Por Contardo Calligaris (In: VVAA. Clínica do Social. Ensaios.
Pp. 1107-118. São Paulo: Escuta, 1991).
Vou tratar de perversão, e particularmente de perversão
como sendo essencialmente uma patologia social e não sexual. Não vou retomar aqui preliminarmente o fio do trabalho que venho desenvolvendo sobre este tema desde 1984. Importa-me avançar um pouco.
O nosso guia hoje vai ser um personagem extremamente
interessante: o funcionário Albert Speer. Talvez vocês se recordem que Aibert Speer foi o primeiro arquiteto de Hitler e mais tarde ministro dos armamentos do Reich, tendo dirigido nos últimos anos de guerra o esforço bélico e industrial alemão. Foi preso no fim da guerra e condenado a 20 anos de cadeia, que passou em Spandau. Durante todo este tempo escreveu muito, tentando compor uma impossível autobiografia política. A questão que nos interessa é central em todos os seus escritos, desde o primeiro, que é a sua autodefesa no processo de Nuremberg (que aliás é mais uma auto-acusação do que uma autodefesa): é a questão de como e por que o nazismo prosperou e encontrou nele um adepto e cúmplice. A história do Terceiro Reich por Speer é bem conhecida, assim como o diário de Spandau, mas para o nosso assunto gostaria de aconselhar particularmente um texto de entrevistas, cujo título misteriosamente, na tradução francesa, acabou sendo L’immoralité du pouvoir (A imoralidade do poder), mas no original alemão era Technik und macht, quer dizer Técnica e poder.
Desde o processo de Nuremberg, Albcrt Speer, que se
revela uma pessoa fundamentalmente honesta, tem dois cuidados. O primeiro é explicar o que aconteceu; o segundo, é um cuidado ético — e deste ponto de vista honroso. Speer toma a seguinte posição: a responsabilidade do nazismo e da guerra é uma responsabilidade coletiva dos dirigentes do partido nazista dentre os quais ele se inclui, mas não seria de jeito algum responsabilidade coletiva do povo alemão; trata-se de uma posição deliberada relativa à preocupação de Speer com o futuro da Alemanha como povo e nação. Então, ele tenta colocar a responsabilidade do lado dos dirigentes do partido nazista, considerando que, de qualquer forma, até para os crimes de guerra sobre os quais eventualmente ele não soubesse nada, qualquer dirigente nazista seria responsável e ele mesmo seria responsável. Neste sentido falei aliás de uma auto-acusação de Speer ao processo de Nuremberg. Acredito, apesar de tudo (isso pode ser discutido), que uma parte do horror, particularmente o genocídio, foi-lhe revelado no próprio processo pelos documentos produzidos pela acusação. Pelo menos acho que sobre isso ele conseguira uma forma particularmente exitosa de repressão, de modo que podia dizer sem mentir que “não sabia”. Mas certamente estava envolvido nos crimes de guerra, pois, enquanto ministro dos armamentos, por exemplo, o dito Programa TOT — programa maciço de deportação, a partir dos territórios ocupados, de populações civis como trabalhadores para o esforço bélico alemão — tudo isso estava diretamente ligado à sua administração. De qualquer forma, Speer reivindica a própria responsabilidade até para o horror que ele afirma não ter “sabido”.
