não consegue acabar de colorir. Sinto-a muito ansiosa.
Falo com ela: alguns comentários sobre as fantasias trazidas na entre­
vista precedente, visando desculpabilizá-la. Seu rosto baixo no come­
ço se ergue, olha-me diretamente e sorri diversas vezes. Depois, ten­
tando fazê-la associar sobre seu desenho, faço-lhe uma pergunta, re­
trai-se imediatamente, abaixa novamente a cabeça, sinto que ela não
pode falar; a mesa entre nós é uma distância intransponível; propo­
nho-lhe então sentar-me perto dela, no lugar que a intérprete ocupa­
va. Sem nem mesmo esperar que eu me levante, sai de sua cadeira e
vem se enroscar em mim. Retomando então os gestos que vira a intér­
prete fazer, tomo sua mão, o braço e lhe digo, por fim: “ Você quer fa­
lar no meu ouvido?”
E é assim que, num murmúrio, conta-me de seu medo das facas
que enchem sua barriga para matá-la, seu medo da morte de seu pai,
seu medo de diabos assassinos que querem devorá-la. Yaye, sem
chorar uma única vez, falará durante uns vinte minutos, com longos
intervalos de silêncio. Parece que o contato físico comigo lhe permitiu
ligar minha imagem com a de uma mãe africana por intermédio de sua
experiência com a intérprete.
No fim da entrevista, começou a modelar e foi sorridente que
veio me trazer suas obras. [Observação A. Colot]

*
* *
Mostramos como uipa série de entrevistas - que pode se
estender por dois meses ou mais - era necessária para reco­
lher os materiais do diagnóstico. Durante este tempo desen­
62 ÉDIPO AFRICANO

volve-se uma relação transferenciai entre a criança e nós, e


nos coloca, de fato, numa situação de psicoterapia. O modo
de estabelecimento desta relação e as modalidades de sua.
evolução esclarecem o diagnóstico. Mas esta situação não
deixa de ter sérios inconvenientes. Por exemplo, ocorre que a
criança evolua rapidamente durante as primeiras entrevistas,
quando ainda não temos uma compreensão suficiente da di­
nâmica familiar e não podemos nem prever nem utilizar ade­
quadamente as reações do grupo familiar frente à evolução da
criança. Pode ocorrer que uma criança estabeleça uma relação
transferenciai muito intensa que não podemos limitar no mo­
mento em que compreendemos que a terapia indicada seria
mais a de um parente do que a da criança. O vínculo da
criança com o psicólogo pode então, momentaneamente, au­
mentar a tensão no interior do grupo familiar e tomar os pais
menos acessíveis etc.
Não se deve esquecer que o tempo do diagnóstico resulta
dos costumes médicos da psiquiatria. Do ponto de vista psi-
canalítico, as entrevistas preliminares estão destinadas a per­
mitir que o consultante explicite sua demanda e para que pos­
samos avaliar a melhor conduta a ser seguida.
Além disto, embora o clínico esteja obrigado a adquirir
certas informações etnológicas e lingüísticas para compreen­
der o que as pessoas dizem, deve evitar transformar seu con­
sultante num informante ou ver nele apenas o porta-voz de
um fato social. A necessidade de colocar a referência social e
cultural a serviço do trabalho clínico, acompanha em qual­
quer lugar o exercício da psicanálise.
Ao descrever, neste capítulo, a situação de um psicana­
lista trabalhando numa civilização estranha à sua, apenas
ilustramos uma característica essencial da atitude analítica, já
que nenhuma proposição pode ser compreendida sem que
haja uma referência ao contexto familiar, social, cultural.
Trabalhando na Europa, num meio camponês, por exemplo,
teríamos tido que nos fazer perguntas análogas às que acaba­
mos de enumerar. Um acontecimento qualquer da vida (entrar
QUESTÕES METODOLÓGICAS 63
na escola, fugir, casar, sonhar, ter vizinhos, brigar com um
amigo etc.) tem ressonâncias diferentes e não mobiliza os
mesmos sentimentos segundo as sociedades.
Deveriamos então concluir que uma informação socioló­
gica aprofundada deve preceder o trabalho clínico? Respon­
deremos que, embora um mínimo de informação seja necessá­
rio, o que mais importa é a atitude analítica que procura com­
preender o lugar do sujeito no que ele diz.
DADOS CLÍNICOS:
MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS

Apresentaremos neste capítulo exemplos clínicos tomados


da população que procura o atendimento. Em inúmeros casos
reconheceremos fantasias de confrontos com o pai, análogas
às que encontramos na Europa, mas também veremos que es­
tas fantasias tendem a evoluir de forma diferente do que na
Europa, a evoluir numa certa direção que descreveremos.
A tendência é mais ou menos acentuada segundo os casos
mas é uma constante; pouco a pouco perceber-se-á que as va­
riáveis estão ligadas entre si e formam um todo coerente.
Se representarmos esta direção evolutiva como um vetor,
a população de nossos consultantes encontra-se distribuída de
forma desigual. Assim, muitos escolares não estão muito dis­
tantes das posições “européias” ; outros estão muito afastados
e alguns sujeitos situam-se na extremidade do vetor, isto é, no
ponto extremo onde o problema toma-se mais social do que
psicológico. Para além deste ponto, o vetor pode ser prolon­
gado de forma pontilhada; as posições podem ser extrapola­
das e verificadas pela abprdagem etnológica, mas não podem
mais ser observadas numa situação analítica. Embora levando
66 ÉDIPO AFRICANO

em conta esta última questão, nossa amostra de população,


ainda que limitada, revelou-se suficiente para que a direção
evolutiva pudesse ser claramente balizada.
Apresentaremos as variáveis na seguinte ordem: o falo
coletivo, o ancestral inigualável, o drama de superar os ir­
mãos.

1. O FALO COLETIVO

CASO 9: Birame G ., 14 anos, wolof, muçulmano1

Birame é levado ao atendimento por enurese, fracasso es­


colar, mau-caráter; acrescentam que vê mal.
Birame é o quarto dos oito filhos de sua mãe. Tem dois
irmãos vivos antes dele, o primogênito faleceu. Sua mãe, se­
gunda esposa do pai, tem apenas quatro filhos com ela, entre
eles Birame; os outros são criados pela primeira esposa.
O pai pertence à casta dos joalheiros (ferreiros). Há al­
guns anos, ainda exercia a profissão de joalheiro assim como
seu próprio pai, mas atualmente é supervisor numa feira da
parte velha da cidade de Dakar. Seus dois filhos mais velhos
são ferreiros depois de terem fieqüentado a escola durante 3
ou 4 anos.
No que se refere a Birame, com quem tivemos uma série
de entrevistas, basta seguir o material para ler nele o jogo
edípico clássico. Resumindo:
Primeiro aparece a fantasia do velho guarda Gadiou, o
supereu em pessoa: impede as crianças de roubarem e de se
machucarem; tem mulheres, crianças, bicicleta, carneiros, cão
e árvores carregadas de frutos.
Depois, sua antítese, o velho Ibrahima: sua mulher mor­
reu, não tem filhos, não tem moradia nem cama; nunca está
contente, as crianças zombam dele. Por que isto? Porque,

1. Observação A. ColoteM .-C.Ortigues.


DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 67
quando era jovem, batia nas crianças, queimava as casas, fa­
zia mal aos velhos; ficou louco.
Em seguida vem o sonho central que Birame desenha:
numa praça - praça da Assembléia, do Governo - encontra-se
uma estátua fálica; é um monumento em lembrança da guerra
e dos mortos, junto ao qual existem duas torneiras e grama.
“É o mar com um rochedo, alguém vem pescar. Banhamo-nos
no mar e quando voltamos para os coqueiros há a lepra. As
pessoas dizem: ‘Oh! olhem os leprosos...’ Descemos para a
assembléia, para a estátua. Escondemo-nos atrás da estátua.
Os leprosos passam sobre a grama; não nos vêem; quando
estão longe, não nos vêem. Quando te tocam, você fica lepro­
so.”
Birame associa:
- Seu pai o proíbe de ir ao mar, bate nele se for ao mar.
“Meu pai sempre me bate mas estou contente com ele.” “ Os
marabutos são maus porque se você quer ir mijar, eles recu­
sam; não fico contente quando me batem.”
- “Perto do cemitério há uma grande casa de leprosos.
Não se deve atacar os leprosos, são maus, podem te perse­
guir. Se se joga pedras num louco, a gente pode ficar louco.”
Compreendemos que a imagem dos leprosos expressa
aqui ao mesmo tempo a proibição de vê-los, como a de ver os
mortos do cemitério (ver os mortos é proibido para as crian­
ças), o perigo do contágio por tocá-lo, a tentação de ser
agressivo: Neste sonho, a estátua em lembrança dos mortos e
da guerra está na praça da Assembléia, do Governo: falo co­
letivo, morto e coisificado, por trás do qual se esconde, se
abriga, o sujeito que espreita e foge dos leprosos, as pessoas
excluídas da sociedade e cuja presença intocável e fascinante
incita a ser agressivo e a se tom ar associai como eles.
Em seguida, através das histórias comuns de ladrões, sa­
queadores de casas, o sujeito se faz a pergunta: serei eu como
o velho Gadiou ou como o velho Ibrahima? A resposta é: meu
pai não tem medo dos ladrões, é mais forte do que eles, es-
panta-os com uma faca, portanto, é inútil ser ladrão. No en­
68 ÉDIPO AFRICANO
tanto, é forte a tentação de jogar pedras nos loucos como o
velho Ibrahima, mas o castigo é na mesma medida da tenta­
ção: “ Se você joga pedras nos loucos, você fica louco, é pior
do que a lepra.”
Por fim, encontramos o leproso voyeur de um acidente-
cena primária que B irame associa a todas as suas idéias de
fracasso e de castração.
Eis agora o contexto no qual estes elementos de aspecto
familiar devem ser recolocados:
Birame foi levado a um psiquiatra e depois a nós por enu-
rese, fracasso escolar, mau caráter; este quadro foi descrito
em duas ocasiões pela mãe. Foi apenas numa entrevista poste­
rior que o pai nos revelará o drama familiar. Birame é impo­
tente.
Eis aqui de que forma os pais falam disto:

Primeiro o pai: “Birame é impotente. O pau de Birame não le­


vanta. Quando ele bebia da mãe dele, levantava, depois também. Des­
de que está na escola, até agora não levanta quando urina ou quando
acorda.”
“Na escola vai normalmente, não estuda bem, é preguiçoso, na
aula não dorme, é normal na escola.”
“ Uma criança que deveria ser um homem e que é impotente não é
interessante. Isto incomoda muito a mãe. Nenhuma mulher quer um
filho impotente.”
“Quando era um pouco jovem, levanta, não é impotente; é a mãe
que me disse: ‘O pau de Birame não levanta’, fui ver, perguntei ao
meu filho, ele disse: ‘Não levanta’.”
Para um adulto a impotência dura um mês, é uma doenci-
nha, toma-se um remédio. H á muitos vermes na sua barriga inteira
que o tornam impotente, o negócio não levanta.”
“Na minha família, nunca houve nada disto. Nunca tive nenhuma
deficiência, mesmo agora, é só chamá-lo que ele levanta. Nunca em
nenhuma parte da família de alto a baixo teve algum negócio destes. É
a avó materna que procurou um marabuto, pensa que é o demônio.”
Como aconteceu isto? - “ Num monte que queimamos, Birame
veio urinar na areia que está queimado. A urina sobre a poeira, o de­
mônio não quer. Se você urina, imediatamente ele te toma impotente
ou outra doença, tremores e você fica louco.”
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 69
Os irmãos mais velhos de Birame sabem disto? - “ Não quero que
ninguém saiba, senão zombarão, Birame chorará... Digo-lhe: Birame,
você lembra seu pau levanta? - Sim, outrora. Faz muito tempo que
não levanta, não levanta nem de manhã nem de noite.”
“ É a mãe que se inquieta, dia e noite a mãe diz isso ao pai durante
muitos meses (há 18 meses mais ou menos), depois inquieta o pai que
verifica e pergunta a Birame: Desde quando o pau não levanta? —
Desde que urinei sobre o monte de cinzas.”
“ A mãe falou com a avó materna depois de ter falado com o pai.
A avó materna e a mãe, sem dizer nada ao pai, foram ver o marabuto.
O marabuto disse que ele urinou sobre um monte de cinzas. Birame
lembrou de ter urinado num monte.”
O que Birame pensa disto? - “Birame não acha nada. Não tem
ainda inteligência sobre estes assuntos, ainda não é grande o suficien­
te, só os grandes se interessam por isto. Nós, pai e mãe, conhecemos
isto. Pai e mãe são iguais frente a este assunto. É a mais grave das
doenças junto com a lepra... Meu filho é um estrupício. O assunto co­
meça a entrar na cabeça de Birame, está começando a se virar para
ver se levanta ou não levanta.”
Dissemos que a criança era enurética. É preciso saber que
a enurese é, às vezes, identificada à impotência e que, no di­
reito consuetudinário, existem cinco impedimentos para o ca­
samento e causas de divórcio: a impotência, a enurese, a le­
pra, a loucura, a elefantíase.
E, efetivamente, a mãe de Birame fala de enurese no
mesmo tom com que o pai fala da impotência. Sem dúvida,
como muitas mães africanas, ela “verifica seus filhos” , vigia
as ereções desde a primeira infância. Ela nos diz:
“Antes, a criança era muito manhosa porque sabe que está doen­
te, está miserável... mijou na cama depois da catapora e que o sexo in­
chou. A doença começou com as bolhas.” A mãe pensa que o sexo in­
chou por outra razão que não a catapora: uma criança o machucou ou
um acidente; levou-o ao dispensário, curou-se mas continuava a fazer
xixi na cama.
“ Se a criança continua fazendo xixi é ruim, diz ela, tenho medo
que isto dure para sempre mesmo quando estiver casado.2 Toda a fa­
mília se preocupou, mesmo os pequenos zombavam dele.”

2. Uma outra mãe wolof-lébou de um garoto de 10 anos, enurético e


70 ÉDIPO AFRICANO
A mãe acha que a doença impede o sexo de ficar ereto, que “é o
nervo que impede de manter o pau duro que deixa escorrer o xixi” .
Por ocasião de uma entrevista posterior, depois da melhora da
criança, a mãe nos diz que não se preocupa mais: ela estava magra,
agora mudou, engorda, melhorou, confia plenamente... Tudo o que
viu é que fazem de tudo por seu filho, se não sara é o desígnio de
Deus. “Preciso dizer mais uma coisa, acrescenta ela; antes, a própria
criança pensava: ‘Eu vim ao mundo impotente, sou ruim demais’, e se
lhe dizemos: ‘Faz a lição’, ele não faz nada porque não serve para nada
no mundo... A criança diz: ‘Seria melhor morrer do que ficar assim;
para que serve ler? Porque faço xixi não tenho potência, não terei
mulher.’ Agora, conclui a mãe, é como uma lareira apagada que se
acende, ele lê, faz todo tipo de trabalho.”

Parece claro que aqui o problema da impotência sexual


da criança é vivido como problema coletivo da família. Bira-
me nos dirá: “Não me sinto doente, é meu pai que diz que
estou doente; se meu pai dissesse ‘você está curado’, eu esta­
ria curado.” 3
Cabe notar que o falo é sobretudo “coletivo” para os pais
de Birame, mais do que para a própria criança. E na medida

apresentando, além disto, perturbações pitiáticas da visão, nos dizia: “ A gente


pensa que isto atrapalha o convívio. Uma criança que faz xixi na cama dá azar.
Quando um marido ou uma mulher urinam na cama, o cônjuge que foi molhado
deve se vingar. Deve urinar sobre o marido no meio dos seus amigos (dele). Se
isto não £ feito aquele que foi molhado vai ter má sorte. Quando a mulher urina,
o homem faz xixi sobre a mulher quando ela está no meio das outras mulheres.
Quando um homem ou uma mulher se molham, o casamento se desfaz. Portanto,
os homens nunca têm filhos... Um homem assim vai viver etemamente só.”
(Seydou F., caso 3)
3. Um ano depois da cura de Birame, sua irmã menor de 9 anos, Nafi (cas
182) nos foi trazida por causa de geofagia. Culturalmente, as crianças “ que co­
mem areia” depois dos 3-4 anos, são consideradas em perigo de não crescerem
nem física, nem moralmente: ficarão crianças pequenas, magras e não poderão se
casar. Dito de outra forma, o problema de Birame, ou melhor, o problema de seus
pais, estava agora deslocado para sua filha Nafi. No caso dela, tratava-se de uma
oposição aos pais, não culpada, quase lúdica.
Nesta oportunidade soubemos que os pais de Birame não o tinham deixado
continuar os estudos depois do Certificado dê estudos, ao contrário dos projetos
que tinham um ano antes. Mas não foram considerações financeiras que determi­
naram esta decisão. Compreendemos que não suportavam que seu filho progre­
disse mais num destino social individualizado pelo estudo.
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 71

em que há uma defasagem entre suas respectivas posições que


a criança tem um problema “pessoal” e que tem algo a dizer;
o que ele diz é precisamente sobre a sua procura de uma po­
sição mais autônoma.4
A situação de Birame é comparável àquela, muito comum
entre nós, do fracasso escolar de um filho, vivido pela família
como castração do grupo e, mais particularmente, do pai que
sente as suas razões de viver ameaçadas: “Meu filho não ser­
ve para nada... tomar-se-á um desempregado... varrerá as
ruas...” Mas aqui o problema é vivido sem deslocamento nem
sublimação, é a fecundidade física da família que está direta­
mente em questão. A sexualidade é percebida normativamente
sob o aspecto de fecundidade. Não encontramos uma série de
transformações que colocariam a uma maior ou menor distân­
cia o significante sexual inicial e outras formas significativas
que seriam uma transposição deste.
Já sublinhamos este dado sociológico comum a todas as
sociedades africanas tradicionais: a finalidade do casamento é
de dar descendentes para o grupo; a vida individual dos côn-
4. A este respeito podemos comparar o caso de Birame com o de Yous-
souf, aluno marabuto de 22 anos (caso 206), que procurou o atendimento por im­
potência. Youssouf pertence a uma família de marabutos. Seu pai lhe ensinou o
Alcorão at£ a morte, depois a criança foi entregue a um tio materno, também
marabuto, para continuar seus estudos religiosos. A família quer fazer dele um
marabuto “ por respeito ao seu pai” , ainda que o considerem pouco inteligente.
Aprende o Alcorão muito mais devagar que seus colegas e seu tio lhe impõe lon­
gas orações noturnas “ para colocá-lo no bom caminho” . Ele mesmo desieja ape­
nas uma coisa: que Deus lhe dê a mesma inteligência que seu pai.
O irmão mais velho de Youssouf também é aluno marabuto. Dois anos an­
tes, os tios o casaram. Justo antes do casamento, revelou-lhes que era impotente.
O casamento foi, no entanto, celebrado, mas a impotência persistiu apesar de
numerosos tratamentos marabúticos e o divórcio se deu após dois anos. Quando
atendemos Youssouf, seus tios acabavam de lhe anunciar que recebería em casa­
mento a mulher divorciada de seu irmão. Este, por sua vez, revela a seus tios sua
impotência.
Ao contrário de Birame, Youssouf não tem nada a dizer. Está absolutamente
de acordo com seus tios, com as exigências muito rígidas que sempre lhe foram
impostas, com o caminho que lhe foi traçado. Sua impotência o afeta principal­
mente na medida em que afeta o grupo familiar. Após três entrevistas durante as
quais Youssouf expressou sua adesão ãs normas e ideais do grupo, dois sonhos em
que aparecem o Profeta e Grandes Marabutos, limitou-se a pedir um remédio. Sua
situação psico-sociològica não permitia uma investigação mais aprofundada, e
muito menos uma psicoterapia. (Observação A. Zempléni)
72 ÉDIPO AFRICANO

juges não é levada em grande consideração. A preocupação


com a fecundidade, tanto na agricultura quanto na vida hu­
mana, é tradicionalmente a forma fundamental da angústia de
viver, e estes modelos tradicionais se perpetuam na psicolo­
gia, sendo as posições inconscientes mais arcaizantes do que
as atitudes conscientes.
Para um impotente não há inserção social possfvel. Há
um mesmo destino para o louco, o impotente, o agressivo,
o leproso: “ Um homem destes está destinado a estar etema-
mente só” , isto é, a não ser ninguém.
A sociedade ocidental, pelo contrário, oferece ao homem
sem filhos, à mulher solteira, uma quantidade de possibilida­
des para “preencherem sua vida” , como se diz, de serem re­
conhecidos como homem ou mulher. A exigência de ser cria­
dor para o grupo geralmente é deslocada para a eficácia pro­
fissional; todos sabem que pediatra, professor primário, este­
ticista... são profissões “bem femininas” . O século XVIII eu­
ropeu instaurou entre nós um desejo de autarquia individual,
de “viver a própria vida” .
Na França, num caso análogo ao de Birame, durante uma
psicoterapia, teríamos percorrido a distância que, por causa
da elaboração das fantasias, separaria o sintoma enurese de
sua significação de castração fálica. Teríamos podido ver a
análise operando a junção entre o sintoma enurese e seu
equivalente inconsciente de impotência. Aqui, pelo contrário,
esta equivalência já existe no ideal coletivo de fecundidade
expresso pelos pais, e o que constatamos no desenrolar da
psicoterapia é uma elaboração de fantasias que tende a dis-
jungir estes dois termos ao introduzir entre eles diversas me­
diações. Dirigindo-se a seus pais, Birame, assim como eles,
identifica im ediatam en te enurese-impotência e esterilidade:
“ [...] para que serve ler? Porque faço xixi não tenho potên­
cia, não terei mulher.” Dirigindo-se ao terapeuta, fala das
fantasias que relatamos, isto é, uma série de elaborações
transcrevendo o problema com referência ao “eu” , o que ten­
de para uma formulação clássica da situação edípica.
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 73

2. O ANCESTRAL INIGUALÁVEL

Através do caso de três jovens e com a ajuda de um conto


tradicional, tentaremos indicar como a imagem do pai, en­
quanto legislador e rival, tende a se confundir com a imagem
da autoridade coletiva ou do ancestral. As três primeiras ilus­
trações se ordenarão no sentido de um encobrimento, de uma
fusão cada vez maior da imagem do pai com a do ancestral.
Nos três casos clínicos, se considerarmos o desenrolar
das posições fantasmáticas, constata-se que inicialmente o
problema edípico está formulado nos termos mais clássicos, a
criança só se refere ao seu pai, mas, avançando mais, a ima­
gem do pai tende a ser absorvida na da coletividade ou dos
ancestrais.

CASO 30: Alioune D ., 16 anos, wolof, muçulmano*

Alioune é encaminhado ao atendimento pelo colégio de


T... onde está no 5- moderno. Seus resultados escolares são
muito fracos depois de terem sido muito bons na escola pri­
mária.
Além disso, Alioune se isola, foge dos outros, anda sem­
pre de cabeça baixa, “não responde às perguntas” , “ às vezes,
inclusive, dorme andando” , diz seu irmão mais velho e, “ se
seus colegas jogam futebol, ele está sempre em casa procu­
rando algo para comer” .
Alioune é enurético desde mais ou menos os 7 anos. Foi
altemadamente corrigido (quando o pai viu que tinha muita
vergonha, disse: “deixem-no tranqüilo”), zombado, cuidado
pelo marabuto do pai: “Ele lhe dá urina de carneiro e ele be­
be isto de manhã, e é preciso correr 200 metros.” A mãe liga
o fracasso escolar à enurese: “Sei o que o impede de estudar
na escola, é urinar na cama; quando trazemos um remédio
toma-o rápido.” 5

5. Observação J. Rabain.
74 ÉDIPO AFRICANO
O pai é comerciante, proveniente de uma família de ma-
rabutos, autoridade na sua aldeia. Tem cinco mulheres e vinte
filhos. Alioune é o segundo dos sete filhos de sua mãe.
A mãe é a segunda mulher, a preferida do pai. “É a mão
direita do pai” , diz um filho mais velho. Alioune também é o
filho preferido.
Os filhos da primeira mulher continuam seus estudos se­
cundários e superiores, enquanto que Alioune e seus irmãos
são “moles” , menos bem dotados, com exceção de um menor
de 13 anos.
Sobre a primeira infância de Alioune sabemos que “não
se mexia, não reclamava” . Só andou com 2 anos.
Dos 7 aos 8 anos, Alioune foi confiado a um marabuto de
uma aldeia vizinha. Este ano de escola religiosa foi marcado
por uma série de experiências que apresenta como traumati-
zantes para ele e que evoca com angústia: ficou sozinho per­
dido na floresta durante a noite, foi freqüentemente espanca­
do e às vezes chicoteado pelo marabuto e, por fim, o mara­
buto tirou dele presentes que sua mãe lhe havia trazido.
É na volta para sua família que a enurese foi constatada
pelos pais.
No exame, Alioune mostra-se muito ansioso e muitas vezes
prestes a chorar. Seu nível intelectual é médio, baixo demais
para que possa ter sucesso nos estudos secundários mas, assim
como sua família, não aceita renunciar a eles. Tem uma rivali­
dade, pessoal poder-se-ia dizer, com um irmão mais velho de
mesmo pai, que tem muito sucesso. Através do seu problema
escolar expressa-se também a rivalidade das mulheres: a mãe
de Alioune inveja sua “rival” cujos filhos são mais dotados do
que os seus e esta sabe que o sucesso de seus filhos os designa
como objetos de eventuais marabutagens. Constata-se também
que a imagem traumatizante do marabuto está, em Alioune,
deslocada para a do professor. Este deslocamento sugere que o
sucesso escolar de Alioune que valorizaria sua mãe como mãe
e como esposa é, ao mesmo tempo, exigido e interdito sadica-
mente pela imagem composta de professor-marabuto.
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 75
Alioune, durante cinco entrevistas, fala de uma série de
fantasias:
- Situa-se primeiro como irmão maior que ataca seú ir­
mão menor, bate nele, embora isto seja uma conduta conde­
nável.
- Depois, o ônibus em que se encontra com seus irmãos
sofre um acidente, um irmão se machuca, o motorista é con­
denado.
- Caça o leão, vence-o; mas “o pai de uma criança” ti­
nha sido ferido por este leão, ele leva o pai ao filho desolado.
Digamos que, da caça ao leão, voltam um pai ferido, um fi­
lho vencedor e um filho desolado. Esta fantasia constitui a
fronteira da afirmação fálica expressável. A angústia a ela li­
gada leva a um movimento de retração e a uma fantasia de
submissão à sociedade dos homens.
- Por fim, uma terceira fantasia justifica esta posição
mostrando o perigo que se cone por bater e vencer um irmão
menos forte: a mãe e o diretor da escola te mandam para a
polícia onde se é castigado.
Acrescentemos que, assim como os temas, a feitura dos
relatos não indica uma personalidade neurótica, mas sim uma
procura trabalhosa e inquieta que subtende uma situação ob­
jetivamente difícil. A ansiedade está bastante bem controlada.
Cada um dos relatos carregado de forte tensão é precedido
por um outro em que aparece o mesmo personagem ou a
mesma situação, mas de maneira mais neutra.
Queremos retomar agora a fantasia que expressa o equilí­
brio atualmente encontrado pela criança, a submissão ao pai e
à sociedade dos homens:

“ É uma mangueira que está no meio da aldeia; é a árvore de con­


versas. Durante o dia todos os homens e as crianças vêm bater papo
em baixo da árvore, é' uma árvore cuja sombra é fresca. Na aldeia on­
de faz muito calor, os juramentos são feitos sob a árvore. Por exem­
plo, entre os muçulmanos, se quer que chova, vai para baixo dela re­
citar versículos do Alcorão. Durante a estação seca, esta árvore pro­
duz frutos que todas as crianças da aldeia vêm pegar mangas.
4K

76 ÉDIPO AFRICANO
Um dia uma criança que não conseguia subir, tenta subir. Ao su­
bir, senta-se num pequeno galho, o galho quebra e a criança cai com a
perna quebrada.
Todas as crianças que estavam lá em cima descem rápido e vão
chamar seu pai e o seguem. Põem-na num carro e a levam até um ho­
mem que trata fraturas de perna. Tendo chegado, deitam-na e a se­
guram firmemente. É o pai que segura suas pemas. O homem que
trata prepara suas coisas. Puxa sua perna e diz ao pai que o tornozelo
destroncou. Fica lá durante alguns dias e mal consegue andar. Quando
está curada, volta para a aldeia onde todos estavam muito inquietos e
proíbem as crianças de subir na mangueira e dizem que se vocês que­
rem pegar mangas, peguem um pau e cortem mas não devem subir.”

O que pensava o pai? - “ Que ele ficaria curado e quando


está curado proíbem-no de ir até a mangueira. Diz que não
sairá mais de casa para ir pegar mangas; que a criança era
turbulenta.”
O que pensa a criança? - “ Se o proíbem de fazer isto, ele
não vai fazer o que lhe proibiram.”
As características da imagem paterna merecem ser exami­
nadas. Na França o aspecto autoritário, legislante desta ima­
gem está geralmente , mais ou menos deslocado para imagens
de autoridade social, como aqui, num primeiro tempo. Mas
aqui parece que o movimento se inverte e que a imagem do
pai tende a se fundir, a ser absorvida na do grupo dos homens
reunidos em volta da árvore de conversas, imagem, por ex­
celência, da lei coletiva, da coesão e da fecundidade do gru­
po: “É lá que se vai recitar os versículos do Alcorão se se
quer que chova” , define a criança.
O pa| é pessoalmente avisado do acidente de seu filho e é
ele que “segura a perna” quando o tratam; mas não é ele que
formula a interdição de subir na mangueira; quem o faz é um
sujeito indeterminado.
Notemos ainda que, assim como a imagem do pai tende a
se fundir na do grupo dos homens, também o filho reencontra
seu lugar no grupo das crianças.
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 77
CASO 42: Amadi S., 14 anos, toucouleur/wolof, muçulma­
no6

Amadi é encaminhado ao atendimento psicológico pelo


Centro médico escolar. Foi mandado embora da escola no ano
passado por trabalho insuficiente e, embora repetindo pela
terceira vez o segundo ano do Curso médio numa escola par­
ticular, tem resultados muito ruins. Queixa-se de não ver bem
o quadro-negro embora sua visão seja normal.
Segundo as palavras do pai, Amadi “não estuda, não
brinca, é totalmente preguiçoso... é um garoto na cabeça de
quem ninguém consegue fazer entrar nada” , mas é dotado pa­
ra o desenho e hábil com as mãos. Segundo a mãe, “está bem
onde quer que esteja” , mas não estuda. Ambos falam de
Amadi comparando-o a Moussa, meio-irmão de mesma idade,
mais dotado mas de caráter difícil. Tanto no estudo quanto
nas brincadeiras, Moussa domina Amadi, é ele quem tem as
idéias e que comanda. Amadi está sempre triste.
O pai é cobrador. Tem duas mulheres. A mãe de Amadi é
a primeira, a preferida do pai. Tem quatro filhos, Amadi é o
mais velho. Também vivem com o pai os filhos de uma se­
gunda mulher com quem se casou junto com a primeira, mas
de quem o pai se divorciou há sete anos.
Amadi é um garoto pequeno para a sua idade, de aspecto
fino e frágil. Viveu com seus pais até a idade de 11 anos. Sa­
bemos que foi manhoso na época do desmame e ciumento da
irmã nascida depois dele. Dos 7 aos 10 anos comia areia. Os
pais descrevem várias vezes como grita à noite: “Levanta,
como se visse algo.” Aos 11 anos Amadi é enviado para a
casa de um tio, professor em Kaolak para repetir o segundo
ano do Curso médio. Mora atualmente na casa de uma sobri­
nha do pai a fim de estar perto da escola que frequenta. Não
gosta desta “ irmã mais velha” que o obriga a ir “buscar água
como as meninas” .

6. Observação J. Rabain e M.-C. Ortigues.


78 ÉDIPO AFRICANO
Os testes de nível realizados mostram um nível médio,
qualidades de método, mas um rendimento muito fraco no
estudo.
Tivemos sete entrevistas com Amadi, distribuídas em dois
meses. Fala de sua vida presente e passada e descreve fanta­
sias sobre as quais associa.
Os dados edípicos estão em primeiro plano, altemando-se
com fantasias pré-edípicas de abandono e depois de destrui­
ção por uma mãe ogra. Se examinamos a feitura e o desenro­
lar deste material, não há nada que não nos seja familiar, ex­
ceto os elementos culturais que subtendem o mecanismo de
defesa: este consiste, altemadamente, em não falar para não
escutar, para não ver e em não falar para escutar.
Ei-las na ordem em que aparecem:
- Um acidente ao lado da torneira, na escola; a criança
está machucada na perna. A história é introduzida por esta
frase: “ Uma escola, um menino gosta demais dela. Um certo
dia o menino teve um acidente ao lado da torneira...”
- Uma mãe deixa seu filho que se queima e morre.
- Um menino ouve dizer no telefone que seu pai morreu.
Enterram o pai. Na volta o filho sofre um acidente, não con­
segue falar, está mudo; vão buscar um médico para fazê-lo
falar, mas em vão.

“E sua mãe todas as noites sonha: todos seus sonhos são o pai e o
filho. Fala de seus sonhos ao marabuto. O marabuto lhe diz para não
f a l a r muito alto na rua porque há homens que falam a sua voz quando
você falou. Se se fala sua voz e você responde a voz, você vai sofrer
algum dano. E o marabuto dá uma grande casa para a mulher e seu
filho, e a mulher não sonha mais.”
E a criança expüca: “Porque lá onde ela estava não era bom; há
árvores demais. Se você fala lá, às vezes as sombras das árvores não
táo boas: há monstros; é por isto que vão te causar dano. As vezes, se
você sai de noite, você cai sozinho, é por causa dos monstros. As ve­
n s , a tua boca ainda não pode falar. Você não pode falar o que quer
falar. Nfio falar não é bom. Você precisa falar. Se te dizem algo, você
nlo escuta, fica surdo.”
E frente à pergunta de quando acontece de não poder falar, ele
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 79
responde: “Quando você fala alto demais na rua com seus colegas;
também acontece às 7 horas se você sai de noite sob as sombras. Às 7
horas proíbe-se inclusive as crianças de passarem a noite sob as ár­
vores.”

A interdição de sair no crepúsculo e de noite parece-nos,


geralmente, ter uma função de interdição de sexualidade ge-
nital (sem excluir outras valências). Como pudemos ver, se se
infringe a interdição, o perigo de castração, cair, perder a
voz, ficar surdo, vem das sombras das árvores (morada dos
espíritos; diabos, djiné...).
Nesta fantasia, temos, portanto, a realização do anseio
edípico (a grande casa para a mulher e seu filho) e a ameaça
de castração. Compreendemos também que estar mudo é ao
mesmo tempo bom e mau, porque quem está mudo está surdo,
e não escutará a notícia da morte do pai.
- Um jovem é várias vezes abandonado por seus amigos
que vão pescar sem ele. Pensa que estão mortos e se recrimi­
na pela morte deles. Amadi imaginava da mesma forma a
morte de seu melhor amigo da escola.
- Uma mãe deixa seu filho, ele é picado por uma cobra e
morre. A criança é a preferida tanto do pai quanto da mãe.
- Em seguida, assistimos a uma briga entre um menino,
bom aluno mas indisciplinado, que rouba cocos, e o diretor
da escola. A polícia intervém e depois o pai, que tem um pa­
pel protetor e representa a força sobre a qual nos apoiamos.
Também aqui as notícias são transmitidas por telefone: -

“O telefone é bom porque às vezes acontecem perigos que não se


pode conhecer. Com o telefone pode-se escutar o que não se pode
falar [...] Pode-se escutar coisas que não são boas e que se tem vonta­
de de dizer [...]”

- ...Pode-se escutar ladrões; seguem histórias de ladrões;

“De vez em quando a gente tem vontade de roubar assim porque


a gente não tem nada [...] se uma criança rouba, um amigo a escuta e
vai contar para o seu pai [...] não é bom roubar os amigos e as lojas.”
10 ÉDIPO AFRICANO

- É dia de festa: uma criança chama seus amigos para fa­


zer uma grande batucada ao lado da torneira; paga o
“g r i o t é uma grande festa. No momento em que a festa
acaba, “ escuta-se ao lado da torneira um rugido, era um
lefio” . Um adulto mata o leão cuja pele é tirada para fazer
amuletos.
- Na sessão seguinte, o conflito pai-filho é expresso di­
retamente; para isto a imagem do filho é a de um bêbado pre­
guiçoso. O filho agride o pai: brigas e violências. O filho tor­
na-se cada vez mais incapaz e desprezível e depois morre.
- Agora, o menino é um aluno brilhante que aprende
suas lições sob a árvore. É muito bem sucedido, respeitoso
para com seu pai que lhe oferece temos, uma gravata, um
cinto, sapatos. “Todos o olham com suas roupas.”
- Neste momento misturam-se as séries edfpicas e pré-
edípicas: a criança-voyeur assiste ao assassinato do pai por
três homens, assassinato que ocorre com a cumplicidade da
mãe. As testemunhas são compradas “para que não falem” . O
pai morto é carregado até o pé de um baobá. A mãe assassi­
na também é um ogro que devora seus filhos. O relato da
aventura das crianças na casa da ogra está construído como o
do Pequeno Polegar, com a diferença de que o Polegar, para
salvar seus irmãos, transforma-se em árvore que vai embora
carregando seus irmãos nos seus galhos.
- Um menino sério e trabalhador que entrega seu salário
a seu pai, acha que este não deveria ficar com tudo para ele.
Abandona assim a casa paterna. Consegue. Sua mulher é en­
fermeira, ele professor. Mas o casal e um amigo são asfixia­
dos numa noite pelo fogão a gás. “ Se alguém está morto, é
proibido falar.”
- Desembocamos então na fantasia do baobá que é a se­
guinte:*

* Griot — negro de casta especial, poeta, mdsico, trovador e bruxo. (N. da


DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICA.S Al
“Um certo dia, havia um senhor que queria se cu tf OORi uma
mulher. Partiu para a casa do pai dela para lhe pedir isto, e seu pai 0itá
de acordo. Num domingo, o senhor casou com ela. E três dias oilil
tarde vieram os homens para tirar o baobá. Há um velho que dia que
este baobá não se corta porque se põem os mortos dentro. Dois dias
depois os homens vieram com sua carroça: há um homem que {Alie
para tirar o baobá, a carroça pega fogo e os outros homens pegam
água para apagá-lo. Durante a noite os homens jogaram alguma coisa
e o baobá queima. O velho fala: tenho um outro baobá. E viram um
morto e o puseram no outro baobá. Os homens vieram de novo, dizem
que este baobá precisa ser cortado: uma rua vai passar por ali. O velho
recusa. Mas queimaram o baobá —os homens que estavam de guarda
em cima estão mortos - e o velho partiu para a cidade, para ã casa de
um parente, e três dias mais tarde seus guerreiros vieram, e de noite
partiram para matar os outros. Mataram todos os outros e voltaram.”

Associações:

“Um baobá onde se põem os mortos, não se deve ir lá. As crian­


ças não vêem os mortos, é proibido ver isto.”

Notemos as duas seqüências da fantasia: a permissão de


sexualidade dada pelo pai, o casamento; o conflito em tomo
do baobá-túmulo.
Ao contrário do que conhecemos, o direito à sexualidade
não.implica o direito a ser igual ao pai; a sexualidade, a fe-
cundidade, são assuntos do grupo mais do que do indivíduo.
O confronto refere-se ao direito de dispor dos mortos (os an­
cestrais) e do futuro do grupo (fazer uma rua ou conservar a
árvore túmulo). Entre nós, num tema análogo, o casamento
seria proibido; aqui, a castração é vivida no registro coletivo
da obediência à lei dos mortos, a lei dos ancestrais. Ela
equivale a ser excluído, abandonado pelo grupo. E por isto
que, em contraposição ao confronto com o pai, temos a amea­
ça de abandono pela mãe ou pelo grupo, abandono mortífero
equivalente da castração.
O que é, então, resolver a situação edípica num mundo
onde a função simbólica do pai fica presa ao ancestral? Não 6
82 ÉDIPO AFRICANO
possível pensar a si mesmo como igual ou superior ao ances­
tral;7 não há, neste mundo, vários lugares de pai com rela­
ções recíprocas', trata-se mais, como veremos, de encontrar
seu lugar numa hierarquia de fratrias ou de grupos etários.
No caso de Amadi a fusão das imagens do pai e da auto­
ridade coletiva está mais avançada do que no caso de Ama-
dou. Podemos encontrar num conto bambara “ O rabo de
boi” 8 a mesma fusão levada ao extremo. Trata-se de um rei que
morre deixando três filhos que teve de três esposas diferentes.
Cada uma das esposas reivindica para seu filho a insígnia do
poder, o rabo de boi. Tendo cada uma delas anteriormente
salvado a vida do rei, seus respectivos méritos são equiva­
lentes. Como escolher entre seus filhos? O griot lhes diz:
“Nenhuma de vocês gostaria de abandonar seu direito sobre
este rabo?” Todas disseram que não podiam abandonar seus
direitos. O griot diz: “ Levantem os olhos.” Jogou o rabo para
bem alto. O rabo (de boi) caiu por terra e tomou-se um gran­
de pé de figo. Desde então, a figueira tomou-se uma árvore
de aldeia.
É na imagem da árvore de aldeia, legado do pai morto
que nenhum de seus filhos igualará, que se resolve o projeto
de futuro dos filhos.9
Ao citar este conto, nossa intenção não é de analisá-lo
nem de encontrar um argumento em favor da questão que
formulamos, mas apenas de dar uma ilustração desta, forneci­
da pela tradição da África Ocidental. Ela nos pareceu muito

7. Na vida cotidiana, na medida em que sejam respeitados os costumes


tradicionais, não há confronto pensável entre filho e pai. Não observamos estes
confrontos lildicos que, entre nós, podem ocupar muito lugar na vida familiar:
jogos, esportes, discussões, desafio onde o pai convida, de alguma forma, o filho
a medir-se com ele. O homem adulto, casado (casado pelos seus pais) não é, por­
tanto, autônomo com relação ao seu pai, permanece dependente, submisso, sem­
pre inferior a ele na hierarquia social.
8. M. Travele, La queue de boeuf, Provérbios e contos bambara, Paris, F.
Geuthner, 1923, pp. 169-174 [conto LIX].
9. M.-T. Montagnier que realiza no Centro hospitalar de Fann um estudo
sobre'o Rorschach, relata que na prancha IV (prancha “ paterna’’) são muito fre­
quentemente dadas interpretações de árvores.
B

DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 83


pertinente pois notamos nos prontuários de outros jovens de
Dakar, em várias ocasiões, a utilização do mesmo tema,
igualmente proposto sob forma de enigma; como escolher en­
tre três, quatro ou cinco jovens homens que adquiriram iguais
méritos sendo que, cada um pretende garantir a exclusividade
do poder, do “ falo” (o reino, a filha do rei, o cachimbo..*)?
Reconhecer-se-á o tema de um conto muito conhecido pelas
crianças francesas, “ o tapete voador” .
Um último caso clínico, em todos sentidos comparável
aos dois precedentes, nos dará, justapondo-os, as duas for­
mulações da relação com o ancestral inigualável: a da árvore
inacessível e a da escolha de um vencedor no seio de um gru­
po fraterno.

CASO 53: C hérifB ., 16 anos, peul, muçulmano10

Chérif pertence a uma família peul estabelecida no Sine,


na região serer. Seu pai é agricultor e criador; tem três espo­
sas: a primeira delas tem um filho de 18 anos que trabalha no
campo com o pai, a segunda é estéril. Chérif é o filho único
da terceira. O pai educa vários sobrinhos que ainda não atin­
giram a idade escolar. Chérif é, portanto, o único escolariza­
do da família.
A fim de poder frequentar a escola, vive na casa de um
primo que é seu único parente em Dakar. Cursa mediocre-
mente o 6- embora seja inteligente e deseje ser bem sucedido.
Tem contra si condições materiais desfavoráveis; o quarto no
qual dorme na casa do “tio” (o primo) está alugado para
“cinco ou seis gaiatos de vinte anos que não são nada inteli­
gentes, desordeiros e preguiçosos” . Além disto, não dispõe
nem de uma mesa, nem de uma cadeira, nem de luz. De noite,
procura uma loja iluminada para estudar. Gostaria de ser aju­
dado mas seu “tio” não é nem escolarizado nem suficiente­
mente rico para pagar aulas particulares. Chérif está, portan­
to, preocupado e descontente.
10. Observaç&o M.-T. Montagnier e M.-C. Ortigues.
/
84 ÉDIPO AFRICANO
Temos três entrevistas com ele. Expõe suas dificuldades e
com boa vontade fala de sonhos e fantasias.
O primeiro deles é o de um lutador envergonhado de ter
sido derrubado e que quer se vingar; esta é a sua situação
presente tal como a sente conscientemente. Segue-se uma
ponta de culpa: um rebanho é confiado a uma criança, uma
vaca escapa e causa estragos no vizinho; o pai recrimina a
criança (quando volta para o Sine nas férias, Chérif trabalha
no campo e como pastor).
Depois a criança de pais ricos morre por causa de um
bruxo que se transforma em leão para assustá-la. “Era um
inimigo dos pais do garoto que queria que este morresse por­
que os pais do garoto eram ricos e ele era pobre.”
Ganham uma partida de futebol, mas o relato anula a vi­
tória e a substitui pela derrota com expulsão do capitão.
Um pai deixa que roubem seu cavalo enquanto conta
histórias durante a vigília; o ladrão é pego. Um bandido agri­
de um jovem homem enquanto ele visita seu avô; o bandido é
pego e morto.
Um menino maltratado por sua madrasta abandona a casa
paterna para ir à da mãe. Tem sucesso na vida ajudado por
seu padrasto. E, como bom filho, retoma mais tarde à casa de
seu pai que não fica reconhecido; nem por isto o filho o ajuda
menos.
Isolamos agora as duas fantasias que o caso de Chérif nos
fez relatar:
- Na terceira posição, depois da história do bruxo que
mata por ciúmes a criança dos pais ricos, aparece um relato no
qual o sujeito percorre o mato com seus amigos. Uma lebre,
que muitos caçadores perseguiam, escapa na frente deles. Cada
um dos rapazes jòga o pau que tem na mão sobre a lebre; todos
a atingem; o animal cai morto no momento em que seus perse­
guidores iam alcançá-lo. Cada um dos caçadores assim como
cada um dos rapazes reivindica a posse da lebre, uns porque a
cansaram até a morte, os outros porque bateram nela até a morte.
Acabam brigando; os feridos são levados ao chefe da aldeia.
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 85
“Um certo dia, havia três pessoas que iam para o interior colher
‘pão de macaco’.11 Quando chegaram ao baobá, o primeiro, que era
barrigudo, subiu. Quer colher um pão de macaco mas o galho se que­
bra, ele morre. O segundo tinha uma cabeça grande, quando queria
olhar para cima a cabeça balançava; o pescoço foi cortado, ele mor­
reu. A terceira pessoa queria correr para contar; tinha as pernas fra­
cas; as pernas quebraram; ele também morreu.”

A primeira fantasia mostra uma rivalidade entre meninos


e caçadores, todos iguais em mérito; ninguém sai ganhando e
acima deles está a instância superior do chefe de aldeia a
quem os feridos são confiados. Na segunda fantasia, três pes­
soas que queriam ter a coisa, o fruto do baobá, recebem da
árvore um destino comum, a morte.
Parece, portanto, que para além da relação com o pai e
com os irmãos mais velhos, a árvore marca um lugar inocu-
pável, a não ser pelos mortos, os ancestrais. A árvore está as­
sociada à angústia de castração e seria um representante ex­
terno do supereu. Possuir coletivamente a árvore equivale a
representar a autoridade dos ancestrais; é lá onde se recebe a
lição dos velhos, dos pais vivos, mas ninguém pode se identi­
ficar com a árvore; ela significa o que ninguém pode ser. O
pai parece um intermediário entre os filhos e os ancestrais.
Esta situação se esclarecerá no próximo capítulo; ela equivale
nos meios tradicionais a recolocar o pai numa linhagem.
No modelo europeu do complexo de Édipo, o filho se
imagina matando o pai. Aqui a versão típica seria: o filho re­
ferindo-se por intermédio do pai ao ancestral já morto e, por­
tanto, insubstituível e fazendo dos seus “irmãos” rivais. É
por isto que as representações que utilizamos, falo coletivo,
ancestral inigualável, só podem ser compreendidas em função
do termo para o qual conduzem, o jogo da rivalidade-solida-
riedade entre os irmãos.1

11. Fruto do baobá, comestível, geralmente colhido pelos jovens rapazes.


86 ÉDIPO AFRICANO

3. O DRAMA DE SUPERAR OS “ IRMÃOS”

CASO 92: Fari D ., 22 anos

Fari é interno num colégio de Dakar. Prepara a segunda


parte do bacharelado técnico. Foi acompanhado 6 meses em
psicoterapia.
Sua “doença” começou há 3 anos, no fim das férias de
verão anteriores ao seu ingresso no 2- ano em Dakar, ou seja,
tinha que abandonar sua aldeia e engajar-se, depois do
B.E.P.C., nos estudos “superiores” .
Sofreu de insônias e de violentas cefaléias. Sua cabeça
doía tanto que achava que ia ficar louco... Era tão grave que
seus músculos tremiam, não podia fazer esportes porque tre­
mia. Tem dor de cabeça e no corpo continuamente.
É atormentado por uma preocupação obsessiva: gostaria
de ajudar financeiramente sua família, seus pais que são agri­
cultores pobres; para isto teria que renunciar aos estudos.
Sua doença também o leva a renunciar aos estudos, ou
pelo menos a limitar suas ambições: o estudo “atrasa sua cu­
ra” , diz ele. E obrigado a limitar seu esforço ao mínimo in­
dispensável.
Dirá também que no começo de sua doença “ tinha os pio­
res sonhos do mundo, que o levavam à loucura...sonhos que
poderíam levar um homem a gestos dramáticos...” . Não tem
nenhuma lembrança precisa deles a não ser que “achava estar
ficando louco no sonho e matava inclusive pessoas” .
Já havia feito, durante dois anos, diversos tratamentos,
em particular com tranquilizantes, quando me foi encaminha­
do. Tinha estado tão cansado que estaria morto sem os remé­
dios mas ele constata o limite de seus efeitos.
Seus males já não têm a intensidade inicial mas são
constantes e aumentam assim que é contrariado ou trabalhe
um pouco mais. A vida se tomou novamente possível a partir
do momento em que decidiu “lutar pessoalmente contra a
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 87

doença” , isto é, afastar firmemente qualquer idéia preocu­


pante, “esquecer suas preocupações” .
Fari é o único instruído da família, o aluno mais brilhante
da aldeia: fez em 4 anos ao invés de 6 o ciclo primário. Tam­
bém foi o primeiro da aldeia a seguir os estudos secundários.
Não tem nenhuma lembrança de sua infância antes do seu
desejo de entrar na escola e sua entrada efetiva. Queria se
tomar alguém de bem, alguém importante e invejava os cole­
gas que iam na escola. Só começou a estudar aos 10 anos.
Seu pai havia decidido inscrever um dos seus filhos menores,
mas o professor disse: “Ele é jovem demais, me dê um mais
velho” e o mandaram para a escola. Estava entusiasmado.
Entrou, portanto, na escola no lugar de um irmão menor.
Com este relato associa uma lembrança que tinha conse­
guido apagar há muitos anos: a morte de um irmãozinho de 2-
3 anos quando tinha por volta de 7 anos. Revê-o sofrendo na
cama, estava muito triste. Na sua imaginação, este irmão era
aquele que deveria ir para a escola, estudar enquanto que ele,
Fari, ficaria em casa para ajudar os pais.
Eis, portanto, um segundo irmão imaginário eliminado.
Teme, ao me falar sobre isto, a morte de um outro irmão
“com quem contava” , que está doente na aldeia.
Para ele, inconscientemente, o sucesso escolar equivale
a matar um irmão.
Na aldeia, quando a ela retoma de férias, tem um status
particular. Aborrece-se muitíssimo sem livros, sem rádio nem
cinema, sem colegas instruídos, mas esconde seus sentimen­
tos. Gostaria de trabalhar no campo, é a estação dos trabalhos
pesados, mas todo mundo o recrimina, inclusive seu pai, con­
siderando que um “ aluno não deve trabalhar com as mãos” .
“É vergonhoso que um letrado trabalhe.” Para fazê-lo “ seria
preciso poder suportar as zombarias” . Nada mais difícil do
que isto.
Um outro tormento importante está ligado ao seu status
na aldeia: as pessoas da família - da geração dos tios - cujos
filhos não tiveram tanto êxito quanto ele, têm ciúmes dele.
88 ÉDIPO AFRICANO
Estes ciúmes são expressos em atos, em palavras? Não, nunca
são expressos diretamente, mas sente-os, e sua mãe “o põe a
par assim que chega, para que não seja pego desprevenido” .
Também para não ser pego desprevenido, não previne nin­
guém da data de sua chegada nas férias...para evitar que os
ciumentos se preparem para prejudicá-lo...avisa apenas um
irmão menor de 18 anos “que também o mantém a par de tu­
do” .
Sua situação na aldeia é muito pesada para ele. Além de
ser o ^primeiro estudante, tem, no seu encalço, todas as crian­
ças escolarizadas que querem falar francês ou estudar com ele
ê muitas crianças não escolarizadas que gostariam de ser. Mo­
ralmente, ele é a garantia, e é ele que vai de pai de família em
pai de família explicar que é importante colocar as crianças
na escola, escuta recusas e fica decepcionado com a incom­
preensão.
Em particular, assumiu a responsabilidade de colocar na
escola uma irmã de 8 anos que o pai tinha decidido manter
em casa. Faz com que estude durante todo o verão. “Ela pre­
cisa conseguir” . Tem sonhos de futuro para ela e se preocu­
pa. Sonha com sua morte.
Entre os seus colegas de colégio, Fari fica isolado e ini­
bido; não fala ou muito pouco sobre sua doença com eles,
eles não acreditariam. Não sabe “como levar a vida” , não
tem amigos, é inseguro. Quando criança, sempre lhe disseram
que desconfiasse dos amigos e então não pode confiar em
ninguém. Tem com seus colegas de colégio a mesma atitude
desconfiada que tem com seus conterrâneos.
Tenta compreender por que nunca ousa dar sua opinião
entre seus colegas. Para ele, dar uma opinião apreciada ou ter
a última palavra numa discussão é humilhar o outro, demo­
li-lo. Quando é humilhado fica com muito ódio e não ousa
provocar este ódio em outro. Tem muita raiva de não conse­
guir falar mas sente isto como impossível ou, se fala, fica tão
excitado que não consegue se expressar corretamente.
Associa a esta análise a de suas semanas de angústia an­
tes dos exames.
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 89
Tão benigno quanto possa ser o choque com um colega o
problema é insolúvel: Fari empurra Moussa e se desculpa.
Moussa acha que foi de propósito e não aceita as desculpas.
Fari as repete. O outro persiste na sua zanga, Fari não leva
em consideração e se faz de indiferente engolindo a raiva de
ser mal entendido; afasta-se e passará a evitar seu colega mas
tem tanta raiva que espera ser agredido fisicamente por ele; e
a indiferença, o fato de não conversar é vivido como extre­
mamente agressivo, nada mais é dito mas a tensão permanece.
Na última entrevista do ano escolar, Fari fala de um outro
tormento: escreveram-lhe que um rapaz desejaria casar-se
com sua irmãzinha. O rapaz convenceu os pais da menina que
consentiram, mas é de Fari a decisão final. Ele não tem certe­
za de que o rapaz será um bom marido. Se concordar, ficará
responsável pelo eventual fracasso do casamento, e se recusar
terá que enfrentar sempre o descontentamento ou o ódio do
pretendente.

CASO 108: Mamar D ., 22 anos, lébou, muçulmano tidjane

Momar foi acompanhado em psicoterapia durante um ano.


Momar foi atendido no Centro médico escolar em janeiro
de 1964 por causa de vertingens surgidas no meio do ano es­
colar de 1962-63. Inicialmente discretas, as vertigens au­
mentam culminando durante as férias de verão; persistem de­
pois do reinicio em 1963. Sempre ocorrem fora das aulas. O
sujeito não cai mas “todo meu coração fica banhado de suor,
não consigo ver bem: fico perturbado... quando estou real­
mente perturbado, dõem-me os olhos, abaixo a cabeça, não
consigo enxergar corretamente. Sinto um calor que exala de
meu corpo, principalmente do meu rosto, como se o aproxi­
masse do fogo, dói muito e parece inchado como um balão
que estoura” .
Momar mora numa grande aldeia perto de Dakar. Fre-
qüentou a escola religiosa dos 5. aos 9 anos. Está estudando
para um diploma técnico. Inteligente, bom aluno, fracassou,
i

90 ÉDIPO AFRICANO
no entanto, no ano passado no exame por causa de um erro
grosseiro na sua melhor matéria. Já que sua família não pos­
sui os meios, não continuará até o “baccalauréat” como de­
sejaria. É o único da família que cursou estudos secundários.
Seu pai é um agricultor aposentado, muçulmano fervoro­
so, seu füho diz que ele é marabuto: ensina o Alcorão para as
crianças e cuida de alguns doentes. Tem três mulheres. A mãe
de Momar é a terceira, tendo se casado uma primeira vez com
um irmão menor de seu atual marido e tendo sido herdada
quando de sua morte.
Dezessete pessoas vivem numa grande posse. Parece rei­
nar a concórdia; as saúdes são boas. Momar está “de acordo
com todo mundo” . É estimado pela sua seriedade. Sempre
K saudável, é esportista (peso e salto). Dispõe de um quarto “de
estudante” na casa de sua mãe, onde recebe seus inúmeros
amigos. Durante a invemada, vai cultivar amendoim e man­
dioca, e diz fazê-lo com prazer, atividade e gosto, raríssimos
para um estudante.
Trata-se, portanto, de dificuldades surgidas recentemente
num sujeito até então particularmente bem adaptado e satis­
feito com seu destino.
Momar é encaminhado pelo atendimento escolar ao setor
de neurologia. A sintomatologia vertiginosa cede rapidamente
com um tratamento, mas outros sintomas, bastante discretos
até então, acentuam-se: cefaléias e impressão de não conse­
guir mais entender o que lê ou o que o professor explica.
Sente-se muito incomodado no seu estudo: “ Em alguns mo­
mentos perturbo-me muito, não entendo fiada, e então quero
ficar sozinho.”
E então que uma psicoterapia é proposta a Momar sob
forma de entrevistas semanais. Percebe rapidamente que seus
males não se devem ao ofuscamento pelo sol ou à fadiga, mas
à própria apreensão em que se encontra e a contradições nos
seus pensamentos ou sentimentos, e esforça-se por esclare­
cê-los.
Nunca se perturba quando está sozinho, mas se alguém o
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 91

olha muito intensamente, pensa que oiham para ele a fim de


que seus males apareçam e “ aí começa” . Isto não acontece se
a pessoa está na sua frente mas apenas quando está de lado;
prefere que se fique na sua fiente do que atrás ou do lado.
Explica que “ quando penso nisto (nas suas perturbações), te­
nho medo como se estivesse indo para um combate ou uma
guerra... como se as pessoas atraíssem minhas dificuldades,
como se quisessem me prejudicar” . E, de maneira comple­
mentar, sente-se sempre acusado pelos outros, por exemplo,
de ter roubado um objeto que um colega perdeu. Quando algo
não vai bem com um amigo, tem sempre a impressão que é
sua culpa e tenta fazer de tudo para que o outro fique con­
tente: afastar-se, não olhá-lo, já que ele fica perturbado com
os olhares. É consciente de sua proteção habitual que consiste
em falar muito de técnica e estudar.
Relata dois incidentes similares como origem de seus
males:
O primeiro é um erro que cometeu por ocasião da monta­
gem de uma instalação elétrica que provocou um curto-cir­
cuito. “Os colegas de classe me gozavam, gozavam muito,
não podia dizer nada por causa do professor. Pensei a noite
toda nisto, sentia-me tão perturbado. Fiquei sério, calmo, não
falava com ninguém. Pensava em me vingar: os maiores que
gozavam, sabotavam, gostaria que fizessem um erro grave pa­
ra que os outros zombassem deles. Em casa nem falava alto,
mas lentamente. No dia seguinte estava calmo, sabia que se
começasse a gozar não ia dar certo. Tentei falar como eles,
fazer desaparecer meus sentimentos de zanga. Quando fala­
vam de curto-circuito começava a rir para não me zangar
mais.”
Uma outra vez em que bebia chá com seus amigos, um
deles mostra um exercício de atletismo que Momar tenta exe­
cutar: cai. “Os outros me rodearam. Coloquei-me num canto,
tremia, sentia um calor na cabeça, o suor escorria de meu
rosto, os olhos me doíam. Fiquei por um bom tempo sério até
que isto desaparecesse.”
92 ÉDIPO AFRICANO
Desde então, as zombarias fazem com que se sinta mal.
“Quando gozam, faço de conta que não me zango, mas no
fundo do coração sinto isto. Digo para mim mesmo: por que
estes caras gozam de mim o tempo todo? Temo mais aqueles
que continuam a gozar quando me vêem perturbado.
Tenho vontade de levantar bruscamente, de bater neles,
de fazer-lhes algum mal, de fazê-los sair do meu quarto. Nada
mais me parece interessante na vida... penso em não acompa­
nhá-los mais.” Mas é ele que sai do quarto por um tempo até
se acalmar, esforçando-se por pensar: “não é nada, são ami­
gos” . E quando a perturbação desaparece odeia-se dizendo:
“ Que tipo de pessoa sou eu!” E explica que a partir dos 12
anos, não há mais brigas físicas entre colegas, “ apenas zom­
barias” . .
Diz ainda: “Quando estou completamente perturbado,
não penso em mais nada, tampouco nada mais me agrada no
mundo e além do mais detesto meu melhor amigo se este esti­
ver perto de mim; qualquer um que eu olhe neste momento é
para saber se ele ri ou se presta atenção em mim.”
E uma outra vez: “ Os olhares dos desconhecidos são pio­
res ainda, é que viram algo de espantoso em mim ou penso
que querem me causar algum mal ou aumentar meus males
[...] Mesmo quando estou sozinho no campo, penso que há
alguém ao meu lado que me olha.”
Um dia, um rapaz mais velho do que ele com quem tinha
uma excelente relação de amizade - e a prova disto é que pi-
lheriavam juntos, “ aprontavam” juntos como companheiros
da mesma idade - responde ao seu bom-dia com insultos. O
amigo estava de mau humor por causa de preocupações pro­
fissionais. Momar, embora sabendo disto, fica transtornado
com o incidente; não responde, fica silencioso mas seu cora­
ção doeu, “doeu demais” ; gostaria de ter se zangado mas não
disse nada. E, desde então, “o coração sofre” cada vez que
pensa nesta cena ou cada vez que uma situação do mesmo ti­
po aparece na sua cabeça. Dez dias depois nos diz: “Neste
momento meu coração ainda dói, me faz tremer desde aquela
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 93

história com os rapazes. E cada vez que discuto com alguém,


meu coração dói. Não consigo suportar o descontentamento
de um rapaz que está zangado, um rapaz que você conhece há
muito tempo; fico retraído mesmo se estou de acordo com os
outros” . Uma única pessoa que não esteja de acordo com ele
numa multidão que estivesse de acordo é suficiente para o
perturbar, explica ele.
Após algumas entrevistas, Momar percebe que suas
“perturbações” são a expressão de reações de confronto ini­
bidas logo que afloram.
Concorda ter muitas coisas no coração que não pode di­
zer e descreve, nesta ocasião, o comportamento dos grupos de
amigos. São três grupos de uns quinze rapazes cada um. Em
grupo, vão uns na casa dos outros, freqüentemente na de
Momar. Instalam-se e ele oferece chá se seu pai tiver lhe da­
do dinheiro. Instalam-se e “ sabotam” : não fazem cerimônia,
mexem nas coisas, apagam o quadro onde estava estudando,
pegam seus cadernos, fazem barulho a tarde toda, a noite to­
da, enquanto que ele fica estudando para o exame. Basta que
eles façam uma pequena observação e ele cede seu lugar e vai
se refugiar, para estudar, no quarto de sua mãe ou, mais longe
ainda, no de seu tio. Explica que poucos dentre eles são inte­
ligentes e capazes de compreender que incomodam, “os ou­
tros, não adianta fazer nada, os amigos são assim” . No en­
tanto, um colega na mesma situação, fecha seu quarto à chave
para ficar tranqüilo. Momar não consegue pensar em tomar a
mesma atitude pois teria que enfrentar em seguida as intermi­
náveis recriminações dos amigos e, como que para descul­
pá-los, diz que às vezes, ele também gosta de zombar e de
“ sabotar” na casa dos outros.
Na primeira entrevista, Momar havia desenhado a praça
da aldeia e a árvore de conversas onde o grupo vê chegar os
que chegam do trabalho: a própria imagem de suas relações
com seus colegas, a ffatria onipotente impondo a cada um o
seu lugar. Alguns meses depois, começa uma evolução no
sentido do esquema edípico clássico (confronto com uma
94 ÉDIPO AFRICANO

imagem viril com rivalidade sexual): Momar descreve suas


perturbações habituais mas, agora, ocorrendo sob o olhar de
um amigo recentemente casado a quem fora visitar. A jovem
esposa é uma moça da vizinhança com quem Momar falava
frequentemente. “Quando entrei no quarto, diz ele, senti-me
preso num tomo, meus pensamentos estavam bloqueados, não
conseguia mais agir.” Teve medo de que o marido o acusasse
de falar com a mulher dele e ficasse com ciúmes. Mas, uma vez
pronunciada, esta fantasia dá lugar à do olhar persecutório
dos amigos. A psicoterapia prossegue.

