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VII ENCONTRO DE ADMINISTRAÇÃO POLÍTICA – OUTRO MODO DE

INTERPRETAR O BRASIL
JUIZ DE FORA – MG • 29, 30 E 31 DE AGOSTO DE 2016

ANAIS

Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia – UFBA


Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da Universidade Federal de
Juiz de Fora – UFJF
Realização:
Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia – UFBA
Trabalho Marximo • Grupo de Pesquisa – TRAMA

Apoio:
Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia – UFBA
Capes
Ministério da Educação
Governo Federal
FAPEMIG
Programa de Pósgraduação em Administração
Pró-Reitoria de Extensão – UFJF
Faculdade de Administração e Ciências Contábeis
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito – Mestrado em Direito e Inovação

Coordenação Geral:
Reginaldo Souza Santos

Comissão Organizadora:
Elcemir Paço Cunha
Arthur Bastos Rodrigues
Brunna Regina de Souza Mattos
Carolina Silva Bizotto
Fabiana de Melo Secco
Gabriela Rigueira Cavalcante
Henrique Almeida de Queiroz
Isabela Grossi Amaral
Júlia Gava Heitor
Leandro Theodoro Guedes
Lucas Almeida Silva
Marina Rodrigues Corrêa dos Reis
Raphaela Reis Conceição Castro Silva
Renata de Almeida Bicalho Pinto
René Campos Teixeira Monteiro Junior
Rossi Henrique Soares Chaves
Victor da Silva Castro
Vinícios Soares Solano

1
Sumário
Apresentação .................................................................................................... 4
Administração Política das Políticas Públicas ................................................... 5
Política de Assistência Social: uma análise da administração política ........................................ 6
Administração Política da Saúde: uma análise comparativa dos indicadores de gestão da
saúde de quatro munícipios do interior do Nordeste .................................................................. 13
Incorporação de discursos no processo de planejamento da cidade: um olhar sobre a
elaboração do Plano Diretor Participativo do Município de Santana-Amapá-Brasil ............. 27
Quando a Estrutura Engole o Fluxo, Quando as Múltiplas Lógicas de Avaliação entram em
Choque, eis o Resultado: a Burocracia Mata .............................................................................. 44
A Transversalidade e os Planos Plurianuais: A História Contada por Três Ciclos de
Elaboração e Gestão do Plano Federal......................................................................................... 55
Qual Universidade para Qual Sociedade? ................................................................................... 70
Contribuição do PSH e do PMCMV para a Formação de Identidade: um estudo de caso no
Condomínio Popular Parque Morada Real, em Belo Campo-Ba .............................................. 84
Uma Análise do Acesso à Informação da Segurança Desenvolvida nas Instituições Federais
de Ensino Superior da Região Sudeste do Brasil ........................................................................ 99
Planejamento e Gestão Orçamentária Participativa: A Experiência da Universidade Federal
do Vale do São Francisco............................................................................................................. 114
Discutindo Planejamento em Políticas Públicas à Luz da Teoria da Administração Política: A
Experiências das Licitações Sustentáveis na UNIVASF ........................................................... 130
Política de Assistência Social no Brasil: notas sobre o desenvolvimento recente ................... 146
Administração Política Brasileira e Internacional ......................................... 162
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social: uma leitura da entidade
administrativa a partir da obra de Nicos Poulantzas ............................................................... 163
Mecanismos Institucionais de Participação Social e Barreiras Estruturais: o caso do Equador
........................................................................................................................................................ 174
O Poder Político-Burocrático na Gestão Pública Brasileira: uma Crítica de seus Marcos
Reformistas à Luz de Adorno ..................................................................................................... 191
Cartografia Do Internacional Que Circunda Arapiraca: Por Um Fazer A Administração
Política Do Internacional Em Uma Periferia Do Agreste Alagoano ....................................... 208
Evolução da administração pública no Brasil: de Getúlio Vargas a Fernando Henrique
Cardoso ......................................................................................................................................... 221
Democracia burguesa e as bases materiais para a construção da democracia proletária e do
socialismo ...................................................................................................................................... 237
Southern African Customs Union: Breve Histórico e Fatores Geopolíticos Ligados a
Agroindústria ............................................................................................................................... 247
Ensino, Pesquisa e Epistemologia da Administração Política ........................ 261
A Formação Ideológica do Gestor Público no Brasil: uma Crítica da Semiformação
Gerencialista à Luz da Dialética Negativa ................................................................................. 262
Centralidade da Gestão e os Limites da Razão Política: As Contradições Sociais como Objeto
Real da Gestão do Estado ............................................................................................................ 278
A formação de administradores nas linhas de montagem de ilusões: crítica da miséria
2
intelectual nos cursos de Administração no Brasil.................................................................... 293
Pensando Políticas Públicas: contribuições para uma reflexão crítica ................................... 309
Capitalismo e Democracia: Apropriações e Armadilhas Conceituais ..................................... 326
Participacionismo e Miséria Brasileira: A Participação nas Condições de Possibilidade do
Capitalismo no Brasil................................................................................................................... 339
A reatualização da Via Colonial: a superexploração da força de trabalho no Brasil como uma
das soluções à crise do capital internacional.............................................................................. 355
Administração Política, Distribuição e Desenvolvimento ............................. 368
Geopolítica Tributária: a apropriação histórico-social do espaço e o imposto sobre o valor
adicionado ..................................................................................................................................... 369
A importância da metrologia legal para o desenvolvimento econômico: minimizando
assimetrias de informação ........................................................................................................... 392
A Importância da Agricultura Familiar Local na Construção da Feira Livre Municipal: O
Caso de Arapiraca, Alagoas ........................................................................................................ 407
O contexto municipal da política de emprego: a particularidade de Juiz de Fora ................ 418
Uma análise temporal no processo de previsão e arrecadação das receitas correntes e
Royalties de petróleo na cidade de Macaé no período de 2006 - 2015. .................................... 428
Compensação financeira pela utilização de recursos hídricos: uma análise do Nordeste
brasileiro em 2013 ........................................................................................................................ 443
Gestão fiscal e desenvolvimento municipal na microrregião de Aracaju/SE-2006 a 2013 .... 454
Administração Política e Questões Sociais ..................................................... 471
Ser Professor: O Labor E O Alarme Da Profissão - Um Estudo Sobre A Saúde Do Educador
Nas Escolas Estaduais Da Cidade De Poções – Bahia ............................................................... 472
A Construção Ideológica do Conceito de Pobreza nos Relatórios Do Banco Mundial .......... 485
Gestão societal: o papel das cooperativas de materiais recicláveis na inclusão social e na
obtenção de renda das mulheres do Sudoeste da Bahia ........................................................... 499
Os Movimentos Sociais Enquanto Atores Visíveis: O Estabelecimento de Agendas Para o
Transporte Público no Brasil. ..................................................................................................... 514
Direito e Administração Política no Capitalismo Brasileiro na Obra “Evolução Política do
Brasil - colônia e Império” de Caio Prado Jr. ........................................................................... 529

3
Apresentação

O VII Encontro de Administração Política (VII EAP), realizado na cidade de Juiz


de Fora-MG, no final de agosto de 2016, congregou principalmente pesquisadores
e estudantes de todas as regiões do Brasil.

O tema central da edição – Outro modo de interpretar o Brasil – procurou


sensibilizar os participantes para as problemáticas contemporâneas que
envolvem a gestão do estado. O cenário econômico-político global e nacional não
poderia ser mais emblemático e propício para essa discussão que fomenta a
reflexão para novas alternativas no que tange à política econômica e as atividades
gestionárias das políticas públicas e sociais.

Os eixos que tradicionalmente compõem as edições do EAP (Administração


Política Brasileira e Internacional; Administração Política, Distribuição e
Desenvolvimento; Administração Política das Políticas Públicas; Ensino,
Pesquisa e Epistemologia da Administração Política; Administração Política e
Questões Sociais) repercutiram em suas particularidades os problemas
envolvidos na administração política das relações sociais de produção na
objetivação do capitalismo no Brasil. Os textos refletem de diferentes modos tais
aspectos, além de expressar as grandes tendências intelectuais que o EAP
comporta. Tais tendências se materializam nas diferentes óticas de tratamento de
ordem teórica e metodológica da realidade social.

Convidamos os leitores a dividir conosco a gratificação de divulgar e circular os


Anais do VII EAP na expectativa de gerar debates e provocar articulações que
animem também as próximas edições do evento.

Elcemir Paço Cunha


Coordenador Geral do VII Encontro de Administração Política

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Administração Política das Políticas Públicas

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Política de Assistência Social: uma análise da administração política

Marina Rodrigues Corrêa dos Reis


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Resumo: A Política de Assistência Social é concebida no presente trabalho enquanto uma


conquista da classe trabalhadora assim como um instrumento que é funcional à ordem social
vigente, a tese fundamental deste estudo é de que a política de assistência reflete a
necessidade da classe trabalhadora segundo os interesses das classes dominantes. Nesta
perspectiva, se coloca como questão central deste estudo: discutir em que se constitui uma
Política de Assistência Social sob a lógica do trabalho. Parte-se da premissa de que a Política
de Assistência Social somente tem potencial de tensionador das contradições se perspectivada
pela lógica do trabalho. Caso vincule-se a outra lógica, de reprodução do modo de produção
capitalista, coloca-se como urgente, a necessidade de avançar em uma nova proposta de
política.

Abstract: Social Assistance Policy is designed in this work while a working-class


achievement as an instrument that is functional to the social order, the fundamental thesis of
this study is that the assistance policy reflects the need of the working class according to
interests of the ruling classes. In this perspective, it arises as the central question of this study:
discuss what constitutes a social assistance policy under the logic of the work. It starts with
the premise that social assistance policy only has tensioner potential of contradictions
envisaged by the logic of work. If you link to another logic of reproduction of the capitalist
mode of production, places itself as urgent, the need to move in a new policy proposal.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

1. Introdução

Ai daqueles que pararem com sua capacidade de sonhar, de invejar


sua coragem de anunciar e denunciar. Ai daqueles que, em lugar de
visitar de vez em quando o amanha pelo profundo engajamento com o
hoje, com o aqui e o agora, se atrelarem a um passado de exploração e
de rotina.
Paulo Freire

O Estado democrático instituído, que atende primordialmente aos interesses privados,


configura-se como um campo em disputa. As políticas sociais implementadas, por sua vez,
constroem-se nesta arena de embates. No estado brasileiro, o campo da assistência social
historicamente foi empregado como “objeto de uso e de troca” no padrão de gestão
patrimonialista e clientelista do país. O avanço na área se dá com a promulgação da Carta
Magna:

No Brasil, os anos 1980 foram marcados pelo processo de democratização


política e ampliação das lutas por direitos, que culminou com a promulgação
da Constituição Federal de 1988. Assim, com a Carta Magna, a Assistência
Social juntamente com a Saúde e a Previdência Social, passou a compor o
tripé da Seguridade Social, sendo regulada através da Lei Orgânica da
Assistência Social (LOAS – Lei n° 8.742 de 1993) como política pública.
Este aparato jurídico sinaliza para a superação da assistência social como
benemerência e assistencialismo (REIS, 2013, p. 2).

Não obstante esse avanço na direção de um aperfeiçoamento das políticas sociais é


preciso situá-las no interior das contradições sociais. Não é nenhuma novidade tão recente a
constatação de que as políticas sociais são funcionais ao capital, no âmbito da reprodução da
força de trabalho. Nesse sentido, não basta reconhecer os avanços promovidos na burocracia
estatal ou no aparato jurídico recente. Uma melhor compreensão das políticas sociais pode ser
alcançada por uma distinção objetiva entre necessidades sociais provenientes das condições
reais da classe trabalhadora e interesses dos trabalhadores enquanto classe. Enquanto as
necessidades sociais atuam de modo mais espontâneo e no limite da reprodução das condições
de existência da classe trabalhadora, seu interesse somente se realiza com a superação de
todas as classes, isto é, com a transformação das condições objetivas de modo a impedir toda
forma de exploração do homem sobre o homem. Para além da mera oposição entre
necessidades e interesses, a tese aqui fundamental é a de que a política de assistência reflete a
necessidade da classe trabalhadora segundo os interesses das classes dominantes.
Nesta perspectiva, se coloca como questão central deste estudo: discutir em que se
constitui uma Política de Assistência Social sob a lógica do trabalho. Marx traz elementos

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

essenciais para analisarmos esta questãoi. O presente estudo torna-se relevante ao buscar
discutir a perspectiva predominante da legislação em pauta. Parte-se da premissa de que a
Política de Assistência Social somente tem potencial de tensionador das contradições se
perspectivada pela lógica do trabalho. Caso vincule-se a outra lógica, de reprodução do modo
de produção capitalista, coloca-se como urgente, a necessidade de avançar em uma nova
proposta de política, diferente da que está dada. Nas palavras de Netto (2014),

O primeiro desafio nosso é sermos capazes de propor concretamente


políticas sociais diferentes das vigentes. Não basta dizer: olha essa política
que está aí é neoliberal. No plano das relações de trabalho, no plano da
educação, no plano da saúde, no plano da assistência.

Ter a clareza de que, o que se coloca como desafio do dia, é a emancipação política,
ou seja, aquela que se dá por meios políticos e se constitui enquanto forma final de
emancipação dentro da sociedade capitalista. É ter consciência da necessidade de se avançar
no plano teórico, de modo a subsidiar a ação prática. No caso concreto aqui estudado, é
desvendar a aparência da esfera política, ao ter clareza das potencialidades e/ou limites que a
política de assistência – que responde diretamente às expressões da questão socialii –,
comporta, para em outro momento desvelar a essência de uma proposta de política (caso se
faça necessário) que de fato se vincule à perspectiva do trabalho. A partir da crítica da própria
dimensão política (dos limites intrínsecos a esta) é que avançaremos na análise proposta.
Nosso esforço foi o de trazer a crítica da política como crítica da política social que, por sua
vez, é mediada pelo direito.
O desafio está em encontrar resposta na própria materialidade: o que é uma política
social perspectivada pelo trabalho num período não revolucionário, isto é, nos marcos da
produção do capital? Como avançar nesta proposta no contexto presente de uma autocracia
burguesa? Algumas pistas podem ser ventiladas:
Faz-se mister tomar a Democracia enquanto valor concreto, exercida pela classe que
efetivamente pode e precisa realizar a transformação social com vistas à superação das
classes, e de situar a administração pública no interior das contradições reais que cortam a
burocracia estatal (PAÇO CUNHA, 2015). Para além da dimensão política como meio
conciliatório e sempre temporário, a melhor forma de estado, “é aquela que os leva à luta
aberta, e com ela à resolução” (MARX, 2010 apud PAÇO CUNHA, 2015, p. 14). A luta em
aberto na conjuntura atual se configura no desafio – necessário – de fundir a luta política com
a luta econômica.

2. A crítica da dimensão política

Na teoria marxista é a organização social que engendrará o Estado, em outras palavras,


o Estado é um produto da sociedade civil, rompe-se com a ideia do Estado como ente moral
(inversão do pensamento de Hegel, que compreendia o Estado como o responsável por
conceber a sociedade). Nesse sentido, o Estado é apenas expressão da dominação de classe, da
contradição entre vida pública e privada, portanto a ideia de universalidade do Estado é irreal,

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

uma vez que este pressupõe a desigualdade e os antagonismos de classe (e os reproduz), e não
pode eliminar estas contradições sobre o risco de eliminar a si mesmo.

Do ponto de vista político, Estado e organização da sociedade não são duas


coisas distintas. O Estado é a organização da sociedade. Na medida em que o
Estado admite a existência de anomalias sociais, ele procura situá-las no
âmbito das leis da natureza, que não recebem ordens do governo humano, ou
no âmbito da vida privada, que é independente dele, ou ainda no âmbito da
impropriedade da administração, que é dependente dele (MARX, 2010, p.
38).

O Estado possui uma dimensão jurídica e política, de acordo com Marx. A


organização política é posterior à organização econômica. Aquela organização (política) –
leia-se expressão da dominação de classe – é uma força formal de resolução do problema. O
Estado transforma os problemas sociais em objetos de administração, efetivadas por medidas
administrativas ou paliativas.

Por fim, todos os Estados buscam a causa nas falhas casuais ou intencionais
da administração e, por isso mesmo, em medidas administrativas o remédio
para suas mazelas. Por quê? Justamente porque a administração é a
atividade organizadora do Estado. O Estado não pode suprimir a contradição
entre a finalidade e a boa vontade da administração, por um lado, e seus
meios e sua capacidade, por outro, sem suprimir a si próprio, pois ele está
baseado nessa contradição. Ele está baseado na contradição entre a vida
pública e a vida privada, na contradição entre os interesses gerais e os
interesses particulares. Em consequência, a administração deve restringir-se
a uma atividade formal e negativa, porque o seu poder termina onde começa
a vida burguesa e seu labor (MARX, 2010, p. 39).

Esta dinâmica de dominação garante a reprodução da ordem capitalista, ao passo que


viabiliza a dominação de uma classe sobre a outra. Nesse sentido, supervalorizar a dimensão
política como meio resolutivo de todos os conflitos, ou conceber o estado como o autêntico
problema é uma perspectiva limitada de compreensão da totalidade deste processo. Esse
cuidado é amplamente aferido:

Para compreender o problema da eficácia dos direitos fundamentais sociais


na sociedade capitalista é necessário ter clareza de que tais direitos
encontram-se inseridos em Constituições que regulam a organização política,
econômica e social de uma sociedade dividida em classes antagônicas, com
interesses divergentes. Esse elemento é central para que não se cometa o erro
de negar a contradição existente no Estado, obscurecendo e idealizando sua
função (DAMASCENA, 2013, p. 17).

Nesta perspectiva, desvelar a contradição inerente ao Estado e à política social,


permite elucidar os limites da atuação estatal por meio da política na sociabilidade capitalista.
Cabe ressaltar que nessa dinâmica contraditória, a política social é elemento regulador dos

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

conflitos, que poderá funcionar como elemento de emancipação política. Porém, a própria
política funciona como meio de conciliação improvável dos contrários interesses sociais, visa
amenizar temporariamente os conflitos e não resolvê-los, uma vez que a resolução do conflito
de interesses encontra-se em outro nível, pois consiste no próprio rompimento com a ordem
capitalista vigente, no horizonte da emancipação humanaiii.
A forma mais desenvolvida da política, a democracia representativa burguesa, possui
limites claros. De acordo com Naves (2010), se a democracia é uma forma política fundada na
liberdade e na igualdade, é preciso constatar que ela somente pode surgir na modernidade,
com a emergência da sociedade burguesa.

A democracia aparece assim pelo que ela é: uma forma de dominação


política historicamente determinada por seu indissociável liame com as
esferas da circulação e da produção burguesas, e cujo funcionamento exclui
os trabalhadores do poder real, de tal sorte que, quando lutam em defesa da
democracia, e independentemente das representações que fazem de sua
própria luta, os trabalhadores estarão sempre reforçando as condições de sua
própria subordinação ao capital (NAVES, 2010, p. 69).

Uma organização burocrática, cuja finalidade é a apropriação da riqueza produzida


através da extração de mais valiaiv, a qual materializará a reprodução da força de trabalho via
implementação de políticas sociais. Embora o estado seja uma estrutura de dominação, a luta
é parte constituinte deste, o que exige que tal aparato atenda também às necessidades da
classe dominada.
Nesta perspectiva, se desnuda a aparência finalística do estado democrático, a questão
que se coloca em pauta é: em que medida é possível evoluir em uma proposta de estado, de
política social e especificamente de uma política de assistência social que se aporte nos
interesses da classe que vive do trabalho? Um indicativo para se pensar esta questão, e que, ao
mesmo tempo, ratifica a crítica marxista acerca dos limites da luta restrita à esfera política,
passa pela fusão da luta política com a luta econômica:

(...) como não existem condições materiais – talvez sequer subjetivas – para
algum processo revolucionário, é preciso fundir a luta econômica com a
política, levando a perspectiva dos trabalhadores à administração pública
com vistas à sua efetiva democratização (PAÇO CUNHA, 2015, p. 13).

O desafio está em encontrar resposta na própria materialidade: o que é uma política


social perspectivada pelo trabalho num período não revolucionário, isto é, nos marcos da
produção do capital? Algumas pistas podem ser ventiladas: democracia tomada enquanto
valor concreto, exercida pela classe que efetivamente pode e precisa realizar a transformação
social com vistas à superação das classes, e de situar a administração pública no interior das
contradições reais que cortam a burocracia estatal (PAÇO CUNHA, 2015). Para além da
dimensão política como meio conciliatório e sempre temporário, a melhor forma de estado, “é
aquela que os leva à luta aberta, e com ela à resolução” (MARX, 2010 apud PAÇO CUNHA,
2015, p. 14). A luta em aberto na conjuntura atual se configura no desafio – necessário – de
fundir a luta política com a luta econômica.
À luz da discussão construída, ao romper com Estado, gestão pública, burocracia,
política, democracia enquanto “tipos ideais”, ou seja, enquanto conceitos puros é que se

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

pretende avançar na análise do caso concreto em pauta: a política de assistência social


perspectivada pela lógica do trabalho.

3. A Política de Assistência Social sob a perspectiva do trabalho

A política de assistência social surge para responder as expressões da questão social,


ou seja, enquanto medida administrativa a ser aplicada em relação às mazelas sociais. Em sua
obra, “Glosas críticas ao artigo O rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano”, Karl
Marx ao analisar a atuação estatal em relação ao pauperismo que então se generalizava na
Inglaterra, fomenta a análise sobre o tipo de compreensão acerca deste fenômeno
(pauperismo), assim como a forma de intervenção proposta.

O significado universal que a Inglaterra politizada extraiu do pauperismo


restringe-se a isto: no desdobramento do processo, apesar das medidas
administrativas, o pauperismo foi tomando a forma de uma instituição
nacional, tomando-se, em consequência, inevitavelmente em objeto de uma
administração ramificada e bastante ampla, uma administração que, todavia,
não possui mais a incumbência de sufocá-lo, mas de discipliná-lo, de
perpetuá-lo. Essa administração desistiu de tentar estancar a fonte do
pauperismo valendo-se de meios positivos; ela se restringe a cavar-lhe o
túmulo, valendo-se da benevolência policial, toda vez que ele brota da
superfície do país oficial. O Estado inglês, longe de ir além das medidas
administrativas e beneficentes, retrocedeu aquém delas. Ele se restringe a
administrar aquele pauperismo que, de tão desesperado, deixa-se apanhar e
jogar na prisão (MARX, 2010, p. 35).

Nas obras de Marx, embora não encontremos o termo política social (por óbvia
questão de tempos históricos distintos) pode-se aludir à velha questão social trabalhada em
suas obras e as formas de tratamento desta. O contexto europeu, no que diz respeito à
intervenção estatal restrita a medidas administrativas, ou seja, o não estancamento da fonte do
pauperismo traz à tona a discussão acerca da gestão estatal contemporânea. Analisemos então
a proposta da medida administrativa – Política de Assistência Social – em foco neste trabalho
e o gerenciamento estatal da mesma.
A Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2004) se estrutura no Brasil, a partir
do Sistema Único de Assistência Social. O SUAS é um sistema público não contributivo, que
tem por função a gestão do conteúdo específico da Assistência Social no campo da proteção
social brasileira. A gestão da política de assistência social se materializa na implementação de
serviços técnicos referenciados em unidades públicas estatais descentralizadas – CRAS
(Centro de Referência de Assistência Social) e CREAS (Centro de Referência Especializada
em Assistência Social); na prestação de benefícios assistenciais – que se dividem em duas
modalidades: o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e os Benefícios eventuais; e em
programas de transferência direta de renda – Programa Bolsa Família (PBF), para além dos
projetos sociais desenvolvidos em escala municipal, estadual e federal. Cabe ressaltar que tais
serviços são ofertados também nas entidades de assistência social, como prestadoras
complementares de serviços socioassistenciaisv (BRASIL, 2004).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

É inegável o avanço no campo da assistência social proveniente da regulamentação (e


consequente padronização) desta política em âmbito nacional. A questão que se coloca é: a
política de assistência social é perspectivada pela lógica do trabalho? Para analisar esta
questão, faz-se necessário definir a priori (ao menos de modo inicial neste estudo) em que se
constitui uma política social por esta perspectiva. Entende-se que a perspectiva do trabalho
requer uma política que de fato seja construída pelos trabalhadores e não apenas para os
trabalhadores (enquanto resposta estatal e capitalista com a “participaçãovi” do proletariado).
A raiz da perspectiva por ora defendida tem como horizonte a transformação social, o
que não significa dizer que damos à política em questão – A Política de Assistência – tal
potencialidade, mas que buscamos desvendar e defender uma política social prismada na
lógica ilimitada e transformadora do trabalho, enquanto potencialidade real de tensionar de
fato as relações que engendram a vida social.

Assim reconhecida, a revolução social como possibilidade real, posta pela


lógica onímoda do trabalho, não é a afirmação de uma classe, dita universal,
mas a afirmação universal do homem. Não é a afirmação do proletariado
como classe universal, mas da universalidade da negação de sua condição de
classe, de classe que não é mais uma classe da sociedade civil etc. É essa
condição de classe negada, da negação universal da classe do trabalho – que
não reivindica nenhum privilégio histórico, mas a simples condição humana
– que se configura como mediação para a afirmação da universalidade
humana dos indivíduos progressivamente universalizados pelo
desenvolvimento das forças produtivas, mas de um desenvolvimento dado
[até aqui] na forma da alienação – na forma da desapropriação de si
(CHASIN, 2000, p. 35).

Ora, alcançamos um nível tal de desenvolvimento social, no âmbito alimentício,


biológico, tecnológico, dentre tantos outros ganhos – sendo estes, construídos coletivamente,
a partir do trabalho – que se torna desconexo pensar em uma política que não se paute no
trabalho e nos ganhos do mesmo. A incoerência (pela perspectiva do trabalho e não pela ótica
do capital) é a persistência da apropriação privada da vida e da história acumulada pela
humanidade.
A história já nos mostrou que o sistema de metabolismo social do capital, que pudesse
ser efetivamente controlado e regulado, num compromisso entre capital e trabalho, mediado
pelo Estado – Welfare State – se constituiu enquanto uma ilusão temporária. Ou seja, pensar
uma política de assistência social que norteada por interesses trabalhistas tenha como defesa
central, o pleno emprego e uma política compensatória, constitui uma proposta “eficiente” em
curto prazo.
A redistribuição de renda é uma medida paliativa que se enquadra enquanto
necessidade da classe operária e que demarca um estágio tal do capitalismo financeiro, em
que um programa de transferência de renda se torna uma medida administrativa eficiente
(cash em espécie para aquecer a economia). Mas a política que de fato tensione a estrutura
vigente, requer trabalhadores que estejam à frente da construção desta política e que não se
restrinjam a ela, que a política seja meio, mas não fim, que as propostas trabalhistas se pautem
nos interesses reais destes.
No contexto brasileiro, a transferência do valorvii e a superexploração do trabalhoviii
são pontos chaves de nossa história que inviabilizam (e não só) uma política social condizente

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

com todas as demandas da classe. Questões estruturais desta ordem ratificam a necessidade de
se defender medidas administrativas que avancem em suas proposições, ou seja, que a classe
oprimida não esteja mais a mercê dos seus próprios interesses por meios legais. O que se
coloca como desafio na ordem do dia – no âmbito das políticas sociais brasileiras – é
ultrapassar as conquistas construídas e avançar em propostas direcionadas aos limites da
ordem instituída.

Têm de levar ao extremo as propostas dos democratas, os quais não se


comportarão em todo o caso como revolucionários mas como simples
reformistas, e transformá-las em ataques diretos contra a propriedade
privada; por exemplo, se os pequeno-burgueses propuserem comprar os
caminhos-de-ferro e as fábricas, têm os operários de exigir que esses
caminhos-de-ferro e fábricas, como propriedade dos reacionários, sejam
confiscados simplesmente e sem indenização pelo Estado. Se os democratas
propuserem o imposto proporcional, os operários exigirão o progressivo; se
os próprios democratas avançarem a proposta de um [imposto] progressivo
moderado, os operários insistirão num imposto cujas taxas subam tão
depressa que o grande capital seja com isso arruinado; se os democratas
exigirem a regularização da divida pública, os operários exigirão a
bancarrota do Estado. As reivindicações dos operários terão, pois, de se
orientar por toda a parte segundo as concessões e medidas dos democratas
(MARX; ENGELS, 2006, p. 8).

A proposta de uma política de assistência social pela perspectiva do trabalho tem que
lutar no liame democrático, ou seja, se o instituído é garantir condições mínimas sociais – A
assistência social (...) provê os mínimos sociais (BRASIL, 1993) – que se avance em
condições dignas (e que se defina esta formulação); se o instaurado é uma política que atenda
a população em situação de rua, mas que sequer vislumbre reverter esta situação (de morador
de rua) é lutar para que este nível de aceitação social seja revertido (num primeiro momento
no plano legal); se a legislação implementada se pauta no fortalecimento de vínculos
familiares e comunitários, que se promova o debate de classe e não a otimização da pobreza;
se o que se coloca como renda per capta para aquisição de um beneficio é inferior a ¼ do
salário mínimo que se avance na proposta de um salário mínimo (e digno).
A política de assistência social, historicamente, se dá com fortes reflexos das relações
sociais contraditórias. A herança colonial, a posição de subordinação em relação aos países
desenvolvidos, a cultura patrimonialista (a visão do público como privado), são traços
marcantes na história da assistência social no país. Haja vista o dificultoso processo de
aprovação em lei desta política enquanto um direito assegurado pelo Estado. Sendo assim, a
aprovação da PNAS – 2004 pode representar a reversão das características acima citadas,
possibilitando a reafirmação dos preceitos democráticos contidos na Constituição Federal de
1988 e da Lei Orgânica de Assistência Social.
Neste sentido, afirma-se que a política de assistência social vigente avançou (a análise
histórica nos possibilita concluir isso) e tem muito a avançar enquanto legislação que se paute
nos interesses dos trabalhadores (categoria que inclui os que não têm mais, sequer acesso ao
trabalho). O primeiro passo é a construção dessa proposta de política pelos maiores
interessados

10
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

O movimento proletário é o movimento autônomo da imensa maioria no


interesse da imensa maioria. O proletariado, a camada inferior da sociedade
atual, não pode levantar-se sem fazer saltar toda a superestrutura de camadas
que formam a sociedade oficial (MARX, 2012, p. 196).

Sob este prisma é que se defende aqui uma política de assistência social perspectivada
pela lógica onímoda do trabalho, enquanto meio de se tensionar de fato as relações sociais que
engendram tal estrutura “legal”. À proposta de uma Política de Assistência Social sob a
perspectiva do trabalho se impõe os limites da ordem do capital, só o rompimento com tal
ordem possibilita vislumbrar a lógica do trabalho em sua completude. Nesse sentido, esta é
uma proposta exequível nos limites democráticos instituídos e sob a conjuntura capitalista
dependente do país? A lógica do trabalho se constitui em uma formulação teórica (com clara
perspectiva de classe) que se coloca como possibilidade em aberto, em outras palavras, só o
plano de ação concreta responderá efetivamente a esta questão.

i
No presente estudo, a perspectiva do trabalho será estudada á luz da crítica marxista à esfera política. A fim de
se analisar uma política social específica – política de assistência social – se utilizará o método da derivação de
categorias chaves (medidas administrativas, burocracia, democracia) utilizadas por Marx. Se tais categorias
ainda podem ser úteis é prova de que se ancoram na materialidade correspondente à ordem do capital ainda não
superada.
ii
Diz respeito ao conjunto das expressões das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista
madura, impensáveis sem a intermediação do Estado. Têm sua gênese no caráter coletivo da produção,
contraposto à apropriação privada da própria atividade humana – o trabalho –, das condições necessárias à sua
realização, assim como de seus frutos (IAMAMOTO, 2001, p. 16).
iii
Nas obras Sobre a Questão Judaica de 1843 e Glosas Críticas Marginais ao Artigo “O Rei da Prússia e a
Reforma Social” de um Prussiano de 1844, Karl Marx trabalha com dois conceitos chaves: emancipação política
e emancipação humana. A emancipação política se dá por meios políticos, é a forma final de emancipação na
sociedade capitalista, já a emancipação humana rompe com todas as formas de alienação (propriedade,
exploração, dinheiro, desigualdade social e da forma política).
iv
A taxa de mais-valia é a expressão precisa do grau de exploração da força de trabalho pelo capital ou do
trabalhador pelo capitalista (NETTO, 2012).
v
Para maiores informações consultar o site do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome.
Disponível em: http://www.mds.gov.br/.
vi
A participação é essencial para que os embates aconteçam, no entanto chamo atenção aqui aos limites
previamente (e legalmente) estipulados em relação à mesma. As regras participacionistas são definidas
anteriormente a esta participação, e são previamente definidas por quem? Para os interesses de quem (de modo
prevalecente)? Infelizmente não da massa da população. Para além da participação deve-se vislumbrar a
coordenação desta participação pelos próprios trabalhadores. A participação trabalhista não pode e não deve
acontecer de modo relegado, secundário.
vii
No contexto do capitalismo tardio (caso brasileiro), o processo de valorização do capital se dá pela
transferência de valor, em que a transferência ocorre dos países periféricos para os países centrais via
empréstimos financeiros a fim de viabilizar a acumulação interna (pagamento de juros).
viii
Ocorre em função da existência de mecanismos de transferência de valor entre as economias periférica e
central, levando a mais-valia produzida na periferia a ser apropriada e acumulada no centro que só pode ser
completada com a geração de mais excedente no próprio plano da produção, justamente através da
superexploração do trabalho (FERREIRA; OSÓRIO; LUCE, 2012).

Referências bibliográficas

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Assistência Social. Disponível em: http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/secretaria-

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mimeo.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Administração Política da Saúde: uma análise comparativa dos


indicadores de gestão da saúde de quatro munícipios do interior do
Nordeste

Geraldo Medeiros Júnior


Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)

Julio Vitor Menezes dos Santos


Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)

Kleiton Wagner Alves da Silva Nogueira


Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)

Matheus Cavalcante Rique


Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)

Ronye Alexandre do Nascimento


Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)

RESUMO
O presente estudo apresenta como objetivo, analisar de forma comparativa alguns
indicadores de gestão da saúde entre os municípios de Campina Grande (PB); Vitória da
Conquista (BA); Mossoró (RN) e Caruaru (PE), a partir de dados obtidos pelo Sistema de
Informações Sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS) e pelo Departamento de
Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS). O resultados permitiram auferir que a
gestão da saúde nesses municípios tem ênfase na saúde curativa e não preventiva, e que o
oposto poderia prevenir alguns dos problemas da população. Levando em consideração o
Pacto pela Gestão do SUS, essas cidades tendem a acolher pacientes de toda a região de
influência o que justificaria, em alguns casos, o elevado índice de gastos com saúde em
comparação com a população municipal. Nota-se que faz-se necessário que a a
Administração não se limite aos aparatos técnicos e gerenciais, apenas assim, trará
contribuições para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa, e em especial com a
saúde, operacionalizando uma gestão que faça da saúde uma instância de maior atenção por
parte dos gestores.
Palavras-chave: Administração Política, Gestão da Saúde, Indicadores de Gestão

1. INTRODUÇÃO
Ao tratar da saúde, se faz necessário um maior aprofundamento no que diz respeito a
contribuição que a Administração pode oferecer na gestão da saúde. Dessa forma,
compreender a operacionalização dos serviços de saúde nesses municípios, é também realizar
uma reflexão sobre o próprio papel da Administração enquanto ciência, que apresenta como

13
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

objeto de estudo a gestão. Dessa forma, é na Administração Política que se pode encontrar
essa expressão máxima da Administração: “Administração Política envolve tanto o processo
decisório do “que fazer”, quanto o relativo ao “como fazer”, que significa viabilizar os meios
necessários para construir o projeto da nação ou da organização e implantá-lo” (SANTOS, et
al, 2009. p. 935). Tendo a noção da capacidade do Estado em oferecer serviços de saúde
através do Sistema Único de Saúde (SUS), a Administração tendo o suporte de ferramentas
e fazendo uso da gestão como catalizadora de ação, pode propiciar um melhor domínio sobre
os problemas que usualmente afetam esse sistema.
Para o alcance dessas aspirações, só uma perspectiva crítica poderá guiar a discussão
sobre os indicadores que o presente estudo se propôs a analisar. Nesse sentido, o estudo é
norteado por uma ótica histórico-dialética, onde busca entender a verdadeira essência dos
problemas exibidos através dos indicadores em suas respectivas cidades. Fazendo uso de uma
revisão bibliográfica e documental, o estudo de caracterizou como exploratório, no intuito de
conseguir um maior aproximação e conhecimento com o objeto abordado. Além desses
elementos, busca-se entender também, o papel a ser desenvolvido pelo Estado, enquanto
mantenedor do SUS em suas variadas escalas e o papel desempenhado pelas gestão realizada
das cidades selecionadas.

2. ADMINISTRAÇÃO E SEU CARÁTER POLÍTICO: UM OLHAR SOBRE A


SAÚDE

O caráter político da Administração


Ao refletir sobre civilizações antigas que se destacaram por seu poderio militar,
econômico ou cultural, todas elas, como exemplo: Grécia, Suméria, China e Roma, fizeram
uso da Administração para gerir seus recursos. Não obstante, a atividade administrativa
também foi ferramenta de organizações que influenciaram o mundo, como a própria Igreja
Católica, e o sistema feudal, que através da Administração conseguiram obter um maior
controle sobre suas propriedades. Dessa forma, pensar em Administração é ter em mente que
ela está ligada a própria história da humanidade, contribuindo para a organização de modos
de produzir e de conviver em sociedade. (SILVA, 2013)
Na contemporaneidade, ainda segundo Silva (2013), principalmente com o advento
da Revolução Industrial e o surgimento do sistema Capitalista, a Administração mais uma
vez desempenha papel preponderante na organização da sociedade. Dessa forma, nomes
como o de Frederick Taylor e Henri Fayol introduziram a Administração um caráter
científico, traduzindo preceitos encontrados nas fábricas da época, para a objetividade da
ciência. (SILVA, 2013).
No entanto, com o passar da evolução da sociedade, e das crises que permeiam o
sistema Capitalista, em face a novas formas de encontrar saídas, da alta concorrência no
mercado, e da visão cada vez mais abrangente do papel do administrador, este por sua vez
necessita não apenas da visão positivista, técnica da Administração, mas também, do caráter
político, ou como melhor nos afigura Santos (2009) a Administração Política, como um
campo do conhecimento orientado pela gestão holística que envolve a sociedade, meios de
produção e a distribuição.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Nesse sentido, Santos (2009) nos alerta sobre a formação do profissional em


Administração, e mais precisamente sobre o reducionismo que muitas vezes tende a permear
a epistemologia da ciência Administrativa:

Falar de organizações/instituições é uma aproximação apenas necessária para a


definição do objeto da administração, ainda assim insuficiente, porque restrita.
Embora as organizações/instituições sejam o gênero que contém elementos
essenciais do objeto da disciplina administração, elas são espaços particulares,
onde apenas habita o objeto. A essência perpassa o espectro das relações sociais
internas das organizações e se estabelece nos limites das relações sociais mais
amplas; portanto, no âmbito da sociedade. (SANTOS, 2009. p, 930)

Dessa forma, se pode considerar o caráter político no qual a Administração está


inserida, levando em conta seu aspecto abstrato e aplicado, tendo noção que o seu objeto
enquanto ciência é a gestão, e não a organização como muito comumente se observa. Tendo
em mente essa premissa, Barreto & Barreto (2004) mostra o papel a ser desenvolvido pelo
administrador, na necessidade de considerar aspectos de gestão política permeando não
apenas a esfera governamental, mas todos os tipos de organizações apresentam preocupações
estratégicas, na formulação de objetivos e escolhe de técnicas para o alcance desses objetivos.

Ao considerar o Estado como um agente interno ao próprio sistema capitalista, se faz


necessário levar a cabo o papel da Administração e seu papel em desempenhar uma gestão
de longo prazo, ao comandar capitais, seja através de políticas públicas, ou agindo como
Estado empresário. Nesse sentido, vale destacar a importância que o Estado desempenha para
a própria manutenção do capitalismo (em contrapartida com os postulados neoliberais da
retomada ao laissez faire), o Estado como agente atuante dentro do capitalismo,
desenvolvendo e orientando níveis de produto e consumo. (SANTOS, 2009).
Ao considerar esta reflexão, é possível dar um passo à frente na própria epistemologia
da Administração, entendendo está ciência como atuante, e não apenas dentro do âmbito
intra-organizacional, mas sendo ativa no âmbito externo, tendo a noção que instituições,
organizações, seja da esfera pública ou provada, estão inseridas na sociedade.

Pensar a saúde através de uma Administração Política – PB


A gestão administrativa do serviço público de saúde é tópico de grande relevância
para os gestores públicos em qualquer esfera de gestão, seja ela municipal, estadual ou
federal. É de fundamental importância reconhecer as tentativas estratégicas de ampliação e
otimização dos serviços públicos de saúde, a fim de garantir o acesso dos usuários a todos os
níveis de atenção à saúde.
No sentido de compreender melhor o avanço estratégico da gestão da saúde, deve-se
analisar sob perspectiva histórica, o pacto pela saúde, instituído pela portaria GM/MS nº 399,
de 22 de fevereiro de 2006, consolidando o SUS e as diretrizes inerentes a ele.
O Pacto pela Saúde surge com o objetivo de qualificar e implementar a
descentralização, organização e gestão do SUS no Brasil, sob a forma de um pacto
intergestores tendo como escopo solucionar problemas com entraves regionais e operacionais
no setor da saúde, definindo melhor uma estratégia para a racionalização das ações referentes
a ele. Tal pacto é composto por três componentes que devem ser exercidos de forma
simultânea e integrada: Pacto pela Vida, Pacto em Defesa do SUS e Pacto de Gestão do SUS.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Dado à natureza desse trabalho científico, a análise concentrar-se-á no Pacto de Gestão do


SUS.
O Pacto de Gestão do SUS estabelece ‘as diretrizes para a gestão do sistema quanto
à descentralização, regionalização, financiamento, planejamento, programação pactuada e
integrada, regulação, participação social e gestão do trabalho e da educação na saúde’.
(BRASIL, 2006). Tal pacto surge

como uma oportunidade real de melhoria no acesso e na qualidade dos serviços e


de resolução dos problemas operacionais (...) possibilitando assim a redução das
iniquidades macrorregionais, estaduais e regionais, no que diz respeito às ações e
serviços em saúde . (FADEL et al, 2009)

Para tanto, exige-se do gestor e sua equipe um planejamento relevante que vise a
melhoria do desempenho com o intuito de intervir no estado de saúde da população.
Preconizado pela Constituição Federal, o planejamento tem por desígnio dar direção às ações
executivas quanto às intervenções no resultado. A falta de planejamento e a desarticulação
das esferas federal, estadual com os planos de saúde municipais leva “à alocação inadequada
dos recursos, fazendo-se necessária uma maior articulação entre as esferas”. (VIEIRA, 2009)
Ainda segundo Vieira (2009), o planejamento acaba caracterizando-se como cumprimento
de uma exigência, uma vez que, é primordial para a alocação de recursos por parte do
governo federal. Assim, um distanciamento entre planejamento e resultados é inegável,
dado o fato que o planejamento é configurado como um conjunto intenções, quando
deveria tratar-se de objetivos e metas.

Uso de indicadores de saúde como ferramenta para a Administração


É dever do administrador acompanhar e avaliar as atividades de sua organização,
assim como na seguridade social, a gestão com a saúde deve procurar mecanismos que
ofereçam sustentação para a tomada de ações que tragam melhorias no acesso a Saúde.
Segundo Mancio, Petry e Weigelt (2012, p. 193), “a avaliação é uma função da gestão
destinada a auxiliar o processo de decisão, visando a torná-lo mais racional e efetivo”.
Entre as definições de indicadores de saúde, destaca-se Rouquayrol (1993), no qual
os indicadores de saúde são parâmetros utilizados internacionalmente com o objetivo de
avaliar, sob o ponto de vista sanitário, a higidez de agregados humanos, bem como oferecer
subsídios aos planejamentos de saúde, permitindo o acompanhamento das flutuações e
tendências históricas do padrão sanitário de diferentes coletividades consideradas à mesma
época ou da mesma coletividade. Assim definida também:

como instrumentos utilizados para medir uma realidade, como parâmetro


norteador, instrumento de gerenciamento, avaliação e planejamento das ações na
saúde, de modo a permitir mudanças nos processos e resultados. O indicador é
importante para nos conduzir ao resultado final das ações propostas em um
planejamento estratégico. (FRANCO, 2010. p. 117).

Nas duas definições é norteado a utilidade dos indicadores de saúde como mecanismo
de gestão indispensável para identificar, monitorar, avaliar ações, identificar áreas de risco e
evidenciar tendências. Nesse sentido, os indicadores de saúde têm o objetivo de facilitar a
quantificação e avaliação das informações coletadas, mas para tal, é necessário que os dados
sejam válidos, confiáveis para a análise objetiva da situação sanitária e assim fornecendo

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

suporte para a tomada de decisões baseadas em evidências para a programação de ações de


saúde. (RIPSA, 2008)
O administrador deve observar as especificidades de cada realidade e a análise dos
indicadores deve sair deste pressuposto, do modo que esses sejam os mais representativos
para as necessidades da região.

3. METODOLOGIA
Ao estar inserido em um âmbito científico, o indivíduo precisa fazer uso de elementos
que o ajudarão na investigação de determinado fenômeno. Nesse sentido, o rigor e a seriedade
da pesquisa são elementos fundamentais para o êxito das análises e resultados. Dessa forma,
Lakatos & Marconi (2003) nos mostra que a pesquisa é composta por passos a serem
seguidos, dos quais se caracteriza por sua formalidade, método e reflexão, proporcionando
ao pesquisador o conhecimento da realidade.
Levando em consideração essa reflexão e observando os objetivos do presente estudo,
a pesquisa se enquadra como exploratória, onde de acordo com Gil (2002), proporciona ao
pesquisador uma maior familiaridade com o problema a ser investigado. Como técnica de
pesquisa, utilizou-se da pesquisa bibliográfica, que apresenta como escopo a busca de
materiais em revistas científicas, livros, publicações impressas diversas. A pesquisa também
utilizou da técnica documental, que representa a obtenção de materiais que não receberam
uma análise, podendo ser trabalhados de acordo com o objetivo da pesquisa. Dessa forma, o
presente estudo utilizou de indicadores de saúde, dados estatísticos e tabelas disponíveis no
Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS), e pelo Sistema de
Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS), através dos seguintes
indicadores: Número de leitos por habitantes; financiamento da saúde pública e Utilização
de Recursos próprios em Saúde.

Municípios Estudados
As cidades selecionadas para a realização deste estudo foram: Mossoró do Estado do
Rio Grande do Norte; Campina Grande do Estado da Paraíba; Caruaru do Estado de
Pernambuco e Vitória da Conquista no Estado da Bahia. Essas cidades possuem relevância
preponderante no desenvolvimento regional do Nordeste, em especial ao interior da região,
onde, através da sua rede de influência, conseguem estender produtos e serviços para as
demais cidades menores, criando uma rede de articulação. Ter essa noção, é em primeiro
lugar, contribuir com a gestão e o planejamento Estatal, dando atenção a atividades voltadas
a Saúde, econômicas de produção, consumo privado e coletivo, bem como “prover
ferramentas para o conhecimento das relações sociais vigentes e dos padrões espaciais que
delas emergem” (IBGE, 2007p. 10)
O IBGE no ano de 2007, emitiu uma publicação voltada para as áreas de influência
desempenhadas pelas cidades do Brasil, nesse estudo, o órgão mapeia os fluxos materiais e
imateriais como: serviços, informações, produtos, e hierarquiza as cidades de acordo com o
seu grau de influência e centralidade1.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

“A oferta de distintos equipamentos e serviços capazes de dotar uma cidade de


centralidade – informações de ligações aéreas, de deslocamentos para internações
hospitalares, das áreas de cobertura das emissoras de televisão, da oferta de ensino
superior, da diversidade de atividades comerciais e de serviços, da oferta de
serviços bancários, e da presença de domínios de Internet – complementa a
identificação dos centros de gestão do território”. (IBGE, 2007.P. 09)

Dessa forma, é possível identificar a influência exercida pelas cidades selecionadas nos seus
respectivos Estados. O IBGE hierarquiza a rede de influência através de tipos, conforme
podemos observar na tabela a seguir:

Tabela 01 - Hierarquização da rede Urbana Brasileira2

Capital Centro sub-


Hierarquia Metrópole Centro Zona Centro Local
Regional regional

Grade metrópole Capital Regional Centro sub- Centro Zona Centro Loca
Nacional A regional A A A

Centro sub-
Metrópole Capital Regional Centro Zona Centro Loca
regional
Nacional B B B
Subdivisão B

Centro sub-
Capital Regional Centro Zona Centro Loca
Metrópole regional
C C C
C

Fonte: Elaboração própria a partir de dados de (IBGE, 2007)

De acordo com IBGE (2007) As cidades de Campina Grande e Vitória da Conquista


se enquadram como Capital Regional B, Mossoró e Caruaru como Capitais regionais de
Nível C.
Outro fator importante para a escolha das cidades selecionadas, diz respeito a
centralidade exercida por elas na oferta de serviços de saúde, onde essas cidades
desempenham uma ação de polarização regional pelo interior do Nordeste, conforme
podemos observar na imagem a seguir:

Figura 1 – Centralidade dos serviços de saúde na região Nordeste

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Fonte: IBGE, 2007

O estudo realizado pelo IBGE considerou duas dimensões: o nível de complexidade


do atendimento disponível em cada cidade e o tamanho do setor, avaliado pelo volume do
atendimento realizado. Os níveis de complexidade que variam de 1 a 6, leva em consideração
tipos de equipamentos e as especialidades informadas pelos estabelecimentos e números de
internações financiadas pelo Sistema Único de Saúde. Dessa forma, a cidade de Campina
Grande apresenta uma centralidade nível 3, e as cidades de Mossoró; Caruaru e Vitória da
Conquista apresentam nível 4 de Centralidade referentes a serviços de saúde.
O município de Campina Grande, localizado no interior do estado da Paraíba, na
região agreste sobre o Planalto da Borborema, possui, segundo estimativas de 2015, 405.072
habitantes e exerce grande influência econômica e política sobre outros 57 municípios do
Compartimento da Borborema, constituído de 5 microrregiões conhecidas como Agreste da
Borborema, Brejo Paraibano, Cariris Velhos, Seridó Paraibano e Curimataú. Possui o terceiro
maior Índice de Desenvolvimento Humano da Paraíba, 0,720, atrás apenas da capital do
estado, João Pessoa e do município de Cabedelo.
Caruaru é uma cidade localizada no interior Estado de Pernambuco, pertencendo à
Mesorregião do Agreste Pernambucano e à Microrregião do Ipojuca, conhecida também
como a ‘Princesa do Agreste’, ‘Capital do Agreste’ e a ‘Capital do Forró. De acordo com o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a população estimada no ano de 2015
é de 347.088 habitantes, sendo então o mais populoso do interior de pernambucano e com
extensão territorial de 920,611 Km². Segundo o IBGE em 2010, Caruaru apresentava o Índice
de Desenvolvimento Humano (IDH) 0,677 e com 108 estabelecimentos de Saúde SUS. Sua

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

economia é de grande maioria do seu produto interno bruto dos Serviços de acordo com o
IBGE.
Vitoria da Conquista está localizado no Estado da Bahia, de acordo com o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a população estimada no ano de 2014 e de
340.000 habitantes. Com base em dados emitidos pela prefeitura do município, observamos
uma 6ª colocação em níveis Econômicos comparados a outros municípios do Estado da
Bahia. Com destaques na área de prestação de serviços, comércio, saúde e construção civil
(este último, impulsionado pelo programa do Governo Federal, Minha casa, minha vida), nos
mostra a relevância que Vitória da conquista desempenha no Estado da Bahia. O município
apresenta cerca de 238 estabelecimentos do SUS. Com base em dados do IBGE referentes ao
ano de 2009, Vitória da Conquista apresenta cerca de 202 serviços de saúde pública e 102
privado. Em trabalho realizado por Medeiros Júnior. et el (2013) o município apresentava
um total de 38 equipes de Saúde da Família funcionando, mostrando um déficit de cobertura
no município. Com base em dados do Departamento de Atenção à Saúde do Ministério da
Saúde (DAB), no ano de 2015, o município apresenta um total de 41 Equipes, cobrindo cerca
de 44% da população, o que mostra ainda um déficit de cobertura.
Mossoró foi mais uma das cidades selecionadas para analise, uma vez que tem o
mesmo porte dos outros municípios estudados e assim como os outros é uma cidade de grande
importância econômica para o seu estado sendo a segunda maior cidade do Rio Grande do
Norte, inferior somente a Natal, capital do estado. De acordo com o IBGE, no senso realizado
em 2010, a cidade possui cerca de 259.815 habitantes e é um dos municípios do interior do
nordeste que mais cresceu na última década.
O município tem a base da sua economia no setor terciário, com o comercio e turismo,
assim como também no setor secundário, que é a base de vários complexos industriais e em
2013 foi o maior produtor de sal e petróleo em terra do pais, ganhando destaque nacional,
com uma média de 70 a 100 mil barris de petróleo por dia, segundo Francisco de Paula
Segundo subsecretário do Trabalho, Turismo, Indústria e Comércio do Município de
Mossoró. A cidade possui mais de 115 estabelecimentos de saúde, em sua maioria órgãos
privados e é referência regional nos tratamentos de saúde atendendo aproximadamente 49
cidades próximas.

4. RESULTADOS
O SIOPS é uma importante ferramenta para o gestor da saúde, uma vez que nele são
encontrados informações que podem subsidiar o gestor na sua tomada de decisão. Para esse
estudo foram analisados os números de leitos para cada 1000 habitantes, buscando
verificar se as cidades estudadas encontram-se em acordo com a portaria n.º 1101/GM de
2002, e ainda a divisão das despesas nos setores da saúde nos municípios. Os indicadores
de despesa média por habitante, que de acordo com a planilha de informações do SIOPS
representa a despesa total da saúde por habitante com a finalidade de dimensionar a despesa
media por habitante no município. E por último, foi analisado a utilização de recursos
próprios dos municípios em gastos com a Saúde, esse indicador surge a partir da emenda
constitucional número 29 (EC-29), no qual os municípios devem canalizar 15% dos recursos
próprios para a esfera da saúde. (MEDEIROS JÚNIOR. et al, 2013)

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Leitos de Internação/ 1000 habitantes


No que diz respeito ao número de leitos de internação, o Ministério da Saúde através
da Portaria n.º 1101/GM de 2002 recomenda de modo geral que exista uma média entre 2,5
a 3,0 leitos para cada 1000 habitantes em cada município.
De acordo com o gráfico 1, é possível verificar que as cidades em estudo se encontram
dentro da média recomendada na portaria.
Caruaru é a cidade que apresenta um menor índice de leitos com 2,4 habitantes, um
pouco inferior à média recomendada pelo Ministério da Saúde e de acordo com o Datasus é
a cidade que tem uma menor despesa com habitantes em um comparativo com as outras
cidades analisadas no artigo.
Mossoró e Vitoria da Conquista encontram-se dentro do recomendado estando com
3,8 e 3 leitos para cada mil habitantes, respectivamente. Uma das causas desse excesso, no
caso de Mossoró, se deve ao fato da cidade ser referência regional em saúde, assim, pacientes
de municípios circunvizinhos também dependem dos leitos disponíveis nessas cidades, o
mesmo fenômeno acontece em Campina Grande.
Campina Grande encontra-se no outro extremo, apresentando um índice de 6,7 leitos
por 1000/habitante. No entanto, é necessário destacar que, mesmo a cidade possuindo um
número de leitos superior ao recomendado, a gestão na saúde local ainda enfrenta problemas
quanto ao financiamento, posto que, de acordo com o SIOPS, a despesa média por habitante
no ano de 2015 foi de R$ 671,73, o que é um valor insuficiente para propor a população uma
política de saúde que atenda a demanda com qualidade, com o agravante que mais de 50%
das despesas com saúde é para assistência curativa.

Gráfico 1. Leitos de Internação/1000 Habitantes(2009)

Fonte: Elaborado a partir dos dados do SIOPS, 2016.

21
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Partição das despesas nos municípios


De acordo com a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), é o conjunto de ações
situados no primeiro nível de atenção dos sistemas de saúde, ou seja é o primeiro contato do
indivíduo com o SUS. Enquanto a assistência hospitalar e ambulatorial, é executado em
âmbito mais grave, onde o paciente precisa de cuidados médicos com mais atenção.

Gráfico 2 – Partição das despesas nos municípios (2015)

Fonte: Adaptado a partir de dados do SIOPS, 2016.

Analisando o gráfico é possível observar que Mossoró é a única cidade das analisadas
em que o orçamento das despesas com assistência básica é maior do que o com assistência
hospitalar e ambulatorial, que se encontra em sentido oposto ao das outras cidades, as quais
as despesas com assistência hospitalar e ambulatorial são relevantes.
O destaque maior se dá em Campina Grande e Caruaru, onde os gastos com
assistência hospitalar e ambulatorial sozinhos são responsáveis por mais de 50% das despesas
totais com saúde no município. Ficando claro que a gestão da saúde nesses municípios tem
ênfase na saúde curativa e não preventiva, e que o oposto poderia prevenir alguns dos
problemas da população.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Recursos próprios aplicados em saúde - EC 29

Ao analisar a garantia de aplicabilidade dos recursos próprios dos municípios


analisados para a saúde, podemos destacar alguns pontos importantes. Como a EC - 29 entrou
em vigor a partir do ano de 2000, é possível visualizar no gráfico 3 que neste ano, nenhum
dos municípios conseguiram cumprir com a meta estabelecida pela emenda, apenas no ano
de 2002 é que o município de Caruaru direciona cerca de 15,77% dos seus recursos para a
saúde.

Gráfico 3 - Aplicação de recursos próprios em saúde

Fonte: Adaptado a partir de dados do SIOPS, 2016.

Após Caruaru, o outro município que conseguiu aplicar o mínimo percentual foi
Mossoró com 15,29% no ano de 2004 e Vitória da Conquista com 16,11% respectivamente
no mesmo ano. O município de Campina Grande consegue apenas no ano de 2005 cumprir
com o mínimo constitucional de 15%, a partir de quando o não cumprimento da emenda
refletia na reprovação do exercício no Tribunal de Contas, como se pode observar em estudo
realizado anteriormente por Medeiros Júnior et al (2003). A partir do ano de 2015, todos os
municípios analisados conseguem cumprir com a EC - 29. Através da série histórica
apresentada no gráfico 3 é possível observar que o Município de Mossoró desde o ano de
2005 até o ano de 2015 vem apresentando um crescimento no repasse dos seus recursos para
a saúde, chegando ao seu ápice no ano de 2015 com um total de aplicabilidade de 32,73%
dos recursos. Caruaru também apresentou índices representativos em relação aos demais
municípios, onde em 2014 o município consegue investir um total de 26,33% dos recursos
próprios. Em seguida, Vitória da Conquista apresentou em 2014 um total de 24,74% dos
seus recursos alocados para a saúde, mas, ao analisar a série histórica, é possível observar
que o município vem aos poucos investindo em saúde. Por último, o Município de Campina
Grande apresentou em 2015 um total de 23,8% de canalização de recursos, os índices de
Campina Grande, mostram que o Município cumpri de forma pragmática com o mínimo

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

exigido pela EC 29, apenas nos anos de 2011 a 2015 é que este percentual vem crescendo.
Destaque especial para o ano de 2006 onde o município apresenta um total de 20,81%,
representando um crescimento significativo se comparado aos anos anteriores, no entanto,
este índice decai e só retoma um crescimento preponderante em 2011.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho surgiu com a proposta de se analisar comparativamente quatro
municípios localizados no interior da região Nordeste, são eles: Campina Grande – PB,
Vitória da Conquista – BA, Mossoró – RN e Caruaru – PE.
Pretendeu-se analisar, de forma descritiva, três indicadores de saúde e sua inter-
relacionalidade com os níveis de atenção à saúde ofertados pelos municípios estudados. Os
indicadores analisados foram: a) Leitos de internação por 1.000 habitantes e b) Participação
dos gastos da saúde nas despesas do município e c) Aplicação de Recursos próprios aplicados
em saúde. Como já comentado anteriormente, os municípios foram escolhidos por se tratarem
de cidades do interior mas que caracterizam-se como municípios que apresentam uma
significativa rede de influência no interior da Região Nordeste. Tendo esta definição e
seguindo o acordado pelo Pacto pela Gestão do SUS, essas cidades tendem a acolher
pacientes de toda a região de influência o que justificaria, como no caso de Campina Grande,
um índice elevado de gastos com saúde em comparação com a população municipal. Quanto
à participação dos gastos com saúde nas despesas do município, o mesmo fenômeno pode
explicar o que ocorre nas quatro cidades estudadas. No que diz respeito ao cumprimento da
EC-29, é possível observar o destaque para o município de Mossoró, que em relação aos
demais municípios estudados, este apresenta uma crescente e considerável aplicação de
recursos, sendo seguido pelo município de Caruaru. Nesse indicador em específico, vale
salientar a participação tímida dos municípios de Vitória da Conquista e Campina Grande,
em especial este último, devido ao seu cumprimento pouco significativo desde o ano de 2000.
De forma geral, através de uma perspectiva crítica, a Administração enquanto Ciência
da Gestão, pode fazer uso por exemplo, dos indicadores aqui analisados para maximizar a
eficiência de políticas públicas, e estar de acordo com uma melhor estratégia que possa
satisfazer as demandas da sociedade em torno da esfera da saúde. Porém, só tendo uma visão
holística das partes que compõem a saúde, é que esta Ciência poderá contribuir de forma
mais efetiva para a resolução de gargalos e entraves que circundam os problemas
relacionados a gestão da saúde. Sem isso, a Administração estará fadada aos aparatos técnicos
e gerenciais, e intra-organizacionais, não que isso seja irrelevante, mas, a Administração pode
contribuir de forma mais significativa com o desenvolvimento de uma sociedade mais justa,
e em especial com a saúde, operacionalizando uma gestão que faça da saúde uma instância
de maior atenção por parte dos gestores.

6. REFERÊNCIAS
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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Incorporação de discursos no processo de planejamento da cidade: um


olhar sobre a elaboração do Plano Diretor Participativo do Município de
Santana-Amapá-Brasil

Alexandre Gomes Galindo


Universidade Federal do Amapá (UNIFAP)

Resumo

Este estudo tem o propósito de realizar uma análise sobre a dinâmica de construção participativa da cidade
baseada nas relações entre as dimensões discursivas envolvidas nos processos de planejamento no Estado do
Amapá, em especial, na elaboração do Plano Diretor do Município de Santana realizado nos anos de 2005 e
2006. O presente estudo se ancorou na perspectiva metodológica da observação participante focalizada no olhar
sobre a intensidade de envolvimento entre agentes sociais que integraram os diversos loci de referência e de
construção discursiva durante as várias etapas deste projeto. Ao mesmo tempo em que houve significativas
incorporações, houve também significativas desconsiderações de anseios e manifestações expressas durante os
eventos e ações promovidas pelo governo municipal, denotando a existência do risco de várias questões, que
foram consideradas por diversos atores sociais como críticas para o desenvolvimento local, se tornarem
“invisíveis” no transcorrer da gestão pública do município. Sobre este aspecto, o estudo aponta para o fato de
que simples estabelecimento de diálogos com atores sociais como estratégia de participação no desenvolvimento
de políticas apresenta limites, sendo necessário o estabelecimento de vias alternativas que garantam, nos
processos de planejamento e gestão da cidade, a integridade, o reconhecimento e a incorporação dos discursos
legítimos que surgem durante estes diálogos.
Palavras-chave: Participação Social, Política Urbana, Sociologia Urbana, Plano Diretor.

The incorporation of speeches in the process of planning of the city: a look on the
Master Plan Participatory in the Municipality of Santana-Amapá-Brazil

Abstract

This study has the purpose to realise a analysis on the dynamics of participatory construction of the city based in
the relations between the dimensions the discursive wrapped in the processes of planning In the State of the
Amapá, especially, in the preparation of the Master Plan of the Municipality of Santana realised the years of
2005 and 2006. The present study anchored in the methodological perspective of the observation participant
focused in the look on the intensity of implication between social agents that integrated the diverse loci of
reference and of construction discursive during the varied stages of this project. Also it can be registered that to
the time that there was significant incorporations, there was also significant slights of longings and
demonstrations express during the event and actions promoted by the municipal government, denoting the
existence of the risk of several questions that were considered by diverse social actors like criticisms for the local
development, if they did “invisible” in the pass of the public gestion of the municipality. On this appearance, the
study aims for the fact that the simple establishment of dialogues with social actors like strategy of participation
in the development of politics presents limits, being necessary the establishment of alternative roads that
guarantee, in the processes of planning and gestion of the city, the integrity, the recognition and the
incorporation of the legitimate speeches that arise during these dialogues.
Keywords: Social Participation, Urban Policy, Urban Sociology, Master Plan.

1- Considerações Iniciais

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

O estabelecimento de marcos regulatórios, que exigem o envolvimento social no


encaminhamento dos projetos na área da gestão pública, mesmo sendo considerado um
avanço, traz em si desafios no que diz respeito à forma como as experiências participativas
são realizadas nos mais diversos níveis, áreas setoriais ou etapas de desenvolvimento das
políticas públicas. Neste sentido, a incorporação dos anseios, discursos, demandas e
proposituras daqueles que ocupam a cidade nas dinâmicas da gestão, é um exemplo de desafio
que deve tanto ser analisado por pesquisadores, quanto enfrentado por aqueles que atuam
como representantes do aparelho de Estado.
Este breve ensaio navega sobre a dinâmica de construção participativa da cidade
baseada nas relações entre as dimensões discursivas envolvidas nos processos de
planejamento no Estado do Amapá, em especial, na implementação do projeto de elaboração
do Plano Diretor do Município de Santana realizado nos anos de 2005 e 2006. As reflexões
que se apresentam têm como referência principal a análise sobre a natureza dos discursos na
produção do espaço urbano, na medida em que os mesmos são carregados de pressupostos
incorporados implicitamente nas palavras e expressões utilizadas pelos diversos grupos e
indivíduos. Desta forma, o presente estudo se ancorou na perspectiva metodológica da
observação participante focalizada no olhar sobre a intensidade de envolvimento entre agentes
sociais que integraram os diversos loci de referência e de construção discursiva durante as
várias etapas deste projeto.
Primeiramente, perpassaremos por uma imersão envolvendo as reflexões teórico-
metodológicas de Souza (2011) sobre a relação entre discursos e práticas nas delimitações e
usos da cidade. Logo após serão apresentados os processos envolvidos na execução do projeto
de elaboração participativa do Plano Diretor do Município de Santana, Estado do Amapá, que
culminou na promulgação da Lei Municipal Complementar 002/2006. Por fim, serão
levantados elementos que apontam para um processo de diluição do discurso dos sujeitos que
ocupam espaços e integram as dinâmicas da cidade em detrimento dos discursos daqueles que
implementaram a execução do projeto participativo e formalizam a elaboração do
planejamento na estrutura administrativa do poder público.

2- A cidade, a palavra e o poder na implementação de projetos de planejamento e gestão


urbana: um convite teórico-metodológico de Marcelo Lopes de Souza sobre práticas,
imaginários e discursos heterônomos e autônomos na produção do espaço urbano

Marcelo Lopes de Souza é Doutor e docente da Universidade Federal do Rio de


Janeiro, atua como pesquisador que desenvolve estudos vinculados às cidades brasileiras
sobre a perspectiva do desenvolvimento sócio-espacial, da teoria urbana e do planejamento
urbano, bem como reflexões sobre movimentos sociais, participação popular e espaço. Dentre
os vários trabalhos publicados, destacamos sua contribuição no Livro “A Produção do Espaço
Urbano: agentes e processos, escalas e desafios” (CARLOS; SOUZA; SPOLITO, 2011) como
apoio para análise dos processos participativos de planejamento urbano no Amapá,
especificamente da execução do projeto de elaboração do Plano Diretor do Município de
Santana, realizada durante os anos de 2005 e 2006.
A escolha deste texto se justifica por sua intencionalidade explícita em servir de
elemento provocador para novas abordagens investigativas sobre as cidades, tanto no que se
refere à perspectiva teórica, quanto metodológica, na medida em que se propõem penetrar nos
significados sociopolíticos dos termos e expressões usadas pelos vários agentes envolvidos
nos processos de elaboração e implantação dos projetos participativos de planejamento

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

urbano. No intuito de superar a abordagem estadocentrista na pesquisa sobre planejamento, o


autor afirma categoricamente que:

O presente texto é, no estilo e no conteúdo, uma mistura de ensaio com agenda de


pesquisas. [...] Concomitantemente, com ele anuncio a minha intenção de me
dedicar, sistematicamente, a um tipo de investigação que há muito tempo aprecio e
reputo como necessário, embora a isso não me tenha devotado até agora de modo
sistemático: consiste no estudo de representações sócio-espaciais com a ajuda da
análise de discurso. Além do mais, como em toda agenda de pesquisas, no fundo,
trata-se de, explicitamente, convidar outros para que compartilhem comigo esse
interesse e essa jornada. (SOUZA, 2011, p.150).

Evitando encerrar longa e profunda discussão sobre as abordagens teóricas


relacionadas com o conceito de poder, o texto inicia alertando que, ao fazerem uso das
palavras, os indivíduos e grupos exercem poder fundamentado em significados sociopolíticos
diferentes, e até antagônicos, dos diversos termos usados no quotidiano e que, muitas das
vezes, são considerados como técnicos, sendo utilizados como ferramentas neutras de
planejamento. Entretanto, na medida em que “a neutralidade axiológica nas ciências sociais é
uma pretensão impossível ou absurda, jamais se pensa em tomar as palavras por ferramentas
neutras” (SOUZA, 2011, p. 147).
Desta forma, a reflexão mais profunda sobre o uso das palavras utilizadas pelos
discursos envolvidos nas intervenções vinculadas ao espaço na cidade, é apresentada como
opção factível para superar a predominância do tradicional e limitante enfoque da “visão de
sobrevoo” utilizada pelos especialistas que normalmente integram a perspectiva típica do
aparelho de Estado nos processos de planejamento “[...] sem adrentar as suas casas, sem
mergulhar em seu quotidiano, sem sentir os odores da pobreza, sem ouvir os sons do
desespero ou os gritos de libertação [...]” (SOUZA, 2011, p.148).
Esta abordagem busca destacar os produtores efetivos do espaço como elementos
ativos que devem ser também considerados em seus discursos e nos significados de suas
palavras. O desafio que se aponta diz respeito à dificuldade dos planejadores profissionais
agirem como se não tomassem conhecimento do fato de que, além da organização espacial, as
relações e práticas sociais exigem que se leve em conta com “muito mais profundidade os
homens e mulheres concretos, suas expectativas, seus valores, seus temores. E, claro, suas
palavras.” (SOUZA, 2011, p. 149). Nesse sentido, o diálogo efetivo (não apenas decorativo)
entre os diversos atores sociais, incluindo o próprio Estado, surge como fator imprescindível
para superar invisibilidades existentes frente a uma abordagem de planejamento que se
apresenta como predominantemente estadocentrista.
Sobre este aspecto, vale destacar que na perspectiva apresentada no texto, longe de
ignorar suas prerrogativas legais e privilégios que dispõem, o Estado é entendido como
instancia crucial dos processos de elaboração e execução dos projetos de planejamento e de
gestão das cidades, e os movimentos sociais vistos, não só como capazes de reagir através de
denuncia e protesto, mas também, capazes de agir proativamente, concebendo projetos
alternativos/contraprojetos e contraplanos (SOUZA, 2011, p.149-150). De fato, os sujeitos
que integram os focos de estudo em Ciências Sociais Aplicadas, diferentemente do “objeto”
das ciências naturais, é ativo e crítico, mudando e fazendo mudar constantemente a realidade,
independentemente do observador. É por isso que:

As denominações propostas pelos planejadores estatais, expressão de um saber


acadêmico geralmente acrítico e diretamente a serviço da administração dos espaços,
tempos e relações sociais, muitas vezes atrita com denominações utilizadas pelos

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

próprios sujeitos que habitam e utilizam os espaços que são alvo das intervenções do
Estado, denominações essas embebidas em saberes não acadêmicos (senso comum,
“saber local”) e referentes ao “mundo da vida” dos agentes. (SOUZA, 2011, p. 151).

Outro ponto levantado, diz respeito ao fato de que o planejamento urbano


profissional na contemporaneidade não tem-se limitado apenas a “visões de sobrevôo”,
havendo também incorporado, desde os anos 1990, esforços teóricos/metodológicos
ancorados na preocupação com a análise de discurso e mecanismos de comunicação entre os
atores sociais. E são neste contexto que as noções de planejamento colaborativo ou
comunicativo surgem como abordagem participativa de gestão das cidades, redirecionando o
entendimento do planejamento como “técnica” para planejamento como “discurso” resultante
da mediação entre os diversos grupos de interesse e/ou seus representantes. (SOUZA, 2011,
p.153). Entretanto, frente à assimetria de poder que impede um agir comunicativo pleno entre
um Estado planejador dominante e os diversos outros segmentos da sociedade, verifica-se a
existência do predomínio de paradigmas tradicionais ainda presentes nas várias propostas de
projetos com metodologias participativas implementadas. De certa maneira,
Por conseguinte, alguns elementos ideológicos presentes nas abordagens de
planejamento mais convencionais e claramente tecnocráticas não deixam de estar
presentes também em uma perspectiva como o “collaborative planning”: ausência
de questionamento radical do status quo sócio-espacial, “estadocentrismo” (ainda
que mitigado) e, de algum modo, a persistência de uma predominância da “visão de
sobrevôo”. (SOUZA, 2011, p.154).

Assumindo a dimensão heterônoma do planejamento da cidade (dimensão que se


característica pela perpetuação de desigualdades e dominações em qualquer uma de suas
manifestações), o texto destaca a existência de duas categorias de locais de produção
discursiva nos processos de planejamento urbano (os “loci de referência discursiva” e os “loci
de construção discursiva”). No que se refere a estes locais produtores de discurso,

Ainda que os “loci de referência discursiva” (ou seja, as instituições ou sujeitos


coletivos-bem como seus espaços-que se convertem em objeto de conhecimento) do
planejamento urbano profissional incluam, como elementos da totalidade sócio-
espacial concreta, os oprimidos e seus espaços de vida e trabalho, os “loci de
construção discursiva” dos planejadores profissionais (e também da maioria dos
estudiosos do urbano em geral), isto é, os ambientes a partir dos quais seus discursos
são elaborados, tem sido predominantemente, a administração estatal, as
universidades e as firmas privadas de consultoria. [...] Enquanto os “loci de
construção discursiva” do planejamento urbano profissional são, via de regra, as
instituições do aparelho de Estado e o mercado capitalista, os “loci de referência
discursiva” do discurso popular são os próprios “mundos da vida” [...]. (SOUZA,
2011, p. 154-155).

Sobre esta perspectiva, tanto o persquisador, quanto o planejador são remetidos à


necessidade de atuarem através de uma postura ética e política coerente, na medida em que o
diálogo aberto e próximo dos “mundos da vida” aparece como instrumento mais adequado
para evitar o predomínio dos reducionismos oriundos de rigor técnico-acadêmico e do “olhar
de sobrevoo”, através de uma busca constante para compreender os significados impressos
pela realidade social, de tal forma que invisibilidades e estigmas sejam adequadamente
assumidos e enfrentados. (SOUZA, 2011, p. 154-159).
Ao apontar para uma agenda de pesquisas se destacam as representações sócio-
espaciais como categoria de análise plausível nos estudos da produção do espaço urbano, na
medida em que “são um campo de disputa simbólica, e as ‘significações imaginárias sociais’
que, tão amiúde, nelas se acham reificadas ou diluídas, são, simultaneamente, também ‘armas’

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

simbólico-discursivas dessas contendas.” (SOUZA, 2011, p. 160). Desta forma, o


“nanoterritório” (representando a escala das casas, oficinas, ruas, praças, pessoas amontoadas
em viadutos, espaços de trabalhos das prostitutas, celas e espaços em presídios, dentre outros)
surge como elemento demarcador para o diálogo com os “mundos da vida”. Entretanto, tanto
o pesquisador, e em extensão o planejador, devem estar atentos sobre o fato de que:

“olhar de longe” não é, necessariamente, algo censurável de um ângulo ético-


político e, muito menos, científico-metodológico. [...] a solução consiste em saber
combinar as escalas (refiro-me, aqui, tanto a escalas de análise quanto a escalas de
ação), de tal maneira que não se precise, por constrangimento epistemológico ou
metodológico, e muito menos por indução ideológica, abdicar de nenhuma delas.
[...] É assim, antes integrando que descartando a priori qualquer nível, sabendo
combinar o “olhar de perto” (aquele que exige “estar dentro”, que implica ser um
insider ou qualquer insider) com o “olhar de longe” (aquele que permite e mesmo
exige “colocar-se de fora” e à distancia), que o “olhar de longe” não precisará ser
visto como uma “visão de sobrevôo” arrogante, verdadeiro antípoda ético-político
do “olhar de perto/de dentro. (SOUZA, 2011, p. 161)

Ainda sobre a perspectiva metodológica, são sugeridas (SOUZA, 2011, p. 162-163),


atividades específicas para pesquisadores interessados no estudo das práticas espaciais em sua
ambiência quotidiana, em especial a valorização do trabalho de campo intensivo em
nanoterritórios (preferencialmente através de pesquisa participante ou pesquisa-ação); a
familiarização crítica do contexto através do estudo das representações sócio-espaciais;
discussões teóricas e aplicação de procedimentos de análise de discurso.
Nos aspectos conclusivos do texto, são levantados dois pontos essenciais que
também devem ser levados em conta na analise dos processos de planejamento participativo.
O primeiro diz respeito à atenção que se deve ter frente aos momentos de construção
discursiva do planejamento (na medida em que “‘Dizer as últimas palavras’ ou ‘ter a palavra
final’ significa em várias línguas, decidir”) e o segundo diz respeito à atenção que também se
deve ter “para as palavras em si, e não somente para a decisão explícita que encerram”, visto
que, muito já são elas carregadas de poder, significado e implicações. (SOUZA, 2011, p. 163).
As abordagens propostas se apresentam como rotas efetivas de estudo dos fenômenos
sociais, resultantes de uma trajetória de reflexões já percorrida pelo autor e vinculada às
dinâmicas de elaboração dos projetos de planejamento e uso dos espaços da cidade (SOUZA,
2006; 2007), sugerindo ao pesquisador, ao planejador e aos diversos outros atores sociais
desenvolverem práticas emancipatórias que incorporem a integração entre discursos
acadêmico-científico, técnico com o senso comum.

3- Aspectos metodológicos e participação social do Projeto de elaboração do Plano


Diretor do Município de Santana, Estado do Amapá

O Município de Santana, instituído em 1987, localiza-se às margens da Foz do Rio


Amazonas, possuindo vocação portuária (inicialmente fomentada para escoamento de
produção extrativista mineral) e comercial (na medida em que integra a Área de Livre
Comércio de Macapá e Santana-ALCMS)[1], com 28,6% de seu território destinado a uma
zona, de uso ainda incipiente, com o propósito de abrigar o Parque Industrial do Amapá
(TOSTES, 2006). Com uma área territorial de 1.579,608 Km2, Santana corresponde ao
segundo município mais populoso do Amapá, com 108.897 habitantes estimados em 2013,
sendo também o município com o segundo maior PIB do Estado (IBGE, 2014).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Figura 1- Mapa da Cidade de Santana-Amapá-Brasil

Fonte: Brito, 2013.

Desde sua criação, Santana tem incorporado em seu desenvolvimento territorial


processos de planejamento urbano promovidos pelo Estado através de mecanismos formais
alinhados com os marcos regulatórios direcionadores da política urbana nas cidades
brasileiras (BRASIL, 1988; 2001), dentre eles a elaboração de Planos Diretores.
Na qualidade de município, nas décadas de 1990 e 2000, Santana vivenciou dois
processos distintos de elaboração de Plano Diretores, sobre a perspectiva da participação. O
primeiro, elaborado em parceria com a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia-
SUDAM[2], é aprovado em 1995, sendo:
Um documento tecnicamente muito bem constituído, tendo um amplo diagnóstico
do Município de Santana, porém o plano não é colocado em prática porque o mesmo
não é do conhecimento da sociedade que não sabe a serventia deste instrumento
público. (TOSTES, 2006, p. 107).

Entretanto, sobre marcante influência normativa do Estatuto das Cidades (BRASIL,


2001), o projeto de elaboração do Plano Diretor vigente, desenvolvido entre os anos de 2005 e
2006, incorporou forte viés participativo com o propósito de catalisar as contribuições dos
diversos atores sociais que integram as dinâmicas locais de uso dos espaços no município.
Inclusive, este viés participativo de planejamento permaneceu incorporado na proposta,
apresentada em 2011, para sua revisão (GALINDO, 2012).
Não muito diferente do contexto atual, Santana possuía no período da elaboração do
Plano Diretor, segundo estudos de Ramos (2006), uma população predominantemente jovem
e urbana, caracterizada pela pobreza e baixa escolaridade, onde e aproximadamente 80% da
população economicamente ativa obinha rendimentos médios mensais de até dois salários
mínimos e o setor terciário (comércio e serviços) possuíam a maior expressão frente às
ocupações desenvolvidas. No que se refere à saúde, saneamento básico e transporte, o referido
autor indica também que: 1) a oferta de serviços de saúde para a população era precária (com
significativo déficit de leitos e profissionais); 2) aproximadamente 42% dos domicílios

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

urbanos não eram providos permanentemente de uma rede de abastecimento de água tratada;
3) mais de 95% dos domicílios existentes na área urbana não possuíam banheiro ligado à rede
geral de esgoto; 4) aproximadamente 18% dos domicílios urbanos e 70% dos domicílios
rurais não eram atendidos pelos serviços de coleta de lixo e 5) o sistema de transporte não
atendia com eficiência as demandas dos moradores.
Com a posse de uma nova equipe de governo municipal, e frente à obrigatoriedade
constitucional, em 2005 foram tomadas iniciativas para instaurar uma equipe de trabalho
composta por técnicos da prefeitura para realizar e gerenciar o processo de elaboração do
Plano Diretor (REVISTA DO PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO, 2005, p. 7-28; 2007, p.
7-16). Este processo foi desenvolvido em um projeto de quatro etapas durante os anos de
2005 e 2006 assim distribuídas: 1ª Etapa- criação de uma Gerência de Projetos e de um Grupo
inicial de Trabalho para Plano Diretor compostas por técnicos da Prefeitura; 2ª Etapa-
mobilização e formação de gestores e técnicos da prefeitura e de lideranças da sociedade civil
para participarem do processo; 3ª Etapa- realização de amplo diagnóstico municipal
(denominado de Leitura da Cidade) e 4ª Etapa- Sistematização/elaboração do projeto de Lei
do Plano Diretor e sua submissão à Câmara Municipal para avaliação, ajustes e aprovação
final.

Figura 2- Processo de Elaboração do Plano Diretor do Município de Santana.

Fonte: Santana, 2007.

A sistemática adotada incorporou o estabelecimento de diversos canais de


participação envolvendo momentos de sensibilizações, capacitações, sistematizações,
pesquisas, consultas e deliberações nitidamente demarcados e a etapa de diagnóstico
municipal englobou um conjunto de estratégias que visaram congregar perspectivas
denominadas de “técnicas” e “comunitárias” em um mosaico capaz de servir de referência
para “olhares” diversos do município (SANTANA, 2006, p. 7-14).
Na perspectiva “técnica”, os seguintes elementos integraram esta leitura: 1) dados e
mapas oriundos do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado do Município-SUDAM
(1991-1995); 2) dados e mapas existentes e sistematizados no banco de informações do
IBGE[3]; 3) dados e mapas existentes e sistematizados pelas Instituições Estaduais de Pesquisa

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

e Meio Ambiente; 4) legislação relacionada com o planejamento urbano do município (Lei


Orgânica e Leis Complementares); 5) pesquisa de sondagem realizada entre as Secretarias
Municipais da Prefeitura; 6) artigos técnicos publicados sobre pontos críticos do planejamento
e da gestão púbica e urbana; 7) Pesquisas de Levantamento de Dados da Gerencia de Projetos
da Prefeitura Municipal (Levantamentos Bibliográficos diversos, Coletas de Dados in loco,
confecção de mapas, dentre outros) e 8) Catalogação dos registros sobre planejamento e
gestão pública geral e de Santana (Registros Históricos e fotográficos, documentários
técnicos, livros, artigos etc).

Figura 3- Perspectiva “técnica” da Leitura da cidade

Fonte: Santana, 2006.

A perspectiva “comunitária” englobou as seguintes contribuições sob a ótica das


potencialidades, problemas e conflitos, com a pretensão de apresentar elementos do contexto,
de tal forma que subsidiassem o aparecimento de diversas interpretações e “olhares” sobre o
município: 1) manifestações (perguntas e sugestões) registradas nos debates do I Seminário de
Capacitação do PDP, ocorrido entre 25 a 27 de julho de 2005; 2) propostas da Sociedade
advindas do Processo de Elaboração do Orçamento Participativo de Santana para o ano de
2006; 3) proposições oriundas da 2ª Conferência da Cidade de Santana, realizada em 06 de
agosto de 2005; 4) resultado da pesquisa de sondagem nas Regiões Políticas Administrativas
de Santana (RPAs), realizada no período de setembro a dezembro de 2005, através de
questionários de caráter diagnóstico, sobre vários temas relacionados com a gestão e
desenvolvimento do município; 5) resultado de três expedições (Caravana do PDP) para
registro do contexto municipal, realizadas em novembro e dezembro de 2005; 6) resultado do
Festival de vídeo “Curta Santana Num Minuto” realizado em novembro de 2005, com a
premiação dos 18 melhores curta metragens amadoras de um minuto, produzidos pelos
próprios cidadãos, retratando “olhares” sobre o município; 7) manifestações (perguntas e
sugestões) registradas nos debates do III Seminário de Capacitação do PDP, ocorrido em 22
de dezembro de 2005; 8) Obtenção de fotos históricas cedidas pelos moradores do município
e 9) relatos/registros sobre a origem, desenvolvimento e gestão do município, obtidos durante
encontros entre membros do governo municipal e membros da sociedade.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Figura 4- Perspectiva “comunitária” da Leitura da cidade

Fonte: Santana, 2006.

Durante este período do projeto, houve o envolvimento de servidores municipais,


técnicos contratados/voluntários, representantes de instituições públicas estaduais e federais,
representantes de órgãos financiadores, instituições públicas e privadas de ensino superior,
representantes de diversos setores da sociedade organizadas (associação de moradores,
delegados eleitos pelas comunidades, empresas e membros da sociedade interessados em
participar das ações) e, por fim, pela Câmara de Vereadores.
O envolvimento destes segmentos, mesmo representando um marco no processo
colaborativo do planejamento urbano municipal, se caracterizou por assimetrias de poder
influenciadas pela: 1) Condução burocrática e tecnocrática característica do planejamento
público; 2) utilização de um novo arcabouço terminológico característico do planejamento
urbano que não era dominado por todos os participantes e 3) natureza dos encontros entre os
diversos stakeholders envolvidos (encontros de sensibilização, consulta, deliberação,
sistematização, etc.) que direcionava a concentração de poder para determinados indivíduos
e/ou grupos conforme as atividades que eram desenvolvidas em cada momento.
Outrora a existência de nítidas carências reveladas, Freitas (2010) destaca também
para o fato de que, mesmo ocorrendo à participação popular com intensidades diferentes ao
longo do processo (sendo perceptível a diminuição participativa nas etapas finais do projeto
de elaboração do Plano Diretor de Santana), a abertura de canais de diálogo permitiu uma
interação significativa entre técnicos, gestores e sociedade civil, possibilitando a incorporação
de percepções e demandas locais, hora “invisíveis”, no planejamento urbano do município.

Os discursos de referência e de construção vinculados ao Projeto de elaboração do Plano


Diretor do Município de Santana: entre “diálogos” e “monólogos”

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

No Brasil, após a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001, os profissionais e


pesquisadores viram-se mais intensamente envolvidos com o fenômeno da participação social
nos processos de planejamento e gestão do uso dos espaços urbanos, na medida em que este
marco regulatório impunha a obrigatoriedade da abertura de mecanismos de comunicação
direta com a sociedade nas metodologias implementadas para elaboração dos planos de
gestão. O Município de Santana, no Estado do Amapá, não ficou isento deste fenômeno,
sendo visível a incorporação gradual de metodologias participativas nos projetos de
construção das peças de planejamento público como, por exemplo, no Plano Diretor
Municipal, Plano Municipal de Habitação de Interesse Social, Plano Municipal de
Saneamento Básico, dentre outros.
Mesmo havendo incorporações de demandas sociais, antes “invisíveis”, na
formatação dos planos aprovados pelo poder público (fato esse que já pode ser considerado
como avanço operativo), ressalta-se que o estabelecimento de “territorialidades de referência”
para a participação popular em vários casos não se tornou plenamente efetivo, em função das
assimetrias de poder existentes entre os agentes sociais envolvidos nos diversos momentos de
elaboração do planejamento (incluindo as instituições do aparelho de Estado). Desta forma, a
intencionalidade e efetividade participativas, institucionalmente divulgadas pelo poder
público sobre a construção do Plano Diretor de Santana, por mais que indiquem um marco
histórico de mudança paradigmática, nem sempre se apresentaram capazes de representar uma
realidade de pleno processo.
O esforço deste estudo em refletir sobre as dinâmicas de planejamento do Município
de Santana, baseadas nas relações entre atores envolvidos nos processos participativos
desenvolvidos pelo projeto de elaboração do Plano Diretor, se ancorou na perspectiva
metodológica da observação participante focalizada no olhar sobre a intensidade de
envolvimento entre agentes sociais que integraram os diversos loci de referência e de
construção discursiva durante as várias etapas do processo, desenvolvidas nos anos de 2005 e
2006.
O desafio de distanciamento necessário ao atual estudo esteve presente nos
procedimentos de análise, na medida em que este olhar partiu de agente integrante da esfera
institucional representativa do aparelho de Estado (responsável pela sistematização do
planejamento municipal), sendo continuamente enfrentado através de atitudes de
estranhamento sobre a efetividade das tentativas de incorporação das demandas sociais
durante a realização das estratégias participativas e das sistematizações que formalizaram o
processo de elaboração do Plano Diretor.
A postura de estranhamento se associa a algumas questões norteadoras tais como: De
onde surgiram os discursos incorporados no processo de elaboração do Plano Diretor do
Município de Santana? Quais atores ocuparam os loci de referência e de construção discursiva
em cada etapa deste processo? Em que grau as arenas de diálogo, utilizadas como meio de
compreensão e mediação de significados, foram efetivas ou decorativas? Até onde os
“diálogos” e “monólogos” se distinguem? Em que medida há diluições discursivas entre as
“primeiras palavras ditas” e as “últimas palavras ditas” no processo de elaboração do Plano
Diretor?
Nos quadros analíticos gerados pelo presente estudo, a ambiência institucional
sistematizadora do Plano Diretor, compreendida como um “contexto vivido” assume escala de
nanoterritório, caracterizado, e em grande parte demarcado, pela atuação da Gerência de
Projetos da Prefeitura Municipal de Santana como lócus central, dinamizador, indutor e
convergente de processos, espaços, diálogos, discursos, conflitos e deliberações, ressalvando-
se o papel da Câmara de Vereadores do Município como lócus de deliberação final.
A primeira etapa do projeto de elaboração do Plano Diretor de Santana (caracterizada
pela criação da Gerência de Projetos e do Grupo inicial de Trabalho) teve sua ambiência

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

claramente demarcada durante os primeiros seis meses de 2005 através da coordenação


exclusiva de instituições do aparelho de Estado, representadas por atores do governo federal
(Ministério das Cidades e Caixa Econômica Federal) e do governo municipal, que ocuparam
respectivamente os loci de referência e de construção discursivas neste período.
O alinhamento de discursos institucionais se fez perceber através da associação entre
os interesses relacionados com a efetivação de uma política nacional de desenvolvimento
urbano (fundamentada no preceito da participação social, proveniente das instâncias federais)
e os interesses vinculados com a implantação de uma gestão democrática (declaradamente
proposta pela nova equipe de governo municipal) baseada na realização de experiências
anteriores vinculadas com abertura de canais de comunicação direta com a sociedade, tendo
como exemplo a Emenda Participativa e o Orçamento Participativo.
Entretanto, as arenas de diálogos, que nesta etapa, foram abertas, preenchidas e
dinamizadas apenas por atores integrantes do aparelho de Estado, não ficaram isentas de
disputas e conflitos, na medida em que a predominância dos elementos regulatórios e
direcionadores do governo federal se impuseram como um discurso heterônimo, frente às
várias proposituras locais, em especial as relacionadas com financiamento, prazos e alguns
procedimentos metodológicos.
Na segunda etapa do projeto de elaboração do Plano Diretor (mobilização e
formação de gestores, técnicos e lideranças), ocorreram várias ações com o propósito de
agrupar e qualificar o maior número possível de pessoas para atuarem localmente. Nesta
etapa, realizada entre julho e dezembro de 2005, a ambiência se caracterizou pela abertura de
diversas arenas de diálogo por parte do poder público municipal, com a participação de atores
representativos da sociedade civil.
Além de espaço disponibilizado para sociedade nas instalações da Gerência de
Projetos (para orientações e estudos contínuos), foram realizados três seminários de
capacitação técnica (nos meses de julho e dezembro de 2005); apresentadas palestras sobre o
Plano Diretor para 500 delegados do Orçamento Participativo (realizado em agosto de 2005) e
realizada uma oficina regional de multiplicadores em Plano Diretor Participativo (em outubro
de 2005). Neste contexto, torna-se visível a participação de agentes representativos de
segmentos da sociedade local como Universidade Federal do Amapá-UNIFAP, Instituto de
Pesquisa do Amapá-IEPA, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE/AP,
representantes de Associações de Bairros, dentre outros.
Entretanto, da mesma forma que na primeira etapa, a ocupação dos loci de referência
e de construção discursiva, se deu predominantemente por atores representativos do poder
público (Prefeitura Municipal), com abordagens discursivas heterônomas que apontavam para
a consolidação de redes de lideranças locais voltadas para a ampliação da capilaridade de
gestão e da condução técnica-metodológica das atividades de elaboração do Plano Diretor
conforme as normativas emanadas pelo Estatuto da Cidade.
Na terceira etapa do projeto de elaboração do Plano Diretor (denominada de
Diagnose Municipal ou Leitura da Cidade) foram executadas ações voltadas para obtenção de
informações da realidade municipal advindas de diversos segmentos da sociedade durante os
meses de julho de 2005 a junho de 2006. Diversos atores sociais interagiram através das mais
variadas arenas e formas de diálogo, sendo gerado um panorama ampliado da realidade
municipal, na medida em que foram descortinados elementos que seriam dificilmente
identificados pelas abordagens tradicionais de planejamento.
Sobre este aspecto, a experiência santanense, neste período, pode ser considerada
como marco de transição entre formas de elaboração do planejamento urbano no município
pela incorporação de estratégias institucionais de acolhimento das percepções da realidade
local em diversas escalas e formatos, proporcionando aglutinações entre olhares “de longe” e
“de perto”, permitindo que “visões de sobrevôo” e “olhares” daqueles que integram “os

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

mundos da vida” fossem compartilhados nas ambiências de planejamento e pudessem servir


de fundamentação para combinações e/ou mesclagens de perspectivas.
Sete iniciativas de abertura de canais de comunicação com a sociedade se destacaram
entre as quinze estratégias utilizadas para realização das leituras “técnica” e “comunitária” de
diagnóstico municipal. Uma delas foi à utilização de 22 artigos técnicos e científicos
submetidos e publicados em duas Revistas do Plano Diretor, escritos por profissionais de
várias áreas (engenharia, arquitetura, administração, sociologia, turismo, educação física,
geografia, história, química, geologia e biologia), sobre diversos temas relacionados com o
município, como perfil sócio-econômico e político municipal; gestão pública e o Plano
Diretor; desenvolvimento urbano; patrimônio histórico-cultural; esporte e lazer; habitação;
circulação viária e transporte; saneamento; regulação fundiária; uso e ocupação do solo,
dentre outros.
Também foram utilizados os resultados do Iº Seminário de Capacitação Interna do
Plano Diretor, realizado em julho de 2005, que teve a participação de representantes da
prefeitura municipal, Instituto de Pesquisa do Amapá-IEPA, Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística-IBGE, Universidade Federal do Amapá-UNIFAP, Tribunal de Contas da União e
de alguns representantes de bairros. Neste Seminário foram transcritos os dezesseis
questionamentos feitos para os técnicos envolvidos na condução do processo e oito sugestões
advindas dos participantes do evento.
A terceira estratégia utilizada diz respeito ao uso dos resultados advindos das vinte e
duas assembleias do processo de elaboração do orçamento municipal participativo, realizadas
entre os meses de junho a agosto de 2005 (com o envolvimento de aproximadamente 2.300
pessoas), incluindo o registro das quarenta e cinco proposições de prioridades orçamentárias
estabelecidas pelos delegados participantes. A IIª Conferência Municipal da Cidade, realizada
em agosto de 2005 (com a participação de 102 representantes de vários segmentos sociais),
foi utilizada como mais uma estratégia para o diagnóstico da realidade local, incorporando
cento e oitenta e duas proposições sobre participação e controle social, questão federativa,
política urbana e financiamento para o desenvolvimento urbano, elaboradas pelos
participantes nos grupos de trabalho.
Foi realizado também, durante os meses de setembro de 2005 a janeiro de 2006,
levantamento (survey) com a aplicação, tabulação e análise de questionários para mil e
cinquenta e três munícipes, mapeando quarenta e um conjuntos de demandas locais sobre
preservação histórico-cultural, políticas sociais, gestão e gestão compartilhada,
desenvolvimento urbano, circulação viária e transporte, habitação, meio ambiente e
distribuição territorial.
A sexta estratégia de “leitura do município” compreendeu o conjunto de registros
gerados pelas oficinas de produção de vídeo amador e da realização do Festival “Curta
Santana num minuto” (com a apresentação de 22 vídeos de duração de 1 minuto sobre
temáticas relacionadas com o turismo, meio ambiente, história e cultura local), realizadas no
período de 05 a 14 de dezembro de 2005, com a participação de 580 pessoas, envolvendo
grupos sociais de folclore, esportes radicais, capoeira, hip-hop, dança, terceira idade, alunos
de escolas municipais e estaduais, parteiras, profissionais do sexo, catadores de lixo,
pescadores, escoteiros, e de outros membros da sociedade.
A sétima abordagem de “leitura” analisada diz respeito ao que foi denominado de
Caravanas do Plano Diretor Participativo, representadas por expedições compostas por grupos
de técnicos da Gerência de Projetos da Prefeitura que se deslocavam a pé, de bicicleta e/ou de
barco para determinadas localidades, com o propósito de observar a realidade local, ter
contato com membros da sociedade e registar às características dos trajetos percorridos e
experiências vividas. Foram realizadas três expedições, sendo duas afastadas da região central
(realizadas em novembro de 2005) e uma no núcleo urbano do município (realizada em

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

dezembro do mesmo ano). Como resultado, foram identificados e registrados noventa e seis
pontos críticos e apontadas vinte e duas sugestões de enfrentamento na busca de proporcionar
subsídios, tanto para o processo de elaboração do Plano Diretor, quanto para a elaboração e
implantação de políticas públicas específicas nas áreas visitadas.
Ao analisar as experiências de incorporação de “olhares” adotadas no processo de
diagnóstico do município, torna-se evidente que nesta etapa ocorre o surgimento de novos
atores sociais ocupando os diversos loci de referência discursiva enquanto os agentes
representativos da estrutura formal de planejamento público se fazem presentes
predominantemente na dimensão das construções discursivas refletidas na maioria dos
documentos sistematizados.
Enquanto, em sua maioria, os diversos segmentos da sociedade que se tornaram
visíveis nesta etapa denotavam ancorar seus discursos na busca do atendimento de suas
microdemandas, os agentes representativos da gestão pública carregavam em seus discursos o
pressuposto da importância de ser definido o novo ordenamento territorial de Santana
atendendo às pressões de ordem técnica e daquelas oriundas da malha de relação vinculada à
governança municipal. Nesta etapa, a ambiência de planejamento se caracterizou pelo
surgimento de diversos campos de disputas permeadas pelo ideário de abertura dos canais de
diálogo entre a sociedade e o governo municipal.
Um mosaico sobre a realidade local é construído, mesclando “visões de sobrevoo”
(observadas nos discursos provenientes dos atores que elaboraram os artigos analisados e do
survey aplicado nas regiões político-administrativas do município) com “olhares de perto”
(observados nos discursos apresentados pelos atores integrantes das oficinas/festival de curtas
metragens e das expedições realizadas pelas Caravanas do Plano Diretor). As assembleis e
grupos de trabalho do Orçamento Participativo e da Conferência Municipal da Cidade foram
também palcos de grande expressividade dos segmentos sociais e dos confrontos entre as
diversas “leituras” da realidade.
O descortinamento de demandas sociais fez fazer visível diversas proposições
apontando necessidades de construções/reformas de equipamento público, criação de
mecanismos formais para participação e controle social contínuos da gestão pública e
priorização do uso dos recursos públicos para utilização em saneamento básico, infra-
estrutura urbana e portuária, habitação e sistema viário.
Por mais que a incorporação das manifestações e proposituras da sociedade no
diagnóstico municipal seja considerada um avanço, um ponto importante a ser observado
reside no fato de que a equipe técnica da prefeitura exerceu papel ativo em grande parte das
“mediações” de conflitos e de interpretações discursivas nas arenas de diálogo, bem como
atuou como responsável pela sistematização das “leituras/olhares” produzidas, não ficando,
desta forma, este processo totalmente isento de direcionamentos ancorados nos pressupostos
vinculados aos interesses daqueles que conduziam o processo.
A quarta e última etapa do projeto de elaboração do Plano Diretor (representada pela
sistematização do projeto de lei do plano diretor e sua análise/aprovação pela Câmara de
Vereadores) se desenvolveu inicialmente através da elaboração de um texto-base
correspondente a versão preliminar do projeto de lei, realizada pelo corpo técnico da
prefeitura no período compreendido de janeiro a agosto de 2006. Nos meses de agosto e
setembro do mesmo ano, o texto-base foi submetido à apreciação social através da realização
de três reuniões abertas de apresentação, um fórum aberto de apresentação e discussão e uma
audiência pública de discussão do Plano Diretor. No dia 19 de setembro o Projeto de Lei foi
encaminhado à Câmara de Vereadores do município e no dia 05 de outubro de 2006 é
aprovada a Lei Complementar 002/2006 que institui oficialmente o novo Plano Diretor sem
alterações significativas.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

São nesta etapa que se tornam nítidas as diluições de discursos provenientes dos
vários segmentos da sociedade, na medida em que os atores situados nos loci de construção
discursiva, responsáveis pela sistematização do planejamento, filtram, definem e redefinem
seletivamente as “leituras/olhares” estabelecendo uma versão preliminar das diretrizes gerais
da política urbana e rural do município, demarcando genericamente os elementos
constitutivos do ordenamento territorial, dos parâmetros para uso, ocupação e parcelamento
do solo, dos instrumentos da política urbana e dos mecanismos de gestão democrática da
cidade.
Ao tecer a análise do conteúdo apresentado, torna-se evidente a preocupação dos
sistematizadores em garantir no corpo do texto a formalização de uma política urbana
fundamentada em um Plano Diretor genérico, arremetendo uma significativa parcela de
demandas sociais, identificadas na etapa de “Leitura da Cidade”, para serem abordadas nos
processos futuros de elaboração das Leis complementares como por exemplo, os Planos
Municipais de Habitação; de Gestão e Saneamento Ambiental; de Mobilidade Urbana e Rural;
de Resíduos Sólidos; de Prevenção do Patrimônio Cultural e as Leis de Parcelamento, uso e
ocupação do solo; de Disciplinamento dos Parâmetros para Geradores de Incômodo à
Vizinhança; de Obras e Instalações; do Código de Postura, dentre outros.
Nesta etapa, as apresentações e discussões do plano sistematizado foram
caracterizadas pelo gradual esvaziamento da participação social e os espaços abertos ao
diálogo foram caracterizados por fortes assimetrias de poder, com predominância das
influências advindas dos atores representativos do governo municipal. Levando em
consideração as diluições de discursos, a diminuição participativa e as assimetrias existentes
durante os “diálogos” realizados, pode-se argumentar que na etapa final da construção da peça
de planejamento “as últimas palavras ditas” foram permeadas por uma abordagem discursiva
tecnocrata e heterônoma, havendo transferências de enfrentamento de demandas locais
apontadas pela sociedade para momentos posteriores.
Sobre a perspectiva geral do processo de elaboração do Plano Diretor de Santana,
vale a pena registrar que ao mesmo tempo em que houve significativas incorporações, houve
também significativas desconsiderações de anseios e manifestações expressas durante os
eventos e ações promovidas pelo governo municipal. Este fato (perceptível no
confrontamento dos documentos produzidos na etapa diagnóstica com o conteúdo da Lei
aprovada pela Câmara de Vereadores), denota a existência do risco de várias questões, que
foram consideradas por diversos atores sociais como críticas para o desenvolvimento local, se
tornarem “invisíveis” no transcorrer da gestão pública do município.

Considerações finais: em busca das “falas daqueles que falaram”

Ao efetuarmos reflexões sobre o ambiente que envolve os processos de planejamento


urbano, estaríamos equivocados se assumíssemos o pressuposto de que a totalidade dos
discursos, anseios, proposituras e demandas advindas do conjunto de indivíduos que integram
determinada sociedade seriam plenamente incorporados nos planos sistematizados ou nas
ações realizadas pelo poder público.
Entretanto, o desafio dos estudiosos, dos planejadores e dos gestores do urbano,
reside na tentativa de superar as abordagens exclusivamente de “sobrevoo” ao lidarem com as
dinâmicas de apropriação e uso dos espaços, em detrimento de um “olhar mais de perto”
sobre aqueles “produtores do espaço” que compõe e dão realmente concretude a cada uma
destas dinâmicas. Sobre este aspecto, não só o estabelecimento de diálogos com os atores se
apresenta como estratégia efetiva de superação. Faz-se necessário também o estabelecimento
de vias que garantam o reconhecimento, a incorporação e a integridade dos discursos que se
apresentam desde as etapas iniciais do planejamento.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Tomando o exemplo da ambiência na qual convergiram os processos de participação


social do projeto de elaboração do Plano Diretor do Município de Santana (onde se tornou
perceptíveis diluições de discursos e transferências de enfrentamento de demandas sociais
para processos futuros de elaboração de leis complementares), verificam-se pontos de
fragilidade na proposta de gestão participativa, na medida em que não se garante que os
anseios não contemplados estejam integrados nas arenas futuras de elaboração,
implementação, controle e/ou avaliação das políticas públicas no município. Além de diluídas
e transferidas, as falas dos “produtores do espaço” se perdem quando não há preocupação ou
mecanismos capazes de incorporá-los nas dinâmicas da gestão pública.
O avanço alcançado pelo estabelecimento de marcos regulatórios, que exigem o
envolvimento social no desenvolvimento da gestão pública, traz em si desafios no que dizem
respeito ao modus operandi das experiências participativas propostas para os mais diversos
níveis, áreas setoriais ou etapas de desenvolvimento das políticas públicas, sendo a
incorporação das falas “dos que ocupam os espaços” nas dinâmicas da gestão um exemplo de
desafio que deve tanto ser analisado por pesquisadores, quanto enfrentado por aqueles que
atuam como representantes do aparelho de Estado.
Além do trabalho de campo intensivo em nanoterritórios, buscando obter
familiarização crítica dos contextos através de discussões teóricas e aplicação de
procedimentos de analise de discurso, proposto por Souza (2011), pode-se sugerir também as
abordagens de pesquisa voltadas para triangulação criteriosa de métodos e de resultados de
análises realizadas em escalas e contextos diferenciados com o propósito de identificar como,
quando e de que forma as falas, discursos, anseios e demandas surgentes nos processos
participativos são mantidos, diluídos, transferidos e/ou perdidos.
No âmbito da práxis relacionada com a gestão, se destacam como alternativas a
abertura de fóruns contínuos de diálogos também em escalas territoriais cada vez menores; o
registro histórico criterioso (e de amplo acesso) das falas, discursos, anseios e demandas
provenientes de todas as estratégias participativas implementadas; a fusão/integração de
conselhos representativos da sociedade que possuem estreitas relações setoriais com o devido
suporte estrutural e financeiro para os seus funcionamentos; a implantação dos Sistemas de
Informações Municipais e a implementação de uma filosofia de gestão fundamentada no
exercício da descentralização e compartilhamento de poderes com a sociedade, não só na
etapa de elaboração do planejamento, mas também nas etapas de implementação, controle e
avaliação das políticas públicas.
É na busca e reconhecimento “das falas daqueles que falaram” que, sobre a
perspectiva da dimensão discursiva, se pode identificar o verdadeiro esforço de superação das
atuais limitações nos processos participativos de gestão, tornando visível uma cidade que se
fazia (e também era feita) obscurecida.

Referências
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Notas
[1] ALCMS- A Lei n.º 8.387, de 30 de dezembro de 1991, criou a Área de Livre Comércio de Macapá, no
Estado do Amapá, conforme estabelece o art. 11. O Decreto n.º 517, de 8 de maio de 1992, regulamentou o art.
11, da Lei n.º 8.387/1991, estabelecendo as finalidades e a localização da Área de Livre Comércio de Macapá e
Santana – ALCMS.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

[2] A Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) é uma autarquia do governo federal,


criada no governo do presidente Castelo Branco em 1966, com a finalidade de promover o desenvolvimento da
região amazônica, gerando incentivos fiscais e financeiros especiais para atrair investidores privados, nacionais e
internacionais, com sede e foro em Belém, e vinculada ao Ministério da Integração Nacional.
[3] O diploma criador do IBGE- Decreto nº 24.609/34- situou-o como uma entidade de natureza federativa,
destinada a promover e a fazer executar ou orientar tecnicamente todas as estatísticas nacionais, mediante
progressiva articulação e cooperação das três órbitas administrativas da organização política da República,
obtida por convênios, atribuições que não se enquadravam nos órgãos tradicionais do Governo.

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Quando a Estrutura Engole o Fluxo, Quando as Múltiplas Lógicas de


Avaliação entram em Choque, eis o Resultado: a Burocracia Mata

Cecília Leão Oderich


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Resumo

Quando predominam na aplicação de políticas públicas no campo da cultura, a lógica da


burocracia e da racionalidade instrumental podem conflitar com o fluxo de atuação deste
campo. No Brasil, o campo da cultura sofreu transformações principalmente a partir de 2003
com a institucionalização do Sistema Nacional de Cultura, do Plano Nacional de Cultura e de
programas como Cultura Viva. Nos últimos anos, observa-se que o estilo de gestão
burocrática de políticas públicas pode estar desestimulando e inibindo estes movimentos. Os
Pontos de Cultura materializam a capilarização de sua base social alcançando os territórios
mais vulneráveis, partindo do reconhecimento das manifestações nos locais onde acontecem.
Este ensaio teórico foi suscitado a partir do caso do Ponto de Cultura Casa das Fases,
localizado em Londrina-PR, o qual já possuía reconhecimento e longa trajetória de atuação.
Supõem-se que a lógica do Ponto de Cultura conflitou com a lógica do Estado burocrático e
suas formas de avaliação. Conclui-se que a compreensão sobre as diferentes racionalidades é
fundamental para as políticas públicas no campo cultural em busca por opções que
considerem a priori a relevância das realizações culturais em sua autenticidade na produção da
vida.

Introdução

A lógica burocrática na aplicação de políticas públicas, pautada em uma


racionalidade instrumental, pode ser inapropriada quando o “objeto” é a cultura e a arte,
quando se evidencia uma lógica de fluxo, de campo aberto. A burocracia é caracterizada por
uma racionalidade instrumental, especializada, formal, impessoal, contratualizada, autorizada,
disciplinada, específica. Assim, no campo da cultura e da arte, com predomínio de um fluxo
criativo, diferenciado desta lógica, a burocratização pode sufocar ou bloquear o movimento.
No Brasil, o campo da cultura sofreu transformações nos últimos anos,
principalmente a partir de 2003, quando foi institucionalizada a organização do Sistema
Nacional de Cultura, políticas do Plano Nacional de Cultura e programas como o Cultura
Viva. Este período da política nacional de Cultura foi marcado por propostas que buscavam
garantir maior participação social e uma visão ampliada de cultura com base no seu conceito
antropológico. Os Pontos de Cultura fazem parte desta nova proposta no campo cultural
nacional.
A Casa das Fases, localizada em Londrina-PR, surgiu a partir de um grupo que
trabalhava a expressão através do teatro, desde a década de 80. Este Ponto de Cultura realizou
trabalhos relevantes e reconhecidos internacionalmente por trinta anos, tendo finalizado suas
atividades no final de 2015. Segundo vídeos e textos pesquisados no portal casadasfases.com,
o grupo tinha “a proposta estética-política de expressão do teatro e das fases distintas e
múltiplas da vida”, “é uma casa libertária onde se pode tudo, inclusive ser louco”.

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Este ensaio teórico foi suscitado pelo caso prático, ou seja, desencadeado pela
tomada de conhecimento de que a Casa das Fases havia deixado de ser um Ponto de Cultura
por não conseguir cumprir com a prestação de contas ao Estado, mesmo tendo desenvolvido
um vasto e reconhecido trabalho.
Será que o Estado, mesmo propondo uma lógica diferenciada para abarcar e incluir
os Pontos de Cultura, considerou o risco ou pensou em alternativas aos critérios de avaliação
focados em questões financeiras objetivas? Qual o impacto de avaliar, a partir de critérios
instrumentais, as organizações culturais caracterizadas predominantemente por uma lógica
substantiva? Relações objetivas e mediadas pelo dinheiro na atualidade levam a avaliações
também, muitas vezes, baseadas em questões financeiras, enquanto que o “imaterial”, o
abstrato e o humano - que geralmente permeiam o campo cultural - ficam em segundo plano.
Este ensaio tem por objetivo refletir sobre como a lógica de avaliação burocrática
pode impactar e chocar com a lógica do fluxo no contexto cultural e, até “matar” Pontos de
Cultura.

Racionalidade e múltiplas lógicas: além da burocracia

As leituras de Weber (1979, 1989 e 2002) fazem refletir sobre racionalidade e as


múltiplas lógicas, ainda mais considerando a força da lógica instrumental e da burocracia na
modernidade. Weber (2002) apresenta o conceito de ação, a conduta à qual o sujeito atribui
sentido subjetivo. A ação social pode ser afetiva, tradicional, racional orientada a fins
conforme os meios existentes, e racional orientada a valores. A racionalidade para Weber
pode ser: prática, ou seja, no sentido instrumental; teórica, na busca pela apreensão abstrata do
mundo; substantiva, aquela que constrói o modo de vida, que precisa ser teorizada; e a
racionalidade formal, que busca a relação entre meios e fins em regras, normas, caracterizada
nas sociedades modernas. Neste estudo, reflete-se principalmente sobre as racionalidades
substantiva e instrumental.
A burocracia, tão presente no nosso cotidiano, tem suas características definidas por
Weber (1979): rege áreas de jurisdição fixas e oficiais, ordenadas por regulamentos, ou seja,
leis e normas administrativas; a autoridade para dar ordens se distribui de forma estável,
delimitadas por normas relacionadas aos meios de coerção; tomam-se medidas metódicas para
a realização regular e contínua desses deveres e para a execução dos direitos. Assim o autor
discorre detalhadamente sobre a posição dos funcionários, o poder, a racionalização da
educação e do treinamento, os pressupostos e causas da burocracia, entre eles o
desenvolvimento da economia monetária e as consequências econômicas e sociais da
burocracia, do desenvolvimento quantitativo até as modificações qualitativas das tarefas
administrativas, as vantagens técnicas da organização burocrática e o Direito, a concentração
das tarefas, o caráter permanente da máquina burocrática e o nivelamento das diferenças
sociais na moderna “democracia de massa”. Clegg (1998, p. 44-46) sintetiza as características
da burocracia em: a especialização, a autorização, a hierarquização, a contratualização, a
credencialização, a carreirização, a estratificação, a configuração específica, a formalização, a
estandardização, a centralização, a legitimação, a oficialização, a impessoalização e a
disciplinarização. Analisando o conteúdo inerente às características da burocracia, podemos
pensar como isso se dá quando aplicado ao campo da cultura: a burocratização pode sufocar
ou bloquear o fluxo, conforme será apresentado mais adiante.
Em outra obra, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber (1989)
analisa a influência da Ética Protestante na racionalização existente nas sociedades modernas,
outro ângulo de análise que aqui apresentamos. Há uma busca pela compreensão da
racionalidade Ocidental, especificamente, onde o capitalismo tem presença mais forte. A

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racionalização perde suas bases religiosas e passa a existir um ethos, uma coerência interna,
“livre de qualquer relação direta com a religião, estando assim, para os nossos objetivos, livre
de preconceitos” (p. 29). Quando a vocação é o trabalho, metódico e racional (p. 39), a
salvação se dá no mundo, o ethos que se constitui do trabalho visto como um fim em si
mesmo, como uma vocação. Por exemplo, sentenças como as de Benjamin Franklin, listadas
por Weber (p. 29-30): “tempo é dinheiro”, “crédito é dinheiro”, “dinheiro gera dinheiro”, “o
bom pagador é dono da bolsa alheia”. Com atitudes morais ligadas ao utilitarismo, “o homem
é dominado pela produção de dinheiro, pela aquisição encarada como finalidade última da sua
vida” (p. 33).
O trabalho visto como um fim em si mesmo soma-se ao impulso para o ganho e para
o lucro. A vida puritana “favoreceu o desenvolvimento de uma vida econômica racional e
burguesa. Era a sua mais importante, e, antes de mais nada, a sua única orientação consistente,
nisto tendo sido o berço do moderno “homem econômico” (WEBER, 1989, p. 125). Neste
ponto começo a refletir sobre o papel do dinheiro na sociedade moderna. Vivemos em um
sistema no qual o lucro é estimulado, o dinheiro não é perecível, pode ser acumulado e é
considerado normal acumular até mesmo muito mais do que poderia utilizar. A cultura
objetiva de instituições e objetos sobrepõe a cultura subjetiva. Correlacionando com Weber,
pode-se inferir que a racionalidade instrumental sobrepõe a racionalidade substantiva.
O estudo de Baudrillard (1995) é interessante por contrapor a sociedade de
crescimento à sociedade de abundância. Podemos pensar: “abundância de quê”? Em uma
sociedade de crescimento somos continuamente cercados por objetos, serviços, bens
materiais, ou seja, a opulência não está nas relações e na proximidade com outros seres
humanos, mas nos objetos, na complexidade técnica e, agora, também nos contatos virtuais.
Segundo o autor, na sociedade de crescimento, devido a uma tensão permanente entre as
necessidades concorrenciais e a produção, há um condicionamento das necessidades humanas,
padronizando-as, inclusive as diferenças; há uma pauperização psicológica. Se pensarmos na
indústria cultural, isto pode fazer sentido. E a “aura” da arte, a abundância cultural? O
processo empresarial e burocrático talvez represente a dominação da subjetividade, passa-se à
submissão a uma lógica, à disciplina, uma automatização da vida, submissão a um tipo
predominante de racionalidade.
Ao estudar Bourdieu (2006) a questão da economia capitalista se torna explícita,
especialmente nas suas análises sobre o processo ocorrido na Argelia. O autor, ao analisar a
ocupação francesa na Argelia, observa a passagem de uma economia pré-capitalista para uma
economia capitalista, quando ocorre a racionalização das condutas, a assimilação de
categorias de pensamento, o cálculo racional, a mudança em relação à percepção do tempo, a
previsibilidade e a disciplina sendo estimuladas. Também, novas necessidades passam a ser
percebidas na Argelia agora capitalista: a necessidade monetária, a busca por segurança, e
também as resistências e manutenção de modelos abstratos de racionalidade. No esquema de
percepção da colônia, ficam evidentes as diferenças, ou seja, as mudanças culturais ou a
aculturação e a transição para a estrutura capitalista. Assim, a Argelia, aos poucos, é
reinventada a partir de um novo sistema de disposições sob a pressão da necessidade
econômica e do desenvolvimento. É a dita sociedade de crescimento se fazendo presente.
Clegg (1998) também aborda modos de racionalidade nos estudos organizacionais e
busca a superação do olhar dicotômico. Segundo o autor, a racionalidade real de Weber
mostra a eliminação de formas de explicação mágica, mística e tradicional e a submissão aos
cálculos da razão técnica. Esta racionalidade real teria que ir além de cálculos racionais,
considerando valores e fins, seria a ponte entre o real e o empírico, a coexistência, o plural.
Considerando o campo cultural, seria talvez a necessidade de uma base que inclua a
complexidade.

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O modernismo representacional consistia no esboço de um único conjunto de


tendências empíricas, consideradas irresistíveis e inevitáveis, as quais constituíam a
famosa “racionalização” do mundo, cujo sucesso seria atribuído à burocracia
enquanto mecanismo principal da sua conquista. O processo de racionalização do
mundo desembocaria no aprisionamento da humanidade numa masmorra, o colete-
de-forças da burocracia, ideia que teve, até os dias de hoje, uma influência enorme e
diversificada sobre a teorização das organizações realizada pelos cientistas sociais.
(CLEGG, 1998, p. 4)

Os modos de racionalidade se referem às tentativas de compreensão da natureza, esta


potencialmente ambígua, contraditória e incerta. “Em termos analíticos, os modos de
racionalidade correspondem às interpretações-padrão que os agentes podem construir”.
(CLEGG, 1998, p.8) No caso da burocracia e da racionalidade racional-legal, pode-se supor
uma espécie de Frankstein: a criatura que se volta contra o seu criador. “Na sua análise,
Weber quase considera a burocracia como criação científica que se revoltou contra os seus
criadores humanos e acabou por devorá-los” (p. 35). Assim, valores e relações humanas são
desnaturalizados por um princípio racionalista unificador.
Guerreiro Ramos (1989) defende a proposta de “homem parentético”, o ser humano
percebido a partir de uma perspectiva humanista não comportamentalista, a qual inclui
significados como individualidade, auto-estima, autonomia, sentido de vida, senso crítico,
criatividade. Na dicotomia entre valores e fatos o indivíduo é concebido como um ser
puramente social, a ordem de sua vida é algo extrínseco, e a “ordem da sociedade é possível
na medida em que seus membros, num cálculo utilitário de consequências, regulam e limitam
as próprias paixões, de modo a não ameaçarem seus interesses práticos. (...) Os valores
humanos tornam-se valores econômicos.” (RAMOS, 1989, p. 37-38). Neste sentido, Ramos
(1989) diferencia a racionalidade instrumental, baseada em uma visão funcionalista, da
racionalidade substantiva, uma racionalidade da consciência, abstrata. A racionalidade tem
sido central na sociedade moderna, mas pode se manifestar como uma forma de repressão
social, não uma razão verdadeira, ética. Conforme Ramos (1981, p. 19), há diversas críticas à
razão moderna, posições de: “resignação” (Max Weber), “relacionalismo” (Mannheim),
indignação moral (Horkheimer), crítica integrativa (Habermas) e restauração (Voegelin)”.

A teoria corrente da organização dá um cunho normativo geral ao desenho implícito


da racionalidade funcional. Admitindo como legítima a ilimitada intrusão do sistema
de mercado na vida humana, a teoria de organização atual é, portanto, teoricamente
incapaz de oferecer diretrizes para a criação de espaços sociais em que os indivíduos
possam participar de relações interpessoais verdadeiramente autogratificantes. A
racionalidade substantiva sustenta que o lugar adequado à razão é a psique humana.
Nessa conformidade, a psique humana deve ser considerada o ponto de referência
para a ordenação da vida social, tanto quanto para a conceituação da ciência social
em geral, da qual o estudo sistemático da organização constitui domínio particular.
(RAMOS, 1981, p. 23)

Ramos (1981) critica a racionalidade instrumental dominante no Ocidente e aborda a


racionalidade substantiva como possível base de uma nova ciência das organizações, para que
a sociedade moderna não seja legitimada apenas em bases utilitárias. “Antes da sociedade de
mercado, nunca existiu uma sociedade em que o critério econômico se tornasse o padrão da
existência humana” (p. 127).
Há, assim, uma perspectiva teórica relevante a ser considerada nesta análise: a
perspectiva do processo, do fluxo. Neste movimento mental, processual, encontra-se, talvez, a
organização da desorganização. Cooper (1976) definiu o que se considera como uma
epistemologia do processo, faz o exercício do pensamento em termos difusos e processuais, e
não como fenômenos limitados a uma realidade constituída. O fluxo permite a criatividade, a

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mente aberta, “não-naturalizada”, sem limites definidos. É uma busca pela intuição de
sentido, não a concretude; o Campo abstrato, a fonte de sentido da experiência humana, cuja
base está na relação (COOPER, 1976).
A produção de sentido também pode contribuir com esta análise, pensando em uma
construção socialmente compartilhada. Na proposta do interpretativismo de Karl Weick
(1995) o cenário de desordem pode ser uma oportunidade para “engolir a ordem que as
pessoas insistem em estabelecer”. O processo é constante: onde começa? Onde termina? “A
pura duração nunca pára” (p. 23) e o “sensível não necessita ser sensato, e aí repousa o
problema” (p. 56). Estas abordagens, enfim, propiciam a compreensão mais ampla de uma
perspectiva de fluxo, aberta, criativa, construída na pura duração.

O Campo da Cultura e as Políticas Públicas

O campo da cultura talvez seja permeado por múltiplas lógicas, convidando a um


olhar específico do ponto de vista das políticas públicas e de sua aplicação, no sentido de
conceber que o modelo gerencialista não é a única forma de organizar, em especial se
considerando o potencial humano criativo e coletivo.

Considerar formas organizacionais e práticas no setor público que sejam


democratizantes e socialmente inclusivas implica pensar aquelas em que os cidadãos
são vistos como membros plenos da comunidade política, tendo acesso e exercitando
direitos; as que promovem (respeitando sua autonomia) a organização da população
em torno de temas de interesse comum; as que incluem o controle social sobre a
gestão, o debate amplo e informado sobre as questões de governo e que abrem à
população as decisões sobre estas questões. (...) No entanto, construir estas parcerias
requer que os membros das burocracias públicas abandonem a perícia profissional
como base exclusiva da sua ação, e aceitem que a experiência vivida dos cidadãos
também oferece uma base legítima para procedimentos coletivos de decisão e
implementação de políticas públicas. (MISOCZKY, 2001)

Integrando e caracterizando as políticas no campo cultural no atual contexto de


sistema, pode-se mencionar Boltanski e Chiapello (2009), na crítica estética ao capitalismo.
Os autores argumentam que o capitalismo é criticado do ponto de vista social, pela miséria e
pelas desigualdades sociais, e do ponto de vista estético, devido à opressão, ao
desencantamento, à inautenticidade, à objetificação. A crítica estética é, portanto, uma forma
de contestação deste tipo de racionalização. Os autores argumentam que a crítica estética se
dá no sentido da perda do belo em decorrência da padronização e da mercantilização.
Exemplificando, comentam sobre a vida de artista, como vida autêntica quando definida
“como rejeição a quaisquer formas de disciplina, especialmente as formas associadas à busca
do lucro” (p. 417). No campo cultural, em alguns casos, os interesses econômicos e o objetivo
de lucro são desvalorizados, até percebidos de forma negativa por algumas pessoas.
Por outro lado, a chamada indústria cultural, conceituada a seguir, promete a
libertação pelo acesso ao que se deseja com facilidade, ou seja, a ampliação do acesso à arte e
à cultura, através da ampliação e popularização da oferta e facilidade de acesso. A questão é
que este acesso vem atrelado a algum tipo de pagamento, podendo se considerar uma espécie
de “privatização dos consumos culturais” (Boltanski e Chiapello, 2009, p. 439). Assim,
percebe-se que a cultura vem se transformando e sendo campo de disputa ao longo do tempo.
A expressão indústria cultural é atrelada à chamada cultura de massa. Adorno (1975)
critica a indústria cultural e questiona perda da essência, da “aura”. A aura faz parte do “aqui
e agora”, do espaço e do tempo, é algo autêntico, singular, a presença do não presente, o que
se perde quando a cultura e a arte são tratadas como mercadoria. Neste caso, parte-se do

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princípio que a indústria cultural tem como motivação maior o lucro, não as criações
espirituais. Cohn (1998) faz uma crítica da razão iluminista, “o ímpeto controlador da razão
instrumental aparece dissimulado no que se apresenta como seu oposto: na produção
simbólica, na forma da cultura ou como meio de entretenimento (...)” (p. 15). Assim, na
indústria cultural, nem indústria seria inteiramente indústria, nem cultura seria inteiramente
cultura.
Harvey (2005) coloca que “algo muito especial envolve os produtos e eventos
culturais (...) sendo preciso pô-los a parte das mercadorias normais, como camisas e sapatos”
(p. 221), discutindo questões como singularidade e qualidades exclusivas.
Considera-se que houve – ou ainda há - uma “luz no fim do túnel” para o campo da
cultura, a partir da efetivação no Brasil da concepção dos Pontos de Cultura, a qual traz os
sujeitos à evidência na criação e participação como produtores e consumidores de
manifestações culturais, sem prevalência de aspectos administrativos, em um primeiro
momento. Aí está uma grande diferença da cultura de massa, pois a proposta, explicitada a
seguir, não se consolida na exigência de produção rentável e/ou no uso de técnicas
empresariais e administrativas.

Pontos de Cultura e a Casa das Fases

Os Pontos de Cultura constituíram elementos expressivos da proposta do governo


brasileiro a partir de 2003 com o Sistema Nacional de Cultura, do Plano Nacional de Cultura e
de programas como Cultura Viva, do Ministério da Cultura. O termo foi utilizado pela
primeira vez em 1980 e, como destaca Turino (2009), os Pontos de Cultura materializam a
capilarização de sua base social alcançando os territórios mais vulneráveis. Diferentemente
das Casas de Cultura, onde o Estado decide a localização e a programação, os Pontos surgem
de um processo inverso, pois partem do reconhecimento das manifestações nos locais onde
acontecem, ou seja, no seu próprio território. Como parte da política pública, ao ser
apresentada ao então Ministro da Cultura Gilberto Gil, este afirmou “Interessante, no lugar de
focar na estrutura você olhou para o fluxo. E fluxo é vida” (TURINO, 2009, p.82).
Neste sentido, a proposta dos Pontos de Cultura seria, como Turino afirma, uma
experiência de um novo Estado. O autor salienta algumas alterações necessárias nesse
processo, tais como:

Da estrutura para o fluxo.


Do Estado que impõe para o Estado que dispõe.
Do Estado concentrador (de riquezas e informações) para o Estado que libera
energias.
Do Estado impermeável para o Estado penetrável.
Do Estado que esconde para o Estado transparente.
Do Estado que controla para o Estado que confia.
Do povo que transfere responsabilidades para o povo que participa.
Da desconfiança à confiança mútua, gerando responsabilidade e liberdade (...).
(TURINO, 2009, p.238)

É importante ressaltar que, em 2013, após cerca de uma década de experiência, seu
idealizador afirmou que a prioridade foi dada à estrutura em contraposição ao fluxo. Portanto,
a lógica do Ponto de Cultura conflitou com a lógica do Estado burocrático e suas formas de
avaliação.
Assim, chegamos à situação da Casa das Fases, Ponto de Cultura com longa
trajetória de atuação. A Casa das Fases, com sede em Londrina-PR, foi o ponto de confluência
e trabalho da Cia de Theatro Fase 3, um grupo formado por atores com mais de 60 anos. No

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espaço, eram realizadas pesquisas, montagens, oficinas, apresentações e circulação de


espetáculos. O grupo, além de se apresentar na sua “casa”, também desenvolvia ações
culturais na periferia da cidade.
Conforme o site do grupo (http://casadasfases.com ), a Casa das Fases estava perto
de comemorar 30 anos de atuação (ano base 2016), já que iniciou as atividades em 1986, no
SESC de Londrina-PR. O trabalho da Casa das Fases era direcionado a pessoas com mais de
60 anos que desejavam conhecer e utilizar técnicas de teatro para seu desenvolvimento físico
e emocional.

Em 1999, o grupo foi convidado a participar de um Festival em Colonia na


Alemanha, e viajou com a peça “Londrina: Zona Paraíso” com 28 atores. Ao
retornar para o Brasil, os atores e seu diretor decidiram tornar o grupo independente
e assim nasceu a Casa das Fases – Núcleo de Arte e História com Senhoras e
Senhores. A Casa abre um espaço para desenvolver arte e projetos culturais
relacionados à ruptura de padrões de idade ou comportamento e à aceitação do
idoso. (http://casadasfases.com )

A Casa das Fases desenvolvia projetos e conduzia workshops tanto em Londrina,


como em diversos estados brasileiros e, por muitos anos, foi um Ponto de Cultura reconhecido
pelo Ministério da Cultura. O grupo alcançou reconhecimento internacional e em 2013
realizou a sua sétima turnê pela Europa, visitando a Dinamarca e o Reino Unido com o ‘work
in progress’ Yolanda Cala Boca. (http://casadasfases.com )
Em seu portal, a Casa das Fases apresenta o selo do Prêmio Asas, como iniciativa
finalista da 3ª edição do Prêmio Cultura Viva. Conforme constava no portal do Ministério da
Cultura,

as melhores práticas de projetos apoiados pelos editais do Cultura Viva são


destacadas com o Prêmio Asas, cujo objetivo é contribuir para a promoção do
desenvolvimento autônomo das atividades dos Pontos de Cultura e o avanço do
processo cultural da rede de Pontos. Com uma premiação em andamento em 2010, a
iniciativa já contemplou 66 Pontos de Cultura. Cada Ponto de Cultura selecionado
recebe R$ 80 mil. (http://www.cultura.gov.br/ )

No livro sobre Pontos de Cultura, Turino (2009) também relata sobre a Casa das
Fases e percebe-se o quanto o trabalho possivelmente seja permeado pela razão subjetiva,
racionalidade substantiva que revela relações e sentido. As pessoas ouvem histórias umas das
outras, abrem seus universos pessoais para o grupo, se ajudam, se conectam, se relacionam. O
humano está presente, não há objetificação, não há busca por dinheiro ou rentabilidade.

Nenhum livro contará nossa história. Por isso sentam e ouvem histórias umas das
outras, tirando os elementos necessários para construir suas peças de teatro.
“Uma relação de afeto. Parar para ouvir a história de uma pessoa é uma coisa
muito importante, muito séria”, afirma Fabrício Borges, coordenador do Ponto de
Cultura, que pratica todos os dias esse exercício de ouvir. (...)
No Ponto de Cultura, elas (e eles) se redescobrem.
“O grupo é como se fosse minha família. Quando fiquei viúva…”, inicia uma
senhora de cabelos brancos. (...)
Começam com música, depois suas caixas de memória, como pequenos teatros em
que se apresentam para uma pessoa apenas. Pequenos momentos em que uma caixa
de papelão pendurada no pescoço transforma-se em palco e museu. A cenografia e
figurino são feitos em miniatura, com pequenos brinquedos, fotos, bonequinhas,
papel crepom e tecido. João Bernardi, o diretor da trupe, revela a generosidade de
seu teatro:
“Quando a pessoa é surpreendida na rua por um grupo de senhoras contando
histórias com suas caixas, com certeza ela vai se surpreender. Nossa! Talvez mude o

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

rumo do que faria após sair de um banco, pensando em dívidas e contas. Depois de
ouvir aquela história contada com tanto carinho, talvez a pessoa mude o seu rumo,
talvez chegue em casa e conte uma história para seu filho e se esqueça por um tempo
de suas dívidas e contas a pagar. Quem sabe a pessoa mude o percurso, pare numa
praça, vá mais feliz para seu compromisso, talvez ligue para uma tia com quem não
falava há muito tempo e com isso se prepare melhor para seu envelhecimento”. (...)
Potencialidades são descobertas por e naquelas velhinhas do Paraná. (TURINO,
2009, p. 171)

Assistir aos vídeos e ler sobre os trabalhos realizados pelo grupo, no portal da Casa
das Fases, foi uma experiência marcante pois pude observar demonstrações vivas de amor,
humanidade, ajuda, expressão através da arte. Depois de conhecer e analisar este trabalho,
mesmo que através da internet, é difícil pensar que este fluxo que tinha tanta energia, acabou.
A informação que incitou as reflexões presentes neste estudo surgiu a partir de um
texto publicado na Revista Fórum, quando Turino (2013a) comenta que a Casa das Fases
deixou de ser um Ponto de Cultura.

Há dois dias recebi este email:


infelizmente, amigo, um dia sonhamos juntos por um Brasil cheio de pontos de
cultura. Mas hj mais um se apaga, aqui no Norte do Paraná, na Londrina de terra
roxa.
Não sei o que fizemos de tão errado nesses cincos anos, mas agora somos taxados de
“devedores”, “ladrões” e tenho a impressão que os ventos que sopraram a nosso
favor voltaram em forma de um grande furacão.
Mais um ponto que se apaga.
fabricio (TURINO, 2013a)

Conforme esta mensagem publicada, Fabrício, o coordenador do Ponto de Cultura,


alegou que este se “apagou” devido à burocracia estatal. O grupo seguiu com as atividades
por mais algum tempo, e encerrou as atividades no final de 2015.
Turino, articulador dos Pontos de Cultura, alega que “haveria solução, mas quando
um governo rende-se à “burocracia sem alma” (no conceito de Max Weber) o resultado é a
morte da Cultura Viva.” (TURINO, 2013a) O autor afirma que muitos Pontos de Cultura
honestos e comprometidos, com resultados muito além do contratado, estariam em situação
semelhante. Por isso, seria importante,

reunir os diversos orgãos de controle estatal (CGU – Controladoria Geral da União -,


TCU – Tribunal de Contas da União- e os Ministérios do Planejamento e Cultura) e
produzir um termo de ajuste que reconhecesse a prestação de contas dos Pontos de
Cultura pelo cumprimento do Objeto (resultados) dos Convênios e não pelos
procedimentos burocráticos das notas frias. Em São Paulo este caminho (prêmio ao
invés de convênios) já foi adotado desde 2009, com a rede de 300 Pontos de Cultura
do Estado e já deveria estar sendo aplicado nas demais redes (inclusive
retroativamente); porém, com a mudança de governo, o pântano burocrático
prevaleceu - e continua prevalecendo até o dia de hoje - na condução das políticas
públicas. Triste. (TURINO, 2013a)

Assim, como a proposta era de “fluxo, vida”, a partir de grupos autodeclarados


como Pontos de Cultura, e não de estrutura, presume-se que a avaliação deveria estar em
consonância com este fluxo, considerando as realizações, não a prestação de contas e quesitos
financeiros. Assim, evidencia-se o conflito de lógica entre a proposta adequada ao contexto cultural e
o Estado burocrático manifesto em suas formas de avaliação.
Ao assistir aos vídeos e ler sobre o trabalho da Casa das Fases considerei a
importância de suas atividades culturais, através da autenticidade e da criatividade, do
autoconhecimento promovido, das relações entre as pessoas. Não se percebe, nesta sondagem

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

inicial, que haja qualquer objetivo de lucro, ou de enriquecer. Observa-se mais uma busca
voluntária pela arte e pela cultura para expressão e reprodução da humanidade de cada um e
do grupo. Se a crítica estética (Boltanski e Chiapello, 2009) está relacionada à perda do
sentido do belo, decorrente da padronização e da mercantilização, aqui se revela sentido,
individualização e força do grupo.
Portanto, se a Casa das Fases representava um grupo com capital cultural e simbólico
acumulado ao longo de quase 3 décadas, com reconhecimento público, apenas o choque de
lógicas de avaliação pode explicar que tenha deixado de ser reconhecido como Ponto de
Cultura. O grupo persistiu por mais algum tempo e, no final de 2015, após o falecimento de
seu fundador, as atividades da Casa das Fases foram encerradas.
Ampliando a análise para o campo cultural brasileiro, Turino (2013b) publicou um
artigo afirmando ter ocorrido o “desmonte do programa Cultura Viva e dos Pontos de Cultura
sob o governo Dilma”, alegando ter havido um ciclo de
“encantamento/expansão/contenção/declínio” do programa Cultura Viva. O “império da
técnica e da gestão se sobrepôs ao mundo dos sonhos”.

Cultura Viva diz respeito à pluralidade da vida, de suas expressões e desejos, mas o
mundo da técnica transforma tudo em coisa, até mesmo a gratuidade da vida. Com
isso, Oficinas de Conhecimentos Livres tiveram que ceder lugar à Economia
Criativa (submetendo a Cultura à lógica da economia e não o contrário) e processos
formativos horizontais (em que um Ponto contribuía com outro via afecções e as
ideias se disseminavam de forma virótica) passaram a ser substituídos por formações
verticais. E tudo amparado no discurso da qualificação técnica, em que os agentes
do Estado são os qualificadores e os representantes da sociedade os desqualificados.
(TURINO, 2013b)

Mas a esperança por uma “cultura viva” segue. Segundo Turino (2013b) o
movimento cultural tem maior protagonismo após estas experiências, há o movimento latino
americano pela Cultura Viva comunitária em 11 países e há presença na formulação e defesa
de políticas públicas, inclusive ocupando espaços institucionais em governos, sobretudo
municipais.
É uma história construída por todos nós; são as diferentes racionalidades, lógicas,
os contrapontos, choques, o campo de forças se evidenciando na análise organizacional. A
bela e contraditória trajetória humana.

Considerações Finais

A arte e a cultura são muito mais do que entretenimento, são presença, autenticidade,
criação, humanidade, autonomia, desejo, escolhas, relações, individualização, sentido... ou
tudo isso, um pouco disso ou ainda algo diferente disso. Aí está presente a racionalidade
substantiva, no sentido à vida, nos vínculos, sem mediação pelo dinheiro, sem o predomínio
do objetivo mercantilista e da necessidade de “agradar”, pagar ou prestar contas.
A análise aqui apresentada indica que a estrutura engoliu o fluxo do programa
Cultura Viva e dos Pontos de Cultura quando o Estado, na aplicação de políticas públicas,
mesmo em um primeiro momento propondo a lógica diferenciada dos Pontos de Cultura,
retrocedeu ao aplicar critérios de avaliação de lógica instrumental e formal. O choque entre as
lógicas de avaliação foi inevitável e Pontos de Cultura, a exemplo da Casa das Fases, foram
destituídos desta condição. Por isso, a expressão “a burocracia mata” é válida na análise aqui
apresentada.
Relações objetivas e mediadas pelo dinheiro na atualidade levam a avaliações
igualmente baseadas em questões financeiras, ainda mais no contexto burocrático, enquanto

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

que o “imaterial”, o abstrato e o humano - geralmente evidentes no contexto cultural – não


têm o mesmo valor considerado.
Este é um estudo inicial, exercício de busca por compreensão da situação ocorrida, a
qual incita aprofundamento futuro, não havendo pretensão, neste momento, de se chegar a
conclusões que encerrem a discussão. Tem-se a expectativa de iniciar uma pesquisa que
poderá contribuir para a compreensão das diferentes racionalidades no contexto da
administração política no campo cultural e social. No âmago da cultura e da arte há a faísca, o
desejo por ações mais expressivas e criativas, mais autenticidade, mais humanidade.

Referências

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A Transversalidade e os Planos Plurianuais: A História Contada por Três


Ciclos de Elaboração e Gestão do Plano Federal

Júlia Marinho Rodrigues


Universidade de Brasília (UnB)

Elaine de Melo Xavier


Universidade de Brasília (UnB)

Resumo

Este artigo busca compreender como os últimos três Planos Plurianuais – PPAs 2004-2007,
2008-2011 e 2012-2015, lidaram com a questão da transversalidade. Trata-se de um tema atual
e fundamental pelas múltiplas possibilidades de uso que este termo permite. Primeiramente
procurar-se-á entender as origens da ideia de transversalidade. Em seguida, será feita uma
discussão teórica sobre sua apropriação pelo campo da gestão pública, buscando responder à
seguinte questão: há um conceito de transversalidade? A partir desse referencial teórico, são
analisados os documentos que embasaram a formulação, o encaminhamento e a gestão dos
PPA, com destaque para os Manuais de Elaboração dos Planos, as Mensagens Presidenciais de
encaminhamento dos Planos ao Congresso Nacional, os Decretos e Planos de Gestão dos
Planos, os Manuais para a Avaliação dos Planos, bem como os Relatórios Anuais de Avaliação
dos Planos e de seus Programas. Finalmente são apresentadas algumas considerações sobre o
percurso trilhado pela transversalidade ao longo dessa última década no âmbito do governo
federal.
Palavras-chave: Planejamento. Planos Plurianuais (PPA). Transversalidade. Gestão Pública

Abstract

This article aims to understand how the last three Pluriannual Plans - PPA 2004-2007, 2008-
2011 and 2012-2015, dealt with the issue of transversality. This is a current and important topic
for the multiple uses that this term allows. First, it will be understood the origins of the idea of
transversality. Then, will be a theoretical discussion of its appropriation by the field of public
management, seeking to answer the question: is there a concept of transversality? From this
theoretical framework, the documents that supported the formulation, routing and managing the
PPAs are reviewed, especially the Development Manuals of Plans, the Presidential Messages
that routing Plans to Congress, the Decrees and Management Plans of the Plan, the Manuals for
the Evaluation of Plans and the Annual Reports Assessment of Plans and its programs. Finally,
some notes are presented on the route trodden by transversality throughout this past decade
within the federal government.
Key words: Planning. Pluriannual Plans (PPA). Transversality. Public Management

Introdução

Vivendo em um mundo de crescente complexidade, é cada vez maior a pressão social


sobre os governos para que estes respondam de maneira mais eficaz, eficiente e efetiva às
questões enfrentadas por seus países. Os governos, por sua vez, tem se esforçado para melhorar
seu desempenho, buscando aperfeiçoar suas práticas de gestão e criando novos arranjos

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

políticos e institucionais que permitam uma maior interação com a sociedade (BRANDÃO,
2012).
Para o aperfeiçoamento das práticas governamentais um dos caminhos escolhidos
costuma ser a adoção de abordagens inovadoras em gestão pública, como é o caso da estratégia
conceitual e operacional da transversalidade.
A transversalidade surge na Europa Ocidental no final dos anos de 1980, a partir de
iniciativas da Organização das Nações Unidas - ONU, e está associada à estratégia do gender
mainstreaming, ou seja, à estratégia de colocar a questão da igualdade de gênero no curso
principal da definição das demais políticas públicas. Nesse contexto, a IV Conferência Mundial
da ONU sobre a Mulher (Conferência de Beijing/1995) é frequetemente apresentada como
marco, já que é a partir da divulgação de sua Plataforma de Ação que o conceito e a estratégia
da transversalidade ganham visibilidade (PAPA, 2012).
No Brasil, segundo Papa (2012), o conceito de transversalidade foi primeiramente
debatido pelas agências ligadas à ONU e por outras organizações de cooperação internacional
para o desenvolvimento, bem como por movimentos sociais e organizações não-
governamentais – ONG relacionados aos movimentos feministas. A partir de 2003, com a
criação das Secretarias Especiais de Políticas para as Mulheres, de Igualdade Racial e de
Direitos Humanos, bem como da Secretaria Nacional da Juventude (ligadas à Presidência da
República), o termo transversalidade populariza-se no âmbito do governo federal.
Todavia, em comparação com a crescente referência à transversalidade na literatura
sobre políticas públicas, e especialmente, no discurso dos gestores públicos federais, é limitado
o número de estudos que avançam para além do diagnóstico de sua necessidade ou aprofundem
o debate conceitual. Menor ainda é o número de trabalhos que analisam como a proposta da
transversalidade tem sido incorporada no âmbito da administração pública federal.
Este artigo visa, portanto, a um duplo propósito: contribuir para suprir as ausências
mencionadas na área de pesquisa de administração pública e colaborar para o aprimoramento
desse instrumento de gestão pública, ao analisar a forma como a transversalidade foi tratada
pelo plano plurianual federal nos últimos anos.

1 Transversalidade e Políticas Públicas

Os estudos de gênero são considerados percussores na utilização do termo


transversalidade como estratégia de articulação de políticas públicas. A partir IV Conferência
Mundial das Mulheres em Beijing (1995) o gender mainstreaming ganha destaque nos
compromissos internacionais e nas agendas governamentais. Segundo Silva:

Definia-se que a perspectiva de gênero deveria ser uma “corrente principal”,


a perpassar, impregnar e atravessar as demais políticas e ações a fim de
garantir efetivamente igualdade entre homens e mulheres em todos os campos
da vida social (SILVA, 2011, p.03).

O principal objetivo era garantir que as políticas de gênero não ficassem restritas a um
órgão específico, mas que se “espraiassem” por todos os ramos de atuação do Estado. O termo
gender mainstreaming, ao abordar a incorporação da perspectiva de gênero nos temas
prioritários da agenda de políticas públicas, tem também a expectativa de transformar e
reorientar os paradigmas já existentes, participando de processos de tomada de decisão e
priorizando a igualdade de gênero, de maneira a repensar o processo de definição de políticas
em todas as suas etapas: da formulação até a avaliação (FERREIRA, 2004; PAPA, 2012).
De acordo com Bandeira (2005), as ações políticas com especificidade de gênero devem
vincular-se e relacionar-se com todas as áreas das ações governamentais e devem questionar a
idéia de que existem áreas nas políticas públicas as quais estariam desvinculadas – ou se

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consideram neutras – em relação à condição de gênero. Nesse sentido, a autora aborda a


transversalidade a partir do desenvolvimento de uma nova visão de competências e da
responsabilização dos agentes públicos:

Por transversalidade de gênero nas políticas públicas entende-se a idéia de


elaborar uma matriz que permita orientar uma nova visão de competências
(políticas, institucionais e administrativas) e uma responsabilização dos
agentes públicos em relação à superação das assimetrias de gênero, nas e entre
as distintas esferas do governo. Esta transversalidade garantiria uma ação
integrada e sustentável entre as diversas instâncias governamentais e,
conseqüentemente, o aumento da eficácia das políticas públicas, assegurando
uma governabilidade mais democrática e inclusiva em relação às mulheres
(BANDEIRA, 2005, p.05).

Dos estudos de gênero, o conceito de transversalidadei chega, a partir da década de 1990,


aos estudos de administração pública, se desenvolvendo especialmente no campo dos estudos
organizacionais (PAPA, 2012).
Contudo, como o termo transversalidade na literatura da área de administração pública
parece com alguma frequência associado e até confundido com conceitos como
intersetorialidade, matricialidade e cross-cutting, pelo fato de pressuporem em alguma medida
o encontro ou entrecruzamento de diferentes áreas de políticas ou da gestão em torno de
problemas comuns, sua delimitação conceitual não é trivial (PAPA, 2012).
Para Bronzo (2007), para quem transversalidade e intersetorialidade são termos
intercambiáveis, o fato de vivermos um momento de transição, torna difícil identificar os limites
entre as perspectivas tradicional e emergente de gestão pública, situando nesta última
transversalidade. Na visão da autora (BRONZO, 2007), as duas perspectivas se sobrepõem na
forma concreta dos governos atuarem, implicando em uma mudança não apenas instrumental,
formal e organizativa, mas principalmente de caráter ético e cultural no âmbito da administração
pública.
Na visão da autora (BRONZO, 2007), a transversalidade relaciona-se à necessidade de
remodelar as velhas estruturas organizacionais públicas em um contexto no qual as estruturas
tradicionais de gestão, baseados em sistemas técnicos especializados e em estruturas fortemente
hierarquizadas e verticais, são confrontadas com novas demandas sociais e políticas, trazidas
por certos segmentos populacionais, como as mulheres, que exigem uma abordagem integral
dos problemas.
Para Ariznabarreta (2001, p.05), “la transversalidad expresa un intento de ruptura [do]
círculo vicioso en la coordinación de estructuras organizativas a través de mecanismos
burocráticos”. Na visão do autor (ARIZNABARRETA, 2001), a transversalidade representa
um reforço da coordenação horizontal ou lateral entre unidades (pertecentes ou não a uma
mesma organização) que se dedicam ao alcance de um mesmo objetivo, frente à percepção da
interdependência existente entre elas e das limitações da coordenação vertical. Para esse autor,
a transversalidade permitiria, ainda, a convivência entre a especialização, que favorece o
aprofundamento do conhecimento ao aplicá-lo aos problemas, e a interdisciplinariedade no
trato destes problemas.
Há ainda autores, como Serra (2004), para quem a transversalidade está relacionada a
uma forma de gestão de políticas públicas para problemas ou demandas sociais que não fazem
parte da missão ou das competências de uma só parte da administração pública, mas que
implicam todo o seu conjunto ou, ao menos, uma parte significativa dela. Sendo assim, esses
problemas e demandas não podem ser efetivamente tratados a partir das estruturas e

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organizações tradicionais de gestão. Aponta, assim, uma dupla caracterização da


transversalidade:

La transversalidad es, al mismo tiempo, un concepto y un instrumento


organizativo cuya función es aportar capacidad de actuación a las
organizaciones en relación con algunos temas para los que la organización
clásica resulta inadecuada. En este sentido, responde tanto a necesidades de
diseño de la organización como a necesidades de gestión (SERRA, 2004, p.3).

Do ponto de vista da gestão, Serra (2004) aponta uma diferença importante entre a
transversalidade e outras formas de coordenação e integração horizontal e vertical: a introdução
de novos pontos de vista, valores, objetivos e linhas de trabalho para as organizações da
administração pública.
Assim, a transversalidade representa um instrumento de organização interna, diferente,
mas não mais importante do que aqueles destinados à cooperação interadministrativa, à
cooperação público-privada, à participação social, às alianças estratégicas, às gestões de redes,
etc (SERRA, 2004).
Também Bronzo (2007) entende que a transversalidade constitui uma parte soft da
organização, enquanto dimensão complementar à estrutura organizativa [especializada e
hierarquizada] básica ou hard, conferindo uma visibilidade horizontal à organização sem que
se perca a qualidade técnica e a especialização.
Silva (2011) segue pelo mesmo caminho e entende a transversalidade como um
instrumento de intervenção social que visa incorporar à gestão aspectos selecionados da
realidade que são determinantes para o atendimento de um problema ou situação específica e
que necessitam de abordagem multidimensional e integrada para enfrentamento eficaz. De
acordo com Silva (2011), enquanto a coordenação intersetorial envolve a atuação conjunta para
atingir um objetivo já dado, a transversalidade introduz linhas de trabalho não atendidas
anteriormente ou que não poderiam ser atendidas de forma vertical.
Ao fazer essa incorporação, Serra (2004) e Silva (2011) chamam atenção para o fato de
que a política pública setorial será, necessariamente, modificada de forma permanente ou
ressignificada. Nesse sentido, convém ressaltar que, sendo a transversalidade um instrumento
para a gestão de problemas ou situações que demandam abordagem multidimensional e
integrada para enfrentamento eficaz, sua adoção não está restrita apenas a temas sociais e/ou ao
encaminhamento de demandas relacionadas a grupos populacionais específicos, conforme
tendência atual prevalecente no âmbito da administração pública federal brasileira.
Embora apresentem nuances, as definições de transversalidade apresentadas pelos
autores citados possuem um núcleo duro, representado pelas ideias-chave de estratégia de
gestão, necessidade de coordenação entre diferentes áreas e atores, ressignificação de políticas
públicas e atribuições das organizações, aparecimento de novas demandas e perspectivas, e
complexidade dos problemas envolvidos.
Fortalece-se também a partir da leitura dos autores aqui citados a percepção de que o
tema da transversalidade possui uma natureza dual, sendo ao mesmo tempo
conceitual/substantiva (quando se trata da concepção do problema e apreensão da realidade) e
institucional/organizacional (quando se trata de operacionalizar as políticas públicas).
A incorporação da transversalidade à administração pública, contudo, não deve ser vista
como algo banal. Silva (2011) pondera que a adoção do enfoque da transversalidade apresenta
desafios, tais como:
✓ Lidar com estruturas setoriais complexas, que encerram debates em torno de
políticas, coalizões, limites legais, marcos regulatórios, participações sociais, e

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

que são permeadas pelo desenho altamente departamentalizado da administração


pública;
✓ Enfrentar a resistência e as dificuldades dos gestores públicos em compreender
a relevância dos problemas e demandas sociais complexos e multifacetados
trabalhados pela abordagem transversal e incorporá-los em suas práticas
cotidianas;
✓ Lidar com a ampliação de custos de diferentes naturezas relacionados à
necessidade de coordenação, de promoção da transparência, de pactuação e
articulação, o que demanda não apenas tempo, novos recursos e competências
por parte dos órgãos setoriais como também acarreta nova configuração nas
estruturas de poder.
Essas dificuldades estão em linha com a pesquisa realizada por Brandão (2012) no que
diz respeito à inovação na administração pública federal, a qual aponta como principais
barreiras à inovação: (1) a falta de apoio político à inovação; (2) a baixa de capacidade de gestão
intergovernamental e intersetorial; (3) a falta de capacitação da equipe e dos dirigentes; (4) as
limitações legais e orçamentárias; (5) a dificuldade de coordenação de atores; (6) a diversidade
social, cultural e econômica do país; (6) a aversão ao risco de inovar; (7) a rotatividade de
dirigentes; e (8) a estrutura organizacional verticalizada.
Estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada - IPEA (2009)
também aborda alguns dos desafios enfrentados em âmbito federal para que gestão transversal
possa realizar-se:

[…] faz-se necessário, primeiramente, que haja percepção compartilhada da


interdependência. Isto é, enquanto agentes relevantes não se reconhecerem
como mutuamente dependentes, tornam-se infrutíferos esforços de gestão
coordenada. […] Igualmente, é necessário que a relação entre gestores e
órgãos não seja marcada por desconfiança e competição, que podem sinalizar
visões de mundo diversas, concepções distintas de como encaminhar a política
na área ou disputas de poder pela coordenação da política sobre determinado
tema. Tais características impedem antes de tudo o diálogo, favorecendo o
estabelecimento de relações conflitivas ou puramente instrumentais. […] é
fundamental que seja evitada a tendência burocrática típica de centralização
das decisões, pois esta tendência resulta, frequentemente, em sobrecarga de
normatizações conflitantes com aquelas específicas de cada órgão – o que
impele atores a ignorar ou a flexibilizar novas normas, diluindo também
responsabilidades – e em maior lentidão do proceso decisório (IPEA, 2009, p.
780-781).

Para Serra (2004), contudo, os problemas relacionados à gestão transversal na


administração pública surgem, geralmente, de uma frágil definição do próprio instrumento e de
sua deficiente implementação. O autor aponta ainda certo exagero nas expectativas alimentadas
por parte daqueles que utilizam o instrumento, como se ele pudesse resolver todos os problemas
organizativos e políticos do governo.
O estudo realizado pelo IPEA (2009), citado anteriormente, parece confirmar essa
percepção ao mencionar o uso indiscriminado do termo no governo, possibilitando a diluição
de responsabilidades ao imputar o sucesso ou o fracasso de determinada política à formação da
rede social ou do arranjo gerencial que permitiria atacar as diversas causas do problema, de
forma contemplar a sua complexidade.
Nesse estudo, o IPEA (2009) também chama a atenção para o fato dos gestores federais
terem adotado uma leitura estreita da transversalidade, associando tanto o conceito como o

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

instrumento gerencial apenas ao tratamento das questões e demandas associadas a grupos


vulneráveis ou minoritários pelas políticas públicas.
Essa vinculação entre transversalidade e minorias decorreria da conjugação de dois
fatores: (1) o fato desses grupos sociais, devido a características peculiares de sua inserção na
sociedade nacional, marcada pela discriminação e pela negação de sua condição de sujeitos de
direitos, enfrentarem dificuldades para verem suas demandas legimitimate incorporadas à
agenda pública; (2) o fato das demandas associadas a esses grupos encontrarem dificuldades
para serem encaminhadas a partir do modelo departamental pelo qual o governo se organiza
(IPEA, 2009).
Assim, como a partir de 2003 o governo federal cria as Secretarias Especiais de Políticas
para as Mulheres, de Igualdade Racial e de Direitos Humanos, bem como a Secretaria Nacional
da Juventude (ligadas à Presidência da República) com o objetivo declarado de coordenar ações
voltadas para esses grupos (negros, mulheres, crianças, adolescentes, jovens e pessoas com
deficiência) e estas secretarias adotam a estratégia da transversalidade como forma de atuação,
fixa-se, entre os gestores federais, uma percepção errônea da transversalidade como sinônimo
de políticas públicas voltadas ao atendimento das necessidades de populações vulneráveis ou
grupos minoritários. É preciso, todavia, perceber que não há temas transversais a priori e, sim,
práticas de transversalidade que podem, portanto, ser aplicadas a diversos campos de política
pública (IPEA, 2009).
Para o desenvolvimento deste artigo, a transversalidade é compreendida tanto como uma
estratégia conceitual quanto um instrumento de gestão, capaz de ampliar a capacidade de
atuação dos órgãos da administração pública em relação a problemas complexos e
multifacetados, cujo enfrentamento ultrapassa as competências de um órgão isoladamente.
Avalia-se que a transversalidade, preservando a especialização técnica com que a administração
pública se organiza, procura avançar na coordenação e integração entre os diferentes setores
governamentais de forma que a atuação deles incorpore novas linhas de trabalho, construídas a
partir da filiação a novas perspectivas, valores e objetivos. Dessa forma, entende-se que a
transversalidade rompe com a pretensa neutralidade das políticas públicas.
Nesse sentido, a transversalidade se difere da multissetorialidade, já que vai além da
mera justaposição de expertises setoriais, agregando um novo olhar sobre a diversidade e a
complexidade.
Tendo em vista que os planos plurianuais expressam as prioridades estabelecidas pelo
governo federal para o conjunto das políticas públicas para um período de quatro anos, a
próxima seção analisará a forma como a transversalidade foi tratada por esses instrumentos ao
longo dos últimos 12 anos, ou seja, a partir do PPA 2004-2007. A adoção do "Plano Um Brasil
de Todos: Participação e Inclusão" como marco inicial de análise se explica pelo fato de nele,
pela primeira vez, a transversalidade aparecer definida como diretriz do processo de elaboração
e gestão do plano plurianual federal (IPEA, 2009).

