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3. Observação participante com questionários fechados e antecipadamente padronizados. A


observação participante ajuda, portanto, a vincular os fatos a suas
representações e a desvendar as contradições entre as normas e re-
A observação participantepode ser considerada parte essen-
cial do trabalho de campo na pesquisa qualitativa. Sua importân- gras e as práticas vividas cotidianamente pelo grupo ou instituição
cia é de tal ordem que alguns estudiosos a consideram não apenas observados.
uma estratégia no conjunto da investigação das técnicas de pes- O principal instrumento de trabalho de observação é o chama-
quisa, mas como um método que, em si mesmo, permite a compre- do diário de campo, que nada mais é que um caderninho, uma ca-
ensão da realidade. derneta, ou um arquivo eletrônico no qual escrevemos todas as in-
formações que não fazem parte do material formal de entrevis-
Definimos observação participante como um processo pelo
qual um pesquisador se coloca como observador de uma situação tas em suas várias modalidades. Respondendo a uma pergunta fre-
social, com a finalidade de realizar uma investigação científica. O qüente, as informações escritas no diário de campo devem ser uti-
observador, no caso, fica em relação direta com seus interlocuto- lizadas pelo pesquisador quando vai fazer análise qualitativa.
res no espaço social da pesquisa, na medida do possível, partici- O texto considerado pelos antropólogos como um clássico so-
pando da vida social deles, no seu cenário cultural, mas com a fi- bre trabalho de campo foi escrito em 1922, por Malinowski, a pro-
nalidade de colher dados e compreender o contexto da pesquisa. pósito de sua inserção entre os nativos das Ilhas Trobriand, deno-
Por isso, o observador faz parte do contexto sob sua observação minado Os argonautas do Pacifico Ocidental (MALINOWSKI,
e, sem dúvida, modifica esse contexto, pois interfere nele, assim 1984). A rica experiência transmitida e as bases metodológicas
como é modificado pessoalmente. por ele lançadas continuam atuais e sua legitimidade permanece
A filosofia que fundamenta a observação participante é a ne- intocável até hoje. Malinowski (1984), a partir de sua experiência,
cessidade que todo pesquisador social tem de relativizar o espaço ressalta os passos da inserção na realidade empírica: (a) necessida-
social de onde provém, aprendendo a se colocar no lugar do outro. de de ter bagagem científica; (b) importância da observação parti-
Como já dissemos anteriormente, no trabalho qualitativo, a proxi- cipante; (c) utilização de técnicas de coleta, ordenação e apresen-
midade com os interlocutores, longe de ser um inconveniente, é tação do que denomina evidências.
uma virtude e uma necessidade. Principalmente, Malinowski (1984) valoriza o processo de ob-
Mas a atividade de observação tem também um sentido práti- servação direta, distinguindo-o dos outros momentos do trabalho
co. Ela permite ao pesquisador ficar mais livre de prejulgamentos, de campo, como os de depoimento dos entrevistados e os de inter-
uma vez que não o torna, necessariamente, prisioneiro de um ins- pretações e inferências do pesquisador. Ele diz: "Toda a estrutura
trumento rígido de coleta de dados ou de hipóteses testadas antes, de uma sociedade encontra-se incorporada no mais evasivo de
e não durante o processo de pesquisa. Na medida em que convi- todos os materiais: o ser humano "(MALINOWSKI, 1984, p.40).
ve com o grupo, o observador pode retirar de seu roteiro questões Malinowski faz uma crítica radical às modalidades de pesquisa
que percebe serem irrelevantes do ponto de vista dos interlocuto- social que explicam a realidade social apenas "apreendendo" um
res; consegue também compreender aspectos que vão aflorando nível dessa realidade por meio de surveys. Comenta que esse tipo
aos poucos, situação impossível para um pesquisador que trabalha de ciência de lógica quantitativa percebe apenas o esqueleto da so-

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ciedade, mas não compreende a vida que pulsa, porque no caso