Mas voltemos ao seu primeiro cuidado. A explicação de
Speer sobre o que aconteceu está no título das entrevistas que citei. O que aconteceu teria sido um efeito do desenvolvimento da técnica moderna: sua resposta é esta. E desde sua autodefesa no processo de Nuremberg, a sua posição poderia ser resumida assim: a guerra era inevitável porque havia os meios técnicos para fazê-la. Um argumento tanto mais interessante, que poderia ser imediatamente retomado pela posição pacifista hoje; pois se concluiria que, na medida em que existem os meios para uma guerra atômica, então ela vai acabar se produzindo. E é certamente bem nesta época que se origina algo que vai ser chamado um pouco mais tarde, particularmente nos anos 60, de tecnocracia. Ninguém esquece, particularmente, que, segundo a confidência de Oppennheimer, na primeira experiência atômica americana, antes de Hiroshima, a equipe científica não dispunha de uma certeza teórica que a reação atômica desencadeada parasse. E que, apesar disso, a experiência foi realizada numa decisão onde talvez contasse mais o fascínio para o funcionamento da técnica do que o imperativo bélico. Aliás a expressão mesma ‘os técnicos’, para designar as pessoas que estavam organizando o genocídio, é uma palavra comum no vocabulário nazista.
A posição de Speer não é sem relação com muitas
posições filosóficas conhecidas, posições contra a técnica, desde os Heideggerianos até Hannah Arendt etc., e já em Jaspers na verdade existem coisas nesta direção, e coisas ótimas. Mas, apesar disso, acho que a proposição, segundo a qual a técnica enquanto tal implicaria o seu exercício (porque é disso de que se trata: se existem os meios técnicos para fazer a guerra, a guerra é inevitável), é problemática, e mais do que isso, inacreditável. Em outras palavras, não acho suficiente pensar que o desenvolvimento técnico enquanto tal seja alienante. Acho, e vou me deter um momento sobre este ponto, que para explicar “o que aconteceu” precisamos introduzir algo a mais na concepção de uma certa forma específica de alienação do sujeito, específica porque vou usar o termo de alienação num sentido que não é nem marxiano, nem marxista, nem propriamente lacaniano.
Tomemos o caso de Speer. Sem tentar esboçar um
quadro psicológico da pessoa de Speer, há pelo menos algumas indicações que são interessantes. Ele era uma pessoa de excelente família (o que evidentemente não protege de nada), mas, mais especificamente, do tipo de família da aristocracia, da média e alta burguesia, alemã, francesa e italiana, que freqüentemente se tornaram antifascistas porque achavam que o nazismo e o fascismo eram negócios de muito mau gosto. Não foram opositores por razões sociais, mas, apesar de saber eventualmente que os interesses servidos pelo fascismo eram os interesses deles, foram antifascistas por razões “estéticas”, mas antifascistas militantes mesmo.
Speer tinha tudo para ser um antifascista estético, mas
não foi: foi arquiteto de Hitler primeiro e finalmente ministro dos armamentos, sabendo o que tudo isso implicava, desde a manipulação cenográfica das massas até as deportações maciças, e os sonhos destrutivos da pesquisa de armamentos. O que pensar sobre isso?
tudo o que ele escreveu depois, que a sua adesão ao nazismo desde relativamente cedo se justificaria por uma preocupação de carreira. Ele não precisava disso. Tampouco dá para pensar que Speer tenha sido um grande sádico, que encontrasse uma forma especifica de gozo na ideia de que estava produzindo instrumentos para matar. Não parece nada disso: ele era um excelente pai de família, um homem culto, sensível, teria sido para nós todos um ótimo amigo.
Minha hipótese é a seguinte: quando ele defende a idéia
de que o que aconteceu foi a conseqüência do desenvolvimento da técnica enquanto tal, está falando num certo sentido a verdade, mas evidentemente não toda a verdade. Talvez possamos juntar algo ao seu enunciado: o que chama triunfo da técnica, da instrumentalidade, só é triunfo na medida em que os homens mesmos funcionem como parte integrante desta técnica, quero dizer, funcionem como instrumentos. Em outras palavras, onde fala de efeito da técnica, do desenvolvimento da técnica, acho que poderíamos falar do efeito do interesse e da paixão humana em sair do sofrimento neurótico banal alienando a própria subjetividade, ou melhor, reduzindo a própria subjetividade a uma instrumentalidade. Esta paixão me parece uma tendência inercial de qualquer neurótico: a paixão da instrumentalidade. Entendo por paixão da instrumentalidade a paixão de “ser instrumento”. Trata-se de explicar um pouco o que seria esta paixão da instrumentalidade e qual o seu interesse para os neuróticos que nós somos.