CASO 202: Daniel H ., 12 anos e meio, wolofldaomeano,


católico 12

Daniel, que recebeu aos 11 anos e meio o certificado de


estudos num povoado da região de Dakar, é encaminhado ao
atendimento psicológico pelo diretor do colégio porque, des­
de que está no 69 ano, não faz nada.
O pai de Daniel é contador numa empresa privada. Ca­
sou-se duas vezes, teve dez filhos dos quais quatro morreram.
A mãe de Daniel tinha tido quatro filhos de um primeiro ca­
samento. Daniel é o mais velho do segundo matrimônio.
Os pais de Daniel descrevem-no como um garoto traqui-
nas, turbulento, “que não fica quieto” , mas também como um
menino ativo, excelente pescador, muito afetuoso e solidário
com a sua grande família. Parece que Daniel cresceu num
clima de liberdade e afeto. Notemos que seus dois meio-ir-
mãos uterinos - 18 e 20 anos - estão no 2S do colégio.
M.H., o pai, teve uma infância muito difícil. Seu pai era
agricultor, analfabeto, e o entregou a um tio professor. Este o
usava como empregado de tal forma que apenas ia à escola
uma ou duas vezes por semana tendo que copiar suas lições
das dos colegas. Eis com que termos M.H. fala de sua infân-12

12. Observação M.-T. Montagnier e M.-C. Ortigues.


DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 95
cia: “Num dia eu ia fazer as contas no moinho de milho, no
outro vender peixe defumado, no outro vender catálogos. Um
dia fui contar ao meu pai o que acontecia, ele veio ver o tio
que me bateu e me chamou de mentiroso.”
M.H. se compara ao seu filho: “Eu assimilava com difi­
culdade enquanto que Daniel é o contrário; além disto Daniel
tem tudo que precisa, eletricidade, um quadro-negro, giz
branco e giz colorido!” M.H. gostaria de bater em Daniel
como bateram nele “mas infelizmente isto não se faz mais,
não se admite mais” . Sente-se superado por este filho “ inteli­
gente que só pensa em brincar” e se pergunta se ele não é
anormal. Aparentemente, não sabe como se portar com ele e
seus métodos educativos vão das promessas de dinheiro para
conseguir que se comporte à ameaça da cela forte no hospital
de loucos. Seu comportamento para com Daniel tem uma to­
nalidade pueril e não tem eficácia real. Assim, não tentará
ajudar seu filho quando se trata de uma recuperação escolar
que Daniel desejava e que seria fácil de conseguir. Quando
Daniel expressou sua preocupação por não estudar bem, a
responsabilidade que atribuía a si mesmo pelo seu fracasso e
o desejo de aproveitar as poucas entrevistas que lhe propú­
nhamos, M.H. fez com que a criança faltasse a um encontro e
depois que deixasse de vir; ao mesmo tempo repetia-lhe que
perdia o interesse nele. Isto não impede que este pai esteja
muito inquieto e solícito com respeito a este filho que escapa
de suas mãos.
A mãe de Daniel pensa que seu marido não compreende
as crianças, que grita demais, que as machuca, quando não é
necessário machucar Daniel para conseguir algo dele. Des­
culpa, no entanto, o marido porque foi muito infeliz quando
criança. Esperaria dele menos mimos e mais firmeza. “Quan­
do Daniel era pequeno, diz ela, era o primeiro menino, então
o pai o pegava, brincava com ele quando voltava do trabalho.
Eu o deixava em paz enquanto que meu marido o pega de­
mais, isto os deixa nervosos... Choro ao pensar que Daniel
deveria ficar longe de nós, ele foi mimado demais.” Ela
% ÉDIPO AFRICANO
acrescenta: “ A meu ver, penso que Daniel não tem nada (co­
mo doença), é da idade.”
Daniel, na primeira entrevista, diz que vem porque seu
pai acha que está louco. Nas entrevistas seguintes fala lon­
gamente sobre a escola, sobre suas notas ruins que o deixam
infeliz e suscitam zombarias de seus colegas, de seus irmãos
mais velhos que toma como modelos de bons alunos. Acha
que seus dois irmãos maiores terão êxito com facilidade nas
suas vidas e que ele também conseguirá; mas seu pai pensa
que ele não conseguirá ter sucesso na vida facilmente e sua
mãe pensa como o pai.
Também explica o quanto se interessa por aqueles que
vendem coisas nas ruas, sorvetes ou pão: ganham muito di­
nheiro e podem alimentar sua família. Em outras palavras,
Daniel traz consigo, como um ideal ao qual tem que renun­
ciar, a imagem do que foi seu pai quando criança, privado da
escola e vendedor a contragosto, mas dando um valor positi­
vo ao primeiro termo e negativo ao segundo. Ficamos saben­
do também que o pai não gosta de saber que circula em Da-
kar, na realidade, para vir ao hospital a fim de estudar me­
lhor, “ele tem medo de que sofra acidentes” , diz Daniel.
Passaram-se seis semanas e Daniel está em franco pro­
gresso de rendimento escolar pois agora situa-se entre a mé­
dia da classe e não mais entre os últimos. É então que seu pai
não o deixa mais vir à sexta entrevista, sem dar explicações.
Virá quinze dias depois pela sexta e última vez.
Neste dia tenta falar do encontro ao qual faltou mas não
consegue, tomando fôlego três vezes e interrompendo, de­
pois:
“Penso nos meus irmãos e irmãs que deixei em G., meu
irmão caiu de uma árvore, quebrou os dois braços. Tinha su­
bido numa árvore para pegar uma bola e um colega pregou
um susto e ele caiu. Caiu sobre os braços e os dentes morde­
ram sua boca que rasgou. Nesta noite não havia médico e o en­
fermeiro tinha ido para Dakar e então foi meu amiguinho que
cuidou dele; então não podia comer e minha mãe preparou leite
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 97
para ele. Quando meu pai chegou em casa, escondia-se para
que meu pai não o veja, então eu o denunciei. Quando o leva­
ram ao dispensário, chorou, então meu pai disse que não vai
cuidar dele porque fez de propósito. Quando ele caiu, meu pai
viu que não ia na escola pois não sabia escrever.
- Você está preocupado por ter deixado seus irmãos e ir­
mãs em G.?
- Tenho medo que sofram acidentes no mar ou jogando
futebol. Eu mesmo já quebrei o pé, o pé direito subindo no mu­
ro. Pensei que não era bom subir nas árvores de noite pois foi
lá pelas oito da noite que ele subiu na árvore. Penso também
que não é bom porque de noite eu mesmo não saio, não vou ao
cinema; quando acabei de comer tiro a mesa, estudo a lição e
quando são nove horas e meia vou deitar. Meu irmão tinha me­
do que o guarda (da árvore) batesse nele, por isto falei para
descer rápido e ele caiu. Não, não é minha culpa, foram os ga-
rotinhos que me chamaram para levantá-lo... Meu irmãozinho
zombou de mim dizendo que eu não ia mais na escola.
- Você teve sonhos?
- Pensei que ele ia morrer durante a noite e tive medo.”
A entrevista termina com o relato de seus progressos es­
colares.
O que temos em suma é: um filho que, para se construir,
deve evidentemente ultrapassar o pai; um pai que espera isto
mas não consegue suportá-lo pois sente seu filho ameaçado por
este êxito (é a fantasia dos acidentes na rua) e, conseqüente-
mente, o filho não podería mais “ vencer na vida” .
Esta é uma situação “européia” comum, que é coerente
com o grau de aculturação da família: monogâmica, católica,
escolarizada, pai transplantado. Mas a fantasia de castração
chama a nossa atenção.
Reencontramos a árvore com todas as valências que sabe­
mos estarem ligadas a ela. Ir retomar seu bem - a bola - na
árvore é proibido assim como é proibido sair de noite na hora
em que os espíritos espreitam os caminhos. Aquele que sobe na
árvore cai e portanto se machuca, não pode mais ir à escola;
98 ÉDIPO AFRICANO
em outras palavras, não pode mais vencer na vida.
Por um lado, Daniel situa-se como herói desta história:
quebrou o pé ao subir num muro, por outro lado, situa-se como
agressor de seus irmãos, da fratria toda. A rivalidade está,
neste material, totalmente deslocada para a fratria.

* *
Através dos casos de Fari, Momar e Daniel assim como
através do conjunto do material de que dispomos, parece-nos
que a rivalidade edípica se dá por vias sensivelmente diferentes
das que são habituais na Europa.
A rivalidade parece, inicialmente, estar sistematicamente
deslocada para os “irmãos” que polarizam as pulsões agres­
sivas.
Nas fantasias, a rivalidade edípica pode ser formulada na
relação com o pai - com uma imagem de pai mais òu menos
reabsorvida na da autoridade coletiva - mas tudo ocorre como
se o confronto direto com a imagem do pai fosse impossível ou
sem saída e tivesse que ser deslocado para outras imagens para
que tenha uma saída viável, ou seja, uma saída que permita ao
sujeito assumir um lugar de homem na sociedade. O desloca­
mento se dá primeiro do pai para os “tios” , o que aparecería
como: os pais das crianças que tiveram menos êxito do que eu
me querem mal. Depois dos “tios” para os “irmãos” : meus ir­
mãos me querem mal, me marabutam, tentam me eliminar.
Tanto em Fari, Momar, quanto em Daniel, o deslocamento da
rivalidade para os “irmãos” é tão evidente que nem são preci­
sos comentários para percebê-lo. Consideramos tratar-se aqui
de um esquema geral, complementar ao do Ancestral inigualá­
vel: na medida em que a imagem paterna é inacessível à rivali­
dade, os “irmãos” constituir-se-ão como rivais.
A agressividade expressa-se principalmente sob a form a
de reações persecutórias. A culpa é pouco interiorizada ou
constituída enquanto tal.
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 99
O anseio de superar um “irmão” , um colega, raramentelse
expressa diretamente. Tais anseios são projetadoá e invertidos
em reações persecutórias cujas formas tradicionais descrevere­
mos no capítulo V. A dificuldade ou a impossibilidade de as­
sumir como pessoais as pulsões agressivas aparece como uma
característica geral. O mecanismo da projeção é privilegiado
pela cultura como meio de formular o problema do mal. O
conjunto das relações interpessoais está fortemente marcado
pelo fato de cada um se perceber facilmente como perseguido.
Poder-se-ia dizer que uma parte da energia que, num outro
contexto, seria utilizada para se afirmar através da ação, é con­
sumida aqui para se defender. Em qualquer circunstância, con­
vém se proteger das intenções ameaçadoras. As somas conside­
ráveis gastas com os marabutos ou na compra de vários amu­
letos pelos mais pobres, a constante preocupação dos pais -
principalmente das mulheres - que, durante toda a vida, tentam
achar quem agiu, quem prejudicou, quando e como, compro­
vam isto. Para ter êxito na escola, um bom amuleto é mais im­
portante do que uma inteligência viva. Mais da metade das
famílias que vieram consultar por fracasso escolar incriminam
marabutagens13; e aqueles que consultam por causa de uma
“doença” (enurese, ansiedade, fugas...) ffeqüentemente vin­
culam o desencadeamento das perturbações a uma marabuta-
gem suscitada pelos ciúmes dos colegas de escola. “Esta doen­
ça é para estragar meus estudos...” , “Ele não quer que seus
filhos sejam menos do que eu, então fez um trabalho...” Não
são necessários êxitos marcantes ou uma rivalidade específica
entre dois alunos para que esta interpretação se manifeste, ela
está sempre presente ou latente; poder-se-ia dizer que faz parte
da situação escolar e faz uso de qualquer elemento, por menor
que seja, para se atualizar ou se desenvolver: um olhar mais
intenso, uma palavra menos cordial do que de costume, um do­

13. De uma pesquisa feita por D. Storper e G. Ogoundaré, em março de


1965, junto a mães de crianças escolarizadas, em diversos bairros de Dakar, re­
vela-se que 90% delas recorre ao marabuto para tentar garantir o êxito escolar de
seus filhos.
I

100 ÉDIPO AFRICANO

ce oferecido e aceito, uma visita de um membro da família do


outro ao marabuto etc. Um estudante hospitalizado por causa
de crises histéricas (paralisias funcionais e mutismo) - caso
190 - chega finalmente à idéia de que seu colégio é particu-
larmente perigoso porque há muitos estrangeiros - africanos -
que sabem fazer marabutagens poderosas e decide, sair desta
escola e ir para uma outra de nível mais baixo, “assim, diz ele,
eles me deixarão em paz e poderei continuar meus estudos” , o
que implica em aceitar ser inferior ao invés de não ser nada.
Notemos que este rapaz mantinha excelentes relações com o
conjunto de seus colegas. No relato do começo da doença é
freqüente que os jovens assim como as famílias reconstruam as
coisas segundo o seguinte esquema cronológico: êxito obtido
ou saboreado antecipadamente e logo depois começo da doen­
ça. Os exames que quantificam o sucesso individual constituem
momentos particularmente ansiógenos. De maneira estereotipa­
da o sujeito doente ou o estudante em dificuldades descreve
assim seu futuro: “ Meus colegas vão conseguir seu certificado,
terão roupas bonitas, estarão nos escritórios e quando me en­
contrarem na rua não serei nada, serei como um vagabundo;
eles dirão: este aí, alguma coisa aconteceu com ele!” , no que
se subentende a felicidade que sentirão seus colegas ao vê-lo
humilhado, imagem intolerável para ele. “Eles querem que eu
morra e só então ficarão contentes; não posso mais continuar
meus estudos porque meus colegas estão na minha frente.”
A culpa é pouco interiorizada ou constituída enquanto tal.
Tudo se dá como se o indivíduo não pudesse suportar a per­
cepção de si mesmo como dividido intemamente, mobilizado
por desejos contraditórios. O “mal” está sempre situado fora
de mim, pertence ao campo da fatalidade, do destino, da von­
tade de Deus. Quando se comenta com uma criança francesa as
dificuldades escolares em razão das quais procura o atendi­
mento, depois de algumas entrevistas uma formulação do tipo:
“ Parece que tem um lado seu que quer estudar e outro que não
quer...” , em geral conduz à tomada de consciência de uma
contradição interna reconhecida enquanto tal, a partir do que
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 101

começa a elucidação. Aqui, a tendência é projetar em espíritos


ou humanos as pulsões culpadas. Nossa formulação provocaria
a resposta: “Não, é ele, são eles... que não querem que eu es­
tude.” Nos casos em que diversas terapias tenham fracassado,
atribuir-se-á a Deus a contradição, dizendo: “ Muitos marabu-
tos trataram de nosso filho, se você o tratar e ele não sarar,
bem..., é Deus que o fez assim” e, conseqüentemente, a crian­
ça não é considerada culpada ou malvada; mesmo que impeçam
o dano, não lhe quererão mal. O “é culpa dele” tão constante
em consultas na França, não é escutado. E quando se diz: “Ele
é mau” , o sentido desliza para: está habitado ou atacado por
algo de ruim, não é ele.
Por outro lado, quando as pulsões agressivas não são
projetadas, pode-se constatar que são conscientes mas repri­
midas, controladas, não expressas. As fantasias ou emoções
agressivas estão presentes como um longo sofrimento, surdo e
discreto, opressivo, inconfessável, que convém calar “para
não desanimar meus pais” ...“porque contam comigo” e tam­
bém para não se mostrar vulnerável.14 Freqüentemente apare­
cem somatizações como meio de inibir naquele momento a
expressão das fantasias ou impulsos agressivos. O comporta­
mento destes sujeitos é de desconfiança dissimulada sob uma
imperturbável gentileza com vistas a não dar lugar aos ata­
ques. Parece que a solidão é dificilmente suportável, rara­
mente vivenciada como tempo de paz, de relaxamento, por­
que favorece a emergência das fantasias agressivas provocan­
do, portanto, uma reação depressiva imediata. A menos que
procurem a solidão para se proteger dos contatos que se tor­
naram muito ansiógenos, todos os jovens descrevem como
são irresistivelmente levados a ficar com amigos, como para

14. A expressão “ ter vergonha” que equivale a “ saber se colocar no seu lu­
gar” , comporta também a idéia de não trazer à tona uma tensão, de não pôr o ou­
tro numa situação embaraçosa de confronto. Assim, Afssatou (p. 55), por respei­
to, evita colocar seu tutor na situação dé ter que lhe recusar algo; não pedindo, ela
evita o desagrado, o mal-estar que o tutor sentiría ao lhe recusar uma permissão.
Submete-se assim a uma das regras fundamentais da arte de viver. Como ela, 08
doentes no hospital têm vergonha de pedir ao médico uma saída ou permissão.
102 ÉDIPO AFRICANO
eles, estar “bem” (feliz, dinâmico) é fazer parte de um grupo,
de uma multidão. Muitas vezes pouco importa se se trata de
uma reunião esportiva, dançante, de conversas intermináveis
(“passar a noite em claro” )... A presença dos outros 6 tran-
qüilizadora, necessária, ela repele ou permite deixar de lado
as fantasias agressivas latentes.
Ligada às modalidades e condições da aculturação, pode-
se encontrar numa mesma família senegalesa urbanizada, uma
defasagem considerável entre a capacidade de interiorização
de uma criança e dos seus pais. Dentro da perspectiva de uma
psicoterapia este dado inicial se reveste de uma importância
primordial. Daremos o exemplo de Samba, garoto de catorze
anos, hospitalizado há um ano por causa de severas perturba­
ções. Os pais tinham esgotado seus recursos com muitos ma-
rabutos; tinham inclusive dado uma parte de suas roupas. O
estado da criança era alarmante, estavam muito motivados a
confiá-lo a nós. Este tratamento, atualmente em curso, é, en­
tre os que realizamos, aquele que mais se aproxima de uma
psicanálise clássica. Tivemos numerosos encontros, embora
não regulares, com Samba. Pede um tratamento, tanto ou mais
(mais lucidamente) do que seus pais. Somente a gravidade do
caso, as decepções sofridas depois dos tratamentos tradicio­
nais, podem explicar a continuidade da psicoterapia. Com
efeito, podemos prever, na medida em que se cure, que Sam­
ba, depois do tratamento, terá resolvido suas tensões intema-
lizando-as e, com isto, tomar-se-á radicalmente diferente de
sua família.
CASO 80: Samba C., 14 anos, woloflmouro, muçulmano |
As perturbações de Samba começaram no dia em que,
passando sob um grande baobá ao voltar da escola, escutou
uma voz que o chamou três vezes pelo seu nome de família.
Felizmente, não respondeu pois “quando se responde é ruim,
fica-se louco, ou sujo e só no mato” (como um homem que
Samba viu outrora); tampouco olhou para trás. Teve muito
medo e voltou para casa correndo, deitou-se tremendo e vo­
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 103
mitou a noite toda. Desde este dia e durante meses, Samba
mantém seus olhos fechados como se temesse uma visão ater-
rorizante: “como crianças, algo grande, um diabo” . Sofre de
cefaléias intensas, recusa alimentos e de forma nenhuma leva
ele mesmo aos lábios o pouco de comida ou de bebida que
absorve. Fica inerte, prostrado, com as costas encurvadas,
gemendo. Seus gemidos podem, durante horas, se amplifica­
rem em longas queixas monótonas. As poucas palavras que se
consegue arrancar dele são murmuradas, quase inaudíveis e
acompanhadas de um movimento de negação da cabeça.
Como este quadro persiste durante vários meses, segundo
os pais, Samba é levado ao atendimento de neurologia e hos­
pitalizado. Todos os exames feitos são negativos. Com seu
estado inalterado três semanas depois, Samba sai em função
de sua insistente demanda, depois de cotidianas tentativas de
fuga. Pouco depois é hospitalizado na psiquiatria. No período
de um ano será hospitalizado três vezes e acompanhado no
entretempo extemamente. Em cada hospitalização é feita uma
série, de eletro-choques, paralelamente à psicoterapia. Tam­
bém segue um tratamento com neurolépticos.
No caso de Samba, é legítimo falar de psicoterapia psica-
nalftica no sentido mais clássico do termo. A demanda da
criança é clara: vem “falar para ser curado” . Uma relação
transferenciai rica estabelece-se rapidamente. Nesta data o
tratamento já dura um ano e comportou 51 sessões. Samba
é inteligente e tenta verbalizar tudo o que vive.
Depois de um primeiro período de dois meses (9 sessões)
durante o qual Samba não pôde ultrapassar a evocação das
visões ou alucinações que espreitam suas noites (crianças ou
uma cobra ou um homem negro muito, muito grande, vêm
meter medo nele, como um diabo), diz sobre o homem negro:
“ Metia medo. Mostrou-me a felicidade” . Durante os dias que
se seguem, Samba fica imerso em alucinações visuais e audi­
tivas que o põem em pânico: serpentes estão dentro do seu
corpo, sobre seu corpo, vão mordê-lo, bebem seu sangue, vai
morrer em seguida.
104 ÉDIPO AFRICANO
No entanto, a partir desta equação medo-felicidade, para
ele misteriosa, Samba produzirá progressivamente um mate­
rial associativo muito rico e coerente. Compreende-se que a
voz do baobá, a voz do diabo é a de um colega, mais velho,
Malik, que encarna aos olhos de Samba ao mesmo tempo to­
das as virtudes viris de audácia, de foiça física, de coragem, e
todas as tentações, as que podem levar à loucura, ou seja, a
uma des-socialização. Malik, com efeito, incitava os mais jo­
vens, entre eles Samba há alguns anos, a desobedecerem, a
enganarem os pais, a serem insolentes, a passearem na noite
povoada de diabos (as crianças são proibidas de sair à noite),
a ir para o mato em lugares considerados perigosos por serem
residência de espíritos muito malfeitores, a serem grosseiros
com as moças etc. Acrescentemos que a leadership (lideran­
ça) inconteste deste rapaz era exercida numa tonalidade sádi­
ca acentuada. Acrescentemos também, e é este para Samba o
principal elemento fascinante, que ninguém - nem pai, nem
mãe, nem professor, nem amigos, nem parentes - conseguiu
dominar ou fazer ceder Malik.
O problema de Samba é claramente exposto e ligado a
uma grande quantidade de experiências antigas e recentes,
muitas vezes revividas intensamente durante o relato que faz
delas. Está aterrorizado com seu desejo de se parecer com
Malik, de ser um Malik. A tentação é projetada: é o “diabo” .
Militar pacífico e limitado, o pai de Samba também fica de­
sarmado frente ao diabo; inquieta-se pelo seu filho, leva-o
aos marabutos, reza e constata aterrado: “O diabo veio no­
vamente ontem à noite.” É claro que muitos marabutos con­
firmaram tratar-se de um saytané querendo prejudicar a crian­
ça. Para o pai e a mãe de Samba, para todo o grupo, a exis­
tência dos djiné e saytané é uma evidência cotidiana desde
a infância; cada um tem uma ou várias experiências a este
respeito.
Eis a questão que queremos levantar aqui a propósito do
caso de Samba, questão que surge do próprio andamento da
psicoterapia: será possível que no contexto familiar e social
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 105
que lhe é próprio, Samba consiga internalizar o conflito que
expressa claramente e cujas implicações explicita? Será pen-
sável que chegue a internalizar sua culpa?
Em várias ocasiões, Samba chegou ao limiar de uma in-
temalização. Percebeu que o diabo “era como Malik” , que
lhe dizia as mesmas coisas com a mesma voz, que queria lhe
fazer mal como Malik. Percebeu que admirava Malik e que
este era um vadio ignorante; que se sentira ao mesmo tempo
orgulhoso e temeroso de segui-lo no mato e na montanha da
Mauritânia, que teria esperado que seu pai percebesse mais
vezes suas escapadas e as impedisse etc. Nas suas fantasias, o
personagem do diabo, inicialmente monolítico, aterrorizante e
fascinante, desdobrou-se progressivamente e depois se cindiu
num grupo de 3 ou 4 pessoas, o que permitia a Samba um jo­
go cada vez mais flexível onde se projetava ém diversas posi­
ções com respeito ao seu desejo e à sua ansiedade. Ao mesmo
tempo, tornava-se cada vez mais evidente para ele que “a
idéia do diabo é como a idéia de Malik” . Esta evolução fez-
se por si só, com um mínimo de intervenções relacionadas
com aproximações formais.
Não descreveremos a procura concomitante de uma ima­
gem viril de identificação aceitável (oscilando entre uma ima­
gem individualizada e uma imagem de grupo), nem as res­
pectivas posições das duas imagens do casal parental... Não
queremos argumentar sobre este caso, mas apenas sublinhar a
questão que coloca: pensamos poder afirmar que a análise já
podería ter terminado, se só levássemos em consideração os
dados internos ao tratamento. Mas, cada vez que a passagem
está a ponto de ser feita, que Samba está prestes a falar do
diabo em primeira pessoa, pára e o mecanismo da projeção
retoma com força.
Poder-se-ia objetar que as perturbações de Samba decor­
rem da psicose. Samba atravessou estados psicóticos agudos;
eletro-choques e neurolépticos sem dúvida o socorreram.
Mas, nem por isto, podemos afirmar que seu estado é, por de­
finição, irreversível. Talvez, na verdade, o prognóstico psi­
106 ÉDIPO AFRICANO
quiátrico é ruim mas isto não nos pode impedir de perguntar
se a cultura de Samba não lhe impõe ou não lhe propõe de
maneira privilegiada a solução da psicose alucinatória de te­
ma persecutório.
Efetivamente é muito difícil imaginar Samba curado gra­
ças a um tratamento psicanalítico, depois de ter internalizado
suas tensões, tê-las resolvido “pessoalmente” . Isto suporia
que, enquanto único da família, de seu meio, abdicasse das
crenças comuns, que se singularizasse de tal maneira que se
tornaria um estrangeiro entre os seus, que tivesse tido acesso
a um nível de consciência pessoal que o situaria “adiante de
seus pais” (verifica-se que não se pode esperar nenhuma
evolução do grupo familiar). E isto possível? E isto conve­
niente?
Podemos apenas responder isto: tudo aconteceu como se
Samba, sentindo-se acuado, tivesse posto no diálogo nascente
das primeiras entrevistas toda sua esperança, toda sua deman­
da; como se assumisse o risco da saída desconhecida. À
mesma insistência aparecia por parte dos pais depois do fra­
casso dos tratamentos tradicionais: ansiosos, impotentes e
transtornados em certos momentos pelos comportamentos
auto-agressivos de Samba, também eles não queriam outra
coisa do que confiá-lo aos “ doutores” e aceitavam todos os
riscos. Acrescentemos que durante o processo analítico, Sam­
ba nos informava dos tratamentos tradicionais ou consultas
que continuavam acontecendo. Frente ao projeto de uma via­
gem para consultar um marabuto “mais forte” do que os pre­
cedentes, nossa atitude foi de concordar. Esta conduta assim
como as precedentes não interrompeu a psicoterapia: ela con­
tinua e o estado de Samba melhorou consideravelmente. No
entanto, a melhora nos parece frágil, o “ diabo” permanece
discretamente presente...
Passados dez meses, o estado de Samba continuou melho­
rando. Mas ele se recusa a sair a não ser por breves períodos;
passa apenas algumas horas por semana em casa quando po-
deria dispor do fim-de-semana. Não suporta constatar, quan­
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 107
do está junto dos seus pais, que está descontente a zangado
sem saber por que: “É como se algo me pegou que faz eu não
gostar dos meus pais... é algo que pega meu coração e o faz
ficar zangado” , explica ele. Lamenta fireqüentemente seu
atraso escolar, comparando-se a seus antigos colegas “ que ti­
raram seu certificado” , mas para ele é impossível estudar em­
bora se esforce. “É como se algo me dissesse para abandonar
os estudos” (a fórmula “algo me dissesse” conota um senti­
mento e não uma alucinação auditiva); da mesma forma,
quando acontece de passar perto de sua escola: “ É como se
algo me puxasse para não ir lá.”
O material da psicoterapia mostra que tendo chegado ao
limiar de um confronto assumido pessoalmente, Samba, assim
como Amadi, situa a imagem paterna e a castração na relação
com os ancestrais: o baobá da visão inicial, num sonho (apa­
rece em muitos sonhos), exige que se enterre “ o morto” ao
seu pé e não no cemitério; o personagem aterrorizante das
alucinações transformou-se num homem com um olhar bom
que pronuncia apenas estas palavras: “ É o pai dos pais” .

A procura de um reconhecimento do próprio estatuto


pelos ''irmãos’’ é um modo predominante da afirmação viril.
O anseio da afirmação viril expresso, expressável, não
tem nem a mesma forma nem o mesmo conteúdo do que co­
nhecemos na Europa. Na Europa, o anseio do jovem Edipo é
de rivalizar nas tarefas, ações, realizações. A rivalidade pro­
cura uma sanção objetiva, considera-se mediada. Aqui a ênfa­
se recai principalmente sobre a afirmação de um estatuto, de
um prestígio. Trata-se mais de mostrar aos outros, aos “ir­
mãos” uma certa imagem de si mesmo, de fazer com que
acreditem nela para poder coincidir com esta auto-imagem.
Cada um se procura na imagem que os outros têm dele. Os
jovens procuram muito não apenas as opiniões, mas os con­
selhos de seus colegas e fireqüentemente aderem de imediato
ao conselho dado. Enredados entre conselhos diferentes, pro­
108 ÉDIPO AFRICANO
curarão outros, como se a homogeneidade interna devesse se
dar através dos outros.
Para os jovens de Dakar que conhecemos, os projetos de
futuro, o “quando serei grande” não se referem a desempe­
nhos ou atividades personalizadas: não importa inventar al­
guma coisa, ou ultrapassar algo a não ser que possa ser
olhado. Dir-se-á que se quer usar roupas bonitas, ter uma boa
situação, mas a atividade precisa, a profissão digamos, que
possibilita a boa situação ou a aquisição das roupas bonitas é
pouco considerada em si mesma. O anseio é menos por uma
atividade interessante ou mais eficaz do que por um lugar ao
sol, por uma razão social mais eminente. A fantasia subja­
cente é imaginar o que os outros pensam ao olhá-lo. Para se
valorizar dir-se-á tanto “Fiz isto ou aquilo” , quanto “Tal
pessoa me admira... Tal pessoa disse que sou inteligente...
Tal pessoa disse que eu era grande” (estas são falas de estu­
dantes). Quando se diz “Conquistava mais garotas do que
meus colegas” , é menos para evocar suas relações com moças
do que para referir-se à admiração ou ciúmes dos colegas.
Há, todavia, uma formulação habitual e tradicional dos
projetos de futuro que está centrada em realizações: “Quero
ajudar minha família... meus pais, minhas irmãzinhas.” Ou
seja, quero estar integrado à minha família num lugar adulto.
Vergonhosa é a situação de um jovem que não pode ajudar
suas irmãs em caso de necessidade (de divórcio, por exem­
plo), dar-lhes presentes quando as visita, ou “ sustentar” os
pais idosos. Escolherá, às vezes, afastar-se dos seus para
evitar suas recriminações ou seu silêncio de desprezo. “ Sus­
tentar a família” é o primeiro dever daquele que ganha di­
nheiro, mas não se trata da família que se adquire pelo casa­
mento e sim, primeiro, a que nos é dada por nascimento.15 A
afirmação viril não conota a valência de “autonomia” .

15. Muitos estudantes “ sustentam” suas famílias com suas bolsas de estu­
do. Não é raro que um jovem casal tentando viver à moda ocidental, tenha 5, 10,
15 pessoas a seu cargo. Renunciar a esta carga seria romper com toda a família.
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 109
Em todos nossos sujeitos a referência ao pai ou ao tio tem
o caráter de um espetáculo, de um testemunho oferecido ao
olhar dos outros. Ter um pai é ser vestido por ele. Quer o
costume que seja o pai quem compra as roupas de seus filhos
(assim, costuma-se comprar roupa nova para toda família para
a Tabaski,16 ainda que sejam contraídas dívidas por meses). A
criança se sente sob a autoridade do pai, amada pelo pai,
quando está bem vestida, quando imagina os outros vendo-a
bem vestida. Este dado está presente em todos os casos. Entre
nós, segundo a idade, um menino pensará: “ Meu pai é mais
forte do que um leão... meu pai tem o maior carro... meu pai é
rico e comanda...” Aqui a criança pensa: “Meu pai vai me
comprar uma bonita camisa, um bonito temo.”

Doudou: “Cuido-me para que não vejam que meu pai não se preocupa
comigo. Se não venho bem engravatado, me tratarão como filho de
pobre.”
Assane, wolofi 24 anos, caso 94: “O velho (o pai) se zanga com todo
mundo, mas não se interessava por mim: nunca me vestiu; eram meus
irmãos maiores que me vestiam.” '
Fadei, 14 anos, peul-fouta, caso 28: Fadei é acusado de roubo. Vive
com sua madrasta em Dakar. Seus pais se divorciaram e vivem na
Guiné. Roubou roupas para ir ao cinema. Sobre sua madrasta diz:
“Para a Korité17 ela não me compra roupas. Quando meu pai está, ele
sempre me compra roupas.”
Ele desenha dois meninos, um colorido, vestido com uma calça,
com um casaco, com sapatos; o outro com um short e pedindo esmola.
Comenta: “Ele está com seu pai, veste-se, faz tudo. Um dia seu pai
morreu, fica com sua madrasta; não tem nada, anda pela região assim,
pedindo dinheiro. Quando está com seu pai, tem sapatos, calças, tudo;
agora anda com roupas rasgadas, tudo isto, não tem casa para dor­
mir.”
Tierno: falando de um menino mal vestido: “A gente pensa, será
que ele não tem roupas? Será que não lavam as roupas deste menino?
A gente pensa que ele é um vadio, que é preciso chamar o pai dele
para repreendê-lo. Observa-se seus gestos e sua brutalidade. A gente

16. Comemoração do sacrifício de Abraão.


17. Festa que marca o fim do Ramadan.
110 ÉDIPO AFRICANO
vê suas roupas desabo toadas em todo lugar e ele perambulando pelas
ruas.”
Demba, 26 anos, wolof, caso 124: Demba foi hospitalizado três vezes
por agitação psicomotora, logorréia, fugas, idéias delirantes de gran­
deza. Em duas ocasiões abandonou o emprego:
“Comecei a trabalhar no ano passado, nem dois dias; o mal voltou
porque eu não tinha roupas. Um jovem monitor (professor suplente)
para ir para o campo precisa de um bom caftan, de uma bbnita camisa,
de uma calça: eu tinha apenas uma calça ruim, poucas roupas, estava
perturbado. Meu tio me diz: ‘Você pode ensinar assim’. E o diretor da
escola se recusou a me acompanhar (como fiador) até um comerciante
para ter uma roupa. É a falta de sustento do tio a causa do fracasso.”
Birame "o impotente", caso 9, no fim da psicoterapia: “Gostaria de
ganhar dinheiro para ter outras roupas. Gostaria de ter temos. Não
gosto do meu boubou.* O caftan me incomoda, não posso brincar
com meus irmãos mais velhos, eles têm temos. Talvez meu pai jovem
tinha temos. Comprarei um relógio, sapatos. Quando olho muitas
pessoas que me olham, tenho vergonha.”
Poderiamos multiplicar os exemplos.
O desejo de roupas melhores, mais bonitas, é o primeiro
desejo expresso pelos meninos, desejo de mostrar seu pai. E
entre aqueles que sofrem a sua indiferença ou distanciamen­
to, não é raro encontrar uma preocupação obsessiva pela apa­
rência chegando a evocar a homossexualidade na sua procura
de enfeites.
Não podemos evitar de relacionar este dado com três ou­
tros também constantes:
- A frequência com que o desencadeamento de sensações
dolorosas, percebidas ao nível da pele ou da musculatura su­
perficial, é atribuído ao olhar dos outros. Em muitos casos, a
angústia parece ser secundária à dor percebida, à fisgada,
como se a experiência corporal estivesse diretamente modela­
da pelo olhar de outrem.
É também no olhar do outro que o sujeito descobre que
se tomou objeto de zombaria, desprezível, antipático... mais
do que pelos sentimentos que experimenta.

* Túnica larga usada na África do Norte. (N. da T.)


DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 111
- A atenção dedicada ao olhar nas descrições de comporta­
mentos que nos são feitas: tem um olhar formidável; tem um
olhar de desprezo; é mascarado; tem um olhar perdido; ele
não te olha; te olha de lado; olha e ri, não é uma criança nor­
mal; mantém a cabeça baixa18*...
- A menção que nos é feita durante primeiras entrevistas so­
bre perturbações da visão. Quer se trate de perturbações his­
téricas caracterizadas, de um problema passageiro dos olhos
sobre o qual não se escutará mais falar ou de uma fantasia hic
et nunc... sempre nos dizem: “Não me dou o direito de ver” .
A vista aparece comó um lugar privilegiado da castração.

As descrições precedentes podem ser esclarecidas por um


outro dado clínico: a pouca importância dos investimentos
do estágio anal.'9
Nas fantasias que recolhemos, o nível anal está pouco re­
presentado. Quando um movimento regressivo é expresso em
fantasias passa-se, geralmente, diretamente do nível fálico ao
nível oral, que sempre aflora, em maior ou menor medida, sob
as fantasias fálicas.
Esta observação pode ser relacionada por um lado com as
formas de educação para a higiene que não comportam nem
pressões nem adestramento rígido; a higiene não é procurada
precocemente, a educação é liberal, não coercitiva.
Por outro lado e principalmente, se caracterizarmos for­
malmente o estágio anal pela introdução de objetos mediado­
res na relação mãe-criança, constata-se que aqui é que os ob­
jetos ocupam um lugar reduzido. M. Geber descreveu como a
criança africana tinha à sua disposição poucos brinquedos e
objetos usuais e como seu desenvolvimento intelectual podia

18. O olhar grave e pesado, os “ olhos espessos” são um elemento decisivo


no quadro das crianças ditas nit ku bon. Cf. A. Zempléni e J. Rabain, op. cix.
19 Nossas constatações vão, neste ponto, ao encontro das de P. Parin, F.
Morgenthaler e G. Parin-Matthey, Die Weissen denken zuviel. Psychoanalytische
Untersuchungen bei den Dogon in Westafrika (Zurique, Atlantis, 1963), p. 470.
112 ÉDIPO AFRICANO
ser brecado na idade onde a manipulação dos objetos é para a
criança fonte de estimulação e de aprendizagem.20 Mas há
mais do que isto. Na Europa a relação da criança com a mãe
está, desde o nascimento, mediada por inúmeros objetos
muito diversificados (mamadeira, berço, fralda, objetos de
limpeza, brinquedos etc.). A criança está distante de sua mãe.
As distâncias e os tempos que os separam têm que adquirir
rapidamente uma forma para que a ausência do corpo da mãe,
o tempo vazio da mãe, o espaço vazio da mãe, possam ser su­
perados. Medidas, esperas, encadeamentos, sinais são cons­
tituídos pela criança. O vazio adquire uma forma e é preen­
chido por meio de substitutos da mãe, de objetos substitutivos
que, desta forma, são fortemente investidos.
Comentou-se muito sobre a “segurança” que a criança
africana sente por viver em contato permanente com sua mãe
e ser alimentada sègundo sua demanda. Mas dedicou-se pou­
ca atenção sobre este outro aspecto das coisas: a criança não
é levada a investir intermediários como suportes das trocas
entre ela e a mãe; entre elas não há necessidade nem de ob­
jetos mediadores, nem de lugar para eles. Poderiamos dizer
que o tempo do corpo a corpo mãe-criança é um tempo imó­
vel, ou pelo menos que não tem outras exigências que não as
do próprio corpo a corpo. Os trabalhos em curso no serviço
de atendimento parecem indicar que, no momento em que a
criança se separa da mãe para compartilhar a vida das outras
crianças, esta situação se modifica relativamente pouco: as
brincadeiras entre crianças continuariam sendo principal­
mente brincadeiras corpo a corpo. E, mesmo com o passar
dos anos, são os olhares, a voz e o contato que continuam
sendo os modos predominantes das trocas, como seria, poder-
se-ia dizer, nas trocas amorosas. Provavelmente é isso que dá
20. M. Geber, “ L’enfant africain occidentalisé et de niveau social supé-
rieur, en Ouganda” , Courrier, VIII, 1958, pp. 517-523; “ Problèmes posés par le
développement du jeune Africain en fonction de son milieu social” , Travail hu-
main, I-II, 1960, pp. 97-111; “ Développement psychomoteur des petits Baganda
de la naissance à six ans” , Revue suisse de psychologie pure et apptiquie, XX,
1961, p p .345-356.
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 113
esta qualidade tão particularmente calorosa e sensível, inimi­
tável, à presença amigável dos africanos.
Um estudo da idade anal e do estágio anal nas sociedades
que estamos considerando, ainda não foi feito. Queremos
apenas adiantar algumas observações.
Parece que as elaborações relacionadas com este estágio
encontram-se apenas em estado de esboço. Aparecem na vida
social (o presente, os rituais mágicos) muito mais do que nas
fantasias.
A agressividade, pouco mediada, é vivenciada de modo
oral (comer ou destruir desde o interior). Trata-se mais do eu
e tu do que do meu e do teu ou de nossas posses, que são nós
sem sê-lo, que têm suas próprias leis de existência e de fun­
cionamento. Trata-se de sentir se estou com você, de acordo
com você, perto ou longe de você, rejeitado ou aceito, parti­
cipando ou não do mesmo universo, mais do que de medir
nossas forças ou nossas posses, de medir nosso “ fazer” de
acordo com os resultados, isto é, de nos compararmos por
meio de dados externos a nós mesmos e que não sejam “ os
olhos dos outros” .
A conquista do controle muscular permanece sendo con­
quista do próprio corpo, não se prolongando em manejo do
tempo e do mundo dos objetos.
A utilização da linguagem parece estar pouco orientada
para o estabelecimento rápido de uma reduplicação verbaliza­
da das ações da criança, reduplicação que é objetivação do
que é vivido, quer se trate de comentários ou de uma simples
enunciação. Estudos detalhados sobre os primeiros anos
mostrariam provavelmente que entre as falas dos adultos diri­
gidas às crianças, as falas que têm por função designar a or­
ganização da ação e do tempo, por exemplo ao enunciar uma
causa e sua conseqüência, existem em proporção bem menor
do que na Europa.21 Mas de qualquer maneira a formalização

21. As frases do tipo: “ Vê... pronto” , “ Espera... foi embora” . Pergunta-


mo-nos também se os jogos do adulto com a criança não seriam construídos mais
de acordo com esquemas rítmicos do que metódicos.
114 ÉDIPO AFRICANO
do tempo, das possibilidades de antecipação continuam frus­
tradas. A consciência do tempo permanece próxima da cons­
ciência do corpo e das emoções. O tempo da solidão que é
tempo da ansiedade, toma-se facilmente tempo da depressão
ou tempo das somatizações. Não aparecem estes despedaça-
mentos da ansiedade operados pelos mecanismos da série ob­
sessiva. Uma atitude de contemplação participante ocupa o
lugar que seria ocupado por uma atitude intelectual de análise
(que implica em destruir para conhecer e possuir), enraizada
nas posições sádicas.
Estas observações têm, entre outras insuficiências, a de
assinalar a ausência de certas elaborações mais do que des­
crever positivamente como se dá aqui a passagem do estágio
oral para o estágio fálico. Ainda não estamos em condições
de descrever esta passagem de maneira satisfatória. O mais
aparente na clínica é a proximidade do material do estágio
oral com o estágio fálico.

A rivalidade entre os “irmãos” é sobrecompensada por


uma fortíssima solidariedade.
Estaríamos tentados a dizer que trata-se aí de uma forma­
ção reativa que aparece como uma constante sociológica. A
preocupação em demonstrar o acordo e o bom entendimento é
evidente. O ideal consciente é fundamentalmente o de ser
como os outros, com os outros: “ acompanhar-se com” , estar
sempre junto, compartilhar tudo. As manifestações de agres­
sividade são cuidadosamente evitadas o que toma permanente
a presença daquilo que convém calar.
Neste sentido a fala é fortemente investida. Já indicamos
como são longas as fórmulas de cortesia que multiplicam as
afirmações de intenções pacíficas. Questionar diretamente,
responder de maneira breve e precisa é muito mal suportado.
Mesmo no âmbito profissional, responder sim ou não parece
seco demais, ultrajante; acrescentar-se-á “um pouco” , “apro­
ximadamente” , “isto é” . O doente a quem se pergunta como
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 115
vai, responde: “ Sim, vai vem, vai mais ou menos bem ...” isto
quer dizer que não vai bem mas ele só explicará o que não
vai bem num segundo tempo.
Dedica-se muito tempo a conversas entre pessoas do
mesmo sexo. Talvez as trocas verbais têm, entre outras fun­
ções, a de prevenir, desarmar, negar a hostilidade: a conversa
seria antes de mais nada testemunho de que se pode trocar,
entender-se. Parece-nos que os possíveis confrontos em pala­
vras são muito delicadamente dosados, nuançados pelo cos­
tume e que é enorme a sensibilidade para a ameaça da agres­
sividade latente. Um provérbio wolof diz: “ Aquele que tem a
última palavra é meu senhor.” É possível manter-se no limiar
da vitória ou da derrota através de um jogo sutil que se pro­
longa; muitas vezes a impressão é de palavras vazias ou de
ostentação: trata-se realmente de ostentação mas cuja função
é de dar forma à agressividade pouco investida nas tarefas e
realizações. Os jovens homens comentam freqüentemente
suas conversas em termos de combate (ataque, esmagamento)
onde a zombaria é uma arma temida.
Quando a última palavra vai ser dita, ou seja, está vir­
tualmente presente, o perdedor tem uma possibilidade de es­
capar: adota um ar indiferente, deixa cair. Este “ deixar cair”
é investido de toda a hostilidade que não pôde se expressar
antes. Eis um exemplo, contado pelo próprio interessado que
queria nos descrever o mau caráter de um colega:
Dois meninos são amigos desde a infância; nunca se separaram,
nem na escola, nem fora dela. Quando o pai de um comprava roupas
para seu filho, comprava as mesmas roupas para o amigo de seu filho.
Ao longo dos anos eles sempre se acompanham e se divertem juntos.
A partir do momento em que ganham a vida em Dakar, continuam a
passar juntos todo o seu tempo livre. Mas o amigo é avarento, deixa
sempre o outro pagar o baile, o cinema, a limonada. O pagador não
diz nada, espera que seu amigo mude de conduta, reconheça seu erro.
Passam-se dois anos assim sem que uma palavra tenha sido dita. A
situação pesa cada vez mais para o pagador que, por fim, decide pôr
seu amigo à prova. Na entrada do cinema diz: “Estou sem dinheiro,
você pode pagar? — Não, responde o outro, eu não pago. - Ah! me
116 ÉDIPO AFRICANO
desculpe, achei, eu tinha dinheiro...” e ele paga. Três vezes repete a
prova, nada muda, então sem uma palavra deixa de ver seu amigo. Al­
guns meses mais tarde, este enviará seu irmão mais velho para pedir
explicações.

Esta descrição conduz à seguinte questão: para que tende


então o evitamento dos confrontos? Para onde leva isto? Para
responder, retomaremos uma questão formulada acima: o que
é resolver a situação edípica num mundo onde a função sim­
bólica do pai permanece ligada à do ancestral? Não há, por­
tanto, neste mundo, vários lugares de pais com relações recí­
procas. A solução é ser um igual num grupo etário, num gru­
po qualquer, numa “fratria” . A sociedade declara que é um
lugar de homem, e esta declaração social, sancionada por ri­
tos, com o apoio das identificações de companheirismo, equi­
valería à nossa permissão interna de se pensar igual ou supe­
rior ao pai. Ser “homem” é ser um igual entre seus “irmãos” ,
integrado ao grupo deles, é estar submetido aos mais velhos e
tomar-se inacessível aos mais novos. O que se deve aos mais
velhos é devido pelos mais novos: exige-se deles obediência
e deferência; dá-se ordens mas não se discute, não se brinca
com eles.

Um estudante de Dakar de uma família de agricultores contava-


nos como era repreendido pelo seu meio quando, no período de férias,
brincava com seus irmãos menores: “Você não vai fazer isto, é vergo-'
nhoso” , lhe diziam. O que é vergonhoso é não se manter no seu lugar
e ao mesmo tempo convidar os menores a sairem do deles.
Também se considera perigoso que uma criança seja mais sábia
que seu pai ou sua mãe: a criança pode morrer. Na mesma linha, uma
inteligência superior à média provoca o risco de doença e de loucu­
ra.22

22. Inversamente, uma expressão wolof corrente, dyiko taaw, tende, nó


interior de uma fratria de “ mesmo pai, mesma mãe” , a atenuar as diferenças en­
tre os irmãos. Sobre um irmão maior pouco inteligente ou de caráter difícil, es­
tranho e inclusive anormal, dir-se-á dyiko taaw, literalmente, “ é o caráter do
mais velho” , significando que £ comum, esperado, que o mais velho seja menos
dotado, menos “ bem” que seus irmãos menores. Falando de seu filho mais velho,
um pai traduzia: “ O maior, pode-se esperar que falhe.” Vemos assim o inverso
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 117

As gerações, os grupos etários, os grupos de “irmãos” ,


sucedem-se em ondas que avançam empurradas pelo mesmo
vento, guardando suas. distâncias durante toda a vida. Cada
indivíduo é solidário para sempre à “ sua” onda. É nela e
através dela que pode encontrar seu lugar na sociedade. É
situádo nela que pode medir pelo olhar quantas estão atrás
dele e quantas na frente. Somente quando sua onda alcançar a
margem dos mortos terá se tomado inteiramente pai.

A angústia de abandono aparece como uma modalidade


ou uma tonalidade dominante de angústia de castração. Re­
tomamos aqui uma observação feita no capítulo 1 onde des­
crevíamos a imagem do “louco-mendigo-vagabundo” , isto é,
a imagem daquele que está só, que ninguém aconselha, como
a do destino prometido à criança agressiva. O castigo é per­
der a referência íntima que era o sentimento de pertencer ao
grupo; este se toma o paraíso perdido, a definição perdida de
si mesmo. Entendemos agora melhor o alcance agressivo das
rupturas de contato na vida cotidiana e o valor com que está
investida a “presença” amistosa.
Deveriamos pensar com Parin que, quando a criança se
separa da mãe no desmame para passar ao grupo, este se tor­
na um ersatz (substituto) da mãe? Notemos apenas que, por
outra via, chegamos a uma constatação já feita, a da proximi­
dade dos níveis oral e fálico ou da pouca diferenciação entre
eles.

* *

No decorrer deste capítulo insistimos especialmente nas di­


ferenças entre os dados da clínica no Senegal e na Europa.
Estas diferenças não devem ser concebidas de maneira rígida;

do enorme investimento de que é objeto o primeiro menino de uma família e uma


certa maneira de compensar a hierarquia dos estatutos existente entre os irmtos.
118 ÉDIPO AFRICANO
correspondem mais a uma tendência que admite variações que
parecem estar ligadas principalmente aos problemas da acultu­
ração. E referimo-nos não apenas aos graus de aculturação mas
às suas modalidades: rapidez da mudança podendo provocar
regressões, homogeneidade ou heterogeneidade da evolução
dentro de um grupo familiar dado. Quando uma terapia psica-
nalítica se toma possível é porque os problemas de aculturação
já se colocaram de alguma maneira; o “ doutor” europeu ga­
nhou um lugar. O que aparece na clínica é o momento em que
o indivíduo, não estando mais satisfeito com os modos de inte­
gração coletiva, é confrontado com um destino pessoal.
As descrições que acabamos de dar poderiam sugerir a
conclusão de que há uma fuga frente ao confronto com o pai
equivalente a uma saída negativa do complexo de Édipo. A
integração-participação estreita do indivíduo com o grupo, im­
plica uma situação de dependência, de submissão à instância
fálica coletiva, que poderiamos querer superpor à posição ho­
mossexual passiva que, na Europa, caracteriza a fase do se tor­
nar individual anterior à superação do problema edípico. Este
ponto foi levantado de maneira pertinente por Parin: “ A solu­
ção da problemática do pai se produz em muitos aspectos de
maneira análoga à que, entre nós, é a regra no caso de uma
saída negativa do conflito edípico. A diferença reside em que,
numa saída negativa do conflito edípico, as fixações anais es­
tão sempre presentes. Nossos analisados resolvem a problemá­
tica do pai de outra forma. Identificam-se com a série pai-ir-
mão, o que constitui uma garantia para o seu desejo de depen­
dência” .23
Embora in abstracto se trate de um mesmo problema, não
seria lícito estabelecer uma comparação a este respeito entre
dois tipos de sociedades, sem introduzir o todo da sociedade
na comparação. Nos dois casos, o lugar da posição “passiva”
não tem o mesmo sentido, nem na dinâmica geral da socieda­
de, nem na evolução individual.