dos surveys o cientista está longe do lugar onde a vida acontece. Quanto mais problemas o pesquisador trouxer para
Esse mesmo autor comenta que há uma série de fenômenos de o campo, quanto mais estiver habituado a conformar
grande importância que não podem ser registrados por meio de suas teorias aos fatos e a considerar os fatos na sua
perguntas ou em documentos quantitativos, mas devem ser obser- importância para a teoria, tanto melhor capacitado
vados in loco, na situação concreta em que acontecem. Entre eles estará para o trabalho. As idéias preconcebidas são
se incluem coisas como a rotina de um dia de trabalho, os deta- perniciosas em qualquer tarefa científica, mas os pro-
lhes do cuidado com o corpo, a maneira de comer e de preparar as blemas antevistos constituem a principal qualidade
refeições; o tom das conversas e da vida social ao redor das casas de um pensador científico, e esses problemas são re-
(ou em outros espaços que são objeto da pesquisa), a existência de velados, pela primeira vez ao observador, por seus es-
hostilidades, de simpatias e antipatias entre as pessoas; a maneira tudos teóricos (MALINOWSKI, 1984, p.45).
sutil, mas inquestionável em que as vaidades e ambições pessoais
se refletem nas reações emocionais dos indivíduos. Outro autor muito importante e que nos ajuda a pensar e teo-
rizar o trabalho de campo é Alfred Schutz (1973), um importan-
Malinowski sugere um tipo de comportamento para o pesqui- te sociólogo americano que nos propõe algumas atitudes: (a) co-
sador que vai a campo, por meio do qual define a essência da an- locar-nos no mundo dos entrevistados, buscando entender os prin-
tropologia: "Ter uma atitude que consiste em desenvolver uma vi-
cípios gerais que eles seguem, na sua vida cotidiana, para orga-
são estereoscópica das atividades e idéias humanas através de
nizar suas experiências. Desvendar essa lógica, diz ele, é condição
conceitos inteligíveis a todos" (1984, p.56). Ou seja, cabe ao pes-
preliminar da pesquisa; (b) mantermos uma perspectiva dinâmica,
quisador ser um perscrutador insistente, que mentalmente se posi-
que nos faça levar em conta as relevâncias dos nossos interlocuto-
ciona sempre entre as balizas dos conhecimentos teóricos e as in-
formações de seus observados. Esse balanço entre uma postura e res, tendo em mente as questões trazidas por eles sobre o assunto
outra é referida por Malinowski nas duas citações a seguir: que estamos investigando; (c) abandonarmos, na convivência, qual-
quer postura pedante de cientista, entrando na cena social dos en-
O bom treinamento teórico e a familiaridade com os trevistados como uma pessoa comum que partilha do seu cotidia-
mais recentes resultados científicos não são equiva- no; (d) adotamos, no campo, uma linguagem do senso comum pró-
lentes a estar carregado de idéias preconcebidas. Se pria dos interlocutores que observamos.
um indivíduo inicia uma pesquisa com a determina- A simplicidade por parte do pesquisador é fundamental para o
ção de provar certas hipóteses, se não é capaz de mu- êxito de sua observação, pois ele é menos olhado pela base lógica
dar constantemente seus pontos de vista e de rejei- dos seus estudos e mais pela sua personalidade e seu comporta-
tá-los sem relutância, sob a pressão da evidência, é des- mento. As pessoas que o introduzem no campo e seus interlocuto-
necessário dizer que seu trabalho será inútil (MALI- res querem saber se ele é "uma boa pessoa" e se não vai "fazer mal
NOWSKI, 1984, p.45). ao grupo", não vai trair "seus segredos" e suas estratégias de resol-
ver os problemas da vida.