2 A Transversalidade nos Planos Plurianuais de 2004 a 2015

A Constituição Federal de 1988 estabelece que o orçamento público brasileiro


compreende a elaboração e a execução de três leis básicas: o Plano Plurianual - PPA, a Lei de
Diretrizes Orçamentárias - LDO e a Lei Orçamentária Anual - LOA, que em conjunto deveriam
ser capazes de materializar o planejamento e a execução das políticas públicas. Tais
instrumentos são instituídos no âmbito de cada ente da Federação.
O § 1º do artigo 165 da Constituição Federal preceitua que: "a lei que institui o plano
plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da
administração pública federal". O PPA estabelece objetivos, recursos e metas a serem seguidos
pela administração pública, balizando a cada ano a elaboração e a implementação da LOA. O

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Plano é aprovado por lei quadrienal, com vigência do segundo ano do mandato do chefe do
Poder Executivo até o final do primeiro ano do mandato seguinte.
A adoção da transversalidade como orientação para o PPA federal está ligada tanto à
emergência de novos temas quanto de novos atores na agenda governamental federal, ainda
como parte do processo de redemocratização do País. Mas também, é preciso que se diga, a
uma atuação decidida dos movimentos sociais e de ONG junto ao Poder Executivo Federal no
sentido de que as questões relacionadas a meio ambiente, gênero, raça/etnia, pessoa com
deficiência, Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT, além de assuntos de
enfoque geracional fossem tratados a partir de uma perspectiva transversal.
Segundo Bandeira (2005), a demanda das ONG surge após a avaliação do PPA 2000-
2003 e da execução orçamentária dos programas ambientais do governo federal para 2002, em
que se constatou que esses temas tratados de forma setorial, em projetos específicos, não
conseguiram alcançar os resultados almejados. Na visão desses atores, era preciso reorientar a
atuação do Governo, de maneira que as demandas dos grupos socialmente discriminados
fossem consideradas em todas as políticas públicas em que eles participassem.
A pressão exercida pela sociedade civil organizada foi fundamental para que o Poder
Executivo Federal enfrentasse o desafio de aprimorar as políticas públicas setoriais de forma a
incorporar as múltiplas facetas da realidade social e econômica do país e, assim, oferecer uma
resposta governamental adequada a questões de natureza complexa, que não possuem uma
solução definitiva e que não podem ser encaminhadas por um único órgão da administração
pública federal, os chamados “problemas malditos” (REINACH, 2013).
Nesse contexto, é que a Mensagem Presidencial que encaminhou o PPA 2004-2007 ao
Congresso Nacional, bem como o Plano de Gestão estabelecido para ele fazem a diferenciação
entre as políticas setoriais clássicas (saúde, educação, energia, transportes) e os temas
transversais, que são os que revelam noções de justiça e cidadania e devem ser encarados pela
ótica da heterogeneidade dos grupos sociais e das diferenças regionais e culturais, tais como
ciência, tecnologia e inovação; emprego; direitos humanos; meio ambiente; gênero; raça e
etnias (MP, 2003; BRASIL, 2004).
Para esse conjunto de temas, o Plano de Gestão do PPA 2004-2007 previa também um
arranjo particular que almejava introduzir "uma cultura de gestão pública transversal", a qual
requeriria ao mesmo tempo a construção de uma institucionalização para estes temas e um
permanente processo de conscientização e capacitação dos funcionários e gestores públicos
(BRASIL, 2004).
A proposta apresentada pelo Plano de Gestão do PPA 2004-2007 era que cada um dos
temas transversais fosse gerido por meio de uma Câmara do Conselho de Governo e seu Comitê
Executivo, bem como por Grupo(s) de Trabalho para este fim constituído(s) (BRASIL, 2004).
Conforme lembra Bronzo (2007, p.15), o arranjo de natureza intersetorial em âmbito
institucional é importante porque favore a “coordenação política e tecnicamente legitimada,
capaz de estabelecer marcos e pautas comuns de ação, negociar interesses e neutralizar
resistências às mudanças”.
Embora o Plano de Gestão do PPA 2004-2007 não adentrasse em minúcias, é possível
pensar em uma certa complementaridade entre o arranjo de natureza intersetorial ali proposto
com as estruturas transversais criadas no Governo Lula, as já mencionadas Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Secretaria Especial de Políticas para as
Mulheres, Secretaria Nacional da Juventude e Secretaria Especial de Direitos Humanos. Isso
porque, essas secretarias exerceriam o papel de catalisadores do novo enfoque proposto para as
políticas públicas setoriais, alimentando os órgãos setoriais de visões específicas e objetivos
estratégicos de mudança social (BRONZO, 2007; PAPA, 2012).
Ainda segundo a lógica trabalhada pelo Plano de Gestão do PPA 2004-2007, esses
espaços de gestão no Governo Federal definiriam as metas a serem alcançadas no âmbito dos

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

programas do PPA relacionados a cada um dos temas, estas metas seriam inseridas no Sistema
de Informações Gerenciais e de Planejamento - SIGPLAN e também apresentadas nos sites dos
respectivos ministérios responsáveis pela programação a fim de possibilitar o monitoramento
de seu andamento e a conferir transparência à atuação governamental (BRASIL, 2004).
Vale mencionar ainda que, segundo o Plano de Gestão do PPA 2004-2007, haveria
identificado, no âmbito de cada ministério envolvido com o tema transversal, um responsável
pela condução dos programas setoriais com vistas ao atingimento das metas de transversalidade
esperadas (BRASIL, 2004). Adicionalmente, esperava-se que as Câmaras de Conselho
desempenhassem as seguintes funções (BRASIL, 2004):
✓ Constituir-se no fórum de discussão e negociação para incorporação da
dimensão temática nos programas dos órgãos setoriais e suas vinculadas;
✓ Incorporar conceitos e práticas comuns no tratamento de temas transversais às
políticas governamentais;
✓ Melhorar a integração entre os órgãos setoriais na definição e tratamento do tema
transversal;
✓ Aumentar o grau de articulação entre instituições e demais atores envolvidos na
gestão temática;
✓ Identificar oportunidades setoriais de investimentos em atividades específicas
relativas ao tema;
✓ Divulgar e disseminar o conhecimento relativo ao tema nas diversas instâncias
e fóruns governamentais e não-governamentais.

Neste período, o termo transversalidade ganhou enorme popularidade entre os gestores


públicos federais e, diversos órgãos públicos federais demonstravam interesse em participar das
discussões associadas a esta estratégia gerencial.
Todavia, pesquisa realizada pelo IPEA em 2009, a partir dos Relatórios Anuais de
Avaliação dos Programas do PPA 2004-2007, indicou que a despeito do crescimento observado
naquele período no número de órgãos que afirmavam contemplar, de alguma forma, a
transversalidade em sua programação, havia muito desconhecimento e, consequentemente, a
leitura equivocada por parte de alguns dos gestores públicos quanto ao que fosse
transversalidade e como ela poderia ser incorporada às práticas cotidianas dos órgãos setoriais.
Neste estudo do IPEA (2009) fica clara a variedade de interpretações e práticas quanto
à transversalidade. Muitos gestores afirmavam haver transversalidade nos programas sob sua
responsabilidade ainda que não fosse possível encontrar qualquer indício disto na programação
ou que não houvesse uma prática de gestão lateral ou articulação intersetorial para a
implementação da política pública a qual os programas estavam associados.
Como se viu, o PPA 2004-2007 representou um grande esforço na definição de um
conceito amplo de transversalidade. Esse conceito contemplou tanto a elaboração quanto a
implementação das políticas públicas. Ainda assim, a transversalidade acabou sendo vista, entre
os gestores públicos, como algo restrito à área social e identificada com grupos populacionais
minoritários ou vulneráveis.
Nesse sentido, é importante observar que os próprios Manuais de Avaliação do Plano
e, por conseguinte, os Relatórios Anuais de Avaliação dos Programas do PPA 2004-2007ii
entregues ao Congresso Nacional restringiam o enfoque de transversalidade, na medida em que
a avaliação do grau de inserção da transversalidade nas políticas públicas federais se limitava
tão somente ao levantamento das ações que priorizavam os grupos populacionais trabalhados
pelas Secretarias Especiais (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Secretária
de Políticas para as Mulheres, Secretaria Nacional da Juventude e Secretaria de Direitos
Humanos). O objetivo do levantamento era instrumentalizar esses órgãos em suas atividades.

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O estudo do IPEA (2009), já mencionado nesta seção, também chamava atenção para o
processo de estreitamento pelo qual a transversalidade vinha passando na esfera federal e
apontava alguns dos problemas decorrentes disso, tais como: (i) a crença, compartilhada por
alguns dos gestores de programas vinculados a políticas públicas setoriais universais, de que as
demandas e necessidades das minorias estariam automaticamente consideradas por seus
programas, tendo em vista que esses programas atendiam a população como um todo; e (ii) a
convicção, por parte de alguns dos gestores de programas destinados especificamente ao
atendimento de minorias, de que só porque atuavam junto a este público seus programas
estariam necessariamente realizando uma gestão transversal.
Além disso, o estudo enfatizava que a homogeneização da “questão das minorias” na
ideia de “temas transversais” causava prejuízos, uma vez que a indistinção na forma com que
os grupos populacionais eram considerados, tornava o debate a respeito de suas especificidades
superficial (IPEA, 2009).
No "PPA 2008-2011: Desenvolvimento com Inclusão Social e Educação de Qualidade"
a transversalidade deixa de constar, explicitamente, como diretriz para a elaboração e gestão
dos programas, tendo o próprio Plano perdido muito do seu protagonismo em virtude do
lançamento de outros dois planos, que, embora menos abrangentes, contavam à época com
muito mais capital político: o Plano de Aceleração do Crescimento - PAC, principalmente, e o
Plano de Desenvolvimento da Educação - PDE.
Assim, embora as Secretarias Especiais da Presidência da República – sendo aquilo que
Serra (2009) defende como adequado para a gestão transversal, a saber: estruturas “leves”, que
contribuem com as estruturas tradicionais de governo (especializadas e hierárquicas) com
conhecimento e informação, mas com recursos orçamentários e humanos relativamente
modestos, visto caber a elas apenas uma pequena parcela da execução das políticas públicas –
tenham continuado a trabalhar na ampliação de suas agendas há, em certa medida, um
retrocesso. Nessa lógica, é importante perceber que conquanto a incorporação da
transversalidade no modelo de elaboração e no plano gestão do PPA não sejam suficientes para
garantir que as ações e parcerias se efetivarão, ela permite a responsabilização formal dos
órgãos setoriais pela realização do que foi pactuado. Os Planos, como instrumentos de
organização da atuação governamental, sinalizam os temas prioritários e a estratégia
governamental. Segundo Reinach:

Os Planos como instrumentos de governo e não apenas das Secretarias


permitem que os temas trazidos por esses órgãos passem a se fazer presentes no
plano de governo.(...) Dessa forma, as Secretarias conseguem interferir de
forma estratégica no governo. Ou seja, o Plano tem a incumbência de "dizer ao
governo" como lidar com as questões de gênero, raça e direitos humanos. (...)
Dessa forma, o Plano teria esse papel simbólico de tratar das estratégias e linhas
de atuação governamental (REINACH, 2012, p.110).

A questão sobre como tratar a transversalidade no âmbito do PPA é retomada apenas


nos debates acerca do "novo modelo do Plano" e aparece nas Orientações para a Elaboração
do Plano Plurianual 2012-2015 (MP, 2011b) como um parâmetro a ser utilizado na definição
do Programa Temático. Assim, de acordo com o documento, a abrangência do Programa
Temático deveria ser a necessária para representar os desafios e organizar a gestão, o
monitoramento, a avaliação, as transversalidades, as multissetorialidades e a territorialidade do
tema de política pública (MP, 2011b).
Por sua vez, a Mensagem Presidencial que encaminhava o PPA 2012-2015, também
chamado de "Plano Mais Brasil: Mais Desenvolvimento, Mais Igualdade, Mais Participação",
ao Legislativo Federal afirmava, ao explicar as alterações realizadas na estrutura do Plano, bem
como no seu relacionamento com Orçamento Geral da União - OGU, que as novas categorias

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

criadas (objetivos e iniciativas) seriam capazes de expressar relações que, antes, eram restritas
pela contabilidade pública. Nesses termos, a integração entre as políticas, em especial o
tratamento da transversalidade, não mais estaria limitada pelo desenho das ações orçamentárias
com seus respectivos produtos, de forma que a combinação entre objetivos, metas e iniciativas
criariam as condições para uma abordagem mais adequada da relação entre as políticas. Ainda
de acordo com o documento, aquelas alterações tinham sido fundamentais para revelar no
âmbito do PPA 2012-2015 as políticas para as mulheres, raça, criança e adolescente, idoso,
LGBT, quilombola, povos e comunidades tradicionais, juventude e pessoa com deficiência que
eram implementadas pelo governo federal (MP, 2011c).
Além disso, a Mensagem Presidencial esclarecia que a dimensão estratégica do PPA
2012-2015, o novo modelo do Plano e a visão preliminar da estrutura programática haviam sido
discutidos no âmbito do Fórum Intercoselhosiii à luz da multissetorialidade e transversalidade.
Naquela oportunidade, os participantes do Fórum apresentaram sugestões de aperfeiçoamento
à versão preliminar do Plano e demandaram que aquele espaço institucional fosse utilizado para
o monitoramento contínuo do Plano Mais Brasil (MP, 2011c).
De fato, em 2012, o Fórum Interconselhos - ele próprio um mecanismo voltado à
superação da fragmentação setorial dos espaços de participação social na administração pública
federal (AVELINO; SANTOS, 2015) - e o Governo Federal firmaram um pacto para o
"Monitoramento Participativo do PPA", a partir do conjunto de compromissos relativos a temas
de natureza transversal e multissetorial assumidos pelo Governo da Presidente Dilma Rousseff,
as chamadas Agendas Transversais.
As Agendas Transversais se constituem, portanto, em forma alternativa de organização
das informações contidas no Plano, ou melhor, no Relatório Anual de Avaliação do PPA 2012-
2015, ano base 2012, para nove assuntos: (1) Igualdade racial, comunidades quilombolas e
povos e comunidades tradicionais; (2) Povos indígenas; (3) Políticas para mulheres; (4) Criança
e adolescente; (5) Juventude; (6) Pessoa idosa; (7) Pessoas com deficiência; (8) População em
situação de rua; e (9) População LGBT.
A intenção por parte do governo federal era que as Agendas Transversais permitissem
"apreender a ação planejada para assuntos que se encontravam dispersos nos programas
temáticos" (MP, 2013a). A necessidade de criação desse instrumento, no entanto, deixa claro
os limites para se lidar com o desafio de incorporar a perspectiva transversal na política pública
mediante modificações na estrutura programática do PPA e demonstra, pelos temas que elege
para acompanhamento e prestação de contas junto à sociedade civil organizada, que a tendência
de restrição da transversalidade à área social, já percebida durante o ciclo de gestão do PPA
2004-2007, continua a prevalecer.

Considerações Finais

Neste artigo, a transversalidade é compreendida tanto como uma estratégia conceitual


quanto um instrumento de gestão, capaz de ampliar a capacidade de atuação dos órgãos da
administração pública em relação a problemas complexos e multifacetados, cujo enfrentamento
ultrapassa as competências de um órgão isoladamente.
O PPA 2004-2007, em acordo com o “espírito de seu tempo”, tratou da questão, tanto
apresentando definições conceituais na fase de elaboração do Plano quanto propondo
estratégias, ferramentas e instrumentos, na fase de gestão, que permitissem ao governo federal,
dentro da estrutura organizacional setorial, melhor adaptar-se às exigências de uma realidade
muito complexa. Com relação à fase da gestão, como se viu, o Plano de Gestão do PPA 2004-
2007 chegou inclusive a trazer a previsão de espaços institucionalizados para o exercício da
transversalidade.

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Contudo, ao longo dos anos, houve, do ponto de vista conceitual, tanto uma vulgarização
do termo como a sua diluição semântica. Uma das possibilidades para essa dissolução é a falta
de clareza por parte dos gestores públicos federais quanto ao que seja transversalidade e,
portanto, sobre quais seriam suas diferenças em relação a outras formas de coordenação e
integração horizontal e vertical. Essa falta de integibilidade quanto ao termo fez surgir
diferentes interpretações e enfoques sobre o que seria a transversalidade e como ela poderia ser
operacionalizada no âmbito da administração pública federal.
Além da diluição conceitual, determinado por sua imprecisão semântica, constata-se,
após três ciclos de elaboração e gestão do PPA federal, a restrição da transversalidade, enquanto
estratégia de gestão, às políticas públicas voltadas ao atendimento das demandas e necessidades
de populações vulneráveis ou grupos minoritários. É preciso, todavia, perceber que não há
temas transversais a priori e, sim, práticas de transversalidade que podem, portanto, ser
aplicadas a vários campos das políticas públicas.
A identificação do instrumento da gestão transversal como algo relacionado às minorias,
conforme foi discutido neste texto, não apenas não é desejável, já que restringe as possibilidades
de seu uso no âmbito da administração pública, como traz prejuízos ao tratamento das
especificidades de cada um dos grupos prioritários considerados pelo governo, uma vez que a
indistinção entre eles no debate leva a uma abordagem superficial das questões a eles
relacionadas.
A despeito das dificuldades apontadas para a incorporação da transversalidade na
administração pública federal, notadamente no âmbito do ciclo de gestão do PPA federal,
acredita-se que a transversalidade seja um instrumento de gestão imprescindível ao governo e
que o caminho percorrido até aqui permite apostar em seu aprimoramento nos próximos anos.

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68
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

i
É importante mencionar que o termo transversalidade é utilizado em outras áreas de conhecimento como
a educação, a psicologia, a sociologia e a psicologia. Se for levado em considereação, por exemplo, que na área de
educação a ideia de transversalidade está associada a uma nova forma de abordagem do processo pedagógico, a
interdisciplinaridade, e que na área de psicologia, a transversalidade é definida como uma dimensão contrária e
complementar às estruturas de hierarquização piramidal, será constatado uma certa semelhança nos sentidos em
que esta ideia é adotada por estas áreas e aquele em que é utilizada no campo da administração pública (IPEA,
2009; PAPA, 2012).
ii
Ver Manuais de Avaliação e Relatórios de Avaliação do PPA 2004-2007 citados nas referências
bibliográficas deste artigo.
iii
O Fórum Interconselhos corresponde a uma instância de caráter consultivo criada por ocasião do
processo de elaboração do PPA 2012-2015 e integrada por representantes da sociedade civil vinculados aos
conselhos setoriais e às comissões nacionais de políticas públicas, bem como por pessoas vinculadas a movimentos
e entidades da sociedade civil de caráter nacional.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Qual Universidade para Qual Sociedade?

Angelo Brigato Ésther


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Resumo

A universidade é uma das instituições mais duradouras da história, embora ela venha se
transformando ao longo dos séculos, desde sua criação original na Europa, nos idos do século
XI. A despeito de sua longevidade, nem sempre sua existência foi inquestionável, pois, em
diversos momentos, as sociedades, os governos e os Estados colocaram em xeque a necessidade
de sua permanência e de sua forma organizativa. Neste sentido, entendemos que as políticas
educacionais compreendem parte do repertório de iniciativas e de regulações que visam a
articulação entre aquelas esferas, sobretudo quando pensamos acerca de qual é a concepção que
se tem acerca da educação superior e suas finalidades sociais e econômicas. Para além dos
discursos, mas, necessariamente, a eles associados, decisões concretas e pragmáticas precisam
ser tomadas, como, por exemplo, prioridades quanto à distribuição de recursos públicos. Assim,
procura-se problematizar a universidade tendo em vista sua articulação com o Estado, com o
governo e com a sociedade, tendo em conta as diversas demandas, expectativas, necessidades
dos diversos atores sociais.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Introdução
A universidade é uma das instituições mais duradouras da história, embora ela venha se
transformando ao longo dos séculos, desde sua criação original na Europa, nos idos do século
XI. A despeito de sua longevidade, nem sempre sua existência foi inquestionável, pois, em
diversos momentos, as sociedades, os governos e os Estados colocaram em xeque a necessidade
de sua permanência e de sua forma organizativa. Ainda assim, ela sobreviveu. Por outro lado,
a universidade da forma como conhecemos é relativamente recente, pois ela se institucionaliza
apenas no século XVI. Desde então, tal como em sua fase medieval, ela não ficou imune a
críticas e crises. Dentre elas, ficaram célebres aquelas apontadas por Boaventura Santos: as
crise de hegemonia, de legitimidade e institucional (SANTOS, 1995; 2004), como veremos
adiante.
No caso brasileiro, em particular, a trajetória da universidade pode ser caracterizada por
uma “eterna crise” (TORGAL, ÉSTHER, 2014), mesmo na fase anterior à sua criação oficial
no século XX. Nesta trajetória, a relação da universidade com a sociedade, com o Estado e com
os governos tem sido marcada por tensões e contradições, envolvendo posições e concepções
conflitantes, especialmente em relação a seu papel, finalidades e identidade. Tal situação
implica um forte jogo político, que tende a culminar em políticas e práticas institucionalizadas,
mesmo que não consensuais.
Neste sentido, entendemos que as políticas educacionais compreendem parte do
repertório de iniciativas e de regulações que visam a articulação entre aquelas esferas, sobretudo
quando pensamos acerca de qual é a concepção que se tem acerca da educação superior e suas
finalidades sociais e econômicas. Para além dos discursos, mas, necessariamente, a eles
associados, decisões concretas e pragmáticas precisam ser tomadas, como, por exemplo,
prioridades quanto à distribuição de recursos públicos. Assim, se a educação é considerada
elemento ou “fator” de desenvolvimento econômico e social, a eficiência e a eficácia da
administração política passa a ser uma questão igualmente fundamental.
O artigo tem como objetivo discutir os rumos da universidade pública brasileira –
notadamente a federal – no que diz respeito à sua identidade e modelos de governança, a partir
de uma perspectiva histórica, com vistas a analisar suas possibilidades futuras. Neste aspecto,
procura-se problematizar a universidade tendo em vista sua articulação com o Estado, com o
governo e com a sociedade, tendo em conta as diversas demandas, expectativas, necessidades
dos diversos atores sociais. Isto implica, pelo menos em parte, a articulação com as esferas da
educação superior – no que diz respeito, especialmente, às suas finalidades prescritas –, da
produção – tendo em vista a crescente demanda por conhecimento como “fator de competição”
– e da própria economia – que vem “exigindo” da universidade o desempenho do papel de
agente econômico.

As concepções de universidade: modelos e crises


A despeito de sua antiguidade, a universidade possui características e configurações
distintas ao longo de sua existência, cujas variações expressam, de forma dialética, as
transformações da sociedade como um todo. Neste sentido, Drèze e Debelle (1983) entendem
a instituição universitária segundo cinco pontos de vista, que denominam “concepções da
universidade”: centro de educação, comunidade de pesquisadores, núcleo de progresso, modelo
intelectual e fator de produção. As três primeiras concepções compõem o que os autores
chamam de “a universidade do espírito”, e que dizem respeito aos ideais mais tradicionais da
universidade, sendo representadas pela universidade inglesa, pela alemã e pela norte-americana,
respectivamente. As duas últimas concepções são agrupadas sob o rótulo “a universidade do
poder”, concernentes à universidade francesa e à soviética. As principais características

71
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

identificadas pelos autores, observadas no Quadro 1, referem-se à forma como os autores


percebem as universidades.
Cada concepção retrata a universidade de acordo com as sociedades em que foram
iniciadas e com a interpretação da realidade de sua época. Assim, a universidade inglesa visava
à difusão e à extensão do saber universal. Segundo Newman, não haveria razão para que ela
tivesse estudantes se ela fosse apenas um lugar para descoberta científica e filosófica, ou seja,
consagrada à pesquisa. Sua concepção, compatível com sua época, era a de que o homem
buscava naturalmente o saber e que este deveria ser ensinado nas universidades. No entanto, tal
saber não era exclusivamente profissional (DRÈZE & DEBELLE, 1983).
A universidade alemã, inspirada na universidade de Huboldt, tem como representante
mais contemporâneo Karl Jaspers, o qual parte do princípio de que a humanidade aspira à
verdade, e daí a necessidade de se criar uma comunidade de pesquisadores e estudantes.
Segundo essa premissa, a universidade deve existir com base em dois princípios: a unidade do
saber; e a unidade da pesquisa e do ensino (que, para Jaspers, significa iniciação à pesquisa).
Assim, para se descobrir a verdade, é necessária a liberdade acadêmica – ou seja, não deve
haver censura intelectual (DRÈZE & DEBELLE, 1983).
Na concepção de Whitehead, a universidade americana deve ter a capacidade de
influenciar o lugar público e de ser por este influenciado, de modo que se obtenha o progresso
da sociedade. A ênfase no progresso é menos desinteressada do que a aspiração ao saber e à
verdade, mas a cultura e a ciência deveriam desembocar na ação; ou seja, serem úteis. Portanto,
a pesquisa e a educação são primordiais para o progresso, devendo-se aliar a imaginação à
experiência e o entusiasmo criador à ciência adquirida para uma reflexão inventiva sobre as
formas de saber. Assim, “trata-se [...] de impregnar a execução dessa dupla tarefa de um espírito
inventivo, de orientar os homens que consagram a ela para a criação e o progresso; isso é próprio
da universidade” (DRÈZE & DEBELLE, 1983, p. 67).
A universidade francesa, por sua vez, não possui um autor específico de referência,
sendo necessário remontar a Napoleão, por sua considerável influência, a despeito das diversas
reformas educacionais que ocorreram ao longo dos séculos. Napoleão possuía uma concepção
totalitária do poder segundo a qual a universidade era organizada. Assim, é a finalidade
sociopolítica da instrução que define a ideia napoleônica da universidade. Em outras palavras,
“serviço público do Estado, a universidade imperial é ideologicamente subjugada ao poder e se
vê assumir uma função geral de ‘conservação da ordem social’ pela difusão de uma doutrina
comum” (DRÈZE & DEBELLE, 1983, p. 86), por meio da organização de professores a serviço
do imperador, que asseguravam basicamente o ensino profissional (DRÈZE & DEBELLE,
1983).

Quadro 1 – Concepções da universidade, segundo Drèze e Debelle

A universidade do Espírito A universidade do Poder


II
I III IV V
Uma
Um centro de Um núcleo de Um modelo Um fator de
comunidade de
educação progresso intelectual produção
pesquisadores
Conselho dos
Influência A. N.
J. H. Newman K. Jaspers Napoleão Ministros da
principal Whitehead
URSS
Aspiração da Aspiração da Estabilidade Edificação da
Aspiração do
Finalidade humanidade à sociedade ao política do sociedade
indivíduo ao saber
verdade progresso Estado comunista
A unidade da A simbiose da Um ensino Um instrumento
Concepção Uma educação
pesquisa e do pesquisa e do profissional funcional de
geral geral e liberal por
ensino no centro ensino a serviço uniforme, formação

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A universidade do Espírito A universidade do Poder


II
I III IV V
Uma
Um centro de Um núcleo de Um modelo Um fator de
comunidade de
educação progresso intelectual produção
pesquisadores
intermédio do do universo das da imaginação confiado a um profissional e
saber universal ciências criadora grupo política
profissional
Um corpo
Uma pedagogia
Uma sã docente criador; Uma
do Uma hierarquia
organização da os estudantes manipulação
Princípios de desenvolvimento administrativa;
faculdade; capazes de controlada da
organização intelectual; programas
liberdade aplicar alguns oferta de
internato e uniformes
acadêmica princípios diplomados
“tutores”
gerais
Adaptação do
número às
Conclusão
Uma rede diversificada de instituições de ensino Uma rede oficial necessidades da
quanto ao
superior no seio da qual as universidades conservam uniforme para a economia e
problema
sua originalidade massa e a elite diversificação
da massa
das instituições

Adaptado de Drèze & Debelle (1983, p. 29).

Por fim, a universidade soviética, sob influência do marxismo-leninismo, foi definida


tendo por objetivo a construção da sociedade comunista, segundo as diretrizes aprovadas pelo
Conselho de Ministros, em 1961. O ensino é dirigido basicamente para a formação de um
quadro de especialistas profissionais, por meio de conhecimentos científicos e políticos para a
população, a começar pelos estudantes e mediante a determinação de cotas para os quadros
profissionais. Em resumo, a concepção universitária russa visa integrar a instituição ao processo
socioeconômico da nação, orientando e reorientando os conteúdos de acordo com os objetivos
estabelecidos pelo governo central (DRÈZE & DEBELLE, 1983).
Em alguma medida, pode-se notar que a concepção de universidade guarda relação com
a dinâmica socioeconômica da sociedade, bem como com orientações político-ideológicas do
governo e do Estado. No caso brasileiro, sabemos que desde a proclamação da república, os
governos buscaram a modernidade como ideal a ser alcançado, a qual, do ponto de vista
econômico, coincide com o capitalismo. Em seus primeiros anos de vida, a república não via
necessidade de se instalar uma universidade no país, por considera-la algo atrasado, herança do
antigo regime. Só em 1920 é que vai surgir a primeira universidade oficial, a Universidade do
Rio de Janeiro, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (TORGAL, ÉSTHER, 2014).
As diretrizes oficiais, especialmente a partir de 1968, seguem as recomendações
formuladas no âmbito dos acordos MEC/USAID, cuja orientação fundamental é o
estabelecimento da universidade como instrumento de formação de mão de obra para sustentar
o emergente modelo capitalista brasileiro. Esta passa a ser a identidade institucional desejada,
que vai ser buscada e sustentada, a despeito das iniciativas e experiências contrárias à orientação
oficial, como a própria USP, mas especialmente a Universidade do Distrito Federal criada por
Anísio Teixeira nos primórdios do Estado Novo de Vargas – e a Universidade de Brasília (1961)
– segundo as proposições de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro –, tomada e reformulada pelos
governos militares a partir de 1964..Também durante o período entre o Estado Novo e a ditadura
militar, o desenvolvimentismo do Presidente JK privilegiou a universidade apenas enquanto
formadora de mão de obra especializada para o parque industrial que vinha sendo e viria a ser
construído, emblematicamente representado pela indústria automobilística. Ao longo de todo o

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

período militar, a expansão do ensino superior de dá no setor privado, enquanto a universidade


pública recebe investimento mais voltados para a pós-graduação (TORGAL, ÉSTHER, 2014).
Do ponto de vista educacional, a situação não se modifica com a queda da ditadura
(1985). De certo modo, o modelo capitalista é aprofundado a partir da reforma do Estado,
promovido no período do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), algo
favorecido pela abertura econômica promovida por seu antecessor, o Presidente Fernando
Collor de Mello (sucedido por Itamar Franco em função de seu processo de impeachment). O
gerencialismo é implementado nas esferas governamentais e nos aparelhos do Estado, ainda
que de maneira não uniforme nem linear. A despeito das resistências da comunidade acadêmica,
a universidade é submetida a uma nova lógica, baseada na avaliação de desempenho, a partir
de metas de qualidade a serem alcançadas. Neste momento, as avaliações de curso são o
símbolo fundamental da política do ensino superior, especialmente por meio de provas
realizadas pelos estudantes, o chamado “provão”. O gerencialismo, no caso brasileiro,
representa a materialização dos princípios da chamada “Nova Gestão Pública”, cujos modelos
norte-americano e inglês (dos governos Reagan e Thatcher, respectivamente) são a referência
fundamental.
Nos mandatos do governo Lula, a política educacional foi modificada, recuperando-se
o investimento na universidade e adotando-se políticas sociais de expansão de acesso e
permanência, tais como o PROUNI e o REUNI, além das políticas de cotas para ingresso, o
programa “Ciência sem fronteiras”, por exemplo. No entanto, a lógica do gerencialismo não foi
totalmente abandonada. Em grande medida, sua lógica de eficiência e de resultados foi mantida,
até porque, a despeito dos investimentos em programas sociais, o modelo econômico
capitalismo é mantido e reproduzido, passando-se a admitir, inclusive, que a universidade deve
exercer o papel de agente de desenvolvimento. Neste aspecto, a ANDIFES passa a defender
este ideal, sob a ótica do modelo da “universidade empreendedora”, o que será discutido
adiante.
Embora o foco desta discussão seja a universidade brasileira, é fato que a questão
educacional ultrapassa as fronteiras nacionais. Neste sentido, tal como no Brasil, a universidade
passa a ser vista como passando uma forte crise. No nosso modo de ver, para além da alegada
crise fiscal dos países, decorrente do modelo de bem estar social, podemos considerar que a
reestruturação produtiva, cujo ápice talvez seja melhor percebido na década de 1990, provoca
mudanças profundas na estrutura econômica e, por conseguinte, nas políticas públicas. Neste
contexto, Boaventura Santos aponta o que para ele representa, naquele momento, as três crises
principais que a universidade experimentava.
Segundo Santos (2004), as crises são expressões, respectivamente, de três contradições.
A primeira se dá entre conhecimentos exemplares e conhecimentos funcionais, que se manifesta
na crise de hegemonia, a qual ocorre sempre que uma dada condição social deixa de ser
considerada necessária, única e exclusiva.
De um lado, a produção de alta cultura, pensamento crítico e conhecimentos
exemplares, científicos e humanistas, necessários à formação das elites de que a
universidade se tinha vindo a ocupar desde a Idade Média europeia. Do outro, a
produção de padrões culturais médios e de conhecimentos instrumentais, úteis na
formação de mão de obra qualificada exigida pelo desenvolvimento capitalista”
(2004, p. 8). [...] Ao deixar de ser a única instituição no domínio do ensino superior e
na produção de pesquisa, a universidade entrara em crise de hegemonia (SANTOS,
2004, p. 9).

Tal crise decorre da incapacidade da universidade em desempenhar funções


contraditórias, o que leva os grupos sociais mais atingidos pelo seu déficit funcional, ou o
Estado em nome destes, a buscarem alternativas para atingir seus objetivos (SANTOS, 2004).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

De certo modo, isto explicaria, em parte, a ação estatal oscilar entre investir no setor público e
estimular o público.
A segunda contradição se dá entre a hierarquização dos saberes especializados por meio
das restrições de acesso e do credenciamento das competências, de um lado, e as pressões
sociais e políticas de democratização da instituição e da igualdade de oportunidades para os
filhos das classes menos favorecidas, de outro. Tal contradição se manifesta como uma crise de
legitimidade, observada à medida que se torna visível socialmente a falência dos objetivos
coletivos, ou seja, ela se manifesta sempre que uma dada condição social deixa de ser aceita de
forma consensual (SANTOS, 2004).
A terceira contradição se dá entre a autonomia institucional e a produtividade social,
manifestando-se na forma de uma crise institucional, que ocorre quando uma dada condição
social estável e autossustentada não garante mais os pressupostos que asseguram sua
reprodução. A crise ocorre à medida que a especificidade administrativa da instituição é posta
em xeque e se lhe impõem outros modelos tidos como mais eficientes, baseados em critérios de
eficácia de natureza empresarial ou de responsabilidade social (SANTOS, 2004).
Segundo Santos, a crise institucional prevaleceu sobre as demais, devendo-se a uma
pluralidade de fatores, evidenciando-se o desinvestimento do Estado e a globalização mercantil
da universidade. A autonomia científica e pedagógica da universidade é baseada na
dependência financeira do Estado. Enquanto a instituição e seus serviços eram considerados
um bem público, o Estado assegurou seu funcionamento sem maiores conflitos, porém, quando
o Estado decidiu reduzir seu compromisso com as universidades e a educação em geral,
tornando-os bens públicos não exclusivos garantidos pelo Estado, a universidade entrou em
crise institucional. Nos últimos trinta anos, as universidades, na grande maioria dos países,
foram atingidas por uma crise institucional, decorrente da perda de prioridade do bem público
universitário nas políticas públicas e da consequente descapitalização e redução dos recursos
financeiros (SANTOS, 2004).
Ainda segundo o autor, a perspectiva neoliberal considera que as contradições e dilemas
das universidades são insuperáveis e que a instituição é, portanto, irreformável, o que acarretou
a criação de um mercado educacional universitário global, assumindo-se que a lógica
empresarial é mais eficiente e capaz de dar conta das demandas sociais e dos problemas gerados
pelo modelo universitário tradicional (SANTOS, 2004).
É possível afirmar que a universidade tipo mercantil tem ganhado espaço em todos os
continentes, e tal fenômeno vem ocorrendo pelo menos desde a década de 1990, com o avanço
da globalização. Cowen (2002, p.35) entende que a universidade vive tanto crises aparentes
quanto reais. Para ele, o mundo vivia uma crise real que envolvia (no início dos anos 2000) “um
momento de mudança histórica [em que] as estruturas culturais de sustentação educacional,
forças econômicas e ideológicas políticas estão mudando muito rapidamente e construindo algo
novo”.
Torgal (2008), por sua vez, afirma que a universidade contemporânea atua em meio a
dicotomia tradição-modernidade. O autor entende que os conceitos permitem significações
ambíguas e por vezes contraditórias. Por exemplo, a universidade assume a lógica da
modernidade, a qual implica a adoção às regras de mercado, tal como vem sendo apontado.
Mas, ao mesmo tempo em que abandona sua lógica tradicional corporativa, não se abandonam
suas tradições, que servem para rentabilizar sua atuação.
Embora se referindo à universidade europeia, Cowen (2002) afirma que as
universidades passam por três mudanças profundas e fundamentais: sua estrutura cultural, sua
relação com o Estado, e sua gestão. Em relação à sua estrutura cultural, cada vez mais a
educação deixa de ser concebida como finita e encerrada quando da obtenção de determinado
grau acadêmico, passando a ser vista como um processo sem fim, permanente, com diversas
implicações para sua estrutura e dinâmica internas. A relação com o Estado – fundamental no

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

contexto da administração política – também se altera, à medida que mais pessoas, portanto,
requerem acesso às universidades, o que encarece os investimentos públicos. Como os Estados
entendem – ou supõem – que se vive uma economia do conhecimento, a universidade continua
a ter importância, mas sua atuação exige esforços “para vincular firmemente as universidades
à indústria; para buscar novas formas de integração entre as universidades e a capacidade
produtiva, por exemplo, pela criação de parques da ciência [...], para simplificar e encurtar
programas de doutorado e padronizar programas para proporcionar treinamento em técnicas de
pesquisa e para medir o desempenho das universidades” (COWEN, 2002, p.38).
Consequentemente, sua gestão passa a adotar mecanismos de avaliação, de investimento e de
recompensas inspirados no modelo empresarial.

O aprofundamento da identidade mercantil da universidade: desenvolvimento econômico


e capitalismo acadêmico
Se, de um lado, tal como apontado por Boaventura Santos (SANTOS, 2004), a
universidade é irreformável para o neoliberalismo, em função de suas tensões e contradições,
de outro, alguns autores, como Burton Clark (CLARK, 1998), têm proposto a transformação
da universidade. Em outras palavras, a universidade deve passar a assumir uma outra identidade
institucional, a identidade empreendedora. Nestes termos, a universidade passa a ser um agente
econômico que empreende, cuja finalidade é reagir à dinâmica do mercado e, ao mesmo tempo,
buscar inovações úteis para o mercado. Vejamos suas características.
Universidade empreendedora (Entrepreneurial University) é a expressão consagrada
por Burton Clark (CLARK, 1998) para nomear o que ele considera um sistema social, ou seja,
a universidade como um todo, seus departamentos, centros de pesquisa, faculdades e escolas,
cuja configuração, em forma de empreendimento ou “empresa” (enterprise), requer esforço e
energia e muitas atividades. Sua proposta é que a universidade transforme sua identidade de
forma a obter uma postura mais promissora para o futuro, ou seja, as universidades devem se
tornar atores significativos e firmes em sua atuação. Ainda segundo o autor, o
empreendedorismo institucional pode ser visto tanto como processo como resultado (CLARK,
1998).
Em seu modelo, a universidade empreendedora deve possuir cinco características
caminhos fundamentais para se transformar (Pathways of transformation): Núcleo Diretivo
Fortalecido (The Strengthened Steering Core), Periferia de Desenvolvimento Expandida (The
Expanded Developmental Periphery), Base Diversificada de Financiamento (The Diversified
Funding Base), Comunidade Acadêmica Estimulada (The Stimulated Academic Heartland), e
Cultura Empreendedora Integrada (The Integrated Entrepreneurial Culture).
No nosso modo de ver, o núcleo gerencial fortalecido sintetiza a identidade institucional
proposta, pois ele necessita do envolvimento tanto da administração central quanto dos
departamentos acadêmicos. Segundo Clark (1998, p.6), isto “deve reconciliar novos valores
gerenciais com os valores acadêmicos tradicionais”. Em outras palavras, o autor propõe a
adoção de valores empresariais para a universidade. Sua proposta fica clara quando descreve as
demais características, as quais, resumidamente, podem ser vistas no Quadro 2, a seguir.
Quadro 2 – Características da universidade empreendedora

Elementos Descrição
Implica criar e reforçar o hábito de forte direcionamento (Strenghened steering);
Núcleo Diretivo tornar a universidade mais rápida, mais flexível, e, especialmente, mais focada em
Fortalecido reações a demandas crescentes e mutáveis; devem ser organizadas de modo a se
reprogramarem em termos de suas capacidades.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Envolve a existência de unidades periféricas tais como escritórios de extensão


profissionalizados que trabalham na transferência de conhecimentos, contato com a
indústria, desenvolvimento de propriedade intelectual, educação continuada,
Periferia de captação de recursos e até mesmo no relacionamento com ex-alunos. Os
Desenvolvimento departamento tradicionais continuam importantes, mas centros de pesquisa não
Expandida disciplinares implicam a possibilidade de levar para dentro da universidade
orientações de projetos oriundos de fora que estão envolvidos seriamente em resolver
problemas cruciais para o desenvolvimento social e econômico. Tais centros fazem
a mediação dos departamentos com o mundo exterior.
As universidades devem se valer de 3 fontes principais de financiamento:
governamental; conselhos de pesquisa (no Brasil, seriam as agências de fomento à
Base de pesquisa), por meio de bolsas e contratos; e um vasto e profundo portfólio de fontes
Financiamento de financiamento da indústria, governos locais e fundações filantrópicas, royalties
Diversificada de propriedade intelectual, receitas de serviços do campus, taxas estudantis e
contribuições de ex-alunos. O objetivo é obter maior autonomia à medida que não se
depende de uma única fonte de financiamento.
É na comunidade acadêmica que os valores acadêmicos estão fortemente enraizados.
Comunidade
Neste nível, os valores acadêmicos tradicionais devem se misturar aos valores
Acadêmica
gerenciais. Na universidade empreendedora, o meio acadêmico aceita um sistema de
Estimulada
crenças transformado.
Universidades Empreendedoras, tal como empresas da indústria de alta tecnologia,
adotam uma cultura que envolve mudança. Essa nova cultura pode iniciar-se como
uma ideia institucional relativamente simples sobre mudança que, mais tarde, se
Cultura consubstancia em um conjunto de crenças, as quais, se difundidas na comunidade
Empreendedora acadêmica da instituição, se transformam em uma cultura universitária. Culturas
Integrada robustas estão enraizadas em práticas robustas. Conforme ideias e práticas
interagem, o lado simbólico ou cultural das universidades se torna particularmente
importante na busca por cultivar uma identidade institucional e uma reputação
distinta.
Baseado em Clark (1998).

De modo a demonstrar seus argumentos, Clark descreve os casos das universidades de


Warwick na Inglaterra, Twente na Holanda, Strathclyde na Escócia, Chalmers na Suécia, e
Joensuu na Finlândia. Como se pode perceber no Quadro 2, a proposta tem como base o modelo
competitivo de economia e de mercado, em que cabe ao Estado financiar parte das atividades
da universidade, ao mesmo tempo em que a ela atribui um papel de agente facilitador do
desenvolvimento econômico, à medida que prestaria determinados serviços à sociedade.
A despeito da influência de seu modelo, a formulação de Clark também recebeu críticas
significativas, como no caso de Ian Finlay, funcionário da Faculdade de Educação da
Universidade de Strathclyde. Sua crítica reside, fundamentalmente, na metodologia de Clark,
que teria entrevistado uma quantidade mínima de indivíduos e apenas aqueles que seriam
favoráveis à sua proposta. Dentre os problemas de implantação, estaria, por exemplo, a
possibilidade de criação de uma cultura organizacional única e homogênea (FINLAY, 2004).
O argumento central para a defesa da universidade empreendedora é seu papel enquanto
promotor do desenvolvimento econômico, especialmente local e regional. Levine (2009)
relativiza este argumento ao mostrar, por meio de uma pesquisa realizada nos Estados Unidos,
envolvendo suas 55 maiores regiões, que não há correlações significativas entre atividades da
universidade empreendedora (como patentes, licenças, gastos com pesquisas) e os indicadores
principais de bem estar econômico local e regional. Segundo o autor, mesmo tomando-se casos
exemplares, como a Johns Hopkins University e a Yale University, os dados mostram que
mesmo “universidades classe mundial não são necessárias nem suficientes para promover o
desenvolvimento econômico” (LEVINE, 2009, p.4). Segundo o autor, à universidade tem sido
atribuído um papel muito além dos reais impactos que ela pode promover, enquanto o chamado
“capitalismo acadêmico” dirige a universidade orientado para o mercado em direção ao

77
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

processo produtivo como a contribuição primária da universidade para o desenvolvimento


econômico.
Para Levine (2009, p.10), o modelo de universidade empreendedora está baseado no
amálgama de três teorias de desenvolvimento econômico:

1 – “Teoria do crescimento endógeno”, a qual sustenta que o estoque de conhecimento


e inovação tecnológica são os determinantes-chave da taxa de crescimento
econômico; que ideias e mudança tecnológica produzem retornos crescentes (e não
decrescentes, como afirma a teoria econômica clássica) [...];
2 – “Teoria da Competitividade”, popularizada por Michael Porter, segundo a qual a
prosperidade regional flui da vantagem competitiva estabelecida para firmas locais
em determinados clusters [...];
3 – “Triunfo do Mercado”, segundo a qual a universidade se torna parte de uma cultura
“tudo à venda” [...]; e, citando, literalmente, Slaughter e Rhoades (2004, p.29) a
universidade foca “o conhecimento menos como um bem público do que como uma
commodity a ser capitalizada em atividades orientadas para o lucro”.

Nos termos de Rhoades e Slaughter (2004, p.37), as universidades públicas estariam


aderindo ao que eles chamam de “capitalismo acadêmico”, isto é, as “instituições de ensino
superior estão buscando gerar receitas a partir de suas funções centrais de educação, de pesquisa
e de serviços, desde a produção de conhecimentos (tais como pesquisas que levem a patentes)
gerados pelas faculdades até o currículo da faculdade (materiais de ensino que possam ter
copyright e serem comercializados)”. Tal como Santos (2004), os autores consideram que a
universidade deixa de priorizar o conhecimento como bem público, passando a trat;a-lo como
uma mercadoria comercializável, o que eles chamaram de cultura “tudo à venda”.
Ainda segundo Levine (2009), a orientação da universidade para o mercado que se
consubstancia na parceria entre a universidade, a indústria e o governo, chamado por alguns
autores como o modelo da Tripla Hélice (cf. ETZKOWITZ, 2006), parece mais um mero rótulo
do que uma rigorosa articulação entre teoria de universidades e desenvolvimento econômico.
Alguns autores têm buscado formas de justificar e de explicar a transformação da
universidade em direção à vertente mercantil e empreendedora, a partir de algumas variáveis.
Maasen e Olseni (citados por BALBACHEVSKY, KERBAUY, FABIANO, 2013), por
exemplo, articulam o grau de compartilhamento com as normas e objetivos da universidade
com as fontes da dinâmica institucional, conforme se pode observar no Quadro 2.
A partir da matriz de tipos ideais de Maasen e Olson (2007 Balbachevsky, Kerbauy,
Fabiano (2013) entendem que a universidade brasileira se configura, na realidade, como um
híbrido do modelo político e do modelo de instrumento de política nacional. No nosso modo de
ver, os tipos ideais propostos, embora funcionem como recursos metodológicos, articulam
posições extremas, o que pode sugerir que, na prática, as instituições devam aderir a um deles.
No entanto, da forma como a tipologia é descrita, ela apresenta duas fragilidades
substanciais: não considera as finalidades da universidade; e os modelos são
descontextualizados historicamente. Como a finalidade da universidade não é discutida,
admitimos que, ou ela é pressuposta mas não sabemos qual é, ou ela é absolutamente
desconsiderada. No primeiro caso, supõe-se que a finalidade é um dos elementos definidos
internamente ou externamente. No segundo caso, supõe-se que ela é irrelevante. No nosso modo
de ver, este pode ser um raciocínio falacioso, na medida em que, embora sejam tipos ideais, na
prática, a configuração que a universidade assume é uma espécie de mistura de todos os
modelos; certas dinâmicas são definidas internamente, enquanto outras o são a partir de relações
externas. Assim, podemos ser levados a pensar que os problemas da universidade estejam
apenas no modelo, e de um ponto de vista meramente operacional.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Quadro 2 – Tipologia de governança universitária


Dinâmicas institucionais determinadas Dinâmicas institucionais determinadas
por fatores internos por fatores externos
Modelo: Universidade como instrumento
Modelo humboldtiano: governo de pares
de política nacional
Atores internos Lógica: identidade
Lógica: administrativa
compartilham Critério de avaliação (qualidade):
Critério de avaliação (qualidade):
normas e objetivos qualidade científica
resultado político
Dinâmica: comunidade científica
Dinâmica: decisões governamentais

Modelo: Empresa de serviços operando


Modelo político: Representação de
Atores têm em mercados competitivos
interesses
percepções Lógica: competição
Lógica: representação
conflitivas sobre Qualidade: responsividade
Qualidade: acomodação de interesses
normas e objetivos Dinâmica: respostas à pressões
Dinâmica: barganha interna
competitivas

Fonte: Maasen e Olsen (2007) apud Balbachevsky, Kerbauy, Fabiano (2013) (adaptado)

Neste sentido, entendemos que a tipologia de Drèze e Debelle (1983) é mais precisa e
adequada à compreensão da universidade. Os autores consideram que as três primeiras do
quadro 1 (I, II e III) possuem sua dinâmica estabelecida a partir de normas internas próprias,
enquanto as demais (IV e V) têm suas normas a partir do exterior, cujos propósitos
sociopolíticos e socioeconômicos são evidentes. No entanto, o que está em jogo é sua
finalidade. Por outro lado, esta é resultado de um forte e interminável jogo de poder. A ausência
ou a omissão da finalidade da universidade na tipologia de Maasen e Olsen sugere que tratam-
se de opções dentro de um cardápio, sem uma devida contextualização e um enquadramento
político-histórico, de acordo com as ideologias em jogo e em disputa. Sua tipologia parece estar
desconectada do modelo de sociedade que se busca num dado estágio de desenvolvimento desta
sociedade. Isto não implica dizer que haja sempre um único modelo de sociedade. Ao contrário,
é neste sentido que as disputas ideológicas tomam lugar, envolvendo as relações entre
economia, governo, Estado e sociedade. A estrutura e a dinâmica da relação entre a
universidade e o Estado (governo) serão decorrentes destas disputas, em que atores sociais
possuem posições desiguais e desequilibradas no jogo de poder.
Se admitirmos, pelo menos hipoteticamente, que haja um amplo acordo entre governo,
Estado e sociedade quanto à finalidade da universidade, provavelmente seu tipo será único (em
sua lógica mais geral), não havendo espaço para modelos concorrentes. Por outro lado, se a
universidade está em crise, e se esta crise é expressão de uma crise mais ampla, modelos
concorrentes e conflitantes emergem, a partir das concepções dos atores sociais. Do ponto de
vista da governança, a universidade se torna terreno de disputa entre as demandas internas e
demandas externas (Quadro 3). O resultado, tanto em termos da concepção quanto do modelo
de governança, dependeria da relação de poder entre os atores envolvidos.
Se Boaventura Santos está correto quando diagnostica as crises da universidade – aliás,
diversos autores o fazem, inclusive no Brasil –, então somos capazes de compreender os
conflitos entre os atores sociais e com a sociedade num sentido amplo. Mas, no jogo de poder,
o modelo mercantil ou empreendedor de universidade tem sido amplamente difundido e aceito
como modelo a ser adotado no mundo e no país, a despeito das críticas e resistências, pelas
próprias instituições, ou, na melhor das hipóteses, por sua representação política, a ANDIFES.
Uma visita em seu site institucional mostra a existência de uma comissão de reitores
estabelecida para
difundir a cultura do empreendedorismo no âmbito das IFES e definir e implantar
políticas, programas e ações institucionais que visem aplicar os seus princípios nos

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

programas de formação, geração e aplicação de conhecimento e responsabilidade


social das universidades adensando a sua atuação como agente de desenvolvimento
social, cultural e econômico (ANDIFES, 2014).

Quadro 3 – As narrativas conceituais acerca da universidade brasileira segundo atores sociais

Atores sociais Concepção de universidade

Universidade como agente de desenvolvimento econômico e


MEC/SESu
competitividade internacional. Constitui a concepção oficial
(Ministério da Educação/Secretaria de
governamental. Universidade como formadora de quadros
Educação Superior)
profissionais para o mercado de trabalho.
ANDIFES Universidade empreendedora para o desenvolvimento
(Associação Nacional dos Dirigentes das econômico e competitividade internacional. Compatível com a
Instituições Federais de Ensino Superior) concepção oficial.
Universidade para o desenvolvimento econômico e
UNE
competitividade internacional. Compatível com a concepção
(União Nacional dos Estudantes)
oficial.
PROIFES
(Federação de Sindicatos de Professores de
Instituições Federais de Ensino Superior)
ANDES – SN Universidade pública, gratuita, laica, desinteressada e
(Sindicato Nacional dos Docentes das autônoma.
Instituições de Ensino Superior)
FASUBRA
(Federação dos Sindicatos de
Trabalhadores das Universidades
Brasileiras)
ANEL
Universidade pública, autônoma, laica, gratuita, de qualidade
(Assembleia Nacional de Estudantes –
que produza conhecimento a serviço dos trabalhadores.
Livre)
Fonte: Ésther (2015, p.213)

Ao que tudo indica, trata-se do antigo ideal brasileiro de adentrar a modernidade,


deixando para trás o tradicional e o antigo, agora travestido de adentrar a “Era do
conhecimento”. Neste contexto, o modelo empreendedor de universidade, notadamente
baseado na realidade das universidades e do contexto econômico norte-americano, tem sido
saudada como sinal de modernidade e de referência para a universidade brasileira, a despeito
de todas as críticas. Mas, será este um caminho inexorável?

Os rumos e desafios da universidade contemporânea


A crítica ao modelo mercantil da universidade tem sido recorrente também entre autores
brasileiros. Dentre eles, destacamos a crítica de Chauí, para quem a universidade tem
desempenhado o papel indesejado mas necessário à sua sobrevivência, de
criar incompetentes sociais e políticos, realizar com a cultura o que a empresa realiza
com o trabalho, isto é, parcelar, fragmentar, limitar o conhecimento e impedir o
pensamento, de modo a bloquear toda tentativa concreta de decisão, controle e
participação, tanto no plano da produção material quanto no da produção intelectual.
Se a universidade brasileira está em crise é simplesmente porque a reforma do ensino
inverteu seu sentido e finalidade – em lugar de criar elites dirigentes, está destinada a
adestrar mão de obra dócil para um mercado sempre incerto. E ela própria ainda não
se sente bem treinada para isto, donde sua “crise” (CHAUÍ, 2001, p.46).

Assim, tem prevalecido o que a autora chama de discurso “competente”, ou seja, o


discurso instituído – que é aquele que pode ser proferido, ouvido e tomado como verdadeiro

80
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

(CHAUÍ, 2006) – que faz prevalecer os preceitos da teoria do capital humano em detrimento
dos preceitos da teoria da emancipação humana (SEVERINO, 2008).
Neste sentido, Honneth (2013) faz uma análise muito interessante ao demonstrar como
a relação entre Estado e educação desapareceu no contexto da filosofia política. Desde Kant, a
relação entre ambos – a arte do governo e a arte da educação – era fundamental na vida social,
de modo a levar a criança ainda submissa a um estado de maturidade e de liberdade. Nas
palavras de Honneth (2013, p.546),

O ser humano pequeno e impelido pela natureza precisa percorrer primeiro um


processo de educação voltada para a liberdade para poder se tornar membro do povo
de um Estado que governa a si mesmo, assim como, inversamente, só cidadãos e
cidadãs autônomos podem institucionalizar uma educação pública que possibilite a
seus filhos o caminho para a maioridade política. Por isso, uma boa educação e uma
ordem estatal republicana dependem complementarmente uma da outra, porque a boa
educação produz concretamente, por meio de uma instrução geral e pública, as
capacitações culturais e morais com cuja ordem estatal republicana pode prosperar de
tal maneira que a cidadania ainda participe da emancipação política também dos
integrantes das classes mais baixas.

Tal vínculo entre uma teoria de educação e uma teoria da democracia se perdeu, cujas
razões não cabe apontar aqui. Mas, segundo Honneth (2013), podemos alegar que junto com o
entorno social e econômico, as demanadas feitas à escola também se modificaram, o que tem
levado à predominância de uma razão econômica que preconiza um sistema escolar no qual o
estudante é inserido para a “aquisição de capacidades aproveitáveis do ponto de vista puramente
econômico” (p.557)
Assim, nos dias de hoje, a escola tem preconizado a formação da autonomia individual,
contrariamente ao que defendiam Durkheim e Dewey – como Kant –, segundo os quais a
educação deveria se caracterizar pela “ideia de ensinar aos alunos uma percepção certeira do
que significa entender o colega como um parceiro com direitos iguais num processo comum de
aprendizado e investigação” [...] de modo que a “escola pública volte a gerar em cada nova
geração as formas de comportamento que são vitalmente necessárias para a formação da
vontade democrática” (HONNETH, 2013, p.556). Tal era o modelo de sociedade até o fim do
nacional-socialismo, na era moderna, segundo o autor.
Como se pode perceber, a educação formal (em todos os níveis) tem sido realizada de
forma descolada de um modelo de sociedade que preconiza a democracia como valor e como
forma de existência. Por outro lado, é exatamente em seu nome que a orientação neoliberal
defende o modelo escolar atual, especialmente no caso da universidade, tanto em termos de sua
concepção mercantil e empresarial, que visa a formação de recursos humanos para a esfera da
produção – principalmente privada – quanto de seu modelo de governança baseada nas
demandas externas – entendidas como as demandas do mercado – e na lógica competitiva, por
recursos e de resultados.

Considerações finais
Neste ensaio, levantamos algumas questões acerca da universidade, sobretudo algumas
tensões fundamentais, relativas a seu papel no sociedade contemporânea. Neste contexto, a
relação da universidade com a esfera estatal e governamental é crítica, na medida em que esta,
pelo menos a princípio, constitui-se como elemento ordenador de sua atuação.
Atualmente, observamos o avanço do modelo mercantil, empresarial ou empreendedor
da universidade em todos os continentes, associado a um modelo econômico e político de cariz
neoliberal, para quem a universidade deve ser uma espécie de “motor de desenvolvimento”
(LEVINE, 2009), dentro do espírito do capitalismo acadêmico. Assim, no nosso modo de ver,

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

a universidade tem se aproximado de outros modelos organizacionais, tais como uma


universidade corporativa ou um centro de pesquisa e desenvolvimento, ou, ainda, conforme
Cowen (2002), uma corporação de conhecimento, todas voltadas para a promoção do
desenvolvimento econômico e para a transferência de tecnologia para o setor privado. Por outro
lado, como bem apontou Honneth (2013), em todas as pesquisas comparativas internacionais,
os são países que adotaram os ideais democráticos que alcançam os melhores resultados, como
é o caso emblemático da Finlândia. Neste caso, o papel do Estado e sua relação com o sistema
escolar é fundamental.
O Brasil tem sido marcado por uma trajetória marcante de autoritarismo, a despeito de
todas as tentativas de se estabelecer uma sociedade mais justa, democrática e igualitária.
Infelizmente, o recente impedimento da Presidente Dilma Rousseff mostrou que ainda estamos
longe de tal ideal, embora não possamos afirmar que seu governo procurou estabelecer o nexo
entre educação e democracia, tal qual nos termos analisados por Honneth (2013).
Portanto, entendemos que discutir a universidade passa por discutir sua finalidade e
razão de existência, ou, em outras palavras, qual universidade para qual sociedade.
Referências
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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

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376.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Contribuição do PSH e do PMCMV para a Formação de Identidade: um


estudo de caso no Condomínio Popular Parque Morada Real, em Belo
Campo-Ba

Luana Lima Bittencourt Silva


Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

Almiralva Ferraz Gomes


Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

Rita de Cássia Oliveira Lima Alves


Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

Weslei Gusmão Piau Santanta


Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

Resumo

O déficit habitacional é um dos problemas sociais que causam desigualdade e que, em regra,
dificultam a formação de identidade e o desenvolvimento socioeconômico dos indivíduos,
sobretudo os mais necessitados. Para sanar esse problema, o Brasil promovido políticas
públicas destinadas ao desenvolvimento de programas de habitação social. Os maiores
programas da atualidade são o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) e o Programa de
Subsídio à Habitação de Interesse Social (PSH). Com o objetivo de analisar a contribuição da
aquisição da casa própria na formação da identidade dos moradores do conjunto habitacional
popular, Parque Morada Real, em Belo Campo, adotou-se como estratégia de pesquisa o
estudo de caso, com natureza teórico-empírica e do tipo descritivo-exploratório, o qual
utilizou como instrumento de coleta questionários, formulários e observação não-
participativa. Adotando-se uma amostra probabilística, 128 famílias participaram do estudo
que deu tratamento quali-quantitativo aos dados coletados. Os resultados indicam que a casa
própria adquirida exerce influência maior na formação de identidade pessoal do que na
identidade coletiva/social e na identidade de lugaridade. Os dados demonstraram que tal
situação ocorre, predominantemente, em decorrência de problemas sociais e econômicos
enfrentados pelos moradores.

Introdução

A moradia digna é uma das bases sociais e, até mesmo, econômicas para que o
indivíduo se estabeleça em uma sociedade. Além de promover condições de segurança e
qualidade de vida, possuir uma residência fixa e digna ajuda o ser humano na construção de
sua identidade pessoal e social, levando-o a estabelecer seus hábitos, costumes, cultura e
valores, além de proporcionar um ambiente favorável para o estabelecimento de objetivos.
No intuito de resolver os problemas habitacionais, surgiram políticas públicas sociais
específicas para esta área no Brasil, a partir da década de 1940. Muitas dessas políticas foram
extintas por diversas razões, dentre elas a sua ineficácia e a falta de implementação.
Atualmente, dada a grande pressão social, ações governamentais buscam reconfigurar as
políticas públicas de habitação, destinadas especialmente à população de baixa-renda, a fim
de sanar necessidades latentes deste público-alvo.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Ultimamente, dois programas oriundos de políticas públicas habitacionais que se


destacam nacionalmente são o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) e o Programa
de Subsídio à Habitação de Interesse Social (PSH). O Programa de Subsídios à Habitação de
Interesse Social (PSH) e o Programa Minha Casa Minha Vida são programas de políticas
públicas sociais,voltados para a habitação e implantados em diversas localidades do Brasil. A
população de Belo Campo, município de pequeno porte localizado no semiárido baiano e
contemplado com tal política, suscita, no entanto, questionamentos quanto à eficácia do
mesmo, sobretudo quanto à formação de identidade dos seus beneficiários,além da identidade
pessoal, social e de “lugaridade”.
O presente trabalho questiona se os referidos programas atendem aos resultados
esperados ao ser implantados e se existem planejamentos, processos e métodos que visem a
formação de identidade e cidadania dos beneficiários. Este estudo tem como objetivo
primordial analisar a contribuição da aquisição da casa própria na formação da identidade dos
moradores do conjunto habitacional popular, Parque Morada Real, em Belo Campo.
Além desta introdução, este artigo está estruturado em mais quatro seções.
Inicialmente, o referencial teórico discorre sobre a identidade pessoal, social e de lugaridade,
além de debater sobre as políticas públicas sociais de habitação no Brasil. Na sequência,
apresentam-se os procedimentos metodológicos. Em seguida, discutem-se os resultados e
análises dos dados coletados na pesquisa realizada no condomínio à luz do referencial teórico
adotado. Por fim, a última seção é destinada as considerações finais.

Identidade

A construção da identidade é um tema amplo que percorre as diversas vertentes da


vida do indivíduo, a exemplo do ambiente pessoal, social, organizacional, espacial ou
territorial. Tais vertentes, por sua vez, relacionam-se entre si, permitindo que o indivíduo se
perceba como ser individual e social, dotado de personalidade e caráter próprio nesses
ambientes.
A identidade pode ser entendida como a percepção que o ser humano tem sobre si
mesmo e da visão que os demais indivíduos possuem sobre ele na sociedade. Para
compreender melhor o tema abordado, diversos autores, a exemplo de Antaki e Widdicombe
(1998), Gioia (1998), Ruano-Borbalan (1998), Castells (1999), Brown e Starkey (2000) e
Howard (2000), citados por Machado (2003), costumam distinguir a identidade pessoal e a
social, considerando que a primeira pode ser entendida como a percepção do indivíduo sobre
si mesmo, de forma individualizada, enquanto a segunda, como a percepção que este tem de si
dentro de um ou vários grupos.
A identidade é um fator de identificação do indivíduo que pode ser alterado ao longo
do tempo, à medida que ocorrem determinadas mudanças econômicas, sociais, educacionais,
territoriais, ou mesmo psicológicas. Muitas vezes, essas diferenciações na identidade podem
ser inconscientes e progressivas, conforme observa Hall (2005 apud AYROSA; GOMES,
2009, p. 4), ao dizer que a identidade ou identificação do indivíduo deveria ser considerada
um “processo em andamento”, tendo em vista as transformações pelas quais passa ao longo da
vida. Fator de influência vital, a identidade faz com que o indivíduo atue na sociedade e no
meio em que vive, construindo sua história e deixando “marcas” na sociedade, de modo que
seja reconhecido por sua trajetória na sociedade e por aspectos individuais e coletivos
formados ao longo do tempo.
A identidade pessoal é uma construção perceptiva individual que o ser humano faz
sobre si mesmo ao longo de sua existência, reconhecendo-se através de seus desejos, escolhas
e ações, bem como por sua história de vida. Deste modo, para Machado (2003), a identidade
individual é fruto da construção psicológica do ser humano sobre si. De acordo com Carrieri,

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Souza e Lenger (2011), a identidade individual ou pessoal é um processo complexo e sujeito


às interferências e acontecimentos temporais na vida do ser humano. Sendo assim, os
processos de construção da identidade estão intimamente ligados aos fatos passados e
presentes na vida do indivíduo.
A identidade pessoal, de acordo com Machado (2003, p. 54), sofre influência direta
de duas fontes psicológicas: aquilo que o indivíduo é e aquilo que os outros esperam que ele
seja. Desta forma, remonta à ideia de que, mesmo que a identidade pessoal seja fonte
individual, esta não está isolada ao próprio indivíduo e é formada também pelas interações
sociais que possui. Então, a opinião e a visão dos outros sobre o indivíduo são fatores que
complementam a construção identitária e se fazem presentes, intrinsecamente, na formação do
ser humano. Ainda, segundo Vilaça (2003 apud CARRIERI; SOUZA; LENGLER, 2011, p.
413), “é por meio da interação com o outro que o indivíduo configura sua identidade”. Assim,
os autores buscam acentuar que existe uma dualidade na formação da identidade, sendo a
“forma singular e plural de se relacionar com os outros”.
Já a identidade social é vista como a identidade criada a partir do sentimento de
pertencimento a determinado grupo na sociedade. O papel do indivíduo na sociedade e suas
relações e interações sociais, neste contexto, estão intimamente ligados à construção de sua
identidade social. Machado (2003, p. 57) destaca que “a identidade social se funda sob
determinadas categorias, a exemplo da etnia, a identidade sexual, a classe social, os
portadores de deficiências, a idade, entre outras”. A identidade social, assim, se vincula aos
costumes, culturas, comportamentos e ideais do grupo ao qual o indivíduo faz parte. É
fundamental evidenciar que a vinculação do indivíduo aos diversos grupos sociais, por sua
opção ou não, não impede a atuação de sua identidade pessoal. O indivíduo, assim, consegue
exercer sua individualidade estabelecendo limites entre o pessoal e o coletivo (MACHADO,
2003). Ou seja, o indivíduo entende as semelhanças entre ele e os demais integrantes do
grupo, mas exerce um determinado papel dentro deste grupo, o que lhe confere a
individualidade. Machado (2003) ressalta ainda que a construção da identidade social não se
refere apenas ao sentimento de pertencer a determinado grupo, mas, a autopercepção do
indivíduo como membro desse grupo é que faz com que haja a identificação social do mesmo,
fazendo com que suas ações sejam compatíveis com as características grupais.
O ambiente no qual o indivíduo vive influi, substancialmente, para a composição
destas identidades, conduzindo o mesmo a ter o sentimento de “lugaridade”, ou seja, de
identificação, de pertencimento a determinado lugar (BORGES, 2013). Quanto ao sentimento
de “lugaridade”, tem-se que este é capaz de construir no ser humano a sensação de segurança
e identificação, a exemplo da moradia em que o indivíduo possui, suas características, o lugar
onde se encontra e a comunidade que se tem em torno dela. Ter uma moradia digna é parte
essencial para a própria construção da identidade individual, ao passo que o indivíduo se
reconhece e se torna detentor do orgulho e do sentimento de autorrealização por possuí-la e
fazer parte de determinada lugar.
É possível afirmar, portanto, que a construção da identidade tem muito a ver com o
que o indivíduo constrói ao longo de sua vida e o espaço em que vive faz parte dessa história,
bem como a comunidade que o cerca, pois é onde, geralmente, que se constroem laços em
âmbitos coletivos, adotam-se culturas e até mesmo de onde surgem os ideais de reprodução
social nos quais o indivíduo se apoia. Nessa perspectiva, a moradia e suas características
colaboram para a construção da história do indivíduo, na realidade atual e naquela que será
construída ainda.

Políticas Públicas Sociais de Habitação no Brasil

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A moradia é um dos pilares sólidos que o ser humano pode ter para se sentir digno e
estimulado a almejar novos objetivos. Segundo Cherkezian e Bolaffi (1998 apud BORGES,
2013, p. 8), a habitação é importante para a contextualização de um ambiente com qualidade
de vida e dignidade:
Habitação com boas razões é uma das principais reivindicações da população pobre
das cidades do país. É o fulcro no qual se apoiam todas as demais atividades da
população. Educação, saúde, famílias social e economicamente integradas, amor,
sexo e todas as demais necessidades para a fruição da vida saudável dependem da
possibilidade de morar decentemente. E a população pobre sabe disso mais do que
os melhores textos de sociologia, antropologia, psicologia social e demais
disciplinas afins.

Garantir condições dignas de moradia para sua população, portanto, é um quesito de


avanço para qualquer país. Ademais, a habitação é um importante fator de inclusão social,
como descreve Marra (2010, p. 2): “O direito a uma moradia adequada está vinculado a outros
direitos humanos. Sem um lugar adequado para se viver, é difícil manter a educação e o
emprego, a saúde fica precária e a participação social fica impedida”. Pode-se ressaltar que
uma habitação digna é uma das prioridades definidas pelo governo para a realização de
programas e políticas de desenvolvimento urbano. Boa parte da população, no entanto, ainda
não foi atendida neste aspecto. De acordo com Höfling (2001, p. 31),

Políticas sociais se referem a ações que determinam o padrão de proteção social


implementado pelo Estado, voltadas, em princípio, para a redistribuição dos
benefícios sociais visando a diminuição das desigualdades estruturais produzidas
pelo desenvolvimento socioeconômico. Trata-se, portanto, de trazer para o eixo
central da formulação de projetos de desenvolvimento a questão da cidadania,
reformulando-se as relações entre Estado e sociedade, democratizando-se as
distintas formas de gestão e criando-se novos espaços públicos. Para, além disso,
trata-se da construção democrática de um projeto para a sociedade pautado pela
busca de maior equidade e integração sociais, o qual, ao mesmo tempo em que
reafirme a identidade nacional no contexto da globalização, preserve o direito às
diferenças, sem que estas se traduzam em exclusão e discriminação sociais.

Ante o exposto, as políticas sociais compreendem a área de educação, saúde,


previdência, habitação, saneamento, entre outras, voltadas para a democratização e a
seguridade de direitos básicos da sociedade, as quais podem gerar maior desenvolvimento
para os menos favorecidos economicamente e levando-os a conquistarem formas de ascensão
em todos os âmbitos possíveis. A questão habitacional se insere neste contexto e constitui-se
em um dos principais desafios urbanos de cunho social no Brasil, o qual carece em promover
condições adequadas de habitação e sobrevivência para seus beneficiários. Os programas de
política social habitacional necessitam levar aos desfavorecidos direitos e formas de inclusão
social que gerem resultados e mudança em perspectiva de vida dos beneficiários.

Procedimentos Metodológicos

A natureza da presente pesquisa é teórico-empírica, a qual se dedica “formular


quadros de referência ou estudar teorias e se caracteriza por codificar a face mensurável da
realidade social” (DEMO 1995, p. 13). Quanto ao tipo, caracteriza-se como descritivo-
exploratória, ao buscar o alcance dos objetivos propostos com maior esclarecimento dos
dados, credibilidade ao estudo feito e apego à realidade do objeto de estudo. A estratégia de
pesquisa da presente pesquisa foi o estudo de caso, pois investiga um fenômeno
contemporâneo no contexto da vida real, baseando-se em várias fontes de evidências (YIN,
2001).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A unidade de análise da pesquisa corresponde ao Condomínio Popular Parque


Morada Real, construído com recursos do Programa de Subsídios à Habitação (PSH) e do
Programa Minha Casa Minha Vida 2 (PMCMV2), na cidade de Belo Campo, Bahia. De
acordo com a Prefeitura Municipal de Belo Campo, 199 famílias foram contempladas com tal
benefício. Dessa forma, considerando-se uma margem de erro de 6% e um nível de confiança
de 96,41%, estabeleceu-se uma amostra probabilística de 128 unidades familiares.
Em virtude da necessidade de se conhecer de forma ampla a realidade da população
de beneficiários do PSH e do PMCMV2 de Belo Campo, os instrumentos de coleta escolhidos
para essa pesquisa foram: questionário estruturado, formulário semi-estruturado e observação
sistemática não-participante. A pesquisa realizada, dessa forma, deu tratamento quali-
quantitativo aos dados coletados.

Conjunto Habitacional Parque Morada Real

O município de Belo Campo está inserido no território identidade de Vitória da


Conquista e situado a 567 km de Salvador. É uma cidade pequena, com uma estimativa
populacional de 18.383 habitantes, no ano de 2015. Seu Índice de Desenvolvimento Humano
Municipal, de acordo com as pesquisas de 2010, foi de 0,575 (IBGE, 2016). A cidade oferece
poucas condições para o desenvolvimento econômico de sua população, possuindo escassas
ofertas de emprego formal. Dessa forma, a contratação para o serviço público e o comércio da
cidade são as opções mais recorrentes para os habitantes do município conseguirem um
emprego fixo, mesmo com salários abaixo da média nacional e, muitas vezes, até mesmo
inferior a um salário mínimo.
O conjunto habitacional popular em estudo conta com 199 casas populares,
construídas através de dois programas governamentais de habitação. Cento e setenta casas
foram construídas através do Programa de Subsídio de Habitação de Interesse Social e vinte e
nove casas através do Programa Minha Casa Minha Vida 2, subsidiada pelo Banco Paulista.
As casas construídas no Condomínio são de estrutura básica e simples. As residências
construídas através do PSH são compostas por uma sala, dois quartos, cozinha, banheiro e
lavanderia, enquanto as do PMCMV contém ainda uma área externa. Estas residências são
doadas aos moradores do município após seleção feita pela Secretaria de Assistência Social.
A estrutura urbanística do Condomínio conta com rede de energia elétrica e de água.
Não há pavimentação e nem rede de esgoto. Existe uma escola de ensino fundamental em
funcionamento, além de uma creche e outra escola em processo de construção. Há também
uma quadra poliesportiva e dois espaços reservados para serem utilizados como praças. Não
há estrutura, no entanto, para atender a este fim. Durante a pesquisa, observou-se também,
grande quantidade de lixo espalhado nos arredores do Condomínio.
Para caracterização da amostra pesquisada, quanto ao sexo, observou-se maior
presença de respondentes do sexo feminino. Levando-se em consideração que a pesquisa foi
realizada em dias úteis e em horário comercial, foi possível observar que os homens, em sua
maioria, constituem-se como “provedores do lar”, enquanto muitas mulheres se dedicam aos
serviços domésticos e cuidados com os filhos, justificando assim a diferença entre a maior
predominância de respondentes do sexo feminino na pesquisa de campo.
Quanto à idade, foi possível perceber a predominância de beneficiários com idade
entre 28 e 37 anos correspondeu a 30,47% dos entrevistados. Nesse quesito, constatou-se
também que todos os entrevistados menores de 18 anos são do sexo feminino, já são “chefes”
familiares da residência pesquisada e têm filhos. Assim, observa-se que, essas jovens, até

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

mesmo por se tornarem mães muito cedo, passaram a assumir maiores responsabilidades e,
por conseguinte, passaram a ter a necessidade de uma habitação própria.
Sobre a etnia, a predominância de declaração se dá para a cor parda e negra: 50% de
respondentes pardos e 37,5% de respondentes se declaram negros. Os respondentes brancos
foram minoria, tanto entre os do sexo masculino, quanto os do sexo feminino, como
evidenciado na Tabela 1.

Tabela 1 - Dados referentes à idade e cor dos entrevistados


Masculino Feminino Total
Quant. % Quant. % Quant. %
39 30,47% 89 69,53% 128 100%
Idade
Descrição Quant. % Quant. % Quant. %
Menor que 18 anos 0 0,00% 9 10,11% 9 7,03%
18 a 27 anos 11 28,21% 21 23,60% 32 25,00%
28 a 37 anos 13 33,33% 26 29,21% 39 30,47%
38 a 47 anos 5 12,82% 20 22,47% 25 19,53%
48 a 57 anos 5 12,82% 7 7,87% 12 9,38%
Acima de 57 anos 5 12,82% 6 6,74% 11 8,59%
Cor
Descrição Quant. % Quant. % Quant. %
Negro 18 46% 30 34% 48 37,50%
Pardo 17 44% 47 53% 64 50,00%
Branco 4 10% 12 13% 16 12,50%
Fonte: Pesquisa de campo, 2016

Quanto ao nível de escolaridade, a maior parte dos entrevistados possui o nível


fundamental incompleto, totalizando 50,78% da amostra. Dentre todos os entrevistados,
apenas uma chefe familiar se encontra matriculada para continuação dos estudos. A pesquisa
demonstra um alto número de analfabetos (16,41%) em comparação aos demais níveis de
escolaridade, ao ocupar a 2º posição com maior quantidade de entrevistados. Se se somado
àqueles que apenas aprenderam a ler e escrever o próprio nome sem ter frequentado nenhum
tipo de escola, os números se tornam maiores. Analisou-se que não há índice de analfabetos
com idade abaixo de 28 anos. Em contrapartida, 81,82% dos respondentes acima dos 57 anos
são analfabetos, enquanto o restante desta faixa etária apenas sabe ler e escrever o nome
(Gráfico 1).

Gráfico 1 - Comparação do nível de escolaridade dos respondentes na situação atual e anterior à aquisição
da casa no condomínio popular

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

60.00% 50.78% 53.13%


40.00%
16.41% 11.72% 11.72%
20.00% 16.41% 6.25% 6.25%
2.34% 2.34% 6.25% 6.25% 6.25% 3.91%
0.00%
analfabeto sabe apenas alfabetizado nível nível nível médio nível médio
ler e escrever fundamental fundamental incompleto completo
o nome incompleto completo
Fonte: Pesquisa de campo, 2016

Segundo dados do IBGE (2014), o número de indivíduos brasileiros analfabetos com


15 anos de idade ou mais tem se mantido em ritmo decrescente desde o ano de 2007 até o ano
de 2014, caindo de 10,1% para 8,3%. Ainda, segundo a mesma pesquisa, existiam 11,2% da
população, em 2014, sem instrução ou com menos de 1 ano de estudo. Deste modo, é
perceptível que muitas pessoas ainda não saíram da situação de analfabetismo,
principalmente, àquelas com baixa renda mensal, como é o caso dos respondentes dessa
pesquisa.
Analisando as respostas dos entrevistados sem nível médio completo, verifica-se que
apenas 33,33% dos que têm nível médio incompleto desejam estudar, a fim de concluir este
grau. Dos demais informantes pesquisados, somente duas mulheres disseram se interessar em
“algum dia” voltar a estudar, porém, encontram dificuldade para sair de casa, devido à tarefa
de cuidar dos filhos e da casa, mesmo quando os maridos estão presentes, de acordo com o
relato das mesmas.
A quantidade de entrevistados com nível médio completo é de 6,25%, tanto antes de
adquirir a casa, quanto atualmente. Não há moradores em graduação de nível superior e
apenas uma moradora (em condição de moradia cedida no condomínio) disse ter vontade de
ingressar em uma faculdade/universidade. Todos os entrevistados com nível de escolaridade a
partir da alfabetização estudaram em escola pública, totalizando 81,25% da amostra
pesquisada.
Ter um emprego que garanta renda para sobrevivência própria e de seus entes, e
ainda que traga satisfação, faz com que o indivíduo se motive a buscar por objetivos maiores,
galgando novos horizontes e perspectivas. Porém, o que se percebe no Condomínio
pesquisado é que a média de trabalhadores fixos atuais por residência gira em torno de
aproximadamente 0,64, com desvio padrão de 0,19 (Tabela 2). Percebeu-se também que a
renda média mensal familiar, na maioria dos domicílios entrevistados, é de menos de 1 salário
mínimo.
Tabela 2 - Quantidade de moradores com trabalho fixo- situação atual e situação anterior a
aquisição do imóvel
Situação atual Situação anterior
Quantidade Quant. % Quant. %
0 66 51,56% 75 58,59%
1 55 42,97% 46 35,94%
2a4 7 5,47% 7 5,47%
Total 128 100% 128 100%
Média de trabalhadores com trabalho fixo (situação atual) 0,63671875
Desvio Padrão (situação atual) 0,190447841
Fonte: Pesquisa de campo, 2016

A média de trabalhadores fixos atuais por residência gira em torno de


aproximadamente 0,64, com desvio padrão de 0,19. Um dado que assusta e traz a reflexão
sobre as condições econômicas dessas famílias que, em sua maioria, composta por 2 a 4

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

moradores precisam sobreviver com uma renda familiar muito baixa. Esse dado revela, ainda,
a acentuada condição de pobreza e de baixo nível de formação dos moradores.
A melhoria da condição de renda do indivíduo é também um dos pilares para que a
desigualdade econômica do país possa diminuir. Para isso, um emprego fixo se faz necessário
para que o indivíduo possa alavancar sua carreira dentro da sociedade, buscando por
igualdade e justiça socioeconômica. Em contrapartida, a falta de emprego tende a gerar
exclusão social e pobreza.
De acordo com Oliveira (2002), o desenvolvimento é percebido juntamente com a
evolução econômica, política, humana e social. Os dados da pesquisa denunciam a extrema
precariedade das condições geradoras de desenvolvimento que o Condomínio e o poder
público têm oferecido aos beneficiários. Assim, encontraram-se sujeitos a situação de
vulnerabilidade econômica e social no ambiente pesquisado.
Com relação à formação da identidade, avalia-se que ela é vista como um processo
contínuo na vida do indivíduo, à medida que se desenvolve em função das transformações
pessoais e sociais pelas quais um sujeito passa ao longo de sua vida. Assim, procurou-se
analisar as contribuições e as transformações percebidas pelos moradores quanto a fatores que
compõem a identidade pessoal, social e de “lugaridade”.
Quanto à mudança de visão sobre si mesmo após obtenção de uma casa própria,
40,63% relataram não ter observado nenhuma mudança em si mesmo, no condomínio
popular. Em outros termos, um número expressivo de habitantes não percebeu relação entre
ter uma casa e se sentir diferente como pessoa, com autoestima mais elevada ou mesmo
autopercepção enquanto agente social na comunidade. Dessa amostra, também fazem parte os
moradores que residem em casas cedidas ou alugadas (situações irregulares no condomínio),
os quais afirmaram não perceber diferença, já que ainda não possuem casa própria. Apenas
10,16% admitiram que a aquisição da casa própria impactou, totalmente, na visão de si
próprio. Quando indagados de que forma esta mudança se deu, os informantes fizeram
referência ao aumento de confiança, ao sentimento de independência e responsabilidade e,
inclusive, de felicidade (Gráfico 2).

Gráfico 2 - Sentimentos despertados com a aquisição da casa própria

Responsabilidade 11.84%
Felicidade 23.68%
Independência 22.37%
Confiança 42.11%

Fonte: Pesquisa de campo, 2016

Este resultado demonstra que parte da amostra percebe a casa como uma vertente
criadora de novos horizontes para o indivíduo, levando-o a mudar de estágios como ser
humano, de modo a influenciar na sua história de vida, na sua percepção da realidade e na sua
formação pessoal. Segundo Carrieri, Souza e Lengler (2011), os acontecimentos e mudanças
na vida de um indivíduo influenciam na formação da identidade, sejam eles anteriores ou
atuais. A história do indivíduo, de forma relativa a cada um, transforma modos de percepção
dele mesmo e, muitas vezes, do que ele espera ou deseja se tornar. Ainda, segundo Machado
(2003), a identidade pessoal é fruto da construção psicológica do ser humano sobre si mesmo
ao longo da vida. Assim, ao passo que as modificações acontecem, o indivíduo se percebe
com novos sonhos, desejos, escolhas e, até mesmo, ações. Deste modo, percebe-se que a casa
própria contribuiu para a formação da identidade pessoal, apesar de algumas condições
percebidas não serem favoráveis ao desenvolvimento dos beneficiários.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A intensidade do grau de autoconfiança também se mostra como uma das vertentes


de modificação de realidade do indivíduo, pois, ao passo que acredita mais em si mesmo e em
seu potencial, tende-se a ter mais perspectivas e capacidade para agir em busca de seus
objetivos. Na pesquisa de campo, foi possível analisar que a moradia interferiu no grau de
autoconfiança dos sujeitos à medida que 44,54% dos entrevistados se referiram a um grau alto
ou altíssimo de autoconfiança (Gráfico 3). Observa-se assim que, embora poucas mudanças
de ordem econômica na vida desses moradores tenham sido percebidas, a aquisição de uma
casa lhes deu mais confiança.
Gráfico 3 - Grau de autoconfiança atual
50.00% 39.06% 35.16%
15.62% 9.38%
0.78%
0.00%
inexistente baixo médio alto altíssimo
Fonte: Pesquisa de campo, 2016

Para obtenção de um resultado que pudesse ser analisado de forma quantitativa, deu-
se aos informantes a opção de escolher alternativas com o valor de 1 (inexistente) a 5
(altíssimo) sobre o grau de autoconfiança após a aquisição da casa própria. A média (3,36)
observada nesse quesito possibilitou a constatação de que o grau de autoconfiança atual se
encontra, em sua maioria, em situação de mediana para alta. Isto revela o potencial da
aquisição da casa própria como um fator de satisfação de necessidade, formação de identidade
e de autorrealização. Porém, os outros fatores que estão ligados à aquisição da casa, como
emprego, escolaridade e renda, fazem com que parte desse potencial não seja explorado.
De acordo com Machado (2003), a identidade pessoal orienta o indivíduo em suas
ações a partir do conceito e da visão que ele tem de si próprio. Deste modo, a partir da
consecução do objetivo de possuir uma moradia própria, a maioria dos indivíduos
pesquisados demonstrou acreditar que pode “trilhar” por novos caminhos e ser capaz de ter
novos projetos. Percebeu-se também que o simples fato de se tornar beneficiário de um dos
programas habitacionais gerou esperança e motivação aos moradores, ao conseguir a casa
própria.
Questionados sobre seu grau de satisfação com relação ao que fazem atualmente e ao
que são, 59,38% dos respondentes demonstraram estar satisfeitos ou muito satisfeitos com o
que percebem de si mesmo, porém, 38,28% da amostra têm o desejo de melhorar-se como
indivíduo, tanto no âmbito pessoal, quanto social. Este resultado reforça o que já foi relatado
até o momento, sobre o aumento da autoconfiança após a obtenção da casa. Já os moradores
de residências alugadas ou cedidas que fizeram parte da amostra, neste quesito, colocaram-se
como insatisfeitos ou indiferentes.
Sobre o reconhecimento social em função de características individuais ou atividades
realizadas, apenas 5,47% dos entrevistados percebem esse reconhecimento. Na maioria das
vezes, tal reconhecimento tem origem na atividade profissional desempenhada. Este foi um
item de pouca expressividade em termos de melhoria para o indivíduo respondente.
Verificou-se, assim, que muitos beneficiários manifestaram uma necessidade de
estima, ou seja, a necessidade de obter reconhecimento próprio pelo que faz e pelo que é. Esse
achado tem relação com as constatações de Machado (2003), ao descrever que, mesmo a
identidade pessoal sendo um conceito próprio do indivíduo sobre si, ela é influenciada pela
necessidade que este tem de suprir as expectativas de outras pessoas a respeito dele. Apesar
de não ter tudo o que desejam e não ter alcançado o reconhecimento social que gostariam,
muitos dos entrevistados se sentem bem consigo mesmo, diante do que desempenham em sua
vida pessoal e profissional.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A moradia tem papel fundamental na construção da história do indivíduo, à medida


que se faz presente na memória e acontecimentos ao longo da vida dos sujeitos. Quando
questionados sobre o significado da moradia em suas vidas, os entrevistados se referiram a:
independência, melhoria de vida, tranquilidade, estabilidade, alcance de sonho ou objetivo,
segurança e liberdade. Estes sentimentos costumam se fazer presentes na memória histórica
de cada ser humano, ajudando-o a formar sua identidade de lugar, sua identidade coletiva e
até mesmo sua identidade pessoal (Tabela 3).

Tabela 3 - Significado da casa própria para a história do entrevistado

Descrição Quantidade %
Independência 19 16,52%
Melhoria de vida 20 17,39%
Tranquilidade 9 7,83%
Estabilidade 5 4,35%
Alcance de sonho ou objetivo 53 46,09%
Segurança 5 4,35%
Liberdade 4 3,48%
115 100,00%
Fonte: Pesquisa de campo, 2016

Os dados coletados demonstram a importância da moradia na vida de um indivíduo,


caracterizando processos de autorrealização, além da construção de identidade pessoal,
independência e sensação de segurança. Segundo a amostra pesquisada, o processo de
autorrealização se sobressai, totalizando 46,09% dos respondentes que optaram por descrever
a aquisição da casa como o alcance de um sonho.
Segundo Borges (2013), a casa pode ser vista como um item forte na construção e na
integração de memórias, pensamentos e sonhos. Esta afirmação relaciona-se com os
resultados obtidos na pesquisa e colaboram para a ideia de formação de identidade, ao passo
que uma casa digna gera sentimento de autorrealização, orgulho e reconhecimento pessoal.
Nesta constatação, pode-se citar ainda o sentimento de “lugaridade” e de pertencimento que
uma casa tende a gerar no indivíduo, de modo que esta ajuda-o a construir laços em âmbitos
coletivos e colaboram para a construção da história do ser humano, na realidade atual e na
futura.
Quando questionados sobre a formação de novos sonhos e objetivos após a obtenção
da casa própria, observou-se que os entrevistados pouco se referiram a sonhos/objetivos. A
casa própria desempenha um importante papel na construção de novas perspectivas. Mais
uma vez, assim, a residência do condomínio popular possui uma série de outros fatores que
estão interligados à aquisição da casa e diretamente ligados à construção dos novos objetivos
que não foram atendidos satisfatoriamente.
Os informantes também fizeram referência aos seguintes objetivos: estudar
novamente, conseguir um emprego, ter um automóvel, reformar a casa ou comprar bens
materiais (móveis ou imóveis). Desta relação, os objetivos com maior frequência de respostas

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

foram: reformar a casa e arrumar um emprego, correspondendo a 31,37% e a 29,41%


respectivamente (Tabela 4).

Tabela 4 - Objetivos atuais dos donos das casas populares


Descrição Quantidade %
Reformar a casa 32 31,37%
Arrumar emprego 30 29,41%
Comprar bens materiais 26 25,49%
Ter um automóvel 12 11,76%
Estudar novamente 2 1,96%
102 100,00%
Fonte: Pesquisa de campo, 2016

Ao analisar os objetivos citados pelos respondentes, percebe-se que muitos deles


ainda referem-se à melhoria da própria moradia e da condição de vida que possuem. Esse
resultado revela que os objetivos são básicos para obtenção de maior conforto e qualidade de
vida, além de sobrevivência e desenvolvimento econômico. Mas demonstram também que a
casa própria é capaz de estabelecer uma ponte para que o indivíduo se perceba como detentor
de capacidades de sonhar, lutar e conquistar aquilo que deseja. Assim, notou-se uma evolução
relevante no que tange à identidade própria, como se enxergam atualmente diante das
dificuldades que enfrentam e daquilo que desejam conquistar.
De acordo com Carrieri, Souza e Lengler (2011), a identidade pessoal pode ser
percebida como um processo evolutivo e em construção contínua. Ao passo que o indivíduo é
influenciado pelos acontecimentos temporais e pelas motivações intrínsecas, este se descobre
diferente com o passar do tempo, buscando então vivenciar novas experiências, conquistas e,
mesmo, posicionamentos sociais. Assim, a criação de novos objetivos demonstra de forma
clara que a casa própria influencia tanto na construção de memória do indivíduo quanto na
formação de novas perspectivas sobre si próprio e sobre o mundo que o cerca.
Uma amostra de 79,69% da população pesquisada demonstra que ter uma casa
própria contribui, substancialmente, para o estabelecimento de novos objetivos. Dentre as
motivações para que isso aconteça, foi citado não possuir mais a necessidade de se preocupar
com o pagamento de aluguel (63,73%), tornar-se mais independente (19,61%) e possuir mais
confiança própria após a aquisição da casa própria (16,67%), conforme pode ser observado na
Tabela 5.

Tabela 5 - Contribuição da obtenção da casa própria para a formação de novos objetivos


Descrição Quantidade %
Ajuda a ter mais confiança própria 17 16,67%
Adquire-se mais independência 20 19,61%
A preocupação com o aluguel deixa de existir 65 63,73%
102 100,00%
Fonte: Pesquisa de campo, 2016

Com a aquisição da casa própria, os sentimentos de independência e confiança são


constatações do próprio indivíduo através da satisfação da necessidade de segurança e estima,
o que o leva a avançar para novos patamares de necessidades e objetivos pessoais. Aqui, até
mesmo o fato de não precisar mais pagar aluguel se revela como uma demonstração de
satisfação da necessidade de segurança, ao passo que agora o respondente se sente seguro e
confiante sobre sua moradia e possui o valor gasto com o aluguel para investir no atendimento
de outros desejos e/ou necessidades.
Sobre os benefícios de se ter uma casa própria, os moradores citaram não ter que dar
satisfação para os familiares com quem moravam antes, não ter medo de ser despejado, não

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

viver dependendo de outras pessoas, não precisar se preocupar com aluguel, tornar-se mais
responsável ou ser independente, ter liberdade, poder comprar bens materiais, estar mais
próximo da prestação de serviços hospitalares e melhorar a autoestima (Tabela 6).

Tabela 6 - Benefícios da obtenção da casa própria


Descrição Quantidade %
Não precisar se preocupar com aluguel 30 26,09%
Não ter que dar satisfação a ninguém 28 24,35%
Não viver dependendo de outras pessoas 15 13,04%
Tornar-se mais responsável 15 13,04%
Não ter medo de ser despejado 9 7,83%
Ser independente 7 6,09%
Comprar bens materiais por não precisar pagar aluguel 7 6,09%
Ter Liberdade 2 1,74%
Estar mais próximo da prestação de serviços hospitalares 1 0,87%
Melhorar a autoestima 1 0,87%
115 100,00%
Fonte: Pesquisa de campo, 2016

Ser independente e não ter que dar satisfação para os familiares com quem moravam
antes foram itens que sobressaíram. Este achado corrobora com a ideia de que possuir uma
moradia própria contribui para a construção identitária do indivíduo, tendo em vista a
mudança de percepção de si próprio e do outro sobre o nível de dependência que possuía.
Como afirma Machado (2003), a identidade individual é fruto da construção psicológica do
ser humano sobre si. Com isso, percebe-se um processo de desenvolvimento pessoal em
muitos moradores, até mesmo de melhoria da autoestima.
Estes sentimentos citados pelos respondentes são fatores de construção identitária
pessoal e social de forma gradativa e com efeitos em escala, a medida que o indivíduo, por
exemplo, se percebe mais confiante ao não depender da ajuda de outras pessoas para possuir
uma moradia, ao se motivar pela busca de outros objetivos, porque se acha, atualmente, mais
capaz de alcançar o que deseja. Porém, percebe-se, na amostra pesquisada, que o maior
benefício vislumbrado foi o de não precisar pagar mais aluguel, pois, desta forma, sobra
dinheiro para comprar outros itens necessários à subsistência da família, como alimento e
vestuário.
A contribuição e o envolvimento comunitário é uma das características de formação
de identidade coletiva. À medida que o indivíduo se identifica com o grupo, cria um
sentimento de pertencimento e passa a defender os interesses coletivos. A sequência de
questões que remontam as referências para a construção da identidade social/coletiva
demonstra que a amostra pesquisada possui pouco/nenhum entrosamento social com os
demais moradores, o que dificulta essa formação de identidade.
Não há mobilização comunitária ou mesmo reuniões locais para busca por melhorias
e resolução de problemas. Segundo os relatos, os vizinhos não vivem em clima de
comunidade. A maior parte dos respondentes disse preferir “ficar aqui no canto deles e que os
vizinhos também fiquem lá no canto deles”. Não há, portanto, relacionamento interpessoal no
conjunto habitacional. Dessa forma, 98,26% dos moradores disseram que a obtenção da casa
própria em nada contribuiu para a manifestação de forma mais ativa da defesa dos interesses
coletivos.
Seguindo na perspectiva de formação de identidade de lugar e identidade social,
perguntou-se aos moradores se percebiam diferenças entre a antiga vizinhança e a atual. O
resultado revelou pouca variação entre a cultura anterior e a cultura atual, na percepção dos
informantes. O quesito mais citado como percepção de diferenças culturais dos novos
vizinhos faz referência à percepção atual de “isolamento”, o que dificulta o relacionamento

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

interpessoal. Os relatos revelam que a troca de cumprimentos entre vizinhos não ultrapassa o
mero “bom dia”, “boa tarde” ou “boa noite”. Observa-se ainda a necessidade de formação de
identidade social para que os indivíduos se sintam parte da comunidade e não vivam em clima
de isolamento, tendo em vista que as entrevistas revelaram que muitos moradores citaram o
clima de distanciamento no relacionamento com os demais moradores.
De acordo com Machado (2003), a identidade social se atrela a costumes, culturas e
comportamentos da comunidade a qual o indivíduo faz parte. Sendo assim, esperava-se que,
como não houve muitas mudanças culturais percebidas, a adequação ao novo ambiente se
fizesse de forma espontânea e influenciasse no modo de convivência, organização e
mobilização social, porém, percebe-se que estas vertentes não foram alcançadas. Não há
entrosamento social entre os moradores e nem interesse por organização social em prol de
ações e mobilizações pela comunidade e seu desenvolvimento.
Todos os indivíduos pesquisados disseram não se sentir influenciados por esses
novos fatores culturais aos quais não estavam acostumados anteriormente. Porém, percebe-se
que, de forma consciente ou não, os indivíduos pesquisados se mostram influenciados na
cultura de “isolamento” tanto pessoal, quanto social. Acostumam-se a agir como o vizinho a
quem criticam pela forma de relacionamento e formam, assim, uma rede de distanciamento
que implica num ambiente extremamente desfavorável ao crescimento e desenvolvimento
social, bem como à formação identitária no local. Este achado denuncia a baixa relação entre
a identidade profissional, o relacionamento comunitário e interpessoal e a falta de associações
comunitárias para mobilização social no conjunto habitacional.
Carrieri, Souza e Lengler (2011) trazem que a identidade social/coletiva emerge da
relação entre os indivíduos. Isso explica então o porquê de pouquíssimos beneficiários do
condomínio popular terem demonstrado resultados positivos quanto à formação de identidade
social após a aquisição da casa, principalmente na perspectiva de envolvimento e luta social
pelos objetivos comunitários. Com isso, é possível inferir que, mesmo tendo uma casa
própria, a relação da maioria com a sociedade continua em baixo nível de envolvimento.
Além disso, percebe-se também a falta de desenvolvimento social após a aquisição da casa.
De acordo com Machado (2003), a identidade social permeia não apenas a visão do
indivíduo sobre ele dentro de um ambiente social, mas é resultado das relações interpessoais
que este mantém, bem como do papel que ele desempenha ao fazer parte de um grupo,
lutando por ideais comuns aos pertencentes. Nesse contexto, vislumbra-se a inexistência de
grupos de relacionamento comunitário no Condomínio, ao se constatar a falta de organização
comunitária que busque atender os interesses da população do Condomínio, conforme relato
dos moradores.
Nessa perspectiva, ainda pode-se citar que a identidade social gera os sentimentos de
pertencimento e de segurança (MACHADO, 2003). Esses sentimentos, por sua vez, em
relação à comunidade em si, não foram citados, visto a distância no relacionamento
interpessoal dos beneficiários do Condomínio.
A maior parte da população pesquisada (67,97%) interpreta que a sociedade possui
uma visão diferente e distorcida dos sujeitos que moram no conjunto habitacional. Tal
percepção, segundo os informantes, é mais negativa do que positiva, ou seja, os moradores
sentem-se vítimas, principalmente, de preconceito e discriminação. Por conta disso, o
sentimento de pertencimento, muitas vezes, é abalado, visto que a sociedade faz com que
muitos desejem mudar do Condomínio por causa da discriminação que julgam sofrer.
De acordo com Borges (2013), a caracterização da identidade social se dá também
pelo fato de o indivíduo possuir o desejo de pertencer a um grupo e se sentir parte do
ambiente em que vive. Nesse quesito, percebe-se, mesmo diante do baixo relacionamento
interpessoal entre os moradores e da falta de mobilização social, que a maioria dos indivíduos

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

respondentes se sente parte do ambiente e se assume pertencente a ele de forma tranquila e


consciente, principalmente, por ter orgulho de possuir uma casa própria.
Por um lado, muitos se sentem confortáveis em dizer que fazem parte desta
comunidade, por outro, uma grande parcela (41,41%) já possui outra opinião sobre o assunto.
Observou-se também que, para 71,70% dos respondentes, o principal motivo para se sentirem
pouco confortáveis ou totalmente desconfortáveis em se assumirem como moradores do
Condomínio é o fato de se julgarem como indivíduos discriminados pela comunidade local.
Os resultados obtidos demonstram que a discriminação percebida pelos moradores,
as condições econômicas desfavoráveis em que vivem e o baixo nível de relacionamento entre
os residentes no Condomínio influenciam o sentimento de conforto em se assumir ou não
como morador do local. Apesar de haver um grande número de pessoas que tem orgulho de
ter obtido uma casa própria, observa-se que ainda há muitas pessoas que se sentem, até
mesmo, impotentes e incapacitadas por precisar morar em um condomínio popular e sofrer
discriminação. Por isso, preferem omitir o local de residência, dar o endereço do imóvel de
algum parente ou evitar falar sobre o assunto em suas relações sociais.
Pode-se refletir, através desse resultado, que a contribuição da casa própria na
construção da identidade pessoal, social e de lugaridade na vida dos entrevistados ainda é
muito baixa. As condições de relacionamento interpessoal e a discriminação sofrida pelos
moradores se sobressaem como obstáculos que impedem, na maioria das vezes, a atuação da
casa própria na formação da identidade do indivíduo em todos os âmbitos sociais.

Considerações Finais

Diante dos resultados obtidos com a pesquisa foi possível perceber que a casa própria
contribuiu para a formação da identidade dos indivíduos pesquisados, porém, com pouca
expressividade, tendo em vista os fatores sociais e econômicos em que vivem. Notou-se um
aumento de autoestima e de autoconfiança dos proprietários, mas muitos ainda se sentem
insatisfeitos com as condições desfavoráveis em que vivem e com o que realizam em âmbito
social.
Quanto à formação de identidade social, a contribuição foi ainda menor que a
observada para a formação de identidade pessoal. Não há evidências de melhorias na
mobilização e participação social dentro do Condomínio ou no próprio município. Isso
decorre, em grande parte, pelo clima de “isolamento” em que os moradores do Condomínio se
acostumaram a viver e pela falta de ações governamentais que contribuam para o fomento à
manifestação social. Os indivíduos não conseguem se perceber como agentes sociais capazes
de lutar pelos seus direitos ou pela mudança de suas realidades. Ademais, muitos ainda se
encontram conformados com as condições precárias em que vivem.
Já sobre a identidade de “lugaridade”, a discriminação social e o sentimento de
incapacidade socioeconômica são obstáculos visíveis para que esta se forme na vida de grande
parte dos moradores. Observa-se assim que a própria sociedade exclui e enxerga os moradores
do Condomínio popular com preconceito, impedindo a efetividade de um dos objetivos dos
programas habitacionais no município, que é a geração do sentimento de dignidade e
progresso social.
Percebe-se a necessidade de participação do poder público, da sociedade e dos
próprios moradores do Condomínio para a implementação desses programas, a fim de se
alcançar os objetivos de melhoria da qualidade de vida dos beneficiários e seu
desenvolvimento socioeconômico. O envolvimento societal também deve permitir que a casa
própria adquirida através desses programas não seja geradora de exclusão, mas sim de apoio
ao crescimento e desenvolvimento de condições favoráveis à justiça, equidade, igualdade e
satisfação pessoal.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

As limitações desse estudo reportam-se à dificuldade para encontrar os moradores


em suas residências na primeira visita e a divergência entre respostas oriundas do poder
público e dos moradores quanto à situação no condomínio. Dessa forma, recomenda-se que
sejam realizadas investigações mais aprofundadas sobre o tema, não apenas no município
pesquisado, mas também em outros municípios onde há ações de políticas públicas
habitacionais, a fim de demonstrar a realidade dos impactos originários da habitação na vida
dos beneficiários.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Uma Análise do Acesso à Informação da Segurança Desenvolvida nas


Instituições Federais de Ensino Superior da Região Sudeste do Brasil

Marcos Vinicius Romão da Silva Xavier


Universidade Federal Fluminense (UFF)
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Universidade Estácio de Sá

Vanuza da Silva Figueiredo


Universidade Federal Fluminense (UFF)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Stênio Henrique de Carvalho


Universidade Federal de Lavras (UFLA)

RESUMO
O presente trabalho teve por objetivo analisar os procedimentos deacesso à informação
dasegurança promovida pelas Instituições Federais de Ensino Superior da região sudeste do
Brasil. Por meio de pesquisa de campo aplicada a fatores quantitativos descritivos, buscou-se
em meio à aplicação da nova Política Nacional de Segurança Pública,um maior entendimento
das questões que norteiam a atuação dos órgãos e entidades de segurança pública dentro das
universidades federais, corroborando com a necessidade de uma segurança coletiva
híbridaempregada dentro das cidades universitárias. Buscou-se como resultado a necessidade
não só de uma maior participação da comunidade acadêmica nos assuntos que dizem respeito
à segurança dos campi, como forma de buscar soluções para a reformulação das estratégias
adotadas pelas Instituições de Ensino Superior na luta contra a violência generalizada,
garantindo a segurança que se faz necessária dentro do ambiente acadêmico, como também
maior permeabilidade de acesso à informação por parte das Instituições de Ensino Superior
que promovem um belo discurso democrático e participativo que não se aplica na realidade.
Palavras-Chave: Policiamento Híbrido, Universidades Federais, LAI.

ABSTRACT
The objective of the present work was to analyze the procedures for access to information
security promoted by the Federal Institutions of Higher Education in the southeast region of
Brazil.By means of field research applied to descriptive quantitative factors, we sought in the
middle of the implementation of the new National Public Security Policy, a greater
understanding of the issues that guide the actions of the organs and entities of public security
within the federal universities, corroborating with the need for a collective security hybrid
employed within the university cities. We sought as a result not only the need for a greater
participation of the academic community in matters that concern the safety of campuses as a
way of seeking solutions to the reformulation of the strategies adopted in the fight against the
widespread violence, ensuring the security that is necessary within the academic environment,
as also greater permeability of access to information on the part of the Higher Education
institutions that promote a fine speech democratic and participative which does not apply in
reality.
Keywords: Federal Universities, Hybrid Policing, LAI.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho buscou analisar os procedimentos de acesso à Informação pelo


cidadão junto às Instituições Federais de Ensino Superior, no que diz respeito aos assuntos de
segurança desenvolvida dentro de seus campi. Limitou-se o cenário de pesquisa ao ambiente
das universidades públicas federais da região sudeste por esta concentrar um alto índice de
violência após a aplicação da nova Política Nacional de Segurança Pública (PNSP).
Por meio de dados apresentados pelo sítio do REUNI (2015), atualmente a região
sudeste é formada por dezenove instituições federais de ensino superior, sendo três
localizadas no estado de São Paulo, quatro no estado do Rio de Janeiro, onze no estado de
Minas Gerais e uma no estado de Espírito Santo.
Foi necessário, em primeira instância, abordaros conceitos inerentes à nova PNSP,
como forma de situar o leitor sobre as peculiaridades desse novo modelo de segurança pública
aplicado em território nacional.Observando nos transcritos de Rizzo (2014) uma visão
irrestrita paralela à realidade aplicada ao restante da sociedade, foi possível alinhavar
informações que se reportassem ao conceito de ressignificação aplicado por Eltermann (2012)
ao contexto da subjetividade da realidade.
Diante da fundamentação de Vianna (2012) ao classificar os bens de uso comum e
especial, foi possível consolidar a ideia de espaços públicos que não são acessíveis a qualquer
pessoa. Por outro lado, buscou-se nos transcritos de Piroto e Moresco (2012) entender a visão
da comunidade universitária conservadora quanto a não aplicação da polícia no ambiente das
IES federais, tendo em vista as informações levantadas por Zochio e Pina (2011) sobre a
truculência da Polícia Militar de São Paulo entre os anos de 2005 e 2009 na Universidade de
São Paulo (USP).
Reuniram-se dados estatísticos apresentados pelo Anuário Brasileiro de Segurança
Pública (ABSP) quanto aos quesitos que norteiam o tráfico e uso de entorpecentes, bem como
o porte ilegal de arma dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito
Santo, com o intuito de evidenciar um aumento da violência nesses estados, ligando-se a
necessidade de aplicação do uso híbrido de entidades de segurança exigido pela nova PNSP
dentro das IES.
Apresentou-se questionário aplicado as dezenove universidades federais avaliadas no
intuito de colher dados que pudessem evidenciar em como se dá o acesso à informação
peculiar de cada IES quanto ao seu esquema de segurança na atualidade, objetivando uma
visão de cunho mais participativa e democrática.
A discussão sobre a atuação dos órgãos de segurança públicadescritos no art. 144 da
Constituição Federal de 1988 (CF/88) dentro das cidades universitárias,tornou-se de grande
relevância por se tratar de uma temática polêmica que envolve questões de insegurançadentro
das cidades universitárias federais.
O presente trabalho foi de suma importância por trazer à tona questões que envolvem o
cidadão brasileiro e as instituições públicas federais de ensino, uma vez que estas devem, em
síntese, corresponderem às necessidades do ambiente em que atuam, permitindo um
relacionamento participativo e democrático que insiraa sociedade como parte do processo
transformador da realidade em que se atua.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Em meio à onda de violência instaurada na sociedade brasileira, o governo buscou como


premissa de reversão desse quadro alarmante a reformulação da Política Nacional de
Segurança Pública (PNSP).
A nova PNSP brasileira prescreveu peculiaridades das quais Soares (2007)
compreendeu como sendo um conjunto de planos que miscigena ações conjuntas entre
diferentes agentes em prol de um único objetivo: combater a violência generalizada nas
grandes cidades. Vislumbrou-se nesse novo conjunto de planosa atuação das Forças Armadas
(FA) em apoio aos órgãos de segurança pública no intuito de recuperar comunidades tomadas
pelo tráfico, exercendo assim um policiamento híbrido de Garantia da Lei e da Ordem1(GLO).
É essa aplicação híbrida que cada vez mais vem ganhando destaque como sendo de
fundamental importância para o combate à violência dentro das cidades universitárias.
Percebendo uma visão irrestrita dos estudantes universitários quanto à ação policial
dentro dos campi, Rizzo (2014) teve como ponto de partida em suas concepções o universo
acadêmico que, muitas das vezes, transcendia a uma visão paralela à realidade aplicada ao
restante da sociedade, imprimindo diferentes concepções do ambienteem cada IES, das quais
objetivavam a legitimidade das vontades dos indivíduos que lá se encontravam e que levaria a
total permissividade da diversidade cultural como fomento para não proliferação da coerção
estatal dentro das universidades públicas federais.
Entende-se na concepção de Rizzo (2014) que as IES buscaram minimizar o elemento
coercivo em seu ambiente, procurando potencializar os preceitos democráticos e
participativos que levam os indivíduos a um denominador comum: a permeabilidade cultural.
Isso quer dizer que a diversidade étnica, cultural e social existente dentro de uma IES tornou-
se fator pernicioso para que se preservasse a integridade e pluralidade de ideias aspiradas
pelos indivíduos que a constitui, propiciando a proliferação de seres que cultuassem um
pensamento libertário-crítico.
Exaltando a visão irrestrita dos estudantes, Eltermann (2012) descreveu o conceito de
ressignificação como sendo uma forma de “ordenar os fatos de tal maneira que estes possam
ser associados a uma nova imagem da realidade, definindo a convicção de um outro contexto”
(ELTERMANN, 2012, p.4). Essa nova imagem da realidade permite ao indivíduo vislumbrar
uma concepção convicta onde o novo contexto o leva a crer que o espaço educacional não
mais o protege do processo de subjetividade da realidade2. É justamente essa subjetividade
que permite que indivíduos sobre uma mesma ótica enxerguem mundos distintos.
De posse do conceito de ressignificação, Eltermann (2012) relatou que este nas mãos de
indivíduos errados poderia afrontar os interesses públicos, destruir a livre consciência e
influenciar danosamente a constatação dos fatos, reenquadrando a opinião popular,
distanciando-a da realidade onde um conjunto de necessidades não são definidas pelo
indivíduo, mas sim impostas por um sistema de reprodução conceitual através da utilização de
ideias pré-formuladas, tornando-se o principal mecanismo indutivo que, na maioria das vezes,
é imperceptível. É essa esquematização utilizada pela midiatização que, ao se aproximar da
massa popular, leva a sociedade a um jogo perigoso consubstanciado por novas interpretações
danosas à consciência humana (MORAES, 2003, apud ELTERMAN, 2012).
Observando a ausência da Polícia Militar em prédios do Banco Central (BACEN), do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), do Instituto Nacional do
Seguro Social (INSS) e do Colégio Pedro II, Vianna (2012) constatou que nem todo bem
público é acessível a qualquer pessoa.
Ao classificar os bens de uso comum, dos quais podem ser usados por qualquer pessoa,
e os bens públicos de uso especial que são destinados a uma atividade pública específica,
Vianna (2012) enquadrou as universidades como elementos autárquicos de propriedade

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

especial, endossando que a segurança de suas dependências deve ser organizada e paga pela
própria autarquia com os recursos de seu orçamento. Este conceito pode ser vislumbrado do
lado das Forças Armadas (FA) que de posse de um bem de uso especial para a execução de
serviços restritos às atividades militares, executam os serviços de Segurança com pessoal
capacitado em suas próprias dependências, excluindo a necessidade de uso dos demais órgãos
destinados à segurança pública. Ou seja, a segurança de uma Organização Militar (OM) não é
realizada em parceria com órgãos de segurança pública, mas sim por indivíduos que
constituem a própria força, tornando-a estanque à ação dos demais órgãos governamentais.
Isso demonstra que apesar das FA apoiarem o governo em um policiamento híbrido, estas não
partilham dessa mesma concepção, tornando restrita a atividade de segurança de uma OM a
um grupo de pessoas destinadas a esse propósito e investidas de poder para tais fins. Em
contrapartida, o policiamento restrito exercido dentro das OM se torna oneroso, com gastosem
recursos financeiros necessários à segurança como equipamentos de proteção, viaturas e
armamento que, muitas das vezes, não são cobertos pelo orçamento destinado a essa função
específica,levando a crer que a proteção de um bem especial se torna onerosa quando feito
isoladamente.
Coadunando com a visão de que uma universidade federal possui um campus de
dimensão considerável, o que exigiria um orçamento significativo para levar segurança a toda
sua extensão, outro grande fator não observado por Vianna (2012) ligou-se ao conceito de
ressignificação de Eltermann (2012) no qual se remeteu a ideia de que a ausência de
elementos do Estado permitiria que a subjetividade da realidade pudesse ser reformulada com
maior facilidade por indivíduos que tem por finalidade distorcer a realidade objetiva descrita
por Epelman (2010), penetrando com maior facilidade em um ambiente que permite a
permeabilidade cultural. Ao observar que apenas 15% das cerca de 2.300 IES espalhadas pelo
Brasil são do poder público, Eltermann (2012) percebeu que a expansão quantitativa da
educação em favor da melhor qualidade de vida do homem vem na contramão da capacidade
do Estado brasileiro em garantir a qualidade de ensino, haja vista que a sociedade e a
educação em especial, estão sendo culminadas por conceitos formulados e influenciados pelo
modo de pensar e agir em direção ao interesse econômico, o que se traduz em valor de
mercado e não em uma melhoria da educação: “Formar seres autônomos que agem movidos
pelo senso crítico não é tarefa fácil” (ELTERMANN, 2012, p. 2).
Com a morte de um estudante de 24 anos do curso de Ciências Atuárias da
Universidade de São Paulo (USP), Zocchio e Pina (2011) revelam medidas pragmáticas que
norteiam a política de segurança dentro de uma IES. Após o ocorrido, tomou-se como verdade
a necessidade da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMSP) atuar em conjunto com a
Guarda Universitária (GU)com o intuito de realizar vigilância nas dependências da
universidade. A ideia da USP foi dividir os papeis quanto à segurança no campus. Enquanto a
GU cuidaria da coibição de possíveis ações criminosas, o que caracteriza em uma ação
preventiva, a PM estaria imbuída de prender em flagrante e vigiar com barricadas e blitzes
toda a área universitária, caracterizando o elemento de reação. Contrapondo essa atitude
adotada pela entidade, Zocchio e Pina (2011) observaram que estudantes, professores e
funcionários da instituição demonstraramapreensão, levando-se em consideração que se
deflagrasse alguma greve, protesto ou movimentação contrário à atual direção da
Universidade, a presença da PM no campus se tornaria em uma forma cômoda de repressão
contra qualquer forma de organização política contestadora do status quo naquele lugar, o que
coaduna com a necessidade da permissividade e construção de seres
autocríticos(ELTERMANN, 2012).
Buscando exaltar a opinião da comunidade universitária e da PM, Pirolo e Moresco
(2012) revelaram que a temática de segurança dentro das universidades interfere no
sentimento social-coletivo por estar ligada intrinsecamente a polêmica do regime militar e

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

fatores históricos de confrontos entre professores, alunos e PM. Pirolo e Moresco (2012)
enfatizaram que a questão conservadora do governo militar criou mitos, mistificações e medo,
gerando o motivo de resistência de indivíduos em aceitarem pacificamente a necessidade da
presença da polícia no interior dos campi como medida mais enérgica de segurança.
Como forma de constatar algumas das problemáticas enfrentadas pelas Universidades,
destacou-se aqui na reportagem de Ernesto (2015) ao jornal O Dia o caso recente ocorrido na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 28 de agosto de 2015 onde um aluno foi
baleado no pé dentro do campus universitário mesmo este entregando todos os seus pertences
ao meliante. Mesmo com um sistema de monitoramento avançado a Universidade não
conseguiu sozinha inibir ações de bandidos dentro de seu campus.Em outra reportagem
Mattos (2016) evidencia casos de violência contra a mulher na Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro (UFRRJ). Devido a extensão de seu campus, que é considerado o maior da
América Latina, aliado a uma iluminação deficiente em muitos pontos e afalta de um
policiamento ostensivo eficiente, acaba por colaborar para a prática de violência dentro de
suas dependências.
Buscando uma ferramenta que consubstanciasse a necessidade de se angariar
informações inerentes a segurança promovida dentro das Universidades Federais, viu-se a
necessidade de buscar na Lei nº 12.527 de 2011 fundamento legal para objetivar tal pleito. A
LAI (Lei de Acesso à Informação) trouxe importante papel, permitindo ao cidadão brasileiro
ter acesso a informações sobre a guarda do Estado, restringindo seu acesso apenas quando
estas viessem a ser classificadas como sigilosas ou tratassem de informações de cunho
pessoal, garantindo a transparência e viabilizando uma maior prática democrática.
Com o intuito de regulamentar o que se predispõe a LAI, foi sancionado o Decreto nº
7.724de 2012. Tal Decreto buscou relacionar as questões envoltas sobre a transparência ativa
e passiva. A transparência ativa, evidenciada em seu Capítulo III, compreende na observância
de que todos os órgãos e entidades devem promover, independente de requerimento, por meio
de divulgação em seus sítios, as informações de interesse coletivo ou geral por eles
produzidos ou sobre sua custódia. Já em seu Capítulo IV foi possível observar que os órgãos e
entidades deverão criar Serviço de Informações ao Cidadão – SIC que, dentre outros, devem
atender e orientar o público quanto ao acesso da informação. É importante relatar que a
informação de posse de uma entidade só é considerada sigilosa se esta vier acostada do Termo
de Classificação da Informação (TCI), que constará todas as informações, inclusive as razões
para a classificação da informação disposta no art. 23 da LAI.
Consubstanciando o assunto da LAI, viu-se a necessidade de entender o real papel do
Ombudsman3.A Associação Brasileira de Ouvidores/Ombudsman (ABO) descreveu a
instituição da Ouvidoria como um instrumento de aprimoramento democrático, defesa dos
cidadãos e de efetiva representação de seus direitos e interesses legítimos, compactuando com
a colaboração das autoridades e a comunidade em assuntos de interesse público, promovendo
a ética, a paz, a cidadania, os direitos humanos, a democracia e outros valores universais.
Sendo assim, na ausência da criação de um SIC pelos órgãos públicos e entidades
competentes, conforme estabelece o Dec. nº 7.724/2012, entendeu-se aqui que é inteiramente
possível que uma Ouvidoria tem por obrigação atender qualquer solicitação disparada por um
cidadão que requer informação, não cabendo interpretação dúbia quanto à questão de acesso à
informação, já que a LAI regulamenta tal pedido, independente do caminho a ser seguido.
Em entrevista ao Infobae América Figueiredo (Figueiredo, 2015, apud Mizrahi, 2015)
relatou que devido a Leis que não intimidam os políticos mal-intencionados, os cidadãos
brasileiros adotaram uma postura de desconfiança quando o assunto norteia as questões das
políticas públicas, evidenciando que as medidas adotadas para proporcionar o acesso à
informação pelos cidadãos são apenas um primeiro passo para consolidação da democracia
com participação legítima do povo:

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

En distintas investigaciones realizadas se verifico un bajo nivel de transparência em


los municípios brasileños. Algunasinformaciones no son de fácil acceso ni
entendimiento, porque utilizanunlenguaje que lamayoría de lasveces es complejo y
desactualizado (Figueiredo, 2015, apud Mizrahi, 2015)

A LAI surgiu com o intuito de combater a corrupção e a fraude que são considerados
por Arrighi (2015) não como sendoa expressão do poder legítimo, mas do fracasso deste.

3. METODOLOGIA

Como forma de enxergar o ambiente de insegurança em que uma Instituição de Ensino


Superior Federalse encontra, foi necessário, em primeira instância, buscar informações
quantitativas com o intuito de mensurar o cenário sobre o qual se aplica a nova Política
Nacional de Segurança Pública (PNSP). Por meio do Anuário Brasileiro de Segurança Pública
(ABSP) foi possível vislumbrar se com o passar dos anos a nova PNSP trouxe resultados
significativos para a sociedade brasileira. Para fins dessa pesquisa foram extraídos dados do
ABSP referentes aos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo, já
que estes quatro estados compreendem ao ambiente de delimitação da pesquisa.
Dentro das diversas estatísticas apresentadas pelo ABSP, limitou-se a analisar os dados
estatísticos sobre o aumento do tráfico de entorpecentes, o uso/posse de entorpecentes e o
porte ilegal de arma de fogo, justamente por estes estarem intrinsecamente ligados ao
ambiente das IES. Foi possível analisar o quanto esses fatores tornaram-se relevantes para
chegarmos a uma conclusão que nos remetessem ao uso híbrido da GU, segurança particular e
órgãos de segurança pública no âmbito das Universidades Federais, no intuito de intensificar a
segurança interna dos campi.
Com ointuito de colher informações que pudessem ser incorporadas à pesquisa, de
forma a incrementar o resultadodo trabalho ora apresentado, buscou-se encaminhar
questionário aplicado por meio da Ouvidoria das IES envolvidas, por assim entender que este
seria o melhor canal de solicitação,objetivando buscar informações de como está sendo
realizada a segurança nos mais variados campi de cada IES.Devido à baixa adesão das IES em
responder o questionário por meio da Ouvidoria, ou mesmo a falta de compromisso em trazer
resultados condizentes com a questão em lide, foi necessário fazer uso do novo Sistema
Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão (e-SIC) promovido pela LAI, como forma
de legitimar tal pedido. Foi essa problemática que trouxe como objetivo geral a questão de
acesso a informação, pois tal ferramenta serviu como forma de análise de como está sendo
feito a prestação de informação das instituições que legitimam um discurso de participação
democrática, bem como saber se o nível de transparência em prestação de informação ao
cidadão está sendo realizado conforme demanda a problemática de acesso à informação.
O questionário contendo cinco questões apresentou indagações que pudessem auferir
informações valiosas sobre as condições de segurança estabelecidas por cada IES no combate
à violência em seus campi. Atentou-se não só observar o nível de transparência na prestação
de informação ao cidadão, como também buscar informações que consubstanciassem a
necessidade de aplicação de uma segurança híbrida dentro das IES como forma de inibir a
sensação de insegurança dentro dos campi, garantindo um ambiente mais propício à
proliferação de seres autocríticos. Como forma de organizar as informações, de forma que
estas pudessem ser interpretadas por todo e qualquer leitor, foi necessário utilizar a prática de
hermenêutica controlada de Bardin (2006), adequando o conteúdo das informações as
necessidades do trabalho.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

4. ANÁLISE DOS RESULTADOS

A tabela 1 reuniu informações que demonstram a evolução de atos ilícitos nos estados
da região Sudeste, dos quais compreenderam a evolução do tráfico de entorpecentes e porte
ilegal de armas de fogo.

Tabela 1: Evolução do Tráfico de Entorpecentes e Porte Ilegal de Arma de Fogo


Estado de São Paulo
Anos
Dados Estatísticos Avaliados
2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
Entorpecentes/tráfico 15.700 18.217 23.127 24.963 27.886 30.421* 35.584 41.115 43.556
Entorpecentes/posse e uso 20.019 21.492 23.776 22.113 23.273 29.100* 29.297* 28.429 30.466
Porte Ilegal de arma de fogo 12.268 10.202 8.954 6.860 7.344 8.445* 7.110* 6.967 6.851
Estado do Rio de Janeiro
Anos
Dados Estatísticos Avaliados
2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
Entorpecentes/tráfico 4.629 4.178 -** 3.234 7.115 4.747 4.618 6.114 12.976
Entorpecentes/posse e uso 4.817 4.748 -** 3.783 3.943 4.711 6.210 7.909 9.430
Porte Ilegal de arma de fogo 3.550 3.478 -** 3.029 3.194 3.367 3.667 3.732 4.872
Estado de Minas Gerais
Anos
Dados Estatísticos Avaliados
2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
Entorpecentes/tráfico 3.299 3.381 3.599 4.198 12.933* 17.436* 20.730 24.272 24.118
Entorpecentes/posse e uso 6.430 8.528 7.355 6.631 4.907* 19.894 21.631 22.783 19.768
Porte Ilegal de arma de fogo 4.169 3.065 2.350 1.414 3.370* 3.917* 3.791 7.939* 5.103
Estado do Espírito Santo
Anos
Dados Estatísticos Avaliados
2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
Entorpecentes/tráfico 599 886 1.194 1.615 1.892* 2.600* 2.513* 3.974* 5.551
Entorpecentes/posse e uso 273 514 528 779 1,139* 1.571* 3.730* 4.807* 4.185
Porte Ilegal de arma de fogo 669 1.137 1.147 1.154 1.350* 1.718* 3.128* 2.589* 1.968
Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Púbica – adaptado pelos autores
* Campos com valores inconsistentes que foram aproximados ou reajustados em até dois anos.
** Não houve disponibilização de dados para o ano base de 2007 no Estado do Rio de Janeiro.

Apresentou-se na figura 1, àdireita, a tela de acesso inicial do sítio sobre o qual


compreende o novo Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão (e-SIC),
utilizado para a solicitação das informações junto aos órgãos do governo. Neste Caso o
sistema foi solicitado para buscar informações junto às IES Federais. Do lado direito é
possível observar a região sudeste – área de delimitação da pesquisa.

Figura 1: Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão

Fonte: Acesso a informação/mapas para colorir – adaptado pelos autores

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Na tabela 2 foi possível listar as IES com suas respectivas siglas por unidade federativa
que participaram da pesquisa, bem como a área total de todos os campi.Ressalta-se que
algumas das Instituições Federais não ofereceram dados sobre o tamanho da área no qual o
campus da Universidade encontra-se instalada.

Tabela 2: Universidades Federais da Região Sudeste


Estado Nome/Sigla Área do campus (m²)
- Santo André: x-x
Universidade Federal do ABC (UFABC)
São - São Bern. dos Campos: -
Paulo Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) 6.292.309,00
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) 14.000,00
Universidade Federal Fluminense (UFF) 4.007.876,00
Rio de Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) 35.000.000,00
Janeiro Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) -*
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) 4.700.000,00
- Diamantina: Campus I -
14.262,18/ Campus JK -
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri 1.979.198,90
(UFVJM) - Janaúba: 59.108,57
- Mucuri: 254.000,00
- Unaí: 18.001,46
Universidade Federal de Uberlândia (UFU) -*
Universidade Federal de Viçosa (UFV) -*
Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL) 241.453,00
- Uberaba:
Minas Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) - Araxá:
Gerais - Iturama:
Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI) Itajubá: 372.518,00
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) 1.346.793,80
Universidade Federal de Lavras (UFLA) 6.000.000,00
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) 5.375.579,00
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) -*
- S. J. Del Rei:
- Ouro Branco:
Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ)
- Divinópolis:
- Sete Lagoas:
Espírito
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) -*
Santo
Fonte: REUNI – 2015 – adaptado pelos autores
*Não houve disponibilização de dados pelas IES Federais.

As seguintes questões foram apresentadas como forma de angariar informações sobre as


atividades de segurança promovida pelas instituições:

1- Nome da Universidade Federal


a. Localização
b. Campus analisado

2- Se na Universidade há algum tipo de segurança.

3- Se sim, qual o tipo de segurança é realizada: pública, privada ou híbrida.

4- No caso de segurança privada, qual o valor pago mensalmente pelo serviço.


a. Número de segurança contratado.
b. Número de seguranças em cada plantão.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

c. Área total do campus.


d. Número de carros utilizados (somente o supervisor).

5- No caso de segurança pública:( ) Polícia Militar, ( ) Polícia Civil ( ) Polícia


Federal.
a. Tipo de Policiamento: ( ) Interno/externo, ( ) Interno, ( ) externo.
b. Número de policiais designados.
c. Turno.
d. Número de policiais em cada plantão.
e. Número de carros.
f. Se há controle de identificação no acesso à Universidade: ( ) Sim, ( ) Não.

Diante dessas informações, na tabela 3 foi possível demonstrar as respostas mais


relevantes do questionário respondidas por cada IES. Destacou-se para o presente trabalho
informações como o tipo de segurança pública adotada pela universidade (se pública ou
privada), o valor do serviço licitado, o tipo de policiamento promovido (externo ou interno,
no caso de aplicação de segurança híbrida) e o controle de identificação de veículos e
pedestres no acesso ao campus universitário.

Tabela 3: Resposta do Questionário respondido por cada IES Federal


Tipo de Controle de
Tipo Segurança Valor do
IES Campus policiamento identificação
serviço (R$)
Pública Privada Externo Interno no acesso?
-Santo André
UFABC - São Bernardo - X 450.000 - - Sim
dos Campos
UFSCAR São Carlos - X 6.418.000,00 X - Sim
Unifesp Guarulhos - X 95.048,16 X - Sim
UFF Icaraí (Sede) - X 1.435.866,58 X - Sim
UFRRJ Seropédica X - - - X Sim
UNIRIO Pasteur - X 590.000,00 - - Não
Cidade
UFRJ X X - X - Sim
Universitária
Diamantina - X 9.1701,80 - - Sim
Janaúba - X 10.258,30 X - Não
UFVJM
Mucuri - X 55.030,87 - - Sim
Unaí - X 10.258,32 X - Sim
UFU* - - - - - - -
UFV* - - - - - - -
UNIFAL Alfenas - X 146.176,01 X - Não
- Uberaba
UFTM - Araxá X X - - - Sim**
- Iturama
UNIFEI Itajubá - X 1.255.533,36 X - Sim
UFJF São Pedro X X 764.262,55 - - Sim**
UFLA Lavras X X 218.740,80 - X Não
UFMG Pampulha X - - - X Sim
UFOP Ouro Preto X X 89.833,61 - - -
-São João Del Rei
- Ouro Branco
UFSJ X X 4.708.720,08 - - Não
- Divinópolis
- Sete Lagoas
UFES Goiabeiras - X 826.000,00 - - Sim
Fonte: fornecido pelas próprias IES – adaptado pelos autores
*As IES Federais não responderam a solicitação, mesmo respaldado pela LAI.
** O controle é realizado apenas em alguns prédios universitários.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Buscando um maior aprofundamento da pesquisa, foi possível reunir na tabela 4


informações sobre a utilização da segurança pública dos órgãos federativos em
complementaridade à segurança privada e Guarda Universitária, evidenciando a aplicação do
policiamento híbrido preconizado pela nova PNSP.

Tabela 4: Tipo de Policiamento Utilizado nas IES Federais da Região Sudeste


IES Tipo de policiamento
Campus
(sigla) PolíciaFederal Polícia Militar Polícia Civil Guarda Universitária
- Santo André
UFABC - São Bernardo dos - - - -
Campos
UFSCAR São Carlos - - - -
Unifesp Guarulhos Sim Sim Sim -
UFF Icaraí (Sede) - Sim - -
UFRRJ Seropédica - - - Sim
UNIRIO Pasteur - - - -
Cidade
UFRJ - Sim Sim Sim
Universitária
Diamantina - - - -
Janaúba - Sim - -
UFVJM
Mucuri - - - -
Unaí - Sim - -
UFU* - - - - -
UFV* - - - - -
UNIFAL Alfenas - Sim - -
- Uberaba
UFTM - Araxá - Sim - -
- Iturama
UNIFEI Itajubá - Sim - -
UFJF São Pedro - - - Sim
UFLA Lavras - Sim - Sim
UFMG Pampulha - - - Sim
UFOP Ouro Preto - - - -
-São João Del Rei
- Ouro Branco
UFSJ - - - Sim
- Divinópolis
- Sete Lagoas
UFES Goiabeiras - - - -
Fonte: fornecido pelas próprias IES – adaptado pelos autores
*As IES Federais não responderam a solicitação, mesmo respaldado pela LAI.

Tornou-se necessário, por meio da tabela 5, apresentar um ranking que pudesse trazer
à tona quais das Universidades Federais cumpriram com todos os requisitos previstos na
legislação em vigor, sem subterfúgios, com eficiência e eficácia no tratamento da informação,
como deve ser a resposta de uma autarquia que prioriza uma educação de qualidade e preza
pela construção de indivíduos pautados pelos princípios participativos e democráticos de uma
sociedade de direito.
Reuniu-se dados desde solicitações realizadas por e-mail a funcionários e ouvidorias
das IES em análise, como também do Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao
Cidadão (e-SIC) que registra a data de abertura do chamado, o prazo ideal de resposta e a data
de resposta dos órgãos sobre a custódia dos assuntos pertinentes. Tomou-se a liberdade de
medir o tempo de resposta em dias úteis com base desde o primeiro chamado por e-mail até o
prazo de resposta de cada IES Federal, o que nos permitiu aferir um ranking com as IES que
obtiveram o melhor desempenho de resposta à solicitação.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Tabela 5: Ranking das IES Federais que prestaram informações do tempo previsto
Tipo de Solicitação
Tempo de
IES Sistema e-SIC Data da
Nº Resposta
(sigla) E-mail Ouvidoria Data de Prazo do Resposta
(dias úteis)*
abertura sistema
29/05/2015
(Ouvidoria) 2 (Ouvidoria)
1 Unifesp - 27/05/2015 31/05/2015 22/06/2015
02/07/2015 27 (e-SIC)
(e-SIC)**
2 UFRRJ 20/05/2015 - 31/05/2015 22/06/2015 02/06/2015 2 (e-SIC)
15/06/2015
(Ouvidoria)
3 UFSJ 09/06/2015 21/05/2015 31/05/2015 22/06/2015 09/06/2015 - 5 (Ouvidoria)
(Não atendeu
pelo e-SIC)
4 UFLA - 21/05/2015 31/05/2015 22/06/2015 02/06/2015 8 (e-SIC)
5 UNIFEI - 21/05/2015 - - 25/05/2015 8 (Ouvidoria)
6 UFSCAR 21/05/2015 23/05/2015 17/06/2015 06/06/2015 8 (e-SIC)
7 UNIFAL - 27/05/2015 31/05/2015 22/06/2015 11/06/2015 10 (e-SIC)
8 UFOP - 21/05/2015 31/05/2015 22/06/2015 05/06/2015 10 (e-SIC)
9 UFMG - 21/05/2015 26/05/2015 15/06/2015 08/06/2015 11 (e-SIC)
10 UFJF - 21/05/2015 31/05/2015 22/06/2015 11/06/2015 14 (e-SIC)
11 UFTM - 21/05/2015 31/05/2015 22/06/2015 11/06/2015 14 (e-SIC)
12 UFVJM - 21/05/2015 31/05/2015 22/06/2015 12/06/2015 15 (e-SIC)
13 UFABC - 21/05/2015 31/05/2015 22/06/2015 18/06/2015 19 (e-SIC)
14 UFF - 21/05/2015 31/05/2015 22/06/2015 19/06/2015 20 (e-SIC)
15 UFRJ 21/05/2015 26/05/2015 31/05/2015 22/06/2015 22/06/2015 21 (e-SIC)
16 UFES - 21/05/2015 31/05/2015 22/06/2015 22/06/2015 21 (e-SIC)
17 UNIRIO 21/05/2015 31/05/2015 02/07/2015 13/07/2015 36 (e-SIC)
Até o
presente
18 UFU* - - 31/05/2015 22/06/2015 -
momento não
respondeu
Até o
presente
19 UFV* - 21/05/2015 26/05/2015 16/06/2015 -
momento não
respondeu
Fonte: Elaborado pelos autores
*Foi considerado como tempo corrido da solicitação o primeiro dia após o contato realizado até a data do
atendimento entre os meios informais (e-mail) e os meios formais (Ouvidoria e e-SIC).
** A IES Federal solicitou prorrogação do pedido.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fator de ressignificação está presente no ambiente acadêmico,onde muitos ainda não


se deram por perceber que ações que os levam a subjetividade da realidade estão permeando
como uma realidade objetiva, criando conceitos que se sobrepõem aos valores sociais,
democráticos e participativos necessários a um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
Tendo em mente o aumento da violência na região sudeste, foi possível chegar à
conclusão de que as Universidades estão adotando o que preconiza a nova PNSP onde o uso
de um policiamento híbrido caracteriza-se como sendo uma reformulação na adoção de
procedimentos que visam uma segurança dentro das Instituições Federais de Ensino Superior
que não apenas consubstancie uma visão conservadora da comunidade universitária onde o
sentimento social coletivo se ligue aos fatores históricos. É preciso estar de olho no passado

109
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

para que os mesmos erros não sejam cometidos, mas também permitir que novas conjunturas
possam ser formadas, objetivando o atendimento das novas demandas que possam vir a surgir
no âmbito da segurança do ambiente universitário.
Ao reunir os dados do ABSP na tabela 1, foi possível demonstrar que mesmo com o
poder de atuação dos órgãos de segurança sobre a concepção da nova Política Nacional de
Segurança Pública (PNSP), a violência tendeu a crescer durante os últimos cinco anos em
todos os estados da região sudeste.
Observando os questionários, apenas a UFLA relatou que possui um posto da PM em
seu próprio campus para patrulhamento de suas dependências e que este é treinado
exclusivamente para atender as demandas dos casos que possam vir a surgir dentro da
instituição. A UFRRJ e a UFMG utilizam o policiamento interno, porém ambas dispõem de
Guarda Universitária e não da PM como forma de policiamento de suas dependências. É
importante citar aqui que a maioria das Universidades Federais possuem parcerias com a PM,
mas a mesma só é solicitada para o policiamento externo o que reforça a ideia de visão
conservadora da comunidade universitária.
De acordo com os dados apresentados na tabela 5, foi possível constatar que das 19
Universidades Federais apenas a Unifesp,UFSJ, UNIFEI e UFSCAR atenderam a solicitação
por meio da Ouvidoria sem a necessidade de entrar no e-SIC. Entende-se aqui que a
Ouvidoria seria o canal mais propício ou, pelo menos, deveria ser o canal mais fácil para se
conseguir certa informação, já que nenhuma das Universidades que apresentaram respostas
por meio da Ouvidoria chegou aapresentar informações claras de fácil interpretação sobre os
dados apresentados no questionário. Em particular, destacou-se a UFMG que respondendo por
meio da Ouvidoria, esclareceuque deveríamos abrir o processo de solicitação de informação
direto no e-SIC. A UFU e a UFV até a data de 4 de dezembro de 2015 não forneceram
quaisquer informações e, por esse motivo, foram classificadas como pedido não atendido na
tabela 5. Das IES que encaminharam o questionário, 15 responderam no tempo
preestabelecido pelo sistemaeletrônico, sendo que aUnifesp, UNIRIO e aUFSJ solicitaram a
postergação do prazo pelo e-SIC.
De todas as Universidades Federais analisadas, as únicas que responderam o
questionário completo foram a UFRJ, a UFJF, a UFLA e a UFSJ. Todas as outras deixaram
de responder alguma questão ou colocaram empecilhos alegando que não poderiam responder
por se tratar de informações sigilosas. Destacou-se aqui a UFTM que ao invés de
disponibilizar informação concisa ao assunto de licitação, forneceu o sítio para que o próprio
cidadão pudesse buscar as informações por si só, tendo em vista que os dados ao adentrar no
sítio oferecido não são esclarecedores o bastante, sendo impossível a localização das
informações de licitação que tratavam sobre o assunto de segurançada Instituição. Isso se
deve a falta de uma nomenclatura de fácil compreensão para o cidadão leigo. A IESainda
destacou que acordo inciso IV do Dec. 7.724/2012, não poderia tornar pública a informação,
mas a mesma não apresentou o Termo de Classificação da Informação (TCI) ou Código de
Indexação de Documento que contém a Informação Classificada (CIDIC), de forma a
legitimar tal fundamentação.
É importante relatar que dizer que a informação é sigilosa não é fator determinante
para que esta seja realmente sigilosa, uma vez que tal classificação deve estar acostada ao TCI
preconizado pelo Decreto 7.724/2012, pois somente a assinatura desse documento por
autoridade competentetem poder de caracterizar a classificação da informação em qualquer
um dos três graus de sigilo preconizados pela LAI. Nenhum representante das IES federais
que omitiram algum tipo de informação apresentaram o TCI assinado por autoridade
competenteou o CIDIC em qualquer grau de sigilo,necessário à classificação da informação, o
que caracteriza uma falha no tratamento da informação dentro dessas Instituições de Ensino
Federais.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Muitos dados não foram inseridos neste trabalho como forma de atender as
especificações do evento o que viabiliza a possibilidade para que outros pesquisadores
possam se aprofundar no tema, explorando assuntos não tratados aqui. Ressalta-se que apesar
do art. 21 do Dec. 7.724/2012 permitir recurso sobre as respostas apresentadas, as mesmas
não foram solicitadas por motivo de tempo necessário à confecção do trabalho.
O presente artigo científiconão buscou definir papeis, muito menos procurou
responsabilizar alguém pelas ingerências apresentadas em cada instituição de ensino federal,
mas tornou-se de extrema significância discutir os problemas que se apresentam na atual
gestão contemporânea das Universidades Federais como forma de trazer subsídios que
possam colaborar com práticas cada vez mais assertivas no campo de uma administração
gerencial participativa que compactue com a sensação de segurança que buscamos a todo o
momento.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Associação Brasileira de Ouvidores/Ombudsman. Quem Somos.Disponível em:


<http://www.abonacional.org.br/artigo.php?codigo=14>. Acesso em: 18 jul. 2015.

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altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio
de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras
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1
A nomenclatura de Garantia da Lei e da Ordemevidenciado no art. 142 da Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988 foi discorrido pela Lei Complementar nº 97/1999, na qual legitimou algumas das atribuições
subsidiárias das FA, fundamentando assim aideia de uso híbrido dos órgãos de segurança pública.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

2
Há de se esclarecer que a diferença entre a realidade objetiva e a realidade subjetiva compreende que nesta
última cada um de nós cria uma representação do mundo em que vivemos, o que permite diferentes
comportamentos mediante esse modelo (EPELMAN, 2010).
3
De acordo com Balerini (s/a) o termo tem origem sueca que caracteriza-se como “representante do cidadão” –
“Ombuds” = representante/ “man” = cidadão). Foram essas duas palavras que deram origem ao termo Ouvidoria
na atualidade.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Planejamento e Gestão Orçamentária Participativa: A Experiência da


Universidade Federal do Vale do São Francisco

Ailson Menezes Andrade


Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF)

Julianeli Tolentino Lima


Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF)

Elizabeth Matos Ribeiro


Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF)

RESUMO

O orçamento institucional constitui ponto central para o cumprimento dos princípios


constitucionais da Administração Pública e de definição das prioridades organizacionais. Observa-
se um movimento mais intenso no sentido de consolidar os princípios democráticos mediante a
integração de novas metodologias participativas. Assim, qualquer movimento de entes da
administração pública apontando para a divisão dessa responsabilidade e ampliação das
discussões em torno do bom uso do recurso público merece atenção, essencialmente por se
voltarem a aspirações da Administração Pública direcionadas à eficiência, eficácia e efetividade.
Analisar a experiência de planejamento e gestão orçamentária vivenciada na Universidade Federal
do Vale do São Francisco, tomando por norte para análise as definições das dimensões de
Gestão e Gerência apresentados pela teoria da Administração Política, é o objetivo central
deste estudo. Dessa maneira, definiu-se, inicialmente, identificar o referencial teórico e, a partir
de então, valer-se das técnicas de pesquisa documental, observação não-participante, aplicação
de questionários e realização de entrevistas semiestruturadas a atores chaves da instituição.

Palavras-chave: Administração Política; Administração Pública; Orçamento

1. INTRODUÇÃO

A UNIVASF é uma Instituição Federal do Ensino Superior – IFES, criada pela lei
10.473, de 27 de junho de 2002, com a missão de atuação no semiárido nordestino.
Atualmente, é dotada de 6 (seis) campi em três estados da federação, quais sejam:
Pernambuco - Petrolina/Sede e Petrolina/Ciências Agrárias; Bahia – Juazeiro, Senhor do
Bonfim e Paulo Afonso; e Piauí – São Raimundo Nonato; sendo composta de uma
comunidade acadêmica de, aproximadamente, 500 docentes, 350 técnico-administrativos e
6.000 estudantes.
A elaboração da pesquisa teve como motivação o interesse de apresentar a
experiência da adoção de práticas participativas em torno do orçamento institucional
adotadas na Universidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF, mesmo não sendo,
ainda, uma prática formalizada em todos os seus vieses.
Oportuno faz-se destacar, para fins de contextualização, que essa Universidade é
fruto da perspectiva do Estado brasileiro em expandir a oferta do Ensino Superior, para

114
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

atendimento a uma demanda crescente e reprimida em grandes centros e, especialmente, no


interior do país.
Se de um lado, a partir do advento da Lei de Diretrizes e Bases (9394/96),
percebemos uma volumosa expansão das Instituições privadas nesse nível de ensino, a partir
dos primeiros seis anos dos anos 2000, constata-se a expansão do ensino superior público,
primordialmente num movimento de interiorização da oferta desse nível de ensino, cuja
abrangência concentrava-se nas capitais ou grandes centros.
Alheio à discussão que é travada em razão da motivação dessa expansão de
instituições, pairando entre o atendimento de demandas antigas de lideranças político-
partidárias dessas regiões, ou, simplesmente, o olhar do Estado para perceber as grandes
demandas de jovens que historicamente tinham que migrar das suas cidades rumo às capitais,
fato é que a expansão ocorreu e traz um grande impacto para cada uma das localidades
alcançada por essas jovens instituições.
Administrativamente, a Univasf é composta pelos seguintes órgãos: Conselho
Universitário, Reitoria, Colegiados Acadêmicos de Graduação (24), Colegiados Acadêmicos
de Pós-Graduação (11), Pró-Reitorias (6) e Secretarias (5).
Com uma considerável envergadura administrativa e com uma ampla diversidade dos
cursos ofertados (cursos de engenharias, saúde, biológicas, agrárias e humanas) há que se
deduzir a gama de solicitações por bens (consumo e permanentes) e serviços necessários
para manter toda essa estrutura em funcionamento, seja do ponto de vista administrativo,
seja do ponto de vista de suporte às atividades finalísticas e indissociáveis da Instituição,
quais sejam: Ensino, Pesquisa e Extensão.
Por ser uma Instituição bastante jovem (com apenas 11 anos de funcionamento
acadêmico), a Universidade vivenciou, do ponto de vista de práticas orçamentárias, distintas
fases até o momento atual, sendo clarividentes duas delas: (a) um primeiro momento voltado
para a construção física da Universidade e contratação de pessoal (docentes e técnicos
administrativos. Nesse contexto, foram priorizadas práticas orçamentárias tradicionais
dirigidas para atender as necessidades mais imediatas de estruturação da instituição,
centrada, pois, em uma concepção e prática administrativa direcionada para ações mais
contingenciais; e (b) um segundo momento, marcado pela consolidação da Universidade
onde se observa uma mudança importante no perfil das demandas não tão focadas no suporte
às estruturas básicas já edificadas, passando a responder, agora, ao aumento no quantitativo
de docentes e servidores, assim como ao número de alunos que aumentara
significativamente. O reflexo imediato dessa transformação foi o aumento de reivindicações
por um maior espaço da comunidade nas discussões sobre planejamento e gestão,
especificamente sobre o orçamento. Essa dinâmica se revela mais complexa nas demandas
que emergiam dos Colegiados Acadêmicos representadas em suas distintas realidades e
custos de manutenção.
No ano de 2012, a UNIVASF iniciou uma etapa no processo de mudança concepção
e prática com o objetivo de implantar uma nova perspectiva de Planejamento Orçamentário,
baseada em princípios participativos. Através da parceria entre a Pró-Reitoria de
Planejamento e Desenvolvimento Institucional - Propladi e a Secretaria de Tecnologia da
Informação - STI, foi desenvolvido um aplicativo eletrônico denominado “LEDS” –
Levantamento de Demandas Setoriais.
Através desse aplicativo, os setores (Colegiados Acadêmicos e estruturas
administrativas) passaram a apresentar suas demandas por bens de consumo e de capital
junto a Pró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento Institucional - Propladi. A partir
desse momento, os órgãos colegiados e administrativos da instituição passaram a assumir o
papel de projetar suas demandas com base nas prioridades estabelecidas por cada gestor.
Mas nesse cenário não havia, ainda, uma precisão sobre o atendimento dessas demandas,

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

pois essa resposta dependia da disponibilidade orçamentária da Instituição, revelando, pois,


que, apesar dos avanços, faltava a definição de critérios de gestão e de gerência que
garantissem a equidade nos atendimentos.
A partir de 2013, observa-se um avanço em direção a uma divisão mais equitativa do
orçamento através da decisão que garantia que a parte não vinculada do orçamento (isto é,
aquela que não estava comprometida com despesas fixas) seria distribuída entre os
Colegiados Acadêmicos de Graduação e Pós-Graduação. Para efetivar esse “rateio” foi
aplicada uma fórmula que levava em consideração o conceito ‘aluno-equivalente’, tomando
como base os seguintes elementos/indicadores: alunos matriculados por curso; peso do curso
para o Ministério da Educação - MEC (levando-se em consideração o seu custo de
manutenção); fator extra para cursos recentes que careciam de estruturação e para os campi
fora da sede. Encontrado esse produto, era estabelecida a relação entre o número encontrado
e o orçamento que ficaria à disposição para divisão entre todos os colegiados, que
receberiam o percentual que lhes caberia, com base no resultado dos índices alcançados na
formula utilizada.
Em outro viés, voltando no ano de 2012, o Conselho Universitário da Univasf
aprovou a criação da Câmara de Assistência Estudantil como uma instancia colegiada e
deliberativa com a atribuição de exercer o controle democrático sobre a gestão da Política de
Assistência Estudantil da Univasf, incluindo-se, aí, as definições sobre a alocação do
orçamento do Programa Nacional de Assistência Estudantil - PNAES.
Assim, para adequado desenvolvimento e compreensão, este artigo teórico-empírico
está assim estruturado: Referencial Teórico, onde se trabalham as principais definições e
abordagens da Administração Política, especialmente referentes às dimensões de gestão e
gerência, bem assim conceitos que permeiam a discussão sobre gestão pública democrática;
Imersão na experiência da Univasf; onde serão detalhadas práticas vivenciadas na
Instituição com o foco na concepção e práticas participativas, sejam elas: metodologia Leds
e Câmara de Assistência Estudantil; Considerações Finais, onde se apresentam conclusões
preliminares, destacando a relevância do estudo para o entendimento de uma prática
institucional em andamento, as limitações do trabalho e o potencial para novos estudos.
Dessa maneira, este estudo se caracteriza como uma pesquisa qualitativa, sendo que o
percurso metodológico adotado parte de uma revisão bibliográfica para fins de
direcionamento teórico e, posteriormente, visando o aprofundamento nas práticas da
instituição em questão, utiliza-se da observação não-participante, entrevistas
semiestruturadas e questionários com partícipes (usuários e gestores) das práticas, no caso da
metodologia Leds; e pesquisa documental e observação não participante no caso da
experiência da Câmara de Assistência Estudantil.

2. REFERENCIAL TEÓRICO
As principais teorias e marco analítico que dão sustentação à compreensão e
discussão crítica sobre as práticas administrativas participativas devem ser buscadas nos
estudos críticos sobre as dimensões subjetivas e práticas do ‘ato e fato administrativo’,
conforme aponta Soares (2009) ou no ‘saber e práticas administrativas’, conforme definem
Correa e Jurado (2003). Com esse objetivo, define-se como referencial teórico básico para o
desenvolvimento deste artigo os seguintes temas: administração política; gestão pública e
participação; e planejamento e gestão orçamentária como prática da gestão participativa.

Aproximação às Teorias Criticas da Administração com ênfase na Teoria da


Administração Política

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A pesquisa está direcionada para a compreensão de práticas de gestão participativa,


portanto dentro do leque da teoria crítica da administração que identifica aspectos subjetivos
e filosóficos para auxiliar a compreensão do ato e fato administrativo, avançando, desse
modo, na perspectiva instrumental e funcionalista que fundamenta os princípios clássicos da
chamada Administração Científica. Nesse sentido, avaliamos que a teoria da Administração
Política, desenvolvida no âmbito da Escola de Administração da UFBA, apresenta uma
síntese histórica do pensamento crítico sobre o campo da teoria e prática em administração,
com ênfase na dimensão da gestão.
Diante dos avanços das discussões recentes no campo dos estudos críticos em
Administração, Santos, Ribeiro e Chagas (2009) enfatizam que na perspectiva científica, a
administração é, ainda, um campo de conhecimento indefinido, em especial porque não
existe um consenso entre os estudiosos sobre a definição do seu objeto científico. O debate
trazido pela teoria da Administração Política abre uma discussão interessante ao defender ser
a gestão o objeto cientifico da ciência administrativa, como contraponto à interpretação
tradicional que defende ser a organização esse objeto (SANTOS e FRANÇA, 2009).
O argumento dos teóricos da Administração Política defende que as organizações não
se sustentam como objeto científico da administração uma vez que tem sido disputada por
distintas áreas do conhecimento como relevante – a exemplo da psicologia organizacional,
que se volta para entender o comportamento dos indivíduos nas organizações; a sociologia
das organizações, que considera os aspectos sociológicos das organizações; a ciência
política, e o seu olharem analisar as relações de poder nas organizações; a antropologia das
organizações, que se volta para os aspectos culturais das organizações; as engenharias com
enfoque no controle e melhora nos aspectos da produtividade do trabalho, assim como outros
campos científicos (SANTOS 2001).
Diante dessa discussão teórico-epistemológica e metodológica em torno do campo
cientifico e de estudo da Administração, Santos (2001) traz a seguinte definição de
Administração Política que nos ajuda a compreender a importância de se introduzir como
fundamentação teórica para a pesquisa:

(...) a expressão das relações do Estado com a sociedade na concepção do Projeto


de Nação. O que implica afirmar que o modelo de gestão (bases institucionais e
organizacionais) para a implementação desse Projeto constitui o objeto científico
da administração, portanto a sua macro fundamentação. A implementação desse
projeto de nação, que se materializa na execução de diferentes e simultâneas
atividades e que requer uma administração específica nesse nível micro é a
administração/gestão aplicada, cujos resultados devem retornar ao nível macro para
se avaliar se o modelo de gestão está no direcionamento correto para o
cumprimento das finalidades sociais (SANTOS, 2001, p. 67-68).

Para alicerçar essa discussão, Santos, Ribeiro e Chagas (2009) destacam a


necessidade de se compreender os significados e sentidos filosófico e práticos dos conceitos
de Administração, Gestão e Gerência, vistos por muitos estudiosos e profissionais como
sinônimos de um mesmo processo; ou seja, ressaltam que a literatura corrente tem
consagrado que o ato de administrar, gestar e gerenciar significam a mesma coisa. Mas para
confirmar o pressuposto inicial de que essa conclusão não se sustentava em termos teóricos,
metodológicos e empíricos, os autores vão buscar apoio na epistemologia e identificam que
ainda que os três conceitos estejam inter-relacionados tem origem e função distintas.
Em síntese, os autores defendem que enquanto a Administração representa o campo,
a área de conhecimento própria da ciência administrativa, a Gestão seria o seu objeto
científico, isto é, responsável por conceber padrões/modos próprios de conduzir o ato e fato
de administrar para uma direção que se deseja chegar e a Gerência seria a representação

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

dessa concepção (o ato de pensar) na prática, isto é, gerenciar significa a capacidade de


execução administrativa (a ação). Com base nessa definição etimológica, os autores avançam
na definição do conceito cientifico de Administração Política que é definido como sendo o
“padrão/modo que orienta as relações sociais de produção, circulação e distribuição de uma
dada sociedade ou organização. Abordar a capacidade de gestão implica reconhecer o padrão
de Administração Política, a concepção administrativa que orienta uma dada ação/dinâmica
social ou organizacional com vistas ao alcance de uma dada finalidade e objetivos. Enquanto
reconhecer a dimensão da Gerência significa identificar ‘como’ tem sido orientado o
processo de execução desse padrão de gestão (ou de Administração Política). (SANTOS,
RIBEIRO e CHAGAS 2009)
Assume-se, pois, como pressuposto que a opção da teoria da Administração Política
dará suporte teórico ao presente estudo, visto que permite integrar suas dimensões
indissociáveis da administração: a gestão e a gerência – a Administração Política e a
Administração Profissional.
Para somar à caracterização teórica da Administração Política, Santos, Ribeiro e
Chagas (2009, p. 928) partem para a definição do conceito de Administração Profissional, a
qual reflete a dimensão da gerência dos atos e fatos administrativos. Significa dizer que é a
dimensão técnica, característica da capacidade de execução. Entendida como uma dimensão
instrumental, as atividades gerenciais assumem, dessa maneira, a responsabilidade, também
essencial, de operacionalizar o modelo/projeto de gestão concebido anteriormente. A
gerência é definida aqui como um espaço micro-organizacional voltado à engenharia dos
processos de trabalho que devem tornar viável a concepção administrativa pensada,
idealizada (SANTOS, RIBEIRO E CHAGAS, 2009).
Cabe ressaltar ainda que os autores citados avançaram na busca de metodologias de
análise e avaliação da capacidade de gestão e gerência, ressaltando que ao observar a
realidade social e organizacional é possível identificar que um dos problemas ou limitações
da ciência administrativa, especialmente a que esta fundamentada apenas na perspectiva
clássica da administração cientifica (funcionalista), é privilegiar apenas as análises
casuísticas ou formais, baseadas em métodos exclusivamente quantitativos e amostrais, em
detrimento de uma compreensão mais ampla da realidade. Nessa direção, Santos e Gomes
(2013, p.12) sustentam que:

(...) muitos dos erros e omissões das análises correntes ocorrem por conta do
método utilizado (invariavelmente, baseado em estudos de caso) e da forma de
abordagem (normalmente, trabalha-se mais sobre a concepção da intervenção, e
não sobre os resultados dela). Quando se investiga sobre os resultados de uma
determinada política pública, as abordagens são sempre no sentido de destacar que
a implantação do sistema levou ao aumento expressivo no número de
atendimentos. Quase nunca os trabalhos de investigação em Administração
respondem como esse sistema está operando e em que condições; enfim, sobre a
real efetividade de uma intervenção dessa natureza.

A partir do que foi exposto os autores demarcam as diferenciações e aproximações


existentes entre os conceitos de Administração Pública e Administração Política, ressaltando
que, ainda que estejam relacionados, mantêm uma importante diferenciação quanto aos
parâmetros científico e metodológicos que as orientam. Enquanto a primeira diz respeito à
concepção e dinâmica que fundamenta e orienta o aparato administrativo do Estado,
legitimada pelo seguimento dos princípios constantes na Carta Magna e do controle social, a
segunda (Administração Política) estabelece os pressupostos teórico-epistemológicos e
metodológicos que orientam a concepção mais ampla dos padrões filosófico e teórico que

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

fundamentam os padrões das relações sociais de produção, circulação e distribuição; isto é,


fundamentam as relações complexas entre Estado- Sociedade.
Em síntese, considera-se que os aspectos do “pensar” e do “fazer” administrativo
subjazem a presente pesquisa, o que implica que parte-se da premissa da existência de uma
prática de gestão e gerência orçamentária participativa na Univasf que precisa ser estudada
para que se possa compreender e avaliar a dimensão teórico-filosófica e metodológica desse
processo.

Gestão Pública e Participação

A partir da promulgação da Constituição de 1988 temos a garantia de uma


democracia representativa com a abertura de espaço para que viesse a ser, também,
participativa.
Pereira (2010) destaca que a administração pública gerencial visa à melhoria da
qualidade dos serviços oferecidos à sociedade, à eficiência, o aumento da qualidade, à
flexibilização das regras, à melhoria do desempenho com controle de resultados, à
descentralização.
As organizações públicas devem ser transparentes, uma vez que os cidadãos são
interessados diretos em saber se os recursos estão sendo usados adequadamente, devendo,
para fins da boa governança, haver a conformidade das ações a partir de relações éticas,
transparentes e com o bom uso dos recursos públicos (PEREIRA, 2010).
Abordar o tema Prática Orçamentária Participativa e o conceito Gestão Participativa
convida, preliminarmente, à reflexão sobre o entendimento de democracia, segundo à
perspectiva de sua vivência como essencial à legitimação do poder povo.
Segundo Telles Jr. (2005, p.15) a democracia deve assegurar que nas decisões das
estruturas planejadoras do governo sejam inseridos os anseios das entidades que representam
a sociedade, do contrário a democracia estará perdendo seu sentido.
Nascimento (2012) destaca não ser possível falar em Democracia Participativa sem
que formate uma real soberania popular que promova uma interação política consciente e
que possa influenciar positivamente nas decisões.
Os discursos políticos, não tão de hoje, convergem para direção de se colocar em
destaque a necessária participação da população nos debates que erroneamente acreditamos
ser exclusivamente da alçada daqueles que democraticamente ocupam os cargos políticos. O
fato é que em muitos casos a questão encerra-se na retórica. Se de um lado não há por parte
dos governantes um apontamento preciso sobre os espaços de discussão e inserção popular
(participação), do outro há uma incapacidade de mobilização na busca por se exigir voz nas
arenas.
Acabamos diante do “conflito existencial” do que chamamos de democracia.
O'Donnell (1991) faz a reflexão de que a ideia que temos de representação traz arraigado
elementos de delegação, destacando que na medida em que uma coletividade autoriza
alguém a falar em nome dela, acata o que for decidido pelo representante. Destaca, ainda,
que representação e delegação não são polos opostos, revelando a dificuldade para se realizar
a distinção dos tipos de democracia que estão em torno do que chama de “delegação
representativa”, sendo fortemente predominante o elemento delegativo.
Na abordagem do autor pode-se inferir que ao passarmos o bastão numa espécie de
delegação, voluntariamente perdemos o foco de acompanhamento e responsabilização dos
eleitos, num movimento que nos deixa numa situação de “passageiros” num percurso onde o
preço dessa omissão é a convivência com a sensação de que eternamente estamos mal
representados.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

O sistema representativo é necessário, entretanto deve de fato se estruturar de modo a


consolidar o exercício da cidadania e da soberania popular. Não se pode permitir que a
vontade geral seja relegada, tal qual a instituição da ditadura das minorias em detrimento das
maiorias. (NASCIMENTO, 2012)
O modelo de gestão pública no Brasil tem a marca de uma política centralizadora,
autoritária, patrimonialista, clientelista e de baixa participação popular (SILVA, 2004).
Cientistas políticos fazem a ligação dessas características com a formação da história política
do Brasil, onde se observa a prevalência dos interesses da elite nas decisões políticas do país,
provocando cada vez mais um distanciamento da população brasileira nos assuntos que
diziam respeito ao próprio destino.
Para Santos (2008) a descentralização, com ou após a Constituição de 1988, advém
das crescentes demandas por cidadania, por verdadeira democratização. Essa demanda em
curso alavancou o processo de descentralização, mas foi acompanhada pela incapacidade do
governo em implementar ou instrumentalizar as políticas e tornar práticas suas decisões,
então caracterizadas por pouca legitimidade (SILVA, 2004).
Assim, a Constituição de 1988 trouxe condições, ao menos do ponto de vista de
aparato, de viabilizar o processo de descentralização almejado, quando em seu art. 18,
estabelece divisão de poderes entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,
concedendo “autonomia”.
Concordamos, porém, com Santos (2008) quando considera que a autonomia política
conquistada não é suficiente para tornar efetiva a descentralização, embora seja importante
para assegurar maior autonomia financeira. Muito embora haja uma desigualdade
considerável na capacidade de arrecadação, há uma compensação por parte de um sistema de
transferências fiscais obrigatórias, distribuindo parte da receita arrecadada pela União para
Estados e seus respectivos municípios (VARSANO apud ARRETCHE, 2004).
O processo de engajamento da sociedade, porém, em busca de representatividade
pode ser tido como participação social, enfatizando Silva (2004) que essa participação social
se dá quando a sociedade toma consciência do seu papel nas decisões públicas que lhes
afetam.
A mudança de práticas centralizadoras em rumo de práticas de gestão participativas
perpassa, indubitavelmente, por um processo de mudança na mentalidade e, sobretudo, nas
práticas dos gestores públicos desassociando-o da imagem da inoperância e ineficiência. Esta
aliás, é uma premissa da reforma do Estado.
O novo gestor público deve buscar promover um ambiente democrático, com
transparência, para que seja construída uma cidadania ativa e envolvida pelas
questões públicas. De um lado, o gestor precisa provocar o interesse da sociedade
pela coisa pública; de outro lado, a sociedade civil organizada precisa encontrar no
gestor público alguém que tenha uma postura favorável e aberta à participação
social, que esteja disposto a prestar informação, e que não tenha medo de ser
cobrado, monitorado e fiscalizado. (SILVA, 2004. p. 78)

A identificação do modelo é baseada na necessidade de uma relação aproximada


entre governo e sociedade civil, favorecendo, assim, a políticas direcionadas aos interesses
sociais, mais transparentes, e fomentando recursos para trazer a sociedade ao palco das
políticas públicas (ALBUQUERQUE, 2004).
Como meio de viabilização dessa democracia há que ser considerada o necessário e
urgente Planejamento das ações do governo, e desse planejamento o orçamento público
apresenta-se como uma ferramenta sinequanon.
Nesse sentido complementam Bastos e Carvalho (2011) destacando que o Orçamento
mostra-se como uma importante ferramenta para efetivação da democracia, enfatizando que

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

a prerrogativa dada aos cidadãos para participação nas destinações orçamentárias ressalta
essa ideia.