23. P. Parin, F. Morgenthaler, G. Parin-Matthey, op. cit., p. 476.


DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 119
No primeiro caso, a posição passiva não aparece como
resultado de um fracasso em assumir uma posição viril. Re­
presenta, pelo contrário, a posição viril desta sociedade, fora
da qual se seria desviante em relação às normas do grupo,
destruidor, associai e rejeitado. A posição individualista não
estaria fundada na identificação com o pai, mas, no limite, na
identificação com o bruxo.24 E é a posição que costumamos
chamar de “passiva” que dá forma e lugar às atitudes de for­
ça, de coragem, de auto-domínio, de responsabilidade.
A sublimação da homossexualidade desempenha um pa­
pel importante no domínio coletivo dos instintos sexuais e na
determinação da ética masculina. Faz a palavra participar do
rico investimento da presença sensível, do contato, do olhar.
A palavra fica como que presa ao espetáculo que o grupo ofe­
rece a si mesmo. Como diz um provérbio wolof: “Há palavras
que se fossem roupas novas, as vestiriamos.”25
Estamos numa civilização da vergonha mais do que numa
civilização da culpa. Sabe-se que o supereu, a instância críti­
ca da consciência, é o herdeiro do complexo de Édipo. Na
medida em que a fantasia do assassinato do pai é eludida, o
processo de identificação ao legislador não se desenvolverá
até o fim. A instância crítica da consciência, o supereu, terá
mais necessidade de se apoiar em representantes externos.
Vimos que, na população estudada, a referência ao pai
desemboca de certa forma numa cisão: por um lado a fantasia
da morte do pai tende a recair sobre o ancestral, isto é, um
pai já morto, inatacável, reduzido à autoridade de um nome
ou de uma lei à qual devemos nos submeter; por outro lado, a
rivalidade tende a se deslocar para “ os irmãos” ao mesmo
tefflJJb que a agressividade recalcada pela poderosa lei de so­
lidariedade, converte-se em interpretações persecutórias, su­
pondo-se que o mal vem de fora.
Se queremos levar nossa análise mais longe, restam duas
questões para estudar: temos que tentar descrever com mais
24. Cf. cap. IV.
25. Am na baat bu, donte ser nga daloo ko.
120 ÉDIPO AFRICANO
precisão por um lado a relação com o pai e com o ancestral e
por outro, as formas persecutórias de que se reveste a cons­
ciência do mal.
A questão do pai e do ancestral será estudada no próximo
capítulo à luz do culto familiar dos espíritos ancestrais (cap.
UI). A questão das interpretações persecutórias - bruxaria,
marabutagem - será objeto do capítulo seguinte (cap. IV).
Gostaríamos, no entanto, de acrescentar uma última ob­
servação. Seria necessário um estudo etnológico para dar
conta plenamente do tema da Arvore, tão freqüentemente pre­
sente na clínica (árvore de aldeia, árvore de conversas, árvore
túmulo). Na falta de tal estudo é possível formular uma hipó­
tese provisória.
A propósito da mitologia da Árvore, o padre H. Gravrand
recolheu numerosas analogias entre as tradições serer e as
tradições bambara.26 Há uma árvore em particular que desem­
penha um importante papel na agricultura serer: a kad idênti­
ca à balanza dos Bambara (accacia albida). Ela tem um ciclo
inverso em relação às outras árvores, verdeja na estação seca
e perde suas folhas na estação das chuvas. Na mitologia bam­
bara tem o papel de um inversor de ciclos. Na origem dos
tempos,
* com efeito, houve dois reinos sucessivos: o reino da
Arvore (representado nos ritos por uma grossa tábua, o pem-
bele bambara, o sass serer) e o reino de Faro, gênio ordena-
dor e legislador. O reino da Árvore foi o reino da autoctonia,
isto é, do que nasceu da terra, por oposição ao que nasceu de
um casal sexuado, regido pelas regras de aliança. Sob o reino
da Árvore, segundo os Bambara, as mulheres tinham a inicia­
tiva do culto. Os humanos encontravam-se num estado muito
indiferenciado: sem linguagem, sem roupas, reconhecendo-se
apenas através da tatuagem, sem outras referências cronológi­
cas do que a evolução do sistema piloso, sem membros arti­
culados para o trabalho, sem relações sexuais pois das mulhe­

26. Sobre os Bambara ver G. Dieterlen, Essais sur Ia religion bambara. Pa­
ris, P.U.F., 1951. A obra do padre H. Gravrand sobre os Serer do Sine está em
preparação.
DADOS CLÍNICOS: MODALIDADES DAS POSIÇÕES EDÍPICAS 121
res diretamente fecundadas pela árvore nasciam indistinta-
mente plantas, animais ou humanos; a própria fecundidade
não se diferenciava de uma alimentação pois a árvore se nu­
tria do líquido seminal das mulheres. A árvore também se
nutria do sangue dos homens e aqui o tema da autoctonia tor­
na-se muito explícito: ao absorver o sangue dos velhos, a ár­
vore rejuvenecia, invertia o ciclo do tempo fazendo-os toma­
rem-se novamente crianças, conferindo-lhes assim uma espé­
cie de imortalidade regressiva evocada por um rito bambara,
ainda praticado hoje em dia pelos velhos serer, que consiste
em esfregar o punho contra as rugosidades da casca até fazer
o sangue escorrer pela árvore.27
No entanto, a árvore, ávida demais de se nutrir do sexo
das mulheres e do sangue dos homens, foi vencida por Faro
que instituiu a ordem atual: trouxe a linguagem, a regularida­
de das alianças entre homens e mulheres, a normalização dos
nascimentos e todos os valores diferenciados necessários para
o bom andamento da sociedade.
A mudança de reino, a inversão dos ciclos, foi marcada
pela castração celeste do Gênio do ar, origem da circuncisão;
a circuncisão elimina a indiferenciação dos sexos (suprime a
feminilidade do prepúcio e a masculinidade do clitóris), esta­
belece as diferenças puras necessárias para as alianças.
A Arvore da autoctonia tem, portanto, uma função re­
gressiva; fonte fascinante de vida da qual se teme que seja na
mesma medida devoradora; túmulo no qual se dá o retomo ao
seio materno. No Senegal, os griots, membros da casta dos
trovadores, cantores das genealogias familiares, são enterra­
dos no tronco oco dos baobás.
A estrutura do complexo de Édipo pode ser formulada de
duas maneiras: pela oposição entre uma relação a dois
(mãe/criança) e uma relação a três (com o pai) ou, de forma
equivalente, por uma oposição entre “nascido de um” (au­
toctonia) e “ nascido de dois” (de um casal sexuado). Neste
27. Sobre a marcha regressiva do tempo no sistema da autoctonia, lembre­
mos Omito do Político de Platão (os filhos da Terra e o rei-pastor).
122 ÉDIPO AFRICANO
último caso, todo o problema edípico é pensado em função da
origem: o tema da autoctorúa (retomo à terra-Mãe) situa-se
no mesmo campo retrospectivo que a herança a partir do an­
cestral. A mitologia parece, portanto, nos sugerir um comple­
xo de Édipo vivido do modo anterior, cada geração vivendo,
através da geração precedente, sua própria relação com a
morte do pai, ancestral legislador que sobrevive na tradição.
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS
E O LUGAR DO PAI

Apresentamos aqui três estudos que, de diferentes for­


mas, concernem ao que J. Lacan designou^ como a metáfora
do “ Nome do Pai” . Trata-se, com efeito, de uma função me­
tafórica da nomeação; veremos como o nome do ancestral e o
nome dos gênios são utilizados para marcar a posição do pai
na estrutura do complexo de Édipo.
O primeiro estudo dará algumas informações preliminares
sobre o culto familiar dos gênios e os ritos de possessão. Os
ritos de possessão são uma espécie de religião dionisíaca. Sa-
be-se que na Grécia as dionisíacas estão na origem da tragé­
dia; no Senegal o “ dionisismo” aparece sob duas formas dife­
rentes que permitem entrever como um rito de fundação pode
se transformar em espetáculo. O estudo das relações entre o
altar doméstico e as danças de possessão servirá de introdu­
ção para a exposição das psicoterapias onde veremos se amar­
rar um drama da linhagem e do destino familiar que ultrapas­
se o indivíduo; preparar-nos-emos para descobrir uma psico­
logia mais próxima da substância trágica dos antigos, do que
do egoísmo romântico dos modernos.
124 ÉDIPO AFRICANO
O segundo estudo relata a psicoterapia de um jovem ra­
paz serer possuído pelos rab. A família deste rapaz está num
período de rápida evolução. A tradição ainda está viva entre
os avós ainda que muitos de seus filhos tenham boas qualifi­
cações técnicas, com estágios na França. Embora os termos
mitológicos sejam expressos em wolof, trata-se de uma famí­
lia serer onde o princípio da filiação matrilinear conserva
ainda muito de sua antiga importância. Será muito interes­
sante ver como se definem neste contexto as relações do ra­
paz com seu pai.
O terceiro estudo refere-se a um caso de psicose, também
interpretado pelo meio como uma possessão pelos rab. Trata-
se de um adulto lébou que parece evoluir para um estado es­
quizofrênico. Enquanto que no primeiro caso a nomeação dos
rab coloque em evidência os recursos combinatórios ofereci­
dos pelo simbolismo da mitologia coletiva, no segundo caso
os espíritos regridem para o inominável e a imagem do corpo
despedaçado. Desta forma, os dois casos se esclarecerão por
contraste.

1. OS RITOS DE POSSESSÃO

A religião animista tal como se apresenta no Senegal não é


um politefsmo. Invoca um Deus único embora o culto dirija-se
principalmente a gênios, espíritos ancestrais chamados rab em
wolof e pangol em serer. Em conseqüência do sincretismo mu­
çulmano ou cristão, o rab é assimilado no vocabulário a djinés
ou saytanés, anjos ou diabos ao mesmo tempo que os antigos
ritos religiosos se degradam em práticas mágicas u tilizadas pa­
ra fins individuais.1 Reencontraremos mais adiante este pro­

1. Se acreditássemos na extensão atual do termo rab entre os wolof e os lé­


bou do Senegal, pensaríamos que este termo também designa espíritos não orga-
Dilâdoi, não identificáveis e dos quais sé se pode esperar o mal. Sobre estes nem
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 125
blema do sincretismo a respeito das interpretações persecutó-
rias. No presente estudo dedicado ao ritual, esforçar-nos-emos
para restituir a significação original do culto dos rab sob sua
forma tradicional.
A palavra rab em wolof quer dizer “animal” assim como
a palavra serer pangol (sing. fangol) significa “cobra” . Com
efeito, os espíritos manifestam-se ffeqüentemente sob a forma
de uma cobra ou outro animal que habita os arredores das ca­
sas e que às vezes vêm visitar o local de culto; neste caso,
faz-se uma oferenda, geralmente leite coalhado. O rab pode
também habitar uma árvore. Certos locais podem ser a mora­
da dos rab, em particular a ponta de Sangomar, a vila dos
mortos. Os rab gostam de viver na água mas também circu­
lam no ar, tentando se fixar. Quando um grupo se desloca,
leva seus rab consigo assim como os latinos seus penates;
o rab está, portanto, menos ligado ao solo do que à linhagem.
Seu nome vem geralmente precedido da palavra maam que
significa avô ou avó, por exemplo: Maam Kumba Laam, a
mãe dos gatos em Rufisque (onde o gato é um interdito totê-
nico); Maam Kumba Bang que habita o rio em Saint-Louis. O

o rulõp nem os outros tratamentos tradicionais têm eficácia. Mas trata-se af de um


efeito do atual sincretismo religioso; e se a palavra rab é usada de maneira muito
ampla nas diferentes camadas sociais e a despeito dos diverssfssimos graus de
aculturação, a propósito de situações ou de quadros clínicos também muito di­
versos, é porque eia também designa os djini e saytaní islâmicos sem que os lo­
cutores distingam claramente os espíritos pertencentes à tradição animista dos
que pertencem ã tradição islâmica. Além disto, o islamismo conota, para muitos,
um estatuto de urbanizado ou de “ evoluído” , e os rab podem ser chamados dia­
bos, djini, saytaní ou gênios... sem que as representações mudem por isto. Muitas
vezes, também, várias das denominações serão utilizadas para o mesmo espírito,
como equivalentes.
De maneira mais ampla e indecisa, o uso do termo rab pode ser uma simples
maneira de falar, de traduzir a ignorância: sobre um doente de quem se diz “ ele
tem rab", ãs vezes temos que entender “ não sabemos o que fazer” , ou algo aná­
logo ao nosso “ ele tem complexos” .
Pode-se facilmente imaginar os erros, as confusões e contra-sensos que
ocorreríam se, na prática clínica, não procurássemos em cada caso determinar de
que representações trata-se realmente. Às vezes, apesar da aparente confusão da
terminologia, trata-se de representações coerentes; outras vezes, pelo contrário,
um vocabulário preciso encobre noções compostas ou fragmentadas.
126 ÉDIPO AFRICANO
rab não é o ancestral mas seu duplo.* Os rab têm uma orga­
nização hierárquica com chefes e subordinados; estão organi­
zados em famílias com filhos chamados at.
Não se pode, no entanto, descrever mais detalhadamente
os rab senu analisar seu culto. Certos aspectos do culto dos
rab ou dos pangol interessam diretamente a psicoterapia, em
particular, os ritos de possessão e de dança extática. “ As
danças de possessão” tomaram-se célebres a partir dos estu­
dos de Jean Rouch sobre os Songhay2, de Alfred Métraux so­
bre os Vaudou3, de Leiris sobre o Zar etíope4 assim como por
certas semelhanças com o menadismo grego5. Os ritos de pos­
sessão nem sempre têm as mesmas características. Falaremos
sobretudo da prática dos Lébou (mais conservadores do que
os Wolof) e dos Serer. Não tentaremos dar uma descrição et­
nográfica completa destas práticas6, apenas as consideraremos
sob o ângulo que interessa à psicanálise.
A respeito do tratamento dos doentes pelas danças de
possessão, Jean Rouch escreve: “Em várias ocasiões, durante
a projeção de filmes tratando deste assunto, médicos especia­
listas levantaram hipóteses apaixonantes: na opinião deles os
dançarinos de possessão seriam desadaptados mentais; os
comportamentos dos possuídos, isto é, as características dos
gênios: aquele que mama de sua mãe, aquele que se cobre de
pó, o paralítico, a mãe malvada, o jovem farçante..., corres­
ponderíam aos comportamentos clássicos dos desequilibrados

* Doublet - palavra que tem a mesma etimologia de outra, porém forma


diferente. (N. da T.)
2. J. Rouch, Essaisur la religion Songhay, Paris, P.U.F., 1960.
3. A. Métraux, Le Vaudou hailien, Paris, Gallimard, 1958.
4. M. Leiris, La possession et ses aspects théâtraux chez les Éthiopiens de
Gondar, Paris, Plon, 1958.
5. H. Jeanmaire, Dionysos, histoire du culte de Bacchus, Paris, Payot, 1951.
6. Remetemos aqui a A. Zempléni, “ Les représentations de la maladie
mental et des soins traditionnels chez les Wolof, Lébou et Sérère du Sénégal”
(tese de doutorado em preparação) e à obra de H. Gravrand sobre os Serer (em
preparação).
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 127
de nossos países. A sessão de iniciação de um novo possuído
por um zima (padre) correspondería ao tratamento psicanalíti-
co (com a diferença de que os zima songhay praticamente
nunca falham)” 7. E Jean Rouch, sem concordar com a inter­
pretação, assinala que certos médicos comparam o tratamento
pela dança ao psicodrama de Moreno. E bastante normal que
ao assistir a um filme sobre as danças de possessão, o públi­
co, mesmo que médico, fique impressionado pelos aspectos
espetaculares da cerimônia. No entanto, este lado comedia
deli’arte aponta mais para o lado crítico do sistema, aquele
que poderá levá-lo a se degradar ou se transformar. A identi­
ficação imaginária ao caráter do Gênio por meio da imitação
pode ter diferentes significações segundo consideremos suas
relações com a terapêutica individual ou o culto comunitário
que comporta, em si mesmo, diversos elementos: ritos sacrifi-
ciais, ereção de altar, consulta adivinhatória por interrogação
do possuído... A possessão não é, aliás, o único modo de ma­
nifestação dos espíritos. A sociedade dos possuídos distin­
gue-se da sociedade dos Mascarados e o Mascarado pode fa­
lar em nome de um espírito mas, pelo que sabemos, não é
possuído por ele, representa de forma mais direta a autoridade
da tradição e da disciplina coletiva. A iniciação na sociedade
dos Mascarados é de interesse direto da sociedade global, in­
troduz o jovem na classe dos homens adultos; a iniciação pe­
los ritos de possessão tem uma função de culto mais especial,
consagra o indivíduo ao culto de um Gênio. A sociedade dos
possuídos é mista, tende a se deixar invadir pelas mulheres,
sobretudo entre os lébou, o que acentua seu caráter congrega-
cional.
Por fim e sobretudo, se se compara as práticas lébou e se­
rer constata-se que o efeito terapêutico dos ritos de possessão

7. J. Rouch, op. cit,, p. 300. Na verdade, os fracassos não são raros mas
sempre têm boas razões: dir-se-á que, ou os ritos não foram bem observados, ou
que o oficiante-curandeiro não era suficientemente poderoso, ou que uma proibi­
ção foi violada etc... Jean Rouch também assinala um fracasso: ao fazer fotos, fez
a operação fracassar (p. 247).
128 ÉDIPO AFRICANO
pode ser obtido sem recorrer à dança; esta nem sempre é ne­
cessária; e mesmo onde é amplamente praticada aprendemos
que, do ponto de vista religioso, não é considerada como o
elemento mais fundamental. Com efeito, o que chama parti­
cularmente a atenção do observador ocasional é a cerimônia
das danças de possessão que em wolof são chamadas um
ndôp. No entanto, não se pode fazer um ndôp sem antes ter
realizado os ritos do samp ou ereção de um altar. A ereção é
precedida de um rito iniciatório: o postulante, amortalhado
sob tangas, sofre uma espécie de morte seguida de uma ressur­
reição; neste momento é consagrado ao rab que o possui, tor­
na-se seu suporte e padre, enquanto que o rab, por seu lado,
recebe um nome e um altar. O samp inaugura o culto. O pri­
meiro ndôp para um indivíduo inclui sempre um samp, depois
o ndôp pode ser renovado várias vezes. É o samp que auten­
tica a possessão, faz do indivíduo um iniciado, um consagra­
do, ao mesmo tempo que funda o culto. O iniciado é consa­
grado ao serviço do altar, sobre o qual deverá fazer oferendas
regularmente, segunda e quinta-feira; esta consagração o in­
troduz na sociedade dos possuídos e a partir de então poderá
participar como oficiante das danças do ndôp. O samp forma
em si mesmo um todo completo independentemente do ndõp;
pode ser realizado sem nenhuma dança, tem em si mesmo seu
pleno valor terapêutico. Esta análise é confirmada pela tradi­
ção serer onde a forma arcaica do rito está melhor conserva­
da. Os serer têm um equivalente do samp que se chama o lup,
mas não têm equivalente do ndõp. Simplesmente, aquele que
foi iniciado ou consagrado pelo lup terá, em seguida, em
certos períodos, estados de transe ou crises atestando sua
possessão pelo pangol.
Podemos nos perguntar então se não seriam estes transes
comemorativos que foram desenvolvidos e sistematizados nas
danças do ndõp. Entre os lébou, os homens tendem cada vez
mais a abandonar estas práticas sob a influência do islamis-
mo; as cerimônias do ndõp não sendo mais assumidas pela
sociedade global passam a ser, principalmente, realizadas por
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 129

congregações femininas; e se o mestre de cerimônias (ndôp-


kot) for um homem, veste-se de mulher para oficiar. Assim,
na quase ilha de Cabo Verde não teríamos, reunidos sob nos­
sos olhos, todos os elementos que, pelo menos neste caso
particular, mostram como pode nascer em algum lugar o me-
nadismo? Bastaria então que a dança extática, afastando-se
um pouco mais de suas origens, acentuasse seu caráter de es­
petáculo e de imitação: teríamos o zar etfope esboçando a re­
presentação teatral. No limite, encontraríamos as HlnwUtanae
atenienses e a origem do teatro grego.
Embora o transe religioso seja um fenômeno arcaico, par
rece que a procura sistemática do transe ou do êxtase resulta
de uma transformação social durante a qual o indivíduo en­
contra-se imediatamente confrontado com o sobrenatural num
quadro que não é mais o da sociedade global mas o de uma
congregação. Ao invés de nos deixarmos seduzir pelas identi­
ficações imaginárias que fazem da cerimônia um espetáculo,
perguntaremos se não se deve buscar nas fontes autentica­
mente religiosas e sociais do rito o ponto mais fecundo de
aproximação com a psicoterapia.
*

* *

A palavra samp em wolof, assim como a palavra lup em


■erer designa a ação de fixar ou de cravar na terra. O rito do
samp ou do lup é a fixação de um altar (sampal xamb) ou a
fixação de um rab a um altar. O samp comporta três elemen­
tos principais: uma consulta adivinhatória (seet), um sacrifí-
cio (rey) e a construção de um altar (xamb) feito de vasilhas
de barro e pilões cravados na terra. Trata-se, portanto, de um
fito de função, fundação de um culto que é, ao mesmo tem­
po, a iniciação ou a consagração de um indivíduo a este culto.
O samp opera uma dupla transformação: age simultanea­
mente sobre o ser sobrenatural e sobre o homem. Ao dar um
nome ao ser sobrenatural, o homem toma o poder sobrenatu­
ral apto para receber um culto; ao escolher possuir quem ele
130 ÉDIPO AFRICANO
quer para dele extrair seu próprio nome, o poder sobrenatural
faz o indivíduo participar do ato que funda a vida religiosa de
todo o grupo. Em suma, trata-se do ato fundador da religião,
da instauração do culto, que se renova na escolha de um indi­
víduo, de todo indivíduo possuído pelo espírito.
Examinaremos sucessivamente estes dois aspectos do ri­
to.
Há dois tipos de rab (ou de pangol), ou melhor, os rab se
apresentam sob dois estados: o estado de rab anônimo, er­
rante, desconhecido, e o estado de rab nomeado, reconheci­
do, fixado ao altar. Quando o rab foi identificado, nomeado,
fixado, toma-se um tuur. A palavra tuur designa, ao mesmo
tempo, o rab que se tomou objeto de um culto e a libação em
sua honra. Os grandes tuur são os rab tyosaan ou “rab da
origem” cujo culto remonta ao ancestral da linhagem ou ao
fundador do povoado. Hoje em dia o tuur familiar, a carga do
altar doméstico, parece se transmitir por herança através das
mulheres, de mãe para filha ou de avó para neta, às vezes de
tia para sobrinha, de irmã para irmã, às vezes de mãe para fi­
lho. Mas as vias dessa transmissão variam, a herança com­
porta uma escolha. Os informantes insistem sobre o fato de
que o rab escolhe quem ele quer e múltiplos rab errantes po­
dem se manifestar para qualquer um.
Qualquer um pode ser pego por um rab. A intervenção
do rab é motivada seja pelo fato de que o culto do tuur foi
negligenciado, seja por que um rab errante começou a gostar
de um indivíduo e quer fazer dele seu eleito. Em todos os ca­
sos trata-se de restabelecer o culto de um tuur ou de fazer
passar um rab anônimo ao estado de tuur.
Como se dá esta escolha?
A presença do rab revela-se geralmente através de uma
doença. Segundo A. Zempléni, a gama das doenças imputa­
das ao rab é limitada. As mais fieqüentes são: as afecções
gastro-intesünais, a esterilidade, os abortos e muitas vezes as
perturbações mentais (fugir para o mato, tirar a roupa, ter vi­
sões, alucinações, ser agitado ou violento...). Entre estas, a
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 131

sfndrome mais freqüentemente evocada e observada é a se­


guinte: emagrecimento sério em conseqüência de anorexia
prolongada, recusa de falar, isolamento, apatia, insônia, e
quase sempre dificuldades de locomoção chegando até uma
paralisia cruzada dos membros superiores e inferiores. A pa­
ralisia homolateral não é atribuída ao rab e certos distúrbios
orgânicos facilmente reconhecíveis são logo descartados e
confiados ao dispensário ou ao hospital.
O rab pode também se manifestar em fenômenos naturais
(como um turbilhão de vento ou de água), aparecer sob a
forma humana ou animal, fazer escutar sua voz numa árvore
ou, se está descontente, provocar acidentes, fracassos, casti­
gos para aqueles, que o negligenciaram.
Quando na vida ocorre algo de inassumível, quando a
doença, o fracasso obrigam ao isolamento, o que fazer? Ir
procurar um boroom xam (mestre sábio, adivinho) ou um bo-
room tuur (possuidor de um tuur importante) pare uma con­
sulta (seet em wolof, apukar em serer). Através de procedi­
mentos adivinhatôrios, este decidirá se a doença decorre da
ação de um rab e que tratamento convém fazer.
Sem querer descrever detalhadamente as cerimônias do
samp (fieqüentemente integradas, hoje em dia, num ndôp com
doenças e crises de possessão) ou do lup, destacaremos ape­
nas os momentos essenciais.8
Uma das primeiras operações consistirá em conhecer
o nome do rab que possui o sujeito. Pode acontecer que o
próprio curandeiro-adivinho identifique o rab mas geralmente
o próprio doente terá que conseguir dizer este nome. Através
de cantos, de batimentos de tambor, de toques de sinetas agi­
tadas no ouvido do paciente, este será levado a um estado vi­
zinho ao do esgotamento: grita, berra, treme, está completa­
mente suado; sacodem-no, batem nele se necessário até ex­

8. Resumimos as informações que nos foram comunicadas por A. Zemplé-


ni sobre os wolof e Os lébou, H. Gravrand sobre os serer.
132 ÉDIPO AFRICANO
trair, por fim, o nome do misterioso poder que o habita. As­
sim, outrora, entre os serer, batia-se no novo rei até que este
dissesse seu nome, este nome real que era o presságio de seu
reino.
A segunda operação será o embàlsamamento ritual do pa­
ciente e o sacrifício de uma cabra ou de um boi. O doente se
deita sobre uma esteira ao lado do animal do sacrifício, es­
treitamente apertado contra ele. É recorberto com 7 percais e
7 tangas. Em volta deles os oficiantes andam cantando os bak
(cantos de chamamento dos tuur), roçando as tangas com um
galo vermelho e um galo branco (raay = acariciar). Alguns
minutos depois, esboça-se um canto, um bak endereçado ao
rab do doente cujo nome agora se conhece. Ao fim de um
certo tempo, percebe-se que o doente treme. Retira-se as tan­
gas e os percais. O doente levanta-se com o rosto iluminado.
Entre os lébou, o doente começa a dançar imitando os gestos
e posturas de seu rab; mas isto pertence ao ndõp, e não ocor­
re no lup serer. Em seguida o animal é sacrificado sob as per­
nas do doente e este é aspergido, untado de sangue sobre o
rosto e corpo; só se lavará no dia seguinte.
Por fim, a terceira operação será a construção do altar (do
xamb), operação esta bastante complexa. Os serer, em parti­
cular, são muito cuidadosos em fixar o lugar exato do altar
(pilão e vasilhas): este lugar não deve ficar logo em cima da
morada subterrânea dos pangol mas perto dela, nem perto
demais nem longe demais.
O rab está, dali em diante, fixado, domesticado, honrado.
O antigo doente, tendo-se tomado oficiante, poderá vir, na­
quilo que se chama “ seus negócios” , para fazer oferendas a
seu tuur e encontrar junto a ele a paz.
Depois desta cerimônia podem ocorrer as danças do ndõp
durante muitos dias. Todos os iniciados participam delas. Pe­
riodicamente, um ou outro dançarino, ou às vezes, subita­
mente, um assistente, entra em crise, é tomado por transes
convulsivos até que caia por terra num último espasmo. Entre
os serer, como dissemos, crises análogas ocorrem apenas mais
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 133

tarde com o sujeito, em certos períodos, sem dar lugar a uma


cerimônia tão elaborada e sistematizada como o ndõp.
O que concluir desta liturgia? Sabe-se que o oráculo de
Delfos também dava o nome ao daimon que se manifestara
em alguma circunstância; a nomeação tomava possível a
construção de um altar. Não se rende culto a um poder sobre­
natural que não se pode nomear. As aparentes exceções a esta
regra, como em Atenas ou em Roma, confirmam sua impor­
tância mais do que a desmentem: ao consagrar um altar a uma
divindade desconhecida, toma-se uma preocupação suple­
mentar com respeito ao panteão já organizado; as fórmulas de
invocação romana do tipo: “Quem quer que você seja, deus
ou deusa...” manifestam uma juricidade escrupulosa, atenta a
não pecar por omissão; esta fórmula equivale a uma nomea­
ção na medida em que inclui o deus num quadro jurídico e
fimda o culto sobre um engajamento recíproco de tipo con­
tratual. Ao afirmar que a nomeação é essencial ao culto, não
queremos retomar a tese de Max Muller sobre a origem dos
deuses a partir da linguagem. O que nos interessa é a estrutu­
ra do culto mais do que sua gênese. Deuses podem mudar de
nome, alguns podem ser designados apenas por um nome co­
letivo, mais quaisquer que sejam os procedimentos de voca­
bulário utilizados pela nomeação ritual, o importante é que
seja introduzida assim uma alternativa jurídica, alternativa
entre estatutos, funções que determinam o lugar do celebrante
na sociedade ao mesmo tempo que o do deus ou do gênio no
panteão. Assim a doença dada pelo rab introduz uma alterna­
tiva que necessariamente tem que ser destrinchada para que
cada ser encontre seu lugar na ordem das coisas e da socieda­
de: ou o indivíduo vai soçobrar sob o golpe de um poder
anônimo ou então será reintegrado na sociedade graças ao
pacto com o Gênio que se faz reconhecer através dele.
A religião animista, embora invocando e rogando a
Deus, não experimenta a necessidade de fazer dele o objeto
principal de seu culto. É que Deus é todo-poderoso, sua
vontade não propõe nenhuma alternativa do mesmo gênero.
134 ÉDIPO AFRICANO

Dir-lhe-ão: se é Deus que enviou esta doença ou que assim


quis, então não há nada a fazer. Só resta aceitar. Não existe a
idéia de que Deus possa estar ligado por um contrato que dê
poder sobre ele. Não há aqui nenhuma alternativa entre poder
desconhecido e poder controlável através de uma aliança.
Como as religiões do Livro (judaísmo, cristianismo, islamis-
mo) chegaram a fazer de Deus o objeto principal do culto?
Não seria porque conseguiram introduzir uma alternativa ra­
dical na nomeação de Deus ao lhe dar um caráter exclusivo:
Yahweh é seu nome e adorarás somente a ele? Ao se ligar por
uma aliança histórica, o Deus supremo a toma exclusiva: um
único caminho de salvação, um único Livro, uma única Pala­
vra (Torá, Evangélico, Alcorão). A partir de então fica esta­
belecida uma alternativa histórica e jurídica dando ao culto
sua razão de ser. O Deuteronômio, no momento da reforma
de Josias, arremata a centralização do culto em Jerusalém (um
único Templo) e funda a religião do liv ro introduzindo as
categorias jurídicas no louvor a Deus ( cf. as introduções e
conclusões paienéticas do Deuteronômio). O caráter fechado
do cânone dos livros inspirados é essencial ao monoteísmo
judaico, cristão e muçulmano.
Na religião da família e dos ancestrais na África, a alter­
nativa que funda o culto, situa-se num nível totalmente-outro.
Diferente do monoteísmo bíblico, o enoteísmo animista per­
manece místico.9 Deus continua fora de qualquer categoria
jurídica; é invocado no culto, mas o culto é a colocação em
prática de um “ saber” , de uma arte de manter os laços comu­
nitários entre os mortos e os vivos, os gênios e os homens. A
oposição fundamental no animismo é a do dominado e do in­
forme e não a do puro e do impuro (erótica anal) que pode­
mos ver surgir hoje em dia com o islamismo e o cristianismo.
A crença animista não é uma “fé” no sentido bíblico. O pro­

9. A. Hampaté Bí, “ Animisme en savane africaine” , in Les reügions afri


caines tradiúonneUes, Encontros internacionais de Bouaké, Paris, Le Seuil, 1965,
33-55.
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 135

blema da fé surge no momento em que se sai da sociedade


tribal. A fé é individualizante. E o é menos no islamismo do
que no cristianismo, pois o islamismo privilegia a fé do “pai
nobre” , do chefe de família: aos olhos de um animista consi-
cente, a fé seria destruidora do grupo. No âmbito da socieda­
de tribal, o sobrenatural é uma experiência inerente à vida so­
cial, inseparável do que se vive e do que se vê. A única ver-
daderia alternativa, consiste em integrar na sociedade o poder
misterioso que sem isto se tomaria fonte de desgarramento e
de loucura.
Os ritos de possessão são o inverso dos ritos apotropaicos
ou de exorcismo. No islamismo ou no cristianismo exorcisa-
se, expulsa-se o poder maligno que possuiu alguém. O rab
não é fundamentalmente mau; tem seu caráter, seus humores,
mas se atormenta alguém é porque o ama, é que quer habitar
esta pessoa. Atualmente, na clínica, a referência ao rab tem
uma dupla valência: uma é persecutória (o rab é exigente,
“guloso” ...), a outra convida a estreitar os laços com os as­
cendentes.10
O exame dos ritos de possessão nos ajuda a tomar cons­
ciência de um certo equívoco no que chamamos de “psicolo­
gia” . Nossa concepção atual da psicologia, ainda que fosse
experimental, continua dominada por uma concepção da indi­
vidualidade que encontrou sua expressão decisiva no século
XVm. Ao dizer que cada um tem sua psicologia, queremos di­
zer que cada um vive seu pequeno romance pessoal. Mas a psi­
cologia do romance não é universal, pelo menos ainda não.
A mais universal das psicologias é a da tragédia, aquela que
dá um nome a forças desconhecidas.
Não contestamos a importância das técnicas corporais nos
ritos de possessão. Se reagimos contra a excessiva importân­

10. No entanto, assim como encontramos atualmente representações sin-


cretistas onde o rab tende a se tomar djiné, existem ritos mistos que combinam a
expulsSo do espírito com a homenagem a um culto. Ver anexo II, p. 311: “ Um
rito para os súcubos” .
136 ÉDIPO AFRICANO
cia que se é tentado a atribuir ao seu lado espetacular é por­
que a estrutura essencial do samp e do lup é confirmada por
aquilo que veremos reaparecer na psicoterapia analítica.

Documento: A genealogia de um curandeiro.

Daouda Seck, um curandeiro lébou de Bargny, povoado


perto de Rufisque, chefe de uma confraria de curandeiras,
devido às boas relações que estabeleceu com a equipe do
hospital e que remontam a muitos anos, quis, de bom grado,
nos relatar sua genealogia, indicando para cada geração a
pessoa que havia sido possuída por Mbir, o tuur familiar.
Este documento permite sentir como o mundo dos rab é um
duplo do mundo humano. Um mito de instalação situa Mbir
como aquele que fixou a linhagem desde a geração mais re­
mota que a memória pode evocar.
Eis:
a) condensados em um, os dois relatos que Daouda Seck
nos fez, com indicação de uma variante.
b) sob a forma de quadro, a genealogia materna de Daou­
da Seck, onde Mbir está situado em cada geração, assim co­
mo às vezes um ou outro de seus filhos.

Primeira versão: O rab de minha família é Mbir. Mora em Thiaye.


Tem três filhos: Ndiogo Mai, Walli Ngor, e duas filhas: Nédo e Ndi-
bor.
Mbir é o mais gentil, tem um grande conhecimento e não pede
muita coisa. Ndiogo Mai e Ndibor sãb os mais gulosos, também os
mais malvados. Dão sempre doenças mentais, a pessoa se toma so­
bretudo agressiva. Eles não são tão importantes porque se tomam al­
guém é simplesmente para ter alguns sacrifícios, para não serem es­
quecidos, mas não é para trabalhar com a pessoa. Não têm tanto poder
mas podem ser usados em certa medida.
Nosso rab Mbir nunca dá doença mental mas apenas doenças fí­
sicas: barriga inchada, abortos, para os meninos braço direito e pé es­
querdo paralisados.
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 137

É necessário dizer que os filhos de Mbir estão sempre em volta


daquele que tem Mbir. Quando não há doença é porque está com sua
mãe Mbir. Quando a criança rab tomou alguém e esta pessoa morre,
sabemos depois que foi ao encontro de sua mãe Mbir.
Eu sei o que me disseram minha mãe e minha avó mas,- para con­
tar desde o começo da terra, não sei dizê-lo. Pelo que sei e pelo que
me disseram, meus avós, Nquedé Fali, Dioylou Fali e Mbaye Fali têm
o mesmo pai e a mesma mãe. Moravam na região de Diolof. A mãe
deles é Codou Guèye. Codou Guèye e Ndiaga Guèye têm o mesmo
pai e a mesma mãe.
Ndiaga Guèye, e irmão de Codou, era quem tinha o rab Mbir.
Quando Ndiaga morreu, sua irmã herdou o rab. De noite, Mbir vinha
ver Codou para lhe dizer o que aconteceria durante o ano, na região.
Quando Codou faleceu, agora seus três filhos sairam de Diolof junto
com Mbir para se fixarem em Cayor. Não ficaram muito tempo. Sai­
ram de Diolof para ir a Baol em Lagnar. Lá, Dioylou casou-se, seu
marido é Missane Marone. Algum tempo depois, Missane faleceu.
Então, devido a estes fatos, emigraram para Thiaye junto com Mbir,
perto de Diender.

Segunda versão da emigração: Meus ancestrais foram expulsos do


Diolof porque um ancestral havia matado um grande iguana: Ndiaga
Guèye saíra para caçar em Diolof, matou...não, não um grande igua­
na, mas uma bala perdida matou uma menina que tinha ido buscar ma­
deira. Ela era súdita do Buur ba Diolof (rei de Diolof).1' O Buur ba
Diolof confiscou seus bens, seus rebanhos, mas não tudo. Desconten­
tes, abandonaram Diolof.

Depois de duas versões se encontram. Em Thiaye ficaram três dias


sem água, sem beber nada. No segundo dia foram se postar sob a
sombra de um grande baobá. No terceiro dia viram um iguana descer
do alto da árvore mas seu rabo estava molhado. Vendo a água pingar
de seu rabo, disseram para si mesmos que havia água nesta árvore, ou
um demônio, ou gotas de água que vinham do céu; não sabiam, pensa­
vam em muitas coisas.
Ao meio-dia, sob o baobá, Mbir havia se transformado num
grande iguana. Para mostrar-lhes que havia água no baobá, mergu-1

11. O iguana seria um equivalente de filha do rei; haveria uma dívida em


relação ao rei cuja filha é morta.
138 ÉDIPO AFRICANO
lhou num grande buraco, saiu dele, agitou seu rabo, a água caiu sobre
eles, eles entenderam.
Quando o sol se pôs, de noite, por volta de duas ou três horas da
manhã, Dioylou sonhou com o rab. Ele diz que este é um belo lugar,
que é preciso ficar aqui, tudo será próspero inclusive os rebanhos; vo­
cês terão a riqueza. Há água nesta árvore, há um grande buraco no
topo, é lá que se encontra a água, poderão pegar um pouco.
Não há povoado, foram eles que começaram Thiaye. Foram
prósperos, nada faltou. No dia seguinte alguém subiu na árvore com
uma pequena cabaça para pegar água. 12
Quando Dioylou faleceu, Mbir esteva com Mbaye Fali. Quando
Mbaye Fali faleceu, esteve com Guedé Fali. Mbaye teve filhos, Dio­
ylou tem apenas uma filha: Penda Marone; Guedé Fali não tem filhos;
Penda teve muitos filhos, é o lado materno que herdou. Quando Penda
Marone faleceu, Mbir esteve com Ndabou Ndiaye Sumbar. Quando
Ndabou Ndiaye Sumbar faleceu, esteve com sua irmã Ndiakher Ndia­
ye Sumbar. Yali Ndiogou, sua irmã, morreu rápido demais para her­
dar. Depois esteve com Nar Ciss e Diakher Ciss que têm mesmo pai e
mesma mãe. Depois com a filha de Diakher Ciss: Codou Diouf. De­
pois com a filha de Codou Diouf: Mbayen Thiam. Mbayen Thiam teve
três filhos: Sokhna Gadiaga, Samba Marame Gadiaga e Batour Ndia­
ye. Mbirm esteve com Sokhna Gadiaga, depois com Samba Marame
Gadiaga, depois com Batour Ndiaye. De Batour Ndiaye foi para
Ndiama Yali, minha mãe. Herdei de Mbir porque minha irmã ainda
era pequena, 10-11 anos, quando minha mãe morreu. Depois de mim
irá para minha irmã Marame Seck, depois para minha irmã Fatou
Seck, depois para a filha de Fatou Seck: Marème Diop.
Daouda Seck também nos explica: “ Quando o rab sente que o
fim da mulher (que ele possui) está próximo, vai procurar um outro
suporte; se este suporte não o suporta; ele o mata e retoma. Assim, ao
sair de Ndiama Yali, Mbir esteve com Mbengué Guèye que ficou es­
téril e cega, depois com Aíssatou Ndiaye que morreu, escolheu então
Daouda Seck e sua mãe faleceu.”

COMENTÁRIO: Observar-se-á que no período mais antigo,


Codou, que é a primeira eleita de Mbir, aparece como um12

12. Este é um mito de fundação de povoado com os elementos habituai


árvore sagrada, água, animal.
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 139
adivinho que anuncia para toda a região o que acontecerá du­
rante o ano. Podemos ver aí uma alusão a um rito de adivi­
nhação anual, ainda praticado entre os serer. No decorrer de
uma reunião pública, os adivinhos faziam suas previsões para
o ano e aqueles cujas profecias se realizavam viam aumentar
seu prestígio. Trata-se aí, na origem, de uma função pública
de adivinhação concernente à fecundidade das colheitas e à
prosperidade do grupo. No relato do curandeiro nada indica
positivamente que na época de Codou (10 gerações atrás)
houvesse ndôp. Esta indicação é confirmada pelo fato de que
a história de Mbir comporta um rito de fundação de povoado,
.enquanto que os ritos de possessão tal como praticados hoje
têm um caráter congregacional. Este documento coloca a
questão de saber se as danças de possessão com fim terapêu­
tico, sob sua forma atual, existiam antes do século XVIII. É
uma questão para os historiadores.
Sobre a questão de saber como se manifesta seu tuur
Mbir, Daouda Seck responde:

Primeiro o sentimos no próprio corpo, o corpo é tomado de arre­


pios, fica gelado até o coração. É somente de dia, a gente vê uma es­
pécie de sombra, nunca uma pessoa, como se fosse a nossa própria
sombra que está a certa distância de nós e que fala conosco em termos
compreensíveis. Porque, quando ele fala com você, tem-se a impres­
são de escutar uma voz conhecida sem conseguir identificá-la bem.
Aquilo que a gente quer saber, ele diz claramente: é isto, isso e aqui­
lo... Geralmente, não aparece sob uma forma animal, mas pode apare­
cer sob uma forma animal para aquele a quem quer prejudicar, como
uma cobra ou outra coisa. Mas como ele é domesticado pelos bakk
(cantos) adequados, aparece apenas sob a forma de sombra humana.

As últimas frases levantam uma dificuldade. Não se en­


tende muito bem por que Daouda Seck opõe a forma animal à
forma humana, pois é bastante comum ver o rab visitar seu
xamb sob a forma de uma cobra. Originalmente, o próprio
Mbir se manifestou como um iguana. Deveriamos compreen­
der que certas modalidades do culto tradicional, caídas em
desuso, seriam hoje depreciadas no meio de Daouda Seck?
140 ÉDIPO AFRICANO

Ou será que expressou seus pensamentos de forma incomple­


ta? Talvez a imagem do duplo se torne cada vez mais angus­
tiante na medida em que se tome mais estranha, mais distante
de sua forma humana. De qualquer maneira, a descrição da
relação entre o corpo e sua sombra é notável. Podemos apro­
ximar este dado do fato de que a dança de possessão permite
regredir sem culpa a uma imagem despedaçada do corpo pró­
prio. Daouda Seck parece nos indicar a matéria prima que
o ndõp tem por função elaborar simbolicamente. Notamos
também a dificuldade de identificar a voz. Talvez o problema
resida nestes dois extremos: o despedaçamento da imagem
corporal e a identificação simbólica do ser que faz ouvir a
voz do desejo: é isto, isso e aquilo... “como se fosse a nossa
própria sombra que está a certa distância de nós e que fala
conosco em termos compreensíveis” .
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 141

9 2 CODOU GUEYE eseuoai N D IA G A G U E Y E 3

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4 M BAYEFALL 5 G U ED E FA LL 3 D IO Y L O U F A L L = M B IS S A N E M A R O N E

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9 f a le c id a $ 9 9 ■ s 9

1 0 N A R C I S S - P e s s o a s p o s s u íd a s p o r M B I R .

: 2 3 : M A R I E M E D I O P - P e s s o a s q u e s e p r e v ê se rflo p o s s u íd a s p o r M B I R .

FIGURA 1 - Genealogia de um curandeiro libou.


142 ÉDIPO AFRICANO

2. A PSICOTERAPIA DE UMA CRIANÇA SERER

CASO 27: Talla F ., 14 anos, serer, muçulmano


Talla é uma criança serer que sempre viveu no Sine-Sa-
loum, mas que pertence a um meio islamisado e “wolofisa-
do” 13 embora ainda bastante tradicional. O islamismo é prati­
cado nesta família como religião oficial. O culto dos .rab fa­
miliares vai se diluindo. Este desligamento parece recente
pois um antepassado da criança (seu bisavô) era célebre em
toda a região pelos seus poderes um tio-avô da criança, her­
deiro do antepassado, é curandeiro.
Talla foi hospitalizado a 4 de março de 1963 por causa de
crises caracterizadas por visões estranhas, com obnubilação,
perda de consciência e queda. As crises vêm seguidas de cho­
ros e tremores. No momento da hospitalização ocorriam com
uma frequência de 3 ou 4 vezes ao dia.
Talla foi posto sob observação para confirmar, como se
pensava num primeiro contato, um diagnóstico de epilepsia.
O estado geral era satisfatório, os exames neurológicos nor­
mais. O traçado do E.E.G. estava um pouco perturbado mas
não característico. A hipótese de crises epilépticas foi paula-
tinamente abandonada e substituída pela de perturbações his­
téricas.
Talla vem acompanhado de sua mãe de 30 anos. Esta se
casou com 14 anos, única esposa de um marido que ela não
amava e que sempre a descuidou no que diz respeito à ali­
mentação e vestimentas. Depois de alguns anos (não sabemos
quantos), o pai abandonou mulher e filhos e não se preocu­
pou mais com eles; são os tios matemos de Talla que susten­
tam a família. Ele dirá, falando de seu pai: “Ele não é bom
para mim; quase diz que não quer filhos quando eu era pe­
queno. Não me dá roupa (boubous). Não é bom. Tem três fi­

13. Assim, ele utiliza o termo wolof de rab e não o termo serer de pangol
quando nos fala em francês.
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 143

lhos que deixou com minha mãe.” A mãe de Talla sempre vi­
veu com seus pais. Tem uma filha de 15 anos, Talla e um
menino de 7 anos.
Não há nada particular na infância de Talla que hoje é
um belo menino de rosto inteligente, expressivo, curioso. To­
dos gostam dele.
Repetiu o ano do certificado de estudos, tendo estado
doente na última primavera. É um aluno muito bom, anima
sua classe, é a esperança de seu professor. Entrará no 6-.
Quer seguir os passos de dois tios matemos que fazem estu­
dos secundários e técnicos.
Não há antecedentes familiares psicopatológicos conhe­
cidos.
A doença de Talla começou em maio de 1962. De maio a
agosto, diz ter tido uma crise toda quinta e sexta-feira. O re­
lato deste primeiro episódio da doença é comentado como
tendo sido muito desagradável mas apenas “para a escola” e,
com efeito, Talla não pôde prestar o certificado de estudos
em 1962.
Em fevereiro de 1963 as perturbações recomeçam. Per­
turbações do humor primeiro: Talla chora, canta, fala com
pessoas que diz ver. Depois voltam as crises na cadência de
três ou quatro por dia. E hospitalizado no dia 4 de março.
Teme por seus estudos.
As crises nos foram descritas pela própria criança, pela
sua mãe e pelo seu tio materno. Eis o que escreve o tio:
“ Segundo o garoto, as crises aconteceram depois de ter,
em pleno dia, visto, como se fosse uma visão, um ser extraor­
dinário, poderiamos dizer um anjo, pois segundo ele tinha
uma forma colossal, tamanho grande, massivo e com asas. Ao
ver este Ser o garoto ia gritar, pois estava na aula; mas, ainda
de acordo com ele, o gênio lhe fez um sinal para se calar.
Então, ofereceu-lhe uma folha virgem14 mas a criança não

14. Sublinhado por nós.


144 ÉDIPO AFRICANO

aceitou este tipo de presente, chegou mesmo a rejeitar a fo­


lha. Tudo isto aconteceu sem que o professor e os outros alu­
nos se dessem conta. Frente à recusa do garoto, o Ser partiu,
deixando a criança pasma e sonhadora. Pouco tempo depois
aconteceram as crises. O curioso é que quando iam acontecer
as crises, ele mesmo as sentia e inclusive podia prever o mo­
mento. Assistí a muitas destas crises. Ao se aproximar a crise,
a criança perdia de certa forma o controle: tinha uip aspecto
perdido, assustado, como que buscando proteção: seu olhar
ficava fixo até o momento em que ficava prostrado,- incons­
ciente e como que desmaiado. Isto durava por volta de quinze
minutos. As vezes o fato se repetia duas ou três vezes na
mesma hora. Durante este tempo ficava encolhido, com os
olhos fechados. Quando retomava a consciência, começava a
chorar e olhava à sua volta como que procurando algo queri­
do. Olhava suas mãos várias vezes. E quando lhe perguntá-
vamos o que tinha acontecido respondia vagamente que não
sabia. As crises só aconteciam quando estava protegido; de
maneira geral, assim que sentia a aproximação das crises, cor­
ria em busca de um refúgio.”
Sobre a primeira crise, a mãe diz: “Foi o vento que o en­
controu quando saía da escola. Gritava, caiu.” Aqui “ vento”
equivale à manifestação de um espírito.
Talla diz: “Na escola, vi um serer que me deu um papel.
Parecia um plano. Um papel branco.”
No seu relato, o tio emprega a palavra “ anjo” como os
europeus. Trata-se, na verdade, de um rab como veremos
pelo que se segue.
O rab ofereceu à criança um, papel branco, uma folha
virgem sobre a qual nada está escrito. O papel branco é ofe­
recido como um presente, um dom feito pelo Ser misterioso.
Aliás, o branco é a cor das oferendas: “ Na nossa família, diz
Talla, se você segura leite ou tudo o que é branco, arroz,
açúcar, papel branco para os marabutos, isso cai, e você não
sabe por quê. É preciso derramar algumas gotas de tudo que é
branco no chão.”
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 145

O gesto que consiste em oferecer algo a alguém é uma


maneira de propor um pacto; aceitar é contrair um vínculo.
Como se vê na história das religiões, este gesto pode ter dois
sentidos: o da tentação (a serpente oferece a maçã a Eva, o
diabo oferece a fortuna para aquele que quer seduzir...), ou o
de inaugurar a vocação de um profeta ou de um inspirado.
Encontramos freqüentemente este tema nas fantasias ou vi­
sões consideradas como origem das perturbações mentais pe­
los doentes africanos.
O presente proposto a Talla é inquietante; não se sabe nem
quem o oferece, nem a que compromete. Devido ao fato do
dom ser proposto por um Ser sobrenatural, misterioso, desco­
nhecido, transforma-se numa tentação de sair da ordem humana
ou pelo menos do sistema social ao qual o sujeito pertence.

Eis a série de entrevistas que tivemos com Talla.


8 de março de 1963 - Na primeira entrevista, Talla descreve
uma visão e a desenha:
“É uma senhora com uma faca, uma senhora branca com algo na
cabeça; não se vêem os olhos, nem o nariz nem a boca. Ela tem asas
para voar. Voava como um pássaro mas mais rápido.”
“O outro é um homem, não tem braço, como braços quebrados.
Quase são os mesmos, é o irmão (e a irmã).”
“Pareciam um pouco zangados.”
“Ela me metia medo, assim com a faca. Dizia ao seu irmão que
chamasse pessoas com ele.”
“O homem não parece um ser humano. Me produzia chagas ao
me tocar, com a mão. Quando me toca vai embora para o norte, na
noite me faz cair e vai para o sul. Tenho muito medo, choro, e minha
mãe chora e meus irmãos. Mas quando a senhora vai dizer que me
matem, ela diz à senhora que me perdoe.”

Esta primeira visão coloca em cena dois personagens


desconhecidos que parecem para a criança estranhos, não
humanos. As fantasias pessoais de Talla misturam-se com as
imagens tradicionais dos mb: seres semi-humanos, semi-ani-
mais, animais meio voláteis, meio aquáticos. Os rab às vezes
são de cor branca, às vezes anões, as vezes muito altos.
146 ÉDIPO AFRICANO
Os personagens são “o irmão e a irmã” .15 A senhora
branca com sua faca é um personagem fálico. O homem com
os braços quebrados está castrado. A senhora branca pássaro
quer matar a criança; o homem lhe causa chagas mas o defen­
de da senhora branca (ficamos sabendo depois que se trata de
um homem muito baixo).
Talla também relata um sonho: “ A senhora me faz sonhar
que eu digo à minha mãe que faça caridade para o marabuto
sexta-feira à noite.”

FIGURA 2 - A senhora branca e o pequeno homem


15. Não poderiamos ler a exposição deste caso como uma resposta ao pro­
blema levantado por Malinowski? Compreenderiamos então “a irmã e o irmão”
como a mãe e o tio materno. Veremos que, com efeito, trata-se de rab perten­
cente à família materna.
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 147
15 de março de 1963 - Na entrevista seguinte, Talla diz que
teve cinco crises. Ele cai, diz ele, quando a sombra da senho­
ra branca o toca. Neste momento toda sua pele treme, a pele
do tronco, não a dos membros; fecha os olhos, cai.

“A senhora branca fala rápido, nem francês, nem inglês, nem


wolof, não como um ser humano.”
[A senhora branca é poderosa pela sua sombra (equivalente da
faca), mas falta-lhe a palavra inteligível.]
Pergunto, então a Talla;
- Existem rab na sua família?
—Sim, o pai de minha avó materna.
“O antepassado tinha muita idéia para dar medicamentos; cuidava
dos loucos; atendia pessoas; quando via, sob um tamarindo, um djiné,
dizia: ‘Olhem este djiné que me dá a mão.’ Via seres que não são deste
mundo.
Diagan Tiaré tinha seu nome conhecido em todo o Senegal, em
todo o Sine, como Leopoldo Sédar Senghor. Em todo o Sine te dizem
<Jue ele era muito forte. Adora-se inclusive seus filhos. Todos que os
vêem lhes dão algo.”

A pergunta feita pelo terapeuta incentiva uma ligação entre


as fantasias de Talla e os rab familiares. A resposta vincula os
rab ao avô morto, ao ancestral materno. Sobre o fundo das
potências anônimas destaca-se um primeiro nome, Diagan Tia-
ré, o nome do antepassado, do pai morto, que dominava os po­
deres da sombra.

16 de março de 1963 - Na sessão do dia seguinte o tema fa­


miliar passa ao primeiro plano; Talla conta a história de uma
mulher:

“É uma mulher serer na frente de sua casa que móe grãos, vesti­
da com um corpete violeta e uma tanga verde. A casa é muito grande
com uma porta baixa. Está pensando na refeição, no feixe de gravetos
que vai transportar, o que vai levar para seu marido no campo. O pi­
lão está cheio de grãos que se espalham pelo chão.
Está triste por causa do trabalho duro e porque não tem filhos. É
148 ÉDIPO AFRICANO
jovem. Pensa que quando seu marido morrer, não há nenhuma criança
que fique com a casa e com o dinheiro que o pai deixará, não há crian­
ça para pegar isto.”

Talla associa com uma vizinha cujo marido bate nela e a


deixa sem dinheiro.
Encontramos aqui o tema da mulher. A posição desta
mulher está marcada pelo que lhe falta: sem filhos para her­
darem do pai quando este morrer. A senhora branca possuía a
“coisa” , a imagem fálica significando a falta do objeto enun-
ciável, reconhecível; mas a respeito da mulher serer é enun­
ciado o que falta, a possibilidade da herança.

FIGURA 3 -A mulher sem filhos


A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 149

É importante notar que o simbolismo da castração (o pro­


blema do ter/não ter) é expresso através da idéia da herança.
Veremos nas sessões seguintes como se desenvolve longa­
mente o tema da herança. Herdar do pai é tomar o lugar do
pai. Trata-se, portanto, do problema edípico. Mas para tomar
o lugar do pai seria necessário enfrentá-lo em fantasia numa
luta mortal? Ou então, herdar consistiría em tomar o lugar de
um pai já morto? Como se expressará a culpa edípica?

18 de março de 1963 - Neste dia, Talla conta a história de


um mendigo que mora no mato, numa cabana sem porta. To­
dos os dias vai de um povoado a outro pedir esmola. Todos
os dias volta carregando sobre a cabeça um feixe de gravetos
e “ sua caridade’’ (as esmolas que recebeu). Não tem filhos,
nem mulher.
Quando lhe perguntam como se tomou mendigo, ele respon­
de:

Tomou-se mendigo com a morte de seu pai. Era jovem mas não
trabalhava. Seu pai lhe deixou campos. Vendeu os campos para se
alimentar mas o dinheiro acabou. Não tem filhos, nem mulher e a po­
breza começa. É raro encontrar um trabalho. Não é instruído; ficará
assim para sempre esperando o destino próximo que o espera, o de­
sígnio de Deus.
Seu pai lhe havia dito que guardasse os campos, como dissera La
Fontaine: “ Guarde a herança!”

O mendigo solitário não soube guardar a herança do pai


morto. Está sem eira nem beira, sem mulher, sem filhos, ten­
do vendido sua terra, condenado “a ficar assim para sempre,
a esperar o destino próximo que o espera” .
Eis que uma outra fantasia precipita uma solução para o
problema da morte do pai; é a fantasia de um ancião sob a ár­
vore de conversas, a árvore do povoado. O ancião fala com
as crianças, com os jovens; fala-lhes do que era “antes da
morte de seu pai”
150 . ÉDIPO AFRICANO
“É nosso povoado natal, diz Talla, um velho dorme sob uma
grande árvore; pensa em rezar, em contar histórias para as crianças,
em contar para os jovens o trabalho que fazia antes da morte de seu
pai.’

E, associando, Talla evoca lembranças de infância, os


riachos, a floresta. Diz: “ É o povoado materno... contaram-
me sobre a família de minha mãe, não de meu pai” , e em se­
guida faz um lapso: evoca neste povoado seu avô paterno e
seu bisavô paterno.
. Depois diz que Diagan foi o primeiro a habitar este po­
voado onde todos os anos se homenageia seu túmulo; faz de
Diagan um fundador de cidade: “ Diagan foi o primeiro ho­
mem que morou em M ...” .
E, portanto, por meio de uma lapso que o ancestral passa
da linhagem materna para a linhagem paterna. O que é ele de
fato? É Diagan ancestral paterno ou materno? Talvez os dois,
pois ficamos sabendo também que o avô materno e a avó pa­
terna de Talla têm a mesma mãe (o que combinaria uma des­
cendência direta com uma descendência através do tio mater­
no).
Recapitulemos: Diagan Tiaré foi nomeado duas vezes.
Numa primeira vez como depositário dos rab da família, nu­
ma segunda vez como fundador do povoado. Entre as duas
nomeações, Talla constrói a representação inteira de seu
problema: a mulher abandonada sem herdeiro para o marido,
o mendigo sem herança, por fim, o ancião ao pé da grande
árvore que fala com as crianças sobre o que era antes da
morte do pai. Este ancião sob a árvore, que tem a palavra e a
herança, evoca novamente Diagan Tiaré. Eis, portanto, tudo o
que simboliza a nomeação do ancestral. Depois Talla enca­
deia:
Informa-me, no fim de uma entrevista, que o tuur de Dia­
gan é Lasmon, é um baobá com água em volta. “Talvez eu
deva me lavar nesta água?” , pergunta-se Talla.
A nomeação do rab vai marcar uma virada decisiva. O
tratamento de Talla parece seguir uma evolução comparável
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 151
ao que dissemos sobre o samp. A pergunta: “Talvez eu deva
me lavar nesta água?’’ parece querer dizer: será disto, deste
negócio dos ancestrais, que se trata minha doença?

20 de março de 1963 - Na entrevista seguinte Talla conta um


sonho:

“ Vi um homem vestido com uma camisa branca e uma calça bu-


fante, com a cabeça raspada. Sua profissão é de boxeador. É rico mas
malvado; mete medo nas crianças. Sua casa é limpa, bem varrida. An­
da descalço. O braço esquerdo é maior do que o braço direito. O nariz
é um pouco longo.” *®
“Eu estava num quarto tão escuro! Ele me dissera para ir com ele
ao seu quarto e recusei porque tinha medo, ele não se parece com al­
guém que eu conheça. Mostrou-me seu filho, uma menina cuja cor
não se sabe, mas ela estava vestida com um vestido todo rosa. Tinha
mais ou menos dez anos. Ele me disse: ‘Quem te trouxe aqui?’ Eu
disse: ‘Minha mãe.’ Tinha medo como nos sonhos desprezíveis.”
Talla conheceu um homem como este: “ Parece um boxeador mas
não luta boxe, tem um braço maior que o outro, era um aluno grande,
metia medo nos pequenos... os pequenos da escola diziam: ‘É preciso
matá-lo’; eu também pensava isto.”

Trata-se, portanto, de uma imagem de força viril e com­


bativa, atraente e perigosa, de um boxeador. Tem a cabeça
raspada como o pequeno homem da primeira visão. Talla tem
medo; terá que ir ainda mais longe no medo? O convite para
entrar no quarto escuro é recusado assim como o fora a ofe­
renda de mensagem em branco. Tratar-se-ia de lutar com o
pai? Ficamos sabendo, então, que o boxeador é um aluno
grande “um irmão maior” ; os pequenos diziam: “ É preciso
matá-lo” . A fantasia de assassinato desloca-se para a figura
viril de um colega de escola.
O homem do sonho mostra seu filho: uma filha de rab.
Ela cantava uma canção: “Era uma gentileza para mim”, diz16

16. Nariz e cabeleira compridos fazem parte da imagem habitual dos rab.
O pequeno homem tem o nariz comprido mas a cabeça raspada.
152 ÉDIPO AFRICANO
Talla, que se lembra que, desde fevereiro, nas suas crises
graves, escutava os rab cantando. O que cantavam? - “ Você
é o amigo, Talla, é o amigo de Lasmon.”
Pergunto-lhe se pode falar de Lasmon:

“Lasmon é um amiguinho para mim. Disse-me o nome das pes­


soas que pegaram meu coração e que disseram aos rab que o guar­
dassem.” Seguem-se explicações sobre três pessoas: uma velha bruxa
antropófaga da vizinhança; uma moça que mora numa casa branca e
que ria no dia da morte do diretor da escola; por fim, um garoto que
não conhece. Depois Talla continua:
“Lasmon me mandou dizer uma caridade para meu avô: ir ao
mar, quebrar um ovo onde as ondas chegam. No meio de círculo que
faço na areia, quebro a gema. Depois estendi a mão, Lasmon me deu
um bastão. Para mim era um remédio. No mês passado lavei-me com
ele. Mandou-me cortá-lo em três e fazer amuletos... Não é Lasmon
que faz a minha doença, são os outros rab. Só conheço Lasmon desde
o mês passado.”

Notar-se-á que Lasmon, este novo personagem, é o pri­


meiro de quem Talla aceita algo. Lasmon lhe deu o bastão,
o garap17 a raiz da fecundidade. Se se coloca este bastão sob
o seu nariz durante uma crise, a crise cessa imediatamente,
tão grave quanto seja.

22 de março de 1963 - Talla dá uma representação gráfica de


Lasmon e o descreve:

“ Sua cabeça está coberta de pêlos até o pescoço. Não sei qual
a sua cor.
Quando aparece, aparece como um pássaro. Mora na água.
É jovem; usa uma camisa curta, branca e uma calça branca. Seus
braços são cobertos de pêlos. A perna esquerda é mais curta, não da

17. Em wolof, garap significa árvore ou planta em geral e também ma­


deira ou raiz utilizadas como “ medicamentos” .
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 153
mesma grossura. A perna direita é grossa mas acaba como um sapato,
embora ele não use sapatos.
Quando aparece não se vê nada além de uma espécie de pássaro.
Não se vê sua cabèça nem suas pernas, nem seus braços.
Quando aparece na nossa frente, você tem medo pela sua força;
mas ele é curto, não tem o tamanho de uma pessoa humana (30 cm). De
tempos em tempos é um ancião, outras vezes uma criança.
“ Não é malvado, em mim não mete medo.”