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Há infindáveis situações de pesquisa (na verdade, cada uma é 4. Consolidação do trabalho de campo
diferente da outra), mas como norma geral e em todas elas a figura
do pesquisador é construída com a sua colaboração apenas parcial, É bom que nos lembremos, mais uma vez, que no campo, as-
pois a imagem que projeta reverbera no grupo a partir das referên- sim como durante todas as etapas da pesquisa, tudo merece ser en-
cias que este possui, dentro de seus padrões culturais específicos. tendido como fenômeno social e historicamente condicionado: o
Da mesma forma, a visão que o investigador constrói sobre o gru- objeto investigado, as pessoas concretas implicadas na atividade,
po que é objeto de seu estudo e com o qual interage depende das o pesquisador e seu sistema de representações teórico-ideológi-
pessoas com quem travar relações. Concluímos, pois, que a visão cas, as técnicas de pesquisa e todo o conjunto de relações interpes-
das duas partes será sempre incompleta e sempre imprecisa. soais e de comunicação simbólica.
Essa construção mútua do pesquisador e dos pesquisados atra- Uma pesquisa não pode se restringir à utilização de instru-
vés da interação é analisada por vários estudiosos que ressaltam mentos apurados de coleta de informações. Para além das infor-
sempre a necessidade de levá-la em conta como um dado de rea- mações acumuladas, o processo de trabalho de campo nos leva,
lidade. freqüentemente, à reformulação de hipóteses ou, mesmo, do cami-
nho da pesquisa. Enquanto construímos dados colhidos e os arti-
Se a entrada em campo tem a ver com os problemas de identi- culamos a nossos pressupostos exercitamos nossa capacidade de
ficação, obtenção e sustentação de contatos, a saída é também um análise que nos acompanha em todas as fases.
momento crucial. As relações interpessoais que desenvolvemos
durante uma pesquisa não se desfazem automaticamente com a Outro ponto importante de ressaltar ao fmal é o que se refere
conclusão das atividades previstas. Há um "contato" informal de à interação entre nós, pesquisadores e nossos interlocutores. No
processo investigativo, mesmo partindo de posições sociais dife-
favores e de lealdade que não dá para ser rompido bruscamente
rentes e assimétricas, ambos buscamos a compreensão mútua que
sob pena de haver uma forte decepção dos interlocutores. Como nos permita transcender ao senso comum. No entanto, o pesquisa-
investigadores, trabalhamos com pessoas, logo, com relações e dor nunca deve buscar ser reconhecido como um igual. O próprio
com afeto. Não há receitas para esse momento, mas podemos for- entrevistado espera dele uma diferenciação, uma delimitação do
mular algumas questões que nos ajudam a estarmos atentos, aler- próprio espaço, embora sem pedantismos, segredos e mistérios. A
tas e eticamente comprometidos: em que pé ficam as relações pos- sua função social lhe pede uma colaboração específica que não é e
teriores ao trabalho de campo? Qual o compromisso do pesquisa- não pode ser a mera repetição do que observou e do que ouviu nas
dor com o grupo, no que concerne aos dados primários recolhidos, entrevistas. O pesquisador em qualquer hipótese temo ônus da com-
seu uso científico e as formas de retorno? preensão contextualizada e da interpretação.
Em resumo, a saída do campo envolve problemas éticos e de Em resumo, o trabalho de campo é em si um momento relacio-
prática teórica. A relação intersubjetiva que criamos pode contri- nal, específico e prático: ele vai e volta tendo como referência o
buir para definição do tipo e do momento do corte necessário nas mundo da vida, tendo em vista que a maioria das perguntas feitas
relações mais intensas e um plano de continuidade possível ou em pesquisa social surge desse universo: da política, da economia,
desejada. das relações, do funcionamento das instituições, de determinados
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problemas atinentes a segmentos sociais, da cultura geral ou local, guisa social e também responde a algumas questões correntes entre os
e outros. No entanto, as perguntas que fazemos sempre nos reme- pesquisadores: o status científico da palavra e da observação da realida-
tem a algo desconhecido, ao que permanece oculto para nós, ao de, o sentido de uma entrevista enquanto representação da realidade dos
que nos é estranho na linguagem, na cultura, nas relações ou nas grupos, as controvérsias sobre os vários procedimentos e técnicas qua-
estruturas. litativas e a articulação de várias estratégias. Por ser proveniente de uma
vasta experiência, este estudo contribui muito para a formação de pesqui-
O trabalho de campo é, portanto, uma porta de entrada para sadores sociais.
o novo, sem, contudo, apresentar-nos essa novidade claramente.
São as perguntas que fazemos para a realidade,a partir da teoria BERREMAN, G. Por detrás de muitas máscaras. In: Zaluar, A. (org.).
que apresentamos e dos conceitos transformados em tópicos de Este texto faz parte de um livro importante organizado pela antropóloga
pesquisa que nos fornecerão a grade ou a perspectiva de observa- Alba Zaluar, a propósito do método de pesquisa antropológica, denomi-
ção e de compreensão. Por tudo isso, o trabalho de campo, além de nado Desvendando máscaras sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
ser uma etapa importantíssima da pesquisa, é o contraponto dialé- 1975, p.77-96.O autor descreve com simplicidade e complexidade a prá-
tica que teve de trabalho de campo numa pesquisa realizada na Índia. Re-
tico da teoria social. corre às idéias do teatro, palco e bastidores para falar das relações entre
pesquisadores e interlocutores, mostrando como, na prática, não há obje-
tividade e, sim, subjetividades em relação. Mas o autor se serve desse ar-
Referências gumento para falar da urgente necessidade do pesquisador não só prepa-
rar muito bem seu estudo como de explicitar as condições de produção de
MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: seu trabalho.
Abril, 1984.
DESLANDES, S.F. Trabalho de campo: construção de dados qualitativos
MINAYO, M.C.S. Trabalho de campo: teoria, estratégias e técnicas. In: e quantitativos. Este texto faz parte do livro Avaliação por triangulação
O desafio do conhecimento. São Paulo: Hucitec, 2006. de métodos: abordagem de programas sociais, organizado por Minayo,
SCHRIMSHAW, S. & HURTADO, E. Anthropological approaches M.C.S.; Assis, S.G.; Souza, E.R. e publicado no Rio de Janeiro: Fiocruz
for programmes improvement. Los Angeles: Ucla, 1987. em 2005, p.157-184. A autora do referido capítulo desenvolve minuciosa-
mente a idéia de campo, o sentido e a prática dos procedimentos, as rela-
SHUTZ, A. Common-sense and scientific interpretations of human ções sociais entre os observados e o observador, as implicações da presen-
action. Haia: Martinus Nijhoff Editions, 1973. ça do pesquisador e, sobretudo, seu texto inova em dois sentidos; quando
articula a pesquisa qualitativa e a quantitativa e quando descreve em deta-
lhes o que foi observado num trabalho de campo específico. O capítulo so-
Referências comentadas bre o assunto se insere no contexto de um livro que subsidia o pesquisador
nas estratégias de combinação ou "triangulação" de métodos.
MINAYO, M.C.S. Trabalho de campo: teoria, estratégias e técnicas.
Este estudo faz parte do livro O desafio do conhecimento. São Paulo:
Hucitec, 2006, Ted. ampliada e aprimorada, p.201-261. A autora desen-
volve detalhadamente a teoria e a prática do trabalho de campo em pes-

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