Planejamento e Gestão Orçamentária como Prática da Gestão Participativa

Imprescindível à discussão destacar conceitos pertinentes a questão orçamentária,


significando a relevância da relação entre o planejamento e o orçamento, sendo tidos como
eficientes instrumentos de gestão, capazes de promover os meios que possibilitam o
atingimento das metas e objetivos institucionais.
Francisco e Farias (2006), Apud Morais (2010), analisando a integração entre
Planejamento e orçamento na administração pública federal, definem planejamento como:

Um curso de ação programado, visando ao atingimento de um objetivo. Planejar


não é só declarar o que queremos que aconteça amanhã. Planejar é definir, com os
meios que se têm, os caminhos a serem seguidos de acordo com a direção traçada
para atingir a ação. No serviço público, estas ações são os programas que o governo
desenvolve.Francisco e Farias (2006, Apud MORAIS 2010.p.19)

Dessa maneira, o planejamento como instrumento de gestão deve diretamente


influenciar no processo de tomada de decisões, atentando para a devida transparência,
necessário entendimento organizacional, a fim de que tenha a devida efetividade e
atendimento aos parâmetros legais.
Essa premissa estende-se, logicamente, a estrutura das IFES a fim de que se tenha
claro o percurso de ação institucional interno e externo, bem como no tocante a alocação
orçamentária. Requer tal ação para a devida legitimidade, o envolvimento da comunidade
acadêmica que, através dos meios e espaços porventura disponibilizados pela instituição,
poderá expor suas prioridades. Válido destacar que o ato de planejar não remete a certeza do
resultado projetado, havendo a necessidade de constante acompanhamento e adaptações para
manutenção de sua credibilidade como um instrume nto de gestão.
Em se tratando de orçamento, compreende-se como um instrumento legal de
planejamento voltado ao atendimento das demandas sociais onde se procura a definição de
prioridades tendo em vista os gastos e receitas. É um instrumento capaz de revelar o enfoque
das decisões a serem tomadas por determinada gestão, seja em que esfera for. Um olhar
crítico sobre a peça orçamentária de um determinado ente é capaz de revelar o caminho a ser
percorrido, possíveis avanços, retrocessos, compatibilidade e incompatibilidades com os
anseios do público alvo.
A partir do momento em que o Estado tem a necessidade de instrumentalizar a
arrecadação de recursos imprescindíveis para manutenção de suas atividades precípuas percebe-
se o surgimento do orçamento como uma maneira de se estabelecerem regras para que
edificasse tais instrumentos (SILVA, L. 2004),
Em nível de País, os poderes Executivo e Legislativo tem a responsabilidade de
decisão sobre o processo. Enquanto o poder Executivo elabora a proposta orçamentária e
futuramente executa, o Legislativo aprova ou não a proposta e fiscaliza sua execução, tanto
do ponto de vista do controle, quanto da avaliação.
É de grande importância ter ciência das características do sistema orçamentário
vinculadas aos parâmetros legais, a fim de que se conheçam os objetivos e princípios que
norteiam o orçamento público, na busca de elaboração de uma peça orçamentária funcional,
eficiente e eficaz.
Leite (2014) destaca que o orçamento público é a condição primordial para qualquer
ação do Estado, uma vez que compreende reflexos financeiros e se configura como o início e

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

o fim de toda ação estatal. Enfatiza, ainda, que há que se ter a compreensão de que o
orçamento deve ser transparente e incluir o cidadão dentro do seu detalhamento dos gastos;
evidenciando, inclusive, o destino do dinheiro do contribuinte, cumprindo uma conquista da
democracia.
O pensamento acima coaduna com a ideia de que prática orçamentária de uma
instituição pública, a exemplo da Universidade, pode, certamente, ser um espaço onde a
gestão pública mostra-se comprometida em efetivar a participação, a integração, primando
pela transparência.
No universo de aplicação do mecanismo orçamento participativo no seio da gestão
pública se inserem as Instituições de Ensino Superior. Nesse sentido, as Universidades
Federais, instituições públicas entes da administração indireta, são responsáveis por gerir e
executar seus orçamentos, verificados os Programas e Ações que possuem crédito
orçamentário disponível. Ao ponto em que é latente que a comunidade acadêmica anseia
pela participação nos processos decisórios concernentes à utilização deste orçamento
segundo o que entendem como prioritário, voltados para o aspecto de anseio por gestões
participativas e transparentes.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9394/2006), corroborando o
direcionamento para essa perspectiva de gestão, traz em seus art. 55 e 56:

Art. 55. Caberá à União assegurar, anualmente, em seu Orçamento Geral, recurso
suficiente para manutenção e desenvolvimento das instituições de educação
superior por ela mantida.
Art. 56. As instituições públicas de educação superior obedecerão ao princípio da
gestão democrática, assegurada a existência de órgãos colegiados deliberativos, de
que participarão os segmentos da comunidade institucional, local e regional.

O OP como um instrumento democrático passa, então, a ser pensado, também, dentro


das IES, como uma ferramenta de planejamento, capaz, inclusive, de trazer a comunidade
acadêmica mais próxima do centro de decisões da gestão. A Universidade Federal do Rio de
Janeiro, as Universidades Estadual e Federal da Paraíba, a Universidade Estadual de Feira de
Santana, entre outras, são exemplos dessa atuação.
Resta claro, então, que a temática trabalhada em se tratando da gestão e gerência
orçamentária, se configura, pelos aspectos teóricos até então trabalhados, um campo de
relevância de uma gestão pública voltada à implementação da participação como
fortalecimento de diretrizes democráticas, muito embora tenha limitações percebidas no
tocante à capacidade de influência sobre o que a Instituição pode dispor à participação.

3. EXPERIÊNCIAS DA UNIVASF

Metodologia participativa e aplicativo eletrônico Leds

A partir do ano de 2012, a Univasf passou a adotar uma nova prática em relação à
planejamento e execução orçamentária, a qual consistia em captar de maneira consolidada
em um dado período e através de um único meio, as demandas dos colegiados acadêmicos de
graduação e pós graduação e setores administrativos (reitoria, pró-reitorias, secretarias, etc.)
por bens permanentes e de consumo.
Para essa captação foi desenvolvido, através da parceria entre Pró-reitoria de
Planejamento e Desenvolvimento Institucional – Propladi e Secretaria de Tecnologia da

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Informação- Sti, um aplicativo eletrônico denomina LEDS (Levantamento de Demandas


Setoriais) onde os setores poderiam acessá-lo utilizando-se de login e senha.
Pensou-se, então, no funcionamento do sistema em duas etapas anuais, realizadas em
períodos distintos e sequenciais, quais sejam: "aquisições de itens por meio de pregões
vigentes" e "levantamento de demandas para novas licitações para o ano subsequente".
A primeira etapa significaria, até então, um momento onde seriam realizadas
solicitações de compras consolidadas, uma nova forma para que se chegasse à execução
orçamentária. Tinha-se ali uma programação das demandas da instituição devidamente
separada por natureza dos itens e contemplando os diversos setores da Instituição.
A segunda significou o início do processo de fortalecimento da prática do
planejamento interno dos setores e, especialmente, a inserção direta dos setores no
embasamento institucional para elaboração da Proposta Orçamentária Anual, a ser
encaminhada ao Ministério da Educação, visando o orçamento institucional para o ano
subsequente.
Passada a primeira rodada do sistema (2012) chegou-se a um novo momento, onde, a
partir de 2013, foi inaugurada a distribuição orçamentária interna, utilizada até o presente
momento, onde os Colegiados Acadêmicos da Univasf realizam o seu próprio gerenciamento
de créditos orçamentários com vistas para a realização de compras que permitam atender
suas demandas, de acordo com a prioridade que definam.
Ressalta-se que a distribuição orçamentária atinge, tão somente, os setores
acadêmicos de graduação e pós-graduação (Stricto e Lato Sensu), inferindo-se a prioridade
da gestão em torno das atividades de ensino, pesquisa e extensão, assim entendidas, como
atividades finalísticas, em detrimento aos setores administrativos.
Para fins de cálculo dos créditos orçamentários a serem distribuídos entre os setores
acadêmicos, vale-se do orçamento anual da instituição, previsto na Lei Orçamentária Anual
– LOA, onde se destacam os valores previstos às despesas correntes (manutenção/custeio da
universidade, bens de consumo, etc) e às despesas de investimento/capital (obras,
equipamentos, etc.). A tabela abaixo apresentará os valores previstos na LOA dentro das
duas ações orçamentárias utilizadas para fins de se estabelecer os valores (custeio e capital)
que a universidade poderá trabalhar para calcular o quanto será destinado à metodologia
orçamentária participativa, sendo que as demais estão vinculadas a projetos específicos, onde
não pode haver decisão de aplicação por parte do gestor.

Tabela 1 – Evolução de crédito orçamentário Univasf


PROGRAMA 2032i
AÇÃO 20RKii + AÇÃO 8282iii
ANO CUSTEIO (R$1,00) CAPITAL (R$1,00)
2013 25.098.497 16.557.147
2014 26.979.776 20.475.343
2015 26.137.438 20.235.792
Fonte: Propladi e Portal Senado

Uma vez tido esse valor, a Administração Superior da Universidade, através da Pró-
reitoria de Planejamento e Desenvolvimento Institucional e da Pró-reitoria de Gestão, deve
proceder ao cálculo deduzindo da previsão orçamentária acima relatada as despesas
administrativas e comuns, uma vez entendidas como aquelas que visam o custeio
indispensável das atividades administrativas e de cunho obrigatório (água, energia, internet,
serviços terceirizados) comum aos setores administrativos e acadêmicos.

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A partir de então, chega-se aos valores de custeio e capital a serem distribuídos entre
os setores acadêmicos, sendo que, uma vez estabelecidos há a definição do critério de
distribuição equitativa.
Assim, apresentamos os valores distribuídos pela metodologia e a soma dos valores
solicitados pelas estruturas acadêmicas, através das demandas na 1ª etapa do Leds, no
interstício 2013-2015.

Tabela 2 – Evolução da distribuição orçamentária x solicitações


CUSTEIO CUSTEIO CAPITAL CAPITAL
ANO DISTRIBUÍDO SOLICITADO DISTRIBUÍDO SOLICITADO
(R$) (R$) (R$) (R$)
2013 673.376,51 559.819,00 1.613.553,19 1.559.968,00
2014 754.191,69 606.701,88 1.807.179,57 1.482.026,05
2015 754.181,69 575.420,98 1.807.179,57 1.526.176,58
Fonte: Propladi e pesquisa

Para tanto, a Univasf, através da Propladi, definiu como critério a aplicação de uma
fórmula utilizando o número de matrículas em cada curso no semestre imediatamente
anterior ao da distribuição orçamentária e considerando as diferenças oriundas das distintas
necessidades entre os cursos em nível de manutenção.
É observado, assim, o conceito de aluno-equivalente com o objetivo de se comparar o
número de matrículas ofertadas pelos diversos colegiados e repeitada as distinções entre os
cursos existentes a partir dos pesos diferenciados para cada agrupamento de cursos em suas
áreas de conhecimento, a partir do que é definido pelo Ministério da Educação.
Os pesos atribuídos, portanto, são utilizados com a perspectiva de traduzir os custos
associados à cada estrutura de curso, identificando as disparidades entre aqueles que exigem
maiores e menores volumes de dispêndio de recursos.
Além dos dois itens já mencionados, a fórmula contempla mais dois elementos que
observam os diferentes cursos em suas distintas localizações, quais sejam: o funcionamento
em campi distantes da sede da Universidade, considerando aqui os cursos que funcionam
fora do eixo Petrolina-Juazeiro; e cursos em processo de estruturação, entendidos como
aqueles que porventura ainda não formaram turmas.
O número de alunos equivalentes de cada curso, dessa forma, foi obtido a partir da
seguinte fórmula:

Nº AE = (Nº de Matrículas) x (Peso do Grupo - MEC) x (Adicional Fora de


Sede) x (Adicional Estruturação)
Sendo:
▪ Nº AE = Número de alunos equivalentes;
▪ Nº de Matrículas = Número de alunos matriculados em sala de aula;
▪ Peso do Grupo - MEC = Peso do grupo ao qual pertence a área de conhecimento do
curso, conforme estabelecido pelo Ministério da Educação;
▪ Adicional Fora de Sede = Utiliza-se o fator 1,10 para os cursos realizados nos Campi
fora da sede
▪ Adicional Estruturação = Utiliza-se o fator 1,15 para os cursos que não formaram a
primeira turma.

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Figura1 - Síntese da metodologia

Fonte: Elaborado pelo autor

Aos cursos de graduação (94,86% das matrículas ofertadas) destinaram-se 90% do


total dos valores distribuídos. Para os cursos de pós-graduação stricto sensu (4,08% das
matrículas ofertadas) esse percentual foi de 7,5% e para a pós-graduação lato sensu (1,06%
das matrículas ofertadas) foram alocados 2,5% da parcela em questão.
Ao passo em que há a distribuição orçamentária, porta de entrada à prática
participativa, os cursos podem utilizar deste valor para aquisições de bens permanentes e de
consumo conforme definam suas prioridades internamente junto a seus pares. A distribuição
interna do orçamento em cada unidade acadêmica, portanto, fica a cargo da definição das
próprias a partir de negociações e entendimento interno.
Cabe ressaltar que a não utilização dos saldos orçamentários à disposição de
determinado colegiado através do aplicativo LEDS, não implica em perda da possibilidade
de utilização dos créditos pelo setor que não utilizou. Para esse caso, em havendo outras
demandas por bens que não abasteciam o sistema, o determinado setor deve realizar a
instrução processual para aquisição, valendo-se do saldo remanescente do sistema.
O método que vem sendo utilizado diferencia-se, ao que percebemos, em relação à
anterior forma de compra observada na instituição, que basicamente se dava, segundo
observação e análises em processos de compras, pela ação de cada colegiado ou setor
administrativo instruindo seu processo e encaminhando a solicitação de compras aos setores
competentes de maneira fracionada, revelando aparentes dificuldades atreladas à cotação de
preços, limitação da economia de escala, formalização de contratos e, especialmente,
aparente inexistência de critério para a distribuição do orçamento entre as diferentes
unidades.

Câmara de Assistência Estudantil


No ano de 2012, também em consonância com a perspectiva da adoção de práticas
que reforçassem a prática de ações em direção à gestão democrática, foi submetida à
consideração do Conselho Universitário, tendo sido aprovada, a Resolução nº 12/2012, a
qual criou a Câmara de Assistência Estudantil.
Com 70% (setenta por cento) de seus assentos destinados aos discentes (um discente
representando cada campus, mais dois discentes representando o diretório central dos
estudantes) a Câmara foi instituída com o intuito de propor diretrizes e exercer o controle
democrático sobre a gestão da Política de Assistência Estudantil da Univasf, sendo válido
destacar ainda que a coordenação da Câmara é decidida por votação de seus membros, sendo
hoje ocupada por um discente
Dentre suas atribuições instituídas pela Resolução cabe destacar as que constam nos
incisos II, III e IV, do art. 5º do referido documento:

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II Deliberar sobre a alocação dos recursos previstos para a assistência estudantil da


Univasf;
III Estimular a captação dos recursos extraorçamentários para o financiamento da
Assistência Estudantil;
IV Realizar o acompanhamento da execução dos recursos destinados à Assistência
Estudantil

A Câmara, por tanto, delibera de maneira autônoma sobre a aplicação do orçamento


institucional recebido através do Programa Nacional de Assistência Estudantil, definindo as
prioridades dessa matéria dentro do rol das ações previstas no Decreto 7234/2010, quais
sejam: moradia estudantil; alimentação; transporte; atenção à saúde; inclusão digital;
cultura; esporte; creche; apoio pedagógico; e acesso, participação e aprendizagem de
estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades e
superdotação.
A seguir, apresenta-se o orçamento previsto na LOA desde 2013, através do PNAES,
para atendimento à assistência estudantil no âmbito da Univasf, significando a relevância da
atuação desse órgão colegiado que deve definir, por exemplo: os valores de bolsas pagas aos
estudantes (auxílio moradia, auxílio permanência, auxílio alimentação); subsídio aos
estudantes da Univasf usuários dos Restaurantes Universitários; pagamento de ônibus para o
deslocamento dos estudantes entre os campi; residência estudantil, etc.

Tabela 3 – Orçamento PNAES destinado à Univasf


ORÇAMENTO ASSISTÊNCIA
ANO
ESTUDANTIL (R$1,00)
2013 5.374.443
2014 4.863.515
2015 5.164.672
2016 5.702.528
Fonte: Portal Câmara

As reuniões da Câmara ocorrem mensalmente, sendo desafiadora e mobilizadora a


tarefa de exercitar a prática decisória e do estabelecimento do diálogo, uma vez que necessita-
se, diante de um contexto duradouro de restrições orçamentárias, ter que adequar as
necessidades estudantis crescentes a orçamentos limitados. Faz-se, assim, a exemplo do que
ocorre com a experiência anteriormente relatada, um exercício de corresponsabilização e
legitimidade das decisões adotadas em favor dos representados.
A iniciativa inovadora de criação da Câmara de Assistência Estudantil com o rol de
atribuições observado vai ao encontro da concepção (Gestão) de se adotarem práticas
institucionais voltadas à encaminhar aos usuários/comunidade a prerrogativa de escolha
sobre a definição de suas prioridades, revelando que a decisão centralizada não é
suficientemente sensível e capaz de captar o que espera a comunidade acadêmica.
Acrescente-se, ainda, que a Câmara de Assistência estudantil, além de zelar pela
aplicação dos recursos do PNAES busca para além do orçamento próprio fortalecer o
atendimento às demandas da Assistência Estudantil, para tanto dialoga constantemente com
a Administração da Univasf para aplicação de montante do orçamento de funcionamento da
Instituição em demandas não completamente suportadas com o orçamento do PNAES, a
exemplo do subsídio a usuários dos restaurantes universitários, que no ano de 2015 chegou a
aproximadamente 7 milhões de reais, destes, 3 milhões custeados com o orçamento de

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funcionamento da Instituição, de acordo com a Pró-reitoria de Planejamento e


Desenvolvimento Institucional.
Passou-se, conforme os atores observados e ouvidos por essa pesquisa, a um
momento de descentralizar as ações num movimento de delegação de responsabilidade para
a tomada de decisões. Percebem que as mudanças vão ao encontro do aspecto ético envolto
na ideia de gestão democrática, primando pelas priorizações e orientações voltadas a
contemplar as pluralidades que acabam conduzindo à eficiência.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo teve como objetivo central analisar a experiência de planejamento
e gestão orçamentária vivenciada na Universidade Federal do Vale do São Francisco,
tomando por base para análise as definições das dimensões de Gestão e Gerência discutidas
na Teoria da Administração Política.
A escolha da participação como instrumento e movimento dirigido para integrar os
atores sociais aos espaços de formulação de políticas e/ou tomada de decisões, remete à
consolidação dos direitos sociais consagrados na nova constituição nacional (CF de 1988)
em relação a uma maior e mais efetiva participação social, com ênfase no controle social e
na qualidade do gasto público. Entretanto, o esforço de construção de arenas participativas
na administração pública não tem sido uma tarefa fácil, pois exige realizar mudanças
organizacionais relevantes de modo a inovar em práticas administrativas voltadas para
implementar e consolidar novos princípios, com especial ênfase na participação,
transparência, responsabilização, economicidade, interesse público, eficiência, efetividade,
entre outros.
Conclui-se que, do ponto de vista da concepção (gestão) dos ideais que norteiam as
práticas, houve o alinhamento aos princípios defendidos pelo grupo de servidores ao
participar do pleito para o Reitorado (2012-2016) que se voltava à definição de espaços para
ampliar as discussões e a participação, inclusive de cunho orçamentário. Para tanto, para a
concretude dessa idealização fez-se necessário um esforço prático (gerência) para devida
compreensão da concepção e consequente instrumentalização, formatando a ação em algo
que engajasse a comunidade alvo.
Não se compreende como equívoco afirmar que se vive uma prática onde é pouco
imaginável retrocessos, até mesmo pela inexistência de movimentos em sentido contrário à
prática, porém é possível identificar que há muito que ser feito, primordialmente no tocante
à: discussão dos critérios de distribuição orçamentária; discussão para elaboração da
proposta orçamentária institucional; e formalização institucional da primeira experiência
relatada, que poderá ampliar seu alcance entre os setores administrativos e corpo discente;
Talvez nunca se alcance um patamar de plena participação, até porque inexiste esse
parâmetro do ponto de vista da prática diária, mas é possível e necessário à instituição que
tem arraigado o discurso de ações que fortaleçam os princípios democráticos, que se aproprie
das informações que podem ser úteis à evolução de um movimento que já foi iniciado e isso
é reconhecidamente importante no sentido de se demonstrar que é possível superar o
discurso e efetivar práticas bem sucedidas.

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iNa LOA, refere-re à destinação de créditos orçamentários para a Educação Superior – Graduação, Pós-graduação, Ensino,
Pesquisa e Extensão, por IFES.

ii Na LOA, refere-se à destinação de créditos orçamentários, dentro do Programa 2032, para o funcionamento de
Instituições Federais de Ensino Superior, visando à manutenção de serviços terceirizados, infraestrutura, obras e aquisição
de materiais.
iii Na LOA, refere-se à destinação de créditos orçamentários, dentro do Programa 2032, para a reestruturação e expansão de
Instituições Federais de Ensino Superior, visando aumento do número de estudantes, a redução da evasão, modernização da
estrutura acadêmica e física das instituições, aquisição de equipamentos, materiais e serviços.

129
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Discutindo Planejamento em Políticas Públicas à Luz da Teoria da


Administração Política: A Experiências das Licitações Sustentáveis na
UNIVASF
Sileide Dias Neves
Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Elisabeth Matos Ribeiro


Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Thiago Magalhaes Amaral


Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF)

Resumo

O objetivo do estudo é apresentar o paradigma na implantação da Política de Licitações


Sustentáveis (CPS) na concepção da prática administrativa no campus Sede da Universidade
Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF, avaliando as evidências administrativas que
revelam o cumprimento das obrigações estabelecidas no contrato de serviço terceirizado de
limpeza e conservação predial da universidade. O referencial teórico e metodológico crítico
da teoria da Administração Política utilizado abarcou as duas dimensões que integram uma
ação administrativa com as duas dimensões propostas: Gestão (pensar) e a Gerência (agir),
garantindo, desse modo, articular aspectos teóricos e práticos do objeto investigado. Como
resultado da experiência da avaliação da política de um contrato de licitação sustentável na
UNIVASF com ênfase nos aspectos institucionais (planejamento) e dinâmica organizacional
(desempenho), verificou-se o nível de integração e/ou desarticulação entre a concepção e o
modo de funcionamento do modelo/padrão da política sustentável, avaliando as duas
dimensões indissociáveis da ação administrativa: Gestão e Gerência, sendo a dimensão
Gestão responsável por conceber e planejar o futuro das instituições.

Introdução

A ideia de sustentabilidade baseia-se na necessidade de que sejam garantidos os


recursos hoje existentes na Terra para a permanência das futuras gerações e para alcançar esse
objetivo é fundamental reconhecer a necessidade de se conceber um padrão de gestão social e
organizacional que contemple e priorize a preservação do meio ambiente e garanta a justiça
social, em detrimento das prioridades impostas pelos modelos de desenvolvimento
econômicos dominantes.
A pergunta que se evidencia dessa concepção humanista e naturalista em relação à
gestão do desenvolvimento é a seguinte: como é possível estabelecer essa relação equilibrada
entre interesses econômicos, ambientais e sociais se ainda persiste o princípio econômico que
depende dos recursos naturais que são limitados ou escassos?
Com base nessa tendência internacional, o Brasil busca avançar no sentido de
estabelecer uma política institucional de proteção ambiental, destaca se as principais ações
postas em práticas no país para atender esse objetivo como, por exemplo, como por exemplo:

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), o


marco indutor na administração pública brasileira promovida pela Agenda A3P, o Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) que atua na implementação do
programa de Consumo e Produção Sustentável (CPS), a Lei nº 12.305/2010 da Política
Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), e finalmente a Lei nº 12.349/2010) de 15 de dezembro
de 2010, que abjurou a Medida Provisória nº 495, de 2010, e modificou a Lei de Licitações
para incluir, no artigo 3º da referida legislação, o desenvolvimento nacional sustentável como
princípio das licitações inserindo, portanto, a sustentabilidade no artigo 3º da Lei nº
8.666/1993, impondo, definitivamente, no processo de compras públicas o princípio do
desenvolvimento sustentável.
Ao tomar como referência esse recorte epistemológico da ciência administrativa
assume-se como orientação realizar uma análise tanto do papel político e social da
administração (definido aqui como Administração Política como dimensão da gestão), como
do papel técnico (aplicado) do fazer administrativo (definido aqui como Administração
Profissional). O que implica assumir que a análise e/ou avaliação da política de licitação
sustentável aplicada na UNIVASF no contrato de serviços de limpeza e conservação predial
de nº 332/2012-UNIVASF, que foi dimensionada e/ou mensurada mediante a definição de
variáveis e indicadores que permitam, pois, reconhecer a capacidade de gestão e a capacidade
de gerência, de forma interligada. O que implica que serão identificados processos de
trabalhos que envolvem tanto os gestores quanto os gerentes da política de licitações
sustentáveis.

1. Planejamento em Políticas Públicas à Luz da Teoria da Administração Política: A


Experiências das Licitações Sustentáveis na UNIVASF

Apresentaremos os pressupostos teóricos e uma análise dos aspectos históricos


referentes à evolução da legislação sobre o tema gestão ambiental e sustentabilidade. No que
se refere aos aspectos teórico-epistemológicos que fundamentaram o desenvolvimento da
pesquisa foi utilizada a Teoria da Administração Política. Esta escolha conceitual se justifica
por ser uma pesquisa avaliativa qualitativa acerca dos saberes e práticas administrativas com
ênfase na análise dos processos de compras sustentáveis. O que implica afirmar que as
interpretações oriundas dos resultados deste estudo priorizarão analisar os aspectos subjetivos
que subjazem toda e qualquer ação administrativa, sem desprezar, naturalmente, os aspectos
técnicos ou empíricos que evidenciam as práticas administrativas. Para cumprir esse objetivo
identificou-se a necessidade de ampliação da perspectiva instrumental que ainda orienta a
maioria dos estudos em administração – pautados, fundamentalmente, na mensuração
quantitativa ou eficientista que resultando aumento da produtividade do trabalho.
Consideramos que essa escolha teórica crítica e ampla sobre o objeto de estudo, pois
ajudou o pesquisador a identificar bases teóricas consistentes que o ajudaram a (re)interpretar
e avaliar as políticas públicas de compras sustentáveis no âmbito da complexidade que essa
ação pública exige. Assim, ao integrar aspectos políticos (gestão) e técnicos (gerência) para
avaliar o fenômeno administrativo a teoria da Administração Política permite reconhecer as
práticas e saberes administrativo como fenômenos sociais, contextualizados historicamente.

Uma Aproximação à Teoria da Administração Política

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Ao reconhecer a administração como fenômeno complexo que envolve processos


subjetivos e técnicos, a Teoria da Administração Política reconhece que administrar é mais do
que cumprir normas e reproduzir padrões estabelecidos do fazer ou cumprir rotinas e normas.
Pode-se inferir, pois, que ao não aceitar a intepretação dicotômica entre o ‘pensar’ e o ‘fazer’
administrativo, os estudos que conformam essa nova teoria dão base para se afirmar que as
políticas de compras sustentáveis da UNIVASF só podem ser compreendidas e avaliadas se
for possível identificar tanto as bases que orientam sua concepção (gestão), como também os
fundamentos que definem sua execução (gerência).
Ao tomar a gestão como objetivo científico da Administração Política, Santos (2009,
p. 44) define gestão como sendo, portanto, o “padrão/modo das relações sociais de produção,
circulação e distribuição” que irão determinar o conteúdo e as formas como uma dada
sociedade vai conceber e implantar sua materialidade. Nesse sentido, o autor traz uma grande
inovação para a consolidação da administração como campo cientifico ao integrar como um
mesmo processo os atos de pensar e fazer administrativo.
Ao defender a teoria da Administração Política como campo científico próprio da
Administração os autores estão sustentando que os fenômenos administrativos ultrapassam as
meras evidências empíricas e técnicas do fazer revelando, portando um saber administrativo e
essa constatação impõe, pois, avançar na compreensão da essência ou do ‘ser’ que subjace o
fenômeno administrativo, conforme trazem Ribeiro, Azevedo e Grave (2014), Ribeiro (2006),
entre outros estudiosos críticos.
Santos (2009) considera que as organizações são espaços privilegiados de disputa e
manifestação dos diversos modos de Administração Política; isto é, reconhece que as
organizações (corporativas, públicas e sociais) são o locus onde ocorrem as diversas
manifestações de um dado padrão de gestão das relações sociais de produção, circulação e
distribuição.
Assim, ao assumir ser a administração um fenômeno político e técnico integrado e
indissociado, os autores estão trazendo uma inovação teórica baseada em análises fundadas
nas relações sociais concretas, circunscritas, portanto, por conflitos de interesses e
expectativas individuais e coletivas. Desse modo, os atos e fatos administrativos são reflexos,
pois, de uma dada concepção de sociedade, o que elimina seu caráter de neutralidade técnica e
impõe sua inserção ao campo científico, ainda que aplicado.

(Re)Discutindo os Conceitos de Políticas Públicas e Planejamento em Políticas Públicas


à Luz da Teoria da Administração Política

O campo das Políticas Públicas tem avançado nas últimas seis décadas para produzir
um “corpus teórico próprio, um instrumento analítico e metodológico útil e um vocabulário
voltado para a compreensão de fenômenos de natureza político-administrativa” (SECCHI,
2013). O conceito de Políticas Públicas apresenta, logo, um vasto leque de abordagens
integrando diversas correntes e concepções teórico-metodológicas e empíricas, o que revela
não haver, assim, um significado único sobre o tema. Diante do amplo leque de definições
disponíveis na literatura, pode-se inferir que o significado de Políticas Públicas tem sido
escolhido por cada pesquisador e/ou profissional, segundo o conjunto de ideias em relação às
questões sociais que os guia.
Secchi (2013, p.2) afirma, pois, que não existe um consenso conceitual sobre políticas
públicas e explica essa situação devido à disparidade enorme de respostas para
questionamentos fundamentais como:

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(...) políticas públicas são elaboradas exclusivamente por atores


estatais? Políticas públicas são elaboradas também por atores não
estatais? Apenas diretrizes estruturantes (de nível estratégico) são
Políticas Públicas? Ou as diretrizes mais operacionais também podem
ser consideradas Políticas Públicas?
Nesse cenário, surgiram algumas correntes críticas preocupadas em definir as
fronteiras entre o que identificam como contradições entre os interesses públicos e interesses
privados, assumindo, pois uma perspectiva mais próxima aos campos da economia política e
da sociologia política, do que da área que compete à ciência administrativa.
Como as políticas públicas concebidas e implantadas pelo governo brasileiro, a partir
de 1995 do século passado, não tem trazido elementos conceituais e metodológicos
consistentes para responder à complexidade e contradições crescentes da gestão das relações
sociais, especialmente após o aumento das demandas por bens e serviços públicos advindos
das expectativas criadas após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e nesse
contexto, fortemente conturbado pela expansão crescente das demandas sociais, observa-se
que o método parece ter assumido, progressivamente, um lugar de maior destaque em
comparação com constructos teórico-metodológicos que garantam uma compreensão não
apenas dos resultados (a priori, intineri ou a posteriori) das políticas, mas especialmente da
sua finalidade, dos seus objetivos e da sua natureza, conforme ressaltam Santos e Ribeiro
(2004) e Santos, Ribeiro et. al (2007, 2009).

A origem das Licitações Públicas Sustentáveis no Brasil

O marco legal das licitações sustentáveis deu-se com a inovação legalística promovida
pela redação conferida ao art. 3º caput, da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, pela Lei nº
12.349, de 15 de dezembro de 2010, que alterou bruscamente o quadro jurídico e operacional
das licitações públicas no Brasil, promovendo para todos os entes da Federação a
obrigatoriedade do comprometimento de promover licitações públicas sustentáveis, como
vemos na Lei nº 8.666/1993, conforme o conceito de licitação pública abaixo:
Art. 3o A licitação destina-se a garantir a observância do princípio
constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a
administração e a promoção do desenvolvimento nacional
sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com
os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade,
da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da
vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos
que lhes são correlatos.
Segundo Milaré (2004, p. 48). “O processo de desenvolvimento dos países se
realiza, basicamente, à custa dos recursos naturais vitais, provocando a deterioração das
condições ambientais em ritmo e escala até ontem ainda desconhecidos”.
Galli (2014) destaca que no Brasil a apresentação de normas ambientais é
vanguardeada desde os anos 80, do século XX, por influência de acontecimentos em âmbito
internacional como a Declaração de Estocolmo (1972) e assegura ainda – que no nosso
ordenamento jurídico os tratados e convenções devem a ser imperativos após sua ratificação e
entrada em vigor, e que o meio ambiente hígido é um direito humano fundamental e que os
documentos internacionais ratificados passam a ser recepcionados com caráter de norma
constitucional e, como tal, devem ser respeitados.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Prosseguindo com a discussão sobre políticas de compras sustentáveis para Moura


(2014) a finalidade do Estado é garantir a supremacia do interesse público mediante a
promoção da igualdade e do desenvolvimento socioeconômico e ambiental, e que a
Administração Pública deve atuar pautando às suas ações conforme as diretrizes de proteção
do meio ambiente em busca de práticas mais responsáveis.
O Estado tem o dever de editar normas e concretizá-las, servindo como exemplo para
a conduta dos cidadãos, como também deve atuar sempre com lisura, ética, transparência e
responsabilidade, sobretudo no que se refere à busca por um meio ambiente equilibrado
(MOURA, 2014). Desta forma, diversos instrumentos públicos (leis, decretos, instruções
normativas, entre outros) foram elaborados esperando que o poder público possa se valer
desses mecanismos para adotar uma conduta mais comprometida.
Seguindo a mesma linha de raciocínio Valente (2011) apresenta a Agenda 3P,
conhecida como A3P, como o marco indutor de adoção da gestão socioambiental sustentável
no âmbito da administração pública brasileira e destaca seu caráter impulsionador como um
programa de gestão administrativa e destaca que a Agenda não possui natureza impositiva,
regulatória, mas, tão somente de indução às boas práticas sustentáveis.
A A3P é apoiada pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
(PNUMA) que vem atuando na implementação do programa de Consumo e Produção
Sustentável (CPS), também conhecido como Processo de Marrakesh, que visa promover o
alcance de padrões mais sustentáveis de consumo e produção alinhados ao desenvolvimento
socioeconômico, respeitando, desse modo, os ecossistemas (BRASIL, 2013).
Na mesma linha de adágio, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS),
promulgada pela Lei nº 12.305, de 02 de agosto de 2010, originou inovações como a
responsabilidade compartilhada dos geradores e do poder público (artigo 1º), e a logística
reversa, esta Lei foi aprimorada com a vigência da Lei nº 12.349, de 15 de dezembro de 2010,
que abjurou a Medida Provisória nº 495, de 2010, e modificou a Lei de Licitações para
incluir, no artigo 3º da referida legislação, o desenvolvimento nacional sustentável como
princípio das licitações inserindo, portanto, a sustentabilidade no artigo 3º da Lei nº
8.666/1993, impondo, definitivamente, no processo de compras públicas o princípio do
desenvolvimento sustentável.
Para complementar esse entendimento Ferreira (2012) apresenta compra pública
sustentável como um processo no qual as organizações públicas em suas licitações e
contratações assumem compromisso em valorizar os custos efetivos das condições de longo
prazo, considerando, pois, as consequências ambientais, sociais e econômicas em relação aos
seguintes aspectos: elaboração de projeto; utilização de materiais renováveis; métodos de
produção; logística e distribuição; uso, operação, manutenção, reuso; opções de reciclagem; e
comprometimento dos fornecedores ao longo de toda a cadeia produtiva.
Segundo Junior e Dotti (2012), a norma prevista no Art. 37º, XXI da Constituição
Federal constituem todas as características de política pública referente ao poder de
contratação do Estado brasileiro, considerando que enquanto os contratos privados são
regidos pela liberdade das partes, assim como o direito de negociação do objeto e do preço, as
relações com a contratação pública, por sua vez, vinculam-se a um procedimento formal,
previsto em lei, que busca a melhor proposta do mercado, ou seja: o Estado simplesmente não
contrata o que quer; mais sim, contrata segundo o padrão normativo estabelecido para atender
as finalidades públicas.
Moura (2014) ressalta que as licitações públicas sustentáveis direcionam-se na busca
de tomadas de decisões para uma gestão mais eficiente e econômica, pertinente a ações mais

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conscientes, sendo necessário integrar as condições ambientais e sociais nos estágios do


processo de compra e contratação.
Para apoiar esses preceitos de práticas ambientais, a Secretaria de Logística e
Tecnologia da Informação (SLTI) do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
(MPOG), editou a norma que trata do assunto no âmbito do governo federal por meio da
Instrução Normativa nº 01/2010 que estabeleceu critérios de sustentabilidade ambiental na
aquisição de bens, contratação de serviços ou obras pela Administração Pública Federal
direta, autárquica e fundacional.
A referida Instrução foi avaliada por Valente (2011) como o primeiro marco
regulatório para adoção de critérios de sustentabilidade nas contratações públicas do governo
federal, destacando que somente em abril de 2014 o Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão - MPOG apresentou o Plano de Gestão de Logística Sustentável, documento que
estabeleceu as normas gerais das compras sustentáveis e os critérios funcionamento da
política de licitações sustentáveis para os entes da Administração Pública Federal.

Conceituando Avaliação de Políticas Públicas à Luz da Teoria da Administração


Política

A partir dos anos 70 do século passado registra-se uma forte expansão de estudos na
área de avaliação de políticas públicas e esse movimento foi acelerado, a partir de 1995,
quando se consolida no Brasil o processo de reforma do Estado com forte base ideológica
neoliberal. Nesse contexto emergem demandas institucionais, organizacionais e
administrativas com vistas a fundamentar o processo de modernização administrativa do
Estado com base no conceito de administração gerencial (SANTOS e RIBEIRO, 1993 e
2004).
Nogueira (2014) destaca que avaliar é um ato natural e reiterado na rotina o que
permite afirmar que, em cada instante, informações, situações, acontecimentos são avaliados e
julgados, mesmo que informalmente, pelos indivíduos que vão juntando conhecimentos e
informações, de modo a construir opiniões sobre as atividades individuais, sociais e
organizacionais.
Convergindo com esse mesmo entendimento Cavalcanti (2010) afirma que a
avaliação é um instrumento imperioso para reconhecer a viabilidade de programas e projetos,
bem como para redirecionar os objetivos, metas e estratégias e reformular o projeto se os
indicadores assim recomendarem.
Talvez as dificuldades ou resistências em relação ao uso da avaliação como
instrumento de gestão relevante na administração pública brasileira possam ser explicadas
pelo fato de que as políticas públicas só passaram a ser controladas pela sociedade e pelos
órgãos de controle governamentais, a partir dos anos de 1995, quando os instrumentos de
Planejamento Orçamentário (através do PPA, LDO e LOA) passaram a ter maior regularidade
como instrumentos de ação do Estado, conforme exigido pela Constituição Federal de 1988 e
também a partir de 1998, mediante as inovações introduzidas pela Emenda Constitucional n.
19, referentes, especialmente, aos princípios da Eficiência e o compromisso com a gestão
por/para resultados.
Segundo Boullosa e Araújo (2009) a avaliação reflete também o uso que se pretende
fazer desse instrumento, podendo ser: uma avaliação formativa ou uma avaliação somativa.
Na avaliação formativa é definida como a que é empregada na etapa de construção do
desenho do instrumento e fundação de um projeto e que por finalidade apresentar informações

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

que orientem e aperfeiçoem o programa ou a política avaliada. Já a avaliação somativa serve


para verificar se os objetivos e metas foram alcançados, produzindo um juízo de valor do
programa ou política avaliada.
Os autores (BOULLOSA e ARAUJO, 2009), defendem que a atividade avaliativa
deve ser um treinamento metodológico acautelado, precisando da utilização de procedimentos
diferenciados como entrevistas, reuniões, análise de documentos e observações, entre outras
técnicas e que para sua realização ser satisfatória é indispensável o envolvimento de
avaliadores e avaliados, o que fomenta procedimentos de gestão mais democráticos e, por esta
razão, mais confiáveis.
Com essa afirmação os autores convergem com os propósitos da Administração
Política na medida em que reconhecem que a aplicação e o alcance da pesquisa avaliativa
devem contribuir para o aprimoramento da gestão pública e a garantia da qualidade dos bens e
serviços prestados à sociedade.
Secchi (2010) vai destacar nessa discussão que um dos problemas das metodologias
de avaliação é o tempo de maturação de uma política pública, ressaltando que suas
implicações não são tangíveis nos primeiros anos de implantação. Essa afirmação ganha
relevância nesse debate conceitual e metodológico porque reconhecem que o fenômeno e ato
administrativo (seja no âmbito da gestão ou da gerência) exige uma temporalidade própria; ou
seja, para o citado autor as políticas para serem avaliadas demandam um tempo de
ajustamento, de assimilação de seus desígnios e de mudança no comportamento dos atores
afetados por ela.
Em linhas gerais, pode-se afirmar que para a teoria da Administração Política a
pesquisa avaliação é um instrumento que possibilita medir/mensurar o nível de adequação
entre a concepção (capacidade de gestão) e a execução (capacidade de gerência) de uma
política. Ao reconhecer gestão e gerência como dimensões interligadas de um mesmo
processo, a administração, se está admitindo, pois, que a avaliação deve refletir essas duas
dimensões se de fato tem compromisso em reconhecer o alcance tanto da eficiência e eficácia,
como principalmente da efetividade das políticas públicas.

2. Análise e Discussão dos Resultados da Pesquisa

É fundamental reconhecer que este estudo é pioneiro não apenas pela definição dos
pressupostos teóricos e metodológicos que o orientam, mas, sobretudo, pela novidade que traz
a temática das licitações sustentáveis no Brasil, considerando que existem poucos estudos
sobre o tema em tela, especialmente no que se refere ao âmbito da ciência administrativa.
Existem alguns trabalhos acadêmicos que trazem uma relevante contribuição sobre
essa discussão dirigidos para os aspectos normativos e jurídicos que fundamentam essa
política que tem como base central o Plano de Logística Sustentável do Ministério do
Planejamento Gestão e Orçamento – MPOG e registram as análises técnico-jurídicas sobre o
tema, esse plano que passou a (re)orientar as contratações públicas no Brasil.
A implementação do processo de compras sustentáveis na UNIVASF foi despertada
em meados de 2010 quando da realização de uma auditoria pela Controladoria Geral da União
– CGU que requereu informações sobre o atendimento da Instrução Normativa 012010 que
orientava sobre as contratações públicas sustentáveis na Administração Pública Federal na
época.
Vale destacar que a UNIVASF em 2010 não satisfazia a IN 012010 na sua
integralidade por falta de previsão legal, tendo em vista que a alteração da Lei 8666/93

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

aconteceu posteriormente a edição da referida Instrução Normativa e a universidade tinha


receio de ferir a restrição e competitividade das licitações públicas, por considerar que uma
instrução normativa não tinha força de lei.
Após um lapso temporal de quase 11 (onze) meses da institucionalização da
Instrução Normativa 012010 pelo Ministério do Planejamento – MPOG foi publicada a Lei
12.349 em dezembro de 2010 que alterou a lei de licitações e contratos e incluiu a
responsabilidade do desenvolvimento sustentável nas contratações públicas.
A partir da alteração da lei a universidade começou a incluir gradativamente na
medida do possível, alguns instrumentos de sustentabilidade socioambiental em seus editais,
desde que não ferisse a competitividade e nem prejudicasse suas licitações, considerando que
os fornecedores a princípio não estavam preparados para esta nova realidade.
A partir deste momento, apresentaremos a análise e discussão dos resultados obtidos
com o estudo que foi realizado com o objetivo de avaliar a capacidade de gestão e gerência
das contratações públicas sustentáveis. Tendo como objeto de pesquisa a execução do
contrato 332/2012-UNIVASF que tem como objeto a contratação de Serviços de Limpeza e
Conservação Predial da UNIVASF na cidade de Petrolina-PE e o escopo desta pesquisa de
estudo foi delimitado no desempenho do contrato junto ao Campus Sede, no período de
dezembro de 2012 a outubro de 2015, sendo o serviço que mais se adéqua a Instrução
Normativa 01/2010-MPOG.
O interesse do estudo é avaliar quais os níveis de articulação na concepção (gestão)
e execução (gerência) no processo de implantação da política de contratação pública
sustentáveis, com vistas a identificar quais os principais entraves encontrados pela UNIVASF;
utilizando-se da referência teórica e metodológica da teoria da Administração Política,
considerando que autores como Galli (2014) afirma existir uma dificuldade na implantação
das compras públicas sustentáveis na administração pública brasileira, seja por falhas entre a
legislação e a prática da licitação; seja por oposição dos agentes públicos responsável por seu
planejamento e execução.
A análise documental foi baseada na literatura sobre a teoria da Administração
Política (SANTOS, 2009 e SANTOS, RIBEIRO e CHAGAS, 2009) dando o desenvolvimento
teórico e metodológico necessário para o suporte do estudo, tomando como base dois
conceitos interligados: o conceito de Administração Política e o de Administração
Profissional.
A análise documental utilizou-se de fontes primárias da leitura e discussão dos
principais documentos normativos que regulam a concepção e execução da política de
compras públicas sustentáveis, a exemplo das leis, decretos, manuais, portarias, contratos,
instruções normativas, entre outros disponibilizados.
O contrato 332/2012 firmado entre a UNIVASF e a empresa contratada foi o principal
documento que revelou os pressupostos deste estudo, considerando a existência de evidencias
após a análise documental que as cláusulas socioambientais estabelecidas na fase interna, ou
seja, no planejamento da política pela gestão, não estavam sendo executada na prática pela
gerência que atua no dia a dia do contrato e o mapa de campo averiguou o atendimento dos
atributos/características ambientais e sociais constantes no Contrato 332/2012-UNIVASF.
Em cada estrutura do campus foi observada a prestação dos serviços dos agentes
contratados que são os serventes de limpeza, verificando-se à rotina diária das atividades
desenvolvidas em cada ambiente, permitindo avaliar as características/atributos ambientais e
sociais previstos no instrumento contratual como: o uso de produtos com registro na
ANVISA; os equipamentos com menores impactos e ruído ao ambiente: além da necessidade

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

de verificação de atributos contratuais a fim de evitar o desperdício de água e energia elétrica,


a coleta e separação e descarte do lixo, etc. Observaram-se, ainda, as atividades exercidas em
laboratórios insalubres pelos agentes de limpeza.
No quadro abaixo são destacados os resultados mais relevantes alcançados na
observação participante e que demonstram um dos pressupostos da pesquisa referente à
desarticulação entre a concepção (gestão) e a prática (gerência/execução) do planejamento da
política de licitação sustentável na UNIVASF, observada a partir do contrato selecionado.

Quadro 01– Atributos da dimensão Gerência


Dimensão: Administração Profissional (Colocar em prática o que foi concebido no
âmbito da Gestão)

Resultado dos Atributos ‘Pontos Fracos – Ambientais’

A empresa contratada não faz a separação e descarte do lixo, conforme previsto no edital e contrato.
Necessidade realização de capacitação com os servidores para a adequada separação do lixo
consumido, tendo em vista que geralmente são encontradas comida misturada com papel e copos
descartáveis nos recipientes destinados para o lixo diário.
Percebeu-se que em todo o campus existem vários coletores recicláveis à disposição da comunidade
acadêmica, porém a empresa contratada não realiza a separação e nem tampouco há conscientização da
comunidade acadêmica para tal atividade. O que se constatava na observação é a existência de lixo
misturado em vários tambores destinado à coleta reciclável.
Verificou-se que dos 05 (cinco) produtos de asseio e higiene utilizados na limpeza e conservação dos
prédios, apenas o sabonete líquido apresentava registro na ANVISA, os demais estão em total
desacordo com o contrato vigente. Uns dos itens mais preocupantes é a água sanitária (hipoclorito de
sódio) que é utilizado na limpeza dos banheiros e nos laboratórios sem qualquer indicação de registro
na ANVISA.
Pontos Fortes – Ambientais

Em visita aos banheiros, verificou-se que a equipe não desperdiça água, mesmo tendo que lavar os
banheiros todos os dias.
Segundo a responsável pela empresa, os empregados tiveram treinamento para evitar o desperdício de
água e energia, embora não tenha apresentado certificado, a informação foi ratificada pelos gerentes na
etapa da entrevista.
Os empregados são orientados a desligar as lâmpadas das salas e os condicionadores de ar que os
servidores às vezes deixam ligados, o que revela um problema da cultura organizacional que merece
maior investimento para conscientização.
Os resíduos biológicos que são coletados pelos empregados contratados são depositados em tambores
que são recolhidos por uma empresa contratada para fazer o descarte correto.
Pontos Fracos – Sociais

Houve uma redução drástica no contrato devido à escassez de recursos orçamentário, a partir de
julho/2015. O contrato que possuía 35 (trinta e cinco) trabalhadores foi reduzido para 14 (quatorze)
pessoas, atualmente. Este corte tem ocasionando uma sobrecarga de trabalho e estresse dos
funcionários. Cabe registrar que esse quadro foi sendo gradativamente recomposto, pelo menos em
parte, a partir de dezembro de 2015 e conta, atualmente, com 17 (dezessete) profissionais. Este
indicador revela as interferências da política de equilíbrio fiscal nas ações de apoio à sustentabilidade,
o que demonstra os desafios para o cumprimento das exigências socioambientais em detrimento dos
compromissos ideológicos com o ajuste fiscal imposto pelo governo.
Com a redução do quadro de pessoal somente se mantém a limpeza diária dos banheiros e das salas de
aulas, o que demonstra ser insuficiente para garantir a qualidade do meio ambiente visto que as
limpezas exigidas para os demais espaços do Campus não podem ser preservadas

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Durante a visita ao Prédio do Laboratório percebeu-se que o agente de limpeza responsável por atender
o Laboratório de Anatomia (cadáveres) também realiza a limpeza do Laboratório do Biotério
utilizando os mesmos equipamentos. É importante destacar que os Laboratórios do Biotério contem
animais que são utilizados em pesquisas, podendo, pois, ser contaminados pelo uso inadequado de
equipamentos próprios para a limpeza do laboratório de Anatomia. Essa evidencia comprova o não
cumprimento das cláusulas do contrato. É importante registrar que essa constatação foi corroborada
pelo técnico de segurança vinculado a empresa contratada que auxiliou a pesquisadora no trabalho de
campo. O referido profissional alertou para o risco de contaminação pela utilização dos mesmos
equipamentos em laboratórios com demandas distintas. Destacou, ainda, que o não cumprimento dessa
clausula contratual oferece risco de perda patrimonial para a UNIVASF nos dois Laboratórios (de
Anatomia e no Biotério), visto que os mesmos dispõem de animais com alto valor para as pesquisas.
“O que permite afirmar que além dos prejuízos socioambientais há ‘risco de perda do patrimônio
público”.
Alguns laboratórios são insalubres e críticos, apresentando sérios riscos aos trabalhadores à saúde e
qualidade de vida dos trabalhadores. Neste aspecto observou-se que não existe mapas de riscos fixados
nas salas, o que é uma exigência legal.
Pontos Fortes – Sociais

A empresa demonstra eficácia e qualidade na prestação de seus serviços, segundo os entrevistados.


A maioria dos casos, observou-se que foram entregues os equipamentos de proteção individual - EPI
necessários.
A empresa cumpre com suas obrigações trabalhistas e previdenciárias.
Fonte: Elaboração Própria

Ficaram evidenciados problemas na execução da política, ratificando, assim, o


entendimento de Santos, Ribeiro e Chagas (2009) que ressaltam a necessidade de avaliação da
política pela dimensão da gestão de modo a identificar quais os principais entraves para o
alcance pleno da finalidade da referida política, expressos na prática (dimensão da gerência).
Por se tratar de avaliação de política pública que, conforme destaca Teixeira (2002),
envolve aplicação dos recursos públicos e estão regulamentados por leis, programas e linhas
de financiamentos e que nem sempre há harmonia entre o que a norma estabelece e sua
aplicação na prática, portanto, utilizou-se da técnica de entrevista como ferramenta central,
para verificar a dualidade existente no campo da ciência administrativa entre teoria e a prática,
isto é, entre gestão e gerência.
Nesse sentido, os relatos dos atores sociais selecionados, envolvidos tanto no
processo de concepção quanto na execução no processo de contratação pública sustentável
corroboraram, portanto, com os pressupostos levantados por esse estudo e com a perspectiva
de Santos, Ribeiro e Chagas (2009) que entendem que administrar vai além da garantia da
racionalidade dos processos de trabalho.
Os autores defendem que o fenômeno administrativo reflete, de forma indissociada, o
ato de pensar (de conceber, de gestar) e o a ação (a prática, o fazer, o executar) um dado
padrão/modo de organização que orienta as relações sociais concretas, circunscritas por
conflitos e interesses e por expectativas individuais e coletivas (organizacionais), o que
configura a arena das políticas públicas.
Os estudos confirmaram, ainda, a compreensão de Moura (2014) de que as compras
públicas sustentáveis trouxeram uma iniciativa capaz de promover mudanças econômicas e
sociais, mesmo que se apresentem problemas na sua dimensão de gerência e os entrevistados
ressaltam a necessidade de implantação de instrumentos de monitoramento e avaliação da
política de compras sustentáveis como recurso capaz de contribuir para a promoção das
mudanças econômicas e sociais, finalidade última desta ação pública. Agregam valor a essa

139
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

conclusão Boullosa e Araújo (2009) ao destacarem a necessidade de uma metodologia de


‘avaliação somativa’ para verificar se os objetivos e metas foram obtidos e produzir, assim,
um juízo de valor do programa.
A Tabela 01 apresenta os pontos mais relevantes que foram sinalizados nas
entrevistas, segundo os critérios de avaliação definidos nos instrumentos de pesquisa. Com
base na definição de Januzzi (2005) foram considerados os níveis satisfatório, intermediário e
insatisfatório para identificar os níveis de percepção dos atores sociais entrevistados e os
resultados da tabela encontram-se nos Gráficos 01 e 02.

Tabela 01– Resultado das Entrevistas sobre a política de Compras Sustentáveis no Contrato 332/2012-
UNIVASF

Dimensão: Gestão
Nº de entrevistados Nº perguntas Classificação das respostas Resultados obtidos
1- Satisfatória 4
3 24 2 - Intermediária 9
3 - Insatisfatória 11
Dimensão: Gerência
Nº de entrevistados Nº perguntas Classificação das respostas Resultados obtidos
1- Satisfatória 3
3 24 2 - Intermediária 8
3 - Insatisfatória 13
Dimensão: Ex- Gestores e Gerentes
Nº de entrevistados Nº perguntas Classificação das respostas Resultados obtidos
1- Satisfatória 4
3 26 2 - Intermediária 10
3 - Insatisfatória 12
Fonte: Elaboração Própria

Com base nas análises das entrevistas dos gestores e gerentes foi possível plotar o
Gráfico 01 que exibe os indicadores da aplicabilidade da implementação da política de
licitações sustentáveis no contrato 332/2012-UNIVASF.

Gráfico 01 - Avaliação das Entrevistas sobre a política de Compras Sustentáveis no Contrato 332/2012-
UNIVASF

140
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

(a) (b)

14 14
12 12
10 10

Gestores
e Gerentes

Fonte: Elaboração Própria

Para corroborar as informações obtidas dos gestores e gerentes atuais, entrevistaram-


se antigos gestores e gerentes que atuaram na concepção (planejamento) e execução da
política e os dados são apresentados no Gráfico (b)
Os dados do Gráfico (b) evidenciam o entendimento do conjunto de entrevistados
formados por 02 (dois) ex-gestores e um ex-gerente que afirmam que, até o momento, a
UNIVASF não conseguiu implementar, integral e satisfatoriamente, as determinações
previstas em lei, visando promover licitações sustentáveis, em especial, no que se refere à
cobrança e aplicação de suas práticas.
Ademais, revelam que não há medidas intensivas de conscientização das práticas
sustentáveis na instituição, mediante o uso de ferramentas de comunicação, citando como
exemplo dessa limitação a ausência de e-mail institucional ou outro meio de comunicação em
rede que articule todos os atores envolvidos com a gestão e gerência da política. Ressaltam,
ainda, que o papel relevante que a alta administração da UNIVASF possui como difusor das
práticas sustentáveis, mas que até o momento não tem sido assumido como função estratégica
para a eficiência e efetividade da política avaliada.
Os Gestores atuais ressaltam, porém, que, apesar dos desafios que a UNIVASF tem a
enfrentar para atender plenamente as exigências legais e sociais da política avaliada, são
observados pontos relevantes no tocante à implementação da sustentabilidade ambiental
como, por exemplo: o uso racional dos recursos hídricos e energéticos, através dos estudos
por alternativas menos poluentes e aquisição de energia limpa, com menor custo.
Além disso, destacam a aquisição de materiais e equipamentos que não poluam o meio
ambiente tanto no que se refere ao uso, quanto ao seu descarte. Reconhecem, ainda, um
relativo esforço no tocante à capacitação e treinamento dos serviços de manutenção, limpeza e
conservação predial para a mudança da cultura organizacional, assim como a adaptação aos
novos processos sustentáveis e alcance dos objetivos institucionais. Nesse sentido, chamam a
atenção para a criação de comissões e grupos de trabalho relacionados ao desenvolvimento de
soluções e ações sustentáveis conduzidas pela Diretoria de Desenvolvimento Institucional da
PROPLADI com vistas a elaboração do Plano de Logística Sustentável. Por fim, destacam

141
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

que a falta de cumprimento por parte do município de implementar ações para a coleta e
reciclagem impossibilita a plena funcionalidade da política de sustentabilidade da UNIVASF.
Esta escolha teórico-metodológica no caso da política pública avaliada justifica,
pois, o descolamento das dimensões administrativas da gestão e gerência, que conforme
defende a teoria da Administração Política para que cumpra sua função social devem estar
integrados e articulados, de forma indissociável.
Destaca-se que um dos problemas identificados nesta pesquisa foi que a dimensão
da gerência administrativa, responsável pela execução do Contrato avaliado não possui o
conhecimento prévio necessário do que fora planejado seja pelo Governo Federal, seja pelo
desconhecimento dos próprios gestores da UNIVASF, que refletem a dimensão da gestão na
organização avaliada. Os gestores devem assumir, pois, o papel de interpretes,
difusores/multiplicadores e avaliadores da política de compras sustentáveis, de modo que os
gerentes possam implantar as medidas contratadas de forma coerente e dirigida para o alcance
das finalidades legitimadas no contrato.
Com base nesse arcabouço teórico-metodológico, os resultados obtidos na pesquisa
corroboraram a existência de uma profunda desarticulação entre as dimensões da gestão e da
gerência. O que revela, pois, a ausência de planejamento estratégico e compromisso do Plano
de Desenvolvimento Institucional - PDI em realizar e fiscalizar o contrato de modo a definir
mecanismos de controle administrativo e social.
Na análise das variáveis dinâmica macro-organizacional (gestão) e dinâmica micro-
organizacional (gerência) os indicadores de concepção e execução de políticas demonstram a
necessidade de capacitação, foi registrado principalmente pelos gerentes o anseio de que a
UNIVASF invista em programas e/ou projetos de capacitação como ações indispensáveis à
preparação dos executantes do contrato avaliado.
A gestão sustentável pela via das compras de serviços públicos exige uma nova
forma de pensar tanto a relação entre sociedade e Estado com vistas a estabelecer uma relação
de preservação da natureza (com base no conceito de sociedade sustentável), como também
em relação às mudanças exigidas na cultura organizacional (com base no respeito à
função/finalidade social que a administração pública tem a obrigação de assumir, no âmbito
mais geral, e a Universidade, no âmbito mais específico objeto deste estudo.
Esta conclusão foi confirmada no discurso dos entrevistados que, ainda, que avaliem
a política de compras sustentáveis como necessária, ponderam que o alcance dos resultados é
insatisfatório, reforçando, pois, a necessidade de investimento em instrumentos de
monitoramento e avaliação que integre indicadores sociais (qualitativos) que mensurem e
demonstrem sua eficiência e efetividade.
Os dados revelam também a necessidade de uma maior integração entre as
dimensões da gestão e da gerência, de modo que o fenômeno administrativo ampliado que
conforma a condução do Contrato possa cumprir as metas, com a qualidade desejada e a
garantia da efetividade dos serviços prestados. Ressaltam, porém, que essa mudança ainda
precisa ser identificada, apreendida e aceita pelos servidores públicos para que ganhe
legitimidade; ou seja, a legalidade por si só não tem se revelado como condição suficiente
para garantir as mudanças que essa nova cultura de consumo social exige.
Um problema destacado pelos atores sociais, tanto os gestores como principalmente,
os gerentes, ainda, em relação a essa questão é a persistente desarticulação entre gestão e
gerência, isto é, entre concepção e execução, entre saberes e práticas administrativas. Uma das
dificuldades evidenciadas que corroboram com essa avaliação é o fato da gestão ser, ainda,

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

uma decisão circunscrita à cúpula do poder (político e técnico-administrativo). O que implica


concluir que a gestão pública tem sido concebida pelo método tradicional que concebe a
política pública no Brasil com base no modelo/padrão ideológico denominado pelos
estudiosos das políticas públicas como Top Down (de cima para baixo).
Conforme defende a teoria da Administração Política, se tomar como base conceitual
e metodológica para avaliar políticas públicas somente as metas (com vistas a garantir a
eficiência, a eficácia e os resultados quantitativos estabelecidos), o alcance das suas
finalidades ficam comprometidas, já que se as formalidades forem atendidas a qualidade dos
serviços prestados e, principalmente, a efetividade alcançada passam a ser variáveis derivadas
e não principais. Concordamos, portanto, com a análise de Santos e Ribeiro (1993 e 2004) e
Santos, Ribeiro et. al (2007) de que os problemas das políticas públicas brasileiras não estão,
fundamentalmente, na baixa capacidade de financiamento (ou seja na baixa disponibilidade de
recursos financeiros, justificado pela “crise fiscal” do Estado), mas sim na baixa capacidade
de gestão e gerência, concebidas como dimensões indissociáveis da administração política.

3. Considerações Finais

O presente estudo analisou as experiências das contratações públicas sustentáveis na


Universidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF, a partir da implementação de
práticas das compras sustentáveis, tomando como base de análise da Teoria da Administração
Política com ênfase nas dimensões da Gestão e Gerência, observadas a partir da percepção
dos atores que implementaram e lidam diariamente com essa política institucional que incluiu
indicadores socioambientais como forma de investimento em curto prazo para que possa ter
um retorno a longo prazo.
Nesse sentido, o estudo procurou identificar, inicialmente, um referencial teórico-
metodológico que fundamentasse e amparasse a contrapor a perspectiva de análise proposta
no presente estudo, pautada, essencialmente, na análise das contratações públicas sustentáveis
advindas da implantação do planejamento e execução na prática de um contrato de limpeza e
conservação predial no campus Sede da UNIVASF em Petrolina-PE.
O estudo demonstrou a importância do planejamento pela Gestão da política das
licitações sustentáveis que exige a prática de um novo plano pelos gestores com fundamento
na busca do social e da necessidade de monitoramento e avaliação da execução da política.
Esse avanço contribuiu também para o registro da memória da nova dinâmica institucional,
organizacional e administrativa que tem sido implementada na UNIVASF. O atributo da
efetividade das ações da política de compras sustentáveis pressupõe-se a articulação da
dimensão política com outras ações relevantes como o desenvolvimento social e cultural
local, entre outras. No âmbito organizacional sugere-se em adotar o reconhecimento e a
relevância da participação dos servidores e da comunidade acadêmica, como condição
fundamental para garantir a efetividade nas dimensões social, ambiental e econômica.
Este estudo também evidenciou a necessidade de uma maior integração das
dimensões da gestão e gerência administrativa para o cumprimento das normas estabelecidas
na política institucional que foram planejadas de cima para baixo e há um entrave entre as
dimensões abstrata e filosófica do planejamento com a dimensão de materialização que coloca
em prática denominada de Administração Profissional, considerando que o importante não é a
meta, mas sim, a melhor a aplicação dos recursos.

143
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Nessa direção, o estudo se mostra de ampla relevância no tocante ao que pode


contribuir em relação a estudos futuros sobre o tema licitação sustentáveis no âmbito de
distintos entes da administração direta ou indireta, sobretudo, considerando o modelo de
análise aqui desenvolvido que se volta a contemplar duas dimensões indissociáveis da ação
administrativa: Gestão e Gerência, sendo a dimensão Gestão responsável por conceber e
planejar o futuro das instituições.

4. Referencias

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dá outras providências;
BRASIL, Lei nº 12.349, de 15 de dezembro de 2010 – Altera as Leis no 8.666, de 21 junho de
1993, 8.958, de 20 dezembro de 1994, e 10.973, de 2 de dezembro de 2004; e revoga o § 1º
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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Política de Assistência Social no Brasil: notas sobre o desenvolvimento


recente

Teresinha de Jesus de Souza Dantas


Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)

Geraldo Medeiros Júnior


Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)

Daysan F. K. Leal Medeiros


Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)

Resumo
A política de assistência social, de acordo com a Constituição Federal do Brasil, constitui
juntamente com a saúde e a previdência social, um conjunto articulado de ações que compõem
a Seguridade Social, em atendimento às famílias e indivíduos que dela necessitem, em especial
àquelas em situação de vulnerabilidade social momentânea ou permanente. Este trabalho
objetiva analisar a política socioassistencial no Brasil nos últimos anos. A metodologia utilizada
em sua construção observou a revisão bibliográfica dos marcos regulatórios da política do
Sistema Único de Assistência Social, até os marcos regulatórios municipais, além de
bibliografias correlatas sobre a área em questão, fazendo então uma análise da realidade que se
apresenta no município estudado e do que está posto em suas normas e orientações legais, em
âmbito nacional e municipal. Neste sentido, a política de assistência social no município de
Queimadas-PB, assim como em tantos outros deste país, conseguiu avanços em sua prática e
nos resultados almejados, mas necessita ainda de uma reavaliação das suas reais condições para
poder avançar no atendimento das demandas cada vez mais crescentes e no alcance de
resultados satisfatórios.
Palavras-Chave: Seguridade social. Política pública. Assistência Social.

1 Introdução
A crise do Estado está vinculada ao movimento do capital, especialmente sob a égide
do capital portador de juros, expressão do capital financeiro. Para conter as falências em massa
que agravariam a crise, valores cada vez maiores são mobilizados pelos Estados para financiar
os capitalistas, que são premiados com cortes de impostos e de direitos trabalhistas, enquanto
grande parte da sociedade é penalizada.
O crescimento do Brasil nessa última década foi fator importante para contrariar essa
tendência geral, ao incorporar camadas maiores da população ao acesso a diretos e garantias
sociais. Isto demonstra que a gestão, assim como preconiza a administração política, é de suma
importância para compreender a execução de um projeto nação que leve ao atendimento dos
anseios sociais.
Mais que nunca há a necessidade de uma visão de Administração Política que auxilie o
entendimento que o Estado é o gestor que tem a incumbência de conceber as formas de gestão
mais adequadas no processo de execução do bem estar social. A Administração política aponta
que o a necessidade de um modelo de gestão mais apropriado para ao atendimento das
demandas da sociedade, a partir de um pacto que não privilegie apenas um setor. A ação de
gerir as relações sociais no processo de execução do projeto de nação (sob o comando do Estado
com o poder político e econômico) constitui a essência da administração política.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

No Brasil, a construção da política de assistência social passou por vários períodos de


amadurecimento e de formação de uma identidade própria. Houve uma importante mudança,
que partiu de uma visão de assistência social como relacionada a uma prática de caridade,
clientelista e de favores, para outra com a organicidade dos conselhos, instituições públicas e
legislação própria, chegando ao patamar de política de Estado e de constituição de um sistema
universal, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
O acesso aos direitos socioassistenciais tem início no país por meio da promulgação da
Carta Magna em 1988, quando se inclui a política de assistência social no rol dos direitos e da
seguridade social. A partir de então, outros marcos legais foram elaborados, versando sobre a
organicidade da estrutura, dos projetos, programas, serviços e benefícios da política pública em
questão.
Ao longo desse processo, a política socioassistencial tem avançado nos municípios do
país buscando atender as demandas das populações que dela necessitam, com programas de
transferência de renda, e de benefícios socioassistenciais, articulados a atividades de caráter
protetivo, de defesa de direitos e inclusão social. A política no âmbito do Sistema Único de
Assistência Social (SUAS) busca desta forma, a promoção da cidadania e da dignidade humana,
em especial aos indivíduos que por situações momentâneas ou permanente encontram-se em
estado de vulnerabilidade e/ou risco social.
Dessa forma, a política de assistência social atravessa a fronteira das ações de caráter
pontuais para a efetivação de fato de uma política de direitos, de acesso universal e gratuito,
fundamentado em preceitos de gestão apontados pela Administração política. O presente
trabalho, objetiva analisar como está disposta a política de assistência social no Brasil, partindo
de uma apresentação de seus aspectos em âmbito nacional, para assim realizar um paralelo com
a realidade da Administração Política.
Neste sentido, a metodologia utilizada a classifica como uma pesquisa exploratória, por
fazer uso de consulta bibliográfica e documental, tanto de legislações nacionais como também
municipais, sobre a política de assistência social, bem como da literatura de autores que versam
sobre a temática. Foi igualmente utilizado como material de consulta: manuais, cadernos e
literaturas institucionais diversas, que norteiam a construção e execução da política pública
abordada neste estudo.

2 A Política Pública de Assistência Social no Brasil

A Constituição Federal Brasileira, de 05 de outubro de 1988, trata em seu Título VIII,


Capítulo II, da seguridade social, e no seu Art. 194, destaca que esta compreende um conjunto
de ações articuladas a assegurar direitos ligados à saúde, à assistência social e à previdência.
Neste sentido, a assistência social juntamente com a saúde e a previdência, formam o tripé da
seguridade social. (BRASIL, 1988)
Ainda, de acordo com o Art. 203, da Constituição Federal, a assistência social deve ter
suas ações voltadas a quem dela necessitar, em qualquer etapa da vida, ou seja, na infância,
juventude e velhice, tendo como objetivo à proteção das famílias e de seus membros
individualmente, além de versar sobre a integração ao mercado de trabalho, a inclusão das
pessoas com deficiência e a garantia de benefício mensal de renda a idosos e portadores de
deficiência. (BRASIL, 1988)
A partir do marco regulatório da Constituição Federal, a assistência social começa a
ganhar status de política pública de fato e de direito, e diante de outras regulações legais
específicas, criadas após a promulgação da Carta Magna.
A assistência social é determinada nesse marco regulatório, como política não
contributiva, ou seja, não existe critério de exigência de contribuição para dela fazer uso,

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

diferentemente da previdência social em que o usuário precisa ter contribuído por um


determinado período para desta se usufruir como beneficiário.
A partir da Constituição Federal, iniciou-se um quadro de superação de ausência pública
de garantia de direitos, em detrimento do clientelismo, do assistencialismo e do
patrimonialismo, em que tem como marca os auxílios e doações para os pobres e carentes,
destinadas a ações pontuais e que em nada contribuíam para a efetivação de direitos e de
autonomia dos sujeitos. (COLIN; JACCOUD, 2013)
Para alguns estudiosos da área, como Sposati (2013), o campo da assistência social
sofreu um processo de tardio acúmulo propositivo, em termos de legislação, e isso dificultou o
seu reconhecimento como uma política asseguradora de direitos, alimentando assim práticas
conservadoras, assistencialistas e generalistas, associadas à história do processo de efetivação
da política de assistência social.

Os Níveis de Proteção da Assistência Social

A Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), trata da organização da assistência social


em dois tipos de proteção: Proteção Social Básica (PSB) e Proteção Social Especial (PSE). Vale
salientar, que o conceito de proteção social permeia a centralidade de atenção, cuidado, ações,
benefícios e auxílios ofertados pelo SUAS para prevenir e reduzir impactos junto às famílias
que, em virtude de temporalidade ou permanência de situações de vulnerabilidade e risco,
possam trazer danos aos vínculos familiares e aos seus indivíduos. (BRASIL, 1993)
Assim, a Proteção Social Básica compreende o conjunto de programas, serviços projetos
e benefícios na área de assistência social que busca a prevenção de situações de vulnerabilidade
e risco social, através de aquisições e do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários.
Ou seja, a Proteção Social Básica (PSB), possui um caráter preventivo, no sentido de impedir
o rompimento dos vínculos familiares e comunitários em que pesam muitas vezes a retirada do
sujeito do ambiente ao qual vive. (BRASIL, 1993)
Enquanto a Proteção Social Especial (PSE), se configura como sendo o conjunto de
programas, serviços e projetos que visa contribuir na reconstrução de vínculos familiares e
comunitários, na defesa de direitos, no fortalecimento das potencialidades e aquisições, e na
proteção de famílias e indivíduos no que pese o enfrentamento de violação de direitos. Neste
sentido, a PSE atuará quando houver situações de violação de direitos que gerem riscos pessoais
e sociais, por ocorrência de uma gama de fatores que vão desde o abandono, a situações de
exploração sexual, entre outros, que violem o direito da dignidade humana. (BRASIL, 1993)
O Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), é o equipamento público de
referência da Proteção Social Básica (PSB), instalado nos municípios e tendo como base um
território de atuação, com equipe de referência mínima estabelecida pela Norma Operacional
Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social (NOB-RH/SUAS), no
qual é ofertado o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), com prioridade
às beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF) e do Benefício de Prestação Continuada
(BPC). (COLIN; PEREIRA, 2013)
Em termos quantitativos, de acordo com os dados do último Censo SUAS divulgado,
referente ao ano de 2014, existiam neste período 8.088 CRAS instalados no Brasil, em 5.485
municípios, configurando 98,5% da cobertura dos municípios do país. Como mostra o gráfico
1, que trata da evolução da implantação dos CRAS. (BRASIL, 2014)

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Gráfico 1 – Evolução do quantitativo de CRAS no período de 2007 a 2014

Fonte: MDS, Censo SUAS. (BRASIL, 2014)

Outros serviços, além do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF),


também são oferecidos no nível da Proteção Social Básica (PSB) e referenciados ao CRAS, de
acordo com a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (BRASIL, 2009):
1. Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), que atua junto
às crianças, jovens e idosos de forma preventiva e proativa, com ações que
visam o fortalecimento da função protetiva e o desenvolvimento do convívio
familiar e comunitário.
2. Serviço de Proteção Social Básica no Domicílio para pessoas com deficiência e
idosas, cujas ações visam à prevenção de agravos que possam levar ao
rompimento de vínculos familiares e sociais;à colaboração na rede de inclusão
no território promovendo habilitação, reabilitação e inclusão social; à prevenção
o abrigamento institucional; e à promoção da proteção e da defesa dos direitos
dos cidadãos.
Além dos serviços explicitados anteriormente, o Programa Nacional de Promoção do
Acesso ao Mundo do Trabalho(Acessuas Trabalho) integra a Proteção Social Básica (PSB),
atuando na intermediação entre os usuários da política de assistência social e o mundo do
trabalho, através da mobilização e encaminhamento dos usuários a cursos de qualificação
profissional do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), e
da articulação intersetorial para a promoção da inclusão produtiva. (COLIN; PEREIRA, 2013)

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Na gestão de benefícios, a política de assistência social opera com dois mecanismos


em escala nacional: o Programa Bolsa Família (PBF) e o Benefício de Prestação Continuada
(BPC), além da garantia dos benefícios eventuais.
O PBF, criado em 2003, oportunizou garantia de renda para famílias em situação de
vulnerabilidade social, integrando benefício monetário com ações interligadas com a rede
socioassistencial. O BPC, assegurado pela LOAS, compreende a garantia de um salário mínimo
mensal ao idoso com 65 anos ou mais, e a pessoa com deficiência que não tenham condições
materiais de manter-se, ou serem mantidos por sua família. (BRASIL, 1993)
O gráfico 2 mostra a evolução do quantitativo de famílias beneficiárias do Programa
Bolsa Família, no período de janeiro de 2004, partindo de um quantitativo de 3.615.861 famílias
beneficiárias, a abril de 2016, chegando ao número de 13.892.145 famílias beneficiárias.
(BRASIL, 2016).
Gráfico 2 – Quantidade de famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família – Brasil,
2004 a 2016

Fonte: CAIXA, Folha de Pagamentos do Programa Bolsa Família (PBF). (BRASIL,2016)

Entre os anos de 2004 a 2016 houve um crescimento em torno de 284% na quantidade


de famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família. Isto implica em crescimento da
distribuição de renda e redução de alguns índices, como a taxa de extrema pobreza, que em
2001 totalizava 8,94% da população, para 2,55% em 2014; e a incidência de pobreza, de 14,58%
em 2001 para 6,97% em 2014. (BRASIL, 2016)
É perceptível também o aumento nos índices de frequência escolar entre crianças e
adolescentes de 06 a 17 anos, de 13,8% em 2009, para 14,7% em 2015; e do quantitativo de
famílias totalmente acompanhadas pela saúde, partindo de 63,08% em 2009, para 76,81% em
2015, ambas as situações fazem parte do acompanhamento do Programa Bolsa Família,
denominadas condicionalidades do Programa Bolsa Família (PBF). (BRASIL, 2016)
Quanto ao BPC, o gráfico 3 mostra o quantitativo de beneficiários idosos do período de
janeiro de 2004, partindo de 671.477 beneficiários, a 1.924.258 no mês de janeiro de 2016.
(BRASIL, 2016)

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Gráfico 3 – Quantidade de beneficiários do Benefício de Prestação Continuada (BPC)


para idosos – Brasil, 2004 a 2016

Fonte: MDS, Benefícios Ativos do Benefício de Prestação Continuada (BPC). (BRASIL, 2016)

O gráfico 4, mostra o quantitativo de beneficiários do BPC com deficiência, entre janeiro de


2004, totalizando 1.039.028, a janeiro de 2016, com o quantitativo de 2.326.876. (BRASIL,
2016)

Gráfico 4 – Quantidade de beneficiários do Benefício de Prestação Continuada (BPC)


para Pessoas com Deficiência – Brasil, 2004 a 2016

Fonte: MDS, Benefícios Ativos do Benefício de Prestação Continuada (BPC). (BRASIL, 2016)

Da mesma forma, os benefícios eventuais são garantidos pela LOAS às famílias e


indivíduos que, em virtude de nascimento, morte, situações de calamidade pública e de
vulnerabilidade temporária, necessitam de provisões suplementares e excepcionais. (BRASIL,
1993)
O gráfico 5, mostra o percentual de CRAS que trabalham com a concessão de benefícios
eventuais, por tipo de benefício, de acordo com dados do Censo SUAS 2014. (BRASIL, 2014)

Gráfico 5 – Percentual de CRAS que concedem benefícios eventuais, por tipo de benefício
– Brasil, 2010 a 2014

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Fonte: MDS, Censo SUAS. (BRASIL, 2014)

No nível da Proteção Social Especial (PSE), as atenções buscam o atendimento às


famílias em situação de risco pessoal e social, “[...] que envolvem violação de direitos e
ameaçam a integridade física, psíquica e relacional, demandando, portanto, atenção
especializada e maior articulação com os órgãos de defesa de direitos [...]”, como também a
articulação intersetorial com outras políticas públicas. (COLIN; PEREIRA, 2013, p. 118)
De acordo com a LOAS, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social
(CREAS), é a unidade pública de atendimento aos indivíduos e famílias “[...] em situação de
risco pessoal ou social, por violação de direitos ou contingência, que demandam intervenções
especializadas da proteção social especial.” Os serviços e ações ofertados pelo CREAS podem
ser disponibilizados em unidades com referência municipal ou regional. (BRASIL, 1993, Art.
6º-C, §2º)
O gráfico 6 mostra a evolução do quantitativo de CREAS implantado no país, por região,
no período de 2009 a 2014, de acordo com o Censo SUAS 2014. (BRASIL, 2014)

Gráfico 6 – Evolução do quantitativo de CREAS segundo grandes regiões – Brasil, 2009


a 2014

Fonte: MDS, Censo SUAS. (BRASIL, 2014)

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A Proteção Social Especial (PSE), encontra-se subdividida em: Proteção Social de


Média Complexidade e Proteção Social de Alta Complexidade. A primeira, é direcionada a
indivíduos e famílias que tiveram seus direitos violados, mas que ainda há algum vínculo
comunitário e familiar mantido. Enquanto a segunda, busca a garantia de proteção integral, ou
seja, moradia, alimentação e demais cuidados, direcionados a pessoas com vínculos familiares
rompidos ou fragilizados, que necessitem, temporariamente ou de forma definitiva, serem
afastadas de suas famílias ou de seu local de origem. (IPEA, 2015)

3 Gestão e Financiamento da Política de Assistência Social

A gestão da política de assistência social é feita de forma compartilhada entre os entes


federados: União, Estados, Distrito Federal e Municípios, sob a lógica de um sistema único,
descentralizado e com participação popular na sua formulação e execução.
Segundo a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), o modelo de gestão do
SUAS normatiza e organiza as ações socioassistenciais em todo território nacional, com
definições delimitadas das competências de cada ente federado, contando com a participação e
mobilização da sociedade civil no acompanhamento e construção da política. (BRASIL, 2004)
O SUAS seria assim a materialização do que preconiza a LOAS, e como um sistema unificado,
possibilita “[...] a normatização dos padrões nos serviços, qualidade no atendimento,
indicadores de avaliação e resultado, nomenclatura dos serviços e da rede socioassistencial e,
ainda, os eixos estruturantes [...]”, que norteiam a subdivisão e a organização do sistema.
(BRASIL, 2004, p. 37)
De acordo com a NOB SUAS, as responsabilidades de cada ente federado devem estar
pautadas na ampliação da proteção socioassistencial, visando o enfrentamento da pobreza,
extrema pobreza e desigualdades sociais; a erradicação do trabalho infantil, e a garantia dos
direitos, conforme prega a Constituição Federal e as demais legislações referentes à assistência
social. (BRASIL, 2012)
A inclusão da política de assistência social no texto constitucional, como um direito
social compondo o rol da seguridade social, garantiu avanços na amplitude dos direitos sociais
no país, pois anteriormente a este conceito e a responsabilização do Estado no enfrentamento à
pobreza e à vulnerabilidade social, considerava-se que estas eram resultados de
posicionamentos e trajetórias individuais, ou seja, a responsabilidade recaia no próprio
indivíduo que se encontrava na condição de excluído.(LOPES; RIZOTTI, 2013)
Diante disso, é inegável que as políticas sociais avançaram e ampliaram seu raio de
atuação, estando articuladas às políticas de saúde, educação, trabalho e renda, previdência
social, entre outras; tendo na figura do Estado o responsável central pelo seu comando,
compartilhando com a sociedade civil o planejamento e controle dessas políticas. Criou-se
assim, um cenário real e possível de garantias de direitos que possam “[...] efetivar a construção
de seguranças sociais voltadas ao atendimento das necessidades da população”. (PAULA, 2013,
p. 96)
A intersetorialidade na política de assistência social, implica mudanças de valores, de
práticas da estrutura das instâncias gestoras e de participação. E, configura-se como um dos
principais pressupostos, juntamente com a concepção da territorialização e da descentralização,
na concepção e execução da política socioassistencial. (BRASIL, 2004)
Sob a lógica da territorialização, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS)
(BRASIL, 2004),utiliza o espaço do território dos municípios para o planejamento da gestão e
financiamento da política de assistência social. Desta forma, tendo como referência o espaço
territorial dos 5.570 municípios brasileiros, estes são subdivididos por porte, quais sejam:
• Pequeno Porte I: são os municípios em que sua população chega a 20.000
habitantes, com uma média de 5.000 famílias;

153
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

• Pequeno Porte II: são considerados os municípios com população entre 20.001
a 50.000 habitantes, entre 5.000 a 10.000 famílias em média;
• Médio Porte: municípios que possuem população entre 50.001 a 100.000
habitantes, com uma média de 10.000 a 25.000 famílias;
• Grande Porte: são os municípios cuja população se encontra entre 101.000 a
900.000 habitantes, tendo em média de 25.000 a 250.000 famílias;
• Metrópoles: são municípios com mais de 900.000 habitantes, com uma média
superior a 250.000 famílias.

A classificação estabelecida pela Política Nacional de Assistência Social (PNAS),

[...] tem o propósito de instituir o Sistema Único de Assistência Social, identificando


as ações de proteção básica de atendimento que devem ser prestadas na totalidade dos
municípios brasileiros e as ações de proteção social especial, de média e alta
complexidade, que devem ser estruturadas pelos municípios de médio, grande porte e
metrópoles, bem como pela esfera estadual [...]. (BRASIL, 2004, p. 43-44)

Tomando como base essa proposição, na totalidade dos municípios é garantido a gestão
e o cofinanciamento da proteção social básica de forma municipalizada, enquanto a proteção
social especial, na maioria dos municípios de Pequeno Porte I e II é feita de forma regionalizada,
com raras exceções, tendo como sede dos serviços e programas geralmente um município de
médio porte. Já os municípios de grande porte e as metrópoles, têm a garantia da rede de
proteção especial de forma ampla, com os níveis de média e alta complexidade presentes de
forma municipalizada. (BRASIL, 2004)

Gestão Administrativa do SUAS

O SUAS, como um sistema descentralizado, com o comando único na esfera federal de


governo, atribui funções e responsabilidades comuns e específicas, bem definidas para cada
ente, que em consonância com o Pacto Federativo propiciam “[...] descentralização das ações
de execução para os gestores locais, cabendo aos gestores federais a organização e normatização
dos serviços, programas e projetos.” (BRASIL, 2013, p. 62)
Segundo a NOB SUAS, algumas responsabilidades são comuns aos entes federados.
Assim, compete a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:a normatização e
regulação da política de assistência social em cada esfera de governo;a garantia do comando
único do SUAS pelo órgão gestor da política de assistência social;a instituição dos fundos e dos
conselhos de assistência social;a organização, coordenação e gerenciada política de assistência
social no âmbito de cada ente, nos aspectos financeiros, orçamentários e na política de recursos
humanos; e a implantação de sistemas de informação, monitoramento, acompanhamento e
avaliação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). (BRASIL, 2012)
Lopes & Rizzotti (2013, p. 69), à luz da NOB SUAS, destacam as responsabilidades de
cada ente federado, lembrando

[...] que em âmbito nacional estão demarcadas as funções de regular, normatizar e


coordenar a Política de Assistência Social, de monitorar e avaliar a implementação do
SUAS, ser copartícipe no financiamento para a manutenção dos serviços mas,
sobretudo, dos benefícios concedidos em caráter nacional. Cabe aos Estados,
coordenar a política de assistência social e executar a Política Estadual de Assistência
Social, além de apoiar técnica e financeiramente os municípios, responsabilizar-se
pelo financiamento dos serviços de proteção social especial de caráter regionalizado,
realizar monitoramento e avaliação, cofinanciar a rede de serviços municipais. As

154
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

responsabilidades municipais recaem sobre toda a operacionalização da política de


assistência social e, naturalmente, deve ser financiador de todas as ações em parceria
com as demais instâncias.

Vale salientar a importância de dois instrumentos estratégicos constantes na NOB


SUAS, que auxiliam no planejamento e na gestão da política de assistência social: o Plano de
Assistência Social e o Pacto de Aprimoramento do Sistema Único de Assistência Social, ambos
devem em sua formatação estabelecer uma correlação entre si. (BRASIL, 2012)
O primeiro, é um instrumento de responsabilidade do órgão gestor da política de
assistência social, no qual devem estar explícitas ações, prioridades, metas, resultados e
impactos esperados na execução da política por parte de cada ente federado, além das fontes de
financiamento e organização dos recursos materiais e humanos. (BRASIL, 2012)
O Pacto de Aprimoramento do SUAS, firmado entre a União, os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios, “[...] materializam as metas e as prioridades nacionais no âmbito do
SUAS [...]”, através do planejamento e da definição de indicadores, visando o alcance das metas
e da adoção de mecanismos de avaliação e acompanhamento, constituindo-se desta forma, “[...]
em mecanismo de indução do aprimoramento da gestão, dos serviços, programas, projetos e
benefícios socioassistenciais.” (BRASIL, 2012, Art. 23)
Considerando a organização da gestão da assistência social em estruturas
administrativas e suas características, de acordo com o Censo SUAS 2014, os gráficos a seguir
mostram como se configuram as instâncias gestoras da assistência social no território brasileiro.
O gráfico 7 (BRASIL, 2014), aborda a distribuição das secretarias municipais que
exercem exclusivamente a política de assistência social, ou seja, coordenam, formulam e
executam a política sem estar associada ou subordinada a outra política setorial.

Gráfico 7 – Distribuição percentual de Secretarias Municipais exclusivas de Assistência


Social segundo Grandes Regiões – Brasil, 2010 a 2014

Fonte: MDS, Censo SUAS. (BRASIL, 2014)


A região sul chama a atenção pelos baixos índices de estruturas administrativas da
assistência social que atuam de forma independente, como mostra o gráfico acima. Os
organismos gestores ainda estão subordinados a outras políticas públicas, sem autonomia e
identidade próprias, situações que vão de encontro ao que prega a política de assistência social,
por meio de suas normativas e da lógica de um sistema unificado.

Gestão Financeira e Orçamentária do SUAS

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A NOB SUAS, trata em seu arcabouço legal da gestão financeira e orçamentária do


SUAS, que é composta essencialmente de dois instrumentos: os fundos de assistência social e
o orçamento da assistência social. Este último, é indispensável à gestão da política
socioassistencial e se constitui como uma ferramenta de planejamento da gestão. (BRASIL,
2012)
A peça orçamentária deve dispor: da provisão de recursos; da definição de metas,
objetivos e diretrizes; da previsão quanto à organização das ações; da forma de
acompanhamento das ações; e da revisão crítica das propostas, processos e resultados; todos
estes relacionados à gestão da prestação dos serviços, programas, projetos e benefícios
socioassistenciais. (BRASIL, 2012)
Diante de um modelo de gestão compartilhada, proposta na LOAS, o financiamento do
SUAS deve ser efetuado pelas instâncias federadas, devendo os recursos destinados a sua
organização e operacionalização serem alocados nos respectivos fundos de assistência social, e
sendo requisito necessário para recebimento do cofinanciamento a instituição do Conselho, do
Plano Municipal e do Fundo de Assistência Social, denominado pelos profissionais da área de
CPF. (BRASIL, 1993)
Os fundos de assistência social, tratam-se de

[...]instrumentos de gestão orçamentária e financeira da União, dos Estados, do


Distrito Federal e dos Municípios, nos quais devem ser alocadas as receitas e
executadas as despesas do conjunto de ações, serviços, programas, projetos e
benefícios de assistência social. (BRASIL, 2012, Art. 48)

O Censo SUAS 2014, investigou o quantitativo de municípios que possuem Fundo


Municipal de Assistência Social (FMAS) implantados, os dados estão apresentados na tabela
2. (BRASIL, 2015)

Tabela 2 – Municípios segundo implantação do FMAS – Brasil, 2014

Fonte: MDS, Censo SUAS. (BRASIL, 2015)


Quanto à implantação do Fundo Municipal de Assistência Social (FMAS), o gráfico 10
apresenta o percentual de municípios, distribuídos nas regiões do país, nos quais estão
implantados, em fase de implantação ou não possuem fundo municipal.

Gráfico 10 – Percentual de municípios segundo implantação do Fundo Municipal de


Assistência Social (FMAS) por grandes regiões – Brasil, 2014

156
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Implantado Em fase de implantação Não possui

0.00% 0.00%
0.20%
0.30% 0.60%
1.30%
1.60% 1.10%
1.20% 0.70%

98.70% 98.70% 98.70%


98.40% 98.40%

NORTE NORDESTE SUDESTE S UL CENTRO-OESTE

Fonte: MDS, Censo SUAS. (BRASIL, 2014)

Ao organismo gestor da administração pública responsável pela coordenação da política


de assistência social, de cada ente federado, cabe gerir o fundo de assistência social, sob
controle e orientação dos respectivos conselhos de assistência social. (BRASIL, 1993)
A tabela 3 (BRASIL, 2015), apresenta dados relacionados ao ordenador de despesa do
FMAS, segundo informações do Censo SUAS 2014.

Tabela 3 – Municípios segundo gerência (ordenador de despesa) do FMAS– Brasil, 2014

Fonte: MDS, Censo SUAS. (BRASIL, 2015)

Segundo a NOB SUAS (BRASIL, 2012), cada ente federado dispõe de


responsabilidades específicas no cofinanciamento do SUAS, assim cabe:
• A União - o financiamento do BPC; do Programa Bolsa Família; dos serviços,
programas e projetos socioassistencias; de situações emergenciais e de
calamidade pública, e do suporte técnico aos Estados, Distrito Federal e
Municípios;
• Aos Estados - custear o atendimento das situações emergenciais; parte dos
benefícios eventuais junto aos municípios; apoio técnico e financeiros à
prestação de serviços, programas e projetos locais e regionais; a prestação de
serviços regionalizados de média e alta complexidade; e a infraestrutura
necessária ao funcionamento do Conselho Estadual de Assistência Social;

157
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

• Aos Municípios e ao Distrito Federal - o custeio e cofinanciamento de serviços,


programas e projetos sob sua gestão; dos benefícios eventuais; dos projetos de
enfrentamento à pobreza; do atendimento às situações de emergência; e da
infraestrutura necessária ao funcionamento do Conselho Municipal e Distrital de
Assistência Social.

De acordo com o ordenamento do cofinanciamento, a União financiou o BPC (idosos e


pessoas com deficiência), no período de janeiro de 2014, no valor de R$ 412.444.363,32; e no
período de janeiro de 2016 no valor de R$ 3.732.254.796,46; segundo dados da Secretaria
Nacional de Assistência Social (SNAS) do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate
à Fome (MDS). (BRASIL, 2016)
Da mesma forma, os repasses do Programa Bolsa Família totalizaram em janeiro de
2004, R$ 263.265.315,00; e em março de 2016, R$ 2.237.918.660,00; de acordo com dados da
SNAS/MDS. (BRASIL, 2016)
Os dados demonstram um aumento expressivo do custeio de ambos os benefícios em
âmbito nacional. Vale salientar que, a região com um volume maior de repasses, em ambos os
benefícios, foi a região Nordeste. (BRASIL, 2016)
Até o final do ano de 2015, os repasses de recursos do cofinanciamento federal eram
realizados sob a lógica dos pisos de proteção. Cada piso tinha uma conta, na qual os recursos
seriam usados para a prestação de serviço específico da conta a que estava vinculado, o que
levava a segmentação e a limitação do uso dos recursos.(BRASIL, 2013)
A Portaria do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Nº 113,
de 10 de dezembro de 2015, regulamentou o cofinanciamento federal dos serviços, programas
e projetos socioassistenciais na modalidade fundo a fundo, através de Blocos de Financiamento,
que resultou em maior liberdade nos gastos dos recursos por cada nível de proteção, podendo
os recursos de um mesmo bloco financiar as ações, projetos, programas e serviços daquele nível
específico de proteção. Vale ressaltar que, a mudança no formato de alocação dos recursos por
blocos de financiamento, não extinguem os conceitos de pisos e serviços. (BRASIL, 2013)
Atualmente, os repasses dos recursos se configuram no formato de Blocos de
Financiamento. Os Blocos de Financiamento da Proteção Social Básica (PSB) e Proteção Social
Especial (PSE) de Alta Complexidade e Média Complexidade, subsidiam o conjunto de ações,
programas, projetos e serviços especificados ao longo deste trabalho em cada nível de proteção.
Por outro lado, os Blocos de Financiamento da Gestãodo Programa Bolsa Família, o
Índice de Gestão Descentralizado do Programa Bolsa Família(IGD-PBF) e da Gestão do
Sistema Único de Assistência Social, o Índice de Gestão Descentralizado do Sistema Único de
Assistência Social (IGD-SUAS), financiam diretamente a gestão em si das ações, programas,
projetos e serviços. Desta forma, o Bloco de Financiamento do Programa Bolsa Família (IGD-
PBF), tem por objetivo oferecer aporte financeiro necessário à gestão do Programa Bolsa
Família e do Cadastro Único; e o Bloco de Financiamento do Sistema Único de Assistência
Social (IGD-SUAS), visa oferecer suporte à “[...]gestão e prestação de serviços, programas,
projetos, e benefícios socioassistenciais em âmbito local e regional [...]”, de uma forma mais
ampliada, podendo ser direcionadoao fortalecimento da rede socioassistencial. (BRASIL, 2012,
Art. 75, I)
Segundo Tavares (2013), o financiamento garante meios para efetivar as ações, o que
determina se há ou não condições de efetivamente atender as necessidades da população
atendida. No caso da assistência social, por ser uma política do campo da proteção social, que
visa a garantia de direitos, o financiamento deve garantir condições para que isso ocorra. Neste
sentido,

[...] é preciso que se avalie quem participa desse financiamento, isto é, se de fato o
cofinanciamento está ocorrendo com a participação das três esferas de governo, como

158
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

forma de dar cumprimento às atribuições legais de cada uma delas nas provisões desta
política. [...] O cofinanciamento no SUAS deve se dar em consonância com o caráter
das ofertas da política de assistência social visto serem continuadas, descentralizadas
e destinadas a quem dela necessitar. [...] Sendo assim, como esse processo não pode
sofrer descontinuidade, os repasses devem ser regulares e, dessa forma, se traduzir na
capacidade das esferas locais atenderem às demandas da população destinatária de
suas ofertas [...]. (BRASIL, 2013, p. 175-176)

Faz-se necessário também, que o cofinanciamento seja baseado na necessidade da


prestação do serviço com qualidade, tomando como base os custos reais de cada ação, de forma
que a consolidação do direito seja viabilizada de fato. Para isso, torna-se necessário, além do
envolvimento do Governo Federal e dos Municípios, a presença da esfera estadual na
participação destes custeios, e na colaboração para o fortalecimento das gestões em âmbito
local.

5 Considerações Finais
A constituição da política de assistência social no Brasil, partiu de um conjunto de
práticas assistencialistas para tornar-se uma política de direitos, destinada a quem dela
necessitar. Nos dias atuais ainda persistem ações e posturas herdadas dos primórdios de sua
constituição, presentes no cotidiano dos municípios.
Os benefícios eventuais nos municípios de pequeno porte, em especial, ainda são vistos
como carro-chefe da política socioassistencial, e quando não, confundidos como favores ou
benesses, o que remete à velha concepção da política clientelista e assistencialista de seu início.
Não há por parte da grande maioria da população, como também, de boa parte dos
gestores e trabalhadores da gestão pública dos municípios de pequeno porte, o entendimento de
que, os benefícios eventuais, além de seu caráter provisório e eventual, também possuem
critérios para seu acesso, não sendo assim direcionado a qualquer cidadão de forma indistinta e
na ocasião que se queira.
Portanto, no formato que a política de assistência social se apresenta, enquanto política
de direitos, os benefícios eventuais são ferramentas complementares a um arcabouço de ações
que visam a garantia de direitos, promoção da autonomia e da cidadania dos indivíduos e suas
famílias.
Além do caráter assistencialista que a política de assistência social carregou por décadas,
houve uma responsabilização por parte dela em acolher e cuidar dos pobres enfermos. Não é de
se estranhar também, que ainda exista em alguns marcos regulatórios, e na prática cotidiana da
assistência social, ações e serviços, de responsabilidade da saúde sendo executadas na área
socioassistencial. Há uma confusão de limites e atribuições destas duas políticas, a saber pela
destinação, por exemplo, de benefícios eventuais para tratamentos de saúde, fornecimento de
próteses e medicamentos, entre outros.
É também digno de observação, o direito a transferência de renda, estabelecido nos
marcos regulatórios da política de assistência social, e efetivado através dos benefícios do Bolsa
Família e do BPC. Ambos tiveram ao longo dos anos um crescimento ascendente, poisdiante
dos altos índices de pobreza e pobreza extrema minimizados ao longo dos anos, e através da
garantia mínima de renda para atenuar este quadro, outras ações também podem e devem ser
realizadas no acompanhamento das famílias e indivíduos atendidos pelos benefícios citados.
Infelizmente estes benefícios são interpretados de uma forma distorcida por boa parte da nossa
sociedade, sendo denominados de “bolsa esmola”, ou sendo destinados de forma indevida a
pessoas e famílias que não se enquadram no perfil para recebimento dos mesmos. Mas, no
cotidiano da política sociassistencial demonstra ser inegável a importância de tais benefícios no

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

que tange ao caráter protetivo e de garantia de renda, auxiliando a prover minimamente as


condições básicas de sobrevivências às famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade e
risco social.
Faz-se necessário frisar também, a importância dos equipamentos públicos e sua
ampliação nos municípios brasileiros ao longo dos 23 anos de implantação do SUAS, na
efetivação dos serviços, programas, projetos e benefícios. A instalação das estruturas que
abrigam o trabalho socioassistencial, oportunizou acesso aos usuários e maior visibilidade da
política de assistência social. O grande gargalo ainda se encontra na falta de estruturas físicas
próprias e adequadas à alocação dos programas, projetos e serviços, levando os municípios a
locarem estruturas que não tem condições suficientes de prestação de serviço de qualidade e
que acolham de forma humanizada os trabalhadores e o público atendido.
De acordo com os dados apresentados ao longo desse trabalho, a assistência social ainda
se apresenta sem identidade própria e submetida ou associada a outras secretarias, além da
inexistência de marcos regulatórios próprios como a Lei Municipal do SUAS. Isto mostra o
quanto a política segue sem uma sintonia uniforme no país, e fugindo ao que rege as legislações
correlatas a ela. Uma das dificuldades apresentadas também, reside no fato de, a assistência
social ter um leque de atribuições ou de subdivisões, que acabam dificultando a sua identidade
e as reais atribuições desta política.

Referências

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161
Administração Política Brasileira e Internacional

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social: uma leitura da entidade


administrativa a partir da obra de Nicos Poulantzas

Felipe Fayer Mansoldo


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Resumo: O presente artigo irá tratar do papel do Banco Nacional de Desenvolvimento


Econômico e Social (BNDES) nas transformações vivenciadas pelo capitalismo brasileiro e
sua íntima relação com os atores econômicos dominantes no atual cenário nacional. A partir
do referencial teórico de Nicos Poulantzas e sua teoria sobre o Estado capitalista pretende-se
identificar na instituição um espaço oficial de baixa abertura às deliberações políticas, que
atua em favor de uma organização do bloco no poder, funcionando como uma espécie de
motor do desenvolvimentismo, considerada uma ideologia fundamental para sedimentar a
crença de que o progresso material geraria automaticamente o bem-estar coletivo. Procura-se
abordar o desenvolvimento histórico do banco, bem como apresentar suas principais
iniciativas no presente, no afã de estabelecer um diálogo entre as formas e opções jurídicas,
econômicas, administrativas e políticas.

1. Introdução

O processo pelo qual uma determinada ciência adquire o status de autônoma muitas
vezes possui o efeito colateral de afastar de seu âmbito certos elementos imprescindíveis à sua
própria compreensão. Gera-se assim um tipo de especialismo e isolamento (GURGEL et. al.,
2012), amparado pela falsa crença de que uma pureza metodológica poderia trazer mais
benefícios à sua aplicação prática.
Esse efeito é comum aos cursos de Administração e Direito, que costumam afastar
determinadas abordagens interdisciplinares em nome de uma valorização de suas próprias
categorias. Quanto à Administração, aponta-se a ausência de um diálogo com a Economia e
um desconhecimento em relação à Política (GURGEL et. al., 2012), como se as escolhas
realizadas nesse campo não pudessem abalar as verdades científicas geradas pelos dois
primeiros.
Com relação ao Direito, se num determinado momento histórico o positivismo
jurídico pretendeu “libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe fossem estranhos”
(KELSEN, 1998)i, atualmente os pós-positivistas procuram encontrar os valores de uma dada
comunidade dentro do sistema jurídico, que se pretende um todo coerente e íntegro
(DWORKIN, 2007).
Essa visão, porém, parte de premissas que tem por base um ideal regulativo e admite
como ponto de partida uma democracia representativa capaz de responder aos anseios de uma
dada comunidade, sendo o Parlamento um órgão que expressaria a soberania popular e o
Executivo o Poder responsável à consecução de medidas “promotoras do bem comum”.
Da mesma forma, as lições introdutórias sobre a teoria do Estado ou do Direito
Administrativo, em geral, não entram no mérito sobre a origem das diversas subdivisões em

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

órgãos e entidades, que se articulam muitas vezes com alto grau de autonomia à
Administração central.
Com isso, perde-se de vista que a estrutura da Administração Pública está
diretamente influenciada pelo contexto histórico-econômico, que se orienta a partir de uma
lógica global de competitividade próprio do modo de produção capitalista. Dessa forma, o
Direito se apresenta – frequentemente – como hermético, o que dá azo a uma formação que
perde de vista as influências político-econômicas que o dão vida.
Dessa maneira, é imprescindível que a Administração, a Economia e o Direito
dialoguem entre si, para que possam ser compreendidos na sua devida dimensão, não
incorrendo em uma fetichização de suas formas por si mesmas.
Nesse contexto, desponta como uma temática de extrema relevância a atuação do
BNDES e o papel desta empresa pública na estrutura administrativa federal, já que
progressivamente tal instituição adquire autonomia e se converte em um ator fundamental no
desenvolvimento do capitalismo brasileiro.
Este artigo tem o propósito de discutir a atuação do Banco, identificado como um
locus de poder a partir da teoria poulantziana de Estado, que procura relacionar o arcabouço
institucional estatal com as relações de produção (que dá origem à estrutura econômica) e,
simultaneamente, com a luta de classes e a dominação política.
Esse referencial teórico foi escolhido porque consegue descrever a articulação
institucional em um Estado capitalista, especialmente as relações entre agentes públicos e
privados, sendo plenamente aplicável ao caso brasileiro. Vale-se da revisão bibliográfica
como metodologia.
Acredita-se que o estudo daquela instituição é exemplificativo para se entender a
forma pela qual em nome da “técnica” se pode afastar a dimensão deliberativa da política de
determinados espaços da Administração Pública, orientando certos aparelhos para a realização
de certas finalidades em detrimento de outras.
Será apresentada uma seção teórica, que procura apresentar as principais conclusões
de Poulantzas acerca do Estado, seguida de uma seção descritiva, que analisa a construção
histórica do BNDES e seu papel na estrutura do governo federal. Após, serão feitas as
considerações finais.

2. O Estado em Nicos Poulantzas

Poulantzas acreditava que uma análise bem sucedida do poder do Estado deveria ser
capaz de responder porque tal instituição possuiria toda a aparência de autonomia em relação
às classes dominantes e, ao mesmo tempo, atuaria como expressão de uma unidade do poder
de classe de tais classes (HARVEY, 2005, p. 79).
Procurava-se assim uma resposta que fosse capaz de abranger as diferentes
formações de Estado capitalista, inclusive apontando a permanência de certos aspectos de tal
modo de produção nas formações estatais ditas socialistas que conhecemos ao longo do
Século XX, como a União Soviética.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Uma teoria, portanto, que fosse capaz de bem explicar as diferenças entre “Estado
democrático-parlamentar” e “Estado de exceção”, assim como as nuances existentes entre as
formações originadas do próprio seio do Estado capitalista de exceção, como o fascismo
espanhol e as ditaduras militares da América Latina em contraposição às formas de Estado
democrático-parlamentares existentes em outros países do Norte da Europa (POULANTZAS,
2000, pp. 126-128).
Influenciado pela filosofia francesa, em diversas fases de seu pensamento (MOTTA,
2010), procurou corrigir certas leituras “economicistas” do marxismo, que reduziriam as
categorias surgidas no âmbito do Estado a um mero reflexo do substrato econômicoii, ou seja,
pura derivação de tais categorias.
Por essa razão, críticos apontaram certo “politicismo” em Poulantzas, que se
defendia afirmando que as funções econômicas decorreriam das relações de produção, sendo
estas o ponto de partida para uma análise do Estado e de sua relação com as classes em
conflito (POULANTZAS, 2000, pp. 50-51).
Luiz Eduardo Motta identifica na obra de Poulantzas influências decisivas de Sartre,
Althusser e Foucault. Em seus primeiros escritos, vivenciou uma fase sartreana, identificada
como existencialista-marxista (MOTTA, p. 3). Num segundo momento, foi fortemente
inspirado por Althusser, especialmente ao escrever Poder Político e Classes Sociais,
utilizando distinções próprias do estruturalismo-marxista, como aparelhos ideológicos e
repressivos do Estado (MOTTA, p. 9). Finalmente, em sua obra de grande destaque, O
Estado, o Poder, o Socialismo, estabeleceu um diálogo com a teoria de poder de Foucault, daí
extraindo o conceito de poder relacional (MOTTA, p. 28).
É a partir dessa noção teórica que Poulantzas pode compreender o Estado capitalista
como uma relação, mais precisamente, como uma “condensação material de uma relação de
uma relação de forças entre classes e frações de classe, tal como ele expressa, de maneira
sempre específica, no seio do Estado” (POULANTZAS, 2000, p. 130)iii.
Procura-se assim evitar os exageros das concepções instrumentalistas (Estado-
Coisa), ao gosto do stalinismo, que acreditavam que a mera tomada de poder pela classe
operária seria suficiente para que o aparato institucional pudesse ser utilizado de outra
maneira e, simultaneamente, corrigir as distorções geradas pela dominante concepção
weberiana (Estado-Sujeito) que vislumbraria na vontade estatal uma autonomia absoluta,
capaz de racionalizar os interesses dispersos da sociedade civil (POULANTZAS, 2000, pp.
131-133).
Dessa forma, trata-se de um verdadeiro campo e processo estratégicos, em que
diversos setores e aparelhos dialogam e conflitam entre si, sendo a política de Estado a
“resultante dessas contradições interestatais” (POULANTZAS, 2000, p. 136). Essa
“autonomia relativa” não significaria uma capacidade institucional de se manter imune aos
interesses das classes, mas sim a resultante dos choques entre frações de classe que se
manifestam no âmbito estatal (POULANTZAS, 2000, p. 138).
Trazendo tais ensinamentos teóricos para a nossa realidade, podemos imaginar os
constantes embates entre Ministério Público (e outras entidades incumbidas de tutelar direitos
difusos e coletivos) e entidades ligadas ao Poder Executivo, responsáveis pelo financiamento
de grandes projetos de infraestrutura em áreas ocupadas por tribos indígenas ou quilombolas.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Podemos também exemplificar com a disputa entre as bancadas ruralista e as


representativas do setor industrial pela aplicação dos recursos gerados com a arrecadação
tributária durante a votação da lei orçamentária anual.
Aponta Poulantzas que a coerência estabelecida ao final do processo de embates é
expressão dos limites estruturais externos e internos impostos ao Estado, o que demonstra “o
caráter ilusório das concepções de um atual capitalismo “organizado”, que consegue superar
suas contradições na perspectiva do Estado” (POULANTZAS, 2000, p. 137).
Portanto, ao se analisar determinado órgão ou entidade estatal não se deve
compreendê-lo como um bloco monolítico, sendo próprio da instituição ser permeável aos
interesses das forças em conflito na sociedade, já que tal premissa é indispensável na
compreensão do Estado capitalista como “relação”. Também não se pode identificá-lo como
o único aparelho responsável por exercer o papel de organização do bloco no poder.
Com esse conceito, Poulantzas procura descrever a coalizão formada por várias
frações de classe burguesas que, eventualmente, dividem espaço com classes dominantes
provenientes de outros modos de produção (casos dos grandes proprietários de terras em
países com grande concentração fundiária) disputando dentro e fora dos aparelhos estatais a
hegemonia entre si (POULANTZAS, 2000, p. 129).
Nos exatos termos da autonomia relativa, propugnada por Poulantzas, é da ossatura
material do Estado capitalista a existência de um espaço institucional de embates estratégicos,
capaz de ao mesmo tempo unificar as diversas frações da classe dominante e permitir que elas
disputem pela hegemonia no seio do bloco no poder.
É certo que tal tarefa não seria bem executada caso não fosse complementada por
ideologias que invadissem os aparelhos de Estado e possibilitassem “declamar a verdade de
seu poder, assumindo os meios de elaboração e formulação das táticas políticas”
(POULANTZAS, 2000, p. 31).
Não há mero mascaramento, mas a consolidação de um saber técnico inacessível às
classes dominadas que a afastam de determinados setores institucionais que se apresentam
como menos infensos à disputa política, já que suas decisões devem ser qualificadas e
“competentes”, do ponto de vista da eficiência econômica.
Desse modo, o termo “político” adquire conotação pejorativa nos discursos de
funcionários e dirigentes dessas agências (KLÜGER, 2015), pois representaria uma ameaça à
pureza tecnicista que, no entender dos mesmos, deve orientar sua atuação.
Nesse sentido, pode-se dizer que, na realidade brasileira, o discurso
desenvolvimentista exerce papel fundamental no plano ideológico, sendo capaz de induzir a
sociedade a naturalizar o amálgama entre a esfera pública e o grande capital monopolista,
crendo que a necessidade sempre contínua de modernização justifica os impactos sociais
gerados pelos empreendimentos de grande magnitude e representaria ganhos significativos
para todos.
Não é por outra razão que acreditamos que, em nosso país, é de grande importância a
compreensão dos aparelhos de Estado que atuam em tributo a essa lógica. Partindo dessa linha
de raciocínio, o BNDES aparece como instituição de relevo, que desperta nossa atenção para
discutir seu papel no contexto da Administração Pública nacional.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

3. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social através dos tempos e sua


contribuição ao desenvolvimentismo

Criado em 1952, como BNDEiv, com a natureza de autarquia vinculada ao Ministério


da Fazendav, a instituição sempre se notabilizou pela tendência a se tornar uma entidade
governamental autônoma (MARTINS, 1991). Com essa expressão, Luciano Martins procura
identificar certos aparelhos estatais que possuem uma tendência a “se destacarem do corpo da
burocracia governamental stricto sensu e para ganharem uma independência relativa”, que as
torna verdadeiros subpolos do poder (MARTINS, 1991, p. 83).
Inicialmente, o banco foi instituído para fornecer crédito de longo prazo para
investimentos de energia e transporte (MUSACCHIO et. al., 2015, pp.108-109). Com o
passar dos anos e a significativa expansão de seus recursos – especialmente a partir de 1965 –
acabou se tornando o grande “demiurgo do empresariado nacional” (MARTINS, 1991, p.
95), isto é, o artífice do capitalismo brasileiro em sua fase pós-industrialização, participando
da quase totalidade dos empreendimentos de grande vulto no país.
Pode-se vislumbrar na origem da instituição uma preocupação norte-americana em
manter um bloco de influência regional, estratégico no contexto do Pós-Segunda Guerra, já
que os Estados Unidos temiam que o avanço socialista pudesse alcançar os países latino-
americanos.
Não é por acaso que o presidente estadunidense Harry Truman procurou estabelecer,
através de discursos oficiais, um padrão de desenvolvimento mundial, capaz de expandir o
progresso para nações subdesenvolvidas, utilizando como referência o modelo tecnológico e
industrial norte-americano (CDDH, 2010, p. 5).
Assim, Truman obteve aprovação no Congresso dos Estados Unidos de um pacote de
US$ 34,5 milhões que previa a formação de comissões e ajuda técnica e econômica para os
países interessados (TAVARES et.al., 2010, p. 17).
O Brasil rapidamente aderiu à ideia e, em 1º de julho de 1951, se instalou em nosso
país a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos (CMBEU), responsável pela idealização do
BNDE. Agências norte-americanas como o Eximbank e o Banco Mundial participaram deste
processo.
No entanto, embora o intento estrangeiro fosse tornar o banco uma entidade
representativa da tecnocracia internacional, imune às ingerências do Chefe do Executivo, o
então presidente Getúlio Vargas conseguiu nomear aliados políticos para a Superintendência
do Banco. Como consequência, os recursos externos minguaram nos primeiros anos da
existência da instituição.
Num primeiro momento, devido à falta de recursos, à instituição coube o papel de
acumular conhecimentos sobre a conjuntura econômica e política. É nesse contexto que
ocorre uma aproximação com os teóricos da CEPALvi, através de um acordo de cooperação
com a agência intergovernamental firmado em 1953. Diretorias posteriores, entretanto,
recolocaram o banco na direção de executor de um dado programa de desenvolvimento
(MARTINS, 2010, p. 86-87).
Em linhas gerais, o desenvolvimento cepalino tinha por base o método estruturalista
latino-americano, que considerava fundamental a análise sócio-histórica, abordagem capaz de

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

explicar a dinâmica econômica dos países subdesenvolvidos. Essa corrente deixou como
legado os conceitos de centro e periferia, desenvolvimento e subdesenvolvimento e sublinhou
a importância do Estado como agente promotor do desenvolvimento (CORRÊA, 2011, p. 95).
Não por acaso, as ideias da CEPAL ganharam forte aceitação em nosso país durante
boa parte do século XX. Segundo Luciano Martins, o Estado se expande de forma peculiar no
Brasil, assumindo o papel simultâneo de regulador da economia e promotor do
desenvolvimento (MARTINS, 1991, p. 83).
Entre as décadas de 50 e 60, o Brasil intensificou sua industrialização, com grande
ênfase no modelo de substituição de importações que, a longo prazo, permitiria a superação
da dependência em relação aos países hegemônicos.
Neste contexto, o desenvolvimentismo foi eleito como uma ideologia de “ruptura
parcial com o presente”, na feliz expressão de Octávio IANNI (2004, p. 98-99), que não
negava o modo de produção capitalista, mas via na modernização levada a cabo pela
industrialização uma forma de reorganização das relações internas e externas em uma dada
sociedade, que permitiria alcançar o bem-estar coletivo através do progresso material.
Há que se ter em conta que todas as correntes que se fundamentam no
desenvolvimento têm em comum a ideologia do progresso como elemento indispensável para
a evolução das sociedades, um caminho inexorável a ser trilhado (CORRÊA, 2011, p. 85).
Com efeito, essa é também uma das críticas que costumeiramente se faz ao pensamento
marxista, considerado determinista no sentido de a evolução das forças produtivas conduzir à
queda da burguesia e ao nascimento de uma sociedade sem classes (DUPAS, 2006, apud
CORRÊA, 2011, p. 36).
Todavia, em diversas passagens da obra de Marx identifica-se o homem como sujeito
de sua própria História, sendo descabido apontar um determinismo. Na verdade, pode-se
relacionar essa ideia-chave da Modernidade com o que Mészaros chamou de imperativo
estrutural do sistema do capital, que o impele à expansão contínua (2001, p. 100).
De todo modo, o ideário desenvolvimentista se faz presente no BNDE, provocando
embates internos entre os partidários de uma concepção cepalina e os que se mantinham fiéis
aos propósitos iniciais da instituição. Com o golpe de 1964, havia certa hostilidade ao Banco
por parte do governo militar, devido à associação da instituição com programas do governo
deposto de João Goulart (MARTINS, 2010, p. 91-92).
Logo essa resistência é vencida, cumprindo o banco um importante papel na
execução dos planos de desenvolvimento do período militar. O banco estende sua atuação a
praticamente todos os setores industriais, chamando atenção o fato da destinação de suas
aplicações reverter-se quase completamente do setor público ao setor privado entre 1963 e
1975vii (MARTINS, 2010, p. 105-106).
É nesse contexto que, durante o período da Ditadura Militar, sob a influência da
concepção que equiparava desenvolvimento à industrialização, o governo federal apoiou
fortemente a expansão de empresas na implantação e consolidação de projetos orientados para
a exportação (CDDH, 2010, p. 24).
Através da lei 5.662/71 o Banco ganha status de empresa pública, o que representou
um incremento de sua capacidade de autogestão. É assim que a instituição se mantém até os
dias atuais, o que é corroborado pelo Decreto nº 4.418/2002, que estabelece seu Estatuto
Social.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A transformação não é meramente simbólica, já que a classificação doutrinária de


Direito Administrativo indica que enquanto a autarquia é pessoa jurídica de direito público e,
portanto, pode titularizar interesses públicos (MELLO, 2008, p.160), a empresa pública é
pessoa jurídica de direito privado, dotada de maior flexibilidade em sua atuação, criada pelo
Governo para exercer atividades gerais de caráter econômico ou, em certas situações, executar
a prestação de serviços públicos (CARVALHO FILHO, 2008, p. 438).
Durante os anos 1980, já como BNDES, tal instituição padeceu com as sucessivas
quedas de arrecadação de tributos, uma de suas principais fontes de recursos, e dedicou-se a
preservar o setor industrial (na impossibilidade de fazê-lo crescer), bem como trabalhar para
acumular reservas em moeda estrangeira e, oficialmente, financiar políticas sociaisviii
(BNDES, 2002).
Posteriormente, nos anos 1990, o banco desempenhou um papel fundamental no
programa nacional de desestatização, especialmente no contexto das privatizações, atuando a
um só tempo como organizador de leilões, financiador dos adquirentes e investidor efetivo
(LAZZARINI, 2011, p. 30).
Mais recentemente, durante os oito anos do governo Lula, o BNDES aprofundou
certo padrão de acumulação do capitalismo brasileiro, que procurava conciliar a maior
participação estatal na economia com os interesses de grandes grupos econômicos, atuando a
instituição em consonância com os objetivos do capital monopolista (TAUTZ et. al., 2010).
Hoje a instituição é acionária de grandes conglomerados econômicos nacionais,
possuindo representatividade no Conselho de Administração dessas companhias.
Nos termos de seu Estatuto Social, o Banco é descrito como “o principal instrumento
de execução da política de investimento do Governo Federal” e seu objetivo primordial seria
“apoiar programas, projetos, obras e serviços que se relacionem com o desenvolvimento
econômico e social do país” (BRASIL, 2002, art. 3º).
Todavia, se nominalmente o conceito de desenvolvimento possui abertura semântica
que permitiria uma deliberação política acerca dos rumos da instituição sua prática demonstra
que os beneficiários preferenciais do crédito do Banco tem sido os grandes grupos
econômicos, o que é significativo tendo em vista que em 2011 a instituição foi responsável
por 20% de todo o crédito disponibilizado no país, auxiliando os grandes empreendimentos
brasileiros a se consolidar no cenário internacional (PINTO, 2012, p. 12).
Todavia, não tem auxiliado a cumprir objetivos constitucionalmente definidos como
“fundamentais” de nossa República, tal como a redução das desigualdades sociais e regionais
(BRASIL, 1988, art. 3º). A esse respeito, vale citar estudo de João Roberto Lopes Pinto:
Segundo as estatísticas operacionais do BNDES, nos últimos dez anos, os
desembolsos se concentraram, em média, 75% em empresas de grande porte e 55%
na região Sudeste. No caso do porte das empresas, verifica-se, a partir de 2010, uma
tendência de elevação dos desembolsos para as micro e pequenas empresas, mas que
permanecem abaixo dos 20% do total desembolsado no período. Sobre a distribuição
regional, verifica-se uma elevação importante, a partir de 2009, dos desembolsos
para a região Nordeste, mas sem, contudo, alterar o perfil desigual da distribuição
regional, em 2010, o valor dos desembolsos para o Sudeste foi de mais de cinco
vezes o valor destinado para o Nordeste (ESTATÌSTICAS, 2012).

A presença do BNDES no setor de micro e pequenas empresas é ainda menor se


considerarmos que o Banco classifica como microempresas empreendimentos com
faturamento anual de até R$ 2,4 milhões e pequena empresa com até R$ 16 milhões,

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

um valor dez vezes maior do que o que estabelece o Estatuto da Microempresa, R$


244 mil e R$ 1,2 milhão, respectivamente. Estes dados revelam, de um lado, o
reforço da desigualdade regional e, de outro, o insuficiente apoio aos setores mais
geradores de empregos. (PINTO, 2012)

Ainda que o patamar estabelecido legalmente pelo Estatuto da Microempresa tenha


saltado para R$ 360 mil no caso das microempresas e R$ 3,6 milhões no caso das empresas de
pequeno porte por ocasião da Lei Complementar nº 139/2011, tal não desnatura as conclusões
do estudo.
O Banco é alvo de diversas críticas por parte de organizações da sociedade civil com
relação à baixa participação popular na elaboração de documentos oficiais, como o que
estabelece sua Política Socioambiental (PINTO, 2012, p. 96).
Entretanto, as transformações em sua atuação e consequente adoção de critérios e
salvaguardas sociais e ambientais em suas condições de financiamento só costumam ocorrer
em resposta “a outras instâncias do próprio governo federal, ou de agentes do mercado
externo” (PINTO, 2012, p. 103).
Dessa forma, é necessária a intermediação de um órgão de controle, como o Tribunal
de Contas da União, a – recentemente extinta – Controladoria Geral da União ou o Ministério
Público Federal para que a instituição se abra a discutir suas políticas, havendo uma
hipervalorização da promoção do desenvolvimento econômico em relação ao
desenvolvimento social, justificado através do tecnicismo que procura afastar a sociedade
civil de certos espaços administrativos.

4 Considerações Finais

Segundo Poulantzas, o Estado é uma unidade política cuja finalidade é organizar o


bloco no poder, formado por uma coalizão conflituosa entre as frações de classes dominantes
e desorganizar-dividir as classes dominadas (2000, p. 143).
Considera-se o BNDES como uma instituição fundamental para tal organização,
visto que a maior parte de seus desembolsos tem beneficiado o capital monopolista,
representado pelos grandes grupos econômicos.
Entretanto, a ambiguidade verificada pela disponibilização de créditos aos pequenos
empresários poderia ser explicada através de uma visão poulantziana pelo fato de a
hegemonia ser assegurada e reproduzida pelos aparelhos de Estado muitas vezes através de
compromissos provisórios impostos ao bloco no poder em favor de certas classes dominadas
(POULANTZAS, 2000, p. 144). Há que se levar em consideração serem de diminuta
representatividade, tendo em vista o montante total dos desembolsos.
Dessa forma, se a atuação do banco é objeto de intensos questionamentos no âmbito
da sociedade civil, sua atuação prática só costuma se transformar efetivamente quando entra
em choque com outras organizações estatais.

Referências Bibliográficas

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para o Desenvolvimento, 2010.

i
Kelsen compreendia a ordem jurídico-normativa como um grande sistema de normas dotadas de
compreendendo a ordem jurídica como um conjunto de normas coercitivas que teriam sua validade derivada de
outras normas, sendo que todo o complexo retiraria validade de uma “norma fundamental”, abstrata, destituída
de conteúdo.
ii
Compreendido este como as relações de circulação e trocas mercantis.
iii
É certo que, ao contrário de Foucault, acreditava na possibilidade de subversão do poder, sendo este exercido
sempre por um fundamento preciso, como a exploração da mais-valia no capitalismo (POULANTZAS, 2000, p.
151).

172
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

iv
O “S” de “social” só seria acrescido bem mais tarde, em 1982, como forma de “satisfação à opinião pública”,
na crítica avaliação de Conceição TAVARES et. al. (2010).
v
Atualmente, o Decreto-Lei nº 200/67 indica que a autarquia é uma figura administrativa dotada de relativa
capacidade de gestão, sendo dotada de personalidade jurídica e patrimônio próprios.
vi
Comissão Econômica para a América Latina, criada em 1948 por iniciativa do Conselho Econômico e Social
vinculado à Organização das Nações Unidas. Órgão técnico responsável por desenvolver estratégias de
desenvolvimento econômico regional no contexto do Pós-Guerra. Desde 1984, uma resolução passou a
denomina-lo por “Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe”.
vii
Quadro esquemático apresentado por Luciano MARTINS (2010, p. 106) demonstra que o volume de recursos
totais em colaborações aprovadas em moeda nacional e em prestações de aval aumentou significativamente em
ambos os setores. Entretanto, enquanto em 1963 as colaborações aprovadas para o setor público representavam
90,95% do total contra 9,05% do setor privado, em 1975 esse percentual havia se invertido para 22,67% e
77,33%, respectivamente. Por sua vez, as prestações de aval eram concedidas na proporção de 81,4% para o
setor público e 18,6% para o setor privado em 1963 e passaram a representar, respectivamente, 57,95% e 42,05%
em 1973.
viii
Vide obra comemorativa aos 50 anos da instituição, lançada em setembro de 2002, citada nas referências
bibliográficas.

173
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Mecanismos Institucionais de Participação Social e Barreiras Estruturais: o caso do


Equador

Agatha Justen
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e EBAPE (FGV)

Claudio Gurgel
Universidade Federal Fluminense (UFF)

Resumo
A administração política dos Estados latino-americanos conta hoje com o exemplo de países
onde se tentam transformações pelo empoderamento do cidadão por via constitucional e
institucional. O Equador é um exemplo disso pelo que anuncia como uma revolución
ciudadana. Seu processo chama atenção pela série de mecanismos de participação social
construídos, a partir da Constituição de 2008. O objetivo deste trabalho é expor a proposta
revolucionária em curso no Equador e examiná-la em face do modo de produção capitalista,
que com ela convive naquele país. Indagamos sobre o que se pode ter como expectativa e como
avanços nessa experiência. Para isto, mobilizamos a bibliografia sobre o Equador recente e os
documentos constitucionais e institucionais que definem o processo, além dos sites que
integram os mecanismos de participação e controle social adotados.

1. Introdução

A América Latina desde os anos 1980 vive uma alternada movimentação política e
social em torno da democracia e mais precisamente da democracia participativa. O Brasil, em
1988, no esgotamento de uma longa ditadura civil-militar, pode ser referido como um ponto de
partida, com sua Constituição Federal, que se tornou famosa pela qualificação de Constituição
Cidadã, muito envaidecedora do seu principal líder, o então deputado federal e presidente da
Constituinte, Ulisses Guimarães.
Daquela data em diante, outros movimentos se sucederam e grande quantidade de
emendas, principalmente a partir dos anos 1990, foram destorcendo a Constituição Cidadã, não
tanto em relação às propostas de ampliação da democracia, mas em relação a outros pontos,
principalmente econômicos, que no final repercutiram também sobre a cidadania e a
participação popular.
De todo modo, o fenômeno dos anos 1980 que se deu no Brasil foi também
acompanhado por outros países latino-americanos, com destaque para a Venezuela, a Bolívia e
o Equador.
Passou-se a falar de um novo constitucionalismo latino-americano (VIEIRA, 2009)
marcado especialmente pelo esforço criativo dos novos governos, saídos da luta contra o
neoliberalismo e especialmente inspirados por um igualmente novo socialismo, que o
presidente Hugo Chavez denominou de socialismo do século XXI, alcançado pelo que chamou
de revolução bolivariana.
O socialismo bolivariano, a cidadania e o novo constitucionalismo latino-americano se
distanciam do socialismo revolucionário e até do marxismo, não querendo dizer que se trata de
um antagonismo, mas certamente de uma diferença.
O fundamental dessa diferença se encontra na convivência relativamente pacífica do
capitalismo com aquilo que se chama de revolución ciudadana, para usar a expressão que ocupa
as publicações oficiais e os cartazes e bunners encontrados nas ruas do Equador.

174
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Por isto mesmo, tomamos esse país como a referência do artigo em tela. É ele que se
anuncia de modo explícito como uma revolução, ainda que realizada pela e com a cidadania.
A diferença implicitamente tem três aspectos muito relevantes: destaca o cidadão e não
o proletariado como sujeito revolucionário, neste sentido, diluindo as classes no conceito de
cidadania; empresta ao Estado um papel muito relevante na promoção da revolução e
finalmente troca o antagonismo entre capitalistas e classe operária pelo conflito Estado x
Sociedade, atribuindo ao cidadão a tarefa superior de participar das decisões e controlar o poder
público e a “classe política”.
Para os marxistas, ou melhor, para Marx e Engels, o Estado ou “ o governo moderno
não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa” (MARX e
ENGELS, 1982, p. 23 ), “a sociedade divide-se cada vez mais em dois vastos campos opostos,
em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado” (IDEM, p. 22),
“a história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de
classes” (IDEM, p. 21) e a população, a sociedade no conceito vulgar corrente, é um genérico
sem muito significado político – “é uma abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes
das quais é constituída”(MARX, 2011, p. 54), razão por que a cidadania também não diz dos
verdadeiros e decisivos choques e antagonismos que fazem a história.
Nosso objetivo é examinar o quanto podemos considerar a experiência equatoriana em
face desses conceitos e, em desdobramento, obter um significado concreto da revolución
ciudadana e dos demais processos em andamento sob a inspiração e o título de revolução do
século XXI.
Para isto, consultamos a bibliografia sobre a história político-econômica recente do
Equador, acessamos documentos relacionados com as mudanças constitucionais e
institucionais, consultamos os sites do governo, especialmente aqueles relacionados com a
participação e o controle sociais, e voltamos à bibliografia e outros meios que nos permitissem
compreender o momento presente do país e sua pretendida revolução.

2. Crise do neoliberalismo e revolución ciudadana

No início dos anos 1980, o Equador, como os demais países latino-americanos, entrou
em profunda recessão. Em 1984, a direita agrupada na Frente de Reconstrucción Nacional,
ganhou as eleições e iniciou as reformas neoliberais. As privatizações, a redução do Estado, as
duras medidas de ajuste fiscal, a desregulamentação das leis trabalhistas e previdenciárias, a
abertura econômica, medidas bastante conhecidas, não conseguiram resolver a crise do capital
e, por outro lado, causaram o aprofundamento da crise social.
A elevação vertiginosa do desemprego, da desigualdade e da pobreza fez com que os
fluxos migratório e emigratório fossem intensos. Como efeito, as mobilizações populares,
sobretudo organizadas pela Frente Unitária de Trabalhadores (FUT), por entidades estudantis e
pelo movimento Alfaro Vive!, começaram a se intensificar pelo país (ARAÚJO, 2013). No
entanto, com o avanço do programa neoliberal, “entidades sindicais tradicionalistas, como a
FUT, foram suplantadas, sobretudo, por organizações indígenas e camponesas” (IDEM, p. 55).
Isso, que, como veremos adiante, também ocorreu na Bolívia, foi resultado do desemprego
expressivo promovido no setor industrial, que levou as pessoas a buscarem no campo uma
alternativa de sobrevivência.
Assim, a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), fundada
em 1986, passou a ser uma entidade crucial no cenário político do país.
A crise econômica e política se estendeu e entrou no século XXI, sendo marcada, pelas
precárias condições de vida da população, pelos negativos resultados econômicos, pelas
constantes mobilizações populares nas ruas e por sucessivas deposições de presidentes da
república. De 1996 a 2006, cinco mandatários foram depostos. Durante esse período, as ruas

175
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

foram tomadas pelos indígenas, pelos trabalhadores, pela classe média e por estudantes. Mesmo
imersos em tamanha tensão, as medidas adotadas pelos grupos no poder para conter os
resultados econômicos negativos, continuou fundamentalmente neoliberal.
Em 2006, foi criado O Movimiento Alianza PAIS – Patria Altiva y Soberana (AP). Suas
lideranças, diferente dos demais casos, não provinham dos movimentos sociais tradicionais. A
Alianza País de formou a partir de um grupo de tecnocratas, sob a liderança de Rafael Correa,
que se organizou para auditar a dívida do país. Como esse grupo rapidamente se destacou na
arena política nacional, diversos partidos de esquerda, inclusive indigenistas, uniram-se a ele
nas eleições que ocorrem nesse mesmo ano de 2006. A Alianza Pais trazia consigo os principais
anseios e reivindicações da população que ocupou as ruas nesses 10 anos que antecederam a
chegada de Correa ao poder. Ela se apresentou como um movimento de esquerda, cujas
bandeiras giravam em torno do anti-neoliberalismo, da ética na política, autonomia nacional,
inserção dos cidadãos nas esferas de decisão, dentre outros pontos que faziam parte de uma
agenda positiva progressista compartilhada pela esquerda latino-americana.
Embora o Alianza País tenha sido o reflexo dos profundos conflitos sociais e políticos
que se verificaram por, no mínimo, 10 anos, é necessário qualificar esse movimento das ruas.
Como observa Pereira da Silva (2015, p. 174), “o momento de ascensão de Correa coincide
com o enfraquecimento de uma alternativa hegemônica calcada em movimentos sociais”, algo
que não é estranho ao contexto geral de enfraquecimento dos projetos coleticos promovidos
pelo fim do bloco soviético e pela bem sucedida emergência do neoliberalismo enquanto projeto
de sociedade. Dessa forma, com a debilidade dos partidos revolucionários, dos sindicatos e dos
movimentos sociais históricos, as ruas foram ocupadas por movimentos de caráter difuso, sendo
eles próprios e suas pautas fragmentadas. Assim, “o “movimento cidadão” liderado por Correa
assume características de uma representatividade social calcada originalmente em camadas
médias”. Ainda que se encontre, no corpo político que se conformou no entorno da Alianza
País, setores oriundos de diversas correntes de esquerda, o que se vê são “cidadãos
independentes e de organizações e ONGs que lutavam por ética na política e contra a
“partidocracia” e o neoliberalismo” (IDEM, p. 170).
Isso se conecta com o que foi a campanha eleitoral da AP, em 2006. Segundo De La
Torre (2010, p. 158), “su estrategia fue arremeter en contra de los partidos políticos,
presentando la contienda como una lucha ética y sin cuartel entre la partidocracia, que el pintó
como la fuente de todos los males, y la ciudadanía encarnada en su persona”.
Mesmo com resultados eleitorais bastante favoráveis, Correa cedo começou a perder o
apoio dos setores mais à esquerda, muitos dos quais romperam com o Alianza País (RAMÍREZ
GALLEGOS e STOESSEL, 2015). Já em meados do primeiro mandato, “el Gobierno ha
entrado en confrontación con varios sectores organizados de la sociedad como son los
maestros, los sindicatos públicos, el movimiento indígena sobre todo la Confederación de
Nacionalidades Indígenas del Ecuador (CONAIE) y sectores del ecologismo” (DE LA TORRE,
2010, p. 162).
Isso se deve, em grande medida, à manutenção de um discurso apolítico e tecnocrático
por parte de Correa, que se desdobra em uma percepção de que o Estado é a representação
institucionalizada da sociedade e que o governo é o defensor de interesses universais, como se
estes existissem. Como consequência, em seus discursos, Correa ataca os movimentos sociais
organizados, acusando-os de ocuparem o aparelho do Estado para defenderem interesses
particularistas em detrimento dos interesses comuns da nação. Para ilustrar essa dimensão
tecnocrática, em seu discurso de posse, em 2009, após a vitória no referendo, o mandatário afirma
que seu papel à frente do Estado é promover a “planificación, organización sectorial y regional,
adecuados modelos de gestión, racionalidad administrativa, rescate de las empresas públicas”
(Discurso de 10/08/2009, citado por De la Torre, 2010, p. 162). Em discurso anterior, Correa
afirmou que, após derrotar as “oligarquias antipátria”, o maior perigo passava a ser o

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

“esquerdismo, o ecologismo e o indigenismo infantil”: “sempre dissemos que o maior perigo


para nosso projeto político, uma vez derrotada sucessivamente nas urnas a direita política, era
o esquerdismo, ecologismo e indigenismo infantil. Que lástima que não nos equivocamos!”
(Discurso de 19/01/2009, citado por Pereira da Silva, 2015, p. 172).
Isso nos ajuda a compreender o caráter do processo em marcha no Equador. Os conflitos
com os movimentos sociais os mais variados são explícitos e sustentados abertamente pelo
presidente da república. Embora Correa seja uma peça de grande importância, os processos
sócio-políticos que promovem mudanças qualitativas não dependem apenas dessa autoridade.
As relações sociais concretas, que se verificam na estrutura e nas superestruturas são, essas sim,
fundamentais nos processos transformadores.
Logo que chegou ao poder, Rafael Correa convocou uma consulta popular sobre a
Constituinte e, com resultado favorável, iniciou o processo de implantação de seu programa.
Essa nova Constituição, de 2008, estabelece mudanças importantes no país e amplia os sistemas
de participação e fiscalização social, dentre outras iniciativas.
Paralelamente, o governo determinou a moratória técnica da dívida pública. Como se
tomou conhecimento na ocasião, “em junho de 2009, os jornais de todo o mundo anunciariam
o “sucesso total” obtido pelo Equador ao readquirir 91% de sua dívida externa em papéis
soberanos. Conforme a ministra de Finanças, María Elsa Viteri, revelou à época, o valor de
recompra girou em torno de US$ 2,9 bilhões, cifra que significou uma economia de US$ 7,5
bilhões aos cofres públicos” (OPERA MUNDI, 01/08/2011).
Com o orçamento público liberado de grande parte dos compromissos da dívida, Correa
pôde investir, como prometera, nas políticas sociais e passou a comandar o que chamou de
socialismo do século XXI, cuja inspiração se pode encontrar em Hugo Chávez, certamente.
Denominando seu projeto político de revolução cidadã, Correa empreende hoje um
amplo processo de mudanças, onde a Constituição e as leis suplementares anunciam a
participação popular na gestão do Estado e um papel protagonista do povo indígena como os
grandes diferenciais de seu governo e da projeção futura do Equador.
A revolução cidadã, dístico que ocupa bastante espaço visual nas ruas de Quito, tem seu
ponto de partida no Alianza País, porém do ponto de vista formal abre caminho pela
Constituição de 2008.
Essa Constituição é parte de um processo interno ao desenvolvimento histórico do
Equador, mas também é parte de todo o sub-continente latino-americano. É isso o que diz
Acosta, primeiro presidente da Assembleia Nacional Constituinte, quando comenta que a
Constituição de 2008 é “impensable sin el acumulado histórico de las luchas de los pueblos de
América Latina” (ACOSTA, 2009, p. 179).
Nela se encontra aquilo que Pablo Andrade (2007) e Ramiro Santamaría (2011)
consideram um modelo ‘igualitário-distribuidor’: “una posición igualitária apoya la idea de
que la voluntad ciudadana deve tener un amplio espacio em las instituiciones que governa la
vida política” (ANDRADE, 2007, p. 12). A este aspecto relacionado diretamente com o novo
conceito de cidadania, que não se encerra em direitos individuais (MARSHAL, 1950) , mas se
estende a “los membros de la sociedad (colectiva e individualmente)” (ANDRADE, IDEM.),
se agrega a diminuição das desigualdades materiais porque “un modelo igualitarista no podria
existir sin serias y comprometidas políticas de distribución” (SANTAMARÍA, 2011, p. 96).
A Constituição, a partir do seu Artigo 1º, apresenta-se aos equatorianos com uma
definição do Estado que contempla o que há de mais contemporâneo e que Santamaría (2011),
na acepção de Boaventura de Sousa Santos, chama de pós-moderna: “Art. 1.- El Ecuador es un
Estado constitucional de derechos y justicia, social, democrático, soberano, independiente,
unitario, intercultural, plurinacional y laico. Se organiza en forma de república y se gobierna
de manera descentralizada” (ECUADOR, 2008).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Significa dizer que direitos e justiça, cobertura social e democracia fazem parte de seu
ideário, nesse sentido não se distinguindo do básico das Constituições Federais dos chamados
Estados democráticos de direito. Mas também se compromete com a plurinacionalidade e a
descentralização, o que a inscreve no neoconstitucionalismo latino-americano.
Em particular no que tange à descentralização, onde se coloca a questão da participação
cidadã, vamos encontrar várias passagens que desdobram essa afirmação de democracia direta.
Todo um Título, o Título IV – Participación y organización del Poder, é dedicado a
uma acepção de descentralização voltada para o cidadão e suas possibilidades de exercício do
poder político. Não se trata do poder político que o liberalismo convencionou, nos limites de
votar e ser votado, mas o poder político conferido pela democracia direta e combinações com
a representativa. De início, no Artigo 95, lê-se que

Art. 95 - Las ciudadanas y ciudadanos, en forma individual y colectiva, participarán de


manera protagónica en la toma de decisiones, planificación y gestión de los asuntos
públicos, y en el control popular de las instituciones del Estado y la sociedad, y de sus
representantes, en un proceso permanente de construcción del poder ciudadano. La
participación se orientará por los principios de igualdad, autonomía, deliberación
pública, respeto a la diferencia, control popular, solidaridad e interculturalidad.

Reafirmando e explicitando um tanto mais, ainda no mesmo artigo, se diz que “la
participación de la ciudadanía en todos los asuntos de interés público es un derecho, que se
ejercerá a través de los mecanismos de la democracia representativa, directa y comunitaria”
(Art. 96).
O artigo constitucional continua, agora definindo a extensão dessa participação:

Se reconocen todas las formas de organización de la sociedad, como expresión de la


soberanía popular para desarrollar procesos de autodeterminación e incidir en las
decisiones y políticas públicas y en el control social de todos los niveles de gobierno,
así como de las entidades públicas y de las privadas que presten servicios públicos. Las
organizaciones podrán articularse en diferentes niveles para fortalecer el poder
ciudadano y sus formas de expresión; deberán garantizar la democracia interna, la
alternabilidad de sus dirigentes y la rendición de cuentas.

A amplitude dessa organização da sociedade, para o exercício da participação, vai se


materializar em diferentes frentes de ação expressas de modo explícito na terceira seção do
Título Participación y organización del Poder. Especialmente no Artigo 100 da Constituição,
onde se lê que “en todos los niveles de gobierno se conformarán instancias de participación
representantes de la sociedad del ámbito territorial de cada nivel de gobierno, que funcionarán
regidas por principios democráticos”.
As instâncias de participação a que se refere o artigo são definidas como “audiencias
públicas, veedurías, asambleas, cabildos populares, consejos consultivos, observatorios y las
demás instancias que promueva la ciudadanía”.
Segundo o artigo em tela, estas instâncias se destinam a
1. Elaborar planes y políticas nacionales, locales y sectoriales entre los gobiernos y la
ciudadanía.
Trata-se de partir de um ponto anterior ao controle da execução. Ao se falar de
elaboração de planos e políticas, no contexto do Artigo 100, se está dizendo que governo e
sociedade vão, naqueles espaços definidos, em particular nos espaços mais aptos para isso,
compor a agenda, identificar alternativas e decidir qual alternativa melhor se presta ao objetivo
do plano ou da política.
2. Mejorar la calidad de la inversión pública y definir agendas de desarrollo.

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Quanto aos investimento, Estado e sociedade, mais uma vez, estariam em instâncias
comuns e em momentos iguais fazendo escolhas de onde, em que e como investir, porque
melhorar a qualidade da inversão pública inclui saber quais os espaços urbanos ou interesses de
classe e segmentos serão considerados como os mais merecedores do investimento porque
maior qualidade de vida será proporcionada a todos.
3. Elaborar presupuestos participativos de los gobiernos.
Aqui o que se coloca à negociação é o orçamento governamental, destacando-se um
aspecto – a alocação de verbas públicas – que em outros países já vinha sendo trabalhada sob o
título de orçamento participativo. No Brasil, como tivemos ocasião de ver, o orçamento
participativo foi apresentado como um processo de participação cidadã importante, apesar dos
seus limites. No contexto da Constituição equatoriana, principalmente considerando o Artigo
100, elaborar orçamentos participativos dos governos é um desdobramento dos dois itens
anteriores, dado que não seria concreto pensar em elaborar planos e políticas, além de melhorar
a qualidade da inversão pública, sem igualmente oferecer à participação a feitura do orçamento.
4. Fortalecer la democracia con mecanismos permanentes de transparencia, rendición
de cuentas y control social.
Esse compromisso constitucional é que dará origem a leis complementares que criam
mecanismos de informação ao cidadão, meios de prestação de contas à sociedade, por parte dos
governantes e, em contrapartida, canais de manifestação da sociedade acerca dos resultados
apresentados pelo Estado.
5. Promover la formación ciudadana e impulsar procesos de comunicación.
A Constituição se preocupou com a formação para a participação que inclui, ademais
das informações básicas, o saber como chegar às informações e ao conhecimento, além da
mudança de concepção sobre o papel do indivíduo, nesse novo contexto participativo, seja
como um ser atomizado, seja como um ser integrante de instrumentos representativos de
categorias do trabalho e da sociedade, lato sensu. Inclui-se, nessa formação, o reconhecimento
do valor da representação coletiva e o incentivo à superação da condição atomizada, típica da
pós-modernidade.
Comentaremos mais abaixo os diferentes meios criados para o cumprimento desse
compromisso constitucional, naquilo que se pode definir como uma especialmente criativa
produção de meios, mecanismos e instituições. Por essa razão, em certos casos como a Silla
Vacia e a Veeduria, desceremos a maiores detalhes, para uma melhor compreensão do que
realmente se propõe e como funciona. São formas originais da estrutura normativa do controle
social equatoriano que não encontram paralelo em nossa experiência mais próxima.
Um “Guía Referencial para el Ejercicio de Rendición de Cuentas” foi publicado em
2011 com o objetivo de orientar tanto os governos, de todos os níveis, como os cidadãos sobre
o que são os meios de controle social, em particular para se exercer a prestação de contas, o
accountability. Na apresentação desse guia lê-se que

En el Ecuador, la plena participación de la ciudadanía es una de las estrategias centrales


para la profundización democrática y un elemento trascendental en la lucha contra la
corrupción. En este contexto, el Consejo de Participación Ciudadana y Control Social
(CPCCS) pone a su consideración la presente “Guía Referencial para el Ejercicio de
Rendición de Cuentas”, como una herramienta para facilitar los procesos de Rendición
de Cuentas, mejorar la interrelación entre las instituciones públicas y la ciudadanía, y
promover la transparencia de la gestión de lo público. […] El presente documento tiene
como objetivo proporcionar a los gobiernos autónomos descentralizados y a las
instituciones del régimen dependiente mecanismos básicos para organizar procesos
participativos de Rendición de Cuentas (ECUADOR, 2011, p. 11).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

É no site do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social (CPCCS) que se pode


saber o significado estratégico desse órgão. Ali se diz que o principal objetivo do CPCCS é
promover a participação e o controle social do público, a luta contra a corrupção, a promoção
da transparência e organizar os processos de designação das autoridades públicas. De janeiro
de 2009 a setembro de 2010, um Conselho transitório se dedicou a dois pontos: “1. Preparar
el proyecto de Ley Orgánica para determinar su organización y funcionamiento y 2.
Reglamentar las Comisiones Ciudadanas de Selección de autoridades, así como establecer
las normativas correspondientes a cada concurso” (www.cpccs.gob.ec).

3. Iniciativa e inovação no campo da representação social

Um conjunto amplo e complexo de participação e controle social foi criado, como


dissemos, para cobrir as diversas dimensões da inserção do público na gestão do Estado. São
as instancias de participación que constituem o sistema de participación ciudadana. Em todos
os níveis de governo, do central ao municipal, deve funcionar o sistema de participação.
Asambleas Ciudadanas, Audiencia Pública, Cabildos Populares, Comisiones Ciudadanas de
Selección de autoridades, Comitês de Usuárias y Usuários, Presupuesto Participativo,
Rendición de Cuentas, Silla Vacía e Veeduría Ciudadana são as instituições, no sentido
orgânico e normativo, que formam o sistema.
As Asambleas Ciudadanas são espaços em que as pessoas se organizam para travar com
as autoridades públicas os debates e as negociações destinadas a atender as suas necessidades
e interesses. Essas assembleias têm como encargo garantir a qualidade das decisões no trato dos
assuntos públicos.
Audiencia Pública é um mecanismo mais conhecido pela sua adoção em diversos países,
dentre eles o Brasil. Consiste em um procedimento, convocado pelas autoridades ou suscitado
pelos próprios cidadãos, através, por exemplo da Asamblea, que enseja a exposição e o debate
presencial em torno de um projeto de lei, um plano ou uma proposição que se está elaborando
em qualquer órgão dos poderes.
Cabildos Populares constituem um mecanismo de participação que se organiza em um
município e que realiza sessões públicas. Sua convocação é destinada a todos os cidadãos e os
assuntos tratados dizem respeito à gestão municipal.
As Comisiones Ciudadanas de Selección de autoridades são uma figura singular,
porque não foi generalizada pela América Latina, como outras formas já referidas. Consiste no
método participativo de escolha de importantes autoridades públicas no Equador. Elas são
encarregadas de realizar concursos de méritos e provas com elevado padrão de transparência.
Essas comissões são formadas por 5 membros designados pelo Estado e 5 representantes da
cidadania, identificados aleatoriamente, por sorteio entre os que se candidatam a compor a
comissão, condicionada essa candidatura a certos requisitos que incluem um histórico
condizente. Preside as comissões um dos representantes da cidadania que, além do seu voto
ordinário, tem também voto de Minerva. As comissões de seleção são organizadas pelo CPCC,
o qual realiza uma chamada pública a que podem comparecer cidadãos comuns ou que
representam organizações da sociedade civil. Os candidatos a participarem de uma comissão,
por exemplo, para escolher um titular de cartório ou um dirigente de um porto, serão sorteados,
como já comentado, mas também terão seus nomes dados a público para eventuais contestações.
Podem ser funcionários públicos ou trabalhadores de empresas privadas, que serão liberados
para efeito de suas funções na comissão, uma vez escolhidos. Os candidatos ao posto objeto do
concurso serão escolhidos pela comissão e a lista de classificados será entregue ao CPCC.
Obrigatoriamente, este último indicará o primeiro colocado para nomeação pela autoridade
correspondente, em qualquer nível de governo. Um Reglamento de Comisiones Ciudadanas de

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Seleccion foi instituído por resolução do Consejo de Participación Ciudadana, conforme o


Registro Oficial Suplemento 247 de 30 de julho de 2010.
Os Comités de Usuárias y Usuários são organizações da sociedade civil, geralmente
comunitárias, grupos de cidadãos, que se articulam para exercer controle sobre serviços
públicos oferecidos em sua região de moradia. Têm analogia com nossas associações de
moradores, porém contam com a formalização e o reconhecimento públicos, se assemelhando
bastante às Juntas de Vecinos, que se difundiram na Bolívia, como teremos oportunidade de
conhecer quando tratarmos da experiência boliviana. Esses Comitês vigiam e avaliam o
trabalho dos funcionários públicos e assim acabam por influenciar seus comportamentos e suas
decisões. Também faz parte de suas preocupações e direitos a iniciativa de propor melhorias ao
trabalho prestado pelos órgãos acompanhados. Tanto quanto as Comisiones Ciudadanas de
Selección, também os Comités de Usuárias y Usuários tem um regulamento, além de referência
na Lei Orgânica de Participação Cidadã, o que lhes empresta um caráter absolutamente oficial.
O Presupuesto Participativo, como dissemos, é análogo ao Orçamento Participativo
conhecido no Brasil. Diferentemente do modelo de nosso país, esse é mais um mecanismo
constitucional de participação. Significa dizer que se coloca de modo institucional em plano
nacional, e não apenas municipal e estadual, como no caso brasileiro. Seja pela participação
individual, seja pela participação de organismos da sociedade civil, o público participa da
tomada de decisão que se expressará no orçamento público. Inclui as priorizações de
investimento e custeio, consignação de verbas, destinação de recursos e a própria avaliação da
execução orçamentária e dos resultados obtidos. Cabe dizer que, no caso do Equador, o
Presupuesto Participativo não se refere apenas aos orçamentos gerais, mas também aos
orçamentos dos órgãos e instituições públicos.
A Rendición de Cuentas, é uma prática regulamentada pelo Guía Referencial para el
Ejercicio de Rendición de Cuentas. Ali se pode observar um processo a que estão subordinados
todos quanto exerçam funções públicas, tomem decisões e ordenem despesas. Nesse processo,
as autoridades estão obrigadas a informar aos cidadãos sobre suas decisões e receber avaliações
e propostas. Há alguma semelhança com os sites que alguns órgãos públicos no Brasil usam
para cumprir com as determinações da Lei de Acesso à Informação. Assim como a nossa lei de
acesso, a Rendición de Cuentas tem como propósito submeter a gestão pública à avaliação e
fiscalização públicas, pretendendo coibir a corrupção e melhorar a administração.
A Silla Vacia é mais uma iniciativa própria da denominada Revolução Cidadã
equatoriana. É ao mesmo tempo um simbolismo e uma medida objetiva, dado que significa um
espaço de fato vazio nas reuniões das instituições estatais e que deve ser preenchido por uma
representação dos populares. Nas sessões dos governos haverá sempre a disponibilidade de uma
representação com direito a voz e voto. Segundo a Lei Orgânica de Participação Cidadã, em
seu Artigo 77, a escolha dos representantes que ocuparão a cadeira vazia se dará conforme um
regulamento, “uma ordenança”, definido pelo governo de cada nível de poder. Essa cadeira
deverá ter unidade em suas posições, caso contrário perderá o direito ao voto. Todos os
mecanismos de participação – Asssembleias, Cabildos, Audiências Públicas – têm Silla Vacía.
No regulamento para o funcionamento da Silla Vacía, do governo municipal de Riobamba, que
tomamos como exemplo, lê-se:

Art. 4.- Objetivos […]: a) Establecer las formas y procedimientos con que la ciudadanía
puede hacer uso de la Silla Vacía; […] c) Fijar los criterios generales con que se
seleccionarán a los ciudadanos y ciudadanas que formen parte de las instancias y
espacios de participación establecidos por esta ordenanza, garantizando el respecto a la
integridad personal, institucional, y a los bienes jurídicos, procurando igualdad de
oportunidades; Garantizar el acceso de la ciudadanía a la información necesaria para ser
parte activa de todo el proceso de construcción de políticas públicas locales, así como
del análisis y formulación de diferente temas a ser tratados en Gobierno Autónomo

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Descentralizado Del Municipio De Riobamba. [...] Art. 5.- De las (os) Interesados/as.-
Las Interesadas o los Interesados hasta con ocho (8) días antes de la respectiva sesión
ordinaria, deberán expresar por escrito y en forma motivada, tal como lo establece la
Constitución de la República del Ecuador, su interés para ocupar la "Silla Vacía" en la
sesión respectiva del Consejo Cantonal de Riobamba. En la solicitud deberán constar
sus nombres y apellidos, número de cédula de identidad, dirección domiciliaria y demás
generales de ley, la debida argumentación de las razones de su interés en este
mecanismo de participación ciudadana. […] Art. 8.- De la Acción en la Silla Vacía.-
Para actuar en el espacio de la "Silla Vacía", las y los interesados deberán reunir los
siguientes requisitos: Acreditar su calidad de ciudadano/a mayor de edad mediante la
presentación de una copia de la cédula de identidad, certificado de votación vigente, a
nombre del representante; y, Acreditar mediante carta certificada la vocería de la
organización ciudadana a la que representará, si este fuera el caso. La respectiva
Organización Social, Ong, Fundación, Consorcio, deberá de estar legalmente
constituida, para lo cual deberá de presentar copia certificada de la personería jurídica
de dicha organización.

A Veeduria Ciudadana é outro mecanismo de controle social diferenciado, desta feita


destinado a que o cidadão possa vigiar, fiscalizar e controlar a administração, seja do setor
público, seja do setor privado, uma vez este opere com recursos públicos desenvolvendo
atividades de interesse público. Tal qual em outras formas de participação e controle social, o
Veedor precisa se habilitar junto ao CPCC e observar o Reglamento General de Veedurias
Ciudadanas, aprovado por uma resolução do CPCCS.
Nesse regulamento, dentre outras informações e determinações, expomos abaixo o que
nos parece suficiente para um melhor entendimento desse mecanismo do sistema de
participação e controle social equatoriano:

Art. 7.- Conformación.- Las veedurías serán conformadas por iniciativa ciudadana en
forma colectiva, por iniciativa de las organizaciones de la sociedad, así como del
CPCCS. Se integrarán por personas naturales por sus propios derechos o en delegación
de organizaciones de la sociedad. Art. 8.- Procedimiento para la conformación de
veedurías.- El procedimiento para la conformación de la veeduría por iniciativa
ciudadana en forma colectiva o por iniciativa de las organizaciones de la sociedad, será
el siguiente: a. Inscripción.- Los/las ciudadanos/as llenarán el formulario de inscripción
elaborado para el efecto por la Dirección Nacional de Control Social y que se encontrará
en la página web o en las oficinas del CPCCS, sus delegaciones provinciales y
delegaciones temporales en el exterior y lo entregará con los documentos de respaldo.
No se admitirán formularios con enmendaduras o añadiduras que pongan en duda su
contenido; b. Difusión.- El CPCCS difundirá la conformación de la veeduría y los
informes finales presentados al Pleno, por la página web y los medios que considere
adecuados en su ámbito de influencia, con el fin de poner en conocimiento de la
ciudadanía; c. Registro.- La Dirección Nacional de Control Social, dentro del término
de cinco días, verificará el cumplimiento de los requisitos determinados en el formulario
y procederá a registrarla para que pueda realizar el monitoreo, seguimiento y evaluación
respectivos; d. Capacitación.- Los/las veedores/as recibirán capacitación e información
de acuerdo al objeto de la veeduría, dentro del término de diez días contados a partir del
registro.

Além desses espaços, há ainda os Observatórios e os Conselhos Consultivos que são


descritos em uma lei específica a que já nos referimos, a Lei Orgânica de Participação Cidadã,
instrumento que define em detalhe os meios e modos de exercer a cidadania e o controle social,
instruindo o cumprimento dos dispositivos constitucionais. A Lei Orgânica foi publicada em
fevereiro de 2010.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Há portanto um leque muito aberto de determinações legais e instrumentos


institucionais, previstos em termos constitucionais e infraconstitucionais, no Equador.