Vemos como Lasmon reúne as características do pequeno


homem, do homem do sonho e da imagem tradicional dos
rab: como o pequeno homem é curto, está vestido como o
homem do sonho, assim como ele é enfermo de um membro
e, no entanto, forte, e como os rab mora na água e aparece
como um pássaro (o desenho dá as duas representações de
Lasmon-humano e Lasmon-pássaro).

FIGURA 4 - Lasmon

No fim da sessão, Talla diz que teve uma crise muito


forte:

“Cantei, chorei, Lasmon não veio ontem...me atacaram, sempre


os mesmos, a mulher e o outro menino, fizeram-me uma crise, cantei
a canção de Lasmon, chorei.”
/

154 ÉDIPO AFRICANÓ


“Numa casa dizem-me um monte de coisas. No hospital eles não
falam comigo, é raro porque têm medo dos brancos. Se vou para casa
falam comigo, falam comigo. Se saio de licença falam comigo, falam
comigo, falam comigo, falam comigo.
- Você gostaria de escutá-los?
- Sim, para te dizer isto, vocês poderíam tratar-me melhor.”

25 de março de 1963 - Talla saiu do hospital para uma licen­


ça de dois dias. Na volta diz:

“Vi Lasmon como vejo você.” Lasmon lhe diz que estaria quase
curado se comesse arroz preparado segundo a receita que indicava
e se se banhasse numa água. Minha mãe diz: “Quando as crianças têm
rab é preciso que se banhem na água onde o avô se banhava.” Minha
mãe conhece o lugar, é um grande tamarindo.
(Depois) “Lasmon jurou do fundo dos antepassados que se você
fizer o rito, não terá mais crises. Depois estendeu a mão e me disse:
“Pegue!” Estendi a mão, pôs um papel dobrado na minha mão; depois
desapareceu.”

Eis, portanto, que reaparece a mensagem em branco.


Mas, desta vez, Talla pode aceitá-la pois vem do fundo dos
ancestrais e lhe é dada pelo tuur Lasmon.
Parece que há aí um momento decisivo: porque Talla sa­
be agora de onde vem a mensagem, de onde vem a proposta
que lhe é feita, pode aceitar, sabe que ela vem do fundo dos
ancestrais. Entendemos também que as crises de Talla eram
uma maneira dele mesmo se sentir questionado, de não mais
saber quem é, já que o pacto simbólico ainda era para ele in­
certo, enigmático, assim como o era seu vínculo com seu pai.
Em contrapartida, a senhora branca continua sendo um
personagem perigoso: veio sozinha do Oeste fazer uma crise
em Talla, depois partiu novamente para o Norte. Vemos que
se Talla começou a se reconciliar com a imagem masculina do
pequeno homem e do homem do sonho na pessoa de Lasmon,
o mesmo não acontece com a figura feminina.
Neste dia, Talla recrimina sua mãe por não levá-lo ao td-
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 155

mulo do ancestral no povoado de sua infância mas confiá-lo


aos brancos que não são de sua raça:

“Tem crises que os médicos podem tratar, tem crises que eles
aprenderam. Tem crises que não podem tratar. Antes de ir ver os
franceses, é preciso ir à sua raça. Você vai para a sua raça quando tem
crises. Os negros têm mais crises. Para mim os rab dizem a data e é
isto que me mete medo. Na hora marcada, você cai, pensam que está
morrendo. É verdade, você perde a visão, se deita, não mexe a cabeça

Há um tio da mesma família do ancestral que diz que poderei


tratar disto, e justamente neste dia me levaram para Dakar. Deve-se
primeiro procurar a família, fazer oferendas, matar um frango branco.
Eles (sua mãe e seus avós matemos) ficaram de braços cruzados! Os
pequenos marabutos não sabem nada. É preciso ir ao fundo de sua
família. Fui eu quem pedi ao diretor da escola papel para o doutor.
Minha mãe ia somente num pequeno marabuto, mas ela não têm idéia.
Se Deus diz que vou morrer, os rab partirão. Mas quando outras
crianças nascerem e crescerem, os rab podem voltar para abraçar a
criança e assim isto continua para sempre.
O antepassado fundou uma família. Sua família está dispersa pelo
mundo. Isto começa a nascer do fundo do antepassado.
Sou o mais velho da família, meu irmão não pensa em trabalhar;
podería ajudá-lo, devo estudar; já faz um mês que não vou à escola.
Vou perder estudos, quero estudar, quero voltar. Quero ir ao povoado
de meu avô. Quando você é o mais velho deve sustentar a família.
Você precisa cuidar quando é o mais velho. Quando estiver curado,
posso cuidar de minha mãe, de minha avó, de minha irmã mais velha,
posso passar para o 62.”

Vemos aqui todas as implicações do recebimento da men­


sagem: por um lado é ele, Talla, quem pediu o papel para ir
ao médico, mas, por outro lado, quer que a cura venha do
fundo dos ancestrais porque seu problema é justamente o de
se ligar novamente ao seu pai ao mesmo tempo que aos an­
cestrais. Tratava-se de possibilitar que Talla efetuasse simbo­
licamente sua vinculação aos ancestrais através do diálogo
com o “doutor” francês. Era preciso que na sua relação com
o terapeuta Talla se sentisse reconhecido, aceito no seu de-
156 ÉD1PO AFRICANO

sejo de se definir através de seu vínculo com os ancestrais e,


por meio deles, com seu pai.
Veremos ainda como esta sessão foi a virada decisiva. No
fim da sessão, antes de sair definitivamente do hospital, já
que isto foi decidido, Talla explica que:
- Yasmon é o rab do antepassado.
- Que Lasmon é a mesma coisa, ou seja, que o tuur do
antepassado é seu tuur.
Além disto dá o nome de Safout que é um rab da raça de
sua mãe.
A nomeação dos rab faz aparecer nitidamente o parale­
lismo entre a evolução da psicoterapia e a dos tratamentos
tradicionais.

Alguns dias mais tarde, a 29 de março, da sua casa, Talla nos


escreve:
“Lasmon me aconselha... Safout é um rab do antepassado” (pa­
rece, portanto, que Safout vincula-se ao bisavô por intermédio da li­
nhagem materna).
“O antepassado, diz ele, cuidava dos loucos...; quando passeava
via apenas rab, diabos que lhe estendiam a mão com seus numerosos
filhos de cabelos longos até o pescoço. Seu escravo não via nada e ti­
nha medo. O antepassado defendia e caçava os rab malvados que
apareciam para a família. Os rab tinham lhe dado riqueza e poder; não
lhe provocavam crises.”

Na sua carta, Talla faz uma descrição da morada de Las­


mon: a casa fica na água, com uma palmeira, um tamarindo,
vasilhas de barro; com uma delas Lasmon lhe dá de beber.
Em toda a volta havia grama verde, pássaros que planavam
sobre as vasilhas de barro, havia serpentes e Talla sentiu um
cheiro agradável.

24 de abril de 1965 - Um mês depois, Talla retoma com sua


mãe respondendo a uma convocação. Trazem frangos “de
presente” . Melhorou muito, teve apenas quatro crises breves.
Eis o que diz sobre elas:
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 157

“Quando os rab querem me levar para seu país, provocam crises


em mim, despejam algumas gotas na minha cara... não sinto muito,
não tenho medo, tremo mas não sinto nada; isto dura um ou dois ou
quatro minutos. Me dão idéias, não sei quais. Agora os três são meus
amigos (Yasmon, Lasmon, Safout). Vêm de vez em quando me dizer
para eu desconfiar deste ou daquele..., de C., disseram que é um an­
tropófago, é verdade.”

Um de seus tios matemos pegou para ele, do túmulo do


ancestral, areia e folhas da árvore. Com a água onde as folhas
foram maceradas, Talla se banhou.
Progressivamente, como por ocasião da sessão preceden­
te, Talla se excita ao falar e seu tom se toma muito rápido, o
que não é comum; continua:

“Quando você vê algum rab que você nunca viu por ser jovem,
isto provoca crises; levam- te para o país deles, você o vê num piscar
de olhos e volta.
O avô foi atacado pelos rab quando era grande, ele não tinha me­
do: via-os tranqüilamente, falava com eles. O coração de um adulto e
de uma criança não são iguais. Eles não atacam os filhos do antepas­
sado mas seus sobrinhos. Atacarão meus sobrinhos... Ainda não vão
me deixar. Se eu tivesse o coração fechado como um homem adulto
não teria medo, não teria crises. Disseram-me que haVeria ainda três
crises e que depois delas eu comprasse uma cabra.”

FIGURA 5 - A casa de Lasmon


158 ÉDIPO AFRICANO
Vimos que para procurar seu pai18 Talla dispõe apenas
dos dados fornecidos por sua linhagem materna. E por isto
que agora o vemos efetuar uma permutação entre o bastão de
Lasmon, símbolo masculino, e a cabaça, símbolo feminino.
Nos diz:

“O bastão que eu tinha 6 uma cabaça, tem a forma de um bastão,


é uma cabaça. Se digo que é um bastão aqueles que não cuidam da sua
língua vão dizer que é um bastão, que todos os homens e mulheres
podem ter um bastão. Então digo: tenho uma cabaça dos rab.”

A evolução das fantasias de Talla durante a psicoterapia


utilizou constantemente um jogo de permutações para tentar
restabelecer um quebra-cabeças do qual não se tinha todas as
peças no começo. Veremos que, agora, são os nomes dos tuur
que lhe permitem reconstituir simbolicamente a totalidade do
quebra-cabeça familiar, e, consequentemente, também sua
própria integridade. Talla nos explica:
“Os rab mudam de nome:
Safout é o rab do ancestral,
Safoulen é o nome de Safout que aparece para mim (e
como dissemos, que vem pela linha materna).
Lasmon é o rab da família de meu pai, vem de Yasmon.”
Assim, através de uma série de permutações simbólicas,
Talla consegue marcar o lugar do pai. E depois de ter marca­
do o lugar de seu pai, inverte o movimento: enquanto que na
verdade era a linhagem materna que lhe escondia a linhagem
paterna, no mundo dos rab era o inverso; encontra sua mãe
escondida sob o rab da linhagem paterna:

“É Lasmon que trouxe Safout Safout estava no negócio,19 mas


se escondia. Eu não o via. Via somente Lasmon. Depois ele apareceu

18. A procura 6 simbólica. No mesmo dia Talla nos diz que reviu seu pai
recentemente.
19. “ O negócio” , expressão corrente para designar o xamb ou altar do
Culto dos rab.
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 159
(Talla indica o gesto de Lasmon: mãos juntas em forma de cálice, co­
mo um gesto de oferenda), e me disse: apareço para vocé por parte do
antepassado. Safout partiu de meu avô falecido com todos seus po­
deres. A senhora branca era talvez Safout que se escondia.”

Assim, todas as peças do quebra-cabeça parecem se en­


caixar. Talla pensa que agora, da mesma forma que o ante­
passado, quando passear e encontrar os rab que vivem sob
um tamarindo, estes lhe apertarão a mão. Conta que o bisavô
materno tinha uma cabaça dos rab, mas que ao morrer quei­
maram sua casa de maneira que ninguém nunca encontrou a
cabaça sagrada. Mas é justamente disto que Talla se sente
herdeiro agora: “Para mim, a cabaça é um bastão.”
É como se dissesse: na minha linhagem materna reencon­
trei meu pai, graças ao ancestral.
Durante sua doença, Talla tentou ajustar suas próprias
fantasias ao sistema mitológico e familiar de sua sociedade.
Mas agora os elementos visionários diluem-se frente aos em­
blemas tradicionais. Agora, quando lhe pedimos que desenhe
os rab ele diz:

“ Vejo os cabelos, não posso desenhar. Eles têm um pensamento


tfio grande quanto eu. Não se parecem com uma senhora branca, nem
com uma senhora negra, nem com um animal.”

E se insistimos para que desenhe, a única coisa que con­


segue representar é precisamente o que faltava no começo,
quando os personagens das visões eram calvos, só consegue
representar cabelos, longas cabeleiras (de espíritos).
Em contrapartida, desenha cuidadosamente a habitação
tradicional dos tuur, a figuração ritual do culto familiar, das
vasilhas-altar nos quatro pontos cardeais (marcados como
norte, sul, leste, oeste), a árvore sagrada, o como amuleto, o
pilão, a planta que germina, o riacho.
As imagens de pesadelo desaparecem frente à serenidade
dos símbolos coletivos: a construção do altar através do qual
se realiza o ritual do samp wolof ou do lup serer.
160 ÉDIPO AFRICANO

FIGURA 6 - 0 altar dos rab do antepassado

Convocado em junho de 1963, Talla não pôde vir, mas escre­


ve que se sente bem, que não tem mais crises e que retomou
os estudos. A família o considera curado.
Esta cura levantava vários problemas para nós.
O desaparecimento dos sintomas, principalmente num
sujeito histérico, não é um critério suficiente de cura. Per-
guntávamo-nos se, no caso de Talla, havia apagamento dos
sintomas ou modificação de estrutura.
O tratamento nos deixa uma imagem final semelhante
àquela onde desemboca o samp, ou seja, a ereção do xamb,
ou altar dos tuur. Perguntávamo-nos o que significava esta
localização final do problema ao nível de uma mitologia co­
letiva. Uma resposta parcial a este problema nos seria dada
seis meses depois.
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 161

5 de dezembro de 1963 - Talla comparece ao atendimento em


dezembro. Seu ar inquieto foi substituído por um aspecto ale­
gre. Não teve mais crises. Expressa-se de uma maneira ao
mesmo tempo jovial, séria e tranqüila. Eis como foi a última
entrevista:
Talla confirma primeiro as respectivas posições dos rab.
Nas entrevistas precedentes a análise havia permitido desven­
dar o pertencimento dos rab às linhagens paterna ou materna.
Mas agora é a criança quem afirma muito claramente: “ Yas-
mon, Lasmon vêm dos tuur de meu pai. Safout, Safoulen vêm
dos tuur de minha mãe.”
Talla conta em seguida que mataram a cabra durante a
invemagem, no mês de agosto, como fora ordenado por Sa­
fout, Safoulen e Lasmon. Também lhe disseram:

“ Dar-te-emos a paz, a liberdade. Você deve oferecer como cari­


dade objetos brancos, açúcar, cola* branca... Disseram-me isto en­
quanto jogávamos futebol; conversávamos como eu e você, eles con­
versavam e de tempos em tempos eu captava palavras. Disseram que
me dão um poder sobre meu estudo, que me dão um poder como o an­
cestral, mas o ancestral não era estudante (é, portanto, o mesmo poder
mas utilizado de outra forma). Foram embora dia 11 de outubro. Foi o
dia mais feliz da minha vida, eu ria, brincava, estava feliz.
- Por que 11 de outubro?
Não sei, porque o estudo deve começar. Fui eu que pedi. Fui eu
que recusei, como me dissera o doutor: Você pode recusar a crise.”

Vemos, portanto, que a evolução de Talla não consistiu


apenas numa resolução de seu problema ao nível dos ritos
OOletivos, mas também numa tomada de consciência de si
mesmo mais autônoma e mais responsável. Agora Talla é ca-
de tomar uma distância em relação à mitologia coletiva.
Procura uma interpretação racional desta utilizando noções
••colares. Na escola ouviu falar dos pigmeus e diz: “ Os rab,

Semente de uma árvore das esterculiáceas. (N. da T.)


162 ÉDIPO AFRICANO

FIGURA 7 - 0 altar dos rab

acho que eles vêm dos pigmeus. Aprendemos em história que


os pigmeus são homens pequenos que outrora habitavam a
África.” Talla reinventa por conta própria a interpretação
evemerista da mitologia. Vemos também que esta racionaliza­
ção mantém a referência ao “fundo dos ancestrais” .
Lembramo-nos da importância que atribuía ao túmulo de
Diagan Tiaré e ao povoado de seus ancestrais. Agora, ele me
diz: “ Não se pode mais ver o túmulo, não fui aó povoado,
não gosto de ir lá. Na minha cidade, brinco; em X... no po­
voado, é o mato.” Agora Talla não tem mais preocupações,
só pensa em estudar e brincar.
Perguntei-lhe se fazia caridades, isto é, oferendas. Diz:
“É a avó que faz isto para o tuur do antepassado da família;
faz para toda a família” , parecendo dizer que ele mesmo não
se preocupa com isto.
Pergunto-lhe, por fim, se há um altar na sua casa. Res­
ponde-me com um tom irônico e gentilmente condescendente:
“ Agora você dá açúcar ao taalibe,20 estamos no século XX!”
20. Discípulo de um marabuto. Talla fala aqui das crianças taalibe que vão
mendigar nas ruas.
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 163

Em outras palavras, Talla não renega os ritos familiares


mas não atribui mais tanta importância a eles. Há mais flexi­
bilidade para realizar a dupla adaptação exigida pelo meio
familiar e pelo meio escolar.
Frente à pergunta: “ Você tem notícias de seu pai?” , res­
ponde: “Não, não dá certo com ele. Disse que não queria fi­
lhos.” Sua mãe casou novamente mas ainda não se mudou pa­
ra o domicílio de seu marido. Com ela, Talla ainda mora na
casa de seu tio e avós matemos.
Frente à pergunta: “ Tem tido sonhos?” , responde: “Não,
agora estudo e brinco com meus amigos.”
Tem mais algo a dizer? “Não, todos estão bem de saú­
de” , e “ agora, o exame do 69” .
Dois anos depois, em dezembro de 1965, Talla nos es­
creve que está no 52, num curso complementar, na turma que
foima futuros professores e que está bem de saúde.
*
* *

A história que acabamos de relatar tem a pureza de uma


tragédia clássica. A psicoterapia de Talla reduz ao mínimo o
romance psicológico e desenrola-se no puro registro da tragé­
dia antiga que consiste em destrinchar a linguagem do desti­
no.
A cena se abre com uma visão inaugural semelhante a um
relato de vocação profética. Talla pediu ao diretor da escola
“um papel” para ir consultar o doutor. A visão inverte os pa­
péis; é a ele, Talla, que uma demanda é dirigida. Um poder
desconhecido, um imortal, lhe propõe um “presente” , uma
folha de papel branco, um significante vazio. Receber o dom
proposto seria concluir uma aliança, aceitar a lei do outro.
Talla recusa o pacto com o inominável, o que é uma maneira
de se perguntar sobre a origem da mensagem em branco:
quem é o outro que me propõe a lei de aliança?
Sabemos que o pai de Talla abandonou mulher e filhos.
Este abandono adquiriu seu verdadeiro sentido através da
164 ÉDIPO AFRICANO

palavra do pai: “ Quase diz que não quer filhos quando eu era
jovem.” Um pai não é apenas uma segunda mãe, alguém que
cuida de crianças; o tio materno serviría para isto pois a ele
cabe, tradicionalmente, criar os sobrinhos. O tio pode substi­
tuir o pai em tudo, tanto para a subsistência material quanto
para a identificação parcial a um ideal masculino; podería
substituir o pai em tudo exceto numa coisa: não é ele quem
toma significante aquilo que falta à mãe; não é ele que está aí
por aliança, em virtude da troca, por lei de dívida e de dom.
Talla se sente suprimido por seu pai, condenado a perder a
herança, lançado à terra como um morto, aterrado por um po­
der sem nome, solicitado pela lei de um outro que permanece
para ele estranho, desumano, aterrorizante.
A primeira entrevista descreve visões de pesadelo: a se­
nhora branca e o pequeno homem castrado. São “o irmão e a
irmã” (o tio e a mãe?). Mas são, principalmente, dois perse­
guidores desconhecidos; a senhora branca fala uma língua in­
compreensível, sua sombra é aterradora. O pequeno homem é
meio agressor, meio protetor.
Mas eis que, das brumas confusas onde se agitam os po­
deres de desgarramento e de morte, destaca-se um nome, o
nome do bisavô materno, Diagan Tiaré. O ancestral é um pai
reduzido à pura autoridade de seu nome: “Diagan Tiaré. Seu
nome era conhecido em todo Senegal, em todo Sine, como
Leopold Sédar Senghor. Em todo o Sine te dizem que ele era
muito forte. Inclusive seus filhos são adorados. Todos que os
vêem lhes dão algo” (rendem-lhes homenagem).
A partir da nomeação do ancestral, Talla consegue expli­
citar e articular seu problema e o faz numa série de temas en­
quadrados por duas nomeações do ancestral: Diagan Tiaré,
aliado dos rab da família; sua mãe abandonada, mulher sem
herdeiro para o marido; ele mesmo mendigo solitário sem he­
rança; o ancião da grande árvore que fala sobre antes da
morte de seu pai; novamente Diagan Tiaré, honrado no seu
túmulo como fundador de povoado.
Como Talla poderá se beneficiar da herança? A resposta
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 165

é dada num lapso que faz Diagan Tiaré passar dos matemos
para os paternos (é possível que, de fato, o antepassado se
encontre na junção das linhagens). Este lapso inaugura uma
nova seqüência que se parece à fala de um oráculo enuncian­
do o nome dos rab. Nomeia Lasmon, o tuur de Diagan Tiaré.
Lasmon ainda não é um personagem, é um baobá.
Em seguida, aparece um personagem desconhecido, um
boxeador. É difícil aproximar-se desta figura viril que mete
medo, que nos convida (repetindo o convite inaugural) a se­
gui-lo até seu quarto escuro, a penetrar com ele mais fimdo
no medo.
Este boxeador é um pai que mostra seu filho, uma filha
de rab que canta. Ela cantava a canção de Lasmon.
Eis, portanto, que Lasmon se toma um personagem vivo,
um amigo que defende Talla contra as bmxas antropófagas e
os meninos desconhecidos. Lasmon anuncia que é preciso fa­
zer um sacrifício para o avô e dá o garap, o bastão sagrado.
Este dom vem do fundo dos ancestrais; aceitá-lo é aceitar
a lei dos pais. Talla sabe agora quem lhe propõe aliança; e na
sessão seguinte dá uma descrição detalhada de Lasmon, ima­
gem composta onde estão reunidos traços esparsos de todas
as outras figuras masculinas que até então apareceram.
Mas uma severa crise se produz de novo. Lasmon não
veio. Talla pede para sair do hospital para que Lasmon fale
com ele. Os rab têm medo dos brancos, mas “ se eu for para
casa eles falam comigo” .
Uma licença de dois dias é dada a Talla. Na volta diz:
“ Vi Lasmon como vejo você... Jurou do fundo dos ancestrais
que se você faz o rito, depois não terá mais crises. Depois me
deu um papel branco dobrado na minha mão.” O mistério da
visão inaugural se realizou.
Permanece o desconhecido da senhora branca. Talla re­
crimina veementemente sua mãe por não tê-lo levado ao tú­
mulo do ancestral, “ao fundo dos ancestrais” . Quando mor­
rer, os rab atacarão de novo seus sobrinhos (especifica na p.
1 9 0 : não seus filhos, seus sobrinhos). Nesta perspectiva de
166 ÉDIPO AFRICANO

herança matrilinear, de tio a sobrinho, é notável que Talla se


preocupe em receber pela via paterna a herança do fundo dos
ancestrais: “ Sou o mais velho da família... quando você é o
mais velho deve sustentar a família.”
Talla retoma então o deciframento dos nomes: Yasmon é
o rab do antepassado. Lasmon permite, portanto, a Talla vin-
cular-se ao ancestral ao mesmo tempo que dele se diferencia
por um fonema.
Depois disto nomeia Safout, rab da linhagem materna.
Na sua carta de 29 de março, Talla precisa que Safout é tam­
bém um rab do antepassado, o que permite vincular à mesma
origem ancestral paternos e matemos com a distinção entre
homem e mulher.
Como no lup serer ou no samp wolof, a nomeação dos
rab requer a construção do altar (carta de 23 de março). Pare­
ce que a partir deste momento as crises são autenticadas pelo
ritual do samp: são descritas como uma viagem ao país dos
rab, “seus amigos” ; Talla não tem mais medo: “Num piscar
de olhos você vai e volta” (p. 190). Seus amigos rab o defen­
dem contra os bruxos.
Talla pode agora explicar seu medo inicial; explica suas
crises de angústia, argumenta sobre a diferença entre o cora­
ção de uma criança e o de um adulto; explica que os rab se
transmitem como herança de tio para sobrinho; prediz o fim
de suas crises: “ Ainda três crises e eu sacrifico uma cabra”
(este sacrifício ocorrerá, de fato, no mês de agosto).
Na mesma sessão (24 de abril), Talla consegue recapitu-
lar o conjunto das operações simbólicas efetuadas sobre os
rab. Podemos resumi-las assim:
O problema edípico: “Como posso me identificar simbo­
licamente a meu pai?” expressava-se para Talla sob a forma:
“Como posso herdar de meu ancestral Diagan Tiaré?”
Inicialmente, Talla procurava saber como podia, a partir
de seus parentes matemos presentes, conseguir determinar
sua relação com o pai ausente. Para isto, foi primeiro dos
matemos para o ancestral materno, Diagan Tiaré. Depois um
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 1$7

lapso fez Diagan passar dos matemos para os paternos. Pro­


longando este movimento, a nomeação dos rab introduziu em
primeiro lugar os rab paternos: Lasmon-Yasmon. A variação
da consoante inicial marcava o vínculo pessoal de Talla com
o ancestral pela via paterna. Neste momento introduziu Sa­
fout, rab materno. Eram, portanto, os rab paternos que tra­
ziam os rab matemos. No mundo dos rab a prioridade de po­
sição era, portanto, reconhecida ao “ pai” considerado não
como indivíduo mas como elo de uma herança a ser transmi­
tida (herança constituída essencialmente por valores de posi­
ção deteimináveis a partir de um ponto zero, o ancestral).
Esta primeira operação tendo sido realizada, Talla vai
efetuar a operação inversa que consiste em nomear Safout em
primeiro lugar. Talla anuncia primeiro a necessidade de pro­
ceder a uma inversão, dizendo: “ A cabaça sagrada do ances­
tral tomou-se para mim o bastão de Lasmon.” Depois diz que
os rab mudam de posição: Safout, o materno, encabeça a lista
como rab do ancestral. Obtém-se então a ligação Safout-Sa-
foulen que, pela variação altemante do final, vincula Talla ao
ancestral pela via materna. E, em última posição, aparece a
ligação Lasmon-Yasmon definindo a série paterna.
Neste momento, fica provado, em virtude da álgebra mi­
tológica, que Talla pode efetuar os dois movimentos: pode ir
dos paternos aos matemos e dos matemos aos paternos. As
transformações simbólicas encontraram-se com a realidade.
Matemos e paternos estão, doravante, situados nas suas res­
pectivas posições simbólicas.
Tudo se esclareceu. Talla pode, enfim, resolver o enigma
de suas visões iniciais. É Lasmon que faz o gesto inaugural
oferecendo a aliança, as mãos juntas em forma de cálice e de­
clarando, desta vez explicitamente: “ Apareço para você por
parte do antepassado ” Ficamos então sabendo quem era a
senhora branca: era Safout que se escondia. Foi Lasmon (o
paterno) que trouxe Safout (o materno).
A seqüência das transformações simbólicas tendo termi­
nado, o recurso ao imaginário toma-se inútil. De todos os
168 ÉDIPO AFRICANO
rab, sendo os machos calvos, restam apenas longas cabeleiras
celestes. E a sessão de 24 de abril termina (como a carta de
23 de março) com o último rito do samp: a construção do al­
tar. Talla desenha muito cuidadosamente os quatro pontos
cardeais, a árvore, o como, as vasilhas, a planta que germina,
os bastões que são postos na água das abluções...
O fato de que a psicoterapia de Talla possa ter encontra­
do no mito coletivo um suporte mais do que um obstáculo,
deve-se, sem dúvida, a circunstâncias excepcionalmente favo­
ráveis na evolução do grupo familiar. Se a doença de Talla
tivesse aparecido “antes” na evolução do grupo, é provável
que a ajuda do médico europeu não teria sido pedida; as cri­
ses de Talla eram o sinal de uma intervenção sobrenatural pa­
ra toda a família; a comunidade teria procurado resolver seu
problema por intermédio de um oficiante dos ritos tradicio­
nais sem que o indivíduo pudesse tomar pessoalmente a seu
cargo sua ansiedade e seu futuro. Um pouco “depois” Talla
talvez não dispusesse mais de um conhecimento suficiente da
mitologia para utilizar espontaneamente seus recursos combi-
natórios; passaria, talvez, a ser diferente demais dos seus, so­
zinho demais para tomar nas suas mãos a sua vida sem culpa
excessiva.

O exame de entrada no 6- despertou em Talla uma velha


questão latente desde a partida do pai: quem sou eu? qual é o
meu lugar? Se uma relação terapêutica pôde se estabelecer
com o psicanalista, foi porque Talla queria pessoalmente al­
go, pediu por sua própria iniciativa uma consulta com o mé­
dico, recriminou sua família por não fazer nada e “cruzar os
braços” ; mais tarde pediu para sair do hospital para poder ir
escutar na sua casa as palavras de Lasmon e relatá-las ao te­
rapeuta. Ao mesmo tempo, a religião familiar dos rab ainda
estava bastante viva na mente de Talla para que a pergunta
“o que você quer?” pudesse se traduzir para ele, sem culpa
direta, sob a forma: “ O que querem de mim os imortais?” , ou
seja, sob uma forma “trágica” superando os personagens vi­
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 169
vos. Todo o trabalho da psicoterapia consistiu em decifrar o
destino como uma linguagem. Foram feitas apenas referências
mínimas às relações cotidianas dos personagens da família.
Num determinado momento, o sonho do boxeador esboçou
uma fantasia de assassinato (os pequenos diziam: “É preciso
matá-lo” ). O enfrentamento edípico com o pai tem, portanto,
o seu lugar marcado mas não é desenvolvido como o seria na
Europa, em termos de culpa pessoal e de luta pelos direitos
individuais de fazer isto ou aquilo. A fantasia de assassinato
está muito bem situada como uma transição entre duas figuras
de Lasmon: Lasmon, o baobá e Lasmon, o personagem que
dá o bastão sagrado a título de aliança. A seqüência é notá­
vel: primeiro o tema da Arvore (a coisa fálica, a autoctonia),
depois a fantasia de assassinato, depois a aliança com o Gê­
nio protetor. O enfrentamento com a morte está incluído no
nome do imortal, Lasmon; o nome se desdobra como uma
folha de papel onde se poderia ver sobre os dois lados do
díptico: de um lado a Árvore da autoctonia, do outro o rito da
aliança. A estrutura do complexo de Édipo está, portanto, in­
tegralmente presente, mas se desenrola menos sob o modo
“romanesco” da aventura individual e da culpa interior do
que sob o modo “trágico” da perseguição pelos poderes do
destino. O nome do ancestral e os nomes dos imortais marcam
o lugar do pai; a identificação simbólica ao pai como valor de
posição consiste em herdar poderes do ancestral através da li­
nhagem paterna. Graças ao diálogo analítico, a possibilidade
de se tomar diferente dos seus ancestrais será compreendida
como um poder que se herda.

3. ENTREVISTAS COM UM PSICÓTICO

CASO 142: Ornar N ., 32 anos, lébou, muçulmano de seita


tidjane

Ornar foi hospitalizado em psiquiatria em três ocasiões,


de 20 de março a 25 de abril de 1962, de 7 de dezembro de
170 ÉDIPO AFRICANO
1962 a 6 de abril de 1963 e de 22 de novembro de 1963 a 22
de fevereiro de 1964.21 Os diagnósticos de sfndrome confuso-
delirante e depois de delírio de possessão foram feitos. Mas,
em seguida, o doente evoluiu para um estado esquizofrênico.
Ornar tem seu corpo habitado por dois rab ou dois diabos,22
com quem, com o passar do tempo, acaba vivendo em paz, ao
preço de uma interrupção de toda atividade, o que o coloca,
entre outras coisas, na dependência de seu pai.

Biografia - Omar nasceu e viveu num conglomerado lébou


em Cabo Verde. Seu pai, alto, rosto nobre, é um muçulmano
rigorista, que residiu muito tempo em Gâmbia onde tinha um
comércio lucrativo. Estando agora aposentado, vive como
uma figura eminente rodeado de sua mulher e seus três filhos.
Teve sucessivamente três mulheres; uma delas é doente e ele
não a considera mais como sua mulher.
A mãe de Omar é uma lébou de mais ou menos 50 anos.
Esteve casada e se divorciou cinco vezes. Vive atualmente
sozinha no mesmo conglomerado que seu antigo marido,
“ sustentada” por seus irmãos.
Diz-se que está doente desde 1942 (?) porque foi possuí­
da nesta época, pela primeira vez, por uns rab, assim como
todos seus ascendentes matemos.
Numa noite, há seis anos (?), saiu por volta da meia-noite
e teria, então, encontrado, pela primeira vez, um rab que lhe
disse: “ Sou o diabo” . Tomada de medo, correu para seu
quarto para se proteger enquanto que o rab também desapare­
cia. Estava vestido com uma grande càmisa (boubou), com
um cafrán de várias cores dentre as quais sobressaia o ama­
relo. Era muito alto e mais velho do que ela.
Numa segunda vez, há quatro anos, teria visto um outro
rab sentado de noite atrás de sua casa sobre um pequeno ban­

21. Nosso reconhecimento ao Dr. P. Martino por termos podido utilizar a


observação psiquiátrica de Omar.
22. Ê o doente que utiliza os dois termos indistintamente.
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 171
co. Não se parecia com o primeiro, mais baixo e vestido de
verde e preto. Teria visto pela terceira vez um outro rab há
dois anos, mas porque usa no corpo e põe em casa amuletos
contra os rab, os diabos não conseguem penetrar nela.
A mãe de Omar afirma para muitos de nós ter visto rab
de todas as idades e tamanhos, do sexo masculino, segundo
crê, parecendo pessoas humanas, às vezes pessoas que co­
nhece, às vezes nus, às vezes mais ou menos bem vestidos.
Mudam freqüentemente de rosto e de roupa. Assumem a voz
de suas primas para ordenar que se dispa ou que parta nua pa­
ra o mato. Na primeira vez pensou que era realmente sua pri­
ma quem dera a ordem. Os rab falam às vezes com ela mas na
maioria das vezes contentam-se em olhá-la. Cada vez que os
vê, fica anormal no dia seguinte porque eles lhe ordenam coi­
sas ruins e ela perde a consciência de seus atos. Na primeira
vez, em 1942, todo o corpo ficou doendo durante três dias,
depois ficou inconsciente, não reconhecia nem mesmo seus
parentes, começou a falar sozinha, a injuriar todo mundo e
a ir ao mato. As vezes, fica deitada e treme o dia todo; fica
sem comer dois ou três dias sem ter fome nem sede. Seus rab
também a levam a mascar tabaco, a beber limonada e a fumar
cigarros, como seu filho que fuma desde que tem rab.
Pensa que seus rab e os de seu filho são os de sua família
materna que se distribuem entre os diferentes membros da
família por afinidades. Há bons e maus.23 Ela tem dois bons e
dois maus; os bons a protegem enquanto que os maus procu­
ram apenas fazer-lhe mal e tomá-la doente. Seu filho tem dois
rab maus. Os rab escolheram sua família porque a família era
rica. São os maus rab que causaram a morte de sua avó e de
suas três irmãs.
Omar, que freqüentemente vai visitar sua mãe, nos dirá
que quando seus rab a perturbam bastante, ela nem mesmo
abre a porta e fica deitada. Acrescenta: “Ela não faz as ofe­

23. Esta classificação cm bons e maus £ um efeito do sincretismo muçul­


mano. Traduz também a ambivalência das imagens parentais.
172 ÉDIPO AFRICANO

rendas (ao xamb familiar), isto não está bem; vejam Tiné N.
(da família deles), os rab não a perturbam” (porque ela faz
oferendas).
Ornar foi alimentado e carregado por sua mãe. Não teve
nenhuma doença séria na infância. Foi educado por seus pais,
segundo um deles até os quatro anos, segundo o outro até os
nove. Seus pais se divorciam quando ele tem quatro anos, diz
o pai, quando tem oito anos, diz o sujeito.
É então entregue a um primo uterino, no mesmo povoado,
para aprender o Alcorão - e isto, dos quatro aos nove anos,
ou dos nove aos treze. “O tio não era severo, mas eu não en­
tendia bem o Alcorão” , diz ele. Com a morte do “tio” , ele é
confiado a um outro marabuto e, lá, “entendia bem um pou­
co” .
Ficamos sabendo que foi circunsisado no dispensário aos
doze anos, e que nesta época volta a viver com seu pai que o
descreve como uma criança agitada, brincalhona, sociável,
não apresentando nem doenças nem pesadelos.
Freqüenta a escola francesa durante cinco anos e fracassa
aos dezessete no certificado de estudos.
Seguem-se dois anos de aprendizagem de mecânica e de­
pois, de 1951 a 1953, faz o serviço militar em Dakar. Ornar
sai com um diploma de mecânico e, durante sete anos, será
motorista mecânico numa grande empresa de Dakar onde seu
trabalho é apreciado. Com a falência da empresa passa por
um período de semi-desemprego, durante o qual muda diver­
sas vezes de patrão. Sua primeira hospitalização situa-se de­
pois de mais ou menos dois anos de semi-desemprego, em
março de 1962.
Durante o período de trabalho estável, em 1956, Ornar se
casou. Antes tinha tido apenas experiências sexuais esporádi­
cas. Diz ter ficado muito surpreso por não conseguir consu­
mar o casamento, pois a moça lhe agradava; pediu a opinião
de seu pai e de sua sogra, depois consultou um marabuto que
lhe deu medicamentos. Um mês depois tudo estava bem. A
impotência reaparecerá com “a doença” . O pai do doente
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 173
conta o casamento assim: ‘‘Quando fazia a corte à sua mu­
lher, eram duas amigas. Ele fazia a corte à primeira. A mãe
da segunda veio me ver e me disse: ‘Somos parentes, gosta­
ríamos que ele desposasse nossa filha.’ Ornar concordou em
casar-se com ela.”
Todo mundo concorda que Ornar tem “uma mulher muito
boa” ; é muito apegada a ele e o espera apesar da doença,
apesar da insistência de sua mãe que a aconselha o divórcio,
e apesar de que ele não contribui mais com as despesas da ca­
sa. O casal sempre viveu na casa da mãe da mulher. Omar
explica que ganhava muito pouco no começo e que, quando
seu salário melhorou, faltava “mobiliar o quarto” e pagar
25.000 F C.F.A. para sua sogra (complemento devido do do­
te). Sua mulher várias vezes lhe pediu: “ Vamos para a nossa
casa” , mas a sogra não consentiu em reduzir a soma devida
embora “há outras que fazem por 15.000” , diz Omar. O pai
do doente confirma que a sogra não queria deixar a filha par­
tir - também sua filha mais velha fica com ela - mas recrimi­
na seu filho nos seguintes termos: “Omar foi fraco ao não
pegar sua mulher e levá-la para a casa dele; ele tinha dinhei­
ro, fiz de tudo (alude à sua ajuda financeira), ele não tinha
caráter, tinha um pouco de medo de sua sogra que é perigosa,
e não sou o único a dizer isto... Omar não é previdente:
quando ganhava não guardou dinheiro. Acho-o fraco, sem ca­
ráter, sei que está doente, mas nunca pensou em levar sua
mulher para casa, preferia ficar na casa de seus sogros, nem
me escutou. Gastei muito dinheiro para curá-lo.” Numa en­
trevista posterior, o pai falará de seu descontentamento e de
leu rancor pelo fato de seu filho nunca ter lhe dado dinheiro
como reza a tradição: o filho deve ajudar seu velho pai.
Omar tem três filhos: uma filha de seis anos e dois meni­
nos de quatro e dois anos.

Primeira hospitalização: de 20 de março de 1962 a 25 de


abril de 1962.
174 ÉDIPO AFRICANO

Às informações sobre este período são fragmentadas e in­


completas:
O doente, desorientado e ansioso, é levado ao hospital
por seu pai. Queixa-se de dores do lado direito e ha cabeça.
Apresenta alucinações verbais: escuta, espreita e ouve ho­
mens que falam nos dois ouvidos, “não falam palavras que
metem medo” . O doente é reticente quanto ao conteúdo do
que ouve. Estes homens são quatro: Um Peul, um tubaab,
dois negros. O doente diz sentir também cheiros complexos
que não consegue especificar. As alucinações teriam se ins­
talado progressivamente há um mês.
Perguntado sobre o aparecimento de suas perturbações,
Ornar responde que “nasceu com elas” .
Há impotência sexual relativa atribuída a uma marabuta-
gem.
A observação comporta ainda: automatismo mental, am­
nésia de fixação e de evocação, insônias, emagrecimento.
No hospital, Ornar, com um rosto ansioso, espreita pela
janela e vasculha sua cama.
Com um tratamento de largactil há uma rápida remissão
das perturbações.

Segunda hospitalização: de 7 de dezembro de 1962 a 6 de


abril de 1963.

Ao se internar, Ornar está calmo, nem desorientado, nem


confuso. Teria tido um comportamento perfeitamente normal
até outubro. Seu pai pede sua hospitalização em consequência
de dois episódios:
- Tendo avistado um carro estacionado na frente da casa
de seu pai, Omar instala-se no lugar do motorista e maneja o
volante. Avisado, o proprietário do carro pede que desça;
Omar se recusa e dá um soco no outro. O pai chega e lhe or­
dena sair do carro. Obedece mas fica então no meio da rua,
atrapalhando o tráfego. A polícia tem que intervir para que
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 175
•Qtre em casa. Omar fica calmo durante alguns dias e depois...
- Numa noite, sai de casa sem ser notado por seu pai pa­
ri assistir a uma reza na mesquita. No fim da reza teria pedi­
do ao assistente que rezasse por ele. Assim que acabou de
formular seu pedido, fica inerte, com o olhar fixo no teto.
Tem então uma crise convulsiva limitada aos membros supe­
riores. É levado para a casa de seu pai.
Além disto, o doente queixa-se de dois diabos: um no seu
crânio e o outro na sua barriga. Este último não permite que
10 alimente direito, impedindo a passagem dos alimentos para
0 estômago: tudo o que Omar come passa para seus dois flan­
cos. O outro diabo faz barulho, parece que lhe dá socos.
Este relato das perturbações é feito pelo pai no dia da
hospitalização. Omar, volúvel, confirma o relato paterno. Diz
Sofrer há muitos anos de dores abdominais, de constipação,
de anorexia. Fala de seus diabos: tem dois diabos no seu cor­
po, um perto da cabeça, no pescoço, que desvia os alimentos
que não vão para o estômago mas passam sob a pele, descen­
do ao longo dos flancos. O outro se encontra perto do ânus,
nutre-se dos alimentos e - impede a comida de passar pelo
ftnus. Estes dois diabos falam entre si e também falam com
ele. Aconselham-no a não rezar, a beber, a frequentar antros.
Um deles entrou no seu organismo há 25 anos. O outro pene­
trou há alguns anos: dormia com seu pai quando acordou de
noite, percebeu uma forma negra, como um homem, que pe­
netrou na sua cabeça. Não sabe dizer nem onde nem como
penetrou.
No hospital, nos dias seguintes, Omar tem um comporta­
mento bastante bem adaptado. Reza bastante. Tem algumas
crises discretas de agitação, e em alguns momentos apresenta
movimentos bruscos da cabeça bastante impressionantes. São,
diz ele, seus diabos que animam seu corpo. Uma terapia de
eletrochoques é empreendida.

No fim de dezembro nota-se momentos de grande agita­


ção depois das rezas.
176 ÉDIPO AFRICANO

Em janeiro de 1963 os diabos estão menos ativos. O


doente dorme e come bem, mas “eles” não querem sair, “e-
les” comem bem e compartilham da sua comida. A série de
eletrochoques termina em 31 de janeiro.

Em 11 de fevereiro o delírio está novamente muito ativo:


os dois diabos ainda estão no seu corpo; Ornar diz que um
deles ele não conhece e que o outro seria uma serpente. Neste
dia, pedimos que desenhe seus diabos: 1) uma forma de ser­
pente: é o diabo que estava na sua cabeça e que sob o efeito
dos eletrochoques desceu para a sua barriga; 2) uma silhueta
sombreada em forma de garrafa com, no centro, um disco cla­
ro: é o diabo que está na sua barriga, ele muda de forma, tem
uma luz no meio: é o último que entrou.
Ornar passa seu tempo rezando apesar da interdição dos
diabos; estes se agitam, o aborrecem, tiram os alimentos de
seu estômago; às vezes recolocam a comida no estômago e
pode, então, ir ao banheiro. Pensa que nada pode curá-lo,
nem um ndop, muito menos um eletrochoque que passa pela
sua cabeça, já que o diabo pode descer para seu estômago.

Em 15 de fevereiro de 1963 temos uma entrevista com


Ornar que nos fala de seus diabos e dos de sua mãe:

“Os diabos gostam de nós, entraram no meu corpo porque eu di­


zia a Deus ‘afaste-os’ (Omar diz em árabe o versículo do Alcorão uti­
lizado nas rezas correntes para pedir a Deus proteção contra os dia­
bos). Quando eu era pequeno minha mãe falava deles (dos diabos), os
homens também, eu achava que era piada. Mas eu conhecia um pa-

FIGURA 8 - Um diabo serpente


A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 177

FIGURA 9 - Um diabo com forma humana


178 ÉDIPO AFRICANO
rente, meu tio, um mestre maçom muito bom, ele teve o diabo, não faz
mais nada, não trabalha mais, só passeia pelo mar, inclusive dorme no
mar.
Os diabos gostam de nós, têm vontade de nós, de estar em nós,
mas no fundo não gostam de nós. Deus os pôs no mundo, deixa os
homens se virarem. Deus os fez técnicos, têm bastante técnica para
fazer as coisas. Quando eu rezo, tenho coisas suspensas do lado di­
reito (Ornar mostra sua axila e seu ombro direitos, os pectorais, o ma­
xilar e a orelha do mesmo lado). A reza se coloca sobre estas coisas.
Quando se reza, recolhe-se a reza (faz o gesto de recolhê-la na sua
cabeça); disseram-me que mesmo que eu reze irei para o inferno por­
que tiram estas coisas, colocam-nas no meu estômago e quando vou
ao banheiro, vão embora.” Ornar acrescenta que Deus vê tudo, que é
alguém, que não irá para o inferno, e também que o diabo serpente
entrou na sua cabeça quando tinha cinco anos e que ficou quieto até
1962. Continua: “Os diabos impedem minha mãe de rezar, de se lim­
par, de jejuar e eles vêm para fazê-la cozinhar mal, é por isto que está
magra. Fala muito sozinha há oito anos. Casou-se cinco vezes e se di­
vorciou cinco vezes, o último marido divorciou-se dela por causa dos
diabos, ela falava demais, demais.”

Em 22 de fevereiro de 1963 as afirmações de Omar sobre


os diabos, que cada vez com mais freqüência chama de rab,
não variam; acrescenta que os rab passam por toda uma fa­
mília, meninos e meninas, que seus filhos certamente os te­
rão, quase certamente; pode-se colocar amuletos, mas isto
nem sempre dá certo e sua mulher não os faz usá-los; ele tem
“um amuleto que não faz nada, ainda não” .

Em 6 de abril de 1963 Omar sai com um tratamento à ba­


se de largactil. A melhora é relativa: os diabos ainda estão
presentes mas menos ativos.

Entrevistas externas

Entre a segunda e a terceira hospitalização temos duas


entrevistas externas com Omar.
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 179

Em 20 de maio de 1963 aparece, muito magro, pedindo


para ser hospitalizado. Uma semana depois de sua saída “a
doença recomeçou muito forte: a cabeça e a barriga” . Quis ir
ver um marabuto de Nioro du Rip24 mas não tinha dinheiro.
NSo dorme: “ Não penso nada, só sinto algo que se mexe na
minha cabeça, que puxa, que puxa as coisas que tem na cabe­
ça. Murmura. Isto faz mal... o da minha barriga também fica
puxando minha carne, não consigo dormir, comer. Isto circula
no meu corpo, no peito, nos braços, nas pernas.” Seu pai o
aconselhou a hospitalização e “ se não der certo, vamos tentar
o ndõp” .

Em 22 de maio de 1963, quando perguntamos a Omar se


reza para que Deus o proteja dos diabos:

“Sim, rezo, mas é cansativo; quando rezo, eles murmuram, pu­


xam, puxam; dizem: você não levanta, não morre; ou seja, não terei
uma boa vida e não morro. Estes dois dizem a mesma coisa, é a mesma
raça, são saytané.
Digo meu rosário - laila ailala —isto os acalma um pouco, quase
nada. Dizem que se eu rezo, eles me perturbam, se não rezo, eles me
perturbam; não querem que eu tenha uma boa vida.
A primeira vez eu dizia laila ailala, escutei que não devo rezar
e tenho a coisa: a mancha clara na imagem negra, mais ou menos a
forma de um homem.
Antes, havia dois, agora são numerosos, não conheço sua forma,
ló os escuto murmurar... ele está lá - mostra sua bunda - ele não quer
que eu vá ao banheiro, são malvados, hem? Sinto-o murmurando, ele
passa alimentos entre a pele e a carne.”

Em seguida, o doente explica que se “eles” não o deixam


trabalhar, não poderá continuar com sua mulher. Evoca sua

24. O “ marabuto” é um libanês, católico, conhecido sob o nome de Ca-


mille, que trata por uma soma módica e dá a cada doente um amuleto que deve
usar no lugar de qualquer outro. Diz curar graças ã interferência de um santo li-
180 ÉDIPO AFRICANO

impotência no dia de seu casamento e depois no começo de


sua doença.
Não revemos Ornar antes de sua terceira hospitalização.

Terceira hospitalização, de 22 de novembro de 1963 a 22 de


fevereiro de 1964.

Omar é trazido por seu pai depois de três crises ocorridas


quando andava: levanta os olhos para o céu, treme e cai sobre
o lado direito, não consegue se levantar, mas algumas horas
depois anda normalmente. Afora isto, o pai acha que está
muito melhor... “Engorda, diz ele, comporta-se normalmente,
mas ficou preguiçoso: recusou-se a ir trabalhar no campo du­
rante a invemagem, dizendo que seu corpo estava bloqueado
e que não podia fazer nenhum movimento. É a doença, antes
era trabalhador.”
De fato, a não ser pelas crises, Omar parece ter melhora­
do muito: confiante na sua cura, relaxado e cooperativo com
os atendentes, engorda rapidamente e diz ter bons sonhos. Foi
tratado por diversos marabutos: “Não deu em nada” ; mas no
momento desta hospitalização, “Eles (os rab, os diabos) ti­
nham me dito para dizer ao meu pai que comprasse um car­
neiro branco; o matamos, compramos limonada, cola, grão
sovado com açúcar.” Transmitiu o pedido a seu pai que con­
cordou. O que os rab pedem é um sacrifício no altar, no
xamb familiar, materno. Omar parece estar muito satisfeito
que seu pai por fim consinta em fazer o que sua mãe aconse­
lha e o que ele deseja. Mas o pai, que vemos no dia seguinte,
diz ainda não estar decidido. E claro que é ele quem tem que
decidir já que financiará a cerimônia: “E a religião (muçul­
mana) que nos proíbe de fazer estas coisas, mas talvez bate­
remos nesta porta para ver se ela é favorável” , diz ele. Está,
no entanto, quase decidido frente à convicção de seu filho de
que é isto que o curará. Confiaria o assunto a uma parente
idosa (uma “ sobrinha”) que tem uma grande reputação de cu-
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 181

rendeira, porque ele sabe muito bem que tudo isto é uma
doença da família materna.
No entanto, o doente sairá do hospital em 22 de fevereiro
de 1964 sem que nada tenha sido decidido. O pai, no entre-
tempo, consultou um outro marabuto “mais forte” e não fala
mais de sacrifício aos rab. O filho espera sem questionar.
Ao sair, Omar está com boa saúde, perfeitamente coe­
rente, bem adaptado no hospital, ajudando de boa vontade
quando requisitado. Seus rab ainda o impedem de rezar e de
fazer suas abluções: “ Se quero rezar, dizem que farão um
muro na minha frente para que não pense nada, para que não
laiba mais nada” , mas também, “eles” o impedem de brigar,
“de fazer o mal.” Continuam a murmurar no seu coipo, mas
isto diminuiu. Pode comer e ir ao banheiro. Em contrapartida,
impedem-no de passar a noite com sua mulher, disseram:
“Não te deixaremos em paz.”
Poucos dias antes de sua saída do hospital, “eles” o dei­
xam rezar. Omar parece bastante satisfeito com o tipo de
compromisso ao qual chegou: “eles” não o incomodam mais
como antes, não tenta mais fazer algo que os contradiga. Tem
esperanças de que com o sacrifício planejado, as coisas me­
lhorarão cada vez mais. A melhora atual parece, em parte,
ftmdada nesta esperança.
*
* *

Tendo relatado o essencial do material deste caso, tenta­


remos analisar seus elementos estruturais. Temos quatro eta­
pas de entrevistas: em cada etapa temos elementos que se re­
petem mas cujas modalidades sofrem certas transformações.
Consideraremos sucessivamente as referências à:

a) Imagem do corpo.
b) O mito de origem e a posição do pai.
c) O conteúdo do delírio e a situação sociológica do su­
jeito.
182 ÉDIPO AFRICANO

a) A imagem do corpo

Nas três entrevistas de 7 de dezembro de 1962:


- 2 diabos: Um no crânio, faz barulho como se fossem
socos.
Um na barriga, impede a passagem dos ali­
mentos para o estômago.
- 2 diabos: Um perto da cabeça, no pescoço, desvia os
alimentos: passam sob a pele, para os flan­
cos.
Um perto do ânus, nutre-se dos alimentos;
não há evacuação possfvel. Às vezes recolo­
ca os alimentos no estômago.
- 1 diabo: Uma forma negra que penetra na cabeça.
Nas duas entrevistas de 11 de fevereiro de 1962:

- 2 diabos: Uma forma negra na barriga.


A serpente estava na cabeça, faz pouco tempo que está na
barriga.
- 2 diabos: Um que ele não conhece.
Um que seria uma serpente. A forma negra está, portanto,
anulada.

Entrevista de 15 de fevereiro de 1963:


- 2 diabos: Pegam a reza que se coloca sobre as “coisas
suspensas” e a tiram. Colocam as coisas no
estômago e elas vão embora no banheiro.

Entrevista de 20 de maio de 1963:


- 2 diabos: Um na cabeça, algo se mexe na cabeça, pu­
xa, puxa as coisas que existem na cabeça.
Murmura. Um na barriga, puxa sua carne.
Isto circula por todo o corpo.

Entrevista de 22 de maio de 1963:


A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 183

- numerosos diabos: Quando o doente reza, eles murmu­


ram, puxam. Passam os alimentos entre a
pele e a carne. Dizem: você não levanta, não
morre. Se o doente reza, eles o incomodam;
se não reza, o incomodam.
A mancha clara na imagem negra, mais ou
menos da forma de um homem, apareceu
quando da primeira proibição de rezar. Im­
potência.
Entrevistas de novembro de 1963 a fevereiro de 1964:
- diabos em número indeterminado: Eles murmuram.
Formam como que um muro na frente dele
quando ele reza. Impotência.

Todos estes elementos organizam-se segundo um esque­


ma dualista, ou em relações de dupla polaridade (boca-ânus,
cabeça-barriga, continente-conteúdo...). Os elementos consti­
tutivos da imagem do corpo decorrem sempre deste esquema;
são uma série de oposições bipolares: alto/baixo, direita/es-
querda, na frente/atrás, vazio/cheio, entrada/saída... Num
sujeito normal a imagem do corpo é o material utilizado pela
simbolização. Esta vai privilegiar de maneira seletiva tal ou
qual parte do corpo para referi-la a tal ou qual situação inter-
subjetiva em curso de elaboração. As zonas erógenas são o
suporte e a expressão de uma transformação, de uma transi­
ção entre duas etapas de relações da criança com a mãe ou
com seus pais. A relação de nível oral, a que está mais pró­
xima do “ material” bipolar básico, é, no entanto, incluída,
desde o começo da vida, num processo de simbolização.
Em Ornar, o processo de simbolização está bloqueado. A
Sucessão dos elementos não está orientada. Em cada par de
elementos, cada um remete ao outro imediatamente. Não há
progressão. E assim que os rab mudam de lugar, passam da
cabeça à barriga, que um anula o outro, sem que nada avance.
A polarização que o trânsito digestivo comporta é anulada: os
diabos podem impedir a defecação e recolocar os alimentos
184 ÉDIPO AFRICANO

no estômago. O movimento de conjunto é mais o de uma de­


sorganização: as oposições se diluem, tende-se para o infor­
me, para o informulável, para o não-denominável.

b) O mito de origem, a imagem do pai

A luz do que acabamos de dizer, podemos compreender a


situação do doente a quem os rab ou diabos proíbem de re­
zar. Trata-se de uma interdição de aceder ao nível propria­
mente simbólico da palavra, representado pela função do pai.
O sujeito estaria perpetuamente remetido à imagem do corpo,
e é isto que é significado por um mito de origem que supos­
tamente deve apresentar a origem da doença; mito que com­
porta uma série de versões:
1) Teria “nascido com” sua doença. Somos remetidos ao
nascimento.
2) - “O carro” . Toma o lugar do motorista, bate nele,
atrapalha o trânsito, é levado para casa.
- “ A mesquita” . A interdição da reza (pelos diabos)
expressa-se somaticamente: há desorganização da
imagem do corpo e queda.
- “O quarto do pai” . Dormia com seu pai. Percebe
uma forma negra, como um homem, que penetra na
sua cabeça.
Nas três últimas versões temos um lugar do pai:
- “ O carro” : toma o lugar do motorista: pai motorista.
- “ A mesquita” : pai soberano.
- “O quarto” : pai genitor, esposo da mãe.
Em duas versões, há um esquema formal comum: a rela­
ção de continente a conteúdo, mas com referência ao pai, o
que permite uma certa simbolização. A relação com o pai
continua, no entanto, muito próxima das relações com a mãe:
- O carro: é tirado do carro e é posto em casa.
- O quarto: uma forma negra com uma mancha branca
penetra na sua cabeça.
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 185
Nas três versões, identificar-se com o pai é perigoso e
proibido.
Além disso, o tempo da origem varia:
- Desde o nascimento.
- Há 25 anos (a serpente entrou).
- Há alguns anos (a forma negra).
- Há algumas semanas (o carro, a mesquita).
3) Temos na entrevista de 22 de maio de 1963, uma con­
densação das duas cenas, da mesquita e do quarto. A conden­
sação equivale neste caso a uma interpretação. A função sim­
bólica da palavra se dissolve na imagem do corpo: “Não devo
rezar, e tenho a coisa, a mancha branca na imagem negra.”
A partir disto podemos retomar a análise do material e
ver como ilustra sempre a mesma coisa: a interdição da pala­
vra como função simbólica do pai e o retomo para a imagem
do corpo, imagem bipolar, infra-simbólica. Na linguagem de
Qmar: quando ele reza, os diabos (ou os rab) murmuram, pu­
xam, puxam... para o informe.
Os rab o fazem regredir da posição ereta para a posição
deitada. Proíbem-no de adotar na vida uma posição realmente
viril, e o mantêm num estado de passividade, de impotência,
de irresponsabilidade, um estado onde os outros deverão cui­
dar dele. Isto concorda com o que nos diz o pai, que Ornar
não tem caráter; foi incapaz de levar sua mulher para casa,
ainda que esta lhe pedisse com insistência e apesar das recri-
minações do pai. Sua doença o toma incapaz de tomar na vi­
da seu lugar de homem; é impotente, não pode ir ao encontro
de sua mulher nem fazê-la vir para a sua casa, não pode tra­
balhar, não pode rezar.
Nestas condições, compreendemos que o estado de de­
semprego contribuiu para o desencadeamento da doença, pois
o desemprego simboliza seu estado interno. Notaremos que a
angústia de morte não é diretamente confrontada: “ Você não
morre, não se levanta, não terá uma boa vida.” O confronto
com a morte é eludido assim como aquele com a vida.
Não há aqui angústia de castração, mas sim angústia de
186 ÉDIPO AFRICANO

despedaçamento do corpo através da qual dissolvem-se os


valores diferenciais necessários para organizar o real e com
ele se confrontar.25
Este mesmo movimento de recaída no informe é encon­
trado nas transformações sofridas pelas imagens dos rab du­
rante a doença.
Na primeira versão são caracterizados como homens cu­
jas raças estão bem definidas: 4 homens, 2 negros, um peul e
um tubaab. Na segunda versão, os rab são dois, a silhueta
negra com uma lacuna branca ainda é uma forma humana; a
serpente é uma forma organizada e dinâmica mas que não é
mais humana, uma forma de peristaltismo.
Por fim, na última etapa, Ornar diz: “ Antes havia só dois,
agora são numerosos, não conheço a forma deles, só os es­
cuto murmurar” (22.05.63), o movimento geral é de regressão
em direção ao informe.
Um outro exemplo do mesmo movimento:
“ Se rezo, eles me incomodam, se não rezo, me incomo­
dam. Não querem que eu tenha uma boa vida.” Em outras
palavras, Ornar não tem escolha como poderíam dar a enten­
der suas palavras em alguns momentos: “Quer eu reze ou
não, eles me incomodam.” O sim e o não não constituem uma
alternativa, mas perdem-se no informe.
E o que também vemos ilustrado numa outra fórmula:
“Quando eu rezo, tenho coisas suspensas do lado direito.
A reza se coloca sobre estas coisas (a palavra regride para
uma coisa corporal). Quando se reza recolhe-se a reza. Disse­
ram-me que mesmo que eu reze eu irei para o inferno porque
eles tiram estas coisas, colocam-nas no ftieu estômago e
quando vou ao banheiro, isto vai embora.” A palavra se so-
matiza e finalmente transforma-se em excrementos.