***
Tomemos duas versões exemplares da infelicidade
neurótica banal, que, como se sabe, por ser banal, não é menos dramática: a incerteza do querer e o fracasso da relação sexual. Muitos pacientes começam uma análise adotando espontaneamente uma parte da famosa “regra de abstinência” freudiana: eles decidem suspender todo ato, toda decisão importante até o fim da sua análise, na esperança de encontrar um saber sobre o que eles autenticamente querem. Se adiantasse — o que não é o caso — poderia ser-lhes dito que essa esperança é completamente vã, pois o desejo é um exercício no qual o sujeito não se introduz pelo caminho de um saber. Mas, enfim, como se explica esta mais do que incômoda incerteza do querer neurótico? Muito sinteticamente, o neurótico se organiza ao redor da tentativa de se proteger desesperadamente de um impossível. Por isso ele precisa fazer da função paterna — que é uma simples referência significante — uma instância que possa, por exemplo, redobrar o impossível com uma interdição. A invenção da consistência de uma tal instância passa pela suposição de um saber paterno que valide e justifique a função do pai. Entende-se então que, se constituindo como sujeito na relação com o pai, o neurótico só possa permanecer na interrogação perplexa de um saber que nunca será sabido, por ser desde sempre uma suposição. Em outras palavras, se o neurótico é sujeito e deseja graças à referência paterna, por isso mesmo ele é condenado a uma ignorância sobre o que quer e à perplexidade sobre o que fazer. Como se constata cada dia, aliás, quando conseguimos algo que pensávamos querer demais e descobrimos que não era bem isso.
Na relação sexual as coisas não são mais simples, salvo
procurar o consolo em uma teoria do amor genital que nos prometeria o harmonioso desenredo do nosso desenvolvimento sexual até o encontro com o semelhante. Salvo este recurso exclusivamente teórico, constatamos que a vida sexual diz respeito a uma singularidade fantasmática que não promete encontro com os nossos semelhantes. O parceiro que encontramos na cama é um puro pretexto, pois cada um copula através de um fantasma que se organiza graças ao mesmo saber do qual falamos antes, ou seja, um saber suposto, ignorado, singular e portanto não compartilhável. Sem entrar aqui em mais explicações, nos interessa notar que se o saber suposto ao pai pudesse por milagre ser propriamente sabido, isso resolveria a nossa incerteza. Mais ainda, se, por ser sabido, pudesse então ser compartilhado, isso pareceria nos abrir a porta de uma relação possível com os nossos semelhantes, pois de repente poderíamos conseguir praticar juntos um mesmo fantasma.
É este milagre que persegue o que chamo de saída
perversa da neurose. Sendo impossível chegar a conhecer o saber paterno suposto, a opção é abdicar a própria singularidade de sujeito, aliená-la, construindo — de preferência coletivamente — um semblante de saber paterno que por isso mesmo seja sabido e compartilhado. Que isso nos garanta a certeza nos atos e a prática possível de uma fantasia comum é o prêmio da operação. O seu custo é a transformação do sujeito em instrumento do saber assim estabelecido.
A prática de um semblante deste tipo representa uma
autêntica saída do sofrimento neurótico. Ela só não pode ser dita propriamente exitosa por ser um semblante. Trata-se de um fracasso, não porque ao semblante de saber e de fantasma assim constituído faltaria não sei qual dignidade epistemológica, mas porque um semblante sempre e necessariamente persegue a difícil tarefa de demonstrar que não é um semblante. Por isso o horizonte extremo desta saída da neurose é sempre mortífero, pois só a morte — eventualmente coletiva — parece poder demonstrar em última instância que o semblante não era brincadeira. Por isso, em outras palavras, o horizonte do universo totalitário é a morte real, a guerra por exemplo.