4. Limitações e problemas institucionais, funcionais e políticos

É evidente que nenhum processo foi pacífico ou qualquer termo foi isento de
convivência com o contraditório de interesses opostos.
Isso, no caso da Constituição de 2008, se revela desde os primeiros Artigos. Quando
trata dos deveres do Estado, já no Artigo 3º, a mesma Constituição reduz a descentralização,
com que se compromete, ao plano territorial: “6. Promover el desarrollo equitativo y solidario
de todo el territorio, mediante el fortalecimiento del proceso de autonomías y
descentralización” (ECUADOR, 2008). Entre os deveres do Estado, nenhuma palavra atribui
ao poder público a função de garantir a descentralização no conceito de compartilhamento de
poder com os cidadãos. Explicita-se aí a contradição que frequentou a formulação da lei maior,
como parte do conflito de classes, de segmentos e também como face da formação autoritária
que habita até mesmo a consciência dos democratas e libertários.
A própria Constituição e seus desdobramentos, como é o caso da Ley Orgánica da
Participación Ciudadana, têm passagens que indicam as limitações que cercam a Revolução
Cidadã. Chama a atenção as várias observações, ressalvas, que dizem ser a Constituição, as leis
e a revolução destinadas a um público – os trabalhadores das organizações públicas e das
organizações que “manejan fondos públicos”. Essa limitação já aparece no capítulo quinto da
Constituição, Función de Transparencia y Control Social, no seu Artigo 204, quando se lê que
“La Función de Transparencia y Control Social promoverá y impulsará el control de las
entidades y organismos del sector público y de las personas naturales o jurídicas del sector
privado que presten servicios o desarollen actividades de interés público”. Para não deixar
dúvida, a Lei Orgânica de Participação, ao definir o âmbito de funcionamento da participação
cidadã inclui expressões e passagem mais clara: “las privadas que manejen fondos públicos o
desarrollen actividades de interés público” (Art. 2). Mais adiante, a mesma lei, quando trata de
acesso à informação, restringe um tanto mais, ao dizer “lo privado cuando se manejen fondos
públicos” (Art. 3º). Essa lei reproduz, em várias outras passagens, esse tipo de referência,
alternando as expressões, mas tornando evidente que a participación ciudadana y el control
social não se estende ao setor privado stricto sensu, ou seja, aquele que opera no mercado sem
qualquer vínculo com a administração pública, a despeito da área cinzenta que os termos
“actividades de interés público” podem criar. A Lei Orgânica volta a tratar do assunto no Artigo
29, referindo-se a “sector privado que manejan fondos públicos, prestan servicios o desarollan
acitividades de interés público”, no Artigo seguinte, onde se lê “las privadas que presten
servicios públicos” e em outras passagens, repetindo-se essa forma ou formas similares da
mesma limitação.
Temos aí um evidente caso de discriminação entre os cidadãos, porque se colocam os
trabalhadores públicos como observados e controlados, enquanto aqueles que operam no
mercado vendendo e comprando, na indústria, no comércio e nos serviços parecem sobrepor-
se à sociedade e ao alcance dos seus olhos e de sua avaliação. De outra parte, a exclusão do
setor privado do sistema certamente induz parte da sociedade, os trabalhadores e trabalhadoras
que se encontram nas empresas privadas, a se sentirem ou efetivamente serem limitados em
suas ações. A própria definição de âmbito expressa na Lei Orgânica, no Artigo 2 já citado,
estipula que tipo de organização privada está alcançada pela Lei. Relembremos que apenas as
Comisiones de Selección de Autoridades podem contar com trabalhadores privados em
condições semelhantes aos trabalhadores públicos, com liberação da jornada de trabalho e
garantias de direitos explicitamente postas no Regulamento.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Essa situação cria distinções muito expressivas da lógica que está presente na Revolução
Cidadã, cujos méritos não podem ser negados, mas nesse particular não foge ao padrão de
reverência que o mercado continua a ter nas mais avançadas experiências de participação.
No plano prático, por exemplo, temos muitas razões para indagar porque os Comitês de
Usuárias y Usuários não podem estender sua observação e intervenção às empresas privadas
que também prestam serviços de que os cidadãos são também usuárias e usuários. É o caso dos
supermercados, dos bares e restaurantes, dos bancos, enfim de muitos empreendimentos que,
tal qual no Brasil, também prestam serviços de baixa qualidade, carentes de controle social. A
ação de um Comitê ao estilo, que pudesse acompanhar e debater com os gerentes e empresários,
naquele espaço de moradia ou convivência, certamente traria inúmeros efeitos positivos para a
cidadania, para os clientes e para as próprias organizações privadas.
Há outros aspectos de natureza prática que advertem para a existência de problemas
relacionados ao funcionamento das instâncias de participação que extrapolam os de natureza
institucional. Por exemplo, acompanhando o site do CPCC, é possível perceber dificuldades
funcionais e operacionais para o exercício real da participação e do controle social, ainda que
não faltem meios institucionais para isso. Navegando no site do Conselho, podemos ver que as
Convocatorias têm acontecido, cumprindo-se com a lei. Mas, no mesmo site, nota-se também
que não há notícia das decisões tomadas, deixando dúvida se sequer foram tomadas quaisquer
decisões. A Secretaria General do CPCC é o órgão de apoio que tem a função de dar
conhecimento oficial dos atos administrativos e normativos expedidos pelo Pleno do Conselho.
É também da responsabilidade dessa Secretaria dar informações sobre as resoluções do Pleno
que estejam respondendo às Convocatórias emitidas. É no link da Secretaria General que
devemos encontrar dois campos para acessar essas informações: o campo das Convocatórias,
onde se pode ver o que está colocado em pauta para a decisão dos membros do Conselho, e o
campo Resoluciones del Pleno. Até a data de 22 de maio de 2016, o campo das resoluções do
Pleno não dá qualquer informação sobre os anos 2015 e 2016. As convocatórias desses anos se
verificaram em todos os meses, observando a média de três a cinco reuniões plenárias por mês,
nesses anos. Inclusive o mês de maio de 2016, em que a última reunião foi convocada para o
dia 17, com uma vasta pauta de 10 pontos.
Observa-se nas mesmas fontes que as resoluções do Pleno do CPCCS são publicadas
desde 2010, quando seus trabalhos tiveram início, ainda em caráter provisório, resultado da
organização do próprio Conselho, conforme vimos em página passada. Daquele ano até 2014,
podemos acessar todas as informações pertinentes a decisões do Pleno em resposta às pautas
constantes das respectivas convocatórias. Pode o cidadão comum, assim, controlar o que tem
ido à discussão e que decisões são tomadas em relação a cada ponto de pauta. Isto não é possível
em relação aos anos de 2015 e 2016. Uma interrupção sem qualquer explicação se verifica em
evidente lacuna no instumento mais eficaz de publicidade do Conselho.
Esses detalhes do funcionamento apontam algum descaso ou algo de maior significado
para com aspectos importantes – a transparência das decisões e o controle das mesmas – que
dão indícios da profundidade do que pode estar acontecendo. Esse tipo de ausência é
denunciador da fragilização de um sistema, como se pode notar no Brasil, com os mecanismos
de participação. As crises em andamento costumam se refletir nos meios de informação e
comunicação dos poderes.
Há problemas no governo de Rafael Correa que datam de seu início. Paradoxalmente,
grande parte desses problemas, em especial aqueles vividos com os setores antes integrantes do
movimento que levou a Alianza País ao poder, decorre de aspectos relacionados com a
participação de segmentos sociais, que se sentem não representados ou que supõem suas
representações pouco consideradas nos processos decisórios.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Observam Ramirez Gallegos e Stoessel (2015) que o andamento das mudanças que
abriram caminho para a Constiuição de 2008 foi, ainda que não inteiramente tranquilo, muito
consistente. Segundo eles,

na contramão do Consenso de Washington, voltou a atribuir ao Estado o papel de


coordenador social e proibiu a privatização de recursos públicos. Não foram poucas as
disputas entre o poder executivo, a AP e certos movimentos, mas, ainda assim, a ANC
conseguiu gerar uma fluida dinâmica de interlocução entre as forças progressistas. Tal
convergência se plasmou na Consulta Popular que aprovou a Carta Magna com 63%
dos votos. Em 2009, foram realizadas as primeiras eleições gerais com a vigência da
nova Constituição. Correa foi eleito, em um fato sem precedentes: no primeiro turno e
com 52,9% dos votos válidos. Começou, então, o trânsito pós-constituinte: o momento
de institucionalização dos princípios constitucionais em códigos específicos, leis
orgânicas e políticas públicas (RAMIREZ GALLEGOS E STOESSEL, 2015, p. 7).

Ao falarem de códigos específicos, leis orgânicas e políticas públicas, os autores estão


se referindo ao rico conjunto de elementos institucionais e mecanismos operacionais,
principalmente relacionados com a participação e o controle social.
Mas quase que imediatamente os problemas que ainda hoje se arrastam e, como
dissemos, associados exatamente a essa sensível questão da cidadania, vão aflorar. É segundo
os mesmos autores, no seguimento da passagem anteriormente lida, que ficamos sabendo que

em meio ao enorme apoio popular ao presidente, a AP [Alianza País] tendeu a


subestimar a contribuição das organizações sociais no processo político. Elas se
ressentiam desse distanciamento e exigiam participação real. O “bloco pela mudança”
se fragmentou. O mal-estar indígena era particularmente visível. A partir de então, a RC
deveria fazer frente tanto aos embates da direita e dos grupos de poder que conduziram
o país a um conturbado processo de desmantelamento estatal e liberalização econômica
como à contestação de organizações e pequenos partidos de esquerda. A decomposição
articuladora da AP brecou a transição institucional e estimulou a reativação do conflito
(Ibid., p. 8).

Não são apenas Ramirez Gallegos e Soledad Stoessel que apontam para o desgaste das
relações entre as organizações representativas da sociedade civil e o governo, ironicamente no
ponto que dá a identidade do governo, a cidadania. Já em 2010, cinco anos antes dos dois
autores anteriormente citados, David Chávez comentava que “as organizações indígenas e seus
aliados reclamaram da falta de “consulta prévia” às comunidades sobre o conteúdo das leis”
(CHÁVEZ, 2010).
Na verdade, naquele ano que Chávez publicava seu estudo sobre a consulta popular no
Equador, o diálogo entre a Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador, CONAIE,
e o governo se deteriorou profundamente. Em um dos encontros entre a CONAIE e Correa,
realizado de modo público, com cobertura da TV, Humberto Cholango, um dos dirigentes da
Confederação, cobrou do presidente que o governo se desculpasse por ter chamado os membros
do movimento de “loucos”. Correa criticava as lideranças das nacionalidades pelo que chamava
de “entrincheiramento em uma agenda parcial”. Mas, para o CONAIE, o que se colocava era o
sentimento de que o governo não os levava a sério e não havia considerado nenhuma de suas
principais demandas.
O grau de desgaste se tornou tão elevado que, em rigor, o CONAIE se transformou em
oposição ao governo. Isso ficou completamente posto e evidente quando, para surpresa geral, a
Confederação se colocou contra a reunião de cúpula da Alianza Bolivariana de los Pueblos de
Nuestra América (ALBA) e marcou o evento com ruidosos protestos (RAMIREZ GALLEGOS
e STOESSEL, 2015). A BBC Mundo, em sua edição de 26 de junho de 2010, publicou artigo

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

de seu correspondente no Equador, Paúl Erazo, sob título Indígenas ecuatorianos alborotan
cumbre del ALBA. Abrindo a reportagem, Erazo dizia que “La Cumbre de la Alianza
Bolivariana de los Pueblos de Nuestra América (ALBA) se desarrolló este viernes en la ciudad
ecuatoriana de Otavalo, al norte de Quito, en medio de protestas de la Confederación de
Nacionalidades Indígenas de Ecuador (CONAIE), efectuadas en las afueras de la sede de la
cita”.
Os problemas do governo com a questão da efetividade da revolução cidadã não se
limitaram à questão indígena, que passa pelas leis da água e da mineração. Já seria de grande
tamanho se assim fosse, dado os assuntos, os protagonistas e o motivo. Mas outros problemas
relacionados com o diálogo do governo com os cidadãos, em particular com os cidadãos
organizados em entidades representativas, afloraram há alguns anos e continuam a tensionar o
projeto expresso na Constituição de 2008.
Correa entrou em choque com a União Nacional dos Educadores também já em 2009,
quando tentou implantar um sistema de avaliação dos docentes, considerado, na verdade, um
mecanismo destinado a quebrar com a hegemonia da entidade – antes uma entidade
participativa aliada da “revolução cidadã”, defensora da Constituição de 2008 e peça importante
nas campanhas ganhas pela Alianza País. A referida avaliação seria feita pelo governo, através
de provas elaboradas pelo Ministério da Educação, a que os professores seriam submetidos
periodicamente. Outras medidas estavam acompanhando a proposta de avaliação, todas elas
consideradas pelo movimento docente como prejudiciais aos trabalhadores da educação. O
diálogo se encerrou, como se encerrara com a CONAIE – radicalizando-se ambas as partes.
A partir de setembro de 2009, quando a UNE convocou a greve geral de protesto contra
a proposta de avaliação, as relações entre o governo e o movimento docente entraram em
vertical retrocesso. Também foi ocasião de palavras duras entre as duas partes em conflito. O
presidente já havia criticado a UNE, em maio daquele ano, na concentração significativamente
denominada Unidos contra a mediocridade. Ali, ele disse, em discurso, que a entidade dos
professores havia mergulhado a educação pública do Equador na mediocridade e na
ineficiência. Durante a greve, em visita aos colégios em paralização, repetiu as críticas, usando
as mesmas palavras que encontravam eco na população, em particular nos setores populares
que apoiavam o governo (POSSO, 2013).
Segundo Mariana Pallasco, presidenta da UNE durante a paralisação, ouvida por Posso:
“a greve não foi por aumento salarial; desta vez, a paralisação foi por dignidade, para acabar
com os maus-tratos, para acabar com a desqualificação. […] o trabalho docente não é
revalorizado apenas com dinheiro. […] estigmatizaram o professor […] na rua, se sabiam que
alguém era professor, lhe diziam “professor vagabundo, vá ser avaliado” (Ibid., p. 124).
No particular da educação superior, também se observam insatisfações. Arturo
Vilacicencio, detentor do prêmio Nobel da Paz de 2007, como integrante do Panel
Intergubernamental de Cambio de Clima (IPPCC), ex-reitor do Instituto de Altos Estudios
Nacionales e ex-presidente do Consejo de Evaluación y Acreditación de Educación Superior
(CONEA), escreveu um livro intitulado ¿Hacia dónde va el Proyecto Universitario de la
Revolución Ciudadana?, comentando a situação do ensino superior no qual afirma que no
Equador

Las categorías de productividad, eficiencia y logro competitivo, no la erudición o la


inteligencia, son los valores bajos los cuales se pretende guiar el mundo académico. […]
el modelo de Universidad que se pretende implantar, además de atentar al principio de
autonomía universitaria, se revela antagónico con el resto de principios de la educación
superior establecidos en la Constitución. […] la introducción de categorías de
universidades, la oferta académica de acuerdo con estas categorías y la separación entre
docencia e investigación, entre otros, contradice el principio de integralidad
(VILLAVICENCIO, 2013, p. 51).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Em manifestação semelhante às anteriores, também Villavicencio reclama de


participação, abertura, diálogo: “Dialogar, debater, rectificar: estas son las acciones urgentes”,
diz o professor nas suas Conclusões (Ibid., p. 53).
É possível dizer que os conflitos referidos, tanto com as nacionalidades indígenas,
quanto com a UNE, explicitam um dado comum aos governos com lideranças fortes. Seja
porque essas lideranças se acostumam a uma relação direta com as bases, preferindo-a, seja
porque elas são lideranças cuja força, como insinua Ramírez Gallegos, os leva a superestimar
sua capacidade e subestimar os interlocutores. No caso de Correa, há entretanto mais um
elemento em jogo: a amplitude dos atores e dos mecanismos de que se podem valer os atores
para protagonizar os seus papéis. Os indígenas tiveram como estopim a lei dos recursos hídricos
e a lei da mineração; os professores se mobilizaram em face de mudanças em suas vidas
profissionais que iriam da aposentadoria à avaliação, passando pelo salário. Mas em paralelo a
esses casos, cujos protagonistas emprestam mais dramaticidade que outros, vários outros
problemas e questões afloraram ao mesmo tempo, seja com os empresários, seja com
trabalhadores de variados ramos industriais e comerciais, para não falar dos serviços públicos,
de onde surgiu o levante dos policiais, também ocorrido em setembro, um ano depois, em 2010
(RAMÍREZ GALLEGOS e STOSSEL, 2015).
Vale lembrar que Miguel Carvajal, Ministro de Segurança, disse naquela ocasião que o
decreto não afetaria os salários, dado que se tratava da incorporação de um abono ao soldo e
não sua supressão. Isto, segundo o Ministro, não alteraria o valor final da remuneração. Por que
então os policiais se levantaram de modo tão violento, a ponto de ocupar o principal aeroporto
do país e receber o presidente da república com pedras e palavrões? A explicação de Carvajal
seria surpreendente se já não soubéssemos das dificuldades do sistema de participação: “Isso é
uma campanha de desinformação”, disse o Ministro à imprensa. Certamente que se um processo
de debate nutrido pelos dispositivos institucionais existentes, por Silla Vacia, Veeduria,
Observatorio, Consejo Consultivo e Consejo de Participación y Control Social tivesse
acontecido, não haveria sucesso para qualquer campanha de desinformação.
Essa questão da relação do grupo no poder, representado inteiramente por Correa, com
os movimentos sociais tem sido objeto de atenção de diversos estudiosos. Pereira da Silva
(2015, p. 172), por exemplo, refere-se a uma “relação difícil (para não dizer belicosa) do
presidente com os representantes dos principais movimentos sociais do país: indigenistas,
ambientalistas, sindicalistas e boa parte dos coletivos feministas”. De la Torre (2010, p. 158)
afirma que “el régimen de Correa ha seguido el patrón populista de movilización desde el poder
y ha buscado cooptar y desradicalizar a los movimientos sociales”. Esse tensionamento existe
desde o início do governo de Correa e é apontado, não como o resultado de um processo de
‘desentendimentos’, mas como uma política do grupo no poder de esvaziar os movimentos
sociais mais tradicionais e combativos, dando lugar a um novo tipo de movimento “difuso e
semiespontâneo”, basicamente formado por cidadãos independentes, ou grupos fomentados
pelo próprio partido do poder. É o que indica Pereira da Silva (2015, p. 171), ao dizer que “mais
recentemente [há] um esforço governamental em fomentar novos movimentos sociais afins em
diversas áreas (como camponeses e estudantes), o que gera um panorama de organizações
sociais divididas entre autonomia radical e a reflexo-dependência em relação ao Estado”.

5. Conclusão

A experiência equatoriana é sem dúvida aquela que oferece a mais rica contribuição em
meios, mecanismos e instituições voltados para garantir a participação e o controle social. Não
devemos nos negar a repetir isso. Em se tratando de criatividade e inovação, ali operou um
laboratório fértil, que indica a qualidade dos formuladores – grande parte deles do mundo

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

acadêmico – e a ousadia dos líderes políticos. Mas também não se pode negar que muito cedo,
logo nos primeiros anos de exercício, tanto a Constituição de 2008 quanto seus operadores mais
destacados enfrentaram dificuldades e revelaram fragilidades. As muitas frentes abertas
simultaneamente e a necessidade de acomodar situações contraditórias, além e principalmente
dos limites que se vão colocando para a conciliação dos interesses conflitantes, foram
estreitando as margens de movimentação do poder. Nesses casos corre-se o risco de ver
dilapidarem-se todos esses recursos, pondo mais uma vez na história um exemplo de
inefetividade das promessas participacionistas em estrutura social de fortes conflitos de classe
e segmentos de classe.
A convivência com o modo de produção capitalista, cujos interesses frequentemente se
contrapõem aos interesses das massas populares com tantos anos de exclusão, cria uma
contradição que obriga o governo a um exercício de conciliação difícil de manter por longo
prazo e às vezes impraticável.
Duas necessidades parecem saltar diante de nós, quando vemos o quadro de riqueza de
meios institucionais ser gradativamente esmaecido em meio a desacertos e conflitos. Em
primeiro lugar, a necessidade de traduzir em mudanças no plano material aquilo que é o
empoderamento político. Em outras palavras, ver as três dimensões – da política, da economia
e da administração – como articuladas na mesma perspectiva. A ausência disto acaba por
comprometer qualquer das dimensões que se pretenda desenvolver isoladamente. A questão
colocada implicitamente nessa discussão é que a experiência equatoriana nos põe em dúvida
sobre a possibilidade dessas dimensões serem de fato associadas sob as determinações do modo
de produção capitalista. E mais: acrescenta-se a isto, a indagação sobre o quanto a dimensão
política ao ser dissociada das demais dimensões, porém hiperdimensionada, constitui-se em
jogo ideológico, ao estilo do “eles não sabem o que fazem, mas assim mesmo o fazem”. Nesse
sentido, a primeira necessidade seria prejudicada por essa contrafação ideológica, a que os
revolucionários se dedicam sinceramente e a que a classe dominante aceita, pelo seu caráter
reformista e preservador do modo de produção. A segunda necessidade diz respeito a existência
de uma ferramenta política fora da ordem, que escape ao controle do Estado e que represente a
tensão política exigida a um verdadeiro processo revolucionário.
Em rigor, todos os mecanismos de que tomamos conhecimento estão reglados. Isto é,
têm regulamentos que os subordinam à burocracia do Estado. Do Conselho de Participação e
Controle Social à Silla Vacia todos fazem parte do aparelho estatal ainda que se pretenda fazer
deles as instâncias do empoderamento da sociedade civil. Nessa condição, acabam por se
tornarem instituições, com as limitações institucionais típicas de aparelhos do Estado.
Uma ferramenta política independente, autônoma e fora da ordem - melhor ainda,
contra-ordem - é absolutamente necessária ao bom funcionamento dessas instituições da
participação social, porque exercerá sobre elas a contrapressão capaz de fazer frente à pressão
conservadora do Estado.
Não se trata porém de algo que não mereça especial cuidado. Porque esta arquitetura
política – movimento social, governo popular, mecanismos de participação e agente político
contra-ordem – foi aquela que se colocou no cenário chileno dos anos 1970. Um profundo senso
do que é principal e o que é secundário, o reconhecimento de aliados e não-aliados, a distinção
dos antagonismos e não-antagonismos, definições precisas de tática e de estratégia serão
exigidos para que o desfecho de um processo assim configurado não seja a repetição da tragédia
chilena.
Mas certamente que em não se afirmando esse concerto de atores coletivos, nada garante
que também não teremos tragédias ou algo parecido com a farsa ou a comédia que se viveu em
Honduras e no Paraguai e aquela que ora se vive no Brasil e na Venezuela.

Referências bibliográficas

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

O Poder Político-Burocrático na Gestão Pública Brasileira:


uma Crítica de seus Marcos Reformistas à Luz de Adorno
Elisa Zwick
Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL)
Campus Avançado de Varginha

Resumo
A conformação da burocracia pública brasileira avançou historicamente pela adoção de
modelos excludentes para governar o Estado, integrados à hegemonia necessária para a
permanência do poder nas mãos da classe dominante. À luz da dialética negativa de Adorno
(2009), apresentamos neste ensaio uma análise crítica antissistema dos marcos reformistas da
constelação político-burocrática da Gestão Pública brasileira. Partimos da burocracia do
poder desde o Estado Novo, para compreender o poder da burocracia no desenvolvimento da
estrutura capitalista dependente, de modo que situamos o democratismo e a estadania como
anticategorias do pensamento convencional de democracia e cidadania.

Introdução
A conformação da burocracia pública brasileira avançou historicamente pela adoção
de modelos estabelecidos pela classe dominante para governar o Estado. Travestido por
diferentes nuanças, o domínio político-burocrático da ordem social burguesa impôs, via
reformismos, a hegemonia necessária para a permanência do poder nas mãos de poucos.
Resultado disto é uma realidade social, política, econômica e cultural encerrada num extenso
círculo vicioso que, alimentado pelo alto, corrobora com o que podemos chamar de Gestão
Pública danificada1. Diante disso, mediados pelos elementos pressupostos na dialética
negativa de Adorno2, neste ensaio apresentamos uma breve análise da constelação político-
burocrática da Gestão Pública brasileira, revelando o Estado como portador de uma
autocentralidade inautêntica ampliada. Dentre os elementos adornianos que possibilitam a
crítica à burocracia destacamos o de antissistema, que permite expor a configuração do poder
como constelação em que se visualiza tanto sua inverdade enquanto sistema em sua afirmação
identitária, quanto a crítica da sociedade que o engendra (SILVA, 2006).
Tendo presente a subversão da tradição, Adorno (2009) negou a ideia de sistema,
submetendo-a a um acurado exame dos seus pressupostos modelares. Desse modo, a análise
necessária sobre a burocracia pública requer a denúncia crítica de seu papel meramente
adaptativo que, ao manter e conformar as desigualdades sociais, não permite a ruptura com o
conservadorismo naturalizador de suas práticas. Portanto, à luz da dialética negativa,
compete-nos: (i) abordar a burocracia do poder no Estado brasileiro, que se desenvolveu em
três marcos desde o Estado Novo; (ii) compreender o poder da burocracia, demarcado por
malabarismos reformistas que favoreceram o desenvolvimento da estrutura capitalista
dependente; e (iii) tematizar a potencialidade do poder político-burocrático, de modo que
situamos o democratismo e a estadania como anticategorias do pensamento convencional.

1. Construção do Estado Nacional


O intervencionismo é traço inerente ao capitalismo dependente brasileiro que, em sua
urgência modernizadora, tolheu manifestações contrárias à sua identidade, de modo a
perpetuar pelas vias legais e da formalização, o que Adorno (2009, p. 29) aponta como
“unidade e concordância”, aniquilando adversidades e encobrindo contradições. Em seu
caráter opressor, o modelo de gestão do Estado é avesso ao não idêntico (ADORNO, 2009),

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

sendo incapaz de combater as desigualdades, apenas concedendo às camadas populacionais


reparações mínimas aos danos provocados pelo poder do monopólio capitalista.
Diante da construção verticalizada do Estado nacional, a violência dos processos
hegemônicos foi demarcada pela injeção de parâmetros empresariais, de modo que a
expressão da burocracia tornou-se exercício do poder político da classe dominante
(TRAGTENBERG, 2006). O comportamento desta não advém “de um elemento constituído
ao nível da estrutura material da sociedade, (...) [mas] se define como ação essencialmente
transitiva de um pseudo-sujeito” (MARTINS, 1977, p. 53). Tal caráter burocratizador é
reeditado sempre que necessário via governos totalizantes, demarcados pelo autoritarismo, em
que não raro manifestações que ameaçam a ordem são reprimidas via recursos legalmente
instituídos. Segundo Adorno, (1995), estes só podem ser operacionalizados por consciências
coisificadas, cuja conduta por vezes se justifica vergonhosamente em nome das minorias
esquecidas e subjugadas.
Sob o manto da neutralidade, burocracia pública e privada são inseparáveis, pois a
administração tornou-se “o centro das questões sociais e políticas numa sociedade
burocrática” (MOTTA, 1990, p. 46). Assim, é no Estado que a administração se realiza
plenamente, enquanto organização formal burocrática, sendo nele antecipada em séculos ao
seu advento na empresa privada (TRAGTENBERG, 1971). A racionalidade burocrática das
primeiras fábricas irá propulsionar a constituição do capitalismo monopolista de Estado, pano
de fundo dos processos de estatização ou privatização no Brasil na década de 1970, numa
clara complementaridade entre capitalismo monopolista e estatização, visto que a atuação das
empresas estatais na economia passou a viabilizar as privadas (GARCIA, 1979).
Tais moldes correspondem ao andar tortuoso da história de um país colonial, que
reúne avanços e atrasos do sistema capitalista, priorizando uma circulação engendrada por
uma organização nacional via intervencionismo. Tal qual no processo colonizador, manteve-
se subjugadas culturas e classes sociais locais para servir duplamente a interesses econômico-
financeiros: primeiro das classes dominantes internas, depois das externas. Para Paço-Cunha e
Rezende (2015, p. 3), “o capitalismo brasileiro nasce então com uma debilidade congênita, o
que se expressa no caráter atrófico do capital aqui constituído, expresso em uma classe
burguesa sem capacidade de levar a cabo os desafios do desenvolvimento capitalista”. A
autocracia é resultado inevitável de tal debilidade, elemento que, para os autores, é fatal no
veto de uma sociabilidade burguesa de cunho moderno progressista.
Este é o pano de fundo para a emergência da burocracia do poder no Estado brasileiro,
em que o papel desempenhado pelos organismos criados para manter a hegemonia se torna
fundamental, visto que são conceitualmente determinantes ao processo burocratizador.
Merecem, por isso, uma desconstrução a partir da crítica social da burocracia do poder, em
seu ímpeto de sistema e, portanto, precisam ser desnaturalizados em seus mecanismos de
funcionamento, enquanto cumpridoras de um papel conformador à versão oficial da história.

Burocracia do Poder
Ao relacionarmos a burocracia do poder não queremos remeter à obrigatoriedade de
que todo poder tenha como precondição uma burocracia, mas nos referimos especificamente à
burocracia existente no poder no Estado brasileiro, cujo avanço se mostrou pelas reformas via
órgãos criados para efetivá-las e promovê-las. Também não distinguimos a burocracia entre
aquela que serve ao poder ou outra que poderia estar a serviço das organizações, mas
elencamos sua dinâmica interna como parte de uma relação dialética em meio ao social e a
organização do Estado.
A configuração do Estado nacional em meados da década de 1930 decorre
essencialmente do capitalismo dependente desenvolvido no Brasil, visto que é nesse momento
que “as forças econômicas passam a se agrupar em torno de um projeto de modo de produção

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

diferenciado do até então vivido nos três séculos de status colonial” (MENDES e GURGEL,
2013, p. 108-109). Fernandes (1975) dá especial atenção ao capitalismo dependente por
considerá-lo fundamental aos rumos do desenvolvimento almejado ao país. Foi traçado pelo
desinteresse por qualquer autonomia social ou política e pela prioridade aos modelos
perpetuados pelas antigas classes senhoriais, em que diferentes setores foram espoliados.
Este entendimento se dá a partir da luta de classes premente na sociedade. O papel do
Estado é “‘tutelar’ os interesses do capital em seu conjunto, colocando-se frequentemente em
choque com aqueles setores capitalistas singulares que (...) entram em contradição com a
máxima reprodução possível do capital social global”, em que a burocracia assume o lugar de
um corpo à parte e acima da sociedade, capaz de lhe impor suas decisões (COUTINHO, 1984,
p. 166). À emergência da modernização do período industrial do Brasil, esses pressupostos
foram capitaneados pelo próprio Estado, sufocando desigualdades e singularidades em
detrimento do desenvolvimentismo.
Assim, a Gestão Pública seguiu pela planificação organizada, num processo de
aceleração jamais visto nos cem anos precedentes da história do Brasil (COSTA, 2008). Ao
contrário de uma revolução, como defende Bresser-Pereira (1985), o que houve em 1930 foi
apenas uma substituição do poder da oligarquia agrário-comercial brasileira pelo da classe
média industrial. Nesta condução, houve uma luta contrarrevolucionária, que reconfigurou o
lema “ordem e progresso”, conferindo-lhe, paulatinamente, outro desdobramento pela ideia de
“segurança e desenvolvimento”, abertamente empregada pelos governos militares a partir de
1964 (IANNI, 2004, p. 224). O Estado capitalista é aguçado em sua configuração de sistema,
dando-nos elementos concretos para seu combate pela ideia de antissistema como um espaço
do não idêntico (ADORNO, 2009). Isso porque, na sua típica ótica de sistema “o capitalismo
monopolista no Brasil (...) se limitou a herdar e modificar parcialmente o Estado autoritário
preexistente” (COUTINHO, 1984, p. 171).
O momento inicial da industrialização no Brasil converge à dimensão político-
burocrática do Estado, que cumpre o mais perfeito estereótipo da ideia adorniana de sistema
totalitário. Operacionalizam-se processos instituindo novas estruturas político-burocráticas
que, embora intercaladas por diferentes modelos de Estado – autoritário em 1930 e 1967 e
democrático em 1995 – podem ser pensados como expressões de negação das singularidades
nacionais. A Era Vargas torna-se, então, o marco inaugural de burocratização do Estado
brasileiro, que adere a um formato de poder político até então inigualável. Há confluência
entre peculiaridades político-sociais e governos autoritários, mantendo vivas as práticas do
tenentismo e do populismo e, de outra parte, com o desenvolvimentismo como guia via suas
quatro correntes fundantes: nacionalistas, defensores da industrialização, intervencionistas
pró-crescimento e positivismo (FONSECA, 2012).
O nacionalismo, considerado por Tragtenberg (2009) uma ideologia da desconversa,
encontra espaço como abordagem típica do Estado Novo. De outra parte, o positivismo,
marcante na formação de Getulio Vargas, lhe imprimiu uma postura de inspiração
hegeliana/teleológica, contribuindo para a autojustificação discursiva para capitanear as
mudanças que desaguaram no desenvolvimentismo. Tal projeto assumiu uma configuração
utópica de felicidade, que apenas poderia ser materializado pela instituição da razão
burocrática no Estado, em que a vertente política da doutrina positivista também conferia as
devidas bases ao intervencionismo. Amplificado, o desenvolvimentismo convergia ao
liberalismo, no tocante à ortodoxia econômica, potencializando a cega visão economicista
(FONSECA, 2012). Esta ótica foi responsável pelo isolamento das condições econômicas das
políticas, firmando-se como modelo de condução do Estado, o que Oliveira (2003, p. 30)
critica como um “vício metodológico que anda de par com a recusa em reconhecer-se como
ideologia”. O “legado da Era Vargas” foi “inseparável das instituições que ajudaram a
direcionar o desenvolvimento econômico e social posterior do país”, cujo empenho era

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justamente a centralização do Estado (BASTOS e FONSECA, 2012, p. 9-10). Daí o papel do


DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público), primeira e principal agência
propulsora do desenvolvimento de tipo prussiano no Brasil. Criado em 1938, foi o principal
órgão burocrático desse primeiro marco reformista da Gestão Pública brasileira e a mais
importante instituição que ancorou sua sistemática modernizadora.
Na segunda metade de seu primeiro governo ditatorial – que perdurou de 1930 a 1945
–, Getulio Vargas vale-se do modelo daspiano para inserir o país no que considera uma
grande reforma administrativa, centrada no intervencionismo, meritocracia (concursos
públicos são institucionalizados pela Constituição de 1934) e na criação de uma burocracia
para produção de políticas públicas. Ao mesmo tempo em que o órgão fomentou as
autarquias, fundações e outras instituições sob o pretexto da descentralização, o Estado
varguista intervia nas atividades econômicas consolidando o DASP como instrumento
assegurador dos propósitos do governo. Assim, de supostamente neutro em sua técnica, na
prática o DASP controlou administrativamente todo o emaranhado decisório do Estado,
assumindo um importante papel político-burocrático, acabando por distanciar o governo da
sociedade. Totalizante e autoritário, este protótipo de governo era justificado pela necessidade
de separar a administração da política. Ao anunciar o combate ao clientelismo e ao
patrimonialismo, mantinha-os ao mesmo tempo via insulamento burocrático, alçando uma
modernização administrativa com adaptações a grupos de interesses, seguida no governo de
Kubitschek.
Para Bariani Jr. (2010, p. 60), no seu ímpeto modernizador o DASP teve contribuições
que permitiram avanços na Gestão Pública, porém a administração burocrática não vingou,
parecendo um modelo abstrato, não porque “seus princípios seriam totalmente inadequados às
nossas circunstâncias, mas sim porque nossas instituições não ‘pairam no ar’, mas se inserem
em nossa sociedade”. Assim, o populismo é marca patente do governo Vargas e se amplia
com Kubistchek, que omite a subordinação ao estrangeiro na execução do seu Plano de Metas
planificador que promulgava o avanço de “cinquenta anos em cinco”. Também o curto
governo de Jânio Quadros, entre janeiro e agosto de 1961, segue pela ótica populista,
adaptando as estratégias desenvolvimentistas do Estado ao capital internacional. Próprio a
este período populista era o desvio da atenção teórica e da ação política do problema da luta
de classes, acobertando o crescente sofrimento das classes subalternas.
Mas é através do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) que o nacionalismo
evolui ao grau de ideologia nacional. Esta é a segunda instância integrante do primeiro marco
reformista da Gestão Pública brasileira e que coabita com o DASP. Instituído por João Café
Filho, sucessor de Vargas, o ISEB já encontrava lastro anterior, sendo órgão sucessor do
IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política). Segundo Toledo (1997), o
ISEB foi uma instância nascida da interferência da intelectualidade carioca, o “Grupo de
Itatiaia”, visando assessorar a hegemonia do Estado capitalista nacional. Firma-se como órgão
burocrático do Estado em 1955, vinculado ao Ministério da Educação e Cultura, ramificando-
se em dois conselhos e na diretoria executiva. Tornou-se uma “fábrica de ideologias”,
denominação que Toledo (1997) confere ao seu conjunto doutrinário, que serviu ao nacional-
desenvolvimentismo. Kubitschek o considerou inicialmente, mas acabou se opondo ao
nacionalismo isebiano ao internacionalizar a economia em seu governo.
Mesmo aparentando uma unidade, o ISEB integrou amplas polêmicas em suas fases,
pois “os isebianos não provinham da mesma matriz teórica, não bebiam na mesma fonte de
teorias e propostas políticas” (VALE, 2006). Iniciou preservando um perfil de centro-
esquerda (condenando o imperialismo norte-americano), até cumprir a função de munir uma
parte da burguesia brasileira que se tornaria internacional para, por fim, ser demovido de sua
influência pela ditadura em 1964 (TOLEDO, 1997). Em seus nove anos de existência, ao
modo de cada um de seus integrantes, funcionou tanto para construir a ideologia da identidade

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nacional, como à propagação de ideias antissistema. Não apenas os elementos da crítica


antissistema (ADORNO, 2009) estão presentes, mas o questionamento sobre o progresso
(ADORNO, 1992). No entanto, a dialética adorniana conflita com a segunda fase isebiana,
visto que esta se encerra em pressupostos de equilíbrio e ordem para o desenvolvimento.
Como demarca Garcia (1979, p. 28) ao referir o comportamento da Gestão Pública brasileira,
o impulso à crescente heterogeneidade estrutural desconsidera o exame das “questões
relativas ao conflito e ao poder enquanto coação ou coerção”, considerando-as “unicamente
como autoridade burocrática”. Era o que o ISEB proporcionava à fase desenvolvimentista do
país, numa inclinação que podemos qualificar como alienante do quadro conjuntural da
desigualdade brasileira. Do lado em que serviu ao Estado brasileiro como uma “instância da
doutrina da adaptação” (ADORNO, 2009), o ISEB corresponde duplamente à nossa análise
constelatória. De uma parte, se firmou como órgão da burocracia do poder; por outra,
antecipa, neste conjunto analítico, a importância de construções ideológicas motivadas pelo
Estado, que se retroalimentam.
Visto não mais servir à constituição da ideologia da identidade, o ISEB passa, então,
para o lado do não idêntico, numa demonstração da força impressa pela burocracia do poder.
No entanto, não se pode dizer que a sua ideologia reverenciou a construção da “hegemonia da
classe dirigente no país. Para que isso pudesse ocorrer, seria necessário que os trabalhadores
internalizassem a ideologia produzida; a própria história se encarregou de eliminar, no
entanto, essa possibilidade” (ORTIZ, 2009, p. 47). Para Motta (1979), “o desaparecimento do
ISEB relaciona-se com o colapso do populismo, que criou um vácuo político, que só veio a
ser preenchido pelo surgimento, em 1964, do Estado militar capitalista”.
Cabe observar o papel exercido por uma terceira instância de adaptação às demandas
do sistema capitalista, especificamente as econômicas: a CEPAL (Comissão Econômica para
a América Latina e o Caribe). Em meio ao declínio do DASP e antes da institucionalização do
ISEB, surge a CEPAL, em 1948. Como a própria nomenclatura define, seu objetivo era
auxiliar teórica e metodologicamente no desenvolvimento econômico da América Latina
(HAFFNER, 2002). Órgão mais amplo e criado pelas Nações Unidas depois da Segunda
Guerra, a CEPAL influenciou a conduta dos órgãos internos nacionais. Seu foco principal
residia no planejamento de adequação do Brasil, qualificado como de economia periférica
frente aos padrões europeus e americanos de desenvolvimento. A relação da CEPAL com os
governos Vargas e Kubitschek tornou-se inegável, motivando a criação de indústrias de base e
do aparato de escoamento da produção nacional, porém negligenciando as especificidades
brasileiras. Diante de uma condução política e administrativa basicamente técnica, Haffner
(2002) destaca que se acreditava estar criando as melhores condições para o progresso social e
a autonomia nacional. Mas, a cada crise, o que acontecia era o inverso e o país era cada vez
mais colocado em interdependência externa, distanciando-se paulatinamente da ideia de
emancipação e autonomia próprias. A influência cepalina gerou este resultado, especialmente
quanto ao Plano de Metas de Kubitschek, que se utilizava imensamente do capital e da
assistência internacional.
DASP e CEPAL eram órgãos que reuniam “autoridades do governo, empresários,
militares nacionalistas e técnicos civis”, com o interesse pelo “bem comum do país, assim
como o resguardo da economia nacional e das suas estruturas” (HAFFNER, 2002, p. 28). Em
seu conjunto, as três instâncias – DASP, ISEB e CEPAL – podem ser apontadas como a alma
do Estado de tipo prussiano no Brasil, edificador das grandes políticas pelo alto, contribuindo,
respectivamente, nas esferas administrativa, política e cultural, e econômica, para que na
gestão de diferentes governos houvesse adaptação das camadas populacionais ao processo de
modernização vertical centralizado.
O segundo marco burocrático-reformista pertence à Gestão Pública do Estado pós-
golpe de 1964, em que o aniquilamento do não idêntico experimenta proporções de um modo

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jamais visto. Em meio a diversas medidas antipopulares, a segunda grande reforma


administrativa do Estado no Brasil do século XX é instituída pelo Decreto-Lei n. 200, de
1967. Como princípios balizadores da Gestão Pública brasileira estavam o planejamento, a
coordenação, a descentralização, a delegação de competências e o controle. Esses desígnios
mantêm relação com os órgãos propulsores elencados, que continuam exercendo certa
influência. Instaurou-se uma demarcação mais precisa dos princípios burocráticos, o que,
consequentemente, é responsável por uma maior cisão entre Estado e sociedade civil.
Unido aos “avanços” burocráticos previstos pelo regime militar, notadamente
malsucedidos, andou o autoritarismo de sucessivos governos, protetores dos interesses
capitalistas internacionais. “A ditadura surgiu, assim, como a melhor solução possível para o
macroproblema da reprodução do sistema de classes em sua globalidade. Dado esse passo,
estava resolvido em nome de quem o poder estatal seria exercido” (MARTINS, 1977, p. 215).
Por vinte e um anos desenvolveu-se uma das evidências mais contundentes da recusa e
cerceamento do não idêntico no Brasil contemporâneo. Foi uma espécie de explosão
hipertrófica dos processos de danificação da Gestão Pública, cuja reparação o Estado jamais
priorizou por um enfoque antissistema ou do não idêntico.
A reforma imputada visava aos interesses econômicos, especialmente os do capital
estrangeiro, tanto que Delfim Netto assume o Ministério da Fazenda em 1967 e nele
permanece por sete anos na execução do chamado “milagre econômico” (1968-1973).
Fundamentado na mais agressiva ortodoxia monetária, o economista objetivava o crescimento
de um ‘bolo’ cujas fatias nunca foram divididas entre a maioria despossuída da população. O
anunciado ‘milagre’ foi concretizado à revelia das reais necessidades das massas empregadas
pelo capital. De modo geral, as unidades administrativas ou órgãos propulsores desse segundo
marco reformista eram mais difusos que aqueles do longo período anterior, oscilando em prol
do atendimento das demandas econômicas totalizantes dos governos militares. Assim, desde o
Decreto n. 200/67 até a abertura democrática, o país percorreu várias etapas de ajustes
econômicos, cujas dinâmicas se constituíram na expressão de uma Gestão Pública
peculiarmente danificada pelo enfoque economicista. Na realidade, esta é apenas uma
expressão finalizadora do que aconteceu “ao longo da história da República, desde 1888-89
até o presente, e o poder estatal confunde-se cada vez mais com a economia política do
capital, da acumulação capitalista” (IANNI, 2004, p. 232). Inerente à sociedade industrial, a
única forma de conhecimento que se torna relevante é o técnico que, segundo Adorno (2009),
é abstraído das relações sociais de produção como se fosse o único que governa a forma
social, embora seja essa uma manobra teórica que encontra justificativa na dominação
burocrática.
A marca patente desta faceta da danificação é a desconsideração da perspectiva social
em favor do desenvolvimento econômico, pois o foco se constituiu em mediar interesses de
equilíbrio estatal com a prospecção das grandes empresas. É daí que surge a ideologia
midiática de sempre perguntar se a economia vai bem, mas sem nunca querer saber se o povo
vai bem. Essa dinâmica revelou-se como o mais saliente recorte de uma totalidade autoritária
disfuncional, reflexo do capitalismo excêntrico que se instalou no Brasil. A partir disso é que
evoluímos para uma imersão maior da lógica empresarial no Estado, através do reformismo
gerencialista.
A Gestão Pública brasileira alcança o terceiro marco burocrático-reformista pelo
projeto da Reforma do Aparelho Administrativo do Estado da década de 1990, que consistiu,
basicamente, na adequação do discurso da gestão estatal aos padrões de governos
internacionais, especialmente dos EUA e do Reino Unido. O país sofre um processo de
conformação aos ditames neoliberais, minorizadores do papel do Estado e maximizadores do
capital privado. A Nova Gestão Pública ou gerencialismo cujas bases teóricas são o
pensamento neoliberal e a teoria da escolha pública (PAULA, 2005), formataram um conjunto

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de doutrinas administrativas desde a década de 1970. O Chile foi o primeiro país da América
Latina submetido a estes ditames, que atingem o Brasil duas décadas depois.
O gerencialismo compunha-se de um arcabouço teórico que integrava uma crítica à
burocracia, a difusão da cultura do management e do empreendedorismo na Gestão Pública
(PAULA, 2005). Esta tendência desenvolveu-se como um “tsunami” pela cartilha neoliberal,
veiculada por obras como Reinventando o governo, de Osborne e Gaebler, voltadas à nova
classe dirigente do Estado – os agentes financeiros e rentistas. Essa classe subverteu a
burocracia pública às regras do mercado, contra o Estado.
Com o auxílio da crítica à razão instrumental de Adorno (2009), precisamos enxergar
com reticência os pressupostos da eficiência e da produtividade, eixos centrais dessa cartilha.
Não são princípios novos e tomá-los assim constitui uma ignorância histórica, pois são tão
antigos quanto as primeiras teorias que servem às grandes empresas emergentes com a
revolução industrial. São apenas repaginados e adquirem a “roupagem da moda”, sendo
ideologicamente reapresentados pela hegemonia anglo-americana, sem que possam, muitas
vezes, ser vistos como enxertos de fora para dentro na lógica da ação do Estado brasileiro.
No Brasil, esse sistema de gestão levou ao que Paula (2005) refere como novíssima
dependência, não abandonando-se o desenvolvimento dependente e associado da década de
1960, adaptando o país às novas regras do capitalismo internacional. Para a autora, a reforma
gerencial foi o desdobramento da visão do então presidente Fernando Henrique Cardoso, que
conciliou seu pragmatismo à ideia de desenvolvimento dependente e associado, cujos
principais pressupostos centravam-se na abertura dos mercados e atração de investimentos
externos. Isso naturalizou ainda mais a histórica exploração sobre o país, especialmente pelo
ajuste ao Consenso de Washington e às tendências da Terceira Via. O resultado foi uma onda
de privatizações e terceirizações, bem como uma forte exaltação das organizações não
governamentais como assessórias – substitutivas ou compensatórias – ao papel do Estado.
Operacionalmente, a reforma do aparelho do Estado de 1995 objetivou deslocar o
papel da burocracia no Brasil. A ideia – meramente ideológica, porque sem lastro material –
era superá-la, mas isto jamais aconteceu. Concentrou-se o processo decisório em gestores
pragmáticos, apenas comprometidos com o objetivo da eficiência na gestão do Estado, numa
continuidade mais rebuscada da visão economicista. Ocorreu que, ao mesmo tempo em que se
perseguiu o intuito de direcionar a configuração do poder para outras frentes, em especial a
econômica, fez-se nada mais do que reeditar o jogo, aparentemente neutro, da suposta
separação entre política e administração.
A instituição do MARE (Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado)
demarca a aplicação desta reforma, em que o modo de gestão presente redundou numa maior
incidência do capital especulativo sobre o país. Embora tenha carregado o elemento social,
este funcionou como uma de suas mais atraentes justificativas. Elegeram-se, através do
MARE, novos instrumentos de intervenção do Estado calcados em cinco diretrizes
(institucionalização, racionalização pela avaliação estrutural, flexibilização com a criação de
agências executivas, publicização pela viabilização das organizações sociais, e
desestatização), que refletiam mudanças organizacionais, instituídas através da promulgação
da Emenda Constitucional n. 19, em junho de 1998 (COSTA, 2008).
Doravante, o que tem se consolidado como Estado gerencial é o que adota
pressupostos semelhantes aos de uma burocracia flexível, onde os limites de ação se dão via
contratos e mecanismos de controle sutis. Paula (2005) critica estes como resultados de um
Estado despolitizado e pouco democrático, incapaz de auxiliar na superação de conflitos
sociais. Para a autora, especificamente decorrentes da peculiaridade nacional, o modelo
gerencialista apresentou como limites importantes: (i) centralização do processo decisório e
desestímulo à participação social; (ii) ênfase nas dimensões estruturais da gestão, em

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detrimento da social e da política; e (iii) propagação de um modelo de reforma e de Gestão


Pública que jamais fora implantado no país.
Embora promulgada, a emenda que instituiu esta terceira grande reforma jamais
executou uma avaliação estrutural. Do projeto de agências executivas surgiu uma única – o
Inmetro – e da proposta de publicização surgiram apenas cinco organizações sociais. Percebe-
se uma frustração até mesmo no intuito de atender adequadamente a reprodução capitalista,
embora não possamos ignorar que a maior realização do MARE tenha sido a privatização de
empresas estatais, reforçando a ideia neoliberal do Estado mínimo, acentuada desde o governo
Collor (COSTA, 2008).
No tocante à alteração das causas da desigualdade brasileira, o MARE se instituiu
como mais um movimento de negação do não idêntico ao negligenciar o desenvolvimento
social no país. Embora haja, para além disso, uma leitura sobre a necessidade de uma Gestão
Pública societal (PAULA, 2005) para corrigir as mazelas do gerencialismo, naquilo que
concebemos como uma Gestão Pública danificada, tais bases não contemplam alterações
fundamentais nas relações sociais, porque sustentadas pela base capitalista.
No conjunto das reformas elencadas houve um assujeitamento passivo da Gestão
Pública às demandas do capital, negligenciando a crítica imanente por efetivar uma
desconexão dos interesses sociais, como no formalismo manipulado conforme os interesses
em jogo. As instituições foram postas de fora da realidade, lógica que se opõe ao pensamento
adorniano quando ressaltamos a crítica imanente como crítica do dogmatismo por este
impedir o questionamento da própria prática social, se restringindo à contemplação
desinteressada. Ignora-se o desejo de superação do sofrimento do mundo, permanecendo-se
apenas na esfera da adaptação possível ao sistema vigente, consolidando uma Gestão Pública
de concessões e complacências.
A única experiência estética possível na burocracia é a de um nivelamento cooperativo
em prol do sucesso de sua configuração, mas que, ao cabo, serve a poucos. O conceito
permanece encantado, elevando-se a uma pretensão idealista que visa à identidade, o traço
triunfante da dominação ideológica. São admitidas apenas saídas paliativas, reforços à
continuidade do ciclo reformista, agradáveis aos ouvidos do poder capitalista e, inclusive,
patrocinadas por seus atores, que com sua exaltação ainda obtêm um significativo
reconhecimento simbólico.
Embora algumas contradições da realidade capitalista tenham sido minimizadas com o
aceno a alguns programas sociais, dialeticamente a maioria da população permaneceu sob o
jugo do capital financeiro externo, sendo isto maquinado e maquiado por estruturas de poder
muito eficientes. Ao tratarmos as reformas da Gestão Pública brasileira como ‘malabarismos
reformistas’ isso é melhor evidenciado.

Poder da burocracia
Tragtenberg (1989) entendia as reformas como subterfúgios que dizem tudo mudar
para manter as coisas como estão. Este parece o princípio regente das reformas atuais que,
quando não há piora do quadro de desigualdades sociais, permanece a sensação de que não
virá nada de diferente. O aperfeiçoamento da burocracia apenas encerrou a luta de classes em
relações de autoridade formalmente preestabelecidas. Ao passo que as modificações da era
burocrática brasileira não ensejaram nada mais do que malabarismos reformistas, elas
favoreceram o desenvolvimento da estrutura do capital, sempre preservando o poder da
burocracia e, por extensão, o poder das classes dominantes.
O interesse político é anunciado de modo neutro pelo trâmite burocrático, e vai aos
poucos afastando expectativas de transformações profundas. Para Adorno (2009, p. 60), o
caráter reformista merece ser entendido como o absoluto que se transforma “em algo
histórico-natural a partir do qual pôde ser alcançada de maneira relativamente rápida e tosca a

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norma da auto-adaptação”. Esta auto-adaptação (sich anpassen) possui uma conotação


diretamente política, sendo um termo utilizado pelo nazismo para expressar a adequação
necessária de pessoas e instituições ao novo regime, não permitindo uma crítica imanente nos
termos de Adorno. O particular é extinto no momento em que as reformas se restringem a
uma ‘clínica geral’ amorfa, o que faz compreender as razões de sua incompletude
(pré)programada.
Nas práticas reformistas a tônica do Estado brasileiro se tornou instrumental não por
acaso, mas como integrante do jogo do poder mundial, que encontra ressonância interna ao
associar-se a interesses singulares. A burocracia se automatiza identificando-se às forças
econômicas e “para sua administração não só não precisa mais dos reis como também dos
burgueses: agora ela só precisa de todos. Eles aprendem com o poder das coisas a, afinal,
dispensar o poder” (ADORNO e HORKHEIMER, 1997, p. 52). O núcleo do pensamento ou
da lógica burocrática é essencialmente voltado à técnica instrumental. Nesse “abandono do
pensamento (...) o esclarecimento abdicou de sua própria realização. Ao disciplinar tudo o que
é único e individual, ele permitiu que o todo não compreendido se voltasse, enquanto
dominação das coisas, contra o ser e a consciência dos homens” (ADORNO e
HORKHEIMER, 1997, p. 51).
A pretensa neutralidade axiológica da burocracia acentuou o seu poder no Brasil.
Associado à barbárie social, o poder da burocracia cresceu e se fortificou lastreado pelas
ditaduras de Estado a partir de 1930. Quando o reformismo daspiano instituiu o primeiro
modelo de Estado burocrático no Brasil, autoritarismo e centralização marcaram a lida do
Estado com o social. Entre 1936 e 1945 a reforma do Estado se deu com base nas teorias
administrativas ocidentais e disto deriva, segundo Wahrlich (1974), a motivação para estudar
cientificamente a Administração no país. Os resultados do emprego dos princípios daqueles
estudiosos são negativos, indo do controle e da centralização à coerção típica do regime de
Vargas.
Daí que a modernização de Vargas impôs-se via naturalização do jogo meritocrático,
cristalizando o mérito e isolando-o dos condicionamentos sociais. Observando esse quadro,
Paiva (2009) destaca que houve imersão numa realidade na qual o sujeito não mais dispõe dos
meios de produção, isto ficando restrito às burocracias, tanto públicas como privadas. Da
mesma forma, pelos desígnios tayloristas, o procedimento burocrático rejeitou a discussão
política e ideológica para operar a gestão pela justificativa de que critérios racionais de
precisão e eficiência não seriam úteis. A opção pela saída técnica construía um imaginário
apolítico, desvirtuando a política e, ao mesmo tempo, exaltando a neutralidade da técnica.
Alcançar um Estado centralizador, portanto, antes de uma consequência desavisada,
era algo desejado para manter interesses individuais. Assim, decisões obscuras imediatistas
firmaram modos de ação na Gestão Pública que se perpetuaram indiscriminadamente,
resultando em fragmentações institucionais nas quais os operadores da burocracia estatal
passaram a conhecer muito a respeito de pouco (TRAGTENBERG, 2006).
A elite conservadora conseguiu que o Estado alcançasse uma abertura que elevou, pelo
esforço modernizador, “as bases materiais do capitalismo e do mercado interno brasileiro”
(SOUZA, 2006, p. 148). À elaboração do consenso foi crucial a repressão das classes
subalternas, em que a dimensão técnica do Estado se associou estrategicamente à manutenção
da burocracia corporativa, capturando inclusive os sindicatos. Sobre essa condução coercitiva,
Adorno (2009, p. 26) nos alerta quanto ao fabrico da sensação de liberdade, dada em última
instância pelo consumo:
à sombra da incompletude de sua emancipação, a consciência burguesa precisa
temer vir a ser anulada por uma consciência mais avançada; ela pressente que, por
não ser toda a liberdade, só reproduz a imagem deformada dessa última. Por isso, ela
estende teoricamente a sua autonomia ao sistema que se assemelha ao mesmo tempo
aos seus mecanismos de coerção.

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Pelos governos militares a força da burocracia foi sentida de tal modo que o último
dos seus presidentes, João Batista de Figueiredo, criou, pelo Decreto n. 83.740/1979, o
Programa Nacional de Desburocratização, dirigido pela própria presidência com o auxílio de
um ministério extraordinário, o da Desburocratização, que existiu de 1979 a 1986. Um de seus
ex-ministros, João Geraldo Piquet Carneiro, observou, num sintético texto intitulado
Histórico da desburocratização, que a preocupação com a centralização administrativa é
antiga, presente nos viscondes do Uruguai (1807-1866) e de Mauá (1813-1889), e que já a
Reforma Administrativa de 1967 visava descentralizar ações do executivo, o que foi
comprometido pelo “recrudescimento do regime militar, em 1969” (CARNEIRO, s.d., p. 3).
Evidente que do lado das mediações da burocracia, incluindo seu aparato jurídico,
houve limitações às pretensões imediatistas ditatoriais e a preceitos liberais no exercício da
economia. Isso sugere tanto o cuidado de não termos uma visão contrária acrítica da
burocracia, como também não uma visão favorável acrítica. Não cabe criticar a burocracia
para liquidar as esferas do Estado em favor do privatismo liberal, nem defendê-la para ser
contra isso, mas criticá-la para uma abertura democrática do Estado em favor da participação
da sociedade civil, ainda que também neste ponto haja o risco da acriticidade de se pensar que
esta é a solução definitiva a ser almejada, liberando o próprio Estado de uma crítica aos seus
fundamentos históricos contraditórios.
Apesar de praticamente todas as propostas de reformas antiburocráticas incluírem a
justificativa de maior eficiência no acesso da população aos serviços públicos, o fato é que
pouca ou nenhuma questão social objetiva vigiu verdadeiramente por trás de tais tentativas e
reformas. No mais, a burocracia estatal foi atacada para a remoção de travas do Estado em
favor de teses liberais e privatistas, o que está presente mesmo no Decreto mencionado,
apesar da construção de grande parte do parque nacional. Após intenso desmantelamento da
máquina administrativa, as privatizações na reforma dos anos 1990 foram justificadas em
razão da ineficiência oriunda do peso do Estado. A crise do Estado analisada pelo ministro
Bresser-Pereira, do MARE (Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado),
resumida no PDRAE (Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado) desemboca na
conclusão de que o Estado deveria deixar “de ser o responsável direto pelo desenvolvimento
econômico e social, para se tornar seu promotor e regulador” (COSTA, 2008, p. 863).
Apesar da defesa da substituição do ethos burocrático pelo gerencial, com o PDRAE
apenas a configuração geral da burocracia foi alterada, ficando distante qualquer rompimento
efetivo. Tanto não são contrapostos os princípios da burocracia, que eles se tornam mais
voltados a um Estado otimizado, introduzindo o funcionalismo público na mesma lógica do
capitalismo. Enquanto ministro do MARE, Bresser-Pereira corroborava com uma burocracia
pública que controlasse o processo decisório e assegurasse a eficiência administrativa do
Estado, resgatando o ideal tecnocrático dos modelos reformistas anteriores (PAULA, 2005).
Correlato ao grau limitado de confiança em servidores e políticos (BRESSER-
PEREIRA, 2003, p. 28), houve um apelo ao empreendedorismo da década de 1970, que
entrou no Estado brasileiro para sustentar sua função lucrativa. Exemplo disso é o emprego da
expressão cidadão-cliente, que naturalizou o cidadão como mero consumidor dos serviços
oferecidos pelo Estado. Assim, a reforma gerencial não desmantelou o poder da burocracia,
mas buscou lhe conferir uma feição “mais humana”, contraditória e profundamente mais
nefasta, porque tal mercadorização dissimulou mais ainda as desigualdades.
Malgrado a defesa de que a qualificação técnica ocorre em favor do interesse público,
a burocracia estatal acabou se firmando como a mais perfeita mímese do capitalismo
empresarial. Os burocratas frequentemente colocam-se como defensores do interesse público,
autodenominando sua atuação como apolítica e apartidária. Para Gouvêa (1994), esta é uma
autonomia inconsistente com a realidade de seu espaço de atuação, condicionada por limites

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

estruturais em meio a interesses diversos. Os próprios burocratas acabam decidindo o que é o


interesse público, cujos resultados são imposições de um poder descontrolado.
Nesta impossibilidade da técnica resolver os dilemas da Gestão Pública – mas que
comercialmente se colocou como única forma para governar – ampliam-se os mais diferentes
níveis de controle no Estado. Como formalizações da burocracia especializada moderna, o
embasamento do controle não dista nenhum pouco das teorias da empresa capitalista ou da
administração privada. Acompanhando a interpretação de Faria (2010), percebemos que a
burocracia age como se as relações de poder não dependessem das relações sociais. Pela
Gestão Pública corrente, é da mesma forma que o Estado também passa a advogar um papel
neutro frente aos problemas sociais, tratando-os como técnicos. Neste sentido, mesmo as mais
avançadas tecnologias do reformismo não estão libertas da histórica incompetência da
burocracia.
Junto do espírito capitalista, a Gestão Pública continua operada pela tecnoburocracia,
que se basta apenas mantendo o seu lugar e o das classes dominantes. Não faz parte de sua
natureza uma ousadia para além daquela demonstrada em sua trajetória histórica, cujo
avultamento de papéis é apenas a ponta do ‘iceberg’. Por isso, jamais os burocratas
almejariam capturar o lugar das classes dominantes, oxalá motivar mudanças estruturais
profundas na sociedade. Contentam-se e almejam apenas seguir de mãos dadas ao poder
dominante, se autopromovendo num permanente esforço de distanciamento social. São
exemplos as famílias de elites locais historicamente alojadas nas esferas do Estado, uma clara
manifestação do nepotismo no Brasil. Assim, dificilmente se alcança uma distinção
qualitativa entre reformismo e reforma transformadora ou revolucionária, conforme assinala
Coutinho (1984, p. 194-195) ao colocar em xeque a conservação do sistema capitalista em
diferentes matizes:
é certo que uma correta “estratégia de reformas” não pode deixar de colocar
claramente o objetivo final socialista, a conquista do poder de Estado pelas massas
trabalhadoras; essa colocação do objetivo final (...) é o que distingue uma política
revolucionária de reformas de uma política simplesmente reformista, que sirva
apenas – em última instância – para “contrabalançar” ou “racionalizar” o poder da
burguesia monopolista.

2. Autocentralidade Inautêntica Ampliada


Uma vez que a gestão do Estado se tornou a gestão do capital, chegamos à concepção
da Gestão Pública brasileira como portadora de uma autocentralidade inautêntica ampliada.
Na medida em que a burocracia em seu ímpeto reformista se aperfeiçoou como instância de
controle racional assegurador da gestão financeira estatal, foi objetificada pelo capital,
coadunando com o mundo administrado, que refuga a capacidade de experiência dos
indivíduos, pois carrega uma performance modeladora, em que:
cabe àqueles que, em sua formação espiritual, tiveram a felicidade imerecida de não
se adaptar completamente às normas vigentes (...) expor com um esforço moral, por
assim dizer por procuração, aquilo que a maioria daqueles em favor dos quais eles o
dizem não consegue ver ou se proíbe de ver por respeito à realidade (ADORNO,
2009, p. 43).
A relação proposta para enfrentar o mundo burocrático é dialética negativa e seu grau
de suportabilidade é algo que navega de um extremo a outro. Tornou-se impossível modificar
o sistema a partir dele mesmo. Embora toda tentativa seja válida, é hercúlea. As reformas
burocráticas se tornaram necessárias como demandas internas à própria burocracia, mas, por
outro lado, a autonomia da burocracia está sujeita aos interesses do capital, não podendo
exacerbar seus limites, permanecendo-lhe modelarmente circunscrito.
Destarte, ao passo que promulga um Estado regente dos destinos da nação e defensor
aparente dos interesses públicos, a burocracia sempre revela graves limitações de uma franca
desorientação com o social. Apenas se considerados os fatos dos governos ditatoriais, sobram

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exemplos do processo da industrialização a partir da ideia de “segurança e desenvolvimento”.


Pensando nestes reflexos da ‘burocracia militarizada’ dos anos 1960, podemos encaixar as
duas categorias finais da nossa constelação, acentuando nossa crítica ao sistema de Estado
prussiano violentamente edificado no Brasil. Refletimos sobre o democratismo e a estadania
como características dessa autocentralidade inautêntica ampliada, cuja natureza reforça o
caráter danificado da Gestão Pública no Brasil.

Democratismo e estadania
Numa projeção das sombras do naturalmente disposto na luz, democratismo e
estadania só podem ser vistos como ‘anticategorias do convencional’, assim demarcadas para
uma compreensão reversa da história. Pela crítica desnaturalizadora, acreditamos ser possível
entrever como se desencadeiam os processos de naturalização. A ideia de conquista da
democracia e da cidadania no Brasil permanece inclusa nos discursos oficiais, mas que
traduzem arranjos deterministas envoltos em uma visão dual da realidade brasileira. Tais
discursos, observados pela dialética negativa, revelam a ideologia da adaptação, e lançam
perigosamente suas premissas aos historicamente desavisados, atingindo até mesmo a
comunidade acadêmica.
O lema apendoado da ordem e do progresso é acriticamente introjetado e destoa
historicamente da realidade nacional, o que se torna facilmente perceptível apenas por uma
atenção superficial à história e à própria realidade concreta atual. Nesse ínterim, democracia e
cidadania continuam sendo conceitos que cumprem um papel associado a certas perspectivas
de pensamento teórico na Gestão Pública. Alimentadas pelo viés kantiano, embasam-se numa
moral orientadora da práxis que, por evitar o caminho dramático da contradição imanente, não
ultrapassa uma preservação rearranjada da lógica do capital.
Entendido por Martins (1994, p. 171) como “o avesso da democracia”, o
democratismo surge quando são disfarçados interesses particulares e colocados de modo
oportunista como interesses públicos. Em seu desvirtuamento da democracia, o democratismo
omite fatos, como esquemas informais de poder que negociam com outras frações
burocráticas do Estado. Também dissimula a relação entre cargos dirigentes e grupos de
interesses não legitimados popularmente para o comando do Estado. De outra parte, cria-se
uma ilusão democrática na sociedade informacional, muito embora já se tenham recursos
tecnológicos que propagaram a transparência e a fiscalização das ações do Estado. Mas, isto
não se converte em democracia efetiva, o que nos remete à reprodução ampliada do capital:
Realizar apropriações tecnológicas para construção da cidadania e da democracia
adquire sentido de mímesis expressiva falsa (ADORNO, 2009). O fato de existirem
tecnologias sociais não assegura emancipação e acessos equânimes, pois seus fins podem ser
apenas a reprodução capitalista. Existem, portanto, monumentais limites quanto à participação
popular na gestão do Estado e, por conseguinte, quanto à cidadania, sobre a qual é criada uma
ilusão de inclusão na sociedade informatizada, o que pode ser identificado como um efeito em
cascata oriundo da lógica participacionista. Veja-se o período da redemocratização, com a
democracia participativa fortemente motivada, mas que Chasin (2000, p. 262) observa como
“revolução dos procedimentos”, que tornam democracia e participação idênticas. As formas
prevaleceram sobre conteúdos, “a participação se torna participacionismo e a democracia o
universo de sua realização. Em outros termos, a democracia se revela como participacionismo
negociador, o plano único ou supremo da política, a forma de encarnação da liberdade”.
Esse aprendizado é assimilado pela Gestão Pública para obter consenso populacional.
Absorvido da empresa privada corroborou “um participacionismo [que] tende a manter a
velha forma de relação entre capitães de indústria e operários” (TRAGTENBERG, 2006, p.
103). Ao ‘cidadão’ resta uma sensação de inclusão sob o sistema democrático representativo,
porque determinado pelo poder econômico, que descaracteriza necessidades sociais.

202
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Inobstante, essa democracia não substantiva representa uma alternativa previamente


estipulada, calcada em um suposto pensar livre, mas que em si já representa um fragmento de
heteronomia, contradizendo qualquer pensamento que a isso possa resistir (ADORNO, 2009).
Para Adorno (1992, p. 115), “a liberdade seria não a de escolher entre preto e branco, mas a
de escapar à prescrição de semelhante escolha”. Limitada, a democracia adquire um tom
plebiscitário, no qual as opções são fechadas entre alternativas prévias, às quais todo não
idêntico deve convergir. Assim, historicamente, a estrutura político-social que serve à Gestão
Pública, reforçada pela democracia representativa, apenas encobre interesses corporativos. O
mesmo “capitalismo democrático”, apontado no tocante às empresas por Motta e Bresser-
Pereira (2004) passa a ser generalizado ao complexo social, sendo o Estado enquadrado em
moldes idênticos aos das organizações.
Nesta aparência frutificaram ações participacionistas, tais como os Orçamentos
Participativos (OPs), anunciadores de um caminho de inovação democrática. Ilustrados pela
vertente da administração pública societal, prometeram reinvenção político-institucional e
cura de muitas mazelas da gestão pública, assim como outros modelos alternativos de gestão,
como economia solidária e gestão social, que também não rompem com o sistema, por serem
incapazes de superar as limitações já exemplificadas. Até podem abarcar a noção de
“excedente utópico” de Bloch, mas reduzem a utopia a reformas que se colocam de antemão
flagrantemente aquém de qualquer emancipação. Tal limitação, naturalizada como ‘único
alcance possível’, não se coaduna com as extensões da vida danificada, patentes sob a espessa
desigualdade social da era do capital.
Tais panaceias, quando muito, apresentaram soluções mediadas pelo capital. Isso
revela a importância de Adorno ter pensado a subversão como exigência necessária para
promover um pensamento livre de qualquer sistema. Torna-se correto dizer que vivemos sob
o governo de uma estadania, avesso a uma cidadania plena, social, que contemple
igualitariamente as pessoas em suas demandas. Pensar em estadania nos permite submeter a
cidadania a uma avaliação histórica das suas contradições, o que revela uma cidadania
aprendida a ‘porrete’. Como avalia (CARVALHO, 1998), no processo de ‘reconhecimento’
da cidadania brasileira há uma histórica política do “pau-brasil”. Desde a escravidão (com o
chicote), perpassando pelo Brasil Colônia (com a cacetada) e pela República (com o sarrafo),
até a ditadura (com o pau-de-arara e o choque elétrico), o Estado enquadra o espírito cidadão,
sendo bom cidadão aquele que se encaixa na hierarquia.
Neste processo histórico de anulação da cidadania é que se consolidou a estadania
como a melhor das hipóteses de relacionamento entre o indivíduo e o Estado: “estadania”,
“em contraste com a cidadania” é a prevalência de uma “cultura orientada mais para o Estado
do que para a representação” (CARVALHO, 2009, p. 221). O Estado, visto como dono de
todo poder age como repressor e cobrador de impostos, na melhor hipótese distribuidor de
favores e empregos. Nesse contexto, a ação política é orientada para a negociação em linha
direta com o governo, tal como a empreendida pelo operariado na Primeira República e na
década de 1930, denotando uma adaptação geral ao quadro ditatorial (CARVALHO, 2009).
Destarte, o cidadão teve sua autonomia e liberdade tolhidas pela verticalização
política, o que resulta na servidão ao burocratismo estatal. Como agravante desse contexto de
cidadania renegada está a promoção da cultura do consumo, que encobre o desenvolvimento
do sujeito e o torna objeto da sociedade capitalista. Para Carvalho (2009), a crueldade do
consumismo transforma a cidadania em mera reivindicação ao direito de consumir, onde as
perspectivas do avanço democrático se veem diminuídas pela adoção de uma alternativa
cidadã liberalizante. Adorno (2010) considera que se relações sociais não cumprem promessas
de liberdade, o sonho da formação é falsificado pela própria imposição do mundo organizado,
expressando-se a mais franca semiformação do cidadão. A mera sensação de cidadania a
transforma num grande engano, porque distante de uma proposta verdadeiramente

203
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

emancipatória. Uma realidade em que ser cidadão é tão somente poder consumir caracteriza-
se pelo governo do poder do capital, motivado pelo próprio Estado. O capital condiciona não
apenas a maneira como o Estado é administrado, mas a consciência dos cidadãos,
transformando-os em “consciências coisificadas” (ADORNO, 1995), tendo seu
comportamento manipulado pela lógica do consumo. O Estado exerce um papel de
manutenção do sistema capitalista e de concentração do capital, servindo a política como um
mero instrumento de manipulação grosseira. Encerram-se as possibilidades de elaborar um
plano de finalidade própria, de primazia pelo social, pois o Estado passa a ser condenado a
resolver crises estruturais de acumulação perpetuadas pelas instituições capitalistas.
Como agravante de uma impessoalidade excessivamente burocratizada, o cidadão-
cliente é relegado a mero dado numérico, pois o Estado o submete à quantificação. Este é
apenas um dos fatores que caracteriza, pelo déficit de humanização, a subcidadania que, para
Souza (2006), é um fenômeno de massas típico das sociedades periféricas modernas. Ela se
origina, dentre outros fatores, de uma dinâmica sociocultural subordinada, pela qual se
constrói historicamente uma hierarquia valorativa que segmenta como subcidadãos os
desclassificados sociais, “subgentes”, integrantes de uma ralé estruturalmente formada a partir
da própria ideia de periferia. Essa ralé é articulada junto a extratos que podem se tornar
incluídos privilegiados, mas extremamente segmentados, tanto no tocante ao acesso ao
mercado como ao Estado (SOUZA, 2006).
Assim, pensar efetivamente em cidadania parece tão distante quanto pensar em
democracia, pois o Estado assimilou a era da indústria cultural ao manipular as mentes
‘estadãs’ e conferir sensação de inclusão no seu jogo ‘democratista’. Diante da dificuldade
constante que carrega em seus acordos com o capital, não consegue desvencilhar-se de
modelos apenas adaptativos. Como destaca Adorno (1992, p. 176), a indústria cultural
“modela-se pela regressão mimética, pela manipulação de impulsos de imitação recalcados”.
Da tríade técnica-eficiência-produtividade derivam construções ilusório-adaptativas
travestidas como alternativas, alimentando a Gestão Pública gerencialista por um ciclo
manipulatório que garante a “unidade e impermeabilidade” do sistema (ADORNO, 2002). O
que não se percebe é que todo pensamento antissistema é alternativo, porém, nem todo
pensamento alternativo é antissistema. Disso podemos concluir entendendo muitas das
infindáveis ‘teorias alternativas’ como meras opções de encaixe ao sistema do capital.

3. Considerações Finais
Na análise que realizamos outras inúmeras burocracias estatais poderiam ser referidas.
Porém, limitamo-nos às três reformas que interferiram significativamente na gestão do Estado
brasileiro desde a industrialização, porque são elas que definiram os traços de danificação da
Gestão Pública. Tais reformas foram sempre amparadas pela legalidade e alcançaram
legitimação no seio social, mesmo sendo impostas à revelia das necessidades concretas, sendo
a massa populacional historicamente tratada como instrumento dos interesses capitalistas,
quando não coagida pela via prussiana do Estado. Corrobora-se um sistema de Estado que em
sua técnica apenas reproduz os interesses dominantes, desvirtuando o interesse público, pois é
óbvio que o Estado capitalista não é mentor de processos emancipatórios. Comprovados os
inúmeros malabarismos reformistas, o poder de Estado também se mostra danificado, pois
instaurou como formas de gestão as que atendem os interesses conservadores da formação
capitalista.
Do modo como se apresentam as instituições do Estado e as estruturas político-
burocráticas alimentadas pela Gestão Pública, permanecem possíveis apenas as amarrações
técnicas da racionalidade instrumental, decorrendo disso um déficit de aceitação das
contradições de classe integrantes da dinâmica da Gestão Pública. Isto reverbera à danificação
da Gestão Pública, visto que seus ideólogos não pensam para além do que as práticas

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

instrumentais delimitam. A Gestão Pública danificada consolida-se como consequência de


uma amarração histórica e ideológica que, segundo Adorno, nega o diferente e, por outro
lado, se expressa na sua reprodução social. O Estado se mantém como forma de um conteúdo
que está fora dele, de diferença social e classista. Por consequência, os processos de gestão
inerentes, que observamos claramente à luz das reformas burocráticas em seu burocratismo,
correspondem à objetificação do Estado pelo capital, o qual atende desde a concepção de
desenvolvimento como sinônimo, apenas, de crescimento econômico.
Enfim, expomos como o fenômeno burocrático foi historicamente constituído no
contexto brasileiro, servindo-se tanto de teorias da Administração, como da Gestão Pública,
compreendendo como correspondem aos interesses dos tecnoburocratas do Estado. O fizemos
por um emprego de fundo dos lineamentos do método de Adorno, demarcando singularmente
os elementos do poder político-burocrático, apontando criticamente o emaranhado de sua
negação social, o que em Adorno traduz-se como sistema da razão ou sociedade administrada
que nega a verdade e o direito do não idêntico.

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206
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

1
Derivado do que Adorno (1992) chamou de vida danificada (beschädigten Leben), o que vivemos hoje como
resultado de uma sociedade administrada, onde a consciência humana é moldada para se adaptar às exigências
técnico-econômicas.
2
São sete os elementos conceituais pressupostos na dialética negativa de Adorno: crítica da razão instrumental,
mímesis/expressão, semiformação, crítica imanente, primazia do objeto, antissistema e não idêntico. Eles
constituem um ‘meio termo’ entre a realidade da vida danificada e os elementos críticos para desbaratá-la.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Cartografia Do Internacional Que Circunda Arapiraca: Por Um Fazer A


Administração Política Do Internacional Em Uma Periferia Do Agreste
Alagoano

Andre Luis Nascimento dos Santos


Universidade Federal de alagoas (UFAL)

Diego Monteiro dos Santos


Universidade Federal de alagoas (UFAL)

Andrea Yumi Sugishita Kanikadan


Universidade Federal de alagoas (UFAL)

RESUMO

O presente artigo tem por intenção relatar os resultados de pesquisa obtidos em torno do
mapeamento das experiências do internacional que encontram em curso na cidade de
Arapiraca e no seu entorno, qual seja, o agreste alagoano. Fruto do projeto de iniciação
cientifica PIBIC realizado ao longo dos anos de 2015 e 2016 intitulado por As trilhas do
internacional no agreste alagoano, as pretensões dessa pesquisa foram de ordem exploratória,
donde a equipe de trabalho se lançou a campo com o fito de ampliar o rol de informações
acerca das trilhas em questão. Nesse sentido, para a coleta de dados foram realizadas
entrevistas junto a personagens chaves, tais como: funcionários públicos da prefeitura de
Arapiraca, empresários, funcionários de empresas multinacionais, funcionários de empresas
locais com atividades comerciais de importação e exportação, agentes de ONGs
transnacionais, enfim, uma gama de atores que se nos apresentaram no curso do projeto. Para
além dos resultados do mapeamento, o artigo buscará refletir a importância do enclave
internacional como dimensão da administração política a ser considerado por periferias, à
exemplo de Arapiraca.

1.0 Introdução

O presente artigo, fruto do projeto de iniciação cientifica PIBIC realizado ao longo dos
anos de 2015 e 2016 intitulado por As trilhas do internacional no agreste alagoano tem por
intenção relatar os resultados de pesquisa obtidos em torno do mapeamento das experiências
do internacional que encontram em curso na cidade de Arapiraca e no seu entorno, qual seja,
o agreste alagoano. Na era da globalização, pensar nas trilhas do internacional que circundam
o local, mais que mera curiosidade cientifica, constitui-se em uma etapa fundamental do fazer
a administração política do lugar, um fazer que não se limita às tensões e pulsões das escalas
nacionais, estaduais e municipais, mas que contempla, também, a força do internacional nos
processos de construção do cotidiano dos lugares, sejam eles localizados nos centros, sejam
nas periferias.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Considerando outros estados nordestinos, a região do agreste alagoano teve sua


formação política tardia, algo que reverberou também nos processos emancipatórios dos
municípios que se forjaram nesse território. Não sem razão, entre século XVI e o início do
século XIX, a região do agreste estava adstrita ao Município de Marechal Deodoro, antiga
capital do Estado de Alagoas. Somente por volta de 1801 que parte do território do agreste se
emancipou recebendo o nome de Anadia. É justamente a partir dos processos de emancipação
dos distritos de Anadia no final do século XIX que começam a surgir os municípios do
agreste alagoano, à exemplo de Limoeiro de Anadia por volta de 1881 e o município de
Arapiraca 1924.

Localizada no interior do estado de Alagoas, o município de Arapiraca se constitui em


uma verdadeira periferia do nordeste brasileiro. Cidade entroncamento forjada por uma
diversidade de forasteiros, Arapiraca congloba em si o grande potencial de cidade articuladora
dos interesses econômicos e políticos do agreste alagoano. Contando com aproximadamente
220 mil habitantes (IBGE, 2010), a cidade vem exercendo esse papel de liderança regional,
sendo um ponto de inflexão na tradição sucroalcooleira do Estado, uma característica que a
diferencia e, ao mesmo tempo, a destaca nos processos de articulação dos seus poderes locais.

Seguindo a tradição das periferias agrícolas do Brasil, a primeira inserção internacional


de Arapiraca foi atrelada a um grande ciclo de produção. Nesse sentido, o fumo arapiraquense
ao longo da segunda metade do século XX, mais precisamente os anos 1970 e 1980 foram
pródigos não só em alcunhar essa cidade da periferia do nordeste como a “terra do fumo”,
como também, por abastecer o mercado europeu de tabaco, um ciclo que no plano nacional
fez concorrência com o recôncavo baiano, em especial a cidade de Cruz das Almas.

Com o crescente declínio dos preços do fumo no mercado mundial, os anos gloriosos do
fumo arapiraquense ficaram no passado. Todavia, ao contrário de outras periferias que
amargaram e ainda amargam a decadência dos seus respectivos ciclos, a verdade é que
Arapiraca rapidamente transcendeu à decadência do fumo. A poupança gerada por essa
cultura no seio dos pequenos minifúndios acabou por alavancar outra tradição econômica em
Arapiraca, qual seja, o gosto pelo comércio. Não sem razão, essa cidade hodiernamente figura
como grande centro comercial do estado de Alagoas como vem sendo apregoado pela
imprensa nacional.

Diante desse cenário, o fato de Arapiraca angariar para si a centralidade das relações
regionais do agreste alagoano, faz também com que a sua inserção transcenda o plano
regional, atingindo o plano nacional, bem como, o internacional. Nesse sentido, as dinâmicas
sociais dessa periferia terminam sendo observadas por distintos atores do sistema
internacional, algo que reverbera em outro momento de inserção internacional deste lugar.
Nesse sentido, interessa-nos, aqui, observar, pontuar, mapear e cartografar experiências dessa
natureza que terminam nos indicando a ampliação dos processos de administração política
desse município da periferia nordestina, uma periferia que se constitui periferia nacional (e
internacional), mas ao mesmo tempo, uma periferia que se comporta e é um ator central, seja
do agreste alagoano, seja do próprio estado de Alagoas.

Como caminho metodológico, as pretensões dessa pesquisa foram de ordem


exploratória. No primeiro momento, realizamos um amplo processo de sensibilização para as
questões afetas ao internacional. Nesse sentido, buscamos nos apropriar das principais
temáticas na qual estão presentes as interfaces entre relações internacionais e os poderes
locais.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Cumprida essa etapa, buscamos no segundo momento traçar roteiros exploratórios a fim
de investigar itinerários do internacional que se perfazem em Arapiraca. Justamente após o
reconhecimento prévio destes roteiros, a equipe de trabalho se lançou a campo com o fito de
ampliar o rol de informações acerca das trilhas em questão. Assim, para a coleta de dados
foram realizadas entrevistas junto a personagens chaves, tais como: funcionários públicos da
prefeitura de Arapiraca, empresários, funcionários de empresas multinacionais, funcionários
de empresas locais com atividades comerciais de importação e exportação, agentes de ONGs
transnacionais, enfim, uma gama de atores que se nos apresentaram no curso do projeto.

O presente artigo é composto de quatro itens, seguindo a seguinte ordem: No primeiro,


essa introdução. No segundo item, buscaremos realizar uma reflexão acerca das interfaces da
opinião pública do internacional como elemento conformador do pensar administração
política do internacional de dado lugar, um exercício que reivindica a produção de quadros
sensíveis ao internacional. No terceiro item, analisaremos as trilhas do internacional no
agreste alagoano observadas no processo de pesquisa, são elas: trilhas mercantis do
internacional, trilhas da governança internacional e as trilhas da solidariedade transnacional.
Por fim, no quarto item, nossas considerações finais.

2.0 A opinião pública do internacional e as suas interfaces em prol de uma


administração política do internacional

O condomínio do internacional que passa a ser forjado no pós-guerra e nos chega até os
dias de hoje paulatinamente vai sendo habitado por múltiplos atores que passam a ter algum
poder de gerencia na condução do sistema (BADIE, 2000). Nesse movimento, a formulação
da agenda pública internacional (e, portanto, a sua administração política), tem sofrido
significativos processos de modificação dos seus costumes, procedimentos de deliberação e
tomada de decisão.

Naquele tempo em que os Estados por se só se bastavam, os governantes em alguma


medida, ainda que absolutos no seu poder de mando, por certo, também respondiam a alguma
modalidade de constrangimento. Não à toa, as teorias representativas daquilo que fundamenta
a ordem social de matriz ocidental fazem com frequência alguma alusão à ideia de um
contrato, donde os indivíduos abrem mão das suas esferas de liberdade em favor de um poder
coercitivo e soberano, qual seja, a soberania do Estado. Disso depreende-se que um poder, via
de regra, é sempre o exercício do domínio de um sobre outros, donde a legitimação desse
domínio é expressa pela aquiescência do dominado. É justamente à luz dessa lição que as
teorias da esfera pública foram construídas.

Fraser (2007) argumenta que, embora o uso da expressão esfera pública seja utilizada
por uma série de campos do conhecimento, algo que leva a crer ser um termo intuído pela
realidade social, a expressão, na sua origem está intimamente ligada aos estudos da teoria
política da democracia. Neles, a esfera pública é concebida como espaço comunicativo de
geração da opinião pública como uma força política. Nesse sentido, na esfera pública estão
contidas duas ideias que a completam, quais sejam, legitimidade normativa dos que fazem
parte da opinião pública e a eficácia política do poder comunicativo a fim de poder se exigir a
ação de algum ente soberano.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

À luz do binômio, legitimidade normativa e eficácia política, Fraser (2007) traz à baila a
necessidade de se discutir a noção de esfera pública não somente nos espaços nacionais (algo
que a teoria da democracia já o fizera, sobretudo em Habermas) mas, também, na arena
transnacional, espaço no qual ainda são muito pouco definidos os elementos que compõe esse
binômio. É justamente a partir da crítica ao modelo de democracia deliberativa habermasiana
que Fraser (2007) advoga a necessidade de novas conformações teóricas para a compreensão
do fenômeno da esfera pública no âmbito transnacional. Essa crítica decorre, sobretudo,
porque, se em Habermas (1989, 1998) a ideia de opinião pública estava adstrita aos Estados
nacionais, na esfera pública transnacionalizada a opinião pública deve ser problematizada à
luz dos elementos que compõem a constelação pós-Westfaliana.

Badie (2010), por sua vez, ao refletir sobre os comportamentos sociais que forjam a
opinião pública no cenário contemporâneo, sugere que os mesmos sofrem as consequências
de uma série de elementos que integram a cena do internacional. Dentre esses elementos,
pontuam-se: a globalização das comunicações e as desigualdades que decorrem dela, o déficit
quanto ao acesso às informações, os processos de dependência e independência das mídias
(que terminam por criar impressões, versões e verdades acerca das realidades), enfim, a
miríade de novos elementos contemporâneos que norteiam a constelação pós-Westfaliana.

São justamente essas questões contemporâneas que para Fraser (2007) terminam por
transbordar as fronteiras e quando assim o fazem, reivindicam um alcance da esfera pública
maior do que a teoria tradicional circunscreve. Assim, no rol dessas problematizações acerca
dessa esfera pública transnacionalizada, tanto Fraser (2007) como Badie (2010) estarão muito
mais preocupados em sugerir inquietações do que oferecer respostas.

Fraser (2007) identifica duas correntes que contrastam entre si: a primeira, que defende
a ideia de que essa é uma nova questão trazida pela globalização tardia do século XX, razão
pela qual, a teoria clássica focada no sistema Westfaliano foi pertinente para a compreensão
do fenômeno da esfera pública; a segunda, ao contrário, que defende que o caráter
transnacionalizado remonta as origens do sistema interestatal no século XVII (as campanhas
abolicionistas, os movimentos sociais trabalhistas, etc.), modelo o qual sempre negligenciou o
poder da opinião pública, enquanto arena da política. Nesse sentido, para a autora, ambas tem
méritos, todavia, também guardam em si, lacunas.

Diante desse impasse, Fraser (2007) constata que os endereçamentos da comunicação,


quais sejam o “que”, o “onde”, o “como” e o “quem”, endereçamentos que outrora a teoria
democrática westfaliana respondia a opinião pública hoje se constituem em um mix de
poderes transnacionais públicos e privados que não são nem identificáveis nem
contabilizáveis.

Assim, a grande questão lançada pela autora é se (e de que maneira) a esfera pública
conseguirá manter a performance das funções políticas da democracia com as quais
historicamente ela está associada. Poderá a esfera pública transnacional gerar opiniões
públicas legítimas e eficazes diante desses mix de poderes transnacionais públicos e privados
que não são nem identificáveis nem contabilizáveis? Diante dessa interrogante, Fraser lança a
responsabilidade para a legitimidade normativa (inclusão e participação paritária) e a eficácia
política da opinião pública (tradução em normas e poder administrativo e capacidade de
cumprimento do design forjado). São justamente nos desdobramentos dessas duas categorias
da literatura clássica westfaliana que a autora julga residir as respostas para o ambiente que
não seja mais exclusivamente nacional.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Badie (2010), por sua vez, no plano da legitimidade, advoga que a interação dos atores
sociais que compõem o internacional junto aos espaços de autonomia gerados pela
complexidade decorrente do multilateralismo termina por reverberar na formação de duas
modalidades de opinião pública, quais sejam: a opinião pública internacional (OPI) e a
opinião pública sobre o internacional (OPSI). Em cada uma dessas esferas, tipos distintos de
demandas e expectativas que se esperam dos atores. Nesse sentido, se por um lado as
diplomacias oficiais passam a buscar o apoio dessa opinião pela via da publicidade dos seus
atos meritórios, por outro, essa ação pública termina por facilitar a emergência de novos
empreendedores da ação internacional que terminam por disputar os espaços até então
restritos aos Estados.

Já no que concerne ao plano da eficácia real da opinião pública, Badie (2010) aponta
três posturas que dão conta desse alcance, quais sejam: a) No plano interno, nenhum governo
pode ser insensível a sua opinião pública, seja ela OPI ou OPSI, sobretudo quando essas
atingem certo limiar que o autor não precisa; b) A OPSI não dialoga somente com o governo
nacional, ela é capaz de criar redes de articulação, forjando assim uma convergência
transnacional de ideários; c) O papel de monitoramento desempenhado pelas OPI termina por
criar uma verdadeira coalizão transnacional em prol de determinada agenda de trabalho.

Contrariando a ideia de uma esfera pública transnacional, autores ligados à teoria crítica
advogam a tese de que é um equívoco defender a ideia de que no mundo contemporâneo já
vige uma esfera pública mundial. Nesse sentido, Costa (2003) sugere que, muito embora para
os democratas cosmopolitas a existência de uma sociedade civil global ganhe plausibilidade
empírica, sobretudo, por conta, das novas formas de ação pública dos atores não
governamentais na cena internacional, compará-la às sociedades civis nacionais não lhe
parece apropriado. Aos olhos do referido autor, muito embora do ponto de vista político, a
sociedade civil global consiga atuar ofensivamente pela concretização normativa dos anseios
sociais, do ponto de vista defensivo, falta-lhe a dimensão cultural, ou seja, o lócus de
formação da opinião pública, algo que o faz ancorada na vida real.

É justamente essa distância física entre a sociedade civil global e a vivência cotidiana do
mundo do real que, segundo Costa (2003) reside a fragilidade dessa noção cunhada pelos
partidários da democracia cosmopolita. Nesse sentido, a vivência e a mobilização
transnacional dos atores não governamentais que compõem a referida sociedade civil global
não se dá pela totalidade, mas, tão somente, pela vivência de redes temáticas fragmentadas,
algo que termina ocorrendo a partir de espaços comunicativos transnacionais segmentados.

Seguindo esse raciocínio, Costa (2003) argumenta que a referida opinião pública
internacional, na verdade, não passa de um grupo fechado de atores não governamentais
privilegiados que se constituem a elite internacionalizada dos seus respectivos Estados. Os
debates que são travados nos fóruns internacionais e as suas diretrizes não são representativas
da opinião pública real, haja vista que o modo como essas informações chegam aos Estados e
as comunidades locais representadas dependem do modo como se dá a publicização e
deliberação dessas agendas, algo que, via de regra, precariza enormemente a noção de
democracia participativa.

Em que pese o caráter globalizado ou não das sociedades civis que forjam o exercício
cotidiano da esfera pública transnacional, sobretudo nos tempos hodiernos em que tantos
atores não governamentais habitam esse espaço de emulações e confabulações políticas, a
existência de uma opinião pública qualificada oriunda das periferias teriam a função de tentar,

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

no âmbito das suas competências, praticar as mediações possíveis entre as suas políticas de
interesses e o olhar cada vez mais observador dessa opinião pública em todas as suas
dimensões (OPI e OPSI). É justamente esse exercício de formação e confabulação de uma
opinião pública do internacional e sobre o internacional que ajudará as periferias a ampliarem
o escopo de alcance de suas respectivas administrações políticas. Ao olhar o internacional,
opiniões públicas qualificadas abrigarão no seu rol de análises e de ações o negligenciado
enclave do internacional.

3.0 As trilhas do internacional que gravitam o agreste alagoano, os resultados da


tentativa de uma cartografia do internacional.

Ao longo do processo de pesquisa de campo, alguns andaimes metodológicos foram


seguidos pelos pesquisadores, um conjunto de atitudes encaminhamentos que dão conta das
escolhas intelectuais da pesquisa em si. Nesse sentido, aponta-se: o olhar histórico sobre o
internacional, a busca por uma sociologia dos atores e, por fim, um olhar multe escalar sobre
os fenômenos observados.
Pensar a formação histórica dos processos de internacionalização à luz das tradições
teóricas que interpretam o internacional se constitui no primeiro degrau desse andaime
metodológico o qual tentamos seguir. A compreensão histórica, mais do que mera
contextualização, é uma ferramenta útil no que concerne à identificação dos paradoxos,
ambiguidades e cumplicidades em torno da temática do internacional nos dias atuais.
O segundo andaime metodológico que norteou essa pesquisa foi justamente a busca por
uma sociologia dos atores envolvidos em torno do internacional no Agreste Alagoano. Quem
são os atores, porque atuam e como atuam foram questionamentos que nortearam todas as
entrevistas e prospecções realizadas. Nesse sentido, duas escolas críticas das relações
internacionais influenciaram a construção da pesquisa (e dos pesquisadores), quais seja: as
perspectivas de problem building (COX e SINCLAIR, 1996) e escola francesa das relações
internacionais (MILANI, 2010).
Por fim, o último andaime utilizado nessa pesquisa foi, justamente, a busca por um
olhar multe escalar dos processos de inserção do internacional no agreste alagoano. Nesse
sentido, a noção de escalas advindo da geografia integra, ao mesmo tempo, propriedades
físicas e sociais de interação política, devendo ser consideradas como andaimes territoriais
complexos e socialmente contestados para os quais convergem formas múltiplas de
organização territorial (BRENNER, 1998). Nesse sentido, pensar o internacional em
Arapiraca é conceber a possibilidade de múltiplos territórios e territorializações. Ora, a partir
desse entendimento, podemos considerar que a interação global local invoca para si, dia após
dia, a natureza escalar para o entendimento das suas dimensões de análise. Por essa razão,
somos levados a acreditar que estudos que ambicionem a compreensão desse campo na
inteireza do que nos é colocado na contemporaneidade não devem perder de vista a sua
dimensão multe escalar. Este é um terreno onde congloba a interação de atores, as
perspectivas institucionais (de Estado, de ONGs, de empresas, de movimentos, etc.), passando
pelo crivo de uma governança global que se constrói no cotidiano do internacional.
Assim, não nos é mais possível pensar na ordem estatal e, quiçá, na ordem interestatal
como portadoras do monopólio da emissão de normas para a regulação do internacional. Nos
tempos atuais, há uma polifonia de vozes que, dentro dos seus limites de legitimidade e
cogência, impõe ao ambiente internacional as suas regulações.
Enfim, diante desses andaimes metodológicos buscamos realizar essa pesquisa, um
exercício que se encontrou abrigado em um grupo de estudos que tem como intensão a
formação de pesquisadores do agreste alagoano engajados em se tornarem uma opinião
pública qualificada sobre o internacional, um exercício que trará massa crítica sobre os

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

processos de desenvolvimento na região, suas consequências e, sobretudo, os modos de


aperfeiçoar os processos.
Diante desses andaimes, essa pesquisa exploratória observou três grandes tendências
na conformação das trilhas do internacional que circundam o agreste alagoano tendo
Arapiraca como ponto focal, quais sejam: trilhas mercantis do internacional, trilhas da
governança internacional e as trilhas da solidariedade transnacional. São justamente essas três
dimensões que compõe as bases da nossa cartografia do internacional que orbita o agreste
alagoano. A seguir, algumas considerações desse mapeamento.

a. Trilhas mercantis do internacional em Arapiraca;

Pesquisar as trilhas mercantis de Arapiraca em que o internacional é um dado não se


constituiu a tarefa das mais fáceis. Em que pese o comércio internacional seja talvez a
expressão mais presente do internacional, sobretudo, nas periferias, o acesso a dados dessa
natureza não são tão fáceis de serem acessados como a princípio imaginávamos. Falta ainda
aos órgãos da municipalidade local, no caso, da prefeitura de Arapiraca, a cultura de dados e
acervos capazes de dar conta dos processos de circulação de riqueza do município. Nesse
sentido, não só o internacional é negligenciado, mas, também, o plano local/regional/nacional.
Ademais, tal quadro atinge também os órgãos ligados à federação do comercio, algo que em
muito prejudicou a prospecção de dados no curso dessa pesquisa.

A fim de transpor essa lacuna, no curso do projeto buscamos construir roteiros


exploratórios no qual a pesquisa de campo, seja no âmbito virtual, seja no âmbito presencial,
buscaram dar conta dos setores e das empresas sediadas na cidade de Arapiraca que
eventualmente mantivessem negócios internacionais para a manutenção de suas atividades de
mercancia, seja como exportador de matérias primas e produtos industrializados, seja como
importador e revendedor de produtos advindos do estrangeiro. Esse foi, em verdade, um
exercício de etnografia do internacional, a fim de compormos uma narrativa capaz de dar
conta dessa dimensão do internacional que contraditoriamente faz parte do domínio público
local, mas que não consegue ser demonstrado pelos órgãos e setores locais que cuidam do
comércio.

Nesse processo etnográfico, a primeira trilha mercantil do internacional em Arapiraca


remonta, justamente, a cultura fumageira. Não seria demasiadamente exagerado afirmar que a
primeira inserção internacional do agreste alagoano se deu, justamente, pela cultura do fumo.
Ao lado da cultura sucroalcooleira, mas sem nunca ter o mesmo porte e a mesma fama, o
cultivo do tabaco se firmou como uma das lavouras mais importantes do Estado de Alagoas,
desde os primórdios da colonização (NARDI, 2004). Ao lado da Bahia, Alagoas teve grande
expressão da comercialização e exportação do fumo. Nesse sentido o auge dessa produção
ocorreu entre 1970 até 1990 onde, no município, o total de empresas passou de 5 para 13 e a
produção local subiu de 17.000 para cerca de 32.000 toneladas.

Alagoas e Bahia disputavam acirradamente pela melhor qualidade e produção do fumo


em folha, entretanto, com a crise dos anos 75-85, a Bahia foi imensamente afetada, trazendo
como fruto para o Estado de Alagoas a concentração de toda produção nordestina da cultura
fumageira (NARDI, 2004). Todavia, os anos 2000 trouxeram o declínio do fumo no Brasil e
no mundo, algo que reverberou nessa inserção internacional de Arapiraca.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Em que pese a opinião pública local defender a tese de que o declínio da cultura
fumageira do agreste ser decorrente da perda de qualidade do fumo arapiraquense perante os
concorrentes nacionais e internacionais pela ausência de financiamentos para melhora das
mudas, compra de equipamentos agrícolas e melhor cultivo do solo, a verdade é que com o
endurecimento das leis antitabaco no Brasil e no mundo, o fumo perdeu a sua era de ouro. Em
que pese o Brasil ainda seja o maior exportador de fumo do mundo, com 27% do produto
mundial exportado, os Estados importadoresi de tabaco vão paulatinamente deixando de
importar do Brasil, dando preferência a países da Ásia e África, uma feita que nesses Estados
ainda inexista aparatos regulatórios tão rígidos como os encontrados aqui no Brasil.

Nesse sentido, a pesquisa exploratória demonstrou que o fumo arapiraquense em que


pese ainda presente no comércio internacional, trata-se de uma comodite cada vez menos
exportada. Vale notar, inclusive, que nenhuma das empresas presentes no município envia o
fumo diretamente para o comércio exterior, em verdade, elas repassam para empresas
localizadas no Estado da Bahia para que receba o tratamento adequado e possa ser finalmente
exportado.

Ainda no curso da etnografia do internacional em Arapiraca, nosso pesquisa nos


orientou para outros enclaves do comercio exterior no qual Arapiraca, na condição de capital
do agreste, se adensou. Consideramos para efeitos desse artigo que o comércio exterior o
conjunto de compra e venda de produtos e serviços entre empresas e governos de diferentes
países que pelos processos de continuidade e frequência terminam por forjar mercados
consumidores e fornecedores, fazendo com que seus resultados sejam expressos em fluxos
internacionais (de importação e exportação) a serem visualizados na forma de uma balança
comercial, comumente divulgado pelos órgãos nacionais de comercio e pelas mídias em geral.

Nesse sentido, embora periférico, o Estado de Alagoas continua contribuindo para esse
indicador contando com 235 empresas em plena atividade comercial, autorizadas para
importar e exportar. Seguindo essa trajetória, Arapiraca conta com uma série de empresas no
seu entorno ligadas ao segmento alimentício cujas suas atividades estão intimamente ligadas
ao comercio exterior, sobretudo, no que concerne à importação de produtos industrializados.
Nesse sentido, destacam-se os grupos Asa Branca Industrial Comercial e Importadora,
Mafrios, Distribuidora e Importadora LTDA e o Grupo Coringa, todos, ligados ao
beneficiamento de produtos alimentícios e o comércio dos mesmos em escala nacional.

b. Trilhas da governança internacional em Arapiraca;


No que concerne às grandes agendas da governança internacional, Arapiraca não pode
se queixar de ausência de inserção. Mesmo estando na periferia nacional, Arapiraca, em
alguma medida conseguiu ser inserida na agenda global da década de 90 e os anos 2000. A
burocracia municipal, mesmo com as dificuldades crônicas dos municípios brasileiros,
conseguiu inserir-se nessas agendas em curso trazidas pelas agendas do sistema ONU. Não
sem razão, esse enclave da pesquisa foi o que conseguiu maior facilidades junto aos atores
governamentais e, até mesmo, os não governamentais.
A primeira dessas agendas que merecem aqui ser citadas, trata-se do Projeto de Redução
da Pobreza e Inclusão Produtiva do Estado de Alagoas, um projeto que faz parte do programa
“Alagoas tem pressa”, que contou com o financiamento do Banco Mundial, além de receber
apoio de outras instituições financeiras internacionais que atuam como corresponsáveis pelo
referido projeto, à exemplo do PNUD.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A inclusão de Arapiraca nesse projeto se deve ao fato de que a mesma, em que pese sua
centralidade no agreste, ainda apresenta um dos piores indicadores sociais do estado nos
quesitos de violência, pobreza, distribuição de renda, saúde pública, dentre outros. Seguindo
a lógica verticalizada, os repasses do investimento para Arapiraca são feitos pelas Secretarias
de Estado, mais precisamente a partir da SEPLANDE – Secretaria de Estado do Planejamento
e do Desenvolvimento Econômico, que, por sua vez, constitui a agência de execução da
totalidade do projeto. Nesse sentido, o PREPI em Arapiraca veio com a promessa de
implantação de sistemas de informações e análise de dados estatísticos com processamento e
geo-referenciamento de dados para melhor ação da municipalidade nos temas afetos.

Segundo relatos de personagens chaves, alguns resultados foram alcançados até então
com a implementação do Projeto de Redução da Pobreza e Incentivo Produtivo na cidade de
Arapiraca. No que concerne à saúde, o Hospital Regional de Arapiraca (também denominada
de Santa Casa Nossa Senhora do Bom Conselho) agora funciona como descentralizador dos
casos de gestantes e crianças com riscos de vida. A UTI materno-infantil do referido hospital
foi ampliada a fim de atender a demanda da região e desafogar a procura desse serviço na
capital. No que diz respeito à educação, os relatos narram que o recurso do PREPI
contemplou duas escolas estaduais situadas na cidade, quais sejam, a Escola Estadual Aurino
Maciel, onde estão sendo aplicados investimentos para a promoção do EJA – Educação de
Jovens e Adultos, que permite a inclusão de alunos de todas as idades no programa de
educação continuada; e a Escola Estadual Senador Rui Palmeira, na qual foi implantado o
ensino de tempo integral, o que, sem dúvidas, galgará resultados positivos no
desenvolvimento do alunado dessas duas instituições.
Relatos também apontam que recursos do PREPI foram (e são) utilizados para a
promoção da inclusão produtiva em Arapiraca. Sendo considerada como o maior polo de
compra da agricultura familiar do Brasil, o município obteve apoio do PAPL – Programa de
Arranjos Produtivos Locais na produção e comercialização de mandioca e do PAA –
Programa de Aquisição de Alimentos e comercialização da farinha embalada para
supermercados, onde a associação de mulheres responsável pela embalagem dos produtos,
recebe incentivos do PREPI. Os relatos apontam, também, que a Associação das Mulheres
Produtoras de Broas e Outros Produtos (Assoprobroas), na comunidade Taboquinha, distrito
de Arapiraca, também recebe investimentos do PREPI no que se refere ao incentivo produtivo
e da agricultura familiar.
De um modo geral, os relatos parecem confundir os limites do que é beneficiamento
propriamente oriundo o PREPI e os programas federais de redução à pobreza que fizeram
parte do passado recente nacional. Isso em alguma medida lança pistas para pensarmos as
apropriações políticas utilitárias e oportunistas da confusão que se faz entre um programa de
governo, a agenda global e os programas federais.

Ainda da governança global, merecem destaque as agendas sociais do sistema ONU, as


quais Arapiraca adimpliu como ator partícipe, executor e parceiro de agências como UNICEF
e o PNUD. Em relação ao UNICEF, os diálogos mantidos com Arapiraca tem se dado na
esfera do programa Selo UNICEF município aprovado. Essa que é uma premiação de
qualidade, vincula os prefeitos da região o compromisso de garantir o funcionamento do
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA). Nesse sentido, os
municípios são agrupados de acordo com sua realidade socioeconômica, e, a partir de então,
passam a ser avaliados a partir de três eixos: Impacto Social, Gestão de Políticas Públicas e
Participação Social. Foram justamente iniciativas como escolas em tempo integral, as
Arapiraquinhas, as campanhas de saúde, a atuação do Conselho Tutelar local e o

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

aperfeiçoamento das redes de proteção ao menor em situação de violência que, segundo


relatos de personagem chaves, garantiram a Arapiraca o Selo Unicef aprovado desde 2010
(Selo 2009-2012). Nesse sentido, essa é uma premiação pela qual o UNICEF transnacionaliza
políticas públicas de proteção, inserindo as periferias nordestinas no sistema internacional de
proteção de direitos humanos.

Seguindo a mesma linha das redes de proteção, os diálogos entre Arapiraca e o PNUD
se deram por conta dos objetivos do milênio (ODM). No caso arapiraquense dentre os 8
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, segundo o Relatório Dinâmico de Indicadores
(2014), teve como percentual de alcance no município os seguintes resultados: meta 1 (reduzir
pela metade, até 2015, a proporção da população com renda abaixo da linha da pobreza), de
2000 a 2010, foi alcançada 85,7%; meta 2 (reduzir pela metade, até 2015 a proporção da
população que sofre de fome), de 1999 a 2013, foi alcançada 182,9%; meta 3 (garantir que,
até 2015, todas as crianças terminem o ensino fundamental), em 2010, foi alcançada 47,5%;
meta 4 (eliminar as disparidades entre os sexos no ensino fundamental e médio até 2015), em
2010, foi alcançada 92%; meta 5 (reduzir em dois terços, até 2015 a mortalidade de crianças
menores de 5 anos), de 1995 a 2012, foi alcançada 74,3%; meta 6 (reduzir em três quartos, até
2015, a taxa de mortalidade materna) de 1996 a 2012 não foi alcançada; meta 7 (até 2015 ter
detido e começado a reverter a propagação do HIV/AIDS) de 2010 a 2012 também não foi
alcançada; meta 8 (até 2015, ter detido e começado a reverter a propagação da malária e de
outras doenças), de 2001 a 2011, também não foi atingida; meta 10 (reduzir à metade, até
2015, a proporção da população sem acesso sustentável a água potável segura), de 1991 a
2010, foi alcançada 37,9% e a meta 11 (reduzir pela metade, até 2015, a proporção da
população sem acesso a saneamento e serviços essenciais), de 1991 a 2010, foi alcançada
97,9%.

Por fim, dentre essas agendas da governança global, no que concerne ao aspecto
ambiental, Arapiraca desenvolveu e formalizou uma agenda 21. Agenda 21 é justamente um
documento ético no qual a sociedade de dada localidade pactua o compromisso em prol da
sustentabilidade. Criada durante a conferência RIO-92 no âmbito das Nações Unidas, a
agenda 21 se difundiu pelo mundo, se constituindo em uma verdadeira estratégia de difusão
de valores da sustentabilidade do planeta, em todas as escalas imagináveis.

Arapiraca foi a única cidade que formalizou uma agenda 21 no Estado de Alagoas. Ela
teve seu marco histórico em 2004 quando foi aprovado o convênio entre o Ministério do Meio
Ambiente e a prefeitura, momento em que teve início a formulação de uma Agenda Local.
Nesse sentido, o objetivo principal da agenda arapiraquense é promover o desenvolvimento
sustentável, a fim de melhorar a qualidade de vida da cidade no futuro, adotando para tal,
iniciativas sociais, econômicas e ambientais, se constituindo assim em uma verdadeira política
pública de desenvolvimento local, mas de cunho universal.

c. Trilhas da solidariedade transnacional em Arapiraca;

Por fim, uma terceira tendência do internacional observado em Arapiraca foi justamente
a solidariedade transnacional. Existem em Arapiraca as pegadas da cooperação internacional
para o desenvolvimento, muito dela centrada na ajuda solidária de atores do norte aos grandes
dramas do sul. Dentre os casos observados, destacamos três exemplos significativos dessa
solidariedade, quais sejam, os trabalhos desenvolvidos pela Caritas Internacional, pela ONG
Visão Mundial e as bibliotecas públicas Arapiraquinhas patrocinadas pela fundação Bill
Gattes e Melinda Gattes.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Cooperação mais consolidada no tempo, a ajuda prestada pela Caritas Internacional


integra Arapiraca a uma rede de ajuda católica de dimensões transnacionais. Nascida no seio
da igreja católica, a Caritas se constitui justamente em uma rede solidária e confederada de
162 organizações humanitárias de matriz católica espalhadas pelo mundo. No Brasil, a Caritas
esta vinculada à Comissão Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB e atua com uma agenda de
desenvolvimento local das periferias, a partir de temas como segurança alimentar, economia
solidária e desenvolvimento sustentável.

Em Arapiraca, os trabalhos da Caritas muito se concentraram na comunidade carente de


Mangabeiras. Antigo lixão da cidade, essa comunidade tem sido ao longo dos últimos vinte
anos acompanhada pela Caritas, seja pela tutela da escola municipal Dom Constantino Lüers,
seja pela implementação do Centro de difusão cultural e Inclusão digital, um resultado do
projeto Catavento. Nesse sentido, tal centro cultural atua como verdadeiro ponto de cultura
dessa periferia arapiraquense.

A partir de valores protestantes, outro ator da solidariedade transnacional que atua no


agreste alagoano é justamente a ONG Visão Mundial. Esse ator, ao longo das últimas décadas
tem centrado sua estratégia no fortalecimento de grupos produtivos do agreste e do sertão
alagoano. Nesse sentido, a agricultura familiar e orgânica tem recebido aportes de
fortalecimento institucional e o aumento da capacidade empreendedora, um movimento
bastante estimulado pela via de realização de feiras locais e da educação financeira desses
grupos a fim de que os mesmos consigam realizar poupanças coletivas.

Por fim, outra ação solidária transnacional observada é justamente o apoio da fundação
Bill Gates e Melinda Gattes ao projeto municipal de bibliotecas públicas digitais e físicas nos
bairros da cidade, as denominadas “Arapiraquinhas”. Fruto da parceria com a Fundação
Biblioteca Nacional e o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, as Arapiraquinhas
constitui-se em um projeto piloto do programa Global Libraries, que atua na criação e
ampliação das bibliotecas digitais públicas em zonas de vulnerabilidade social focando no
desenvolvimento pessoal e na inserção do cidadão ao mundo digital. O Global Libraries é
justamente uma iniciativa da Fundação Bill Gates e Melinda Gates.

4.0 Considerações Finais: algumas reflexões que ficam

Pensar uma cartografia do internacional no agreste alagoano, por certo, nos ajuda a
refletir o quanto a esfera internacional é capaz de influir nos processos locais, ainda quando
esse local venha a ser uma periferia como é o caso de Arapiraca. Nesse sentido, a formação de
quadros da administração e da administração pública que consigam ser sensíveis ao manejo
do internacional, por certo é um atributo capaz de qualificar nossas periferias à ponto de
permitir que essas ampliem o espectro da sua administração política. Esse, em verdade, é o
grande sentido de pesquisas dessa natureza, fazer o local perceber o quanto os seus processos
de desenvolvimento são influenciados por outras escalas de produção de ideários, políticas,
fluxos, regulações, economias, práticas e territorialidades.

O exemplo arapiraquense, longe de se definir nessa pesquisa, é um caso cujo namoro


com o internacional ainda é uma incógnita repleta de lacunas e indefinições cuja
administração política do lugar solicita atenção para o manejo dessa linguagem. Esse é um
campo em construção, multe escalar em sua origem e profundamente habitado por atores nem
sempre aparentes numa primeira incursão. Reivindica-se da Universidade e da própria
municipalidade local um verdadeiro esforço de formação de quadros capazes não só de

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

analisar as minúcias desse cenário, mas, também, de conduzir esses processos na esfera
pública de modo estratégico e benéfico para o local.

Voltando-nos as trilhas que se nos apresentaram, o quadro sugere que se por um lado a
queda do fumo retira Arapiraca da evidência midiática do internacional, por outro, o mundo
da globalização a insere no rol das políticas públicas transnacionais de cunho social. Nesse
sentido, o ciclo de riqueza do tabaco, bem como os seus substitutos mercantis foram
incapazes de trazer para o local os benefícios sociais mínimos que garantissem a dignidade de
grupos vulnerabilizados. Muito pouco são os retornos sociais que as industrias remanescentes
do tabaco e os grupos de industrias de alimento revertem para a cidade, donde os discursos da
responsabilidade social sequer são trazidos nos seus planos de marketing.

Por outra via, o fato de Arapiraca ter aderido às principais agendas da governança
mundial não significam, contudo, que os dramas sociais foram vencidos. As metas não
cumpridas dos objetivos do milênio são uma prova dessas limitações ainda tão presentes no
cenário arapiraquense. Por outra via, em que pese o agreste ainda figurar na orbita das
solidariedades transnacionais, ajudas dessa natureza são pontuais, emergenciais e não
substituem planos de desenvolvimento estruturais e estruturantes que só podem advir do
Estado, em si. Diante de tal, não basta a boa vontade para transformar, uma administração
politica eficaz e eficiente se faz necessária.

5.0 Referencias Bibliográficas

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WARMIER, Jean-Pierre. A mundialização da cultura. Tradução Viviane Ribeiro, 2° ed., Bauru,


SP: EDUSC, 2003

i
Os principais países importadores são: Bélgica (17%), China (13%), Estados Unidos (9%), Alemanha
(6%), Rússia (6%), Holanda (5%), e Indonésia (5%) (SINDITABACO, 2014).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Evolução da administração pública no Brasil: de Getúlio Vargas a


Fernando Henrique Cardoso

Nelson Machado Pinho Junior


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Suzana Fonseca Alvim


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

RESUMO

O presente artigo é resultado de investigação acerca da evolução da administração pública no


Brasil entre os governos de Getúlio Vargas e Fernando Henrique Cardoso. O objetivo é o de
caracterizar as reformas ocorridas no aparelho do Estado e analisar a imbricação entre os
modelos de administração burocrático, patrimonialista e gerencial no período abordado. Trata-
se de uma revisão bibliográfica, na qual são utilizados autores que discutem gestão pública,
especificamente as reformas da mesma a nível federal, tais como Torres (2004), Souza Filho
(2011) e Bresser Pereira (2005), e os modelos supracitados. Compreende-se que a
administração pública no período de 1930 até o final do regime militar, foi organizada para
operacionalizar a expansão e consolidação do capitalismo, em sua fase monopólica, a partir da
“natureza” periférica, dependente e associada da industrialização nacional. Portanto, podemos
inferir que, no período analisado, a ordem administrativa fundou-se na articulação de interesses
dos setores agrários tradicionais e burguesia industrial. Por fim, constata-se que a reforma
implementada na década de 1990 se constitui em um contra-ataque à Constituição de 1988, uma
vez que propõe um Estado mínimo para a área social recém incorporada na Carta Magna.

PALAVRAS-CHAVE: Gestão pública. Burocracia. Patrimonialismo. Gerencialismo.


Imbricação.

ABSTRACT

This present article is the result of investigation about the evolution of public administration in
Brazil between the governments of Getulio Vargas and Fernando Henrique Cardoso. The
objective is to characterize the reforms on the state apparatus and analyze the imbrication
between the bureaucratic, patrimonialist and management models of administration in the
covered period. This is a bibliographic review, in which are used authors who discuss public
management, and specifically, Its reform at the national level, such as Torres (2004), Souza
Filho (2011) and Bresser Pereira (2005), and the aforementioned models. It is understood that
the public administration in the period since 1930 to the end of the military regime, was
organized to operationalize the expansion and consolidation of capitalism, in its monopoly
stage, from the "nature" peripheral, dependent and associated of the national industrialization.
Therefore, we can infer that, in the analyzed period, the administrative order was founded in
the articulation of interests of the traditional agrarian sectors and industrial bourgeoisie. It is
noted that such reform constitutes a counter-attack to the 1988 Constitution, as it proposes a
minimum state to the social area, recently integrated in the Magna Letter.

KEYWORDS: Public management. Bureaucracy. Patrimonialism. Managerialism.


Imbrication.

1 INTRODUÇÃO

221
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Analisar a evolução da administração pública do Brasil é parte importante de uma


análise da evolução sócio-histórica do país. Para tanto, deve-se compreender do que se trata a
relação público-privado e as transformações ocorridas na lógica dessa interação no país,
relacionando-a ao desenvolvimento capitalista e a evolução da burocracia pública brasileira;
bem como compreender os fatores que levaram às reformas da administração pública e sua
operacionalização via modelos de gestão.
Neste texto, será realizada uma análise da evolução da burocracia pública brasileira e
sua interação com o patrimonialismo, do período do primeiro governo de Getúlio Vargas à
“reforma” da administração pública dos governos de Fernando Henrique Cardoso.
Para a especificidade deste estudo, as análises empreendidas por Torres (2004) e por
Souza Filho (2011) recebem ênfase, o que é válido para que se possa compreender a lógica da
construção sócio-histórica nacional, no que se refere aos modelos de gestão implementados.
No caso brasileiro, no que se refere à gestão, conforme Torres, três modelos de
administração podem ser observados ao longo da evolução do Estado: o patrimonialista, o
burocrático weberiano e o gerencial. Esses três modelos conviveram e convivem
harmonicamente na administração pública brasileira, havendo momentos em que um ou outro
prevalece, como por exemplo, no caso da aprovação do Decreto-lei nº 200/67 o gerencialismo
foi alavancado em um ambiente predominantemente burocrático a partir da introdução de
técnicas gerenciais na administração, sem que isso levasse ao fim da burocracia existente no
Estado (TORRES, 2004).
Para todo efeito, Torres (2004) afirma que nem mesmo o modelo burocrático foi
implementado em sua essência no Estado brasileiro, uma vez que a administração pública
utiliza de práticas que revelam a falta de impessoalidade, publicidade, especialização e
profissionalismo.
A administração pública brasileira revela assim uma heterogeneidade, de modo que até
mesmo entre os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – ou os três níveis de governo
– União, estados e municípios – existem variações na administração, expressas no estágio de
desenvolvimento de suas burocracias. E, para além dos níveis de governo, o autor nota que até
mesmo entre os ministérios, secretarias estaduais ou municipais existem “diferenças quanto ao
estágio de desenvolvimento institucional, cultural e mesmo legal no que se refere à adoção de
práticas mais gerenciais e modernas de administração pública” (TORRES, 2004, p. 142).
A história do Brasil, guiada por elites “encasteladas no poder”, é caracterizada pela
centralização, pelo caráter patrimonial e pela constante intervenção estatal, conforme sustenta
ao dizer que “Podemos constatar que a sociedade brasileira foi criada e desenvolvida sob o
controle atento de um Estado centralizador, onipotente e espoliado por uma elite patrimonial
que persiste por séculos”. Neste sentido, o mesmo autor revela que até a Revolução de 1930, o
conjunto que “controla e assalta a administração pública” é bem reservado, com centralidade à
elite agrária composta de aristocráticos proprietários rurais (TORRES, 2004, p. 145).
Dessa forma, será apresentada, a seguir, a estruturação da administração pública de
Vargas a Collor, a fim de compreendermos os processos que envolveram a evolução da
administração pública no Brasil e suas características essenciais.

2 A CONFIGURAÇÃO DA GESTÃO PÚBLICA NO BRASIL: DE VARGAS (1930) A


COLLOR (1990)

Pode-se inferir que a emergência do desenvolvimento capitalista no Brasil revela certa


incompatibilidade com o patrimonialismo dominante na administração pública e privada no
país até 1930 (TORRES, 2004). O que se modifica, em parte, no governo de Getúlio Vargas,

222
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

que fomentou um processo de urbanização e industrialização e promoveu um rearranjo político


no Estado “no sentido de atender às pressões modernizantes de uma incipiente burguesia
nacional que busca seu lugar ao sol” e abrir espaço “para um amplo processo de modernização
social e industrial, que resultou na incorporação ao Estado de parte da classe trabalhadora, de
setores médios urbanos e da incipiente burguesia nacional” (p.146). Processo este, conforme
Souza Filho (2011), que articulou à industrialização emergente, os interesses de uma elite
historicamente agrária.
Conforme Sampaio Jr. (1999), para Caio Prado Jr. um país só pode deixar sua condição
de dependente econômico com a revolução nacional, que se inicia com rompimento com o
imperialismo a partir do fortalecimento do mercado interno ao formar base produtiva própria.
No período em que o Brasil foi governado por Getúlio Vargas houve um processo de
fortalecimento da industrialização nacional, o que não significou, de forma alguma, o
rompimento com o imperialismo ao formar base a base produtiva, mas apenas uma nova
participação do Brasil na divisão internacional do trabalho.
Portanto, é a partir da chamada “modernização varguista” que o modelo de
dominação/administração racional-legal começa a ser implantado, de fato, no Brasil, na
tentativa de criar normas e padronizar os principais procedimentos da administração pública.
Foram criados, neste contexto, estatutos e normas para a administração pública brasileira:
gestão de pessoas (1936), compras governamentais (1931) e execução financeira (1940); e,
como expressão máxima desse processo, o Departamento Administrativo do Serviço Público
(DASP), que visava organizar – burocratizar – o serviço público, ou, conforme Torres,

Promover a montagem de uma máquina administrativa nos moldes do modelo


weberiano, com a afirmação dos princípios do mérito, da centralização, da separação
ente o público e privado, da hierarquia, impessoalidade, das regras rígidas e
universalmente válidas, da atuação especializada e tecnicamente fundamentada etc.
(2004, p.147).

O que, todavia, não significa o fim do patrimonialismo no Brasil, uma vez que nos altos
escalões da administração pública prevalecia o modelo burocrático weberiano – vide Itamaraty
–, enquanto na área das políticas públicas de saúde, educação e segurança, permaneciam as
práticas clientelistas (TORRES, 2004).Tal processo configura a contradição característica do
desenvolvimento da administração pública brasileira, a qual se “consolida a partir de uma
espinha dorsal que combina patrimonialismo e burocracia” (SOUZA FILHO, 2011, p. 81).
Essa modernização na administração pública brasileira, introduzida “a ferro e fogo”, só
foi possível graças aos mecanismos de coerção disponibilizados pelo regime autoritário de
Vargas, que se fortaleceu neste processo, unindo o “útil ao agradável”, conforme Torres (2004),

esse processo é marcado por duas injunções ou características: primeira, o diagnóstico


correto de que a industrialização e a modernização, especialmente quando
introduzidas pelo Estado, necessitam de uma administração pública mais qualificada;
segunda, o fortalecimento e a expansão da administração pública como instrumento
de sustentação do regime ditatorial (p.149-150)

Dessa forma, estruturou-se uma burocracia fortemente autoritária, para que a


consolidação da estrutura burocrática do Estado ocorresse sem o afastamento das oligarquias
agrárias dos centros de poder. Desse modo, além de iniciar a gradual sobreposição da burocracia
à dimensão patrimonialista, Getúlio Vargas estabelecia as bases da estruturação do chamado
Estado desenvolvimentista, o qual Juscelino Kubitschek (JK) seria o expoente (SOUZA
FILHO, 2011).
Nesse contexto, ao caracterizar o governo de Juscelino Kubitschek, Torres (2004)
afirma que este recorreu à administração indireta para implementação do Plano de Metas,

223
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

através da criação de comissões especiais diretamente ligadas ao presidente, buscando


“soluções” em estruturas alheias à administração direta, o que consequentemente, deixou de
lado o desenvolvimento e modernização da burocracia nacional. Esse processo, conforme
Souza Filho (2011), ocorreu para impulsionar a estruturação do capitalismo monopolista no
Brasil, fortalecendo o processo de “insulamento burocráticoi” ao invés de desenvolver ou
explorar as potencialidades democráticas da ordem burocrática.
Assim, cabe ressaltar que no período compreendido entre 1937 e 1945, a burocracia foi
utilizada para sustentação da ditadura implementada por Getúlio Vargas. A partir da década de
1950, a mesma ordem administrativa servirá para expansão do capitalismo em terras brasileiras.
Porém, o aspecto antidemocrático permaneceu na medida em que a burocracia foi utilizada para
impedir a participação das classes trabalhadoras da expansão capitalista a ser empreendida no
país, o que contribuiu, desta forma, “para a manutenção da estrutura de concentração de renda,
riqueza e poder, distanciando a ordem administrativa brasileira de uma perspectiva de
aprofundamento e universalização de direitos” (SOUZA FILHO, 2011, p. 121).
Tendo em vista a necessidade de modernização da burocracia no Brasil, o presidente
João Goulart encomendou um diagnóstico da administração pública, que foi abortado pelo
golpe militar, mas subsidiou o Decreto-lei n º 200/67 (TORRES, 2004).
Consoante Torres, a ação central no regime militar brasileiro de 1964-1985 na tentativa
de modernizar a administração pública, se materializa através da aprovação do Decreto-lei nº
200, de 25 de fevereiro de 1967. O Decreto-lei 200/67 normatiza e padroniza procedimentos
nas áreas de pessoal, compras governamentais e execução orçamentária, além de cinco
princípios fundamentais que irão estruturas a administração pública: Planejamento (inclusão de
plano plurianual, orçamento anual, execução orçamentária); Coordenação; Descentralização
(níveis de direção e execução; da administração federal para as unidades federativas; e da
administração federal para a privada, mediante contratos e concessões); Delegação de
competências; e Controle (TORRES, 2004).
Esse projeto de inserção “de técnicas de gestão contempladas pelo modelo gerencial”
desenvolvido e arquitetado nos governos militares se firma através da descentralização
administrativa para a administração indireta, abrindo brechas até mesmo para a contratação sem
concurso público nestas instituições. Compreende-se a administração indireta como instituições
que comungam três características fundamentais: a criação por lei específica, a personalidade
jurídica e os patrimônios próprios, são elas: Autarquia (Universidades, Institutos Federais,
IBGE, Agências Reguladoras, Conselhos profissionais, Agência Brasileira de Inteligência etc.),
Fundação, Empresa pública (CAIXA, Correios, BNDES, EBSERH); e Sociedade de economia
mista (Banco do Brasil, Petrobrás, etc.) (TORRES, 2004, p. 156).
Em síntese, Torres (2004) afirma que

O DL 200/67 foi implantado com a pretensão de fortalecer e aperfeiçoar os


mecanismos de controle, coordenação, gerenciamento e planejamento estratégico
sobre a administração pública federal. No entanto, essa capacidade de controle foi
sendo cada vez mais mitigada por dois processos que se alimentavam mutuamente: de
um lado, a hipertrofia e o crescimento desordenado da administração indireta
naturalmente inviabilizaram os mecanismos de coordenação; de outro, a racionalidade
e o profissionalismo desejados com o decreto foram perdendo vitalidade na medida
em que os militares, para contrapor à perda de legitimidade do regime, que crescia a
cada ano, faziam uso patrimonialista da administração pública, trocando cargos por
apoio político (p. 158).

Para contornar a falta de administradores públicos na administração indireta para ocupar


cargos de altos dirigentes, o governo militar começou a recrutar funcionários nas empresas
públicas, sociedades de economia mista e autarquias – processo utilizado até hoje, vide
contratação de Guido Mantega e Nelson Barbosa, ex-presidentes do BNDES, e Henrique

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Meirelles, ex-presidente do Banco Central, para o Ministério da Fazenda. Enquanto isso a


administração direta seguia sendo sucateada, uma vez que não era possível contratar servidores
fora do concurso público e ausência de funcionários altamente especializados.
De modo geral, pode-se perceber que, no Brasil, a cada vez que o Estado toma para si a
responsabilidade de alavancar o desenvolvimento industrial e aumenta sua intervenção no setor,
ele se utiliza de reformas na administração pública para assegurar o sucesso dessa missão, o
que confirma que “o desenvolvimento industrial brasileiro sempre foi amplamente subsidiado,
capitaneado e controlado pelo Estado”. Dessa forma afirma que os processos de expansão da
burocracia em dois regimes ditatoriais contribuíram para “retirar legitimidade e efetividade às
propostas e esforços de modernização, implicando processos tecnocráticos, inconclusos e
parciais” (TORRES, 2004, p. 152).
As dificuldades oriundas do processo descrito anteriormente, também aparecem pelo
isolamento da administração pública dos políticos e de qualquer tipo de controle da sociedade
organizada, dificultando o controle social sobre os rumos das políticas públicas e das
prioridades do Estado. Conforme Torres (2004),

Nesse contexto, nem o Congresso Nacional nem a sociedade organizada exerciam


qualquer tipo de controle ou influência sobre a administração indireta, que garantia
para seus administradores níveis elevados ou quase ditatoriais de autonomia gerencial
(p. 159).

No processo de “insulamento burocrático” as empresas privadas tinham acesso


privilegiado à alta administração e ao Estado através da figura do lobista – grupo de pressão
que ficaria na antessala dos políticos pressionando-os para que seus interesses fossem
atendidos. Assim, segundo Torres (2004)

os interesses privados dos setores sociais mais fortes e organizados eram defendidos
e alcançados através do relacionamento com os poderosos burocratas que
comandavam soberanamente grandes instituições públicas que distribuíam recursos
financeiros, subsídios e benesses sem controle social ou político. Dessa maneira, a
aliança entre a alta administração e a classe empresarial potencializada e favorecida
pelo insulamento burocrático possibilitou um canal privilegiado de acesso ao Estado,
condizente com a herança patrimonialista que até hoje se mostra incrivelmente
resistente (p.159).

O que, dessa maneira, fortaleceu ainda mais relações patrimonialistas no seio da


burocracia do Estado, as quais facilitariam o atendimento às solicitações empresariais e
interesses privados em detrimento do público.
A promulgação da Constituição Federal de 1988 veio inaugurar um novo desenho
institucional na administração pública do Brasil, uma vez que fortaleceu a modalidade direta,
estendendo as mesmas regras para todos os ramos da gestão pública, o que retirou da
administração indireta boa parte da sua agilidade, com maior impacto para a gestão de pessoas
– acesso via concurso público – e compras públicas, exigindo maior planejamento no processo
de aquisições, portanto, desta forma, atacou o clientelismo e empreguismo juntos (TORRES,
2004). Segundo Bresser Pereira (2005), com a Constituição de 1988 a administração pública
perdeu agilidade, via recrudescimento, ou intensificação das práticas burocráticas.
Dessa forma, pode-se afirmar que para a administração pública, o grande salto da
Constituição de 1988 está na universalização e efetivação do concurso como única via de acesso
ao serviço público, o que se constitui em ponto positivo fundamental para o Brasil, marcado
pelo clientelismo, nepotismo e ascensão profissional baseada nas relações interpessoais. Torres
(2004, p. 167) ainda destaca “que a ascensão profissional baseada nas relações pessoais é prática

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

institucionalizada também na iniciativa privada, não caracterizando prerrogativa ou


peculiaridade do setor público”.
Torres (2004) sintetiza o governo Collor para a administração pública ao afirmar que

Collor venceu as eleições com um discurso pretensamente modernizador, em sintonia


com a agenda internacional do ‘Consenso de Washington’, que preconiza abertura
comercial, superávit fiscal, privatização de empresas estatais, enxugamento das
máquinas públicas e desregulamentação [...] Collor enfatizou ao máximo as
ineficiências, contradições, aberrações e irregularidades da administração pública” (p.
168).

Dessa forma, o governo Collor partiu para o campo das ações contra o serviço público,
ao desarticular e desagregar a administração pública, o que, por fim, “intensificou e aprofundou
o processo de perda de capacidade gerencial para formulação, planejamento, execução e
fiscalização de políticas públicas” (TORRES, 2004, p. 170).

3 CONDICIONANTES DA (CONTRA) REFORMA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


BRASILEIRA DA DÉCADA DE 1990

Anterior à “Reforma”, ao final da década de 1980 havia o consenso de que a forma como
o Brasil estava inserido na dinâmica capitalista mundial se tornava insustentável, carecendo
mudanças na condução da política econômica, na estruturação produtiva e implementar uma
profunda “reforma” do Estado. A inflação astronômica, níveis altíssimos de desemprego ou
trabalho informal eram elementos concretos que forçavam o Estado a escolher que caminho
seguir: democracia de massa ou liberal-corporativismo (SOUZA FILHO, 2011).
Para se analisar a gestão pública no Brasil na década de 1990, deve-se compreender a
conjuntura das duas décadas anteriores, bem como, neste trabalho, a interpretação de Souza
Filho (2011) e Bresser Pereira (2005) sobre este processo e seus rebatimentos na gestão pública
brasileira.
Conforme Marinho (2010) a crise dos anos 1970 pode ser caracterizada por uma crise
monetária e energética, uma vez que a superprodução norte-americana, no contexto de produção
fordista-taylorista do Estado de bem-estar e sua impossibilidade de sustentar o alto valor do
dólar – ainda equiparado ao ouro, conforme acordo de Bretton Woods –, o que dificultaria as
exportações do país, levou os Estados Unidos a decidirem pelo fim da conversibilidade dólar-
ouro, o que resultou em uma crise monetária. A questão energética pode ser explicada a partir
do contexto de criação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), na qual os
países membros, principais produtores de petróleo do mundo, buscaram regular o preço do
combustível, porém se envolveram em crises geopolíticas, o que afetou a oferta do óleo bruto,
ocasionando o primeiro choque do petróleo, consequência do déficit de oferta do combustível
relacionada a crises geopolíticas a partir da criação da OPEP. Souza Filho (2011) complementa
essa discussão a respeito da crise ao apresentar que países como o Japão e Alemanha,
importadores de petróleo e exportadores de bens de capital, para controlarem suas balanças
comerciais, sentem-se forçados a elevarem os preços dos bens de capital, uma vez que seria
preciso fazer frente ao aumento do valor do barril de petróleo.
O Brasil nesse contexto, importador tanto de petróleo quanto de bens de capital, haja
vista seu processo de industrialização no período do “milagre econômico”, sofreu duplamente
os efeitos da crise, se endividando para garantir o fomento à indústria e os níveis de emprego.
Quanto à concentração de renda que houve no período, esta pode ser explicada pelo fato de a
indústria ter mantido a taxa de exploração dos trabalhadores para expansão monopólica, uma
vez que para seguir em expansão no contexto da crise, os salários “não puderam” ser elevados
(SOUZA FILHO, 2011).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Ao final da crise se intensifica o processo de globalização, pautado em três dimensões,


do ponto de vista econômico: financeira, produtiva e comercial; assim, o sistema financeiro
internacional passa a obter maior influência sobre o direcionamento das políticas dos países, já
os direcionando para contenção dos gastos públicos na área social, numa perspectiva de redução
do Estado: privatização, focalização e descentralização. Como ressalta Pochman (apud SOUZA
FILHO, 2011, p. 150),

As medidas econômicas implementadas [à luz do ideário neoliberal] buscaram


contrair a emissão monetária, elevar os juros, diminuir os impostos sob as rendas mais
altas, desregulamentar o mercado de trabalho, o comércio externo e mercado
financeiro, alterar o papel do Estado, privatizar o setor público, focalizar o gasto
social, reduzir a ação sindical, entre outras.

O que revela que esta ofensiva neoliberal preconiza um Estado mínimo para o social e
máximo para o capital.
No entanto, no Brasil na década de 1980, o que ocorre é o fortalecimento da sociedade
civil e da democracia a partir da ampliação das lutas sociais. Portanto, com o advento da “Nova
República”, o país se apresenta na contramão da conjuntura internacional, uma vez que o
contexto é “de instabilidade e crises econômicas advindas do esgotamento do próprio modelo
de desenvolvimento brasileiro, aliado às sucessivas crises pela qual passava o sistema mundial
capitalista, num cenário de fortalecimento das forças democráticas” (SOUZA FILHO, 2011, p.
154).
Nesse sentido, a Constituição de 1988, além do âmbito das políticas públicas, também
buscou organizar a administração pública através, conforme Souza Filho (2011), do

fortalecimento de sua dimensão burocrática: reforço dos procedimentos para garantir


a impessoalidade e o mérito na estruturação do quadro de pessoal (contratação através
de concurso público); organização de princípios para a estruturação de plano de
carreiras e salários; definição de ordenamento para contratar obras, serviços e
compras; garantia de direitos trabalhistas; estabelecimento de mecanismo de proteção
ao cargo. [...] são também criados mecanismos democratizadores e de controle social
e público para acompanhar a formulação e implementação de políticas: participação
da população e o fortalecimento do ministério público (p.158-159).

Ou seja, essa reestruturação da administração pública brasileira seguiu uma “lógica de


efetivação da construção de uma estrutura burocrática”, na qual forças democráticas
propuseram “a estruturação de uma ordem administrativa burocrática a partir de suas
determinações de impessoalidade, mérito e estrutura formal-legal” (p. 161), o que,
independente dos desvios que possam ter ocorrido acerca de “privilégios” para o funcionalismo
público, conforme assinala Torres (2004), era coerente com a questão de fortalecimento e
universalização de direitos em uma sociedade de classes. Sobre essa questão, deve-se atentar à
crítica de Bresser-Pereira (2005), na qual esse processo é convertido da ideia de direitos para a
de paternalismo e populismo, em referência aos anos 50 no Brasil.
Conforme Souza Filho (2011),

Sendo assim, no final da década de 1980, estrutura-se no país um paradigma legal-


institucional, via Constituição Federal, que delineia os fundamentos para a construção
de um Estado de Bem-estar de cunho universalista e institucional, com fortes
elementos democratizadores, viabilizador de direitos e estruturado a partir de uma
ordem administrativa burocrática, fundada na impessoalidade e no mérito. [...] O
fortalecimento das forças democráticas, que vinham se articulando desde o final dos
anos 1970 – que possibilitou, do ponto de vista da classe trabalhadora, o surgimentos
de “novo sindicalismo” e de um partido com base na classe trabalhadora, e que
viabilizou, também, a criação de movimentos sociais reivindicativos – propiciou, pela

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

primeira vez no Brasil, uma interferência mais substantiva das camadas populares na
estrutura de dominação do país, apesar de não ter tido influência para fragilizar a
coalisão das classes dominantes, de forma a reordenar o projeto de sociedade numa
direção mais clara para a universalização e o aprofundamento de direitos, “social-
democrata” ou para um projeto de desenvolvimento fundado em “quatro pés”. Assim,
a coalizão de classes na estrutura de dominação do país ainda preservava a aliança
fundamental entre a burguesia nacional associada e dependente e os velhos setores
tradicionais, preservando, dessa forma, os traços conservador, patrimonialista e
autoritário de nossa história. Porém, essa coalizão dominante não pôde, nesse período,
agir desconsiderando as demandas e as forças democráticas da sociedade. As
ambiguidades da “Nova República”, manifestadas no texto constitucional, entre uma
ordem social e administrativa democrática, nos diagnósticos precisos, do ponto de
vista democrático, sobre a estrutura das políticas sociais e da administração pública,
e as ações pífias ou mesmo conservadoras nessas áreas e a resistência à
implementação do modelo neoliberal, demonstram a crise de hegemonia existente no
período e a influência que os setores democrático-populares tiveram sobre a definição
das diretrizes do novo projeto nacional que se encontrava em construção (p.162-163).

Nesse período, pode ser observado que a aprovação de leis complementares à CF88 –
Lei Orgânica da Assistência Social, Lei Orgânica da Saúde e Estatuto da Criança e do
Adolescente – se encontrava na contramão da postura do governo e dos setores dominantes da
economia, uma vez que estas leis se enquadram no paradigma de construção do Estado de bem-
estar, provedor da universalização dos direitos sociais. A isto se alia a existência dos conselhos
deliberativos de políticas públicas, os quais permitem maior controle social das definições do
Estado.
Fato que não se pode perder de vista, é que com o fortalecimento da burocracia no
Estado, há o movimento de ética na política e, nesse período, o caso de corrupção do governo
levou ao impeachment do presidente Collor.
Após o impeachment do governo de Fernando Collor de Melo, assume Itamar Franco,
o qual insere Fernando Henrique Cardoso no Ministério da Fazenda. FHC leva a cabo o Plano
Real, o qual é bem-sucedido no controle da inflação, elevando o poder de compra do brasileiro,
face também ao câmbio 1 Real por 1 Dólar.
O então ministro da Fazenda Fernando Henrique, oriundo do PSDB, partido recente que
reunia intelectuais liberais com vistas à social-democracia, é lançado à presidência em uma
coligação que englobava o PFL, partido que representava as oligarquias nacionais, fato que
Fiori (apud SOUZA FILHO, 2011, p. 168) chama de

uma aliança bem-sucedida entre o que se poderia chamar de ‘cosmopolitismo de


cócoras’ de uma parte da intelectualidade paulista e carioca atrelada às altas finanças
internacionais, e o localismo dos donos do sertão e da malandragem urbana brasileira

Nesse sentido, merece destaque o plano que se tornou orientação da política econômica
do então governo, o Consenso de Washington que, de acordo com Fiori (apud SOUZA FILHO,
2011), se constitui em um

“plano único de ajustamento das economias periféricas”, sistematizado por John


Williamson, organizado como um programa de “três fases: a primeira consagrada à
estabilização macroeconômica, tendo como prioridade absoluta um superávit fiscal
primário, envolvendo invariavelmente a revisão das relações fiscais
intergovernamentais e a reestruturação dos sistemas de previdência pública; a
segunda, (...) dedicada [às] ‘reformas estruturais’; liberalização financeira e
comercial, desregulação dos mercados, e privatização das empresas estatais; e a
terceira etapa, definida como de retomada dos investimentos e do crescimento
econômico” (p. 164).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A partir de então se inicia, de fato, “a reedição do pacto conservador de dominação e o


projeto de transnacionalização” da economia (SOUZA FILHO, 2011, p. 168), caracterizado
pelos seguintes pontos: privatização das empresas estatais, com vistas a reduzir os gastos
públicos, e com o dinheiro adquirido pagar parte da dívida externa; liberalização financeira,
eliminando taxas e impostos para a entrada de capital; liberalização comercial, buscando
facilitar a entrada de mercadorias no país; controle cambial de equiparação do Real ao Dólar,
facilitando a abertura comercial a partir da entrada de mercadorias estrangeiras; e ajuste fiscal,
controlando os gastos públicos para viabilizar o superávit primário, a partir da redução de gastos
com pessoal e área assistencial para possibilitar o pagamento de juros e amortização da dívida
pública. Esse projeto de internacionalização subordinada ao capital internacional tinha como
resultado, além de outras questões, a perda do poder estratégico do Estado, a partir das
privatizações, e o enfraquecimento das empresas nacionais. Era necessário neste período o
respeito às metas de superávit fiscal determinadas pelo Fundo Monetário Internacional, sob o
risco de saque dos títulos da dívida pública pelo capital internacional, o que poderia ocasionar
uma crise cambial no país.

A Constituição de 1988 inaugura no Brasil, quanto às políticas sociais, a universalização


dos direitos sociais, participação popular e descentralização, o que corresponde a uma
aproximação do Estado de bem-estar social democrata, revelando contradição com a conjuntura
nacional, em um ambiente de hegemonia liberal-conservadora. Neste cenário, Souza Filho
(2011) revela três tendências de política social presentes no governo FHC: o padrão
democrático que contaria com apoio técnico, administrativo e financeiro do governo central,
vide LOAS, LOS e ECA; o padrão neoliberal, que incita gastos mínimos para a área social e
conta com o apoio da mídia, que nada mais é que um conjunto de empresas capitalistas, e utiliza-
se da sociedade civil para execução dos programas e projetos de caráter assistencialista com
ações focalizadas, pautadas na solidariedade, filantropia e voluntarismo, vide programa
“Amigos da escola”; e o padrão tradicional de políticas com caráter assistencialista e pouco
regulamentadas.
A partir do processo de descentralização administrativa, a implementação de políticas
sociais ficou a cargo dos municípios, o que permitiu o desenvolvimento de relações utilitárias,
uma vez que este processo envolvia a desresponsabilização do Estado, visto que este passou a
“pagar” às instituições para prestarem os serviços de sua responsabilidade, e estas, necessitando
de recursos para se manterem, se inseriam nessa lógica de “parceria público-privada”.
Percebe-se então que nesse contexto, a administração pública no Brasil tem nas suas
bases a inclusão de ferramentas gerenciais, aproximando-a do modelo empresarial de gestão.
Souza Filho (2011) orienta sua análise na compreensão de que existe uma autonomia
relativa entre os meios e a finalidade da ordem administrativa, ou seja, os mecanismos de uma
administração gerencial podem ser utilizados no processo de universalização de direitos, desde
que essas ferramentas sejam submetidas à finalidade democrática.
A proposta de “reforma” administrativa, uma das dimensões da reforma do Estado,
segundo Souza Filho (2011), é claramente neoliberal, uma vez que se fundamenta na “teoria da
escolha pública” das escolas neoliberais austríaca, de Chicago e Virgínia nos Estados Unidos –
escola a qual o ex-ministro ministro da Fazenda Joaquim Levy é Ph.D. Essa teoria defende a
liberdade como princípio máximo, reforçando o individualismo na sociedade. A teoria da
escolha pública ainda dissemina a ideia de “rent-seeking”, “sugadores da nação”, ou de que
burocratas e políticos são gastadores indisciplinados que agem visando seus interesses
individuais, seja maximizando suas agências ou mesmo com a corrupção, desenvolvendo na
sociedade o desgosto pelo setor público e a ideia de um Estado ineficiente. Buchanan, principal
expoente desta teoria, defende que o papel do Estado se resume a manter a ordem, como no
contrato social de Hobbes, e que as decisões dos homens de governo devem ser guiadas como

229
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

na economia clássica. Nesta perspectiva, ganha fundamento teórico o Estado mínimo, com suas
privatizações e diminuição de gastos públicos para se evitar o comportamento “rent-seeking”,
refletindo na área social a valorização do mercado e redução do Estado.
Montaño (apud SOUZA FILHO, 2011) explica a influência dessa teoria ao apresentar
que o neoliberalismo desdobra-se em três dimensões articuladas: a ofensiva sobre o trabalho, a
reestruturação produtiva e a reforma do Estado; partindo da lógica democrática em direção à
lógica do mercado – liberar, desimpedir e desregulamentar a acumulação de capital. Portanto,
observa-se que a reforma econômica, fiscal, previdenciária e administrativa do Estado está
subordinada ao projeto político hegemônico.
Conforme Souza Filho (2011), a burocracia é útil e fundamental à organização do
capitalismo, porém, em certa medida, pode gerar alguns entraves ao seu pleno desenvolvimento,
a exemplo dos servidores públicos, que podem constituir movimentos de resistência, nos níveis
intermediários da administração burocrática, ao projeto dominante. Portanto, no contexto da
“reforma” neoliberal, ganha força a utilização de servidores contratados que possuem certo
nível de competência e são leais ao empregador devido ao risco de se perder o emprego,
caracterizando assim, um “pacto de fidelidade”.
Apoiado em Souza Filho (2011), pode-se afirmar que a burocracia em si não é um
modelo de gestão – e sim de dominação –, mas os modelos de gestão utilizam o elemento do
tipo ideal, “burocracia”. Não há gestão ou organização “pós-burocrática”, o que há é uma
flexibilização da burocracia para melhor se adaptar às necessidades momentâneas do capital.
Souza Filho esclarece muito bem essa questão ao elucidar que

A empresa privada, portanto, não deixou de ser burocrática em seus traços e


determinações essenciais. O máximo que acontece é ela ter mudado determinados
procedimentos e organização do trabalho, incorporando estruturas não burocráticas
(pensemos em atividades terceirizadas fundamentais para a lógica atual do
capitalismo e a situação dos trabalhadores e gerentes dessas empresas periféricas),
porém, sem alterar, e até mesmo fortalecendo, a estrutura burocrática do centro
estratégico. (2011, p. 190)

A partir desta análise pode-se perceber, nos diversos modelos de administração, ou


formas de organização da produção – fordismo, taylorismo, toyotismo –, que estas nada mais
foram que formas diferentes de se organizar a burocracia no processo produtivo. Portanto, a
utilização da burocracia é adaptada conforme o contexto do capitalismo, e está presente em
todos os modelos de gestão desenvolvidos por empresas, a partir de uma maior ou menor
incorporação de elementos de flexibilização – gerenciais ou patrimoniais. Faz-se então, no caso,
uma adequação da burocracia para o Estado nos moldes do que se espera da administração
empresarial, no sentido de aperfeiçoá-la conforme a necessidade do grande capital – inserindo
elementos patrimonialistas, agilidade, redução de custos –, para tanto, a finalidade economicista
passa a ser o elemento central da administração pública no contexto neoliberal da “reforma” do
Estado. Logo, os neoliberais não são contrários à burocracia e nem ao Estado, eles se opõem
aos aspectos de ambos que podem fortalecer a universalidade (SOUZA FILHO, 2011).
Souza Filho sintetiza bem esse contexto ao inferir que “o gerencialismo não passa de
tecnologias de flexibilização e valorização do mercado [...] para a implementação do projeto de
transnacionalização radical” da economia (2011, p.195).
Dessa forma, Souza Filho (2011) destaca que

O projeto gerencialista ataca a finalidade de universalização de direitos e sua


dimensão racional/impessoal da ordem administrativa burocrática que potencializaria
aquela finalidade. Ratifica-se uma finalidade fundada no atendimento de necessidades
mínimas da população, coerente com a proposição neoliberal de reforço do mercado,

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

e na mudança da estrutura burocrática para flexibilizá-la, na medida em que não se


propõe a universalização de direitos (p.196).

Desse modo, Souza Filho (2011) discorda de Bresser Pereira (2005), uma vez que este
último, no contexto da particularidade brasileira da proposta de contrarreforma da
administração pública, implementada de fato pelo mesmo, quando ministro da administração e
reforma do Estado no governo FHC, nega a vinculação da reestruturação com o gerencialismo
neoliberal. Souza Filho (2011), então, busca mostrar a proximidade do Plano Diretor da
Reforma Administrativa do Estado e a perspectiva neoliberal a partir de três dimensões:
política, teórica e institucional.

4 A PERSPECTIVA DE BRESSER PEREIRA: O PRECURSSOR DA (CONTRA)


REFORMA

No plano político analisado, Bresser se posiciona contra o neoliberalismo, mas defende


que o mercado deva ser o guia da reforma, e que o Estado deve privilegiá-lo. O ex-ministro
ainda defende que a crise dos anos 1970 foi causada pelo Estado, a partir de sua intervenção
“keynesiana” na economia e “welfariana” no social (SOUZA FILHO, 2011).
Analisando a perspectiva da dimensão teórica, percebe-se que Bresser compreende a
administração pública como próxima, integrada e indistinta da administração empresarial, num
processo de redução do significado de administração em geral, que engloba a utilização racional
de recursos para atingir fins determinados, para administração capitalista, a qual possui a
finalidade de viabilizar a apropriação privada da riqueza socialmente produzida, através da
extração de mais valor. Portanto percebe-se que para Bresser a administração torna-se sinônimo
de administração de empresas (SOUZA FILHO, 2011).
Para o ex-ministro, a burocracia teve sua importância na evolução do capitalismo, uma
vez que possibilitou a separação entre bens públicos e bens privados, porém, para ele, faz-se
necessária a evolução da administração burocrática para a gerencial. Evolução esta, emergente,
devido ao atraso do padrão burocrático de administração, principalmente no que se refere à
rigidez e ineficiência do serviço público, caracterizado, segundo Souza Filho (2011), pela

Apropriação privada do aparelho público, através de processos de corrupção de seus


agentes; exagerada ênfase nos procedimentos – fato que não propiciava uma atenção
adequada aos resultados da administração e gerava processos extremamente
dispendiosos e lentos; atuação auto-referenciada da burocracia – a partir da formação
de uma classe tecnoburocrata –, não privilegiando, dessa forma, a centralidade do
cidadão como referência para o serviço público; falta de accountability (p.202).

Dessa maneira, para Souza Filho (2011), essa acepção reducionista de Bresser sobre
burocracia não passa de uma má compreensão, a qual coloca burocracia e gerencialismo no
mesmo patamar de modelos administrativos e retira do setor privado qualquer relação com a
burocracia, como se esta fosse coisa pública.
Peter Evans (apud SOUZA FILHO, 2011) nos apoia na crítica à compreensão de Bresser
Pereira, visto afirmar que os problemas dos Estados subdesenvolvidos não são a burocracia,
mas a falta ou má utilização desta, como no caso do Brasil, especificamente, com seus excessos
de cargos de confianças, o que foge à contratação meritocrática e impessoal, e a manutenção da
relação do Estado com as oligarquias agrárias.
Portanto, Bresser, que afirmava se afastar da concepção neoliberal, se mostra bem
fundamentado conforme a teoria da escolha pública, uma vez que supõe que o Estado cresce
por conta própria e por interesses próprios – dos servidores públicos e seus interesses pessoais
– numa clara adesão ao rent-seeking.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

No que se refere à aproximação da perspectiva neoliberal com a dimensão institucional


do Plano Diretor da Reforma Administrativa, pode-se elencar duas ações centrais: o ajuste fiscal
preconizado pelo Plano, via privatizações, terceirizações e contenção de gastos sociais; e o
fortalecimento dos núcleos de decisão do Estado, através da primordialidade dada a instituições
como o Banco Central, Tesouro Nacional e Ministério da Fazenda, em um processo de
insulamento burocrático que “desideologiza-se a política e despolitiza-se a gestão, visando
garantir a direção social neoliberal a ser implementada” (FIORI, apud SOUZA FILHO, 2011,
p. 207).
Expressão desse processo de contrarreforma da administração pública é a reorganização
conduzida entre a formulação e execução de políticas, a partir da implementação dos termos de
parceria entre o Estado e a sociedade civil como instrumento legal para transferência de recursos
e responsabilidades para as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público. Portanto,
observa-se que nos governos de Fernando Henrique Cardoso, o patrimonialismo é reposto em
uma dinâmica gerencialista sobre bases racionais-legais, materializado, por exemplo, nas
emendas parlamentares, liberação de recursos para projetos sociais, terceirizações e cargos de
confiança. O que se expressa como mecanismos clientelistas de obtenção de apoio político para
seu projeto de implementação da transnacionalização da economia.
Souza Filho (2011) sintetiza que a “reforma” do Estado do governo FHC reestrutura a
ordem administrativa brasileira “mantendo a imbricação da burocracia com o patrimonialismo,
porém, num contexto de monocratização burocrática e patrimonialismo em transformismo,
mediado pelos mecanismos de flexibilização gerencial” (p.215).
Como já denunciava Souza Filho (2011), Bresser (2005), ao fazer a defesa da
necessidade de “reforma” do Estado, nega sua vinculação à perspectiva neoliberal, afirmando
“apenas” que era importante limitar o Estado como regulador e produtor de bens e serviços.
Para Bresser, havia a necessidade de ampliar o Estado no financiamento de atividades que
envolviam direitos humanos básicos e na competitividade internacional das indústrias
nacionais, no sentido de fortalecê-las. Ou seja, pregava um Estado desresponsabilizado no que
se refere ao social e fortalecido para o capital (BRESSER PEREIRA, 2005).
Bresser transfere à sociedade civil a insatisfação com o Estado, uma vez que, para o ex-
ministro, a administração pública burocrática não corresponde às demandas da sociedade civil
(BRESSER PEREIRA, 2005).
Para Bresser Pereira, o Estado sem a “reforma” sofre a ameaça dos rent-seeking,
carecendo de uma reconstrução, uma vez que o seu desmantelamento, na proposta de Estado
mínimo, não era viável, o que se mostra incongruente, visto que a “reforma” proposta pelo
mesmo previa sim o alto enfraquecimento do Estado (BRESSER PEREIRA, 2005).
O ex-ministro do governo FHC defende que a burocracia pode até evitar a corrupção e
o nepotismo – apesar de afirmar em uma “classe burocrática” que enriqueceu através do Estado
–, porém é essencialmente lenta, cara e ineficiente. Assim como Montesquieu defendeu que a
república é um sistema político para pequenos Estados, Bresser faz a mesma relação com a
burocracia (BRESSER PEREIRA, 2005).
O economista afirma que na burocracia impera a ação sem objetivos claros, apenas com
o intuito de prevenir desvios, ou seja, um modelo viciado e limitado nos procedimentos,
enquanto a administração gerencial – que em sua visão também combate o nepotismo e a
corrupção – visa resultados. Quanto ao patrimonialismo, Bresser afirma que estes valores não
mais predominam na sociedade, e que a preocupação deve ser direcionada em procurar acabar
com o rent-seeking operado no seio da burocracia de Estado.
Seguindo em defesa da administração gerencial, Bresser Pereira (2005) chama a atenção
para elementos de descentralização, delegação de autoridade, responsabilização do gestor
público e indicadores de desempenho como princípios utilizados por este modelo de gestão e

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

que vem dificultar “novas modalidades de privatização do Estado” (p. 29), ou o rent-seeking
burocrático.
A explicação para a defesa dessa transformação na administração pública segue a
tendência da nova administração pública operada por alguns países centrais, tais como Reino
Unido, Nova Zelândia, Austrália etc., caracterizada, segundo Bresser Pereira, pela

a) descentralização do ponto de vista político, transferindo-se recursos e


atribuições para os níveis políticos regionais e locais; b) descentralização
administrativa, através da delegação de autoridade aos administradores públicos,
transformados em gerentes cada vez mais autônomos; c) organizações com poucos
níveis hierárquicos, ao invés de piramidais; d) pressuposto da confiança limitada, e
não da desconfiança total [em referência aos processos burocráticos que dificultam a
corrupção via maior segurança nos processos]; e) controle a posteriori, ao invés do
controle rígido, passo a passos, dos processos administrativos; e f) administração
voltada para o atendimento do cidadão, ao invés de autorreferida (2005, p.243).

Destarte, para materializar esses contornos da “nova administração pública”, Bresser


Pereira divide o Estado em quatro setores operacionais: núcleo estratégico, constituído pelos
poderes legislativo e executivo, além dos ministérios, presidência da República etc.; atividades
exclusivas do Estado, vide arrecadação de impostos, forças armadas, atividades de
cumprimento das leis e fomento ao financiamento de políticas públicas; serviços não-
exclusivos, que podem ser oferecidos pelo privado ou público não-estatal, tais como educação,
ciência e tecnologia, saúde etc.; e produção de bens e serviços, no qual o Estado se materializa
via empresas estatais. Essa divisão teorizada por Bresser visa apontar o tipo de administração,
propriedade e instituições que devem prevalecer em cada setor a partir da “reforma” do Estado
(BRESSER PEREIRA, 2005).
No núcleo estratégico, Bresser Pereira (2005) defende que a burocracia deve ainda estar
presente em conjunto com a administração pública gerencial, uma vez que, neste setor, a
eficácia e segurança são mais importantes que a eficiência, carecendo de maior especialização
de seus funcionários, que devem possuir carreiras estáveis mais flexíveis do que na burocracia.
Tais funcionários devem entender que o ethos do serviço público é servir ao cidadão. A
propriedade do núcleo estratégico deve ser estatal.
Quanto às atividades exclusivas, a administração deve ser descentralizada, ainda que de
responsabilidade de agências estatais (BRESSER PEREIRA, 2005).
No que se refere às atividades não-exclusivas do Estado, sua administração deve ser
autônoma, ou seja, com o controle exercido pela sociedade civil através do monitoramento pelo
Estado. Sua propriedade deve ser pública não-estatal; nos termos de Bresser Pereira: “‘pública’
no sentido de que deve se dedicar ao interesse público, de que não visa o lucro. ‘Não-estatal’
porque não faz parte do aparelho do Estado” (2005, p.35). Essas instituições são materializadas
nas Organizações Sociais (OS), as quais recebem financiamento do Estado e executam
determinadas políticas.
Para a produção de bens e serviços, Bresser defende que esta seja uma atividade
exclusiva de empresas privadas.
O ex-ministro faz referência ao patrimonialismo ao tecer crítica ao corporativismo dos
grupos presentes na Constituinte de 1987-1988, uma vez que defendiam, conforme Bresser,
seus interesses como se fosse o interesse geral da nação. Mas também faz menção ao governo
de Fernando Collor de Melo e sua tentativa desastrosa de “reforma” do aparelho do Estado via
demissão de funcionários públicos; culpabilização dos servidores pelos males do país e
acusação destes formarem uma categoria corporativista (BRESSER PEREIRA, 2005).
O economista indica como operacionalizar o programa que chama de “publicização do
Estado”, transformando serviços “não-exclusivos do Estado” em não-estatais, o que, para ele,
é diferente de “programa de privatização”:

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Para tanto será preciso extinguir as atuais entidades e substitui-las por fundações
públicas de direito privado criadas por pessoa física [para que não sejam consideradas
entidades estatais][...]. As novas entidades receberão, por cessão de uso precária, os
bens da extinta. Os servidores da entidade transformar-se-ão em uma categoria em
extinção e ficarão à disposição da nova entidade. O orçamento da organização social
será global; a contratação de novos empregados, pelo regime da Consolidação das
Leis do Trabalho; as compras deverão estar subordinadas aos princípios da licitação
pública, mas poderão ter regime próprio. O controle dos recursos estatais postos à
disposição da organização social dar-se-á através do contrato de gestão, estando
também submetido à supervisão do órgão de controle interno e do Tribunal de Contas
(BRESSER PEREIRA, 2005, p.264)

Dessa forma, Bresser estabelece três dimensões pelas quais a “reforma” da


administração pública deve ser executada. Na dimensão institucional-legal, “por meio da qual
se modificam as leis e se criam ou modificam instituições” (BRESSER PEREIRA, 2005, p.
265), será preciso modificar a Constituição e demais legislações. Na dimensão cultural será
necessário o sepultamento da cultura patrimonialista, bem como a modificação de valores de
uma sociedade burocrática para gerencial. Finalmente, na dimensão da gestão, o desafio
constitui-se em “pôr em prática as novas ideias gerenciais e oferecer à sociedade um serviço
público efetivamente mais baratos, mais bem controlado e de melhor qualidade” (p. 265-266),
através da criação de agências autônomas e organizações sociais.
Em síntese, para Bresser Pereira (apud BEHRING, 2008) a crise à qual se refere se
localiza na incompetência fiscal do Estado, na ineficiência do serviço público e no excesso de
regulação, devendo então reformar o Estado no intuito de recuperar sua governabilidade, e a
capacidade financeira e administrativa de governar.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É importante destacar que as duas “reformas” na administração pública brasileira


realizadas sobre regimes ditatoriais, uma burocrática de Getúlio e outra gerencial no regime
militar, “apresentavam em comum uma marca patrimonialista de nascença, que entende a
administração pública como mecanismo preferencial de distribuição de privilégios e obtenção
de apoio político” (TORRES, 2004, p.160).
Nesse sentido, o governo de Fernando Collor tentou emplacar uma reforma na
administração pública sobre orientação neoliberal, mas o processo de impedimento e sua
posterior renúncia causaram certos entraves na referida reforma, que veio a se concretizar no
governo de Fernando Henrique Cardoso sob a direção do então ministro, Bresser Pereira.
Em síntese, no período de 1930 até o final do regime militar, o que ocorre no Brasil, em
termos de desenvolvimento da administração pública, é a sua organização para operacionalizar
a expansão e consolidação do capitalismo, em sua fase monopólica, a partir da “natureza”
periférica, dependente e associada da industrialização nacional. Portanto, no período em
questão, a ordem administrativa fundou-se “pelo pacto de dominação estruturado pela
articulação entre interesses agrários tradicionais e a burguesia industrial, incorporando os
setores populares de forma ‘seletiva’ e ‘regulada’” (SOUZA FILHO, 2011, p. 105).
No que se refere às justificativas em favor da “reforma” da administração pública
implementada sob o comando de Bresser Pereira, em termo objetivos, a defesa do ex-ministro
no campo das políticas públicas refere-se ao Estado como instância que deveria estabelecer
parcerias com a sociedade civil para financiamento e execução de tais políticas. O Estado
deveria reduzir a prestação direta de serviços mantendo-se como regulador e provedor. Daí a
ideia de reforçar a governança do Estado por meio da transição de um modelo inflexível e
ineficaz de administração pública para a administração gerencial, flexível e eficiente. A partir

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

da “reforma” da administração pública em questão, caberia ao Estado brasileiro, portanto, um


papel de coordenador suplementar das políticas públicas (BEHRING, 2008).
Grau (1998), sobre o processo de reforma da administração pública, afirma que

Precisam, pois, também ser discutidas as condições para o estabelecimento das


instâncias de mediação relacionadas com o aparelho burocrático, que possam ser
capazes de conferir um caráter público às políticas governamentais e assegurar a
responsabilidade pública em sua execução. No contexto da democratização do Estado,
inclusive é preciso interrogar aos próprios modos de organização administrativa e,
portanto, colocar como objeto de discussão o próprio modelo burocrático. [...] A
reforma administrativa não apenas mostra sua dimensão política, como compromete
uma luta de forças. Ao assumir outros conteúdos, no contexto da possibilidade de
“publicização” da administração pública, ela é colocada também como uma reforma
política com capacidade de afetar a institucionalidade pública. Além disso, assumida
a partir da perspectiva da sociedade, conota a própria democratização do Estado com
uma direcionalidade adicional, que encaminha ao enfrentamento de uma das direções
da crise política: as relações clientelistas da administração, que favorecem aos setores
privilegiados da sociedade e que se expressam em políticas públicas-privadas (p. 54).