25. Sobre o problema das relações entre psicose e castração, cf. S. Lecl
“ A propos de l’épisode psychotique que présenta L’homme aux loups” , La psy-
chanaiyse, IV (1958), 83 a 110.
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 187

Todos estes exemplos repetem o mesmo esquema. Falar


não garante mais a função de “ ser reconhecido” ; a relação
com o pai tende a se confundir com a relação narcisista com o
corpo despedaçado.

c) O conteúdo do delírio e a situação sociológica do sujeito

Numa terceira parte, devemos ainda mostrar que o delírio


traduz uma situação familiar vivida pelo sujeito.
Ornar aparece como o lugar de uma oposição que diz res­
peito a toda a família, ou seja, por um lado, o pai islamizado
e, por outro, a mãe e a família materna ainda apegados às tra­
dições animistas dos Lébou. Ornar é o brinquedo desta duali­
dade sociológica: está como que atravessado por um conflito
que o supera, está “possuído” por ele. O pai escolheu o Isla-
mismo, a mãe escolheu ficar apegada às sobrevivências do
culto tradicional. Mas ele, Ornar, não escolheu nada, é mu­
çulmano como seu pai e amado pelos rab como a família ma­
terna. Sua situação é comparável à das crianças em quem se
reflete um conflito dos pais de que eles mesmos não dão
conta.
Lembremos o contraste entre a fala do pai e a da mãe: o
pai julga que seu filho não tem caráter, recrimina-o por não
seguir estritamente as prescrições do marabuto de Nioro e de
ter acrescentado a elas amuletos matemos, o que, segundo
ele, fez com que este tratamento fracassasse. Lembremos
também como, com umà violência contida, o pai expressa sua
decepção porque seu filho nunca lhe deu dinheiro e tenha da­
do todo o produto de seu trabalho à mãe e à família de sua
mulher. O pai condena este gesto como sendo a recusa de um
Certo tipo de intercâmbio normal entre pai e filho. Acusa-o
também de se deixar dominar por uma mulher: sua sogra.
Por outro lado, a mãe é como Omar, possuída pelos rab,
reduzida à impotência física e incapaz de conservar um mari­
do já que se divorciou cinco vezes. Há muito tempo que a
188 ÉDIPO AFRICANO

mãe e as tias da família materna insistem para que Ornar se


beneficie de um ndõp.
Para o pai estas práticas tradicionais animista são conde­
náveis, contrárias à religião. E como só ele teria o dinheiro
necessário para empreendê-las, Omar não pode fazer nada pa­
ra ter o ndõp que desejaria. Quando lhe perguntamos: “ Você
fará um n d õ p f', ele responde: “ Ah! meu pai não me disse na­
da.”
Esta análise permite compreender porque, quando da ter­
ceira hospitalização, Omar parece aliviado, quase feliz: seu
pai concorda em fazer o sacrifício que os rab pedem. O pai
aceita ir na direção das mulheres; diriamos que inicia um
diálogo com o lado materno, aliviando de certa forma a situa­
ção triangular.
Mas vimos que o pai aceita a contragosto e em desespero
de causa, reduzindo as concessões ao mínimo: não haverá
ndõp apenas um samp. O prognóstico de êxito do samp é, por
esta razão e por muitas outras, duvidoso. Por outro lado, nos­
sas entrevistas com Omar não constituem uma psicoterapia,
quaisquer que sejam as razões deste fracasso.
*
* *

Muitos meses depois de termos redigido este caso, revi­


mos Omar, hospitalizado pela 4- vez em 20 de novembro de
1964. O quadro clínico que apresenta desde então é muito di­
ferente dos precedentes.
Ar alegre, quase hilariante, Omar deambula com grandes
passadas, fumando incessantemente, soliloqueando geral­
mente. Cumprimenta com um tom afável, caloroso e, logo em
seguida, retoma seu delírio.
É o deus do mundo, do céu, do paraíso e do inferno, o
verdadeiro Deus, o grande Deus. “ Sei que Deus é um homem
grande, um sábio: inventou bastante. E muito mais forte do
que eu. Não, não é mais forte do que eu, somos da mesma ra­
ça. Deus é meu filho. Eu o inventei e depois ele me inven­
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 189
tou... Deus é meu iitnão, temos o mesmo pai e a mesma
mãe.”
O homem que o acompanha (seu pai) é seu filho. Abdou
N. (seu pai) não é seu pai, é seu “ boy” , é um canalha.
“Chamo-me Ngalla, Omar Ngalla, Omar N. (seu verda­
deiro nome), Dialla, Popous, Ibnis, Kayagi, me chamo, sou o
Deus, é eu Ngalla, Malen Ngalla.”
Sua barriga está cheia de sopa. Abastece o mundo inteiro
com sua bam ga. Quando come, abastece o paraíso e a terra
também, não entende isto. Há bilhões de francos na sua bar­
riga, fabrica o mundo inteiro.
O que aconteceu com seus diabos? “Estou cheio de dia­
bos, sou eu quem os comando, que os levei ao paraíso, ao in­
ferno. O diabo da barriga? não, no saco, é minha mulher, é
uma saytané, na cabeça não, na cabeça, sim... não são diabos,
sim, são diabos. Não estão aí. Estão no intercal. O da cabeça
foi embora. O da barriga é o interdiaye; ele está na barriga,
fica aí, está aí, eu estou aí.”
Por fim, Omar fala frequentemente “inglês” , linguagem
incompreensível, fabricada com todas as peças, falada com
sotaque “inglês” , ou “espanhol” , misturada com a língua de
Deus, “é minha língua materna” . E, como depois de uma
longa frase dita em “inglês” nòs lhe pedimos que a traduza,
ele responde: “Quer dizer que estou aí.” Frente à pergunta
“Quem entende inglês?” ele responde: “meu amigo, Inta
Ndiaye (nome e personagem imaginados) [...] não são diabos
que me fazem ficar doente, é meu amigo Inta Ndiaye que faz
eu me cansar, ele não gosta de mim. É meu amigo porque
gosta de mim. Às vezes gosta de mim, às vezes não [...] Os
djiné não são exatamente diabos, a diferença é o intercal: a
explicação entre eu e você.”
O delírio de Omar mostra o que caracteriza a psicose:
Omar está identificado à onipotência fálica, o problema da
castração não se coloca para ele. Não precisa mais tomar pa­
ra si as duras limitações que permitem que o real seja ordena­
do simbolicamente nas diferenças significativas, nas posições
190 ÉDIPO AFRICANO

diferenciais que são a lei da linguagem. Perde suas referên­


cias de posição simbólica: relação de filiação, nome próprio
tomaram-se elementos lábeis, intercambiáveis, que permutam
ao ritmo de uma ronda “louca” . O pai é o filho, o filho en­
gendra o pai ou Deus; o nome próprio toma-se uma série de
nomes; o sim se superpõe ao não; o céu está embaixo e o in­
ferno em cima, assim como Ornar diz que algumas árvores
(bem vivas) estão mortas e efetivamente as arranca do jardim.
As oposições distintivas não operam mais. A evolução psicó­
tica cuja elaboração descrevemos chegou ao seu fim, estando
qualquer referência simbólica apagada, impossível e, por isto,
o “inglês” .
Ornar está agora situado no vazio do simbólico, no inter-
cal, no interdiaye, no Inta Ndiaye, o Intervalo, “a explicação
(impossível) entre eu e você” . Como ele diz: “ Agora eu vigio
a circulação aqui - e designa sua língua - fico aí, vigio.”
Pode-se entender, no contato com ele, como, para viver,
é necessário para Ornar afirmar o vazio que é sua vida, falar
dele, falar de si interminavelmente, em “ inglês” , ou à força
de iterações ou de afirmações e negações alternadas. Seu in­
terminável discurso, sempre recomeçando e prosseguindo
significa, como ele mesmo diz freqüentemente: “eu estou aí” .
Está aí, na vibração do sim e do não, do pai e do filho, do
alto e do baixo, do comer e do alimentar, do consumir e do
produzir, como estavam seus diabos nos anos anteriores, ele
está no intervalo... que talvez ainda seja uma espera ou uma
esperança. Faz um uso narcisista, isto é, imaginário, da lin­
guagem que, por isto mesmo, se destrói enquanto linguagem,
e do pai que, por isto mesmo, tende a se confundir com o du­
plo.26

26. Concordamos com a formulação de A. de Waelhens ao resumir seus


comentários sobre um caso de tuna jovem moça esquizofrênica: "D e fato, por­
tanto, e para resumir, este discurso é apenas aparentemente um discurso que fala,
isto é, que erige, com vistas à comunicação consigo mesmo e com os outros, um
ou mais sentidos universais através de significantes estáveis. Resume-se, em dl-
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 191

A linguagem do esquizofrênico é uma linguagem qüe


ainda podemos compreender mas à qual não conseguimos
responder. Mas, precisamente, não se trata apenas de compre­
ender. O sujeito sd está aí, presente na sua fala, na medida
em que esta fala funda para ele a possibilidade de receber
uma resposta.
Ficamos sabendo depois que, antes da 4- hospitalização,
Ornar, que não parava de pedir um scanp, passara por dois
tratamentos tradicionais com um intervalo de 3 a 4 semanas.
O primeiro scanp foi decidido pelo pai de Ornar depois de
um episódio de fuga e de recusa de alimento. O rito foi prati­
cado por Tiné N., parente idosa de quem o pai nos tinha fala­
do. Durante uma semana Omar esteve bem, até uma nova fu­
ga: é encontrado falando “inglês” e repetindo que se chama­
va Djibril N., nome de seu bisavô materno que era uma figura
eminente no seu tempo e cujo nome ainda é muito conhecido
entre os Lébou.
Tiné N. morreu no entretempo e o pai de Omar consultou
uma curandeira de uma localidade vizinha para um novo
scanp.27 A soma exigida foi considerável: 40 quilos de arroz,
25 metros de percal, uma cabra vermelha, 25.000 francos,
uma vaca. O pai só pôde dar uma parcela. Depois do rito
Omar passa um mês na casa da curandeira para acabar o tra­
tamento. Depois foge novamente e o encontram errando e fa­
lando “inglês” ; repete que é Djibril N.28

tima instância, a uma oposição “ imaginária” , uma oposição de imagens vividas


por identificação, onde aparece mais do que é dita (sublinhado por nós) a disso­
ciação original descrita por Melanie Klein.” A. de Waelhens, “ Note sur le
symbolisme dans la pensée et l’expérience schizophrènes” , Cahiers internado-
naux de symbolisme, V, 1964,33-45.
27. Vemos que para o pai, muçulmano, o sarrtp perdeu toda significação
religiosa e de culto; tomou-se um rito mágico, um tratamento pára-médico que
pode ser tentado várias vezes em seguida. Segundo o que nos disse, o pai via no
samp apenas um rito mais discreto, menos chamativo do que o ndõp.
28. Sabendo que o pai e a mãe de Omar são parentes, perguntamo-nos se o
bisavô materno, Djibril, não seria ancestral comum deles. Até este momento, não
pudemos ter mais informações.
192 ÉDIPO AFRICANO

Nossas informações sobre este período infelizmente são


insuficientes. Mas parece que as terapias tradicionais, longe
de socorrerem Ornar, precipitaram, pelo contrário, a evolução
psicótica. Se considerarmos o que diz o pai, a logorréia deli­
rante teria começado no momento preciso em que Omar se la­
vava com a água do altar, do xamb.
Num certo momento, esperamos que um samp ou um
ndõp pudessem ter uma influência favorável sobre o estado
de Omar; supúnhamos que a prática dos ritos significaria e
realizaria um laço entre os paternos e os matemos. Mas foi o
contrário que aconteceu. O pai tomou a decisão de fazer
o samp sem consultar a mãe, ela nem foi informada (embora
se trate dos rab de sua família), ele nem sabe se ela veio as­
sistir. Queixa-se de que a família materna havia excluído
Omar e se recusava a recebê-lo.
Uma de nós, que pouco depois foi ver a mãe a domicílio,
foi recebida com hostilidade por esta e seus irmãos porque foi
considerada uma emissária do pai. A atitude negativa e reti­
cente da mãe demonstra uma enorme ansiedade, um grande
temor de tudo o que pudesse vir do pai. No fim de uma longa
entrevista onde aparentava desinteresse por seu filho, disse
que não queria falar porque cada uma de suas palavras seria
mal interpretada por seu antigo marido. Concluiu a entrevista
assim: “ Seu pai está de um lado, sua mãe do outro.” Nossa
colega anota: “Nada parece ligar Omar à linhagem materna a
não ser a doença mental. A mãe repete que ela tem a mesma
doença que seu filho, que está presa pelos rab de sua avó
materna, de sua mãe e de sua irmã mais velha.”
Quaisquer que sejam as razões antigas ou recentes desta
situação, as relações dos pais de Omar entre si estão permea­
das de iecriminações, de desconfiança, de temor, de hostili­
dade. Podemos nos perguntar, supondo que os tratamentos
tradicionais tenham realmente agravado o estado de Omar, se
isto não se deu porque estes puseram em evidência, inclusive
acentuaram, a impossibilidade de qualquer diálogo entre seus
pais, nem que fosse a respeito do filho deles.
A NOMEAÇÃO DOS GÊNIOS E O LUGAR DO PAI 193
*
* *

A história de Omar fornece a contraprova das conclusões


às quais chegamos com o exemplo de Talla. O fracasso de um
e o êxito do outro esclarecem-se reciprocamente.
Omar, como Talla, procura se situar em relação à sua mãe
e ao seu pai. Está possuído pelos rab como a mãe; herdou os rab
da família materna e é ao seu pai que pede o samp, o rito de fi­
xação e de nomeação do rab. Tenta apoiar-se no nome do an­
cestral, do bisavô materno, Djibril, como Talla em Diagan Tiaré.
No entanto, desde o começo, os dois casos são muito di­
ferentes. Talla está na vertente neurótica, Omar na vertente
psicótica. A visão inaugural de Talla descrevia uma situação
de troca: o rab propunha um presente, Talla o colocava em
discussão até o momento em que pudesse conhecer sua ori­
gem e sentido. Em Omar há uma tentativa de se identificar ao
pai (tomar o lugar do motorista no carro) mas a tentativa não
chega a se construir simbolicamente; o apelo continua sem
resposta; a reza, a invocação do Nome continua proibida; a
palavra se transforma em coisa, regride para uma imagem
corporal; uma forma humana negra sem nome penetra no seu
corpo; a relação com o pai é captada, paralisada, capturada
por uma relação dual de continente com conteúdo, entre dois
corpos. O nome do ancestral Djibril não suporta nenhuma
construção do simbolismo da herança ou da troca; Omar faz
do nome apenas um uso imaginário: ele mesmo é Djibril. O
pai não é mais nem um rival edípico nem o representante de
uma lei que herda; a representação do pai tende a se confun­
dir com o dpplo narcisista numa identificação completamente
imaginária; a relação de Omar com sua própria origem con­
funde-se com o duplo narcisista; a partir daí, o próprio Omar
é a origem, é o criador do mundo, é Deus. A função simbóli­
ca do pai edípico cedeu lugar ao fantasma das origens, ao pai
genitor sem lei misturando o céu e o inferno; Omar é Deus,
Deus é seu filho; não há mais diálogo entre o pai e o filho,
cada um é o outro num puro jogo de espelhos. O simbolismo
194 ÉDIPO AFRICANO
da castração desapareceu; não há mais limites porque o sim­
bolismo da nomeação que investe a subjetividade na lingua­
gem não consegue mais articular o real em delimitações signi-
ficantes; o caminho da angústia não passa mais pelo estreito
desfiladeiro dos significantes do pai e da morte. Ornar não
está mais apenas possuído pelos Imortais, ele se tomou Deus
eterno. Para ele não se trata mais de tomar o pai mortal e,
conseqüentemente, tampouco de enfrentar a angústia de mor­
te; o nome do pai não se inscreve mais no simbolismo da
castração. Assim como as imagens dos rab circulavam no seu
corpo despedaçado, também os nomes giram numa ronda lou­
ca: “Chamo-me Ngalla (isto é, Alá), Omar Ngalla, Ornar
Dialla, Popous, Ibnis, Kayagi, eu me chamo, eu sou Deus,
sou eu Ngalla, Malen Ngalla.”
Os valores simbólicos definem-se pelas suas oposições
distintivas, suas diferenças mútuas, mas aqui a lei das dife­
renças funciona no vazio, reflete apenas a cisão interna do
eu, a impossibilidade de coincidir totalmente com o duplo
narcisista: Omar está situado no “intervalo, no intercal, no
interNdiaye, no Inta Ndiaye” .
A análise que acabamos de fazer não autoriza nenhuma
conclusão sobre a gênese da psicose de Omar, concerne uni­
camente à estrutura do delírio enquanto tal. Quisemos apenas
mostrar em que a “loucura” se distingue da neurose. Na lou­
cura o complexo de Édipo não pode mais ser construído. En­
contramos apenas suas ruínas: o simbolismo da castração é
eludido, a nomeação não introduz mais o pai genitor no códi­
go das trocas ou a lei do diálogo; a relação do sujeito com
*

sua ongem confunde-se com o duplo narcisista. E o mistério


da psicose: uma palavra que ainda podemos decifrar mas à
qual tomou-se impossível responder; ela não espera mais, de
nenhum outro humano real, a sanção de seu próprio sentido.
Estas minas permitiríam pensar que o complexo de Édipo
é universal na humanidade na medida em que define as con­
dições mínimas de estrutura, aquém das quais encontramos
apenas a loucura.
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS

É um fato reconhecido a notável üreqüência na África dos


delírios com temas de perseguição:

A perseguição colore toda a psiquiatria africana. Vivida de modo


delirante, interpretativo ou cultural, é explicação de tudo o que per­
turba a ordem, desorganiza as relações, atinge o indivíduo no seu ser
físico, mental ou espiritual. É experimentada pelo indivíduo doente,
proposta pela família ou seu meio, amoldada pelo curandeiro ou
“marabuto” .
Os temas de perseguição, freqüentemente apoiados por alucina­
ções visuais ou verbais, estão no centro de todas as psicoses crônicas
ou agudas (incluindo os estados maníacos). São sempre explicitados
nas neuroses, muitas vezes nas doenças psicossomáticas e em qualquer
situação vivida de maneira dolorosa ou desagradável1

É assim que M. Diop, P. Martino e H. Collomb introdu­


zem uma comunicação entitulada “ Significação e valor da1

1. M. Diop, P. Martino e H. Collomb, “ Signification et valeur de la per-


sécution dana les cultures africaines” , Congresso de psiquiatria e de neurologia
de língua francesa, Marselha, setembro de 1964.
196 ÉDIPO AFRICANO

perseguição nas culturas africanas” . Por outro lado, numa


obra de síntese sobre a psiquiatria na África, H. Collomb e J.
Zwingelstein2 assinalam as seguintes noções: tanto nas psico­
ses quanto nas neuroses, os temas de indignidade, de incapa­
cidade, de auto-acusação e de culpa são raros senão ausentes
- há ausência de síndromes melancólicas características - as
condutas suicidas são raras. A depressão aparece para os au­
tores como o elemento, sem dúvida, mais característico da
psiquiatria africana, e apontam que a associação dos estados
depressivos com os delírios de perseguição é a mais frequen­
temente observada.
No Senegal, as interpretações persecutórias delirantes pa­
recem emergir do tecido mais comum e mais cotidiano das
interpretações não delirantes sobre o mesmo tema, que são a
maneira permanente de ser de cada um. Este fato nos remete a
dados sociológicos sem os quais não podemos compreender
as reações individuais. Precisamos, portanto, apresentar os
modelos sociológicos das interpretações persecutórias antes
de nos colocarmos do ponto de vista da psicopatologia indi­
vidual.
Na região do Cabo Verde há, atualmente, três modelos de
interpretação oferecidos pelas sociedades wolof, Iébou e se-
rer: a possessão pelos rab, a marabutagem e o ataque pelos
bruxos. Estes três modelos provêm de três categorias dife­
rentes: a religião (o culto dos espíritos ancestrais), a magia
(marabutagem) e a bruxaria (antropofagia imaginária).
Na África ocidental é chamado “bruxo” “ aquele que co­
meu a carne da noite” , isto é, aquele que, nos vôos aéreos
noturnos, apanha presas humanas e as devora. O bruxo da
África ocidental equivale ao witch da África oriental descrito
por Evans-Pritchard.3 A bruxaria na África admite numerosas

2. H. Collomb e J. Zwingelstein, Psychiatrica in África. Clinicai and Social


Psychiatry and the Problem o f Mental Health in África, Vancouver, 1964.
3. E. E. Evans-Pritchard, Witchcraft, Oracles and Magic among the
Azande, Oxford, Clarendon Press, 1937.
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 197

variantes, mas se define de maneira constante por uma fanta­


sia de antropofagia noturna e de morte por devoração. É o
que corresponde na Europa ao sabá dos bruxos e mais preci-
samente, ao que na alta Idade Média chamavam a strige (ou
estrige) e o strigonS É um grande contra-senso chamar de
“bruxo” um personagem religioso oficial enquanto tal, pois
no vocabulário africano ffancófono a palavra bruxo designa
sempre um indivíduo associai, malévolo, acusado pelos ou­
tros de provocar a morte para satisfazer seus apetites de carne
humana.
Não se deve confundir bruxaria com magia. Formalmente
a magia é a arte de utilizar procedimentos que identificam a
relação de significante e significado com uma relação de cau­
sa e efeito. A magia geralmente supõe um intermediário mate­
rial, um instrumento, procedimentos, enquanto que a bruxaria
não utiliza nenhum intermediário, a não ser, às vezes, o ali­
mento; ela é um poder interno, psíquico, veiculado por uma
substância intra-orgânica que, às vezes, acreditam poder ser
encontrada no ventre, ao fazer a autópsia do bruxo morto.
É teoricamente possível surpreender um mágico operando,
enqúanto que apenas um vidente ou um oráculo pode desco­
brir diretamente a bruxaria.45*8 Por fim, a bruxaria é sempre
malévola, tem apenas um .fim, a morte; pelo contrário a má-

4. Sua definição é encontrada em textos da época carolíngea citados por


R.L. Wagner, “Sorciers" et “M agiciem í', Contribution à l historie du vocabularie
de ia magie, Paris, Droz, 1939, p. 144, nota I: Capitulado de partibus Saxonum
(ap. Mansi, AmpUssima collectio conciliorum, t i t XVII bis, col. 251-253), c. 6:
“ Si quis a diabolo deceptus crediderit secundum morem paganorum, virum ali-
quem aut feminam strigam esse et homines comedere, et propter hoc ipsam inau-
derit, vel carnem ejus ad comedendum dederit, vel ipsam comederit, capitis sen-
tentia punietur.” Lex salica (jbid. col. 295), t i t LXVII, “ Si striga hominem co­
m ederit..” A palavra “ striga” precedeu a de “sortiaria” que Wagner data do sé­
culo XIII.
5. As relações entre magia (instrument&vel) e bruxaria (psíquica) são va­
riáveis. Em muitas regiões, supõe-se que o bruxo utiliza “ fetiches” , isto é, ins­
trumentos mágicos, para matar sua vítima, e poder, em seguida, comê-la. Na re­
gião de Dakar, os dois registros são mais diferenciados, talvez porque a magia
tem tendência a se islamizar (“ marabutagem” ). Mesmo onde estão estreitamente
associados, os dois registros não se confundem.
198 ÉDIPO AFRICANO

gia, a do curandeiro, do caçador de bruxos, pode ser um meio


de lutar contra os bruxos; para se proteger destes últimos po­
de-se ter “um bom remédio” , “a good medicine” , um talismã.
Evans-Pritchard, no seu estudo sobre os Zandé, distingue
também a witchcraft (bruxaria da estrige) e a magia; no inte­
rior da magia, distingue a boa magia do adivinho e do curan­
deiro e a magia negra do lançador da sorte que ele chama de
sorcery (que não deve ser confundida com a witchcraft). A
divagem decisiva encontra-se na oposição entre fantasia de
devoração e uso externo de procedimentos mágicos. Mas, é
claro, a magia, sobretudo aquela “da qual se fala” , infiltra-se
em todo lugar, na bruxaria assim como na religião.
De qualquer maneira, o termo “magia” não se presta
muito a distinções funcionais. Parece preferível utilizar este
termo apenas no sentido formal para designar procedimentos
que assimilam a relação de significação a uma relação de cau­
salidade externa. A magia pode ter vários tipos de funções
religiosas, irreligiosas ou arreligiosas (taumaturgia, sortilégio,
alquimia, para-medicina etc.). Admitiremos que a ausência de
unidade funcional é parte integrante da definição da magia. A
magia é um formalismo do ritual eficaz, cuja virtude permite
transgredir todas as oposições funcionais. Isto significa que a
magia não tem função essencial alguma, não tem “espírito”
no sentido com que se fala de espírito científico, de espírito
religioso, de espírito político, pois ela pode imitar todos in-
distintamente. Em termos psicanalíticos, diriamos que a magia
é a instrumentalidade fálica (entendendo-se que a função
simbólica do falo consiste em tomar equivalentes todos os
objetos “parciais” da demanda). Há, portanto, um grande en­
gano em ver uma oposição fundamental entre magia e reli­
gião, assim como uma continuidade progressiva entre magia e
ciência. É melhor admitir que um mágico pode ser religioso,
ou sábio, ou “médico” . Falar de um mágico talvez nos ensine
sobre sua arte mas não sobre sua função social.
No Senegal, o termo “marabuto” tende a ser utilizado
correntemente para designar toda espécie de curandeiro ou de
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 199

encantador, quer ele seja muçulmano ou, como se diz, “ feiti­


ceiro” .* É claro que para dar a alguém a saúde, o sucesso, a
fortuna, é preciso defendê-lo contra os ataques de seus inimi­
gos. O procedimento mágico que é bom para um pode ser
ruim para outro. Assim, a marabutagem é considerada respon­
sável pelo sucesso de um, assim como pelo fracasso do outro.
A marabutagem não é apenas uma prática, é também um as­
sunto de conversas constantes. Marabuta-se, se é marabutado.
Magia, contra-magia, é um ciclo infernal.
Neste capítulo não temos a intenção de dar uma descrição
etnográfica da bruxaria ou da marabutagem; não estudaremos
que tensões sociais elas refletem; não procuraremos determi­
nar seu lugar ou sua função na sociedade. Nossa perspectiva
permanece subordinada às necessidades imediatas da clínica.
A bruxaria e a marabutagem serão consideradas como formas
dadas pela cultura para os temas persecutórios.
Apresentaremos inicialmente, de forma sumária, as ca­
racterísticas gerais da bruxaria. Em seguida veremos, do
ponto de vista da clínica psicanalítica, a que registros de tro­
cas ela corresponde. Faremos o mesmo com a marabutagem.
Nossa finalidade é de pesquisar como as referências cul­
turais podem se tomar operatórias na clínica. Trata-se de sa­
ber porque tal sujeito escolhe dizer-se vítima de um ataque
por parte dos bruxos e não de uma marabutagem ou de uma
possessão pelos rab. Estes três modelos de interpretação não
podem ser definidos como se existissem isoladamente. Ofere­
cem possibilidades de escolha, de alternativas que são limita­
das umas pelas outras. A bruxaria por exemplo, talvez não ti­
vesse os mesmos valores na clínica se não fosse colocada em
segundo plano pela marabutagem como acontece na região de
Dakar. É por isto que na terceira e última parte do capítulo
exporemos as oposições distintivas entre os três modelos co­
letivos de interpretações persecutórias: possessão pelos rab,

* Fétichéur. Em francês “ feitiço” e “ fetiche” sSo equivalentes. (N. da T.)


200 ÊDIPO AFRICANO

bruxaria, marabutagem, tentando mostrar ao que correspon­


dem na individualização das posições edfpicas.

1. A BRUXARIA

a) A fantasia de devoração

O bruxo (demm em wolof e nax em serer) age de noite


nos sonhos. Seu duplo ou sua alma de sonho, à qual os serer
atribuem pouco peso, voa pelos ares, pode se metamorfosear
em formas humanas ou animais, e sai à caça procurando quem
devorar.
A fantasia de devoração comporta dois temas:
Segundo o primeiro tema, é o duplo do bruxo que, invisi­
velmente, devora o duplo de sua vítima. Quando uma pessoa
se considera vítima de um bruxo, sente-se esvaziada intema-
mente; estão bebendo seu sangue, roendo seus órgãos inter­
nos. O bruxo come o fit, o que designa ao mesmo tempo o fí­
gado e um componente da pessoa, a força vital, a energia or­
ganizada, a coragem. O bruxo pode se transformar em animal
para meter medo na sua vítima e tomar-lhe sua força vital;
pode também, durante o dia, atingir um indivíduo por meio da
sombra que este projeta sobre o solo ou pelas marcas de seus
passos ou, simplesmente, por um olhar, por um gesto que ro­
ça nele. A vítima, desvitalizada, morre após um certo tempo.
O segundo tema é o das. refeições antropofágicas. Os
bruxos se reúnem à noite, sobre árvores ou numa encruzilha­
da, para juntos comerem carne humana. Os serer contam que
depois da morte da vítima, o bruxo convida outros bruxos,
seus associados, para uma refeição; exuma o cadáver, devol-
ve-lhe a alma que lhe havia tomado e, escondido numa vasi­
lha, reanima-o e o despedaça vivo. Mas, frequentemente os
dois temas estão justapostos sem que se explique suas rela­
ções. Afirma-se a existência de assembléias noturnas de bru­
xos. Aquele que, numa primeira vez, deliberadamente ou não
come “a carne da noite” , assume uma dívida. Terá que con-
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 201
seguir outras Vítimas para compartilhar sua carne com os ou­
tros bruxos que se tomaram seus associados. A dívida inicial
o introduz num circuito sem fim de dívidas análogas. É im­
possível sair disto; aquele que quiser interromper os compro­
missos tomar-se-á a vítima de seus associados.
Parece, portanto, que a bruxaria constitui como que um
duplo fantasmático da sociedade, regida, assim como ela, pela
reciprocidade das trocas mas com uma função inversa: o indi­
víduo associai, mau, ou simplesmente a parte onírica dele
mesmo que escapa ao controle coletivo, está destinado a uma
outra sociedade, noturna, fantasmática. Uma maneira de so­
cializar o incontrolável é imaginá-lo submetido a uma dívida
infernal.
“An act o f witchcraft”, diz Evans-Pritchard, “is a psy-
chic act”.6 O modo de ação da bruxaria é invisível. Não
comporta instrumentos extemamente perceptíveis como
aqueles que utiliza o curandeiro ou mágico especialista
(plantas, amuletos ou outros objetos). Teoricamente, qualquer
um podería surpreender o mágico especialista operando, en­
quanto que apenas um vidente pode detectar diretamente o
bruxo. O único instrumento visível que às vezes o bruxo uti­
lizaria seria o alimento. Ao aceitar receber do bruxo um ali­
mento qualquer, corre-se o risco de ser apanhado por ele. O
mesmo resultado pode ser obtido se o bruxo olha alguém que
está comendo.
O poder mortífero que o bruxo possui e seu gosto por
carne humana são veiculados por uma substância intra-orgâ-
nica que se encontra na sua barriga e que somente a autópsia
do bruxo morto podería revelar.

b) O reino da suspeita

Quem é bruxo? A bruxaria é hereditária. Entre os wolof é


herdada por via matrilinear, mas somente a título de disposi-

6. E.E. Evans-Pritchard, op. cit. p. 21.


202 ÉDIPO AFRICANO

ção pode se atualizar precocemente (a partir dos 7 anos, di­


zem) ou tardiamente, numa idade avançada, ou permanecer
latente em alguns. O fato de um indivfduo ser bruxo não per­
mite, portanto, concluir que seus ascendentes ou descenden­
tes o sejam efetivamente, mas apenas que podem ser. Se so­
mente o pai é bruxo, seus filhos são videntes (nooxoor): vêem
a pessoa invisível, não a comem. Se um nooxoor surpreende
alguém comendo, esta pessoa começa a vomitar até entregar a
alma. Entre os serer a bruxaria pode ser herdada ou do pai ou
da mãe desde que um vôo noturno tenha sido feito pelo pai
bruxo na época da concepção ou pela mãe durante os nove
meses de gravidez, o que explicaria a maior freqüencia da he­
rança por via feminina. Caso contrário, se os pais se abstive­
ram de carne humana durante a concepção e a gestação, as
crianças são videntes (madag em serer). As considerações
sobre a hereditariedade evidenciam, portanto, principalmente,
a equivalência com inversão entre vidente e bruxo. O vidente
conhece seus parentes bruxos, tolera-os ou até lhes dá seu
poder desde que estes moderem sua paixão por carne humana
e não abusem dela.
Na obra coletiva Witchcraft and Sorcery in East África,
editada por J. Middleton e E. H. Winter, diz-se que bruxos e
vítimas podem ser, segundo as etnias, ou exclusivamente pa­
rentes ou exclusivamente estranhos uns aos outros, sem que
sobre este ponto haja regras constantes. Entre os wolof cos-
tuma-se incriminar geralmente as pessoas da vizinhança e os
estrangeiros, e certas regiões são consideradas infestadas de
demm. Um de nossos consultantes wolof temia fazer uma
viagem ao Sine; outro atribula à sua estada num povoado do
Sine as perturbações de seu filho... Mas, mais importante do
que a distribuição demográfica, parece ser a forma geral de
ameaça sempre flutuante; todo mundo pode ser atacado pelos
bruxos, todo mundo pode ser suspeito de ser bruxo.
O ataque dos demm é imprevisível; constitui uma ameaça
latente cotidiana da qual convém se proteger através de múl­
tiplas precauções. Inversamente, qualquer um, a qualquer
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 203
momento, pode ser suspeito de ser bruxo. Muitas vezes o in­
divíduo se descobre bruxo através da acusação dos outros; é
o consenso social que, ao acusar alguém, o convida a se re­
conhecer como bruxo. Está o bruxo consciente de sê-lo e de
exercer seu poder?7 Ninguém duvida disto aparentemente,
pelo menos quando se trata de descrever nos outros a bruxa­
ria que lhes é atribuída. Não é raro, no entanto, que o indiví­
duo acusado manifeste seu espanto e se defenda. Entre os se­
rer o acusado recalcitrante é surrado e fustigado até que con­
fesse. A mesma prática, segundo D. Ames8, existia entre os
Wolof de Gâmbia e dos povoados senegaleses próximos até
que foi proibida pela autoridade inglesa no fim do século
XIX. Qual o objetivo da sociedade ao exigir as confissões do
acusado? Aquele que confessa confirma a veracidade dos
oráculos ou adivinhos que o acusam; será submetido a uma
penalidade, o que o fará entrar no circuito normal das trocas.
Por fim, ao confessar, larga sua presa. Se o bruxo se recusa a
largar sua presa, a morte da vítima é certa em pouco tempo.
Parecería, portanto, que uma das funções principais da con­
fissão é a de dissolver a relação algoz/vítima. Assim como a
aurora dissipa os fantasmas da noite, a confissão pública seria
suficiente para destruir a relação dual, capturante, análoga às
imagens de um sonho.
Por fim, as confissões obtidas de imediato não supõem
necessariamente que o acusado tenha uma consciência prévia,
clara e deliberada de seu estado. Com efeito, a bruxaria é “o
mau pensamento” . Quem não teve maus pensamentos contra
os outros? Quem não teve sonhos que possam ser interpreta­
dos em termos de bruxaria? Dizem que os jovens bruxos têm
frequentemente a revelação de seu estado através dos sonhos.

7. Evans-Pritchard fez uma notável análise deste problema; insiste na di­


ferença entre o ponto de vista da sociedade e o do acusado: cf. Witchcraft, Oracies
and Magic among the Azande, cap. VIII, p. 118 e sg.
8. D.W. Ames, “ Beüef in witches among the rural Wolof o f Gambia” ,
África, XXIX, 1959, pp. 263-273.
204 ÉDIPO AFRICANO

Ora, estes sonhos não têm nada de específico: são sonhos


com animais e personagens assustadores... como os que cada
um pode ter. Não é preciso muito para que a acusação social
encontre no sujeito uma confirmação. Esta questão da confis­
são merecería um estudo especial.
Os belos estudos de Denise Paulme sobre os Kissi da alta
Guiné e os Bété da Costa do Marfim descreveram detalhada­
mente o poder insinuante da suspeita: “ Quem pode afirmar
sua certeza de não ser bruxo? De acusador para acusado, de
vítima para culpado, ele mesmo vítima de um mais poderoso,
talvez um morto ou um espírito, o circulo se fecha sem espe­
rança” .9 Havería, então, alguma grande diferença entre algo­
zes e vítimas? Não são ambos objetos da suspeita assim como
da ameaça? Talvez o único ator indubitável deste assunto seja
a palavra alada que voa de boca em boca, metamorfoseia-se
de ouvido em ouvido, a palavra devorante, assassina, inapre-
ensível, sempre em outro lugar, sempre outra, ameaçadora,
suspeitosa, insinuante como a bruma por onde vagam formas
indecisas. É o reino da suspeita, do tam como dizem os wolof.
A relação do bruxo com sua vítima é instável e pode os­
cilar por inversão de papéis. Por exemplo, se a vítima do bru­
xo tem mais força do que ele, é o bruxo que vai ter uma crise
de tipo maníaco chamada ndyaafur durante a qual confessará
seu crime. Ainda acontece em Diender que se queime a casa e
os bens do bruxo assim identificado e que o expulsem do po­
voado. Entre os Wolof de Gâmbia, segundo D. Ames10, a ví­
tima do bruxo, cujo estado piora depois de ter sido pega, ad­
quire no último momento o poder de vidência e pode então
designar seu agressor para os seus. Uma outra forma de in­
versão dos papéis de agressor e agredido existe entre os Bas-
sari do Senegal oriental: o bruxo fica doente por causa da

9. D. Paulme, Une société de Côte cTIvoire, hier et aujourcthui, les Bété


Paris, Mouton, 1962, p. 176. Do mesmo autor cf. também Les gens du riz. Paris,
Plon, 1954; sobre a suspeita e o segredo, p. 211 e sg.
10. D.W. Ames, op. cit.
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 205

carne à noite que ele comeu, de tal forma que um inchaço,


“uma grossura ruim” de que sofre, será suficiente para ser
acusado do crime de bruxaria.
Outro exemplo de inversão de papéis: entre os Toucou-
leur, um bruxo pode ser levado por sua família, ou ir por sua
própria conta ao caçador de bruxos (biledyo), para que este
lhe tire a sua bruxaria. O biledyo, entre outros ritos, o faz
vomitar a “coisa negra” , a substância bruxa. Depois faz dele
seu discípulo, inicia-o durante longos anos para tomá-lo apto
a se transformar, por sua vez, em caçador de bruxos.
Por fim, o caçador de bruxos é um personagem ambíguo
caritativo e temido; ninguém duvida de que ele participa do
poder dos bruxos já que o controla.

c) Religião e bruxaria
*

Evans-Pritchard mostrou como, entre os Zandé da África


Oriental, a luta contra a bruxaria era uma das principais tare­
fas da adivinhação e da “boa magia” , isto é, daquela que se­
gue os fins da religião ou da Tradição.11 O próprio fato de
distinguir entre uma “boa” e uma “má” magia mostra bem
que a oposição entre religião e magia não é uma oposição
fundamental. A magia não tem uma unidade funcional; cada
um percebe alguma magia na religião dos outros, e que reli­
gião está desprovida dela? É melhor admitir que a ausência
de unidade funcional é parte essencial do conceito de magia;
esta é um formalismo resultante da identificação da relação de
significação com uma relação de causalidade.
O que parece fundamental é a oposição entre a religião e
a bruxaria, na medida em que a bruxaria ilustra uma certa
concepção do mal inseparável do animismo africano. A reli­
gião animista pode ser considerada como sendo, em grande
parte, uma anti-bruxaria. Este dado é encontrado ha atmosfera

11. E.E. Evans-Pritchard, op. cit. parte IV , cap. I, p. 387.


206 ÉDIPO AFRICANO

social de todos os povoados do campo. Denise Paulme des­


creveu esta atmosfera mostrando como entre os Kissi o culto
tradicional ainda vivo mantém a bruxaria dentro de certos li­
mites, enquanto que entre os Bété, a decadência das institui­
ções religiosas entrega a sociedade às forças destruidoras da
bruxaria, cada um se isola no seu canto ruminando suas quei­
xas contra a vizinhança.12 A maioria dos profetas que ainda
aparecem hoje em dia na África tem como principal tarefa
lutar contra a bruxaria.
A bruxaria decorre de uma concepção do mal entendido
como uma força persecutóda que vem de fora. Pode ser inte­
ressante destacar uma analogia entre a religião animista e as
religiões bíblicas. O diabo ou Satã conservou um certo núme­
ro de traços que lembram as imagens do bruxo: o diabo é
“como um leão procurando alguém para devorar” (liturgia
das completas), o inferno é figurado pela garganta do sheol, o
diabo está sujeito a todo tipo de metamorfoses, o pacto com o
diabo é homólogo à dívida antropofágica, por fim, o diabo é
o representante do mal como poder externo contra o qual luta
a religião. Assim como aquele que faz a primeira comunhão é
submetido a um interrogatório onde lhe pedem que renuncie a
Satã, a suas pompas e obras, também o jovem iniciado é in­
terrogado pelo padre no bosque sagrado para saber se não
participou de atos de bruxaria e, depois de ter prometido
guardar a Tradição, pode comungar do mesmo cálice que o
padre. Estas analogias parecem encontrar uma certa confir­
mação no fato de que no momento da transição entre o ani-
mismo e o islamismo, são os saytané que tendem a ocupar
o lugar do bruxo.
Estas analogias encobrem, no entanto, duas concepções
do mal profundamente diferentes. Na religião animista, o in­
divíduo se crê atravessado por forças boas ou más das quais
não se sente necessariamente responsável; cabe ao grupo,

12. D. Paulme, op. cá..


AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 207
mais do que a ele mesmo, controlá-las. A bruxaria traduz a
angústia experimentada pelo indivíduo quanto à sua própria
individualidade e a dos outros. Encontra seu antídoto nas
instituições encarregadas de regrar as relações de cada um
com todos os outros.
A valência feminina freqüentemente atribuída à bruxaria
parece estar ligada à posição ambígua da mulher dividida en­
tre a natureza e a cultura, entre a vida privada e a vida públi­
ca. A ambigüidade da mulher decorre do fato de que ela en­
gendra não-cicuncisados; nela a passagem da natureza para a
cultura não está garantida, é sempre um problema. É o que se
expressa pela oposição entre a mulher e o ferreiro que pare­
cem ocupar duas posições simétricas invertidas na sociedade:
a mulher produz não-circuncisados, o ferreiro os circuncisa; a
esposa do ferreiro, a oleira, é sábia, o ferreiro garante a tran­
sição para a sociedade dos adultos. A circuncisão elimina a
indiferenciação entre os sexos, ambigüidade que os Bambara
consideram comparável à da bruxaria.13
A bruxaria situa-se nas fronteiras da sociedade, na oposi­
ção entre o campo e a cidade. É nos lugares de reuniões pú­
blicas ou por ocasião de cerimônias oficiais de transição
(parto, doação do nome, iniciação, casamento) que se está
mais exposto a tomar-se presa de um bruxo. Correlativamen-
te, o bruxo realiza seus ataques à distância; as assembléias
noturnas de bruxos ocorrem freqüentemente na periferia do
povoado, nas árvores ou encruzilhadas. Entre os Toucouleur,
assim como entre vários outros, tudo o que diz respeito à
bruxaria é pensado em comparação com a caça: o bruxo sai à
caça para procurar sua presa; faz armadilhas, espreita, ataca,
escolhe as carnes tenras, a melhor carne, degusta os prazeres
da caça, é semelhante ao caçador que sai da cidade, vai para
o campo.

13. Cf. G. Dieterlen, La reügion bambara. Paris, P.U.F., 1951, p. 64.


Comparar com D. Zahan, Sociêti (finitiation bambara, I, Paris Haia, Mouton,
1960), pp. 49,126-129,336-337.
208 ÉDIPO AFRICANO
A bruxaria parece excluir tanto a intervenção dos deuses
e dos gênios14 quanto a das técnicas instrumentais. É uma re­
lação de homem para homem, mas uma relação que, por meio
do sonho e da fantasia, escapa de qualquer apreensão direta.
Tal relação só poderá ser controlada pelo menos dentro de
certos limites, através de meios mágicos a serviço da ordem
social (oráculos, adivinhos, caçadores de bruxos). Como bem
mostrou Evans-Pritchard, a bruxaria não é magia, mas a torna
necessária no interior da religião.15
*
% *

Acabamos de expor as características gerais da bruxaria;


podemos agora levantar uma hipótese a respeito do registro
de trocas ao qual corresponde.
A bruxaria-antropofagia correspondería ao nível pré-ge-
nital oral. Todas as características desta fase são encontradas
nela:
- Do ponto de vista form al, trata-se de uma forma fantasmáti-
ca dual, com toda a ambivalência que isto comporta, com
passagem imediata e circular do ativo ao passivo.
- Do ponto de vista do conteúdo fantasmático, trata-se de um
tema oral de devoração-incorporação onde a figura devorado-
ra é suscetível de metamorfose.
- Do ponto de vista da imagem do corpo, a representação é
de destruição dos conteúdos do corpo, conteúdos essenciais
de um corpo caracterizado como continente, não fálico.
- Do ponto de vista da vivência, a angústia é massiva, indife-
renciada, siderante; é a própria vida que parece estar em jogo

14. Um indivíduo pode ser atacado por um bruxo e ser defendido por seu
rab. O conflito rab-demm manifesta-se através de perturbações mentais. Os
demm nunca assistem o ndõp que comportam um rito de caça aos' bruxos: seria
um risco para eles.
15. Sobre a bruxaria e a religião, ver o artigo de Lucy P. Mair, “ Witchcraft
as a Problem in the Study of Religion” , Cahiers efétudes africaines, IV, 1964,
pp. 335-348.
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 209

imediatamente e não outra de suas possibilidades. Como


componentes, encontramos a angústia do asmático (opressío,
sufoco), a do deprimido (vazio interno, medo da solidão, de
estar perdido, se perder o outro), do anoréxico vomitador
cujo corpo se esvazia do “alimento ruim” .
As interpretações como tema de bruxaria raramente apa­
recem isoladas, sem estarem associadas num doente a outros
temas persecutórios. Damos aqui um exemplo onde o tema da
bruxaria aparece sozinho; encontraremos casos mistos no ca­
pítulo seguinte.
*

* *

CASO 79: Yaya F ., 17 anos, wolof, muçulmano, seita ka-


dria

Este jovem rapaz é o mais velho de uma fratria de 12


crianças vivas, 3 morreram. Seu pai tem duas esposas. Yaya
foi criado por seus dois pais, em D... onde nasceu seu pai.
Parece ter tido uma 'infância sem problemas. Nota-se apenas
uma séria disenteria com a idade de dois anos, da qual diz
que os rab são responsáveis, o que sua mãe nega. Na verda­
de, Yaya não fala de disenteria mas diz ter tido, aos dois
anos, as mesmas perturbações que atualmente tem e acres­
centa que lhe contaram que era uma história de rab.
Freqüentou durante dois anos a escola religiosa e depois
a escola francesa aos nove anos. Obteve o certificado de es­
tudos em 1962, e desde outubro do mesmo ano é interno no
Curso normal de M..., a 200 Km de sua cidade natal. Está
atualmente no 59, é bom aluno e quer se tomar professor.
Sempre teve excelentes relações com seu meio, tem mui­
tos amigos, gosta de dançar, de música, de roupas elegantes,
das intermináveis noitadas em tomo de um copo de chá.
“Gosto de passar a noite em branco com meus amigos” , diz
ele. Freqüentou muitas moças de D... Ele escreve:
210 ÉDIPO AFRICANO
“Durante as férias de verão eu ia visitar as pequenas amigas,
conversar e fazer tudo o que queremos. Naquela época eu estava são e
salvo, desprezava qualquer dor que aparecesse no corpo, seja na cabe­
ça ou na barriga. Gosto de esporte, sou inclusive esportista, também
gosto de estudar na escola para amanhã ajudar meus pais na alimenta­
ção, o que mais gosto é a distração, gosto de dançar e de música, vou
a bailes.
Gosto de fazer como todo mundo, sou principalmente pensativo,
penso em tudo que posso, no país, nos meus pais e em mim. Quero ter
tudo o que meus amigos têm de bom. As vezes também penso na bele­
za, que me comprem roupas, na distração, quando terei dinheiro com­
prarei isto... tudo, roupas bonitas, depois darei para os meus pais”
(4.11.64).

Impressiona-se facilmente, sempre teve medo de perder


sua mãe e medo dos bruxos (teve, no entanto, amigos que
eram acusados de serem bruxos), assim como de tudo o que
evoca a morte. Ao mesmo tempo, tem prazer em escutar no
rádio noticias de falecimentos.
Seu pai foi chefe de estação de trem antes de ser inspetor
de preços e abastecimentos de sua cidade. Yaya diz que ele é
bom, piedoso, obrigando as crianças a rezarem, mas “avaro e
nervoso” . De sua mãe, Yaya diz que ela gosta muito dele, “é
de quem mais gosta” e que conta com ele.
Yaya é hospitalizado no Centro hospitalar de Fann, no
serviço de psiquiatria, de 17 de janeiro a 29 de fevereiro de
1964. Eis o essencial da observação médica:16

Ao ingressar em 17.1.64:

1) A doença de Yaya começa em 14 de dezembro de


1963 gozando até então de plena saúde.
Depois de um movimento de ginástica, num treino de fu­
tebol, tem bruscamente a sensação muito penosa de uma bola

16. Agradecemos ao Dr. Moussa Diop por termos podido utilizar a obser
vação psiquiátrica de Yaya.
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 211
que sobe do baixo ventre até o peito. Tem, ao mesmo tempo,
a sensação de falta de ar e uma impressão de morte iminente.
Explica que não tinha sensação de constrição toráxica nem
batimentos cardíacos incômodos. Não perdeu a consciência.
O mal-estar durou alguns segundos e terminou bruscamente.
“ Senti a bola cair de novo a tomar seu lugar e não tive mais
falta de ar.” Tudo aconteceu muito rápido e ninguém perce­
beu nada.
O doente pôde, em seguida, continuar seu treino sem
sentir nada mais do que leves dores na barriga.
Na mesma noite, no refeitório, tem a impressão excessi-
vamente desagradável de que teriam “inchado sua pele” . Não
consegue comer. Seu mal-estar dura uma hora e meia mais ou
menos.
Nos dias seguintes sente uma extrema lassidão, dores de
barriga e cefaléias frontais facilmente acalmadas com aspiri­
na. Deve se notar que não apresentou mais nenhum episódio
crítico semelhante ao do começo de sua doença.

2) Passa as férias de Natal na casa de seus pais.

Desde o começo de sua doença o sujeito tem medo da


solidão e da escuridão. Procura segurança junto aos seus
amigos (aproxima sua cama da de um colega), sobretudo
junto ao vigilante que o aceita no seu compartimento. Não
ousa deitar no dormitório pois há neste dormitório um colega
de D... que seria um “bruxo” . Junto ao vigilante sentia ape­
nas uma segurança relativa e, pelo contrário, sentia-se total­
mente seguro junto ao seu pai em D...
Em D ..., durante as férias de Natal, Yaya acorda uma
noite assustado, aterrorizado. Declara então “ver, não pelos
olhos mas pelo espírito, duas pessoas inclinadas sobre ele
com um machete para matá-lo” . Não reconhece nem os ros­
tos, nem o sexo destes dois personagens. Começa a gritar:
“ Vou morrer, eles vêm me matar” , mostrando os dois perso­
nagens invisíveis para as pessoas.
212 ÉD1PO AFRICANO
Desde esta noite, Yaya apresenta crises de angústia com
cenestopatia, impressão de morte iminente e convicção ina­
balável de que um bruxo o está “comendo” . Com efeito, por
ocasião destas crises, tem a sensação extremamente penosa e
angustiante de que bebem seu sangue, que o retiram dele, que
lhe “tomam” o coração e o fígado. Acredita então estar a
ponto de morrer, vai, vem, lamenta-se e controla incessante­
mente o funcionamento e a posição dos órgãos: verifica ò
pulso, detecta os batimentos cardíacos na ponta, procura seu
fígado no hipocondrio direito e como não consegue senti-lo
com os dedos, fica persuadido de que não está mais lá. Deve-
se notar que durante estas crises não há batimentos cárdiatfbs
incômodos, mas sim a impressão de parada do coração ou da
circulação; impressão de sufocar por falta de ar, como se os
pulmões tivessem parado de funcionar. Impressão também de
que a palma da mão ficou pesada, como que “cheia de ar” .
As crises de angústia são sobretudo noturnas, ocorrendo
raramente de dia, e por isto o temor da escuridão e da soli­
dão, com comportamento de evitamento e de procura de asse-
guramento de noite.
Durante o dia, em geral, poucas coisas, a não ser algumas
queixas a respeito de seus órgãos e seu medo de morrer. O
doente declara que está preocupado com seu corpo e com sua
doença; gosta de falar disto com qualquer interlocutor que
encontre. Procura ativamente nos livros, nas revistas, nas
conversas com médicos, marabutos e inclusive leigos, a ex­
plicação da sua doença. Apesar de todos seus esforços não
chega a uma explicação racional e disto decorre sua convic­
ção de que se trata de bruxaria.
Consultou pelo menos cinco marabutos que teriam con­
cluído pela bruxaria (voltaremos a estas consultas). Depois do
agravamento das férias de Natal, uma ligeira melhora foi atri­
buída aos tratamentos indígenas: as crises ficaram menos
fortes, mas persistentes: astenia, cefaléias difusas, vertigens,
sensação de “vento” na barriga com muito incômodo, isto tu­
do além das crises. Espera ansiosa no intervalo das crises.
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 213

De volta ao Curso normal depois das férias de Natal,


frente à persistência dos distúrbios, a hospitalização é decidida.

3) Ao entrar, o doente está em plena crise de angústia. A


sintomatologia é idêntica à que descreveu, com angústia de
controle dos órgãos, procura de segurança. O tratamento com
Equanil injetável produz uma boa sedação das crises. Mas o
fundo ansioso permanece, alimentado pelas investigações do
doente e as explicações fantasiosas fornecidas pelos outros
doentes e o pessoal subalterno.
Não há nem confusão nem alucinação. O nível intelectual
é bom. O estado geral é bom. Os exames complementares são
negativos, exceto o E.E.G. que mostra anomalias lentas difu­
sas, associadas a uma má organização do ritmo de fundo e à
presença de ritmos rápidos.
Em 4.2.64, a observação indica: melhora pelo Equanil. O
E.E.G. melhora. Persistência do fundo ansioso, da síndrome
hipocondríaca, das inteipretações claramente delirantes: não
pode se tratar de um sortilégio de um “bruxo” pois a doença
já dura quase dois meses. Aquele que é realmente pego por
um bruxo, ou morre muito rápido, ou se cura muito rápido
com um tratamento apropriado. Nem o raciocínio baseado nas
normas culturais, nem a experiência têm alguma influência
sobre a convicção do doente.
Em 29.2.64 o doente, tendo melhorado, recebe alta. Ain­
da acredita ser vítima dos bruxos. Sua convicção parece me­
nos sólida, mais vacilante. Está decidido a ir consultar outros
marabutos com seus pais. Deve ter consultas a cada quinze
dias fora do hospital.

Tivemos seis entrevistas com Yaya durante sua estadia no


hospital (de 4 a 24 de fevereiro). Depois da sua saída, nós o
veremos em 6 de abril, 30 de maio e 18 de junho. É fácil falar
com ele pois, no hospital, está sempre em busca de um inter­
locutor com quem comentar sua doença. Suas falas às vezes
são difíceis de entender: relato rápido e francês medíocre,
214 ÉDIPO AFRICANO
mas sempre que lhe pedimos explica suas idéias, desejoso de
ser compreendido.
Completando os dados da observação médica com os das
entrevistas, podemos tentar analisar o caso de Yaya com refe­
rência ao conceito tradicional de bruxaria tal como tentamos
formulá-lo.
A forma dual da relação fantasmática com o bruxo assim
como seu conteúdo oral são evidentes. Antes de “comê-la” o
bruxo faz a sua vítima comer:

“Principalmente o que me mete medo é um curandeiro que me


disse: ‘São uns antropófagos, eles querem te comer, estragar tua vida’.
São pessoas, entre nós os negros, ao te verem, você os agrada, te dão
algo para comer ou beber; você bebe, tac... fica com uma doença gra­
ve... colegas na escola me disseram: é tão grave, pede uma licença, se­
não você vai morrer. Comem teu coração, o fígado.”

Um dos marabutos consultado por Yaya lhe diz: “Os


bruxos te deram algo branco para comer.” O sujeito se lem­
bra de ter comido uma banana oferecida por uma moça de tez
clara de D... um ou dois meses antes do começo da doença.
Como sempre se observa nestes casos, a ansiedade do
sujeito é mobilizada pela urgência que há em descobrir quem
o “come” . Relembra também incessantemente o que os ma­
rabutos e os curandeiros que consultou disseram. Podemos
compreender que a representação imaginada do agressor de-
vorador é a maneira de se sentir viver, viver devorado. Nas
marabutagens não aparece esta procura obsessiva do agressor,
este “quem é?” acompanhando a impressão de morte imi­
nente. Os pronunciamentos dos marabutos e curandeiros,
quando fazem o diagnóstico de bruxaria, parecem ter por
junção fazer existir o par devorador!devorado. Assim acon­
teceu com Yaya nas cinco consultas que relatou.
- O primeiro marabuto foi consultado em M... O sujeito en­
controu uma mulher grávida que não conhecia e lhe pediu
que o acompanhasse a um marabuto. Este declarou que são os
bruxos que querem comê-lo: “Há uma mulher de tez clara
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 215

que podería ser sua mãe e um jovem mais forte do que você.
Ambos são de D... Te pegaram. Você está entre a vida e a
morte. Imploram ao teu rab para te terem, mas o rab recu­
sou.” O doente recebeu safara do marabuto que utilizou para
se untar e misturar com a água do banho.
- O segundo marabuto foi consultado em D... O doente, desta
vez, foi acompanhado de seu pai e de sua mãe. O marabuto
disse mais ou menos as mesmas coisas que o primeiro; con­
firmou: “E teu rab que te protege, sem isto você estaria
morto.” Acrescentou: “ Os bruxos te deram algo de branco
para comer.”
- O terceiro marabuto foi consultado em Lagnar, de novo
com o pai e a mãe do doente. Disse: “Quem te pegou é uma
mulher de tez clara. É teu rab que recusou.”
- O doente foi ver sozinho o quarto marabuto em D... As
mesmas palavras lhe foram ditas.
- Por fim, ainda em D ..., acompanhado de um amigo, con­
sultou uma curandeiia que lhe disse as mesmas coisas.
Acrescentemos que estão previstas outras consultas.
O que chama a atenção nestes discursos é sua estereoti-
pia; a este respeito o caso é exemplar pela sua banalidade.
Quadro clinico que Yaya apresenta, suas crises de angústia
agudas correspondem culturalmente ao diagnóstico de ataque
pelos demm. Todos os marabutos e curandeiros confirmarão a
mesma coisa e é o que se espera deles em primeiro lugar.
Em segundo lugar, espera-se deles que designem o res­
ponsável. Nunca o fazem precisamente, dão apenas indica­
ções. Indicação de sexo, geralmente combinada com uma
qualificação ou característica tomada das representações tra­
dicionais: uma mulher de tez clara, um homem negro, um
homem grande, um homem com um camisão branco, uma
mulher bonita, jovem ou velha... A formulação “te deram al­
go de branco para comer” pertence ao mesmo registro; o
branco é a cor das oferendas ou dos malefícios; as iguarias
brancas são incontáveis e as mais comuns: leite talhado, ar­
roz, açúcar, farinha, cola, banana... Mas um enunciado deste
216 ÉDIPO AFRICANO
tipo é suficiente para que a suspeita seja lançada, para que a
reflexão dos interessados encontre um ponto de partida ou de
apoio, para que o par fantasmático seja constituído. Assim,
Yaya e seus pais escrutinam o passado próximo e suas lem­
branças, passam em revista todas as mulheres de seu meio,
suspeitam de uma e depois de outra, desconfiam de todas.
Acrescentemos que o rab protetor faz parte do diagnósti­
co dos cinco consultados; já que o sujeito não morreu depois
de algumas semanas de doença é porque ele está protegido
pelo seu rab, segundo as concepções tradicionais.
Massiva, indiferenciada, siderante, com sentimentos de
destruição dos conteúdos do corpo e sentimento de morte
iminente; assim vimos a angústia de Yaya.

“Desde que a doença me pegou, só penso na morte. Ficando so­


zinho, quando aparece uma dor, seja na cabeça, seja na barriga, em
qualquer lugar, acho que é a hora.”