Para quem escolhe sair da neurose pelo lado da
perversão, o semblante de saber construído pode ser qualquer: o essencial é que seja “sabido” e compartilhável e que de repente nós fiquemos funcionando, sabendo o que temos que fazer, como instrumentos deste saber. Isto é o essencial: o “conteúdo” deste saber não tem a mínima importância, pois ele é um artifício que não pode nem pretende corresponder a qualquer saber suposto singular.
Além disto, este semblante de saber, quando está
funcionando, é necessariamente totalitário, em dois sentidos. Um primeiro, pelo momento: necessariamente ele tem que se estender. Tem que se estender, porque sujeitos que não reconheçam o saber que estamos compartilhando, que então não aceitem funcionar como seus instrumentos, comprometem intoleravelmente o nosso semblante. Por isso ele só pode se estender num horizonte totalizante. O que, por outro lado, não é impossível de se realizar, pois no fundo a prisão ou a morte de quem não estaria topando o semblante proposto reduz facilmente o oponente à posição de instrumento que se queria que ele aceitasse. Vou tomar um exemplo desta necessidade totalizante que é cativante de horror, em um livro muito comovedor que saiu alguns anos atrás, Treblinka, de J. F. Steiner. Os que leram este livro certamente se lembram que os SS construíram em Treblinka, na chegada dos trens, uma falsa estação, que tinha a aparência de uma estação de trem, com tudo, inclusive portas de toalete (homens/mulheres); não tinha nada atrás das portas, mas tinha toda a aparência de uma estação, havia até um relógio, pois não tem estação sem relógio, mas evidentemente era um relógio de madeira, que marcava sempre a mesma hora. Por que construíram esta estação? Poder- se-ia pensar que, efetivamente, isso evitaria uma série de tentativas desesperadas de revolta no último momento, porque as vítimas pensariam estar chegando num lugar que não fosse um campo de extermínio. Mas as razões logísticas — não ter que matar improváveis revoltados cujos corpos teriam que ser depois transportados — não parecem justificar o esforço de construção de tamanho cenário. Talvez seja mais adequado pensar que se tratasse de fazer com que tudo funcionasse, que, indo à própria morte, as vítimas já pudessem estar tomadas pela lógica instrumental que triunfaria no suplício final.
Voltemos à questão da paixão pela instrumentalidade.
Por que “paixão”? Uma saída da. neurose na vertente que chamo de perversão não tem preço para o neurótico, é, em suma, uma tentação irresistível.
Que, para funcionar numa montagem deste tipo, um
sujeito se transforme em instrumento de um saber que o manda eventualmente matar milhares de pessoas, jogar crianças contra uma parede, queimar uma casa cheia de gente, este é um preço que talvez a maioria dos neuróticos esteja disposta a pagar para encontrar o alívio que a montagem promete. Mais exatamente, o preço, ou seja, as eventuais exigências do saber do qual nós faríamos os instrumentos, é aqui indiferente com respeito ao benefício esperado.
Rudolf Hoess, comandante do campo de Auschwitz,
escreveu as suas memórias para se justificar e eventualmente — imagino — se defender durante o processo de Nuremberg. É um texto interessante pela razão seguinte: ele tinha uma idéia precisa das acusações levantadas contra ele no processo, e, apesar disso, ele aparentemente não responde às acusações. A questão colocada aos criminosos de guerra era a mesma que nós ainda seríamos tentados a colocar, algo como: “Mas como você podia gozar matando assim, como este gozo foi possível?” Nós continuamos interrogando estes eventos na linha do que tradicionalmente se chamaria uma perversão, como se a constituição singular dos sujeitos determinasse o fato de que eles acabem sendo criminosos de guerra. Neste caminho, acho que não encontraremos resposta, e, de fato, a resposta aparentemente inapropriada de Hoess se resume numa frase: “Eu era um funcionário exemplar”. Mas vejam bem: isso não é uma desculpa fácil, não é uma tentativa de descarregar a sua responsabilidade, ele está respondendo mesmo à pergunta. Ele está dizendo: “A pergunta de vocês está mal formulada, pois o meu gozo não era matar pessoas, o meu gozo era ser um funcionário exemplar, e, eventualmente, para ser um funcionário exemplar, eu estava disposto a matar pessoas”.