Nesse contexto da “Reforma” Administrativa do Estado, Behring (2008) infere que, da


forma como Bresser Pereira objetiva sua execução, esta se torna apenas uma maneira de inserir
o país de modo passivo na dinâmica de transnacionalização radical da economia. Para a autora,
essa condução representa uma escolha político-econômica que percebemos estar vinculada aos
imperativos do Consenso de Washington, através da “exigência de um Estado forte para a
condução do ajuste direcionado à expansão do mercado” (BEHRING, 2008, p. 200), ajuste este
fiscal que se refere principalmente à contenção dos gastos sociais para ampliação do superávit
primário.
Dessa forma, se fortaleceu a dinâmica de implementação de políticas públicas a partir
do setor público não estatal, o que revela a existência de forte tendência de
desrresponsabilização, por parte do Estado, pelas políticas sociais. Nesse contexto, a questão
do caráter público das políticas governamentais é perpassada intensamente por sua relação com
o privado. O privado no sentido de instituições privadas que se configuram como executoras
das políticas públicas, o que faz com que seja importante que esta forma de organização
administrativa seja questionada.
Portanto, a “Reforma” do Estado, ao assumir a postura de contenção dos gastos
públicos, demonstra negligência pelo padrão constitucional de seguridade social, a partir da
perspectiva de privatização, focalização e descentralização das políticas sociais. Enfim, a
“reforma” em questão “tratou-se de uma verdadeira contrarreforma, dada sua natureza
destrutiva e regressiva” (BEHRING, 2008, p. 212).

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Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e dá outras
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TORRES, Marcelo Douglas de Figueiredo. A evolução da administração pública brasileira.


Estado, democracia e administração pública no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004,
p.139-170.
i
Conforme Nunes (1997, p.34), por insulamento entende-se “o processo de proteção do núcleo técnico do Estado contra a
interferência oriunda do público ou de outras organizações intermediárias. O insulamento burocrático significa a redução do
escopo da arena em que interesses e demandas populares podem desempenhar um papel”.

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Democracia burguesa e as bases materiais para a construção da


democracia proletária e do socialismo

Rossi Henrique Soares Chaves


Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Gustavo Silva Noronha


Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET)

Resumo

Este ensaio tem como objetivo refletir sobre as condições de manutenção da democracia
burguesa pensando de que maneira seus limites convergem com possibilidades para o avanço
da luta revolucionária e a construção de uma democracia proletária. O presente ensaio teórico
está dividido em duas partes, na primeira discutimos como democracia em sua forma
burguesa, apesar de representar um avanço da participação social durante o desenvolvimento
e consolidação do Estado capitalista-burguês, tem suas limitações intrínsecas a essa forma
política capitalista de Estado. Na segunda parte do presente ensaio refletimos sobre como as
alternativas democráticas de socialização políticas estão ligadas à consolidação de uma
democracia proletária e a superação da democracia burguesa, uma superação da forma de
operar, mas que mantém e evolui a participação social emergida com essa forma política. Por
fim concluiu-se que uma nova prerrogativa tecnológica de base material se apresenta na
contemporaneidade, representando a possibilidade de novas perspectivas de ordem material
para a socialização política.

Introdução

O Estado capitalista contemporâneo é caracterizado, por diversos autores e pela


opinião pública, pela instituição da democracia burguesa e seu avanço, principalmente quando
analisamos no horizonte temporal os períodos históricos que o antecederam, partindo do
regime oligárquico feudal, passando pelo regime monárquico liberal e chegando ao Estado
capitalista, assistimos à consolidação da democracia representativa burguesa e que
desenvolveu em seu regime político entre outras coisas: o sufrágio universal, o pluralismo
partidário, o Estado democrático de direito...como se significassem um estágio universal de
avanço consolidado. Porém, para Marx (2010) a verdadeira democracia, enquanto entendida
como esse instrumento de ação coletiva (no sentido de transformação social), seria possível
apenas com a ascensão da intervenção da classe trabalhadora na política, a tal ponto que a
dimensão social e a política fossem incorporadas como aspectos de unidade de ação. A
verdadeira democracia para Marx “é conteúdo e forma” (2010, p. 49), ou seja, ela composta
pela base institucional do Estado e também é parte de um universo político e social, bem
diferente inclusive dessa democracia burguesa propagada como plena. Nesse sentido
Martorano (2011) aponta “que, para o marxismo, a democracia não é apenas uma modalidade
de representação política, pois o seu funcionamento pressupõe a existência, entre outros, de
dois grupos sociais bem definidos: a classe dominante e a burocracia estatal” (p. 23).
Martorano ainda continua e afirma que “a democracia, tal como o Estado, apenas pode ser
entendida tomando-se como referência essencial o fundamento socioeconômico que a

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

sustenta” (p.24), o autor chama atenção assim ao papel representado pela democracia
burguesa no avanço do Estado capitalista.
Este ensaio tem como objetivo refletir sobre as condições de manutenção da
democracia burguesa pensando de que maneira seus limites convergem com possibilidades
para o avanço da luta revolucionária e a construção de uma democracia proletária. Uma
hipótese levantada e defendida é a de que na contemporaneidade diante dos limites da
democracia burguesa, diferente de outras épocas, se apresenta um novo panorama material de
progresso eletrônico sobretudo da microeletrônica e da informática, tal fato apresenta novas
prerrogativas e alternativas para a superação da democracia burguesa e traz uma base material
para a construção de uma democracia proletária e também na garantia de mecanismos que
possam garantir a participação social. Outra hipótese é de que esse avanço tecnológico
material tem representado uma contradição para a manutenção da democracia burguesa uma
vez que a mesma tem se sustentado em estreita relação com o lobby.
Para tanto o presente ensaio está dividido em duas partes, na primeira apontamos que a
democracia em sua forma burguesa, apesar de representar um avanço da participação social
durante o desenvolvimento e consolidação do Estado capitalista-burguês1, tem suas limitações
intrínsecas a essa forma política capitalista de Estado, para tanto também procuraremos trazer
a contribuições de autores marxistas sobre o tema “Estado capitalista, democracia e
socialismo”. Apesar desses avanços proporcionados pela democracia burguesa no desenvolver
do Estado capitalista e do sistema produtivo capitalista, as alternativas que apontam para uma
socialização da política estão longe de preservar sua forma política burguesa (via indireta e
por representação), pois vem se contradizendo com o desenvolvimento material de base
tecnológica (avanço tecnológico) que tem despertado a possibilidade em se criar condições
materiais capazes de sustentar uma democracia direta. E na segunda parte do presente ensaio
refletimos sobre como as alternativas democráticas de socialização políticas estão ligadas à
consolidação de uma democracia proletária e a superação da democracia burguesa, uma
superação da forma de operar, mas que mantém e evolui a participação social emergida com
essa forma política. Por mais que a democracia burguesa represente a reprodução em certa
medida de um pensamento burguês na classe trabalhadora, a democracia proletária seria um
novo desafio para a manutenção do sistema capitalista, já apontamos que certamente a
democracia proletária culminaria em sérias contradições com o capitalismo, pois ambos
possuem contradições estruturais, que apontaremos ao longo do texto.
Quanto ao avanço material de base tecnológica propiciado pelo capitalismo que
tratamos na segunda parte, este está ligado, sobretudo, a atual revolução da informática, no
sentido que aponta para um horizonte onde novas formas de democracia (enfoque nosso será
na proletária) se apresentam com a possibilidade de se realizar de uma maneira direta, ou seja,
o povo dirigindo as ações2.

2. Estado capitalista e democracia burguesa

A forma política do Estado capitalista concebeu-se para que as tensões sociais fossem
apartadas e, por conseguinte, que o sistema produtivo se movimente com o mínimo de
estabilidade. Assim, o ferramental ideológico que se estabelece em torno do Estado também
tem uma concepção de classe e de manutenção da ordem social, a citar as ciências jurídicas,
principal teia de consolidação das normas burguesas institucionais. Sendo assim, definidas as
regras de funcionamento da máquina estatal, seu modus operandi abarca uma lógica de
dominação de classe, produzindo e reproduzindo contradições intrínsecas ao sistema
capitalista.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Por esta razão Marx (2014) comenta que

“Finalmente, desde o surgimento da grande indústria e do mercado mundial, ela [a


burguesia] conquistou no Estado representativo moderno o domínio político
exclusivo. O poder do Estado moderno é apenas uma comissão que administra os
negócios comuns de toda a classe burguesa.” (p. 35)

Na medida em que é o ponto de partida de onde são discutidas e reguladas as diretrizes


de acumulação de capital (e não como uma síntese da função do Estado capitalista). Seja a
partir de uma concepção intervencionista (modelo keynesiano) ou liberal (modelo clássico), o
Estado serve ao progresso dos mercados para a potencialização do crescimento econômico e,
portanto, serve à lógica da reprodução capitalista. Por isto, em termos gerais de
representatividade, os governos não abarcam os interesses do proletariado, posto que os
interesses desta classe estariam contrários à dinâmica do próprio Estado.
Desta forma, por muito tempo acreditou-se que a revolução socialista passaria
obrigatoriamente pela tomada do Estado pela classe trabalhadora, transformando a máquina
estatal em um catalisador do movimento de socialização dos meios de produção. Na
concepção marxista ortodoxa (Lenin, Kautsky, Rosa Luxemburgo entre outros), o Estado
deixaria de ser um ferramental da classe burguesa para se tornar provedor dos interesses do
proletariado. Por esta razão, para Lenin em “O Estado e a Revolução”, por exemplo, a
concepção de gestão do mesmo se pautaria na ditadura democrática do proletariado,
impedindo que a lógica do capital se reproduzisse em seu interior.
O nascimento da URSS trouxe consigo o protagonismo do proletariado na gestão do
Estado, representando o fim do capitalismo, sem extinguir, entretanto, o imperativo do
capital3. No entanto, em se tratando do acesso gestacional do Estado, a estrutura política era
bastante centralizadora, baseada no unipartidarismo. A grande questão é que esta estrutura
correspondia às necessidades reais apresentadas naquele momento histórico da sociedade
russa e seus adjacentes4.
Com a queda do muro de Berlim e o cessar da guerra fria em 1989, a democracia foi
proclamada cada vez mais como um valor universal5 a ser perseguido construindo seus
calendários e ritos institucionais de forma sólida. As diretrizes democráticas se tornam uma
ideia vinculada ao próprio sistema econômico que se firmava globalmente perante o mundo.
O capitalismo, diante da sua suposta vitória sobre o socialismo, estabelecia o corolário de que
somente ele possuiria as prerrogativas necessárias para uma sociedade pautada em valores
democráticos, resguardando as garantias e liberdades individuais, aliada a execução dos
interesses públicos.
No entanto, mesmo frente aos esforços durante as décadas seguintes em busca de
aprimorar os mecanismos de participação e gestão do Estado, observa-se a eminência de uma
crise política latente em todo o mundo, no qual a sociedade se vê pouco representada por seus
governos. Até mesmo nos países desenvolvidos europeus, onde prevaleceu o welfare state, o
interesse público muitas das vezes é suprimido em função do jogo político que se desdobra. A
citar tem-se o caso recente de Portugal, Espanha e Grécia que se viram numa encruzilhada ao
decidir sobre as ações de austeridade a serem tomadas para satisfazer às exigências
estabelecidas pelos credores internacionais.
A grande questão é que passados quase duas décadas desta dualidade simplista entre
capitalismo e socialismo, democracia e ditadura, percebe-se que o debate em torno do assunto
se encontra embebido de definições superficiais. Em outras palavras, se a democracia fosse
intrínseca à um sistema produtivo ela não aconteceria em um diferente momento
histórico.Assim como, se a ditadura fosse intrínseca ao modo de produção socialista não
presenciaríamos a ocorrência deste regime dentro do próprio capitalismo, a citar os governos
fascistas do século XIX.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Apontado isso, convém delimitar que a democracia burguesa, essa sim tem se
manifestado como intrínseca ao Estado capitalista-burguês. Martorano (2007, p. 38) aponta
que o termo “democracia burguesa” expressa a “forma política da dominação de classe da
burguesia com base na dominância das relações de produção capitalistas”, o autor ainda
exemplifica ao mostrar que “embora o parlamento seja formalmente aberto a todas as classes
e grupos sociais são as classes dominantes que sempre conseguem nele a aprovação de
medidas favoráveis aos seus interesses de conjunto”.
Quanto a democracia burguesa é importante ressaltar para evitar possíveis suposições,
que como apontou Saes (1998) “embora se constitua numa forma de organização do Estado
(de classe) burguês, a democracia burguesa é o resultado deformado de um processo de luta,
não correspondendo às intenções, nem de um, nem de outro dos agentes” (p. 161). Em outras
palavras isso significa esclarecer por um lado que a democracia burguesa não é uma produção
da classe capitalista (ainda que a beneficie diretamente) e sim fruto de um processo de
conflito social-político que contou até mesmo com participação do proletariado. Por outro
lado é por meio da democracia burguesa que a classe burguesa tenta convencer as classes
mais populares que “o povo representado no Estado é o meio adequado para a transformação
de uma sociedade de classes, fundada na exploração do trabalho alheio, numa democracia
sócio-econômica; e de que os direitos políticos constituem a condição de satisfação das suas
aspirações igualitárias” (SAES, 1998, p. 161).
Feito esses apontamentos, a democracia burguesa tem uma representação para a classe
proletária e para os partidos revolucionários no avanço da luta, além do mais porque trata da
realidade política concreta contemporânea. Cada realidade social-econômica tem
especificidades que determinam o direcionamento político tanto das classes proletárias como
dos partidos revolucionários. Marx (2012) comenta, por exemplo, que os programas operários
franceses sob Luís Filipe (governo monárquico) e Luís Napoleão (governo ditatorial
republicano), souberam “sabiamente, pois as condições exigem cautela” (p.44), reivindicar a
república democrática, pois ainda segundo Marx

“não se deveria recorrer ao truque, nem ‘honrado’ nem digno, de exigir coisas que
só têm sentido numa república democrática de um Estado que não é mais do que um
despotismo militar com armação burocrática e blindagem policial, enfeitado de
formas parlamentares, misturado com ingredientes feudais e, ao mesmo tempo, já
influenciado pela burguesia; e ainda por cima assegurar, a esse Estado, que se supõe
pode impor-lhes tais coisas ‘por meios legais’!” (p.44)

Apesar de indicar que determinadas realidades pendem ações políticas específicas,


Marx chama atenção ao que ele chamou de “democratismo”, que seria o contingenciamento
da política operária revolucionária diante de avanços políticos específicos dentro da república
democrática, sobre isso diz Marx (2012)

“Até mesmo a democracia vulgar, que vê na república democrática o reino milenar e


nem sequer suspeita de que é justamente nessa última forma de Estado da sociedade
burguesa que a luta de classes será definitivamente travada, mesmo ela está muito
acima desse tipo de democratismo, que se move dentro dos limites do que é
autorizado pela polícia e desautorizado pela lógica.” (p.44)

Saes (1998) chama atenção de que democratismo, apesar de seus limites explícitos à
luta revolucionária assim como apontou Marx, “nem por isso ele deve ser menosprezado pelo
proletariado revolucionariamente consequente, já que tem efeitos políticos positivos e
consideráveis sobre a sua própria luta revolucionária” (p.170). Em outras palavras, Saes
apresenta uma metáfora para se pensar o democratismo revolucionário na democracia
burguesa, pensemos

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

“a democracia burguesa como um tapete rolante, percorrido pela classe operária em


sentido contrário ao do movimento mecânico realizado pelo tapete: muitas vezes, o
passageiro (classe operária) deve correr bastante (lutar politicamente) para não
somente permanecer no mesmo lugar (conservar a democracia burguesa já
existente).” (1998, p. 170)

Esses apontamentos feitos por Marx nos remetem muito a atualidade, principalmente
se pensarmos o contexto político brasileiro atual6 tendo em vista os posicionamentos políticos
dos partidos revolucionários frente o impedimento da presidenta Dilma Rousseff. Aqui não
cabe analisar a tática de cada partido, nos interessa pegando a discussão proposta e de gancho
a situação política brasileira atual formular a seguinte questão: deveria o proletariado/partidos
revolucionários se posicionar pela manutenção da democracia burguesa?7
Não temos uma resposta definida para esta questão, contudo, ela nos permite algumas
reflexões propositivas. Saes (1998) aponta que o proletariado em sua própria organização
política, contribui para a manutenção da democracia burguesa

“...já que esta cria condições políticas favoráveis à formação/desenvolvimento de um


partido revolucionário, capaz de dirigir o processo de destruição do aparelho de
Estado burguês, de conferir à ditadura do proletariado sobre a burguesia o caráter de
uma democracia de massas e de conduzir, no processo de construção do socialismo,
a luta das massas contra as tentativas burguesas de restauração do capitalismo.”
(p.171)

Por um lado não é porque a democracia burguesa no contexto da república


democrática é a condição política que garante a organização partidária do proletariado, que
isso torna a luta proletária contingencial, por isso Saes (1998) aponta que além de garantir a
democracia burguesa pela sua própria condição de existência, o proletariado

“...deve criticar as próprias instituições democráticas, que no entanto ele busca


proteger quando elas são desafiadas por tendências ditatoriais ou fascistas das
frações burguesas; isto é, deve denunciar o caráter formal e ilusório da igualdade
política na democracia burguesa, demonstrando a existência de um acesso
diferenciado (classe dominantes, classe dominadas) às liberdades políticas.” (p.171)

Diante disso para Saes (1998) a ação revolucionária do proletariado deve ser “legal-
revolucionária”8, pois na ação legal-revolucionária, se organiza a “reinvindicação
(=legitimação do Estado democrático-burguês) e a denúncia (=revelação do caráter de classe
do Estado democrático burguês)” (p.172), tendo em vista a realização do propósito final de
“destruição do aparelho de Estado burguês e da democracia burguesa, e de construção do
Estado proletário e da democracia de massas” (p.172).
Portanto, seria um equívoco imaginar que a democracia só se faria possível em um
determinado modo de produção, e que a democracia burguesa do Estado burguês é a forma
mais “consolidada” de democracia. O ponto-chave a ser pensar é que existe uma dinâmica de
governo que melhor se adéqua com a estrutura de produção. No caso da democracia burguesa,
por exemplo, ela permitiu com que as nações capitalistas dessem saltos significativos em
termos de adequação gestacional, mas hoje apresenta limitações que demonstram a sua não
compatibilidade integral com o atual sistema econômico9. Isto porquê a palavra de ordem do
capitalismo mundial se pauta no lobby, que nada mais é que a explicitação da defesa de
grandes interesses econômicos capitalistas.
Consequentemente, fica mais claro pensar na hipótese levantada para este ensaio de
que o capitalismo tem evidenciado cada vez mais as suas contradições e a manutenção da
democracia burguesa, dado a chegada de um limite de coexistência dela com o lobby – prática

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

pelo qual os grandes capitais controlam e gerenciam a tomada de decisões dos chefes de
Estado. Com isso, o fortalecimento da democracia direta-proletária estaria intrinsecamente
ligado ao socialismo, na medida em que quanto mais se fortalecesse as condições concretas de
participação direta do povo no Estado, enfraquecendo a democracia burguesa por
representação, mais os interesses do capital seriam suprimidos. Mais adiante trataremos das
mediações entre esses processos, pois não se trata de um movimento gradual e totalmente
lógico, mas que nos permitem pensar estratégias de ação.
Desta forma, o debate simplista em torno de capitalismo ou socialismo, democracia ou
ditadura, ganharia a forma de democracia por representação (burguesa) ou democracia direta
(proletária). Isto, de certa forma desvincularia a imagem do Estado socialista com o projeto
centralizado e de cúpula unipartidária. Até porque, naquele momento histórico, a URSS não
tinha condições materiais suficientes para construir um projeto socialista com moldes
democráticos efetivos. A grande questão é que com a nova etapa de produção mundial, onde
temos três grandes revoluções produtivas: robótica, eletrônica e computacional, há a
possibilidade material de todos os trabalhadores individualmente participarem das decisões
coletivas10, tanto no âmbito partidário como na gestão do Estado, aqui nos referimos
diretamente aos avanços tecnológicos.

3. Democracia proletária e socialismo


A proposta que se segue tem entre outros objetivos colocar em xeque a concepção
histórica de que a evolução da democracia em sua forma burguesa está intrinsecamente ligada
ao desenvolvimento e consolidação do Estado capitalista.
A real evolução da democracia burguesa virá com a superação e a constituição de
novas instituições políticas (não de maneira inédita) porque elas já existem no seio da
sociedade capitalista, mas será com o desenvolvimento político das mesmas. Esse
desenvolvimento está diretamente ligado com a oposição aos interesses burgueses e a teoria
liberal dentro da própria sociedade burguesa, a ser realizada principalmente pela classe
popular e operária organizadas.
A construção coletiva dessa oposição certamente implicará em ações objetivas da
participação política de modo cada vez mais presente, isso tenderá a proporcionar uma
consequentemente socialização dos meios de governo. É bom ressaltar que a própria
reprodução econômica do capitalismo tem acentuado esses processos de socialização, ou seja,
uma vez que a classe burguesa já tem sua defesa de interesses estabelecidos, desta forma tem-
se despertado o interesse de forma variada de novos grupos sociais em se empenhar
politicamente contra esse quadro estabelecido e em defesa de seus interesses11. Cada vez mais
as pessoas se sentem menos representadas. Lênin ressalta isso bem ao dizer: “Se todos os
homens participarem efetivamente na gestão do Estado, o capitalismo não mais poderá se
manter. E o desenvolvimento do capitalismo cria os pressupostos necessários para que ‘todos’
possam efetivamente participar da gestão do Estado.” (1917, p. 108).
Moraes (2001) aponta, em parte direcionado a crítica da proposta de “valor universal”
da democracia proposta por Coutinho12, que os partidos sociais-democratas sustentaram na II
Internacional, a tese de que o fortalecimento e ampliação das instituições democráticas
emergidas no capitalismo resultaria no fortalecimento e propulsão do socialismo, assim
trataram de considerar as instituições política democráticas “acima da alternativa capitalismo
ou socialismo” (p.23), e a história mostra que o caminho que estes partidos tomaram foi o de
sucumbir a ordem do capital e se contentar com a democracia burguesa. Moraes (2001),
entretanto apresenta que não existe uma tese marxista que recuse uma tática por vias
democráticas de transição do capitalismo ao socialismo. Contudo, o autor ressalta que o

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

legado marxiano nos aponta para o “condicionamento da política pela economia, e,


consequentemente, em que formas do Estado se assentam na base econômica da sociedade”
(p. 23), logo “sobre a base das relações capitalistas de produção, a democracia será sempre a
forma política da dominação da classe burguesa. Donde a necessidade objetiva de uma
ruptura abrindo a via para a passagem da ordem do capital à ordem socialista” (p.23).
Apontadas essas ressalvas, pensar em um programa político socialista passa pela
questão da democracia certamente13, não na compreensão dela como um valor, mas em sua
condição política burguesa. O próprio Marx no livro “Guerra civil na França” dedica atenção
a nova questão democrática trazida pela experiência de governo popular que Comuna de Paris
representou naquele contexto, chama atenção de Marx as medidas realizadas a fim de
suprimir a burocracia e também aquelas que incluíram o povo na gestão do Estado. Diz Marx
a respeito da Comuna “A grande medida social da Comuna foi a sua própria existência
produtiva. Suas medidas especiais não podiam senão exprimir a tendência de um governo do
povo pelo povo” (p. 66). Lênin também em “A revolução proletária e o renegado Kautsky”
aborda a questão da democracia e do socialismo, principalmente na sessão sobre a
“democracia burguesa e a democracia proletária”, Lênin aponta que não existe democracia
pura (no sentido de incluir o proletariado) no capitalismo, pois o mesmo conserva uma
estrutura de diferentes classes sociais, com isso o que existe nesse sistema é a “democracia de
classes”, e aponta que a “democracia proletária” é “um milhão de vezes mais democrática que
qualquer democracia burguesa”, a última é baseada na realização russa de quebra do aparelho
burocrático czarista e a ampliação da representação dos proletários e dos camponeses no
parlamento.
Apesar de serem importantes essas influências teóricas e práticas, as mesmas se
trataram de análises de momentos históricos específicos que apesar disso nos permite e nos
impulsiona a pensar os aspectos da atualidade e os reflexos da ação política, sem a pretensão
de aperfeiçoar ideias com um toque mais “realizável” e nem é essa a questão. O ponto a se
ressaltar é que na atualidade no interior da nossa sociedade, principalmente do ponto de vista
de avanço técnico-tecnológico, tem nos possibilitado novas perspectivas para a realização
prática de outra democracia pensamento na construção de uma outra sociedade.
Chasin (2000) aponta que, sobretudo se pensarmos no contexto brasileiro, “a
democracia é o vir a ser, o historicamente novo, tendo, pois, de ser conquistada e construída e
não simplesmente reconquistada, dando que, num sentido legítimo e concreto, nunca a
tivemos em nosso país” (p. 99). Se pensarmos nessa afirmativa no sentido da construção da
democracia proletária a observação de Chasin é pertinente, e ainda serve para refletirmos na
questão formulada no subtema anterior sobre a realidade política brasileira. Ao afirmar que
existem bases matérias tecnológicas para um avanço democrático, significa aqui nessa
reflexão por nós proposta, na construção da democracia proletária, que enxergamos que cada
vez mais se possuem bases materiais para que a sua construção deixe cada vez menos de “vir
a ser” e passe a ser conquistada e construída pela ação política proletária e revolucionária.
Esse avanço democrático proletário que sinalizamos não é sinônimo de uma luta
contingencial que se contentaria em um processo de tomada do aparelho burocrático estatal
(apesar de ser condição prévia indispensável). E sim em um processo continuo de impulsão e
movimento que culmina tanto na construção e mudanças nas bases institucionais do Estado
burguês quanto na participação social. A democracia proletária está longe de representar os
mesmos valores (universais?) da democracia burguesa, pois representa o interesse proletário
oprimido e explorado e também todos os interesses sociais das frações sociais
subrepresentadas ou esquecidas no quadro político institucional. A construção de uma
democracia que represente a essência proletária será resultado de “um movimento, levado por
determinadas forças e classes sociais em luta por objetivos definidos” (Rosenberg apud

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Hirsch, 2010, p. 291), e que uma vez estabelecidos e alcançados continuará a se desenvolver e
constituir novas formas.
Martorano (2011) conclui que “na transição socialista só existe socialização havendo
participação, e essa condiciona a sua própria realização enquanto primeira fase da sociedade
comunista” (p. 125), dessa forma para o autor a socialização e a participação são condições
que possuem um caráter orgânico, dado que passam a “ser a condição necessária para a
presença e o desenvolvimento do outro, ainda que cada um deles tenha uma dinâmica própria”
(p.125).

4. Conclusão
O socialismo não será apenas a socialização dos meios de produção, mas também a
socialização progressiva dos meios de governar. A própria revolução russa socializou os
meios de produção, mas não socializou os meios de governar. O estágio de avanço material de
base tecnológica de nossa sociedade contemporânea abre essa nova prerrogativa de forma
concreta (porém não as determina), e o sistema capitalista não tem suprido essas novas
prerrogativas.
Essa nova prerrogativa tecnológica que apontamos se consolida como uma base
material para a luta proletária e a ação política partidária, e cria novas perspectivas para a
socialização política. Na construção do Estado socialista, assim como bem apontou
Martorano, a participação é condição essencial para o seu funcionamento. Ao nos depararmos
na contemporaneidade com o avanço, por exemplo, da nanotecnologia, dos smartphones, da
ampliação da comunicação via internet, vemos um avanço de base material dos meios de
comunicação como jamais visto em outra fase anterior de desenvolvimento humano. Isso
permitiu-nos pensar sobre os novos papéis da ação política proletária/partidária diante desse
novo estágio material tecnológico. Ainda mais quando observamos a atual situação de
participação das pessoas nas decisões políticas, onde embora diante dessas novas
prerrogativas, na realidade as pessoas têm se distanciado cada vez mais das decisões políticas
e sido tomadas pela “apatia política”14, isso por as instituições políticas da democracia
burguesa tem entre os seus protagonistas da cena política quadros que representam os
interesses burgueses e capitalistas. Essa contrapartida da democracia burguesa representa um
dos pontos de disputa do século XXI na medida em que no mundo inteiro tem se minado
crises de representatividade mostrando que o velho/atual modelo democrático burguês não
tem se adequado à nova realidade social e tendo em vista o objeto deste texto, as novas bases
materiais tecnológicas.
Por outro lado, toda a dinâmica do capital perpassa pelo Estado e pela manutenção das
estruturas democráticas burguesas, ainda que seja no Estado liberal ou de bem-estar social é o
capital que dinamiza o funcionamento democrático de acordo com os interesses burgueses
presentes na estrutura democrática do Estado burguês. No pós segunda guerra, o capitalismo
se dinamizou mundialmente levando entre as suas bandeiras: a bandeira democrática, que
naquela época se constitua como uma demanda real social e efetivamente se propôs a
construir uma democracia de base progressista, assim se vinculou historicamente que
governos liberais/neoliberais/progressistas são democráticos, mas como discorremos ao longo
do texto a consolidação da democracia burguesa cumpriu um papel importante, sobretudo na
defesa e ampliação do interesse burguês na ação política estatal.
Na atualidade vemos que a democracia burguesa se esbarra em um problema estrutural
do próprio capital, e o socialismo se revela como uma possibilidade de base concreta. Foi
nosso objetivo apontar nesse sentido os limites da democracia burguesa sobretudo em
contraponto com a construção de uma a democracia proletária, e também problematizar o
quanto a democracia burguesa tem evidenciado os problemas estruturais do capitalismo e
como a sua superação é necessária para socialização da política.

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Referências
.
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108.
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capitalista de Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
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LÊNIN, V. I. A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky. Lisboa, Edições Avante! 1977.
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Acesso em 08 jun 2016.
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participação. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
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MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2010.
MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.
MARX, Karl. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Martin Claret, 2014.
MARX, Karl. A guerra civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011.
MORAES, João Quartim de. Contra a canonização da democracia. Crítica Marxista, n. 12, p.
9-40, 2001.
SAES, Décio. Democracia. São Paulo: Ática, 1993.
SAES, Décio. Estado e democracia: ensaios teóricos. Campinas: UNICAMP, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, 1998.

1
Nosso entendimento de Estado burguês segue o proposto por Saes (1993): “...um Estado é burguês quando, de
um lado, ele define todos os homens, independentemente de sua posição no processo social de produção (classe
exploradora, classe explorada), como seres capazes de praticar atos de vontade, e quando, de outro, não existe
qualquer barreira formal ao ingresso de membros da classe explorada fundamental (para não falarmos das
demais classes populares) no seu corpo de funcionários” (p. 50). Saes (1993) ainda pontua que também é
característica do Estado burguês “se organizar internamente segundo critérios formalmente ‘universalistas’,
pode-se apresentar à classe explorada como uma comunidade humana voltada à realização dos interesses comuns
a todos os ‘indivíduos’, independente de sua posição no processo social de produção” (p.51).
2
No Uruguai e na Inglaterra, por exemplo, uma petição pública pode ser feita online. O Uruguai ainda vai além,
usa a tecnologia da informação para aprovar novos projetos de lei. As ações estatais cada vez mais têm sido
controladas e publicizadas devido aos avanços tecnológicos, o que tem possibilitado um maior controle das
ações do poder público por parte da sociedade.
3
Um exemplo para exemplificar essa distinção está na adoção das concepções tayloristas/fordista para a gestão
produtivas das fábricas.
4
Lenin apontava para dois tipos de democracia: a burguesa e a do proletariado, porém Lenin estava focado em
sua análise na democracia indireta, ou seja, a democracia exercida por representação, ele desconsiderava tratar
da democracia direta, até porque para ele o comunismo culminaria no desenvolvimento de uma democracia de
emancipação plena a tal ponto que não seria mais necessário se falar em democracia na sociedade, contudo
vamos imaginar nos dias de hoje, mesmo com uma democracia burguesa, a ideia de todo mundo votar em um

245
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plebiscito por exemplo, dado ainda nosso arranjo social (maioria proletária e minoria burguesa), a sobreposição
de uma vontade proletária (principalmente de caráter emancipatório) tende a sérias contradições com o
pensamento burguês. Lenin ainda não tinha esse pensamento por ainda estar vivendo um estágio inicial da
democracia burguesa.
5
Olhando para a política externa norte-americana isso fica mais claro, pois foi em nome da “democracia” que os
EUA promoveram por exemplo a guerra do Afeganistão.
6
Referência ao processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, processo caracterizado pela abertura de
um processo de impedimento legal e que colocou no poder o vice presidente Michel Temer. Contudo nossa
principal reflexão é chamar atenção para como o posicionamento político dos partidos da esquerda
revolucionária se dividiram, alguns passaram a levantar a bandeira da manutenção da democracia e do Estado
democrático de direito, enquanto outros assumiram a bandeira “fora todos!” e permaneceram estáticos pois não
possuem bases políticas e físicas para um enfrentamento revolucionário, e ainda existiu aqueles que adotaram a
perspectiva de omissão acreditando que um governo conservador pode servir para trazer novamente uma
reorganização da política revolucionária.
7
A grande questão é se pensar aqui uma condição política de ameaça da manutenção da democracia burguesa
com perigo de regresso a regimes autoritários ou fascistas. Pode-se questionar se o impedimento da presidenta
Dilma Rousseff representa um quadro de regresso a estes quadros, mas foi esforço nosso (a risco) apresentar esse
exemplo, nos posicionando de que tal processo ameaçou a manutenção do regime democrático burguês.
8
Saes (1994) ressalta que “nem toda, ou nem mesmo a maior parte da ação revolucionária do proletariado é legal;
porém, toda ação legal deve ser, ao mesmo tempo, ação revolucionária.” (p. 171)
9
Martorano (2007) em uma crítica dos processos eleitorais contemporâneos afirma que: “cada vez menos têm se
mostrado capazes de despertar um maior interesse pela política que se traduzisse em participação efetiva de um
número crescente de cidadãos” (p. 47).
10
Eis a grande contradição da fase atual do capitalismo em que vivemos, suas bases materiais tecnológicas
avançam cada vez mais permitindo novas perspectivas de ação política, mas isso tem sido utilizado pela
democracia burguesa de maneira pouca ou nenhuma - até porque não é interesse do Estado burguês– mas essa
realidade se revela como um possível campo de ação da política proletária na supressão da política burguesa.
Essa base material se manifesta na revolução microeletrônica, nos smartphones, expansão das conexões wifi e da
internet, entre outras novas condições materiais que se apresentam como possível.
11
Cabe ressaltar que nem toda luta de determinados grupos sociais convergem contra aos interesses burgueses.
12
Referência ao artigo “A Democracia como valor universal” de 1979 de Carlos Nelson Coutinho.
13
Martorano (2007) afirma que o próprio Lukacs (no livro Marxismo, Socialismo e Democracia) entendia que a
essência do avanço socialista consistiria no desenvolvimento da “democracia da vida quotidiana”, expressa nos
conselhos operários, que deveriam expandir a “autogestão pública democrática” de base da “vida quotidiana“ até
os processos decisórios mais amplos.
14
Que se configura nos moldes como concluiu Martorano (2007), na perda paulatina do conjunto da população
pelo interesse na política, tanto a parlamentar, como a eleitoral partidária.

246
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Southern African Customs Union: Breve Histórico e Fatores Geopolíticos


Ligados a Agroindústria
Marcos Vinicius Romão da Silva Xavier
Universidade Federal Fluminense (UFF)
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Universidade Estácio de Sá

Fábio Sales da Silva


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Resumo

O presente trabalho teve por objetivo fazer uma análise sucinta sobre as questões geopolíticas
que norteiam a SACU e Mercosul. Por meio de pesquisa bibliográfica qualitativa atentou-se em
trazer informações relevantes sobre a mais antiga União Aduaneira, objetivando maior
entendimento das atividades de Integração Regional que permeiam no contexto africano. Como
resultado, observou-se a importância de aproximação dessa integração regional para o Brasil,
no que tange as questões agroindustriais, protagonizando novas perspectivas provocadas pela
intensificação dos fatores de globalização e migração internacional dentro do atual Sistema de
Estados-Nação.

Palavras-Chave: África do Sul; Agroindústria; Brasil; Mercosul; SACU.

Abstract

The present work had for objective to make a brief analysis on geopolitical issues that guide
the SACU and MERCOSUR. By means of a bibliographic search qualitative looked to bring
relevant information on the most ancient Customs Union, aiming at greater understanding of
the activities of Regional Integration that permeate the African context. As a result, it was
observed the importance of approximation of that regional integration to Brazil, in terms of the
issues agribusiness, starring new prospects caused by the intensification of the factors of
globalization and international migration within the current system of Nation-States.

Keywords: South Africa; Agribusiness; Brazil; Mercosur; SACU.

247
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho teve por objetivo fazer uma análise sucinta sobre as possíveis questões
geopolíticas que possam estar envolvendo a União Aduaneira da África Austral (SACU) e o
Mercado Comum do Sul (Mercosul). Do inglês Southern African Customs Union, a SACU foi
Estabelecida em 1910, compreendendo a União Aduaneira mais antiga do mundo. Formada
atualmente por cinco Estados-Membros - África do Sul, Namíbia, Botsuana, Lesoto e
Suazilândia -, ela veio se destacando por sua importância para a independência e
desenvolvimento econômico dos Estados-Membros por meio de uma cooperação e
coordenação do comércio regional.
Vislumbraram-se nas palavras de Ribeiro e Visentini (2010) alguns dos antecedentes
históricos do sul da África que culminaram na formação da SACU, trazendo à tona um maior
entendimento de como essa formação aduaneira se desenvolveu através do tempo, permeando
na centralização de poder da África do Sul, frente a uma política que buscou celebrar acordos
de não-agressão com países vizinhos como condição para o alcance do desenvolvimento mútuo.
Utilizando os arcabouços teóricos dos ciclos hegemônicos e de kondratieff, buscou-se na
visão de Alves (2015) entender um mundo em constante co-evolução, vislumbrando-se cenários
que envolvem a região da África Subsaariana como principal rival brasileiro na área da
agroindústria global. Em meio a esse cenário, buscou-se entre o Mercosul e a SACU exaltar
dados congruentes e divergentes que se correlacionam com a hipótese levantada por Alves
(2015), onde a África Negra poderá se tornar uma grande potência dentro do ramo da
agroindústria.
Tendo como país de maior representatividade o Brasil do lado do Mercosul e a África do
Sul do lado da SACU, viu-se uma nova geopolítica onde o processo de integração sul-sul
tornou-se um fator decisivo para a promoção e desenvolvimento de economias emergentes,
garantindo o posicionamento estratégico e soberania nacional.
Tornou-se de suma importância evidenciar em como se deu o desenvolvimento econômico
da SACU em um curto espaço de tempo, bem como possíveis caminhos que apontam para uma
nova hegemonia da agroindústria. Viu-se a necessidade de entender o contexto dos grupos
econômicos, objetivando atrair as atenções como forma de buscar maiores esforços que
compactuem com os estudos direcionados a temática de Integração Regional como forma de
promoção ao desenvolvimento político, econômico e social de um Estado Moderno.

2. UM BREVE HISTÓRICO DOS ANTECEDENTES INSTITUCIONAIS DA SACU

Não há como discutir a formação da União Aduaneira da África Austral (SACU) sem antes
vislumbrar os antecedentes históricos do sul da África onde Ribeiro e Visentini (2010)
propiciam uma avaliação ao que eles consideraram como sendo uma “descolonização branca”.
As expedições portuguesas pelo litoral da África nos séculos XV e XVI foi o ponto
considerado aqui como o estopim do processo de colonização africana. Ao observarem a África
do Sul Ribeiro e Visentini (2010) entenderam que a pujança econômica e natural, bem como as
condições sociais do país, despertou a atenção de todo o continente europeu, sendo esse talvez

248
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

o principal motivo que levou o continente à sua exploração, afogando-o em um século de


“segregação, opressão e exploração de seu povo nativo” (RIBEIRO; VISENTINI, 2010, p. 11).
Desde o processo de transição à democracia, que culminou no enfraquecimento do regime do
Apartheid ao final da Guerra Fria, e o fortalecimento do partido Congresso Nacional Africano
(CNA) no papel de movimento de libertação nacional, a África passou por um processo de
transformação que se propagou a partir do ano de 19101, ano esse que significou o processo de
libertação da África como ator subserviente às necessidades europeias. Entende-se aqui que a
“construção do processo de integração da África Austral inseriu-se na própria construção dos
Estados, passando pelo processo de descolonização e os problemas securitários trazidos por
ele.” (SCHÜTZ, 2013, p. 2). É em meio a esse cenário que surgiu a SACU.
Tudo começou com o surgimento de dois grupos de colônias no Sul da África. Mazrui e
Wondji (2010) definiram o primeiro como sendo o Alto Comissionado Britânico na África do
Sul (HCTs – do inglês British High Commission Territories) e o segundo formado pelas antigas
colônias alemãs que após a Segunda Guerra Mundial, foram colocadas a mando da Grã-
Bretanha e Bélgica pela Sociedade das Nações, compreendendo basicamente regiões do Togo,
Camarões e Tanganyika. Atentando-se para o grupo dos HTCs, este compreendia três territórios
que dariam origem aos países da atual SACU, dos quais Mazrui e Wondji (2010) descrevem
como sendo Basutoland (atual Lesoto), Bechunaland (atual Botsuana) e Suazilândia, além da
África do Sul que à época incorporava a Namíbia2. No mapa abaixo foi possível observar as
regiões dos HTCs e África do Sul com seus respectivos anos de independência do domínio
britânico, bem como o mapa da divisão política atual do sul da África.

Figura 1: Da independência britânica à divisão política atual

Fonte: Guia Geográfico (2015) – Adaptado pelos autores

Tendo em vista que o seu surgimento “remonta à Convenção da União Aduaneira de 1889
entre a colônia britânica de Cabo da Boa Esperança e da República Estado Livre de Orange
Boer” (SACU, 2015), retratando-se que “os processos de integração constituem um mecanismo
de afirmação da soberania” (NGUBANE, 2004, apud SCHÜTZ, 2013, p. 10)3, viu-se que a
SACU tornou-se um importante elemento de consolidação dos Estados-Membros, podendo essa
ser dividida em três partes: antes da independência dos países membros (1910); depois da
independência dos países membros (1969); e pós-centralização do poder da África do Sul
(2002).
A primeira SACU, que lhe deu a atual denominação, se deu por meio da assinatura do
acordo de 29 de junho de 1910, ficando em vigor até 1969. Parte desse processo teve origem,
segundo Pereira4 (2007, apud SCHÜTZ, 2013, p. 10), com a política sul-africana que envolveu
a celebração de acordos de não-agressão com países vizinhos, estabelecendo-se algumas
relações econômicas entre os Estados-Membros como Tarifa Externa Comum (TEC) e Livre
circulação de produtos fabricados dentro da SACU, sem quaisquer direitos ou restrições
quantitativas.

249
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

De acordo com os dados da SACU (2015) em 1925 a África do Sul adotou política de
produtos importados e industrializados apoiadas pelas TEC sobre produtos não SACU, fazendo
com que os HTCs passassem a produzir apenas produtos primários. Como país mais
desenvolvido da união aduaneira, a África do Sul tornou-se o único administrador das receitas,
definindo direitos de importação e políticas especiais de consumo. Essa centralização de poder
de decisão sobre as políticas da SACU ocasionou em uma partilha de receitas desiguais entre
os membros, fazendo com que os HTCs recorressem à revisão do acordo de 1910.
O acordo da SACU de 11 de dezembro de 1969, assinado pelos já Estados soberanos BLS5
(Botsuana, Lesoto e Suazilândia) e África do Sul, não trouxe grandes modificações, fazendo
com que os BLS reclamassem sobre diversos acertos realizados unilateralmente pelos Sul-
africanos, culminando na reformulação dos procedimentos aduaneiros realizados pela SACU
em 2002 que, dentre diversos, destacaram-se: estabelecimento de um secretariado
administrativo independente para supervisionar a SACU com sede em Windhoek na Namíbia;
criação de várias instituições independentes, incluindo um Conselho de Ministros, e uma
Comissão da União Aduaneira; e no que tange a política externa, a necessidade de se buscar
estratégias que fortaleçam a integração política, econômica, social e cultural da região, sem
prejudicar a economia dos Estados menores.
Com vigência a partir de 2004, o acordo SACU de 2002 estabeleceu novas regras que
culminassem em vantagens para todos os membros, fortalecendo a integração regional. Uma
evidência desse novo acordo foi à inauguração do Edifício sede da SACU em 12 de novembro
de 2015 em Windhoek na Namíbia. Segundo Zuma (2015), tal endosso marcou os 100 anos da
SACU ocorrido em 22 de abril de 2010, sendo esse considerado “o símbolo do esforço coletivo
para promover o crescimento regional e desenvolvimento da região da SACU e de seu povo,
bem como um símbolo de unidade entre SACU e seus Estados-Membros” (ZUMA, 2015).

3. DO AGRONEGÓCIO AO AGROINDUSTRIAL: PERSPECTIVAS DE UM


MUNDO EM CONSTANTE CO-EVOLUÇÃO

Adentrando nos conceitos de duas perspectivas complementares – a dos ciclos


hegemônicos6 e de Kondratieff7 -, Alves (2015) percebeu que o mundo passou por diversas
transformações ao longo do tempo devido a incessantes disputas ocasionadas pelos atores
políticos que compõem o Sistema Internacional.
Ao tentar descrever os novos modelos de gestão ligados as organizações modernas que
buscam enfrentar os desafios de uma sociedade em constante mudança, Alves (2015) notou que
o mundo sempre esteve em constante co-evolução, tanto que os atores que dele fazem parte
buscam incessantemente o desenvolvimento como um exercício da soberania. Seguindo a
perspectiva de que o mundo era extremamente desigual, Alves (2015) constituiu um mapa
simples que pudesse descrever a realidade ampliada através dos séculos, propondo assim uma
divisão de mundo em quatro categorias:

1ª- Regiões detentoras de recursos financeiros e cargo8 (azul);


2ª- Região detentora de recursos energéticos (preta);
3ª- Região detentora de recursos humanos (vermelho); e
5ª- Regiões detentoras de recursos naturais (verde).

São estas regiões que encontram-se exemplificadas no mapa mundi da Figura 2.

250
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Figura 2: Mapa Mundi – Corrida por Recursos Naturais


Legenda:
Regiões detentoras de recursos financeiros e cargo

Regiões detentoras de recursos energéticos

Região detentora de recursos humanos

Regiões detentoras de recursos naturais

Fonte: Alves (2015)

Diante dessa divisão, Alves (2015) enfatizou a seguinte interpretação descrita na figura 2:
enquanto a região em azul detinha o capital financeiro, intelectual e tecnológico, a região em
negrito, de posse dos recursos energéticos, negociava com a região em azul que, desprovida de
um grande contingente desses recursos, não seria capaz de manter sozinha o consumo potencial
regional e global. “O mundo era relativamente simples, onde a região em azul intervinha na
região em preto para garantir os seus fluxos de energia” (ALVES, 2015), definindo-se aqui a
ideia de segurança energética9. Mas, expandindo-se para as décadas de 70 e 80, as atenções do
mundo se voltaram para a região em vermelho que oferecia maior quantidade de mão de obra
barata. Alves (2015) evidenciou que dos 10 bilhões de humanos no mundo, apenas 3 bilhões
vivem fora do círculo vermelho, criando um mundo também desigual do ponto de vista
demográfico. Com a busca da região em azul por um mercado que pudesse produzir bens em
maior quantidade, a fim de atender as demandas regionais e globais potencializadas pelas
empresas transnacionais, a região em vermelho começou a se desenvolver, propiciando o
surgimento de novas classes médias, economias e mercados emergentes que demandariam mais
recursos para alimentar a sua própria economia de subsistência10. Com a crescente demanda
por recursos da região em vermelho, buscou-se nas regiões em verde, detentoras dos recursos
naturais, os meios para alimentar sua superpopulação.
A divisão do mundo em regiões com funções distintas na visão de Alves (2015) remeteu a
um importante cenário geopolítico onde as regiões da América do Sul e África Subsaariana
buscarão promover o desenvolvimento pela disputa do mercado agroindustrial global. Isso fica
evidente nas palavras de Alves (2015) ao fazer uma análise de cenários que contemplassem o
surgimento de novas potências hegemônicas.
Desconstruindo o atual Sistema de Estados vigente, Alves (2015) vislumbrou através de
perspectivas complementares do ciclos Hegemônicos e de Kondratieff uma visão onde novos
continentes surgiriam devido aos mecanismos de integração regional e dos fenômenos de
migração e globalização, criando assim novas potências hegemônicas. Dentre as cinco visões
descritas por Alves (2015), duas chamaram a atenção para este trabalho, por envolver a África
Subsaariana11 e Estados da região asiática. A estas duas áreas descritas por Alves (2015), das
quais se convencionou chamar aqui de “Zona Subsaariana de Influência Chinesa” e “Zona
Subsaariana de Influência Indiana”, encontram-se exemplificadas no mapa mundi da Figura 3.

Figura 3: Mapa Mundi – Nova Potência Hegemônica

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Legenda:
Zona Africana Subsaariana de Influência Chinesa

Zona Africana Subsaariana de Influência Indiana

Fonte: Alves (2015) – adaptado pelos autores

Alves (2015) percebeu que há zonas de influência em solo africano ocasionadas por
intervenções de outras nações, destacando-se aqui a chinesa e indiana. Essas zonas estão
criando um fenômeno de potencialização dos grupos econômico-regionais da “África Negra” o
que poderá forçar os demais atores do cenário internacional que possuem atividades
desenvolvidas no campo do agronegócio a co-evoluírem.
Considerando que o Brasil está calcado em atividades voltadas para o agronegócio,
observou-se que as recorrentes intervenções na “África Negra” por outras nações têm gerado
um desenvolvimento súbito em seu território, propiciando terreno fértil para a planificação dos
grupos econômicos regionais, sobretudo o da SACU.
Buscando uma comparação entre o Mercosul e a SACU, foi possível observar disparidades
que acentuam essa problemática. Primeiramente, bebendo da fonte de Wolffenbüttel (2007), o
mesmo descreveu que para a existência de uma união aduaneira seria preciso considerar dois
pontos fundamentais: 1º - a adoção de uma tarifa externa comum e a livre circulação das
mercadorias oriundas dos países associados; e 2º - a formação de uma zona de livre circulação
de mercadorias entre os diversos membros.
Ligando esses dois pontos aos grupos econômicos Mercosul e SACU, foi possível observar
dois contrastes. O primeiro foi que o Mercosul é considerado ainda um bloco econômico que
não satisfaz a formação de uma zona de livre circulação de mercadorias entre os seus membros,
tornando-o o que especialistas descrevem como sendo uma união aduaneira imperfeita. Por
outro lado, a SACU com todos os problemas provocados pelo processo de descolonização,
ainda sim compreende em uma formação aduaneira perfeita por atender os requisitos
necessários a esse tipo de formação econômica envolvendo os dois pontos fundamentais
descritos por Wolffenbüttel (2007).
O segundo contraste advém dos membros que constituem esses dois grupos econômicos
regionais. No Mercosul têm-se países com aproximadamente dois séculos de independência,
evidenciando que a maturidade entre esses Estados deveria ser mais coesa, com a finalidade de
firmar uma união aduaneira perfeita. Por outro lado, a SACU possui membros que mesmo com
pouco mais de quatro décadas de independência, estão desempenhando um papel mais
organizado e propício para o desenvolvimento regional, evidenciando um relacionamento bem
mais maduro do que seus irmãos sul-americanos12.
Como forma de melhor descrever esse fator, tornou-se necessário reunir na tabela 1 os
dados dos Estados-Membros que constituem os dois grupos econômicos e seus respectivos anos
de independência, numa tentativa de evidenciar a tamanha maturidade dos países da SACU
frente aos do Mercosul.

252
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Tabela 1: Países constantes do Mercosul e SACU e seus respectivos anos de independência


Países do Mercosul Independência - ano Países da SACU Independência - ano
Paraguai 1811 África do Sul 1931
Argentina 1816 Namíbia 1990
Venezuela 1819 Botsuana 1966
Brasil 1822 Lesoto 1966
Bolívia* 1825 Suazilândia 1968
Uruguai 1828
Fontes: Bronstrup (2012)/Visentini (2011)/Guia Geográfico (2015)/Mercosul (2015) – adaptado pelos autores
Nota: * Estado Parte em processo de adesão

Já na tabela 2 foi possível relacionar alguns fatores congruentes e divergentes existentes


entre os dois grupos econômicos supramencionados.

Tabela 2: Congruências e Divergências entre o Mercosul e a SACU


Mercosul SACU
CONGRUÊNCIAS
-Contexto político/social instável. -Ambiente político/social conturbado.
-Possui o Brasil como o país com maior notoriedade -Possui a África do Sul com maior notoriedade,
econômica. sendo a segunda maior economia do continente
africano e a mais industrializada.
-Discordância dos demais Estados em relação as -Descontentamento dos Estados-Membros para com
atividades econômicas atreladas ao Brasil. as ações centralizadoras e decisões unilaterais da
África do Sul.
-Emprega Tarifa externa Comum. -Emprega Tarifa Externa Comum.
-Possui parcerias com outros grupos econômicos -Possui parcerias com outros grupos econômicos
regionais. regionais.
-Possui parcerias com grupos econômicos -Possui parceria com grupos econômicos
internacionais. internacionais.
DIVERGÊNCIAS
-Não possui livre circulação de mercadorias entre os -Possui livre circulação de mercadorias entre os
membros membros
-Formação Aduaneira incompleta -Formação Aduaneira completa
-Estados-Membros com pouco mais de 2 séculos de -Estados-Membros com aproximadamente 5
Independência décadas* de independência
-Possui um maior número de membros -Possui um menor número de membros
-Países membros foram colônia de exploração -Países membros miscigenam colônias de
exploração e povoamento
-Formação recente, criada em 1991, tendo pouco -Formação aduaneira vigente mais antiga do mundo,
tempo de atuação com resquícios datados de 1889
Fonte: Elaborado pelos autores - * Dado não aplicável à África do Sul e Namíbia

Já na tabela 3, atentou-se em reunir informações sobre o Índice Global de Competitividade


(IGC) promovido pelo Fórum Econômico Mundial - do inglês Word Economic Forum (WEC)
-, demonstrando a pontuação dos países dos dois grupos econômicos, em conformidade com o
relatório IGC geral 2015/2016 e 2013/2014.

253
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Tabela 3: The Global Competitiveness Index 2015-2016 rankings and 2013-2014 comparisons
Países Pontos Posição Pontos Posição
SACU/Mercosu 2015/2016 2015/2016 2013/2014 2013/2014
l África do Sul 4,4 49 4,3 53
Botsuana 4,2 71 4,1 74
Brasil 4,1 75 4,3 56
Uruguai 4,1 73 4,0 85
Namíbia 4,0 85 3,9 90
Argentina 3,8 106 3,7 104
Lesoto 3,7 113 3,5 123
Paraguai 3,6 118 3,6 119
Bolívia 3,6 117 3,8 98
Venezuela 3,3 132 3,3 134
Suazilândia 3,4 128 3,5 124
Fonte: WEF (2016) – adaptado pelos autores

Observando todos esses dados, pode-se chegar à consciência de que os membros dos dois
blocos econômicos possuem assimetrias que os colocam em pé de igualdade. Porém, no grupo
econômico da África Austral houve um amadurecimento que em um curto espaço de tempo,
permitiu vislumbrar fatores divergentes que colocam a SACU em uma possível vantagem
competitiva. Foram essas divergências que permitiram chegar a fatores que pudessem
beneficiar o continente africano, colocando-o em pé de igualdade perante a todos os demais
atores globais, ou mesmo superando-os, colocando-os em uma desvantagem que os obrigassem
a co-evoluírem.

O Acordo Tripartido como Estrutura de Desenvolvimento da SACU

Observando mais afundo, foi possível perceber que a SACU se tornou apenas uma parte
da estratégia que envolve o continente africano. De acordo com a Escola de Negócios Global
EENI (2015) a África está buscando uma forte integração econômica regional por meio de seus
mecanismos internos, visto que a SACU é parte fundamental desse processo. Partindo desse
pressuposto, a SACU rompeu barreiras, promovendo comunicação com diversos outros
mecanismos de integração regional presentes na África, dos quais se destacaram aqui os
seguintes acordos regionais:

- Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC);


- O Mercado Comum da África Oriental e Austral (COMESA); e
- A Comunidade da África Oriental (EAC).

São esses acordos econômicos que proporcionaram a perspectiva de uma África que
buscará o desenvolvimento notório na área da agroindústria dentre os diversos atores do sistema
internacional.
Observando a Figura 4 foi possível evidenciar a integração existente no continente
africano, destacando-se aqui dois fatores importantes: O primeiro é que os membros da SACU
participam, em sua integralidade, da Comunidade Econômica Regional SADC13. Isso buscou
elevar o maior grau de integração regional da África Austral. O segundo refere-se à junção das

254
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

três comunidades regionais africanas, colaborando para a formação do Acordo Tripartido


SADC-EAC-COMESA, sendo essa comunidade econômica regional o principal mecanismo de
integração entre a África Austral e Oriental.

Figura 4: a SACU e o Acordo Tripartido SADC-EAC-COMESA

União

(1910) Regional
5 membros (1980)
15 membros

SACU • Tanzânia
Econômica • Angola
• África do Sul
Regional - • Moçambique
• Namíbia
(2008)
43 membros • Botsuana • Maurícias

• Lesoto • Suazilândia • Madagáscar


• Seychelles
• Sudão
• Zâmbia
• República Democrática do Congo • Líbia
ACORDO • Zimbábue • Etiópia
TRIPARTIDO • Malawi
• Eritréia COMESA
(EAC-SADC-
COMESA) • Burundi • Egito
• Quênia EAC • Djibuti
• Uganda
Regional • Ruanda • Comores
(2000)
4 membros Regional
(1981)
19 membros

Zona de Área de União Mercado


Comércio Livre Comum Econômica
Comércio
Fonte: EENI (2015) – adaptado pelos autores

Considerando que muitos de seus países tem aproximadamente cinco décadas de


independência, Soko (2005) revelou a intenção da SACU de absorver outros membros
constituintes da África Austral (dentre eles Moçambique, Zâmbia, Malaui e Zimbábue), ou até
mesmo incorporar os membros da SADC. Esse mapeamento nos remeteu a tamanha
organização que os Sul-africanos estão promovendo para o desenvolvimento econômico de toda
região subsaariana, com vistas a diminuir as assimetrias entre os Estados, o que pode estar
corroborando para uma perspectiva de co-evolução do território africano.

4. SACU E MERCOSUL: INTEGRAÇÃO ECONÔMICA COMO ESTRATÉGIA


GEOPOLÍTICA PARA O PROVIMENTO DO DESENVOLVIMENTO MÚTUO
SUL-SUL

255
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Assim como o Brasil é considerado o Estado que mais notoriedade tem na região Sul-
americana frente ao Mercosul, a África do Sul foi o Estado que mais se destacou na política
desenvolvida pela União Aduaneira SACU, justamente pela “sua habilidade de controlar o
ambiente regional” (SCHÜTZ, 2013, p. 10), tornando-se a segunda maior economia africana14.
Deixando um pouco de lado as comparações e questões antagônicas que colocam os dois
blocos econômicos em pé de rivalidade, observou-se por parte do Brasil a necessidade de
fortalecer os laços com a SACU, evidenciando o fator geopolítico empregado pela diplomacia
brasileira. O Brasil frente ao Mercosul buscou formalizar uma maior proximidade com a África
Austral, vislumbrando a importância em se ter essa região como parte efetiva das relações
econômicas no eixo Sul-Sul. Para tanto, em consenso com os Estados-Partes do Mercosul, o
Brasil buscou estreitar os laços com aquela união aduaneira, incitando negociações com a
República da África do Sul “com vistas a um acordo para a criação de uma área de livre
comércio e maior cooperação econômica e de investimentos” (MDIC15, 2015).
O Brasil assinou no ano de 2000 um acordo entre as partes, com a finalidade de fortalecer
as relações, promovendo o incremento do intercâmbio comercial e o estabelecimento de
condições para a pretendida área de livre comércio (MDIC, 2015). Em 2003 as negociações
evoluíram, no intuito de já envolver a SACU, mas esta por sua vez, preferiu iniciar apenas um
acordo de preferências fixas, sendo as negociações das listagens encerradas em 2008 na cidade
de Buenos Aires (Argentina). Neste acordo de preferências fixas foram beneficiadas 1.076
mercadorias por parte do Mercosul e 1.026 mercadorias por parte da SACU.
Em 15 de dezembro de 2008, durante o encontro de cúpula do bloco na Costa do Sauipe,
os Estados-Partes do Mercosul assinaram o Acordo de Comércio Preferencial (ACP) Mercosul-
SACU, tendo os Estados-Membros da SACU assinado o mesmo em abril de 2009 na capital de
Lesoto (MDIC, 2015). Conforme levantado pela Comex do Brasil (2016), seis anos após a
assinatura, entrou em vigor em 1º de abril de 2016 o ACP entre Mercosul e SACU, sobre o qual
“contribuirá para a promoção do intercâmbio comercial no Atlântico Sul” (MRE16, 2016).

5. CONCLUSÃO

Percorrendo os antecedentes histórico-institucionais da SACU foi possível perceber


inicialmente que o surgimento dos processos de integração regional na África teve como
princípio a constituição de um mecanismo de afirmação da soberania dos Estados recém
formados, logo após um processo de subserviência aos caprichos de seus colonizadores
europeus. Tais grupos, além do fator econômico, foram de grande importância para a
consolidação da independência dos novos atores políticos, bem como combater os problemas
secundários que surgiram do processo de descolonização.
Nascida antes mesmo da independência de seus Estados-Membros, a SACU é a união
aduaneira mais antiga em vigência com um século de história. Esta, por sua vez, nasceu de
práticas aduaneiras utilizadas no passado para atender as especificidades mercadológicas dos
colonizadores. Fazendo uma relação com os territórios do Alto Comissionado Britânico da
África do Sul (HTCs), viu-se que esses começaram a buscar uma participação ativa na formação
aduaneira após proclamarem suas independências em 1966. Mesmo assim, foi preciso mais de
três décadas para que as novas condições pudessem tirar a centralidade de poder da África do
Sul que, ainda assim, possui grande influência nas decisões aduaneiras.
Buscou-se por meio dos ciclos hegemônicos e de Kondratieff vislumbrar cenários que nos
remetessem a uma análise profícua do mundo em tempos futuros. Tendo em mente o recente
processo de independência dos Estados-Membros da SACU frente aos Estados-Partes do
Mercosul, foi possível reunir congruências e divergências que propusessem informações
necessárias para entender o porquê a África Subsaariana poderá dar um salto tecnológico

256
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

bastante promissor, visto a tamanha especificidade dos grupos econômicos que buscam integrar
todo o território africano. A organização e a potencialização de suas atividades agrícolas
angariada pelas formações dos grupos econômicos perfeitos influenciados por recorrentes
intervenções dos demais atores internacionais, permitiu evidenciar perspectivas das quais nos
levam a evidenciar o surgimento de uma nova África que se pruma para o desenvolvimento de
sua área de agronegócio, levando-a ao setor agroindustrial. De posse dessas informações, pode-
se chegar à conclusão de que a SACU, mesmo com todas as assimetrias que a cerca de ordens
sócio-política e econômica, poderá se tornar em um potencial rival brasileiro no nicho de
agronegócios, forçando-o a co-evoluir, incorrendo em uma estratégia geopolítica pela conquista
do mercado agroindustrial global.
O Brasil junto ao Mercosul, percebendo essa tamanha desenvoltura do continente africano,
buscou estreitar os laços aduaneiros com os membros da SACU, vislumbrando um possível
acordo de Livre Comércio entre os dois blocos econômicos. Mas, diante das tratativas de
negociação, foi possível angariar apenas um Acordo de Comércio Preferencial (ACP) que
beneficiassem algumas mercadorias entre os dois blocos econômicos. Isso evidencia que nossos
irmãos africanos estão inseridos no jogo político, de forma a deliberar sobre assuntos político-
econômicos que possam afetar o seu negócio. Vendo a potencialidade e maturidade brasileira
no campo do agronegócio, os africanos preferiram embarcar em um acordo que remetesse a
vantagens singulares para os dois lados, permitindo assim a proteção de seu mercado interno
contra a invasão da totalidade de mercadorias brasileiras.
Mesmo com toda cautela, pode-se observar na tímida parceria entre o Mercosul e SACU
um importante elo de desenvolvimento dos países sul-sul, principalmente para o Brasil que viu
nessa parceria um significativo mercado econômico em potencial.
Longe de ser uma verdade absoluta, o presente trabalho buscou de forma sucinta trazer
idéias que incitem novos arranjos como objeto de pesquisa das novas estruturas de poder que
possam estar se formando no Sistema Internacional. Atentou-se por meio de cenários atrair a
atenção dos estudantes estrategistas de defesa e segurança com o intuito de promover a busca
pelo conhecimento e proporcionar uma visão que não se embebeda de uma visão eurocêntrica,
permitindo galgar novos horizontes sobre os quais o mundo pode se desdobrar.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Cenários. Revista DOM: FDC, 2013, pp. 45-51.

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<http://www.sacu.int/docs/speeches/2015/sp1112b.pdf >. Acesso em: 11 fev. 2016.

1
Data simbólica que compreende o fim do trabalho forçado africano com a promulgação da “South Africa Act de
1909”, sendo que muitos resquícios do Apartheid permaneceram até 1994 (BRUNO, 2014).
2
Segundo Mazrui e Wondji (2010) o território namibiano foi um protetorado do império alemão que, após a
Primeira Guerra Mundial, passou a ser administrado pela Liga das Nações. Esta, passou sua administração à África
do Sul que, dominada por diversas etnias, em especial inglesa, o submeteu ao regime do Apartheid, tendo essa
ganhado sua independência em 1990 (VISENTINI, 2011, p. 4).
3
NGUBANE, S. Sources of Southern Africa Insecurity. In: SOLOMON, Hussein. Towards a Common Defence
and Security Policy in the Southern African Development Community. Pretoria: AISA, 2004.
4
PEREIRA, A. D. África do Sul e Brasil: dois caminhos para a transição ao pós-Guerra Fria (1984-1994).
Porto Alegre, UFRGS, Programa de Pós-Graduação em História, Tese de Doutorado, 2007.

259
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

5
Ressalta-se aqui que, diferente da África do Sul que adquiriu sua independência em 1930, os países denominados
BSL só adquiriram suas independências em 1964, ou seja, 34 anos após os Sul-africanos.
6
Com duração de 100 a 140 anos e esgotando-se em um período de guerras de transição que duram 30 anos, os
ciclos hegemônicos descritos por Giovanni Arrighi existem desde as grandes navegações, quando, a partir de
diversos sistemas regionais, formou-se a estrutura de causa/efeito do sistema global de trocas. (ALVES, 2013,
p.45)
7
Com duração de 50 a 60 anos, sendo que cada ciclo possui quatro subfases – recuperação, crescimento,
esgotamento e crise, os ciclos de Kondratieff de 1925 descrevem que os ciclos tecnológicos não ocorrem
homogeneamente no tempo, mas em ondas de inovação logo após a crise. (ALVES, 2013, p. 46)
8
Tudo aquilo que promove o desenvolvimento de uma sociedade. (DIAMOND, 2012)
9
Segundo Queiroz (2010) o conceito de segurança energética esteve associado principalmente ao suprimento de
petróleo no mundo, com o ideal de evitar a dependência energética, o que poderia tornar vulnerável a garantia da
soberania de um Estado-Nação.
10
Cecílio (2012) identifica nas palavras de Braudel um sistema de economia tripartido no qual a economia de
subsistência compreende as rotinas de produção voltadas para o autoconsumo.
11
Segundo Francisco (s/a) a África Subsaariana (África Negra), é uma divisão que compreende boa parte do
continente africano, incluindo a África Austral onde se localiza os países que compõem a SACU.
12
É importante saber que, diferentemente do Mercosul onde os interesses divergentes dos Estados-Membros não
permitem a consolidação da livre circulação de mercadorias entre seus associados, a perfeição do mercado
aduaneiro da SACU só se prevaleceu devido à centralização das atividades ainda de posse da África do Sul que
desempenha papel fundamental nas negociações com outros entes internacionais.
13
Segundo Schütz (2013) a SADCC foi criada inicialmente por nove Estados-Membros (Angola, Botsuana,
Lesoto, Malaui, Moçambique, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue) tendo sua nomenclatura mudado para
SADC quando do ingresso da África do Sul em 1994.
14
Apesar de Sartorato (2015) revelar que a Nigéria é a maior potência econômica africana, Magnowski (2014)
evidencia um elevado índice de pobreza ligado a esse país.
15
Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio.
16
Ministério das Relações Exteriores.

260
Ensino, Pesquisa e Epistemologia da Administração
Política

261
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A Formação Ideológica do Gestor Público no Brasil: uma


Crítica da Semiformação Gerencialista à Luz da Dialética Negativa
Elisa Zwick
Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL)

Resumo
Tendo em vista que a identidade da Gestão Pública brasileira atual é singularizada pela
ideologia gerencialista, tematizamos aspectos ideológicos da Gestão Pública brasileira à luz
de elementos pressupostos do método dialético negativo de Adorno, com atenção à ideologia
como identidade e à semiformação do gestor público. O campo da Gestão Pública mantém-se
fortemente arraigado à ideologia gerencialista que, importada do âmbito das empresas
privadas, adquire importância pela naturalização de suas práticas no exercício do poder no
Estado. Com relação a isto, verificamos uma contradição, uma vez que se encontram
comprometidos os próprios princípios fundantes da esfera pública. Disso decorre um
alinhamento que preserva determinadas estruturas pela construção de um pensamento
hegemônico, desde a dimensão formativa do gestor público. Torna-se fundamental
desnaturalizar a ideologia que permeia a Gestão Pública danificada, cujo perfil integra uma
autocentralidade inautêntica ampliada e hipostasiada.

Introdução

A identidade da Gestão Pública brasileira atual é singularizada pela ideologia


gerencialista. Ao percorrermos brevemente o caminho pelo qual esta identidade assim se
consolidou, podemos desnaturalizar pela crítica seus frágeis – porque ideológicos –
constructos teóricos. Para tanto, torna-se importante examinar não apenas a natureza do
gerencialismo, mas observar o quanto suas manifestações na prática da Gestão Pública
mantêm relação intrínseca com a questão formativa, que cinge desdobramentos peculiares no
Brasil. Assim, neste estudo tematizamos aspectos ideológicos da Gestão Pública brasileira à
luz de elementos pressupostos do método dialético negativo de Adorno, com atenção à
ideologia como identidade e à semiformação do gestor público.
A ideologia se constitui num incontestável ‘cimento’ que amalgama a construção de
uma identidade própria na Gestão Pública, identidade esta que é fundada e permanece
centrada nos interesses do capital. Ao servir de receituário à Gestão Pública, a ideologia
gerencialista indica o momento de uma nova ruptura do Estado para com os interesses sociais,
visto que representa uma rendição completa às seduções do capital. A ideologia gerencialista
é a nuança mais contemporânea do amálgama que empresta unidade e consistência a esse
sistema histórico, conformador e desigual de trocas, cujo permanente beneficiário é a classe
dominante. Sinônimo de gestão capitalista, para Faria (2010, p. 19), o gerencialismo embasa
um sistema de ideais que, ao mesmo tempo, reproduz a lógica de dominação do capital sobre
o trabalho e oferece suporte “científico” para legitimar as ações decorrentes de tal lógica.
O Estado, que então se firma como um negócio voltado à lógica da lucratividade,
aparta os direitos dos indivíduos, transformando-os em instrumentos de seu potencial ganho
ao objetificá-los pela técnica. Esta, por sua vez, é sustentada como o melhor mecanismo de
gestão possível, inaugurando-se uma ‘era de flexibilidade’, tão ideologizada que se assessora
da proposta competitiva para acelerar seus ganhos, fato que permanece inquestionavelmente
naturalizado. Aplicado à lógica do Estado, o gerencialismo literalmente captura a
subjetividade individual e coletiva pela adoção objetiva de um modelo que, por seus
meandros simbólicos, leva a firmar a crença de que se terá para diante um sistema de Estado

262
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

mais justo, porque anuncia tudo incluir. Trata-se do fabrico de uma ilusão naturalizadora do
sistema capitalista, que frequentemente nas crises se mantém assessorada pela barbárie da
violência para combater qualquer alternativa antissistema. É com toda razão que Adorno
(2009, p. 28) se refere ao sistema como “a barriga que se tornou espírito”, uma vez que sua
ávida busca pela unidade de pensamento não é nada mais do que o ímpeto autoconservador
que, ao se autojustificar, alarga a sua voracidade, reeditando a detenção do não idêntico.
Diretamente associado à reprodução de uma vida danificada1, torna-se letal o processo
de encobrimento propiciado pela incapacidade de formação integral do gestor público, que se
apresenta totalmente dissonante da concepção benjaminiana de experiência (Erfahrung) e da
ideia adorniana de formação (Bildung). Assim, semiformação é o elemento pressuposto do
método adorniano que se destaca de maneira especial quando se trata da ideologia, visto que
se manifesta enquanto tal em razão de expressar as inclinações da esfera subjetiva que
envolve a sociedade contemporânea e encarcera a perspectiva emancipatória, pois é um
eficiente adestrador das mentes. Embora não sigamos a linha das alternativas que pregam a
educação como elemento redentor dos males da Gestão Pública, torna-se importante averiguar
a semiformação tanto por aquilo que representa em si, quanto pelas consequências que gera,
como o distanciamento do potencial emancipatório. Urge a proposta de Hobsbawm (1995, p.
13), de “compreender e explicar por que as coisas deram no que deram e como elas se
relacionam entre si”, tornando-se relevante, para mantermo-nos fiéis à história real e concreta,
“comentar, ampliar (e corrigir) nossas próprias memórias”.
Diante do aprofundamento na acepção ideológica, apontamos a Gestão Pública
brasileira, em seus processos de danificação, como portadora de uma autocentralidade
inautêntica ampliada e hipostasiada. Demonstramos isto ao longo desse estudo, atendendo ao
principal convite de Adorno (2009), subverter a tradição. Para tanto, apresentamos um
apanhado teórico, de vinculação adorniana, sobre a ideologia e, diante das constatações desse
apanhado, realizamos uma leitura ampla, porém concisa, do fenômeno gerencialista no âmbito
da Gestão Pública. Por fim analisamos brevemente a difusão de seus parâmetros,
adornianamente apontados como semiformação.

1. A ideologia como identidade e as contribuições da indústria cultural

Em toda síntese trabalha a vontade de identidade (...). Identidade é a forma


originária da ideologia. Goza-se dela como adequação à coisa aí reprimida; a
adequação sempre foi também submissão às metas de dominação e, nessa medida,
sua própria contradição (ADORNO, 2009, p. 129).
A crítica de Adorno à ideologia como identidade oferece-nos um circuito analítico das
estruturas de dominação da modernidade, basicamente veiculadas pela racionalidade
instrumental que forjam, pela elocução de conceitos, uma devida edificação identitária. A
formulação de identidades torna-se, contudo, uma compulsão ao erro, acobertando uma
compreensão integral dos fatos, mas que é decididamente não mencionado como tal. Aliás,
muito frequentemente é preferível que a identidade permaneça mistificada enquanto veículo
necessário ao desenvolvimento da harmonia social, sendo relativamente incômodo alguém
levantar-se para questioná-la.
Advogando o sistema, o que existe é uma tensão para que o sujeito traga para si tudo
quanto for possível, havendo dificuldades deste colocar-se de fora e libertar-se do circuito
ideológico, pois está psiquicamente imerso num trabalho de Sísifo (ADORNO, 1971). Para
Adorno (2009) é necessário, sobretudo, enfrentar a primazia do conceito em sua pretensão de
identidade total que ignorando os limites epistemológicos do conhecimento frente aos quais
escapa, por assim dizer, a dimensão ontológica do não idêntico. Enfrentar a identidade total

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

ilusória seria um passo importante no combate à intenção doutrinário-adaptativa da ideologia,


pois sua única finalidade é o enquadramento em conceitos antecipadamente pensados visando
o domínio absoluto das singularidades. Destarte, na batalha antiideológica em qualquer esfera
do conhecimento, o estudo da ideologia é “filosoficamente central: crítica da própria
consciência constitutiva” (ADORNO, 2009, p. 129).
As ideologias são historicamente situadas e passam a fazer sentido em uma
determinada conjuntura social, cultural, econômica ou política. O fomento a uma construção
identitária é, em essência, a crença de que a igualdade é condição suficiente para colocar em
ordem as consciências e, por conseguinte, uma dada sociedade integralmente. Nesse sentido,
as ideologias consistem em elaborações de caráter burguês, sendo que Adorno aponta
marxianamente para a reificação como importante categoria derivada da ideologia, lastreadora
do capitalismo, cuja racionalidade se constitui pela regressão da consciência que,
desespiritualizada, se torna a expressão mais acabada do drama atual. No próprio ensino isso
se manifesta na marcante “inaptidão à existência e ao comportamento livre e autônomo em
relação a qualquer assunto”, em que o sistema de defesa adotado consiste em encerrar-se na
própria fraqueza (ADORNO, 1995, p. 60).
O contexto histórico em que se situa a ideologia gerencialista é perfeitamente
encaixável nesse espectro de indivíduo reificado, pois como um sistema inerte de um
capitalismo que alcançou seu patamar extremo na sociedade do consumo, representa
genericamente a semiformação humana. O pensamento frankfurtiano se relaciona com a
crítica ao fetichismo da mercadoria e converge a uma análise da razão instrumental como
sustentadora da dominação capitalista, num movimento crítico ao projeto iluminista. As
consciências coisificadas, limitadas pela falsa experiência do consumo de bens culturais, se
encaixam nesse âmbito, cumprindo a função reprodutora das práticas necessárias à
padronização que a elas mesmas domina.
Em algum nível de relação entre Marx e Adorno, poderíamos dizer que a ideologia
funde indistintamente tudo com tudo, inclusive seus pressupostos. Também integrante da
compreensão marxiana de Adorno sobre a ideologia, há a correlação entre identidade e
alienação. O viés alienante da ideologia não como falsa consciência, mas como princípio de
identidade, se projeta entre o mundo administrado e seus habitantes através da expansão da
técnica que, imóvel em sua mobilidade, torna mais difusa a classe proletária, numa distinta
expressão dos limites da emancipação do sistema em face até mesmo dos capitalistas. Tal
apreciação Adorno (1972, p. 114) arremata dizendo que “a ordem toda poderosa das coisas
permanece, ao mesmo tempo, uma ideologia que lhes é própria, virtualmente impotente”.
Parece, então, que é declarada a inércia do espectro ideológico, ao passo que sua
autoconstituição se arquiteta como uma verdadeira fábrica de identidades. Seu caráter
manipulador adjacente é incapaz de gestar experiências, pois em sua unilateralidade e
autoritarismo refuta sem hesitar as necessidades alheias. Constituem-se, assim, modelos
inerentes a uma sociedade despossuída de vida concreta – no sentido dialético de existência
mediada reflexivamente –, pois seu vagar é imediatista e ‘zumbizante’, onde o fragmentário
que dela resulta é abstração inerte, jamais autonomia do particular. Neste sentido, partimos da
constatação de que a ideologia gerencialista carrega uma elevada dose de fetichismo, sem a
qual seria insustentável manter o nível das relações que a partir dela se desdobram.
Zizek (1996) considera que a análise marxiana da forma mercadoria se constitui numa
matriz para abalizar quaisquer outras formas da inversão fetichista. Como Marx (1989, p. 81)
afirma:
A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do
próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e
propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho (...). Através dessa
dissimulação, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, com

264
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos (...). Uma relação social


definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma
relação entre coisas (...) produtos do cérebro humano parecem dotados de vida
própria (...). Chamo a isso de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do
trabalho, quando são gerados como mercadorias.
Pela análise via fetichismo articula-se de antemão a anatomia de um conhecimento
científico objetivo de captação da natureza real das situações que favorece a explanação de
seu potencial de universal ideológico. Afinal, dizer que o trabalhador tem a liberdade de
vender a sua força de trabalho ao capitalista é algo que subverte a própria noção de liberdade,
que então deixa de ser universal para integrar a categoria da falsa consciência das trocas, que
assim se apresentam quando se anunciam equânimes (ZIZEK, 1996). Portanto, esse caráter
alienado da produção mercantil reverbera à sociedade como um todo, arraigando-se um
fetichismo também no produto cultural. Com isso, as relações sociais passam a ser
integralmente coisificadas, assumindo um caráter fantasmagórico. Para Rüdiger (2004, p. 37),
esta fantasmagoria é “fruto de uma espécie de reunião entre o progressismo material desse
sistema com a regressão espiritual arcaizante, senão de própria ruína humana, que ele não
para de provocar na sociedade”. Desta feita, na perspectiva de Adorno, os efeitos da
tecnologia empregada em meio à indústria cultural, distante do desenvolvimento de
consciências esclarecidas, apenas adaptaram o homem no circuito do mundo administrado.
É por isso que o momento em que Adorno elabora a reflexão sobre a ideologia e
chama-lhe clara atenção como identidade tem de ser visto como integrante de seu modo novo
e próprio de pensar. Ele vai além de Marx, avançando a um patamar em que ideologia não é
apenas falsa consciência, mas adquire uma acepção que, pela sua natureza dialética, passa a
ser tratada como algo não apenas negativo. Neste modo de compreender a ideologia, Adorno
a transforma em “esquema de análises de disposições de condutas”, capaz de aclarar “como
sujeitos são levados a ver como racionais certos modos de subjetivação de vínculos sociais”
(SAFATLE, 2008, p. 19). Assim, o justo momento em que a ideologia em Adorno se
transfigura como identidade é aquele em que a ocultação da realidade dá lugar à sua
legitimação, o que se desdobra como algo em completa sintonia com a sociedade neoliberal
do capitalismo tardio.
Firma-se uma verdadeira auto-adaptação dos indivíduos por uma cultura tal que ao ser
motivada pela indústria cultural, torna-se o padrão último do que o sistema possibilita.
Lembrando que para Adorno qualquer padrão põe em perigo o não idêntico, os
desdobramentos da indústria cultural passam a ser um rico campo de análise da
operacionalidade da ideologia. Ela incorpora a cultura da mercadoria como matriz do modo
de vida adotado por todo complexo social. Nesse sentido, Rüdiger (2004, p. 28, 33) demarca
que “indústria cultural não é um conceito empírico descritivo. A categoria tem um sentido
dialético e, em essência, exprime, sim, o movimento real do capitalismo avançado como um
todo, sob o aspecto dos sentimentos, valores e subjetividade encarnados nas pessoas e
instituições”. É um movimento que “vem sendo gestado há muito tempo: nossa era deu-lhe
apenas a estrutura monopolista e os princípios de administração”.
Portanto, devemos atentar aos esquemas da indústria cultural, guias da racionalidade
técnica esclarecida, os quais embutem uma síntese da experiência aos consumidores. Liberam
a sua subjetividade de pensar por conta própria quando condicionam suas mentes – as dos
consumidores – às necessidades do sistema em vigor, de extenuante consumo (ADORNO e
HORKHEIMER, 1997). Tais esquemas, assim, constituem-se na carga necessária para o
enquadramento do ser humano nos moldes da semiformação, pois se comportam como “uma
espécie de estrutura articuladora do fetichismo da mercadoria” (RÜDIGER, 2004, p. 196).
Para Adorno e Horkheimer (1997), sob a égide da indústria capitalista acontece um
processo intensivo de massificação da cultura, em que a indústria cultural delineia uma falsa

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democracia no instante em que limita a própria cultura como mercadoria. Ao mesmo tempo
em que banaliza as criativas conexões e realizações humanas, como, por exemplo, a obra de
arte, a indústria cultural perturba os sentidos e dificulta a capacidade de discernimento,
implicando num julgamento distorcido sobre a coerência das coisas. Uma vez que tem essa
capacidade de aguçar desordenadamente os desejos de consumo, a indústria cultural facilita
com que se desenvolva a necessidade do supérfluo. Assim, a natureza da cultura massificada é
traduzida na fabricação da identidade pela manipulação retroativa das necessidades para alçar
uma suposta unidade do sistema no que o esquematismo se torna decisivo:
A verdadeira natureza do esquematismo, que consiste em harmonizar exteriormente
o universal e o particular, o conceito e a instância singular, acaba por se revelar na
ciência atual como o interesse da sociedade industrial. O ser é intuído sob o aspecto
da manipulação e da administração. Tudo, inclusive o indivíduo humano, para não
falar do animal, converte-se num processo reiterável e substituível, mero exemplo
para os modelos conceituais do sistema. O conflito entre a ciência que serve para
administrar e reificar, entre o espírito público e a experiência do indivíduo, é evitado
pelas circunstâncias (ADORNO e HORKHEIMER, 1997, p. 83).
Para os autores, há um predomínio do efeito sobre o conteúdo, e este se coloca através
da imitação, onde o mais importante não é a captura dos corpos, mas da alma das massas, que
sucumbem ao mito do sucesso. Por isso a ideia foucaultiana de panóptico cabe perfeitamente
a este cerceamento empenhado pela indústria cultural. Há em voga um poder invisível e
regular sobre o indivíduo, transformando a sociedade em um arquipélago carcerário, em que a
vigília constante, até mesmo autoinflingida, é a marca do presente modelo de vida.
Nessa dinâmica o conceito de auto-adaptação (sich anpassen) se torna chave. Por tudo
planificar ao excluir o novo (não idêntico), a indústria cultural introjeta o desejo do opressor
nos receptores, como já denunciou Paulo Freire (1987), isto ocorrendo apenas nas doses
necessárias para adaptar todo complexo social ao ritmo da produção e reprodução mecânicas.
A ideia de sucesso é decisiva a esse contexto, pois atua no convencimento para a certeza da
ascensão em que, por outro lado, ao consumidor desse sistema não se devem “dar momentos
em que pressinta a possibilidade da resistência” (ADORNO e HORKHEIMER, 1997, p. 132).
Assim, sua dominação abarca uma vagueza que vai, conforme o caso, do acaso ao planejado,
de modo que se aglutinam no complexo social os efeitos desejados pelo emprego generalizado
da ideologia da indústria cultural.
Em síntese, em sua acomodação sistemática, pílulas de felicidade social são o que a
indústria cultural oferece, as quais causam, dialeticamente, efeitos apaziguantes e paliativos
por sobre as mazelas sociais quando agem na superficialidade do seu tecido, incidindo sobre
elas de modo analgésico prolongado. Assim, nenhuma de suas ações extingue históricas
problemáticas sociais. Seus efeitos são, isto sim, reincidentes e meticulosamente calculados
diante dos interesses do capital, tanto via organizações privadas como públicas, injetando nas
massas doses controladas de ilusão. Como disse Motta (1992, p. 39), o sentido e a coerência
que a ideologia dominante imprime são ilusórios pelo simples fato de anunciar uma satisfação
– no caso, com relação aos gerentes, a ilusão de controle da situação – que “nunca poderá ser
atingida”, tendo em vista que “submete as pessoas a uma sucessão de saltos no vazio”.
Embora não possamos dispensar a importância da dimensão técnica, do seu interstício
emana um véu tecnológico que possibilita o entretenimento mercantilizado e o domínio das
massas e que se converte em cinismo. Isso porque a indústria cultural ascende por uma
servidão voluntária. Sendo assim, para Adorno e Horkheimer (1997), é completamente
equivocado acreditar que as pessoas são meramente violentadas pela indústria cultural 2
porque na realidade a ideologia, por meio de uma “psicologia social pervertida”, assegura as
coisas como elas são (ADORNO e HORKHEIMER, 1969, p. 203). Com base na análise do
fascismo, Zizek (1996) igualmente se volta a esta realidade, permissivamente acrítica, por

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meio de uma teoria do sujeito que se articula a partir de Freud em seu conceito de fantasia.
Daí que Zizek (1996) contribui à nossa leitura por elaborar a compreensão de ideologia como
fantasia social, cujo atributo principal é valorar e significar a realidade de um período
histórico, que é compartilhada socialmente.
Isso se efetiva pela fórmula do cinismo, uma atualização da curta frase de Marx, “eles
não sabem, mas é o que estão fazendo”, que então passa a figurar como: “eles sabem muito
bem o que estão fazendo, mas fazem assim mesmo” (ZIZEK, 1996, p. 14). O “compromisso
excessivo com o bem” pode acarretar o dogmatismo fanático do pior mal (ZIZEK, 1996, p.
311). Mesmo assim o cinismo avança para uma forma de ideologia que cria uma máscara que,
para além de esconder o estado das coisas, confere à sua própria essência uma distorção
ideológica. Para o ZIZEK (1996, p. 311), “nas sociedades contemporâneas, democráticas ou
totalitárias, esse distanciamento cínico, o riso, a ironia, são, por assim dizer, parte do jogo”.
Tem-se na razão cínica, portanto, uma “falsa consciência esclarecida”, naturalizadora de “uma
forma suprema de desonestidade”, ideia que Adorno referenda ao creditar à ideologia o papel
não apenas de mentira, mas de “uma mentira vivenciada como uma verdade”, permanecendo
“intacto o nível fundamental da fantasia ideológica, o nível em que a ideologia estrutura a
própria realidade social” (ZIZEK, 1996, p. 313, 314).
Rüdiger (2004, p. 186) destaca essa leitura do cínico como parte de uma
fundamentação antropológica que Adorno possui da indústria cultural. Na visão da ideologia
cínica, no próprio pensar administrativo está presente a falsa consciência esclarecida, que se
serve conformadamente da razão iluminista, embutindo valores de uma vida interior
destituída de conteúdo vivo, porque passa indiferentemente a ser alimentada pela lógica
instrumental. Para Rüdiger, o mínimo que resulta disso é um entusiasmo cínico emanado dos
indivíduos mais intelectualizados para com a pluralidade cultural que, destarte, são indivíduos
portadores de uma má consciência. É o que embasa uma semiformação que não apenas auxilia
na manutenção do poder, como o reforça por justificá-lo. É esta a razão que, ao fundo, funda e
move a proliferação tão arraigada de uma ideologia como a que atualmente sustenta as
práticas dominantes na Gestão Pública brasileira. Cabe-nos alertar sobre a perniciosidade
desse sistema, tarefa que acatamos nos detendo nos pressupostos da ideologia gerencialista no
âmbito público.

2. A ideologia gerencialista e a falência do interesse público

O universo da gestão substitui (...) a dignidade pela utilidade, a solidariedade


coletiva pela celebração do mérito individual, a honra pela estratégia. Ele transforma
as relações humanas em relações comerciais, os cidadãos em clientes que reclamam
o que lhes é devido e os políticos em provedores de serviços (GAULEJAC, 2007, p.
229).
De que as práticas de gestão das empresas privadas são ideologicamente adotadas no
Brasil como modelos unilaterais de resolução dos problemas da Gestão Pública não nos
restam dúvidas. Especialmente aos problemas econômicos, sobre os quais se consagrou a
distância da política, seu emprego como síntese pronta da experiência anglosaxã foi enfático,
assim como a importação do sistema do mérito como algo totalmente alheio à questão social.
Tais constructos, que reproduzem uma realidade danificada na empresa privada são panaceias
mimeticamente transpostas ao Estado tendo em vista a realidade do capitalismo que não
possibilita externar soluções que lhe sejam avessas, especialmente no contexto atual de assalto
do Estado pelas grandes corporações internacionais. Em acréscimo, observando o quadro

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concreto do Estado, notamos que a ideologia gerencialista promove resoluções dramáticas


quando transposta ao Estado, ensaiando uma verdadeira falência do interesse público.
Há ensimesmamento inautêntico da Gestão Pública que recusa o diferente e o campo
se autolimitou pela aplicação de sistemas modelares alheios. Estes emergiram, basicamente,
pela assunção da ideologia empresarial, em que as concepções administrativas em si integram
cinicamente a postura de falsa consciência esclarecida. Destarte, o caminho adotado para gerir
o que é público é totalmente avesso ao que o próprio termo etimologicamente requisita, pois o
emprego de instrumentos de consenso ligados à democracia participativa, não sem propósito
apresenta-se ineficaz, senão altamente duvidoso. Sob a égide do capital, há constante
dificuldade de diálogo ou democracia em concorde com os órgãos estatais para atender
interesses coletivos diversos, o que se prova sobremaneira nos momentos em que as crises
financeiras forçam a subsunção de direitos fundamentais. Na lógica do mundo administrado, a
Gestão Pública permanece, irrevogavelmente, submissa aos humores do capital, não sendo
facultado lhe causar qualquer constrangimento. Como se os interesses da eficiência e da
produtividade, agora aplicados no Estado, fossem naturalmente pensados na mais perfeita
harmonia com o social.
Embora afirmem o contrário, os modelos adotados no âmbito público encarceram
ainda mais a liberdade, colocando-a cinicamente a serviço da sociedade de consumo. O forte
impulso a essas tendências tem seu auge no mundo ocidental na década de 1990, sendo fruto
dos rescaldos da reestruturação produtiva enfrentados pelo capitalismo desde antes da década
de 1970, no período em que se localizam as primeiras formulações ideológicas da Nova
Gestão Pública. A introjeção do gerencialismo ou da Nova Gestão Pública (New Public
Management) no âmbito da gestão do Estado brasileiro segue exatamente esse movimento,
cabendo imprimir uma leitura dialética negativa às suas premissas, alertando ao conjunto
central de seus pressupostos, cuja adesão completa praticamente duas décadas no Brasil.
Diante das análises de Denhardt (2012), permanecem claros dois modelos que são
anunciados como profícuos para a resolução das questões do campo, correlacionando-se,
especialmente ao segundo, práticas de uma Gestão Pública mais democrática. São eles: a
Nova Gestão Pública e o Novo Serviço Público, este último elaborado por Robert Denhardt
em parceria com Janet Vinzant Denhardt. No primeiro, o New Public Management,
identificamos um foco extremo na lógica mercantil dos Estados colonizadores do primeiro
mundo. As inspirações do gerencialismo estariam no pensamento político neoliberal, pelas
virtudes organizadoras do mercado, bem como na Teoria da Escolha Pública (Public Choice),
que prima pela explicação de questões políticas por princípios econômicos, partilhando o
postulado da economia neoclássica do utilitarismo humano nas interações, tanto políticas,
como sociais e econômicas (PAULA, 2005).
Já um terceiro eixo do modelo da Nova Gestão Pública, também assinalado pela
autora, localiza-se no movimento Reinventando o Governo, retratado pela obra de mesmo
nome, de Osborne e Gaebler (1994). Os dez princípios defendidos no livro basicamente
situam o Estado como empreendedor e foram ao longo dos anos retroalimentando o
gerencialismo, facilitando que se firmasse como ideologia em prol da produtividade, da
técnica, da disciplina, do planejamento e da administração (DENHARDT, 2012) pensada,
enfim, instrumentalmente.
Este é o ponto crucial em que se alteram os valores sociais pelo próprio Estado, com o
discurso empreendedor não apenas intencionando preencher as supostas mazelas do
indivíduo, mas intrincando-se em todo complexo social, agindo exatamente do mesmo modo
equivocado quando promete ‘corrigir’ o Estado. Num voraz movimento de ataque ao social, o
empreendedorismo, antes integrante do pacote gerencial do microambiente empresarial, passa
a contribuir significativamente para generalizar “a gestão como doença social”, como aponta
Gaulejac (2007). Num Estado que empreende dinheiro e não vidas, é natural que o capital seja

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

sustentado por uma Gestão Pública danificada, pois este é o meio que lhe convém para atingir
um fim desvirtuado.
Na tendência de ênfase na subjetividade reificada, os modismos gerenciais integram
estrategicamente a Nova Gestão Pública constituindo-se num eixo ideológico-simbólico
importante para manipular a massa ‘cidadã’. Diretamente veiculados pela indústria cultural,
integram a faceta da cultura do management, fomentando a sociedade administrada rumo à
proliferação de inúmeras ferramentas gerenciais, construindo um imaginário que direciona à
formação da cultura do lucro. A semiformação do Gestor Público, está diretamente ligada aos
preceitos dessa cultura que fantasia o poder e colabora para minimizar tensões oriundas do
universo social instável (PAULA e WOOD JR., 2002; PAULA, 2012; COSTA, 2012).
A cultura do management se torna, portanto, um rico recurso da ideologia
gerencialista na Gestão Pública, estimulando a projeção fantasiosa de um Estado vitorioso no
combate das mazelas sociais, especialmente no tocante ao nível financeiro, por isso tão
sedutora. Ela é responsável pela formação de um novo imaginário social e organizacional,
tendo sido introjetada fortemente no Estado brasileiro em 1995, mediante a implantação das
políticas do MARE (Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado) voltadas a
melhorias na performance do Estado. Relativo ao MARE, Costa (2012, p. 180-181) destaca
projetos como “choque de gestão” como uma das experiências “mais exitosas” da invasão
dessa cultura, e também outros, como o “Programa Nacional de Gestão Pública e
Desburocratização”, implantado em 2005 e a “Câmara de Políticas de Gestão, Desempenho e
Competitividade”, criada em 2011.
A construção de uma fantasia para dissimular o real se torna um elemento relevante
para observar que o nível do dano na Gestão Pública não é pouco, ao passo que atalhos como
esses se tornaram tão eficientes para legitimar o poder dominante. Na realidade, esta cultura
desloca a subjetividade, não apenas dos indivíduos organizacionais, mas de todo complexo
social ao ensejar uma satisfação parametrizada pelos “contos infantis para adultos” (PAULA e
WOOD JR., 2002), em que a obra de Osborne e Gaebler (1994) pode ser citada como o
exemplo mais representativo disso.
Sobre o modelo do Novo Serviço Público, este não passa de uma revisão dos
princípios da Nova Gestão Pública, propondo-lhe uma atualização dos enunciados de Osborne
e Gaebler (1994), convergindo à correção das críticas sofridas pelo modelo anterior. Dito mais
claramente, o Novo Serviço Público é um protótipo modelar que envereda pela seara
habermasiana, não escapando do moralismo kantiano e compondo, portanto, a linha
‘alternativa’ pró-sistema, sobre a qual sequer se anuncia ter se distanciado da Teoria Crítica.
Entretanto, Denhardt (2012) não se esquiva da crítica à importação de modelos do âmbito
privado ao público, sugerindo que órgãos públicos passem a servir de parâmetro para a
reconstrução de todo tipo de organização, assentando-se em linhas teóricas mais
democráticas.
Assim, devemos notar que a ideologia gerencialista toma o campo não apenas
empírico, na práxis do Estado, como também encontra lastro teórico ao se naturalizar como
um dos modelos mais avançados e modernos para geri-lo. Isto é fortemente calçado por
estudos e pesquisas no próprio campo da Gestão Pública, que cegamente aderem aos apelos
do então transposto modismo anglo-saxão. Mesmo se não considerássemos quão precários são
os seus fundamentos, a dinâmica do capital per si expõe os limites desses pressupostos, ao
passo que na realidade concreta não tardam aparecer evidências da perversidade do mundo
administrado. Diante desse quadro do sofrimento da vida real, qualquer debate sobre a esfera
pública sob os parâmetros de tais arremates revela-se como algo completamente desavisado
de conhecimento político ou democrático efetivos, isso pelo simples fato de partir de um
ponto em que a racionalidade instrumental permanece naturalizada. Entretanto, tais modelos
alternativos, propositadamente ignorantes da realidade concreta, são a base da educação atual

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

na Gestão Pública, lhe conferindo um quadro semiformativo ascendente diante do engodo


ideológico que engendram, como analisaremos na última seção desse estudo.

3. Semiformação do gestor público

O ente recebe do espírito que o sintetiza a aura do ser que é mais do que fático: a
consagração da transcendência; e justamente essa estrutura se hipostasia enquanto
algo mais elevado ante o entendimento reflexivo que, com o bisturi, separa o ente e
o conceito (...). Hipostasiado, esse deixa de ser um momento e se torna aquilo que a
ontologia menos gostaria que fosse em seu protesto contra a cisão entre conceito e
ente: algo coisificado (ADORNO 2009, p. 72,76).
A consciência presa à Gestão Pública danificada não deixa, obviamente, de facear suas
imperfeições, mas por ser acrítica não conclui nada contra si mesma. Ao reproduzir-se na
esfera da educação/formação, ela inicia por sua própria realidade, tomada de modo acrítico
como essencial. Em parte como compensação, em parte como idealização, projeta-se numa
perfectibilidade ideal de si mesma, que academicamente ela vislumbra no tecnicismo
pedagógico e no produtivismo quantificador, elementos da semiformação. Mas esta
idealização, porque acrítica, é só a hipostasia, a projeção substantivada de seu próprio caráter
objetificado3, de uma identidade que cada vez mais mimetiza-se na lógica do mercado.
Dentre tantas outras sensações fabricadas, a ideologia gerencialista é incutida desde o
padrão educacional sustentado pela máquina do próprio Estado. As teorias organizacionais
atendem a essa moldagem em seu caráter semiformativo no momento em que o papel da
educação se restringe ao doutrinamento para servir o mercado, também deflagrando neste
aspecto um significativo hipostasiamento. De fato, o padrão educacional, em que pesam as
fases da própria elaboração disciplinar formal e seu caráter essencialmente importado, se
tornou expressão do que apontamos como a ‘autocentralidade inautêntica ampliada e
hipostasiada’ da Gestão Pública danificada.
Tanto como Gaulejac (2007) e Harvey (2009), Tragtenberg (1989) e Motta (1992,
1990) apontam que nosso tempo e espaço são meticulosamente controlados desde a escola,
cenário de inculcação ideológica em que aprendemos a adaptar corpos e mentes ao exercício
do trabalho nas empresas capitalistas. Segundo Motta (1990, p. 13), “há que se pensar o
tradicional compromisso do ensino e da pesquisa na Administração com o poder e as classes
dominantes, bem como o dogmatismo a que tal compromisso muitas vezes inconscientemente
leva”. Em adição, pela ideia de ideologia cínica, podemos inferir que se havia algum elemento
inconsciente em tal conduta, este há muito se transformou numa espécie de assujeitamento
consciente e esclarecido. Isso porque, de um modo genérico, a educação para gerir o
patrimônio do capitalismo acorda no plano acadêmico uma formação abarcadora da
consciência liberal e seus congêneres, pois o ideário dominante não renuncia a sua força. Para
Wellen e Wellen (2010, p. 135-136),
da mesma forma que a gestão, a educação representa um sentido hegemônico, que é
derivado da forma como se estrutura a sociedade e, no caso do ordenamento social
em que estamos inseridos, dos interesses das classes dominantes. A função social a
ser cumprida pela educação é uma construção realizada a partir das lutas de classes
que acontecem no interior da sociedade e depende da correlação de forças entre
essas lutas e do poder de uma classe sobre a outra.
No tocante aos cursos de Administração no Brasil não estranhamente gerou-se um
problema central de falta de operacionalidade crítica. A adesão do Estado ao gerencialismo da
empresa privada tendo como resultado a lógica semiformativa nas próprias Escolas de
Governo revela-se como uma verdadeira institucionalização do jogo ideológico cínico, na
medida em que é empreendida a reedição dos ideários do participacionismo e outras

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

panaceias. Formata-se uma realidade onde a competição coexiste com uma suposta
cooperação nos próprios espaços de trabalho do gestor público, discurso que se estende a todo
o aparato social a que corresponde, falseando a própria participação do ‘cidadão’ nos
processos decisórios. Sem o proclamar, as decisões públicas perpassam por um processo de
indução, correspondendo reciprocamente ao sistema e impossibilitando que o projeto
capitalista seja traído. Dado que a ideologia nasce nas relações entre as classes, impede-se que
a verdadeira ruptura no nível ideológico aconteça, qual seja, aquela decorrente de mudanças
na base material, que trás consigo o surgimento da consciência de classe.
Devido a sua exposição aos milhares de profissionais submetidos ao sistema
educacional, “a tecnologia gerencial contemporânea tem com a educação uma relação bem
mais estreita e intensa que as primeiras teorias da administração” (GURGEL, 2003, p. 57). A
estes se destina uma educação reprodutora do sistema social favorável aos dominadores, não
uma educação de papel político libertador que proporcione formação aos dominados, embora
seja possível encontrar alguma luz via educação, como também Adorno (1995, p. 177) quer
acreditar quando afirma ser “preciso contrapor-se à barbárie principalmente na escola. Por
isto, apesar de todos os argumentos em contrário no plano das teorias sociais, é tão importante
do ponto de vista da sociedade que a escola cumpra sua função”.
Mas esta luz tem sido precária à medida que a situação da consciência crítica
permanece comprometida pela semiformação, causadora de uma ilusão de verdade. Coligados
a isso estão os processos educativos historicamente intermediados pela “educação bancária”
(FREIRE, 1987), que mantém a verticalização da aprendizagem, Diante disso, frequentemente
na tônica dos cursos de gestão torna-se intransponível elevar o nível de consciência aos
parâmetros da crítica e abre-se um espaço natuzalizador da formação como algo voltado
apenas à inserção na lógica do mercado, em que a banalidade da pesquisa se franqueia
abertamente nas Universidades. Nesse contexto, o docente é condicionado a parâmetros
produtivistas, erroneamente compreendidos como pesquisa, o que, na realidade, contribui para
o desmonte do próprio conceito de pesquisa. É o que Tragtenberg (1978) combatia
incisivamente denunciando como a “delinquência acadêmica”, que naturaliza o conhecimento
técnico e imediatista, o aprendizado de fórmulas de sucesso e a instrumentalidade da relação
professor–aluno.
Essas conduções integram a dialética da ideologia cínica. Não diferente da pesquisa,
com frequência se inserem como ideais de educação as distorções constantes nos famosos
‘manuais’ de gestão, o que se tornou convenientemente intencional. Mesmo Denhardt (2012),
provando que sua escolha é consciente, alerta que devemos investigar as escolhas teóricas dos
pensadores que os escrevem antes de utilizá-los como base. Assim, os manuais se tornam
comumente ‘best sellers’ que, elevados a um “caráter sagrado” (GAULEJAC, 2007), se
caracterizam pela aparente isenção, mas que, na realidade, induzem uma série de regras ao
cotidiano organizacional, que arrefecem a questão social e outras inquietações. No entanto,
são facilmente assimilados como difusores de verdades absolutas. Em suma, os manuais
transformam-se nos baluartes da semiformação dentro da própria academia, que deixou de
priorizar a construção reflexiva do conhecimento para apenas reproduzir discursos prontos de
origem duvidosa.
A educação do gestor público integra um significativo doutrinamento ideológico e, por
conseguinte, a semiformação se apresenta como o melhor padrão formativo do indivíduo que
lida com o interesse público. Estancar essa lógica implicaria na urgente configuração de um
pensamento antissistema, não apenas alternativo, com atenção a aspectos políticos. Como
defendeu Adorno (1995, p. 137):
O centro de toda educação política deveria ser que Auschwitz não se repita. Isto só
será possível na medida em que ela se ocupe da mais importante das questões sem
receio de contrariar quaisquer potências. Para isto teria de se transformar em

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

sociologia, informando acerca do jogo de forças localizado por trás da superfície das
formas políticas. Seria preciso tratar criticamente um conceito tão respeitável como
o da razão de Estado, para citar apenas um modelo: na medida em que colocamos o
direito do Estado acima do de seus integrantes, o terror já passa a estar
potencialmente presente.
Entretanto, parafraseando Paula (2012, p. 93), podemos afirmar que se existe um lugar
central da semiformação dos gestores públicos, este se construiu historicamente pelas práticas
das tradicionais Escolas de Governo, formadoras de lacaios do Estado capitalista.
Encarregadas de direcionar o ensino pelo linguajar burocrático-ideológico, as Escolas de
Governo mantêm o tecnicismo figurando como elemento chave do seu discurso. A
semiformação do gestor público torna-se, portanto, expressão do irrefutável dano que paira
sobre a Gestão Pública brasileira. É inegável que o papel das Escolas de Governo converge
essencialmente à reprodução do sistema capitalista. Uma vez destacando-se como centros de
excelência em (semi)formação, tais escolas podem ser verificadas como importantes elos de
consolidação da Gestão Pública danificada na medida em que criam cada vez mais soluções
técnicas para problemas sociais concretos, oriundos da desigualdade social ascendente no
sistema do capitalismo. Com isso, jamais atacam seus problemas de frente questionando a
estrutura, mas agem dentro dela lhe propondo adequações necessárias para evitar a estagnação
generalizada do sistema.
De um modo geral, as Escolas de Governo formam os seus servidores pela versão do
gerencialismo capitaneado por Bresser-Pereira, de modo que se instituiu, a partir de 1995,
uma vitória ideológica importante em favor dos interesses das classes dominantes. Isso
porque, ao motivar a discussão sobre a reforma do Estado, a perspectiva gerencialista
eficientemente anulou outros temas, em especial os localizados no desenvolvimento social.
Assim, por reforço do reformismo implantado através do MARE, mais uma vez destinaram-se
resoluções basicamente técnicas a questões políticas na Gestão Pública brasileira, numa
atualização providente de um movimento em âmbito global.
A transposição ideológica anglosaxã que se transfigura ao contexto tupiniquim é
motiva um desfecho histórico nada favorável à educação, onde a primeira escola de formação
de gestores públicos da América Latina, a atual EBAPE-FGV, situada no Rio de Janeiro e
criada em 1952, iniciou sua atuação focada no ideário desenvolvimentista, sob a tutela
financeira das Nações Unidas e da Unesco (WARHLICH, 1979). A formação de gestores
como estratégia de desenvolvimento implicava uma vinculação paradigmática em que, “com
o passar dos anos e o desenvolvimento do comportamentalismo, a busca da eficiência foi
sendo feita através de técnicas grupais e de competência no relacionamento interpessoal”. Os
esforços da ONU se estendiam também à formação de quadros na UFRGS e na UFBA
(FISCHER, 1984, p. 282).
Nesse período, como reflexo da ditadura militar, houve o declínio profissional do
gestor público, tendo em vista a prioridade da técnica e da competência em detrimento da
política, o que justifica a ascensão de administradores genéricos no assessoramento ditatorial,
especialmente devido a motivação imperialista. Para Coelho (2006), esse afastamento do
gestor público de cena foi expresso inicialmente pela extinção da graduação em
Administração Pública na EBAP na década de 1980 e, mais tarde, pela reorientação no
próprio nome da escola para EBAPE. Estes são exemplos da alienação das próprias Escolas
de Governo no quadro processual brasileiro, que enquanto elites absorveram e capitanearam
positivamente os ajustes recomendados como movimentos necessários à modernização.
Destarte, na atualidade tem-se um quadro em que as chamadas Escolas de Governo atuam
enfaticamente no eixo do treinamento e desenvolvimento.
Tomando por exemplificação apenas a ENAP (Escola Nacional de Administração
Pública e a ESAF (Escola Superior de Administração Fazendária), importantes escolas por

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

serem de prospecção a nível federal, podemos dizer que estas expressam sobremaneira o
papel de centros produtores e reprodutores da ideologia gerencialista, pois “configuram-se
como universidades corporativas do setor público voltadas: (a) para a aprendizagem de
funcionários com investidura nas carreiras típicas de Estado; e (b) para a capacitação de
quadros técnicos para os projetos governamentais estratégicos” (FADUL et al., 2014, p.
1346).
A ENAP foi criada em 1986 a partir dos modelos francês e alemão para formar a alta
burocracia do governo da redemocratização, representando o desenfreado reingresso da
administração empresarial na Gestão Pública. Posteriormente se vinculou ao MARE,
auxiliando na formulação das proposições para a reforma do Estado em 1995 e capacitando
para as mudanças posteriores (PACHECO, 2000). Segundo a escola, “os programas e cursos
da ENAP são classificados em duas grandes áreas de ensino – ‘Desenvolvimento Técnico e
Gerencial’ e ‘Formação de Carreiras e Especialização’” (ENAP, 2012, p. 10). Na primeira
grande área da são oferecidos diversos programas e cursos, cujos objetivos são estritamente
instrumentais. Na segunda grande área, há ênfase da escola na burocracia do Estado, sendo
que os cursos “visam preparar quadros das carreiras de Especialista em Políticas Públicas e
Gestão Governamental (EPPGG) e Analista de Planejamento de Orçamento (APO) para o
ingresso na administração pública federal” (ENAP, 2012, p. 100).
Nicolini (2007) assinala que a ENAP forma técnicos especializados que muitas vezes
não conhecem o Brasil e mesmo assim tomarão decisões sobre o país. Segundo Pacheco
(2002, p. 76), o papel das Escolas de Governo é de filtrar e adaptar as ferramentas de gestão
ao contexto do setor público. Além disso, encarregam-se da percepção de novas competências
que maximizem o grau de excelência do Estado, construindo “um conjunto de valores que
renovam a ética no setor público”, ajudando a produzir as mudanças nele desejadas, sendo
importante que as escolas estejam diretamente atreladas ao aparelho do Estado.
É nesse contexto que também se integra a ESAF, de origem mais antiga (1973) e de
formação restrita ao servidor fazendário, que atua nas finanças públicas. No Projeto Político
Pedagógico da ESAF existe referência a um contexto pedagógico que inclui “pluralidade e
flexibilidade nas suas abordagens e estratégias educacionais” (ESAF, 2013, p. 7). Tomando
como base o Catálogo nacional de programação de eventos de capacitação da escola (ESAF,
2015), observamos que a maior parte das atividades envolve finanças públicas, orçamento e
contabilidade, legislação e derivados, bem como cursos voltados às ferramentas de gestão.
Neste enfoque da ESAF, fica claro que a formação de consciência crítica dos gestores se
restringe à responsabilidade para com as finanças públicas, o discurso economicista sendo
elevando a primeiro plano.

4. Considerações finais

Embora dialeticamente seja importante organizar as ações da vida humana, toda


instrumentalização emanada das Escolas de Governo dirigiu-se historicamente para as
políticas reformistas do Estado. Essa instrumentalização é beneficiária da cultura do
management, que naturaliza ações como as de ‘choques de gestão’ como formas de melhorar
os mecanismos de condução do Estado. Assim, nelas o reformismo “continua a ser a cultura
dominante e a desafiar qualquer contraposição crítica a ela”, de modo a “sustentar uma visão
economicista da vida, que explica todas as coisas como sendo derivação do econômico ou do
mercado” (NOGUEIRA, 2011, p. 183-184).
Iniciada a partir de uma dívida financeira com os Estados Unidos, que teve como
contrapartida a dependência cultural, a importação cultural de Escolas de Governo é hoje

273
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

difusa, vinda do contexto eurocêntrico de modo geral. Contudo, o preço que se pagou foi a
criação de uma identidade em que, como Adorno e Horkheimer (1997) defendem, retira-se a
possibilidade de criar algo idêntico consigo mesmo. O idêntico ao Outro é, assim, reeditado
nos princípios formativos dos gestores públicos brasileiros na contemporaneidade. O ensino é
um veículo importante dessa dominação, como aponta Motta (1990). É uma
instrumentalização que tem altos custos ao âmbito nacional, pois uma importante evidência
que aponta para a semiformação é que nas citadas Escolas atualmente inexistem eixos
efetivamente consolidados de educação política ou voltados à sociologia, tendo sido mitigado
o estudo do pensamento social brasileiro.
Modelos imediatistas de raciocínio em favor da obtenção de lucro no mercado, que se
estendem a todo complexo de ensino, limam a catalisação de interesses universais, criadores
de “condições para estimular o entendimento das contradições sociais que determinam a
estrutura da sociedade capitalista” (WELLEN e WELLEN, 2010, p. 171). As Escolas de
Governo mantêm uma distância contraditória à condução dos seus formados ao discernimento
autônomo. Criar caminhos próprios de análise e conhecimentos críticos derivados de
experiência formativa viva e ativa é algo que a eles não está facultado. O que este tipo
deformativo de abordagem educacional proporciona é um quadro de liofilização da
aprendizagem e do conhecimento4, uma vez que é sustentada em modelos estereotipados, de
pretensão neutra e dimensão crítica e reflexiva inexistente. Nessa liofilização, da dimensão
formativa é retirado todo o aspecto ‘perigosamente crítico’ do ensino, mantendo-se apenas o
nível necessário para a devida reprodução das informações já processadas pelo Outro, o dono
do conhecimento que subsiste para a reprodução do capital. É um processo que corresponde,
portanto, a uma era de produção enxuta do conhecimento, dialeticamente contraditória ao
produtivismo acadêmico. Assim, na instrumentalização necessária à formação, os elementos
críticos não são rechaçados, mas deles se faz o melhor uso. E toda crítica numa dose correta,
só tem a formar gestores adequados que, em sua formação ‘crítica’ são capazes de agir em
prol da boa gestão do Estado capitalista, remediando a questão social.
O elemento fundamental da formação é a autonomia, na qual, ao contrário da
heteronomia, o indivíduo é capaz de articular acessos que a constituem. Mas, Adorno (2010,
p. 15) lucidamente alerta de que no “a priori conceito de formação propriamente burguês, a
autonomia, não teve tempo nenhum de se constituir, e a consciência passou diretamente de
uma heteronomia a outra”. O filósofo aponta que uma ação mais próxima em prol da
formação implicaria na urgência de “uma política cultural socialmente reflexiva”, o que
provavelmente ainda não alcançaria o centro da semiformação cultural. É por isso que
assinalamos o assujeitamento deve ser considerado derivado da semiformação, tendo em vista
que representa a submissão disciplinada e a adaptação à lógica do sistema vigente, em que
apenas resta aos indivíduos o “conformismo bem informado” (HORKHEIMER, 2002).
Obviamente não defendemos um suposto papel salvacionista à formação dos gestores
públicos, tampouco que este esteja a cargo das Escolas de Governo, e de que estas
supostamente seriam melhores caso sua formação apontasse outros rumos. O fato que nos
cabe adornianamente apontar é de que o aprendizado percebido nas escolas de formação dos
gestores públicos não atravessa para além das funções burocráticas que sustentam o
capitalismo. O gestor público aprende a ser, substancialmente, um burocrata do Estado e,
nisto, a aparência do que faz se torna a maior parte de sua ‘essência’. Tal como é hoje o
ensino da Gestão Pública, destina-se à semiformação, a ‘formar’ homens e mulheres sem
alma, sem espírito sensível, numa verdadeira ode à falência do interesse público, rasgando o
que desde os antigos, como Platão, foi estabelecido como fim último para esta esfera: a
promoção da felicidade humana.
Enquanto os indivíduos estiverem integrados na sociedade de consumo e por ela se
sentirem suficientemente atendidos, dificilmente buscarão alternativas antissistema,

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

intervindo criticamente nos processos. Desapegar-se do emaranhado consumista e elevar-se a


um nível reflexivo é tarefa que, embora envolta em inédita criatividade histórica, depende de
raros comportamentos, os quais só podem ser encontrados em sujeitos ávidos por experiências
formativas. Enquanto o cotidiano da vida continuar sendo ‘aperfeiçoado’ pelas técnicas da
sociedade administrada que, atravessada pela ascendente perda de sentido da experiência
formativa, não resta outra saída à crítica senão aquela de um radicalismo que possa alertar
sobre sua perniciosidade. Esta a tarefa que os solitários adeptos a perspectivas antissistema
seguem cultivando até surgirem alternativas verdadeiramente inovadoras e não apenas
localizadas no terreno do cinismo ideológico.

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1
Adorno (1992) chamou de vida danificada (beschädigten Leben) o que vivemos hoje como resultado de uma
sociedade administrada, onde a consciência humana é moldada para se adaptar às exigências técnico-
econômicas. Ao suprimir a subjetividade, aniquilando a autonomia do indivíduo pela assimilação sistemática da
racionalidade instrumental, a vida se torna danificada e passível de manipulação. Nesse contexto, a adesão à
lógica da mercadoria, onde as preocupações se dão apenas no nível dos valores imediatos do consumo, passa a
ser a forma mais reconhecida de assunção e condução da vida.
2
No aforismo 96 de Mínima moralia Adorno (1992, p. 130) aclara essa crítica: “há um quarto de século que os
cidadãos mais velhos e que ainda deveriam se lembrar do outro acorrem inermes à indústria cultural, que calcula
com tanta exatidão os corações carentes. Eles não têm nenhuma razão de se indignar com essa juventude
pervertida até à medula pelo fascismo. Os desprovidos de subjetividade, os culturalmente deserdados, são os
legítimos herdeiros da cultura”.
3
Recorremos aqui ao uso em sentido negativo, crítico, do termo “hipostasia”, conforme Abbagnano (p. 1998, p.
500) reconhece legítimo na linguagem moderna e contemporânea.
4
Da expressão “liofilização do trabalho”, tomada de empréstimo por Ricardo Antunes de Ruan José Castillo
para a análise do mundo do trabalho (ANTUNES, 1999, p. 50).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Centralidade da Gestão e os Limites da Razão Política: As Contradições


Sociais como Objeto Real da Gestão do Estado

Elcemir Paço Cunha


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Resumo
O artigo discute as considerações centrais da “administração política” sobre a gestão como
objeto central. Argumenta-se que a centralidade da “gestão” para a “administração política”
não a difere com relação ao chamado mainstream, mantendo a mesma redução dos problemas
sociais a um mero problema de gestão. O artigo propõe uma retomada da relação entre a gestão
do estado e as contradições sociais, demonstrando que a gestão do estado pressupõe e não
procura eliminar tais contradições. Ao discutir a propositura da “administração política” de que
seu objeto é a “gestão”, demonstra-se que o real objeto da gestão do estado são as contradições
sociais que formam sua base. Argumenta-se que ao assumir o ponto de vista da gestão do estado,
a “administração política” fica implicada aos limites da razão política (voluntarismo político e
impotência da administração), isto é, não apreender corretamente as forças motrizes das
mazelas sociais e, assim, confirma-se como ideologia de talhe sincrético por expressar os
interesses de preservação das relações de produção embora incorpore o projeto político de bem-
estar social.
Palavras-chave: administração política, gestão do estado, contradições sociais, razão política

“Ser radical é agarrar as coisas pela raiz”


K. Marx

1. Introdução

O presente ensaio procura discutir as considerações centrais da “administração política” sobre


a gestão como objeto central de sua efetivação como “campo de estudos”. Nosso argumento é
que tomando a gestão por sua centralidade, a “administração política” não rompe com os limites
da razão política, razão que não apreende as forças motrizes de ordem primária na determinação
das mazelas sociais.

Nesse sentido, primeiro apresentamos a centralidade da gestão para a “administração política”


a partir de algumas elaborações centrais produzidas desde 1993. O objetivo é mostrar que nesse
quesito a “administração política” não se distingue do mainstream quanto se supõe e aceita o
operatório que reduz os problemas sociais à gestão, isto é, a gestão como solução para tais
problemas. Com isso, deixa-se de revelar a questão mais decisiva de se explicitar a relação entre
a gestão do estado e as contradições sociais pelo motivo de que a “administração política” tem
assumido o ponto de vista da própria gestão do estado.

Em seguida retomaremos as considerações de Marx sobre a relação entre o estado e o


pauperismo para indicar a análise de realidade dos casos concretos evocados adiante. O objetivo
é mostrar os limites reais da gestão do estado por meio de medidas administrativas e os limites

278
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

do entendimento político daí derivado. Apontaremos para as determinações objetivas que


mostram que o estado capitalista não visa a nem pode superar as contradições que formam sua
base sem objetivar superar a si mesmo e que esse impulso verdadeiramente transformador
somente pode ter gênese “fora” do estado, a partir da organização das classes e frações das
classes dominadas.

Por fim, tomaremos as variadas considerações para explorar algumas implicações para a
“administração política” que pretende romper com o entendimento político e colocar as
contradições sociais como o real objeto da gestão do estado e da própria pesquisa nessa área.

2. Centralidade da gestão para a administração política como ponto de vista do estado

À primeira vista é uma obviedade constatar que a “gestão” ocupa lugar central para a
“administração”. Mas existem mais coisas nessa centralidade que revelam os limites de
apreensão da realidade ao assumir uma posição centrada em si mesma, não radical, que não
“agarra as coisas pela raiz”. Além do mais, se a gestão ganha centralidade, é preciso perguntar
como se expressam as contradições sociais uma vez que a “administração política” reivindica
um deslocamento em relação ao mainstream que, como todos sabem, é avesso à evocação de
tais contradições.

Tomando a “administração política” como um passo adiante, precisaremos perguntar sobre a


relação entre gestão do estado e as contradições sociais, relação que a “administração política”
precisa explicitar de suas próprias entrelinhas. Mas vejamos primeiro como a “administração
política” insinua essa relação, embora tome por central a “gestão” ao invés das próprias
contradições.

Essa centralidade, para o chamado mainstream, é mais do que uma determinação de objeto de
estudo como tende a ser para a “administração política”. Afinal, não é novidade alguma o
interesse no estudo da prática administrativa no intuito de aprimorar a “eficácia organizacional”
– todo o movimento do pensamento administrativo responde de modos variados ao problema
da produtividade do trabalho nas diferentes fases de desenvolvimento do capitalismo. O curioso
é aquilo que vai além desse interesse e que coincide com uma absoluta apologia, além da
promoção de uma espécie de redução dos complexos problemas sociais à própria “gestão”.
Em suma, trata-se de uma centralidade da “gestão” mesmo para a “administração”
marcadamente do mainstream; algo que, portanto, não serve à distinção frente à “administração
política”.

Podemos chamar a atenção para um exemplo. Peter Drucker consegue aglutinar tanto a apologia
quanto a redução. Num artigo muito conhecido do público brasileiro, o austríaco comenta que
“a administração tem sido a atividade vitoriosa por excelência nestes últimos cinquenta anos –
mais até do que a ciência” (1986, p. 7). Frise-se: “mais até do que a ciência”. Avalia a
administração na qualidade de mediação potencial e não contraditória para a realização dos fins
comuns, ao afirmar que “a administração precisa tornar-se o instrumento pelo qual a diversidade
cultural possa atender às finalidades comuns da humanidade” (1986, p. 18). Além da apologia
aberta e sem disfarces, intui ser portador de exagero embora ignore a própria intuição: “pode-
se dizer, sem muito exagero de simplificação, que não existem países subdesenvolvidos.
Existem apenas países subadministrados” (1986, p. 19). Todo o complexo de problemas

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

envolvido no desenvolvimento nacional é para ele redutível ao modo como as coisas são enfim
administradas, pois “toda a nossa experiência em desenvolvimento econômico prova que a
administração é o principal propulsor e que o desenvolvimento é uma consequência” (1986, p.
20). Vê-se que todos os problemas sociais são reduzidos à “administração”, à “gestão”; saem
de cena as contradições sociais e a “administração” aparece como a potência resolutiva.

Por que motivo podemos encontrar semelhante movimento nas principais elaborações da
“administração política”? Evidentemente não se trata da mesma e exata questão. Basta saber
que existe na “administração política”, de maneira totalmente aberta e declarada, uma
propositura distinta do chamado mainstream. A demarcação da “administração política” segue
pelo caminho do “fazer científico” e pela ampliação da consciência frente aos problemas a
serem enfrentados. Mas não se questiona acerca das efetivas potencialidades da própria
“gestão”; presume a “gestão” como força maior, no mesmo talhe da linha frente a qual pretende
se diferenciar:

Evidentemente que outros espaços de fazer ciência da administração surgiram nas


últimas duas décadas, pelo menos. Isto de certa maneira vem “furando o cerco” da
hegemonia do mainstream, principalmente de origem anglo-saxã. É crescente a
consciência política e científica de que os fenômenos sociais, a dinâmica econômica,
com manifestações de crises periódicas, e a dinâmica ambiental, exigem, também, da
ciência da administração uma capacidade de respostas, científica e técnica, para que a
humanidade enfrente os desafios impostos pela degradação social e da natureza que o
regime de produção continua a impor (Gomes, 2012, p. 8)

Pressuposta como capaz de dar tais respostas, a semelhança com o próprio mainstream do qual
se pretende distanciar não é pouco visível. Essa redução das contradições à “gestão” pode ser
reforçada por outros aspectos que revelam que a “ruptura” com o mainstream se dá num plano
meramente conceitual e termina por enfatizar a mesma finalidade comum abstratamente posta
tal como as “finalidades comuns da humanidade” em Drucker:

A compreensão dessa ruptura instrumentalista deve ser um dos fundamentos básicos


dos pressupostos da administração política. Então, as interfaces entre as relações das
razões instrumentais e subjetivas constituem, neste livro, um pressuposto básico da
estruturação da Administração Política para privilegiar um plano nacional com fins
societais de desenvolvimento humano comum. (Santos, 2009, p. 77).

Há que se enfatizar novamente que a ruptura é dada no plano conceitual, adicionando uma
“razão subjetiva” à “instrumental” e tomando isso por autêntica ruptura. Não obstante, é
possível afirmar um “desenvolvimento humano comum” apenas de maneira abstrata e sem
lastro real na medida em que retira de cena as contradições sociais. Ora, como é possível um
“desenvolvimento” dessa natureza pressupondo existente uma sociabilidade com uma
distribuição dos meios de produção da riqueza que põe as condições para a negação do
“desenvolvimento humano comum”, uma sociabilidade cuja lógica é a acumulação privada e
que não sucumbe às nossas conjecturas?

Na consideração crítica do mainstream, acusado de “conceber a gestão como um fim em sim


mesmo”, a “administração política” se coloca noutra direção, requerendo que a “administração”
seja “um meio para se alcançar resultados materiais em uma sociedade mais igualitária”
(Gomes, 2012, p. 17-8). Poder-se-ia fazer essa exigência da “administração”? Teria ela essa
potência aqui pressuposta? Com a diferença de que esse sentido “igualitário” esteja ausentado
do mainstream, mantem-se pressuposta a “gestão” como mediação central da realidade, seja

280
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

como verdadeira força motriz para o desenvolvimento econômico, seja como mediação para
uma “sociedade igualitária”.

Destaquemos ainda mais essa centralidade da “gestão” para a “administração política”, pois nos
ajuda a revelar a posição social de sua propositura. Podemos ler que há uma “valorização da
“gestão” como categoria essencial da administração” e que essa centralidade permite revelar o
verdadeiro “objeto de estudo da administração como campo do conhecimento” (Gomes, 2012,
p. 11). Sem volteios, “a gestão constitui-se no objeto próprio da administração política” (Santos,
2009, p. 61). Trata-se, pois, da “forma pela qual o Estado se organiza e se estrutura para gerir
o processo das relações sociais de produção” (Santos; Ribeiro, 1993, p. 106). Em outros termos,
importa a gestão estatal das relações de produção, do estado como o demiurgo da sociedade.
Embora existam outras nuances, como o imediato locus da produção econômica, é a gestão
estatal das relações de produção o núcleo duro da propositura da “administração política”.

É preciso esclarecer tais “relações sociais de produção”. Ora, não estão aí colocados a divisão
da propriedade dos meios de produção, o relacionamento entre capital e trabalho, o movimento
contraditório da produção do valor e, portanto, os mecanismos para a acumulação privada da
riqueza e a consequente ampliação da desigualdade social apesar do progressivo aumento das
forças produtivas? É inegável que se trata da questão levantada antes acerca da relação entre a
gestão do estado e as contradições sociais. E é precisamente essa relação que não parece estar
totalmente consciente para a própria “administração política” ao manter a “gestão” como sua
centralidade.

Como existem aqui muitas questões importantes, retomaremos certos aspetos no próximo item.
Retemos nesse momento somente a insuficiência em revelar o verdadeiro ângulo da análise da
própria “administração política”. Trata-se em parte de um sujeito oculto. É possível revelá-lo:

/.../ fica evidente que a economia, particularmente a economia capitalista, é operada,


de forma deliberada, por um processo gestionário. É algo como se O Que Fazer
(tomado aqui como a definição das quantidades) nunca pudesse se viabilizar sem O
Como Fazer (compreendido como sendo os arranjos organizacionais e institucionais
necessários para viabilizar a produção das quantidades demandadas). Esse é o
momento em que a Economia Política caminha junto da Administração Política —
portanto é o momento em que se compreende de forma científica que a produção, a
sua realização e a sua distribuição não se efetivam em termos de resultados ótimos
sem uma concepção de gestão previamente estabelecida. (Santos, 2009, p. 90).

Fica dito o que precisa ser feito (“operar a economia capitalista”, na “definição das
quantidades”), o como pode ser feito (“arranjos organizacionais e institucionais”), mas quem
deve fazer não se explicita abertamente embora já saibamos ser o estado. Tendo, portanto, o
estado por tal sujeito, torna-se revelado o “ponto de vista da administração política”:

Os autores [Santos; Ribeiro, 1993], portanto, tiveram o mérito de romper com a


hegemonia das análises economicistas e da crítica da economia política. Avaliaram a
perspectiva histórica com um olhar que resgata a importância da administração como
campo da ciência social também preocupada em construir a crítica de seu ponto de
vista, ou melhor, do ponto de vista da administração política. Uma crítica que se
debruça sobre os aspectos essenciais da gestão das relações em uma sociedade
capitalista periférica e subalterna no jogo de poder internacional. Portanto, estava
dado o “pontapé inicial” do longo caminho metodológico-conceitual com a finalidade
de desenvolver o conceito de administração política com base nas transformações que
afligiam, sobretudo, o Estado, as relações de produção e o processo de acumulação
(Gomes, 2012, p. 12)

281
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A alegada ruptura com a “crítica da economia política” já é anúncio de uma posição social de
resignação frente o necessário processo de transformação para alguma “sociedade mais
igualitária”, como é aparentemente pretendido. É preciso reter, não obstante, que o “ponto de
vista da administração política” é o “ponto de vista” do estado capitalista e o fator
preponderante desse “ponto de vista” é a própria gestão do estado. Tudo se esclarece como
segue:

De logo, é importante precisar melhor o conceito de administração política que deve


ser compreendido no âmbito das relações sociais que se estabelecem para a
estruturação de formas de gestão da sociedade. Considerando que o Estado é o árbitro
dos sistemas de controle sociais (leis, normas, regulamentos etc.), então a gestão
social (ou seja, a administração política) termina por ganhar mais densidade no âmbito
do Estado, portanto, nas relações do Estado com a sociedade. Nesse caso, podemos
dizer que a administração política é a concepção de um modelo de gestão das relações
socais que tem por objetivo garantir certo nível de bem-estar, expresso nas garantias
plenas da materialidade (Santos, 2009, p. 37, nota 4)

Vê-se que o objeto é a gestão do estado e não as contradições sociais que a informam. Assim,
a “administração política” precisa explicar, então, o suposto interesse de um estado capitalista
em uma “sociedade mais igualitária”, como dito antes, ou em um “certo nível de bem-estar”,
agora de modo mais brando, sem processos transformadores agudos e revelar as possibilidades
reais nesses termos ou terá que assumir que se trata de uma forma diferenciada e não
revolucionária de organizar a mesma produção do valor que engendra as contradições que
“confrontam” o estado nessa elaboração da “administração política” (Veremos adiante que esse
“confronto” é, ao mesmo tempo, pressupor tais contradições existentes sem superá-las). Um
“modelo de gestão das relações sociais” explicita o interesse político-burocrático de administrar
os homens sem alterar as próprias relações entre eles.

Há o pressuposto de ser a gestão do estado o sujeito capaz de administrar o capital, humaniza-


lo, disciplina-lo, tendo em mira uma “sociedade mais igualitária”, de “certo nível de bem-estar”
e que mantém, no entanto, as condições da própria desigualdade que se pretende combater. Há,
igualmente, o pressuposto do estado como ente não contraditório, portador racional dos
interesses comuns. A “administração política”, frente a esses problemas práticos, precisa
explicar a si mesma ao revelar a relação entre a gestão do estado e as contradições sociais,
incluindo aí as classes sociais.

Tudo indica haver na propositura da “administração política” uma intenção de ruptura em


coexistência com a centralidade da gestão. Vê-se isso nos próprios termos empregados, pois
além da “sociedade mais igualitária”, “certo nível de bem-estar”, – lembrando em parte os
apelos do socialismo utópico do século XIX – é possível constatar que numa dada sociedade
capitalista “o que temos é uma administração política voltada para os interesses da base
econômica sob o domínio do capital”, de modo que “as necessidades reais da sociedade ficam
em segundo plano, subsumidas aos interesses do capital” (Gomes, 2012, p. 17). Se é audível
uma “crítica da economia política” – ainda que não se explique o que compõe de fato a
“sociedade –, a ruptura parece não transcender a intencionalidade e nem o plano meramente
conceitual, como já aludido. Fica sugerido um tipo particular de sincretismo visando acomodar
as contradições sociais ao invés de resolve-las. Como veremos, a centralidade da gestão é
índice desse problema. Ora, e o que é a gestão do estado senão uma dada ação por meio dos
aparatos administrativos, jurídicos e militares sobre as contradições e, portanto, uma
manifestação de supremacia na correlação de forças entre frações de classe sobre tal gestão
estatal?

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Em suma, parece existir na “administração política” uma apologia ligeiramente diferenciada,


mas em termos muito assemelhados àquela encontrada no mainstream que ela própria pretende
combater: de ser a capacidade administrativa do estado a potência necessária e suficiente ao
enfrentamento das mazelas sociais. Essa apologia é simultânea à redução das contradições e
complexos sociais à gestão do estado. É nesse sentido que a centralidade da “gestão” para a
“administração política” é índice desse pressuposto basilar, mas não inteiramente tornado
consciente pelas principais proposituras desse “campo do conhecimento”.

Assim, a relação entre a gestão do estado e as contradições sociais precisa ser trazida totalmente
à baila sob pena de se eliminar da análise as classes sociais e as frações de classe, isto é,
manifestação das contradições no plano econômico e político. É o que pretendemos desenvolver
a seguir.

3. Limites da razão política e impotência prática da gestão do estado

A “administração política” paga um pesado tributo a grande parte da tradição ocidental quando
o assunto é o estado. Com a tendência de tomar o estado como ente não contraditório e de ser
expressão do ponto de vista do estado, deixa de revelar a relação do estado com as classes
sociaisi. O estado, então, assume feições monolíticas e morais, sem fissuras e acima das classes
sociais (Cf. Marx, 2005). Daí decorre, por exemplo, a ideologia da burocracia de estado como
um aparato meramente técnico, supraclasse e sem relação com seus interesses. Em suma, a
“classe universal” de Hegel (2010), a qual alegadamente cuida do “interesse geral”.

É a luta política, no entanto, entre as classes e frações de classe que molda a própria gestão do
estado. E claro, existe a reciprocidade: que um dado modo de gestão do estado pode dar certo
rumo a tais contradições e antagonismos – sem, no entanto, resolve-los, como veremos a seguir.
A clássica afirmação de que “o executivo no Estado moderno não é senão um comitê para gerir
os negócios comuns de toda a classe burguesa” (Marx; Engels, 1998, p. 42) não contradiz a
correlação de forças entre as frações moldando a gestão do estado uma vez que as frações
dominantes da classe dos proprietários do capital tendem a imprimir seus interesses dada a sua
supremacia, mas não sem alianças e sem a acomodação das classes dominadas nem sem
conflitos internos às próprias classes dominantes. Não obstante certo formalismo lógico,
Poulantzas (1980) conseguiu expressar muito bem esse problema, da luta de classes e das
frações de classe no interior do próprio estado, incluindo seu aparato burocrático. Mas é preciso
evitar soluções esquemáticas que apelam excessivamente para o formalismo. Por isso, podemos
considerar o problema tal qual Lukács tematizou brevemente acerca do direito, mas que é
facilmente apreensível como um problema da “oficialidade” estatal para indicar a questão dos
antagonismos mais complexos:

Em primeiro lugar, muitas sociedades de classes estão diferenciadas em várias classes


com interesses divergentes, e não ocorre com muita frequência que a classe dominante
consiga impor em forma de lei seus interesses particulares de modo totalmente
ilimitado. Para poder dominar em condições otimizadas, ela precisa levar em conta as
respectivas circunstâncias externas e internas e, na instituição da lei, firmar os mais
diferentes tipos de compromissos. Está claro que sua extensão e magnitude exercem
influência considerável sobre o comportamento das classes que deles participam,
positiva ou negativamente. Em segundo lugar, o interesse de classe nas classes
singulares é, na perspectiva histórica, relativamente unitário, mas em suas realizações
imediatas ele muitas vezes apresenta possibilidades divergentes e, mais ainda,

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

avaliações divergentes por parte das pessoas singulares envolvidas, razão pela qual,
em muitos casos, a reação à legislação e à jurisdição não tem de ser unitária nem
dentro da mesma classe. Isso se refere, em terceiro lugar, não só às medidas que uma
classe dominante adota contra os oprimidos, mas também à própria classe dominante
(sem falar de situações em que várias classes participam da dominação, por exemplo
latifundiários e capitalistas na Inglaterra após a “Glorious Revolution” [Revolução
Gloriosa]). Abstraindo totalmente das diferenças entre os interesses imediatos do
momento e os interesses em uma perspectiva mais ampla, o interesse total de uma
classe não consiste simplesmente na sumarização dos interesses singulares dos seus
membros, dos estratos e grupos abrangidos por ela. A imposição inescrupulosa dos
interesses globais da classe dominante pode muito bem entrar em contradição com
muitos interesses de integrantes da mesma classe (Lukács, 2013, p. 233)

Apreendendo então que no interior do próprio estado se manifesta os conflitos mais complexos
entre as classes passa a ser decisivo compreender as relações de força e, nelas, a supremacia de
frações de classe e suas alianças. Nesse sentido, a “administração política”, como ponto de vista
do estado, é posição social na correlação de forças que molda essa gestão do estado, o modo
de funcionamento dos aparatos administrativos, jurídicos e militares os quais, por sua vez,
porquanto formam também camadas sociais nada desprezíveis (burocratas, tecnocratas, juristas
etc.), desenvolvem interesses sociais e realizam alianças com as frações de classe na luta
política.

Ora, a quem serve a “administração política” como posição ideológica? Vejamos.

Como vimos antes, tomada a “gestão” como o elemento decisivo, não menos importante é, no
entanto, a dimensão das relações sociais de produção. No interior dessas relações persistem
contradições e antagonismos, sem dúvida, não apenas aquele que demarca no âmago a produção
do valor, mas contradições inclusive entre as frações de classe no interior das próprias classes
sociais, como aludido acima, seguindo Lukács. Por isso, ao invés de situar, como faz a
“administração política”, seu objeto o modo como o estado se organiza para gerir tais relações,
seria mais essencial perguntar como o estado se relaciona com tais contradições sociais. É esta
a questão que precisa vir à baila.

Trata-se de uma questão fundamental para a qual a gestão do estado é uma parte da resposta.
Poderíamos dizer que esse é também o limite da “administração política” ao não apreender as
contradições em meio às quais está a própria gestão do estado incluída como o objeto central.
A categoria essencial da gestão do estado não é, portanto, a gestão do estado, mas as
contradições sociais em “oposição” à gestão do estado. Limitando-se à gestão do estado como
angulação da realidade, perde-se de vista precisamente a real função do estado e a relação desse
aparato administrativo, jurídico e militar frente às classes sociais.

A maneira mais segura é tomar da realidade concreta o modo como os estados mais
desenvolvidos e também os “periféricos” são geridos frente as contradições sociais. Com isso
conseguimos identificar também a relação da gestão do estado com tais contradições.

O que revelam os casos concretos, por exemplo, dos Estados Unidos da América ou da Suécia?
Para que seja possível uma rápida apreciação, tomemos o exemplo da desigualdade como uma
expressão mais visível das contradições de fundo, sobretudo a distribuição dos meios de
produção da riqueza. Como lidam com a desigualdade? Ambos se relacionam por meio de
medidas administrativas de ordem repressiva e assistencial, além de outras medidas de natureza
assemelhadaii iii. Mas, mesmo nesses países a desigualdade tem demonstrado tendência de
crescimento, como atesta a pesquisa de Piketty (2014) sobre a concentração da riqueza e a queda

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

geral dos salários. No Brasil encontramos algo diferente? As mesmas medidas administrativas
podem ser encontradas na atuação do estado frente aos problemas sociais, em particular a
desigualdade social. Programas, como o Bolsa Família, materializam políticas semelhantes das
encontradas em terras nórdicas ou estadunidenses e que não ultrapassam o momento da
circulação, do mercado de consumo, privilegiando, inclusive, o endividamento familiar. Quem
poderia afirmar que isso não é a procura por um “certo nível de bem-estar”?

Porém, é preciso perguntar: em algum desses países a desigualdade social foi eliminada? Não
é e nem pode ser objetivo do estado capitalista e de sua gestão a superação da desigualdade
social e é aqui que a “administração política” precisa questionar seus pressupostos acerca do
interesse do estado e da potência de sua atuação administrativa em meio à relação das classes
sociais e as contradições ao fundo. As razões para isso foram magistralmente expostas por Marx
nas Glosas críticas de 1844 e a ela devemos recorrer para, no esforço de síntese, apreciar os
limites da “administração política” como expressão dos limites da gestão do próprio estado, isto
é, da ação estatal frente as contradições sociais.

Em tais Glosas críticas Marx enfrenta a tese de Arnold Ruge, qual seja, a de que o rei da Prússia
implementou medidas administrativas e assistencialistas para combater o pauperismo e toma a
administração precisamente como fonte de falhas em razão de ser a sociedade alemã apolítica,
por não possuir um entendimento político desenvolvido da questão. Assim, a sociedade alemã
não detecta a “penúria dos distritos fabris como um problema universal”, nas palavras de Ruge
(Marx, 2010, p. 25-6), por ser um país apolítico.

Marx procura mostrar, em interdição à tese de Ruge, que a implementação de medidas


administrativas e a atribuição de falhas a elas é um dos resultados comuns da ação política, pois
a “administração é a atividade organizadora do estado” (Marx, 2010, p. 39). Insiste que a
implementação de medidas administravas são impotentes para a resolução das “mazelas
sociais” e que quanto maior for o entendimento político, menos se reconhece quais são de fato
as causas dos problemas sociais enfrentados. Vejamos isso mais de perto.

Essas constatações são retiradas da análise dos casos concretos da Inglaterra, principalmente,
mas também da França e da Alemanha, nos quais a questão decisiva é determinar o nexo
objetivo entre o pauperismo e os estados nacionais. Limitando-nos ao caso inglês, diz Marx:

Admita-se que a Inglaterra seja um país político. Admita-se, ademais, que a Inglaterra
seja o país do pauperismo, tendo inclusive esse termo origem inglesa. Examinar a
Inglaterra constitui, portanto, o experimento mais seguro para obter conhecimento
sobre a relação entre um país político e o pauperismo. Na Inglaterra, a penúria dos
trabalhadores não é parcial, mas universal; ela não se limita aos distritos fabris, mas
se estende aos distritos rurais. Nesse país, os movimentos não se encontram em fase
de surgimento, mas são periodicamente recorrentes há quase um século. Ora, como a
burguesia inglesa, além do governo e da imprensa a ela associados, compreendem o
pauperismo? (Marx, 2010, p. 30)

A Inglaterra se apresenta como o ponto mais desenvolvido da relação entre o estado e o


pauperismo. É desse caso concreto que Marx retira as determinações mais centrais do problema
e que revelam os limites da atuação do estado frente as contradições sociais no século XIX.

Marx analisa as decisões parlamentares, as divergências políticas entre os partidos (um


enxergando no outro as causas das mazelas sociais), materiais da economia política, relatórios
médicos, debates públicos pela imprensa. A análise de realidade empreendida, que persegue e
circula o nexo objetivo entre estado e pauperismo, pôde revelar como segue:

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A primeira coisa que a Inglaterra tentou, portanto, foi acabar com o pauperismo por
meio da beneficência e de medidas administrativas. Depois, ela não encarou o avanço
progressivo do pauperismo como consequência necessária da indústria moderna, mas
como consequência do imposto inglês para os pobres (Marx, 2010, p. 34-5)

Primeiro, medidas administrativas; depois, culpabilização dos pobres pela pobreza. Com a
inspeção do caso inglês, Marx demonstra que o combate à pobreza por meio das medidas
administrativas é a conversão dos problemas sociais em objeto de administração, o que tem
especial importância para nossa argumentação e para a explicitação dos limites da
“administração política”:

no desdobramento do processo, apesar das medidas administrativas, o pauperismo foi


tomando a forma de uma instituição nacional, tomando-se, em consequência,
inevitavelmente em objeto de uma administração ramificada e bastante ampla, uma
administração que, todavia, não possui mais a incumbência de sufocá-lo, mas de
discipliná-lo, de perpetuá-lo. Essa administração desistiu de tentar estancar a fonte do
pauperismo valendo-se de meios positivos; ela se restringe a cavar-lhe o túmulo,
valendo-se da benevolência policial, toda vez que ele brota da superfície do país
oficial. O Estado inglês, longe de ir além das medidas administrativas e beneficentes,
retrocedeu aquém delas. Ele se restringe a administrar aquele pauperismo que, de tão
desesperado, deixa-se apanhar e jogar na prisão (Marx, 2010, p. 35)

Trata-se, no último caso, de referência às Workhouses inglesas. O pauperismo precisa, pois, ser
analisado em suas condições reais para a chegada à determinação de que o estado não pode
resolver tais contradições sem “suprimir a si próprio” (2010, p. 39), disse Marx, porque está
assentado nessas contradições. As medidas administrativas, portanto, ou, o que é o mesmo, a
gestão do estado, não visa a superação das mazelas sociais. Administrá-las significa preservá-
las a níveis aceitáveis, toleráveis, em “certo nível de bem-estar”, que não agucem os ânimos e
nem desperte a ameaça de impulsos revolucionários. É preciso dizer à “administração política”:
De te fabula narratur! A partir dessa análise de realidade, Marx revela que a administração
dos problemas sociais é o próprio limite do estado que converte tais contradições em objetos de
administração:

/.../ na medida em que os Estados se ocuparam com o pauperismo, restringiram-se às


medidas administrativas e beneficentes ou retrocederam aquém da administração e da
beneficência. O Estado pode agir de outro modo? O Estado jamais verá no "Estado e
na organização da sociedade" a razão das mazelas sociais, como exige o prussiano do
seu rei. Onde quer que haja partidos políticos, cada um deles verá a razão de todo e
qualquer mal no fato de seu adversário estar segurando o timão do Estado. Nem
mesmo os políticos radicais e revolucionários procuram a razão do mal na essência
do Estado, mas em uma determinada forma de Estado, que querem substituir por outra
forma de Estado (Marx, 2010, p. 38)

O estado não pode agir de outro modo, pois não se revela ao próprio estado as causações
primárias dos problemas que supostamente combate. Está posta já o limite da razão política
que possui um limite real, dadas as condições de possibilidade do próprio entendimento
político. Vejamos primeiro tal limite real antes de retomarmos o limite daí derivado da razão
política:

O Estado não pode suprimir a contradição entre a finalidade e a boa vontade da


administração, por um lado, e seus meios e sua capacidade, por outro, sem suprimir a
si próprio, pois ele está baseado nessa contradição. Ele está baseado na contradição
entre a vida pública e a vida privada, na contradição entre os interesses gerais e os
interesses particulares. Em consequência, a administração deve restringir-se a uma

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

atividade formal e negativa, porque o seu poder termina onde começa a vida burguesa
e seu labor. Sim, frente às consequências decorrentes da natureza associal dessa vida
burguesa, dessa propriedade privada, desse comércio, dessa indústria, dessa
espoliação recíproca dos diversos círculos burgueses, frente a essas consequências a
lei natural da administração é a impotência (Marx, 2010, p. 39)

Como o estado tem por base as próprias contradições, depende delas e existe em relação a elas,
a administração é impotente no sentido de sua superação. O limite da administração, portanto,
é a perpetuação das contradições que são sua base. O impulso verdadeiramente transformador
da realidade precisa ser externo ao estado, nasce necessariamente externo a ele, tem “alma
social”, mas o estado mesmo não pode assumir essa sua impotência, da mesma forma que tal
impotência não pode ser revelada pelo mainstream nem pela “administração política” que o
combate:

Se quisesse eliminar a impotência de sua administração, o Estado moderno teria de


eliminar a atual vida privada. Se ele quisesse eliminar a vida privada, teria de eliminar
a si mesmo, porque ele existe tão somente como antítese a ela. Porém, nenhum vivente
julgará que as deficiências de sua existência estejam fundadas no princípio de sua
vida, na essência de sua vida, mas sempre em circunstâncias exteriores à sua vida. O
suicídio é antinatural. O Estado não pode, portanto, acreditar que a impotência seja
inerente à sua administração, ou seja, a si mesmo. Ele pode tão somente admitir
deficiências formais e casuais na mesma e tentar corrigi-las (2010, p. 40)

Assim, os limites dessa atuação do estado, atuação político-administrativa, revelam-se não pela
hipostasia de argumentos presos a pressupostos conceituais, não pelo valor mais ou menos
heurístico de uma elaboração ideal, mas se ancora nas determinações objetivas que revelam a
análise de realidade do caso concreto.

Essa análise mostra, em particular, aquilo já anunciado na crítica da filosofia especulativa de


1843, isto é, de que “a relação da indústria, do mundo da riqueza em geral, com o mundo
político, é um dos problemas fundamentais dos tempos modernos” (Marx, 2005, p. 149):
reciprocidades que não se dão sem que a terrenalidade da sociedade civil-burguesa seja o fator
pressuposto do estado; trata-se de “apreender o seu objeto sob o seu objeto” (idem). O estado
converte o pauperismo em objeto de administração e, longe de superá-lo, perpetua-o como tal
pressuposto. O estado não pode superar o pauperismo e demais contradições sem superar a si
mesmo, como dito. E qual é o estado que por si mesmo entrevê sua própria superação?
Nenhum...

Agora podemos retomar a questão do entendimento político, da razão política, uma vez que já
ficaram à mostra os limites objetivos que formam as condições de possibilidade para tal
entendimento e ajudam a revelar como a “administração política” se move dentro desse
entendimento e, portanto, também como uma posição ideológica de tipo particular:

Quanto mais poderoso for o Estado, ou seja, quanto mais político for um país, tanto
menos estará inclinado a buscar no princípio do Estado, ou seja, na atual organização
da sociedade, da qual o Estado é expressão ativa, autoconsciente e oficial, a razão das
mazelas sociais e a compreender seu princípio universal. O entendimento político é
entendimento político justamente porque pensa dentro dos limites da política. Quanto
mais aguçado, quanto mais ativo ele for, tanto menos capaz será de compreender
mazelas sociais. /.../. O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral, ou
seja, quando mais bem-acabado for o entendimento político, tanto mais ele acredita
na onipotência da vontade, tanto mais cego ele é para as limitações naturais e
intelectuais da vontade, tomando-se, portanto, tanto menos capaz de desvendar a fonte
das mazelas sociais (Marx, 2010, p. 40-1)

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Dado que o estado não pode eliminar as contradições que são sua base sem eliminar a si mesmo,
o entendimento político acerca dessas contradições não ultrapassa a própria política como força
de superação dessas contradições. Mas a materialização dessa política se dá pela administração
do estado: vontade política e impotência da administração, eis o corolário da razão política
operante nas suas condições objetivas de possibilidade.

O entendimento político “pensa dentro dos limites da política” e a administração é irresolutiva


das contradições que são a base do estado, perpetuando-as como objetos de administração. Uma
razão que não desvenda a fonte das mazelas sociais implica medidas administrativas como
limite da atuação do estado perpetuando as contradições que são seu pressuposto. No limite,
atende aos interesses das classes dominantes por preservar no seio da sociedade uma dada
distribuição dos meios de produção da riqueza, uma distribuição tomada como dada por tais
medidas administrativas. Quando muito avançadas – como é o caso da propositura política da
“administração política”, isto é, bem para além da repressão direta –, tais medidas administravas
encontram no sincretismo seu limite filosófico e nas políticas distributivistas no plano do
consumo/circulação seu limite prático, deixando inteiramente intactas as contradições
estruturais, pois supõe como necessária e sempre necessária uma acomodação dos
antagonismos, nunca sua efetiva superação.

Mas apenas a organização das massas e classes dominadas pode impor uma alteração real nas
relações sociais de produção e, por decorrência, uma alteração na atuação do estado frente a
tais relações contraditórias no sentido de destruí-las (Cf. Paço Cunha, 2016). Em suma, uma
ação política que visa superar a própria política porque entrevê a necessária superação das
contradições que formam sua base real. Isso é algo impossível para um “modelo de gestão das
relações sociais”, para a gestão do estado partindo de si mesma e que toma as contradições
como dadas, que não visa a sua própria superação como estado. Sobretudo porque a correlação
de forças dos interesses da própria burocracia de estado e dos proprietários do poder econômico
não põe nem pode pôr como horizonte a descontinuidade das relações de produção e do próprio
estado do capital.

4. Considerações finais: algumas implicações para a administração política

Com a ajuda dessas considerações ficam expostas problemáticas que a “administração política”
precisa enfrentar. Algumas delas podem ser consideradas, sem a pretensão de esgotá-las.

É importante destacar que a categoria essencial da gestão do estado são as contradições sociais
e não a sua própria gestão. Esse é seu real objeto, seus pressupostos convertidos em objeto de
sua administração. A “administração política” é um tipo particular de ideologia (com marcas
de sincretismo) dessa gestão do estado sobre as contradições. Nesse sentido, a centralidade da
gestão para a “administração política” revela que seu ponto de vista é o aperfeiçoamento da
gestão do estado como tal existente, deixando intactas as contradições ao fundo: a relação entre
as classes, o problema da produção do valor, da propriedade sobre os meios de produção. O
passo adiante da “administração política”, porém, em relação ao mainstream pode ser
exemplificado pelo tipo de pergunta que se faz:

Os problemas da Administração Política possuem um elevado grau de generalidade e


abstração que consistem em responder às seguintes questões: Como devemos

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organizar o sistema produtivo de uma sociedade? Como os agentes econômicos agem


dentro desse sistema? Qual a melhor forma para distribuir a riqueza produzida nesse
sistema? Quem deve consumir a riqueza gerada por essa sociedade? (Santos et al.,
2014, p. 189)

Passo adiante relativo, pois são questões aproximadas das de Saint-Simon, Fourrier e Proudhon:
deixam ligeiramente de lado o problema da distribuição dos meios de produção da riqueza por
se limitar demasiadamente ao plano da circulação e do consumo. Longe de dizer que essas
questões aventadas não tenham qualquer relevância, ocupa lugar central os conflitos
potencialmente engendrados em torno do como se dispor da apropriação do mais-trabalho.
Abandonando esse nível da realidade, o resultado é a reflexão limitada à esfera da circulação
da riqueza. Por isso, as medidas administrativas como materialização da gestão do estado, como
mostramos, toma a distribuição dos meios de produção como algo dado e acabado, como “lei
natural”. É sintomático que essa distribuição não figure entre os “problemas da Administração
Política”, entre as perguntas que ela faz com “elevado grau de generalidade e abstração”. Talvez
esteja aí um dos pontos a serem observados: passar à materialidade, aos nexos objetivos por
meio dos quais se move a realidade concreta.

Assim, ao depositar toda a energia na vontade política que não transcende os limites da própria
política e na impotência da administração em anular as contradições, certo nível de mal-estar é
o real objeto da gestão do estado. A “administração política” precisa “apreender o seu objeto
sob o seu objeto”, isto é, as contradições que formam a base real da gestão do estado. Mantendo-
se a centralidade da gestão para a “administração política” é colocar-se entre espelhos paralelos
e ver a si mesma tendencialmente ao infinito ou presa nos limites das angulações possíveis...

Limitando-se à gestão do estado como angulação da realidade, perde-se de vista precisamente


a real função do estado e a relação desse aparato administrativo, jurídico e militar frente às
contradições e classes sociais. Não revelar o objeto ao fundo, implica que a “administração
política” pressupõe preservadas as relações sociais de produção que engendram os problemas
identificados. Mesmo o problema do desenvolvimento econômico perde todo o seu sentido real
uma vez desconectado da relação entre as classes sociais, porquanto “as classes e a luta de
classes modificam muito mais intensamente o desenvolvimento econômico que a interação com
qualquer outro complexo” e que “obviamente é o desenvolvimento econômico que, no final das
contas, determina as relações de forças das classes e, desse modo, também o desfecho das lutas
de classe, mas apenas em última instância ...” (Lukács, 2013, p. 270-1).

Portanto, tendo sido revelado, por meio de casos concretos evocados por Marx e exemplificados
contemporaneamente, que a administração por meio de medidas administrativas (quando não
repressivas) dos problemas sociais é o próprio limite do estado que converte tais problemas em
objetos de administração, e sendo a “administração política” o ponto de vista da gestão do
estado, ela é também posição ideológica dessa administração, desdobramento da onipotência
da vontade, um ideário da impotência prática frente as contradições que são sua base. Como tal
ponto de vista, a “administração política” insinua também ser uma síntese dos interesses da
burocracia estatal e das frações de classe ligadas ao capital, uma posição que não ultrapassa as
condições de sua própria gênese, que não tem consciente os interesses reais que mobiliza.

Como tal posição, a “administração política” implica um projeto político que comporta alguma
ambiguidade. Ou se assume que os casos concretos revelam um limite do estado na gestão, por
exemplo, da desigualdade, isto é, incapacidade tornada prática em superar tais problemas, ou
se presume que a administração política orbita um projeto de uma sociabilidade que ainda não
existe, que procura tirar sua poesia do futuro. Nesse último caso, seria imprescindível mostrar

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quais modificações seriam necessárias nas correlações de forças para que o estado pudesse
funcionar negativamente noutra direção, destruindo as relações sociais de produção que
engendram a desigualdade a ser combatida ao invés de tomar tais relações como dadas. Assim
o fazendo ela estaria refletindo interesses de classes para além do capital – contrários à
burocracia do estado e aos proprietários. Sem um tal projeto, teria que assumir um modo de
estado ligeiramente diferenciado, um “modelo de gestão das relações sociais” que pressupõe
inteiramente preservadas as contradições como tais existentes, quer dizer, pressupor a
continuidade das relações sociais de produção. Nessa última direção, teria que assumir como
projeto uma inquietante e improvável humanização do capital posto sob a vontade do estado.
Teria que pressupor a onipotência da vontade, pressupor ser o poder que domina, não ser o
servo do capital. Teria, por fim, que acertar as contas com a “incontrolabilidade do capital”
(Mészáros, 2002). E é aqui que parece haver maior aderência à propositura política da
“administração política”.

Nesse último sentido, mostra-se ainda como uma posição ideológica de conservação não pura
das relações sociais de produção. Conservação não pura em razão do talhe sincrético já aludido
ao incorporar aspectos de um desenvolvimentismo, de um “certo nível de bem-estar” – que é,
ao mesmo tempo, certo nível de mal-estar. Para enfatizar, administrar os problemas sociais ou
reduzi-los à gestão do estado, significa preservar tais problemas a níveis toleráveis, não
ameaçadores. Em suma, sincretismo que procura “conciliar o inconciliável” (Marx, 2013, p.
87). Essa ideologia serve, no entanto, à preservação das relações de classe. Atende, portanto,
aos interesses das classes dominantes, não obstante as suas oscilações por ter que acomodar os
antagonismos sob a rubrica da gestão do estado. Outros estudos já haviam constatado
recentemente algo semelhante:

/.../ não se trata [a “administração política”] de uma ideologia conservadora [pura], pois
não se puderam rastrear apologias ou defesas abertas ao capitalismo. Ao mesmo tempo,
embora se empreenda uma análise realista, não se trata de uma ideologia revolucionária,
pois a solução prática para os problemas não supera a ordem do capital. O que se verifica
então é que se trata de uma ideologia intermediária. Isto merece ser destacado haja vista
que a construção histórica do pensamento administrativo é toda ela permeada por
ideologias conservadoras. A administração política é certamente um campo progressista
neste sentido; sincrético, mas também progressista (Guedes, 2015, p. 14).