Completemos o quadro clínico que temos, acrescentando


que vômitos.acompanharam suas crises, que nosso sujeito re­
cusa certos alimentos que considera prejudiciais para seu co­
ração ou fígado, alimentos equivalentes ao alimento branco
inicial que fez dele a presa do bruxo - trata-se de óleo, de
pimenta, de vinagre. De forma semelhante, a imagem da de-
voração dos conteúdos do corpo é encontrada nele, de acordo
com a representação tradicional e sob uma forma homóloga,
“aculturada” ; trata-se então de ascaris e de tênia, conheci­
mentos escolares recentes que, ansiosamente, Yaya procura
enriquecer e precisar. Exige análises de fezes e imagina a ati­
vidade dos parasitas no seu corpo.
Yaya associa a este tema a evocação de um aborto feito
por sua mãe e atribuído à ingestão de sal proibido pelo médi­
co. Neste mesmo sentido, sua disenteria dos dois anos é para
ele o primeiro ataque da doença.
Até aqui consideramos o tema do bruxo antropófago co­
mo formalização tradicional e a utilização pela coletividade
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 217
de um certo tipo de relação intersubjetiva, a relação dita oral.
Retomando agora uma visão clínica, não se trata de imobili­
zar o caso de Yaya nesta relação, tão piegnante quanto seja.
Temos que nos perguntar sobre o movimento que desembo­
cou na sua emergência e sobre a função que preenche; para
isto vamos colocar entre parênteses a pressão da tradição
quanto à formalização da “doença” (semiologia vivida, re­
presentações...) e quanto à sua valorização.
Em Yaya, a dinâmica da organização neurótica pode ser
lida claramente. A imobilização na relação dual se dá no fim
de um movimento de regressão frente a emoções fâlicas
portadoras de angústia de castração edCpica, por um lado;
está subtendida pela prevalência de uma imagem de mãe fáli-
ca, favorecida no sujeito por um certo modo de “ausência”
do pai, por outro lado.
Já sabemos que a primeira crise de Yaya ocorreu durante
um treino esportivo. Tratava-se da preparação para uma par­
tida importante para a qual “o governo dá taças” . O treinador
gosta de Yaya, conta com ele e diz aos outros que ele é o
melhor jogador. Ora, Yaya que é pacífico e geralmente auto-
controlado, diz que fica rapidamente zangado se um amigo
esbarra nele ao jogar futebol; responde com um pontapé e
injúrias:

“Às vezes, mesmo sozinho, zango-me, não me sinto à vontade,


penso no mal, em que os mais fortes me batem, me maltratam... so­
nhos assim; ãs vezes também em que meu pai bate em mim, nestes
momentos choro sem razão.”

Associa a isto o pensamento de ter roupas bonitas, di­


nheiro suficiente para ele e para dar aos pais (signo de esta­
tuto adulto), assim como no seu espanto de ter conseguido
entrar no colégio. Conclui: “ Antes eu era esportista, agora,
não posso nem mais ver uma bola.”
Assim como não pode mais ver uma bola, não pode mais
pensar como antes em estudar: “ Antes eu pensava em estudar
mais, agora acabou; quando eu pensava no estudo, não tinha
218 ÉDIPO AFRICANO

medo, não queria que meus colegas me ultrapassassem, estu­


dava a noite toda... me esforçava... desde que estou doente
nem consigo ficar parado, circulo o tempo todo e não consigo
aprender direito minhas lições... agora acabou, sinto-me can­
sado e preguiçoso.” E, comentando um incidente em que se
sentiu como um “ louco furioso” : “Foi realmente ignóbil, ba­
tia nas poltronas, dizia para mim mesmo que ia abandonar as
aulas.”
Vemos que as situações ou os impulsos e pensamentos
agressivos são percebidos como não controláveis, são ansió-
genos, provocando uma regressão frente ao confronto ou o
êxito die valor fálico.
Além das sessões de treino de futebol, Yaya deu uma
outra versão da origem de sua doença: uma noite, na casa
dele em D ..., acorda assustado, aterrorizado. Declara então
“ ver, não pelos olhos mas pelo espírito” , duas pessoas incli­
nadas sobre ele com um machete para matá-lo. Começa a
gritar: “ Vou morrer, vêm me matar.” Foi a partir desta noite
que se instalaram as crises de angústia com impressão de
morte iminente e a convicção inabalável de que um bruxo o
está comendo.
Lembremos também que desde o começo de sua doença,
Yaya tem medo da solidão e da escuridão e que só se sente
perfeitamente tranqüilo junto ao seu pai.
Vejamos agora como aparece a imagem do casal parental.
Yaya desenha “a casa paterna” , com o quarto do pai, o de
cada uma das duas esposas, o dos “estudantes” .

“Gostava de falar com meu irmão, principalmente minha mãe.


Ela me contava histórias do tempo passado. Contava-me discussões
quando era jovem, tudo o que fazia quando estava com meu pai.”
“Assistí a uma batalha quando era pequeno, com uma outra mu­
lher; foi nos poços; a outra mulher dizia palavrões, eu não me dava
conta; minha mãe pegou um pau e disse para se defender. Você sabe,
meu pai estava designado lá como chefe da estação. No momento da
briga todas as pessoas do povoado vinham jogar pedras em nós. Meu
pai estava ausente, viajando. Tínhamos uma empregada, carregava o
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 219

irmão zinho nas costas. As pessoas queriam derrubar a empregada


para estrangular o pequeno. Quando meu pai veio, contam-lhe, queria
telefonar para a polícia mas tinha pena daquelas pessoas. - E o fim da
briga? - Minha mãe tinha amigas, estas vinham, diziam para ficar
quieta, arrumamos tudo isto. - E você? - Constatei que as pessoas me
diziam: vem, te damos balas; não sei se era para me fazer mal. Minha
mãe me segurou... Minha mãe me disse que ela fazia confusão demais
quando era jovem; ela fala muito, também gosta de gargalhar, acon­
selha-me todos os dias, conta realmente comigo.”

Depois:

“Brigo demais com meu irmão de catorze anos mesmo pai, mes­
ma mãe. Ele não gosta de estudar. Nosso pai gosta muito dele, mais do
que de mim. Eu me pareço com minha mãe, ela me prefere. Ele parece
com meu pai e acho que é porque lhe deram o nome do meu pai.
Quando reclamo porque ele me enche, meu pai nem lhe dá bronca.
Mas minha mãe dá bronca nele o tempo todo. Sidi gosta demais de
brigar com os pequenos, perturba a casa. Eu faço a “siesta” , procuro
o amigo, bater papo; de noite vou passar a noite em branco com os
amigos. Respeito as pessoas.”

Temos, de forma bem explícita, uma imagem de mãe fáli-


ca que, a pauladas, estando o pai ausente ou sendo ele muito
indulgente, encanega-se das relações do grupo familiar com a
sociedade. Na sociedade são projetados os atributos da “mãe
ruim” que destrói seu filho, no caso aqui: estrangular, seduzir
com balas para prejudicar.
Além disto, o pai que prefere o menor menos estudioso e
objetivamente menos adequado ao ideal social da coletivida­
de, desestimula assim qualquer identificação de Yaya com
ele. Yaya é rejeitado para o ladò da mãe.
A imagem materna tende, portanto, a garantir a mediação
social e serve de apoio valorizador para o ideal do eu de Yaya.
Parece que ao chegar ao umbral de uma posição edípica,
como testemunham as fantasias e situações de registro edfpico
que relatamos, Yaya não pôde superar a angústia de castração
ligada à afirmação individual e regrediu para posições pré-
220 ÉDIPO AFRICANO ,

genitais. No registro pré-genital, utilizou as representações


tradicionais que deram significação à sua doença.
A evolução do caso parece confirmar esta compreensão.
Em maio e junho, Yaya está muito melhor, ainda que um fun­
do ansioso sobre os temas descritos persista. Eis o que nos
diz em 30 de maio:

“Estou melhor.”
“Quando jogo futebol, o tempo todo meu coração bate muito rá­
pido. Assim mesmo jogo, ãs vezes me dá falta de ar, paro. Aliás, vou
fazer uma partida contra o 5° B, espero que a gente ganhe.”
“Às vezes tenho idéias extravagantes. Penso nas férias, que irei
descansar em Dakar, que meu irmão mais velho (um primo) vai me
comprar umas calças bonitas, camisas, ele me prometeu. Penso na
dança, as garotas, também as férias em D... onde estão meus pais e
meus amigos. Isto me faz ficar alegre. Também em noitadas com os
amigos e a música. Vou entrar na equipe para disputar partidas.”
“Você ainda pensa nos bruxos?”
- Acho que me deixaram, não sei quem é mas não procuro mais.
- Você pode me falar de teu irmão mais velho?
- Ele não é casado; tem um quarto em Dakar. Às vezes me es­
creve cartas para me dizer que estude bem, para me aconselhar. Ele
tem o certificado. Não quer que a gente se divirta muito; quando ele
estava na escola, era turbulento. Acha a vida bela; é órfão de pai e
mãe.
- Você gostaria de ter uma vida como teu irmão mais velho?
- Sim, até mesmo mais, uma boa profissão... Sonhei que tinha
a filha de um colega, que lhe fazia a corte.
- Em M..., você pode ver garotas?
- Sim, eu poderia, eu gostaria, mas eu não quero. Meus pais me
disseram que há antropófagos demais em M... Se faço a corte a uma
garota, se ela é antropófaga, ela pode te pegar. Uma garota atrapalha
os estudos, também custa caro; se o vigilante te pega na cama com
uma garota, você pode ser expulso.
- E teu estudo?
- Não está regular. Esqueço as lições que aprendí. Ainda não
estou alegre como antes: primeiro meus estudos baixaram um pouco,
segundo, me enfraquecí; estou retomando as forças.”
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 221

Em 18 de junho sonha: “ Mais uma vez me deitava com


uma garota de tez clara que não conheço’’ (tez clara, como a
“bruxa” , segundo os marabutos). Seus colegas de M... que­
rem levá-lo para as garotas. Ele não quer por causa da ad­
vertência de seus pais. Ficará com as garotas em D...
Constatamos que a fantasia de antropofagia se dilui, per­
de sua consistência e tende a ser integrada numa problemática
edípica; a garota podería ser antropófaga e esta eventualidade
está ligada à advertência dos pais; mas Yaya considera tam­
bém o prejuízo que podería haver para seu êxito social se fre­
quentasse uma garota de M ..., e se imagina freqüentando uma
garota em Dakar.
O êxito social ainda está parcialmente barrado (resto de ini­
bição escolar, mal-estares no futebol), mas resolutamente alme­
jado: retoma suas forças, estuda, pensa em ganhar a partida.
A imagem do “irmão mais velho” serve de suporte para a
afirmação fálica. Não é casado mas dá roupas e conselhos
como um pai, tem uma boa profissão, uma boa vida. É “ór­
fão” , desligado de suas próprias imagens parentais.

2. A MARABUTAGEM

A maioria de nossos interlocutores africanos falam com


reticências de seus rab e com mais dificuldade ainda dos
demm. Os efeitos das “marabutagens” são mais facilmente
abordados. A marabutagem é um dado social massivamente
presente em todas as camadas sociais e etnias da região de
Dakar.
Consiste em práticas mágicas feitas na intenção delibera­
da de proteger alguém. Mas para proteger uma pessoa, muitas
vezes é preciso prejudicar outras. Quem é “marabutado” é,
portanto, atacado. O termo marabutagem inclui tanto práticas
ditas “islâmicas” quanto práticas “fetichistas” *. O feiticeiro
recebe seus poderes dos espíritos, age por meio de fetiches,

Ver nota p. 199.


222 ÉDIPO AFRICANO

xerem em wolof. O marabuto dirige-se a Deus, diretamente


ou por intermédio dos djiné. Utiliza escrituras, isto é, versí­
culos ou fórmulas do Alcorão. O papel escrito é, ou enfiado
num amuleto (grigri, teere), ou colocado de molho ou para
ferver numa água que será utilizada em abluções ou para in­
gestão (safara). Em wolof, a ação de marabutar se diz bind,
ou ligey; bind significa escrever e ligey, trabalhar, estando
subentendido “por meio de escrituras” . O marabuto pode
também utilizar o xaatim.: citamos P. Mercier e G. Balandier:
“O sistema do quadro ou xaatim. Consiste em colocar, sob
forma de quadro cifrado, nomes considerados “poderosos”
(nome de Deus, do Profeta, dos Califas...) ou de colocá-los
no interior de um conjunto geométrico...” 17
É preciso saber que o termo “marabuto” tem, no Senegal,
uma grande extensão. Designa:
- Os verdadeiros marabutos, homens sábios, cultos e
piedosos, cuja vida é dedicada à prece e ao ensino;
- Os marabutos que, sabendo mais ou menos o árabe,
ensinam e cuidam por meio de um pagamento. “O marabuto é
frequentemente um mágico, um vidente, um adivinho” , es­
creve V. Monteil.18 É difícil determinar o que é animismo e o
que é islamismo nas suas práticas.
- Por fim, os marabutos, também muito numerosos, que
não têm nenhum conhecimento religioso particular mas que
fazem o comércio de tratamentos, amuletos, conselhos, previ­
sões. Podem se deslocar como mercadores ambulantes, ou
exercer sua arte apenas no período de 'seca, como trabalho
suplementar.19

17. P. Mercier e G. Balandier, Les picheurs libou du S in ig a l, Études séné-


galaises n9 3, Dakar, Centre IFAN, 1932, p. 127.
18. V. Monteil, L'Islam noir, Paris, Éd. du Seuil, 1964, p. 139.
19. V. Monteil escreve sobre os marabutos: “ Ninguém conhece seu nú­
mero exato, mas ficaríamos surpresos, se o conhecéssemos, pela sua quantidade.
A título indicativo, podemos notar que a Confiaria dos Mourides, no Senegal,
que agrupa de três a quatrocentos adultos homens, tem pelo menos 200 sheiks de
‘primeira classe’, mas há um marabuto em cada aldeia mouride, isto 6, para mais
ou menos 150 discípulos, aproximadamente 2000 marabutos", op. cit., p. 123.
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 223

Os marabutos pertencentes à primeira categoria têm, se­


gundo os crentes, uma atitude religiosa pura; rezam direta­
mente a Deus e nunca têm a intenção de prejudicar alguém.
Entre os marabutos das últimas duas categorias, os crentes
distinguem claramente os “maus marabutos” dos bons mara­
butos. Os primeiros invocam tur u djine (o nome dos djiné),
os outros tur u Yalla (o nome de Alá).20
A religião oficial (Deus e os djiné — djiné crentes - que
são os intermediários entre Deus e os homens) opõe-se o
mundo dos saytané ou djiné paiens. Dos saytané só se pode
esperar o mal, a desordem e doenças. Os “maus marabutos”
são aqueles que fizeram um pacto com determinado saytané,
pacto perigoso, mas frutífero quando se consegue não perder
a cabeça no contato com o saytané. Ser aliado de um saytané
poderoso equivale a garantir para si poder e riqueza.
Nem sempre é fácil situar o djiné de que se fala: é ele um
djiné (crente) cujo contato engendra medo, pânico, perturba­
ções mentais (dyorrmú em wolof) mas que não quer prejudicar
e que poderá ser apaziguado graças à mediação de um mara­
buto? ou é ele um djiné (saytané) que só busca o mal? Um
indivíduo pode fazer um pacto com um saytané. Além disso,
parece que certos marabutos distinguem sintomatologias dife­
rentes em função do paciente ter sido atacado por um saytané
ou por não ter podido suportar o contato fortuito com um dji­
né. Não entraremos nos detalhes destas representações; de­
correm de um gênero comum que apela para a mediação de
um marabuto e é sobretudo este ponto que ressaltaremos. Ao
contrário do que encontramos no animismo onde os espíritos
estão associados a linhagens, o mundo dos djiné nos faz en­

20. V. Monteil cita Badou Fali, em Paris-Dakar de 30 de janeiro de 1961:


“ [...] os falsos marabutos” são “ acusados de enganar os apaixonados, os desocu­
pados, os que buscam tesouros, falando dos poderes dos sunguf (amuletos-sachê
de farinha) e dos laar (longo amuleto cheio de pelos de animais) que atrairão os
sentimentos de Comba que nunca o amou, ou a simpatia do patrão para quem
Mor, sem especialidade, apresentará seu pedido de emprego; e a Thiogane, que
não tem nenhuma garantia, a obtenção de um empréstimo de um milhão que lhe
será dado pelo diretor do banco. É simplesmente vergonhoso.” op. d u , p, 141.
224 ÉDIPO AFRICANO

trar na perspectiva de uma sociedade mais extensa onde se


afirmam hierarquias de poder, de riqueza, de saber, de suces­
so... E neste contexto que vemos aparecer rituais de exorcis­
mo, ao contrário do que acontece no animismo onde os rituais
de possessão têm por finalidade dar uma forma cultural à pre­
sença do espírito e não espantá-lo.21
Muito variável segundo as regiões e as etnias, o número
de vítimas dos rab e dos bruxos é relativamente limitado. Mas
podemos dizer que todo mundo está marabutado ou em vias
de marabutagem.
Qualquer um, na medida em que tem boa saúde, é bonito,
próspero, inteligente, apreciado, amado, fecundo e na medida
em que isto é percebido pelo meio, sente-se em perigo de se
tomar objeto de inveja, de ciúmes e, portanto, de ser mara­
butado. E é assim que cada mal-estar, cada incidente desa­
gradável ou desgraça, cada fracasso, acidente, doença é, às
vezes, depois de eliminada a hipótese de agressão pelos rab
ou pelos bruxos, atribuído a uma marabutagem.
Os primeiros suspeitos são os rivais diretos: o estudante é
marabutado por seus colegas de escola; a esposa por suas co-
esposas; o agricultor por seus vizinhos com terras menos pro­
dutivas; o comerciante ou o político por seus colegas e rivais.
Mas é claro que também a criança doente ou o estudante que
perde a memória são marabutados pela rival de sua mãe (o
mesmo termo wudy significa co-esposa e rival), ou pelos pais
de um estudante que tem menos êxito.
Na região de Dakar, o recurso ao marabuto é cotidiano:
para ter um filho logo depois do desmame do último, para que
a co-esposa não tenha filhos, para proteger cada membro da
família contra o meio, para prender o marido ou o amante, pa­
ra desprendê-lo das outras mulheres, para ter sucesso num es-

21. Insistimos em esclarecer que tudo o que descrevemos a respeito da p


tica dos marabutos assim como dos fiéis, deve ser distinguido da ortodoxia reli­
giosa do islamismo; nossas descrições situam-se exclusivamente no plano socio­
lógico.
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 225
I>orte ou numa profissão, para superar seus rivais em política.
É sabido por todos que, por exemplo, em cada remanejamento
ministerial anunciado ou pressentido, os altos funcionários
fazem fila nos grandes marabutos, deixando-lhes somas con­
sideráveis.

A marabutagem correspondería ao nível genital, fálico:


encontramos nela todas as características desta fase:
- D o ponto de vista form al, trata-se de uma relação a
três. A interpretação de marabutagem supõe o casal genital. O
lugar do perseguidor é atribuído pelo lugar que ocupa no
triângulo edipico. Alguém é marabutado por seu rival edfpi-
co, ou pelo rival edipico de um de seus genitores (evidente­
mente com todos os deslocamentos possíveis). E se uma rela­
ção dual mal resolvida subtende frequentemente uma relação
edfpica nascente, esta está, no entanto, claramente colocada
ou pode sê-lo.
- Do ponto de vista do conteúdo fantasmàtico, trata-se
de um tema de castração fálica. O marabutado é ameaçado ou
atingido na sua sexualidade, quer seja diretamente: impotên­
cia, esterilidade, abortos, fracassos em se ligar ao parceiro
sexual, ataque à saúde ou ao êxito de seus filhos; quer seja
simbolicamente: na sua saúde mental, nas suas capacidades
intelectuais, no seu sucesso social, no seu corpo. O corpo po­
de ser atingido de muitas maneiras, perturbações funcionais
ou da motricidade; muitas vezes o que está em jogo é a vida
de relação. Se uma doença orgânica é atribuída à marabuta­
gem, ela é significante para o sujeito de castração fálica.
- Do ponto de vista da imagem do corpo, as representa­
ções são de castração de um corpo sexuado, por ataque a um
õrgão ou a uma função que tem valor genital. Observa-se fre-
qflentemente entre os consultantes distúrbios da visão e dores
no nível dos músculos e da pele com este valor.
- D o ponto de vista da vivência, a angústia é diferencia­
da. Nos casos em que fica difusa, flutuante, não encontramos
a sensação de morte iminente, de perigo vital imediato, mas a
226 ÉDIPO AFRICANO

sensação de perder sua força, sua coragem, suas possibilida­


des criativas.
O tema da marabutagem aparece como a formalização
tradicional e a utilização pela coletividade de um certo tipo
de relação inter-subjetiva, a relação de nível fálico.
*
* *
CASO 104 - Moktar D ., 30 anos, wolof, muçulmano22

Este doente apresenta há vários anos idéias delirantes de


perseguição com mecanismo interpretativo e imaginativo de
fundo depressivo, com múltiplas queixas somáticas. Só fala
de sua saúde e deseja ingerir a maior quantidade possível de
fortifícantes. Considera-se “marabutado” pela “rival” de sua
mãe que tem um filho da mesma idade, menos dotado para os
estudos. Está persuadido de que esta mulher o faz ficar
doente “com estupefacientes, não venenos que fazem mal,
mas que amolecem, em doses que estropiam” .
Eis a história de Moktar e de sua doença:
Seu meio-irmão e çle foram criados cada um por sua mãe,
em cidades diferentes. Durante seu primeiro ano, Moktar viu
freqüentemente seu pai, e depois mais raramente. Dos 3 aos
14 anos não se encontraram e, segundo a mãe, o pai não se
preocupava com a criança. Quando fez 14 anos, o pai que
então residia fora do Senegal, manda vir seus dois filhos (sem
suas mães divorciadas e recasadas). São internados num li­
ceu. Moktar é um aluno brilhante no 2- e 3- clássicos. Seu
pai diz que ele tem um caráter agradável, nunca o recriminou.
Moktar diz que entre ele e seu meio-irmão havia uma certa
frieza, mas sem inimizade de sua parte.
Durante o ano do 2°, Moktar se isola, parece triste e de­
primido, toma-se preguiçoso e anoréxico. Isto é atribuído ao

22. Agradecemos ao Dr. H. Ayats por termos podido utilizar a observaç


psiquiátrica de Moktar.
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 227
excesso de estudo. O administrador do colégio se alarma.
Consultam um psiquiatra que não se alarma; Moktar fica des­
contente com ele e se recusa a voltar a vê-lo.
Quando chegam as férias de verão Moktar volta ao Sene­
gal para visitar sua mãe. Esta toma o assunto em suas mãos.
Leva-o a diversos marabutos e depois aos feiticeiros. Desde o
começo sua mãe tem certeza de que sua rival está na origem
da doença e, sob as influências conjugadas da mãe e dos ma­
rabutos, a doença se organiza:
“Os marabutos lançaram a suspeita, diz Moktar. Em X... eu
achava isto estranho, mas não pensava muito; com os marabutos mi­
nha cabeça trabalhou. Recusei-me a acreditar, mas na África se diz
isto (que a marabutagem existe), a doença durou, e como tinha tido
um sonho em X..., uma premonição, que ia ter um longo período de
doença, como é um sonho verídico, isto me incitou a acreditar num
outro sonho (tido durante uma doença infantil): via uma mulher negra
muito zangada comigo; pronunciava palavras de ciúmes; havia tam­
bém três homens negros vestidos como europeus, como testemunhas e
cúmplices. Em X... tive um sonho, duas enfermeiras que me inocula-
vam produtos tóxicos, o nome era dito, talvez ‘heroína’. Como o so­
nho de X... se realizou, pensei que este podia se realizar... Os mara­
butos disseram à m inha mãe que fui envenenado, caiu como uma luva.”

Já faz treze anos que Moktar está doente. Tendo fracas­


sado no seu “ baccalauréat” , não quis prestá-lo de novo e
tem emprego subalterno; é astênico, abúlico e com um sorriso
resignado geme continuamente sobre sua falta de força. Sua
mãe continua a consultar os marabutos e a transmitir-lhe a
opinião deles, sempre a mesma: ele está marabutado pela ri­
val dela. Esclareçamos que ele não conhece esta mulher, só
K viram quinze minutos quanto Moktar tinha 14 anos.
O costume, a autoridade religiosa e sua mãe, interpretam
a doença de Moktar; que alternativa lhe resta para interpre­
tá-la de outra maneira? Tem ele realmente a escolha de outra
interpretação? Sua convicção que é a convicção comum
constitui seu “delírio”. Há algum delírio? Ou adaptação ao
meio, à norma coletiva?
228 ÉDIPO AFRICANO
É ao compartilhar desta convicção que ele se situa como
filho do casal parental dissociado. Com efeito, é apenas ou
sobretudo pelo esquema da marabutagem que sua mãe pode
viver e expressar sua ligação e decepção com seu ex-marido.
É através disto que se situa como esposa, desamparada e glo-
rificada no seu filho mais inteligente do que o filho da rival.
Vejamos agora, e voltaremos a isto, como Moktar descre­
ve e comenta o que experimenta.
É claro que o tema da marabutagem, uma vez adotado,
lhe serve para reconstruir toda sua doença, toda sua história
poderiamos dizer, já que remete o primeiro episódio à idade
de 2-3 anos, idade na qual fora hospitalizado alguns dias por
causa de uma disenteria aguda que o enfraquecera muito, ida­
de também em que perdeu contato com seu pai (contato reto­
mado aos 14 anos). É neste momento que situa o sonho da
mulher negra muito zangada com ele.
A rival da mãe tê-lo-ia então marabutado por intermédio
de uma empregada que crê ter visto derramando alguma coisa
num copo de água que lhe ofereceu.
“Dois ou três segundos depois de ter bebido, senti em mim. Ime­
diatamente senti que amolecia sem dor, estranho, que havia uma mu­
dança em mim... Estava pesado como uma estátua, como um tomate.
Não valia mais a pena tentar refletir; tinha vergonha de mim. Dizia: o
que foi que eu fiz? Talvez fosse muito orgulhoso. Fiquei embrutecido,
obtuso como um idiota, pensava que não vivería muito tempo mais.”
“Antes da doença, era feliz, particularmente desperto, dotado
para a língua francesa; já raciocinava; não me sentia como um bebê;
gostava de refletir; tinha as idéias muito claras; sentia-me dotado e em
plena forma. Sentia-me independente, não precisava da minha empre­
gada. Estava armado. Eu era feliz.”
“A doença me fez voltar a ser bebê. A doença me decepcionou
profundamente. Tive uma grande perdeu Perdi tudo de que me orgu­
lhava, minhas faculdades intelectuais. Tomei-me pesado. A palavra
estava parada. Era triste e resignado, depois somente calmo, fazia o
que me mandavam fazer; era preguiçoso.”

Pensa que sua mãe não percebeu que a empregada o ha­


via envenenado nem a mudança ocorrida nele.
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 229
A segunda marabutagem por envenenamento se deu
quando estava no segundo. Foi seu meio-irmão quem o enve­
nenou com um p<5 esverdeado - Moktar acredita ter visto a
caixa meio vazia - sempre instigado pela mãe deste. É neste
momento que situa a injeção de “heroína” por duas enfermeiras.
Desde então falta-lhe dinamismo, sente-se lânguido, não
tem fòrça. Hesita para empreender qualquer coisa. Seu único
pensamento é sua saúde. Queixa-se do fígado, do estômago,
do intestino; digere mal, está constipado. Um homem não po­
de comandar os outros se está doente; um doente tem auto­
maticamente um complexo de inferioridade. É tímido. Tem
um retardamento nervoso; se tivesse dinheiro, compraria
muitos fortificantes; anota, aliás, todos os nomes de fortifi-
cantes que passam pelos seus olhos; pede com insistência um
antídoto contra os venenos, contra a “heroína” .
Divorciou-se de um primeiro casamento depois de dois
anos; parece ter tido relações sexuais normais mas assim
mesmo sente-se atingido pela marabutagem que o “paralisou
em todos os domínios” . Não se aproxima mais das mulheres.
Pensará em se casar quando estiver curado.
Reza, isto o consola, o encoraja, o distrai. Não pode se
Imaginar fazendo um trabalho interessante já que não tem
foiças. Trabalhar, “traz outras preocupações além da saúde” .
Neste caso temos um material pré-edípico explícito e im­
portante com temas análogos aos do caso de Yaya (temas de
envenenamento, de distúrbios intestinais, da mãe fálica). No
entanto, o delírio não se apóia neste material a não ser para se
estender num registro bem diferente, um registro edípico: im­
potência social e sexual, falta de força, sensação de incapaci­
dade, de diminuição, de fracasso; impressão de ter perdido
“algo”, sua felicidade e sua “ arma” , algo que a rival de sua
mãe inveja, e é “heroína” que lhe é injetada.23

23. Não insistiremos aqui sobre o fato de que em cada caso conviría consi­
derar como se manifesta o material pré-genital, com que facilidade, de que mo-
do, mais ou menos controlado ou irruptivo... Este é o problema dos mecanismos
dl defesa sobre os quais poder-se-ia fazer um estudo especial.
230 ÉDIPO AFRICANO

Daremos mais três exemplos, escolhidos pelo seu caráter


comum, de perturbações ou dificuldades atribuídas a mara-
butagens.

CASO 177: Aíssatou G ., 19 anos, wolof, muçulmana


Aíssatou é uma moça wolof de 19 anos, interna, no 2-
anos, no liceu de Dakar. Para fazer seus estudos secundários,
abandonou sua família ao entrar no 62, só voltando para casa
durante as férias.
Seu pai é comerciante em Casamance. Três vezes divor­
ciado, ainda tem 2 mulheres e 14 filhos. Todos seus filhos fa­
zem bons estudos, nenhum repetiu de ano. Os dois mais ve­
lhos estão na França.
De saúde robusta desde a infância, Aíssatou apresentou, há
dois anos, as manifestações a minima de uma doença de
Scheuermann: síndrome dolorosa generalizada, atrapalhando o
sono e qualquer atividade física e intelectual. Tratada e curada,
retomou seus estudos depois de alguns meses de interrupção.
Procura a psiquiatria em 22.01.1965, queixando-se de
sensações vertiginosas e de dores difusas surgidas 3 dias an­
tes. O exame somático e neurológico é negativo e o psiquiatra
a encaminha para nós.
Inteligente, expressando-se com facilidade, a moça nos
descreve seus males; parece bastante deprimida e ansiosa.
Sente algo como um líquido que sobe ao longo de sua
coluna vertebral, que se espalha pelos ouvidos e nariz; boce­
ja; todos os ossos doem. Às vezes não consegue manter o
equilíbrio. É como se lhe enfiassem uma faca na omoplata.
Sua respiração fica bloqueada, seu coração bate rápido de­
mais. Isto sempre acontece em aula, pensa que sua doença
está recomeçando. Logo antes desta crise teve uma série de
sucessos escolares, agora não pode mais estudar.
Temos a oportunidade de ver o pai, de passagem por Da­
kar. Para este homem digno e inteligente, o assunto é claro;
Aíssatou está “trabalhada” , marabutada.
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 231

Ele sabe por quem, por seu próprio meio-irmão de mesmo


pai. Moram na mesma concesão, assim como outros irmãos e
meio-irmãos, desde 1958. “ Com meu irmão, não somos de
mesma mãe, ele tem uma filha na escola, que também se cha­
ma Aíssatou G., mas que não pôde progredir. Repetiu duas
vezes, depois a mandaram embora. Agora está fazendo um
estágio de enfermeira. Os outros filhos de meu irmão não
conseguiram o certificado (de estudos). Moramos na mesma
casa. Conheço as maneiras de meu irmão com minha família:
não é bom. Minha filha não bebe água lá (na casa de seu tio),
não come: a gente desconfia.”
Para o pai de Aíssatou, a prova da marabutagem é evi­
dente: “Fora, ela está curada, mas cada vez que está na aula
para estudar, cada vez que segura a caneta, cada vez a doença
a ataca. Não sente nada a não ser na aula.”
Ele é o sétimo filho de seu pai de quem sua mãe era a
quinta mulher. Situa o “negócio” atual no seu contexto fami­
liar: “Os negócios da marabutagem vêm desde nossas mães:
sabemos que esta ‘trabalha’ para prejudicar o filho de sua rival,
eu não penso em fazer isto, somente em vigiar minha família.”
E insiste sobre a atitude das mulheres em geral que “não
têm vergonha de discutir. Se as crianças brigam, as mulheres
discutem. Nós, os homens, só olhamos. Se você separa as
crianças, os outros pensarão alguma coisa de você (que você
deseja o mal para tal ou qual)” .
Atribui a cura de Aíssatou, dois anos antes, ao tratamento
marabútico que seguiu. Na véspera do dia em que falamos
com ele, levou-a a um marabuto de Dakar, ela está seguindo
um tratamento, já está melhor, o marabuto disse que se cura-
rla rapidamente. Neste dia, disposta e alegre, Aíssatou quer
fStomar os estudos durante sua semana de “convalescência” .
Pai e filha concordam com que ela volte à consulta “para
dly#>r que tudo vai bem” , quando o tratamento marabútico es­
tiver terminado. Três semanas depois, com efeito, a moça,
nenhuma ansiedade, sentia-se muito bem e estudava com
nho.
232 ÉDIPO AFRICANO

CASO 72: Doudou G ., 15 anos, wolof, muçulmano

É encaminhado pelo serviço de medicina escolar por cau­


sa de risos e choros espasmódicos, logorréia, terrores diurnos
e noturnos.
Seu pai, 55 anos, nos diz: “ A doença pareceu logo de­
pois de ele ter passado o exame branco de entrada no 6° Foi
marabutado por um colega. O colega lhe mostrou um chifre,
jogou uma pedra lá (designa o peito), é uma questão de ciú­
mes, diz o professor. Não é questão de loucos, é a magia as­
sim. Ele estuda melhor do que seus colegas. O colega diz que
não o marabutou. Conheço sua família, este colega estuda
bem, mas seu irmão mais velho não teve sucesso nos estudos.
Conheço muitos meninos que foram marabutados.”
Sua mãe explica: “ A doença é mesmo a marabutagem. O
pai e eu fomos ver o marabuto, deu muitos remédios para que
prenda no seu corpo, nas suas costas.”
Quando Doudou, tendo desaparecido suas perturbações,
sai do hospital, sua mãe acha que ele não quererá mais estu­
dar como antes; entendamos que não quererá mais correr o
risco de ser marabutado.

CASO 71: Ousmane S ., 12 anos, wolof, muçulmano

O pai de Ousmane que é ordenança, conta a vida de sua


mulher, Arame, antes de se casarem:

“Quando seu pai morreu, Arame já tinha feito o primeiro casa­


mento, mas era muito pequena, uma criança de doze anos. Você a ca­
sa, você a manda para a casa da tua mãe ou da tua irmã ou para a casa
da primeira mulher. O sujeito que casou com ela era muito velho, com
a barba branca, era um chefe de cantão. Era a 15- mulher. Isto dura
um ano e meio... Depois ela se divorciou do seu primeiro marido.
Casou-se com o alfaiate durante quase oito anos. Mas o sujeito sai de
viagem, tinha três mulheres, faz o bana-bana (comerciante ambulan­
te) e deixa Arame com seu pai que até lhe dá dinheiro. Há umas pes­
soas que viram lá os pais de Arame, eles lhes dizem: ‘Ela está sozinha
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 233

na casa do pai; seu marido não está, ela quer voltar para a casa de vo­
cês.’ O chefe do cantão tomou providências para procurar o alfaiate
no país, para que fique com ela ou se divorcie. O alfaiate disse: ‘Ara­
me precisa me pagar, devolver tudo (o dote).’ Ela pagou, deu inclusive
todas suas roupas, seus brincos. Ficou durante dois anos com seu ir­
mão mais velho. Mas o alfaiate a ama, quer ficar com ela. Mas Arame
sabia que ele tinha aprontado muito; ela parte, ele bate nela. O alfaiate
pediu muito para obrigá-la a ficar. ‘Se você não vem comigo, não fi­
cará com um outro casamento.’ Ele disse isto. Foi ver um marabuto
(para conseguir que no futuro ela não ficasse com nenhum marido).
Depois há outro sujeito que quer casar com ela. Ele gasta todo
seu dinheiro, compra tudo, uma cama. Seu irmão mais velho (de Ara­
me) neste momento gosta deste sujeito, pois são parentes do campo.
Mas Arame recusa. Assim que seu irmão diz: ‘Precisa casar’, Arame
diz: ‘Não, eu não quero’. Seu irmão se zanga pois este sujeito é seu
parente do campo. Os parentes do campo fazem marabutagem. O su­
jeito foi inclusive com o irmão para a polícia de Dakar para que Ara­
me devolva tudo o que tinha dado.
Depois é um motorista que queria casar com ela. Arame não
queria. Depois ela quis. O motorista fez uma marabutagem para obri­
gá-la a aceitar. Mas isto só durou vinte e sete dias. Ela se divorciou de
novo.
O sujeito disse: ‘A marabutagem é até a morte. Tudo o que você
for casar, você nunca terá outro marido.’ São três sujeitos que fizeram
a marabutagem contra Arame; foi antes que eu a retomasse...todo
mundo faz marabutagem contra ela e é a mãe de teu filho, ele vai aca­
bar ficando louco.”

Acrescentemos que Arame casou-se uma primeira vez


com o pai de Ousmane, depois se divorciou, um dia casou-se
com um marabuto, e, por fim, casou-se pela segunda vez com
o pai de Ousmane que conclui:

“Todo mundo (as duas famílias) acredita que são as marabuta-


gens que fazem com que ela não possa ficar tranquila.'’

Arame é, efetivamente, uma mulher instável, que apro­


veita todos os pretextos possíveis para sair de viagem, com
Ou sem a permissão de seu marido (observação J. Rabain).
234 ÉDIPO AFRICANO

3. CONCLUSÃO

Distinguimos na sociedade wolof três formas principais


de interpretações persecutòrias: a bruxaria (dõmm), o “tra­
balho” (ligeey) mágico do marabuto que recorre a diversos
procedimentos quer ele se aproxime mais do animismo ou do
islamismo e, por fim, o culto de possessão pelos espíritos
ancestrais (rab). Este quadro requer um certo número de co­
mentários.
Segundo a concepção tradicional, a doença, a morte, o
fracasso têm sempre causas intencionais. Nem por isto ne­
gam-se as causas naturais, mas estas têm um caráter geral que
não basta para explicar por que tal indivíduo, em tal conjun­
tura singular, foi presa da desgraça. É o concurso acidental
de circunstâncias que é considerado como efeito de uma cau­
sa intencional, de um poder persecutório.
Além disto, a representação tradicional das doenças com­
porta uma certa classificação dos sintomas e o uso de plantas
medicinais; mas este ponto de vista “objetivo” é bastante li­
mitado e não podería ser suficiente para resolver o problema
porque além das causas naturais, trata-se de aplacar os pode­
res persecutórios escolhendo o rito propiciatório mais apro­
priado. A escolha entre diversas hipóteses possíveis a res­
peito da origem intencional da doença ou do fracasso, será
guiada por um outro esquema do que o do diagnóstico funda­
do nas classificações dos sintomas; este outro esquema é o da
adivinhação. A adivinhação não é apenas um rito, é também
uma maneira geral de pensar. Os procedimentos adivinható-
rios podem ser diversos mas têm todos um traço comum, o re­
curso a um jogo aleatório de signos, a um aparelho de decisão
que responde com sim ou não, por exclusões sucessivas numa
série de dicòtomias. O aparelho adivinhatório toma visível
a linguagem do destino, estabele uma comunicação entre as
intenções do mundo invisível e a interrogação dos homens. A
função de revelação, que a religião dos ancestrais atribui ao
oráculo, será devolvida às Escrituras nas religiões missioná­
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 235

rias. Parece que as religiões têm um duplo fundamento: a ge­


nealogia e o oráculo, o laço de sangue e o jogo aleatório dos
signos. Os dois componentes adquirem formas complementa­
res em cada religião: ao mesmo tempo que as religiões mis­
sionárias recorrem a meios de revelação mais doutrinários,
assim como a escritura ou a mensagem profética, o esquema
genealógico se transpõe para a gênese do mundo, para a filia­
ção divina, para a fundação de uma comunidade de crentes,
para a herança doutrinai. Onde quer que seja, a única vida
que merece ser transmitida é aquela que carrega em si a re­
velação do improvável, isto é, do “ sentido” , da contingência
eleita. Ao decifrar os signos do que acontece, a adivinhação
permite saber que ritos devem ser realizados, que signos de­
vem ser feitos cerimoniosamente pelos homens em resposta
aos signos do destino. Uma religião só é possível através deste
maravilhoso giro dos signos que, na crise, anuncia a festa.
Do ponto de vista psicanalítico é, portanto, indispensável
levar em consideração não apenas o tema de determinada in­
terpretação persecutória considerada isoladamente, mas a es­
colha que é feita em cada conjuntura. Escolha esta que tem,
ela mesma, um duplo aspecto, já que é ao mesmo tempo es­
colha inconsciente do sintoma e escolha mais ou menos ra­
cional de um tema interpretativo. A palavra “escolha” tem
aqui apenas uma conotação lógica servindo para definir o
valor de informação que se atribui a um acontecimento em
função das possibilidades que ele exclui no seio de um núme­
ro finito de alternativas.
Os três registros de interpretações persecurórias que dis-
tinguimos não devem ser postos num mesmo plano. Inicial­
mente, do ponto de vista etnológico, apenas os dois extremos,
a bruxaria e o culto dos rab, são claramente especificados.
Na zona intermediária, a da marabutagem, diversas subdivi­
sões poderíam ser introduzidas. O recurso a uma instrumen-
talidade mágica presta-se, como dissemos, a diversos, desli­
zamentos funcionais seja do lado dos “maus” desígnios da
bruxaria, seja do lado das “boas” intenções da Tradição reli­
236 ÉDIPO AFRICANO

giosa. Além disto, a procura de um poder mágico mais forte


do que o do vizinho favorece uma série de variantes e de sin-
cretismos. Em várias regiões fala-se de magia dos “fetiches” ;
na quase ilha de Cabo Verde a islamização introduziu uma
interpretação das doenças pelos djiné e saytané em ligação
com novos procedimentos mágicos fundados no recurso às
“escrituras” e às “ visões” . O mágico reúne dois valores que,
no plano religioso, contrastam, a tradição coletiva das Escri­
turas e a mística individual das visões. Por seu lado, a bruxa­
ria, no sentido preciso de antropofagia imaginária, é algo to­
talmente diferente da magia: não comporta nenhum instru­
mento outro do que o alimentar, nenhum mediador outro do
que o duplo imaginário dos indivíduos e suas metamorfoses
animais. A noção africana de antropofagia imaginária recolo­
ca em questão tudo o que foi escrito sobre o caráter original
da magia, na qual, outrora, se via um estágio primitivo da re­
ligião que em seguida teria se oposto a ela. A magia pode
estar presente em qualquer coisa, mas o inverso não é o ver­
dadeiro: nem a bruxaria nem a religião são, em si mesmas,
magia. A religião africana dos ancestrais, com seu correlato
negativo da bruxaria, não concebe o mal sob a forma do puro
ou do impuro (exceto sob a influência islâmica ou cristã e nos
raros casos onde um formalismo clerical favorece o desenvol­
vimento dos ritos expiatórios). A oposição fundamental é en­
tre o informe e o controlável.
Na clínica psicanalítica, a distinção entre bruxaria e ma-
rabutagem refere-se a dois níveis diferentes de organização
das pulsões. Na bruxaria a fantasia de devòração corresponde
a uma relação dual no plano oral; na marabutagem, a fantasia
de potência fálica é suscetível de incluir a diferença dos se­
xos numa relação a três ao mesmo tempo que a instrumentali-
dade mágica remete a diversos modos de elaboração das va-
lências anais. Ficamos surpresos ao constatar esta homologia
entre categorias culturais e níveis de organização pulsional.
Supusemos, sem poder verificá-lo, que a correspondência tal­
vez não fosse tão simples assim nos casos em que a magia se
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓR1AS 237

tornava mais invasiva e a noção de bruxaria menos nítida. De


qualquer forma, a distinção entre bruxaria e marabutagem
corresponde a uma clivagem na organização das pulsões.
O mesmo não acontece com a terceira forma de interpre­
tação da doença, aquela que se refere à intervenção dos rab.
Ela não parece conotar uma fase particular de organização
das pulsões mas sim um tipo de resolução dos conflitos. A
intervenção dos rab que possui o sujeito, comporta uma in-
junção a reestabelecer os vínculos com os ancestrais da li­
nhagem e os ascendentes imediatos (figuras parentais, instân­
cia do supereu). Não se trata mais aqui de lutar contra quem
te “come” ou te “trabalha” , mas apenas de se submeter à
Tradição. Neste sistema não há lugar para que se desenvolva
qualquer competição ou confronto, todas as tensões poderão
ser imitadas ou transpostas simbolicamente no ritual e, de to­
das as maneiras, serão remetidas à expressão de uma relação
com os rab. Faz-se “para” o rab, faz-se “como” os ascen­
dentes, não se faz nada “contra” ninguém. O indivíduo é-ao
mesmo tempo personalizado pela possessão, eleito pelo rab e
reabsorvido na intensa participação do grupo. No entanto, se­
ria falso dizer que o fato da comunidade tomar a seu cargo as
tensões psicológicas seja suficiente para resolvê-las. A comu­
nidade seria impotente se não realizasse os ritos. A eficácia
do ritual decorre da lógica de sua construção. Nada mostra
isto melhor do que o uso dos valores corporais nesta liturgia
Se a imagem do corpo pode regredir profundamente, abando­
nar-se ao despedaçamento e reencontrar sua integridade, é
porque a essência do rito é extrair do corpo o que possui al­
guém para que isto passe para o altar, para as palavras que
nomeiam o objeto do culto, e devolver assim ao corpo sua
função hum ana primordial que é de produzir símbolos sepa­
ráveis de si e reconhecíveis pela comunidade. A este respeito
o ritual dos Ndembu, descrito por V. Tumer,24 é ainda mais

24. V. Tumer, Les támbours cfafflicúon (trad. M.C. Girard), NRF, Paris,
1972.
238 ÉDIPO AFRICANO

explícito do que o dos Wolof: a possessão pelo espírito an­


cestral materializa-se aqui num dente que deve ser extraído
do corpo e que, em seguida, vai se tornar um objeto ritual. É
uma única e mesma coisa que, quando fica escondida e ino-
meável no fitndo do corpo é uma ameaça de morte e que, ex-
teriorizada no ritual, depositada sobre o altar, reconhecida
entre os símbolos comuns, toma-se garantia de eleição e de
vida.
Assim, as relações sociais não são mobilizadas da mesma
maneira pelos três tipos de interpretações persecutórias que
distinguimos. A diátese, isto é, a voz ativa ou passiva dos
verbos não tem o mesmo valor quer se trate de uma fantasia
de devoração, de competição ou de possessão. As transfor­
mações de passivo em ativo não implicam os mesmos tipos de
posição para o eu e o outro. É, sem dúvida, sempre o outro
que dá o sinal de angústia, como numa manada de cervos es­
pantados. Mas a expressão da angústia numa família, não é
apenas contagiosa, como se diz, ela é polifônica; ao passar de
um para o outro, nem sempre faz vibrar as mesmas cordas.
Existe, como diz Ésquilo, um canto das Erínias; é uma can-
tata a várias vozes, cuja harmonia ou desarmonia interna me­
rece ser analisada em cada caso particular, é o discurso no
qual se misturam as falas de toda a família.
Se prestarmos atenção às falas dos diferentes membros de
uma família, pode-se frequentemente acompanhar as modifi­
cações sofridas pelas representações da doença na passagem
de cada geração. Poderíam ser resumidas da seguinte manei­
ra: para a geração dos avòs, a interpretação pelos rab preva­
lece. Para a geração dos pais, é a interpretação pela marabu-
tagem que domina. Ambas admitem a interpretação paralela
de bruxaria. Para a geração dos jovens adultos, vemos des­
pontar ou florescer explicações “científicas” (os micróbios, a
hereditariedade) ou psicologizantes (o caráter, o passado do
doente).
Seria errôneo supor que a interpretação por marabutagem
evacue a interpretação pelos rab, ou que as explicações
AS INTERPRETAÇÕES PERSECUTÓRIAS 239

“cientificas” evacuem as duas precedentes. Cada uma delas


apenas abrange com mais ou menos eficácia, com mais ou
menos sorte, as precedentes. De maneira geral, cada geração
está ligada sociologicamente a um destes registros, menciona-
o oficial e abertamente, mas cada indivíduo debate-se entre
seu pertencimento oficial e sua adesão íntima aos registros
mais arcaicos. O sincretismo religioso é fonte de mal-estar, de
ansiedade, de remorso, de contradições e de dramas. Deter­
minada avó sabe que seu neto ficaria curado por um samp
mas não pode dizê-lo abertamente e assiste impotente e de
forma acusadora ao fracasso das outras terapias. Determinada
mãe, convencida de que esta mesma criança é vítima de ma-
rabutagens, gostaria, no entanto, de se certificar com os rab,
e sofre por que seus outros filhos só querem confiar o doente
aos médicos.
A ordem de sucessão das representações: rab, marabuta-
gem, ciência-psicologia, corresponde a uma objetivação da
doença e do sujeito doente. Com os rab, os ascendentes se
encarregam da doença, ela é um “ sinal” que o grupo inter­
preta. Com a marabutagem, a ênfase é colocada no confronto:
ser mais ou menos do que um outro, que os outros. A mãe, o
pai, a avó, farão contra-marabutagens para defender a crian­
ça, mas a título pessoal, poderiamos dizer, muitas vezes cada
um ignorando o que o outro faz, o que excluiría o culto dos
rab. Por fim, na jovem geração, aparece, explicita-se a noção
de história pessoal do doente e de uma agressão anônima pe­
los “micróbios” .
Segundo a etiologia utilizada, ocorrerá uma seleção entre
os sintomas; alguns serão privilegiados, outros deixados de
lado a fim de que a doença apareça conforme um esquema
pré-existente. É assim que a etiologia pelos rab privilegia as
“crises” , a pela marabutagem, o êxito e o fracasso, a potência
e a impotência; a última, por fim, insiste sobre os traços de
caráter e as particularidades da doença.
Constata-se também que a interpretação pelos rab é a
mais capaz de subsumir numerosos sintomas para um mesmo
240 ÉDIPO AFRICANO

doente, e estaríamos tentados a dizer que ela aparece como a


mais tranqüilizadora. Assim, nos contextos da marabutagem e
da “ciência” , as crises têm frequentemente um caráter in-
quietante que não têm no contexto do rab. Quando não há
mais referência aos espíritos ancestrais, nota-se que imedia­
tamente a noção de coletividade familiar é substituída pela de
hereditariedade que se toma, então, uma etiologia paralela a
outras (marabutagem, micróbios ou história pessoal).
Por fim, assinalamos a ausência de delírios melancólicos
e de auto-acusação na psiquiatria africana. O mal é ao mesmo
tempo físico e moral, doença e falta; é uma agressão por uma
forma estranha e continua sendo assunto da comunidade. A
tendência a vincular toda doença, toda morte, a causas inten­
cionais, depois, a ética da vergonha, depois, a ética dos re­
morsos, e, por fim, a ética da responsabilidade... parecem
corresponder a diversos graus de elaboração de um mesmo
problema que nomeamos de maneira muito geral: o problema
do mal.
AS REFERÊNCIAS CULTURAIS
NA ANÁLISE DOS DELÍRIOS

No capítulo precedente nós nos perguntamos: o que sig­


nifica, do ponto de vista psicológico, a escolha de tal ou qual
tema persecutório tradicional: bruxaria, marabutagem ou pos­
sessão pelos Gênios? Antes de avançarmos mais, é importante
retomar esta questão para evitar certas confusões.
O adivinho, o caçador de bruxos, o mestre do ndôp, sa­
bem reconhecer através de certos indícios se um indivíduo
está “ atacado” por um bruxo, “trabalhado” por um rival que
utiliza meios mágicos ou “ seguido” ’ por um rab. Sob o efeito
de um sincretismo que nem sempre poupa os etnólogos, incli-
namo-nos a falar a este respeito de um “ diagnóstico” tradicio­
nal das “doenças” feito por “curandeiros” que utilizam “ritos
de cura’’. Ao invés de tentarmos entender o vocabulário reli­
gioso, o traduzimos para um vocabulário médico aparente­
mente mais respeitável.
Esta medicalização do vocabulário tem inconvenientes.
Produz a confusão dos gêneros, conclui rápido demais. Impe­
de-nos de perceber os encadeamentos que ligam determinada
circunstância a tal outra para levar a conclusões que não são
M nossas. O que é, por exemplo, uma cura ritual num culto
242 ÉDIPO AFRICANO

de possessão? Ê um rito de propiciação. A potência sobrena­


tural torna-se propícia ou favorável quando a honramos como
convém. Á aflição é um sinal adivinhatório, adverte que “de­
vemos” para as divindades ancestrais, é para o aflito uma
marca de eleição. Ao cumprir o rito, o eleito agrega-se a uma
comunidade religiosa na qual encontra sua salvação, sua cura.
O que era para ele uma doença toma-se um vínculo vital e
sobrenatural que o une à congregação dos possuídos. Para
analisar esta seqüência é preciso acompanhá-la inclusive nas
suas conseqüências religiosas. Descobrimos, então, duas coi­
sas. Primeiro, que a cura ritual é um deslocamento de sinto­
mas, que tem por efeito agregar o indivíduo sofredor a uma
congregação de possuídos sem a qual, dali em diante, não
poderia viver. Ele sabe que ao deixar de participar do culto,
recairía na sua solidão dolorosa. Não se diz também, na tradi­
ção cristã, que o “milagre” tem por finalidade a “conver­
são” , a agregação a uma comunidade de salvação? Em se­
gundo lugar, compreendemos que o psicanalista não poderia
desprezar o poder da transferência que investe de maneira
sintomática a ritualização coletiva e o vínculo congregacio-
nal. O analista não é portador de uma nova mensagem de sal­
vação. Pode apenas tentar compreender, acompanhar o sujeito
no seu itinerário deixando-lhe a possibilidade de decidir o
que realmente quer.
Quando dissemos que a bruxaria correspondia a uma re­
lação dual de tipo oral; que a marabutagem, sob suas diversas
formas, correspondia a uma relação triangular de rivalidade
de tipo fálico; que os ritos de possessão correspondiam a um
modo dè resolução das tensões pela identificação aos espíri­
tos ancestrais, tratava-se para nós de compreender como o
vocabulário tradicional permite a cada um expressar seu so­
frimento dando-lhe uma forma reconhecível pelo meio.
Vimos que cada tipo de interpretação persecutória conota
uma organização particular: 1) das posições do eu e do outro;
2) do conteúdo fantasmático; 3) da imagem do corpo; 4) das
modalidades de angústia. Temos, portanto, quatro critérios de
AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA ANÁLISE DOS DELÍRIOS 243
coerência interna para cada um dos três temas tradicionais.
Resta saber como cada um os utiliza para expressar através
deles sua própria situação. Veremos neste capítulo como os
temas coletivos podem ser utilizados, de maneira delirante ou
não, e veremos que é importante não confundir “mito” e
“delírio” . Gostaríamos, em particular, de propor aos psiquia­
tras um instrumento de análise que nos prestou grandes servi­
ços nos casos de surtos delirantes.

1. O SURTO DELIRANTE EM PSIQUIATRIA


AFRICANA

As estatísticas da clínica neuro-psiquiátrica do Centro


hospitalar de Fann sobre 2000 prontuários de doentes hospi­
talizados, dão o total de mais ou menos 30% de surtos deli­
rantes, uma vez excluídas as afecções orgânicas. Uma por­
centagem semelhante foi estabelecida para os doentes africa­
nos hospitalizados em Sainte-Anne.1
Se o surto delirante aparece como uma forma privilegiada
das perturbações mentais na África, nem por isto deixa de
provocar inúmeras questões para o psiquiatra. Num artigo re­
cente, o Professor H. Collomb12 coloca em evidência suas ca­
racterísticas particulares. As interrogações que formula pode­
ríam chegar a colocar em questão o próprio quadro nosográfí-
co que lhe é designado na psiquiatria francesa. Por outro la­
do, vão ao encontro de outras interrogações mais gerais sobre
as características diferenciais da personalidade “africana” em
tais ou quais sociedades, e sobre a integração do indivíduo ao
grupo nestas mesmas sociedades.

1. Babacar Diop, “ La traosplantation et 1’éclosion des bouffées délirantes


chez les Africains” (em preparação). O estudo refere-se a 250 prontuários de
doentes africanos hospitalizados em Sainte Anne. Citado em S. Faladé, “ Rapport
sur le fonctionnement de 1’Institut d’ethonopsychopathologie africaine” , Cahiers
<tiludesafricaines, IV, 1964, pp. 603-620.
2. H. Collomb, “ Les bouffées délirantes en psychiatrie africaine” , Psycho-
pathologie africaine, 1 ,1965, pp. 167-239.
244 ÉDIPO AFRICANO
Eis aqui, resumidamente, como H. Collomb caracteriza a
semiologia dos surtos delirantes na clínica de Dakar (o estudo
refere-se a 125 casos).
- Os surtos delirantes ocorrem freqüentemente em sujei­
tos que não apresentam nenhuma estrutura psicopatológica
evidente, em personalidades aparentemente sadias e cuja in­
tegração familiar, profissional e social é satisfatória.
- Para o sujeito doente, assim como para seu meio, há
uma familiaridade com o acontecimento psicótico, delirante.
O acontecimento está, desde o início, integrado aos sistemas
culturais do grupo.
- Ao contrário do que se observa na Europa, o estado
afetivo dos doentes modifica-se pouco, a ansiedade é pouco
importante. O autor insiste particularmente sobre este ponto.
- O estado da consciência também se modifica pouco.
S$o raros os casos em que um estado confusional acompanha
o delírio.
- Quanto ao conteúdo do delírio, os temas persecutórios
predominam.
- As alucinações visuais são habituais, mesmo fora de
qualquer estado confusional.
- Há uma pequena proporção de evoluções para afecções
crônicas em comparação com a repetição dos ataques deli­
rantes.
No que concerne à terapêutica, H. Collomb constatá a
notável eficácia dos neurolépticos e dos eletro-choques. Ob­
serva que um tratamento tradicional sempre é seguido para­
lelamente ao tratamento hospitalar.
Todas as características sublinhadas pelo autor contri­
buem para diluir as arestas mais salientes do quadro clássico
do surto delirante. O que continua podendo ser superposto ao
quadro clássico é a eclosão brusca do delírio polimorfo, a
agitação psicomotora e a incoerência do comportamento na
primeira fase das perturbações. No entanto aqui, estes sinto­
mas não são suficientes para fazer do doente um alienado: seu
meio sente-o próximo embora se queixe de sua violência, seu
AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA ANÁLISE DOS DELÍRIOS 245

delírio é “compreendido” , integrado culturalmente e o diálo­


go com ele continua parcialmente possível. O sujeito curado
não dá testemunho de uma experiência íntima de transforma­
ção radical do mundo, de hiato intransponível; diz, ao invés
disto, que lhe aconteceu algo de “mais forte” do que aos ou­
tros: um rival ou um espirito o maltrataram mais. Acrescen­
temos que aos olhos do meio, o doente curado sai valorizado
de sua doença: é reconhecido como “muito forte” pois resis­
tiu a um ataque particularmente perigoso.
Já dissemos em várias ocasiões que os delírios de perse­
guição - predominantes nos surtos delirantes - emergem de
um fundo cultural onde a posição persecutória é a norma, é
reguladora das relações sociais. A questão que se coloca é
de traçar novas fronteiras para o delírio, fronteiras que leva­
riam em conta as diferenças de civilizações. Vários sistemas
de interpretação estão presentes, misturam-se, um domina de
início e o outro no fim do episódio patológico, que importân­
cia atribuir a isto? Um sistema é aprovado pela família, outro
é contestado. Deve-se levar isto em conta, e como?
Os fenômenos alucinatórios caracterizados também estão
em continuidade com as experiências banais, comuns. Para a
civilização, não aparecem como patológicos em si mesmos.
Também aqui somos levados a procurar outras fronteiras en­
tre o normal e o patológico. É interessante notar que, muito
freqüentemente aliás, o psiquiatra fracassa ao tentar determi­
nar os sintomas da série alucinatória: visão, visão alucinada,
idéia obsedante, sonho, alucinação... As descrições e comen­
tários feitos pelos doentes mantêm a incerteza.
A dificuldade que encontramos para precisar estes dois
elementos principais do quadro clínico, delírio e alucinação,
limita o fundamento do diagnóstico e prognóstico feitos, li­
mita também nossa possibilidade de compreender o doente e a
doença. Somos levados a procurar novos critérios para cons­
truir a semiologia de forma diferente da psiquiatria ocidental.
Propomos, portanto, utilizar diretamente os significantes pró­
prios à civilização do doente ao invés de proceder apenas por
246 ÉDIPO AFRICANO

comparação com os modelos culturais europeus.