Isso tem algumas conseqüências interessantes numa
atualidade recente mais latino-americana. Todo mundo conhece a questão do princípio de obediência devida debatida na Argentina. Acredito que tenha que ser reconhecido o princípio da obediência devida, pois creio que o gozo das pessoas envolvidas estava no funcionamento, ou seja, na obediência, e não na matança. Mas de repente também acho que a obediência devida não é uma desculpa, pelo contrário, é, ou deveria ser, um agravante. Porque é bem aí que está o inaceitável: que, para conseguir uma saída do sofrimento neurótico banal através de um semblante perverso, o neurótico possa considerar que qualquer preço é bom. Em outras palavras, que, para conseguir o alívio que oferece a obediência do funcionário exemplar, ele esteja disposto a servir qualquer ordem.
Aqui um parêntese voltando à primeira preocupação de
Albert Speer. Na linha em que estamos andando, a questão da responsabilidade está colocada bem diferente de como ele queria, pois a responsabilidade não pode ser considerada como sendo só dos dirigentes, mas sim de todos que gozaram do e no funcionamento da Alemanha nazista.
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Apesar de ter escolhido um exemplo no fundo do horror,
considero que a paixão pela instrumentalidade é o ordinário da vida social, a sua inércia natural.
A paixão pela instrumentalidade, esta tentativa e tentação
de saída da neurose, funciona no nosso cotidiano micro e macroassociativo: de fato parece que só conseguimos encontrar um semelhante à condição de sair da neurose pelo lado da referência comum a um saber “sabido”, compartilhado, do qual possamos ser todos os instrumentos. Isso é patente na vida sexual cada vez que se tem uma relação sexual que aparentemente seja exitosa, mas é também patente na vida social. Com isso não estou fazendo uma crítica absurda de qualquer laço associativo.
O problema reside na inércia totalitária do laço
associativo. Falei antes que o termo “totalitário” devia ser entendido em dois sentidos. Na vertente da extensão do laço: quem não se associasse, poderia ser reduzido a instrumento, por exemplo na morte. Mas o laço é inercialmente totalitário também de um outro jeito, no sentido pelo qual a sua tendência natural está na direção de unia alienação total do sujeito à sua Posição instrumental. A inércia normal do laço social é duplamente totalitária: que todos os sujeitos acabam sendo nada mais do que instrumentos do funcionamento do laço.
Isso é algo historicamente evidente: o princípio básico de
um regime totalitário é efetivamente uma gestão total da vida cotidiana; qualquer tipo de fascismo tem esta ambição, começa com a associação dos nenês, segue com a associação das crianças, associação dos adolescentes, associação dos adultos, associação dos aposentados, associações dos mortos. A esfera da vida privada desaparece progressivamente. Neste sentido, trata- se de reduzir cada vez mais o campo neurótico da subjetividade para chegar a uma alienação completa na qual o sujeito se sustente só na sua função de instrumento.
Entende-se então que, do meu ponto de vista, o ideal
político nunca é mais do que a procura de um equilíbrio instável entre uma alienação necessária para a vida social e a resistência à sua inércia totalitária.
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Expressei a idéia que a estrutura neurótica possa ser descrita
pela referência fundante a um saber paterno sempre suposto e então pelo fracasso relacional e a incerteza do querer. Mas existe uma diferença, sobre a qual vale a pena pensar um pouco, entre o “querer ser” e o “querer ter”. Consideramos habitualmente que o “querer ser” esteja mais do lado da mulher, e o “querer ter” mais do lado do homem. A partir desta diferença e com o auxílio das observações que seguem, poderíamos entender, por exemplo, porque a paixão da vida associativa está mais com os homens do que com as mulheres — o que é um ponto a favor das mulheres. Mas não é sobre este aspecto que eu queria me deter.