Como a superação das contradições que formam a base do estado não podem ser superadas sem
o estado superar a si mesmo, a “administração política” precisa questionar o entendimento
político dentro do qual vem se movendo. Ora, se as condições objetivas revelam a obstrução da
superação das contradições por meio de medidas administrativas, por meio da vontade política,
a insistência em permanecer circulando no interior do entendimento político revela uma
dificuldade de apreensão dos nexos reais por meio dos quais se movem as próprias contradições.
Nesse sentido, ser matrizada pela razão política é ser consequente a um politicismo:

o politicismo arma uma política avessa, ou incapaz de levar em consideração os


imperativos sociais e as determinantes econômicas. Expulsa a economia da política
ou, no mínimo, torna o processo econômico meramente paralelo ou derivado do
andamento político, sem nunca considerá-los em seus contínuos e indissolúveis
entrelaçamentos reais, e jamais admitindo o caráter ontologicamente fundante e
matrizador do econômico em relação ao político. Trata-se, está claro, de um passo
ideológico de raiz liberal (Chasin, 2000, p. 124).

Não queremos dizer que não existe consideração sobre a economia nos debates da
administração política. O que há é um pressuposto de que a economia é um objeto de
manipulação de acordo com uma vontade política que aparece sem mediação das classes

290
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

sociais. Os casos concretos aludidos, entretanto, dão conta de mostrar os limites da gestão do
estado frente às contradições.

Nessa direção, a análise dos casos concretos em que se relacionam a gestão do estado e as
contradições que formam sua base revela que, não obstante as diferenças, as medidas
administrativas são o modo mais central de atuação do estadoiv. Mas é a análise de realidade
dos casos concretos, seja do Brasil, dos Estados Unidos ou da Suécia, que revela tais questões,
a impotência da administração precisamente porque não visa nem pode visar à superação das
contradições. Assim, é imprescindível à “administração política” que pretende deixar o
entendimento político uma análise da realidade por meio daquilo que há de melhor quando o
assunto e a reprodução dos nexos objetivos das contradições moventes: o materialismo.

Com efeito, o desenvolvimento da “administração política” depende, a nosso ver, de uma crítica
à sua posição, de uma crítica da administração política, mas “em que tal crítica representa uma
classe específica”, qual seja, “a classe cuja missão histórica é o revolucionamento do modo de
produção capitalista e a abolição final das classes” (Marx, 2013, p. 87). Depende também e
nesse sentido de uma apreensão materialista do estado e das relações de classes sociais para
transpor os limites da tradição ocidental de identificar no estado um ente moral capaz de servir
de mediação não contraditória. Precisa romper os limites da razão política e identificar o
próprio estado como índice dos problemas e não a mediação mais indicada para a solução.
Nessa direção, depende de mais economia política e não menos, como parece ser o
direcionamento dado em alguns de seus textos basilares.

Referências

Chasin, J. Conquistar a democracia pela base. In: A miséria brasileira: 1964 – 1994: do golpe
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política para o campo da administração. Revista Interdisciplinar de gestão social. vol. 3, no. 2,
maio/ago, 2014.
i
É preciso enfatizar que isso se confirma tendencialmente haja vista a existência de outras elaborações que apontam
que “o conceito de Administração Política resgata tradições clássicas do pensamento crítico ao mesmo tempo que
questiona o paradigma referendado acerca da “neutralidade”, da supremacia da “técnica” e dos objetivos
“consensuais” do Estado. Afinal, o Estado não é neutro — dado que, reitere-se, está a serviço da reprodução da
sociedade de classes –, é constrangido pela lógica da acumulação capitalista, que é mutável e inclui
necessariamente o contexto internacional, e seus objetivos (do Estado) são contraditórios em razão da própria
contradição da sociedade de classes à qual sua existência é condicionada” (Fonseca, 2008). Ocorre, porém, que
essa tendência em marcar a relação entre as classes, o estado e a lógica do valor é algo mais marginal no conjunto
das principais formulações. É possível investigar se essas oscilações não são fruto de um estágio de
desenvolvimento da discussão em que não ficou totalmente esclarecida a diferença entre a “administração política”
e a crítica da administração política.
ii
https://www.usa.gov/benefits-grants-loans
iii
http://www.government.se/government-policy/social-care/
iv
Isso não significa que não existam estudos de casos concretos, como os anunciados acerca do Brasil e da Espanha
entre 1930 e 1970 (Ribeiro, 2008). Não obstante, persiste um tipo de tautologia. Compare a delimitação básica da
“administração política” comentada antes – “forma pela qual o Estado se organiza e se estrutura para gerir o
processo das relações sociais de produção” (Santos; Ribeiro, 1993, p. 106) – com o achado do caso concreto: “a
Administração Política assume uma perspectiva muito mais ampla e abstrata. Em síntese, entendemos que o
modelo de Administração Política vigente entre os anos 30 e 70 compreende a forma pela qual o Estado se
organizou e se estruturou para gestionar e executar o processo das relações sociais de produção, ou seja, para
responder às novas funções econômicas e sociais — sua “finalidade social”” (Ribeiro, 2008, p. 17). A pesquisa
dos casos concretos acaba encontrando aquilo que já é suposto, bastando inserir tais casos na delimitação básica
da “administração política”. Em suma, não basta analisar o caso concreto; é preciso extrair o nexo real entre a
gestão do estado e as contradições sociais.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A formação de administradores nas linhas de montagem de ilusões: crítica


da miséria intelectual nos cursos de Administração no Brasil

Thiago Martins Jorge


Faculdade de Economia, Administração e
Contabilidade de Ribeirão Preto (FEARP – USP)

Valquíria Padilha
Faculdade de Economia, Administração e
Contabilidade de Ribeirão Preto (FEARP – USP)

RESUMO

Nesse ensaio, após uma investigação da sociedade capitalista e da burguesia brasileiras - que
são demandantes da força de trabalho forjada nos cursos de Administração - passamos às
críticas da miséria intelectual das teorias administrativas e dos cursos de formação de gestores
no Brasil, os quais tem a finalidade de consolidar a hegemonia burguesa formando porta-
vozes dos interesses do mercado, desconsiderando completamente o processo histórico das
análises. O que constatamos não é a busca do aprimoramento da compreensão científica do
mundo, mas o seu obscurecimento. Argumentamos que tal falsificação do real transforma os
cursos de Administração - com seus infinitos estudos de casos - em verdadeiras linhas de
montagem de ilusões. Ilustramos nossa crítica com a análise da falsa harmonia na visão
sistêmica de Ruben Bauer. Concluímos que, ainda que seja um contrassenso imaginar que
esse quadro possa ser alterado sem profundas alterações nas macroestruturas da sociedade
brasileira, a discussão metodológica não perde importância. Nas escolas de gestão,
encontramos alunos e docentes dispostos a enfrentar essa miséria intelectual hegemônica com
a necessária clareza epistemológica.

1. A particularidade do capitalismo e da burguesia brasileira

Condição de possibilidade da atividade ideal, a vida societária responde


como fonte primária ou raiz polivalente pelas grandezas e falácias do
pensamento. De suas formas emanam carências e constrangimentos que
impulsionam ao esclarecimento ou, pelo contrário, conduzem ao
obscurecimento da consciência, em todos os graus e mesclas possíveis
(CHASIN, 2009, p. 108).
Como nos alerta Chasin, para entendermos a particularidade do ensino e da produção
teórica nos cursos brasileiros de Administração, faz-se necessário, primeiramente,
compreendermos a dinâmica social na qual eles estão inseridos e na qual devem atuar. Ou
seja, começaremos com uma rápida investigação das particularidades da sociedade capitalista
brasileira e, como não poderia deixar de ser, das particularidades da burguesia brasileira (que
é a principal demandante da força de trabalho formada nos cursos de Administração). Para
isso, recuperaremos, brevemente, o conceito de “via Colonial de objetivação capitalista para
o Brasil”, elaborado também por José Chasin - a partir do qual poderemos entender “a
dimensão particular da natureza atrófica do capital, assim como a especificidade histórica das
formas da dominação autocrático-burguesa em nossa formação social” (RAGO FILHO, 2010,
p. 8).
A via colonial ao capitalismo significa que “a gênese da burguesia brasileira está [na]
sua entificação agrária de tipo colonial, e não na ruptura com os ‘restos feudais’”. A partir
dela, “a formação do capital industrial” ocorre numa “configuração de subordinação estrutural

293
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

que não lhe permite marchar na efetivação de sua emancipação social” (RAGO FILHO, 2010,
p. 80).
Assim, ao contrário de países que percorreram a Via Clássica ao capitalismo –
Inglaterra, França e Holanda, ou seja, países cuja burguesia protagonizou tanto uma revolução
econômica quanto uma revolução política – o capitalismo brasileiro surge umbilicalmente
dependente do capital externo (Chasin prefere o termo “subordinado” ao termo
“dependência”). “Aqui, a evolução nacional não tem correspondência com a progressividade
social, vinga uma modernização excludente, onde, concretamente, há uma discrepância com a
progressividade social” (RAGO FILHO, 2010, p. 80). Em outras palavras, o capitalismo
brasileiro surge e se desenvolve sem conseguir andar sobre suas próprias pernas – para isso
ele demanda apoio do capital externo.
Enquanto até mesmo a burguesia alemã (cujo conservadorismo é amplamente conhecido
por influenciar duas guerras mundiais e que, no século anterior, não foi capaz de unificar
politicamente a Alemanha) realizou as “tarefas econômicas”, “a burguesia brasileira não
realizou nenhuma das duas tarefas, nem a econômica e nem a política”. Portanto, “o estado
nacional (uno) nosso não é uma iniciativa e uma realização da burguesia, mas é um produto
da colonização e da forma subordinada da independência. A nossa unidade é anterior à
unidade do verdadeiro capitalismo que é a industrialização, tal como foi a da França”
(CHASIN, 1988, p. 117).
Evidentemente que tal subordinação foi se reconfigurando ao longo dos anos, de tal
forma que, hoje, ela se faz marcante das seguintes formas: 1) “pela superexploração da força
de trabalho”; 2) “por meio de mecanismos de transferência de valor” aos países centrais -
incluindo “pagamento de juros, lucros, dividendos, etc.”; 3) “distribuição regressiva de renda
e riquezas”; 4) intensificação das desigualdades sociais (CARCANHOLO, 2014).
Em consonância a isso, podemos afirmar que a burguesia brasileira ocupa uma posição
subordinada frente aos seus pares dos países centrais. Não obstante, o seu surgimento e seu
desenvolvimento tornaram-na completamente refratária a qualquer ideia de revolução (ainda
que seja apenas um enfrentamento do capital externo).
Tal burguesia “nunca foi a cabeça de sua própria criação, e nunca aspirou a não ser não
ter aspirações. Não consumou suas luzes políticas, porque só abriu os olhos, quando estas já
estavam extintas” (CHASIN, 1985 apud RAGO FILHO, 2010, p. 80). Ao contrário da
burguesia holandesa, inglesa e francesa que defenderam, durante alguns séculos, pautas
revolucionárias e universais, diante do parasitismo da aristocracia, a burguesia brasileira “não
abandonou a salvação do mundo e os fins universais da humanidade, porque sempre só esteve
absorvida na salvação amesquinhada de seu próprio ser mesquinho, e seus únicos fins foram
sempre fins particulares” (p. 80). O próprio Chasin complementa, identificando os traços mais
marcantes da burguesia brasileira.
Este, filho temporão da história planetária [a burguesia brasileira], não
nasceu da luta, nem pela luta tem fascínio. De verdade, o que mais o
intimida é a própria luta, posto que está entre o temor pelo forte que lhe deu
a vida e o terror pelos de baixo que podem vir tomá-la. Toda revolução para
ele é temível, toda transformação uma ameaça, até mesmo aquelas que foram
próprias de seu gênero. É de uma espécie nova, covarde, para quem toda
mudança tem de ser banida. E só admite corrigendas na ordem e pelo alto,
aos cochichos em surdina com seus pares. De si para si em rodeio
autocrático. Não optou pela autocracia, nem a covardia foi de sua livre
escolha, meramente assumiu sua miséria (CHASIN, 1986 apud RAGO
FILHO, 2010, p. 80-81).

294
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Definido o caráter particular do capitalismo e da burguesia brasileira, precisamos ainda


identificar o papel que os administradores nele devem ocupar.
Recorrendo a Marx, Costa (2010, p. 153) nos lembra de que “a necessidade do trabalho
de superintendência e de direção surge onde o processo de produção tenha atingido ‘a figura
de um processo socialmente combinado e não se apresenta como trabalho isolado de
produtores autônomos’”. Nesse cenário, o trabalho de superintendência e direção pode
“aparecer sob a forma geral de comando de muitos indivíduos”, como na “atividade global da
oficina”, “ou sob modos de produção baseados na separação entre o produtor e os meios de
produção”. Neste caso, como “os produtores estão efetivamente separados dos meios de
produção”, “a união entre eles se realiza externamente”. Portanto, “quanto maior a antítese
entre o produtor direto e os proprietários dos meios de produção ‘mais importante o papel
desempenhado por esse trabalho de superintendência’”.
Ou seja, no capitalismo contemporâneo, os cargos de direção são terceirizados a
profissionais competentes que devem gerir os negócios da burguesia, enquanto
os donos do capital, aqueles que têm capital disponível para investir na
produção de mercadorias nos mais variados ramos, aparecem como donos do
mundo porque, de fato, de suas mãos sai a matéria prima capaz de
incrementar o processo produtivo. E como o capital portador de juros não
está comprometido diretamente com nenhum ramo específico de produção,
ele pode fluir livremente de um ramo a outro tão logo termine o seu contrato
e outro investimento tenha se tornado mais lucrativo (COSTA, 2010, p. 156).
Portanto, enquanto os detentores de capital podem optar, em resposta aos humores do
mercado, entre transformar o seu capital em capital produtivo - sem se envolverem na
produção - ou capital portador de juros, nas fábricas, aparentemente, “existem apenas
trabalhadores, os responsáveis pela produção diretamente e os que comandam o trabalho
alheio (considerados trabalhadores qualificados que exercem uma função específica)”
(COSTA, 2010, p. 155).
A partir disso, considerando o caráter tardio, “incompleto e incompletável” (CHASIN,
1989) do capitalismo brasileiro, juntamente com a natureza antirrevolucionária e parasitária
da burguesia nacional, podemos inserir as teorias administrativas e os cursos de formação de
gestores.

2. Teoria e ensino nos cursos brasileiros de Administração

Quando pensamos nos cursos de Administração, é necessário dizer que, em


conformidade com o quadro científico contemporâneo, eles apresentam os vícios típicos do
pensamento científico pós-1848, ou seja, apresentam os traços mais marcantes da “decadência
ideológica” da burguesia.
Até 1848, “a burguesia tem necessidade da verdade. Ela precisa da verdade para
constituir o seu mundo. Ser objetiva corresponde às suas necessidade[s] sociais. Ela então
efetiva uma cognição objetiva” (CHASIN, [1988?¹], p. 4). Contudo, após as agitações que
marcaram a década de 1840 - principalmente o ano de 1848 -, as quais, por um lado,
permitem a concretização da hegemonia burguesa em boa parte da Europa, de outro, marcam
o aparecimento da veia combativa do proletariado europeu - começa a ficar claro, para ele,
que a utopia burguesa significa, necessariamente, a distopia das demais classes.
Dessa forma, uma vez consolidada a hegemonia burguesa e “estruturada em todos os
níveis a sua dominação”, a busca pelo “conhecimento objetivo leva a abalar a sua posição de
dominação. Do ponto de vista intelectual, a verdade passa a ser inimiga de classe. O seu
conhecimento tem de passar a ser um conhecimento que veda a possibilidade da
objetividade”. Não se trata, assim, de uma mera questão de competência ou incompetência ou
de compromisso ou falta de compromisso individual, “é uma determinação coletiva de

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

classe”. De 1848 em diante, a burguesia, para continuar existindo e exercendo o seu domínio,
precisa “recusar até mesmo os princípios com os quais ela lidou e a partir dos quais ela
articulou a sua compreensão efetiva de mundo. Agora a sua compreensão de mundo tem de
ser no mínimo uma barragem ao entendimento” (CHASIN, [1988?¹], p. 4).
No plano científico, isso significa que enquanto “os ideólogos anteriores [a 1848]
forneceram uma resposta sincera e científica, mesmo se incompleta e contraditória”, os
ideólogos pós-1848 “foge[m] covardemente da expressão da realidade e mascara[m] a fuga
mediante o recurso ao ‘espírito científico objetivo’ ou a ornamentos românticos”. Ou seja, a
filosofia e as ciências tornam-se “essencialmente acrítica[s], não [vão] além da superfície dos
fenômenos, permanece[m] na imediaticidade e cata[m] ao mesmo tempo migalhas
contraditórias de pensamento, unidas pelo laço do ecletismo” (LUKÁCS, p. 62, 1968).
Uma das consequências dessa decadência científico-filosófica, identificadas por Lukács,
é a especialização do saber. Nas palavras do filósofo húngaro:
O fato de que as ciências sociais burguesas não consigam superar uma
mesquinha especialização é uma verdade, mas as razões não são apontadas.
Não residem na vastidão da amplitude do saber humano, mas no modo e na
direção de desenvolvimento das ciências sociais modernas. A decadência
ideológica operou nelas uma tão intensa modificação, que não se podem
mais relacionar entre si, e o estudo de uma não serve mais para promover a
compreensão da outra. A especialização mesquinha tornou-se o método das
ciências sociais. (...) Enquanto na época clássica havia um esforço no sentido
de compreender a conexão dos problemas sociais com os econômicos, a
decadência coloca entre eles uma muralha divisória artificial,
pseudocientífica e pseudometodológica, criando compartimentos estanques
que não existem senão na imaginação (LUKÁCS, p. 64 - 65, 1968).
Desse modo, hoje, é difundida de forma corriqueira, tanto na academia quanto fora dela,
a ideia de que é possível compreender cientificamente o complexo político de uma
determinada sociedade sem estudar a sua dinâmica social, ou que é possível entender a
dinâmica social sem estudar a sua economia. Nos cursos de Administração, essa crença
culmina no absurdo de se formarem gestores que devem atuar numa ordem societária que eles
mesmos não conhecem - fundada sobre uma dinâmica econômica que eles também não
compreendem -, como podemos constatar na análise de Nogueira (2007) – que, na contramão
disso, defendia um “ensino universal-teórico” – e na de Alberto Guerreiro Ramos (PIZZA
JUNIOR, 2010).
Portanto, o que constatamos, tanto no quadro geral quanto na particularidade dos cursos
de Administração, não é um processo de desenvolvimento ou aprimoramento da compreensão
científica do mundo, ou seja, uma aproximação ontológica ao real; mas sim o seu
obscurecimento.
Se o prisma gnosiológico toma sempre o fenômeno ideal pelo ângulo
negativo da falsidade ou da sociabilidade que limita a produção do saber, a
posição ontológica critica radicalmente essa concepção que descarta a
origem e a necessidade histórica, uma vez que busca a decifração dos objetos
como atividade sensível, em sua configuração social. Isto equivale a dizer
que a natureza falsa ou verdadeira das representações não brota do
movimento constitutivo da própria esfera subjetiva. As formas ideais jamais
possuem voo próprio, não tem autonomia nem história. É bom grifar isto,
porque, em larga escala, o traço especulativo é a marca do pensamento
contemporâneo, que continua a depositar no circuito próprio da
subjetividade o móvel da explicação, ou melhor dizendo, das interpretações
infinitas das coisas insondáveis. (RAGO FILHO, 2004, p. 4).
Contudo, não devemos encarar esse vício gnosiológico como um problema meramente
científico. Não podemos entender o programa dos cursos brasileiros de Administração sem

296
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entender a influência diretiva exercida pela burguesia nacional. Obviamente, que há uma
miríade de formas distintas que permitem essa intervenção – elas vão de formas mais tácitas
(indiretas) a formas bastante diretas. Neste segundo caso, podemos citar como exemplo a
Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP), da
Universidade de São Paulo. Nela foi criado um “Conselho Consultivo Externo” - “formado
por representante de empresas como Coca-Cola, Ilab Sistemas, Ice by Nice, British
Petroleum, Milano Calçados, Coplana, Arteris S/A, Atlantia Bertin Concessões, Ourofino,
Embraer, Votorantim, GasBrasiliano, entre outras, além de professores com atuação na USP,
no Insper e na Unesp” -, que, dentre outras atribuições, aponta “temas que a FEA-RP deve
debater e pesquisar nos próximos anos” (FEA-RP, 2015). Há uma clara intenção de subsunção
da universidade ao mercado, já que que o mercado determina o que os docentes dos cursos
universitários de gestão (inclusive de uma universidade pública, como a USP) devem ensinar
e pesquisar quando, em nosso entender, o caminho deveria ser, no mínimo, de mão dupla, ou
seja, os pesquisadores e docentes universitários deveriam também dizer aos empresários como
eles deveriam fazer a gestão de recursos, dinheiro e pessoas.
Já entre as formas indiretas de intervenção, podemos citar o poder que a burguesia
exerce ao definir o perfil dos alunos que serão contratados pelas principais empresas, bem
como na incorporação, pelas universidades, de métodos de avaliação típicos de empresas
privadas – os quais priorizarem análises unicamente quantitativas e subvalorizam as
atividades de ensino e pesquisa. Outro elemento que compõe o problema são os baixos
salários pagos pelas universidades públicas, se comparados com a média salarial do mercado
para profissionais ultra qualificados, ou as dificuldades orçamentárias para se efetuar uma
pesquisa de forma independente. Para superar essa dificuldade, legitimam-se as atividades
pagas de consultorias e de aulas em cursos de especialização, ministradas por docentes, as
quais, em regra, comprometem ainda mais a atividade de ensino e pesquisa – na mesma
medida em que fortalecem o poder de intervenção das empresas privadas e das fundações
privadas nas universidades públicas.
Nessa linha, Gurgel (2003) chama a atenção para a função prioritariamente de difusão
ideológica dos cursos de Administração. Por meio de uma interessante pesquisa - realizada
junto a alunos de cursos de Administração, Economia e Engenharia de Produção da UFF
(Universidade Federal Fluminense) e da PUC (Pontifícia Universidade Católica), no Rio de
Janeiro -, Gurgel submeteu tais alunos a 19 formulações correntes do mundo dos negócios. A
partir delas, o pesquisador verificava se havia distinções no grau de concordância, em relação
às formulações, entre os alunos de primeiro ano e os alunos no último período. Tais
formulações “expressam ideias veiculadas primordialmente nos centros acadêmicos
gerenciais e depois publicadas pelas revistas especializadas, além da literatura apologética e
didática, frequente nas escolas de gestão. Finalmente, são difundidas pelos periódicos
populares e magazines semanais” (GURGEL, 2003, p. 151).
O resultado foi que, entre os estudantes de Administração, das dezenove questões,
dezesseis delas apresentaram elevação da aceitação quando se compara as respostas dos
alunos dos primeiros períodos com as respostas dos alunos dos últimos períodos.
[Além disso], afirmações mais ousadas ainda, tal como a que encara o
desemprego como “chance de sucesso de um profissional competente” (Q.8),
vêem crescer sua acolhida entre os concluintes do curso de gestão. Operando
com o imaginário do empreendedorismo em seu nível mais elevado e até
irônico, a formulação, que tem apenas 17% de concordância entre os
primeiranistas, obtém aceitação em dobro, 34%, entre os formandos. É
também o caso de elogio à privatização (Q.19), cujo apoio cresce do
primeiro para os últimos períodos, ainda que com percentuais baixos: de
46% para 53%. Vale observar que o momento de aplicação dos questionários
coincidiu com a abertura da crise energética, quando as privatizações do

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setor foram fortemente condenadas. (...) No entanto, não evitou o fenômeno


para o qual chamamos a atenção, que se refere à hipótese de a formação dos
administradores induzir a uma maior adesão aos valores ideológicos que
constituem a consciência social neoliberal (GURGEL, 2003, p. 164).
Contudo, devemos pelo menos mencionar que essa manipulação não tem consequências
perversas somente no que tange ao afastamento da compreensão científica do mundo. Tais
falsificações do real transformam os cursos de Administração em verdadeiras linhas de
montagem de ilusões, produzindo em série novos “Lucianos de Rubempré” – personagem do
romance “Ilusões Perdidas” de Balzac. Em outras palavras, esses cursos apresentam aos
estudantes uma narrativa (que mais se parece a um conto de fadas) protagonizada por
“empreendedores” e “CEOs”, repleta de “cases de sucesso” e “projetos inovadores” – todos
eles, é claro, dentro dos limites da “ética” e da “responsabilidade social e ambiental das
empresas”. No entanto, anos mais tarde, alguns ex-alunos percebem que a ética dessa
narrativa nada mais é do que a ética desumanizadora do mercado, que a responsabilidade
social das empresas é apenas a responsabilidade em se garantir a maior lucratividade possível
aos seus acionistas, e que, eles mesmos (os administradores) se tornaram meras
personificações de interesses alheios – os quais demandam total dedicação, total ausência de
escrúpulos, total subserviência e hipocrisia -, enquanto puderem ser úteis a tais interesses.
Porém, com isso, não estamos afirmando que o conservadorismo que marca os nossos
tempos, a ignorância frente ao real, bem como o amesquinhamento da vida individual são
consequências produzidas exclusivamente pelos cursos de Administração, ou pelas
universidades ou pela mídia burguesa. Como Marx e Engels afirmam, contundentemente, n’A
Ideologia Alemã: “o mascaramento na linguagem só adquire um sentido quando é a expressão
inconsciente ou consciente de um mascaramento real” (2007, p. 396). Portanto, também
estaríamos nos afastando da realidade ao vermos na ideologia “tanto a força motriz como o
objetivo de todas as relações sociais, enquanto ela é tão somente sua expressão e seu sintoma”
(p. 405). Obviamente, que é um sintoma que agrava ainda mais o quadro clínico. Mas, ainda
assim, como já indicamos anteriormente, os cursos de Administração (bem como as
universidades em geral, e a mídia burguesa) só podem ser compreendidos diante das carências
e dos temores da burguesia no quadro do capitalismo contemporâneo.

3. A miséria científica e a impotência prática dos teóricos brasileiros da Administração

Nesse cenário, e apesar do brilhantismo na produção e venda de ilusões, os cursos de


Administração e, mais acentuadamente, os cursos brasileiros de Administração, têm
demonstrado, cada vez mais, a sua incompetência em até mesmo formar guardiões da ordem
do capital. Uma vez que, definitivamente, abandonaram o contato com o real e se debruçarem
sobre ilusões e “abstrações irrazoáveis” (CHASIN, 2009), tais cursos renunciam à
possibilidade de formarem profissionais capazes de, ao compreenderem a dinâmica do
mercado e da sociedade contemporânea, encontrarem formas eficazes de driblarem as
barreiras que obstruem a reprodução da própria ordem do capital.
Dessa forma, enquanto em períodos de prosperidade econômica, tais profissionais
tornam-se porta-vozes da prosperidade permitida pela dinâmica capitalista, em momentos de
crise eles se veem tão preparados para explicá-la quanto homens pré-históricos diante de um
eclipse solar. Portanto, de porta-vozes da prosperidade econômica, num momento de crise,
eles se rebaixam à condição de porta-vozes da ignorância, da incapacidade de explicarem e
intervirem na real dinâmica da sociedade capitalista contemporânea.
Uma boa medida deste problema nos é indicada por Harvey (2011). Após apresentar os
vários problemáticos diagnósticos produzidos pelos economistas, após a crise de 2007, bem
como as suas respectivas incapacidades em a preverem, Harvey relata como sua atenção foi
atraída para este problema: “fui realmente direcionado para isso, por uma coisa que aconteceu

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

na Escola de Economia de Londres há cerca de um ano e meio, quando Sua Majestade, a


Rainha, perguntou aos economistas: ‘Como é que não viram que isto ia acontecer?’”. Para
responder ao questionamento da Rainha, a Academia Britânica escreveu uma “carta
fabulosa”. Nela, eles relatavam que “muitas pessoas dedicadas, inteligentes e espertas
dedicaram as suas vidas a trabalhar nos aspectos deste assunto muito seriamente, mas a única
coisa que nos passou ao lado foi o risco sistêmico”. Em outras palavras, apesar de todos os
seus modelos e categorias de análise, eles ignoravam a dinâmica e as contradições próprias da
sociabilidade capitalista, ou, na perspectiva dos economistas britânicos, a realidade insistiu
em não se dobrar à vontade da burguesia e de seus porta-vozes.
Nesse cenário, parece até um elogio desmesurado dizer que os cursos de Administração
formam “guardiões da ordem vigente”, uma vez que o mínimo que se espera de guardiões é a
capacidade de lutarem bravamente pela defesa de seus protegidos. Enquanto isso, o que
vemos na prática, principalmente aqui no Brasil, é a reprodução acrítica das teorias
econômicas (entre elas, aquelas que “passaram ao lado do risco sistêmico”) e dos manuais
produzidos no exterior – tais como “a bíblia do marketing”, como se autodenomina o
calhamaço “Administração do marketing” de Philip Kotler e Kevin Keller.
A obra de Kotler e Keller (2006) é, inclusive, um bom exemplo da miséria científica
que inspira o campo da Administração. O livro é recheado com “cases de sucesso”,
selecionados para ilustrar a eficácia científica das práticas ali contidas. Obviamente que, em
nenhum momento, é feita uma análise cuidadosa das particularidades que permitiram o
sucesso de cada “case”, mas sim reduzem o seu sucesso a um único fator: aplicação das
técnicas apresentadas ao longo do livro. O caráter anticientífico (antiontológico) desse
procedimento fica nítido quando o contrastamos à formulação chasiniana.
Por decorrência, ignorar a diferença essencial é perder de vista os objetos
reais e com isso o horizonte do pensamento de rigor, tal como os
economistas que naturalizam e perenizam a sociedade capitalista, pondo de
lado exatamente o que nela é específico. /.../ A eliminação da diferença
essencial, em suma, mutila a reprodução ideal do ser-precisamente-assim,
indeterminando o objeto pelo cancelamento de sua processualidade
formativa e especificação histórica (CHASIN, 2009, p. 125-126).
O que vemos, portanto, ora de forma mal-intencionada, ora por pura ignorância, é a
redução de toda a complexidade da realidade contemporânea a uma questão volitiva, ou a uma
mera questão de competência ou incompetência dos gestores em aplicar as técnicas
apresentadas nos manuais. Em outras palavras, nos cursos de Administração difunde-se a
ideia de que o sucesso ou fracasso de um empreendimento deve-se a exclusivamente a uma
questão de competência, disciplina e capacidade de inovar; ignorando todas as determinações
que dão concreção para a realidade. Nas palavras de Marx (2008, p. 258): “o concreto é
concreto porque é uma síntese de múltiplas determinações, isto é, é unidade do diverso”.
No entanto, a hipótese que aqui apresentamos é de que esse quadro é ainda mais grave
na particularidade brasileira. Como mencionamos anteriormente, a burguesia brasileira
apresenta uma vocação para a covardia e para o conservadorismo. O resultado disso é um
constante temor em relação às contradições próprias da dinâmica capitalista, a partir do qual
podemos iluminar o ímpeto em obscurecer a própria realidade que marca os cursos de
Administração no Brasil.
Assim sendo, num quadro de grave crise – em que a necessidade de apreender a
dinâmica da realidade se torna imprescindível para a gestão eficaz dos negócios -, enquanto
universidades estrangeiras (como o MIT, Massachusetts Institute of Technology) recorrem à
analítica marxiana e à economia política clássica (GALINDO, 2016; OPEN SYLLABUS,
2016; THE GUARDIAN, 2012), as universidades brasileiras seguem encobrindo o conceito
de classes sociais por meio de conceitos como o de “custo agente principal” - o qual reduz
conflitos sociais a meros conflitos individuais -, quando ensinam que os trabalhadores devem

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

ser chamados de “colaboradores”, bem como quando defendem o negociado sobre o legislado
nas relações de trabalho - já que as leis trabalhistas, supostamente, engessam o avanço das
empresas (SOUTO MAIOR, 2015).
Em outras palavras, ao invés de buscarem as legalidades e causalidades que constituem
a dinâmica capitalista contemporânea, os intelectuais brasileiros da Administração seguem
fabricando novas categorias de análise, a partir das quais esperam modelar a realidade aos
seus interesses ou necessidades de pesquisas. Enquanto Lukács (2013) afirma que o
conhecimento só é possível por meio de um processo de “desantropomorfização” da realidade
estudada – ou seja, que a realidade só pode ser conhecida a partir das suas próprias
legalidades -; entre os teóricos da Administração, a prática corrente é um processo de
modelamento da realidade – dando a ela uma forma menos contraditória, livrando-a de seus
antagonismos, ou seja, tornando-a palatável para um público que clama por harmonia
(contudo, correndo o alto risco de ignorarem, tal como os economistas ingleses, o
inconveniente “risco sistêmico”).
Dessa forma, ignorando completamente a via por meio da qual ocorre a objetivação do
capitalismo na América Latina – além da própria natureza competitiva da dinâmica capitalista
-, o consenso intelectual hegemônico retira o processo histórico de suas análises ou partem de
uma noção completamente fictícia, como Ouriques (2014) identifica entre os teóricos da
CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina). Basicamente, para eles, o
subdesenvolvimento brasileiro é fruto de uma trajetória natural de desenvolvimento, que deve
percorrer algumas etapas até atingir o patamar dos países centrais. Portanto, eles transformam
aquilo que é uma relação de dependência (subordinação) – que Chasin (1989) identificava
como a natureza “incompleta e incompletável” do capitalismo nacional –, numa mera relação
de colaboração, eliminando quaisquer formas de antagonismos e, mais acintosamente,
ignorando completamente o grave problema da “superexploração da força de trabalho”
(CARACNHOLO, 2014). O resultado disso, no plano da administração, é a impossibilidade
prática de enfrentarem a crise que vivemos e outras que certamente virão – enquanto, por
outro lado, nos bombardeiam com diagnósticos e resoluções dignas dos “clássicos” da
literatura de autoajuda. Mas, por enquanto, não falemos em mistificações; trabalhemos a
questão metodológica.

4. Breves considerações metodológicas

Como a proposta deste artigo, em forma de ensaio, é fazer a crítica da miséria


intelectual hegemônica nos cursos de Administração, esta seção será apenas um breve
parêntese por meio do qual indicaremos um rumo metodológico que consideramos muito mais
frutífero do que a metodologia hegemônica.
Costa (2010), dialogando com as obras de maturidade de Lukács, apresenta-nos a ideia
de que a vida cotidiana deve ser tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada da
ciência. “Os problemas que se colocam à ciência nascem direta e imediatamente da vida
cotidiana, e esta se enriquece constantemente com a aplicação dos resultados e os métodos
elaborados pela ciência” (LUKÁCS, 1970 apud COSTA, 2010, p. 294).
Contudo, não é possível compreendermos cientificamente o mundo de forma imediata
no nosso dia-a-dia: “para pensar a vida cotidiana é preciso, antes de mais nada, distanciar-se
dela” (COSTA, 2010, p. 291). Vale a pena pelo menos mencionar como tal ideia colide
diretamente com uma das concepções vigentes nos cursos de Administração, a qual defende o
ensino prioritariamente por meio de estudos de casos, uma vez que, apoiados no senso
comum, afirmam que “na prática, a teoria é outra”.
Em suma, os problemas científicos partem de necessidades do cotidiano; porém, o fazer
científico, como forma superior de captação e reprodução da realidade, pressupõe um

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

afastamento em relação ao cotidiano – mas que deve, posteriormente, retornar a ele,


permitindo o seu enriquecimento.
Nessa linha, Lukács (2013) afirma que o pensar e o agir estão colados um ao outro –
Marx (2013, p. 327) exemplifica essa questão por meio da famosa comparação entre “pior
arquiteto” e a abelha, a qual não “tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a
cera”. Em outras palavras, para manipularmos a natureza (por teleológico primário) e para
atuarmos sobre a consciência de outros homens (por teleológico secundário), com sucesso,
precisamos primeiramente apreender as legalidades do objeto – por meio da ideação. Nas
palavras do filósofo húngaro:
o homem que age de modo prático na sociedade encontra diante de si uma
segunda natureza, em relação à qual, se quiser manejá-la com sucesso, deve
comportar-se da mesma forma que com relação à primeira natureza, ou seja,
deve procurar transformar o curso das coisas, que é independente de sua
consciência, num fato posto por ele, deve, depois de ter-lhe conhecido a
essência, imprimir-lhe a marca da sua vontade (LUKÁCS, 2013, p. 110).
Contudo, esse processo de “conhecer a essência” não ocorre de forma imediata, mas
também não é algo para além das capacidades humanas. Por isso,
Colado ao pensamento marxiano, ou melhor dizendo, ao estatuto ontológico
desse complexo categorial, Chasin demole os castelos da "abstração
irrazoável", próprios ao reino do irracionalismo, segundo o qual não é
possível reproduzir a efetividade por meio de um concreto de pensamentos,
cabendo ao homem somente criar infinitas interpretações por meio da
autonomia de sua subjetividade. Em suma, se o conhecimento é pensado
como inexistente, esta abstração sem objetividade é um absurdo e tem uma
determinação social ineliminável: o indivíduo egoísta (RAGO FILHO, 2004,
p. 3-4).
Chasin (2009, p. 90) - colado a Marx e reconhecendo a importância do legado
lukasciano - afirma que a sua concepção metodológica se apoia em 4 tópicos fundamentais:
“1) a fundamentação ontoprática do conhecimento, 2) a determinação social do pensamento e
a presença histórica do objeto, 3) a teoria das abstrações e 4) a lógica da concreção”. Para ele,
“ciência é objetividade”. Ela deve “dizer o que é, cumprir o primado ontológico”. Mas a
“objetividade não é uma faculdade exclusiva deste ou daquele indivíduo”, uma vez que “a
tematização marxiana da questão do conhecimento, do saber, desloca-se da subjetividade para
a objetividade” (1988, p. 71).
No entanto, isto não quer dizer que menosprezamos o problema (gnosiológico) da
possibilidade de conhecermos determinado objeto. Chasin (1988) afirma que o conhecimento
só é possível quando o objeto do estudo alcança determinado nível de maturidade, ou seja,
somente a forma complexificada do objeto permite a compreensão das suas formas mais
simples. Em Marx, tal questão aparece de forma clara na famosa Introdução de 1857:
A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização
histórica da produção. Por essa razão, as categorias que expressam suas
relações e a compreensão de sua estrutura permitem simultaneamente
compreender a organização e as relações de produção de todas as formas de
sociedade desaparecidas, com cujos escombros e elementos edificou-se,
parte dos quais ainda carrega consigo como resíduos não superados, parte
[que] nela se desenvolvem de meros indícios em significações plenas etc. A
anatomia do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco. Por outro
lado, os indícios de formas superiores nas espécies animais inferiores só
podem ser compreendidos quando a própria forma superior já é conhecida.
Do mesmo modo, a economia burguesa fornece a chave da economia antiga
etc. (MARX, 2011, p. 84).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Todavia, “tanto a chamada sociologia compreensiva, quanto aquelas de raiz positivista


constroem suas referências metodológicas buscando criar um campo neutro para análise da
sociedade, seja através dos tipos ideais no primeiro caso, ou da formulação de leis gerais
análogas àquelas das ciências naturais, no segundo” (COSTA, 2010, p. 308). Essa crítica
abarca também a chamada “visão sistêmica”, a qual ganha cada vez mais espaço entre
teóricos da Administração – como poderemos ver em Bauer (2009) -; uma vez que, “no ser
social, a busca da gênese se impõe pelo inacabamento do produto, sempre provisório, sempre
ponto de partida para novos pores. Daí o contrassenso em se conceber a análise da realidade
social a partir de um sistema” (COSTA, 2010, p. 308). Além disso, enquanto a visão sistêmica
hierarquiza as categorias constituintes da realidade, Lukács fala em “momento
preponderante”. Nas suas palavras:
É claro que em cada sistema de inter-relações dentro de um complexo de ser,
como também em cada interação, há um momento predominante. Esse
caráter surge em uma relação puramente ontológica, independente de
qualquer hierarquia de valor. Em tais inter-relações os momentos singulares
podem condicionar-se mutuamente (...) em que nenhum dos dois pode estar
presente sem o outro ou então se pode ter um condicionamento no qual um
momento é o pressuposto para a existência do outro, sem que a relação possa
ser invertida (LUKÁCS, 2013, p. 64).
“É assim que Marx evidencia, na Introdução de 1857, que a produção é o momento
preponderante na relação com o consumo, a distribuição e a troca (circulação) justamente
porque é prioritária em relação aos demais momento” (COSTA, 2010, p. 309).
Portanto, até aqui, afirmamos que o objetivo da ciência é apreender a lógica do seu
objeto de estudo. Contudo, como tal apreensão pode ser feita?
Infelizmente, não poderemos entrar em maiores detalhes para responder a esse
fundamental questionamento, dado os limites da proposta deste artigo – para isso indicamos
um dos grandes trabalhos de Chasin: “Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica”.
Entretanto, sinteticamente, o filósofo brasileiro responde tal questionamento aludindo à “força
das abstrações”. “Força da abstração é, dentre outras, uma qualidade individual ou força
essencial de apropriação peculiar dos objetos, que se realiza de modo específico de acordo
com a sua própria natureza e em consonância com a natureza do objeto apropriado”
(CHASIN, 2009, p. 123). Ou seja, “a prioridade do concreto real é expressa pela subordinação
da abstração a ele, já que ela (a abstração) é que tem de se elevar ao concreto, buscar alcançá-
lo para ‘reproduzi-lo como concreto pensado’” (COSTA, 2010, p. 310-311).
Rago Filho (2004, p. 6) complementa tal ideia com a seguinte afirmação: “segundo
Chasin, a força da abstração retém algo comum de realidades complexas, comparando entes
concretos”. Essa retenção mental, de propriedades comuns, é o que Chasin (2009) chama de
“abstração razoável”. “Uma das funções das abstrações razoáveis é pôr em evidência as
diferenças por meio da comparação”; sendo que “a perda da diferença essencial leva à
constituição das abstrações irrazoáveis” (RAGO FILHO, 2004, p. 7). Todavia, “essas
abstrações se presas a si, sem determinação concreta, são vazias, não dizem nada: por
exemplo, a classe, sem os elementos concretos sobre os quais se baseia, é uma palavra vazia”
(LUKÁCS, 1990 apud COSTA, 2010, p. 316).
Portanto, o processo deve se encerrar com a viagem de retorno, no qual são “depuradas
as abstrações em sua razoabilidade”. Dessa forma, “a fim de deperecer em sua abstratividade,
a fim de ganhar encarnação histórica”, as abstrações razoáveis "devem perder generalidade
por especificação, adquirindo os perfis da particularidade e da singularização, ou seja, a
fisionomia de abstrações razoáveis delimitadas" (RAGO FILHO, 2004, p. 8-9).
O resultado do processo é “um concreto de pensamentos” que nada mais é do que “um
modulado de abstrações trabalhadas, cuja matéria prima única são as próprias abstrações,
sobre as quais incide a atividade propriamente dita da elaboração, constituída pelos atos de

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

depuração, intensificação, delimitação, articulação e quaisquer outros do gênero


compreendidos pela teoria das abstrações” (CHASIN,1995 apud RAGO FILHO, 2004, p. 10).
Portanto, nas palavras de Chasin (recorrendo a uma pequena analogia de Marx no
prefácio da edição francesa d’O Capital),
“Não há estrada principal para a ciência, e só aqueles que não temem a
fadiga de galgar suas escarpas abruptas é que têm chance de chegar a seus
cimos luminosos”. De modo que o conhecimento é possível, a ciência pode
alcançar seus objetivos, mas não há um caminho pré-configurado, uma
chave de ouro ou uma determinada metodologia de acesso ao verdadeiro [...]
Não há guias, mapas ou expedientes que pavimentem a caminhada, ou
pontos de partida ideais previamente estabelecidos. O rumo só está inscrito
na própria coisa e o roteiro da viagem só é visível, olhando para trás, do
cimo luminoso, quando, a rigor, já não tem serventia (CHASIN, 2009, p.
231).

5. Crítica à falsa harmonia em “Gestão da Mudança” de Ruben Bauer

Já mencionamos, algumas vezes, como os teóricos da Administração se afastam da


realidade capitalista e produzem uma concepção falsa de mundo – que vê harmonia onde, na
realidade, encontramos conflitos e contradições. Contudo, para encerrarmos tal discussão,
analisaremos como essa questão se manifesta na obra “Gestão da Mudança: Caos e
Complexidade nas Organizações” de Ruben Bauer. Escolhemos tal obra, pois ela nos parece
bastante representativa de uma tendência que se torna cada vez mais hegemônica nos cursos
brasileiros de Administração, além de ser uma obra qualitativamente superior aos manuais de
autoajuda transformados em teoria administrativa, que se alastram nas prateleiras das
livrarias, e aos manuais de marketing e finanças propriamente ditos.
Nesta obra, Bauer defende que o problema das teorias administrativas tradicionais
deriva do fato de elas se inspirarem num paradigma ultrapassado, que é o “paradigma
cartesiano-newtoniano”. Para ele, esse paradigma extrapolou o campo da ciência, tornando-se
o centro das principais discussões filosóficas do século XVII, culminando no movimento
Iluminista do século XVIII e, posteriormente, sendo a base para o surgimento da sociologia.
Não obstante, tornou-se a base que permitiu à sociedade ocidental passar por um período de
grandes progressos tecnológicos.
Todavia, a partir do final do século XIX, as ciências naturais passaram por uma
verdadeira revolução. A Física Quântica, por exemplo, findou, entre outras coisas, a noção de
espaço e tempo absolutos, a noção de partículas sólidas elementares, a capacidade de análises
reducionistas retratarem a realidade dos fenômenos, e a ideia de que todos os fenômenos
físicos podem ser previstos (BAUER, 2009). Em suma, Bauer afirma que a metodologia da
Física Clássica era incapaz de explicar os fenômenos estudados pela Física Quântica. Assim,
“a partir de agora (...) a Física não tem como propor às demais ciências qualquer visão única,
visto que ela própria se depara com uma realidade múltipla” (BAUER, 2009, p. 120). Ou seja,
diante do “caos” e da “complexidade” surge “um novo desafio de redefinir, quase que por
completo, o que seja de fato ‘fazer ciência’” (BAUER, 2009, p. 144).
Portanto, “com os conceitos de scienza nuova em gestação no domínio físico e
biológico das questões da organização”, podemos reconhecer que a sociedade não é composta
apenas por “processos, regularidades, aleatoriedades, mas também seres, entes, indivíduos”. A
partir desses conceitos, a scienza nuova “permitiria reconhecer e ajudar as aspirações
individuais, coletivas e étnicas de autoridade e liberdade” (MORIN, 1996 apud BAUER,
2009, p. 74).
Inspirados nessas ideias, Bauer apresenta a chamada “Teoria dos Sistemas”. Em tal
concepção teórica “o indivíduo, a sociedade e a natureza formam um conjunto indissociável,

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interdependente e em constante movimento. É uma visão na qual, paradoxalmente, não só as


partes de cada sistema se encontram no todo, mas em que os princípios e leis que regem o
todo se encontram em todas as partes” (WEIL, 1985 apud BAUER, 2009, p. 137). Ou seja,
“os sistemas biológicos e sociais não funcionam apesar da desordem, eles necessariamente só
funcionam pela desordem” (BAUER, 2009, p. 78).
A partir disso, Bauer (2009) defende que as empresas contemporâneas deveriam
adotar uma nova estrutura. Atualmente, elas concentram seus esforços em realizar previsões
de longo prazo, juntamente com altos gastos em controle interno, visando manter a ordem e a
estabilidade. O autor afirma que esses esforços são inúteis, uma vez que as mudanças são
inevitáveis, e, portanto, as empresas deveriam adotar estruturas mais desordenadas, as quais
favoreceriam a auto-organização e, consequentemente, a criatividade. Essa estrutura tornaria
natural para a empresa os processos de mudança.
No entanto, para isso, a noção de hierarquia deveria ser rompida. Consequentemente, a
ação dos supervisores perderia o sentido e, portanto, seriam substituídos por times auto-
gerenciáveis. Enquanto isso, os diretores deveriam estar preparados para receberem ordens de
subordinados; e ainda seriam criados canais de comunicação entre as pessoas da organização
que redundariam no desaparecimento da média gerência.
Bauer (2009) exemplifica o poder desse tipo de organização através de um
experimento conduzido pelo especialista em computação gráfica, L. Carpenter. Este reuniu
5.000 pessoas em um auditório, e lhes concedeu uma série de tarefas, que comprovariam o
poder da auto-organização. Entre outras tarefas, essas pessoas receberam, individualmente,
uma placa com um lado verde e outro vermelho e lhes foi pedido que fizessem o número
cinco verde com as placas no centro do auditório. O resultado foi que, após uma confusão
inicial, esses indivíduos se organizaram eficientemente e conseguiram, rapidamente, realizar a
tarefa.
Finalmente, após essa síntese do trabalho de Bauer, mas antes de entrar na crítica
propriamente dita, devemos reconhecer alguns méritos. O maior deles, certamente, é a
superação do pragmatismo e a busca por inspirações fora do terreno das “ciências sociais
aplicadas”. Com isso, Bauer (2009) efetivamente enriquece o pensamento administrativo.
Além disso, por uma via extremamente tortuosa, acidentada e incompleta, Bauer flerta
com uma das principais bandeiras dos teóricos da revolução: a necessidade da organização
associada e autodeterminação do trabalho. Contudo, o autor nada fala sobre as iniquidades de
uma produção necessariamente orientada para a troca. Como nos lembra Mészáros (2002, p.
884), “o problema mais grave advém da produção orientada para, e determinada pela, troca de
produtos – seja sob o capitalismo, seja sob as sociedades pós-capitalistas –, radicalmente
incompatível com um verdadeiro planejamento”.
Por fim, mas também de forma bastante acertada, recorrendo a George Bernard Shaw,
Bauer critica a especialização do saber: “o especialista é alguém que conhece cada vez mais
sobre cada vez menos, e termina por saber tudo sobre nada”. Em suma, para ele a ultra-
especialização científica é geradora de cientistas empobrecidos, que se sentem “donos de suas
especialidades”, mas que perdem a compreensão mais global do que ocorre ao seu redor
(BAUER, 2009).
Entretanto, chega a impressionar a imensa ingenuidade presente em cada uma das
ideias de Bauer. Como veremos a seguir, apesar de todo o seu distanciamento e de suas
críticas em relação ao pensamento administrativo tradicional, o autor ainda reside no reino do
idealismo – que é tão caro à teoria tradicional.
Ao invés de analisar o desenvolvimento dos paradigmas científicos em relação ao
desenvolvimento socioeconômico - identificando, tal como Lukács (1968), o impacto dos
eventos da década de 1840 sobre o pensamento científico -, Bauer (2009) trai o seu próprio
discurso sobre o “caos”, a “complexidade” e “redução mecanicista” e apresenta uma

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narrativa, da ciência, bastante simplificada – vista de forma autônoma aos demais complexos
sociais. Portanto, ele, tal como as teorias administrativas hegemônicas, ainda enxerga
harmonia onde, na realidade, encontramos conflitos e contradições. Ou melhor, ele vê os
conflitos e contradições como um elemento natural à vida – da vida inorgânica à vida social.
Isso se manifesta em ideias extremamente ingênuas como a proposição de que simplesmente
precisamos substituir a lógica da competitividade por uma lógica da cooperação – sem, é
claro, tocar nos fundamentos da ordem do capital, tais como a produção voltada para a troca
no mercado.
Uma vez que, para ele, os conflitos e contradições são vistos como elementos
constituintes da natureza, os conflitos e contradições presentes no interior das organizações
não se diferenciam, por exemplo, das relações “conflitivas” e “contraditórias” entre os órgãos
do corpo humano. Dessa forma, na prática, Bauer os elimina de sua sistematização
organizacional.
Coerentemente, Bauer não percebe as diferenças entre o experimento de L. Carpenter –
mencionado acima – e o ambiente organizacional. Enquanto naquele, todos os indivíduos
compartilhavam o mesmo objetivo, dentro de uma organização capitalista a situação é
radicalmente distinta. A dinâmica mais simples do capitalismo já colocava os detentores dos
meios de produção (que acumulam capital por meio da extração de mais-valia e do lucro da
venda das mercadorias) necessariamente contra o proletariado (quem efetivamente produz
valor, mas recebe apenas uma parcela deste valor na forma de salário). Contudo, esse conflito,
ao invés de ser superado com o passar dos anos – como a literatura apologética costuma
afirmar –, tornou-se ainda maior e de maior complexidade.
Após a implantação da organização toyotista do trabalho e da remuneração por
desempenho, mesmo no interior do proletariado, encontramos grandes conflitos de interesses.
Nesse cenário, a remuneração individual depende da superação individual do tempo de
trabalho médio do grupo – ou de outras células de trabalho. Por exemplo, um operário
toyotista recebe tanto mais quanto mais eficiente for o seu trabalho; porém, quanto mais
eficiente ele for, menos receberão os demais operários. Ou seja, ao invés de caminharmos em
direção à superação dos antagonismos, nós os vemos sendo multiplicados.
Entretanto, a passagem a seguir é ainda mais clara quanto às limitações e a ingenuidade
do pensamento de Bauer (que, novamente, ignora a complexidade do real e trai o seu próprio
discurso):
(...) empresas presas a uma identidade que privilegia o imediatismo do lucro
de curto prazo estão, no longo prazo, inviabilizando a si próprias, na medida
em que estão construindo um ambiente externo no qual não conseguirão
sobreviver. (...) Essas empresas mais preocupadas em usar o ambiente que
moldá-lo, em auferir o presente que construir o futuro, perderam o
entendimento do contexto maior em no qual estão inseridas, ou seja,
perderam a “congruência com suas circunstancias”. Seu entendimento do
ambiente é distorcido e assim elas não têm como atuar de forma pró-ativa.
Daqui para frente, e contra a sua vontade, é bastante provável que seu futuro
dependa muito mais de como os governos, consumidores e cidadãos irão
reagir, punindo-as e restringindo suas atividades, do que de seus esforços
individuais em transformar-se (BAUER, 2009, p. 204-205).
Como podemos ver, Bauer - ignorando a dinâmica do capitalismo contemporâneo, o
desenrolar do processo histórico, a relação desigual às quais as diversas organizações estão
submetidas no mercado internacional, a peculiaridade de cada setor, os antagonismos de
interesse entre acionistas, gestores, operários, funcionários administrativos e terceirizados
dentro das próprias organizações - reduziu toda a questão à ganância e ansiedade dos gestores
e acionistas, que se manifestam na busca imediatista pelo lucro.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Portanto, dentro de uma ordem societária capitalista, em “crise estrutural”


(MÉSZÁROS, 2002) ou em crise permanente (CHASIN, 1988), é uma mera volição (ou
grande ingenuidade) imaginar a possibilidade de uma organização empresarial harmônica
tanto internamente (na relação entre acionistas, gestores e trabalhadores em geral), quanto
externamente (na relação entre as diversas empresas, entre elas e os Estados nacionais e o
meio ambiente). Dessa forma, Bauer (2009), tal como a teoria administrativa tradicional, se
manteve a quilômetros de distância do real e reforça, na prática, aquilo que já tinha sido
identificado por Tragtenberg (2005, p. 43): “cabe à ‘formação’ profissional a transformação
da empresa numa entidade homogênea”. Obviamente que isso pode ser feito tanto de forma
mal-intencionada, como de forma ingênua – o que nos parece o caso de Bauer.

6. Considerações Finais

Ao longo do artigo, pudemos demonstrar alguns traços marcantes da miséria intelectual


que movimenta o pensamento administrativo no Brasil. Todavia, também demonstramos que
tal miséria, por mais que se manifeste por meio de problemas científicos, não se explica
somente por meio do próprio pensamento científico. Chamamos a atenção para a
particularidade do capitalismo brasileiro e, principalmente, para o conservadorismo que
historicamente marca a burguesia nacional; os quais, por sua vez, impactam, de forma
determinante, as possibilidades de produção intelectual entre os teóricos da administração no
Brasil.
Contudo, ainda que seja um contrassenso imaginar que esse quadro possa ser alterado
sem profundas alterações nas macroestruturas da sociedade brasileira, a discussão
metodológica não perde importância. Sabemos que, dentro dos departamentos de
Administração, encontramos alunos, docentes e teóricos extremamente interessados e
dispostos a enfrentar a miséria intelectual hegemônica, e, para isso, a clareza epistemológica é
um elemento fundamental para que esse enfrentamento possa avançar.
Não obstante, a própria particularidade da sociedade brasileira acentua ainda mais a
importância de pensarmos a Administração para além da produção do “falso socialmente
necessário” (como diria Chasin). Nessa linha, o compromisso com a verdade (com o primado
ontológico do real) é condição imprescindível para que possamos agir no mundo de forma
mais acertada. Como foi mencionado ao longo do artigo, isso é válido inclusive para os
interesses mesquinhos das organizações singulares; mas, indubitavelmente, é ainda mais
importante para aqueles que têm como compromisso a luta pela emancipação humana, que
têm compromisso com o enfrentamento das grandes iniquidades e estranhamentos que
marcam a vida sob o capital e, mais precisamente, a vida sob o capitalismo brasileiro.

Notas
¹ Uma análise dos textos de Chasin do mesmo período, bem como de sua evolução
teórica, nos induz a crer de que o curso que deu origem ao texto chamado “Método dialético”
é de uma data anterior a 1988.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Pensando Políticas Públicas: contribuições para uma reflexão crítica


Lucas Pacheco Campos
Universidade Federal Fluminense (UFF)

Resumo
O presente ensaio refletiu sobre as tendências teóricas que hegemonizam o campo das
políticas públicas nos dias de hoje, buscando delimitar e pensar criticamente seus principais
fundamentos. Foi possível perceber que as discussões mais acessadas na área estão marcadas
pela ausência de interesse sobre o contexto capitalista, o que inclui as funções histórico-
sociais do Estado, da democracia e das próprias políticas públicas. Essa orientação geral
funciona como uma espécie de véu conservador e ideológico que dificulta a visualização dos
reais efeitos produzidos por uma política pública. Assim, com o objetivo de pensar mais
apropriadamente sobre suas potencialidades e seus limites, o trabalho estudou o
desenvolvimento de tais políticas sob um viés histórico e a partir de uma concepção de
totalidade. Nesse trajeto, foi possível construir reflexões importantes que, a nosso ver, devem
tomar um espaço central nos debates em administração e políticas públicas: os compromissos
de classe que fundam o Estado, assim como as contradições e os limites estruturais que
necessariamente atravessam suas ações.

Introdução
Este ensaio teórico refletirá sobre as discussões hegemônicas que perpassam o
campo das políticas públicas nos dias de hoje. Parte-se do pressuposto de que as discussões
mais difundidas sobre o tema tendem a secundarizar elementos essenciais para esse universo
de pesquisa, dificultando a compreensão real sobre suas potencialidades e seus limites.
Ao escrever sobre as bases teórico-epistemológicas que fundam a administração
pública, Luiz Eduardo Motta (2013) identifica que suas principais deficiências decorrem da
[...] incompreensão do conceito de Estado na perspectiva relacional, optando por
tratar o Estado segundo a ótica do Estado Sujeito autônomo das demais estruturas
sociais, ou mesmo em abolir o conceito de Estado substituindo-o pelo de
“administração pública”. (MOTTA, 2013, p. 19)
Entretanto, o grande campo das ciências da administração, o que inclui,
evidentemente, os estudos sobre administração pública e políticas públicas, não se restringe
ao mainstream. Há também espaços que têm se dedicado à crítica profunda desses temasi, os
quais possuem inclinações onto-epistemológicas muito diversas e são fundamentalmente
interdisciplinaresii.
Considerando o cenário de diferentes concepções e espaços para a crítica da
administração e da administração pública, o presente trabalho procura se localizar na tradição
ontológica marxiana e marxista, sem deixar de dialogar com outras tendências analíticas. É
nesse sentido que esta reflexão sobre políticas públicas pretende contribuir para uma crítica
total da área e de seus conceitos.
A tradição deixada por Karl Marx significou profundas transformações nas formas
até então predominantes de ler o mundo. Na realidade, Marx construiu uma nova concepção
ontológica, isto é, um novo formato explicativo da realidade e das relações entre homem e
natureza, indivíduo e sociedade, ideia e matéria. Uma ruptura paradigmática que produziu um
tipo de materialismo fincado no terreno real da história. Assim, pode-se dizer que a ontologia
marxiana se opõe diametralmente a todas as formas de idealismo até então predominantes,
pois configura-se como uma proposta que não separa o mundo das ideias do mundo material
ou, na linguagem hegeliana, o mundo espiritual do mundo dos homens.
Superando todas as concepções ontológicas anteriores, a essência, em Marx, tal
como o fenômeno, é uma determinação inerente à história, é uma categoria
absolutamente processual. Não mais se distingue por ser ela, a essência, eternamente

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

fixa, a-histórica, enquanto o fenômeno seria o locus da mudança, do efêmero, do


histórico. [...] [Assim,] teríamos em Marx uma concepção radicalmente nova da
relação entre os homens e sua história. Esta seria, em todas as suas dimensões,
mesmo as mais essenciais, um construto humano, e não haveria nenhuma dimensão
transcendente à história a determinar os processos sociais. (LESSA, 2001, p. 94)
Para Cunha e Ferraz (2015) o desenvolvimento da crítica de viés marxista dentro
dos estudos da administração não deve ser visto como um capricho do pesquisador, mas sim
como um recurso fundamental para se combater as mais diversas formas de “irracionalismos”
da atualidade. Em suas palavras, trata-se da “compreensão da necessidade de combatermos o
delírio contemporâneo indo à raiz das problemáticas postas pelo modo de controle antagônico
da humanidade” (CUNHA e FERRAZ, 2015, p. 194). Aí se explica a necessidade em
estabelecer uma crítica pautada na categoria da totalidade e no materialismo histórico,
rejeitando os mais diversos tipos de idealismos e, ao mesmo tempo, as vertentes “míopes,
irracionais e delirantes” (CUNHA e FERRAZ, 2015, p. 194) que inundam a maior parte das
pesquisas nessa grande área de conhecimento.
Partindo, portanto, das limitações anotadas por Motta (2013) e do cenário
identificado por Cunha e Ferraz (2015), entende-se ser fundamental impulsionar o
pensamento crítico no campo das políticas públicas, repousando-o sobre a história e indo à
essência de suas problemáticas. Para tanto, investigaremos o ideário que sustenta as formas de
pensar e praticar uma política pública, o que necessariamente conduzirá a discussões sobre as
próprias raízes e as funções do Estado. Assim, espera-se contribuir com algumas reflexões
para o fecundo movimento da administração política. Qual o nível de autonomia que o Estado
possui? Existe em suas ações algum potencial transformador? Concretamente, o que se pode
esperar das políticas públicas?
Para responder essas perguntas, o trabalho foi dividido em três etapas. Em um
primeiro momento, serão estudados os conceitos e modelos que fundamentam a área de
políticas públicas no Brasil, segundo os trabalhos de Souza (2006), Lima e D’Ascenzi (2013).
Com a intenção de problematizar essas tendências hegemônicas, serão trazidas também as
concepções críticas elaboradas por autores como Fonseca (2013), Ansara (2012), Monteiro,
Coimbra e Mendonça (2006). A partir daí, adentraremos nas perguntas centrais do trabalho,
tomando como ponto de partida a crítica elaborada por Perry Anderson (1992) sobre o ideário
de fim da história reeditado por Francis Fukuyama (1992). Primeiro, estudaremos os
fundamentos teóricos que sustentam o Estado e a democracia liberal. Em seguida, pensaremos
nas funções históricas das políticas públicas. Nesse trajeto, nos apoiaremos, sobretudo, em
trabalhos (teóricos e empíricos) de autores como Lessa (2013), Saramago (2007), Wood
(2011), Gurgel e Ribeiro (2011).
Espera-se que tal estrutura investigativa nos permita refletir mais apropriadamente
sobre as possibilidades e os limites que envolvem as políticas públicas, com o intuito de
compreender o potencial que possuem para transformar substancialmente a realidade.

I - Discussões Hegemônicas e seus Problemas Essenciais


Os debates sobre políticas públicas tiveram origem no interior das ciências
sociais, em especial, enquanto uma subárea da ciência política. As iniciativas no sentido de
afirmação desta vertente como um campo científico independente são muito recentes.
Somente a partir da segunda metade do século XX que a discussão sobre política pública
surge enquanto disciplina acadêmica estruturada e autônoma.
Neste contexto, observa-se o surgimento de uma miríade de pesquisas sobre o
tema nos últimos 50 anos. Celina Souza escreveu, em 2006, um texto intitulado “Políticas
Públicas: uma revisão de literatura”, no qual sistematiza uma ampla referência bibliográfica
sobre as principais discussões no campo das políticas públicas.
De acordo com Souza (2006), há dentre estes estudos recentes uma tendência, de
origem estadunidense, que ignora a tradição da ciência política em tratar o tema a partir de

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

reflexões sobre o Estado, as relações de poder e os processos de formação de governos.


Apesar disso, essa é a linha que influencia decisivamente a maior parte dos debates e dos
modelos atuais sobre políticas públicas no Brasil e no mundo. Tais estudos tem se
caracterizado por analisar “os governos em ação”, sem necessariamente passar por debates
mais profundos sobre as relações entre o Estado, a sociedade civil e as organizações privadas.
Em seu artigo, Celina (2006) traçou um panorama geral sobre as principais teorias
que circundam esta área de conhecimento, partindo de seus primeiros formuladores (Laswell,
Simon, Lindblom e Easton) e chegando até as discussões e os modelos atuais, altamente
influenciados pela escola neoinstitucionalista. Segundo ela,
O pressuposto analítico que regeu a constituição e a consolidação dos estudos sobre
políticas públicas é o de que, em democracias estáveis, aquilo que o governo faz ou
deixa de fazer é passível de ser (a) formulado cientificamente e (b) analisado por
pesquisadores independentes. (SOUZA, 2006, p. 22, grifo nosso)
De forma apressada, pode-se definir política “pública” como “a soma das
atividades dos governos, que agem diretamente ou através de delegação, e que influenciam a
vida dos cidadãos” (PETERS apud Souza, 2006, p. 24) ou, na mesma linha, como aquilo que
o “governo escolhe fazer ou não fazer” (Dye apud Souza, 2006, p. 24). No entanto, após
analisar as teorias fundacionais e uma série de modelos de formulação e análise de políticas
públicasiii, Souza (2006) entende que não há uma única nem melhor definição para o conceito.
Apesar dessa constatação, foi possível destacar uma espécie de núcleo duro, isto é, os
elementos essenciais que se observam nas principais definições e teorias:
• A política pública permite distinguir entre o que o governo pretende fazer e o que,
de fato, faz.
• A política pública envolve vários atores e níveis de decisão, embora seja
materializada através dos governos, e não necessariamente se restringe a
participantes formais, já que os informais são também importantes.
• A política pública é abrangente e não se limita a leis e regras.
• A política pública é uma ação intencional, com objetivos a serem alcançados.
• A política pública, embora tenha impactos no curto prazo, é uma política de longo
prazo. (SOUZA, 2006, p.36)
O trabalho de Lima e D’Ascenzi (2013), por sua vez, se propõe a estudar os
principais modelos que regem o campo atualmente, focando primordialmente nos aspectos
que envolvem a implementação de políticas públicas. Os autores identificam duas abordagens
hegemônicas na literatura sobre o tema. Enquanto uma delas se concentra no processo de
formulação da política e nas normas institucionais que a estruturam, a outra abordagem
“enfatiza elementos dos contextos de ação”, tomando como “variáveis as condições dos
espaços locais e as burocracias implementadoras” (LIMA e D’ASCENZI, 2013, p. 102).
Lima e D’Ascenzi (2013, p. 105) chegam a perceber que os modelos analíticos
hegemônicos da área superestimam a “importância das normas ou da discricionariedade dos
executores”. Esses modelos “não tomam como variável relevante os aspectos culturais que
são mediadores, por vezes necessários, ao entendimento da trajetória política e do resultado
alcançado” (LIMA e D’ASCENZI, 2013, p. 105). Por esta razão, terminam por apontar a
necessidade de formulação de um modelo de análise que enfatize também aspectos cognitivos
e ideológicos que permeiam a formulação e implementação de uma política. Entretanto,
apesar de formularem análises que questionam certas interpretações institucionalistas e
burocráticas, a posição dos autores acaba por revelar outras duas tendências que marcam o
campo das políticas públicas, também registradas por Souza (2006): o foco em dimensões
individualistas e culturalistas, não necessariamente históricas.
Por outo lado, para além desses traços essenciais que circundam a maior parte das
reflexões sobre políticas públicas, existem autores que se dedicam a pensar crítica e
profundamente a administração pública e seus instrumentos. Francisco Fonseca, por exemplo,
direciona suas análises ao exame crítico da administração e das políticas públicas. Em seu
artigo chamado “Dimensões críticas das políticas públicas” (2013), o autor procurou enfrentar

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

diversos problemas que considera fundamentais. Dentre eles, dois em específico nos parecem
os mais decisivos: a inconsistência do próprio conceito de políticas públicas e a ausência de
debates sobre o modelo de produção capitalista e sobre os limites estruturais intrínsecos às
ações estatais.
Em primeiro lugar, Fonseca (2013) questionou a validade das definições
acadêmicas e governamentais sobre o conceito de política pública. Para ele, os debates sobre
o tema “têm sido marcados pela predominância e difusão de um conceito amplo, fugidio e
pouco fundamentado”, de forma que a definição “clássica e genérica de ‘o governo em ação’,
mais confunde do que esclarece” (FONSECA, 2013, p. 402-403).
Segundo Fonseca (2013), estas definições genéricas e amplamente repetidas
incorrem, cada uma à sua maneira, na ocultação de uma característica fundamental que
circunda o universo de qualquer política pública: o conflito. Essa ocultação funcionaria como
uma armadilha, que influencia tanto os estudiosos quanto a opinião pública a encarar o Estado
como uma entidade neutra. Nesse contexto, as políticas públicas seriam vistas como
generosas ações deste Estado idealizado, empregadas no sentido de um “bem-estar geral”, de
forma que os problemas sociais, políticos e econômicos não passariam da ordem técnica ou
circunstancial. Estas falsas interpretações impedem a compreensão sobre a realidade e,
portanto, sobre as possibilidades de transformação real por meio das ações do Estado. Nas
palavras do autor,
[...] a suposta “unanimidade” das “políticas públicas”, uma vez que objetivaria o
referido “bem comum”, encobre, no chamado “ciclo das políticas públicas”, seu
caráter conflitivo quanto aos interesses em disputa e os vetos, por meios distintos,
advindos dos grupos sociais que se sentem, real ou imaginariamente, prejudicados.
Tais conflitos podem assumir conotações de embate de classes sociais, por mais que
conceituar classes e seus embates implique novo esforço analítico. (FONSECA,
2013, p. 405)
Na mesma linha, Soraia Ansara (2012) também realça a problemática inerente à
ocultação da dimensão conflituosa que atravessa qualquer ação estatal. Na verdade, os estudos
sobre a relevância e as possibilidades inerentes às políticas públicas deveriam conduzir a uma
necessária discussão preliminar sobre o que se entende por política. Segundo a autora, a ideia
corrente sobre política remete o termo ao consenso, isto é, a um processo de consentimento
entre interesses de distintos grupos sociais. Tal interpretação permite enxergar a política como
o conjunto de negociações e combinações de anseios e sentimentos que garantem a gestão
social e a organização dos poderes, legitimando as funções e os lugares do sistema dominante
(Ansara, 2012).
No entanto, a autora resgata a ideia de Jacques Rancière ao afirmar que a essência
da política está, na verdade, no dissenso, ou seja, no conflito explícito de ideias e interesses
que desestruturam e movem a ordem social. Tomando como base a crítica elaborada pelo
filósofo francês, Ansara (2012) aponta a necessidade do conflito para que a política seja capaz
de produzir transformações na realidade concreta. É o conflito originário do dissenso,
portanto, da política, que permite a emergência das falas e das reivindicações daqueles que
não possuem voz, visibilidade e poder em determinada ordem social. Dessa forma, nota-se
que o conflito não apenas é intrínseco a toda política pública, é também uma dimensão
fundamental para a efetivação de qualquer transformação social.
Em segundo lugar, Fonseca (2013) trata de posicionar o debate atual no devido
terreno histórico, buscando compreender os alcances e os limites das políticas públicas no
mundo capitalista dos dias de hoje. No capitalismo contemporâneo, a produção atingiu níveis
nunca antes imaginados e com a participação de cada vez menos trabalhadoresiv. Neste
contexto marcado pelo toyotismo e pela administração flexível, o desemprego estrutural
tecnológico e a precarização do trabalho são características fundamentais do atual estágio de
produção capitalista (Fonseca, 2013). É o domínio cada vez mais profundo e aterrador do
capital sobre o trabalho.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A precarização das condições de trabalho, o rebaixamento dos direitos trabalhistas


e a generalização da terceirização são exemplos concretos deste processo em vigor. Outro
efeito lembrado por Fonseca (2013) é a “pejotização”, muito conhecida no Brasil. Cada vez
mais trabalhadores de setores administrativos deixam de ser contratados segundo as regras e
os direitos estabelecidos pela legislação trabalhista para serem contratados como pessoa
jurídica. Em outras palavras, são pessoas sendo contratadas como empresas, perdendo suas
garantias e direitos historicamente conquistados. Segundo Fonseca (2013), a “pejotização”
implica em uma dupla perversidade contra o trabalhador, exercida ao mesmo tempo pelo
capital, que aprofunda a extração de mais-valor, e pelo Estado, que atua segundo os interesses
dominantes, revogando e/ou revisando controles sobre os imperativos do mercado.
Este movimento do Estado (de ceder aos interesses do mercado) remete a atenção
do autor para uma ideia corrente no senso comum e reproduzida de distintas formas por
teóricos, especialistas, políticos e agentes da administração pública: a crença na capacidade
das políticas públicas de compensar ou atenuar as desigualdades sociais. Em uma linguagem
mais precisa, trata-se da crença de que tal instrumento estatal, quando bem formulado e
aplicado, teria o potencial de domar as consequências devastadoras produzidas pelos
imperativos intrínsecos ao sistema capitalista.
No mesmo sentido, o texto de Ana Monteiro, Cecília Coimbra e Manoel
Mendonça (2006), intitulado “Estado Democrático de Direito e Políticas Públicas: estatal é
necessariamente público?”, é interessante para pensarmos nessa crença dominante enquanto
mistificação e falsificação das ações estatais.
O que fica obliterado por este esquema de entendimento é a ideia de que um lugar de
poder instituído, como o aparelho de Estado, funciona segundo certas lógicas, e que
“ocupá-lo” é, na maior parte das vezes, servi-lo na condição de operador de seus
dispositivos e, nesta condição, o operador não muda a máquina, ele a faz funcionar.
Experimentando a impossibilidade de transformar o funcionamento das máquinas
estatais capitalisticas, mantém-se a crença na possibilidade de reformas através de
intervenções nas formulações e implementações de políticas públicas vinculadas ao
Estado. Estas “Ilusões Re” encontram-se hoje presentes em muitas áreas de
intervenção: no campo da educação, saúde, justiça, etc. (MONTEIRO, COIMBRA e
MENDONÇA, 2006, p. 11)
Assim, Fonseca (2013) também levanta os limites dos efeitos de reversão de
desigualdades atribuídos às políticas públicas. Para o autor, as ações do Estado são, na
realidade, limitadas estruturalmente, visto que o processo de acumulação de capital é o ponto
central para a manutenção do próprio poder do Estado em um contexto capitalista. Assim, na
mesma linha das críticas elaborada por Motta (2013) e por Monteiro, Coimbra e Mendonça
(2006), o autor destaca a existência de
[...] limites concretos da ação do Estado perante o Capital, pois, como vimos, este
define os parâmetros da produção e da circulação e, cada vez mais, da organização
do trabalho – o que é extremamente impactante –, uma vez que são (a produção e a
circulação) o núcleo da reprodução do Capital. (FONSECA, 2013, p. 408)
Ao que parece, Motta (2013) foi capaz de sintetizar as críticas aqui destacadas.
A administração, enquanto campo de produção de conhecimento, somente
conseguirá atingir a sua maturidade conceitual se redefinir seus paradigmas
precedentes, e também se incorporar o conflito de classes e grupos e as relações de
poder nas instituições como conceitos centrais de sua análise. (MOTTA, 2013, 19)
Pautados nos estudos até então apresentados, podemos sugerir algumas reflexões
sobre os pressupostos e as tendências predominantes na área de políticas públicas.
Em primeiro lugar, as concepções sistematizadas por Souza (2006), Lima e
D’Ascenzi (2013) se enquadram na literatura corrente e mais acessada sobre o tema, o que
não significa ser o conjunto de investigações mais rigorosas e condizentes com a realidade.
Todos esses modelos, cada qual à sua maneira, tratam o Estado como uma entidade abstrata,
neutra e relativamente autônoma, a qual pode ser, no máximo, influenciada por grupos e
indivíduos formalmente atrelados (ou não) à institucionalidade política.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

No processo de definição de políticas públicas, sociedades e Estados complexos


como os constituídos no mundo moderno estão mais próximos da perspectiva teórica
daqueles que defendem que existe uma “autonomia relativa do Estado”, o que faz
com que o mesmo tenha um espaço próprio de atuação, embora permeável a
influências externas e internas (Evans, Rueschmeyer e Skocpol, 1985). Essa
autonomia relativa gera determinadas capacidades, as quais, por sua vez, criam as
condições para a implementação de objetivos de políticas públicas. A margem dessa
“autonomia” e o desenvolvimento dessas “capacidades” dependem, obviamente, de
muitos fatores e dos diferentes momentos históricos de cada país. (SOUZA, 2006, p.
27)
Em segundo lugar, essa vertente hegemônica tende a tratar as decisões políticas de
forma individual e fora de contextualização histórica. As análises são feitas essencialmente a
partir das ambições ou dos limites próprios aos sujeitos da administração pública, ignorando-
se as classes sociais e suas lutas incessantes. No limite, consideram apenas que as opiniões e
interesses dos indivíduos ou grupos afetados influenciam (ou pelo menos tem o potencial de
influenciar) as políticas públicas, como nos modelos de policy cycle (Howlett, Ramesh e Perl,
2009). Outros casos, como exemplificado na citação acima, sugerem apenas vagamente que
fatores históricos devem ser levados em consideração, sem ao menos indicar a existência de
profundas contradições e limites estruturais no processo de formulação, aplicação e avaliação
de uma política pública.
Estas lacunas remetem ainda àquilo que talvez seja o ponto mais problemático de
todos estes modelos: a ausência de interesse sobre o contexto capitalista e sobre as funções
histórico-sociais do Estado, da democracia e das próprias políticas públicas. Ao que parece,
basta substituir a compreensão sobre as funções e contradições do Estado pela frágil definição
de que uma política pública (de Estado ou de governo) seria aplicável e analisável somente
em “democracias estáveis”.
O que se deseja chamar atenção aqui é que a função social de determinada
entidade ou categoria em dada etapa do desenvolvimento histórico é o ponto de partida
fundamental para a análise ou solução de qualquer problema. Será que é possível falar de
política pública sem discutir quais são as funções do Estado hoje? Seria possível abordar
questões sobre o Estado sem refletir sobre os imperativos do sistema de produção atual? Seria
possível falar em aplicação de um modelo de políticas públicas genérico para qualquer país de
“democracia estável”, independentemente de sua inserção na divisão internacional do
trabalho? Ou ainda, seria possível falar em transformação social via políticas públicas sem
levar as perguntas anteriores em consideração? Se depender da linguagem corrente sobre o
tema, sim.
[...] pode-se concluir que o principal foco analítico da política pública está na
identificação do tipo de problema que a política pública visa corrigir, na chegada
desse problema ao sistema político (politics) e à sociedade política (polity), e nas
instituições/regras que irão modelar a decisão e a implementação da política pública.
(SOUZA, 2006, p. 40)
Apesar de aludir para a influência da conjuntura na autonomia de governos, a
conclusão do trabalho de Souza (2006) passa ao largo das raízes histórico-sociais do Estado e,
consequentemente, de seus instrumentos. Fala-se das instituições e, em certas circunstâncias,
até mesmo de relações de poder, mas sempre de forma abstrata, deixando de lado as relações
de dominação e exploração intrínsecas a uma sociedade de classes. Fala-se, assim, em
sociedade política e em sistemas políticos, mas são omitidos seus compromissos fundantes e
seus limites estruturais, falsificando, assim, suas reais potencialidades.
A formulação final de Souza (2006) resume o formato das discussões usualmente
feitas no campo das políticas públicas. Apesar de não estar completamente equivocada, essas
intepretações pecam ao reduzir o objeto de uma política pública a problemas meramente
técnicos, pragmáticos e circunstanciais, portanto, apolíticos e a-históricos. Todo o debate
teórico hegemônico poderia ser resumido a uma questão de eficiência e eficácia. No limite, o

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Estado é tratado como uma arena neutra que pode ser conduzida à qualquer parte, a depender
da “conjuntura”, da eficiência de governos e das intenções dos atores envolvidos. Em suma,
discute-se muito sobre o superficial (a técnica; os modelos “ideais”; o processo decisório; os
inputs e outputs; os interesses e as limitações dos policy makers; as etapas do policy cycle;
etc.) e quase nada sobre o essencial (as funções histórico-sociais do Estado, das tais
“democracias estáveis” e das políticas públicas)v.

II - De Fukuyama ao Mainstream das Políticas Públicas


Todas as questões levantadas até aqui confirmam o nosso pressuposto inicial: as
concepções teóricas hegemônicas no meio da administração e das políticas públicas são
decisivas para bloquear ou, pelo menos, limitar a compreensão sobre o universo das ações
estatais. Ao desvalorizar as discussões sobre as funções estatais e o desenvolvimento
histórico-social capitalista impulsionado pelas lutas de classes, ocultam as reais limitações e
possibilidades das políticas públicas, tratando seus propósitos e seus efeitos concretos como
meras questões tecnicistas e gerenciais. Mas o que explicaria essa “miopia” ou
“irracionalismo”, utilizando as expressões de Cunha e Ferraz (2015)?
O que as pesquisas têm indicado é que essa tendência se relaciona, pelo menos em
parte, com o próprio movimento histórico contemporâneo, o qual tem reforçado as mais
diversas concepções teóricas sobre o fim da história, nos termos trabalhados por Francis
Fukuyama (1992). Quando a administração (pública e geral) e a área de políticas públicas
ignoram (quase completamente) as questões aqui levantadas, assim o fazem por considerar,
implícita ou explicitamente, que as lutas de classes e as disputas entre distintos projetos de
sociedade ficaram no passado e que, portanto, o que restar disso não passa de inconformidade
residual. Ora, o pressuposto de “estabilidade democrática” já indica esta perspectiva. Os
infinitos modelos de políticas públicas divergem em muitos pontos técnicos e gerenciais, mas
concordam em um aspecto central: somente podem ser aplicados e avaliados se respeitadas as
condições ambientais “ideais”, que apenas uma “democracia estável” pode oferecer. Em
poucas palavras, há que se respeitar as regras do jogo. Não é à toa que a introdução prática do
conceito se deu nos “anos dourados” do capitalismo.
Na área do governo propriamente dito, a introdução da política pública como
ferramenta das decisões do governo é produto da Guerra Fria e da valorização da
tecnocracia como forma de enfrentar suas consequências. Seu introdutor no governo
dos EUA foi Robert McNamara que estimulou a criação, em 1948, da RAND
Corporation, organização não-governamental financiada por recursos públicos e
considerada a precursora dos think tanks. (SOUZA, 2006, P.22-23)
No mundo capitalista central, o ambiente que marcou o período entre o pós-guerra
e a crise de superacumulação dos anos 60/70 ficou conhecido como os “30 anos dourados”.
Neste período, consolidou-se nos países ocidentais o mito que atribui ao Estado a capacidade
de mediar as relações entre mercado e sociedade, domando as consequências contraditórias da
ampliação do sistema do capital, pondo fim às desigualdades e garantindo um bem-estar geral.
Sérgio Lessa (2013) estudou profundamente as obras de diversos autores fundamentais para a
propaganda de que o Estado de Bem-Estar funcionaria como a possibilidade real de garantir
uma distribuição equitativa de renda e uma efetiva transformação social por meio da
implementação de políticas públicas. Dentre eles, destacam- se Gosta Esping-Andersen e
Ferran Coll. De forma resumida, pode-se dizer que, segundo tais autores, o Estado de Bem-
Estar representaria uma ruptura com Estados do passado, isto é, aqueles anteriores à grande
crise dos anos 20/30 e a Segunda Guerra. Lessa (2013) notou que esse “novo” Estado estaria
supostamente marcado por abrigar os interesses dos explorados e dominados, o que se
materializava em intervenções estatais na economia, por meio da implementação em larga
escala de políticas públicas de cunho social. Ademais, a democracia liberal também se vê
frequentemente atrelada às definições deste “novo” tipo de Estado, as

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

quais advogam pela necessária conjugação de um regime político democrático com uma
economia de mercado.
Respeitando a primazia do objeto, Lessa (2013) investigou os resultados reais
produzidos por experiências de políticas públicas adotadas nos poucos países capitalistas
dominantes que chegaram a adotar, mesmo que parcialmente, características do que ficou
conhecido como Estado de Bem-Estar. Foram investigadas políticas aplicadas no decorrer dos
“30 anos dourados” em diversas áreas e em distintos países, como Inglaterra, França,
Alemanha, Suécia, EUA, e outros. Entretanto, nenhuma das políticas públicas analisadas, em
nenhum dos países, produziram os alegados efeitos de distribuição equitativa de renda, de
“socialização” ou de “desmercadorização”, tão alardeados pelos ideólogos do Estado de Bem-
Estar (Lessa, 2013).
Saúde, educação, moradia, racismo e a política em relação aos imigrantes, crianças e
adolescentes: nessas áreas os alegados elementos democratizantes da vida social não
puderam ser encontrados. Nenhum sinal de "desmercadorização", de um "Estado
moralmente mais elevado", voltado ao bem-estar dos mais carentes. A história tem
lá suas ironias. A cidadania estendida aos negros estadunidenses reafirma sua
subalternidade de classe. As doenças e seus tratamentos, a educação e sua qualidade,
as moradias, os direitos civis, o destino dos jovens... em cada um desses setores o
que determina o que o indivíduo vai receber da sociedade não é sua cidadania, mas a
classe a que pertence. Há, portanto, que analisar com realismo as políticas públicas,
suas finalidades e suas consequências. Há que ir para além do discurso fácil e
apologético do status quo na análise das finalidades reais e das realizações do Estado
de Bem-Estar. Todos os dados encontrados indicam que as políticas públicas do
Estado de Bem-Estar voltadas ao desemprego, aos idosos, ao racismo e à xenofobia,
à saúde, à educação, à moradia, às crianças e adolescentes afirmam o predomínio da
lucratividade e da estabilidade do sistema do capital sobre toda e qualquer outra
consideração. Tal como antes dos "30 anos dourados" e tal como depois, nos anos de
neoliberalismo. (LESSA, 2013, p. 58)
Dito de outra maneira, nem mesmo aqueles poucos países que conseguiram adotar
ou se aproximar do tal modelo ideal de Estado foram capazes de chegar minimamente
próximos das promessas de seus defensores. Em uma palavra, a máxima propaganda da face
humana do Estado não corresponde à realidade.
No entanto, apesar dos pífios resultados concretos, a operação ideológica
observada por Lessa (2013) se mostrou profundamente exitosa.
Dentre as falsas ideologias que a vida alienada sob o capital produz incessantemente,
seria difícil encontrar nas ciências humanas uma mais constante, generalizada e
distante da realidade do que o mito do Estado de Bem-Estar. (LESSA, 2013, p.123)
Segundo o autor, a gênese deste mito se funda em teses que compõe um amplo
campo de pensamento, da direita à esquerda, e que promovem, de diversas formas, um
distanciamento do Estado de sua base material, negando, consequentemente, seu caráter de
classe. Mas toda falsificação desse tipo, por mais que descolada da realidade, tem uma função
concreta. Assim, partindo das análises sobre os resultados reais das políticas públicas e das
concepções teóricas que circundam um pretenso “Estado social”, “ético” ou
“desmercadorizador”, Lessa (2013) chegou ao que seria, de fato, a função social deste mito.
A função social da noção de Estado de Bem-Estar é, em primeiro lugar, "explicar"
como evolução democrática em direção à justiça social as repercussões na totalidade
social das transformações na reprodução do capital em sua fase monopolista. Acima
de tudo, realçar os "aspectos positivos" da necessidade de uma superior articulação
entre as mais-valias relativa e absoluta com a geração de um mercado consumidor
que inclui parte dos trabalhadores. Em segundo lugar, "explicar" a disposição à
colaboração com a burguesia da aristocracia operária e da pequena burguesia como
consequência do fato de que o Estado teria se ampliado de modo a perder seu caráter
de classe e se converter, sempre contraditoriamente, em expressão da totalidade da
sociedade. Feito isso, o mito do Estado de Bem-Estar converte-se em expressão
acabada do Zeitgeist "conservador" já mencionado: possibilita que se cale sobre o
caráter de classe das políticas sociais, sobre como elas servem para uma maior

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

exploração dos trabalhadores e, ainda, possibilita "esquecer" o caráter imperialista


dos Estados de Bem-Estar. Para este Zeitgeist "conservador", o mito do Estado de
Bem-Estar é uma concepção ideologicamente muito útil. Contudo, não passa de um
"falso socialmente necessário", pois não tem serventia quando se trata de
compreender o que de fato sucedeu neste período histórico. (LESSA, 2013, p. 142)
Ao mesmo tempo, essa operação ideológica elevou a democracia liberal ao status
de bem universal, interpretação que também atingiu fortemente o campo da esquerda, como se
pode ver na argumentação de João Quartim de Moraes, em seu texto “Contra a Canonização
da Democracia” (2001). Mas o que seria, de fato, uma democracia liberal?
Para definir uma democracia de tipo liberal, o cientista político Norberto Bobbio
(2000) parte do liberalismo, que, segundo ele, é a doutrina que defende a limitação tanto dos
poderes quanto das funções do Estado. O Estado limitado em poderes seria aquele não-
absoluto, que respeita as liberdades individuais, expressado pela noção de “Estado de direito”.
Já a limitação de suas funções diz respeito ao cenário de mínimas intervenções econômicas,
sendo representado pela noção de “Estado mínimo”. Segundo o escritor italiano, o Estado
liberal é aquele marcado, preferencialmente, por ambas as limitações, mas que aceita a
eventual inexistência de uma delas. Em outras palavras, são liberais tanto um Estado de
direito que empreende largas intervenções na economia, quanto um Estado que não respeita as
liberdades individuais, mas que estimula a “livre concorrência”.
Para Bobbio (2000), o encontro entre liberalismo e democracia se daria com o
reconhecimento da necessária inviolabilidade dos direitos individuais para a garantia de
liberdade contra as tendências de eventuais abusos praticados por governantes. Em suma, a
democracia representativa seria a objetivação da soberania popular; seria o modo correto e
eficaz de exercer o poder político, sem colocar em risco os direitos individuais. Este encontro
estaria marcado pelo compromisso do Estado de direito com o método de representação
democrático. Segundo Bobbio (2000), a forma mais eficiente de garantir o gozo das
liberdades liberais (de opinião, de reunião, de associação, etc.) está na permissão de que os
indivíduos participem e votem em pleitos eleitorais, influenciando, assim, nas decisões
coletivas.
Ideais liberais e método democrático vieram gradualmente se combinando num
modo tal que, se é verdade que os direitos de liberdade foram desde o início a
condição necessária para a direta aplicação das regras do jogo democrático, é
igualmente verdadeiro que, em seguida, o desenvolvimento da democracia se tornou
o principal instrumento para a defesa dos direitos liberais. Hoje apenas os Estados
nascidos das revoluções liberais são democráticos e apenas os Estados democráticos
protegem os direitos do homem: todos os Estados autoritários do mundo são ao
mesmo tempo antiliberais e antidemocráticos. (BOBBIO, 2000, p. 44)
Em síntese, a junção do método democrático com os direitos liberais forma a base,
no campo das ideias, do que conhecemos usualmente como Estado democrático de direito. O
Estado de Bem-Estar seria, por assim dizer, a materialização da máxima garantia de direitos
alcançada por meio de uma democracia liberal; a face mais humana que um Estado capitalista
jamais poderia assumir. Visto este suposto pacto entre democracia e um Estado de “espírito
superior”, algumas perguntas sobre a realidade democrática devem necessariamente ser feitas.
Podemos definir como democráticos Estados como os da França e dos Estados
Unidos, que discriminavam os argelinos e os negros, respectivamente, de suas
cidadanias? Poderiam ser democráticos Estados que favoreceram com suas políticas
urbanas a especulação imobiliária e condenaram milhões de seus cidadãos aos
guetos, slums, cortiços e favelas de todos os tipos? Que financiaram a transformação
da saúde em big business nas mãos da indústria farmacêutica e afins? Que
converteram a educação em mercado consumidor de livros e outros materiais
didáticos para maior glória de grandes corporações? Que organizaram a sala de aula
como centro de lavagem cerebral e doutrinação de suas juventudes? Seriam
democráticas as ações da Inglaterra na Irlanda, dos EUA no Vietnã, da França na
Indochina e na Argélia, em uma lista de intervenções imperialistas que poderia se
alongar por algumas páginas? Em que definição de democracia seriam aceitáveis

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Estados que, durante os "30 anos dourados", desenvolveram, empregaram e


disseminaram o uso da clean torture, como a França, os Estados Unidos, a Inglaterra
e a Alemanha? Deportar milhares de suas crianças e adolescentes às ex-colônias
para servirem de mão de obra escrava qualifica um Estado como democrático? Para
aqueles que definem os Estados de Bem-Estar como democracias, não lhes restam
mais do que duas alternativas: devem redefinir a democracia para torná-la
compatível com a tortura, com as políticas públicas a serviço da ampliação da
lucratividade do capital e com o imperialismo, ou, então, não mais definir como
democráticos os Estados de Bem-Estar. (LESSA, 2013, p. 116-117)
Na mesma linha, mas não tratando apenas das expressões democráticas em
Estados de Bem-estar e sim em qualquer tipo de Estado liberal, José Saramago, em seu texto
preparado para o Fórum Social Mundial de 2005, realizado na cidade de Porto Alegre,
apontou a necessidade urgente de se discutir a democracia.
Tudo se discute neste mundo, menos uma única coisa: a democracia. Ela está aí,
como se fosse uma espécie de santa no altar, de quem já não se espera milagres, mas
que está aí como referência. E não se repara que a democracia em que vivemos é
uma democracia sequestrada, condicionada, amputada. O poder do cidadão, o poder
de cada um de nós, limita-se, na esfera política, a tirar um governo de que não se
gosta e a pôr outro de que talvez venha a se gostar. Nada mais. Mas as grandes
decisões são tomadas em uma outra grande esfera e todos sabemos qual é. As
grandes organizações financeiras internacionais, os FMIs, a Organização Mundial do
Comércio, os bancos mundiais. Nenhum desses organismos é democrático. E,
portanto, como falar em democracia se aqueles que efetivamente governam o mundo
não são eleitos democraticamente pelo povo? Quem é que escolhe os representantes
dos países nessas organizações? Onde está então a democracia? (SARAMAGO,
2007)
Essa é a tal “democracia estável/ideal” aludida por Souza (2006): uma democracia
representativa de tipo liberal, que também pode ser chamada de burguesa-representativa ou,
simplesmente, democracia do capital. Como denuncia Saramago (2005), esta é a democracia
que conhecemos e que reverenciamos, a qual não abre a menor possibilidade de intervenção
popular nos espaços onde as verdadeiras decisões são tomadas. A democracia liberal permite,
no máximo, a igualdade política formal e rigidamente controlada. Entretanto, convive
perfeitamente bem com a desigualdade econômica, cultural, etc., conservando, com
naturalidade, a divisão social entre dominantes e dominados, entre exploradores e explorados.
Segundo Ellen Wood (2012), trata-se de um formato democrático que tem a
função histórica de agir como artifício de legitimação do poder burguês, na medida em que
assegura a separação entre as esferas política e econômica, e mantém intactas as relações
capitalistas de produção. Segundo a autora, a liberdade política em formações democrático-
liberais não colocam em cheque a liberdade econômica fundada na exploração do homem
pelo homem e na alienação do trabalho. Dito de outra maneira, a democracia representativa
liberal, mesmo se levada ao seu extremo em termos de garantir liberdade política formal – e o
que seria isso? a democracia vista nos Estados de Bem-Estar? –, ainda assim não representaria
ameaça, nem mesmo um mínimo constrangimento concreto à apropriação privada de trabalho
social (Wood, 2012).
Em suma, a cortina ideológica que cobriu o Estado de Bem-Estar (liberal) se
estendeu à democracia liberal, a qual, apesar das profundas contradições entre teoria e prática,
firmou-se, sobretudo a partir dos “30 anos dourados”, como a expressão de poder político
“ideal” para toda e qualquer sociedade.
É evidente que este tipo de trabalho ideológico (a pretensão de universalizar os
interesses e os projetos dominantes para a totalidade social) se apresenta em toda a história do
capitalismo, não apenas em seus “anos dourados” e no ambiente neoliberal atual. Na verdade,
trata-se de um típico complexo ideológico que está presente em todas as sociedades de classes
já existentes, como apontam os vigorosos estudos de György Lukács. O que se pretende aqui
é sublinhar que as condições históricas da metade final século XX permitiram um

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

aprofundamento destes dispositivos ideológicos na etapa do capitalismo neoliberal. Referimo-


nos à combinação de um complexo conjunto de condições históricas que permitiram a
atualização de certos mitos.
Neste cenário de fim de século, dois processos históricos foram essências para a
totalidade do desenvolvimento social: a crise do “socialismo real”, que afetou todas as
esquerdas do mundo (do comunismo à socialdemocracia), culminando na dissolução da União
Soviéticavi; e a crise de superacumulação capitalista dos anos 60/70, originada na derrocada
do modelo fordista e de onde emergiu a restruturação produtiva e os projetos neoliberais que
marcaram as últimas décadasvii. Essa conjuntura histórica permitiu o prolongamento
atualizado de mitos construídos durante todo o capitalismo, sobretudo nos “30 anos
dourados”. Nota-se aqui especialmente o aprofundamento de duas articulações ideológicas: 1)
a (re)afirmação do capitalismo enquanto sistema produtivo com potencial de colocar fim às
desigualdades sociais, políticas e econômicas; e 2) o (re)fortalecimento da neutralidade do
Estado, que, combinado à democracia liberal, seria a máxima expressão política passível de
ser construída pelos homens.
Apesar das infinitas contradições que incidiam sobre o projeto soviético, o bloco
liderado pela URSS exercia alguma pressão no mundo capitalista, constrangendo-o a afrouxar
certas intransigências de seus imperativos, o que de fato ocorreu durante os “30 anos
dourados” em pouco países centraisviii. A Perestroika e a Glasnost, combinadas às saídas
neoliberais, funcionaram, assim, como se uma das principais teses burguesas tivesse
finalmente se comprovado: a sociedade capitalista seria o auge do desenvolvimento humano.
Este foi o caldo histórico que auxiliou no aprofundamento e na atualização de
certos mitos. A articulação entre Estado “neutro”, democracia liberal e “livre mercado” (o
mediador “ideal” das relações sociais) poderia ser definitivamente tratada como a
possibilidade mais avançada de organização social e, portanto, a etapa última do
desenvolvimento histórico-social. É nesse cenário onde se localiza, nos dias de hoje, as
perspectivas predominantes sobre políticas públicas e a “estabilidade democrática”
mencionada por Souza (2006). Em um Estado simultaneamente de “direito” e “mínimo”, pois
“democrático” e garantidor da “livre concorrência”. Trata-se, de fato, da reafirmação e
renovação, pelo menos no mundo das ideias, da doutrina liberal clássica, por meio da
hegemonia das ideias forjadas em Mont Pelèrin. Para liberais e neoliberais, a história do
mundo dos homens enfim se exauria, tal como Fukuyama (1992) bem sintetiza.
Nesse sentido, a argumentação elaborada por Perry Anderson (1992) acerca do
fim da história se torna valiosa para estabelecermos conexões com a gestão das políticas
públicas. A resenha feita por Rosa Maria Vieira (1993) evidencia o eixo central da tese de
Anderson sobre o trajeto que liga Hegel a Fukuyama.
Tendo sempre como contraponto a vertente hegeliana do final do século XVIII,
Perry Anderson analisa as ideias de teóricos como Antoine-Augustin Cournot, o
pioneiro da moderna teoria do preço; Alexandre Kojève, a segunda declarada
inspiração de Fukuyama, e, finalmente, um conjunto de pensadores contemporâneos
como Henri de Man, Arnold Gehlen e Jürgen Habermas. Rastreada a ‘intrincada
história’ existente por trás da versão de Fukuyama, Anderson procura mostrar como
os legados de Hegel e Kojève aí se combinaram de modo original. De Hegel vieram
dois elementos: ‘o constitucionalismo da Rechtsphílosophie’ e o ‘otimismo de sua
concepção do próprio fim como concretizador das liberdades na terra’. De Kojève,
‘o sentido de centralidade do hedonismo do moderno consumo, e da capacidade da
significação tradicional do Estado Nacional’. Em resumo, uma síntese onde se
reuniram a democracia liberal e a prosperidade capitalista num enfático nó terminal.
(VIEIRA, 1993, p. 128-129)
Como vimos, as concepções predominantes sobre políticas públicas operam
justamente nesse nó terminal demarcado por Fukuyama (1992): na síntese entre democracia
liberal e a prosperidade capitalista, ideário reforçado nesta etapa de capitalismo neoliberal.
Não é mera obra do acaso, portanto, que as mais distintas teses fundadas no fim da história

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tenham ganhado força nos últimos anos, de Francis Fukuyama ao mainstream da


administração e das políticas públicas. No entanto, diferente do idealismo de Hegel, que
universalizava o ideário burguês no único período histórico em que esse teve algum papel
social progressista (na transição do feudalismo para o capitalismo), o que o campo da
administração e das políticas públicas fazem atualmente, ao mistificar o capitalismo, é
idealizar e generalizar um projeto de sociedade historicamente esgotado. Isso torna a área
essencialmente conservadora, pois funciona sob a racionalidade do capital, e ideológica, pois
atua no sentido de falsificação da realidade, tal como empregado por Marx e Engels em “A
Ideologia Alemã” (1979).

III - As Políticas Públicas no Terreno da História


Pode-se afirmar que o esvaziamento de qualquer espírito progressista do
capitalismo já estava explícito em meados do século XIX, mais precisamente no fim da
década de 1840, com a explosão de revoltas operárias por toda a Europa. Os movimentos dos
trabalhadores tiveram início justamente pela completa impossibilidade de concretização dos
ideais defendidos pelas revoluções burguesas.
Conforme demonstra o denso trabalho de Gurgel e Ribeiro, intitulado “Marxismo
e Políticas Públicas” (2011), a despeito das palavras de ordem pregadas pela Revolução
Francesa de 1789, o que a nova ordem produzia de fato era a liberdade, a igualdade e a
fraternidade apenas para uma classe. Assim, a eclosão de revoltas operárias na década de
1840 já evidenciava ali que o desenvolvimento histórico do domínio social e produtivo
exercido pela classe burguesa significava também o desenvolvimento de contradições e
"antagonismos irreconciliáveis”. Tais antagonismos, como apontam os autores,
aprofundavam-se de forma a ameaçar o próprio domínio burguês, o que exigia um poder
aparentemente posicionado acima da sociedade e capaz de conter estes riscos.
Aí está precisamente a natureza do Estado liberal, que assume novas funções com
o intuito de amortecer os conflitos intrínsecos ao modo de acumulação capitalista, oriundos de
sua lógica mais fundamental: a apropriação privada de trabalho social (Gurgel e Ribeiro,
2011). E é exatamente por isso que a burguesia não cria apenas o seu antônimo – o
proletariado –, como também se torna incapaz de livrar-se dessa massa de não-proprietários.
Em outras palavras, o capital necessita da manutenção do “agente de sua própria destruição”,
pois ele é, simultaneamente, o único produtor de valor desta sociedade.
Neste sentido, como apontam as obras contratualistas, liberais e marxianas
revisitadas por Gurgel e Ribeiro (2011), o século XIX significou não apenas o
desenvolvimento dos fatores de produção e das relações capitalistas, mas também o
progressivo avanço das lutas e da consciência dos trabalhadores. Com isso, aquele Estado de
quem a burguesia em sua fase revolucionária exigia apenas o laissez faire, laissez passer
(liberdade máxima para a propriedade privada e para o exercício de seus negócios), ganha
novas funções sociais (Gurgel e Ribeiro, 2011). Após assumir definitivamente o poder
político ao longo do século XIX, a burguesia passou a conviver com dois movimentos
históricos simultâneos: o aprofundamento das contradições do sistema (fundadas na
apropriação privada de trabalho social); e o crescimento do nível da consciência e da
capacidade de luta das classes exploradas (Gurgel e Ribeiro, 2011). Era o desenvolvimento
histórico das lutas de classes que pressionava à necessidade de ampliação dos papeis do
Estado. As limitações de poderes e de funções mencionadas por Bobbio (2000), quando
avaliadas historicamente, enxergam-se indissoluvelmente atreladas a essa problemática
estrutural.
Mas é claro que estas necessidades e, com isso, as próprias funções assumidas
pelo Estado se modificaram com o tempo. Por essa razão, nota-se um acúmulo de
contribuições teóricas que tentam compreender tais alterações no decorrer da história. O
estudo feito por Gurgel e Ribeiro (2011) partiu de autores contratualistas clássicos (Locke,

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Hobbes e Rousseau), que formam a base de sustentação das mais diversas concepções liberais
de Estado, passou pelos escritos de Marx e Engels, e chegou à tradição marxista, em especial
a Gramsci, Althusser e Poulantzas. A partir principalmente dessas fontes, os autores
estabeleceram um trajeto histórico das funções do Estado, propondo quatro dimensões que se
acumulam e que influenciam diretamente as possibilidades e os limites das políticas públicas.
Traçaremos abaixo, muito resumidamente, tais dimensões.
A primeira característica remete à época de transição e ao início da consolidação
capitalista. Naquele momento, o principal interesse burguês estava na redução de obstáculos à
acumulação, como a extinção de tributos, pedágios e outras restrições que eram feitas pelo
Estado Feudal. “As políticas públicas aqui se faziam em grande medida, preponderantemente,
pela inação, supressão e omissão” (GURGEL e RIBEIRO, 2011, p. 31). Em seguida, os
autores notam a dimensão de dominação intensamente repressiva e violenta, da qual emergem
as políticas legalistas e de fundo militar e policial. Trata-se, predominantemente, do Estado
em sua função Gendarme.
A terceira dimensão se revela quando as classes que entram em contradição com o
sistema do capital alcançam certa densidade política, teórica e estratégica, passando a ter
alguma condição de concorrer com a burguesia pelo poder de Estado (Gurgel e Ribeiro,
2011). Nesse momento, as políticas públicas não podem mais se resumir à dimensão
repressora. Para continuar defendendo a propriedade privada, há que expandir as funções do
Estado. Duas tendências se observam a partir daí: políticas públicas que alavancam o
enraizamento de ideias e discursos dominantes, buscando consentimento e legitimidade,
especialmente dentro das classes dominadas; e políticas que absorvem certas pautas das lutas
populares, o que funciona como uma espécie de concessão rigidamente controlada.
Já a quarta dimensão, aquela que predomina nos dias hoje,
[...] corresponde de um lado às necessidades crescentes de investimentos,
necessários à reprodução do capital em patamares cada vez maiores; de outro, aos
limites da acumulação, criados pelo aguçamento da contradição fundamental –
produção social versus apropriação individual. Trata-se de um mecanismo de
profunda contradição em que se encontra o sistema, para quem é necessário
aumentar a produtividade, frequentemente associada ao aumento da produção, mas
ao mesmo tempo não encontra consumidores na escala da produção obtida.
(GURGEL e RIBEIRO, 2011, p. 32)
Como afirma István Mészáros (2011), a contemporaneidade, marcadamente a
partir da crise dos anos 60/70, está determinada pelo que chamou de longa crise estrutural do
capital. Na atualidade, portanto, o Estado atua predominantemente como um verdadeiro
gestor do sistema e de suas crises sucessivas. É nesse contexto que deve empregar políticas
garantidoras das condições de acumulação (infraestrutura, pesquisa e inovação, crédito,
formação de mão-de-obra qualificada, compensação mínima para as consequências sociais,
etc.), e, simultaneamente, deve atuar como sócio direto da classe dominante, garantindo que
os prejuízos do capital sejam sempre coletivizados (salvamento direto de empresas privadas
nas crises, por exemplo).
Partindo destas dimensões e da clássica percepção de Marx de que o “verdadeiro
teatro da história é a sociedade civil”, os autores afirmam, enfim, que os limites estruturais e
as possibilidades de transformação da realidade inerentes às políticas públicas dependerão do
desenvolvimento histórico-social e do estágio das lutas de classes em dado espaço-tempo.
De tudo isto, fica a percepção de que a intensidade e a efetividade da luta de classes,
em suas diversas formas, é que poderão dizer se as concessões feitas serão
transmudadas em cooptações e integrações da classe dominada – seus dirigentes
e/ou suas propostas programáticas - à classe dominante ou se, ao contrário, serão
abertas fissuras por onde passarão as forças para a transformação e não para o
transformismo. (GURGEL e RIBEIRO, 2011, p. 32)

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Considerações Finais
Realizada esta breve revisão de teorias e modelos de políticas públicas, assim
como de reflexões críticas sobre o tema, podemos, enfim, esboçar algumas considerações.
Percebe-se, primeiramente, que tanto as críticas de Motta (2013), Fonseca (2013)
Monteiro, Coimbra e Mendonça (2006), quanto os estudos sobre políticas públicas feitos por
Lessa (2013) e as dimensões cumulativas identificadas por Gurgel e Ribeiro (2009), referem-
se, de formas distintas, às funções históricas das ações estatais. Entretanto, apesar de haver
diferentes dimensões que se acumulam e implicam em alterações nas formas de agir do
Estado ao longo da história capitalista, nota-se no decorrer do trabalho que o momento
predominante deste processo dialético e contraditório está precisamente no compromisso
inquebrantável com a reprodução e a acumulação de capital. Como apontou Lessa (2013), há
muito mais continuidades do que rupturas nestes momentos de mudanças e/ou inclusões de
novas atribuições ao Estado.
Tal como não houve uma ruptura na essência do Estado com a adoção das
políticas públicas, também não houve uma nova ruptura com sua essência
após a passagem ao período neoliberal. Tanto antes, como durante e depois
dos "30 anos dourados", o Estado continuou sendo "o comitê que administra
os negócios comuns de toda a classe burguesa". (LESSA, 2013, p.123)
Não se trata de considerar a política como um mero reflexo da economia, mas de
notar que “[...] a autonomia relativa do Estado burguês para com a reprodução do capital
apenas pode ser realidade em uma relação na qual a reprodução do capital é o momento
predominante na gênese e no desenvolvimento deste mesmo Estado” (LESSA, 2013, p. 144).
Pode-se, portanto, (re)afirmar a clássica tese marxiana de que o Estado possui um
irremediável caráter de classe. Diferente do que sugerem as definições e os modelos mais
difundidos sobre políticas públicas, vimos que o Estado do capital definitivamente não é uma
arena neutra que expressa a totalidade da sociedade. Ao contrário, está necessariamente
alinhado às necessidades de manutenção da propriedade privada, do mercado e, claro, de si
mesmo. Para isso, lança mão de distintas políticas, a depender dos contextos específicos,
fazendo com que suas dimensões de atuação se alterem de acordo com necessidades e
possibilidades conjunturais. Gurgel e Ribeiro (2011, p.31, grifo dos autores) chegam a dizer
com todas as letras: “[...] antes, talvez coubesse falar de um Estado Servidor, não desprovido
de contradições, mas essencialmente dirigido pelo projeto burguês e cônscio de sua
responsabilidade com o sistema”.
A partir daí, é possível sugerir algo sobre os limites e as possibilidades concretas
inerentes às ações estatais: qualquer política que se submeta aos imperativos do capital,
intencionalmente ou não, é necessária e essencialmente conservadora. Mas note, isso não
significa negar as reais possibilidades de se atenuar certas desigualdades por meio de políticas
públicas. Significa apenas reparar o óbvio: uma política pública gerida por governos nunca
ameaçará a gênese estatal. Isto é, a tarefa fundamental dos gestores políticos de um Estado no
contexto capitalista passará sempre pela manutenção das próprias condições políticas,
ideológicas, econômicas, etc. necessárias à reprodução social burguesa.
Tal como sublinham Fonseca (2013), Gurgel e Ribeiro (2009), dependendo da
conjuntura das lutas de classes, a aplicação de uma política pública poderá, de fato, permitir a
abertura de brechas para pequenos avanços de certos setores subalternos. No entanto, é
imperioso perceber que, enquanto existir capitalismo, existirá miséria e desigualdade, pois,
enquanto existir capital, existirá trabalho expropriado e alienado.
Como vimos, mesmo nos momentos históricos em que o Estado cedeu a certas
reivindicações vindas das camadas exploradas, a função última das políticas públicas nunca
deixou de ser um ótimo negócio para o capital. Mesmo no período de máxima expressão de
uma suposta face “humana”, ou seja, no decorrer dos “anos dourados” do capitalismo, as
políticas empreendidas pelo Estado de Bem-Estar não deixaram de privilegiar o lucro e a
propriedade privada, em detrimento do bem-estar coletivo. Supor algo diferente disso

322
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

significaria ignorar, falsificar e/ou silenciar as histórias que carregam o fardo das
consequências reais das tais políticas públicas. Daí resulta que as teorias e os modelos que
superestimam a autonomia estatal parecem mistificar os reais efeitos de suas políticas.
Conservam, de variadas formas, esperanças de que o Estado, se gerido corretamente, teria o
potencial de atuar ao lado do mercado como agente de transformações sociais profundas.
Em suma, o que fornece algum sentido transformador (por menor que seja) às
políticas públicas não é a subserviência aos imperativos capitalistas, como se prega na
literatura hegemônica sobre o tema, que opera naquele nó terminal traçado por Fukuyama
(1992). Esse espírito progressista está justamente na exigência pela quebra da lógica do
capital. Pode-se dizer, ainda, que quanto maior a participação das camadas populares, maior
será seu potencial de promover alguma mudança social. Entretanto, há que perceber que
nenhum projeto gerido por um Estado Servidor (Gurgel e Ribeiro, 2011) será capaz de
promover transformações substantivas. Uma política pública tal como conhecemos pode
promover, no limite, brechas e pequenos avanços para certas camadas dominadas e
exploradas, intensificando a dominação e a exploração de outras. Nada além disso.
Entendemos que as considerações anotadas neste trabalho – as características de
classe que fundam o Estado e a democracia liberal, assim como os limites estruturais e as
funções históricas das políticas públicas – devam ser urgentemente incorporadas às reflexões
centrais do campo da administração pública. Parece-nos que tais apontamentos podem
auxiliar o movimento da administração política em sua empreitada de pensar e criticar as
ciências da administração. Não no sentido de negar o debate e a construção de políticas
públicas, mas de repousá-las no terreno da realidade, combatendo as mais variadas formas de
miopias e irracionalismos. As políticas públicas devem ser consideradas a partir de seus
limites e suas possibilidades históricas concretas e não de fantasias que se fazem sobre elas.

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WOOD, Ellen M. Democracia Contra Capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011.
i
Focando no campo nacional da crítica em administração, para além dos legados deixados por Maurício
Tragtenberg e Fernando Prestes Motta, é possível localizar sérios trabalhos nos dias de hoje. Há uma série de
espaços que se dedicam a pensar criticamente a área, como o movimento da Administração Política, o Núcleo de
Estudos da Administração Brasileira (ABRAS/UFF), o grupo de pesquisa Economia Política do Poder e Estudos
Organizacionais (UFPR), o coletivo de trabalho Organização e Práxis Libertadora (UFRGS), o núcleo de estudos
em Gestão de Pessoas e Relações de Trabalho (Nec-GPRT/UFMG), o recém criado grupo de Estudos dos
Coletivos de Trabalho e das Práticas Organizacionais (ESCOPO/UFF), dentre outros.
ii
Sobre o campo crítico em estudos organizacionais, ver: FARIA, José Henrique de. Teoria crítica em estudos
organizacionais no Brasil: o estado da arte. In: Cad. EBAPE.BR vol.7 n.3. Rio de Janeiro, set., 2009.
iii
Além dos trabalhos de H. Laswell (1936), H. Simon (1957), C. Lindblom (1959 e 1979) e D. Easton (1965)
Celina Souza estudou diversos modelos de políticas públicas. Dentre eles estão: as tipologias de políticas
públicas, de Theodor Lowi (1964 e 1972); o incrementalismo, de Lindblom (1979), Caiden e Wildavsky (1980) e
Wildavisky (1992); os ciclos de política pública, que remetem a diferentes autores e estabelecem a política
pública “como um ciclo deliberativo, formado por vários estágios e constituindo um processo dinâmico e de
aprendizado” (Souza, 2006, p. 29); o modelo “garbage can”, de Cohen, Mach e Olsen (1972); o modelo de
coalização de defesa, de Sabatier e Jenkins-Smith (1993); o modelo de arenas sociais, que remete às iniciativas
do que Souza (2006) chamou de “empreendedores de políticas públicas” ou policy makers; o modelo do
equilíbrio interrompido, de Baumgartner e Jones (1993); os modelos influenciados pelo que Souza (2006)
denomina de “novo gerencialismo público e ajuste fiscal”, do qual se pode fazer clara ligação com o movimento
da nova administração pública (new public management - NPM).
iv
Essa afirmação não concorda, em hipótese alguma, com as formulações contemporâneas que advogam pelo
fim do trabalho. Constata apenas que vivemos nos dias de hoje um estágio de desemprego estrutural, o que não
anula que a geração de valor segue indissociável do trabalho concreto. Para aprofundar essa discussão, ver
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho.
São Paulo: Editoras Cortez e UNICAMP, 2002.
v
É importante ressaltar que este cenário foi interpretado a partir de uma opção de investigação dentre muitas
possíveis. Apesar das diferenças e novas possibilidades analíticas que seguramente seriam encontradas, entende-
se que, no que tange o campo das políticas públicas, estes outros trajetos confluiriam para os mesmos traços
centrais aqui elencados.
vi
Para uma melhor compreensão sobre esse ambiente de crise que marcou o movimento comunista mundial ver
CLAUDIN, Fernando. La crisis del movimento comunista (de la Komintern al Kominform). Espanha: Ruedo
Iberico - Iberica de Ediciones y Publicaciones, 1978. Sobre os impactos dessa crise no ambiente nacional, ver
GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. Ed.: 5ª. São Paulo: Expressão Popular, 2014.
vii
Para discussões mais profundas sobre a crise e as mudanças na produção ver HARVEY, David. A Condição
Pós-moderna. São Paulo: Editora Loyola, 1993. Para uma melhor compreensão sobre a doutrina e os projetos
neoliberais ver ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In: SADER, Emir e GENTILI, Pablo (org.)
Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. Sobre o
fenômeno de globalização e mundialização do capital, ver CHESNAIS, François. A globalização e o curso do
capitalismo de fim-de-século. In: Revista Economia e Sociedade, Campinas, v. 5, p. 1-30, dez. 1995.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

viii
Essa pressão deve ser lida com cuidado, pois se trata de um movimento contraditório. Ao mesmo tempo em
que mantinha acesas esperanças de que o sistema capitalista poderia ser superado, o projeto soviético também
impulsionou o ideário de que o Estado seria capaz de domar o mercado, via a ampliação e o fortalecimento de
seus aparelhos e das políticas sociais.

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Capitalismo e Democracia: Apropriações e Armadilhas Conceituais


Agatha Justen
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e EBAPE (FGV)

Claudio Gurgel
Universidade Federal Fluminense (UFF)

Resumo

Neste artigo, verificamos as diferentes apropriações do conceito de democracia, em face de sua


ampla difusão e defesa por setores antagônicos da sociedade. Nosso objetivo é, por meio dessas
categorizações, identificar as pretenções por traz dos ditintos discursos que defendem a
ampliação dos espaços de decisão coletiva. Para isso, por meio de um ensaio teórico, analisamos
o par conceitual Sociedade civil / Estado – bases para a definição de democracia e, em última
instância, do próprio capitalismo – buscando os seus sentidos histórico-políticos para
compreender como é possível alcançar democracia real, plena e radical. Constatamos que a
questão em tela é determinada pela luta de classes, tornando impossível seu entendimento sem
uma visão dialética da realidade. Por esse motivo, recorremos aos teóricos marxistas, além do
próprio Marx, que estudaram minusciosamente essa relação. Encontramos, de um lado, a
concepção liberal revitalizada pelo neoliberalismo, que se manifesta no discurso dominante e
nos espaços institucionalizados de participação social. De outro, está a perspectiva crítica,
cenectada com o real concreto, que nos leva a questionar as possibilidades de democracia plena
no modo de produção capitalista.

Introdução

O discurso favorável à democracia, nas últimas décadas, passou a ser recorrente na


administração, especialmente na administração pública. Congressos, encontros e revistas
acadêmicas necessariamente trazem alguma temática voltada à defesa da democracia.
Propugna-se a administração pública democrática, inclusiva e participativa; o governo aberto;
a cidadania e o controle social de maneira tão ampla que, de repente, todos,
indiscriminadamente, passaram a ser defensores da democracia. Aparentemente, a bandeira
histórica das classes penalizadas e marginalizadas pela ordem capitalista passou a ser a bandeira
de todos.
Essa ‘vitória da democracia’, no entanto, parece-nos incongruente quando consideramos
que vivemos em uma sociedade dividida em classes antagônicas. Como é possível que todos,
independentemente de sua posição de classe, defendam a democracia, precisamente a
democracia direta/participativa, quando, neste sistema, a liberdade de uns depende da privação
da liberdade de outros?
Partimos do entendimento de que o que está por trás desse fenômeno é uma distinção
mais do que conceitual sobre os termos que envolvem a democracia. Na verdade, uma distinção
epistemológica concernente à concepção de mundo e projeto de sociedade, portanto igualmente
uma distinção ideológica. Talvez estejamos diante de um conceito que expõe de modo especial
e radical a relação entre estas duas dimensões – epistemologia e ideologia – que o positivismo
tentou distanciar, mas que são dialeticamente unos.
No contexto teórico em que debatemos esse tema, o contexto da administração pública,
a democracia, em última instância, refere-se à relação entre sociedade civil e Estado. A
descentralização e constituição de espaços institucionalizados de participação social, tal como

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

os Conselhos Gestores de Políticas Públicas e o Orçamento Participativo (OP) difundiram-se


largamente em diferentes países do mundo, impulsionados tanto por setores das classes
subalternas como forma de questionar a ordem vigente, como por vozes assumidamente
comprometidas com o projeto voltado à conservação e reprodução do sistema. Exemplo dessa
confluência é o Orçamento Participativo, que surgiu em 1989 na cidade de Porto Alegre sob a
administração do Partido dos Trabalhadores. O OP foi a expressão de um movimento que tinha
como objetivo radicalizar a democracia como forma de dar voz e poder de decisão aos setores
excluídos. Nesse período, o projeto democrático era evidentemente vinculado à esquerda:
municípios governados por partidos de esquerda implementavam Conselhos Gestores de
Políticas Públicas e OP; municípios governados por partidos de centro-direita e direita
permaneciam com sua estrutura decisória centralizada. Entretanto, essa divisão não perdurou
por muito tempo. Já no final dos anos 1990, governos não comprometidos ideologicamente
com tais mudanças passaram a implementá-las. Como destacam Pinho e Santana (1998, s/p),
desenvolveu-se uma espécie de “mimetismo na gestão municipal”, pois “governos não só de
esquerda mas mesmo de perfil mais conservador acabam copiando, adotando propostas de
governos mais à esquerda, adaptando-as ao seu perfil ideológico” (grifo nosso). Atualmente,
da mesma forma, o Banco Mundial vem financiando diversos estudos sobre OP e, a partir de
2004, levou recomendações e orientações a governos locais de diversos países no mundo para
implementação desse mecanismo de gestão coletiva do orçamento (BANCO MUNDIAL,
2004).
Esse modelo de democracia participativa carrega como conceito chave o termo ‘controle
social’, no sentido de ‘controle da sociedade civil sobre o Estado’. Esse termo, que, como
destacam Bravo e Correa (2012, p. 130), parte de uma “suposta oposição entre Estado e
sociedade civil”, engloba duas categorias sobremaneira complexas. Entendê-las, bem como o
significado de sua inter-relação, é tarefa primordial para compreendermos porque correntes
opostas, com interesses e projetos de sociedade distintos, usam os mesmos termos em seus
discursos.
Neste artigo, realizamos um ensaio teórico que discute os diferentes sentidos histórico-
políticos do par conceitual sociedade civil / Estado, para finalmente compreendermos como
essas dimensões funcionam e se relacionam na realidade concreta. Queremos com isso, por um
lado, identificar as intenções presentes nos diferentes discursos que sustentam a democracia e,
por outro, para além dessa identificação, analisar o que significam essas categorias na essência
e o que elas oferecem para que se alcance a democracia real, plena e radical.
Em se tratando de administração política, compreendida como um campo específico da
área de Administração que estuda a gestão da produção, das relações sociais de produção e da
distribuição, o debate sobre o Estado, a sociedade civil e a convivência entre ambos nos ajuda
a melhor compreender os fatos e melhor nos colocar diante deles, na perspectiva da construção
da democracia, aquela em que de fato a vontade popular se eleve diante da minoria e do poder
que a serve.

De que sociedade civil e Estado estamos falando?

Controle social pressupõe não só a ideia de que sociedade civil e Estado são organismos
distintos, mas, mais do que isso, antagônicos. Esse antagonismo seria, de acordo com o discurso
recorrente que sustenta a ampliação do controle social, central em nossa sociedade. De um lado,
há a sociedade civil “separada do Estado e da economia, um reino à parte, potencialmente
criativo e contestador” (NOGUEIRA, 2003, p. 187) e, do outro, há o Estado, que, por sua
tendência totalitária e corrupta, deve ser controlado pela sociedade civil para que não se desvie

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de seu papel primordial, qual seja, promover o bem comum, no senso comum. A sociedade civil
seria, segundo esse discurso, formada por indivíduos e não por classes.
Coutinho (2006) lembra que a percepção dicotômica entre Estado e sociedade civil
ganhou força no cenário brasileiro no final da ditadura. Segundo ele, “no contexto da luta contra
a ditadura, sociedade civil tornou-se sinônimo de tudo aquilo que se contrapunha ao Estado
ditatorial” (COUTINHO, 2006, p. 46). Isso foi possível porque,

no período final da ditadura, até mesmo os organismos ligados à grande


burguesia (que sempre foi a principal beneficiária da ditadura) começaram
progressivamente – ao perceberem o seu inexorável declínio, a sua crescente
perda de qualquer legitimidade, em decorrência sobretudo da crise econômica
iniciada em meados dos anos 1970 – a se desligarem do regime militar,
adotando uma postura de oposição moderada. Disso resultou, já então, uma
primeira leitura problemática do conceito que estamos tratando: o par
conceitual sociedade civil / Estado [...] assumiu traços de uma dicotomia
radical, marcada ademais por uma leitura maniqueísta (Ibid., p. 46-47).

Essa leitura, que teve no contexto brasileiro um suporte, também emergiu no cenário
internacional. É o que constata Liguori (2006, p. 4), quando afirma que “o tema da sociedade
civil tornou-se centro do debate cultural e político a partir do fim dos anos 1970 no âmbito da
chamada “revolução neoconservadora” ou “neoliberal””.
Consequentemente, o mesmo termo ‘sociedade civil’ recebeu uma ampla diversidade
de significados. Como afirma Nogueira (2003, 186), “ao se disseminar largamente e colar-se
ao senso comum, ao imaginário político das sociedades contemporâneas, à linguagem da mídia,
o conceito perdeu precisão: empregam-no tanto a esquerda histórica quanto as novas esquerdas,
tanto o centro liberal quanto a direita fascista”. É assim que, com esse mesmo termo,

Busca-se apoio na ideia tanto para projetar um Estado efetivamente


democrático como para se atacar todo e qualquer Estado. É em nome da
sociedade civil que muitas pessoas questionam o excessivo poder
governamental ou as interferências e regulamentações feitas pelo aparelho de
Estado. Apela-se para a sociedade civil com o propósito de recompor as
“virtudes cívicas” inerentes à tradição comunitária atormentada pelo mundo
moderno, assim como é para ela que se remetem os que pregam o retorno dos
bons modos e dos bons valores. É em seu nome que se combate o
neoliberalismo e se busca delinear uma estratégia em favor de uma outra
globalização, mas é também com base nela que se faz o elogio da atual fase
histórica e se minimizam os efeitos das políticas neoliberais. Muitos governos
falam de sociedade civil para legitimar programas de ajuste fiscal, tanto
quanto para emprestar uma retórica modernizada para as mesmas políticas de
sempre, assim como outros tantos governos progressistas buscam sintonizar
suas decisões e sua retórica com as expectativas da sociedade civil (Ibid., p.
186).

Estamos tratando de uma mudança conceitual, pois antes, ao longo do século XX, o
termo sociedade civil estava “fortemente associado à elaboração marxista de Antonio Gramsci,
ganhando forte disseminação após a descoberta e o intenso trabalho de avaliação crítica de
Cadernos do Cárcere, no pós-Segunda Guerra Mundial” (Ibid., p. 187).
Essa mudança de perspectiva significa, acima de tudo, o reflexo de uma luta político-
ideológica. Isso porque, para Gramsci, como veremos adiante, sociedade civil e Estado

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significam “uma unidade na diversidade” (COUTINHO, 2006, p. 47), um todo complexo que
só é possível entender mediante a compreensão da luta de classes no sistema capitalista, na
medida em que o pensador italiano considera a “não separação, ou seja, a unidade dialética
entre política e sociedade, entre economia e Estado” (LIGUORI, 2006, p. 8).
A versão dicotômica desse par difere de Gramsci primordialmente porque nega não
apenas a luta de classes, mas a própria existência de classes. É a visão liberal retomada com a
emergência do neoliberalismo. Essa versão, que vê o Estado como uma entidade que cumpre
fundamentalmente a função de mediar os diferentes interesses dos indivíduos (não das classes),
para alcançar o bem comum, é encontrada desde os pensadores contratualistas, como Hobbes
(1979) e Locke (1978), em Weber (2005), nos autores liberais, em setores de centro-esquerda
e no senso comum.
A ideia de que o Estado é um mal a ser combatido e a sociedade civil, por seu turno, é
uma “terceira via”, fonte de tudo que é positivo, “potencialmente criativo e contestador, visto
ora como base operacional de iniciativas e movimentos não comprometidos com as instituições
políticas e as organizações de classe, ora como espaço articulado pelas dinâmicas da “esfera
pública” e da “ação comunicativa [Habermas]” (NOGUEIRA, 2003, p. 187), seria o contorno
mais “moderno” dessa visão dicotômica, já em contraposição às ditaduras na América Latina,
ao socialismo dos países soviéticos, ao Welfare State europeu e ao Estado interventor e
provedor em geral.
Coutinho (2006, p. 50) complementa que

Do ponto de vista ideológico, essa postura se manifesta, dentre outras coisas,


precisamente na tentativa teórico-prática de “despolitizar” a sociedade civil,
transformando-a num suposto “terceiro setor” que, situado além do Estado e
do mercado, seria regido por uma lógica pretensamente “solidária” e
“filantrópica”; de resto, uma vez constituído tal setor, o Estado deveria
transferir para o mesmo suas responsabilidades na gestão e implementação
dos direitos e das políticas sociais.

A despeito dessa enorme diversidade de significados, que guardam sentidos antagônicos


entre si, algo aliás, característico do pós modernismo, fato é que, apesar das disputas, há uma
ideia hegemônica (neoliberal) do que seja sociedade civil. O conceito deslocou-se “de uma
imagem de sociedade civil como palco de lutas políticas e empenhos hegemônicos, para uma
imagem que converte a sociedade civil ou em recurso gerencial – um arranjo societal destinado
a viabilizar tipos específicos de políticas públicas –, ou em fator de reconstrução ética e
dialógica da vida social” (NOGUEIRA, 2003, p. 187).
O que o neoliberalismo busca instituir é a “pequena política”, em substituição à grande
política, pela via do estímulo à “auto-organização da sociedade civil” (COUTINHO, 2006, p.
50). Trata-se de uma auto-organização orientada “para a defesa de interesses puramente
corporativos, setoriais ou privatistas” (Ibid.).

Até o momento, estamos analisando as bases político-ideológicas que sustentam a visão


atual sobre o conceito de sociedade civil e sua relação com o Estado. Essa visão, como
mencionamos acima, é parte estruturante da luta político-ideológica. O triunfo econômico do
neoliberalismo, para se efetivar, necessita tornar-se hegemônico1 e adquirir o consenso2 das
classes dominadas. O reposicionamento do conceito de sociedade civil, bem como de Estado,
associado ao estímulo tutelado a uma forma específica de organização social, cumpre o papel
de adquirir esse consenso. A isso se somam os esforços de disseminação do empreendedorismo,
do ideário da sociedade de “patrões” (ver SOTO, 2001), complementado pelo crescimento
vertiginoso do individualismo e da competição.

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Para entender como isso ocorre, não podemos nos ater à versão liberal, que transcreve
a realidade de maneira fragmentada e, por consequência, simplista. As dimensões política,
econômica e ideológica funcionam em unidade, de forma complexa. É necessário analisá-las
dialeticamente.

Estado / sociedade civil como unidade dialética: de Marx a Gramsci

Os estudos de Marx sobre o par sociedade civil/Estado, fundamental para o


desenvolvimento de suas análises em economia política, partiram da crítica à concepção de
Hegel. Marx contesta a formulação hegeliana de que “o fim do Estado [é] o interesse universal”
(MARX, 2010, p. 36), argumentando que o Estado assume a feição de defensor do interesse
universal apenas formalmente. Sua aparência é essa; sua essência é a defesa dos interesses de
classe (burguesia) como se esses interesses fossem universais. Nas suas palavras,

o interesse estatal, enquanto interesse real do povo, existe apenas


formalmente, e existe como uma forma determinada ao lado do Estado real.
[...] O elemento estamental é a mentira sancionada, legal, dos Estados
constitucionais: que o Estado é o interesse do povo ou o povo é o interesse do
Estado. Essa mentira será revelada no conteúdo [grifos do autor] (Ibid., p. 83).

Em A ideologia alemã, Marx e Engels explicam que o Estado precisa assumir uma
feição de defensor do interesse universal, à medida que

cada nova classe no poder é obrigada, quanto mais não seja para atingir os
seus fins, a representar o seu interesse como sendo o interesse comum a todos
os membros da sociedade ou, exprimindo a coisa no plano das ideias, a dar
aos seus pensamentos a forma da universalidade, a representá-los como sendo
os únicos razoáveis, os únicos verdadeiramente válidos (MARX e ENGELS,
s/d, p. 30).

Esse “interesse universal ilusório” manifesta-se “sob a forma de Estado” (MARX e


ENGELS, s/d, p. 18), cuja origem é a defesa de uma classe contra suas antagônicas. É o que
explica Engels, em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, quando afirma
que o Estado

é antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau


de desenvolvimento, é a confissão de que essa sociedade se enredou numa
irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos
irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que estes antagonismos,
essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não
consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado
aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e
mantê-lo dentro dos limites da ‘ordem’. (ENGELS, 1978, p. 191).

O autor destaca que há períodos, entretanto, em que “as lutas de classes se equilibram
de tal modo que o Poder do Estado, como mediador aparente, adquire certa independência
momentânea em face das classes” (Ibid., p. 194). Isso, contudo, não altera sua essência. É assim
que os autores alemães vão dizer que "todas as lutas no interior do Estado, a luta entre

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democracia, aristocracia e monarquia, a luta pelo direito ao voto, etc., etc., são apenas as formas
ilusórias nas quais se desenrolam as lutas reais entre as diferentes classes" (MARX e ENGELS,
1982f, p. 48).
Uma vez que se entenda que o Estado, para Marx, não é a totalidade existente e
consciente da sociedade humana, isto é, o universal-concreto, mas “um comitê para gerir os
negócios comuns de toda a classe burguesa” (MARX e ENGELS, 1982e, p. 23), é possível
compreender o que é a sociedade civil. Ao contrário de ser oposta ao Estado, a sociedade civil,
ainda que distinta, compõe a totalidade do modo de produção, razão porque, para Marx, como
já citado anteriormente, é ela “o verdadeiro lar e teatro de toda a história”, onde se trava a luta
de classe fundamental, dado que é nela que se desenvolvem a produção e as relações sociais de
produção, as relações econômicas. Como diz o pensador alemão no Prefácio à “Contribuição
à crítica da economia política”,

tanto as relações jurídicas como as formas de Estado não podem ser


compreendidas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito
humano, mas se baseiam, pelo contrário, nas condições materiais de vida cujo
conjunto Hegel resume, seguindo o precedente dos ingleses e franceses do
século XVIII, sob o nome de “sociedade civil”, e que a anatomia da sociedade
civil precisa ser procurada na economia política (MARX, 1982c, p. 301).

Aqui Marx localiza a sociedade civil na estrutura e o Estado, como dimensão jurídico-
política, na superestrutura. Não significa, no entanto, que o autor estabeleça uma separação
metafísica entre as duas esferas. São constitutivas de uma totalidade, e como tal, as partes são
interdependentes. O Estado não pode ser compreendido sem que se conheçam as relações
estabelecidas na sociedade civil, que congrega as classes antagônicas e, por consequência, suas
lutas. Essa ideia também é encontrada em A Ideologia Alemã, onde, de forma mais clara, Marx
e Engels (s/d, p. 24) afirmam que a história tem como base

o desenvolvimento do processo real da produção, contritamente a produção


material da vida imediata; concebe a forma das relações humanas ligada a este
modo de produção e por ele engendrada, isto é, a sociedade civil nos seus
diferentes estádios, como sendo o fundamento de toda a história. Isto equivale
a representá-la na sua ação enquanto Estado, a explicar através dela o conjunto
das diversas produções teóricas e das formas da consciência, religião, moral,
filosofia, etc., e a acompanhar o seu desenvolvimento a partir destas
produções; o que permite naturalmente representar a coisa na sua totalidade.

Embora as críticas ao idealismo hegeliano, isto é, ao entendimento de que o Estado seria


o sujeito da história e a sociedade civil o predicado, possam levar à interpretação de que o que
faz Marx é inverter essa ordem – sociedade civil como o sujeito da história e o Estado como
predicado – relegando, como alguns estudiosos interpretaram da citação anterior, de maneira
metafísica, ou seja, não dialética, a sociedade civil à estrutura e o Estado à superestrutura, nessa
passagem, fica evidente como Marx identifica uma relação muito mais complexa, dialética,
desses dois elementos. Como defende Liguori (2006, p. 7), Marx “não se limita a inverter a
relação Estado-sociedade hegeliana, mas se opõe a essa tese; critica a dicotomia ante a esfera
pública e a privada, refuta o confinamento do político no Estado e do socioeconômico na
sociedade, mostra como o poder (e a política) é a própria mediação de ambos os momentos”.
A compreensão de Marx e Engels sobre o papel do Estado, como argumentamos em
estudo passado (GURGEL e JUSTEN, 2011), está conectado com o estágio de desenvolvimento
do capitalismo de sua época. A burguesia, que “desempenhou na história um papel

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

eminentemente revolucionário” (MARX, 1982, p. 28), até a sua constituição enquanto classe
dominante, agiu apesar do Estado. Por isso, para esses pensadores,

o Estado no capitalismo não seria mais que uma consequência do


desenvolvimento econômico. Antecipando o que diriam mais adiante, em O
Capital, o verdadeiro teatro da história é a sociedade civil e nela,
essencialmente, a sociedade econômica, onde a nova classe dominante, a
burguesia, operava as transformações que levavam ao lucro e à acumulação
contínua. Não foi o Estado, tanto quanto não foram/nem são os heróis, que
explicam a origem e a expansão histórica do capitalismo, mas a própria ação
transformadora da burguesia (GURGEL e JUSTEN, 2011, p. 164).

Naquele estágio de desenvolvimento, o Estado assumia um papel gendarme, repressor;


um dos papéis históricos do “comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”
(op. cit.).
Antonio Gramsci, vivendo um momento distinto de desenvolvimento do capitalismo,
com a ampliação da intervenção do Estado nas esferas da produção e social, vê a política se
ampliar e ocupar muitos espaços. Eram várias as mudanças verificadas no início do século XX:
“alterações no padrão produtivo, expansão da classe operária, crescimento do associativismo,
da diversificação e da organização dos interesses, socialização da política, maior peso do Estado
vis-à-vis o mercado, aumento da regulação e das políticas de proteção e bem-estar etc”
(NOGUEIRA, 2003, p. 190). O pensador italiano, consegue, dentro do marxismo, apreender
esses novos desenhos e compreendê-los, fazendo a teoria marxista sobre o Estado se ampliar e
ganhar novos contornos – porque igualmente o real adquiria novos contornos. Por
consequência, o conceito de sociedade civil torna-se mais complexo, assim como o Estado,
passando ambos, integrados, a serem referenciais para o entendimento da realidade. Como
lembra Nogueira (2003, p. 186), entre os vários interlocutores que usam o termo sociedade
civil, “a referência nem sempre é Gramsci, mas Gramsci está presente sempre, é sempre
lembrado e muitas vezes é apresentado como parâmetro principal”.
O marxista italiano afirma que o “conceito de Estado, que, habitualmente, é entendido
como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo, para moldar a massa popular
segundo o tipo de produção e a economia de um dado momento)” (GRAMSCI, 2011, p. 267),
deve ser compreendido como “um equilíbrio da sociedade política com a sociedade civil (ou
hegemonia de um grupo social sobre toda a sociedade nacional, exercida através das
organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.)” (Ibid.).
Para ele, sociedade civil é “hegemonia política e cultural de um grupo social sobre toda
a sociedade, como conteúdo ético do Estado” (GRAMSCI, 2000, p. 225). De início,
concordando com Marx e Engels, Gramsci identifica a sociedade civil como arena de luta de
classes, onde um grupo social, a classe dominante, exerce hegemonia (uma forma complexa de
dominação) política e cultural sobre toda a sociedade. No entanto, a hegemonia necessita da
existência do Estado. Por isso, seu conteúdo ético está lá. Quando Gramsci esclarece o que
entende por Estado ético, ele revela de maneira mais detalhada sua compreensão do próprio
Estado. Nas suas palavras, “todo Estado é ético na medida em que uma de suas funções mais
importantes é elevar a grande massa da população a um determinado nível cultural ou moral,
nível (ou tipo) que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas e,
portanto, aos interesses das classes dominantes” (Ibid., p. 284).
Diferentemente do Estado do século XIX, ao Estado visto por Gramsci já não cabia mais
principalmente a função gendarme, repressora. A repressão, ferramenta indispensável do
Estado, revelara não ser suficiente para manter certo equilíbrio, ainda que instável, entre as
classes, isto é, controlar as classes subalternas. A história mostrava que a repressão tinha

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limites. Era necessário combiná-la com um mecanismo de aquisição do consenso das massas.
O Estado do século XX, como destaca Nogueira (2003, p. 190), “estava sendo reconfigurado:
era invadido pela socialização da política que se verificava e levado a ir além do aparato
repressivo e coercitivo”. Por isso, o Estado possui duas dimensões absolutamente necessárias
que podem ser ditas das seguintes maneiras: “força e consenso, coerção e persuasão, Estado e
Igreja, sociedade política e sociedade civil, política e moral, direito e liberdade, ordem e
disciplina ou [...] violência e fraude” (GRAMSCI, 2000, p. 243). A hegemonia é a expressão
do Estado no seu sentido ampliado (sociedade civil + sociedade política). Como diz Gramsci
(1981, p. 124), “el ejercicio ‘normal’ de la hegemonía [...] está caracterizado por una
combinación de la fuerza y del consenso que se equilibran.”
Introduzindo o que Althusser (1985), mais tarde, chamaria de aparelhos ideológicos de
Estado, Gramsci (2000, p. 284), tratando de como o Estado opera suas duas frentes, identifica
que

a escola como função educativa positiva e os tribunais como função educativa


repressiva e negativa são atividades estatais mais importantes neste sentido:
mas, na realidade, para este fim tende a uma multiplicidade de outras
iniciativas e atividades chamadas privadas, que formam o aparelho de
hegemonia política e cultural das classes dominantes.

Vale destacar que a hegemonia não surge a partir do Estado. Como diz o próprio
Gramsci, “a hegemonia vem da fábrica”, com as transformações fordistas e “uma quantidade
mínima de intermediários profissionais da política e da ideologia” (GRAMSCI, 1968, p. 381/2).
Mas é o Estado que vai aparecer como educador, dando assim a direção moral e intelectual à
sociedade. Por isso, Gramsci afirma que “a direção do desenvolvimento histórico pertence às
forças privadas, à sociedade civil, que é também ‘Estado’, aliás o próprio Estado” (GRAMSCI,
1968, p. 148).
Em outra passagem, Gramsci explica que “o Estado tem e pede consenso, mas também
“educa” este consenso através das associações políticas e sindicais, que, porém, são organismos
privados, deixados à iniciativa privada da classe dirigente” (GRAMSCI, 2000, 119). O sufrágio
cumpre a função de adquirir consenso, mas só o faz de maneira pontual. É necessário que o
consenso seja construído de maneira sistemática, “educando” o conjunto da sociedade. O
Estado tem essa responsabilidade de produzir um “consenso organizado” (Ibid.), diferente do
consenso “genérico e vago tal como se afirma no momento das eleições” (Ibid.).
Daí decorre sua definição mais conhecida: Estado = sociedade civil + sociedade política,
isto é hegemonia revestida de coerção” (Ibid., p. 244). Mais objetivamente, adiante, o autor
italiano refere-se a “Estado (no significado integral: ditadura + hegemonia). A sociedade
política é o Estado em sentido estrito ou o Estado-coerção, “formada pelo conjunto dos
mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da violência e da
execução das leis, mecanismos que se identificam com os aparelhos de coerção sob controle
das burocracias executiva e policial-militar, ou seja, com o governo (COUTINHO, 2006, p. 35).
A sociedade civil, como vimos, é formada pelo “conjunto das organizações responsáveis pela
elaboração e/ou difusão das ideologias” (Ibid.). Ela é a conformação de múltiplos organismos
“privados”, mas nem por isso menos estatais; eles (re)produzem relações de força e são agentes
de consenso e hegemonia. Por esse motivo, Nogueira (2003, p. 190) afirma que “a ideia
gramsciana de sociedade civil espelharia a nova situação: abrigava a plena expansão das
individualidades e diferenciações, mas acomodava também, acima de tudo, os fatores capazes
de promover agregações e unificações superiores”.
Como se vê, as funções estatais, que transcendem a sociedade política, são também
desempenhadas pela sociedade civil. Esta última, por conseguinte, assume, na teoria

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gramsciana, um caráter complexo, pois ao ser incluída como componente constitutivo do


Estado, torna-se parte da superestrutura. No entanto, como não poderia deixar de ser, não
abandona sua materialidade na estrutura. Seguindo a afirmação de Marx e Engels, em A
Ideologia Alemã, de que não é a ideia que constrói a realidade, mas a realidade que define a
ideia, a sociedade civil gramsciana é, em última instância, a arena da luta de classes, onde estão
presentes intensas contradições, constituídas pelas relações sociais de produção, portanto pela
estrutura. A sociedade civil, como o espaço que expressa os antagonismos indissolúveis entre
as classes, é também onde as lutas ocorrem. As classes dominantes passaram a se valer de
mecanismos, nessa mesma arena, para controlar as classes subalternas, para fazê-las
consentirem ativa (sob adesão ideológica) ou passivamente (aceitação) a ordem capitalista. É
por isso que Coutinho (2006, p. 41) afirma que, para Gramsci, “a sociedade civil é não só um
momento do Estado, mas o que nela tem lugar não pode ser entendido fora das relações sociais
que se expressam no mercado”.
Althusser (1985, p. 67, nota 7), reconhecendo que o autor italiano foi quem “teve a ideia
‘singular’ de que o Estado não se reduzia ao aparelho (repressivo) de Estado, mas compreendia,
como dizia, um certo número de instituições da ‘sociedade civil’”, identifica que essas
“instituições da sociedade civil” são Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE), que compreendem
“instituições distintas e especializadas (Ibid., p. 69), tais como igreja, família, sindicatos, escola,
cultura, sistema político, meios de comunicação, dentre outros. A função primordial de
qualquer AIE, para Althusser, é reproduzir as “relações de exploração capitalista” (Ibid., p. 78).
Nesse sentido, para este pensador, não faz sentido estabelecer uma separação entre público e
privado. Na relação Estado – sociedade civil, essa separação é tênue.
É importante destacar que Gramsci efetivamente ampliou a teoria marxista do Estado.
No entanto, não há qualquer oposição deste autor em relação aos fundamentos do marxismo e
do materialismo histórico. Gramsci não inverte a posição do Estado na órbita da história, ou
seja, não dá à esfera do Estado o protagonismo e a autonomia que alguns autores supostamente
enxergam em sua obra3.
Em primeiro lugar, como observa Coutinho (2006, p. 31), “para Gramsci, a produção e
reprodução da vida material continuam a ser o fator ontologicamente primário na explicação da
história”. Prova disso é a afirmação de Gramsci, em Cadernos do Cárcere, de que “a estrutura
e as superestruturas formam um ‘bloco histórico’, isto é, o conjunto complexo e contraditório
das superestruturas são o reflexo do conjunto das relações sociais de produção” (GRAMSCI,
2001, p. 250).
Em segundo lugar, Gramsci, em nenhum momento, nega – nem sequer minimiza – a
grande descoberta de Marx, qual seja, “o caráter de classe de todo fenômeno estatal”
(COUTINHO, 2006, p. 32), que é definido muito bem por Engels:

como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes, e


como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral,
o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante,
classe que, por intermédio dele, se converte também em classe politicamente
dominante, e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe
oprimida (ENGELS, 1978, p. 193).

Isso define a razão própria de ser do Estado, o qual só existe quando e enquanto houver
classes, pois sua função “é precisamente a de conservar e reproduzir esta divisão em classes,
assegurando que os interesses particulares de uma classe se imponham como se fossem os
interesses universais da sociedade” (COUTINHO, 2006, p. 32).
A teoria gramsciana tem esse fundamento marxista como pressuposto e, a partir do
materialismo histórico, procura decifrar a complexificação das relações sociais, da sociedade
civil e do Estado em correlação dialética, que tem como objetivo primordial produzir e

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reproduzir o sistema capitalista. Formam, assim, a “unidade na diversidade”. Por isso Gramsci
afirma que “a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como ‘domínio’ e
como ‘direção intelectual e moral’. Um grupo social é dominante dos grupos adversários que
tende a ‘liquidar’ ou a submeter também mediante a força armada; é dirigente dos grupos afins
ou aliados” (GRAMSCI, 2002, p. 62).
O marxista italiano mostra que a sociedade civil guarda autonomia material na
sociedade capitalista. Essa autonomia material é a que, segundo Coutinho, vai fazer com que
Gramsci enxergue o “conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das
ideologias” como “aparelhos privados de hegemonia”. Esse seria um fenômeno histórico
identificado por Gramsci, dado que o processo de ‘laicização do Estado’ promovido pelas
revoluções burguesas deslocaram os aparelhos ideológicos da esfera “pública”, no caso a igreja,
para a esfera “privada”. Dessa forma, “as ideologias, ainda que obviamente não sejam
indiferentes ao Estado, tornam-se assim algo ‘privado`”, porque “a adesão às ideologias em
disputa torna-se um ato voluntário – ou melhor, relativamente voluntário, já que poderosos
instrumentos de manipulação pressionam no sentido da adoção desta ou daquela ideologia – e
não mais algo imposto coercitivamente” (COUTINHO, 2006, p. 40).
A posição complexa da sociedade civil merece alguns apontamentos adicionais. Como
vimos, Gramsci a considera como parte do Estado e a define como uma esfera da superestrutura.
Contudo, ela não é o Estado em sentido estrito (esta é a sociedade política); a sociedade civil é
parte do Estado ampliado. Não significa, no entanto, que sua posição enquanto locus da
economia política desapareça. Ela é parte da superestrutura e também é estrutura. Por isso, Dias
(1996, p. 10), argumentando que não é correto limitar a sociedade civil gramsciana à
superestrutura, destaca que

O processo de hegemonia se realiza tanto no plano do movimento quanto no


plano das instituições. Não faz, assim, o menor sentido reduzir Gramsci a um
teórico da cultura ou das “superestruturas”. [...] Trata-se da transformação das
condições de existência das classes subalternas. Esta reforma intelectual e
moral deve, necessariamente, estar ligada a um programa de reforma
econômica que é, exatamente, o seu modo concreto de apresentar-se” [grifos
do autor].

Esse caminho analítico nos leva à questão da luta de classe. Se a sociedade civil é
responsável pela construção e difusão da ideologia e, ao mesmo tempo, é a arena dos conflitos
entre as classes antagônicas, é possível que as classes dominadas consigam disputar e
conquistar os “aparelhos privados de hegemonia”?
Essa é seguramente uma das questões mais polêmicas do pensamento de Gramsci,
melhor dizendo, da interpretação de seu pensamento. Isso porque nos leva à discussão “reforma
ou revolução”, cujos meandros pendulam entre o mecanicismo e o reformismo.
Gramsci, em Cadernos do Cárcere, coloca-se essa questão: “pode haver reforma
cultural, ou seja, elevação civil das camadas mais baixas da sociedade, sem uma anterior
reforma econômica e uma modificação na posição social e no mundo econômico?”
(GRAMSCI, 2000, p. 19). A resposta é categórica: “uma reforma intelectual e moral não pode
deixar de estar ligada a um programa de reforma econômica; mais precisamente, o programa
de reforma econômica é exatamente o modo concreto através do qual se apresenta toda reforma
intelectual e moral” (Ibid.).
Há, evidentemente, uma forte vinculação entre a estrutura e a superestrutura na resposta
de Gramsci. Em outras palavras, ele quer dizer que não é possível empreender a luta de classes
nas esferas da superestrutura sem que seja acompanhada por um projeto de alteração das
determinações econômicas, das relações sociais de produção.

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Essa discussão tem como pano de fundo o questionamento sobre quais são as
possibilidades de no âmbito dos AIE se empreender transformações. Althusser, que também se
debruçou sobre esta questão, afirma que essas instituições da sociedade civil que funcionam
como AIE são “os meios mas também o lugar da luta de classe” (ALTHUSSER, 1985, p. 71),
porque “a classe no poder não dita tão facilmente a lei nos AIE como no aparelho (repressivo)
do Estado” (Ibid.). Como a classe no poder “nunca chega a resolver, totalmente, suas próprias
contradições” (Ibid., p. 112), esses AIE são espaços de constante tensão e luta. No entanto, a
condição de totalidade da dominação de classe não permite que essas tensões e lutas possam
reverter a conformação de classe existente. Em outras palavras, é possível usar os AIE para
mostrar as contradições e impor tensionamentos e até derrotas pontuais às classes dominantes.
Não significa, contudo, que esses espaços possam ser disputados. Isso se evidencia com uma
passagem na qual Althusser pede “desculpas aos professores que, em condições assustadoras,
tentam voltar contra a ideologia, contra o sistema e contra as práticas que os aprisionam, as
poucas armas que podem encontrar na história e no saber que ‘ensinam’. São uma espécie de
heróis” (Ibid., p. 80). O autor destaca que, no entanto, “eles são raros, e muitos (a maioria) não
têm nem um princípio de suspeita do ‘trabalho’ que o sistema (que os ultrapassa e esmaga) os
obriga a fazer” (Ibid., p. 81).

Conclusões

Argumentamos, neste ensaio, que as diferentes apreensões do conceito de democracia e


do par sociedade civil / Estado revelam, em última instância, a luta de classes.
A reivindicação por democracia real foi feita, ao menos a partir do século XIX, pelas
classes subalternas, excluídas das esferas de decisão, destituídas dos meios de produção e
penalizadas pela ordem capitalista. A ideia de que não era possível conciliar democracia com
capitalismo ganhava considerável grau de concretude em um sistema voltado a satisfazer os
interesses dos setores dominantes. Essa bandeira da democracia passou a ser disputada pelo
pensamento liberal quando os questionamentos tornaram-se uma ameaça ao próprio sistema.
Três movimentos se tornaram evidentes e gradualmente presentes: o primeiro, a
adaptação teórica, por meio da construção de um conceito de democracia referenciado na visão
liberal de Estado e de sociedade, como entes distintos, mas agora mais que isto: opostos; o
segundo, a redução da sociedade a uma população de indivíduos (cidadãos), eclipsando as
classes; o terceiro movimento constituído pela revoluções passivas, por meio de aberturas
institucionais, como a introdução do sufrágio universal e, mais recentemente, de mecanismos
da gestão participativa de políticas públicas e do governo. Embora o contexto de profunda crise
do Estado ditatorial tenha contribuído para que a visão dicotômica e maniqueísta da relação
Estado-Sociedade se ampliasse, foi a emergência do projeto neoliberal que consolidou essa
compreensão. O sucesso ideológico desse projeto permitiu que, mesmo em xeque seus
pressupostos econômicos e políticos, permanecesse dominante a compreensão neoliberal de
sociedade e de Estado como distintos e opostos, com a inovação revitalizadora da participação
social.
Para a classe dominante, a apropriação da democracia participativa é a consolidação de
um diversionismo que faz do secundário – a contradição sociedade x Estado – o principal e
adicionalmente transfere o universalismo do Estado para a sociedade civil, que agora se torna
portadora do bem e do interesse comum. Cabe lembrar que no interior dessa sociedade civil se
desenvolve o mercado, como protagonista, seja enquanto detentor dos meios de produção, seja
como cidadão, mais precisamente cidadão-cliente. O discurso neoliberal, na defesa da
participação e do controle social, corresponde a essa inovação.
Para os setores subalternos e suas entidades representativas, sindicatos e associações,
atores individuais ou coletivos, a democracia participativa e seus mecanismos foram

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gradualmente se convertendo em instrumento único de organização e atuação. Os mecanismos


de participação institucionalizados se tornaram as arenas de luta desses atores e nelas eles se
deixaram aprisionar – se, e quando, nelas se fazem presentes e atuantes. Mas a subordinação ao
sistema, dessas instituições, enquanto aparelhos que se vão tornando tão comprometidos como
os demais aparelhos ideológicos do Estado, acaba por fazer deles instrumentos institucionais
de coonestação do poder e da centralização disfarçada. A intenção inicial dos oradores da classe
trabalhadora com a participação e o controle sociais parece perdida, levando consigo a própria
capacidade de ação desse conjunto de forças.
Entretanto, como interessa à classe dominante, essas instituições sobrevivem, algumas
como meras burocracias no sentido de formalismo e legalismo organizados.
Nessas condições, para compreender a realidade e, principalmente, para encontrar
caminhos que efetivamente alcancem a democracia plena, julgamos fundamental escapar da
visão funcionalista e gerencialista que domina esse ambiente. Ao recorrer aos teóricos marxistas
e à abordagem dialética podemos perceber essa armadilha em que se encontram os pensamentos
críticos que tensionam o conhecimento.
Uma vez que se compreenda que sociedade civil e Estado conformam um todo, ou a
"unidade na diversidade", fica evidente que o antagonismo real se encontra nas classes e não
no Estado versus a sociedade. O Estado, mesmo ampliado, não pode ser compreendido sem
que se leve em conta seu caráter de classe e de instrumento de classe, portanto nem estranho e
muito menos oposto a ela, ainda que convivendo com contradições. Da mesma forma, a
sociedade civil não pode ser agente de transformação social sem que se compreenda que, dentro
dela, há profundos antagonismos que inviabilizam os princípios de igualdade e liberdade.
Finalmente, a questão que se coloca é onde se torna possível empreender a luta que
transforme o sistema em favor das classes excluídas dos processos decisórios. É possível isso
acontecer nas esferas do Estado? Embora pareça uma alternativa envolvente, não se tem
mostrado como um caminho viável. Antes, é o contrário que tem acontecido. Sob o ritual e o
cotidiano dos mecanismos e instituições participativas, têm prevalecido as decisões tomadas
pelos centros historicamente dominantes, seja do Estado, seja da sociedade civil. A tentativa,
por parte das classes subalternas, de unificar as lutas econômica e política nos espaços
institucionalizados da participação e do controle social, tem se revelado apenas um simulacro
de luta política, um sorvedouro de energia popular e um decepcionante e paralisante sentimento
de inutilidade ou, pior, de legitimação das decisões da classe dominante. É o que se pode
constatar quando submetemos a democracia participativa enquanto oração de dominados e
dominadores à realidade concreta, de acordo com os conceitos de Gramsci e Althusser, cuja
essência continua apoiada no próprio Marx.
Do mesmo modo, emergem dessa compreensão epistemológica uma necessidade de
reconstrução das ferramentas políticas tradicionais de luta de classe e um entendimento
dialético, não mecanicista, portanto, da vinculação entre luta política e luta econômica.

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WEBER, Max. Ciência e Política – Duas vocações. São Paulo: Cultrix, 2005.
1
O conceito de hegemonia empregado nesse artigo parte de Gramsci, para quem, diferentemente da ideia
prevalecente no senso comum (monopólio, com uso intensivo de poder e força), significa a capacidade de um
grupo de dirigir eticamente e estabelecer um campo de liderança. Para ser hegemônico, não é necessário que o
grupo seja numericamente superior.
2
Consenso também é utilizado na acepção gramsciana, que pode ser traduzido como a articulação pluralista de
ideias e valores, a unidade na diversidade. Não quer dizer ausência de dissenso ou de divergência, mas a capacidade
de construir essas ideias e valores em meio à diversidade.
3
Mencionamos a polêmica obra de Norberto Bobbio (1999), intitulada “Ensaios sobre Gramsci e o conceito de
sociedade civil” publicada em 1967, que serviu de suporte para leituras distorcidas posteriores.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Participacionismo e Miséria Brasileira: A Participação nas Condições de


Possibilidade do Capitalismo no Brasil

Thiago Dutra Hollanda de Rezende


Universidade de Brasília (UnB)

Elcemir Paço Cunha


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Resumo
O presente ensaio propõe um tratamento materialista da participação a partir de sua
diferenciação frente às correntes dominantes na explicação das dificuldades de materialização
das formas participativas na esfera política no Brasil. De um lado, coloca-se o culturalismo que
acusa a ausência de uma preparação formal ou cultural para a participação. De outro, insurge a
corrente que identifica no neoliberalismo o fator impeditivo. A proposta de diferenciação
aponta para o estudo das condições reais de possibilidade da forma política a partir da análise
do processo de objetivação do capitalismo no Brasil, trazendo à baila a particularidade dessa
formação pela chamada via colonial. A constatação básica é a de que a participação no
capitalismo atrófico é participacionismo em razão de processos de transformação incipientes e
de modernização excludente que bloqueia a participação popular, garantindo os interesses
ligados às conciliações das classes dominantes.
Palavras-chave: participação, participacionismo, capital atrófico, particularidade, Brasil

1. Introdução

O assim chamado processo de redemocratização, a partir da luta organizada de


diferentes agentes sociais, materializou-se positivamente nas previsões constitucionais acerca
da participação direta da sociedade civil junto às deliberações e decisões sobre políticas
públicas. Portanto, expectativas e esperanças foram depositadas nos diferentes mecanismos de
participação a serem implementados e regulamentados no período pós-constitucional.
Entretanto, após quase três décadas da “nova república”, a democracia participativa não
logrou se efetivar da maneira em que era esperada. Diferentes análises, por diferentes
perspectivas e “níveis de análise”, têm tentado dar conta de compreender quais as razões e qual
o sentido dessa não realização da democracia participativa no Brasil, sobretudo no que tange
aos conselhos nos “três níveis da federação”.
Duas perspectivas de análise se destacam na tentativa de explicar esses limites. Uma
primeira perspectiva que enfatiza a ausência da “cultura política” necessária para os agentes e
atores políticos responsáveis pela implementação dos mecanismos necessários para o
desenvolvimento da participação no Brasil. A segunda perspectiva já enfatiza a guinada
neoliberal da política brasileira, materializada especialmente a partir da vitória do projeto
político representado pela eleição de Fernando Collor em 1989 e no desenrolar posterior sob
tutela psdebista e petista.
Sem esgotar a miríade de outras correntes, nosso propósito é apontar os traçados básicos
dessas duas linhas para, em seguida, sugerir uma terceira posição de análise da realidade
brasileira centrada no materialismo. Essa posição sugere que a participação no Brasil é
participacionismo engendrado pelas condições reais de possibilidades em razão da trajetória de
objetivação do capitalismo no Brasil pela chamada via colonial. Nesse sentido, o

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

participacionismo não é um desvio do impulso democratizante nem traçado cultural brasileiro,


mas se explica pelas condições objetivas da formação de um capitalismo atrófico que implica
uma forma política refratária à participação popular na gestão do estado.
Nosso objetivo não poderia ser o de esgotar as discussões, mas o de apontar elementos
para essa análise, contribuindo fundamentalmente com a pesquisa na “administração política”.
Essa problemática tem especial importância para os debates da “administração política”
sobretudo em seu diálogo com o marxismo, procurando determinar os nexos entre a gestão do
estado e as contradições sociais. A participação popular na gestão do estado seria uma mediação
relevante de condicionamento das políticas econômicas e, portanto, do próprio
desenvolvimento econômico. Compreender melhor as possibilidades da participação no
capitalismo brasileiro possui, por esse motivo, peso explicativo para as próprias políticas
econômicas e para o tipo de desenvolvimento excludente que marcam a história nacional. Além
disso, a propositura que faremos afrente acerca do materialismo pode contribuir igualmente
para os debates tangentes à pesquisa na administração política uma vez que retoma os elementos
mais centrais do pensamento marxiano e que são frequentemente ignorados nas discussões da
própria administração política.
Sendo assim, apresentamos no próximo tópico as duas correntes principais. Adiante
discutimos a fundamentação materialista a partir dos lineamentos marxianos. No penúltimo
tópico apresentamos as determinações fundamentais da via colonial como desdobramento
histórico da discussão retida do materialismo. Por fim, apresentaremos nossas considerações
finais.