*
* *

a. Poderiamos inicialmente considerar a homogeneidade


interna das interpretações para cada nível utilizado, conside­
rando a forma verbal do delírio, a imagem do corpo que a
subtende e a vivência ansiosa que a acompanha.
b. No caso em que se constata a heterogeneidade de um
nível, esta deveria ser especificada: recai ela principalmente
sobre a forma verbal, sobre a imagem do corpo, sobre as mo­
dalidades da ansiedade? As discordâncias quanto ao esquema
“de base” , tendem elas para um outrp destes esquemas ou pa­
ra uma organização pessoal, ou atípica?
c. Em diacronia, para um mesmo nível, seria preciso
considerar se ele tende a se tomar mais homogêneo ou o
contrário, ou então notar se seu grau de homogeneidade é
flutuante.
d. Se for possível, seria preciso considerar os respectivos
lugares dos diferentes níveis; sua ordem de aparecimento,
seus ressurgimentos, seu grau de pregnância, seus modos de
articulação, por exemplo: livre sucessão ou encobrimento.
e. Além disto, os níveis de interpretação dominantes num
doente deveríam ser comparados às posições presentes na sua
família e no seu meio. A interpretação adotada por um sujeito
pode estar mais ou menos bem adaptada à sociedade à qual
pertence.
/ . É evidente que, tendo reunido todas estas indicações,
seria necessário reportar-se à observação clínica para desco­
brir se existem ligações constantes entre os elementos das
duas séries: os fornecidos pela referência aos esquemas cultu­
rais e os fornecidos pela clínica clássica. Podemos imaginar,
por exemplo, que tal encadeamento de interpretações, todas
homogêneas, conota as evoluções favoráveis, que tal outro
encadeamento, inverso ao precedente, com determinados ele­
mentos de heterogeneidade num outro nível, conota uma ou-
AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA ANÁLISE DOS DELÍRIOS 247

tra evolução típica. Poderemos perceber, por exemplo, se um


quadro de confusão e de agitação é constante quando ocorre
desmantelamento dos esquemas culturais ou que encadea-
mentos e que evolução clínica permitem o abandono das po­
sições persecutórias.
Talvez tais estudos permitiríam descrever melhor os casos
para os quais as terapias tradicionais se revelam mais efica­
zes, perceber melhor as relações do doente com o grupo, a
função do terapeuta tradicional e a função da própria doença.
*
* *

Exporemos agora dois casos clínicos, o de Fatou D., e o


de Ibnou T., não para retomar o conjunto dos problemas co­
locados pelos surtos delirantes, que excedem nossa compe­
tência, mas com a finalidade muito limitada de iniciar a ela­
boração de um instrumento de análise do delírio para pro­
pô-lo ao psiquiatra.

2. DOIS CASOS CLÍNICOS: TENTATIVA DE UM MÉ­


TODO DE ANÁLISE

CASO 12: Fatou D ., 17 anos, serer, muçulmana, seita mou-


ride, (psicose puerperal)

Esta jovem mulher, casada há dezenove meses com um


modesto agricultor de Sine, foi hospitalizada, em 10 de no­
vembro de 1963, vinte dias depois de um parto eutócico, por
agitação e distúrbios do comportamento.
O começo dos distúrbios é brutal. Situa-se no décimo-se­
gundo dia pós-parto. A família descreve o seguinte quadro: a
doente está agitada, grita, rasga suas roupas, se recusa a tocar
no seu bebê.
É internada vinte e quatro horas no hospital de Kaolack e
depois é encaminhada ao Centro hospitalar de Fann, sendo
248 ÉDIPO AFRICANO
seu filho confiado à creche de Dakar onde morreu na semana
seguinte.
Tratada com eletro-choques e acompanhada através de
entrevistas, sairá do hospital em excelente estado a 6 de ja­
neiro de 1964, depois de ter exteriorizado uma série de inter­
pretações delirantes com temas de perseguição.
Os temas delirantes são tomados do esquema cultural.
Sucedem-se segundo três estratos claramente diferenciados
ainda que se superponham, em maior ou menor medida, a ca­
da mudança de tema.

1) Ao ingressar e durante quatro ou cinco dias, a doente


está obnubilada, agitada, incoerente, agressiva e grosseira.
Escuta vozes que a chamam. Durante este período torna uma
enfermeira e o externo do serviço responsáveis por sua doen­
ça: devem morrer pois a arrastaram pelo corredor e querem
roubar seus intestinos. Quando chegou estava pesada, agora
está leve. Querem roubar seus intestinos embora ela não te­
nha feito nada de errado. Tomaram sua alma, então ela não
sabe mais onde está. Às vezes trata a enfermeira de bruxa e
às vezes diz que ela é bela, bem penteada. Para sua mãe, a
doente diz que sua barriga está esburacada e que sua cabeça
está rachada em dois.
Temos aí o tema do bruxo comedor de almas: furtar a al­
ma, tomar o interior do corpo, tema sem dúvida contaminado
por uma imagem do corpo “que pariu” , esvaziado de seu
conteúdo. Notemos que a partir dò momento em que a obnu-
bilação cedeu, a doente passou a pedir seu filho com insistên­
cia.
Durante mais alguns dias, alternadamente, Fatou continua
a insultar a enfermeira e o externo que querem comê-la - que
a comeram - acrescenta que pegaram sua voz, seus olhos —e
lhes pede perdão; sua barriga está normal, não lhe tiraram a
alma, ela sabe que não lhe tiraram a alma; quando ela falava
era a doença. Ao mesmo tempo queixa-se frequentemente de
que seu marido não veio vê-la no hospital.
AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA ANÁLISE DOS DELÍRIOS 249

2) Em 28 de novembro, já calma, sorridente e cooperan-


te, Fatou acusa seu marido de tê-la marabutado:
Depois do parto, num dia em que aleitava seu filho, seu
marido lhe trouxe um produto na água, safara, e lhe pediu
que molhasse com ele o corpo da criança. Entendeu que era
algo de ruim. Recusou, mas seu marido derramou o safara
sobre seu corpo e sobre o da criança. Imediatamente, sentiu
comichões e dores e viu que seu corpo inchara. Gritou então
chamando sua mãe e lhe disse que o marido a estava matando.
Vieram os vizinhos e a doente foi levada a um “feiticei­
ro” .3 Este diagnosticou que ela havia recebido sobre o corpo
um produto e lhe deu um líquido para se lavar. Um outro fei­
ticeiro veio passar a noite junto dela e lhe aspergiu o corpo
com produtos durante toda a noite; também lhe deu um amu­
leto para usar. Seu marido a marabutou, diz ela, para evitar
dar o dinheiro necessário para o batismo do primeiro filho (o
batismo do primeiro filho impõe ao pai gastos consideráveis).
Uma outra formulação de Fatou é: “Quando se tem um pri­
meiro filho, precisam te pedir muitas coisas para o batismo. O
pai não fez isto. Por isto a criança morreu.”
Nos dias seguintes manterá esta interpretação dando a
prova dela: derramou safara trazido por seu marido sobre este
último e ele teve dor de barriga.

3) A mãe da doente, com quem tivemos várias entrevis­


tas, não adere às interpretações da filha a respeito da doença.
Diz que logo pensou muitas coisas na cabeça (as marabuta-
gens possíveis), mas Fatou não tem co-esposa (subentende-se:
quem mais podería desejar a morte ou a doença de Fatou e de
seu filho?). Supôs-se então que foram os rab. Sua filha foi
banhada depois do parto: banhou-se com água quente segun­
do o costume e seu corpo inchou. A mãe acha que isto foi um
erro, que deveria ter considerado seus rab pois a água cai em
cima deles. Deve-se banhar com água fria. “Quando você tem

3. É o termo utilizado pela intérprete.


250 ÉDIPO AFRICANO

irmãos e irmãs mortos, não deve derramar água quente no


chão, você derrama sobre eles; inclusive avós mortos; não se
deve moer no chão, você mói sobre eles.” Em outras pala­
vras: a doente teria involuntariamente ofendido os rab.
Fatou não aderiu realmente a esta interpretação de sua
doença pelos rab, fala dela como a opinião de sua mãe e per­
guntava-se sobre sua verossimilhança. No entanto, um mara-
buto diz que a doença se deve aos rab de seu pai - seu pai,
durante a seca, vai fazer marabutagens em Saint-Louis, não
com o Alcorão, mas com cauris, para ganhar um pouco de di­
nheiro.4 E sua irmã mais velha que esteve muito doente quan­
do criança, “da mesma doença que ela” , foi curada por um
sacrifício ao tuur familiar. Fatou sabe que sua mãe prepara
um sacrifício ao tuur que será feito assim que sair do hospi­
tal. Está de acordo - aliás não lhe pedem sua opinião. Acres­
centemos que a posição da família materna é ambígua com
respeito ao culto dos tuur. Outrora este culto era mantido
pela bisavó materna da doente. A mãe explica: “ Nós o con­
tentamos com nak,5 leite talhado e matando um galo. É m inha
mãe que tomou o lugar de minha avó, mas não fazemos isto
com muita fieqüência, cada dois ou três anos; nos converte­
mos em muçulmanos.”
E durante este período que Fatou fica sabendo do faleci­
mento de seu filho.

4) A partir de 21 de dezembro, as acusações de marab


tagem expressas por Fatou dão progressivamente lugar a re-
criminações e reivindicações diretamente formuladas a seu
marido. Paralelamente, observamos uniã süpreendente mu­
dança na expressão de Fatou quando ela fàiâ conosco: está
mais tônica, suas mímicas tomaram-se mais diferenciadas e
expressivas. Dá a impressão de falar em seu próprio nome e
de falar dela mesma.

4. Tipo difundido de charlatão, sem conhecimento particular nem vincula-


ção religiosa.
5. Mingau de milho doce. Nak e leite talhado são as oferendas rituais.
AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA ANÁLISE DOS DELÍRIOS 251

Em 28 de dezembro, a doente renuncia definitivamente às


acusações de marabutagem e faz de seu parto o primeiro re­
lato que pareça objetivo, ao mesmo tempo que atribui à sua
doença a causa “racional” mais comum: meret, é o sangue
que lhe subiu à cabeça.
Não deixa de ser interessante escutar as queixas de Fatou
contra seu marido. Elas se referem:
- Ao presente imediato: seu marido não veio vê-la, diz
que não tem dinheiro para a viagem, não é verdade. Depois,
por ocasião da única visita que lhe faz, lhe dá 200 francos,
não é suficiente; sente isto como humilhante.
- O batismo: foi um pequeno batismo; o pai matou um
carneiro. Para um primeiro filho deveria ser outra coisa; suas
irmãs consangüíneas mataram quatro carneiros para seus pri­
meiros filhos.
- O casamento: a doente conta com muita precisão como
o marido teve que pedir emprestado à mãe dela (!) para aca­
bar de pagar seu dote e como nunca saldou esta dívida; como
não lhe deu a mala de roupa prometida. Além do mais, sendo
ela virgem ao casar, ele deveria dar um grande presente:
15.000 francos. A mãe acabou deixando o preço da virginda­
de por 7.500 francos; ele prometeu mas não dá.
- A tatuagem: antes do casamento, para agradar seu ma­
rido, mandou tatuar os lábios. A operação é muito dolorosa.
O costume quer que aquele que se beneficia disto dê um im­
portante presente, ele não deu nada.
Mas as falas de Fatou não contêm apenas recriminações.
Parece realmente muito ligada ao marido e segura do vínculo
com ele. Esteve apaixonada por ele e ainda podería estar...
Pensa em abandoná-lo mas podería voltar se... se não se sen­
tisse desconsiderada pelo fato de que ele nunca deu, pagou o
que devia, o que ela vale. Presente de batismo, de casamento,
de virgindade, de tatuagem, nunca teve o que tinha direito de
esperar. Ela não honra sua mãe. E paciente, suportou mas não
agüenta mais. Seu marido está velho, se não pode enfrentar as
legítimas exigências de uma jovem, que fique com uma velha.
252 ÉDIPO AFRICANO
Ela ficará com um jovem e irá viver de forma menos dura, na
cidade, como suas amigas. Compreendemos que Fatou oscila
entre o status social ao qual tem direito e que seu marido de­
veria lhe proporcionar, e o real vínculo entre eles.
*

* *

Reexaminando as diferentes seqüências desta observação,


podemos tentar ver como, em cada uma delas, organiza-se o
material em relação aos três níveis:
N, = bruxaria
N2 = marabutagem
N3 = rab
Encontramos sucessivamente: uma interpretação com te­
ma de bruxos comedores de almas = N ,, uma interpretação
com tema de marabutagem = N2, uma interpretação com tema
de rab = N3, interpretação introduzida pela mãe da doente.
Podemos destacar os seguintes pontos:

Análise form al

- Cada um dos níveis é homogêneo, tanto no que concer­


ne à imagem do corpo quanto a vivência ansiosa e o modo de
ação.
- Cada nível se apaga rapidamente e completamente para
dar lugar ao nível seguinte. As mudanças de nível se dão com
um mínimo de encobrimento de um nível pelo outro.
- Os níveis N, e N2 sucedem-se segundo uma orientação
que vai do mais primitivo ao mais diferenciado (com respeito
ao nível de organização da personalidade): de N, a N2.
- N3 sucede N,-N2.
- N2 (e virtualmente N3, na medida em que Ratou não
investe pessoalmente nenhuma esperança de çura nos ritos
projetados para o altar dos rab) cede lugar a uma posição
pessoal de reivindicação assumida e claramente verbalizada.
AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA ANÁLISE DOS DELÍRIOS 253

Lugar e sentido da interpretação pelos rab (N3)

- N3 é introduzido e mantido pela mãe da doente. Não


suscita por parte da doente nem viva adesão, nem forte recu­
sa. Poder-se-ia dizer que N3 é adotado por Fatou a título de
boa adaptação familiar.
- N3 aparece aqui com uma tonalidade persecutória dis­
creta. Ocupa na fala da doente um lugar reduzido e veicula
pouca ansiedade. Precede e acompanha a cura clínica.

Referência à clínica

- Confusão, alucinações e agitação dominam o quadro


clínico enquanto a temática delirante provém de Nr Estes
sintomas desaparecem ao mesmo tempo que N, cede lugar a
N2.
- O estado da doente melhorou de maneira constante
desde o começo de sua hospitalização até a cura clínica.
- A cura, clinicamente observada, corresponde ao perío­
do em que os temas de perseguição dão lugar a reivindicações
explícitas.
- Poderiamos nos perguntar em que medida a temática de
N, está subtendida pela experiência recente do parto.
A partir destas notas podemos tentar comentar o caso de
Fatou.
O surto delirante aparece aqui numa personalidade sadia,
pelo que sabemos: “ Ela sempre foi calma, séria.” No entanto,
numa certa medida, podemos compreender a eclosão do ata­
que psicótico.
Há muito tempo que lamentos e recriminações, o senti­
mento de ser lesada se acumulam e estão incubados em Fatou.
Os lamentos, o ressentimento são justificados aos olhos do
meio. Nada indica que a jovem os tenha formulado alguma
vez, de qualquer forma não publicamente. É algo grave e ela
é muito ligada ao marido a quem ama e que é um apoio segu­
ro, “como um tio” . Este vínculo sincero parece ter impedido
254 ÉDIPO AFRICANO
que se queixasse e tomasse consciência da extensão de sua
decepção.
Espera o batismo da criança que vai nascer como mais
um teste para o marido: fará ele enfim o que deve? Dá a luz e
por isto encontra-se mais frágil, se considerarmos os remane-
jamentos dinâmicos que um primeiro parto supõe, a solicita­
ção de regressão por identificação à criança etc. (coisas por
demais conhecidas para que insistamos nelas). Se sabemos o
momento privilegiado que é para a mãe, no contexto cultural
de Fatou, o batismo de seu primogênito, podemos imaginar
qual foi sua decepção e a gravidade da ferida narcisista sofri­
da. Tratava-se nada menos do que de seu reconhecimento so­
cial enquanto esposa e mulher, de seu estatuto, do estatuto de
sua mãe, do próprio sentimento de sua existência na medida
em que esta é menos internalizada do que experienciada em
relações sociais essencialmente funcionais.
A partir disso, tudo se dá como se ela tivesse tido que
pagar com um ataque psicótico pelo “parto” de uma posição
mais internalizada, que se revela ser sadia, sem culpa.
Num primeiro momento, tínhamos um quadro de confu­
são, alucinações, agitação, delírio com tema de devoração,
ansiedade massiva. Este estado cede rapidamente lugar a um
comportamento quase normal e a um tema de perseguição de
nível genital, centrado no marido enquanto perseguidor. As
representações e os comportamentos não são mais regressi­
vos. A interpretação da doença pelos rab familiares é intro­
duzida pela mãe. A doente não se intromete nem dá muita
importância a isto; é dócil como convém que uma filha seja
em relação à sua mãe.
A constância e coerência na utilização pelo “delírio” de
significantes coletivos fazem deste um “delírio adaptado” .
Podemos notar que a mãe da doente só a considera doente du­
rante o período em que é expressa a perseguição pelos bru­
xos, quando o esquema cultural vem acompanhado de confu­
são, de agitação, de agressividade. A interpretação de mara-
butagem é, pelo contrário, considerada como sensata e bem
AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA ANÁLISE DOS DELÍRIOS U i

adaptada, embora a mãe se incline mais para a interpretação


pelos rab.
Para o clínico europeu, a doente parece clinicamente cu­
rada a partir do momento em que abandona suas posições
persecutórias em proveito de uma posição de críticas e de rei­
vindicações para com o marido.
Pela sua evolução coerente e linear de acordo com uma
saída progressiva da regressão inicial, o surto delirante de
Fatou aparece completamente ordenado no fim: a resolução
efetiva de tensões há muito latentes.

CASO 106: Ibnou T., 29 anos, wolof, muçulmano

Ibnou foi hospitalizado em duas ocasiões por causa de


“ surtos delirantes com tema de perseguição” . Apresentava
alucinações cenestésicas difusas. Os exames físicos, biológi­
cos, radiológicos, E.E.G. são normais.6
Eis sua biografia: Ibnou nasceu em 1936 em Dakar onde
sempre viveu. Seu1pai, empregado no Dakar-Niger, tinha en­
tão apenas uma esposa. Ibnou foi criado por seus dois pais
assim como seu irmão menor. O pai e os tios compartilhavam
da mesma concessão e, segundo alguns, Ibnou ficou na casa
de seu pai até a idade de 16 anos; segundo outros, teria sido
confiado a um tio desde os 5 anos.
Aos 13 anos, perde sua mãe. Esta teria tido perturbações
mentais. Os rab familiares são considerados responsáveis por
sua morte.
O pai casa novamente. Tem atualmente três mulheres que
lhe deram dez filhos.
Dos 16 aos 20 anos, Ibnou vive com um tio materno, com
um meio-irmão mais velho (de um primeiro casamento do
pai). Aos 20 anos, depois de desentendimentos com o tio,
volta para a casa de seu pai “ obrigando seu irmão mais velho
a vir com ele” .

6. Agradecemos ao Dr. H. Ayats a possibilidade de utilizar a observação


psiquiátrica de Ibnou.
256 ÉDIPO AFRICANO

Aos 23 anos, instala-se na casa deste irmão, empregado


no Dakar-Niger (divorciado, um filho).
Ibnou obteve o certificado de estudos em 1952. Não fez o
serviço militar. É vendedor de loja em sucessivamente quatro
lojas onde ficou quatro anos, três anos, quatorze meses, 2
anos, com um período de sete meses durante os quais ganha a
vida como músico. Por ocasião de sua hospitalização ganhava
27.000 francos por mês na grande empresa de Dakar que o
empregara.
Casou-se em 1962 com uma jovem wolof que foi escolhi­
da por seu pai e criada por uma das esposas deste. Eles têm
uma menininha. Vivem na casa dos pais da jovem; a relação
entre eles é medíocre.
Por ocasião de sua primeira hospitalização, em 19 de
março de 1963, as perturbações de Ibnou datavam de mais ou
menos um mês e meio: inicialmente episódicas, depois per­
manentes, tinham sido acrescentadas dois dias antes de uma
intensa agitação psicomotora.
O sujeito tem uma sensação de corrente elétrica ao nível
das costas, do coração, da cabeça, sensação episódica que só
aparece quando “os antropófagos estão ao lado e lançam a
corrente elétrica” . Sua doença se deve aos antropófagos que
estão em todo lugar (na rua, no seu local de trabalho assim
como no hospital). Querem devorá-lo, não entram no seu cor­
po, fazem correntes de ar que tomam todo o seu corpo, assim
como corrente de alta tensão que paralisa; ainda não começa­
ram a devorá-lo. Todas as pessoas que vê à sua volta são an­
tropófagos, inclusive as enfermeiras. Não os vê, não os es­
cuta falar, adivinha sua presença. Deus lhe deu um certo po­
der que lhe permite adivinhar sua presença. Como é forte, os
antropófagos querem liqüidá-lo.
A observação psiquiátrica descreve: agitação discreta,
contato fácil. Sob influência do tratamento (largactyl e eletro-
choques) registra-se uma rápida melhora do comportamento e
o desaparecimento das idéias delirantes. Alta depois de qua­
renta e sete dias.
AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA ANÁLISE DOS DELÍRIOS U |
Segunda hospitalização: Novamente contratado por sen
empregador, Ibnou trabalha inegularmente. Seu pai diz sota»
ele: “ Viram a cabeça dele, volta para casa, deita. Quando nfio
tem esta doença, não tem defeitos.”
Ibnou é hospitalizado pela segunda vez em 27 de janeiro
de 1964, por causa de um surto delirante surgido dois dias
antes. Por escrito, faz o relato para o médico:

“Caro Doutor X...


Não posso lhe dizer exatamente o que é a minha doença, mas
posso lhe dar algumas informações a respeito desta doença. Ei-las: sá­
bado, 25.01.64, durante meu trabalho, quando eu telefonava e logo
depois de ter acabado, recebi uma formidável corrente de ar emitida
pelo chamado Diallo Mamadou que trabalha na loja comigo. Imedia­
tamente, saí correndo abandonando a loja, e corri através da cidade,
com todas as minhas forças, tendo inclusive tirado minhas sandálias
que me incomodavam durante a corrida. Parei um táxi, que me condu­
ziu até o bairro Nymsat onde mora minha mulher e seus pais. No mo­
mento em que o motorista abriu a porta, sai correndo a toda velocida­
de em direção à minha mulher, isto é, para a casa de meus sogros onde
moro há dois anos. No entanto, cheguei na casa com um pouco de
calma, as mulheres já estavam afobadas, eu parecia impaciente e disse
ao chamado Mamadou N’Diaye para abrir a porta do meu quarto; este
último me obedeceu, ordenei-lhe que me desse uma garrafa cheia até
a metade de uma água feiticeira contra os maus espíritos que me tinha
sido dada por meu pai quando de minha primeira doença, ainda estava
na frente do meu quarto e, quando Mamadou N’Diaye me deu a gar­
rafa fui para o meio do quintal de areia e derramei todo o conteúdo da
garrafa, depois disse a este Mamadou N’Diaye que é, segundo o que
dizem, parente de minha mulher e de suas irmãs, que me levasse ao
bazar do Mouro, ao lado, lá onde tenho conta, juro que este último me
obedeceu imediatamente, tendo chegado no bazar, digo-lhe que peça
ao dono do bazar um maço de cigarros e uma caixa de fósforos, Ma­
madou, muito intimidado, executou minhas ordens como um garoti-
nho, em seguida ordenei-lhe que pegasse uma garrafa de limonada e
ele o fez, tudo isto era na minha conta, então peguei a garrafa de li­
monada aberta pelo dono do bazar e lhe ordenei que bebesse, ele re­
cusou, protestei mas desta vez ele recusou totalmente dizendo-me que
estava na quaresma; peguei a garrafa, derramei a limonada nele em
golpes secos e sentia que ele se afastava, acabada a garrafa, dei-lhe
258 ÉDIPO AFRICANO

socos na barriga e no peito e via que isto o animava. Foi então que as
pessoas intervieram e a briga começou. Foi um verdadeiro duelo con­
tra a morte, as pessoas me torturavam, tentavam me derrubar, me
torturavam, eu me debatia com uma força extraordinária, pois quando
as pessoas me seguravam no chão e queriam chegar até minha gar­
ganta, via que era a morte que subia até o último alento, mas eu me
debatia, tentando morder dedos que tentavam apertar minha garganta.
E, durante este tempo, Mamadou N’Diaye afastava-se um pouco da
briga dizendo aos homens inocentes e teleguiados por seu espírito
ruim e malvado que acabassem comigo, e eu sem ser escutado pela
multidão gritaya: “Oh, minha mãe, Mamadou N ’Diaye está me co­
mendo” repetia isto inúmeras vezes, mas o cruel espírito de Modou
N’Diaye fazia meus gritos de justiça passarem desapercebidos e ao
mesmo tempo dissolvidos nos rumores da multidão. Juro-lhe, Doutor,
que Modou N’Diaye é um bruxo pois eu era sua vítima, há algum
tempo e agradeço enormemente a Deus por ter me salvaguardado até
este momento deste bruxo com o qual morei durante dois anos. Isto é
tudo o que eu tinha a lhe dizer, Doutor, sobre minha recente doença.
Que Deus nos proteja contra o mal e nos dê alegria e felicidade.
Antecipadamente agradeço-lhe, Doutor, com todo meu respeito.
Seu doente Ibnou T.”

Eis agora o resumo das sete entrevistas que tivemos com


Ibnou.

6 de fevereiro de 1964 O sujeito comenta o episódio contado


na carta ao médico: nada o havia contrariado nos dias anterio­
res; tem certeza de que Diallo é a origem da corrente de ar
porque estava a seu lado mas, não tem idéia de porque este
quer prejudicá-lo. Depois do vento teve medo da morte, esta­
va completamente desequilibrado; depois pensou que seu cu­
nhado queria prejudicá-lo, é por causa da corrente de ar; uma
idéia semelhante nunca tinha aparecido antes. Também pen­
sou que seu pai lhe fazia mal e o safara que este lhe deu o
excitou ao invés de acalmá-lo. O doente rejeita a interpreta­
ção de seu pai que atribui sua doença aos rab matemos.

19 de fevereiro de 1964 A respeito da origem de sua doença,


a posição de Ibnou se modificou: num primeiro momento
AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA ANÁLISE DOS DELÍRIOS 259

pensa que sua mulher provocou a desgraça, pois desde seu


casamento foi hospitalizado duas vezes; mas seu pai “que é
um pouco velho e sábio” diz ele, não é desta opinião e desa­
conselha o divórcio. Por outro lado, Ibnou “perde cada vez
mais o medo de Diallo” , seu pai afirmando que não é Diallo
o responsável mas sim uma jovem raè que o ama, “uma noiva
rab que não quer que o homem case” . O pai fará as oferendas
convenientes ao tuur familiar com o qual ninguém se preocu­
pou desde a morte da mãe do doente.
Alguns dias antes desta entrevista, Ibnou fugiu do hospi­
tal e foi trazido de volta muito agitado depois de ter ido para
a casa de seu empregador e para a sua. Diz que se sentia
“como que pressionado por seu pai, pelos rab e as pessoas,
que tinha feito coisas ruins... empurrado, empurrado, não sa­
bia para que” .

24 de fevereiro de 1964 O medo de Diallo está novamente


em primeiro plano mas sob uma outra forma: Ibnou se sente
perseguido por ele, está oprimido e invadido por “maus pen­
samentos” : sua doença é mortal, vai morrer em breve, vai ser
vítima de um acidente de carro ou de trens (por obstrução).
Percebe neste período que a presença do pai ao seu lado dis­
sipa todas as angústias e medos.

9 de março de 1964 Persistem as somatizações: opressão,


palpitações, fadiga. O doente tem constantemente medo; con­
sidera os motoristas dos cairos bruxos e pensa que vão entrar
dentro dele; o simples barulho dos carros e assusta assim co­
mo qualquer evocação de doença ou de morte. Agora, ele
também lança correntes de ar nas pessoas, mas sem lhes fazer
mal, e as recebe da natureza.
Ibnou ainda se recusa a tomar safara e usar amuletos que
seu pai manda trazer para ele de Mali, preparados pelo único
grande marabuto bambara que merece sua confiança; pensa
que os rab transformam os safara em algo ruim para ele.
260 ÉDIPO AFRICANO

14 de março de 1964 Por um lado, o doente está persuadido


de que a casa, o bairro de sua mulher provocam desgraças e,
conseqüentemente, muda-se para um quarto na casa de seu
pai. Por outro lado, considera os rab e Diallo responsáveis
por suas perturbações. Pensa agora também ter “medo da
natureza, de uma cadeira, de uma cama, do buraco dos
W.C.” . Constata também, espantando-se, que em alguns mo­
mentos detesta as pessoas que deve amar: sua mulher, seu pai e
inclusive sua filha; seu pai diz que são os rab que fazem isto.

19 de março de 1964 Depois de algumas sessões de eletro-


choque, a ansiedade cede quase completamente e Ibnou pensa
com calma que “avança para a morte” . Está agora persuadido
de que Diallo é o culpado de todos os seus males e que
Diallo é bruxo... “com a mesma corrente de ar de costume, o
que ele me fez face a face” . Neste dia Ibnou tinha trazido o
desenho de um boxeador de frente, dizendo que tinha querido
desenhar dois boxeadores mas que não tinha conseguido.

22 de maio de 1964. Recebemos Ibnou alguns dias depois de


sua safda do hospital. Se diz e parece estar perfeitamente
bem. Está carregado de amuletos dados por seu pai, bebe sa­
fara e se lava cotidianamente. Está instalado na casa de seu
pai e de noite vai ao encontro de sua mulher na casa dos pais
desta. Como ainda não encontrou trabalho, não quer, diz ele,
estar sempre na casa de sua mulher já que não pode susten­
tá-la (pagar sua alimentação e roupas), só vai lá se tiver di­
nheiro. Seu pai é bom para ele e lhe dá dinheiro.
Como fizemos no caso de Fatou, vejamos como se orga­
nizam em Ibnou os temas delirantes, com relação aos três ní­
veis: bruxaria (N l), marabutagem (N2), rab (N3).

Primeira hospitalização

DADOS. Os antropófagos querem liquidar com ele por­


que ele é forte. Querem devorá-lo, não entram no seu corpo.
AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA ANÁLISE DOS DELÍRIOS 261
Fazem correntes de ar: correntes de alta tensão, que parali­
sam, que tomam todo o corpo.
Todas as pessoas que vê são antropófagos. Deus lhe dá o po­
der de adivinhar sua presença.
COMENTÁRIOS. O tema geral pertence a N l: os antro­
pófagos querem liqüidar com ele, devorá-lo.
Liqüidar com ele “porque ele é forte” pertence ao N2
que implica o confronto. O bruxo devora quem ama.
Novo deslizamento: “ Querem devorá-lo mas não entram
no seu corpo” , nos leva ao N2 de onde decorre, nesta se-
qüência, o modo de ação: corrente de ar, rigidez do corpo; a
ação é externa e atinge essencialmente o aparelho muscular.
A vivência ansiosa é insuficientemente explicitada para
que possamos comentá-la.
A relação privilegiada com o bruxo está (]üuída: todo
mundo é bruxo. A suspeita tende para a afirmação.

A carta ao médico
DADOS. A origem da corrente de ar está centrada:
Diallo.
Impulso ansioso com fuga do perseguidor e refúgio procurado
na família de sua mulher.
Sentimento de potência, ascendência sobre seu cunhado.
Esvaziamento da garrafa de safara (a água feiticeira).
Compra da limonada, ordem ao cunhado de bebê-la.
Depois da recusa do cunhado, luta corpo a corpo e depois
duelo contra a morte por estrangulamento.
Todos os homens estão contra ele instigados pelo cunhado.
O cunhado é um bruxo que o come.
Invocação de sua mãe.
Agradecimento a Deus.
COMENTÁRIOS. N l: O tema geral ainda é o do bruxo
antropófago, com impulso ansioso (que não provoca sidera-
ção mas fuga fóbica, N2) e impressão de morte iminente com
perda da respiração.
262 ÉÒIPO AFRICANO

Temos o relato de manducação reciproca: Ibnou faz seu


cunhado beber limonada e o domina através disto; por sua
vez, pensa-se comido por ele. E importante notar que a inver­
são ou a reciprocidade dos papéis é atuada aqui. A ingestão
forçada da limonada vem acompanhada da projeção de limo­
nada, N2.
Temos a cisão da imagem materna: a imagem da mãe má
é projetada no bruxo, a boa imagem protetora é invocada.
N2: ao nível 2 pertencem como antes a ação por corrente
de ar, a reação cinética de fuga, o confronto com o persegui­
dor. Notemos também que o confronto é atuado.
A personagem do perseguidor desloca-se do companheiro
de trabalho para o cunhado; a seqüência permitirá compreen­
der que o cunhado representa a família da mulher do doente,
seu casamento que traz desgraça: estamos no registro edípico.
• A utilização do safara é dificilmente interpretável: é ele
derramado como libação ou jogado como vindo do pai?

Entrevista de 6 de fevereiro

DADOS. Depois do vento, houve medo da morte.


Espanta-se por ter acusado o cunhado.
Espanta-se que seu pai tenha lhe causado mal com o safara
que o excitou.
Rejeita a interpretação de seu pai que atribui a doença aos
rab matemos.
, COMENTÁRIOS. A imagem paterna domina esta se­
qüência: o N3 garantido pela autoridade do pai é rejeitado.
Embora a acusação contra o cunhado seja criticada, aquela
contra o pai não o é. Temos uma imagem de “pai mau” , per­
seguidor de nível ambíguo.

Entrevista de 19 de fevereiro

DÀDOS. Sua mulher lhe traz desgraça.


Seu pai afirma o contrário, tende a acreditar nele.
AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA ANÁLISE DOS DELÍRIOS 263

A interpretação da doença pelos rab não é mais rejeitada mas


colocada em questão.
COMENTÁRIOS. Aqui, a imagem do pai oscila para o
lado da boa imagem, procurando manter o casal do doente e
sua mulher e referindo a doença'aos ancestrais, reintegrando
o doente na comunidade através dos sacrifícios apropriados
ao tuur. Alguns dias antes, pelo contrário, por ocasião de sua
fuga, o sujeito situava as imagens do pai, do cunhado e os
rab como fazendo ele perder o controle de si mesmo, fazen­
do-o ficar fora de si e fora do grupo.

Entrevista de 24 de fevereiro

DADOS. Medo de Diallo, muito intenso, com opressão,


sensação de morte iminente.
Fantasias de morte por acidente de carro, obstrução.
A presença do çai é tranqüilizadora.
COMENTÁRIOS. A vivência ansiosa é de N l. Mas a re­
presentação da morte decorre de N l e de N2: despedaça-
mento por ação externa.
A boa imagem paterna se confirma e, implicitamente, traz
consigo a interpretação N3.

Entrevista de 9 de março

DADOS. Opressão, palpitações, fadiga.


Medo dos motoristas bruxos que vão entrar dentro dele.
Lança correntes de ar nas pessoas sem fazer-lhes mal.
Recebe-as da “natureza” .
Pensa que os rab transformam “em ruim” os safara de seu
pai.
COMENTÁRIOS. A imagem do ataque corporal volta-se
para N l: vão entrar dentro dele.
O perseguidor está diluído na “natureza” .
Há inversão de papéis: o doente envia correntes de ar.
A ambivalência com respeito ao pai utiliza N3 para se
264 ÉDIPO AFRICANO

expressar: os rab tomam-se o pai mau, enquanto que o pai


real que dá o safara, é bom.

Entrevista de 14 de março

DADOS. A casa de sua mulher lhe traz desgraça.


Seu pai tinha razão ao querer que viva com ele.
Os rab e Diallo são seus perseguidores.
Os bruxos o mataram.
Deus o ressuscitou.
Tem medo da natureza.
Espanta-se por detestar seus próximos.
COMENTÁRIOS. O sujeito acentua o movimento de
submissão ao pai ao planejar viver com ele, e parece se pro­
teger através disto da atitude contrária: detestar seu pai e seus
‘próximos, sua mulher, sua filha. Não esqueçamos que no
contexto cultural, o casamento significa mais obediência ao
pai do que autonomia conquistada.
A interpretação em N3, proposta pelo pai, é integrada,
justaposta às outras.
Novamente os perseguidores se diluem na natureza.

Entrevista de 19 de março

DADOS. Queria desenhar dois boxeadores, só pôde de­


senhar um de frente.
Diallo = bruxo, “com a mesma corrente de ar de costume, o
que ele me fez face a face” .
COMENTÁRIOS. Temos, portanto, no fim das contas,
uma contração de N1-N2. O bruxo Diallo possui todas as
valências de N2, com a especificidade suplementar do face a
face para um confronto cinético; Ibnou é o boxeador não de­
senhado.
AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA ANÁLISE DOS DELÍRIOS 265

Entrevista de 22 de maio
Cura sintomática. Não há mais interpretações persecutó-
rias, nem ansiedade.
O sujeito vive na casa de seu pai, protegido por sua pre­
sença, por seu dinheiro, os amuletos e remédios tradicionais
que agora aceita com confiança... Ibnou está, mais do que
antes de sua doença, na dependência de seu pai.
Em resumo, temos:
Análise form al

- Um deslizamento constante de N I a N2, de uma se-


qüência à outra e dentro de uma mesma seqüêocia, inclusive
dentro de uma mesma frase. O deslizamento pode dizer res­
peito tanto à vivência ansiosa, quanto à imagem do cotpo ou
ao modo de ação. Nenhum dos níveis é homogêneo.
- Em N I assim'como em N2 o papel do perseguidor é
atribuído a pessoas diferentes. E, para uma mesma pessoa,
ora domina a valência N l, ora a valência N2. Também acon­
tece do perseguidor ficar diluído na natureza, nos objetos.
- Todavia, no perseguidor dominante, Diallo, a valência
N l predomina e se acentua do começo ao fim da observação.
- O tema de morte e ressurreição por Deus mistura-se
com as interpretações persecutòrias.
- Não há alternância livre entre as seqüências em N l e as
seqüências em N2, mas sim uma constante utilização dos dois
níveis que se encobrem em maior ou menor medida.
- Os diferentes níveis não se ordenam segundo uma su­
cessão orientada. Há ou encobrimento, ou oscilação de N l
para N2, enquanto que a interpretação em N3 prossegue pa­
ralelamente.
- No fim da observação, N3 domina sem que haja aban­
dono dos outros níveis.
- No fim da observação, as posições persecutòrias conti­
nuam latentes (a casa de sua mulher traz desgraça e Diallo é
bruxo), não há queixa ou reivindicação explícita ou assumida.
266 ÉDIPO AFRICANO
Lugar e sentido da interpretação pelos rab (N3)

- N3, a interpretação pelos rab, é dada pelo pai do


doente e tende a fazer parte da imagem do pai. Aceitá-la ou
rejeitá-la equivale a se submeter ou não ao pai. E é com este
sentido que será aceita no fim.
- A idéia geral é a de um confronto invertido em perse­
guição que se resolve pela submissão à boa imagem paterna,
isto é, pela aceitação de N3.
- A imagem do pai está situada do lado dos perseguido­
res, em N2, antes de ser uma boa imagem.
- N3 está fortemente marcado pelo sincretismo. É a po­
sição da família na evolução sociológica em questão. As
perturbações atribuídas aos rab matemos são tratadas aqui
com terapêuticas islâmicas, marabúticas. Os sacrifícios aos
tuuf são planejados mas não realizados.

Referência à clínica
- Não se pode distinguir claramente modalidades dife­
rentes de ansiedade relacionadas com diferentes níveis de in­
terpretação verbalizada. No entanto, os impulsos ansiosos
acompanham o N I predominante assim como os momentos de
confusão e de agitação psicomotora.
A ansiedade pode ser mínima ao mesmo tempo que a po­
sição em NI é afirmada (Diallo é bruxo). Podemos nos per­
guntar se este fato, que aparece como uma discordância em
relação ao esquema cultural de ataque pelos bruxos, não é
consecutivo ao eletro-choque.
Notamos também que a ansiedade pode diminuir ou se
intensificar sem que a temática expressa mude.
- Não conseguimos situar precisamente as alucinações
cinestésicas; provavelmente elas acompanham a dominante
N l.
- A cura, ou a remissão, é clinicamente observada quan­
do N3 passa a dominar. Acentua-se também, ao mesmo tem­
po, em todos os domínios da realidade, a submissão do
AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA ANÁLISE DOS DELÍRIOS 267

doente ao pai.
- Embora a cura, ou remissão, seja clinicamente obser­
vada, todos os temas de perseguição continuam presentes.
- Indiquemos como pertencente à vertente psicótica, a
inversão real, muitas vezes observada, dos papéis persegui-
dor-perseguido.
Esta análise, fora de qualquer consideração compreensi­
va, exige certos comentários.
As características e a organização das idéias delirantes de
Ibnou contrastam com aquelas que encontramos em Fatou.
Para Ibnou, nenhum dos temas delirantes é homogêneo; há
nebulosidade, confusão entre os diferentes temas, em todos os
sentidos (forma, imagem do corpo, vivência ansiosa). Os di­
ferentes temas não se apresentam segundo uma sucessão
orientada; temos geralmente a impressão de um estado de de­
sorganização da personalidade. Não há movimento de con­
junto que desemboque numa superação das tensões ou da an­
siedade. O movimento de conjunto, trabalhoso, feito de idas e
vindas, conduz, todavia, à localização mais precisa das posi­
ções persecutórias: a interpretação de bruxaria domina final­
mente e, para vencer a ansiedade a ela ligada, o sujeito adota
uma posição de submissão à imagem paterna, assim como de
submissão ao seu pai na vida cotidiana.
É a imagem do pai ou a dos rab que protegem do bruxo e
é a submissão regressiva à imagem protetora que permite o
ieasseguramento e a sedação da ansiedade. Mas podemos pre­
sumir que a melhora sintomática é frágil, instável.
- Não houve nem mobilização do núcleo ansiógeno, nem
elucidação da ansiedade, nem iemanejamento dinâmico outro
do que o movimento regressivo que acompanha a emergência
da boa imagem paterna.
- Mas, pudemos ver como a imagem paterna era ambi­
valente: poderia facilmente retomar para a vertente persecutó-
ria. O doente afirmou que se sentia “odiando” o pai, mas não
pode assumir isto (ao contrário do que observamos em Fatou
com referência ao marido).
268 ÉDIPO AFRICANO
- Podemos nos perguntar o que significa a posição de
submissão regressiva ao pai no contexto familiar de Ibnou;
para isto é preciso abordar o ponto de vista compreensivo pa­
ra o qual nos faltam muitos elementos.
Não pudemos fazer nenhuma hipótese sobre o desenca-
deamento do primeiro ataque confuso-delirante do sujeito. A
pesquisa familiar realizada recentemente por nossa colega so­
cióloga permite, em contrapartida, perceber que tensões a
doença de Ibnou cristalizou entre seus próximos.
Obrigada por seus pais, a mulher de Ibnou havia despo-
sado em primeiras núpcias um pretendente velho e rico, já
provido de numerosas esposas. O divórcio se deu sem que o
casamento se consumasse. A opinião que agora corre é a de
que Ibnou foi marabutado pelo pretendente despeitado.
O pai e a sogra de Ibnou são parentes próximos e, por­
tanto, o casamento de seus filhos só pode ser um “bom casa­
mento” , como diz a sogra: “ A um parente seguimos até o
fim.” Romper o casamento repercutiría sobre todo o paren­
tesco; no entanto, o pai de Ibnou pensa nisto, atribuindo a
“culpa” da doença à família da esposa de seu filho.
Por outro lado, o pai de Ibnou e a avó materna da jovem
mulher rivalizam pelo título de chefe do conselho de família;
a avó é a mais idosa e considera que o lugar deve ser seu.
Parece que a doença de Ibnou cristalizou tensões latentes
no grupo familiar, até então cuidadosamente dissimuladas, e
que puderam, então, ser expressas. Cada família toma a outra
responsável pela doença, utiliza a doença para acusar; as po­
sições se endurecem dos dois lados e a doença serve de justi­
ficativa.
Poder-se-ia pensar, portanto, que nosso sujeito, enquanto
suporte das projeções do grupo, tenha seu lugar marcado mais
pela doença do que pela boa saúde. Sua cura significaria que,
através dele, as tensões do grupo encontrariam uma saída
parcial, que ele contradiria as posições acusadoras e que as­
sumiría sua vitória sobre o velho pretendente...
Os elementos de prognóstico revelados pela análise, nos
AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA ANÁLISE DOS DELÍRIOS 269
casos de Fatou e de Ibnou, foram confirmados pela evolução
dos dois sujeitos.
Treze meses depois de sua saída do hospital, Fatou D.
está bem. Separou-se do marido sem que o divórcio tenha si­
do pronunciado e sem que as conversações familiares que de­
vem tratar do assunto tenham terminado. Vive com sua mãe
em Dakar e cuida dos trabalhos domésticos. Fatou pensa em
se casar novamente mas por enquanto não tem pretendente
oficial.
% Quatro meses depois de sua saída do hospital Ibnou vol­
tou para uma nova estadia de quatro meses. Vários episódios
delirantes com agitação e comportamentos agressivos ocorre­
ram. A temática delirante continua a mesma mas vai se empo­
brecendo. Entre os ataques, a tonalidade do contato e do
comportamento se modificou: Ibnou se instala numa espera
vaga de sua cura e não considera a possibilidade de voltar a
trabalhar um dia. No hospital, seu apragmatismo contrasta
com o caráter prestativo dos meses precedentes. A impressão
geral é que evolui para um estado esquizofrênico. Saiu do hos­
pital a pedido da família paterna, para seguir tratamentos ma-
rabúticos.
*
* *

Esperamos ter mostrado que uma análise formal dos delí­


rios de perseguição podia, tanto em si mesma quanto com re­
ferência à clínica, ajudar a precisar o quadro psiquiátrico dos
surtos delirantes. Nos casos examinados, a análise toma a
evolução mais compreensível e fornece elementos prognósti­
cos.
Se nossa hipótese estiver correta, permitirá talvez um
prognóstico mais precoce e uma clivagem mais claramente
definida entre os surtos delirantes reversíveis e curáveis sem
seqüelas e aqueles que são um prelúdio de distúrbios poste­
riores.
A propósito dos primeiros, queremos retomar mais uma
vez o caso de Fatou D. para nos perguntarmos se é mais cor­
270 ÉDIPO AFRICANO

reto descrevê-lo como um caso de doença mental ou de per­


turbações “ neuróticas” , ou insistir sobre o processo de evo­
lução construtiva que ele evidencia. A regressão rápida e pro­
funda, rapidamente reversível, tematizada segundo as inter­
pretações persecutórias fornecidas pela cultura, não podería
ser considerada como um modo especificamente “ africano”
de resolução de tensões, inclusive como um modo de evolu­
ção?
1. As posições persecutórias são a regra na civilização à
qual nos referimos; o mal é externo ao sujeito, a culpa não
está constituída enquanto tal, só a encontramos em estado
nascente. Somos, portanto, convidados a discernir entre o
normal e o patológico no próprio interior das posições perse­
cutórias, de acordo com as diversas maneiras segundo as
quais podem ser utilizados ou modificados os modelos cultu­
rais destas posições. Poderiamos talvez classificar diversos
tipos de utilização destes modelos culturais; alguns dentre
eles corresponderíam a um processo de melhor integração da
personalidade, enquanto que outros se revelariam patológicos.

2. Rapidez, profundidade e reversibilidade das regres­


sões podem ser relacionadas com a pobreza dos investimentos
e dos mecanismos da fase anal. Tudo se dá como se todo mo­
vimento regressivo só pudesse ser rápido e profundo visto
que entre os níveis fálico e oral só existe, em estado de esbo­
ço, o registro dos controles e das possibilidades de elabora­
ção que, entre as personalidades “européias” , mantém à dis­
tância os investimentos de nível oral. Na clínica européia,
distingue-se a “profundidade” das regressões e este é um
elemento importante da semiologia. Aqui, toda regressão se­
ria “profunda” e também o mecanismo da regressão mais
fundamentalmente utilizado, devido a uma pequeníssima es­
colha de mecanismos de remanejamento dinâmico mais dife­
renciados.
Em resumo, com respeito à cultura, o lugar e a função
das posições persecutórias (do mecanismo de projeção) e das
AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA ANALISE DOS DELÍRIOS 271
regressões profundas, são diferentes dos que designamos na
psicologia e na psiquiatria européias. Compreende-se, então,
que o quadro nosográfico clássico atribuído aos surtos deli­
rantes na África pode ser discutido. No limite, poderiamos
pensar que o que aqui chamamos de “surto delirante” , cono-
taria também a boa saúde mental, a capacidade de resolver
econômica e eficazment» certas organizações ansiógenas?
A INDIVIDUALIDADE HUMANA*

Os dados da investigação clínica nos impuseram o pro­


blema do complexo de Edipo nas etnias wolof, lébou, serer.
Em todos os casos observados, mesmo quando se tratava de
crianças criadas por seus tios matemos, e mesmo se a criança
não tivesse conhecido seu pai, a referência ao pai impunha-se
de maneira explícita, central, incontestável. Apresentava-se,
no entanto, de uma maneira tipicamente diferente daquela que
conhecemos na Europa, pelo menos se não considerarmos
uma fantasia isoladamente mas a evolução das fantasias, a sé­
rie das transformações que as toma analisáveis. A figura pa­
terna tendia a se assimilar na de sua própria classe etária; a
fantasia da morte do pai tendia a se relacionar com o ances­
tral, ou seja, com um pai já morto, inatacável, representando
a autoridade da Tradição. A rivalidade tendia a se deslocar
para os irmãos ou aqueles que são chamados de “ os iguais”
Cnawle) ao mesmo tempo que a agressividade recalcada pela
lei de solidariedade transformava-se em interpretações perse-
cutórias. Esta orientação típica na evolução das fantasias pa­

* Texto de 1984.
274 ÉDIPO AFRICANO

recia tanto mais dominante na medida em que mais nos apro-


ximávamos dos meios tradicionais. Por outro lado, a convic­
ção segundo a qual toda doença supõe a intervenção de po­
tências persecutórias e exige, portanto, o recurso aos ritos
tradicionais de cura ou de propiciação, tendia a limitar as
possibilidades de intervenção da psicoterapia analítica por
subordinar toda conduta individual às exigências tradicionais
da religião familiar.
Por fim, se considerarmos a nosografia, vemos que as
neuroses obsessivas são extremamente raras no meio tradicio­
nal africano, enquanto que os traços de comportamento ob­
sessivo são numerosos nos costumes rituais, como se os ritos
coletivos fornecessem ao indivíduo um sistema de defesa que
o dispensasse de ter que construir, ele mesmo, uma neurose
obsessiva. Este dado podia ser relacionado com o fato de que
•as defesas de tipo anal são pouco elaboradas na África, o que
facilita as transições entre o registro oral e o registro fálico
ou genital e de onde decorre a freqüência das regressões pro­
fundas ilustradas pelos surtos delirantes. Em contrapartida, as
perturbações profundas, como a esquizofrenia, existem na
África tanto quanto na Europa, o que permite pensar que as
variações da psicopatologia sob o efeito das influências cultu­
rais diz respeito, principalmente, aos sistemas de defesa da
personalidade.
São estas as conclusões gerais que podemos tirar da ob­
servação clínica. Elas nos orientam para um fato central, ou
seja, a importância da religião dos ancestrais. Á religião li­
mita as demandas de psicoterapia analítica ao propor uma
solução ritual para dois problemas principais: por um lado,
faz ver na ocorrência do mal (físico e moral) um sinal adivi-
nhatório, por outro lado, revela nas origens da vida a fonte de
uma autoridade que une os vivos e os mortos numa mesma
comunidade transmitida de geração em geração. Precisamos
comparar o estudo das tradições coletivas com as observações
clínicas no ponto preciso em que se encontram. Ambas, com
efeito, nos mostram que as questões fundamentais da humani-
A INDIVIDUALIDADE HUMANA 275

dade, a da origem e a da falta*, estão inclufdas na formação


dos laços humanos.

1. A INTERDIÇÃO DO INCESTO E O CULTO DOS


MORTOS

A primeira alusão de Freud ao complexo de Édipo en-


contra-se numa nota pessoal de 31 de maio de 1897 (manus­
crito N): “ As pulsões hostis contra bs pais (o desejo de que
morram) são também parte integrante das neuroses. Aparecem
conscientemente sob a forma de idéias obsessivas. Na para­
nóia, os delírios de perseguição mais graves (desconfiança
patológica dos chefes, dos monarcas) emanam destas pulsões.
Estas encontram-se recalcadas nos períodos onde os senti­
mentos de piedade pelos pais predominam, como nas suas
doenças, na sua morte. No luto, os sentimentos de remocsos
se manifestam; acusamo-nos então da morte deles (foi o que
descrevemos sob o nome de melancolia) ou então hos puni­
mos de modo histérico ficando doentes como eles (idéia de
expiação). A identificação é então, como vemos, apenas um
modo de pensar e não nos exime da obrigação de procurar os
motivos. Parece que nos filhos os desejos de morte estão diri­
gidos contra o pai, e nas filhas contra a mãe.”1
O ponto essencial desta nota diz respeito à ambivalência
das imagens de morte, na medida em que oscilam entre a
hostilidade e o luto. No luto, interiorizamos a imagem do de­
saparecido; esta imagem idealiza-se facilmente num senti­
mento de veneração que faz com que nos lamentemos dos an­
tigos conflitos. Freud utilizará as reações de luto como um
modelo teórico para explicar a gênese do supereu: nos dois
casos, o objeto de vínculo afetivo é interiorizado, o investi­

* Faute: tanto no sentido de falta, ausência quanto de não cumprimento de


uma prescrição, culpa, pecado. (N. da T.)
1. Freud, Naissànce de la psychanafyse, trad. A. Berman, P.U.F., 1956, pp.
183-184.
276 ÉDIPO AFRICANO

mento objetai se transforma em identificação. O sentimento


da falta e da lei moral interioriza a autoridade parental, obri­
gando a criança a fazer o luto de seus objetos infantis de
amor e de certos modos de satisfação que se tomaram regres­
sivos. É convidada a se comportar “como um grande” , en-
tendendo-se por isto: como seu pai e mãe. A transformação
do investimento afetivo em identificação ao outro é um pro­
cesso de simbolização: a presença parental se transforma de
objeto percebido em marca permanente de uma autoridade.
Inicialmente, a percepção se dá por oposição do tudo ou nada
(o objeto está presente ou ausente). As pulsões trabalham em
pares de termos complementares: “ ver, ser visto” (voyeuris-
mo, exibicionismo); “bater, ser batido” (sadismo, masoquis-
mo); “amar, odiar” etc. Mesmo as pulsões da necessidade
(como a fome) só encontram satisfação para a criança através
da mãe. O que Freud chama de “pulsão” coloca em jogo dois
termos complementares em relações alternadas de atividade
ou passividade, alternância esta que pode proporcionar diver­
sos tipos de prazer ou desprazer. A ambivalência dos senti­
mentos é de certa forma o fracasso deste mecanismo pulsio-
nal: a alternância dos contrários bloqueia-se numa contrarie­
dade atual. Só é possível escapar da contrariedade atual
aprendendo a retardar a satisfação e esta aprendizagem inte­
rioriza a autoridade parental. Ao dizer que a regra moral se
forma por identificação parcial ou seletiva a certos traços dos
pais, a teoria psicanalíüca quer dizer que a regra moral está
personalizada na criança numa figura de autoridade. A gênese
do supereu é a formação de uma nova estrutura: ao invés de
uma alternância entre termos complementares, temos agora a
referência a um terceiro termo, um terceiro simbólico e mode­
rador que pode adotar diversas formas: a autoridade parental,
“o que dirão” , a vox populi, o menino Jesus etc. Sendo mais
exatos, o aparecimento de uma instância reguladora implica
em diferenciar os personagens e o que eles devem ser segun­
do a posição ou o papel que lhes é atribuído num sistema de
telações interpessoais. Inicialmente, a criança vive uma sim­
A INDIVIDUALIDADE HUMANA 277

biose com a mãe numa relação de complementaridade onde


cada termo é parte de um todo. Esta simbiose não é indiferen-
ciada já que é uma relação de contigüidade corporal com al­
ternâncias pulsionais diversas. Mas não é uma relação “pes­
soal” . Para que as duas partes do par mãe-criança se tomem
independentes uma da outra, é preciso que cada “pessoa” se
distinga das relações que estabelece com os outros. É através
da aquisição de uma linguagem e graças a procedimentos
simbólicos de designação e de substituição que os termos e as
relações podem ser claramente distinguidas, assim como os
indivíduos e o lugar que ocupam num sistema, os sentimentos
pessoais e os estatutos atribuídos. O que está em jogo nos de­
vaneios edípicos é, portanto, tanto de ordem intelectual
quanto afetiva. Na oposição perceptiva do tudo ou nada,
“tomar o lugar do pai” implica em eliminá-lo, fazê-lo desapa­
recer. Para que “desejar tomar o lugar do pai” tenha algum
sentido, é preciso poder marcar este lugar como desejável
distinguindo-o dos indivíduos que o ocupam. E para que, por
outro lado, os indivíduos se concebam independentes uns dos
outros, é preciso que possam permanecer constantes quando
suas relações variam. Por fim, para adquirir um senso moral é
preciso aprender a retardar a satisfação imaginando cenas no
horizonte temporal, já que sou convidado a me tomar, mais
tarde precisamente aquilo que me é interdito no presente um
homem como meu pai, uma mulher como minha mãe.
Em suma, o que a psicanálise chama de “gênese do supe-
reu” é um processo de herança; a aquisição da linguagem per­
mite que a criança simbolize as relações de pessoas e de tempos,
mas a aquisição de uma regra moral atribuindo a cada um diver­
sos papéis não pressupõe, de início, abstrações impessoais; a
instância normativa é personificada na autoridade parental, ela
se constitui por empréstimo ou identificação seletiva a certos
traços do outro de forma que, se a moral é uma herança familiar,
cada criança tem sua própria maneira de se apropriar desta he­
rança cultural por meio das relações singulares que mantém com
seus pais e que não são as mesmas para cada criança.
278 ÉDIPO AFRICANO
Este processo de herança é absolutamente claro nas so­
ciedades de direito consuetudinário. O fundamento da moral
comum é a Tradição dos ancestrais, a lei dos Pais mortos. A
alternância do morto e do vivo na sucessão das gerações mar­
ca aqui o lugar designado para cada um na herança de uma lei
comum. Embora a expressão “fazer seu luto” era entre os
psicanalistas apenas uma metáfora, aqui ela se toma a desig­
nação literal de um rito coletivo. Este rito não consiste so­
mente no embalsamento do cadáver mas num conjunto de ce­
rimônias funerárias destinadas a reunir o morto aos seus an­
cestrais e, portanto, a lhe designar um estatuto que é o dos
fundamentos ancestrais da comunidade, onde se encontram ao
mesmo tempo a origem da vida e a origem da Lei. De uma
cultura para outra, o sentido da vida e da morte não será o
mesmo, precisamente porque, em todos os casos, a cultura é
•uma herança e a lei moral designa a cada um seu estatuto na
sua comunidade de origem, a comunidade à qual pertence em
razão de seu nascimento. A Tradição é uma herança que se
transmite dos mortos aos vivos. Vimos que, na clínica africa­
na, a referência da criança a seu pai conota uma dupla relação
aos ancestrais e às classes etárias, o qpe significa dizer que
conota os estatutos atribuídos aos mortos e aos vivos. O es­
sencial, na referência ao pai, é que vai do lugar marcado ao
lugar ocupado, do pai simbólico ao pai genitor, de uma figura
de autoridade a uma função física de geração. Não podería
ser de outra forma. E necessário que uma confiança preceda o
saber; o argumento de autoridade precede o argumento de ex­
periência. E quando os psicanalistas falam de “frustração”
não podem se esquecer que é a confiança infantil na palavra,
dos ascendentes que não quer ser frustrada. Nas sociedades
antigas mais do que hoje em dia, o estatuto da criança que vi­
ve numa intimidade corporal com sua mãe opõe-se ao estatuto
do adulto na sociedade dos homens onde se transmite a pala­
vra dos ancestrais. A função paterna de separação entre a mãe
e a criança está mais fortemente marcada do que nas socieda­
des contemporâneas, pois são os machos que têm autoridade
A INDIVIDUALIDADE HUMANA 279

tanto para casar a menina quanto para iniciar o menino. Se­


gundo a ética tradicional das classes etárias, o pai castiga
seus filhos, o avô é bom com seus netos. O confronto e a
proteção, a injunção e a doçura obedecem a uma regra de
distanciamento ótimo entre as gerações.
O estudo das sociedades arcaicas esclarece as metáforas
utilizadas pela psicanálise, pois é somente por metáfora ou
por analogia com uma ordem institucional que Freud aplica as
palavras “incesto” , “luto” , “assassinato” etc., às emoções da
sexuabdade infantil. O que dissemos acima sobre a moral an­
cestral no direito consuetudinário ajuda-nos a compreender
que o supereu é uma herança, uma herança moral infantil que,
no decorrer dos anos, toma-se anacrônica. A identificação à
autoridade parental é, ao mesmo tempo, uma imitação seletiva
e uma simbolização que marca os estatutos e os papéis de ca­
da um. A diferenciação entre o estatuto e as pessoas, ou entre
os lugares atribuídos e os lugares ocupados, mostra como se
instauram as regras, enquanto que o mimetismo de tal ou qual
traço de conduta emprestado dos pais por simüitude ou con­
traste, mostra como estas regras permanecem ligadas a figuras
pessoais, de maneira que a moral herdada funda sua fiabilida-
de na sua origem. Os estatutos atribuídos às posições pessoais
estão marcados por alternâncias e oposições distintivas: as do
vivo e do morto, a do homem e da mulher, a do adulto e da
criança... O desejo de independência pessoal e a injunção im­
posta pelas figuras de autoridade suscitam reações ambiva­
lentes que compõem uma mistura de atração e de temor como
na reverência ou no respeito. Reverenciar é se proibir de con­
frontar; o respeito mantém uma distância na proximidade. Por
seu lado, a figura de. autoridade é ambivalente porque ela nos
coloca num lugar inferior no presente a fim de que possamos
nos tornar como ela no futuro e ocupar honrosamente o lugar
que ela nos legará por herança. Assim se forma o “ supereu” ,
equivalente ao que David Hume chama “o quadrado das pai­
xões indiretas” , cuja função própria é a de marcar com um
signo de aprovação ou de desaprovação a posição do outro
280 ÉDIPO AFRICANO