Há uma mudança histórica tanto mais relevante pois
parece produzir conseqüências clínicas. Marx abre o primeiro capítulo do Capital com a definição do capitalismo como uma acumulação de mercadorias. Aliás, o mesmo primeiro capítulo introduz justamente a questão da teoria do valor. Com efeito o capitalismo institui a passagem de uma sociedade, digamos assim, com valores do lado do ser para uma sociedade onde o valor está do lado do ter.
Que na nossa modernidade a designação do que preenche
a função de ideal, do que estamos perseguindo enquanto neuróticos, esteja mais do lado do ter do que do lado do ser, é uma constatação sociológica completamente banal. O que responderia um habitante do século XVIII à questão: o que é ser um homem? Certamente algo muito diferente do que responderia um homem do nosso século. E a diferença se situaria entre o ser e o ter. Isso tem uma implicação que nos importa, pois do lado do ser, salvo nos alienando para nos tornarmos instrumentos de um saber artificial, nunca vamos encontrar urna certeza. O que é ser um homem? Imaginemos respostas do lado do ser: bravura, coragem, honestidade etc., nos movemos num campo de constituições e questionamentos constantes de ideais onde uma conformidade certa nunca será possível. Mas do lado do ter pode haver respostas certas, pode haver um saber sabido e compartilhado: ser um homem por exemplo consistiria em ter, possuir um catálogo de mercadorias, que não seria impossível redigir exaustivamente.
A passagem do ser para o ter é um fenômeno decisivo da
nossa modernidade pela sua implicação: quanto mais o que estamos perseguindo (o nosso ideal fálico) se situa do lado do ter, tanto mais o saber paterno vai poder se apresentar (semblante) como saber sabido e compartilhado. Talvez 1á estejamos numa transformação do sintoma social dominante — que para Freud é um sintoma social neurótico — num sintoma social perverso. Quero dizer, com perverso, um sintoma no qual o saber paterno não é mais um saber suposto, mas é culturalmente um saber sabido e compartilhado.
Pense, por exemplo, na questão, específica não só do
nosso tempo, mas das sociedades capitalistas ditas avançadas, da adesão à droga como tipo de relação a um objeto que possa ser sabido como o único bem. O que há de interessante neste tipo de fenômeno é que por um lado ele aparece como marginalidade, fundada na recusa de uma sociedade na qual os ideais fálicos estariam do lado do ter e portanto sabidos. Por outro lado, no entanto, na recusa mesma, a prática adotada vai ser justamente a procura de um objeto que possa ser designado, sabido.
Deixo como hipótese final a idéia de que talvez o
horizonte da nossa vida social já seja um horizonte totalitário no sentido que sustentei, totalitário sem a aparência ditatorial do que chamamos historicamente de fenômenos totalitários. Um horizonte que introduz a promessa de um gozo satisfatório no semblante ao prometer o acesso a um saber comum sobre o que queremos, promessa tanto mais fácil na medida em que o que queremos esteja do lado do ter. Se for assim, o nosso fato político estaria entre, por um lado, a inércia do fenômeno totalitário, ou seja, a transformação progressiva do sintoma neurótico num sintoma social perverso e, por outro lado, uma marginalidade que leva ela mesma a marca justamente do que ela está recusando.
É interessante constatar que, se tivéssemos que tomar
aqui uma posição, pareceríamos dever tomar a defesa ideológica da neurose contra a perversão. O problema é que talvez seja ainda mais difícil e fatalmente irrisório tomar a defesa da psicanálise como alternativa à neurose, e mais propriamente como alternativa à saída da neurose do lado da perversão.