2. Culturalismo e Neoliberalismo

A recuperação dos muitos estudos realizados no Brasil tangentes aos conselhos como
forma da participação e a participação em outras atividades burocrático-políticas, revela ao
menos duas teses mais centrais com relação às dificuldades de efetivação, conforme já
anunciado na introdução do presente trabalho.
No fundo possuem uma base semelhante; aquela dos juristas e cidadãos surpreendidos
com a não realização de uma lei tão avançada. O diagnóstico é parecido, mas o diapasão é outro.
No geral, os achados dão conta do insuficiente processo de realização das conquistas
alcançadas por meio da Constituição de 1988. O próprio Anteprojeto de Constituição, tornado
público já em 1986, revela a altura da esperança de parte da sociedade, pois o “conteúdo
abrangente, de caráter social-democrático”, criava a “oportunidade, propiciada a todo e
qualquer cidadão brasileiro, de falar e ser ouvido, de participar e sentir sua participação
examinada com seriedade” (MARQUESINI, 1986, p. 12). Se houve ou não uma reta análise
do sentido da Constituição de 1988 é assunto que devemos ter em mente, levando-se em conta
nossa atual posição historicamente privilegiada do post festum. O certo, porém, é que naquele
período aparecia uma normatização da participação com grande conteúdo progressista.
Pouco tempo transcorrido, iniciaram-se pesquisas sobre a efetividade dos mecanismos
de participação. Em 1989, lia-se que “nas quatro cidades brasileiras objeto do estudo, concluiu-
se que, mesmo quando as relações entre governo municipal e população foram
substantivamente alteradas para melhor (...) há muito a ser conquistado e consolidado na
ampliação dos espaços institucionais de participação” (FISCHER; TEIXEIRA, 1989, p. 46).
Era comum esse diagnóstico, identificando o caráter progressista, os passos dados e os que
ainda faltavam para mais avançar.
Muito rapidamente surgem as inquirições sobre as causações dessa inefetividade. Inicia-
se o sempre renovado o argumento que se sustenta na onipotência da vontade. “É possível”,
dizia Pedro Demo em 1991, “montar proposta sistemática de planejamento social participativo,

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

(...) imprimindo em muitas áreas de atuação pública, hoje dispersas e disparatadas, sentido de
compromisso com o processo histórico de realização de direitos fundamentais, e, assim, de
colaboração importante na construção da democracia” (DEMO, 1991, p. 53). Com uma
legislação tão progressista, bastava a vontade política para converter a lei em aplicação.
Aparentemente a vontade não se manifestou, pois a conclusão emblemática de que “o
processo de participação do público no planejamento de obras hídricas é, no Brasil, um processo
incipiente” (CAMPOS, 1995, p. 170), repercute muito do que foi divulgado nos períodos
subsequentes para outras experiências de participação. A tônica é a da insuficiência, algo aquém
daquilo que foi expresso na letra constitucional.
A questão da vontade política encontra morada na primeira tese com força explicativa
dessa inefetividade. É bem conhecida a fundamentação culturalista que procura situar as
limitações impostas por um tipo de cultura política nacional. À guisa de exemplo, adota-se um
“conceito de cultura política” referente “à generalização de um conjunto de valores, orientações
e atitudes políticas entre os diferentes segmentos em que se divide o mercado político [!] e
resulta tanto dos processos de socialização, como da experiência política concreta dos membros
da comunidade política” (SILVA; D'ARC, 1996, p. 48). Daí resulta a apreensão de

inviabilidades e limites [que] se tornaram explícitos nas tentativas governamentais de desenvolver


experiências participativas, como por exemplo as dificuldades de identificação do movimento popular, a
existência de um setor público administrativamente improdutivo, burocratizado e com forte cultura
centralizadora e setorializada, a falta de acesso dos cidadãos à informação e a não-explicitação dos canais
de participação” (SILVA; D'ARC, 1996, p. 49).

A explicação culturalista toma uma forma mais acabada, como segue:

Este estudo conclui que, apesar de haver variáveis regulativas que obrigam a realização do processo de
audiências públicas do orçamento, a participação da sociedade civil encontra dificuldades para ser
exercida, pois é influenciada por variáveis normativas e cultural-cognitivas que atuam negativamente no
processo. As variáveis normativas e cultural-cognitivas são baseadas nos valores, crenças e variáveis
culturais como a cultura política e o clientelismo orçamentário que desta deriva. Dentro da lógica de
sistemas, isso ocorre porque os vereadores fazem parte de um subsistema próprio, que é autopoiético, tem
valores e normas próprios e dificulta a entrada do subsistema sociedade civil que busca participar do
subsistema legislativo. Apesar de se abrir à participação, o subsistema Poder Legislativo o faz moldando
a participação conforme padrões de conduta já existentes na relação entre parlamentar e sociedade civil.
(BRELÀZ; ALVES, 2013, p. 822)

Trata-se, portanto, de uma dificuldade potencialmente contornável por meio da aposta


na informação e na capacitação dos conselheiros e demais interessados (Cf. GOHN, 2006). A
“formação cidadã” surge, então, como meio de enfrentamento das dificuldades impostas pela
autorreferente cultura política nacional.
Em outro diapasão, e com menor dificuldade em lidar com a dimensão econômica que
envolve o problema da participação, as análises que enfatizam o impacto do neoliberalismo tem
a vantagem de não sucumbir à suposta “onipotência da vontade” e de abrir mais diretamente as
contradições das quais vive o capitalismo. Os aspectos problemáticos são outros.
O ponto de arranque, entretanto, se ancora ainda nas potencialidades não vindas ao
mundo por mediação da constituição de 1988, que foi parcialmente impugnada por um projeto
econômico-político ascendente nos anos de 1980-2000. Trata-se de identificar no
neoliberalismo a obstrução, o desvio de um impulso existente nas entranhas do Brasil na luta
pela redemocratização do país. Aqui permanece a problemática de uma correta apreensão do
sentido da Constituição de 1988, ao qual retornaremos adiante.
Não obstante, seguindo Dagnino, “o avanço da estratégia neoliberal determinou uma
profunda inflexão na cultura política no Brasil e na América Latina” (DAGNINO, 2004a, p.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

98). A problemática é tomada como resultado do embate entre distintos projetos, o democrático
e o neoliberal, pois este:

operaria não apenas com uma concepção de Estado mínimo, mas também com uma concepção
minimalista tanto da política como da democracia. Minimalista porque restringe não apenas o espaço, a
arena da política, mas seus participantes, processos, agenda e campo de ação (DAGNINO, 2004a, p. 108).

A despeito de a autora ter colocado, em outro lugar, um peso demasiado sobre uma
“crise discursiva”, a tônica da “confluência perversa” permanece firme, pois

essa crise discursiva resulta de uma confluência perversa entre, de um lado, o projeto neoliberal que se
instala em nossos países ao longo das últimas décadas e, de outro, um projeto democratizante,
participativo, que emerge a partir das crises dos regimes autoritários e dos diferentes esforços nacionais
de aprofundamento democrático (DAGNINO, 2004b, p. 140).

O embate entre esses projetos distintos tem mostrado, segundo a autora, que o “avanço
da estratégia neoliberal determinou uma profunda inflexão na cultura política no Brasil e na
América Latina” (DAGNINO, 2004b, p. 146). A centralidade do argumento se prova por sua
repetição.
É preciso reter a permanência, nesse tratamento, de uma polarização de “projetos
políticos” (cf DAGNINO, 2004b, 144). Também é necessário que fixemos a explicação
consideravelmente distinta daquela culturalista, uma vez que determina o neoliberalismo como
o fator restritivo ao avanço da participação no Brasil.
Análise semelhante, porém, mais realista, encontramos contemporaneamente também
na produção nacional. Sem apelar ao culturalismo ou a uma “crise discursiva”, apreendemos
certo embate de épocas e de “ideologias” que encapsulam o problema das insuficiências da
participação e dos conselhos. Lemos, por exemplo, que:

Este fenômeno não pode ser desassociado do contexto mais amplo no qual se encontra. Os anos 1990 são
marcados por reformas que promovem desregulamentação, flexibilização de leis trabalhistas e
previdenciárias, diminuição da atuação do Estado na esfera social, entre outras medidas semelhantes. Os
valores ideológicos que acompanhavam os movimentos sociais até os anos 1980, relacionados a direitos
universais e transformação social, foram, com a emergência da nova ordem, suplantados. Mais que isto,
o resgate de valores típicos do individualismo liberal parece ter sido a semente mais fecunda de todo este
contexto. A experiência dos conselhos gestores, objeto de observação e análise neste artigo, não pode
escapar destas circunstâncias. Inscritos na Constituição e na contemporaneidade da sociedade brasileira
como resposta a um período rico em esperanças, valores éticos e sociais e intensa mobilização, eles
parecem depender desse ambiente para funcionar com plenitude, ainda que se desfaçam do que se podem
considerar exageros do romantismo político (GURGEL; JUSTEN, 2013, p. 374)

As duas formas de explicação, as duas teses acima tangentes às dificuldades de


efetivação da participação em geral na esfera do estado, incluindo as experiências dos
conselhos, possuem diferenças já aludidas. Ambas são teses que encontram explicações
exógenas, interferentes. Mas as diferenças aludidas dão conta da superioridade da segunda tese
e da sua identificação dos enlaces entre as potencialidades da participação e determinado
estádio de desenvolvimento do capitalismo, sem ignorar a dimensão “cultural”.
Com efeito, a explicação culturalista não pode se apresentar de outro modo, entretanto,
que não o abstrato e indeterminado, senão arbitrário. Se a superioridade da segunda tese está na
identificação da relação entre terreno político e o terreno econômico, é persistente, por outro
lado, a dificuldade de apreensão do real sentido da Constituição de 1988 se tomada como
episódio de uma longa trajetória de objetivação do capitalismo na particularidade brasileira. Por
isso, recorre ao entendimento de que o impulso “redemocratizante” foi obstruído pelo
neoliberalismo. É a dificuldade com essa questão que condena a superioridade constatada aos

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

seus próprios limites imanentes: a reprodução intelectual de uma polarização de projetos


políticos que não expressa adequadamente as circunstâncias particulares do capitalismo
brasileiro como condição de possibilidade para a forma de participação dada em suas
insuficiências.

3. Participação e materialismo

Pretendemos apresentar uma análise distinta, endógena por assim dizer, que busca a
explicação na via particular de objetivação do capitalismo no Brasil e que dá conta de avaliar a
participação existente não como “aplicação insuficiente da constituição”, não como um extravio
provocado pelo “neoliberalismo”, mas como forma possível nas condições de uma
particularidade antagonizada, porém sem processos sociais superadores, isto é, marcada por
revolucionamentos sociais insipientes dos quais a “redemocratização” da década de 1980 é
apenas um exemplo. Bem entendido, o endógeno aqui é referência à correspondência entre a
forma da participação presente e os traços do capitalismo que se forjaram no Brasil.
A devida compreensão desse problema requer uma explicitação de dois aspectos
fundamentais e inter-relacionados.
O primeiro deles diz respeito a uma compreensão reta do materialismo como esforço de
explicação mais justa da própria realidade.
É mais do que comum a acusação vinda de muitos lados de haver uma espécie de
economicismo às explicações que, como aquela segunda tese acima, não evitam a relação
concreta entre a participação e o capitalismo. Embora, como vimos, tenha aceitado rápido
demais um suposto “desvirtuamento neoliberal”, a correção está em não analisar de modo
estanque e autonomamente a dimensão da participação nas instâncias governamentais. Mesmo
a essa tese, entretanto, falta o essencial: a apreensão da participação como forma política de
um conteúdo fora dela. É nesse sentido que se recorre ao neoliberalismo como desvirtuamento
interferente que, se ausente, permitiria o cumprimento da tendência “democratizante”.
Além do economicismo, também é bastante comum a acusação de determinismo. O
materialismo seria apenas mais uma abordagem especial, uma espécie de coleção de fatos
epifenomênicos todos redutíveis por mecanicismo à esfera econômica. A vulgata rende seus
efeitos ainda contemporaneamente. Assim, tanto a “superestrutura idealista” quanto as “formas
de consciência” seriam nada mais do que resultados lineares, puros reflexos daquilo que se
passa na economia.
Totalmente diferente é a apreensão do problema em suas bases reais. A determinação
fundamental é a de que as relações materiais são pressupostos objetivos dessas formas
derivadas – o que não significa que sejam menores ou desimportantes – sem os quais não seria
possível a existência do estado, da filosofia, da arte etc. A determinação, então, não está numa
mecânica causação à la Durkheim, mas nas possibilidades criadas pelas relações concretas entre
os homens. Não são possíveis, a não ser de maneira e de efeito secundários, formas derivadas
não correspondentes às relações materiais, à sua base. À guisa de exemplo, a arte grega como
tal entrelaçada à mitologia da época jamais encontraria condições de desenvolvimento numa
sociabilidade capitalista em que o estádio de desenvolvimento das forças produtivas inviabiliza
tal expressão estética (cf. MARX, 2011, p. 62). Pode permanecer como objeto de especialistas
e depósito para a inspiração cinematográfica, ressurgir acoplada ao intercâmbio das
mercadorias, mas perde a conexão viva com o social.
Poderíamos multiplicar infinitamente exemplos desse tipo. Basta apreender que a
despeito das variações possíveis das formas derivadas sua persistência ou perecimento estão
em conexões mais ou menos fortes e mais ou menos fracas com as relações concretas. Nesse
sentido, é possível que a forma política se altere consideravelmente entre expressões mais

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

adjetas como o bonapartismoi e mais propícias à luta dos trabalhadores e camadas populares
como as democracias representativas dentro dos limites de uma mesma ordem geral de
produção e reprodução da vida, como a sociabilidade do capital. Na reciprocidade entre
continuidade e descontinuidade históricas, e levando-se em conta o peso da primeira, a variação
de inúmeros aspectos se articula com a preservação de outros mais fundamentais. Enquanto a
forma política considerada como estado pode se modificar, dada sua considerável
heterogeneidade frente às relações materiais, inúmeros elementos fundamentais da
sociabilidade se preservam, como a lógica do valor, até que uma transformação mais profunda
possa de fato alterar as relações sociais de produção, modificando todo o conjunto articulado
das determinações da sociabilidade particular. É o que podemos entender por um “movimento
real da forma política”, movimento, porém, de lógica não própria em razão dos “nexos com as
forças motrizes de ordem primária sobre as quais também atuam reciprocamente as formas
concretas dos estados” (PAÇO CUNHA, 2015, p. 23). Em outros termos:

o modo de atuação do estado é profundamente condicionado pela condição econômica, pelo estágio da
luta de classes e, claro, pelo esclarecimento social da classe trabalhadora nessa luta. Temos então uma
relação, no interior de uma unidade, (...) uma unidade de movimento não próprio porque se regula por
circunstâncias e relações que estão fora dela, mas que também são por ela condicionadas (PAÇO
CUNHA, 2015, p. 26).

O desdobramento da prioridade ontológica das relações materiais será retomado adiante.


O importante a ser retido no momento é que tais relações criam as condições de possibilidade
para a forma política, são pressupostos que permitem e limitam simultaneamente e cuja variação
se dá por lógica não própria. Igualmente importante é a determinação de que a forma política,
portanto, oscila entre modos de dominação em razão de antagonismos que são sua base. Mesmo
o momento democrático do movimento real da forma política não é outra coisa senão um modo
de dominação, uma forma de realização da dominação econômica vigente (Chasin, 2000a). E
aqui é que se ilumina a reciprocidade, a determinação de reflexão entre a economia e a política,
isto é, como modo de dominação, a política também condiciona a economia de maneiras muito
complexas. Uma está interpenetrada na outra; são diferentes, mas formam uma unidade
historicamente contingente, isto é, não como destino ineliminável.
É nesse sentido que a participação, situada na esfera estatal, deve ser coloca em relação
aos condicionantes materiais, isto é, com as suas condições de possibilidade nos termos
apresentados. E não basta indicar o “neoliberalismo” como elemento do desvirtuamento na
medida em que se perde nessa explicação a particularidade autêntica. Quer dizer, “o
movimento dos condicionamentos recíprocos é histórico e respeita as circunstâncias também
nacionais” (PAÇO CUNHA, 2015, p. 26). A participação se inclui nesse movimento e sua reta
apreensão depende da captura das determinidades fundamentais da via particular de objetivação
do capitalismo no Brasil, conforme desenvolveremos adiante como via colonial, e não é
suficiente adotar a constituição de 1988, vestígios da expressão política, como marco dessa
particularização, deixando de lado todos os processos importantes anteriores e que ajudam a
dar o sentido real da chamada “redemocratização”.
O outro aspecto já indiretamente referido como prioridade ontológica, explicita que a
dialética não é uma projeção do pensamento sobre a realidade, uma abordagem epistemológica
no leque de opções das cartilhas contemporâneas. Sabendo que “a dialética só é passível de
descobrimento, jamais de aplicação” (CHASIN, 2009, p. 236), trata-se de apreendê-la como
“lógica do real” (idem) reproduzida pelo pensamento. A realidade mesma posta sobre seus
próprios pés não se mostra como na posição neokantiana de um Max Weber, isto é, como um
complexo mais ou menos amorfo cujo ordenamento é atributo da subjetividade do sociólogo.
Nem se dá igualmente como causação mecânica entre variáveis, como na tradição de um
positivismo sociológico. Menos ainda se apresenta como posta pelo irracionalismo pós-

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moderno, de um relativismo radical de perspectivações múltiplas: produtos discursivos. Por


fim, também não se reduz à insuficiência confessa dos parênteses da fenomenologia frente aos
nexos reais.
No conjunto articulado entre as diversas determinações recíprocas, existe um
movimento próprio passível de ser apreendido pelo pensando nos limites das possibilidades
dadas por condições sociais que transcendem o pesquisador individual. Quer dizer, certas
condições sociais podem ser mais ou menos permissivas ou impeditivas à tomada das
determinações reais, dos nexos fundamentais. Essa articulação recíproca, portanto, não é sem
rumo, sem direção. E o que de fato proporciona a direção se não é, ainda, resultado do
planejamento humano, da coroação da humanidade como demiurgo de si mesma?
O mal-entendido sobre o “em última instância” do econômico criou todo tipo de
dificuldade e aquelas acusações já aludidas de mecanicismo econômico. Marx mesmo, no
entanto, tratou de colocar as coisas no sentido de um momento ou fator preponderante
[übergreifende Moment] no conjunto articulado das múltiplas determinações (cf. MARX, 2011,
p. 49). A discussão, por exemplo, sobre a produção e a distribuição explicita não apenas a
anterioridade da produção como também que na relação recíproca, nos condicionantes que a
própria distribuição exerce sobre a produção, é esta última o momento ou fator preponderante
da relação, o fator que fornece o peso para a articulação e, portanto, põe certas tendências que
só se confirmam por mediação das demais determinações condicionantes. Certeiramente
apreendido como “elo tônico no complexo articulado” (CHASIN, 2009, p. 135) que jamais
significa a “homogeneização das determinações” (CHASIN, 2009, p. 133) em reciprocidade, o
momento ou fator preponderante tem o sentido de mostrar que:

a interação tem muitos aspectos e se articula de diferentes modos. Mas também está claro que nessa
relação entre determinações de reflexão tão ricamente articulada revela-se com toda evidência o traço
fundamental da dialética materialista: nenhuma interação real (nenhuma real determinação de reflexão)
existe sem momento predominante. Quando essa relação fundamental não é levada na devida conta, tem-
se ou uma série causal unilateral e, por isso, mecanicista, simplificadora e deformadora dos fenômenos,
ou então aquela interação carente de direção (LUKÁCS, 2012, p. 334).

Ao contrário, pois, da causação mecânica e da interação sem rumo, a própria realidade


mostra que há um momento ou fator preponderante numa articulação. Aquela relação antes
aludida entre continuidade e descontinuidade é um exemplo bastante razoável, pois mostra que
a variação de elementos convive com a persistência de outros de maneira que não se tenha
alterado, até agora, os caracteres fundamentais do modo de produção e reprodução humanas
sob o domínio da lógica do valor. Assim também, o movimento da forma política, antes já
discutido, tem nas relações materiais seu momento ou fator preponderante e no qual também
atua pela própria natureza recíproca das relações da unidade articulada entre as determinações
concretas.
Por esse motivo, é possível um episódio como a constituição de 1988 que deixa
consideravelmente intacto o “elo tônico no complexo articulado”. E essa apreensão do
problema real já mostra a dificuldade de se estacionar na aparente polarização entre projetos
políticos no Brasil, um “democratizante” e outro, neoliberal – aliás, como é bastante comum no
“campo de públicas” essas dualidades como, por exemplo, “modelo gerencialista” (neoliberal)
versus “modelo societal” (democrático) (cf. PAES DE PAULA, 2005; SOUZA FILHO, 2011).
Tratou-se muito mais da alteração política para a preservação das condições materiais já dadas
e, por isso, o processo de “redemocratização” é parte componente de um mesmo programa: o
dos proprietários e das alianças que necessariamente movimentam, inclusive com apoio
popular. Não foi mais do que a transição dentro do modo de dominação do capital, uma
transição do bonapartismo com ampla participação do capital privado à institucionalização da
autocracia burguesa (CHASIN, 2000b), como veremos adiante. Em suma, um progressismo

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

conservador após “modernização excludente” (RAGO, 1998) do período do bonapartismo


militar.
Não é razoável, porém, dar de ombros e não identificar na transição política efeitos
importantes na dimensão material. Algumas conquistas realizadas na aliança que levou adiante
a Constituição de 1988 ajudaram a desatar alguns nós que permitiram uma maior integração do
Brasil à dinâmica internacional, desenvolvendo condições ao atendimento – ainda muito restrito
– de certas demandas populares, sobretudo por mediação do mercado de consumo e
endividamento familiar. E não é preciso dizer que a luta social encontra melhores condições de
desenvolvimento na “democracia dos proprietários” do que sob o bonapartismo...
Mas esses elementos somente se tornam evidentes pela análise da via colonial de
objetivação do capitalismo na particularidade brasileira, uma vez que ajudam a revelar que as
“insuficiências” da forma política frequentemente constatadas pelas pesquisas na área são, na
verdade, expressão de condicionantes mais ao fundo. Apenas assim a redemocratização pode
ser apreendida como nova conciliação, como continuidade, portanto, das relações de dominação
históricas sob a rubrica de transição política.
Com esses aspectos em tela, contudo, é possível resolver que a participação na esfera
política é dada nas condições de possibilidade criadas por uma sociabilidade historicamente
determinada em que o momento ou fator preponderante como elo tônico desse todo articulado
está em reciprocidade com os resultados que operam a partir daquelas possibilidades. E essa
articulação nunca é corretamente compreendida sem a particularização histórica, como já
argumentamos. É nesse sentido que precisamos apreender a formação do capitalismo no Brasil
e os efeitos dessa via particular, sobretudo atinente à vida política em que se dá a participação
que procuramos problematizar.

4. Via colonial de objetivação do capitalismo e forma política

É aqui que encontra peso decisivo a categoria da particularidade, a qual permite elucidar
o caráter da realidade enquanto um complexo de complexos (cf. Lukács, 2012). A formação do
capitalismo brasileiro teve por característica particular a sua subordinação aos interesses de
capitais estrangeiros originários dos países capitalistas centrais, em quadro de conciliação entre
o velho e o novo, onde os herdeiros latifundiários da economia de extração colonial e os
industriais locais vinculam-se ao capital internacional imperialista na transição da produção
escravista para o modo de produção capitalista no Brasil. De acordo com Caio Prado Júnior:

A situação de dependência e subordinação orgânica e funcional da economia brasileira com relação ao


conjunto internacional de que participa, é um fato que se prende às raízes da formação do país [...].
Economia de exportação, constituída para o fim de fornecer gêneros alimentícios e matérias-primas
tropicais aos países e populações das regiões temperadas da Europa e mais tarde também da América, ela
se organizará e funcionará em ligação íntima e estreita dependência do comércio ultramarino em função
do qual se formou e desenvolveu. Será essencialmente uma economia colônia, no sentido mais preciso,
em oposição ao que denominamos de economia “nacional”, que seria a organização da produção em
função das necessidades próprias da população que dela participa. Esta é a circunstância que tornará o
Brasil tão vulnerável à penetração do capital financeiro internacional quando o capitalismo chega a esta
fase de seu desenvolvimento. O país far-se-á imediata e como que automaticamente, sem resistência
alguma, em campo fácil para suas operações” (2008, p. 270).

Assim, a ex-colônia não rompe com sua dependência e subordinação externas. A


industrialização no Brasil se dá no quadro do imperialismo, quando o capital internacional, já
a frente do domínio político nos países capitalistas centrais, busca novos espaços para sua
expansão, sendo que “não é outro seu objetivo que acaparar em proveito próprio a mais-valia
do trabalho brasileiro a seu alcance” (PRADO JR, 2008, p. 280). Isso significa que

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geneticamente atrelada à edificação do capitalismo no Brasil está a apropriação dual do mais-


valor, ou seja, o excedente econômico gerado deve ser suficiente para atender aos interesses do
capital estrangeiro e do capital local, e tal circunstância – de uma dominação hierárquica e
internacional do capital – se resolve através de outro elemento estrutural da particularidade
brasileira, a superexploração da força de trabalho. Além disso,

[...] não é apenas a classe trabalhadora que se desfalca, mas o país que em conjunto que vê escoar-se para
fora de suas fronteiras a melhor parcela de suas riquezas e recursos. As contradições da exploração
capitalista tomam assim caráter muito mais agudo e extremo. Entre outros efeitos bem patentes estão a
deficiência e a morosidade da acumulação capitalista brasileira essencialmente débil. Falta assim ao país
o elemento fundamental de progresso econômico (PRADO JR, p. 280, grifo nosso).

O capitalismo brasileiro nasce então com uma debilidade congênita, o que se expressa
no caráter atrófico do capital aqui constituído, expresso em uma classe burguesa sem
capacidade de levar a cabo os elementos civilizatórios do desenvolvimento capitalista.
Atrofiada e débil em sua essência, dada a ausência de possibilidade do progresso econômico e
sua subordinação estrutural aos interesses imperialistas, manifesta-se politicamente no
exercício de seu domínio de maneira autocrática, de acordo com Chasin:

Desprovido de energia econômica e por isso mesmo incapaz de promover a malha societária que aglutine
organicamente seus habitantes, pela mediação articulada das classes e segmentos, o quadro brasileiro da
dominação proprietária é completado cruel e coerentemente pelo exercício autocrático do poder político.
Pelo caráter, dinâmica e perspectiva do capital atrófico e de sua (des)ordem social e política, a reiteração
da excludência entre evolução nacional e progresso social é sua única lógica, bem como, em verdade, há
muito de eufemismo no que concerne à assim designada evolução nacional (2000b, p. 221).

A análise de realidade chasiniana avaliza-se pela identificação dos “traços fundamentais


do modo de ser e de se mover da formação nacional” (CHASIN, 2000b, p. 220), de onde se
torna possível extrair suas consequências políticas e sociais, identificando os limites e
possibilidades da instituição de elementos progressistas constituídos nas democracias burguesas
centrais. Também procurando uma correta compreensão da particularidade brasileira, Carlos
Nelson Coutinho procedeu à seguinte analogia com a via prussiana:

O caminho do povo brasileiro para o progresso social – um caminho lento e irregular – ocorreu sempre
no quadro de uma conciliação com o atraso, seguindo aquilo que Lênin chamou de “via prussiana” para
o capitalismo. Ao invés das velhas forças e relações sociais serem extirpadas através de amplos
movimentos populares de massa, como é característico da “via francesa” ou da “via russa”, a alteração se
faz mediante conciliações entre o novo e o velho, ou seja, tendo-se em conta o plano imediatamente
político, mediante um reformismo “pelo alto” que exclui inteiramente a participação popular. [...]. No
quadro desse profundo divórcio entre o povo e a nação, torna-se assim particularmente difícil o
surgimento de uma autêntica consciência democrático-popular (1974, p. 3).

Essa exclusão da participação popular no movimento da política brasileira é


razoavelmente clara no fato de que o advento da República “não passou efetivamente de um
golpe militar, com o concurso apenas de reduzidos grupos civis e sem nenhuma participação
popular” (PRADO JÚNIOR, 2008, p. 208). Assim, trata-se de uma metamorfose política que
promove a manutenção do poder econômico da classe proprietária ao passo em que adéqua as
instituições políticas e jurídicas às demandas dadas pela inserção do Brasil no estágio de
desenvolvimento capitalista de então e, desse modo, conserva-se o caráter subordinado da
economia brasileira aos interesses externos, antes metropolitanos, agora imperialistas. Ou seja,
é ausente uma revolução democrático-burguesa levada à cabo por uma classe burguesa como o
ocorreu nos casos clássicos, como a “via francesa”, pois trata-se de uma classe dominante
incompleta que, formada a partir da base de extração colonial e habituada às relações de

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exploração do trabalho próprias da escravidão, não é capaz de cumprir o papel desempenhado


bela burguesia nos casos clássicos.
No entanto, J. Chasin demonstra a insuficiência da analogia da via prussiana para a
análise da realidade brasileira, limitando-se a sua utilidade apenas como “referencial exemplar”,
não sendo tomada como modelo, mas importando como

[…] particular constratante aos casos clássicos; clássicos, acima de tudo, porque mais coerentes, mais
congruentes ou consetâneos, em nível de sua própria totalidade, enquanto totalidade capitalista, na qual
as diversas partes fundamentais embricam entre si e em relação ao todo de forma amplamente orgânica,
de maneira que o real se mostra como racional, a nível da máxima racionalidade historicamente possível.
Particular constratante do qual se avizinha o caso brasileiro, também diverso dos casos clássicos (1978,
p. 626-627)

O contraste importa apenas enquanto exemplo da diversidade das diferentes maneiras


de desenvolvimento das relações capitalistas de produção. Não se trata da aplicação do modelo
enquanto chave heurística universal de explicação, mas de salientar a necessidade de se partir
de cada particularidade pelos seus próprios constituintes. Destarte, ressalvados os limites para
análise e destacada a necessidade de se desvelar o modo particular de objetivação do
capitalismo no Brasil, assevera o filósofo brasileiro:

Assim, irrecusavelmente, tanto no Brasil, quanto na Alemanha, a grande propriedade rural é presença
decisiva, de igual modo, o reformismo pelo “alto” caracterizou os processos de modernização de ambos,
impondo-se, desde logo, uma solução conciliadora no plano político imediato, que exclue rupturas
superadoras, nas quais as classes subordinadas influiriam, fazendo valer seu peso específico, o que abriria
possibilidade de alterações mais harmônicas entre as distintas partes do social. Também nos dois casos
o desenvolvimento das forças produtivas é mais lento, e a implantação e progressão da indústria, isto é,
do “verdadeiro capitalismo”, do modo de produção especificamente capitalista, é retardatária, tardia
sofrendo obstaculizações e refreiamentos decorrentes da resistência de forças contrárias e adversas. Em
síntese, num e noutro casos, verifica-se, para usar novamente uma fórmula muito feliz, nesta sumaríssima
indicação do problema, que o novo paga alto tributo ao velho (CHASIN, 1978, p. 627).

Entretanto, salientados esses traços comuns, se no caso alemão a grande propriedade


rural tem origem na propriedade feudal, o latifúndio brasileiro deriva da economia mercantil de
extração colonial, e enquanto a industrialização alemã ocorre nas últimas décadas do século
XIX, desenvolvendo-se ao ponto da Alemanha se tornar uma nação imperialista, no Brasil ela
ocorre já na época das guerras imperialistas, onde o país não rompe seu caráter subordinado aos
polos hegemônicos do capitalismo internacional, “de sorte que ‘o verdadeiro capitalismo’
alemão é tardio, enquanto o brasileiro é hipertardio”. Desse modo, Chasin designa esse
particular a que pertence o Brasil de via colonial, já que este particular tem suas raízes na
articulação do país com a acumulação primitiva da metrópole e a industrialização ocorre bem
mais tarde que a alemã sem nunca “romper com sua condição de país subordinado aos polos
hegemônicos da economia internacional” (CHASIN, 1978, p. 628).
A via colonial então se dá no quadro de uma formação condicionada pela integração
subordinada ao imperialismo, onde a economia nacional é subsumida aos interesses dos polos
hegemônicos do capital internacional, iniciando-se o processo de industrialização hiper-
tardiamente, se caracterizando pela interdição das lutas e bandeiras progressistas no plano
político. A via colonial significa o estabelecimento “da existência societária do capital sem
interveniência de processo revolucionário constituinte” (CHASIN, 2000b, p. 220). A sua
perversidade é dramática pois

[…] desprovida verdadeiramente de um centro organizador próprio, dada a incompletude de classe do


capital, do qual não emana nem pode emanar um projeto de integração nacional de suas categorias sociais,
a não ser sob a forma direta da própria excludência do progresso social, até mesmo pela nulificação social
de vastos contingentes populacionais. […]. Em síntese, à via colonial de efetivação do capitalismo é

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inerente o estrangulamento da potência auto-reprodutiva do capital, a limitação acentuada de sua


capacidade de reordenação social, e a redução drástica da sua força civilizatória (p. 221).

Assim, a capacidade de organização da sociabilidade burguesa sobre ideais progressistas


e com injunções civilizatórias é vetada de início na consubstancialização do capital atrófico,
que subordinado ao imperialismo e sofrendo impulsos de acordo com as demandas dos polos
hegemônicos externos, impõe-se de maneira autocrática e excludente, sendo impugnada a
democratização do poder decisório e a participação popular, resultando em arranjos políticos
fechados e na institucionalização da violência como solução às demandas populares, já que o
espaço para reivindicações sociais é limitado pela necessidade do arrocho salarial, uma vez
que a superexploração da força de trabalho é imperativa na apropriação dual do mais-valor.
Trata-se de “uma burguesia que não é capaz de perspectivar, efetivamente, sua
autonomia econômica, ou o faz de modo demasiado débil, conformando-se, assim, em
permanecer nas condições de independência neocolonial ou de subordinação estrutural ao
imperialismo” (CHASIN, 2000a, pp. 103-104). A incompletude de classe da burguesia
brasileira estrutura as formas de exercício de poder político, daí que a “história do Brasil é
“rica” em ditaduras e “milagres. Pobre efetivamente de soluções econômicas de resolução
nacional e carente de verdadeira tradição democrática” (2000d p. 60). As saídas bonapartistas,
como o golpe de 1964, o Estado Novo, o controle estatal de sindicatos, a proibição de
organização partidária etc. caracterizam boa parte do período republicano iniciado em 1889.
Essa particularidade brasileira é evidente na sucessão transada, designativo de Chasin
para definir o processo de transição da última ditadura militar para o governo civil, onde se
tratou “da passagem do bonapartismo à autocracia burguesa institucionalizada” (2000c, p.
127). Nesse processo, a classe proprietária transacionou à velha maneira conciliatória a
mudança do sistema político sem colocar em risco seu poder econômico, de fato, no Brasil “as
formas burguesas de dominação política oscilam e se alternam em diferentes graus do
bonapartismo e da autocracia burguesa institucionalizada, como toda a nossa história
republicana evidencia” (p. 128).
Assim, criticando a análise politicistaii, em artigo de 1982, Chasin alertava que:

Ventilar as questões institucionais para um eventual ‘aperfeiçoamento’, a ser decidido em horas


indeterminadas pelos arquipoderosos senhores, enquanto as questões econômicas são mantidas fora de
discussão, - como um tabu, foi uma tática que os governos ditatoriais sempre utilizaram, e que o governo
Geisel levou à perfeição. E diante dela a oposição acabou por perder a visão do todo, soçobrando ao
diapasão institucional (2000d, p. 73).

Tratava-se da subsunção da oposição e das esquerdas à análise politicista, visto que “a


objetivação do capitalismo no Brasil se efetivou pela via colonial, uma democracia de talhe
liberal, em termos de uma forma de domínio minimamente coerente e estável, é uma
impossibilidade histórico-estrutural” (CHASIN, 2000e, p. 145). E longe de se buscar uma
alternativa anti-democrática, o filósofo chamava atenção para o fato de “dada a evidente
universalidade de certos valores formais da democracia, a questão que verdadeiramente importa
não é, portanto, sua validade, mas a de sua gênese possível em cada caso concreto” (2000a, p.
104).
Trata-se de identificar as condições de possibilidade para a efetivação dos valores
democráticos e dos instrumentos efetivos de transformação que tendem a ser mistificados pela
similaridade formal com instituições dos países centrais que viveram processos de
transformação societal específicos. Antes de significar um imobilismo e uma negação da
necessidade de transformação política, Chasin chamou a atenção para o fato de “entre nós a
construção democrática é possibilidade concreta apenas enquanto resultante das lutas sociais
nucleadas pela ótica do trabalho” (2000e, p. 145). Logo, uma democracia concreta deveria ser

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

o objetivo, sendo somente possível quando perspectivada a partir do trabalho (lógica da


transformação da realidade), dado que no capitalismo consubstanciado pela via colonial é
estruturalmente impossível a entificação das formas políticas e institucionais próprias da
democracia liberal dos países centrais, abstraídas de suas condições concretas em universais
abstratos, dada a incompletude de classe da burguesia brasileira e a atrofia do capital brasileiro.
A luta pela democracia no Brasil deveria, para Chasin, comportar necessariamente a “luta por
um programa econômico alternativo [...] que tem por princípio a liquidação da superexploração
do trabalho” (2000a, p. 105). Entretanto, na maneira como sucederam os fatos com a subsunção
da esquerda ao politicismo, a sucessão transada

[...] foi o movimento pelo qual, assegurada a estrutura econômica vigente, a dominação política do capital
atrófico transitou de seu perfil bonapartista para a sua forma de autocracia burguesa institucionalizada,
figuras ambas do mesmo domínio antidemocrático que a tipifica. Em outras palavras, a transição consistiu
na auto-reforma da dominação política discricionária, em razão e benefício de seu fundamento - a perversa
sociedade civil do capital inconcluso e subordinado, arremetida ao sufoco de uma grave crise de
acumulação (2000b, p. 223).

Desse modo, “não só a estrutura econômico-societária foi preservada, como também a


essência da sua correlata dominação política proprietária que caracteriza o país: o autocratismo
burguês” (CHASIN, 2000b, p. 222), daí que já em 1989, data do texto em questão, era possível
observar o desmantelamento dos avanços progressistas na Constituição Federal na “forma ativa
das medidas provisórias, reinstituindo informalmente o decreto-lei” ou na não regulamentação
de dispositivos fundamentais por parte do Congresso, para que tivessem efetividade. Além
disso,

[...] a transição chegou a uma Constituição que - ainda quando não sejam dela abstraídas certas luzes -
não afeta ou altera os objetivos e os modos de afirmação do autocratismo burguês, e alcançou também a
reafirmação da fisionomia econômica plantada há um quarto de século, mesmo que hoje sob as condições
de sua máxima ineficiência, que os altos índices de inflação e miséria denunciavam com veemência. A
transição não superou também a componente militar nas equações do poder, a não ser nos limites
consentidos pela autorreforma da ditadura, mesmo porque é intrínseca, às formações do tipo da brasileira,
a incapacidade do capital de organizar por si só estatuto de seu ordenamento; e, por fim, mas não por
último, não alterou em nada, apesar de algumas escaramuças, as relações desiguais que associam o país
ao sistema financeiro internacional (2000b, p. 223).

A via colonial encerra-se nos anos 1990, consolidado o capitalismo no Brasil e inserido
o país na rede mundializada de troca de mercadorias, completo seu ciclo formativo e
estabelecida a base urbano-industrial local,

[...] a nova des(ordem) internacional do capital, produzido e reproduzido com alta tecnologia no mercado
globalizado, não é a materialização de um sopro divino de bonança, plasmada em opulência e justiça. É,
porém, e será cada vez mais, até onde possam os horizontes ser hoje vislumbrados, o mundo real a ser
vivido por todos, embora sob a diversidade com que os países estejam habilitados a participar dele por
efeito do desenvolvimento desigual que os enforma (CHASIN, 2000f, p. 304).

É dependente dessa nova situação qualquer alternativa que pretenda a sua superação. A
questão que também precisa ser ajuizada, nesse mesmo sentido, é o caráter da participação
popular mais recentemente endossada pela letra da norma constitucional tomado em
consideração o percurso particular do caso concreto brasileiro. Completados trinta anos do fim
da última ditadura bonapartista, vários elementos supostamente exclusivos a ela seguem
enquanto constituintes da realidade cotidiana brasileira, até mesmo sua face mais violenta,
manifesta na conjunção entre tortura promovida por agentes estatais e impunidade (MAGANE,

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

2014). O que diferencia é o caráter mais específico da utilização dos aparatos repressivos,
expressa tanto nas ocupações de morros e favelas pelas diferentes polícias quanto na violência
física, policial-militar ou criminalização judicial contra movimentos sociais (DEO, 2014). A
transição transada permitiu a institucionalização da variante legal-institucionalizada da
autocracia burguesa, onde é possível se garantir a estabilidade das relações sociais pelas duas
vias: medidas administrativas e repressoras. Temos então uma economia integrada e
automovida pela lógica do valor, pelo império da necessidade de acumulação capitalista
determinada por uma formação histórica que restringiu o desenvolvimento de elementos e
valores democrático-humanistas.
A debilidade da organização dos trabalhadores, em grande parte provocada pela forte
repressão ainda presente, culminou no desenvolvimento de instituições democráticas frágeis e
a dupla determinação da miséria brasileira contemporânea, vicissitudes determinadas pela via
colonial e pela própria lógica do valor, colocam condições de possibilidade restritas às formas
de participação política no Brasil. É nesse sentido que a participação se desenvolve como
participacionismo, como desenvolveremos adiante.
Assim, diferentemente da tese culturalista ou da que vê no neoliberalismo o problema
para a efetivação das conquistas formais da Constituição de 1988, a via colonial explicita os
limites concretos às formas políticas, constituídos historicamente ao longo de toda a formação
brasileira porque se anima pelo impulso do materialismo em revelar os nexos objetivos entre
os terrenos econômico e político, porque procura pelo nexo real entre a participação e as suas
condições de possibilidade em meio às forças motrizes de ordem primária. Não se trata de mera
cultura a ser mudada por uma educação política mais cidadã, de fato, a bandeira da cidadania é
levantada pelos mesmos monopólios de mídia que se beneficiaram com o último período
bonapartista. As condições para o desenvolvimento de uma nova cultura se ligam à necessidade
de ruptura com as condições que promovem os limites da propalada “cultura política” não
participativa. Também é portador de insuficiência atribuir a um desvio o não desenvolvimento
da participação. Longe de ser uma análise mecanicista atrelada ao econômico, o que a via
colonial permite vislumbrar – na melhor expressão do materialismo aqui desenvolvido – são os
limites imanentes à realidade brasileira, que baseada na necessidade da superexploração do
trabalho e no caráter subordinado dos interesses da classe burguesa brasileira, não abre um
horizonte plácido à efetivação das “conquistas” da última Constituição Federal. Os limites da
participação são dados por ela germinar no solo da miséria brasileira.

5. Considerações finais: participacionismo versus participação

O conjunto de determinações constituintes da via colonial configura o que Chasin


(2000) denominou de “miséria brasileira”. Esta alude “[...] sinteticamente, ao conjunto de
mazelas típicas de uma entificação social capitalista, de extração colonial, que não é
contemporânea do seu tempo” (2000g, p. 160).
É a partir da compreensão dessas determinações históricas que é possível dilucidar as
formas políticas e o caráter das relações sociais na particularidade brasileira. É apenas desse
modo que se pode compreender o conteúdo real das transformações decorridas no assim
chamado processo de redemocratização. Assim, as expectativas frustradas podem ser
compreendidas para além da mera ausência de uma cultura política ou de um solavanque dado
por um intruso projeto político neoliberal. A via colonial e a miséria brasileira permitem
compreender “o corpo e a alma possíveis de sua prática capitalista”, e assim se esclarece que
“o trânsito do bonapartismo à autocracia burguesa institucionalizada, a passagem não
desprezível de Figueiredo a Sarney, é um movimento no interior da miséria brasileira e de sua
reiteração” (ibidem).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A reiteração da miséria brasileira tem uma de suas expressões no participacionismo, a


“participação possível”. O participacionismo é “a participação sem consciência participante ou
a presença participante sem consciência”, caracterizando-se por “servir como número à
manipulação politicista, destituído de classe, consciência e individuação, sem vínculo concreto
do humano e de sua liberdade” (CHASIN, 2000g, p. 162). Nesses termos, o participacionismo
é um tipo particular de “cogestão pública na democracia dos proprietários” (Paço Cunha;
Rezende, 2015). Trata-se da participação que não decide, mas legitima, não representa uma
escolha, mas valida a “escolha possível”. Entretanto, longe de ser uma limitação teórico-política
dos agentes e indivíduos que participam nas instâncias deliberativas, o participacionismo
decorre da manutenção das condições materiais que sempre concentraram o poder econômico
e político no quadro da miséria brasileira.
Ao não ser questionado o estatuto da propriedade privada que levou à ditadura, na forma
da não averiguação e responsabilização das empresas e seus agentes decisórios na colaboração
com o regime de exceção, fica mantido intacto o solo em que o bonapartismo se instaurou e
caminhou durante vinte anos. Isso nos remete ao plano da produção, das relações sociais que
constituem o núcleo da produção da riqueza social no Brasil. Participar, ao contrário de
participacionar, “[...] é atar-se, sob forma consciente, à política concreta pelas demandas finitas
de um momento histórico dado” (CHASIN, 2000g, p. 162).
Buscamos, a partir da explicitação dos caracteres fundamentais da particularidade
brasileira, demonstrar de que maneira as condições de possibilidade para o desenvolvimento
das formas políticas impactaram e impactam nas tentativas de desenvolvimento de mecanismos
de participação no Brasil. A tendência advinda do desenvolvimento histórico brasileiro é de
impugnar a participação por meio da sua confinação aos limites do participacionismo. Assim,
é a própria realidade que pode jogar luz sobre as análises futuras, desvelando as possibilidades
de ampliação democrático-popular a partir do solo concreto da miséria brasileira.

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i
O Bonapartismo foi identificado por Marx (2011b) na França pós-1848 como a forma política que corresponde
ao período em que começam a esvaecer as pretensões revolucionárias da burguesia, que agora consolidada
politicamente, passa a adotar um caráter reacionário, na medida em que para o partido da burguesia “a luta pela
afirmação do seu interesse público, do interesse da sua própria classe, do seu poder político, apenas o incomodava
e desgostava como perturbação dos seus negócios privados” (p. 122) escolhendo a burguesia, então, “desobrigar-
se do seu próprio domínio político para livrar-se, desse modo, das dificuldades e dos perigos nele implicados” (p.

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124). Ou seja, a burguesia abdica de sua participação política direta no parlamento para que Bonaparte garanta a
segurança de seus negócios.
ii
De acordo com Chasin (2000d), “o politicismo arma uma política avessa, ou incapaz de levar em consideração
os imperativos sociais e as determinantes econômicas. Expulsa a economia da política ou, no mínimo, torna o
processo econômico meramente paralelo ou derivado do andamento político, sem nunca considerá-los em seus
contínuos e indissolúveis entrelaçamentos reais, e jamais admitindo o caráter ontologicamente fundante e
matrizador do econômico em relação ao político. Trata-se, está claro, de um passo ideológico de raiz liberal” (p.
124).

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A reatualização da Via Colonial: a superexploração da força de trabalho no Brasil como


uma das soluções à crise do capital internacional

Henrique Almeida de Queiroz


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Resumo:
A Via Colonial, enquanto proposta de entendimento da constituição do capitalismo brasileiro
possui determinadas categorias que se põem como essenciais para explicar esta forma
particular determinada do metabolismo social do capital. Dentre as variadas tematizações e
problematizações levantadas durante o itinerário de José Chasin, a superexploração da força
de trabalho é identificada pelo mesmo através dos relacionamentos dos interesses econômicos
próprios da burguesia nacional subalterna, retardatária e de industrialização atrofiada, com o
capital externo, o que chama atenção para a particularidade de tal categoria na realidade
brasileira. Categoria determinante para o entendimento dos dilemas nacionais do passado e do
presente, o texto visa apresentar a problematização da superexploração da força de trabalho, o
tratamento dado por Chasin e quais as formas mais gerais da questão atualmente no Brasil que
continuam confirmando algumas das categorias contidas na tese da Via Colonial.

Palavras-chave: Capitalismo. Via Colonial. Superexploração.

Introdução

A crise mundial do capital eclodida em 2008 atingiu de forma particular e desigual os


países do globo. Diferentes histórias da formação social, econômica e política, o atual estado
de avanço e domínio da produção e reprodução do metabolismo capitalista pelo mundo geram
traços e características particulares das dificuldades de realização do capital, de onde surgem
as possíveis soluções para retomada de seus processos de acumulação. Iniciada a crise, ela
não fica circunscrita aos países capitalistas centrais e chega aos países da periferia e a classe
trabalhadora do país é quem deve sentir seus efeitos mais perversos.
Diante de uma crise global e nacional, nas quais são levantadas as possibilidades de
sua superação e o retorno das taxas de lucratividade do capital, o Brasil se encontra com uma
série de questões políticas, sociais e econômicas que englobam também os processos da

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

formação capitalista nacional e sua atuação histórica dentro do Estado. Dentre os enormes
dilemas e questões que surgem, o texto objetiva mostrar que algumas das respostas
estruturantes da economia que estão sendo gestadas durante o processo de crise nacional e
internacional se constitui na suspensão ou eliminação das políticas de financiamento do
Estado e um ataque mais intensivo aos direitos dos trabalhadores que, considerando a história
nacional, tem a semelhança das decisões de seu atraso e carrega consigo as particularidades da
burguesia nacional e de sua classe trabalhadora. Assim, as formas que vem sendo encontradas
para a resolução dos problemas de ordem econômica acontecem, com maior ou menor
intensidade, sem negar a estrutura da anatomia política e econômica herdada de seus
processos históricos, que determinam a legalidade do capitalismo brasileiro.
Oriunda do processo da Via Colonial, a formação do capitalismo brasileiro foi
marcada pela exclusão da participação das massas nos processos decisivos da modernização
capitalista. Primada por uma formação econômica e social voltada desde seu início para o
comércio externo (PRADO JR., 2011), o país passou pelos seus processos de colonização,
independência e industrialização hipertardia, conferindo entalhes particulares em sua
formação capitalista que manteriam a convivência do velho na emergência do novo. De um
processo que viga suas bases na condição de colônia, a formação industrial nacional sofreria
enormes reveses de interesses antagônicos, partindo principalmente dos setores agrários e
comerciais orientadas para o lucro do comércio externo, desde suas primeiras manifestações
após a Independência (LUZ, 1978).
Dentre as inúmeras questões do metabolismo social capitalista que envolve o Brasil,
elas possuem em sua raiz econômica o fundamento da sociabilidade do capital calcada na
superexploração da força de trabalho, ou seja, as “Bases multitudinárias que sofrem a tragédia
econômica e social da reprodução da miséria brasileira, diretamente sob a forma de
superexploração do trabalho, ou seja, de arrocho salarial.” (CHASIN, 1986, p. 3). Objeto de
exploração intensificada pelos mecanismos do atrelamento de interesses externos e
subordinação econômica, a classe trabalhadora do Brasil se viu historicamente imprimida
pelos desejos de lucros tanto das burguesias nacionais quanto dos investidores internacionais,
quando dos processos decisivos apresentados pela abertura histórica de autonomização
industrial a partir de 30. Deficientemente espraiada pelo território, a atrofia do sistema
metabólico do capital possui caracteres históricos perversos no tratamento da questão da
remuneração da força de trabalho no Brasil, que se apresenta de forma mais objetiva à medida
que se desenvolve um mercado formal de trabalho, impulsionado pela industrialização.
A marginalização e exploração acentuada de grandes contingentes populacionais dessa
sociedade industrializada na subordinação é a marca mais perceptível da incapacidade de
nossa burguesia em atender os anseios do desenvolvimento econômico nacional, objetivando
um forte mercado interno, com maior robustez para a manutenção da realização e acumulação
de capitais dentro do mercado nacional. Uma solução encontrada para fazer frente às
necessidades de manutenção de altas taxas de lucro se encontra na história da relação dessa
burguesia com a classe de trabalhadores nacionais, no transpasso das décadas referentes ao
processo de industrialização nacional. Necessário, então, entender este processo para
conseguir detectar as principais determinações que envolvem a anatomia da sociedade civil
brasileira, de um capitalismo atrofiado no qual sua sustentação está, em maior ou menor
medida, na superexploração da força de trabalho. Isso se mostra como um alargamento às
contribuições para a compreensão de um dos diversos elementos do capital brasileiro. Nesse
sentido, são dilemas que a Administração Política ainda pode e deve se debruçar, visto que
são poucas as incursões históricas que busquem delimitar a anatomia da sociedade civil
brasileira, buscando a compreensão dos elementos que constituem o complexo das relações
sociais de produção, dentre o qual a superexploração da força de trabalho se destaca como
categoria particular do metabolismo social no capitalismo atrofiado. Assim, este trabalho

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apresenta além desta introdução, mais 3 seções que se dividem sobre a delimitação da Via
Colonial, a tematização da superexploração do trabalho e por último as conclusões eivadas do
processo de análise em questão em conjunto com rápidas considerações sobre a crise
internacional e nacional em andamento.

1 – A Via Colonial de objetivação do capitalismo

A posição colonial do Brasil é um dos principais fatores que fundamentam a lógica da


exploração econômica na nossa formação nacional industrializada hipertardiamente. Formada
por interesses orientados para o comércio externo, raros foram os momentos nos quais os
setores econômicos dominantes do cenário nacional tiveram algum interesse pela formação de
um mercado interno robusto e buscaram a soberania econômica em relação aos interesses das
economias centrais. O processo de objetivação do capitalismo brasileiro pela Via Colonial
proposta por Chasin (1978) de talhe ontológico, tem sua maneira própria de ser, uma
legalidade interna particular, imanente, que nos permite divisar as diferenças específicas do
caso concreto da industrialização nacional e quais serão as consequências para a classe do
capital e do trabalho.
No caso em pauta, o que buscamos entender é a totalidade do comportamento social
brasileiro naquilo que houve de mais determinante nos processos de distribuição dos meios de
produção e das forças econômicas que, direta ou indiretamente, contribuíram para a direção
pela qual o capitalismo brasileiro que, subordinado aos interesses dos países centrais, compôs
sua formação excludente na distribuição da riqueza socialmente produzida. Em outros termos,
buscaremos trazer alguns elementos que compõem a ação recíproca dos setores econômicos
dominantes em relação à classe do trabalho, que vende sua força para o mercado, gerando o
processo fundante do relacionamento específico da relação entre capital e trabalho no Brasil.
Assim, traremos aqui os elementos que cumpriram o papel de constituir os complexos do
comportamento social brasileiro a partir de determinados setores dominantes da economia:

Pelo contrário, trata-se efetivamente de determinar seus níveis e conexões, níveis e


conexões de sua própria interioridade, de modo, que se refigure intelectualmente a
sua própria ordem imanente. [...] As relações infra-superestruturais aparecem, então,
não como uma proposta formalista, como uma simples construtura, mas sim
justificadas pela própria natureza do ser, de modo que a fundamentabilidade então
conferida a determinante econômica não é a arbitrária conferência de privilégio a um
fator (parte), mas a identificação do decisivo caráter determinante de uma
“anatomia”. (CHASIN, 1978, pp. 65-66)

O início claudicante da industrialização brasileira ocorre num processo histórico do


domínio do imperialismo britânico, no qual os setores dominantes da sociedade do período
colonial continuaram a manter as concentrações de propriedades nas esferas mais lucrativas
da produção nacional e na disputa por interesses dentro do Estado. A estes fatores se
adicionam os interesses internacionais, desde o liberalismo econômico dos setores comerciais
financeiros da época pré-30 até a paulatina ordenação e orientação do processo de
modernização industrial nacional, associando seus interesses aos da burguesia nacional
composta por interesses agrários, comerciais e industriais em conluio com o principal centro
de acumulação, do imperialismo norte-americano. O país é marcado por uma história onde o
novo não rompe com historicamente atrasado, um processo dissolutivo incompleto, que
perpassa as contradições internas que mantemos mesmo na constituição de nossas indústrias.
O que Marx (2013) definira como via clássica de surgimento do capitalismo na
Inglaterra e desvelara as categorias de funcionamento do sistema das relações sociais de

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

produção fora levado a novas aplicações para a compreensão das formas de ir e ser do capital
que não negam as conclusões do sistema erigido por Marx. Desta forma, a Via Colonial
compreende as diferenças das legalidades internas dos Estados-nação que constituem o
complexo do sistema do capital no mundo, abordando pelo método das diferenças específicas
do processo histórico as particularidades que compõe o caso nacional.
Sendo o capítulo XXIV de O Capital (2013) que demarca a constituição histórica do
capitalismo inglês, outras formas de objetivação do capital surgiram e o caso da via prussiana
do capitalismo alemão denota algumas particularidades que permitem identificar o caso
brasileiro, mas que não delimitam as diferenças específicas do processo. O caso da via
prussiana, ou das formas não-clássicas de objetivação do capitalismo, apresentada por Marx
(2012), aludida por Lênin (1963) e analisada em sua formação histórica e consequências reais
por Lukács (1959), nos permite identificar semelhanças e divisar as diferenças específicas.
Entretanto, significa dizer que a forma histórica em que se deu na Alemanha, apesar de
seus traços comuns divididos, não é a mesma totalidade histórica sob a qual o nosso país irá
adentrar no modo de produção capitalista. Nas palavras de Marx (apud CHASIN, 1978, p. 29)
“Assim, pois, eventos notavelmente análogos que, porém, ocorrem em meios históricos
diferentes conduzem a resultados totalmente distintos. Estudando em separado cada uma
destas formas de evolução e comparando-as depois, pode-se encontrar facilmente a chave
deste fenômeno, nunca porem se chegara a isto mediante o passaporte universal de uma teoria
histórico-filosófica geral cuja suprema virtude consiste em ser supra-histórica”. Conclui-se,
portanto, que “o decisivo não é tanto o que um nome possa designar, ‘mas como o objeto
nomeado se objetiva, se individualiza, enquanto entidade social’” (CHASIN, 1978, 627).

Assim, irrecusavelmente, tanto no Brasil quanto na Alemanha a grande propriedade


rural é presença decisiva; de igual modo, o reformismo pelo “alto” caracterizou os
processos de modernização de ambos, impondo-se, desde logo, uma solução
conciliadora no plano político imediato, que exclui as rupturas superadoras, nas
quais as classes subordinadas influiriam, fazendo valer seu peso específico, o que
abriria a possibilidade de alterações mais harmônicas entre as distintas partes do
social. Também nos dois casos o desenvolvimento das forças produtivas é mais
lento, e a implantação e a progressão da indústria, isto é, do “verdadeiro
capitalismo”, do modo de produção especificamente capitalista, é retardatária, tardia,
sofrendo obstaculizações e refreamentos decorrentes da resistência de forças
contrárias e adversas. (CHASIN, 1978, p. 627)

O problema das conclusões advindas apenas na sustentação da comparação pelas


condições de semelhança é que, segundo o próprio Chasin, tal equiparação, “equivaleria a
igualizar a realidade de um país economicamente subordinado, predominantemente agrário-
exportador, com a de países altamente industrializados, dentro de particularidades históricas
específicas, como polo dinâmico do grande capital” (1978, pp. 37-8). Assim, a via prussiana
conforma realidades particulares na história, da Alemanha e Itália, um desenvolvimento
histórico sem precedentes das forças produtivas daqueles países, saindo da qualidade de
capitalismo atrasado para assumir a condição de desenvolvido no estágio imperialista do
processo de acumulação mundial. Não há razoabilidade histórica para se comparar
mimeticamente os países de passado feudal com os países de extração colonial, a não ser nas
condições da conciliação com o atraso, ou seja, modificações das composições de classe no
Estado sem a participação das massas e nos obstáculos à supremacia industrial daqueles
países, delimitadas por Chasin sob a semelhança dos casos não-clássicos das formas de
objetivação do capitalismo. Portanto, uma das características específicas de nosso processo de
colonização é a ausência da preocupação com o consumo popular básico (a miséria
generalizada) e o predomínio da exploração econômica visando interesses próprios dos
setores dominantes para o comércio externo. Sintetizando com Prado Jr. (2011, p. 75):

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

O que interessa aqui é notar que a colonização não se orienta no sentido de constituir
uma base econômica sólida e orgânica, isto é, a exploração racional e coerente dos
recursos do território para a satisfação das necessidades materiais da população que
ali habita. Daí a sua instabilidade, com seus reflexos no povoamento, determinando
nele uma mobilidade superior ainda à normal dos países novos.

Os vastos contingentes de terra em poucas mãos, a exploração de mão de obra escrava


e a aplicação de monoculturas de interesse comercial europeu formam a tessitura da
reprodução econômica da época colonial. A empreitada que se apresentava nas colônias
latino-americanas fora iniciada com objetivos específicos de obter um alto retorno econômico,
considerando os riscos envolvidos nos trópicos. Ao invés de uma ocupação, o que nos marca
enquanto colônia foi a marca da exploração aventureira: “A emigração para cá, sobretudo na
fase mais ativa dela em que responde ao apelo das minas, tem um caráter aventuroso em que –
é a regra geral em casos dessa natureza – o homem emigra só” (PRADO JR., 2011, p. 113).
Essa diferença de sentidos econômicos da colonização que marcará profundamente as
diferenças históricas dos dinamismos de seus processos de industrialização. Ainda que à
época em que escrevia Prado Jr. a situação brasileira se encontrava “sem forma”, aberta
economicamente em seu futuro “[...] há apenas, em muitas partes dele, um processo de
ajustamento em pleno vigor, um esforço mais ou menos bem sucedido naquela direção, mas
que conserva traços bastante vivos do regime escravista que o precedeu” (2011, p. 9). Esses
anacronismos da situação brasileira em um ajustamento que não rompe com traços de seu
passado colonial que forçam determinados ajustes durante a marcha da industrialização do
capitalismo hipertardio historicamente e “Donde a subordinação da economia brasileira a
outras estranhas a ela; não completamos ainda hoje a nossa evolução da economia colonial
para a nacional” (2011, p. 10). Nesse sentido:

Analisem-se os elementos da vida brasileira contemporânea; “elementos” no seu


sentido mais amplo, geográfico, econômico, social, político. O passado, aquele
passado colonial que referi acima, aí ainda está, e bem saliente; em parte
modificado, é certo, mas presente em traços que não deixam iludir. Observando-se o
Brasil de hoje, o que salta à vista é um organismo em franca e ativa transformação e
que não se sedimentou ainda em linhas definidas; que não “tomou forma”. É
verdade que em alguns setores aquela transformação já é profunda, e é diante de
elementos própria e positivamente novos que nos encontramos. Mas isso, apesar de
tudo, é excepcional. Na maior parte dos exemplos, e no conjunto em todo caso, atrás
daquelas transformações que às vezes nos podem iludir sente-se a presença de uma
realidade já muito antiga que até nos admira de aí achar que não é senão aquele
passado colonial. (PRADO JR., 2011, p. 9)

Encarceradas por seu processo histórico próprio, a Independência nacional e a


constituição da República não constituíram elementos fortes o bastante para a dissolução dos
interesses agrários dominantes na época da industrialização, mas foram elementos decisivos
para tal encaminhamento de conciliação com o atraso. Nisto, o trabalho de Luz (1978)
perpassa com grande riqueza de detalhes as dificuldades das quais os setores agrários e
comerciais dominantes da época impunham ao surgimento de leis e garantias estatais para a
criação de indústrias em solo nacional. Segundo a autora, foi a partir de meados de 1870 que
as condições para a aplicação industrial seriam mais favoráveis. A partir de então, cresce a
indústria nacional intermitentemente em conflito com interesses agrários e do comércio
internacional, mas sempre em detrimento da produção de bens de necessidades populares. A
preocupação geral eram os lucros advindos do setor econômico de exploração e não o
atendimento das necessidades básicas da classe trabalhadora brasileira. A formação de
grandes empresas nacionais, aquelas indústrias que já haviam se estabelecido durante os

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

períodos turbulentos que constituem a Independência se mantêm na política errática e de


liberação das sociedades anônimas, tendo consideráveis repercussões na República em 1889.
Assim, se deu que “a partir de 1909, uma fase caracterizada pelas tentativas de se inaugurar
um novo industrialismo cujos alicerces deveriam repousar na existência de indústrias básicas,
particularmente a siderurgia” (LUZ, 1978, p. 165) toma forma durante o período entre
guerras. Segundo Francisco de Oliveira (2006, p. 445), “O resultado será um ritmo de
acumulação industrial não apenas lento, mas intermitente e, conseqüentemente, níveis
bastante medíocres para o conjunto da economia industrial como um todo”.
De Prado Jr. (2007, p. 115) temos que “o ajustamento do Brasil à nova ordem
imperialista se processou sem modificação substancial do caráter fundamental da economia
do país; isto é, a produção precípua de gêneros destinados ao comércio exterior”. Isso indica
que dentro de nossas diferenças específicas contém a condição subalterna da produção
capitalista industrial, não superada pela burguesia nacional e as necessidades materiais da
classe trabalhadora sendo relegadas para segundo plano. “De maneira que ficam distinguidos,
neste universal das formas não-clássicas, das formas que, no seu caminho lento e irregular
para o progresso social, pagam alto tributo ao atraso, dois particulares que, conciliando ambos
com o historicamente velho, conciliam, no entanto, com um velho que não é nem se põe como
o mesmo” (CHASIN, 1978, p. 628).
Este velho que não é e nem se põe como o mesmo, a posição subalterna da economia
colonial e a ausência da composição, por parte das classes dominantes, de ideias de um
nacionalismo que orientasse o desenvolvimento das necessidades das classes trabalhadoras,
nos indica que o período mais marcante da industrialização nacional (identificado com os
processos de alteração das composições das forças burguesas no Estado com a chegada dos
setores industriais, mas sem a eliminação dos antigos interesses agrário-exportadores) seria
conduzido de forma a atender os vários interesses contraditórios dentro da própria burguesia
brasileira, em detrimento dos interesses população nacional:

Sem dúvida, a história brasileira desde a década de 30 é a história da incapacidade


da versão atrófica do capital verdadeiro para integrar, de seu prisma, a maior parte
da população à sociedade nacional. Enquanto tal uma história fantástica de
desperdícios, sobretudo de energias ou recursos humanos. Nesse contexto, a
marginalização é a própria marca registrada dos feitos do capital atrófico, que a
teoria da marginalidade, no entanto, só logrou registrar como um oceano
desconcertante de sacrificados e embaídos, que pretendeu transformar, em
momentos utópico-especulativos, no esteio social de supostamente novas figurações
das marchas transformadoras, para além da potência e da lógica das classes. Não
conseguiu apreender o fenômeno da exclusão massiva, ou antes, nem mesmo
vislumbrou a necessidade de associar visceralmente a marginalidade à impotência de
uma forma de capital, mas a tomou apenas, politicamente, nos seus efeitos sociais
como o fracasso de uma política econômica. Ou ainda, não alcançou entender o
universo dos condenados à escuridão como um descomunal exército industrial de
reserva e, assim, enquanto figura própria de uma sociedade industrializada na
subordinação. (Chasin, s/d, p. 159)

O uso do Estado para a consecução dos interesses industriais no Brasil foi a principal
forma encontrada para que os setores dominantes avançassem no processo de industrialização
através da implementação de infraestrutura das indústrias de base, necessidade esta já
declarada pela classe industrial antes dos processos iniciados com a chegada de Getulio
Vargas, da política de créditos e subsídios industriais representado pelo Programa de
Substituição de Importações (PSI). Outra forma encontrada entre 30 e 64 foi a contenção da
valorização salarial diante da inflação, principalmente no governo Dutra, que denota, no
conjunto de tais fatores, a incapacidade e o desinteresse histórico da burguesia nacional de
arcar independentemente com o processo de acumulação capitalista. Como salienta Marx

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

(2011, p. 438): “A desvinculação das obras públicas do Estado e sua passagem ao domínio
dos trabalhos executados pelo próprio capital indicam o grau em que se constituiu a
comunidade real na forma do capital”.
As reivindicações mais comuns da classe do trabalho eram o aumento de salários, o
fim da exploração de menores e mulheres, a redução de jornada (trabalhava-se de 12 a 16
horas diárias) e a melhoria das condições gerais de trabalho. Até então, não existira legislação
social abrangente. Antes de tal legislação, valia o regulamento de cada unidade fabril,
incluído até castigos físicos. As relações entre patrões e trabalhadores eram de quase servidão
escravista. No problema da regulação da jornada de trabalho industrial na Inglaterra se
encontra que “O modo de produção material modificado, ao qual correspondem as relações
sociais modificadas entre os produtores, engendra, de início, abusos desmedidos e provocam,
como reação, o controle social que limita, regula e uniformiza legalmente a jornada de
trabalho e de suas pausas. Por isso, durante a primeira metade do século XIX, esse controle
aparece como mera legislação de exceção” (MARX, 2013, p. 369-370).
Portanto, na incompletude da industrialização hipertadia, as tarefas cabidas à
burguesia foram levadas a cabo pelo Estado, representando os interesses destes setores como
os verdadeiros interesses “nacionais”. O desinteresse da burguesia em se alçar aos mesmos
patamares das economias centrais perfaz o caminho da industrialização. De tal processo
histórico emerge pela primeira vez na história uma legislação trabalhista unificada, ratificando
e ampliando regras e legislações até então dispersas e estabelecendo, através da criação por
decreto governamental, a Consolidação das Leis do Trabalho, ou seja, o principal instrumento
de regulação da exploração capitalista da força de trabalho no país. Por outro lado, fica
perceptível que as tarefas legadas à classe trabalhadora também se constituíam de conquistas
pontuais de determinados setores, mas que foram consolidadas pelo próprio Estado,
representando uma conquista nas lutas internas pela jornada normal de trabalho. Encontra-se
em Marx (2013, p. 370) a importância dessa passagem histórica na Inglaterra: “A criação de
uma jornada normal de trabalho é, por isso, o produto de uma longa e mais ou menos oculta
guerra civil entre as classes capitalistas e trabalhadoras”.
O processo do golpe em 1964 sintetizou a disputa entre um nacionalismo de
industrialização autônoma, representado pelas Reformas de Base e o Plano Trienal, que foram
interpretados como um “fantasma do comunismo”, no estertor da guerra-fria e de seus
complexos movimentos mundiais. Os setores dominantes apoiavam então o aprofundamento
dos laços econômicos com os países capitalistas centrais (em especial o estadunidense), a
defesa da livre empresa e criticavam a intervenção estatal na economia. Mas a convulsão
econômica e social que inicia a década de 60 apresentava problematicamente o padrão de
acumulação exibido no governo Kubitschek, de desnacionalização das indústrias nacionais e
da ampliação do endividamento público para consecução de obras públicas, em contraposição
às propostas populares de distribuição das propriedades dos meios de produção oriundo da
eleição de Jânio Quadros e João Goulart.
Em suma, a Via Colonial do capitalismo lega uma burguesia nacional particular:

[...] que não é capaz de perspectivar, efetivamente, sua autonomia econômica, ou a


faz de um modo demasiado débil, conformando-se, assim, em permanecer nas
condições de independência neocolonial ou de subordinação estrutural ao
imperialismo. Em outros termos, as burguesias que se objetivaram pela Via Colonial
não realizam sequer suas tarefas econômicas, ao contrário da verdadeira burguesia
prussiana, que deixa apenas, como indica Engels, de realizar suas tarefas políticas.
De modo que, se para a perspectiva de ambas, de fato, é completamente estranha a
um regime político democrático-liberal, de outro lado, a burguesia prussiana realiza
um caminho econômico autônomo, centrado e dinamizado pelos seus próprios
interesses, enquanto a burguesia produzida pela Via Colonial tende a não romper sua
subordinação, permanecendo atrelada aos polos hegemônicos das economias

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

centrais. Em síntese, a burguesia prussiana é antidemocrática, porém autônoma,


enquanto a burguesia colonial, além de antidemocrática, é caudatária, sendo incapaz,
por iniciativa e força próprias, de romper com a subordinação ao imperialismo
(Chasin, 1980, pp. 128-9).

2 – A consolidação da superexploração da força de trabalho

O processo estruturado pós-64 serviria aos interesses dominantes das classes


capitalistas brasileiras subordinados aos interesses externos. Dentre a “abertura” histórica
composta no processo de 30-64 sobre a possibilidade de uma industrialização autônoma e de
cunho nacional que serviria aos interesses populares e trabalhistas. Nesse processo, “Pelo
caráter, dinâmica e perspectiva do capital atrófico e de sua (des)ordem social e política, a
reiteração da excludência entre evolução nacional e progresso social é sua única lógica [...]”
(Chasin, 1989, p. 49).
A problemática da superexploração da força de trabalho no país foi objeto de grande
discussão no período pós-64, representado principalmente pelas teses marinistas, principal
expoente da Teoria Marxista da Dependência, que não obteve à época grandes repercussões
em solo nacional, apesar de ter se destacado no pensamento latino-americano (FERREIRA;
LUCE, 2012). Marini (1971; 2008) tem, em seus momentos essenciais e considerando as duas
obras que envolvem esse problema com maior atenção, a proposta de uma categoria marxiana
que aqui funciona de maneira particular decorrente de sua própria forma de desenvolvimento
capitalista dependente, quando o Brasil tem sua inserção de “independência formal” no
mercado mundial e, posteriormente, passa a ser uma realidade transformada de
essencialmente rural para urbano-industrial em caráter de reprodução dos mecanismos
geradores da dependência econômica em seus processos de desenvolvimento capitalista.
O aforismo de Gunder Frank (1969), o desenvolvimento do subdesenvolvimento, dá
para Marini a confirmação deste problema e possibilitará a ele a tentativa da formalização do
funcionamento do capital em metabolismos sociais de diferente constituição histórica,
reafirmando os problemas de ordens estruturais de sua execução, que dão limites extremos
para a consecução de um desenvolvimento pautado na despreocupação com a necessidade
popular e com os limites de uma burguesia que não rompe com seu passado. Marini tentará
abstrair dos principais processos históricos levantados por ele, para buscar então o modo de
regulação particular entre capital e trabalho no Brasil, qualificando-o como capitalismo sui
generis, dada as intricadas relações das trocas desiguais no mercado mundial e dos
mecanismos de transferência de valores das economias dependentes para as economias
centrais.
Diferentemente de Chasin, o processo utilizado não é calcado pelo método das
diferenças específicas da ontologia do ser social nacional buscando sua anatomia, mas pela
teoria do valor em Marx, analisando o ciclo do capital nas economias subordinadas (ou
dependentes) e os mecanismos constringentes da transferência do valor produzido na
integração de interesses dos países atrasados para os países de capitalismo avançado pelas
trocas desiguais no mercado mundial. Segundo Marini, (1971, p. 18):

Este proceso se completó con la renuncia de la burguesía llevar a cabo una política
de desarrollo autónomo. En efecto, el asedio de los capitales extranjeros, que se
intensifica en los años cincuenta, coincide con la dificultad de las economías
latinoamericanas para lograr una flexibilización de su capacidad para importar,
mediante la expansión de exportaciones tradicionales […] Así, la burguesía
industrial latinoamericana evoluciona de la idea de un desarrollo autónomo hacia
una integración efectiva con los capitales imperialistas y da lugar a un nuevo tipo de
dependencia, mucho más radical que el que rigiera anteriormente.

362
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Desta forma, “En realidad, lo que pasaba era que el desarrollo del capitalismo
industrial brasileño chocaba con el límite que le imponía la estructura agraria. Al estrellarse
contra el otro limite, representado por sus relaciones con el imperialismo, todo el sistema
entraba en crisis” (MARINI, 1971, p. 100). As conclusões que derivam de tais afirmações vão
de encontro com os principais momentos históricos de constituição das indústrias nacionais
após 1930. Entretanto, considera-se neste trabalho que a teoria do valor, por si mesma, é
insuficiente para confirmar as conclusões que estariam apresentadas em seu estudo mais
conhecido da dialética da dependência. Assim, as considerações históricas encontradas
anteriormente são essenciais, mas, por seu lado, não seguem o método de entalhe ontológico
das diferenças processuais específicas das formações capitalistas para compreender a estrutura
da superexploração da força de trabalho no Brasil.
Não obstante às diferenças e limites ao método escolhido, é necessário registrar a
originalidade da categorização da relação entre capital e trabalho nas economias latino-
americanas, feita por Marini (incluindo neste caso o Brasil). Decerto que foi fundamental a
usurpação do poder estatal feita pelos militares para a consolidação da estrutura que rege a lei
do valor das economias subordinadas. A diferença dos métodos, entretanto, levam a
considerações sensivelmente diferentes do problema em pauta.
De Marini, o entendimento da questão parte da conferência de privilégio a um fator
determinante (as trocas desiguais e os mecanismos de transferências do valor), da qual se tem
neles a identificação do decisivo caráter determinante da anatomia nacional. Assim, o autor,
desenvolvendo de maneira autóctone e ainda incipiente a teoria das abstrações de Marx,
identificados nos diferentes tratamentos das abstrações econômicas apresentadas nos volumes
II e III de O Capital, parte para as considerações destas trocas desiguais e da transferência de
valor os substratos essenciais da reafirmação da dependência dentro do processo de
desenvolvimento capitalista. Os mecanismos econômicos auto-constritores são elevados ao
plano da explicação dos modos ou padrões de reprodução econômica que se apresenta pelo
capitalismo sui generis. A solução encontrada pelo capital dependente em face aos
mecanismos de transferência do valor das trocas desiguais para as economias centrais se
encontra no uso intensivo da mão-de-obra abaixo do seu valor para compensar as perdas
internacionais.

Pois bem, os três mecanismos identificados – a intensificação do trabalho, a


prolongação da jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário
ao operário para repor sua força de trabalho – configuram um modo de produção
fundado exclusivamente na maior exploração do trabalhador e não no
desenvolvimento de sua capacidade produtiva. Isso é condizente com o baixo nível
de desenvolvimento das forças produtivas na economia latino-americana, mas
também com os tipos de atividades que ali se realizam. De fato, mais que na
indústria fabril, onde um aumento de trabalho implica pelo menos num maior gasto
de matérias-primas, na indústria extrativa e na agricultura o efeito do aumento do
trabalho sobre os elementos do capital constante são muito menos sensíveis, sendo
possível, pela simples ação do homem sobre a natureza, aumentar a riqueza
produzida sem um capital adicional. Entende-se que nestas circunstâncias a
atividade produtiva baseia-se sobretudo no uso extensivo e intensivo da força de
trabalho: isso permite baixar a composição-valor do capital, o que, agregado à
intensificação do grau de exploração do trabalho, faz com que se elevem
simultaneamente as taxas de mais-valia e de lucro.
Além disso, importa assinalar que, nos três mecanismos considerados, a
característica essencial está dada pelo fato de que são negadas ao trabalhador as
condições necessárias para repor o desgaste de sua força de trabalho: nos dois
primeiros casos, porque ele é obrigado a um dispêndio de força de trabalho superior
ao que deveria proporcionar normalmente, provocando-se assim seu esgotamento
prematuro; no último, porque se retira dele inclusive a possibilidade de consumo do
estritamente indispensável para conservar sua força de trabalho em estado normal.

363
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Em termos capitalistas, estes mecanismos (que ademais podem se apresentar e


normalmente se apresentão, de forma combinada) significam que o trabalho se
remunera por baixo de seu valor e correspondem, portanto, a uma superexploração
do trabalho. (MARINI, 2011, pp. 149-150)

Chasin, por outro, apresenta o problema pelo interior do itinerário do pensamento


marxiano centralizado na crítica ontológica da filosofia especulativa de sua época, pois
“Tomados em conjunto em seu significado fundamental, os textos não comparecem aí
enquanto escritos erráticos, mas como passos de um itinerário deliberado, ciente da sua
orientação, que se reforça na própria marcha.” Este progrediria no “Rumo dado, segundo o
próprio autor, pela desembocadura de sua investigação primígena: ‘A anatomia da sociedade
civil deve ser procurada na economia politica’” (2009, p. 75). Assim, Marx eleva as
categorias econômicas a seus fundamentos filosóficos.
Determinadas as diferenças entre autores, cumpre dizer que esta forma de
superexploração da força de trabalho é apresentada por ambos como o pagamento da mão-de-
obra abaixo do seu valor real, ou seja, abaixo do necessário ao consumo reprodutivo normal
da classe trabalhadora. Isso implica dizer que a solução das políticas econômicas propostas
durante os governos militares foram calcadas principalmente na política de arrocho salarial
direto e na reprodução da miséria de grande parte da classe trabalhadora do país de um lado,
enquanto concentrava enormes somas de capitais por outro.
Durante o Plano de Ação Econômica do Governo, os principais mecanismos
identificadores dos processos inflacionários herdados dos governos anteriores constituíam na
identificação do déficit público e dos aumentos salariais:

O primeiro aspecto que chama a atenção é o fato de que os novos mandatários


acreditavam que os trabalhadores estavam auferindo salários além daquilo que era
suportável para a economia brasileira, ou melhor, acima da produtividade da
economia [...] Diante dessa situação, tornava-se necessária a disciplina salarial, pois
só assim se conseguiria a estabilidade da economia. No entanto, estas metas não
poderiam ser alcançadas num clima de normalidade democrática, uma vez que o
movimento sindical atingira alto grau de mobilização e dificilmente aceitaria sem
luta o achatamento salarial, Portanto, para que o governo tivesse controle geral da
situação e não encontrasse óbices à sua estratégia de crescimento acelerado, com
concentração de renda, era de fundamental importância a imposição de três linhas
básicas:
a) avocar para o Estado o poder exclusivo de regular a disputa entre capital e
trabalho, de forma que a fixação do preço da mão-de-obra não perturbasse a
macroeconomia do governo;
b) implementar uma legislação repressiva capaz de afastar da vida sindical os
opositores do novo regime, bem como evitar que os sindicatos voltassem a ser
controlados por ativistas da velha ordem ou por novos contestadores;
c) aprimorar a legislação corporativa anterior, visando disciplinar e cooptar os novos
sindicalistas, a fim de constituir uma camada de dirigentes favoráveis à política do
novo governo. (SILVA, 1996, p. 39)

Se o valor da força de trabalho é historicamente determinado, o conjunto de


necessidades básicas das classes trabalhadoras aumenta com o desenvolvimento interno das
forças produtivas, enquanto a política de arrocho salarial contrai sensivelmente o poder de
consumo das classes trabalhadoras. A diferença das análises do processo feito por Marx é
significativa pelo fato de constar do processo de formação da jornada normal de trabalho
(representado pelas leis trabalhistas de refreamento à sucção de valor do capital de maneira
excessiva), ou seja, como uma apresentação anterior à normalização da jornada de trabalho na
Inglaterra (cf. MARX, 2003, pp. 305-374), o que nos mostra a diferença específica do caso

364
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

brasileiro é que ela é um dos pilares fundamentais de organização e regulação da relação


capital e trabalho no período do governos militares.
Sendo assim, “No Brasil, essa questão se transformou num ciclo vicioso cruel: as
classes dominantes, para acelerar o processo de acumulação, praticam uma economia de
baixos salários [...] que tende a pressionar o salário mínimo para baixo [...] ou seja, um
mercado com salários pagos abaixo do valor da força de trabalho” (SILVA, 1996, p. 44). No
mesmo diapasão, “pode-se observar nitidamente que nos 21 anos de regime militar foi
implementada uma política de estado, consciente e planificada, com o objetivo de
desvalorizar o preço da mão-de-obra e realizar o processo de acumulação acelerada” (SILVA,
1996, p. 50, itálicos do autor). O que nos indica que a aproximação do método chasiniano
corresponde melhor nas múltiplas determinações que compreendem o problema da
superexploração da força de trabalho, ao invés de decorrer de uma lógica inerente ao processo
das trocas desiguais e das transferências de valores aos centros do capital que, apesar de tudo,
ainda ocorrem e devem ser sopesadas como influenciadoras das determinações da relação
capital-trabalho.
O que se formou no Brasil foi então uma enorme disparidade de remuneração entre os
próprios trabalhadores, num gigantesco processo de miséria do proletariado mal remunerado e
uma aristocracia assalariada, localizada nos quadros técnicos, especialistas e gerenciais das
empresas.

3 – Conclusão: uma possível intensificação da superexploração estrutural como efeito


pós-crise.

Eivadas do processo de redemocratização, as políticas econômicas dos governos


sucessórios não apresentaram um sentido programático de alteração das relações capital-
trabalho. Apesar dos avanços dos direitos civis apresentados, os fundamentos das políticas
econômicas eram ainda exigências do Fundo Monetário Internacional e, independente das
tendências políticas que alçaram ao poder estatal, nenhuma das alas apresentou qualquer
esboço de alteração das condições fundamentais da reprodução da classe trabalhadora no
Brasil. Uma de suas consequências foi a abertura da terceirização das atividades-meio, na qual
a relação capital-trabalho fica sensivelmente positiva para as imposições do capital.
Não obstante os últimos governos do Partido dos Trabalhadores, claramente mais
generosos e aberto às necessidades das massas excluídas do processo de consumo do que em
relação a seu antecessor, não havia em suas aspirações uma alteração significativa na
composição da posse dos meios de produção pelas classes dominantes em direção às classes
trabalhadoras do país. Resolvido o processo de redemocratização com a mesma conciliação
com o passado apresentado na época das oligarquias agrárias, não houve um expurgo em
definitivo dos mecanismos constrangedores tanto em sua arena política, mas, principalmente,
nos fundamentos econômicos herdados dos governos militares. Dentre eles, a superexploração
da força de trabalho não foi retirada da forma de organização do metabolismo social do
capitalismo brasileiro.
Certamente as políticas redistributivas ensaiadas nos governos de FHC e alçadas a
constituição de direitos das massas das políticas públicas propostas nos governos Lula e
Dilma, a encenação em jogo não alterou os fundamentos restringentes da classe trabalhadora.
Há que se notar que, anteriormente houve a diminuição sensível da capacidade de intervenção
estatal na economia por meio das criminosas negociatas proporcionadas no processo de
privatização. Contudo, após 2003, e no esteio do processo de valorização mundial das
commodities, o governo conseguiu delimitar uma política de valorização real do salário
mínimo que não alcançou as bases do necessário ao consumo das famílias:

365
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Tabela: Salário mínimo nominal e necessário


Período (2016) Salário Mínimo Nominal Salário Mínimo Necessário
Maio 880,00 3.777,93
Abril 880,00 3.716,77
Março 880,00 3.736,26
Fevereiro 880,00 3.725,01
Janeiro 880,00 3.795,24
Fonte: Dieese Disponível em: http://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html

Dado então que a convivência com a superexploração da força de trabalho hoje, se dá


por formas indiretas pelos programas sociais e creditícios para o consumo de bens duráveis,
que endivida sensivelmente a classe trabalhadora nos seus parcos rendimentos. Além disso, o
que se observa nos governos do petistas inclui também a criação de uma série de novas
classificações na área de serviços (Micro Empreendedores Individuais, Pessoas Jurídicas que
são Pessoas Físicas que prestam serviços) que escamotearam a real situação da classe
trabalhadora. A desindustrialização nacional, a continuação dos processos de privatização e
consequente diminuição na capacidade de intervenção econômica pelo Estado são marcas que
unem os diferentes governos pós-redemocratização. A crise de 2008, indevidamente sopesada
pelas forças de então acabaram por desconsiderar os efeitos desiguais e combinados que, mais
cedo ou mais tarde, atingiriam a periferia do sistema do capital.
O que, no bojo do processo, os últimos governos petistas representaram um alento
mínimo às condições físicas de reprodução da classe trabalhadora, ainda superexplorada em
relação às suas necessidades básicas e em relação aos grandes centros capitalistas. Hoje a
classe trabalhadora se vê endividada e sem acesso aos serviços públicos essenciais como
saúde e educação.
Na confusão e total perda de direção da capacidade de orientação econômica como
efeitos deletérios da crise do sistema mundial do capital, hoje se apresenta uma série de
respostas solucionadoras para a retomada das taxas de lucro do capital nacional. No esteio de
um congresso extremamente conservador, as pautas que incidem sobre a relação capital-
trabalho estão no centro da discussão, incluindo também as políticas sociais do Estado. Todas
elas apresentam uma relação desfavorável ao processo de regulação da relação capital-
trabalho, insinuando inclusive o abandono das Consolidação das Leis do Trabalho em relação
ao combinado entre capitalista e trabalhador, ou o “negociado sobre o legislado”.
Ainda não efetivamente terminado, o que se apresenta ao horizonte do mundo do
trabalho são enormes retrocessos que podem colocar a reprodução da miséria em níveis ainda
mais acentuados dos que se apresentam hoje.

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367
Administração Política, Distribuição e
Desenvolvimento

368
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Geopolítica Tributária: a apropriação histórico-social do espaço e o imposto sobre o


valor adicionado

Renato Miranda
Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Resumo:
A “competição interjurisdicional”, conhecida no Brasil também como “guerra fiscal”, consiste
numa questão cuja complexidade guarda nuances históricas, políticas, regionais, fiscais e
federativas. O esforço para sanar ais conflitos vem se desdobrando por meio das tentativas de
implementação de uma reforma tributária voltada para a uniformização da legislação do
ICMS, com o deslocamento da sua incidência interestadual para o momento e o local do
consumo. O presente trabalho objetiva identificar os determinantes conjunturais da matriz
espaço-temporal privilegiada pelas propostas de reforma em tramitação, investigando os
traços concretos dessa nova materialidade institucional, em cotejo com os formatos
organizativos tidos como “adequados” ao contexto no qual está inserido o Estado
contemporâneo.
Palavras-chave: ICMS; uniformização; federalismo.

1. Introdução
A “competição interjurisdicional” no Brasil se desdobra em conflitos de diferentes
ordens: o de cunho regional, protagonizado pelos interesses dos estados-membros produtores,
economicamente mais desenvolvidos, em oposição aos dos estados-membros consumidores,
de setor industrial mais incipiente; o intergovernamental horizontal (entre entes do mesmo
nível), composto pela chamada “guerra fiscal”, na qual os estados-membros cedem favores
fiscais em prol da atração de investimentos industriais para os seus territórios; o
intergovernamental vertical, caracterizado pela tensão provocada em razão da coexistência de
autonomias distintas no mesmo território, onde o governo central (União) tenta alinhar a
prática tributária dos estados-membros ao padrão de ajuste fiscal em implementação; ou,
ainda, conflitos vinculados à estruturação dos mercados mundiais, influenciados pelas
tendências internacionais de tributação sobre o valor adicionado – com incidência tributária
sobre o consumo – como forma de melhor permitir a circulação de mercadorias por entre os
territórios.
No caso da tributação sobre o valor adicionado, especificamente sobre o consumo, a
contenção da dinâmica competitiva entre os estados-membros vem sendo apresentada nas
ultimas décadas – principalmente nos momentos de reforma constitucional –, como um
problema a ser equalizado dentro da estrutura federativa brasileira. Em primeira mão, como
antídoto para sanar os problemas decorrentes da “competição interjurisdicional”, o atual
momento conta com três propostas de alteração legislativa, todas elas - guardadas suas
especificidades – defensoras da uniformização da legislação do ICMSi, mediante o
deslocamento da base da incidência tributária interestadual para o momento e local do
consumo. O presente estudo busca, portanto, identificar quais os determinantes conjunturais
dessa nova matriz espaço-temporal. Tal intento desdobra-se especificamente, em dois outros
objetivos: abordar os traços concretos dessa nova materialidade institucional; analisar as
contradições intrínsecas à arquitetura organizativo-institucional sugerida.
O estudo desenvolve-se, primeiramente, a partir da análise das propostas de reforma
tributária e identificação dos seus traços concretos, sintetizados num quadro com os principais
elementos das três propostas de reforma. A partir daí, segue-se a abstração de três categorias,
articulando-se, em espiral, elementos teórico-conceituais e empírico-conjunturais, inerentes a

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

cada uma delas. A primeira problematiza a questão da “apropriação histórico-social do


espaço”, sendo identificados os macrofundamentos do impulso de uniformização normativa
capitalista e a decorrente exclusão da questão regional do arcabouço jurídico-tributário. A
segunda dedica-se a abordagem da “reestruturação global do espaço”, percebendo as novas
escalas, sob as quais se desdobra a atual dinâmica competitiva entre os Estados nacionais,
observando-se, a partir daí, os reflexos disso na constrição dos entes federativos subnacionais.
A terceira, por sua vez, chega à chamada “neutralização do espaço”, constatando o quanto a
difusão das ideias de harmonização fiscal e de consolidação das bases tributárias fixas
encontra-se, em realidade, destinada a assegurar a mobilidade do capital, deslocando o ônus
tributário para os ombros dos agentes com menor mobilidade espacial, a exemplo dos
consumidores de baixa renda.

2. Traços concretos da materialidade institucional sob implementação


A primeira proposta – consubstanciada na PEC nº 233/2008 – visa à instauração de um
“Novo ICMS”, o qual seria de competência comum a todos os estados-membros e
implementado mediante a adoção, dentre outros, de uma série de medidas voltadas para a
extinção das alíquotas interestaduais; a segunda – a PST/2010 –, sugere a extinção do ICMS,
vindo este a ser incorporado por um Imposto sobre Valor Agregado (IVA-Nacional), de
competência da União, hipótese em que esta última garantiria o repasse das receitas
tributárias, na proporção do que cada estado-membro arrecada, atualmente, com esse tributo
e; a terceira – um pacote de medidas do governo federal –, sustenta o presente status
normativo do ICMS, propondo, além de outras medidas, a gradual redução das alíquotas
interestaduais ao percentual de 4%. Pode-se dizer, dessa forma, que a busca pela
homogeneização normativa, em prol da “competitividade” da economia nacional, apresenta-se
encadeada a partir de três subsequentes entendimentos: um voltado para a criação de um novo
tributo de competência comum a todos os estados-membros; outro, a favor da incorporação do
atual ICMS por um tributo de competência da União; e um terceiro, direcionado à
significativa diminuição das alíquotas interestaduais.
Analisados os documentos e tramitações relativos às três propostas de reforma, em
síntese, pode-se dizer que os principais traços concretos, inerentes à nova materialidade
institucional são:

a) “Eficiência” e “competitividade” como orientação discursiva predominante;


b) Uniformização homogeneizadora das estruturas tributárias;
c) Exclusão das questões regionais frente à nova espacialidade tributária;
d) Tempo e espaço da incidência tributária situados no “consumo”;
e) Preponderância da União no redesenho das relações federativas;
f) Harmonização fiscal para inserção econômica internacional.

370
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Quadro 1: Síntese das propostas de reforma tributária.


Proposta Autoria Documento Competência Formato do Sistema de Apuração Transações Regime de Transição Fundos Situação Matriz Espaço-
de da Proposta Tributária ICMS Interestaduais Reparador do Órgão temporal
Reforma es Regulador
Governo - PEC nº Competência Criação de um Imposto uniforme em Extinção das Gradual redução das - FNDR CONFAZ Uniformização
Federal 233/08 comum a “Novo todo o território alíquotas alíquotas interestaduais, - FER normativa, com
todos os ICMS”, único nacional. Incentivos interestaduais até o percentual de 2%, incidência
estados- para todo o fiscais uniformes em ao final do 7º ano. tributária no
Primeira
membros país todo território Vigência plena, “destino”
nacional somente a partir do 8º
ano subsequente a
promulgação da emenda
Senado - PST/10 Competência Incorporação Imposto sobre o valor Extinção das Nos primeiros três anos, Fundo de Extinção Uniformização
Federal da União para do atual ICMS adicionado, uniforme alíquotas a alocação da quota Compensa do normativa, com
instituir o pelo IVA- em todo o território interestaduais estadual conforme a ção, além CONFAZ incidência
tributo. Nacional nacional, incidindo atual participação de do novo tributária na
Competência sobre uma ampla cada estado na mecanism “origem”,
dos Estados base, englobando a arrecadação nacional do o de porém, com boa
Segunda
para cobrar o circulação de ICMS partilha parte do produto
tributo mercadorias e tributária da arrecadação
prestação de serviços, designado ao
além do faturamento estado de
ou receita das “destino”
empresas.
Governo - PRS nº Competência Permanência Alíquota interestadual Redução das Gradual redução da - FDR Transform Uniformização
Federal 1/13 individual de do atual uniforme em todo o alíquotas alíquota interestadual - Fundo ação do normativa da
- MP nº cada estado- formato, com território nacional interestaduais unificada até o de CONFAZ tributação
Terceira
599/12 membro a unificação ao percentual percentual de 4%, no Compensa em interestadual,
- PLP nº das alíquotas de 4% período de 8 anos ção CONACI com incidência
238/13 interestaduais no “destino”
Fonte: O autor.

371
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

3. A apropriação histórico-social do espaço via uniformização homogeneizadora e


exclusão da questão regional
Os discursos predominantes na consecução da reforma tributária a colocam na
condição de processo responsável por eliminar as distorções causadas pela “guerra fiscal”,
principalmente, quanto aos seus nocivos efeitos à competitividade econômica do país. As
ineficiências dessa disputa entre as jurisdições são atribuídas, em regra, ao fato de existirem
27 distintas legislações de ICMS no território nacional.ii A relativa autonomia de cada ente
para instituir seus mecanismos de tributação e arrecadação emerge como um dos principais
fatores de promoção dessa competição, pesando, negativamente, sobre a arrecadação global
dos estados-membros. A partir daí, a heterogeneidade de normas passa a ser vista como um
fator prejudicial ao desenvolvimento e integração econômica, razão pela qual propõe-se a
uniformização desse imposto como caminho para conter a incidência de forças
desagregadoras sobre o pacto federativo, sanando, dessa forma, algumas das principais
“distorções” do sistema tributário, atendendo, assim, às exigências de competitividade
econômica.
Sem deixar de reconhecer tais fatores – imediatamente manifestos na superfície do
fenômeno –, importa mencionar o fato de, por trás dos seus desdobramentos, a matriz espaço-
temporal, então delineada, constituir-se em condicionamento recíproco com o padrão de
acumulação e a conjuntura na qual se insere. Assim, para além de uma mera reacomodação
territorial das estruturas tributárias – voltada para a maximização individual de interesses, na
interação entre seus agentes –, a percepção desse processo de uniformização compreende a
constituição histórico-social do espaço, em sua interdependência com as estratégias
organizativas, proeminentes num contexto concreto particular. Isso implica dizer que a
presente padronização das alíquotas interestaduais, ou a transformação do ICMS num tributo
federal, traduz o intento de composição de uma nova espacialidade tributária, marcada pela
homogeneização do espaço nacional, mediante o reordenamento dos obstáculos à circulação
do capital, em consonância com as novas escalas de acumulação.
As teorias hegemônicasiii, baseadas no individualismo metodológico e nas escolhas
racionais, buscam constituir uma abordagem cuja dotação de recursos estaria inscrita numa
superfície homogênea, contínua e plana, na qual os atores fossem, otimamente, dispostos no
espaço geográfico, por sua vez, moderado sob os mesmos critérios de eficiência e
racionalidade intrínsecos aos processos técnico-científicos. Destarte, o impulso
homogeneizador, inerente ao desenvolvimento das forças produtivas, acaba, então, por
condicionar a determinação das novas formas espaciais, concebendo os territórios enquanto
receptáculos neutros das forças mercantis e decisões individuais. Fingem desconhecer, desde
então, que as formas assumidas por tais espaços manifestam a própria racionalidade
hegemônica de uma formação social, constituída em regime de interdependência com o modo
de produção (BRANDÃO, 2004; SANTOS, 1982; 2006). É nesse sentido que a tributação
contemporânea vem passando por uma profunda transformação da sua geografia, mediante a
reconfiguração da espacialidade fiscal, constante em seus sistemas normativos, atendendo
assim às práticas e discursos de globalização (CAMERON, 2006).
Considerando a existência de macrofundamentos na composição do espaço, pode-se
dizer que o sistema capitalista modela as respectivas escalas em seu benefício, reproduzindo
estruturas geográficas organizadas segundo a melhor forma de superação dos obstáculos
espaciais, garantindo, desse modo, os requisitos mínimos de mobilidade e reprodução do
capital (BRANDÃO, 2004; HARVEY, 2007; MARX, 1973). Essa garantia de mobilidade
busca consolidar um ambiente capitalista em cujo regime de expansão geográfica elege a
competitividade como regra, carecendo, para tanto, de uma relativa homogeneização dos seus
aparatos institucionais, tendentes a estabilizar e também a uniformizar as expectativas dos
agentes envolvidos (FIORI, 2003; SANTOS, 2001). Nesse panorama, a organização espacial

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

passa, então, a ser posicionada de forma a superar o próprio espaçoiv, reduzindo-se o tempo e
o custo de mobilidade do capital, num cenário em que o ente público assume o papel de
garantidor das condições necessárias à produção e circulação de mercadorias, liberando os
capitalistas de restrições geográficas determinadas (HARVEY, 2007; MARX, 1973).
O movimento homogeneizador do capital constitui-se, teoricamente, a partir das suas
determinações mais simples e imanentes, ou seja, funda-se enquanto exigência do “capital em
geral”, antes mesmo de se considerar a pluralidade de capitais, em concorrência. Essas
determinações gerais buscam instituir uma equalização equivalente dos fatores, dando
unidade à diversidade das relações existentes. No curso desse movimento, a valorização do
capital tende a impor traços comuns à sua lógica, de modo a permitir a circulação dos seus
valores, símbolos e informações, suprarregionalmente, sem restar confinado a limites
territoriais específicos, gestando, dessa forma, um espaço e um mercado uno (BRANDÃO,
2004; OLIVEIRA, 2004).
Com o advento da era industrial, passou a tornar-se relevante a questão dos mercados
e a delimitação da sua extensão, evidenciando-se, por assim dizer, as suas deficiências. A
partir daí, o desenvolvimento das forças produtivas passou a buscar uma unificação dos
espaços regionais, enquanto mercados consumidores. Isso se deu, num primeiro momento,
sob a tutela dos Estados nacionais, os quais, por seu turno, empreendiam esforços no sentido
de equalizar as inadequações institucionais, concebidas, naquele momento, como entraves à
articulação entre os espaços desiguais. Pode-se dizer, dessa forma, que, nas ditas
circunstâncias, a centralização de poder mostrou-se bastante compatível com as exigências do
capital em expansão, afinal, este precisava de condições institucionais adequadas para garantir
a sua reprodução, enquanto capital em geral. O poder público edificava, portanto, de forma
interdependente, os contornos do processo social de trabalho, mediante a constituição de um
espaço unificado, homogeneizado e desobstruído (BRANDÃO, 2004; OLIVEIRA, 2004).
Em seguinte estágio, uma vez consolidado enquanto “capital em geral” v e definido o
capitalismo como regime social predominante, esse sistema extravasa sua lógica para além
das circunscrições territoriais, empreendendo seu processo de valorização unificada, mediante
a busca de uma equivalência de suas condições reprodutivas em todo e qualquer lugar. A
homogeneização assegura a autodeterminação do capital, destituindo entraves externos à sua
expansão. O capital se vê pressionado pela necessidade de assegurar as condições materiais
necessárias à implementação do seu ciclo reprodutivo, de modo a mostrar-se indiferente aos
lugares sob os quais constitui seus espaços de valorização, incorporando-os à sua dinâmica e
subordinando-os a uma esfera de valorização unificada, cujos parâmetros são fixados em prol
da uniformização de regras, tendentes a garantirem certa “igualdade” de condições, essencial
à realização da disputa concorrencial (BRANDÃO, 2004; OLIVEIRA, 2004).
Pode-se dizer, dessa forma, que as necessidades de uniformização dos aparatos
institucionais estatais constituem-se em consonância com as exigências de homogeneização
dos seus respectivos espaços de acumulação, caminhando em direção à composição de
arquétipos considerados capazes de assegurar o “perfeito” fluxo das interações competitivas
entre os agentes. Em meio a isso, a reconfiguração do arcabouço tributário e fiscal – enquanto
fração dessa totalidade – sofre pressões no sentido de integrar esse processo de ajuste das
estruturas organizativas, contribuindo para a constituição de uma superfície contínua, fluida e
uniforme, mais propícia ao desenrolar das forças produtivas. Destarte, a uniformização das
alíquotas do ICMS, ou a transferência da sua competência para o governo federal – fazendo
deixar de existirem 27 legislações distintas –, emerge como um mecanismo de planificação da
espacialidade tributária, assegurando certa neutralidade “igualitária” à disposição competitiva
dos atores nesse espaço. Institui-se, portanto, uma institucionalidade destinada e exercer o
mínimo possível de interferência nas decisões racionais “ótimas” dos agentes, quanto à sua
localização em meio ao ciclo reprodutivo do capital.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A esse respeito, o relativo consenso, identificado nas três mencionadas propostas de


reforma tributária, revela a constituição de um “interesse geral”, acerca do deslocamento da
carga tributária para o consumo – passando a incidir em relação ao estado de destino e ao
momento final do processo produtivo –, desincorporando o capital quanto às limitações
locacionais da produção. Esse traço institucional, verificado nos três projetos, manifesta uma
efetiva aderência a tal matriz espaço-temporal, por parte dos atores envolvidos. Pactua-se,
portanto, os contornos fundamentais das alterações propostas, em condicionamento recíproco
com as formas organizativas mais proeminentes na atual conjuntura.
O estabelecimento de um “interesse geral” e a institucionalização dos compromissos,
sob matrizes espaço-temporais específicas, fazem com que as estratégias de acumulação e os
projetos hegemônicos adiem e desloquem seus custos materiais e sociais para além dos seus
próprios limites espaciais e temporais. Assim, distintas escalas de ação e horizontes temporais
podem ser utilizados enquanto forma de “correção” espaço-temporal das contradições
estruturais e dilemas estratégicos do capitalismo (JESSOP, 2000a). Nesse sentido, a
“coerência estrutural”vi, necessária à reprodução e regulação do capital, dedica-se à
“formulação-realização” de estratégias específicas de acumulação, desdobradas sob matrizes
espaço-temporais também específicas, as quais, por sua vez, buscam resolver conflitos entre o
“capital em geral” e o “capital particular”, edificando um “interesse econômico geral”,
mediante a inserção ou marginalização de determinados intentos capitalistas (JESSOP,
2000b). Assim sendo, embora existam empresas, particularmente, beneficiadas pela
heterogeneidade de normas, presente na guerra fiscal, o atual estágio de desenvolvimento das
forças produtivas aponta para a constituição de uma homogeneidade institucional, destinada a
assegurar um nível mínimo de confiabilidade aos investidores, em relação à neutralidade e
estabilidade jurídica do espaço nacional de acumulação.
Embora segmentos do grande capital busquem influenciar a formação dos padrões de
organização espacial em seu favor – seja pela conveniência em localizar-se numa determinada
região ou para desfrutar de um dado ciclo de aglomeração industrial –, tal esforço não se
mostra suficiente para delimitar, de forma unilateral e incondicionada, a formação dos
arquétipos institucionais estatais. Por certo, a sedimentação dos padrões concorrenciais e das
estruturas dos mercados vai sendo delineada a partir da interdependência constitutiva entre os
interesses do “capital em geral”; as estratégias de atuação das frações de capital; e os projetos
estatais de desenvolvimento. A partir disso, a configuração espacial/institucional do sistema
tributário brasileiro vai se compondo de forma, logicamente, subordinada ao entrelaçamento
entre esses fatores, caminhando em direção à uniformização equalizadora das suas estruturas,
costurada por meio de um relativo consenso acerca do objetivo último das reformas. Tal
objetivo se vê obstado, apenas, aparentemente, por alguns interesses particulares, esboçados
na arena política, os quais, por sua vez, divergem, unicamente, no que tange aos mecanismos
de implementação da homogeneização normativa.
A esse respeito, importa mencionar o entendimento consolidado pela Confederação
Nacional das Indústrias (CNI), em conjunto com demais segmentos do capital produtivo – as
Confederações Nacionais da Agricultura (CNA), do Transporte (CNT), Comércio e Serviços
(CNC) e a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) –, no sentido de apoiar a
uniformização das alíquotas do ICMS. Para além de interesses particulares das empresas
beneficiadas com os favores fiscais, até então concedidos, o setor manifesta apoio à
consecução das alterações propostas, arguindo os malefícios da atmosfera de insegurança
jurídica, instaurada pela guerra fiscal, a qual desestimula os investimentos em determinadas
regiões do país e desequilibra a concorrência sob parâmetros neutros e eficientes. Em meio a
reiterados encontros com o então Ministro da Fazenda, Guido Mantega – o qual também
considera a segurança jurídica um elemento imprescindível à expansão do investimento no
Brasil –, o capital produtivo vai participando da edificação do “interesse econômico geral”,

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

mediante a pactuação negociada com seus “capitais particulares” sobre as necessidades do


ajuste. Uma forma de garantir o apoio dessas frações e, assim, a coesão do movimento, foi –
após firmado o entendimento do STF, em fevereiro de 2011, quanto à ilegalidade dos favores
fiscais concedidos por alguns estados – fazer constar, na terceira proposta de reforma
tributária, a prerrogativa de convalidação dos incentivos ilegalmente concedidos no passado,
sem que as empresas beneficiadas sejam obrigadas a pagar as diferenças não recolhidas até
então.vii
O sistema tributário passa então a revestir-se de certa neutralidade quanto à
localização dos investimentos produtivos e circulação da riqueza, o que, segundo a orientação
discursiva predominante, contribuiria para a integração das estruturas produtivas no país,
trazendo maior competitividade para a economia nacional. Entretanto, por outra perspectiva, a
instauração da neutralidade espacial, mediante o nivelamento de todos os estados, em termos
de tributação das operações interestaduais, acaba por preocupar aqueles hoje favorecidos pelo
diferencial de alíquotas. A superveniência da alíquota única – ou ainda, no caso da segunda
proposta de reforma, a passagem da competência do atual ICMS para as mãos da União –
representa a instauração de uma “igualdade” institucional, tendente a reproduzir e aprofundar
as desigualdades regionais. Com base nisso, mesmo, em alguns casos, reconhecendo as
distinções entre a atual conjuntura e aquela na qual foi instituído o diferencial de alíquotas –
na década de 1970 –, os governadores de alguns dos ditos Estados manifestam entendimentos
para além da mera compensação de eventuais perdas com o deslocamento da carga tributária
para o consumo.viii Temem, em verdade, a migração de empresas, hoje situadas em seu
território – as quais, fundamentais para a sustentação das suas respectivas economias –, para
centros de aglomeração industrial estabelecidos em regiões mais desenvolvidas. Tais
previsões revelam, por assim dizer, a consolidação de um sistema cuja integração entre os
espaços, ao mesmo tempo em que “iguala” (uniformiza) condições de desenvolvimento,
reproduz e acentua as diferenças entre eles, haja vista a própria natureza desigual do
desenvolvimento capitalista, marcada por tendências de concentração e instabilidade,
intrínsecas à sua dinâmica de funcionamento.
A reprodução do sistema capitalista, após a fase de homogenização – desdobrada por
meio de um processo contraditório e conflitivo, inesgotável –, avança pelos caminhos então
abertos em direção à “integração” dos mercados e à reacomodação das estruturas produtivas.
Uma vez niveladas as condições de reprodução das estruturas de acumulação, intensifica-se a
dinâmica concorrencial, a qual passa a predominar enquanto seletividade impositiva, operante
nesse espaço. A partir daí, o próprio movimento do capital estabelece as premissas do
processo de diferenciação, pois, na medida em que tende a unificar seus espaços de
reprodução, ao mesmo tempo, reproduz diferenças (BRANDÃO, 2004; DINIZ FILHO, 2004;
OLIVEIRA, 2004) A localização racional das atividades produtivas, de modo a minimizar os
custos de movimento dos produtos intermediários, acaba por intensificar a tendência geral de
aglomeração espacial do capital, o qual, a partir da tensão entre a concentração e a expansão
geográfica, tende a reproduzir e intensificar as disparidades entre os lugares (MARX, 1973).
Desse modo, a construção de uma imagem de realidade voltada para a integração
unificadora entre os diferentes espaços, mediante a supressão da desigualdade de condições
concorrenciais entre eles, resulta, ao contrário, no aprofundamento de tais disparidades. Isso
se reproduz na tendência geral de aglomeração industrial, a qual, guardadas particularidadesix,
induz à ampliação das vantagens competitivas, já consolidadas pelas regiões mais ricas, pois,
tais espaços, uma vez dotados de rugosidadesx – manifestas sob a forma de arranjos
produtivos –, possuem, em geral, mais condições de se constituírem enquanto ambientes
favoráveis à integração intersetorial das estruturas de produção. Assim, embora, em alguns
casos, a delimitação do padrão locacional dependa de uma multiplicidade de fatores, pode-se
dizer que, em regra, a neutralidade territorial dos mecanismos de regulação conduz a uma

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

concentração espacial da riqueza, haja vista incentivar a integração subordinada das demais
regiões aos centros dinâmicos de acumulação (BRANDÃO, 2004; DINIZ FILHO, 2004;
OLIVEIRA, 2004; SANTOS, 2006; UDERMAN, 2008).
A partir dessa configuração, o restabelecimento do equilíbrio federativo deixa de ser
um compromisso inscrito na materialidade institucional do sistema tributário. A instituição de
um padrão locacional neutro reforça, nesse sentido, as tendências de concentração do capital,
acentuando as polaridades engendradas pelas forças aglomerativas de acumulação e erigindo
núcleos sinérgicos desigualmente distribuídos no espaço. A consolidação do pacto federativo
– em termos de redistribuição regional da riqueza – vai perdendo relevo na agenda tributária,
sendo deslocada, então, para a esfera do gasto público, mediante a instituição de fundos de
equalização e investimentos regionais, ou – no caso da segunda proposta de reforma
apresentada – pelo reordenamento da partilha tributária.
Por ocasião, especificamente, da terceira proposta de reforma – mais proeminente no
debate dos últimos tempos –, tendo em vista o potencial econômico diferenciado dos espaços
particulares de acumulação, os estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste vem
buscando suavizar os efeitos danosos das alterações propostas sobre suas economias,
pleiteando, dentre outros, a instituição de compensações financeiras mais robustas; a
ampliação do prazo de transição entre os sistemas e até, em alguns casos, a revisão dos
mecanismos de compensação tributária do ICMS. Dentre as reivindicações iniciais, já
atendidas pelo governo federal, encontram-se a prorrogação, de 8 para 12 anos, do prazo para
a gradual redução das alíquotas interestaduais ao percentual de 4% e a ampliação, de 172,
para 296 bilhões de reais, do montante destinados ao Fundo de Desenvolvimento Regional -
FDR, instituído para financiar os projetos de desenvolvimento local nas regiões. O
consentimento da União quanto às ditas exigências não significa, entretanto, o fim da disputa
por reparações proporcionais, pois, embora apenas 7 dos 27 entes saiam prejudicados com a
reformaxi, as maiores preocupações parecem girar em torno do possível rearranjo das forças
produtivas, em suas tendências de polarização, a partir dessa nova institucionalidade. Os
estados pertencentes às mencionadas regiões alegam virem a perder competitividade com a
extinção do diferencial de alíquotas, haja vista passarem a dispor de menos mecanismos para
a atração e manutenção de investimentos importantes para suas respectivas economias. Com
base nisso, a partir de uma contraproposta ao governo federal, sugerem a manutenção de uma
alíquota diferenciada de 7%, restrita a produtos industrializados, sendo os demais taxados em
4%, como queria o governoxii.
O fato de a alíquota proposta, além de unificada, ser reduzida ao percentual de 4%,
significa que a maior parte da arrecadação, referente às transações interestaduais, ficará com o
estado de destino (consumo), diminuindo a retribuição arrecadatória aos entes nos quais estão
sediados os investimentos produtivos. Dessa forma, os estados menos desenvolvidos passarão
a dispor de ainda menos recursos para estimular tais empreendimentos em seu território –
ainda que não por meios tributários, como o gasto público e a implantação de infraestrutura –,
pois, com a redução da incidência tributária na origem, diminui o impacto arrecadatório
positivo causado pela localização do investimento produtivo num dado lugar. Isso implica
num arrefecimento dos mecanismos de distribuição espacial da produção no Brasil, uma vez
que, para os estados-membros, sediar a instalação de plantas produtivas em seus respectivos
territórios não mais significará um incremento de receita tão forte quanto antes, no que tange
ao ICMS interestadual. Assim, quanto à composição das estruturas tributárias, a distribuição
das forças produtivas no território nacional vai sendo, cada vez mais, relegada aos ânimos
concentradores de valorização do capital, os quais tendem a contribuir para o aprofundamento
das disparidades regionais.
Sob outro aspecto, a busca do equilíbrio federativo pela via da instituição de fundos
reparadores apresenta-se bastante problemática. Estados das diversas regiões manifestam sua

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

insatisfação quanto ao valor de R$ 8 bilhões destinados ao “fundo de compensação”. Arguem


não se tratar de um montante suficiente para a efetiva restituição das perdas sofridas por todos
os entes prejudicados. A questão remete a experiências passadas, marcadas, principalmente,
pelo não atendimento das expectativas em relação ao fundo de compensação, instituído com a
Lei Kandir, em 1996. Na ocasião da respectiva promulgação, previa-se uma restituição dos
estados-membros, na ordem de 70%, quanto aos valores devolvidos a título de exportação,
porém, no ano de 2012, esse percentual não chegou sequer a 10%. A partir desse histórico,
parte dos estados-membros desconfia da capacidade desses mecanismos em assegurar as
cabíveis reparações, seja em relação ao “fundo de compensação” ou ao FDR, ambos sugeridos
na terceira proposta de reforma.
O estado de São Paulo, mesmo sendo o maior produtor do país, em princípio,
integrava o grupo dos ganhadores com a reforma. Entretanto, em face dos ajustes concedidos
pelo governo federal, em meio ao ciclo de debates – tais como a não tributação da venda de
gás natural, a manutenção da tributação diferenciada para a Zona Franca de Manaus e a
ampliação do prazo para a gradual redução das alíquotas –, passou a estimar uma perda de,
aproximadamente, R$ 55,187 bilhões, ao longo dos próximos 20 anos. Assim sendo, esse ente
vem protagonizando a demanda das regiões Sul e Sudeste em favor da ampliação do “fundo
de compensação”, de R$ 8 para R$ 12 bilhões, tendo em vista o fato de somente a sua perda
individual já estar prevista na faixa dos R$ 6,2 bilhões ao ano. Em razão disso, tais demandas
caminham no sentido de acelerar ao máximo o processo de gradual uniformização das
alíquotas – ao contrário do que querem os estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste
–, pleiteando, junto ao governo federal, um prazo para tal transição de 8 anos, ao invés de
12.xiii
Os argumentos proferidos pelos governantes dos estados das regiões Sul e Sudeste
baseiam-se na ideia de o diferencial de alíquotas interestaduais ter sido concebido em meio a
um contexto distinto do atual. Estudos como o de Rezende (2012, p. 27), encomendado pelo
Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID, apontam a evolução da receita do
ICM/ICMS por região. Os dados indicam as regiões Sul e Sudeste como as que tiveram as
menores variações de arrecadação entre os anos de 1967 e 2010, conforme mostra o Gráfico
1. Entretanto, não se pode deixar de observar os efetivos determinantes dessas variações. O
aumento mais significativo de arrecadação nas demais regiões – principalmente, nos estados
do Norte – se explica pelo incipiente grau de desenvolvimento das respectivas economias, o
que favorece a ampliação da arrecadação sob taxas mais altas, ao contrário dos estados
dotados de um já elevado nível de arrecadação.

Gráfico 1: Evolução da receita do ICM/ICMS a preços de 2010: 1967=100.

Fonte: Rezende (2012).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Mesmo com a alta na arrecadação das regiões mais pobres, os estados das regiões Sul
e Sudeste permanecem, entretanto, com as maiores arrecadações de ICMS do país, conforme
mostra o Gráfico 2, sendo verificado um respectivo decréscimo, durante a década de 1990, em
razão de tratarem-se das regiões brasileiras mais acopladas aos circuitos internacionais de
acumulação, estando, portanto, mais sujeitas às oscilações causadas pela abertura comercial e
pelas ondas de recessão.

Gráfico 2: Arrecadação do ICMS em % PIB, por regiões - 1972-2010.

Fonte: Rezende (2012).

Em meio a esse contexto, o governo federal procura edificar o relativo consenso,


necessário a aprovação da reforma, sem abrir mão da efetiva unificação das alíquotas do
ICMS interestadual. Segundo manifestação do então secretário-executivo do Ministério da
Fazenda, Nelson Barbosa, a União não pretende acatar as solicitações dos estados das regiões
Norte, Nordeste e Centro-Oeste, quanto à manutenção do diferencial de alíquotas para
produtos industrializados, na ordem de 7% e 4%, entretanto, em contrapartida, suscitou
indícios de uma nova ampliação do prazo de transição entre os regimes de incidência.xiv
Em sintonia com os intentos homogeneizadores do governo central e das regiões Sul e
Sudeste, a Confederação Nacional das Indústrias – CNI, em 2013, mencionou a necessidade
de se aproveitar o que entendia por “momento político favorável” à aprovação das reformas.
Segundo seus representantes, naquele contexto, as possibilidades de reorganização fiscal,
sobrevindas com a disponibilidade das receitas dos royalties de petróleo, seguidas da
manifesta intenção do STF, em consolidar uma súmula vinculante contra a guerra fiscal,
configurariam uma ocasião bastante oportuna para a reacomodação dos interesses envolvidos
no processo.xv Ademais, analistas políticos vinham ventilando a possibilidade de o governo
federal utilizar a renegociação da dívida pública dos Estados como moeda de troca para a
aprovação da alíquota única do ICMS.xvi Assim, projeto hegemônico vai sendo veiculado por
meio de uma pactuação negociada de forças: aos capitais particulares, eventualmente
prejudicados com as alterações propostas, assegura-se a convalidação dos favores fiscais
ilegalmente concedidos até então; aos espaços particulares, também prejudicados, ou com
menor grau de desenvolvimento econômico, concede-se um período de transição um pouco
mais largo, acompanhado da promessa de reparação, seja por via da instituição de fundos
equalizadores ou pela renegociação das respectivas dívidas públicas, contraídas em face da
União.
A edificação do interesse econômico geral em torno da homogeneização das estruturas
tributárias parece então guiar-se pela convergência de orientações estratégicas, traçadas
conforme os novos formatos organizativos da espacialidade capitalista. Sob esses contornos, o
movimento de apropriação histórico-social do espaço sugere a consolidação de uma
institucionalidade centralizada, capaz de estabelecer condições uniformes de concorrência

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

entre os capitais, gerindo suas contradições sob novas escalas de regulação. Procura-se, dessa
forma, adequar a arquitetura do sistema tributário às demandas do grande capital por
segurança e uniformidade jurídico-institucional. Adota-se, para tanto, o espaço nacional
unificado, enquanto escala privilegiada de acumulação, sem desconsiderar, entretanto, o
objetivo último de, a partir daí, possibilitar uma melhor inserção dessa superfície nos
horizontes mais amplos da economia globalizada.
Uniformizar, internamente, o espaço nacional significa harmonizá-lo,
institucionalmente, em relação aos demais espaços de acumulação. Essa adequação implica,
por sua vez, uma submissão, de forma mais intensa, à lógica de desincorporação do capital,
garantindo um fluxo econômico, cada vez mais, “deslocalizado” e descompromissado com as
diretrizes de desenvolvimento local ou regional. Os dilemas estratégicos envolvidos nessa
questão parecem estar situados para além da mera opção em torno da homogeneização
tributária, mas sim, residentes na própria contradição intrínseca à tensão entre a
territorialidade política do Estado e a sua projeção institucional, em favor da aceleração do
fluxo de capitais. A garantia de condições de circulação e valorização, no ciclo reprodutivo do
capital, faz o ente público articular um processo de encontro a sua própria territorialidade e
necessidades de fixação, destituindo assim algumas das suas próprias precondições.

4. A reestruturação global do espaço: a competitividade por novas escalas e a


constrição subnacional
Os intentos de uniformização da legislação do ICMS encontram-se condicionados,
reciprocamente, pela reestruturação global dos espaços de acumulação. Assim, a questão da
“competitividade” econômica desponta como pivô da reorientação discursiva, direcionada ao
ajuste. O protagonismo da União na construção do relativo consenso manifesta um dos
principais traços encarnados pelo Estado contemporâneo no contexto competitivo. O governo
central atua em constrição dos entes subnacionais, engendrando um processo de
reconfiguração das escalas de atuação e redesenho das relações intergovernamentais. Sob esse
prisma, novos parâmetros de regulação vão sendo instituídos em interdependência com a
reacomodação espaço-temporal das estruturas produtivas, assumindo assim formatos
considerados “adequados” à garantia de reprodução desse sistema. Essa adequação
institucional se desdobra enquanto mecanismo de ampliação de vantagens competitivas, em
relação à atração de capitais, pois, quanto mais institucionalmente ajustadas aos parâmetros
globais de competitividade, mais as economias nacionais são capazes de oferecer vantagens
aos empreendedores, posicionando-se, dessa forma, na condição de espaços de acumulação
dotados de maior mobilidade e segurança jurídica aos investimentos. A partir dessa
reconfiguração de escalas, tal disputa vai assumindo proporções globais, intensificando suas
implicações não mais no âmbito da competição entre entes federativos subnacionais, mas sim,
dessa vez, entre cada Estado-Nação e os demais espaços de acumulação.
Primeiramente, para a compreensão das principais forças incidentes sobre essa
reestruturação produtiva – em sua espacialidade global e respectivos parâmetros de
competitividade –, importa considerar a organização das matrizes de espaço e de tempo
constituídas no âmago das relações de produção e divisão social do trabalho. A esse respeito,
pode-se dizer que a própria tensão entre concentração e expansão geográfica do capital
instaura um processo de concomitante fragmentação e homogeneização, desdobrado por: de
um lado, a segmentação serial do espaço, mediante o parcelamento sequenciado das etapas
produtivas – tal como numa divisão taylorista do trabalho na cadeia de uma fábrica – e; de
outro, a uniformização, capaz de garantir o mínimo de homogeneidade do espaço social,
necessária aos movimentos de reprodução ampliada do capital e generalização das trocas e
fluxos monetários (MARX, 1973; POULANTZAS, 1980).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Em referência, especificamente, aos traços gerais da reestruturação produtiva


contemporânea, as décadas finais do século XX foram marcadas, dentre outros fatores, pela
crise do padrão de acumulação baseado no “Fordismo”, a qual, por seu turno, representava
também a crise do, então predominante, Estado de bem-estar. Esse padrão produtivo e
organizacional combinava a utilização de equipamentos automatizados com a divisão e
especialização do trabalho, em meio a estruturas empresariais de grande porte, fortemente
verticalizadas e integradas. Tal articulação permitia uma elevação dos níveis médios de
produtividade, em razão das vantagens proporcionadas pelos crescentes ganhos de escala e
pelo capital fixo empreendido. Compunha-se, dessa forma, um ciclo virtuoso de produção e
consumo massivos, garantido por um modelo de regulação consubstanciado em práticas
intervencionistas dos Estados nacionais (JESSOP, 2008; LENGYEL, 1997; UDERMAN,
2008).
O regime fordista de acumulação, embora tenha se reproduzido de diferentes formas
nos mais variados contextos, de um modo em geral, teve como traço fundamental um modelo
de crescimento econômico guiado pelo desenvolvimento do mercado interno, regulado pelo
Estado nacional. Com o passar do tempo, entretanto, as transformações tecnológicas passaram
a permitir uma maior flexibilização das estruturas produtivas, reconfigurando o
funcionamento das indústrias e dos próprios mercados. Essas transformações vieram a
demandar, por sua vez, a instituição de um padrão de concorrência e um modelo de regulação
estatal pautados sob novos requisitos de competitividade, agora, não mais adstritos aos
contornos das economias nacionais, relativamente fechadas e, hierarquicamente,
administradas pelos respectivos Estados. Somado a isso, a manutenção da rede social de
direitos, proporcionada pelo Estado de bem-estar, também passou a afetar os níveis de
rentabilidade do capital dentro do espaço nacional de acumulação, configurando um cenário
em cujos mecanismos de regulação já não se mostravam mais compatíveis com as exigências
das novas estratégias organizativas. Diante disso, passaram a ganhar força os discursos de
inspiração neoliberal, orientados, dentre outros, para a constituição de políticas e ajustes
segundo dois manifestos objetivos: mudar a relação das forças sociais em face do capital e;
abrir novas oportunidades de investimento (HIRSCH, 1996; HIRSCH et al., 2010; JESSOP,
2008; LENGYNEL, 1996; UDERMAN, 2008).
No curso dessas transformações, o antigo Estado de bem-estar veio, então, pouco a
pouco, assumindo contornos do chamado “Estado competitivo”, repaginando suas formas de
atuação mediante o rescalonamento e rearticulação das suas atividades, modificando o alcance
e a natureza de algumas das suas funções. Esse processo estratégico de mobilização constitui-
se num projeto estatal de visões hegemônicas alternativas, a partir do qual os Estados
utilizam-se de distintas escalas de atuação, guardando um traço fundamental em comum, qual
seja: a autoimagem de promotores proativos da “competitividade” em seus respectivos
espaços econômicos, frente à, cada vez mais intensa, concorrência internacional. Trata-se,
portanto, de um redesenho institucional global do regime de acumulação e do seu modo de
regulação. Nesse contexto, os Estados envolvem-se num processo de internacionalização dos
seus aparatos, buscando, a partir daí, derivar vantagens econômicas, políticas e sociais, tanto
em face das empresas multinacionais cuja matriz esteja instalada em seu território, como
quanto à criação de condições favoráveis à atração de novos investimentos, com positiva
repercussão na coesão social (JESSOP, 2008).
Muito embora não seja possível a mensuração direta acerca do acirramento da
competitividade internacional, a crescente importância assumida por essa questão na agenda
de políticas dos países sugere, de fato, uma disputa cada vez mais aguerrida nesse âmbito
(BAUMANN et al., 2004, p. 227). A partir disso, o redesenho da geografia econômica e as
suas respectivas transformações espaço-temporais vão edificando um cenário cujas vantagens
competitivas das nações se materializam segundo o seu acoplamento estrutural aos diferentes

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

espaços de acumulação. Isso se dá mediante o ajustamento dos espaços nacionais às ordens


institucionais preceituadas como “adequadas” aos mercados internacionais. A partir daí as
estratégias adotadas como preferenciais pelos Estados passam a privilegiar políticas
destinadas à constituição de uma base territorial atrativa para as firmas (capital móvel),
ensejando modos específicos de regulação, historicamente contingentes (JESSOP, 2000a).
Dessa forma, a adequação da arquitetura organizativa estatal aos contornos delineados por
essa dinâmica traduz-se, em larga medida, num fator de integração e ampliação da
competitividade dos espaços econômicos nacionais perante os mercados globalizados.
Inserto nessa conjuntura, o Estado brasileiro vai buscando eliminar as distorções do
seu sistema tributário, como forma de ampliar sua competitividade. Para tanto, a constituição
de uma espacialidade tributária homogênea, mediante a uniformização da incidência do
ICMS, em todo território nacional, afigura-se como um mecanismo de harmonização das
estruturas impositivas em relação aos demais espaços de acumulação, permitindo, desse
modo, uma alocação dos fluxos e trocas econômicas de forma considerada mais “eficiente”.
Sob tal ótica, o ganho de competitividade residiria, justamente, na composição de um
arcabouço institucional-tributário mais neutro, a partir da qual a imposição fiscal exerceria,
cada vez menos, influência sobre as decisões racionais “ótimas” dos agentes econômicos,
principalmente no que diz respeito à alocação espacial dos investimentos produtivos. O
efetivo acoplamento das estruturas tributárias aos contornos exigidos pela reestruturação
produtiva global comporta três dimensões, interconectadas, de uma mesma questão: sob um
aspecto, o ganho de competitividade estaria representado na garantia de mobilidade dos
investimentos produtivos, possibilitada pelo deslocamento da carga tributária para o local de
consumo (destino), desonerando o momento da produção (origem) e livrando, em parte, esses
empregos da intervenção tributária; por outro, a redução dessa forma de intervenção – por
diversos entes subnacionais – significaria uma maior estabilidade e segurança jurídica aos
investidores e; sob um terceiro ponto, as alterações propostas implicariam, também, numa
maior compatibilidade entre o ordenamento jurídico-tributário brasileiro e aqueles
pertencentes a outras zonas de comércio, onde se faça predominante essa mesma modalidade
de tributação sobre o valor adicionado.
Calcados nesse entendimento, os discursos proeminentes no debate das reformas
tributárias buscam legitimar-se mediante a persecução do postulado da “competitividade”,
elevando-o, por conseguinte, ao status de finalidade precípua das alterações propostas.
Segundo Diniz Filho (2004) e Harvey (2004), essa exaltação da competitividade, enquanto
princípio norteador das políticas públicas, ganha mais profundidade conforme vai se
intensificando o processo de internacionalização do capital e consolidação dos mercados
mundiais, pois isso implica, ao mesmo tempo, uma acentuação da sensibilidade dos capitais
em relação às qualidades espacialmente diferenciadas dos lugares, ampliando-se, assim, as
possibilidades de decisão locacional das empresas. Institui-se, desse modo, uma nova
espacialidade capitalista, delineada sob uma relativa perda de autonomia política dos Estados
nacionais, os quais, por sua vez, buscam requalificar suas formas de mediação, mediante
manejo de diferentes estratégias organizativas, voltadas ao fornecimento de vantagens na
atração de capitais para o seu território. Isso se deve, em grande parte, ao fato de os mercados
mundiais, ao contrário dos mercados domésticos – preponderantes no período fordista –, não
possuírem as mesmas barreiras e formas de ingresso, pautando-se, em muitos casos, pelas
condições de progresso técnico, logístico, de produção e distribuição de bens.
A ampliação da mobilidade do capital e o, consequente, acirramento da dinâmica
competitiva entre os lugares fazem com que os correspondentes esforços, empreendidos pelos
Estados, ao invés de induzirem a produção de espaços diferenciados, acabem por constituir
matrizes espaço-temporais cujos moldes e padrões organizativos reproduzem lugares
idênticos. Insertos num contexto marcado pela homogeneização dos parâmetros

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

internacionais, os Estados se submetem ao movimento contraditório inerente à própria


dinâmica competitiva entre os espaços, a qual, por sua vez, manifesta um paradoxo central:
quanto menos significativas são as barreiras espaciais, maior a sensibilidade dos capitais às
variações de localização e, por conseguinte, maior o incentivo para os lugares se
diferenciarem; em constituição dessas diferenciações, os lugares passam a oferecer vantagens
aos capitais, ajustando-se, assim, aos padrões de competitividade internacional, logo,
tornando-se, cada vez mais, homogêneos (HARVEY, 2004).
Esse movimento de reestruturação global do espaço e as suas demandas por novos
meios de regulação fizeram o Estado contemporâneo reorientar os mecanismos de elaboração
e implementação das suas políticas, atribuindo maior relevo às escalas “supranacionais” e
“subnacionais” de atuação (HIRSCH, 1996; HIRSCH et al., 2011). Isso não significa,
entretanto, que a escala nacional tenha deixado de ser o principal ponto de ancoragem do
processo de acumulação, pois, embora não desfrute mais da primazia verificada no período
anterior, permanece enquanto plano privilegiado, a partir do qual se organizam os demais
níveis de articulação. Os debates sociais, nesse cenário, passam então a girar em torno da
discussão sobre qual escala deve predominar, ensejando, nesse sentido, uma proliferação de
escalas e temporalidades de ações institucionalizadas, influenciando a composição dos
parâmetros de regulação. Tais mecanismos constituem-se em meio ao desenvolvimento de
novos mecanismos logísticos e tecnologias organizativas, assim como de arranjos
institucionais com novos horizontes de ação espaço-temporais e arquiteturas mais amplas,
capazes de reordenar as relações entre diferentes níveis políticos. A partir daí, o aumento da
necessidade de coordenação supranacional e a possibilidade de um ressurgimento subnacional
só ampliam as possibilidades de o Estado nacional mediar essas escalas de ação, por meio do
aperfeiçoamento das suas capacidades estratégico-operativas em diferentes níveis (JESSOP,
1999; 2000b; 2008; 2010).
O próprio posicionamento da União, ao protagonizar a constituição do relativo
consenso, em torno da aprovação das reformas tributárias, denota o intento de fortalecimento
dessa escala, redesenhando as relações intergovernamentais federativas, sob a égide da
competitividade global. O empenho do governo federal em implementar a uniformização do
ICMS, em todo o território nacional, faz parte de um projeto voltado para a homogeneização
institucional desse espaço, garantindo maior capacidade de articulação a esse nível de
governabilidade. Nas três aludidas propostas de reforma, a União desponta como principal
fiadora dos custos políticos e financeiros da transição, assumindo o papel de agente
responsável pela pactuação de interesses no cerne das disputas envolvidas.
O privilégio da escala nacional – inscrito na materialidade institucional a que se visa
implementar – manifesta-se, precipuamente, sob três dimensões: na competência tributária
para a instituição do imposto; no financiamento dos custos de transição, inerentes ao ajuste e;
nos mecanismos de sanção ao eventual descumprimento das disposições normativas então
sugeridas, por parte dos entes subnacionais. Com relação à competência tributária, a primeira
proposta prescreve a sua conservação nas mãos dos estados-membros, porém, requalifica-a
em face do atual formato, mediante o seu compartilhamento, de forma igualitária e integrada,
entre todos os entes do mesmo nível. Isso implica dizer que cada estado-membro gozaria da
competência para instituir o imposto, porém sem poder exercê-la de forma autônoma, haja
vista o compartilhamento com os demais da prerrogativa de imposição única do tributo. A
segunda proposta, por seu turno, prevê, expressamente, a transferência da competência
legislativa para a União, sendo compartilhada com os estados-membros apenas a incumbência
de arrecadar. A terceira, mais moderada a esse respeito, embora limite-se a prever a
uniformização das alíquotas do ICMS interestadual, em todo país, não deixa de privilegiar a
escala nacional de atuação, preconizando a emergência de uma unidade jurídico-institucional
ao território nacional.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

No âmbito dos custos inerentes ao processo de transição do atual regime para aqueles
constantes nas propostas, mostra-se flagrante diligência da União em promover tal intento. A
acomodação dos interesses envolvidos no ajuste institucional se dá, em parte, por meio da
disponibilização de recursos federais aos entes possivelmente prejudicados pelas alterações.
Os fundos destinados a essa finalidade assumem diversas denominações no âmbito de cada
uma das propostas, sendo intitulados, por exemplo, como de “Equalização de Receitas”,
“Compensação” ou “Desenvolvimento Regional”. No caso, especificamente, da terceira
proposta, as pressões exercidas pelos estados das regiões Sul e Sudeste, em prol da ampliação
do montante designado ao Fundo de Compensação, de R$ 8 para R$ 12 bilhões, assim como
os esforços dos estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, no sentido de pleitear um
também alargamento dos valores referentes ao Fundo de Desenvolvimento Regional, na
ordem de R$ 172 para R$ 296 bilhões, demonstram a preponderância da União enquanto nível
federativo, efetivamente, empreendedor do ajuste e mediador centralizado das barganhas
envolvidas.
Outro traço institucional, revelador dessa redefinição das relações
intergovernamentais, é o estabelecimento de mecanismos de controle e sanção, estruturados
sob a égide do governo federal. Sobre esse âmbito, a primeira proposta prevê a suspensão dos
repasses, referentes ao FPE, FER e FNDR, aos entes subnacionais que, eventualmente,
concederem incentivos fiscais para além dos termos da lei. A segunda proposta, por sua vez,
considerando o compartilhamento apenas dos procedimentos arrecadatórios, entre a União e
os estados, estipula o envio das receitas auferidas diretamente aos cofres do governo central,
por meio de rede bancária, sem sequer transitar pelas contas dos estados-membros, executores
do recolhimento. No caso da terceira sugestão de reforma, em sendo descumpridas as
prerrogativas estabelecidas, os entes federativos teriam, pelo período de quatro anos,
suspensos os direitos de receber transferências voluntárias, obter garantias e adquirir
empréstimos perante a União. Esses mecanismos traduzem-se no intento de garantir uma
coerência interna, liderada pelo governo central, em construção de um consenso orientado ao
enquadramento das esferas subnacionais às restrições macroeconômicas da dinâmica
competitiva. O arranjo federativo passa então a ser delineado em privilégio da disciplina
fiscal, alinhando os diferentes níveis políticos aos ditames de uma configuração direcionada à
uniformização dos padrões concorrenciais nos diferentes espaços.
Essas ações do governo federal – enquanto fração de uma totalidade – refletem um
esforço do Estado contemporâneo em orientar suas políticas internas mediante mecanismos
logísticos, tecnologias organizativas e arranjos institucionais voltados à adequação dos seus
horizontes de poder a esse novo panorama, aperfeiçoando assim suas capacidades estratégico-
operativas em diferentes níveis. Muito embora a proliferação de escalas pareça, num primeiro
momento, conduzir à fragmentação dos espaços territoriais nacionais, traz, em verdade, a
necessidade de fortalecimento da sua coesão interna, a fim de serem atendidas as necessidades
de inserção no cenário competitivo internacional. Assim, a ampliação da competitividade dos
Estados nacionais vem demandando um maior envolvimento e alinhamento dos entes
subnacionais (estados-membros) aos parâmetros de uniformização estabelecidos nos
mercados globalizados. A homogeneização dos espaços de fluxos, mediante a uniformização
do conteúdo normativo dos territórios, carrega implícita a demanda pelo ajustamento das
frações do território nacional, enquanto espaços nacionais da economia internacional
(HARVEY, 2007; JESSOP, 2000b; 2008; SANTOS, 2001; 2006; SARAIVA 2004).
A moldagem das políticas de nível subnacional, segundo as pressões por acoplamento
do espaço econômico aos fluxos internacionais (BRANDÃO, 2004), caminha no sentido de
articular coalizões, comprimindo o formato das estruturas institucionais internas, segundo os
preceitos organizativos da dinâmica concorrencial global (HIRSCH, 1996; HIRSCH et al.,
2010; JESSOP, 2008; LENGYEL, 1997). Tais prescrições se mostram claramente evidentes

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

nas recomendações emitidas pelos organismos supranacionais, como, por exemplo, o Banco
Mundial, em seu relatório, publicado em 1999/2000. Partindo de uma perspectiva,
declaradamente, neoinstitucionalista, o dito documento atenta para os riscos inerentes à
descentralização desordenada, preconizando a necessidade de aperfeiçoamento das
instituições administrativas em torno de uma política fiscal única, baseada na imposição de
fortes restrições fiscais e orçamentárias aos entes subnacionais, mediante a edição de normas
constitucionais nesse sentido (WORLD BANK, 2000). Na mesma direção, vale apontar as
críticas desferidas pelo Fundo Monetário Internacional – FMI à sistemática de apuração do
atual ICMS, aduzindo o comprometimento da eficiência do mercado comum interno e
sugerindo, portanto, a implementação de um tributo de abrangência federal, sob essa base de
incidência (AFONSO, 1995).
A imposição da coerência interna vai assim transformando a chamada “unidade na
diversidade” – consagrada pelo federalismo – em uma “inadequação aos tempos da nova
história com a emergência da globalização” (SANTOS, 2001, p. 96). Nesses termos, o
redesenho do figurino federativo vai sendo engendrado, em realidade, a partir de três
processos fundamentais: a internacionalização do capital; a “deslocalização” ou realocação
espacial permanente das plantas produtivas e equipamentos nos espaços abertos e; a
homogeneização das políticas econômicas voltadas para a estabilização (FIORI, 1995). A
crise da federação, intensificada pelo aumento das pressões competitivas globais (AFFONSO
et al., 1995), administra-se, portanto, segundo os postulados da New Institutional Economics,
assentados na regulação e coordenação subnacional pelo governo central. Isso não implica
dizer, entretanto, que tal corrente teórica se direcione, precipuamente, a assegurar a
consecução dos fundamentos básicos do federalismo, pois, diversamente, volta-se apenas para
a garantia de um maior nível de eficiência institucional dentro do contexto concorrencial
globalizado. O pacto federativo, nesse contexto, passa a ser delineado em prol da constituição
de mecanismos de descentralização negociada, cuja preocupação maior é implementar o
redesenho institucional das relações intergovernamentais, nos termos considerados
“adequados” ao atual estágio de correlação das forças produtivas. Consolida-se, nesses
termos, uma composição federativa baseada em diagnósticos de disciplina fiscal forte e
restrição aos entes subnacionais (OLIVEIRA, 2007).
A alegada eliminação das distorções e efeitos predatórios da guerra fiscal consiste, em
realidade, num projeto de reacomodação das escalas estratégicas de atuação estatal,
materializado a partir da reestruturação dos arranjos e políticas internas, segundo as pressões
da competitividade internacional. A busca por uma coesão interna tem por finalidade a
constituição de lugares “ótimos”, dotados de institucionalidades mais propícias à valorização
do capital dentro das novas escalas de acumulação. Em meio a essas demandas por uma
coerência institucional restritiva, segue-se a desfiguração do arranjo federativo, em princípio,
marcado pela diversidade e coexistência de autonomias jurídico-políticas em processo. A
harmonização das regras domésticas de tributação desdobra-se na uniformização do ICMS,
enquanto representação dessa coerência e assim opera-se a planificação das autonomias
legislativas subnacionais, sob a atuação central e unificada do governo federal.
Destacar-se, competitivamente, nesse contexto, significa, por contradição, tornar-se
cada vez mais neutro, em relação aos demais espaços. Os Estados orientam-se então no
sentido de aprofundarem um processo resultante na própria limitação do seu escopo de
atuação, enquanto gestores autônomos das suas políticas públicas. A mesma concentração de
poder nas mãos da União, ao passo em que denota uma tentativa de fortalecimento da escala
nacional, como forma de integração aos espaços econômicos globalizados, subordina a
composição do aparato estatal, mais intensamente, às pressões competitivas e restrições
institucionais dessa superfície mais ampla. A instauração da coerência interna centralizada,
embora sinalize um privilégio da escala nacional em relação aos demais níveis de atuação,

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

não implica, necessariamente, num fortalecimento institucional do Estado brasileiro, pois, o


acoplamento estrutural das suas instituições materializa-se, em realidade, numa adequação a
um processo limitador da sua autonomia político-econômica, principalmente, sob o aspecto
institucional.
Uma vez constatada a tendência autodestrutiva da competição fiscal entre os entes
subnacionais, caminha-se no sentido de promover ajustes federativos restritivos, voltados a
uma pretensão também de natureza competitiva, porém, dessa vez, sob escalas de regulação
consideradas mais apropriadas ao atual ciclo reprodutivo do capital. Seguindo as tendências e
pressões estruturais nesse sentido, o país busca sanar os efeitos nocivos da competição
predatória entre seus espaços internos, aprofundando sua projeção na competição global, não
menos predatória. Num cenário cujos imperativos de sobrevivência econômica parecem não
deixar escolhas, empreendem-se esforços na garantia de mobilidade do capital, implicando,
mais e mais, numa sujeição e vulnerabilidade a esse próprio processo.

5. A neutralização do espaço: a harmonização por bases tributárias fixas e a


mobilidade do capital
As pressões competitivas e suas demandas por harmonização fiscal vão remodelando o
arcabouço jurídico-tributário brasileiro em direção à neutralização do espaço nacional de
acumulação. A uniformização do ICMS representa um processo de reacomodação das bases
tributárias, segundo os preceitos da nova espacialidade capitalista. A harmonização interna e,
por conseguinte, externa das estruturas normativas materializa-se por meio da parcial remoção
da base de incidência do imposto interestadual para o momento e local de consumo. Isso
significa uma efetiva transferência da carga tributária incidente sobre o valor adicionado das
mercadorias, assim como sobre a sua circulação, para as bases mais fixas de imposição.
Ao deslocarem o ônus fiscal da produção para o consumo, os esforços de reforma
sinalizam uma desoneração do capital produtivo em detrimento dos consumidores. Possibilita-
se, assim, uma ampliação da mobilidade dos agentes envolvidos na produção, fazendo recair o
peso tributário sobre os ombros daqueles com menores chances de locomoção, tais como as
famílias e trabalhadores de baixa renda. A constituição desse arranjo institucional, em
privilégio da incidência fiscal no “destino”, assegura uma maior neutralidade do espaço sobre
o qual se desdobram as operações tributáveis, haja vista não discriminar as mercadorias em
razão da territorialidade da sua produção. Esse regime permite a operacionalização da
imposição tributária sem distinção da origem da mercadoria, tenha sido ela produzida em
qualquer região do país ou no exterior. Instaura-se então uma matriz espaço- temporal voltada
às exigências de maior fluxo e mobilidade do capital produtivo, consolidando-se, dessa forma,
um espaço de circulação e acumulação cada vez mais desincorporado. A neutralidade
atribuída ao princípio do “destino” desponta, nesses termos, como um dos principais
mecanismos de harmonização fiscal, evidenciando a influência dos desígnios de integração
competitiva internacional sobre a composição das bases tributárias no país.
As transformações inerentes ao processo de reestruturação produtiva global ensejam a
criação de valor agregado por meio de operações, por vezes, iniciadas num dado país,
aprimoradas em outros e, ao final, concluídas em terceiros. Essa dinâmica amplia a
volatilidade dos ativos – principalmente, financeiros – diluindo, relativamente, as fronteiras
nacionais em face do chamado “fluxo planetário de capitais”. Tais mudanças impactam a
composição das estratégias organizativas do capital, redefinindo os parâmetros de localização
industrial e redistribuição da renda e emprego, em escala mundial. Em meio a esse panorama,
os Estados passam então a adaptar seus sistemas tributários domésticos à nova realidade
internacional, buscando equilibrar a arrecadação em um nível de receita compatível com as
necessidades do setor público sem, no entanto, afetar a competitividade dos agentes, por

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

razões tributárias. A integração aos mercados globais vai sendo condicionada, portanto, pela
equalização entre esses dois postulados, ajustando-se os sistemas tributários domésticos
conforme a articulação dessas duas dimensões. No âmbito do financiamento do setor público,
comprimi-se a tributação dos fatores de maior mobilidade espacial e amplia-se a incidência
sobre as bases tributárias mais fixas; no tocante ao fortalecimento da competitividade,
engendra-se uma harmonização internacional das regras de tributação (AFONSO et al., 2006;
SPÍNDOLA, 1998).
A formação de uniões econômicas e áreas de livre comércio vão demandando uma
relativa remoção de algumas barreiras tributárias à livre circulação de mercadorias e serviços.
As diferenças no tratamento tributário, causadas pela existência de vários territórios fiscais,
fazem o princípio do “destino” emergir como uma alternativa direcionada à integração
competitiva, em razão de eliminar as “distorções” causadas pela coexistência de práticas
tributárias distintas. A neutralidade assegurada por esse princípio coaduna-se com os
imperativos de eficiência e competitividade do atual contexto. A implementação das reformas
tributárias, nos países integrados, passa a ser guiada, portanto, segundo recomendações de
atenuação do ônus fiscal sobre os fatores de produção, investimentos e exportações,
assegurando-se, assim, a reprodução do fluxo mundial de capitais, sob condições favoráveis e
padronizadas de mobilidade e competitividade (OLIVEIRA, 2009; PAZ, 2008; REZENDE,
1996; 2006).
As três propostas de uniformização do ICMS, guardadas as suas especificidades,
prevêem a efetiva transposição da carga tributária para o local e momento final da cadeia
produtiva, deslocando o ônus tributário para essa base de incidência.xvii A adoção do princípio
do destino visa ainda tornar o sistema tributário mais neutro quanto a questões específicas,
como, por exemplo, a do crédito fiscal. Sendo o ICMS um tributo não cumulativo e, portanto,
comportando a dedução (crédito) dos valores recolhidos nas operações anteriores, quaisquer
empecilhos ao aproveitamento desses montantes afetam a neutralidade e eficiência do
sistema. No caso particular das empresas exportadoras – cujos produtos vendidos para fora do
país são isentos desse imposto –, o crédito decorrente da compra de insumos pode vir a ser
subutilizado, ou, até, não utilizado, se o montante correspondente for superior aos débitos
relativos às vendas realizadas no mercado interno.xviii Isso se deve ao fato de, embora a Lei
Complementar nº 87/1996, que regulamenta o imposto, ter previsto a possibilidade de
transferência de créditos para terceiros, a subsequente Lei Complementar nº 102/2000
determinou só poderem tais créditos serem transacionados segundo as normas estabelecidas,
individualmente, pelos estados-membros, os quais, por sua vez, impõem uma série de
obstáculos à efetivação dessas operações.xix Isso se agrava quando o acúmulo de créditos
envolve operações interestaduais, pois, nesse caso, por exemplo, o estado onde está localizada
a empresa exportadora terá de restituir créditos referentes a impostos cobrados por outras
unidades da federação, quando da aquisição dos insumos.xx
A imposição tributária na origem, para ser, efetivamente, neutra, carece de um
avançado grau de harmonização fiscal interna. Como isso não ocorre no caso brasileiro,
adota-se o regime misto, acompanhado do diferencial de alíquotas interestaduais, a fim de não
prejudicar os estados, eminentemente, importadores. De outro ponto, ao se tentar instaurar um
imposto, propriamente, incidente sobre o consumo, não se poderia conceber uma tributação na
origem, haja vista cada estado-membro dever tributar sua própria economia e não o consumo
realizado nos demais territórios (MORSCH, 2006). A incidência no destino vai então se
mostrando mais afeita às exigências de não interferência tributária nas escolhas dos agentes,
influenciando, o mínimo possível, a formação dos preços e os métodos como se operam os
negócios. O princípio da neutralidade fiscal coloca-se, então, enquanto fundamento normativo
a partir do qual, hierarquicamente, determinam-se outros princípios, como, por exemplo, o da
não cumulatividade; seletividade; uniformidade geográfica e; liberdade de tráfego

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

(CALIENDO, 2009; CNOSSEN, 1998). Irradiado sob o manto da eficiência fiscal, esse
postulado insere-se, de modo cada vez mais forte, no núcleo de concepção das políticas
tributárias, direcionando a projeção destas para atração de capital móvel e acentuando, por
assim dizer, a ampliação dessa mobilidade (ZODROW, 2010).
Tal orientação, em prol do capital desincorporado, exerce influência direta na
composição e deslocamento das bases tributárias. As pressões por harmonização fiscal nesse
sentido manifestam-se, inicial e mais intensamente, nos mercados financeiros, haja vista ser o
dinheiro a mercadoria com maior rapidez e facilidade de circulação. Sobre essa base, a
composição do padrão internacional tende a desonerar os fluxos, ao máximo. Segundo as
possibilidades aventadas por Vito Tanzi – ex-integrante do FMI e do Banco Mundial –, o
aprofundamento da integração econômica internacional deveria ser empreendido por meio da
redução da tributação sobre as aplicações, em seus lucros, juros e dividendos, recaindo, mais
pesadamente sobre a renda familiar. No setor produtivo, mais especificamente, a
desincorporação do capital se manifesta pela exigência da eliminação de assimetrias,
mediante a priorização da base consumo. Já no âmbito da tributação sobre o trabalho, a baixa
mobilidade, principalmente, da mão de obra menos qualificada – ensejada pelas crescentes
barreiras à imigração – fazem as demandas por harmonização serem substituídas, em grande
parte, pelos postulados de desoneração (REZENDE, 2006). Harmonizar as estruturas
tributárias significa então proteger os investimentos da incidência fiscal, transferindo o
financiamento público para outras bases impositivas, evitando-se assim a evasão dos fatores
de produção, principalmente, em escala internacional (HETTICH, 2000; OLIVEIRA, 2009;
PICCIOTTO, 2007). Sem poder afetar, negativamente, a mobilidade dos diversos segmentos
do capital, os traços gerais dos sistemas tributários vão priorizando a incidência sobre bases
de menor mobilidade territorial, tais como a renda pessoal, o consumo e a folha de salários
(OLIVEIRA, 2009; REZENDE, 2006).
Quanto ao ICMS, especificamente, pode-se dizer que a sua sistemática de apuração foi
concebida num contexto em cuja economia nacional era, relativamente, fechada e a
competição entre os estados-membros ensejava apenas o deslocamento da produção e
emprego dentro do território nacional. Entretanto, após a emergência da reestruturação
produtiva global, essa disputa acaba por exportar produção, bases tributárias e empregos para
o exterior, haja vista a possibilidade de deslocamento de serviços auxiliares, produção de
peças e componentes utilizados pela indústria. A partir desse cenário, reorientam-se os
preceitos tributários proeminentes no paradigma anterior (Fordismo), concebidos num
contexto de relativa baixa mobilidade do capital, no qual os sistemas se caracterizavam pela
tributação do lucro auferido pelas empresas estrangeiras e pela redistribuição progressiva da
renda. Como o impacto das decisões políticas sobre os agentes não está mais adstrito aos
limites territoriais do país, o padrão tributário delineado sob os preceitos de harmonização
competitiva denota uma tendência à ampliação da tributação sobre o valor adicionado no
consumo, desonerando a renda das empresas. O processo de abertura econômica e integração
aos blocos regionais, desencadeado na década de 1990, veio introduzindo a prerrogativa de
redução da carga tributária sobre a renda do capital. As orientações estratégicas dessa nova
conjuntura, submetidas aos imperativos de ajuste fiscal e geração de superávit primário,
contribuíram para a deterioração da qualidade do sistema tributário brasileiro, quanto à sua
função redistributiva (AFONSO et al., 2006; DAIN, 2006; OLIVEIRA, 2009; PAZ, 2008;
REZENDE, 1996; 2006).
Nesse contexto, os impedimentos estruturais à tributação do capital móvel fazem as
propostas de reforma tributária abrir mão das metas redistributivas, verificadas no paradigma
anterior, fazendo recair a maior parte do ônus fiscal sobre as bases mais fixas. Segundo
Caliendo (2009), os principais efeitos da tributação sobre o consumo dependem da capacidade
de os agentes realizarem escolhas econômicas e mudanças de comportamento (elasticidade).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Assim sendo, no caso de a demanda possuir maior elasticidade que a oferta, a tributação sobre
o consumo exercerá pouca influência na formação dos preços ao consumidor, incidindo o
maior peso tributário sobre os produtores. Por outro lado, se a oferta possuir mais elasticidade
do que a demanda, a carga da tributação sobre o consumo será deslocada para os ombros do
consumidor. Desse modo, a parte que possuir menor flexibilidade para alterar o seu
comportamento econômico (elasticidade) suportará a maior parte do peso tributário, incidente
sobre as relações de produção e consumo.
Com base nisso, os intentos de reforma do sistema tributário nacional visam instituir
uma matriz espaço-temporal favorecedora da mobilidade do capital. Os arranjos institucionais
sugeridos pelas propostas de alteração legislativa destinam-se a deslocar a incidência
tributária para o momento e local do consumo, dotando o capital de maior mobilidade e,
portanto, de maior flexibilidade para alterar o seu comportamento econômico (elasticidade).
Consuma-se, dessa forma, o projeto de fazer recair, mais pesadamente, o ônus tributário sobre
os ombros dos consumidores, principalmente, aqueles de baixa mobilidade, em regra,
representados pelos cidadãos mais pobres.
O aprofundamento das novas estratégias organizativas do grande capital – cada vez
mais desincorporado e “deslocalizado” – vai então, pouco a pouco, inserindo preceitos de
“boa qualidade” na composição do sistema tributário, reorientando sua configuração para
longe dos compromissos redistributivos. A exaltação da competitividade e eficiência,
enquanto princípios norteadores das reformas, elege a “neutralidade” como postulado maior
da “boa técnica fiscal”, edificando arranjos institucionais, consoante a menor interferência
possível nas escolhas dos agentes. A instauração dessa matriz espaço-temporal, embora se
apresente escudada pelos discursos de não intervenção nas trocas econômicas, em realidade,
destina-se a privilegiar alguns atores em detrimento de outros, a exemplo do grande capital
em relação aos consumidores de baixa renda. Diante disso, percebido tal favorecimento,
desnuda-se a ideia de efetiva neutralidade, atribuída a esses arquétipos.

6. Considerações Finais
A análise da materialidade institucional então sugerida pelas propostas de reforma
tributária revelam os determinantes conjunturais intrínsecos a essa nova matriz espaço-
temporal. A arquitetura organizativo-institucional em debate manifesta as contradições do seu
entorno, as quais podem ser sintetizadas em algumas ponderações:
i) Ao buscar garantir a desincorporação dos fluxos econômicos do capital – mediante a
homogeneização do espaço tributário nacional –, o esforço empreendido pelo Estado
contradiz a sua própria territorialidade política, contribuindo para o gradual agravamento das
suas necessidades de fixação.
ii) A instauração de uma coesão institucional – por via da constrição dos entes
subnacionais e eliminação da competição interna –, como forma de integração aos espaços
econômicos globalizados, acaba por tornar o país mais vulnerável aos efeitos predatórios da
competição, agora, em escala global, pois a ampliação da mobilidade do capital e o,
consequente, acirramento da disputa entre os lugares resultam na reprodução de espaços
idênticos, ainda mais subordinados a essa dinâmica.
iii) O deslocamento do ônus fiscal para o momento e local do consumo – sob a
justificativa de garantia da neutralidade tributária – insere, em realidade, uma materialidade
interventora nas trocas econômicas, pois institui uma matriz espaço-temporal favorecedora do
grande capital “deslocalizado”, em prejuízo dos consumidores de baixa renda.

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i
ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços pertencente aos estados-membros (entes
subnacionais). O fato gerador do ICMS é a prestação de alguns serviços e a circulação de mercadorias dentro do
território de cada estado-membro, ou ainda, em mais de um deles. Atualmente, nas operações interestaduais, a
incidência do imposto se dá no local de origem da mercadoria.
ii
Segundo ressalva Panzarini (2006, p. 339), o problema da complexidade das 27 legislações não diz respeito,
em princípio, à sua quantidade, pois possuem textos bem parecidos. As divergências emergem, na realidade,
quanto às diferentes interpretações dessas legislações pelos respectivos fiscos e tribunais estaduais.
iii
Refere-se aqui às escoladas da Public Choice e New Institutional Economics, principais expoentes do
mainstream no estudo da competição interjurisdicional.
iv
A isso se denomina “aniquilação do espaço pelo tempo”, um processo que pode ser, brevemente, descrito
como a organização espacial racional das atividades produtivas, como forma de superar as limitações físicas do
espaço, reduzindo o tempo de rotação socialmente necessário entre a produção e o consumo. Esse processo vem
sendo cada vez mais aprofundado em face do desenvolvimento de novas tecnologias e estratégias organizativas
(HARVEY, 2007).
v
Enquanto “capital em geral” pode-se considerar momento universalizante, de caráter progressista, do seu ciclo
de reprodução, tomando-se suas determinações mais simples, antes que se ponha a pluralidade de capitais em
concorrência (BRANDÃO, 2004).
vi
A “coerência estrutural” compõe-se em meio a uma totalidade de forças produtivas e relações sociais, as quais
conjugam a produção, o consumo, o padrão de acumulação, a cultura e o estilo de vida na definição dos
processos operativos, delimitadores da formação dos espaços de maneira eficiente e ordenada.
vii
Disponível em: <http://www.portaldaindustria.com.br/cni/imprensa/2013/03/1,11171/presidente-da-cni-
defende-agenda-de-competitividade.html> e
<http://www.portaldaindustria.com.br/cni/imprensa/2012/12/1,8721/momento-e-favoravel-para-reforma-
tributaria.html>. Acesso em 20 mar. 2013.
viii
Nesse sentido, enquadram-se os posicionamentos dos governadores, por exemplo, do estado do Mato Grosso
do Sul, André Puccinelli, do estado de Goiás, Marconi Perillo e do estado do Pará, Helenilson Pontes.
Disponível em: <http://www.fieb.org.br/GerenciadorNewsletter/NoticiaWeb.aspx?ne=1760&re=2890>. Acesso
em: 13 mar. 2013.