(amor, ódio) e a posição de si mesmo (pride ou humility, o


narcisismo e sua ferida).2 A Tradição dos ancestrais é uma
moral herdada. Tem duas características: 1) funda sua fiabi-
lidade na sua origem; 2) associa os homens em função de seu
nascimento numa comunidade de origem. E, já que “ simboli­
zar” quer dizer “construir uma regra de substituição ou de
alternância” , vemos que a oposição entre o morto e o vivo
pode simbolizar globalmente a herança, o fundamento da au­
toridade, associa os descendentes num máximo de reverência
para com os ascendentes, uma reverência sagrada. O funda­
mento sagrado (fascincms e tremendum) das morais da con­
fiança continua inacessível à prova da experiência; situa o
sentido da vida na morte que reunirá o indivíduo a seus an­
cestrais.
O complexo de Édipo é muito mais difícil de compreen­
der nas sociedades contemporâneas onde a interdição do in­
cesto e o culto dos mortos já não ocupam mais do que um lu­
gar subordinado (familiar) no seio de uma sociedade econô-
mico-política que associa os homens por objetivos a alcançar,
programas de governo, morais de ação mais do que de esta­
tuto. A importância que hoje adquirem as comunidades de
objetivos nos dão mais liberdade, mais concorrência, mas
também mais instabilidade. O domínio do aleatório (do in­
certo, do risco), que é a fonte do poder na vida social, en­
contra-se agora situado na vida e não mais na morte, exceto
em caso de guerra onde a comunidade de origem retoma seu
lugar inicial, arcaico. O culto dos ancestrais na França privi­

2. D. Hume, A treatise o f H uman N ature, ed. Selby-Bigge, Clarend


Press, Oxford, 973, II, Parte 2, S ect 2, p. 333. A aproximação que fazemos entre
o supereu freudiano e o quadrado das paixões de Hume s6 se refere a um ponto
preciso, ou seja, o número limitado dos casos possíveis de figura no interior de
uma organização passional. Pode-se tirar disto um mitodo de análise. Ao invís
de tratar isoladamente um relato, procura-se a matriz inconsciente que governa
vários relatos segundo um número limitado de casos possíveis. Isto substitui
vantqjosamente o modelo “hidráulico” de Freud na sua teoria da libido (objetai
ou narcisista). Não se podería falar de “censura” sem supor um quadro dos ele­
mentos que o relato menciona ou suprime.
A INDIVIDUALIDADE HUMANA 281
legia o valor guerreiro: seu principal santuário é o túmulo do
soldado desconhecido, praça de 1’Étoile, e seus santuários lo­
cais nos monumentos aos mortos de todas as Comunas.
Aqueles que não aprenderam que o estatuto de ancestral é um
poder de jurisdição sobre a herança coletiva não compreen­
dem mais que “morrer no campo de honra” seja, na França,
uma maneira de adquirir este estatuto. A etnologia nos lem­
bra, no entanto, que não basta morrer para ser ancestral, mas
basta receber um culto para tomar-se um. Assim, na nossa ci­
vilização econômico-polftica, a administração prevalece sobre
a celebração. A moral da honestidade substitui a moral da
confiança filial. Os artifícios da justiça, para retomar o voca­
bulário de Hume, suscitam sentimentos mais abstratos que as
reverências ancestrais. A sociedade global não 6 mais regida
pelas regras de aliança entre as linhagens. O sexo e a morte
tomaram-se assunto privado interessando apenas de longe a
vida pública. A metáfora freudiana do “complexo de Édipo”
tomou-se difícil de compreender parg nossos contemporâ­
neos. Na lenda tebana o assassinato do pai foi para o filho
uma maldição, uma maldição inexorável, o que pode ser
muito bem compreendido pelos muçulmanos árabes, sobretu­
do Kabiles da África do Norte, pois sua concepção da pater­
nidade é bastante próxima da lenda tebana. Em contrapartida,
quando um político francês escreve metaforicamente: “Deve-
se matar o pai” , não vê nisto uma maldição mas, pelo contrá­
rio, uma libertação da moral heterônomS herdada da infância.
Faz disto inclusive uma espécie de obrigação, sem perceber
que a metáfora freudiana aplicava-se a uma aventura infantil
anterior a qualquer obrigação. Supõe-se que “deve-se” liqui­
dar o complexo de Édipo. Mas não se trata de “deve-se” . Ele
se liquida de qualquer forma, bem ou mal, visto que a criança
cresce e que o rio do tempo não volta para trás. A psicotera-
pia levanta a hipótese de que certos remanejamentos da orga­
nização emocional sejam possíveis retrospectivamente, mas
não se sabe até onde. Você diz: “deve-se”, mas deve-se o
que? Ninguém sabe isto de antemão, já que o problema é in-
282 ÉDIPO AFRICANO

dividuai e é um problema infantil sem importância fora do in­


cômodo, do sofrimento e das inibições que o impõe nova­
mente à atenção do adulto.
O complexo de Édipo manifesta-se mais claramente nas
sociedades arcaicas do que na nossa, mas isto não quer dizer
que explique suficientemente a organização destas sociedades
e de suas religiões. Conhece-se a este respeito a célebre con­
fusão de Malinowski escrevendo: “ No complexo de Édipo há
o desejo de matar o pai e de casar-se com a mãe, enquanto
que na sociedade matrilinear dos Trobriandeses, o desejo é de
casar-se com a irmã e matar o tio materno.” 3 Malinowski
simplesmente confundiu a moral do adolescente .prestes a se
casar, com o amoralismo problemático do lactente no mo­
mento em que, por exemplo, é desmamado do seio materno.
O incesto materno do qual fala metaforicamente a psicanálise
é algo muito mais elementar do que a diversidade das institui­
ções familiares. O que Malinowski chama o “desejo de casar-
se com a irmã” é uma tendência social à endogamia que, de
fato, ocupa um grande lugar nos mitos (entre os Dogon e os
Bambara da África ocidental “ As desventuras do sobrinho”
são o tema central da mitologia), mas este é um assunto de
adultos, muito menos “recalcado” no esquecimento do que os
“caprichos” e os cidmes da infância.4 O complexo de Édipo é
o problema da sexualidade infantil e, em todas as sociedades,
não é outra coisa do que isto. Em todo lugar o problema é o
mesmo, qualquer que seja a maneira de resolvê-lo: consiste
no fato de que a diferenciação sexual entre menino e menina
inscreve na vida emocional uma construção simbólica das

3. B. Malinowski, Sex and Repression in savage society, The World Pu-


blishing Co; Cleveland, 1964, p. 76. É divertido comparar a tese de Malinowski
com esta confidência de Freud: “ A relação tio-sobrinho tomou-se paia mim, por
causa das lembranças de minha primeira infância, fonte de todas minhas amiza­
des e de todos meus ódios” (G.W. II-I1I, p. 475). Em suma, Freud era Trobrian-
dís.
4. Sobre as relações tio-sobrinho ver nosso estudo de 1963: “ Gémeléité,
inceste et folie chez les Bambara et les Dogon” publicado em E. Ortigues: ReU-
gions du Livre et reügions de !a Coutume, Le Sycomore, Paris, 1981, pp. 93-112.
A INDIVIDUALIDADE HUMANA 283

relações pessoais, e que a análise desta construção fa z apa­


recer uma base efetiva da ética fundada na relação do ser
humano com sua origem. É esta a situação problemática da
infância humana. Todo o resto, tudo o que se conta nas fanta­
sias é apenas resposta a esta situação problemática, sendo a
resposta variável segundo cada indivíduo (mesmo no interior
de uma mesma cultura).
Os psicólogos dizem “um Édipo” como os eletricistas di­
zem “um Watt” em honra a James Watt, morto em 1819.
Desde 1964 utilizamos5 uma terminologia mais conforme à
nossa prática de análise: falamos de “estrutura m ínima” das
relações pessoais aquém da qual o indivíduo é psicótico, o
que é umá maneira de indicar o domínio a ser explorado,
orientando a pesquisa não para um limiar ou uma fronteira
conhecidos de antemão, mas para uma compreensão positiva
das defesas contra a angústia. A hipótese das condições mí­
nimas de estrutura relacionai é uma hipótese sobre a nature­
za da angústia e do sofrimento humano (isto é, do sofrimento
não apenas local mas central, ligado aos “ analisadores”
frontais): um sintoma psicopatológico é mais suportável para
um determinado indivíduo do que a dissociação do “núcleo
infantil” da personalidade, como dizia Freud, ou da estrutura
relacionai m ínim a aquém da qual a subjetividade se perde no
inominável.
Isto supõe que a personalidade não se define apenas por
um conjunto de disposições mas também por um conjunto de
relações. Uma pessoa é um ser vivo dotado de linguagem. O
uso dos pronomes pessoais permite designar um indivíduo vi­
vo em todas as posições necessárias à existência de um sis­
tema de comunicação, quer ele fale, falem com ele ou falem
dele. A consciência pessoal é a capacidade de se reconhecer
como o mesmo indivíduo agindo nesta alternância de papéis e3

3. A primeira edição de Édipo africano mencionava a estrutura m ín im a no


fim do capítulo IV (atualmente cap. III, p. 114). Mas a noção de “ complexo” nos
parecera fa m ilia r demais aos leitores para ser eliminada.
284 ÉDIPO AFRICANO

de situações, essencial ao uso dos signos intencionais. À ap­


tidão à consciência de si é, ao mesmo tempo, a aptidão a se
comunicar com outrem. A identidade pessoal é a identidade
de um indivíduo físico suscetível de se reconhecer e de se fa­
zer reconhecer, isto é, de ocupar todas as posições necessá­
rias para uma comunicação por meio da linguagem e outros
signos intencionais, o que requer se ver atribuído de diversos
papéis assim como assumi-los em primeira pessoa. A pessoa é
o interlocutor possível, aquele que é capaz de responder
“Eu” quando lhe dizem “ Você” . Diz-se “ Você” a um ca­
chorro, ele não responde “Eu” e não conta “ele” ; um cachor­
ro não é uma pessoa, sua capacidade de reação não é adequa­
da à capacidade de relações que instaura a criatividade da-
linguagem. A identidade pessoal não está, portanto, centrada
num “Ego” mental, mas na singularidade física e moral de
um ser dotado de palavra.
Com a palavra, o sexo é a base natural da vida social. A
sexualidade infantil é qualificada de “polimorfa” porque
comporta uma plasticidade psicológica, uma lenta mutação da
infância para a adolescência. A criatividade da linguagem
vem acompanhada de uma parte indispensável de sonho e de
imaginação criativa na formação da personalidade masculina
ou feminina, com saídas eventualmente desviantes como a
homossexualidade. A gênese psicológica se realiza por identi­
ficação seletiva aos pais, o que quer dizer que o investimento
de tal ou qual traço de caráter, emprestado por similitude ou
contraste da geração anterior, só se torna uma referência
identificatória para a criança se preencher a dupla função de
distingui-la dos outros, vinculado-a de uma maneira privile­
giada a certos outros (seus pais, sua família). O que nos sin-
gulariza é, também, o que nos enraiza numa terra humana. Q |
sentimento de si enraiza-se numa história, em referências j
identificatórias provenientes da infância, tais como o nome,
imagem do coroo, a língua materna, certos traços de cost__
e de gostos... E um fato geral em todas as civilizações: identir i
fica-se um indivíduo identificando-se sua comunidade de
A INDIVIDUALIDADE HUMANA 285

gem (sua família, sua pátria, seus ancestrais). Comunidades


de origem e comunidades de objetivo são as duas principais
formas de associação entre os homens. A comunidade de ori­
gem, à qual um indivíduo pertence devido ao seu nascimento,
é relativamente independente dos objetivos a que as pessoas
se propõem e das metas perseguidas na vida; ela une os ho­
mens pelo que eles são, mais do que pelo que fazem; e como
tudo o que vem da infância, transpõe-se facilmente sobre di­
versos registros. As religiões são uma transposição da comu­
nidade de origem: entra-se nelas por uma iniciação ou um no­
vo nascimento; nelas somos instruídos sobre as causas primei­
ras e o que buscamos nas origens da vida é a fonte de uma
autoridade, de um poder absolutamente confiável. Mas os
homens também se associam pela procura de objetivos co­
muns. Os laços que assim se estabelecem são móveis assim
como as metas propostas; fazem-se e se desfazem ao longo de
uma vida, sobretudo quando a mobilidade social favorece sua
diversidade. A importância que adquiriram os objetivos eco­
nômicos desde o século XVIII nos faz conceber a sociedade
global na perspectiva dos programas políticos e dos projetos
de organização enquanto que, durante milênios, os laços de
sangue e da religião foram os fundamentos sagrados da vida
social. As comunidades de origem tendem sempre a produzir
sociedades fechadas, tanto mais fechadas na medida em que
se idealizam protegidos por seus deuses e seus pais fundado­
res. Curiosamente, os indivíduos sentem-se perdidos num
anonimato coletivo ao serem entregues a si mesmos, e disto
decorrem uma série de reações compensatórias como o retor­
no ao integrismo de uma ortodoxia e o romantismo revolucio­
nário. É, portanto, o comércio que abre as sociedades, mas
durante muito tempo pareceu desprezível.

2. O DISCERNIMENTO ENTRE O BEM E O MAL

A ausência de delírios melancólicos de auto-acusação foi,


repetidas vezes, mencionada na psiquiatria africana. Consta­
286 ÉDIPO AFRICANO

tamos que as tradições religiosas concebem o mal, físico e


moral, sob uma forma persecutõria; tanto a doença quanto a
falta são sempre explicadas pela intervenção de uma força
externa ao sujeito.
Esta observação oferece um contra-exemplo à tese de
Freud no seu texto de 1915: “Luto e melancolia” . Sob o
pretexto de que o luto e a melancolia são ambos estados de­
pressivos, Freud os aproximou demais dando à teoria do su-
pereu um modelo melancólico: “Consideremos por um mo­
mento estes aspectos estruturais do eu humano que a afecção
do melancólico nos permite entrever. Observamos como uma
parte do eu vem se opor à outra fazendo sobre esta última um
julgamento crítico e tomando-a, de certa forma, como objeto.
Suspeitamos de que a instância crítica, aqui separada do eu,
podería, em outras circunstâncias, manifestar sua indepen­
dência e esta suspeita é confirmada por todas as observações
posteriores. Há fundamento em separar esta instância do resto
do eu e, pelo que descobrimos, chamá-la de consciência mo­
ral.” 6 Freud parece não ter considerado até que ponto o que
ele diz sobre a consciência pessoal da falta, depende de uma
civilização que durante anos se exercitou na análise dos sen­
timentos e dos conflitos internos. O que para nós parece evi­
dente não o é em outros tempos e lugares. Ainda recente­
mente, em 1961, H. Tellenbach afirmava o caráter “endóge-
no” da psicose melancólica e de seu “tipo consciencioso” ,7
como se se tratasse de um tipo universal. Certos psiquiatras ;
tendem a confundir “depressão” e “melancolia” , embora a
psicofarmacologia nos tenha ensinado que a depressão sim- j
pies distingue-se da neurose e que existem diversos tipos de
estados depressivos. As depressões são fieqüentes na África i
embora não exista melancolia no sentido estrito de uma com -;
pulsão a se recriminar acusando-se a si mesmo. As considera- ;

6. Freud, “ D euilet iA t\»nco\it", 'mM etapsychobgie, N.R.F., Paris, 1952, p. '


199.
7. H. Tellenbach, La mélancoUe, P.U.F., Paris, 1979 (1! ed. Springer, Ber-
lin, 1961).
A INDIVIDUALIDADE HUMANA 287
ções puramente psíquicas ou mentalistas são frágeis quando
não estão apoiadas na psiquiatria comparada, na história e na
antropologia. Porém, se há um campo onde o comparativismo
histórico e antropológico poderia aproveitar das contribuições
da psiquiatria e da psicanálise, este é justamente o da angús­
tia do mal.
O problema do mal é, antes de mais nada, um problema
filológico, como o problema das cores, dos gostos, das re-
pugnâncias, dos prazeres e dos desprazeres. Deveríam ser
sistematicamente realizados estudos comparativos sobre o vo­
cabulário do mal nas diversas civilizações ou em diferentes
épocas. Por que dizemos “o mal” ? Porque precisamos de um
termo muito geral que não faça de antemão a distinção entre o
mal físico e o mal moral, entre a doença e a falta.
Com efeito, se raciocinarmos em termos de responsabili­
dade, é claro que a doença e a falta opõem-se como involun­
tário e voluntário. Mas as tradições religiosas muitas vezes
raciocinam numa perspectiva totalmente diferente. Nos textos
babilônicos e nos salmos bíblicos dos anawin, o suplicante
queixa-se de ter sido abandonado por seu deus (sendo este
deus seu guardião, seu protetor nomeado). A doença é para
ele um sinal ou uma prova deste abandono, e por isto sua
aflição moral: está entregue, sem defesas, a seus inimigos vi­
síveis e invisíveis; é perseguido, mas ao mesmo tempo sente-
se em débito para com seu deus e promete-lhe rezas e sacrifí­
cios. Para analisar este caso em termos psiquiátricos, pode­
riamos falar de estado depressivo, de mecanismo projetivo (a
causa do mal ou a “falta” estando projetados em inimigos vi­
síveis ou invisíveis); poderiamos falar de angústia, de aban­
dono que o leva a se humilhar frente ao protetor divino sem o
qual não quer viver. Faltaria explicar porque o suplicante
continua a se sentir em débito com o deus ao qual dirige suas
recriminações e queixas: “Por que você me abandonou?” 8

8. Alusão aos textos bíblicos estudados em Reügions âu Livre e t reUgions de


Ia Coutume, Le Sycomore, Paris, 1981, cap. I, pp. 29-31.
288 ÉDIPO AFRICANO

Este exemplo requer algumas observações metodológicas.


Chamamos de “ sentimentos” as diversas maneiras de estar
afetado por... ou envolvido por... uma situação. Além disto,
os termos apreciativos (“bem” , “mal”) não descrevem nada
mas selecionam conotações. Sentimentos aparentemente sim­
ples podem, portanto, conotar situações extremamente com­
plexas, cenários que colocam vários personagens em relação.
Mesmo se o cenário é imaginário, oferece à vida social, assim
como à sensibilidade do suplicante, os materiais com os quais
se constrói. A partir disto podemos voltar à etnologia africana
com duas questões essenciais: do que decorre que a doença
ou a desgraça do indivíduo seja um sinal divino?, e que o in­
ferior esteja sempre em dívida para com o superior? Veremos
que o discernimento entre o bem e o mal é regido por dois ti­
pos de condições: o acontecimento e o costume.
Consideremos primeiro as regras do direito consuetudiná-
rio. As instituições consuetudinárias conferem à ação uma
certa racionalidade, como revela o fato de que podem provo­
car recriminações, discussões, conversas. Sentimo-nos aí em
terreno conhecido pois encontramos trocas de argumentos
contra e a favor, isto é, uma concepção argumentativa da falta
e da sanção. Notar-se-á, porém, que a racionalidade da ação é
definida aqui por uma moral estatutária: cada um deve agir
conforme o seu estatuto. Não se trata, portanto, de uma ra­
cionalidade da troca direta ou comercial que é regulada pelo
valor das coisas trocadas. Como mostrou Marcei Mauss no
seu “Ensaio sobre o presente (don)” , a fórmula do utdes não
tem o mesmo sentido se se aplica a valores mercantis ou a
valores estatutários. Em matéria de estatutos, ganha sempre
quem dá, ganha uma posição superior fazendo do outro um
devedor. Pode acontecer, em seguida, que as posições se in­
vertam, mas para isto não é necessário que o devedor pague a
sua dívida imediatamente como ocorre numa troca mercantil.
Assim fazendo ofendería o doador, privaria-o da honra que
lhe é devida. Para saldar a sua dívida, convém esperar o mo­
mento oportuno para, por sua vez, fazer um presente de hon­
A INDIVIDUALIDADE HUMANA 289

ra. São sempre gestos magnânimos que se respondem quando


o bem não reside nas coisas mas na dignidade. Certas hierar­
quias estatutárias são, no entanto, irreversíveis. No exemplo
bíblico acima citado, o deus-guardião fez o presente de sua
aliança; a aliança bíblica é sempre desigual e certamente o é
quando a aliança é divina: o homem é “o servidor” de seu
deus. Vemos que as noções de “falta” e de “dívida” não
coincidem. É assim que, na teologia cristã, o pecado original
é uma dívida coletiva sem ser uma' falta pessoal; esta dívida
afeta o status honúnis. Com algumas variantes, podemos en­
contrar uma situação análoga nas tradições africanas: os des­
cendentes estão em débito para com seus ascendentes, devem-
lhes respeito e, quando se trata de um ancestral, devem-lhe
um culto. Além disto, visto que o circuito do presente e da
dívida é regido por relações estatutárias, diz sempre respeito
a toda a comunidade. Este ponto de vista é frequentemente
fonte de equívoco para nós: devido ao fato de raciocinarmos
em termos de “responsabilidade” , perguntamo-nos sobre a
responsabilidade individual e a responsabilidade coletiva.
Mas, às vezes, é impossível responder a este tipo de pergunta,
por exemplo, quando se faz a exegese do livro dos Reis na
Bíblia onde a falta individual tem, muitas vezes, uma signifi­
cação coletiva inerente ao estatuto real. Embora as regras
consuetudinárias se prestem à argumentação, elas são direta­
mente legíveis nos estatutos individuais e nas instituições
comuns.
Existem, em contrapartida, males indecifráveis para os
quais a intervenção do divino é indispensável. E o caso de
certas catástrofes coletivas. Mas, sobretudo a maioria das
desgraças individuais são deste tipo. A distinção entre mal fí­
sico e mal moral é pouquíssimo pertinente neste caso. A len­
da de Édipo, por exemplo, mostra que um crime pode apare­
cer como um destino infeliz tendo valor de sinal adivinhatório
para a comunidade. O traço decisivo, pertinente, é de que as
potências do destino em ação no acontecimento são indeci­
fráveis sem o recurso ao oráculo.
290 ÉDIPO AFRICANO

Ora, estes dois registros, o dos estatutos consuetudinários


e o do acontecimento-sinal, não devem ser nem confundidos
nem separados. Os acontecimentos nefastos dependem da
adivinhação mais do que da argumentação. Os sinais adivi-
nhatórios têm uma espécie de singularidade intrínseca: só são
classificáveis através dos registros aleatórios da adivinhação.
Assim, os dois registros, argumentativos e adivinhatórios,
estatutários e aleatórios, são diferentes, mas não devem ser
separados numa análise da ética tradicional e dos sentimentos
que a suportam. Estes dois registros misturam-se constante­
mente na vida. Vemos como eles são sistematicamente solidá­
rios, pois um não pode mudar sem que o outro se modifique.
Quando as instituições consuetudinárias se desagregam, a
bruxaria abunda; mágicos e adivinhos substituem sua antiga
magistratura pela oficina do charlatão.
• Historiadores e etnólogos negligenciam demais a função
sistematizante do oráculo na ética de uma comunidade Foi
tomando como centro de perspectiva a função adivinhatória
do oráculo que fomos levados a uma classificação dos temas
persecutórios sob as três categorias principais da bruxaria, da
magia (ou marabutagem) e dos cultos da possessão. Esta clas­
sificação corresponde às três grandes alternativas que subten-
dem a questão formulada ao adivinho: de onde vem o mal?
Estes três registros, como vimos, não têm as mesmas valên-
cias. Quando um Gênio ancestral reclama o que lhe é devido
através do indivíduo sofredor que escolheu, este' sofrimento
eletivo aproxima-se da dívida coletiva, isto é, da tacionalidar
de das obrigações consuetudinárias, o que permite integrar a
possessão no quadro geral do culto dos ancestrais. Não se
deve confundir as exigências veneráveis do Gênio com os
malefícios do bruxo. Certos etnólogos acreditam ver nos cul­
tos de possessão um “exorcismo” . É um contra-senso. Os
cristãos “exorcisam” um possuído para fazer sair de seu cor­
po um anjo réprobo ao qual é proibido render culto. Entre o
wolof, os lébou e os serer, quando se faz sair o Gênio do
corpo, é para “fixá-lo” a um altar ou um santuário a fim de
A INDIVIDUALIDADE HUMANA 291

lhe render culto. Isto se chama um rito de fixação. Por que


falar de exorcismo? Como poderia haver exorcismo lá onde
não há réprobos? Mesmo sendo verdade que se projeta a cau­
sa do mal num poder externo, este poder não é necessaria­
mente mau; o Gênio exige o que lhe é devido. Estes meca­
nismos de projeção não devem apressadamente ser chamados
de “paranóicos” . Aplicar a práticas coletivas uma etiqueta
nosográfica é uma simplificação abusiva. Aliás, quando invo­
camos mecanismos de projeção ou de introjeção para indicar
como a culpa chega ou não a ser internalizada, fazemos como
os geômetras que transcrevem um volume sobre uma superfí­
cie plana. Cabe à análise dos ritos e das instituições recons­
tituir o volume das alternativas oferecidas pelo duplo sistema,
argumentaüvo e adivinhatório, estatutário e aleatório, da ética
tradicional.
O discernimento entre o bem e o mal está submetido a
dois tipos de condições: obrigações consuetudinárias direta­
mente legíveis nos estatutos pessoais e de linhagens; males
que são indecifráveis sem o recurso a um órgão de revelação
que é o oráculo do destino. A bruxaria é a face noturna da
individualidade contingente no que ela tem de intimidade
suspeita, capaz de lançar um mau olhado contra o qual só a
Vidência e a Magia podem lutar pois utilizam a mesma potên­
cia do destino. Assim, o mal e o poder dele resultante têm
uma fonte comum na intersecção do costume com o aleatório.
Esta conclusão pode ser aproximada da teoria social do
poder proposta pela sociologia das organizações: procure
quais são as zonas de incerteza ou de flutuação aleatória nu­
ma sociedade; é aí que os mais malignos encontram a fonte de
seu poder. Por oposição a uma moral do estatuto e do destino,
uma moral da ação procura conciliar, no cálculo das prefe­
rências e das probabilidades, as duas componentes da ação: a
razão e a sorte, Ratio et Fortuna, como diziam os humanistas.
O problema do mal admite apenas uma solução ritual quando
a fonte aleatória do poder encontra-se nos extremos da vida,
no nascimento e na morte, isto é, no exato lugar de nossa im­
292 ÉDIPO AFRICANO

potência individual. Quando a contingência é concebida co­


mo um risco inerente à iniciativa pessoal, o problema ético se
transforma: o campo moral é o campo do que vale para cada
um como um fim em si e cada um é responsável pelos fins
que escolhe, tendo a legislação, por tarefa, conciliar as diver­
sas aspirações numa organização viável da sociedade; a lei
justifica-se então mais por sua utilidade do que pela antigui­
dade de sua origem sagrada.
É notável como a conjunção entre certas práticas religio­
sas e certas formas patológicas de delírios marca uma cesura
entre duas concepções da ética: a predominância dos temas
persecutórios, valorizados pelas crenças coletivas, reflete uma
moral do estatuto e do destino; a predominância dos temas de
auto-acusação reflete uma moral da ação e da mobilidade so­
cial. A culpa aparece de duas formas, interna ou projetiva.
Ela‘é mais fireqüentemente projetada do que internalizada. Em
toda consciência moral há uma componente agressiva que os­
cila entre dois pólos contrários e complementares. Ora o cul­
pado se compraz na abjeção e, como mostrou Dostoiewski,
encontra-se então entre os humilhados e ofendidos; ora a ví­
tima se pune através das somatizações massivas, às quais os
ritos de cura procuram justamente responder. Por fim, se é
verdade que a doutrina judaico-cristã do pecado e da penitên­
cia pôde refinar a vida interior, é também verdade que a dou­
trina penitencial e o poder sacerdotal ou profético reforçam-
se um ao outro. Por uma espécie de círculo vicioso, cada reli­
gião concebe o mal à luz das soluções rituais que para ele
propõe. Por acreditar demais no mal e no seu remédio, eles
são assimilados numa mesma fé.

3. ANTROPOLOGIA E BIOLOGIA

Para Malinowski, o complexo de Édipo era apenas um


“sistema de atitudes típicas” .9 As noções de “atitudes” e de

9. B. Malinowski, Sex andRepression, op. cit., pp. 72-129.


A INDIVIDUALIDADE HUMANA - 293

“disposições” voltam constantemente na teoria dita “cultura-


lista” da “personalidade básica” entre autores, aliás bastante
diversos, como Ruth Benedict, Margareth Mead, Abraham
Kardiner, Ralph Linton etc.
O conceito de atitude impõe-se por si mesmo num estudo
estatístico, deixando livre a escolha do vocabulário com o
qual-estas atitudes serão qualificadas de tal ou qual. Somos,
portanto, remetidos às dificuldades decorrentes da tradução e,
de forma mais geral, da interpretação das culturas. Mas, a
“personalidade básica” equivale ao que se chama “o tipo ét­
nico” , “o caráter nacional” etc. Esta tipologia é puramente
social e comparativa; ela não diz respeito diretamente à exis­
tência pessoal enquanto definida pela capacidade de discernir
entre o verdadeiro e o falso, o bem e o mal. Mas é precisa­
mente esta capacidade de discernimento e de controle que se
toma em si mesma problemática quando um indivíduo, ao du­
vidar sobre sua possibilidade de resolver sozinho suas difi­
culdades, pede uma consulta e uma psicoterapia. As questões
ditas “pessoais” são aquelas que nenhum indivíduo pode re­
solver no lugar de outro. Trata-se essencialmente disto na
prática psicanalítica. Seja qual for a teoria psicológica, a prá­
tica psicanalítica não tem outra finalidade do que a de ajudar
um sujeito a resolver, por si mesmo, suas próprias dificulda­
des, sendo o analista apenas um intermediário entre o sujeito
e a descoberta ou emergência de possibilidades viáveis. As­
sim sendo, a teoria da personalidade básica e de suas atitudes
típicas não responde a nenhum dos problemas fundamentais
da análise das culturas e da psicanálise. Isto não quer dizer
que não seja interessante, mas é uma sintomatologia. Um le­
vantamento dos sintomas às vezes é útil, às vezes enganador.
Por outro lado, há um grande inconveniente em personi­
ficar uma cultura num tipo étnico ou num caráter nacional. O
vocabulário utilizado, vagamente moralista, é o da comadrice
internacional, insensível ao obstáculo filológico. E um com-
paratismo ruim, no qual já se sabe de antemão o que pode ser
comparado pois o vocabulário utilizado decide sobre isto sem
294 É D I P O A F R IC A N O

crítica. O exotismo do fato peculiar faz crer que existem es­


pécies culturais que poderíam ser classificadas como raças.
Os conceitos de “disposição” e de “aptidão” têm um in­
teresse científico mais considerável mas também mais enig­
mático do que o de “atitude” . Como deve ser entendida a
virtualidade implicada nos conceitos disposicionais? Pode-se
ver neles a indicação de um problema, o da relação entre os
comportamentos observáveis em escala macroscópica e o dos
mecanismos microbiológicos que tomam “possíveis” estes
comportamentos. Esta questão das relações entre a biologia e
a psicologia é suficientemente importante para autorizar uma
pequena digressão.
As leis mais gerais do universo são leis físicas (ou físico-
químicas). O objeto da biologia é o produto de uma história
natural que restringe a aplicação das leis físico-químicas à
constituição particular dos organismos vivos. Uma restrição
suplementar aparece com a história cultural ou didática do ser
humano. Cada vez, a história, primeiro natural depois cultu­
ral, restringe a generalidade das leis. Como aparece esta res­
trição quando se passa da história natural para a história cul­
tural?
Podemos distinguir nas ciências dois tipos de teorias: teo­
rias de mudança ou de evolução e teorias de composição, as
segundas tendo um alcance mais geral do que as primeiras. O
privilégio das ciências naturais é poder proceder a análises
reais; no fim da análise, pode-se exibir um elemento fisica­
mente (ou materialmente) identificável; nossos ancestrais ti­
nham seus quatro elementos, nós temos hoje nossos corpos
químicos, nossa tabela periódica dos elementos, nossas molé­
culas, nossos átomos, nossas partículas sub-atômicas e, cer­
tamente, é verdade que na hora de chegar ao umbral do infi­
nitamente pequeno, a mecânica quântica descobre um princí­
pio de incerteza que as ciências psicológicas e sociais têm
a infelicidade de encontrar desde o começo. Apesar de tudo,
as ciências naturais podem andar um bom pedaço do caminho
antes de serem obrigadas a sonhar como os humanistas. A fe­
A INDIVIDUALIDADE HUMANA 295
licidade das ciências naturais é poder exibir teorias de com­
posição absolutamente respeitáveis. Infelizmente, no entanto,
não se encontrou espirito na molécula de proteína, más ape­
nas nos signos. Todas as teorias de composição, entre os hu­
manistas, são semiologias, o que significa que o recorte das
unidades funcionais já é uma “hipótese analítica” entre ou­
tras possíveis. A menor moeda do espírito expressa-se em
valores fiduciários. Tentou-se dar mais respeitabilidade às
teorias de composição em psicologia: inventou-se o associa-
cionismo, a reflexologia... Alguns estruturalistas compatriotas
acreditaram inclusive que o inconsciente estava construído
como uma fonologia, mas isto só deu em trocadilhos; faltava
justamente esta diferença de nível, entre a fonologia e a sin­
taxe que dá originalidade à linguagem, faz a riqueza das civi­
lizações e a falibilidade do espírito.
A lição que podemos tirar da biologia é que não há de­
terminismo linear entre as reações ffsico-químicas e os com­
portamentos ou obras humanas. O determinismo biológico
hierarquiza os níveis de organização: o que é unidade orgâni­
ca num certo nível é unidade funcional num outro sem que
haja dualismo substancial entre o órgão e a função. É a mes­
ma coisa em diferentes relações. O determinismo biológico
hierarquiza os níveis de organização, o que aumenta as mar­
gens de indeterminação ou de variação possíveis quando se
passa da história natural para a história cultural. Assim nasce
“o jogo dos possíveis” , como diz François Jacob. E, com
efeito, a modalidade do possível não é mais do que um jogo
de desnivelamento. Quando imaginamos o possível, faze­
mos como o salmão que sobe as quedas d’água, incluímos o
acontecimento atual numa espera, incluímos uma perspectiva
limitada numa perspectiva mais ampla, uma figura num hori­
zonte, um modelo numa teoria, uma teoria limitada numa teo­
ria mais globalizante... Como todos sabem, o possível (o que
não é necessário) e o necessário (o que não é possível que
não...) são uma única modalidade. Os antigos acreditavam
que o necessário era a própria razão. .Sabemos hoje que esta­
296 É D I P O A F R IC A N O

vam enganados. Num argumento dedutivo, a modalidade não


funciona a não ser que se brinque de salmão imaginando uma
cascata de universos possíveis, o que sempre implica em su­
bordinar uma perspectiva a outra como faz a vida ao hierar-
quizar seus níveis de organização. O pensamento dedutivo
reduz a necessidade à validade lógica, isto é, à universalida­
de, ao “que é verdadeiro em todos os casos” . A modalidade
não é estritamente racional. Na lógica clássica e na matemáti­
ca ela se elimina, como mostrou Quine.101Em contrapartida, o
possível ou o necessário são a alma da indução, não no senti­
do dos ditos “métodos indutivos” discutidos pelo século
XIX, mas no sentido em que falava David Hume como “o
que nos induz a crer” . A experiência nos induz a imaginar,
ela nos induz a pensar ou a crer que... O possível ou o neces­
sário é o movimento mesmo da indução ou da inferência pela
qual Incluímos uma perspectiva limitada' numa perspectiva
mais ampla.11 Pois o problema da indução é o dos motivos de
credibilidade ou dos graus de confirmação onde reina o mais
ou menos (não se deve confundir esta oposição de graus com
a oposição do falso e do verdadeiro que, esta sim, é uma opo­
sição contraditória e, portanto, estritamente lógica). A moda­
lidade é o risco do espírito quando é induzido a crer em algo
a partir do que observa (o suporte indutivo da crença ou da
hipótese pode tom ar esta mais ou menos plausível, mas ainda
deixa o provável e o falível). O que podemos aprender da ex­
periência? A experiência nos induz a supor que... O pensa­
mento hipotético é apenas a consciência crítica ou refletida da
aprendizagem, isto é, da indução. Com a aprendizagem e suas

10. N. O. Quine, Le m ot et Ia chose (trad. Grochet), Flammarion, Paris,


1977, §30, 35, 44. O melhor artigo de Quine sobre a questão é: “ Three Grades of
modal involvement” , em The Ways o f Paradox, 1979, (2! ed.), pp. 158-176.
Quine mostra que a modalidade não tem uma função dedutiva, mas que tem outra
função: toma a inferência dependente do contexto (ver Theories and Things, Har-
vardU .P., 1981,p. 121).
11. A interpretação de Hume aqui proposta vai ao encontro da de T.L.
Beauchamp e A. Rosenberg em Hume and the theory o f causation, Oxford U.P.,
1981, pp. 145-151.
A INDIVIDUALIDADE HUMANA 297

induções mais ou menos crfveis, a evolução didática ou cultu­


ral do espírito sucede à evolução seletiva das espécies vivas.
No entanto, é um mesmo movimento que se prolonga: o de­
terminismo biológico hieraiquiza níveis de organização; por
sua vez a aprendizagem, animada pela criatividade da lingua­
gem, inclui perspectivas limitadas dentro de perspectivas
mais amplas segundo o modo do que é possível, do que pode­
ría ser ou do que parece necessário em função de nossos co­
nhecimentos adquiridos. A tradição coletiva segue o mesmo
processo de organização hierarquizada por inclusão dos com­
portamentos particulares no quadro geral das regras e das
instituições comuns, fazendo nascer uma nova modalidade, a
do permitido e do interdito. A aprendizagem cultural prolon­
ga o movimento da vida. E, certamente, nenhuma modalidade
se basta em si mesma. Modalidades só se concebem em fun­
ção de enunciados que nos engajam a respeito do que existe,
de forma que o que os toma verdadeiros ou falsos não depen­
de de nós. Nosso saber continua sendo, no melhor dos casos,
hipotético-dedutivo; é uma crença justificada e, portanto,
mais ou menos confiável, ainda que as práticas costumeiras
da pesquisa científica e da vida cotidiana nos induzam forte­
mente a crer que o que não é refutado pela experiência deve
ser verdadeiro.
O processo de organização que reaparece em diversos ní­
veis na natureza e na cultura é o que toma problemáticas as
situações humanas, obrigando cada um a avaliar o possível e
o necessário em função das circunstâncias e das preferências.
Podemos tirar disto uma regra de interpretação na análise das
fantasias individuais e das crenças coletivas. Esta regra pres­
creve a restituição, sob as formações imaginárias e culturais,
da situação problemática da qual elas procedem com base em
certas condições naturais e históricas, gerais e conjunturais.
Com métodos diferentes, etnologia e psicanálise encontram-se
no terreno comum da semiologia, isto é, de tudo o que ins­
creve (ou simboliza) num determinado meio de vida maneiras
de viver. A análise explicita as alternativas, as relações, os
298 ÉDIPO AFRICANO

esquemas organizadores, os elementos de racionalidade práti­


ca, assim como as dissociações irracionais ou as clivagens
emocionais veiculadas pela afabulação. As motivações in­
conscientes podem aparecer então como a conseqüência im­
prevista de uma história ao mesmo tempo pessoal e familiar.
A interpretação psicanalítica, tal como a concebemos, con­
siste principalmente em colocar em relação os elementos de
uma biografia que, em conseqüência de clivagens ou recal­
ques inconscientes, não se confrontavam entre si. Sempre ha­
verá uma diferença entre a explicação pelas leis gerais tal
como se apresentam nas ciências naturais e a explicação das
razões de agir, das maneiras de sentir e de pensar, que é o
objetivo comum das ciências humanas. A explicação por leis
físicas nos dá a sensação de poder progredir indefinidamente
indo do conhecido para o desconhecido. A explicação das ra­
zões 'de agir sempre nos recoloca frente à necessidade de ter
que utilizar nossos conhecimentos gerais no exame de uma
configuração atual, de uma situação que se esclarece retroati-
vamente, indo do tudo para as partes, da mesma maneira que
o sentimento estético avalia o valor relativo dos detalhes nu­
ma obra pictural ou de arquitetura. Uma palavra, um texto,
um comportamento, esclarecem-se de forma diferente se colo­
carmos ao lado deles tal ou qual palavra, tal outro texto, tal
outra conduta. As escolhas das comparações na qual se apóia
a análise podem ser mais ou menos acertadas, e a vida faz às
vezes surgir aproximações inesperadas. À medida que se pas­
sa da física para a biologia e depois para a antropologia, as
leis de composição, que são as mais gerais e as mais funda­
mentais, ficam cada vez mais submetidas a utilizações seleti­
vas no seio de configurações provenientes da história natural
e cultural. A conjuntura histórica e os problemas de mudan­
ças vão adquirindo cada vez mais importância. Podemos
comparar configurações singulares notando o que se trans­
forma de uma para a outra. Mas não há nada de mecânico nas
análises comparativas que subtendem nossas generalizações.
E 6 por isto que sempre haverá algo do trabalho de Penélope
A INDIVIDUALIDADE HUMANA 299

na pesquisa em ciências humanas. A cultura é uma perpétua


aprendizagem.
Para acabar de apresentar nossa hipótese geral, falta reu­
nir os dois aspectos que acabamos de distinguir na formação
da personalidade: o aspecto relacionai ou estrutural e o as­
pecto disposicional ou modal.
Numa pesquisa empírica é a abordagem disposicional que
requer a atenção do psicólogo quando, por exemplo, se per­
gunta sobre as disposições afetivas (desejos, motivações) de
um indivíduo ou sobre suas disposições intelectuais (suas ap­
tidões). Mas os conceitos disposicionais têm suas vantagens e
desvantagens.
Vejamos primeiro as desvantagens. Podemos descrever,
distinguir, classificar formas atuais de comportamentos ou de
palavras, enquanto que as disposições são, em si mesmas,
apenas virtualidades informais e não enumeráveis. Parecería
estranho perguntar, por exemplo: quantas disposições existem
no conhecimento de uma língua? Para cada frase que o indi­
víduo é capaz de formar, contaremos uma capacidade? Para
todo ato uma tendência? O procedimento seria não apenas
pouco econômico mas também seu valor explicativo seria
nulo, como no exemplo de Molière: “ A virtude dormitiva do
ópio” . Na verdade só podemos classificar formas atualmente
determinadas, e quando parecemos estar classificando virtua­
lidades (tais como tendências ou capacidades), estamos ape­
nas classificando problemas relacionados com a gênese psi­
cológica das formas observadas. Ou, para tomar outro exem­
plo, a cultura é tudo o que se aprende, é portanto a aquisição
de um conjunto de virtualidades (capacidades, hábitos, incli­
nações etc.), mas esta concepção dinâmica não. seria riiiiito
útil para a antropologia se não tomasse o cuidado de definir
primeiro a cultura pela sua semiologia, suas manifestações.
Enfim, mesmo se assimilássemos os conceitos disposicionais
a noções estatísticas, restaria o fato de que não há estatística
sem classificação e sem enumeração.
Qual é, portanto, a vantagem dos conceitos disposicio-
300 É D I P O A F R IC A N O

nais? O conceito disposicional relaciona reações patentes com


estados latentes. Serve, pois, para distinguir níveis de organi­
zação, por inclusão de subsistemas num sistema ou de sub­
conjuntos num conjunto. Mas vimos que a hierarquização
sistêmica engendra no ser humano a sensação do possível e
do necessário, assim como outras modalidades tais como a
crença, a dúvida, o desejo, a lamentação, o temor etc. Todas
as modalidades têm a mesma propriedade (ou impropriedade)
lógica: introduzem enunciados não-referenciais, enunciados
com valor expressivo e fiduciário, testemunhos que nos in­
formam sobre a atitude daquele que os pronuncia ou sobre
sua relação com o mundo, mais do que sobre o mundo. As
modalidades, quer sejam intelectuais ou afetivas, testemu­
nham uma subjetividade. Introduzem o problema da subjeti­
vidade. A subjetividade assim concebida comportará diversas
“instâncias” conscientes ou inconscientes, como dizem os
psicanalistas. Em suma, introduzimos o conceito de subjetivi­
dade através de um movimento inverso ao da filosofia kanüa-
na: Kant ia do Cogito às modalidades; nós partimos das mo­
dalidades, isto é, das atestações da subjetividade para nos
perguntarmos sobre as posições pessoais do sujeito que age e
fala (vimos que, com efeito, os pronomes pessoais são valores
de posição, indicações topográficas na troca de palavras). Se
a primeira pessoa, por exemplo, tem um valor de auto-posi-
ção, também é verdade que a afirmação de si pode vir reves­
tida de diversas modalidades, apresentar-se sob diversos re­
gistros, sob diversas tonalidades, que não são separáveis do
que é dito e do que ocorre em circunstâncias particulares.
Com efeito, se toda expressão modal (todo verbo de pen­
samento ou de sentimento) introduz enunciados que não são;
diretamente referenciais (isto é, que não nos instruem direta-
mente sobre o mundo), isto quer dizer que estes enunciado
apresentam-se como unidades indecomponíveis (“testemu­
nhos”); só se tomam analisáveis indiretamente, por uma am­
pliação das perspectivas que os integra a um campo semânti­
co, a um contexto cultural e histórico (ou biográfico). Não
A INDIVIDUALIDADE HUMANA 301
deve, portanto, separar o aspecto dinâmico ou modal da per­
sonalidade e seu aspecto lingüístico ou discursivo que inscre­
ve toda posição pessoal num registro de comunicação e de
relações humanas atuais ou possíveis.
Vemos, então, porque não pudemos aceitar a teoria
“culturalista” da personalidade básica. Como os próprios
autores dizem, ela isola artificialmente uma personalidade
“modal” , puramente disposicional, o que significa falar dos
outros cortando-lhes a palavra. Isto não quer dizer que o teste
de Rorschach não seja utilizável em qualquer parte do mun­
do; é uma questão a ser examinada. Mas o desejo de objetivi­
dade às vezes é enganador; esquece-se que a objetividade
científica é apenas uma virtude negativa: é a possibilidade de
ser refutado pela observação. Só é alcançada, geralmente,
através do controle dos resultados de um método por um ou­
tro. É por isto que tentamos formular nossa hipiótese de uma
maneira que não esteja exclusivamente ligada aos métodos
específicos da psicanálise. Quanto às virtudes positivas da
hipótese, à sua fecundidade, só podemos julgá-lo a longo
prazo.
'5

1
ANEXO I

NOTAS SOBRE AS ETNIAS WOLOF, LÉBOU E SERER

Um grande número de etnias senegalesas está representa­


do entre nossos consultantes. Centramos, no entanto, nosso
trabalho em três delas - Wolof, Lébou e Serer - a fim de
permitir confrontações entre nossas observações e os traba­
lhos sócio-etnográficos. Indicaremos muito brevemente as ra­
zões de nossa escolha e daremos algumas características des­
tas etnias, remetendo aos estudos existentes para uma infor­
mação mais completa.
As etnias wolof, lébou e serer apresentam entre si vários
pontos em comum. Podemos estabelecer origens étnicas co­
muns, mandingue (socé) em particular. Uma mesma língua é
comum aos Wolof e aos Lébou (ela é também a língua de co­
municação no Senegal, compreendida por três quartos dos se-
negaleses). Costumes e instituições diferem muito pouco en­
tre os Lébou e os Serer.
A implantação da etnia lébou está limitada ao Cabo Ver­
de e à Pequena Costa. Os territórios de implantação wolof e
serer são contíguos ao Cabo Verde e se superpõem em gran­
des extensões. Wolof, Lébou e Serer estão, portanto, estrei­
tamente imbricados geograficamente.
304 É D I P O A F R IC A N O

Além dos elementos que têm em comum, as três etnias


suscitam interesse por apresentarem uma espécie de continu-
um quanto à importância da supqfposição das tradições ani-
mistas pelas religiões monoteístas e à importância relativa das
linhagens paterna e materna. Voltaremos a isto.

OS WOLOF

Suas origens étnicas são muito complexas. “Tende-se a


considerar este grupo como um amálgama de diversas raças:
Seier em primeiro lugar, Toucouleur, Peul, Sarakolé... Sua
unidade foi construída pela história.” 1
Vindos de Fouta Toro, os Wolof, no século XIV, estão
constituídos num vasto império que reúne o Dyolof, o Cayor,
o Oualo, o Baol e o Sine-Saloum. Mas a desagregação deste
império foi rápida e, até a conquista colonial, guerras san­
grentas envolveram pequenos reinos independentes.
Em 1544 os portugueses descobrem o Cabo Verde e, em
1634, cria-se o primeiro estabelecimento francês. Ingleses,
holandeses e franceses disputam, em seguida, os primeiros
fortes e os primeiros negócios. Foi Faidherbe quem conquis­
tou e organizou administrativamente o Senegal cuja unidade
se realizou em 1892.
A introdução do islamismo é muito antiga - séculos X,
XI - mas há somente um século que assistimos à sua expan­
são rápida. As seitas desenvolvem-se muito, uma delas (a
seita múrida) nasce no centro da região wolof. As práticas
animistas se diluem, consulta-se os feiticeiros lébou e seier.
Antigamente, o lugar de chefe era herdado por linha ma­
terna, embora a nobreza da linhagem paterna fosse requisita­
da para poder reinar. Atualmente, sob a influência do isla­
mismo, a linhagem paterna prepondera incontestavelmente. A

1. J. Martin, Notes d'introduction à une itude socio-religieuse des popula


tions de D akaretdu Sénégal, Dakar, Fratemité Saint-Dominique, 1964, p. 23.
NOTA SOBRE AS ETNIAS WOLOF, LÉBOU E SERER 305
herança e a sucessão são patrilineares. A residência é virilo-
cal. O pai, ou na sua falta o irmão mais velho, tem autoridade
sobre a descendência paterna. Todavia, um ego doente ou em
dificuldades busca auxilio na linhagem materna. O casamento
preferencial é com a prima cruzada; em segunda posição vem
o casamento com a prima paralela patrilinear. As mulheres
wolof são consideradas independentes. Entre os primos cru­
zados, como entre Wolof e Serer, existe uma relação de pa­
rentesco fácil. As divisões tradicionais de castas subsistem
mas talvez sejam menos rígidas do que no passado.
Os Wolof constituem a etnia dominante no Senegal,
1.200.000 pessoas (37% da população), das quais quase um
terço é semi-urbanizada. Entre eles encontra-se a maior pro­
porção de funcionários e comerciantes. Muitos senegaleses se
dizem Wolof sem sê-lo, para indicar desta forma que são ur­
banizados, aculturados, instruídos.

OS LÉBOU

Os Lébou são geralmente considerados como um ramo do


povo wolof cuja língua falam. Vindos de Fouta Toro, atingi­
ram o Cabo Verde na metade do século XVIII; teriam sido
seus primeiros ocupantes. Conquistaram sua independência
contra o reino do Cayor no fim do século XVIII.
Mais ou menos até 1900 os Lébou opuseram uma forte
resistência ao islamismo. Atualmente, todos se dizem muçul­
manos. No entanto, os velhos cultos animistas subsistem,
mantidos pelas mulheres; segundo P. Mercier e G. Balandier,
aparecem como uma “religião complementar” .2
Embora sob a influência do islamismo a linhagem paterna
adquira rapidamente importância, a linhagem materna conti­
nua preponderante em matéria de costumes. O tio materno, ou
na sua falta o sobrinho materno mais velho, é o chefe da fa-

2. P. Mercier e G. Balandier, Particularisme et évolution. Les pêcheurs lé­


bou du Sénégal, Saint-Louis, Centre IFAN-Sénégal, 1952, p. 132.
306 ÉDIPO AFRICANO
milia extensa; tem autoridade no que diz respeito à educação
das crianças, aos casamentos. É o guardião e o desfrutador
dos bens da linhagem materna. O pai só tem autoridade sobre
a família restrita, e pertencer à linhagem paterna apenas acar­
reta obrigações secundárias. O casamento preferencial é com
a prima cruzada matrilinear. A residência é virilocal. Os Lé-
bou e os Serer são facilmente parentes.
Os Lébou, em torno de 45.000 pessoas, constituem 12%
da população de Dakar e 90% entre eles moram na zona ur­
bana onde ficam agrupados em ilhotas bastante homogêneas.
Tradicionalmente pescadores, são agora também horticulto­
res.
Em rápida transformação, a sociedade lébou mantém, no
entanto, firmemente seus privilégios sobre a terra e suas tra­
dições. As mulheres desempenham nisto um papel social e
econômico importante.

OS SERER

Reprimidos pelo avanço muçulmano, os Serer também


vieram do Rio e alcançaram o Sine no século XII; mestiça-
ram-se com os Socé. Dois séculos depois, foram invadidos
pelos Guelwar (mandingues) que fundam o reino do Sine.
Desde então, os Guelwar constituem a nobreza de sangue,
transmitida pelas mulheres e de onde provém o rei.
Entre os Serer a filiação é matrilinear. O tio materno mais
velho tem a autoridade sobre a linhagem. Gerencia todos os
bens. A herança se dá do tio ao sobrinho uterino. Da linha­
gem paterna dependem o.nome, o status social e certas fun­
ções sociais ou religiosas. O casamento preferencial é com a
prima cruzada matrilinear. As linhagens maternas estão agru­
padas em clãs exogâmicos.
As divisões em castas endogâmicas permanecem rígidas:
no alto os Guelwar, depois uma aristocracia guerreira, os
camponeses, por fim, os artesãos, os “ griots” e os cativos.
NOTA SOBRE AS ETNIAS WOLOF, LÉBOU E SERER 307

Os Serer, 500.000 pessoas, constituem a segunda etnia do


Senegal. Poucos dentre eles são urbanizados. São essencial-
mente agricultores e suas terras, delimitadas pela escolha e
distribuição das árvores que selecionam, são reconhecíveis
por todos. Seu progresso econômico está brecado em função
do regime de terras sem verdadeiro direito de propriedade.
Os Serer são, sem dúvida, o grupo mais cristianizado do
Senegal, embora os cristãos não representem mais do que 5%
entre eles. A religião animista continua mais importante entre
eles do que entre os Wolof e Lébou: além dos cultos coleti­
vos, os cultos domésticos aos espíritos ancestrais (pangol)
ainda são praticados e a bruxaria está desenvolvida. Nota-se
também sua tolerância religiosa; a coexistência dos cultos é
menos problemática do que em outros lugares.

*
* *

Se considerarmos sucessivamente os Serer, os Lébou e


depois os Wolof, constata-se um crescente apagamento dos
cultos animistas e uma crescente preponderância da linhagem
paterna em detrimento da linhagem materna. Este panorama
de conjunto parece bastante claro, embora os contornos não
sejam tão bem delineados como poderíam fazer pensar os
breves dados acima apresentados. Assim, ainda que os velhos
cultos tradicionais tenham sido desertados, as atitudes e cren­
ças a eles ligados continuam vivos e subjazem aos novos
costuínes. Mesmo entre os Wolof, a família materna conserva
um papel importante na vida familiar. Mesmo nas novas ca­
madas sociais onde a família tende a se reduzir ao casal, os
laços com a família ampliada permanecem estreitos e ainda
moldam todo o estilo de vida.
Além disto, se considerarmos a evolução em curso destas
sociedades, constatamos que as diferenças que destacamos
tendem a se nivelar: a preponderância do paterno se afirma ou
se confirma em todo lugar. Assim, entre os Serer a herança
308 ÉDIPO AFRICANO
tende a se tomar patrilinear, as relações do sobrinho com o
tio materno transformam-se a olhos vistos. Por outro lado, as
diferenças constatadas ao passar de uma etnia a outra pare­
cem-nos, em certos aspectos, comparáveis às que são introdu­
zidas, em cada uma das etnias considerada isoladamente, pe­
los progressos da aculturação.
Em suma, embora as etnias wolof, lébou e serer tenham
cada uma seus próprios costumes e seu caráter, o fundo co­
mum que apresentam e o sentido de sua evolução, a nosso
ver, justificam considerá-las como um todo bastante homogê­
neo numa primeira investigação clinica. Evidentemente, pode
ser interessante, em estudos posteriores, constituir amostras
étnicas homogêneas.
NOTA SOBRE AS ETNIAS WOLOF, LÉBOU E SERER 309

FIGURA 1 7 - Mapa do SenegaL


ANEXOU

UM RITO PARA OS SÚCUBOS

Antou (caso 123), toucouleur muçulmano, é hospitalizado


devido a um surto de agitação sobrevindo a um estado de­
pressivo que evolui há muitos anos. Dificuldades conjugais e
profissionais vão aumentando há um ano. No começo de suas
perturbações, Antou as atribuira a marabutagens de seus co­
legas, sendo sua situação social superior à de seus parentes e
amigos. Diferentes marabutos consultados tinham, aliás, lhe
“dado a suspeita” ; depois constatara que seus colegas eram
muito gentis e pensou que não eram responsáveis por seus
males. Fez, então, vários tratamentos marabúticos.
No hospital, o estado de Antou melhorou rapidamente
por meio de um tratamento medicamentoso mas, no entanto,
continua ansioso e entrega-se a um curandeiro, oficiante do
culto dos rab. O diagnóstico do curandeiro é que Antou está
possuído por dois rab: um bom rab de seu avô paterno que o
protege, e uma “mulher rab". Acrescenta que o doente não
terá filhos enquanto não tiver se livrado deste djiné (utiliza
ora o termo rab, ora o termo djiné).
312 ÉDIPO AFRICANO

O curandeiro consultado por Antou nos indicou de boa


vontade o tratamento que convinha fazer para este doente:

É preciso sacrificar um bode branco e cobrir Antou com a pele


sangrenta depois de tê-lo massageado e ter dado a ele medicamentos
do campo.
Êm seguida, são necessárias quatro raízes (não especifica quais).
Pega-se uma raiz que se mede com o dedo mindinho da mão di­
reita e depois com a fronte.
Pega-se uma segunda raiz que se mede com o quinto artelho do
pé direito e depois com a fronte.
Pega-se uma terceira raiz que se mede com o dedo mindinho da
mão direita e depois com a fronte.
Pega-se uma quarta raiz que se mede com o quinto artelho do pé
direito e depois com a fronte.
Cava-se um buraco, de preferência na casa do doente, ou no
campo.
Pegã-se uma das raízes, recita-se uma fórmula e no fim se diz:
“Esta rab que segura Antou, eu a confio a um rab que está na Costa
do Marfim” e se planta a raiz no solo.
Repete-se a mesma coisa com as quatro raizes.
É como se casássemos a moça rab com um outro rab muito lange.
A esta mulher rab que o segura, dou-lhe um marido djiné que está na
Costa do Marfim. Não vale a pena dizer o nome (do marido djiné).
Depois, pega-se as quatro raízes com a pele de bode, as patas,
mistura-se tudo e enterra-se. Antes de enterrar tudo, ter-se-á cavado,
ter-se-á dado a Antou um outro medicamento para fazer abluções e a
água destas abluções cai no buraco.
Antou estará livre desta rab no Senegal ou em outro lugar, mas
assim que puser os pés na Costa do Marfim, ficará louco.
Se se tomasse um djiné próximo, seria necessário renovar os sa­
crifícios: se se escolhe um djiné distante não é necessário.

Temos aqui um ritual que segue um procedimento inter­


mediário entre a integração e a expulsão. O rab é contentado
já que é casado e que se dedica a ele sacrifício e cerimônia,
mas, assim fazendo, a pessoa se livra dele ou, pelo menos, ele
é afastado sabendo que perduram vínculos entre ele e o su­
jeito que ele “ama” . No caso citado, se o sujeito fosse para a
UM RITO PARA OS SÚCUBOS 313

Costa do Marfim, reencontraria imediatamente suas perturba­


ções, isto é, o amor possessivo da “ noiva rab”. Sè o casa­
mento entre rab tivesse sido feito numa localidade vizinha à
que reside o doente, este ficaria obrigado a sacrifícios perió­
dicos. Há um compromisso entre expulsão e integração, por
meio de um deslocamento.
As representações relacionadas com as “noivas rab” pa­
recem ser um suporte da valência sexual da temática dos rab
e também um lugar privilegiado de representações compostas
rab-djiné.
A

J
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