390
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

ix
Importante mencionar que a tendência geral de aglomeração industrial não é absoluta, podendo ser relativizada
pelo surgimento das chamadas “janelas de oportunidades”, a partir das quais a transição para um regime de
produção flexível poderia ser absorvida de forma mais célere por regiões menos tradicionais (UDERMAN,
2007). Deve-se considerar, também, o caso das indústrias cujo padrão locacional é mais dependente da oferta de
recursos naturais e de mão de obra barata, o que não se reproduz da mesma forma nos segmentos mais ligados a
bens de capital e tecnologia (DINIZ FILHO, 2004).
x
O termo “rugosidades” pode ser compreendido, na percepção de Santos (2006), como o espaço construído em
razão dos processos de supressão, acumulação e superposição das estruturas produtivas, ensejados pela divisão
social do trabalho.
xi
Os estados considerados prejudicados seriam: Amazonas, Espírito Santo, Bahia, Goiás, Mato Grosso do Sul e
Santa Catarina. Disponível em: <http://tributario.net/www/icms-unificados-beneficiaria-20-estados/>. Acesso
em: 13 jan. 2013.
xii
Cumpre mencionar, a esse respeito, a existência de entendimentos destoantes como, por exemplo, o do Piauí
que, por se tratar de um estado, predominantemente, consumidor, acaba perdendo muitas receitas para os estados
vizinhos. Disponível em:
<http://www.fieb.org.br/GerenciadorNewsletter/NoticiaWeb.aspx?ne=1760&re=2890>. Acesso em: 13 jan.
2013.
xiii
Sobre as perdas calculadas pelo estado de São Paulo, ver: <http://tributario.net/www/sao-paulo-perde-r-55-bi-
com-unificacao-do-tributo/>. Acesso em: 04 ago. 2013.
xiv
Disponível em: <http://www.sesconfloripa.org.br/noticia/2664/icms-unificado-beneficiaria-20-estados>.
Acesso em: 04 abr. 2013.
xv
Disponível em: <http://www.portaldaindustria.com.br/cni/imprensa/2012/12/1,8721/momento-e-favoravel-
para-reforma-tributaria.html>; <http://www.portaldaindustria.com.br/cni/imprensa/2012/11/1,7486/cni-apoia-
ministerio-da-fazenda-na-negociacao-com-os-governadores-sobre-mudancas-no-icms.html> e
<http://www.portaldaindustria.com.br/cni/imprensa/2012/10/1,6471/pequenas-mudancas-abrem-caminho-para-
reforma-tributaria-avaliam-especialistas.html>. Acesso em: 13 mar. 2013.
xvi
A União pretende utilizar-se de um projeto de lei complementar que altera o indexador das dívidas de Estados
e municípios com a União – passa do Índice Geral de Preços (IGP-DI) para o Índice Nacional de Preços ao
Consumidor Ampliado (IPCA). Disponível em: <http://tributario.net/www/sul-e-sudeste-pressionam-por-
mudanca-no-icms/>. Acesso em: 13 mar. 2013.
xvii
As especificidades de cada uma das três propostas, quanto aos mecanismos a partir dos quais se
operacionalizam o deslocamento da carga tributária para o momento e local do consumo, encontram-se descritos
na página 171.
xviii
O acúmulo de créditos tributários acaba por afetar o potencial exportador das empresas brasileiras, pois se
veem obrigadas a despenderem recursos, os quais poderiam ser investidos, além de, por outro lado, passarem a
preferir vender maior parcela da sua produção para o mercado interno, a fim de aproveitarem os créditos fiscais
de que dispõem (AFONSO et al., 2013).
xix
As operações de transferência de crédito fiscal para terceiros, em regra, não é de interesse dos estados-
membros, pois pode ensejar problemas fiscais como, por exemplo, a perda de receitas e o descumprimento da
Lei de Responsabilidade Fiscal. Diante disso, os governos passam a alegar a ocorrência de fraudes no processo
de transferência e a dificuldade operacional de se pagar os créditos em espécie (AFONSO et al., 2013).
xx
A esse respeito, Afonso et al. (2013) exemplificam a hipótese de uma empresa de um estado-membro que
adquire insumos de outro estado para produzir algo destinado à exportação, acumulando créditos tributários
junto ao governo do seu estado. Isso implica dizer que esse estado teria de restituir créditos referentes a imposto
cobrado por outra unidade da federação. Em outras palavras, configurar-se-ia uma restituição por valor não
recebido. Nesse caso, a restituição de créditos em dinheiro implicaria na transferência de renda de uma unidade
da federação para outra, provocando objeções por parte dos entes prejudicados.

391
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A importância da metrologia legal para o desenvolvimento econômico:


minimizando assimetrias de informação

André Almeida Reggiani


Instituto de Metrologia e Qualidade de Minas Gerais

Fernando Antônio França Sette Pinheiro


Instituto de Metrologia e Qualidade de Minas Gerais

Fernando Antônio França Sette Pinheiro Junior


Instituto de Metrologia e Qualidade de Minas Gerais

Karina Scatolino Mesquita


Instituto de Metrologia e Qualidade de Minas Gerais

Luiz Marcelo Scalioni Doridio


Instituto de Metrologia e Qualidade de Minas Gerais

Resumo

A medição é uma das mais antigas operações realizadas pelo homem e possui importância
fundamental para diversas atividades por ele desempenhadas. Dessa forma é evidente a
necessidade de uma política pública de normalização, certificação e fiscalização das relações
de consumo no que tange os aspectos metrológicos. A adoção de medidas reguladoras, por
meio do cumprimento dos requisitos mínimos de conformidade e segurança ou pelo
estabelecimento de normas e metodologias que conferem confiança aos produtos e serviços
ofertados, favorecem a eficácia do processo produtivo. O presente artigo busca apresentar a
relevância da metrologia legal como forma de mitigar as assimetrias de informação nas
relações fornecedor/cliente e fornecedor/fornecedor, contribuindo sobremaneira para o
desenvolvimento econômico.

Palavras-chave: política pública, metrologia legal, assimetria de informação,


desenvolvimento econômico.

1 Introdução

A medição é uma das mais antigas operações realizadas pelo homem e possui
importância fundamental para diversas atividades por ele desempenhadas. Até os dias de hoje
faz parte do nosso cotidiano, como por exemplo, a hora, medida de tempo utilizada para não
perdemos nossos compromissos. Medir é uma forma de descrever o mundo, e do ponto de
vista técnico, pode ser utilizada para monitorar, controlar ou investigar um processo ou
fenômeno físico (Gonçalves Jr., 2004).
Nesse sentido, é evidente a necessidade de uma política pública de normalização,
certificação e fiscalização das relações de consumo no que tange aos aspectos metrológicos
dos produtos e serviços nacionais e importados. No Brasil essa política foi consolidada na
década de 1960, com a criação do INPM (Instituto Nacional de Pesos e Medidas), uma
instituição metrológica de alcance nacional, sob atuação direta ou por meio de órgãos
delegados.
Diante do desenvolvimento tecnológico e social, pautado em um mercado industrial
ascendente, foi necessário o aprimoramento dos serviços prestados pelo INPM, buscando a

392
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

ampliação de sua atuação na sociedade. Como forma de integrar toda uma estrutura sistêmica
foram criados pela Lei Federal 5.966, de 11 de dezembro de 1973, o Conselho Nacional de
Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial – CONMETRO e o Sistema Nacional de
Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial - SINMETRO, cujo foco foi a organização
da política de metrologia, normalização e qualidade industrial, gerenciando, normatizando e
supervisionando a sua execução.
O INPM foi substituído pelo atual Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e
Tecnologia – INMETRO, como uma proposta de reformulação de ideias e atribuições
institucionais de todo o mecanismo de delegação de autoridade metrológica (DIAS, 1998),
promovendo a confiabilidade das medições para segurança da sociedade e incentivando a
inovação e competitividade do mercado. Atualmente, com base na Lei Federal 9.933/1999, as
políticas públicas de fiscalização da metrologia e qualidade industrial no país são de
responsabilidade do governo federal, cabendo ao INMETRO, enquanto autarquia federal, a
normatização e execução das políticas de metrologia industrial, metrologia legal e de
qualidade e conformidade, principalmente por meio dos órgãos delegados. No âmbito
internacional, o Brasil é filiado como país membro à OIML (Organização Internacional de
Metrologia Legal), cujas recomendações são normalmente utilizadas na elaboração da
regulamentação interna.
Partindo-se da premissa de que a metrologia é uma ferramenta capaz de reduzir a
incerteza de um resultado, seja ele teórico ou prático, nos mais diversos setores, é revelada a
sua importância como indicador econômico para análise da responsabilidade social das
empresas nas relações comercias. Esta constatação importa na conscientização de que a
função social da empresa exige que o êxito do empreendimento também represente respeito
ao consumidor e o comprometimento com a ética em suas atuações, seja na relação de
trabalho, na atenção aos compromissos ambientais, bem como na observância dos padrões de
segurança e de qualidade na produção e na prestação de serviços. Para o investidor, estas
características indiciam a segurança de ganhos sustentáveis, dada a conquista da confiança do
mercado, não só pelo produto ou serviço que oferece, mas pela imagem de uma empresa
responsável e atenta aos anseios da sociedade.
Conforme relata BIRCH (2003), quando há uma falta de transparência nas
informações sobre o processo de medição, havendo uma assimetria de informação entre as
partes envolvidas, é criado um precedente para o surgimento de uma série de fatores
negativos, como concorrência desleal e majoração dos custos de transação, e que podem levar
a ineficiência do mercado. Considerando esse fato como um dos grandes entraves enfrentados
pelo regulador setorial, o presente artigo tem como objetivo apresentar a relevância da
metrologia legal como forma de mitigar as assimetrias de informação nas relações
fornecedor/fornecedor e fornecedor/cliente, contribuindo sobremaneira para o
desenvolvimento econômico.

2 Desenvolvimento econômico

As perspectivas atuais dos processos de desenvolvimento levam em conta, além dos


aspectos diretamente relacionados à riqueza material e ao crescimento, a capacidade de auto-
organização local, a composição e a força do capital social, a participação cívica e a sensação
de ser parte deste processo pela comunidade. Neste sentido, o desenvolvimento não é o mero
crescimento econômico, mas supõe também presença da dinâmica cultural e política capaz de
transformar positivamente a vida social. Se baseia na formulação de políticas, programas e
projetos concebidos e implantados a partir da atuação das sociedades locais, sendo de
responsabilidade das agências, instituições e órgãos do governo federal, estadual e municipal
– que podem ser parceiros neste processo. Portanto, para se fazer uma análise do

393
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

desenvolvimento local/regional, é necessário destacar a concepção de desenvolvimento no


progresso econômico contemporâneo.
O desenvolvimento econômico é debatido por inúmeras áreas das ciências sociais.
Ademais, o estudo e o entendimento desse desenvolvimento é um instrumento de grande
importância para conduzir e delinear os processos de crescimento e desenvolvimento
econômico de diversos territórios. Assim, o estudo sobre o desenvolvimento permite nortear
medidas e políticas adequadas às características e particularidades de cada economia.
A evolução propiciada pelo processo de crescimento econômico da sociedade moderna
é inegável, e mesmo que em diferentes níveis, é facilmente observada em praticamente todos
os indicadores de bem-estar econômico e/ou em indicadores de desenvolvimento. Apesar
desse caráter universal, as transformações socioeconômicas não beneficiaram igualmente
todos os países, o que ocasionou padrões de crescimento desiguais.

Crescimento versus desenvolvimento

Durante toda a história econômica, os estudos sobre desenvolvimento e crescimento


têm sido foco de grande polêmica, tanto em relação aos seus conceitos, quanto no emprego
destes termos. Muitos acreditaram que esses conceitos eram semelhantes, porém atualmente
não se encontra quase nenhum estudo que afirma tal semelhança.
Uma primeira corrente de economistas confere, ao tratar do processo de
desenvolvimento, uma grande relevância ao crescimento econômico, enquanto que uma
segunda corrente defende que existe uma grande distinção entre os dois conceitos. Para esses
últimos o crescimento econômico é uma condição indispensável para o desenvolvimento, mas
não suficiente. No primeiro caso, enquadram-se pensadores da tradição neoclássica, como
Meade e Solow, mas também aqueles de inspiração mais keyensiana, como Harrod, Domar e
Kaldor. Os economistas de orientação mais crítica como Presbich, Furtado, Singer e aqueles
de tradição cepalina e marxista enquadram-se na segunda corrente, e normalmente são
chamados de economistas do desenvolvimento (Souza, 1999).
De maneira geral, aqueles que associam desenvolvimento ao crescimento têm como
padrão e medida as taxas de crescimento econômico. Para esse grupo, um país é
subdesenvolvido pelo fato de ter menor renda e grau de avanço econômico que os países
desenvolvidos. Porém, a experiência demonstra que nem sempre altas taxas de crescimento
econômico beneficiam a economia e a população como um todo, mitigando o potencial de
desenvolvimento inerente ao crescimento. Nesse sentindo, a segunda corrente encara o
“crescimento econômico como uma simples variação quantitativa do produto, enquanto o
desenvolvimento envolve mudanças qualitativas no modo de vida das pessoas, das
instituições e das estruturas produtivas” (Souza, 1999, p. 21-22) e se caracteriza como um
fenômeno de longo prazo. Assim, pode-se concluir que o crescimento não pode ser visto
como um fim em si mesmo, mas como um instrumento para se alcançar o desenvolvimento.
Uma contribuição essencial no campo do desenvolvimento recentemente foi dada por
Amartya Sen, em seu livro “Desenvolvimento como Liberdade”, publicado em 2000. A visão
de desenvolvimento proposta por Sen pode ser resumida como um processo contínuo de
expansão das liberdades substantivas e individuais das pessoas que compõem uma sociedade.
SEN (2000, p.57) argumenta que “a contribuição do crescimento econômico tem de ser
julgada não apenas pelo aumento de rendas privadas, mas também pela expansão de serviços
sociais (incluindo, em muitos casos, redes de segurança social) que o crescimento econômico
pode possibilitar”. Em consenso com essa ideia, MEIER (2002) define desenvolvimento
como crescimento mais mudança. A mudança, por sua vez, implica aspectos como a ênfase
no crescimento com qualidade, a redução da pobreza, equidade distributiva, proteção
ambiental, dentre outros. Assim, o desenvolvimento tem uma relação direta com a melhoria

394
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

da qualidade de vida que levamos e as liberdades que desfrutamos. Assim, quando se expande
o emprego e a arrecadação do setor público, deve-se permitir ao governo fazer políticas
públicas, e principalmente sociais para as pessoas mais carentes. É preciso enxergar que o
desenvolvimento é um processo de expansão das liberdades reais das pessoas.
Para SEN (2000), essa expansão de liberdades possui um caráter constitutivo e
instrumental. Constitutivo pelo fato de que as liberdades têm como fim primordial evitar as
privações, como fome, subnutrição, morbidez, morte prematura, incluindo também liberdades
associadas à participação política, à liberdade de expressão, entre outras. E instrumental pelo
fato de que a liberdade é vista como o principal meio para gerar desenvolvimento, uma vez
que o próprio desenvolvimento pode ser visto como um processo de crescimento da liberdade
individual. Assim, pode-se concluir que a liberdade humana é tanto o principal meio como o
principal fim do desenvolvimento, e por isso, os indivíduos devem ter o direito de usufruí-la.

Desenvolvimento e regulação

Desde a Segunda Guerra Mundial, o pensamento sobre o desenvolvimento


econômico vem passando por diversas mudanças de perspectivas. A evolução desse
pensamento pode ser dividida em duas gerações: a primeira que se estende de 1950 a 1975, e
a segunda que vai de 1975 até os dias atuais (Meier, 2002).
Segundo MEIER (2002) a primeira geração foi marcada pelos seus modelos de
acumulação de capital e de crescimento real da renda per capita. Nesse contexto, uma das
premissas mais marcantes dessa geração foi a ênfase em um governo forte e atuante, capaz de
evitar e corrigir as eventuais falhas de mercado por meio da centralização e do controle da
alocação de recurso, atuando, assim, como um verdadeiro agente de mudanças. Os
economistas dessa geração argumentam que o atraso econômico enfrentado por muitos países
é de responsabilidade das falhas de mercado. Essas falhas de mercado causavam uma limitada
provisão de empreendimento e uma ausência de grandes mudanças estruturais. Assim, por
esses motivos, a intervenção estatal era vista como necessária. Outro fator que marca essa
geração é que:

At the same time as pessimistic conclusions were reached about


developing countries’ capacity to export primary products and to
pursue export-led development, optimistic conclusions were expressed
about capacity to accelerate development through the extension of the
public sector and trough wide-ranging governmental policies. This
combination of external pessimism and internal optimist dominated
the thinking of the first generationi (Meier, 2002, p. 15).

Como se pode perceber a primeira geração defendia a intervenção do Estado, devido à


existência de incompletudes de mercado. Para esse grupo seria necessário realizar uma
redistribuição dos recursos dos indivíduos para que fosse alcançada a condição de equilíbrio.
Entretanto, devido a experiências adversas e desilusões em relação aos resultados
alcançados pelas estratégias de industrialização conduzidas por estados intervencionistas,
começaram a surgir às primeiras críticas a essa geração. Essas críticas iam se ampliando na
medida em que a intervenção estatal acarretava resultados desfavoráveis, como o aumento do
desemprego, do subemprego e das desigualdades de maneira geral. No final na década de 60 e
início da década de 70, as críticas se agravaram em vista da persistência de resultados ruins,
apesar do esforço por parte de alguns governos em promover o desenvolvimento (Meier,
2002).

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Contestando e criticando a primeira geração, a segunda geração se baseia nos


princípios fundamentais da teoria clássica. Enquanto que a segunda geração defende uma
diferente intervenção do estado, uma vez que esta causa falhas de Estado. Para esses, toda
economia de livre mercado pura e em equilíbrio irá alcançar uma condição de “ótimo
paretiano”, ou seja, os mercados são realmente eficientes, por si só. As “falhas do Estado”
consistem em disfunções no que tange os problemas de performance de governo, e elas são
apontadas como motivos para a não intervenção do Estado na economia. Entre elas, podemos
destacar uma série de disfunções que afetam a performance da máquina pública, como: o
fornecimento de mais bens e serviços que o necessário ou socialmente desejado, uma vez que
toda instituição pública tende a buscar a maximização do seu orçamento; a alocação
ineficiente devido ao fluxo ineficiente de informações atribuído geralmente à burocracia
estatal, mantêm relações assimétricas com interesses constituídos da sociedade, favorecendo
alguns em detrimento de outros, e geram redução da capacidade competitiva dos agentes
privados, associada ao “excesso” de regulação e controle (Mercuro e Medema, 1999; Moura,
2002; Przeworski, 1995).
Esses economistas defendiam que o governo devia focar as suas políticas nos
mercados, preços e incentivos. Para eles, o desempenho bem-sucedido de alguns países em
desenvolvimento não ocorreu apenas devido às suas condições iniciais, mas também devido à
adoção de políticas corretas. Assim, os economistas da segunda geração defendem que alguns
países não se beneficiaram de suas oportunidades econômicas pelo fato de adotarem políticas
internas inadequadas.
Uma novidade dessa geração foi o reconhecimento e análise de novas falhas de
mercado. Com o avanço nesses estudos – em informação imperfeita, mercados incompletos,
custos de transação e falta de mercados futuros −, houve uma ampliação do alcance das falhas
de mercado, observando também que se deveria dar maior atenção aos estudos sobre bens
públicos e externalidades, que até então tinham uma ação seletiva por parte da intervenção
estatal (Meier, 2002).
Assim, a necessidade de correção dessas novas falhas apresentadas nesses estudos
permitiu o desenvolvimento de argumentos mais bem fundamentados para uma intervenção
estatal mais incisiva. Com isso, a análise do desenvolvimento passou a conceber maior ênfase
ao risco e à informação imperfeita na economia. Consequentemente, a partir dos anos 90,
passa a se ter uma maior preocupação com os aspectos institucionais na economia, como a
reforma política, fazendo com que se tivesse uma maior ênfase no estudo das falhas de
governo que nas falhas de mercado (Meier, 2002).
As falhas de mercado consistem em disfunções ou inconsistências no que tange a auto-
regulaç ao, geralmente atribuídas ao mercado (Elster, 1994). Elas ocorrem em circunstâncias
em que os mecanismos de mercado “não podem ser total ou eficientemente utilizados”,
levando a resultados sub-ó timos: monopólios ou oligopólios, as assimetrias informacionais, a
ocorrência de externalidades e o fracasso em prover bens tipicamente públicos (Carson, 1992;
Przeworski, 1995; Elster, 1994).
Com isso, as incompletudes de mercado são geralmente provocadas pelas suas
imperfeições, como: informação incompleta, custos de transação elevados, existência de
externalidades e ocorrência de estruturas do tipo concorrência imperfeita, o que faz com que
haja a necessidade de o mercado ser regulado.
No presente estudo, a informação incompleta é a que nos remete à necessidade de
intervenção estatal, uma vez que os recentes estudos na economia da informação nos
mostraram que a informação é imperfeita, assim como seu fluxo. Na verdade, a dificuldade
em se obter a informação no nível desejável faz parte do processo e a extensão desta
assimetria é afetada pelas ações das organizações e atores envolvidos no processo. A principal
mudança introduzida pela economia da informação foi o reconhecimento de que a informação

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era fundamentalmente um ativo para as organizações, e como se apropriar dos retornos


provenientes do investimento em obtê-las. Outra mudança fundamental foi considerar que os
mercados dotados de informações assimétricas sejam imperfeitos (Stiglitz, 2000).
Informações podem ser consideradas públicas ou privadas, sendo que enquanto o que
define a primeira consiste em ser conhecida por todos os atores, uma informação privada é
aquela que apenas alguns atores possuem conhecimento sobre ela. Desta forma, quando se
trata da informação privada é que ocorrem casos de assimetria informacional nos mercados e
leva à elaboração de contratos incompletos (Stiglitz, 2000).
A abordagem econômica sobre a informação baseia-se na premissa de que diferentes
partes de um acordo possuem diferentes níveis de conhecimento (Kirmani & Rao, 2000). Para
STADLER & CASTILHO (1997) o objetivo deste campo de estudos consiste em investigar
sobre quais situações os atores procuram superar a assimetria com vistas a tomar decisões
ótimas e evitar os custos de sua ignorância. Numa transação econômica é bem provável que
exista um desequilíbrio entre quem está comprando e quem está vendendo. Nos casos em que
não há solução para esta questão, não são concretizadas as transações, gerando perdas para
todos os atores envolvidos. Assim, em situações de crise, ou seja, em cenários em que há certa
fragilidade em relação à confiança entre as partes, os negócios podem ficar suspensos
temporariamente, até que sejam atendidas as expectativas de ambas as partes em relação às
informações fornecidas pela outra parte, visando a minimização do risco da transação
(Milgrom & Roberts, 2005).
É possível analisar os mecanismos da assimetria informacional, uma vez que estes
podem se apresentar em relação às características do bem da transação ou em relação ao
comportamento dos atores, avaliando a seleção adversa ou o risco moral.
Em uma transação entre um principal e um agente, o agente é a parte informada da
negociação e o principal desconhece quanto o agente está disposto a pagar. Supondo que o
principal é quem define os termos contratuais, a utilidade do agente cresce com a quantidade
de bens adquiridos, levando em consideração as suas preferências, e diminui com o valor que
é pago ao principal pelos bens. A informação, privada ao agente, diz respeito às preferências.
Para estabelecer um contrato, o principal faz uma projeção dos preços e quantidades que
devem ser oferecidas a cada tipo de agente de acordo com suas preferências (Milgrom e
Roberts, 2005). Nesta transação, o principal busca definir um contrato de forma que a escolha
do agente maximize os lucros do principal. Então, a seleção adversa é um fenômeno
decorrente da existência de informação assimétrica na transação, e ocorre quando os agentes
realizam escolhas que maximizam o lucro do principal, mas não as realizariam caso
estivessem munidos de toda a informação possível – para tomar uma decisão ótima (Milgrom
& Roberts, 2005).
O risco moral, ou moral hazard no inglês, consiste em um conceito que remete à
possibilidade de que um ator mude suas preferencias e comportamentos conforme o contexto
da transação econômica. Geralmente ele é relacionado à informação assimétrica, uma situação
na qual uma parte na transação possui mais informações que a outra (Paul, 2013; Brosio,
2004). Um caso especial de risco moral ocorre quando o agente age no interesse do principal,
de forma que o primeiro pode ter um incentivo ou tendência de agir inapropriadamente do
ponto de vista do segundo, se os interesses do agente e do segundo não estiverem alinhados.
O agente normalmente tem mais informações sobre suas ações ou intenções do que o
principal, porque o principal normalmente não pode monitorar perfeitamente o agente
(Brosio, 2004).
Entretanto é valido ressaltar que o mercado busca gerar alocação de recursos de
maneira eficiente, no sentido paretiano, que não necessariamente terá a mesma direção que a
alocação de recursos de maneira equitativa. Assim, o papel do Estado, é de minimizar as
incompletudes de mercado e buscar uma distribuição mais equitativa dos recursos. Porém ao

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buscar minimizar essas falhas e alcançar maior equidade, a intervenção do Estado acaba por
gerar falhas, uma vez que nem sempre permitem a alocação mais eficiente de recursos. Assim
se conduz para um possível trade-off entre eficiência econômica e equidade. Dessa maneira
deve-se buscar uma ação do Estado que minimize esse trade-off e que proporcione o bem-
estar para a população como um todo. Para isso, são necessárias não apenas políticas públicas
eficientes, mas também uma máquina pública preparada, com alto grau técnico, para saber
conduzi-las.

3 Metrologia

Segundo o Vocabulário Internacional de Metrologia, esta pode ser definida como a


“ciência da medição e suas aplicações” (VIM, 2012, p.16), sendo a área na qual estão
agrupados todos os aspectos teóricos e práticos da medição, independentemente do nível de
incerteza e campo de aplicação, seja este científico ou tecnológico.
O Bureau International de Poids et Mesuresii (BIPM) - organização
intergovernamental que busca discutir questões relacionadas à ciência e aos padrões de
medição - estabelece que para se obter transações mais justas e eficazes, todas as relações
entre consumidores, fornecedores, indústrias e nações devem estar intrinsecamente
dependentes da garantia da exatidão do resultado das medições nos limites definidos
regularmente. Isso porque há a necessidade do uso de dados precisos de produção: na área da
saúde humana − com a busca de resultados cada vez mais detalhados de exames e
consequentemente na eficácia da fabricação de medicamentos; na relação de consumo final –
com a necessidade de conhecer a real quantidade de combustível entregue por uma bomba
medidora ou a massa pesada por uma balança; na engenharia, ao possibilitar o pouso
automático de uma aeronave por meio de instrumentos devido à baixa visibilidade; e em uma
série de outros setores, tornando a metrologia um importante aliado ao desenvolvimento
econômico.
Dessa maneira, pode-se afirmar que a metrologia garante objetividade, confiabilidade,
rastreabilidade e uniformidade das medições, podendo ser ramificada em três grandes grupos,
a saber: metrologia científica, metrologia industrial e metrologia legal.
A metrologia científica é voltada para o desenvolvimento de padrões de medição
principais para unidades de base derivadas do Sistema Internacional de Unidades – SIiii, e se
vale de instrumentos laboratoriais, pesquisas e metodologias científicas que têm por base
padrões de medição nacionais e internacionais para o alcance dos mais altos níveis de
qualidade metrológica. Já a metrologia industrial faz referência a manutenção e controle
apropriado de equipamentos de medição industrial utilizados na produção, inspeção e testes,
incluindo calibração de instrumentos e padrões de trabalho. A calibração dos equipamentos é
comprovada por certificados rastreáveis a padrões nacionais de referência, assegurando assim
a qualidade dos produtos e processos (Marbán & Pellecer, 2002).
Por fim, a metrologia legal, que é foco desse trabalho, engloba os instrumentos de
controle utilizados nas transações comerciais seguindo critérios estabelecidos em
regulamentos técnicos expedidos por organismos competentes. Tais bases legais são
referentes a requisitos compulsórios que envolvem medições, instrumentos e métodos de
medição como forma de proteção às relações econômicas e/ou comerciais (Birch, 2003;
Marbán & Pellecer, 2002). Para BIRKELAND (1998) o objetivo da metrologia legal é
garantir um adequado nível de credibilidade e intrínseca precisão nas medições.

4 Desenvolvimento econômico e metrologia

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Desde a antiguidade até os tempos atuais, a metrologia vem se tornando mais presente,
impulsionada pelo afã da sociedade moderna em desfrutar sempre mais da tecnologia e da
qualidade dos bens de consumo, sob a certeza de que suas aquisições representam o melhor e
com menor custo e esforço.
A assimetria informacional descreve um fenômeno segundo o qual determinados
agentes econômicos detém mais informações que os outros, em outras palavras, quando
informações sobre uma negociação são partilhadas de forma desigual entre as partes,
desencadeando conflitos relacionados à seleção adversa e ao risco moral (Belo & Brasil,
2006). Segundo BIRCH (2003), em transações onde existe assimetria de informação entre o
agente e o principal há uma considerável oportunidade de incertezas, divergências, maiores
custos envolvidos e ineficiência de mercado.
Dessa maneira, o referido autor argumenta que a metrologia legal protege o
consumidor, uma vez que permite a consistência das medições, quando devidamente
controlada, como o caso dos produtos pré-medidos (embalados sem a presença do
consumidor), traz significativa redução de disputas entre fabricantes/fornecedores, fraudes e
aumenta a eficiência de mercado. Além disso, o controle metrológico garante a igualdade das
negociações dos fornecedores, reduzindo as vantagens comerciais em relação aos
concorrentes e por meio da aprovação de modelo evita que produtos com qualidade
inapropriada sejam lançados no mercado. Outro fator que o autor apresenta é que a metrologia
legal serve como um instrumento de controle de fraudes, dado que esta é responsável pelas
aprovações e certificações de projetos e modelos de instrumentos. iv
Outro fator citado pelo autor, que por vezes não é observado é que a metrologia legal
contribui para a arrecadação de impostos de maneira eficiente e precisa. Governos de países
de variados níveis de desenvolvimento, ao realizarem a tributação de relações comerciais com
base em medidas e quantidades de mercadorias contam com a precisão das medições para a
garantia de arrecadar a correta quantidade de recursos através destes impostos. Nesse mesmo
sentindo, e focando mais precisamente no caso de países dependentes de commodities (como
o caso brasileiro), o autor ressalta que a renda obtida por meio da exportação desse tipo de
produto é significativa, ao passo que a correta mensuração do volume de vendas garante a
correta contabilização da receita, sendo certo que pequenos desvios acarretam gigantescos
prejuízos.
A partir disso, pode-se concluir que a metrologia legal pode trazer benefícios para o
desenvolvimento da economia, visto que diminui as assimetrias de informações por meio da
proteção das relações de consumo, da garantia da equidade na concorrência entre
fornecedores, da garantia da qualidade de determinados produtos/serviços, e inclusive por
meio da correta aferição de medidas que produzem receitas para o governo. Nesse sentido, o
presente artigo realizará uma breve análise de como a metrologia garante uma minimização
das assimetrias de informação nas relações de consumo e na garantia de uma concorrência
legal entre fornecedores por meio da certificação dos produtos/serviços de todas as empresas,
contribuindo dessa forma para o desenvolvimento econômico.

Minimizando as assimetrias de informação nas relações de consumo

No momento em que uma empresa coloca um novo produto no mercado, pressupõe-se


(aos olhos dos consumidores) que este siga padrões mínimos de qualidade. No entanto, o
consumidor não conhece ao certo suas reais características e especificações. Do ponto de vista
das relações de consumo, quando a ausência de informação é capaz de induzir os
consumidores à escolha incorreta no momento da compra, identifica-se uma seleção adversa,
uma vez que estes não conseguem determinar o tipo, a qualidade ou a capacidade técnica dos
bens e serviços ofertados, não estando dispostos a oferecer o preço considerado justo ou

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

sequer adquiri-los. O fabricante, buscando a compatibilidade de custo, acaba colocando no


mercado produtos de baixa qualidade, dando origem a um círculo vicioso que atua como um
indutor da formação deficiente de preços (Akerlof, 1970).
Segundo MATTESINI (1993) a parte mais bem informada da negociação terá pouco
estímulo para auferir vantagem sobre a outra parte quando existe a intenção da construção de
um relacionamento com o comprador para futuras transações, ou se o mercado em questão é
regulado por um especialista externo (por exemplo, uma agência governamental). Quando a
empresa consegue convencer o consumidor da confiabilidade de seu produto, por meio da
publicidade da informação, cria uma expectativa positiva e gera meios para que sua
mercadoria seja valorizada. Essa publicidade mesmo que implícita (por meio de marcas, selos
ou atestados de certificação) tem a capacidade de estabilizar as relações entre as partes.
Ao analisarmos a atuação de uma rede metrológica, percebemos a execução da
metrologia como ferramenta a serviço do mercado, conferindo confiança aos produtos e
serviços fornecidos além de preservar a reputação positiva das empresas. Em termos práticos
e nacionais, quando o órgão metrológico aprova o modelo de um instrumento, por meio de
ensaios e processos de calibração, está informando ao consumidor que este instrumento é
confiável e que seus resultados são precisos. Como forma de manter essa confiança, o
submete a uma verificação inicial na fábrica onde é produzido, e posteriormente a
verificações periódicas. Além disso, aplica uma rotina de verificação eventual naqueles
instrumentos que sofreram qualquer tipo de reparo, o qual apenas pode ser efetuado por uma
permissionária autorizada pelo órgão.
É possível identificar claramente o princípio da seleção adversa, se analisarmos o
processo produtivo dos fármacos manipulados. A manipulação de medicamentos envolve uma
seleção criteriosa de princípios ativos para obter a eficácia terapêutica desejada. Consiste
basicamente na ação de elaborar, de maneira individualizada, um medicamento de acordo
com um receituário emitido por profissionais habilitados (Miguel et. al., 2002). Dessa forma,
a precisão do processo de manipulação torna-se não somente um diferencial, mas uma forma
de conquistar a credibilidade em relação aos medicamentos industrializados.
Nesse contexto podemos estabelecer dois tipos de seleção adversa: aquela em que
existe uma dúvida pré-estabelecida por parte do usuário, a respeito da eficácia e da
confiabilidade do medicamento manipulado, que o faz dispensá-lo, optando pelo
medicamento industrializado; ou aquela que o consumidor, ao levar em conta o menor custo
da aquisição é induzido a fazer uma escolha errada, por acreditar que aquele produto é
farmacologicamente equivalente ao fabricado pela indústria.
O procedimento de manipulação engloba diferentes operações farmacotécnicas, dentre
as quais as etapas de pesagem e/ou tomada de volume podem ser consideradas cruciais para a
eficácia do fármaco final, ao passo que é necessário garantir a exata dosagem do princípio
ativo de cada fórmula. No processo de pesagem (que deve ser exato), a farmácia utiliza a
balança como instrumento de precisão, a qual está sujeita ao controle metrológico regulado
pela Portaria INMETRO n. º 236 de 22 de dezembro de 1994, cujo Regulamento Técnico
Metrológico (RTM) estabelece as condições que deverão ser observadas na fabricação,
instalação e utilização de instrumentos de pesagem não automáticos.
A partir do momento que a farmácia de manipulação consegue executar e comprovar a
regulamentação dos seus processos, dentre estes o metrológico, informando ao usuário e aos
prescritores a respeito do cumprimento das exigências legais relacionadas, aufere crédito à
empresa além de influenciar na tomada de decisão pelos usuários e garantir sua segurança. As
escolhas pelos consumidores passam a ser possivelmente assertivas e com alto grau de
confiabilidade.
Outro exemplo nítido de seleção adversa pode ser identificado na comercialização do
pão francês, um dos produtos mais conhecidos e acessíveis à população e, portanto, com

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

grande interesse econômico por parte dos fabricantes no que tange à otimização dos processos
envolvidos em sua produção e comercialização (Queiroz & Tadini, 2002). Durante muito
tempo o pão francês foi pré-medido, sendo fabricado com um peso fixo. A primeira portaria
do INMETRO (hoje revogada) a tratar do assunto foi a n.º 17 de 25/01/1994, que indicou a
venda do produto por unidade e padronizou seu peso em valores que variavam entre 50g e
1kg, o peso de 50g era o mais usual. Essa forma de comercialização favoreceu a assimetria da
informação, ao passo que havia quem fabricasse pães com menos de 50 gramas, por vezes até
visualmente maior que o produto padronizado por uma simples questão tecnológica de
aeração e crescimento de massa, lesando dessa forma o consumidor que acreditava estar
adquirindo o alimento no peso correto.
Para sanar essa divergência foi criada em 2006 a Portaria INMETRO n°146, a qual
determina que o pão francês deve ser comercializado somente a peso, que seja utilizada uma
balança com indicação do peso em conjunto com o preço a pagar (com uma divisão mínima
de 5g) e que haja uma indicação do preço do quilograma do produto em local de fácil
visualização pelo consumidor. Com essa medida, a venda dos pães tornou-se mais justa tanto
para o fornecedor quanto para o cliente, que passaram a conhecer a exata quantidade de
produto comercializado tornando a relação econômica transparente para todas as partes
envolvidas.

A garantia de uma concorrência legal entre fornecedores por meio da certificação dos
produtos/serviços de todas as empresas

Uma das mais relevantes consequências da assimetria informacional na relação entre


fornecedores é o risco moral. Para os autores PINTO JR. & PIRES (2000), ao contrário da
seleção adversa, no risco moral a assimetria de informação está ligada aos agentes da
transação que podem influenciar nos resultados oriundos dessa anomalia, sendo tais
resultados frutos de decisões meramente oportunistas, nas quais o agente principal adequa
seus atos de acordo com os resultados obtidos.
Nos casos em que ocorrem condutas oportunistas nas ações dos agentes econômicos,
estes buscam maximizar os lucros fugindo de suas responsabilidades e aproveitam as
possibilidades até então não percebidas pela outra parte da transação. Nesse sentido,
WILLIAMSON (1985) esclareceu o “opportunistic behavior” como o anseio veemente e
malicioso do interesse individual, advindo em episódios de assimetrias informacionais e
configurando o risco moral.
Uma vez que o risco moral provoca a corrupção da capacidade dos mercados alocarem
eficientemente os seus recursos, indubitavelmente o Estado necessita combate-lo a fim de
garantir a lealdade da concorrência entre os fornecedores. Conforme relatam Pindyck &
Rubinfeld (2006), o moral hazard “não apenas altera o comportamento dos indivíduos, mas
também cria ineficiência econômica”.
Em termos de cadeia produtiva, podemos identificar indícios de risco moral nos mais
diversos setores, desde o fornecedor de matéria prima até o comércio a varejo do produto
final. Ao analisarmos, por exemplo, o processo de moagem/empacotamento de grãos de café,
identificamos etapas em que é possível certa manipulação de resultados. O processo de
moagem consiste na redução dos grãos que passaram por um processamento térmico
(torrefação) a forma de pó fino. Após a moagem, os grãos estão prontos para serem
empacotados. Normalmente, o pó de café é empacotado em condições normais de temperatura
e pressão, sendo utilizadas embalagens com capacidade para 250 ou 500 gramas do produto.
Em um modelo básico de empacotamento, as embalagens são fechadas automaticamente,
seguindo por esteira até uma balança, para conferência e controle do peso. Nesta etapa, se os
equipamentos utilizados permitirem uma alta precisão das quantidades depositadas nas

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

embalagens, a indústria é capaz de trabalhar sempre no limite do erro individual tolerado.


Após produzir um volume expressivo do produto seguindo este ajuste extremo, é possível que
o número de embalagens produzidas seja maior quando comparado a um processo com maior
tolerância de erro, diminuindo de forma indireta os custos de produção uma vez que ocorre
diminuição da quantidade de matéria prima utilizada. Como consequência, há possibilidade
de ofertar seu produto a um menor preço, passando a existir uma concorrência desleal na
relação com os demais fornecedores.
Para findar essa manobra, a instituição responsável pelo controle metrológico
(INMETRO) define por meio da Portaria n. º 248 de 17 de julho de 2008, o Regulamento
Técnico Metrológico que estabelece os critérios para verificação do conteúdo líquido de
produtos pré-medidos com conteúdo nominal igual, comercializados nas grandezas de massa
e volume, não apenas o critério individual do produto, mas também fiscaliza a média dos
produtos (lotes de amostragem). Visa-se, por meio do controle do desvio padrão de cada lote,
coibir a exatidão no limiar da tolerância, ao passo que quanto mais precisa for a capacidade
do maquinário, menor será o erro admitido, garantindo desta maneira a confiabilidade do
conteúdo nominal declarado do produto pré-medido e permitindo a concorrência justa entre os
todos os agentes. O controle do valor médio do conteúdo líquido dos produtos pré-medidos é
adotado mundialmente, a exemplo da Diretriz Europeia CEE 76/211 citada por Duran (2004),
tendo como objetivo principal realizar um teste comparacional do conteúdo líquido de um lote
e o valor nominal impresso na etiqueta do produto.
Essa assimetria informacional também pode influenciar na relação entre revendedores,
como os casos das fraudes detectadas em bombas medidoras de combustíveis líquidos. É
notório que a concorrência desleal na área de revenda de combustíveis afeta substancialmente
aqueles que trabalham dentro dos termos legalmente estabelecidos e a atividade fica
impraticável para os concorrentes quando determinados revendedores repassam seus
combustíveis aos clientes por um valor inferior ao preço de custo.
Uma das práticas detectadas no setor de revenda é a fraude fiscal, que pode ocorrer por
meio da adulteração do totalizador de volume de combustível comercializado, visando a
sonegação de impostos. Conforme relata ABDENUR (2013), um distribuidor inidôneo pode
agir de forma oportunista e não recolher os tributos devidos e compatíveis com a quantidade
comercializada de seu produto, transferindo parte dessa vantagem competitiva para o preço
final. Assim, passa a auferir uma margem de lucro muito superior àquela obtida pelas
empresas que pagam os impostos e ainda eleva suas vendas por ter um preço mais atrativo.
Pode ocorrer ainda uma adulteração da quantidade de combustível entregue diretamente
ao cliente extrapolando propositalmente o erro máximo admitido pela legislação metrológica
vigente (Portaria Inmetro n.º 23/1985 – divergência máxima tolerada: 0,5%). A prática
definida como fraude metrológica, ocorre quando o volume de combustível colocado no
veículo é dolosamente menor que o informado no painel da bomba medidora. O órgão
metrológico, como um dos reguladores do setor de comburentes aplica políticas de
fiscalização visando coibir tal prática fraudulenta. Conforme dados fornecidos pelo IPEM-
MG, em 2014 foram verificadas no estado de Minas Gerais 34.930 bombas medidoras, dentre
as quais 2.453 apresentaram um erro superior ao máximo tolerado, gerando um índice de
reprovação de 7,02%. Desta forma, sendo inúmeras as consequências da presença da
assimetria informacional, do risco moral e da concorrência desleal nas relações comerciais,
observa-se que o ente público responsável pela atuação no âmbito da metrologia legal não
permanece inerte em sua posição, buscando constantemente minimizar os desvios oriundos
das desigualdades de informação, contribuindo desta forma para garantir e estimular o
desenvolvimento econômico através da harmonização das relações de consumo e da livre
competitividade.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

5 Considerações finais

Tendo em vista o exposto ao longo deste trabalho, pode-se perceber o impacto que a
assimetria de informações, ao longo de transações comerciais, pode afetar no
desenvolvimento econômico de um país. Desta forma, o objetivo deste artigo foi apresentar
de forma exploratória a relevância da política de Metrologia Legal, que além de normatizar e
certificar as medições, serve como instrumento para minimizar as imperfeições do mercado,
mitigando as assimetrias de informação e possibilitando decisões ótimas dos agentes
econômicos, e consequentemente maior confiança nas relações entre empresas, e entre
empresa e cliente, contribuindo desta forma para o desenvolvimento econômico.
A importância dessa política é justamente suprir a lacuna de regulação do mercado no
que tange a confiança nos produtos e a reputação das empresas do ponto de vista das ciências
da medição. A falta dessa política resulta em assimetria de informação tornando necessária a
intervenção estatal, por meio de política pública de metrologia, para minimizar a frágil
relação de confiança entre os agentes econômicos. Como apresentado, essa política pública
tem como foco igualar as condições de competitividade entre os agentes econômicos, seja na
relação entre empresas, seja na relação entre empresas e consumidores. Isso pode ser
afirmado, pois essa política pública garante a qualidade e veracidade das informações
metrológicas, que estão presentes em todas as relações comerciais.
Para tal, é evidente a necessidade da existência de uma entidade metrológica alinhada
à diretrizes internacionais que minimize tais assimetrias de informações relacionadas às
quantidades envolvidas nas transações comerciais. Como apresentado nos exemplos desse
artigo − o processo produtivo dos fármacos manipulados onde o processo de pesagem está
sujeito ao controle metrológico; a comercialização do pão francês somente a peso; o processo
de empacotamento de grãos de café e sua forma de comercialização; e a verificação nas
bombas medidoras de combustível − há atividades nas quais o mercado requer simetria nas
informações, fazendo com que seja necessário um órgão que normatize e promova as
verificações e fiscalizações com o objetivo de minimizar as assimetrias informacionais de
grande impacto social. Conforme apresentando, no Brasil o órgão responsável por isso é o
INMETRO, diretamente, ou por meio de seus órgãos delegados.
Entretanto, para essa política pública ser eficiente é necessária uma estrutura estatal
que apresente um corpo técnico especializado e capaz de abranger toda sociedade, em suas
diversas relações, a qualquer tempo em qualquer lugar. É válido ressaltar que para se alcançar
essa estrutura, não é necessária uma maior tributação da sociedade, visto os custos para a
manutenção de tal estrutura podem ser suprimidos apenas pela aplicação compulsória das
taxas de verificação e das multas quando necessárias, ao se encontrarem inconformidades que
lesem o desenvolvimento econômico da referida sociedade.
Dessa maneira, essa estrutura não resulta dispêndios para o Estado, inclusive podem
contribuir para o superávit estatal, permitindo que outras áreas, por origem deficitárias, não
deixem de ser atendidas pelo Estado por falta recursos. Além disso, a Metrologia Legal
permite que a base de cálculo para tributação apresente uma maior exatidão, visto que a
maioria das relações se baseia em medidas e suas aplicações, e caso essas estejam
equivocadas, a base tributária também estará, e a sociedade será lesada.
Portanto, podemos concluir que a sociedade necessita da política pública de
metrologia, pois esta objetiva minimizar a assimetria informacional nas relações econômicas,
sejam entre empresas e/ou empresas e consumidores e até mesmo na relação tributador e
tributado. Além disso, ela não compete com o financiamento de outras políticas públicas e
permite que a sociedade tenha certeza na quantidade de suas aquisições e qualidade nos bens
consumidos. Entretanto, esse artigo se limitou a demonstrar a importância dessa política
pública para o desenvolvimento, mas ainda há que se estudar como ela realmente atua no

403
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

desenvolvimento econômico visando o bem estar social e nas eventuais falhas de Estado que
ela pode incorrer.

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Relational Contracting. New York: The Free Press, 1985.
i
Ao mesmo tempo em que as conclusões pessimistas eram tomadas sobre a capacidade dos países em
desenvolvimento de exportar produtos primários e perseguir o desenvolvimento conduzido pelas exportações,
conclusões otimistas eram expressas sobre a capacidade do setor público e através de um amplo arranjo de
políticas governamentais. Essa combinação de pessimismo externo e otimismo interno dominou o pensamento
da primeira geração. (Tradução do autor)
ii
Bureau Internacional de Pesos e Medidas
iii
Sistema de unidades, utilizado por mais de 100 países, com a nomenclatura e a simbologia das unidades e suas
regras de utilização.
iv
Exemplificando, podemos citar o novo regulamento técnico definido pela Portaria INMETRO nº 181, de
26/03/2015, em consulta pública, com exigências modernas de construção (hardware e software) de bombas
medidoras visando coibir ações fraudulentas.

406
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A Importância da Agricultura Familiar Local na Construção da Feira


Livre Municipal: O Caso de Arapiraca, Alagoas

Diego Monteiro dos Santos


Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Larysse Dayane Barbosa da Silva


Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Resumo: O objetivo deste trabalho foi demonstrar a importância da agricultura familiar para a
construção da feira livre. Para isso, iniciamos com uma extensa bibliografia a fim de entender
o que é a feira livre, bem como a agricultura familiar e onde elas se encontram. Em seguida
partimos para uma pesquisa de campo, onde foi entrevistado todos os feirantes que
comercializam produtos que fazem parte da cesta da agricultura familiar. A feira surgiu do latim
feria, que significa dia de festa e atualmente é um excelente meio de geração de renda para as
pessoas menos favorecidas. A agricultura familiar por sinal é a prática que se arrasta desde o
surgimento do homem e que atualmente vem recebendo diversos incentivos por parte do
governo federal através de políticas públicas. Feira e agricultura familiar se cruzam e
apresentam uma excelente saída para geração de renda local, além do grande aporte cultural
existente nas relações de troca. Foi constatado a forte presença da agricultura familiar na
construção da feira livre, onde aproximadamente 50% dos mais variados produtos
comercializados advinham da agricultura familiar local.
Palavras-chave: Agricultura familiar; feira livre; geração de renda.

1. INTRODUÇÃO
A feira é o principal ponto de inserção cultural e financeiro entre as comunidades
circunvizinhas. Nela encontramos de tudo um pouco, desde produtos importados até mesmo
produtos que saíram daquela pequena propriedade de “seu Zé” e divide espaço com todos os
outros de igual para igual. E é nesse sentido de igualdade e principalmente daquela pequena
propriedade de “seu Zé” que partimos rumo as descobertas de como a agricultura familiar está
presente na composição da principal e tradicional feira livre no município de Arapiraca, capital
do agreste Alagoano.
Arapiraca é um município recente que foi emancipado em 1924, e desde então vem se
formando através de bases agrícolas. Teve o fumo como seu principal produto nas décadas de
50 a 90, sendo conhecida nacionalmente e internacionalmente como “terra do fumo”.
Atualmente este produto tem perdido expressivo espaço, porém está sendo bem representado
pelos produtos da agricultura familiar que, diferentemente do fumo, são produtos voltados para
o consumo interno. E é essa economia voltada para dentro que vem consolidando, socialmente,
as bases alimentares das famílias em vulnerabilidade social, além de valorizar o produto da terra
com grande qualidade.
Este trabalho teve como base uma expressiva pesquisa bibliográfica a fim de
consolidar os conhecimentos sobre feiras e a agricultura familiar. Após os esclarecimentos
foram realizadas pesquisas na feira livre, que ocorre as segundas-feiras, no município de

407
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Arapiraca. Foram entrevistados todos os feirantes que comercializavam os produtos


considerados da agricultura familiar e cerca de 50% de todo comerciante adquiriam produtos
da agricultura familiar local, os demais também compravam da agricultura, porém de regiões
afastadas da cidade.
É importante notar a grande participação dos produtos locais que abastecem todo
município e demais cidades circunvizinhas, pois além de serem mais saudáveis e frescos,
devido à proximidade entre horta e feira, acabam gerando renda para uma parte da população
que sobrevive do que planta.

2. APORTES METODOLÓGICOS
O estudo se deu em Arapiraca, município do agreste alagoano, que tem um acelerado
crescimento de 8,5% ao ano, segundo indicadores do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística.
Com a finalidade de identificar as feiras livres existentes no município de Arapiraca,
entramos em contato com a prefeitura municipal, onde a mesma disponibilizou dados relevantes
que serviram para realizar o propósito e saber os dias que ocorrem essas feiras, assim como
também para apurarmos o número aproximado de feirantes existentes no município.
A partir desses dados foi feita uma análise das feiras existentes em Arapiraca,
concentrando a pesquisa na tradicional feira de segunda-feira, a mais popular da cidade, onde
foram realizadas entrevistas semiestruturadas a fim de identificar o número de barracas,
distinguindo as de agricultores que se encaixam na qualidade de agricultura familiar.
Dentro da feira livre, os pesquisadores puderam interagir tanto com os feirantes como os
clientes no momento em que realizavam as perguntas, que por se tratar de um ambiente
extremamente dinâmico, optamos por utilizar o método da entrevista semiestruturada
enriquecendo o trabalho.
A entrevista semiestruturada de acordo Triviños (TRIVIÑOS,1987 apud MANZINI,
2004): “A entrevista semiestruturada tem como característica questionamentos básicos que são
apoiados em teorias e hipóteses que se relacionam ao tema da pesquisa. Os questionamentos
dariam frutos a novas hipóteses surgidas a partir das respostas dos informantes”. Os dados
coletados foram organizados e após a etapa de coleta cruzou-se os resultados alcançados com
os dados bibliográficos postos nessa pesquisa.”

3. A FEIRA
A palavra feira deriva do latim feria, que significa dia de festa, sendo utilizada para
designar o local escolhido para efetivação de transações de mercado em dias fixos e horários
determinados. (SALLES, et al. 2011). Para Giannecchini, et al. (2007) a palavra “feira”
originalmente refere-se à isenção de impostos. A feira é livre, porque está livre de impostos, o
que garante o barateamento dos produtos indispensáveis à alimentação.
É impreciso sugerir uma data que marque o surgimento dessa prática tão antiga que é a
feira-livre. Para Almeida (2009) as feiras livres remontam o período da Antiguidade, onde
algumas fontes históricas dão conta da existência destas práticas entre os Astecas, os gregos e
os romanos. De acordo com Gonçalves e Abdala (2013) estas práticas de trabalho revelaram
seu auge no século XI, na Europa, onde os mercados locais se organizavam como vistas a suprir
a população com gêneros de primeira necessidade, o que evidencia que estas práticas surgiram

408
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

com as primeiras aglomerações, povoados, vilas e posteriormente cidades. Já no Brasil, segundo


Firmino (2014), a prática da feira-livre está intimamente relacionada com a “descoberta” do
Brasil por volta do sec. XVI, onde os colonizadores traziam consigo as experiências do
comércio e iam impondo na colônia, criando novas formas de comercializar em terras estranhas
a deles. Para Matos (2005), as primeiras feiras no Brasil se deram entre o século XVII e XVIII
com o crescimento demográfico e diversificação da economia, sendo responsáveis pela
formação e povoamento do interior brasileiro, onde posteriormente expandiram-se para todo o
território, desempenhando importantes papéis no abastecimento das populações com os mais
diversos produtos.
Na literatura internacional, as feiras livres são denominadas de marché (francês) ou
periodic market (inglês), que significam, respectivamente, mercado e mercado periódico. No
Brasil, as feiras livres se assemelham a esses mercados europeus, caracterizadas pelos produtos
expostos em barracas e vendidos em praças para o abastecimento local, mais que as feiras
propriamente ditas, eventos de negócios regionais, realizados anualmente, e denominadas na
Europa de foire (francês) ou fair (inglês). (FERRETTI, 2000).
As feiras livres constituem-se de uma intrincada teia de relações que configuram um
diversificado conjunto de ocupações, fluxos, mercadorias e relações sociais, caracterizando-se
primordialmente como uma atividade de trabalho informal essencialmente familiar, onde os
envolvidos na operacionalização são geralmente membros da família, gerando por sua vez uma
grande demanda de serviços diretos e indiretos como transporte, insumos, embalagens e
atendentes. (GODOY E ANJOS, 2007). Em sua estrutura as feiras são caracterizadas pela
predominância das instalações provisórias, sem loja física, onde cada feirante monta sua banca
ao lado de outros, o que o obriga a conceber estratégias que o distinga dos demais. A feira livre
é um canal que relaciona diretamente vendedor e consumidor final, permitindo que haja
interferência na barganha de preço e escolha do produto que fica exposto ao manuseio ou prova
e além da oferta de produtos a preços mais acessíveis. (COLLA et al., 2007; PINHEIRO; SÁ,
2007).
Segundo Mascarenhas e Dolzani (2008) a feira livre surge como iniciativa modernizante
para substituir o tradicional mercadejar colonial, ambulante e quitandeiro. Surge como símbolo
de ordem, higiene e progresso. A rua como espetáculo organizado, a estética colorida das
barracas padronizadas, sua disposição geométrica, cada feirante devidamente enquadrado com
sua numeração e seu lugar precisamente demarcado, os horários de início e término vigiados
rigorosamente pelo policiamento.
A partir de estudos, o que se constata é que atualmente, na maioria das feiras livres no
Brasil, a organização e higiene não acontecem de fato. De certa forma, isso é deixado de lado
pelos clientes fiéis que vão a feira, pois apesar das referências negativas, comparações e dos
problemas encontrados no espaço, muitas pessoas preferem realizar suas compras no ambiente
tumultuoso ao invés de se apoderarem dos modernos supermercados. Coutinho, et al. (2006)
esclarece que a variedade de produtos concentrada num mesmo lugar e os preços reduzidos são
dois grandes atrativos da feira, que possibilitam o consumo nas camadas da população de menor
poder aquisitivo. Já Machado e Silva (2005) diz que as feiras-livres continuam sendo um dos
principais canais para distribuição de alimentos, principalmente hortifrutigranjeiros, pois, para
os consumidores, os alimentos comprados na feira são menos prejudiciais à saúde por utilizarem
menos agrotóxicos, além de serem mais frescos. Mas as feiras precisam passar por mudanças e
atender exigências sanitárias e a busca por produtos socialmente e ambientalmente corretos. De
acordo com Ribeiro et al. (2005) os consumidores dizem que nenhum estabelecimento de
verdureiro profissional, ou sacolão, substitui a feira, porque é nela que encontram os produtos
que fazem parte de seus costumes alimentares.
De certa forma, em alguns meios, de acordo com Mascarenhas e Dolzani (2008), hoje a
feira recebe o mesmo tratamento pejorativo com o qual seus adversários comerciais foram

409
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

taxados há cento e um anos atrás. Anacrônica, atrasada e inadequada são alguns dos adjetivos
que agora lhe cabe. A feira não acompanhou o ritmo frenético da modernização, e ficou quase
como uma gota cristalizada no tempo corrido do progresso. Perdendo espaço para os
supermercados que ficaram cada vez maiores, mais sortidos, mais seguros, higiênicos e
confortáveis, modalidade que cai como uma luva no apressado tempo do indivíduo de nossa
época. [...] Podemos dizer, talvez, que a feira livre seja uma filha rebelde da modernidade que
insiste em desafiá-la. Porém, apesar do cenário descrito, ainda possuem grande
representatividade no universo urbano contemporâneo e devem ser reconhecidas e valorizadas,
na medida em que continuam a impulsionar práticas cotidianas de trabalho de grupos populares
e grupos subalternos.
Conforme pontua Max Weber, em “Conceitos e categorias da cidade”, os mercados e as
feiras foram fundamentais para o desenvolvimento das cidades modernas, pois representavam
uma nova forma de aglomeração humana, a partir da atividade comercial. (GIANNECCHINI,
et al. 2007).
A feira insere-se no que o geógrafo Milton Santos chama de “circuito inferior” da
economia. Segundo o autor, o espaço urbano estaria estruturado em dois circuitos, decorrentes
do impacto da modernização. O “circuito superior” seria constituído pelos “bancos, comércio
e indústria de exportação, indústria urbana moderna, serviços modernos, atacadistas e
transportadores”. Já o inferior, “não moderno”, seria composto “por formas de fabricação “não-
capital intensivo”, pelos serviços não modernos fornecidos ‘a varejo’ e pelo comércio não
moderno e de pequena dimensão” (SANTOS, 1979 apud SATO, 2006).
Dalenogare e Alberti (2011) dizem que as feiras livres, para além da simples
comercialização, compra e venda de mercadorias, devem ser pensadas enquanto espaços
educativos e pedagógicos não formais de aprendizagem, que revelam a dimensão educativa das
cidades e da relação do trabalho com a formação humana. Desta forma, tais lugares devem ser
compreendidos, também, como espaços privilegiados de educação popular e de produção
cultural, os quais trabalhadores e trabalhadoras criam e recriam, em suas práticas cotidianas,
diferentes saberes do trabalho.

A Feira Livre em Arapiraca


Arapiraca é um município brasileiro pertencente ao Estado de Alagoas, Região Nordeste
do país, e faz parte da mesorregião do agreste alagoano. O nome Arapiraca vem de uma árvore
da família das leguminosas Mimosáceas – Piptadênia (Piteodolobim). Uma espécie de angico
branco, comum no Agreste e no Sertão. Segundo uma tradição popular, a palavra Arapiraca tem
origens indígenas e significa: “ramo que arara visita”. Como distrito, Arapiraca esteve
subordinada, sucessivamente, a Penedo, Porto Real do Colégio, São Brás e Limoeiro. Foi
elevado à categoria de município em 30 de outubro de 1924, constituindo-se de territórios
desmembrados de Palmeira dos Índios, Porto Real, São Brás, Traipu e Limoeiro.
Neste município a feira está intimamente ligada a origem do local, desse modo ela é
considerada um patrimônio histórico e cultural do território, pois ela retrata uma cultura
legitimamente nordestina e também responsável, juntamente com a cultura fumageira, por ter
desencadeado um progresso que acarretou a emancipação da cidade em 1924. Tem-se notícias
de que a formação da feira livre neste município se deu por volta de 1884, período em que a
cidade ainda pertencia a Limoeiro de Anadia, tendo como seu fundador Esperidião Rodrigues,
sócio de Florêncio Apolinário na primeira casa de negócios do município.
Para Silva (2006) o surgimento das maiorias das cidades advém de algum tipo de
comércio entre grupos. Nas palavras de Vedana (2004) representavam o embrião de uma nova
aglomeração humana a partir da atividade comercial. Neste contexto, Caio Prado (1986) explica

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

que na Baixa Idade Média, as cidades nasceram e se desenvolveram a partir de uma função
econômica, mesmo quando eram as antigas cidades romanas que readquiririam vida urbana.
Eram cidades de mercadores que viviam em função do comércio. As cidades nasceram ou
renasceram do desenvolvimento do comércio e da agricultura na Europa, que garantia o
abastecimento desses centros urbanos. Formaram-se juntos aos portos ou ao longo das rotas
comerciais, porém as mais prósperas estavam próximas de regiões agrícolas férteis e de
tecnologia avançadas.
De acordo com Áurea Dantas, da Unidade de Atendimento Coletivo Comércio e
Serviços do Sebrae em Alagoas, Arapiraca se tornou referência no estado porque foi a
primeira cidade a regulamentar a Lei de Funcionamento das Feiras Livres, em parceria com
a instituição de apoio às micro e pequenas empresas e a prefeitura, e conquistou um
diferencial por meio do investimento em capacitações, consultorias e inovação.
De acordo com site da Prefeitura Municipal de Arapiraca, sua localização geográfica
privilegiada interliga as demais regiões geoeconômicas do Estado e caracteriza-se como polo
de abastecimento agropecuário, comercial, industrial e de serviços. Arapiraca atende às
necessidades regionais, minimiza as distâncias entre os centros de abastecimento e potencializa
o desenvolvimento da região.

4. AGRICULTURA FAMILIAR
A agricultura familiar apresenta-se como elemento insubstituível capaz de promover os
objetivos de inclusão social e redução das desigualdades econômicas e políticas reinantes no
campo. (GODOY E ANJOS, 2007). Segundo Wanderley (2001) a agricultura familiar não é
uma categoria social recente, nem a ela corresponde uma categoria analítica nova na sociologia
rural. No entanto, sua utilização, com o significado e abrangência que lhe tem sido atribuído
nos últimos anos, no Brasil, assume ares de novidade e renovação.
Desse modo, em sua essência a Agricultura familiar remonta apenas a ideia de
subsistência das unidades familiares produtoras dos alimentos. No entanto, essa realidade é
modificada devido a necessidade de obter condições financeiras para adquirir outros bens de
necessidade. O excedente produzido passou a ser comercializado nas feiras livres e é fator de
aumento na renda dessas famílias. De acordo com Guanziroli, et al. (2001) a agricultura familiar
é de grande importância para a revalorização do meio rural, uma vez que tem demonstrado unir
a eficiência econômica com a “eficiência social”, contribuindo para a construção de melhores
condições de vida.
De acordo com Gonçalves e Souza (2005), a definição de propriedade familiar se encontra
na Legislação Brasileira no inciso II do artigo 4º do Estatuto da Terra, estabelecido pela Lei nº
4.504 de 30 de novembro de 1964, onde diz:
“Propriedade familiar: o imóvel que, direta e pessoalmente explorado
pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-
lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada
para cada região e tipo de exploração, e eventualmente trabalhado com a ajuda
de terceiros”.
E na definição da área máxima, a lei nº 8629, de 25 de fevereiro de 1993, estabelece
como pequena os imóveis rurais com até 4 módulos fiscais e, como média propriedade aqueles
entre 4 e 15 módulos fiscais. (TINOCO, 2008).
O termo agricultura familiar pode obter diferentes significados, dependendo do contexto
no qual é abordado. No campo político, a título de exemplificação, o termo significaria um
conjunto de produtores agregados via produção e gestão realizadas pelos membros da família.
(NEVES, 2007 apud CONCEIÇÃO et al, 2009).

411
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Já a definição de agricultores familiares, segundo Guanziroli et al. (2001), são os


produtores que trabalham de acordo com as seguintes condições: a direção dos trabalhos
realizados no estabelecimento deve ser feita pelo produtor rural e a mão-de-obra familiar
utilizada deve ser superior à contratada. Olalde (2004) esclarece que muitas terminologias
foram empregadas historicamente para se referir ao mesmo sujeito: camponês, pequeno
produtor, lavrador, agricultor de subsistência, agricultor familiar. A substituição de termos
obedece, em parte, à própria evolução do contexto social e às transformações sofridas por esta
categoria, mas é resultado também de novas percepções sobre o mesmo sujeito social.
Segundo Schneider (1999), além das estratégias de ocupar a mão-de-obra familiar em
atividades agrícolas e não-agrícolas, os agricultores familiares frequentemente conciliam a
mão-de-obra familiar com a contratada (temporária ou permanente) nas atividades produtivas
dentro das propriedades, apenas quando há carência de mão-de-obra familiar, sendo que isso
geralmente ocorre em casos como quando os filhos não estão em idade de participar das
atividades agrícolas, a mão-de-obra familiar já perdeu seu potencial produtivo (predominância
de idosos) e quando a propriedade pratica atividade produtiva altamente intensiva em mão-de-
obra.
Silva e Jesus (2010) esclarecem que o processo de formação do campesinato dentro de
um contexto histórico de formação do Brasil rural, junto ao processo de modernização da
agricultura a partir da década de 1950, e mais recentemente os processos de globalização
deflagrado nos anos 1990, tem trazido ao cenário atual mudanças nos padrões de funcionamento
das unidades produtivas de base familiar, assim como a relação dessas unidades com a
economia e com a sociedade. Em harmonia com Mattei (2014) pode-se dizer que até o início
da década de 1990 não existia nenhum tipo de política pública, com abrangência nacional,
voltada ao atendimento das necessidades específicas do segmento social de agricultores
familiares, o qual era, inclusive, caracterizado de modo meramente instrumental e bastante
impreciso no âmbito da burocracia estatal brasileira. No entanto, a partir dessa década o cenário
brasileiro mudou, e o interesse pela agricultura familiar se tornou evidente. Olalde (2004) diz
que este interesse se materializou em políticas públicas, como o PRONAF (Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura Familiar) e na criação do MDA (Ministério do
Desenvolvimento Agrário). No entanto, segundo Denardi (2001) a criação de políticas públicas
voltadas para a agricultura familiar e a Reforma Agrária resultou de reivindicações advindas de
trabalhadores rurais e de grupos sociais organizados ligados à causa. Apesar dos programas não
se pode afirmar que este segmento tenha sido reconhecido como prioridade pelos governos.
A criação do PRONAF, para Mattei (2014) representa a legitimação, por parte do Estado
brasileiro, de uma nova categoria social – os agricultores familiares – que até então era
praticamente marginalizada em termos de acesso aos benefícios da política agrícola, bem como
designada por termos como pequenos produtores, produtores familiares, produtores de baixa
renda ou agricultores de subsistência. Segundo o autor em menos de 15 anos o PRONAF foi
implementado em todas as grandes regiões e unidades da federação, encontrando-se presente,
atualmente, em praticamente todos os municípios do país.

5. RESULTADOS
É notável a importância da feira livre para qualquer região, pois ela é fonte de sustento de
inúmeras famílias que acabam beneficiando os fornecedores e assim constitui uma cadeia de
geração de renda. Não muito distante no contexto da geração de renda, a agricultura familiar
vem se fortalecendo através de políticas públicas para também se fortalecer quanto atividade
geradora de emprego e renda. As feiras livres têm desempenhado um papel muito importante
na consolidação econômica e social, especialmente da agricultura familiar sob o ponto de vista
do feirante, representando também um espaço público, socioeconômico e cultural,

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

extremamente dinâmico e diversificado sob o ponto de vista do consumidor. (GODOY E


ANJOS, 2007).
Feira e agricultura familiar são dois temas intrinsicamente ligados e a cada dia se tornam
mais íntimos. No Nordeste, é comum as pessoas comprarem hortaliças, legumes, carnes e outros
tantos produtos em feiras livres. Nas pequenas cidades do interior, elas estimulam o
desenvolvimento econômico e social, fomentando, principalmente, a economia local.
(BOMFIM E GOMES, 2014).
Em Arapiraca analisamos as feiras livres que estão espalhadas por toda cidade e sua
relação com a agricultura familiar. De acordo com um levantamento feito pelo SEBRAE a feira
livre do município se destaca pela organização e seu faturamento mensal de aproximadamente
R$ 600 mil, valor considerado significativo para um município de pequeno-médio porte como
Arapiraca. Abaixo, um levantamento dos dias que ocorrem as feiras na cidade e sua respectiva
localidade:
FEIRA BAIRRO DIA DA SEMANA
Tradicional Centro e Baixão Segunda-feira
Fumageira Primavera Domingo
Baixão Baixão Domingo
Brasília Brasília Quinta-feira
Itapoã Itapoã Sábado
Rua São Paulo Senador Teotônio Vilela Domingo
Jardim Esperança Jardim Esperança Domingo
Canafístula Canafístula Domingo
Jardim Tropical Jardim Tropical Domingo
Feira Fixa da Fumageira Primavera Domingo a Domingo
Feira do Atacado Centro Quartas e Quintas
Tabela 1 Dias de feiras. Fonte: Site da Prefeitura Municipal

Centramos nossas entrevistas semiestruturadas na principal e maior feira-livre do agreste


alagoano, a tradicional “feira de segunda-feira”.
Como nosso objetivo se baseava na relação existente entre feirantes e agricultores
familiares, delimitamos ainda mais nossa pesquisa de campo para aqueles que atuam na venda
de produtos da agricultura familiar. O Governo Federal ampliou o leque de possibilidades para
os agricultores escoarem sua produção, que seria através dos vários programas, como por
exemplo o PAA – Programa de Aquisição de Alimentos – que é a aquisição, por parte do
governo, de produtos da agricultura familiar a fim de suprir as famílias que se encontram em
situação de insegurança alimentar e nutricionais.
Mesmo com essa ampliação, algumas famílias não conseguiram se encaixar nesses
programas e tiram sustento de sua casa com a venda direta de seus produtos nas feiras livres.
Para Ribeiro et al. (2005), à primeira vista, as feiras parecem um mercado pequeno, entretanto,
elas são excelentes para os agricultores, consumidores e para o comércio urbano, que em busca
de atender as necessidades dos clientes comercializam grande diversidade de produtos. O seu
impacto no comércio costuma ser maior em pequenos municípios.
Nos levantamentos identificamos a quantidade de agricultores que se encaixam como
agricultores familiares e são devidamente cadastrados no Ministério do Desenvolvimento
Social e Agrário. Os números seguem abaixo:
Localidade Quantidade de agricultores familiares
Brasil 4.366.267
Nordeste 2.187.131

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Alagoas 111.750
Arapiraca 3.966
Tabela 2 Quantitativo geral de pessoas consideradas agricultoras familiares e devidamente cadastradas. Fonte: Ministério
do Desenvolvimento Agrário.

De acordo com os dados acima é possível notar que aproximadamente 50% do total de
agricultores familiares cadastrados nacionalmente encontram-se no Nordeste Brasileiro,
reiterando a teoria de que a região ainda é bastante agrária e sua renda ainda é dependente do
que a terra pode dar.
Em Arapiraca esse número corresponde a uma parcela de aproximadamente 1.81% da
população local, mas esse percentual não retrata toda a realidade, pois muitos agricultores
continuam na informalidade e outros possuem uma pequena área de terra, produzindo apenas
para o próprio sustento.
Saindo do campo e entrando no meio comercial, na feira livre, encontramos os seguintes
resultados:
Total de barracas entrevistadas 71 barracas
Barracas da agricultura familiar local 47 barracas
Tabela 3 Quantidade de barracas entrevistadas. Fonte: autoria própria.

Constatamos a presença de 71 barracas que comercializam os produtos da agricultura


familiar, mas apenas 47 atendiam os requisitos que eram ter suas terras dentro do município de
Arapiraca. Os entrevistados souberam responder a origem dos produtos e muitos recebiam os
mesmos através de pessoas conhecidas como atravessadores, que são comerciantes que
recolhem diretamente da fonte os produtos agrícolas e comercializam para os feirantes por um
preço acessível. Existem diversos pontos a serem abordado quanto aos atravessadores, mas não
adentrarei nessa questão, por não ser pertinente ao trabalho.
Coentro Feijão Pepino Beterraba Coco Berinjela
Manga Quiabo Brócolis Cenoura Couve Pimentão
Espinafre Banana Acerola Abacate Maxixe Goiaba
Batata doce Acelga Caju Seriguela Abobora Alface
Cebolinha Pimenta Graviola Giló Abacaxi Mamão
Limão Chuchu Jabuticaba Inhame Macaxeira Melancia
Tabela 4 Produtos da agricultura familiar. Fonte: autoria própria.

Todos os produtos listados acima pertencem ao rol disponibilizado na feira livre de


Arapiraca e que vem direto da agricultura familiar local e são vendidos pelos próprios familiares
ou por terceiros que adquirem pelos atravessadores.
Se tratando de questões financeiras, todos os entrevistados afirmaram que a renda obtida
ao final do dia com as vendas era destinada para subsistências da própria família, para comprar
produtos que a terra particular não fornece.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo notada expressividade da agricultura familiar, principalmente no nordeste
brasileiro, o município de Arapiraca-AL conta com essa importante atividade que tem permitido
famílias, comunidades, e a própria cidade se sustentar. Essa atividade é de fundamental

414
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

importância não só no contexto familiar, mas num aspecto que perpassa as fronteiras de
propriedade privada.
E é na feira livre que toda essa produção é escoada e transformada em capital para a
aquisição de diversos outros produtos que geram sustentabilidade para o município. Certo
também que as políticas públicas têm papel fundamental nessa propagação, pois é um forte
estímulo para a produção por famílias que tiram da terra sua única fonte de renda. O trabalho
retrata bem essa importância, tanto de um para o outro como vice versa. A feira auxilia a
agricultura familiar e seus agricultores, a agricultura familiar sustenta a feira que é
disponibilidade para toda sociedade se beneficiar e essa cadeia de relacionamentos é que precisa
ser mantida e sobretudo, aperfeiçoada.

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8. ANEXOS/APÊNDICE

Entrevista Semiestruturada

Sexo: M () F ()

1. É feirante cadastrado na Prefeitura?


2. Qual o tipo de produto que você vende?
3. Você é o proprietário da terra que gerou os produtos?
4. Qual o local de onde vem os produtos?
5. A feira é sua única fonte de renda?

417
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

O contexto municipal da política de emprego: a particularidade de Juiz de


Fora
Nelson Machado Pinho Junior
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Edneia Alves de Oliveira


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Naiane Alves dos Santos


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

RESUMO

Este artigo é resultado de investigação sobre as políticas de emprego no município de Juiz de


Fora entre os anos de 2015 e 2016. Os objetivos são os de apreender a dinâmica da política de
emprego na lógica da política social no Brasil; compreender as mudanças em curso no mundo
do trabalho, no município de Juiz de Fora; explorar os programas, projetos e políticas
desenvolvidas na região para geração de emprego e renda; bem como analisar os impactos dessa
política junto à população usuária. Trata-se de uma pesquisa documental, realizada a partir de
coleta de material disponível nos sítios oficiais do governo municipal e das instituições
responsáveis pela implementação da política de geração de emprego e renda, e de visitas
sistemáticas às mesmas, a fim de conhecer os diversos programas, projetos e políticas
desenvolvidas, assim como o público-alvo destas ações. Após estudo dos diversos programas
existentes no município, pode-se perceber que os programas em questão são caracterizados, em
sua maioria, não pela geração de emprego, mas por garantia de uma renda mínima para seu
público-alvo, reforçando características assistencialistas na política de emprego.

PALAVRAS-CHAVE: Desemprego. Políticas públicas. Programas de emprego.

ABSTRACT

This article is the result of research about the employment policies in Juiz de Fora city between
the years 2015 and 2016. The objectives are to comprehend the dynamics of employment policy
in the logic of social policy in Brazil; understand the ongoing changes in the working world, in
the city of Juiz de Fora ; explore the programs, projects and policies developed in the region to
generate employment and income; as well as analyze the impact of this policy among the the
user population. This is a documentary research, realized from collection of material available
on the official websites of the municipal government and of the responsible institutions for
implementing the generation of the employment and income policy, and systematic visits to
them in order to know the different programs, projects and policies developed, as well as the
target audience of these actions. After studying the many existing programs in the city, it can
be seen that these programs are characterized, in most cases, not for employment creation, but
for guarantee a minimum income for its target audience, reinforcing assistencialist
characteristics in the employment policy.

KEYWORDS: Unemployment. Public policies. Employment programs.

1 INTRODUÇÃO

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Esta pesquisa é um estudo documental sobre as políticas de geração de emprego e renda


desenvolvidas nos últimos cinco anos no município de Juiz de Fora. Consideramos esse um
tema pertinente pelo fato de que o desemprego é hoje um dos maiores problemas sociais da
humanidade. Seu aumento se deu a partir do esgotamento do padrão fordista/keynesiano; que
tornou evidente a crise estrutural do capital.
Nos anos 1990 o processo de reestruturação produtiva introduzia novas tecnologias,
aumentando o trabalho morto e diminuindo ainda mais a oferta de empregos. Ao mesmo tempo
as reformas estruturais também afetaram os trabalhadores. Para Oliveira (2012), os maiores
afetados pelo ajuste estrutural foram, sem dúvida, os trabalhadores. As medidas de contenção
dos gastos públicos, associadas às mudanças no padrão organizativo das empresas provocaram
uma perda do poder aquisitivo dos trabalhadores e um aumento irreversível do desemprego,
ampliando a superpopulação relativa e gerando uma massa de trabalhadores “supérfluos” e
“desnecessários” ao processo produtivo.
A partir de então as agências multilaterais delinearam estratégias para reversão do
quadro de desemprego que previam o investimento em programas de geração de emprego e
renda tanto para países centrais quanto periféricos. No caso do Brasil, consideramos que as
políticas de emprego e renda têm se tornado um mecanismo paliativo de responder ao endêmico
problema do desemprego nos últimos anos. Seguindo as orientações das agências multilaterais,
estas políticas têm primado por difundir uma lógica de culpabilização dos sujeitos pela sua
condição, apostando em saídas individuais como a defesa do empreendedorismo, da (re)
qualificação ou ainda oferecendo renda aos mais pobres, em especial aos jovens da periferia,
através de programas de renda, que apenas reforçam o legado assistencialista da política social
nos países da periferia.
Nestes países, de acordo com Oliveira (2012), as políticas de emprego objetivam
mascarar a realidade do desemprego como resultado da própria dinâmica de acumulação do
capital, na sua fase atual, quando se agudiza o processo de reestruturação produtiva e a
introdução de novas tecnologias, aumentando o trabalho morto e fazendo ampliar de forma
significativa a superpopulação relativa, sobretudo na sua parte estagnada. É sobre este segmento
da classe trabalhadora que se destina as políticas de emprego, pois são os mais afetados pela
dinâmica da acumulação.
Diante do exposto, buscamos compreender como são implementadas as políticas de
emprego no município de Juiz de Fora por considerarmos a importância de se ultrapassar os
limites da reprodução ideológica do assistencialismo e da naturalização dos problemas sociais.

2 A POLÍTICA DE EMPREGO EM JUIZ DE FORA

O trabalho sempre representou um elemento central na vida humana. Desde o início


da civilização, homens e mulheres sempre tiveram no trabalho um elemento de organização
social, determinando a vida nas comunidades. Esta constatação permitiu a Marx (1988)
considerar que uma sociedade baseada na figura de Robinson Crusoé é inviável, pois elimina o
caráter coletivo do trabalho e, consequentemente, seu elemento social. Ou seja, para esse autor
o trabalho se configura como a constituição do ser social, um momento marcado pela ruptura
do seu estágio natural, permitindo que homens e mulheres modifiquem a natureza extraindo
dela coisas úteis e ao mesmo tempo transformando sua consciência. Pela sua ação teleológica,
o ser social se diferencia dos demais animais, sendo capaz de pensar e elaborar o produto de
seu trabalho antes de sua construção. Por se constituir como um ato histórico, homens e
mulheres transformam não somente os objetos, mas transformam-se a si mesmo, possibilitando
a emancipação humana. Este caráter libertador do trabalho foi sendo, no decorrer da história,
solapado e o trabalho foi se transformando em objeto de subordinação de um homem sobre
outro, como nos revela os longos períodos de escravidão e de servidão, permitindo a riqueza de

419
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

determinados grupos sociais e o entendimento do trabalho, principalmente o trabalho manual,


como elemento de inferioridade. Nas sociedades burguesas a exploração do trabalho se torna
mais evidente, apesar da aparente relação de liberdade estabelecida pela compra e venda da
força de trabalho. Não é por acaso que esta forma de organização social tem gerado um debate
profícuo sobre a categoria trabalho, um debate bastante atual, mas que os teóricos da sociedade
burguesa procuram naturalizar, numa tentativa de situar o trabalho como uma atividade
meramente laborativa, sem nenhuma correlação histórica e conflitual.
Para Marx (1988), o trabalho é fundamental no processo de produção da riqueza, e
Neste percurso analítico, Marx buscou explicitar a constituição do trabalho como mercadoria
e, portanto, como produtor de valor de troca. Como o objetivo central da sociedade capitalista
é a geração de riqueza via produção de mercadorias, se torna fundamental que esta mercadoria
seja transformada em objeto de troca e de lucro. É necessário que ultrapasse o seu caráter apenas
de valor de uso para se tornar uma mercadoria com caráter de valor assegurando a acumulação
de capital via apropriação de mais-valia sobre o trabalho gratuito. Este decréscimo dos fatores
subjetivos em detrimento dos fatores objetivos amplia a acumulação de capital, pois tende a
aumentar a parte do capital constante à custa do capital variável. Este momento é caracterizado
pela expansão da concentração e centralização do capital.
Para além da concentração/centralização, a acumulação vai impor uma dinâmica
peculiar na relação capital constante e capital variável. Ou seja, o progresso da acumulação
amplia a composição orgânica do capital e diminui relativamente a parte do capital variável
empregado na produção capitalista. Quanto mais o capitalista investe em meios de produção,
menor será o emprego da força de trabalho, ou da parte variável do capital. Ao contrário quanto
maior a grandeza do capital global menor a incorporação de força de trabalho. Isto não significa
que a produção tende a diminuir, ela simplesmente passa a depender menos da força de trabalho
e mais da utilização de meios de produção.
É necessário que a acumulação do capital global seja acelerada para absorver um
número adicional determinado de trabalhadores ou mesmo, em virtude da constante
metamorfose do capital velho, para continuar ocupando os trabalhadores que se encontram
desempregados. Ademais, essa acumulação crescente e a própria centralização causam novas
mudanças na composição do capital ou nova redução acelerada de sua parte variável em relação
à constante. Essa redução relativa da parte variável do capital, acelerada com o aumento do
capital global, e que é mais rápida do que este aumento, assume, por outro lado, a aparência de
um crescimento absoluto da população trabalhadora muito mais rápido que o do capital variável
ou dos meios de ocupação dessa população (MARX, 1988, p.731).
A acumulação capitalista, portanto sempre necessita da geração de uma força de
trabalho desnecessária, excedente relativamente, para além das suas necessidades de expansão.
Este movimento de expulsão ou de inserção dos trabalhadores depende do dinamismo do
processo de acumulação. Em alguns momentos a força de trabalho ocupada será mais
demandada em face da expansão de alguns ramos da produção, ora esta força de trabalho será
reduzida pelo emprego de mais tecnologia. O que é interessante destacar é o fato de que neste
modo particular de produção, o trabalhador é quem vai produzir os mecanismos de constituição
de sua própria “exclusão”. Isto é, ao “produzir a acumulação de capital, produz em proporções
crescentes os meios que fazem dele, relativamente uma população supérflua” (MARX, 1988,
p. 732).
Desde o início da industrialização, o capital vem aprimorando suas técnicas para extrair
maior produtividade do trabalho sem despender maior quantidade de capital. Por isto, em alguns
momentos, lançam mão de estratégias para extrair maior produtividade a custos mais baixos
como, por exemplo, substituição da força de trabalho masculina pela feminina ou infantil,
aumento do ritmo e da intensidade do trabalho, utilização de força de trabalho menos
qualificada, a introdução de máquinas, etc.

420
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Esta relação é mais visível quando se trata da substituição dos homens pelas máquinas.
Ao contrário dos mecanismos elencados anteriormente, o uso capitalista da maquinaria expulsa
homens, mulheres e crianças. Neste caso não há a substituição de uns pelos outros, mas de todos
pelas máquinas, afetando a lei geral da oferta e da procura e provocando uma concorrência entre
os próprios trabalhadores que passam a disputar entre si as vagas oferecidas no mercado de
trabalho, garantindo a formação do exército industrial de reserva ou da superpopulação relativa.
Com o progresso da acumulação, a massa de riqueza social se amplia formando um quantum
de capital adicional que precisa ser investido em outros setores produtivos. Mas estes novos
investimentos devem ter à disposição grandes massas de trabalhadores para não comprometer
os outros ramos da produção e manter os níveis dos salários baixos. Isto só pode ser possível
com a formação da superpopulação excedente. A indústria moderna necessita deste movimento
de transformação da massa de trabalhadores em desempregados ou em parcialmente
empregados. Ou seja, produzir uma população excedente é elemento fundamental para
responder às necessidades de expansão do capital.
Porém, a superpopulação relativa não é uma categoria monolítica, estável, onde se
incluem determinados segmentos de trabalhadores e excluem-se outros. Pelo contrário, todo e
qualquer trabalhador é parte dela durante o período em que está fora do mercado de trabalho.
Lembramos que em nenhum momento da história do modo de produção capitalista existiram
mecanismos de garantia plena de emprego para o trabalhador no mercado de trabalho. Sua
inserção ou exclusão do mercado de trabalho depende dos momentos de crise e/ou de expansão
do processo de industrialização, da pressão dos trabalhadores organizados ou ainda das políticas
governamentais adotadas pelos governos dos diferentes países. Porém, para além destas
situações, Marx vai definir outras três formas em que a superpopulação relativa se manifesta.
A primeira delas ele chama de flutuante. Nesta forma, o número de trabalhadores das fábricas,
manufaturas, usinas siderúrgicas e minas pode aumentar ou diminuir, aumentando o número de
empregados, porém não na mesma razão do aumento da produção.
A outra forma seria a constante migração do campo para a cidade, principalmente
quando a agricultura introduz técnicas capitalistas e expulsa milhares de trabalhadores rurais
que, por não encontrarem postos de trabalho na agricultura se voltam para as cidades em busca
de oportunidade de trabalho, formando um excedente de trabalhadores também na área rural.
Por último, tem-se a forma estagnada da superpopulação relativa representada pelos
trabalhadores irregulares, cuja ocupação não se insere nem na grande indústria nem na
agricultura. São os trabalhadores supérfluos, precários e temporários, mas que contribuem para
a lógica da acumulação, pois pressionam o contingente de trabalhadores excedentes para cima.
A superpopulação relativa estagnada divide-se em três grupos, os aptos para o trabalho, os filhos
e órfãos dos indigentes e os incapazes para o trabalho. Nesta última categoria encontram-se as
viúvas, idosos, deficientes físicos e mentais, os doentes e os mutilados.
É nesta fração da classe trabalhadora que se expande com maior rapidez a
pauperização e a miséria. Mas é também parte essencial para o aumento da riqueza capitalista.
Esta é para Marx, a “lei geral, absoluta, da acumulação capitalista” (1988, p.747). O aumento
do pauperismo, portanto, está na razão direta da expansão da acumulação da riqueza. A
pauperização atinge os trabalhadores inseridos no mercado de trabalho, haja vista que a relação
salarial é sempre estabelecida como necessária a suprir as necessidades básicas do trabalhador
e de sua família. Por isto, paralelo ao pauperismo dos excluídos do mercado de trabalho, assiste-
se a um processo de precarização das condições de vida da população trabalhadora. O aumento
da produtividade de trabalho produz uma maior pressão em torno dos trabalhadores
precarizando suas condições de existência. Na medida em que o capital acumula faz-se
necessário piorar as condições de vida do trabalhador, não importa sua remuneração. Ao extrair
maior produtividade do trabalho, o capitalista transforma o trabalhador em fragmentos de ser

421
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

humano, em apêndice da máquina. O trabalho passa a ser entendido como sofrimento, não
importa se o trabalho é mais ou menos remunerado.
É sobre esta parcela da população que são direcionadas as políticas de emprego. Estas
podem ser classificadas em dois tipos. As políticas que visam prestar assistência financeira ao
trabalhador desempregado são chamadas de políticas passivas, como o seguro-desemprego e o
adiantamento de aposentadorias. As políticas ativas, por sua vez, são aquelas destinadas a
demandas de trabalho com ações na qualificação profissional.
Nos países centrais, sobretudo nos que adotaram a política de bem-estar social, as
políticas passivas foram mais frequentes, impedindo por algum tempo o aumento do
desemprego. Nos países periféricos, ao contrário, o incentivo ao empreendedorismo, a
flexibilização de leis trabalhistas, mudanças nos tipos dos contratos e expansão da terceirização
foram mais frequentes.
O Estado brasileiro, associado ao legado do trabalho negro e escravo e aos longos
períodos de ditadura civil e militar, desenvolveu uma legislação trabalhista excludente e
corporativa, favorecendo ainda uma estrutura sindical atrelada aos interesses do Estado.
Conforme Oliveira (2012), o resultado foi a inexistência de um sistema de proteção social para
os excluídos do mercado de trabalho e de uma política salarial que permitisse a inserção via
mercado de consumo.
No caso de Juiz de Fora, as informações apresentadas foram obtidas através de
correspondência eletrônica, consulta a documentos institucionais de base legal e site dos órgãos
municipais responsáveis pela gestão e execução das políticas de emprego e renda na cidade, são
elas: a Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Geração de Emprego e Renda
(SDEER) e a Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS)
De acordo com o site da Prefeitura de Juiz de Fora, a SDEER, regulamentada pelo
Decreto nº 11.561, de 15 de maio de 2013 é subordinada diretamente ao Chefe do Poder
Executivo, dotada de autonomia administrativa, orçamentária e financeira. Possui 19
atribuições, sendo a primeira “formular e coordenar a política municipal de desenvolvimento
econômico, trabalho e geração de emprego e renda e supervisionar sua execução, em sua área
de competência” (JUIZ DE FORA, 2013).
Em visita à referida Secretaria, a assessoria de comunicação nos informou que a SDEER
oferece um site de empregos, programas de orientação para o mercado de trabalho e de
incentivo ao empreendedorismo. Apesar de termos solicitado, não tivemos acesso à
documentação referente aos projetos dos programas. Via e-mail, a assessora de imprensa
encaminhou links com notícias sobre os serviços oferecidos, mas sem detalhar o funcionamento
dos mesmos, assim como os objetivos, o público atendido, os resultados obtidos, entre outras
informações. Os programas aos quais nos referimos são: JF Orienta, vinculado ao Portal JF
Empregos, e o Você+empreendedor. O mesmo ocorreu quando buscamos obter informações
sobre o funcionamento do “Conselho Municipal de Trabalho, Emprego e Geração de Renda”
normatizado pela Lei nº 13.152, de 18 de junho de 2015. Apesar da existência do Conselho,
não conseguimos constatar se seu funcionamento vem sendo utilizado para subsidiar a política
de emprego e renda no município.
O JF Orienta vem no sentido de difundir conhecimento sobre as exigências de uma boa
apresentação ao mercado de trabalho, como parte da aprendizagem profissional. Constitui-se
em um projeto que objetiva levar informações e orientações a respeito de mercado de trabalho,
postura profissional, elaboração de currículos e entrevistas de emprego. Tais conhecimentos
são difundidos através do Portal JF Empregos e em eventos ligados à SDEER (JUIZ DE FORA,
2015; s/a).
O Portal JF Empregos se constitui em um site oficial da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF)
no qual são disponibilizadas informações sobre vagas disponíveis no mercado de trabalho. No
portal é possível ao usuário acessar informações sobre ofertas de emprego, estágio, cadastrar

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

currículos, bem como anunciar postos de trabalho e pesquisar por profissionais para ocupá-las.
Vale ressaltar que o serviço é gratuito e aberto a todos os interessados. As pessoas com
dificuldade de acessar o endereço eletrônico podem entrar em contato por meio telefônico, ou
comparecer a alguma sede regional da Prefeitura Municipal portando Cadastro de Pessoa Física
(CPF) e carteiras de identidade e trabalho (JUIZ DE FORA, 2015; s/a).
O Projeto “Você + empreendedor” se materializa em eventos realizados pela Prefeitura
de Juiz de Fora, através da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Geração de
Emprego e Renda, em parceria com outras secretarias municipais e com o Sistema Brasileiro
de Apoio às Micros e Pequenas Empresas (Sebrae Minas). O evento objetiva oferecer
consultoria a microempreendedores individuais no intuito de estimular a formalização destes.
A programação destes eventos inclui palestras sobre cartão de crédito para
microempreendedores, certificado digital, qualidade no atendimento, planejamento, benefícios
previdenciários; bem como expedir alvará de microempreendedor individual (MEI). Em três
edições realizadas no município, o projeto atendeu mais de 400 pessoas. Dessas, 205 saíram
com o alvará de funcionamento como microempreendedor individual em mãos (JUIZ DE
FORA, s/a).
Por e-mail com a SDS, conseguimos acesso à informações sobre alguns projetos e
programas existentes no município. De acordo com a assessoria de comunicação da referida
Secretaria, estão sendo desenvolvidos no município os seguintes “serviços e programas de
geração de renda”: Casa da Menina Artesã; Casa do Pequeno Jardineiro; Programa Municipal
de Atendimento a Adolescentes (PROMAD); Agente do Amanhã; Poupança Jovem; Programa
Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec); e Pronatec Aprendiz (programa
piloto). Vale ressaltar que os quatro primeiros programas são da Prefeitura de Juiz de Fora, mas
coordenados pela Associação Municipal de Apoio Comunitário (AMAC), entidade civil sem
fins lucrativos que desde 1985 atua no município com o propósito desenvolver projetos na área
da Assistência Sociali.
O programa Casa da Menina Artesã é destinado a adolescentes do sexo feminino com
idades entre 14 e 24 anos. Seu objetivo é promover a inclusão social por meio do curso de
Formação em Artesanato e da Oficina de Trabalho de Produção Artesanal, com geração de
renda, oferecendo formação sociopedagógica, oficinas e acompanhamento de profissionais das
áreas de educação artística, serviço social e pedagogia (AMAC, s/a).
O programa Casa do Pequeno Jardineiro é voltado para adolescentes do sexo
masculino, entre 14 e 24 anos, que estejam em “situação de vulnerabilidade pessoal e ou social”,
prioritariamente com baixa escolaridade. No projeto são desenvolvidas atividades referentes à
jardinagem, botânica, paisagismo e horticultura. Os alunos recebem bolsa aprendizagem,
material didático, vale-transporte e alimentação a cada dois meses de curso. Caso apresentem
bom desempenho após esse período, são contratados por um ano como aprendizes por empresas
parceiras do programa (AMAC, s/a).
O PROMAD oferece capacitação profissional através de um curso de Formação em
Serviços Administrativos para adolescentes de ambos os sexos que tenham entre 14 e 18 anos,
que estejam “em situação de vulnerabilidade social” e com escolaridade mínima de 8º ano do
ensino fundamental. Dependendo do desempenho apresentado há possibilidade de
encaminhamento ao mercado de trabalho. O serviço ocorre em duas etapas: no primeiro
momento o adolescente participa do curso, no qual a prioridade é desenvolver “habilidades
sociais” de forma a prepará-lo para o mundo do trabalho; na segunda fase, o jovem “bem
avaliado” garante a oportunidade de inserção no mercado de trabalho como “aprendiz em
Serviços Administrativos” (AMAC, s/a).
O Agente do Amanhã é um projeto que se diferencia dos supramencionados por incluir
adultos. Com o objetivo de gerar emprego e renda, trata-se uma parceria com a Votorantim
Metais e o Instituto Votorantim e que oferece cursos gratuitos de capacitação para pessoas com

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

idades entre 16 a 29 anos, que residam preferencialmente no bairro Igrejinha ou na região norte
da cidade, região estratégica pelo adensamento industrial.
Nesse ponto, cabe salientar que os quatro programas supramencionados têm como
forma de participação a solicitação no CRAS de referência do bairro do interessado. Ou seja, a
comprovação da sua condição de morador da periferia e de ter baixa renda.
Segundo a SDS o objetivo do programa Poupança Jovem é combater a evasão escolar
e foi desenvolvido pelo Governo de Minas, oferecendo um benefício financeiro de R$ 1.000
(mil reais) pela aprovação do estudante em cada série do Ensino Médio. No final, os
participantes recebem 3.000 (três mil reais) mais os rendimentos da poupança. Ao longo do
programa são oferecidas atividades de aprendizagem, culturais, esportivas, de caráter
comunitário e complementar, além de acompanhamento social. Para participar o aluno deve
estar regularmente matriculado no Ensino Médio das escolas públicas estaduais de Juiz de Fora
e procurar o Educador Social solicitando a adesão ao programa. O programa caracteriza-se,
portanto, quase que exclusivamente, como um programa de geração de renda e incentivo ao
estudo”.
O Pronatec é um programa de âmbito nacional e oferece cursos técnicos e
profissionalizantes gratuitos. Os interessados devem ter idade acima de 16 anos e estarem
inscritos no CadÚnico - cadastro de famílias do Governo Federal que busca identificar o grau
de vulnerabilidade - além de possuir a escolaridade mínima prevista no catálogo de cursos do
programa. Em Juiz de Fora, a SDS é responsável por realizar as pré-matrículas no período de
inscrição determinado e os beneficiários do programa bolsa família têm prioridade.
Nesse sentido, há também o Pronatec Aprendiz, que é um programa piloto cujas vagas
são ofertadas, prioritariamente, à jovens e adolescentes inseridos em serviços da Proteção Social
Especial (casas de acolhimento institucional, em cumprimento de medidas socioeducativas etc.).
Para a SDS a oferta de capacitação profissional poderá “contribuir para a superação de situações
de vulnerabilidade e violações de direitos entre adolescentes e jovens pela dimensão da renda
e pela inclusão social”. Podem participar jovens e adolescentes com idade entre 15 e 24 anos
que frequentam a escola, após serem selecionados pelo serviço de Proteção Social Especial da
SDS.
Existe ainda um programa de geração de emprego e renda ligado à Secretaria de
Educação (SE): o ProJovem Urbano. O projeto promove qualificação na área de alimentação
para jovens que possuam idade entre 18 e 29 anos e que não tenham completado o ensino
fundamental. As atividades promovidas são cursos de cozinheiro auxiliar, repositor de
mercadoria, chapista e ambulante. As inscrições são feitas na SE. Os benefícios do programa
são: auxílio de R$100 (cem reais) mensais para alunos com frequência mínima de 70% das
aulas. Para as alunas que não têm com quem deixar seus filhos, são disponibilizadas cuidadoras
pelo programa durante o período das aulas, que ocorrem na Escola Municipal Cosete de Alencar,
no bairro Santa Catarina.
Projeto de iniciativa do Ministério da Defesa é o “Soldado Cidadão”. O programa
criado em 2004 tem abrangência em todo o território nacional e visa qualificar através de cursos
técnicos e profissionais nas áreas de telecomunicações, informática, construção civil,
alimentícia e saúde, entre outras, os militares que estão prestes a se desligar das Forças
Armadas. Os cursos são gratuitos e ministrados em parceria com instituições do Sistema S –
como o Senai e o Senac – e outras entidades ligadas ao ensino profissional e técnico para
militares que darão “baixa” do serviço ativo tenham mais chances de colocação no mercado de
trabalho (BRASIL, 2014).
Os cursos do Projeto Soldado Cidadão são realizados no horário do expediente e duram
dois meses, com carga mínima de 160 horas. O Ministério da Defesa estima que pelo menos
67% dos beneficiados pelo programa acabam fazendo carreira na mesma área em que foram
qualificados pelo projeto. Como a demanda pelas vagas do Soldado Cidadão é maior do que a

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

oferta, a participação nos cursos acaba servindo como prêmio para militares com boa conduta
ou que tenham condição econômica mais precária (BRASIL, 2014).
No caso de Juiz de Fora, o projeto supracitado é realizado em parceria entre o Exército
Brasileiro e o Serviço Social do Transporte e Serviço Nacional de Aprendizagem do transporte
(SEST/SENAT). O SEST/SENAT, no último ano, ministrou o curso de mecânico de
manutenção automotiva. Durante o período de formação, os participantes passam por dois
módulos: o básico, que possui aulas que englobam mudanças, como postura corporativa, meio
ambiente, segurança no trabalho e empreendedorismo; e o específico, com conteúdos técnicos
e fazem prática em oficina escola. Após aprovação em todos os módulos e preenchido o
requisito de 75% de frequência mínima, os alunos recebem certificado do referido curso (SEST-
SENAT, 2015a; 2015b).
Por fim, projeto de iniciativa de uma instituição privada sem fins lucrativos é o
Programa de Aprendizagem Profissional desenvolvido pela Associação de Proteção à
Guarda Mirim de Juiz de Fora, entidade criada pelo Rotary Club da cidade. O referido programa
consiste em oferecer capacitação a adolescente de 14 a 18 anos incompletos, para que estes
possam aprender o “que representa o mundo do trabalho” e para que a empresa recebe um
aprendiz mais adaptado ao funcionamento de uma empresa. Na Guarda Mirim, como é mais
conhecida a Associação, os jovens aprendizes passam por 288 horas de aulas teóricas que
abordam temas como informática, marketing pessoal, empreendedorismo, preparação para
entrevistas, segurança, saúde e higiene no trabalho, planejamento pessoal e profissional, entre
outros assuntos relacionados a atividades administrativas.
Concomitante ao período de qualificação, os adolescentes são encaminhados às
empresas para realizarem atividades de iniciação ao trabalho por jornadas de seis horas diárias.
O SENAC e SEST/SENAT ministram conteúdos específicos relacionados às empresas que os
selecionou. O adolescente pode permanecer por um período de até dois anos como jovem
aprendiz, período no qual a empresa que os contratou assume a responsabilidade da
aprendizagem prática. Conforme descrição no site da Guarda Mirim:

A Guarda Mirim faz o monitoramento do processo para orientar o jovem quanto aos
seus deveres e direitos, e o empregador, para ajudá-lo a lidar com os aprendizes, assim
como indicar as áreas nas quais eles podem atuar, para que não corram riscos e, por
fim, fazer com que sejam realmente aprendizes. Este monitoramento tem como
objetivo garantir a qualidade da inserção do aprendiz na empresa, visando que o
processo de aprendizagem esteja dentro da proteção da lei [nº 10.097, de 19 de
dezembro de 2000] (ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO À GUARDA MIRIM DE JUIZ
DE FORA, s/a)

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A política de geração de emprego e renda tem sido desenvolvida no município de Juiz


de fora de acordo com parâmetros da política nacional e tem o objetivo de atender famílias
muito pobres. Baixa escolaridade, baixa renda e falta de profissão definida são características
do seu público-alvo. Sem conseguir reverter as condições de vida e trabalho dessas famílias e
jovens, a aposta tem sido em programas de transferência de renda. Notamos ainda a aposta no
incentivo ao microempreendedorismo e na capacidade individual como forma de retirar os
indivíduos de sua condição de pobreza ou de miserabilidade, o que apenas culpabiliza e
responsabiliza os próprios sujeitos. Ou seja, longe de promover emprego, tais políticas apenas
reforçam o primado do assistencialismo, característica histórica da nossa política social. Outra
característica é que a renda oferecida em nada altera a sua condição de pobreza, mas cria a ideia
de uma meritocracia e concorrência, apesar das condições adversas.

REFERÊNCIAS

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ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO À GUARDA MIRIM DE JUIZ DE FORA. Institucional.


Disponível em: <http://www.guardamirimjf.com.br/institucional/emprego/menor/aprendiz/>
Acesso em: 02 de dez. de 2015.

BRASIL. Sistema Nacional de Emprego - SINE. Disponível em:


<http://www3.mte.gov.br/sine/oquee.asp> Acesso em: 12 de jul. de 2015.

. Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Programa de


disseminação de estatísticas do trabalho – PDET. 2015. Microdados. Disponível em:
<http://acesso.mte.gov.br/portal-pdet/home/> Acesso em: 12 de jul. de 2015

. Lei nº 10.097 de 19 de dezembro de 2000. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L10097.htm> Acesso em: 02 de dez. de 2015.

. Projeto Soldado Cidadão. 2014. Disponível em:


<http://www.brasil.gov.br/educacao/2011/10/programa-oferece-formacao-para-soldados>
Acesso em: 09 de dez. de 2015.

JUIZ DE FORA. Decreto Nº 11.561, de 15 de maio de 2013. Disponível em:


<http://www.jflegis.pjf.mg.gov.br/c_norma.php?chave=0000036408> Acesso em: 12 jul de
2015

JUIZ DE FORA. “JF Orienta” leva informações sobre elaboração de currículos e mercado
de trabalho ao “Mundo Senai 2015”. Disponível em:
<https://www.pjf.mg.gov.br/noticias/view.php?modo=link2&idnoticia2=51189> Acesso em:
10 de nov. de 2015.

JUIZ DE FORA. Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Geração de


Emprego e Renda. Disponível em: <http:/pjf.mg.gov.br/secretarias/sdeer/> Acesso em: 13 de
jul de 2015.

JUIZ DE FORA. Serviços e programas de geração de renda da SDS [mensagem pessoal].


Mensagem recebida por <oliveiraedneia@ig.com.br; robsonamribeiro@gmail.com > em 15 de
jun. de 2015.

JUIZ DE FORA. Portal JF Empregos. Disponível em: <http://www.jfempregos.com.br/blog>


Acesso em: 12 jul de 2015

. “Você + Empreendedor” - Projeto facilita formalização de microempreendedores


individuais. Disponível em:
<https://www.pjf.mg.gov.br/noticias/view.php?modo=link2&idnoticia2=50220> Acesso em:
12 jul de 2015.

. “Você + Empreendedor” chega à região Sudeste. Disponível em:


<http://www.jfempregos.com.br/blog/voce-empreendedor-chega-a-regiao-sudeste> Acesso em:
12 jul de 2015.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Rio Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.

OLIVEIRA, Ednéia Alves. A política pública de emprego: entre a precarização desprotegida

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

e a precarização protegida. Um estudo comparativo entre Brasil e Itália. Tese (Doutorado em


Serviço Social) – Curso de pós-graduação em Serviço Social, Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010a.

. Superpopulação relativa e “nova questão social”: um convite às categorias


marxianas. Revista Katalysis, Florianópolis, vol 13, n 2, p. 276-283, 2010b.

. A política de emprego no Brasil: o caminho da flexinsegurança. Revista Serviço


Social e Sociedade, São Paulo, n.11, p. 493-508, jul/set, 2012

PINHO JUNIOR, Nelson Machado. A relação público-privado na gestão da Política de


Assistência Social em Juiz de Fora. 2016. 86 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação
em Serviço Social) – Faculdade de Serviço Social, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz
de Fora, 2016.

SEST-SENAT. Projeto Soldado Cidadão. 2015ª. Disponível em:


<http://www.sestsenat.org.br/Imprensa/noticia/juiz-fora-projeto-soldado-06032015> Acesso
em: 09 de dez. de 2015.

SEST-SENAT. Projeto Soldado Cidadão. 2015b. Disponível em:


<http://www.sestsenat.org.br/Imprensa/noticia/sest-senat-juiz-de-fora-inicia-nova-turma-
projeto-soldado-cidadao-08052015> Acesso em: 09 de dez. de 2015.

VERDEIRO, Vanessa. Links “JF Orienta” [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por
<alvesayan@hotmail.com; robsonamribeiro@gmail.com > em 08 de junho de 2015.
i
Dados os limites de tamanho deste texto, não abordaremos em termos amplos o referido processo. A respeito da relação da
AMAC com a Prefeitura de Juiz de Fora, ver Pinho Junior (2016).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Uma análise temporal no processo de previsão e arrecadação das receitas


correntes e Royalties de petróleo na cidade de Macaé no período de 2006 -
2015.

Diego Amorim Carvalho


Universidade Federal Fluminense (UFF)

Vanuza Silva Figueiredo


Universidade Federal Fluminense (UFF)

Flavia Ribeiro Villela


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

RESUMO: O presente artigo tem como foco a análise temporal da previsão e da arrecadação
no processo orçamentário da receita pública, especificamente as receitas municipais – ISS,
IPTU e ITBI –, a estadual – ICMS – e, ainda, o repasse federal dos Royalties de petróleo, bem
como das Participações Especiais (PE). Trata-se de uma pesquisa quantitativa e quanto aos
objetivos classificada como descritiva. Para isto, foi realizado um estudo estatístico, explorando
os dados a fim de construir indicadores passíveis de uma análise mais detalhada. A principal
fonte de receita é a arrecadação de ISS, seguido pelo ICMS. Desta forma, a receita com
Royalties de petróleo em Macaé é apenas a terceira em volume de arrecadação, ao contrário
dos outros municípios da região. Isso caracteriza que não há uma dependência direta ao
recebimento desta arrecadação. A análise da execução orçamentária verifica que, durante o
período de 2006 a 2015, ocorreu um crescimento exponencial da arrecadação destes impostos
para o município de Macaé.

1. INTRODUÇÃO
Sabe-se que é de extrema importância para a sociedade obter informações sobre as políticas
de gestão pública de seu município, e, para isso, deve-se conhecer de maneira minuciosa as
receitas públicas. Conhecê-las significa saber em que se baseia o suprimento das necessidades
do município, e desta forma, otimizar a aplicação dos recursos.
Este trabalho tem como principal objetivo fazer uma analise temporal da previsão e da
arrecadação no processo orçamentário da receita pública, especificamente as receitas
municipais ISS, IPTU e ITBI, a estadual ICMS e o repasse federal dos Royalties de petróleo,
para o município de Macaé.
A região Norte do Rio de Janeiro, em que se situa a cidade de Macaé, é uma grande
produtora de petróleo, sendo responsável por grande parte da produção nacional. Alguns
municípios tendem a depender dos recursos provenientes dos Royalties para pagar suas
despesas públicas.
Bôas (2008) identificou no município de Cabo Frio - RJ uma evolução dos recursos
provenientes dos Royalties do petróleo em contraposição a involução das receitas advindas dos
tributos, o que caracteriza uma relação negativa entre esses montantes.
Por outro lado, Macaé recebeu, em média, no período de 2006 – 2015, a quantia de
seiscentos milhões em Royalties de petróleo, e, aproximadamente quatrocentos e sessenta
milhões de ISS. Os dados foram coletados no Sistema de Coleta de Dados Contábeis (SISTN)
e no portal de transparência da prefeitura de Macaé.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Os dados foram mensurados por meio de indicadores de acurácia na previsão (AP), e,


posteriormente, analisados na variável temporal e, além disso, foi feita uma análise tabular de
variações dos índices. Os resultados das análises mostram a evolução da previsão e arrecadação
das receitas correntes e a arrecadação dos Royalties no período de 2006 a 2015.
Analisando temporalmente a arrecadação das receitas correntes e dos Royalties de
petróleo do Município de Macaé, será possível estabelecer o verdadeiro nível de dependência
que o município de Macaé tem, em relação aos Royalties. A pesquisa visa fazer uma
comparação entre estas receitas e, definir se houve eficiência no planejamento das Leis
Orçamentárias Anuais do período de 2006 a 2015.

A pesquisa traz a acurácia das receitas correntes, faz um analise comparativa da previsão
e da arrecadação, analisa o grau de dispersão do somatório das receitas correntes e Royalties e,
também, mostra o ranking de arrecadação.
A organização deste artigo está compreendida em cinco seções: a introdução, que
apresenta o problema de pesquisa, a justificativa e seus objetivos; o referencial teórico, com a
conceituação do tema e descrição da legislação brasileira sobre o tema; a metodologia aplicada
para se alcançar os resultados aqui apresentado; a demonstração, análise e interpretação dos
resultados obtidos; e as considerações finais.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A importância da arrecadação própria por parte dos municípios

Segundo Ozaki (2004), há duas questões principais que explicam a importância da


arrecadação tributária própria por parte dos municípios. São elas: a vigência da Lei de
Responsabilidade Fiscal e a delegação de competência tributária para instituir, fiscalizar,
arrecadar e administrar tributos de sua própria competência, em contraposição a uma
dependência de transferência de recursos por parte da União.
No tocante à previsão e arrecadação das receitas públicas, à Lei de Responsabilidade
Fiscal (LC 101/2000) informa no artigo 11:
"Constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição,
previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da
Federação. Parágrafo único. É vedada a realização de transferências voluntárias para o ente que
não observe o disposto no caput, no que se refere aos impostos."
Ou seja, conforme Ozaki (2004), instituir, prever e, efetivamente, arrecadar tributos da
própria competência dos municípios (ISS, ITBI, IPTU, taxas, contribuições, entre outros) é
requisito essencial para ser responsável na gestão fiscal. Acrescenta-se que o ente, no caso, o
município, que não observar a referida questão da gestão fiscal responsável, será proibido de
receber transferências decorrentes de impostos federais e/ou estaduais (IR, IPI, ITR, ICMS,
IPVA).
Diz o Artigo 16 do CTN: "Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma
situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa aos contribuintes".
Para a pesquisa foram selecionados os impostos ISS e ICMS que incidem sobre o
consumo e os impostos IPTU e ITBI que incidem sobre o patrimônio.

Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISS

O Imposto sobre Serviços (ISS) é um tributo de competência municipal, o fato gerador


é a prestação de serviços, listados na Lei Complementar nº 116/2003. Na cidade de Macaé,
encontra-se listado no Código Tributário de Macaé - LC n.º 053/2005. Tendo uma alíquota
mínima de 2% e a máxima de 5%.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

O Imposto sobre serviços foi criado por volta da metade do século XX, devido à
preocupação dos Estados modernos na substituição do Imposto Geral sobre o Volume
de Vendas por um Imposto sobre o Valor Acrescido, não-cumulativo. Este modelo
consiste em aplicar, aos bens e serviços, um imposto geral sobre o consumo exatamente
proporcional ao preço dos bens e serviços. (PÊGAS, 2011, p.250)

Logo, o ISS é uma imposto que tem uma grande importância na arrecadação de recursos
para manutenção e exercício das atividades dos Municípios.

Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre a Prestação de


Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação - ICMS

O ICMS é um tributo de competência dos Estados e do Distrito Federal, e é cobrado na


comercialização de mercadorias e prestação de serviços. É regulamentado pela Lei
Complementar nº 87/96 e conhecida como Lei Kandir. Dentro da legislação do ICMS também
devem ser considerados os convênios que são acordados entre os estados da União.

A base de cálculo do ICMS pode ser representada por várias formas, devido sua larga
incidência. De modo geral, representa o valor da operação de mercadorias, incluindo os
gastos acessórios como frete e seguro, até o momento da entrega da mercadoria no
estabelecimento do contribuinte. (PÊGAS, 2011, p. 181)

Segundo a Constituição Federal, os estados devem repassar 25% do produto de sua


arrecadação com ICMS aos municípios. Essa parcela é denominada de Quota-Parte Municipal
no ICMS (QPM-ICMS) e é uma importante fonte de receita para os municípios.

Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana - IPTU

Rege na CTN, art. 32, que a arrecadação do IPTU tem como fator gerador a propriedade,
o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na
lei civil, localizado na zona urbana do Município.
A base de cálculo do imposto é o valor venal do imóvel, sobre o qual recai uma alíquota
definida em nível municipal, e o contribuinte é o proprietário do imóvel.
Segundo Pêgas (2001), o IPTU é um imposto direto e representa aproximadamente 25%
da arrecadação tributária dos municípios brasileiros, sendo importante instrumento para a
melhoria da infraestrutura das cidades.

Imposto de Transmissão de Bens Imóveis - ITBI

O Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis e de Direitos a Eles Relativos, é regido


no CTN nos artigos 35 - 42. É um tributo de competência municipal que tem como fato gerador
a compra e venda ou a cessão de imóveis, "inter vivos", a qualquer título, de propriedade ou
domínio útil de bens imóveis, ou seja, o contribuinte devedor do ITBI é aquele que está
adquirindo o imóvel.
Tem como base de cálculo o valor da transação imobiliária, podendo a autoridade fiscal
arbitrar o valor da base de cálculo. O ITBI não é um imposto progressivo, tendo alíquota de 2%
na cidade do Rio de Janeiro e na maioria das cidades brasileiras, segundo Pêgas (2011). Vieira
(2004) relata que embora o ITBI não tenha participação expressiva no total das receitas
tributárias municipais, a arrecadação deste tributo é sensível às oscilações da economia como
um todo.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Portanto, o montante de arrecadação deste imposto é afetado diretamente pelo


aquecimento ou desaquecimento do mercado imobiliário, que é movimentado tanto por
pequenos proprietários que adquirem imóveis através de planos habitacionais, cartas de
crédito ou utilização dos fundos de garantia, como também por investidores que vêem
neste mercado uma aplicação segura de baixo risco, principalmente em momentos de
instabilidade da economia. (VIEIRA, 2004. p.3-4)

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Royalties e Participações especiais

Os Royalties do petróleo e do gás natural são compensações financeiras obrigatórias


devidas ao ente público, pagas pelas empresas exploradoras. É uma remuneração com objetivo
de retribuir à sociedade, já que esses recursos são escassos e não renováveis. Este pagamento é
feito mensalmente, de acordo com as medições fiscais dos volumes produzidos, feitas nas
estações de produção. Por outro lado, as Participações Especiais (PE) são compensações, de
caráter extraordinário, pagas nos casos de grande volume de produção ou rentabilidade em
relação a cada campo.
Segundo a Lei Federal nº 9.478/97, a alíquota dos Royalties de petróleo é de 10%, sendo
facultado à ANP reduzi-la até um mínimo de 5%, em função de fatores adversos e riscos
geológicos do processo de exploração.
Conforme Barbosa (2001) descreve no Guia dos Royalties, os Royalties são calculados
mensalmente para cada campo produtor, mediante a aplicação da alíquota sobre o valor da
produção de petróleo e de gás natural. O valor da produção é obtido multiplicando-se os
volumes (de petróleo e de gás natural produzidos no campo durante o mês) pelo preço do barril
de petróleo relativo àquele mês.

Os Royalties devido aos Municípios serão calculados com base na produção do Estado
do qual fazem parte, sendo que o rateio dos Royalties devido aos Municípios
pertencentes à uma mesma zona de produção será efetuado na razão direta de suas
respectivas populações (BARBOSA, 2001, p.73).

As zonas de produção são classificadas em três categorias: Zona principal, Zona


secundária e Zona limítrofe à zona de produção principal. O município de Macaé é uma zona
principal. O controle dos Royalties e da sua distribuição é responsabilidade da Agência
Nacional do Petróleo (ANP).

3. METODOLOGIA DE PESQUISA

Tipo da pesquisa

Segundo Triviños (1987), a pesquisa descritiva exige do investigador uma série de


informações sobre o que deseja pesquisar. Esse tipo de estudo pretende descrever os fatos e
fenômenos, dada uma determinada realidade.
Desta forma, de acordo com a natureza da pesquisa, esta pode ser classificada como
quantitativa e, de acordo com os objetivos, pode se dizer que a pesquisa realizada é classificada
como descritiva.
Foi feita a análise estatística exploratória de dados e a construção de indicadores,
conforme a estatística descritiva. A pesquisa bibliográfica foi feita a partir de fontes escritas e
eletrônicas, tais como livros, revistas, teses, leis, artigos, anais de eventos e outros. Os dados
obtidos foram corrigidos pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

Coleta de dados

As principais fontes de pesquisa e coleta de dados foram o portal da prefeitura da cidade


de Macaé, disponível no site (http://sistemas.macae.rj.gov.br/), e o portal de Sistemas de Coleta
de Dados Contábeis (SISTN), no site (https://www.contaspublicas.caixa.gov.br), da Caixa
Econômica Federal. Estas fontes foram utilizadas para obtenção das receitas correntes e das
transferências estaduais. A coleta dos dados das transferências federais dos Royalties mais

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Participações Especiais em valores correntes foi feita no portal Info Royalties


(http://inforoyalties.ucam-campos.br) desenvolvido pela Universidade Cândido Mendes.
Para a construção dos indicadores propostos a seguir, os dados do último bimestre de
cada ano foram coletados no Relatório Resumido da Execução Orçamentária (RREO).
O Quadro 1 apresenta os dados coletados para construção dos indicadores referentes às
receitas correntes municipais no período estudado, de 2006 – 2015, e organiza as observações
feitas anteriormente, referentes às fontes de coleta de dados.

Quadro 1 - Dados coletados na internet

Dados Fonte
ISS RREO-6ºBIM
IPTU RREO-6ºBIM
ITBI RREO-6ºBIM
Quota-Parte do ICMS RREO-6ºBIM
Quota-parte royalties - comp. Fin. P. Pet. - lei nº 7.990/89 INFO ROYALTIES
Quota-parte royal. Part. Esp. - art. 50 lei 9.478/97 INFO ROYALTIES
Fonte: Portal de transparência de Macaé, SISTN e Info Royalties.

Todos os valores foram corrigidos pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor


Amplo (IPCA).

Indicadores de acurácia
Quadro 2 - Indicadores e suas respectivas interpretações

Indicador Cálculo
Acurácia na previsão do ISS Ac_Rec_ISS t = Rec_ISS_Arrec t /Rec_ISS_Prev t
Acurácia na previsão do IPTU Ac_Rec_IPTUt = Rec_IPTU_Arrec t /Rec_IPTU_Prev t
Acurácia na previsão do ITBI Ac_Rec_ ITBI t = Rec_ ITBI _Arrec t /Rec_ ITBI _Prev t
Acurácia na previsão do ICMS Ac_Rec_ ICMS t = Rec_ ICMS _Arrec t /Rec_ ICMS _Prev t
Fonte: Elaboração própria

4. ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS

Análise da previsão e arrecadação das receitas correntes


Tabela 1 - Valores Previstos e Arrecadados do Imposto ISS

Ano Previsão R$ Arrecadação R$


2006 164.666.933,26 185.284.422,63
2007 186.260.945,42 252.458.162,52
2008 217.418.374,36 316.438.213,56
2009 241.423.877,98 391.184.791,68
2010 369.479.610,36 417.741.807,41
2011 353.859.295,92 461.168.994,91
2012 369.932.983,94 583.290.954,33
2013 459.084.571,07 596.270.448,35
2014 499.214.224,46 666.932.011,63
2015 600.457.000,00 719.138.298,66
Fonte: Portal de transparência de Macaé, SISTN e Info Royalties.

433
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Na Tabela 1 são apresentados os valores referentes às previsões, bem como à


arrecadação real do Imposto ISS ao longo do período 2006 a 2015. Esses valores previstos
fazem parte do Projeto de Lei Orçamentária Anual (LOA) e, a cada ano, são enviados para
apreciação pelo Congresso Nacional. Em uma breve análise da Tabela 1, contata-se que, durante
os dez anos supra representados, as previsões da Prefeitura de Macaé foram sistematicamente
inferiores aos montantes que efetivamente foram arrecadados. Essa diferença foi
particularmente elevada em 2009, quando se arrecadou aproximadamente 149 milhões a mais
do previsto. Essa subestimativa sistemática da arrecadação está, provavelmente, ligada a um
comportamento conservador por parte da autoridade fazendária. Ao prever menor arrecadação,
cria-se uma margem de segurança com relação à alocação de gastos orçamentários, ou seja,
uma espécie de medida preventiva.

Análise comparativa

Gráfico 1 - Evolução da Previsão e Arrecadação do IPTU - 2006 a 2015.

Analise comparativa - ISS


R$ 719.138.298,66
R$ 666.932.011,63

R$ 596.270.448,35
R$ 583.290.954,33
R$ 600.457.000,00
R$ 461.168.994,91
R$ 417.741.807,41
R$ 391.184.791,68 R$ 499.214.224,46
R$ 459.084.571,07
R$ 316.438.213,56
R$ 369.479.610,36 R$ 369.932.983,94
R$ 252.458.162,52
R$ 353.859.295,92
R$ 185.284.422,63
R$ 241.423.877,98
R$ 217.418.374,36
R$ 186.260.945,42
R$ 164.666.933,26

2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015

Previsão Arrecadação

Fonte: Elaboração própria

O Gráfico 1 mostra, no período de 2006 a 2015, um crescimento significativo de 288%


da arrecadação do ISS. Portanto, a previsão demonstrou-se cautelosa estando subestimada em
todo o período.

434
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Gráfico 2 - Evolução da Previsão e Arrecadação do IPTU - 2006 a 2015

Analise comparativa - IPTU


41.883.323,25

32.744.741,89
31.554.238, 99
29.351.901,71
28.114.674,56
31.789.000,00
29.970.868,44

22.026.784,98
15.251.601,35 19.945.947,44
13.946.943,98
11.602.803,3 1 12.537.983,46
9.812.453,73 14.924.250,32
12.972.548,73
10.056.576,46 10.611.399,64
9.953.790,65
7.541.498,20

2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015

Previsão Arrecadação

Fonte: Elaboração própria

De maneira análoga, o crescimento do IPTU também fora subestimado: houve um


aumento de 327%. Observa-se no Gráfico 2, que a diferença entre a previsão e a arrecadação
tornou-se maior de 2010 a 2011, momento em que o montante arrecadado foi de 15 milhões
para 28 milhões, aproximadamente.
Gráfico 3 - Evolução da Previsão e Arrecadação do ITBI - 2006 a 2015

24.936.825,73
24.020.601,78
96
23.283.985,
24.300.000,00

18.175.085,18

14.838.556,88
13.463.809,97 13.801.461,24

10.609.413,55
8.311.948,74
6.750.646,39 10.466.330,92 10.342.343,12 10.711.973,3311.393.928,81
9.262.285,48 9.733.206,73

6.034.993,72 6.608.267,37 6.558.011,31

2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015

Previsão Arrecadação

Fonte: Elaboração própria

435
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

O comportamento para o ITBI foi anômalo, conforme o Gráfico 3: a previsão superou a


arrecadação tanto em 2009, como em 2015, porém, durante este intervalo de tempo a previsão
foi bem inferior à arrecadação.

Gráfico 4 - Evolução da Previsão e Arrecadação do ICMS - 2006 a 2015

564.585.214,42

455.081.250,00

451.455.573,71
445.529.954,35

296.711.655,07

312.530.748,10
205.169.542,68 283.690.634,10
271.063.293 ,20
229.845.668,10

2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015

Arrecadação

Fonte: Elaboração própria

Para o ICMS, a previsão foi superior à arrecadação, coincidindo com esta apenas no ano
de 2015, conforme o Gráfico 4.

Análise da acurácia das previsões das receitas correntes


De acordo com Leonardi (2012), a acurácia tem sido definida como sendo o grau de
proximidade de uma estimativa com seu parâmetro ou valor verdadeiro. Para analisar a acurácia
das previsões das receitas municipais correntes, foram utilizados os indicadores representados
no Quadro 2.

Gráfico 5 - Evolução do índice de acurácia do ISS - 2006 a 2015

1,62
1,58

1,46
1,36 1,34
1,30 1,30

1,20
1,13 1,13

Fonte: Elaboração própria

436
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

O Gráfico 5 mostra a evolução do índice de acurácia na previsão do ISS, no período de


2006 a 2015, com destaque para o ano de 2009, em que a arrecadação superou 62% a previsão,
arrecadando R$ 149 milhões a mais do previsto naquele ano. Os anos de 2006 e 2010 foram os
de maior acurácia, quando o arrecadado superou 13% o previsto.

Gráfico 6 - Evolução do índice de acurácia do ISS - 2006 a 2015

Acurácia IPTU
1,88

1,47
1,43
1,30 1,31 1,32
1,26
1,15 1,18
1,09

2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015

Fonte: Elaboração própria

O Gráfico 6 comparado aos gráficos de acurácia de ISS, ITBI e ICMS, demonstra


constância maior, exceto no ano de 2011 em que a arrecadação superou a previsão em 88%.
Gráfico 7 - Evolução do índice de acurácia do ISS - 2006 a 2015

Acurácia ITBI

2,19
2,25 2,24

1,87

1,62

1,32
1,26
1,12

0,69
0,61

2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015

Fonte: Elaboração própria

O Gráfico 7 mostra uma anomalia no ano de 2009 quando a arrecadação foi menor que
a previsão em 31%. Isso pode ser explicado observando-se o Gráfico 3, onde são vistos,
simultaneamente, um aumento anormal da previsão e uma queda da arrecadação naquele ano.

437
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Em seguida há um crescimento linear até 2012, se estabilizando até 2014. Em 2015


ocorreu o mesmo fenômeno que em 2009.
Gráfico 8 - Evolução do índice de acurácia do ISS - 2006 a 2015

Acurácia ICMS

0,98
0,91

0,81 0,80
0,74 0,73
0,70
0,63 0,63

0,53

Fonte: Elaboração própria

A acurácia do ICMS é a única que se mantém abaixo de 1, em todos os anos analisados,


como é observado no Gráfico 8. Isso acontece porque a previsão excedeu a arrecadação durante
esse período.

Variação das receitas correntes arrecadadas


Tabela 2 - Variação e Percentual da Arrecadação dos Impostos - 2006 a 2015

Variação (2006 a 2015) Aumento


Índice R$ milhares %
ISS 533.853.876,03 288
IPTU 32.070.869,52 327
ITBI 8.087.910,49 120
ICMS 346.204.056,95 349
Fonte: Elaboração própria

A Tabela 2 representa a variação da arrecadação de cada imposto no período de 2006 a 2015,


em dez anos houve um crescimento expressivo para todos os impostos analisados.

438
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Variação da arrecadação dos Royalties e Participações Especiais

Gráfico 9 - Evolução da arrecadação dos Royalties e PE - 2006 a 2015

Fonte: Elaboração própria. Dados: Info Royalties.

O Gráfico 9 mostra a evolução da arrecadação dos Royalties e as Participações


Especiais, para o período estudado. Observa-se com comportamento linear da arrecadação em
torno de 600 milhões de reais, com um pequeno pico em 2008 e com uma queda brusca em
2015, ano em que se instaurou a crise econômica no Brasil. Este comportamento ficou abaixo
do esperado, uma vez que o país tem investido sistematicamente na produção do petróleo pré-
sal, onde a expectativa é a produção de grandes volumes. Porém, por outro lado, a constante
queda do valor do barril de petróleo fez com que as grandes empresas desacelerassem o
investimento nesta região.

Análise do somatório com o somatório


Tabela 3 - Análise comparativa do somatório das receitas e dos Royalties

Ano Somatório das receitas correntes Somatório dos Royalties e


ISS, IPTU, ITBI e ICMS Participações Especiais
2006 301.173.420,15 682.023.475,26
2007 390.702.643,87 570.062.504,40
2008 492.274.237,57 764.897.687,10
2009 589.253.300,94 563.336.046,60
2010 676.640.538,10 568.107.861,77
2011 778.522.047,85 625.825.300,13
2012 919.617.476,10 663.207.947,41
2013 964.376.037,22 598.729.429,82
2014 1.176.069.152,96 591.658.250,39
2015 1.221.390.133,14 343.414.987,49
Fonte: Elaboração própria

A Tabela 3 compara o somatório da arrecadação dos impostos ISS, IPTU, ITBI e ICMS
com o somatório dos Royalties e Participações Especiais. Observa-se que, até o ano de 2009, o
somatório dos impostos é menor do que os Royalties e as PE. Após esta data, fica claro que
ocorre uma mudança de cenário: o município de Macaé assegura-se principalmente nos

439
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

impostos para pagar as despesas públicas e realizar os investimentos necessários, ou seja, os


Royalties deixam de ser uma arrecadação passível de investimentos.

Ranking de arrecadações
Tabela 4 - Ranking das arrecadações no período de 2006 - 2015

ANO ISS IPTU ITBI ICMS Royalties + PE


2006 185.284.422,63 9.812.453,73 6.750.646,39 99.325.897,40 682.023.475,26
2007 252.458.162,52 11.602.803,31 8.311.948,74 118.329.729,30 570.062.504,40
2008 316.438.213,56 12.537.983,46 10.609.413,55 152.688.627,00 764.897.687,10
2009 391.184.791,68 13.946.943,98 9.262.285,48 174.859.279,80 563.336.046,60
2010 417.741.807,41 15.251.601,35 13.801.461,24 229.845.668,10 568.107.861,77
2011 461.168.994,91 28.114.674,56 18.175.085,18 271.063.293,20 625.825.300,13
2012 583.290.954,33 29.351.901,71 23.283.985,96 283.690.634,10 663.207.947,41
2013 596.270.448,35 31.554.238,99 24.020.601,78 312.530.748,10 598.729.429,82
2014 666.932.011,63 32.744.741,89 24.936.825,73 451.455.573,71 591.658.250,39
2015 719.138.298,66 41.883.323,25 14.838.556,88 445.529.954,35 343.414.987,49
MÉDIA 458.990.810,57 22.680.066,62 15.399.081,09 253.931.940,51 597.126.349,04
Fonte: Elaboração própria. Dados: Portal SISTN e Info Royalties.

A Tabela 4 mostra que a arrecadação de Royalties de petróleo se manteve estável no


período analisado com a média de R$ 597 milhões anual, comparado com o crescente aumento
dos outros impostos nesse mesmo período, ressaltando o ano de 2015, momento em que este
cai para a 3º posição no ranking de arrecadação.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados apresentados pela Tabela 4 demonstram que a receita com Royalties de
petróleo é a terceira em volume de arrecadação no ranking em 2015. A arrecadação de ISS e
ICMS, ficaram em primeiro e em segundo lugar, respectivamente. Isso caracteriza que não há
uma dependência direta ao recebimento dessa receita.
Queiroz e Postali (2010) constataram em seu estudo que o benefício dos Royalties pode
induzir a ineficiência no sistema fiscal dos municípios beneficiados, de maneira que o esforço
na arrecadação do IPTU é afetado quando o município recebe Royalties do petróleo.
No caso de Macaé o recebimento dos Royalties não está afetando o crescimento na
arrecadação dos seus tributos. Analisando a execução orçamentária identificamos em expressão
numérica esse crescimento exponencial que ocorreu no período de 2006 a 2015. A arrecadação
de Royalties de petróleo se manteve estável no período analisado com a média de R$ 597
milhões anual, comparado com o crescente aumento dos outros impostos nesse mesmo período.
Apesar disto, a indústria petrolífera mantém a sua participação na economia do
município, pois o crescimento da arrecadação dos impostos também está relacionado a ela: os
impostos ISS e ICMS são recolhidos principalmente de empresas petrolíferas fornecedoras de
produtos e serviços; por outro lado, a especulação imobiliária, fruto da valorização municipal
proveniente do grande mercado do petróleo na região, influenciou na arrecadação do IPTU e
do ITBI.

440
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

6. REFERÊNCIAS
BARBOSA, D. (coord). Guia dos Royalties do Petróleo e Gás Natural. ANP. Rio de Janeiro,
2001. 156p. Disponível em
<http://www.elobrasil.org.br/sites/default/files/guia%20royalties.pdf>. Acesso em: 15 jun.
2016

BÔAS, Bruno Fonseca Vilas, et al. "A Evolução das receitas Provenientes dos Royalties do
Petróleo e seus impactos na arrecadação dos tributos de competência municipal (2002–2007):
O caso do Município de Cabo Frio/Rj." Dissertação de Mestrado em Administração Pública
Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2008
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em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 25
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DE AQUINO, C. N. P. Um Estudo dos Royalties de Petróleo: Impactos sobre


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DE QUEIROZ, Carlos Roberto Alves; POSTALI, Fernando Antonio Slaibe. Rendas do


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da Cruz e Prof. Dr. Eduardo Shimoda. 2016. Disponível em: http://inforoyalties.ucam-
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públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. Disponível
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Estados e do Distrito Federal sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre
prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, e dá

441
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Compensação financeira pela utilização de recursos hídricos: uma análise


do Nordeste brasileiro em 2013

Emerson de Sousa Silva


Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Mônica Matos Ribeiro


Universidade Estadual da Bahia (UNEB)

Resumo
A presente pesquisa objetivou analisar a distribuição da Compensação Financeira pela
Utilização de Recursos Hídricos (CFURH), realizada por diversas concessionárias de
produção de energia elétrica, em favor de municípios localizados na região Nordeste, no ano
de 2013. Foram utilizados como referencial teórico o Federalismo Fiscal e a Administração
Política. Como ferramentas analíticas, medidas estatísticas de natureza descritiva. Foi visto
que a distribuição da CFURH é concentrada, tanto no que se refere ao conjunto de cidades
atendidas quanto internamente a esse conjunto, dado que apenas cinco municípios recebem
mais da metade dos recursos. Contudo, a CFURH é suscetível às ações de política econômica
e ao poder regulatório do governo federal mais do que às forças determinantes do mecanismo
de preços, significando que, possíveis mudanças na sua composição expõem a sanidade das
finanças dos municípios que a recebem a um maior grau de vulnerabilidade.

Palavras-chave: Compensação Financeira; Utilização de Recursos Hídricos; Políticas


Públicas.

Introdução
São pouco mais de meia centena os municípios nordestinos que recebem algum valor a
título de Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos (CFURH),
praticamente todos sediados no semiárido, sendo que a grande maioria – mais de 60% –
localizada no interior da Bahia.
Esses recursos, na maioria das vezes, são importantes para a composição da receita
corrente líquida dessas municipalidades porque, em possuindo baixos volumes de receitas
próprias, geralmente são as transferências obrigatórias a fonte maior de recursos das suas
prefeituras, o que permite o atendimento da demanda social por bens e serviços públicos
municipais.
O problema fundamental desta pesquisa é o de saber se a CFURH é fator preponderante
na composição da alocação de recursos para o atendimento da demanda social por bens e
serviços públicos das localidades nordestinas que fazem jus ao seu recebimento. Logo, o
objetivo do presente artigo é analisar a distribuição da CFURH recolhidos por diversas
concessionárias de produção de energia elétrica, em favor de municípios localizados na região
Nordeste, no ano de 2013.
Os dois pilares teóricos do trabalho aqui gestado são: o Federalismo Fiscal e a
Administração Política. Do primeiro, é retirada a crença de que a adoção de um arranjo
federativo deva propiciar ganhos de eficiência no provimento de produtos públicos; do segundo,
a concepção de que os atuais padrões administrativos, que têm orientado as relações sociais
contemporâneas, condicionam e (re)direcionam o Estado no exercício da sua relação com seus
entes federados.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Como ferramentas de análise foram utilizadas medidas estatísticas de posição (média


aritmética) e de dispersão (desvio-padrão e coeficiente de variação). Ambas as técnicas
permitem a extração de valores que possibilitam uma interpretação mais concreta da realidade
fiscal dessas cidades.
Além desta introdução, o artigo ainda é composto por mais quatro seções: o referencial
teórico, que expõe as bases conceituais; a de métodos e materiais, que discrimina as fontes, os
procedimentos e os recursos utilizados pela pesquisa; a análise dos resultados; e as
consequentes considerações finais.

Federalismo Fiscal
O Federalismo tem como características basilares a distribuição de competências
exclusivas dentre os seus elementos constituintes (entes federados) e a hierarquização das
alçadas concorrentes e dos instrumentos de coordenação e de incentivo das suas atribuições
comuns (LASSANCE, 2012).
Boueri (2012) alega que, independentemente da definição usada, uma Federação acolhe
uma série de predicados políticos, administrativos e econômicos, mas essencialmente pede a
ocorrência de, no mínimo, duas instâncias decisórias interagindo numa relação assimétrica de
comando, onde a superior é soberana por sobre todo o território e a inferior responde
politicamente por uma fração desse mesmo espaço.
As questões inerentes ao Federalismo Fiscal orbitam no conjunto de problemas,
métodos e prescrições relativos aos processos de distribuição dos recursos públicos pelos seus
elementos formadores de modo em que seja viabilizada a sua respectiva atuação envolvendo a
atribuição de impostos, a definição de obrigações e os meios e os formatos assumidos pelas
transferências intergovernamentais (PRADO, 2006).
No Brasil, a história do Federalismo é feita por meio de um processo dialético de
estabilização e de mudanças – entremeadas por crises pontuais – no qual os principais
determinantes são os momentos de alargamento ou de redução das atribuições da União, mais
especificamente, o dos poderes do Executivo presidencial (LASSANCE. 2012).
O Federalismo brasileiro, desde sua fundação, sempre buscou equilibrar um grau de
centralização que pudesse manter a integridade e a integração nacional com um nível de
descentralização que garantisse a autonomia relativa das unidades subnacionais (MENDES,
2012).
Por sua vez, Shah (1991) afirma que a República brasileira, dentre os demais países em
desenvolvimento que adotaram a união federativa como forma de organização político-
administrativa, é a que apresenta o maior nível de descentralização governativa.
Com o fito de se alcançar os seus objetivos, expressos no artigo 3º, a Carta Magna de
1988 propugna por definir quais são as atribuições e as competências exclusivas, comuns ou
concorrentes de cada um dos entes federativos da República brasileira (MENDES, 2012), dando
o status de ente federativo aos seus municípios.
No entanto, a Federação ainda não superou o fato de que uma ampla maioria dos
municípios não tem condições de montar uma estrutura tributária própria que os permita
financiar políticas públicas autônomas ao mesmo tempo em que a União se mostra incapaz de
articular ações que atendam às demandas locais (MENDES, 2012).
Assim, as transferências da CFURH podem representar uma importante fonte recursos
para os municípios, podendo contribuir para o financiamento das políticas públicas demandadas
pela coletividade. Nesta perspectiva, evidencia-se um problema relacionado ao objeto do campo
próprio da Administração, que aqui denominamos do campo próprio da Administração Política,
responsável pela dimensão da gestão (concepção) e gerência (execução) do complexo padrão
atual que fundamenta a capacidade de respostas do Estado e da sociedade em correlacionar
necessidades coletivas para garantir o provimento das demandas sociais.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Administração Política
A teoria da Administração Política é um movimento vinculado aos estudos críticos da
administração, que se propõe a dar ao campo da ciência da administração bases teórico-
epistemológicas e metodológicas mais amplas que integram tanto os aspectos relacionados à
concepção (conteúdo) administrativa, quanto às competências de execução (técnica),
vinculadas a dimensão denominada por Santos et al (2009), de gerência.
A Administração Política é definida como um campo do conhecimento próprio da
administração, responsável por definir e executar uma dada concepção (espacial e temporal) de
gestão das relações sociais de produção, circulação e distribuição (SANTOS, 2004). A partir
deste conceito, a teoria da Administração Política compreende que cada momento sócio-
histórico é marcado e orientado por um dado padrão/modo de Administração Política que
fundamenta e direciona as ações estatais.
Assim, cabe à administração política conceber a gestão da materialidade das relações
sociais de produção, circulação e distribuição. Segundo Santos (2004), para o melhor
entendimento desta questão, é necessária uma percepção tridimensional envolvendo: a
sociedade – onde se manifestam as necessidades (individuais e coletivas) do conjunto da
sociedade; o Estado – onde ocorre a manifestação política da sociedade em busca do bem estar
social; e a economia – modo de produção de uma dada sociedade, responsável pela base técnica
(concepção e operacionalização) para se alcançar o bem estar da humanidade.
Para o autor, o Estado é a mais importante das instituições/organizações, sendo ele o
agente responsável por atender às demandas sociais, e sendo através dele que melhor se
manifesta a administração política. Dessa forma, a escolha política (gestão) e técnica
(gerência) realizada em dado momento leva a uma determinada ação estatal.
Para os autores da Administração Política, mesmo que as ações do Estado sejam
complementares à dos demais agentes, este deve tomar como objetivo primeiro o atendimento
da insatisfação manifestada pela sociedade e que sirva como suporte para o esforço de plena
obtenção da sua materialidade (SANTOS et al, 2003).
No âmbito da Administração Política, as relações que se constroem entre a política
econômica, o cenário internacional, a correlação das forças políticas e econômicas e a ideologia
vigente, ao passo que dão suporte ao modelo econômico existente, influenciam a condução das
políticas públicas e a qualidade de vida das pessoas numa determinada sociedade (GOMES,
2012).
Desse modo, espera-se que com base na teoria da Administração Política (capacidade
de gestão) se possa melhor analisar a alocação da CFURH nos municípios da região nordeste.

Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos (CFURH)


As compensações financeiras foram instituídas pela Constituição Federal de 1988 –
parágrafo 1º do artigo 20 – como uma forma de garantir a todos os entes federados a
participação no resultado da exploração de hidrocarbonetos, de recursos hídricos para a geração
de energia e de outros recursos minerais (TCU, 2008).
A CFURH é o encargo que os titulares de concessão ou autorização de usinas pagam
para exploração de potencial hidráulico aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios nos
quais se localizem unidades geradoras de energia elétrica ou os seus respectivos reservatórios,
bem como aos órgãos da administração direta da União (TCU, 2005).
Menezes (2011) classifica o recolhimento da CFURH como um procedimento de
internalização de uma externalidade, ou seja, uma contribuição pela diminuição da capacidade
de oferta de um serviço ambiental por conta da utilização de um recurso natural escasso, o
acesso à água.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A CFURH foi criada pela lei complementar 7.990, de 28 de dezembro de 1989, sendo
recolhida por todas as unidades geradoras que possuam capacidade instalada superior a 30
MWh (ANEEL, 2007) e foi reformulada pela peça legislativa 9.984/2000 (BRASIL, 2000). A
energia gerada para consumo pelo próprio produtor, desde que no mesmo município, é isenta
do recolhimento da compensação (BRASIL, 1989).
De acordo com o disposto no artigo 28, da Lei 9.984/2000, a CFURH corresponde a
6,75% do valor da energia gerada, calculada conforme a seguinte fórmula (TCU, 2008):

CFURH = EG x TAR x 0,0675 (01)

Onde:

• CFURH – Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos;


• EG – Energia gerada no mês de competência, em Megawatts/hora (MWh);
• TAR – Tarifa Atualizada de Referência por Megawatts/hora (MWh) calculada pela
ANEEL.

Considerando que o volume de Energia Gerada (EG) é uma variável que escapa ao pleno
controle da unidade de geração, sendo também determinada pelas diretrizes do Operador
Nacional do Sistema (ONS), e que a Tarifa Atualizada de Referência (TAR) é definida pela
Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL, 2007), então a CFURH é um produto suscetível
ao poder regulador do Estado.
A CFURH não é alvo de qualquer tipo de vinculação, sendo livre a sua utilização, salvo
para o abatimento de dívidas nas quais a União ou suas entidades não sejam credores e para o
pagamento do quadro permanente de pessoal, com exceção para os salários dos profissionais
do magistério em efetivo exercício na rede pública de ensino (BRASIL, 1989).
Ao passo em que a ANEEL configura-se como o órgão responsável pelo cálculo da
CFURH, é por meio da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) que se é promovida a sua
distribuição que está submetida ao previsto na Lei 8.001/90, posteriormente alterada pelas Leis
9.993 e 9.984/2000, conforme a seguinte regra (TCU, 2005):

• 45% aos Estados onde se localizam as barragens;


• 45% aos Municípios atingidos pelas represas;
• 4% ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT);
• 3% ao Ministério das Minas e Energia (MME);
• 3% ao Ministério do Meio Ambiente (MMA);
• 0,75% ao MMA com vistas à implantação da Política Nacional de Recursos
Hídricos e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

Métodos e Materiais
A pesquisa seguiu os procedimentos básicos de um levantamento estatístico (LOESCH,
2012): planejamento (definição dos objetivos, do tipo de pesquisa, da população alvo e da forma
de coleta e tratamento dos dados), coleta dos dados, apuração, exposição e interpretação dos
respectivos resultados. Isso porque, o seu objetivo foi o de analisar a distribuição da CFURH
recolhidos por diversas concessionárias de produção de energia elétrica, em favor de municípios
localizados na região Nordeste, no ano de 2013. A opção pelo ano de 2013 ocorreu pelo fato de
ser esse é o último ano a possuir todos os dados sobre as finanças municipais publicados pela
STN.
Após a coleta e organização dos dados, foram realizadas transformações matemáticas
(indicadores e percentuais) e estatísticas (medidas de centralidade e de dispersão) que

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

permitiram melhor compreender o conjunto de números originais. As medidas de centralidade,


ou de posição, são utilizadas quando se tenta identificar um valor resumo de uma amostra ou
população quaisquer. Já as medidas de dispersão apontam o quanto a medida de posição se
distância dos valores de cada um dos elementos (MILONE, 2004).
A medida de tendência central utilizada foi a média aritmética, enquanto que as de
dispersão foram o desvio padrão e o coeficiente de variação – valor que permite a comparação
entre duas ou mais amostras, pois pode ser interpretado como o total de dispersão por unidade
de média (LAPPONI, 2005).
A principal grandeza de análise foi o montante da CFURH distribuído aos municípios
nordestinos, no ano de 2013, sendo utilizado para a identificação das localidades os dados da
ANEEL. Para as informações relativas ao total de receita corrente, da receita tributária, das
transferências obrigatórias recebidas, da despesa corrente, da despesa com pessoal e seus
respectivos encargos, foram utilizados dados da Secretaria do Tesouro Nacional, Finanças
Brasil (FINBRA). E finalmente, os dados da população residente foram coletados junto ao
Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE).
Após a coleta dos dados, foi identificado o peso da CFURH na composição da receita
orçamentária, seu nível de participação sobre o quantitativo de transferências obrigatórias
recebidas, a proporção da contribuição da compensação para a despesa corrente, a incidência
do gasto com pessoal sobre o volume da despesa corrente total e a determinação do índice per
capita do gasto público livre da despesa de pessoal.
Tomando como base a hierarquização dessas relações, foi possível a construção de um
mosaico com as localidades recebedoras da CFURH, no Nordeste brasileiro, no ano de 2013.
Tais informações permitiram avaliar a influência da referida compensação sobre as finanças
públicas das unidades federativas.
Secundariamente, procurou-se saber quais eram as empresas recolhedoras da CFURH,
no Nordeste, quais municípios estavam vinculados e qual o tamanho das suas contribuições, em
volumes total, médio e relativo, com o objetivo de se mensurar a importância dessas
organizações para as contas públicas dos municípios estudados.
Para fins exclusivamente didáticos, a análise lançou mão do recurso discricionário de
dividir os municípios em dois grupos: um formado pelas cidades que receberam um total de
recursos acima da média aritmética, e outro pelas localidades que ficaram aquém desse valor.
Para o ano de 2013, o exame dos resultados permitiu identificar quais são os municípios
detentores do direito de recepção da CFURH, a influência dessa contribuição sobre a qualidade
das suas finanças e os maiores recolhedores e o tamanho desse pagamento.

Um olhar descritivo dos resultados


Os resultados mostraram que, no ano de 2013, o padrão de Administração Política
adotado pela ANEEL autorizou o repasse de R$ 123.768.612,67 para os estados e municípios
nordestinos, a título de CFURH para a geração de energia elétrica, algo em torno de 9,3% do
total nacionalmente distribuído. Desse montante, metade – R$ 70.283.683,52 – ficou com os
governos estaduais e a fração restante foi diretamente remetida para 54 (cinquenta e quatro)
municípios da região.
Desses, 34 estão localizados no Estado da Bahia; seis, em Pernambuco; cinco, no
Maranhão; quatro, tanto no Piauí quanto em Alagoas e um único, em Sergipe. A Bahia é a dona
da maior parte dos recursos transferidos (48%), enquanto que Alagoas fica com 17% desse
montante; Pernambuco, com quase 15%; Sergipe, com 12%; o Maranhão com 7% e o Piauí,
com pouco mais de 1% do total distribuído naquele ano.
No entanto, numa média por município, o Estado de Sergipe é o campeão. Com apenas
um município recebendo transferências da CFURH, a cidade de Canindé do São Francisco,

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

recebeu um valor médio de R$ 8,3 milhões por localidade. Logo após surge Alagoas, com quase
R$ 3 milhões por cidade e, depois, Pernambuco, com R$ 1,79 milhões por unidade. A Bahia e
o Maranhão recebem, por cidade, quase R$ 1 milhão. Ao passo que o Piauí recebeu apenas R$
226 mil.
No setor, são seis as empresas que atuam na região Nordeste: a Afluente Geração de
Energia S.A., a Companhia Energética Estreito S.A., a Companhia Hidroelétrica do São
Francisco (CHESF), a Cia. Energética Santa Clara, a Itapebi Geração de Energia e a Votorantim
Cimentos Norte/Nordeste S.A. A CHESF atua nos Estados de Alagoas, Bahia, Pernambuco,
Piauí e Sergipe. A Itapebi, no Maranhão e as outras, exclusivamente na Bahia.
A CHESF é a empresa com maior participação no volume de contribuição. Na verdade,
ela é a empresa hegemônica nessa área: recolhendo mais de R$ 65 milhões, sendo responsável
por 92,6% do montante arrecadado no ano de 2013. Em seguida aparece a Companhia de
Estreito (5,5%), a Itapebi (1,6%), e a Afluente, a Santa Clara e a Votorantim, juntas, respondem
por menos de 0,3% do total recolhido.
As 37 cidades dentro da área de abrangência da CHESF receberam, em média, R$ 1.760
mil no ano de 2013. Nessa mesma época, os dois municípios atingidos pelos lagos das usinas
da Itapebi receberam, a título de compensação financeira, uma média de R$ 1.920 mil. As outras
quatro geradoras repassaram um valor médio de R$ 88,5 mil às quinze localidades
remanescentes.
A partir das análises dos dados, pode concluir que o repasse da CFURH é um evento
concentrado: metade desses recursos é direcionada a apenas cinco cidades. Canindé do São
Francisco, em Sergipe, é o maior destino desse montante (12%); seguida por Glória/BA (11%),
Delmiro Gouveia/AL e Paulo Afonso/BA, com 9,5%, cada e, por fim, Sento Sé/BA, que
recebeu 8,7%.
Apenas dezesseis cidades obtiveram repasses anuais que superaram o valor médio de
distribuição (R$ 1.301.549,69), naquele ano. Dessas, somente uma não é atingida por barragens
da CHESF; Carolina, no estado do Maranhão. Por sinal, essa também é a única nesse rol que
não se encontrava entre Alagoas, Bahia, Pernambuco e Sergipe.
A média dos valores depositados em favor dessas unidades populacionais, para o ano
de 2013, foi de R$ 4 milhões, com um desvio-padrão de R$ 2,4 milhões. Isso implica um
coeficiente de variação de 60%, o que permite afirmar que a dispersão dos elementos, em torno
da média, não é alta. Se o teto desse grupo está nas mãos de Canindé do São Francisco/SE (R$
8,3 milhões), o piso é dado por Itacuruba/PE (1,3 milhões).
Por sua vez, as cidades que não alcançaram a marca do R$ 1,3 milhão em recebimento
da CFURH auferiram, em média, R$ 144 mil. Contudo, o nível de dispersão dentro desse
conjunto é muito maior do que a sua contraparte: coeficiente de variação de 139%. Estreito, no
Maranhão, abre essa ala com a recepção de aproximadamente R$ 672 mil, em 2013, enquanto
que Mucuri/BA fecha a lista com apenas de R$ 521,23, naquele mesmo ano.
Esses números permitiram a compreensão da realidade encontrada, dentro do cenário
circunscrito pela distribuição da CFURH, para as localidades que possuem o direito de recebê-
la no Nordeste brasileiro, em 2013. Mas qual o efeito dessa fonte de recursos sobre as finanças
públicas dessas municipalidades?
No que toca à análise do cenário fiscal e orçamentário dos 54 municípios aqui estudados
é necessário registrar primeiramente que somente 43 puderam efetivamente ser examinados,
tendo em vista que os outros onze não possuíam dados cadastrados no FINBRA para o ano de
2013.
Essas pouco mais de quatro dezenas de cidades possuem forte dependência das
transferências obrigatórias. Esses perfizeram, em média, uma participação de 100% da Receita
Corrente. Independentemente de a localidade pertencer ou não à categoria das que recebem

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

mais que R$ 1,3 milhões por ano em Compensação Financeira, qualquer uma colapsaria se
fosse tentar sobreviver com a sua própria Receita Tributária.
Em todas elas a CFURH possui uma contribuição residual sob seus orçamentos. Na
média, em 2013, a Compensação representou 2,8% do volume total de transferências
obrigatórias. Porém, esse percentual cai para 0,5% nos municípios cujo seu valor anual é menor
que R$ 1,3 milhões e vai a 7% naqueles os quais essa marca é superada.
Ratificando o quadro em que as Transferências Obrigatórias são a verdadeira Receita
Corrente desses municípios, foi visto que a média da participação relativa da Contribuição sobre
essa mesma receita, no agrupamento de cidades acima de R$ 1,3 milhões, é também de 7%, ao
passo em que no outro conglomerado, essa medida de tendência central repete seu desempenho
anterior (0,5%).
No caso do primeiro conjunto, a CFURH possui um maior peso na Receita Corrente de
Glória/BA (20,6%) e de Olho d´Água do Casado/AL (12,9%). Pilão Arcado/BA e
Petrolândia/PE são as que, nesse grupo, detém a menor participação relativa desse recurso nas
suas contas, 2,7% e 2,4%, respectivamente.
Dentre os menores de R$ 1,3 milhões em recebimento da CFURH, essa contribuição
possui maior peso para o município de Porto Alegre do Piauí, perfazendo 4,3% da Receita
Líquida e uma menor importância em Castro Alves, Feira de Santana, Maracás e Mucuri (todas
na Bahia), com uma participação inferior a 0,01%, cada.
Em 2013, das 41 localidades investigadas, somente três apresentaram um resultado
fiscal negativo: Sento Sé, Castro Alves e Itarantim. Sendo todas sediadas na Bahia e onde
apenas a primeira obteve uma CFURH anual superior a R$ 1,3 milhões; as outras duas,
obviamente, ficaram aquém desse valor.
Contudo, em apenas cinco cidades a Despesa com Pessoal e Encargos é inferior à
metade da Despesa Corrente: Ibirapitanga, São Gonçalo dos Campos e Feira de Santana, na
Bahia, e Porto Alegre do Piauí, dentre aqueles que receberam menos de R$ 1,3 milhões em
CFURH, em 2013, e Glória/BA no grupo dos maiores receptores.
O peso da folha de pagamento é a única constante entre os dois agrupamentos aqui
citados. Para ambos os recortes essa rubrica consome, em média, 58% da Despesa Corrente em
todas as cidades, indistintamente do volume de Contribuição Financeira recebida. Ainda que
haja pontos extremos como Carolina/MA (84,9%) e Porto Alegre do Piauí/PI (38,5%), o
coeficiente de variância dessa amostra é de 13,5%.
Em três municípios a CFURH é de extrema importância: Glória/BA, onde ela cobre
23,7% da Despesa Corrente; Olho d´Água do Casado/AL, com uma razão de 14,3% e
Rodelas/BA, na qual pouco mais de 10% dos seus gastos são honrados por recursos gerados
pela Compensação.
A margem de contribuição da CFURH para a Despesa Corrente é maior no conjunto de
cidades de maior volume de repasse do que naquelas de menor volume. Para a primeira
categoria essa proporção chega a 7,6%, ao passo em que, para a segunda, a sua influência é
praticamente nula, com um valor médio de 0,6%. Isso vai refletir no nível per capita do gasto
municipal livre da despesa de pessoal dessas localidades. Para todo o conjunto esse indicador
era de R$ 820,60/ano, em média, em 2013. Na classe dos que receberam mais de R$ 1,3 milhões
em CFURH, esse número ficou em R$ 956,15/ano. No outro grupo, a razão era de R$
742,40/ano.
As maiores de todas essas proporções foram identificadas nas cidades de Itacuruba/PE,
com uma marca de R$ 2.762,42/habitante/ano, e de Canindé do São Francisco/SE (R$
1.916,59/habitante/ano); ambas estando entre as maiores receptoras da CFUHR. Analogamente,
Carolina/MA, que deteve um gasto público per capita de R$ 252,39/ano, e Belém do São
Francisco/PE, com um indicador de R$ 46,74/habitante/ano, são os menores desempenhos

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nessa categoria de análise. Ressalte-se que somente a primeira dessas recebeu mais de R$ 1,3
milhões, em 2013.

Um olhar interpretativo dos resultados


Os dados aqui apresentados mostram que o nível de concentração da CFURH para os
municípios nordestinos faz com que ela possua uma importância superior para aqueles que são
destino da maior fração do seu volume. Então, para o conjunto de todas essas localidades
emerge uma realidade dicotômica, a CFURH é crucial para as finanças públicas municipais
aonde ela sobeja, e é complementar (ou residual) aonde ela é reduzida. Situação que vai
demandar abordagens distintas de análise e/ou planejamento.
Em virtude de que a CFURH, de acordo com a fórmula 01, é um coeficiente que possui
um considerável nível de exposição à ação reguladora do planejamento estatal, uma vez que
dois dos seus fatores (a Energia Gerada e a Tarifa Autorizada de Referência) são controlados
por órgãos ligados ao Governo Federal e, consequentemente, às suas ações de política
econômica. Pode-se, assim, concluir que a concepção do modo de produção e gestão de tais
relações, a Administração Política do Estado Brasileiro, influencia na composição da CFURH,
direcionando e controlando sua distribuição.
Se para os municípios de menor volume de transferência o papel da CFURH é de
coadjuvância, para os que recebem a maior parte dos recursos – aqueles com repasses superiores
a R$ 1 milhão anuais – a Compensação desempenha um determinado grau de protagonismo.
Para esses últimos, dado a não vinculação da aplicação da CFURH, tal Transferência
poderia servir, em tempos de expansão econômica, como fonte de financiamento do aumento
da capacidade de oferta de bens e serviços públicos ou, nos momentos de retração, permitir ao
poder público local suportar possíveis dificuldades geradas pela queda de arrecadação.
Concorre para o aumento dessa vulnerabilidade o fato de que os valores repassados
são definidos pelo agente regulador pouco mais de um mês antes da sua efetiva transferência,
sem contar que o volume de geração também é definido alhures, ao arrepio da programação
orçamentária da prefeitura beneficiária, ou seja, não existe um horizonte de longo prazo quando
o assunto é o repasse da CFURH.
Assim, sem entrar no mérito da qualidade da sua apuração, qualquer mudança nos
fatores de determinação da CFURH deve levar em conta essas possibilidades, no sentido de
saber se o seu valor realmente internaliza o custo social do processo de geração de energia
hidroelétrica.

Considerações finais
O objetivo principal da presente pesquisa foi o de analisar a distribuição da
Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos (CFURH), recolhidos por
diversas concessionárias de produção de energia elétrica, em favor de municípios localizados
na região Nordeste, no ano de 2013.
Assumiu-se uma análise quantitativa descritiva, donde foram coletados dados relativos
ao montante da CFURH distribuídos aos municípios nordestinos, no ano de 2013, os seus
respectivos totais de receita corrente, da receita tributária, das transferências obrigatórias
recebidas, da despesa corrente, da despesa com pessoal e seus respectivos encargos e, por fim,
da população residente. Como ferramenta de análise foram utilizadas algumas medidas
estatísticas de natureza descritiva: média aritmética, desvio-padrão e coeficiente de variação.
Foi visto que a distribuição da CFURH é concentrada. Tanto no que se refere ao
conjunto de cidades atendidas – pois somente 54 localidades nordestinas têm direito a ela –
quanto internamente a esse conjunto, uma vez que apenas cinco municípios recebem mais da
metade dos recursos.

450
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Por ser desigual, a distribuição da CFURH permite que as municipalidades que a


receberam em maior proporção consigam incrementar as suas Despesas Correntes ao nível per
capita, de modo que esse indicador é superior onde a Compensação é relativamente grande, em
relação àquelas onde é residual.
Considerando que a gestão (concepção) da CFURH é suscetível às ações de política
econômica e ao poder regulatório do governo federal, mais do que às forças determinantes do
mecanismo de preços, quando de possíveis mudanças na sua composição deve ser levado em
conta o impacto dessas alterações sobre a sanidade das finanças públicas dos municípios que a
recebem.
Logo, uma vez que o texto ora em tela trouxe à tona o rol de municípios detentores do
direito de recepção da CFURH, que desvelou o tamanho dos recursos distribuídos, que
mensurou o seu impacto sobre a receita e despesa orçamentárias e identificou alguns dos riscos
aos quais o poder público municipal mostra-se exposto, é crível que ele tenha atendido aos seus
objetivos.
Apesar da limitação temporal da pesquisa, que analisou apenas o ano de 2013, os
resultados encontrados mostram a importância de uma temática pouco discutida e abrem
possibilidades para a ampliação dos debates nesta área, particularmente, quando se trata de uma
região historicamente castigada, seja pela natureza, seja pelas políticas publicas: o nordeste
brasileiro.

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453
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Gestão fiscal e desenvolvimento municipal na microrregião de Aracaju/SE-


2006 a 2013

Emerson de Sousa Silva


Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Francisco Lopes de Sousa


Universidade Federal de Sergipe (UFS)

Hallison de Sousa Silva


Universidade Federal de Sergipe (UFS)

Introdução
A ação política governamental deve pretender focar o desenvolvimento das sociedades
sobre as quais se responsabiliza. É de sua conta a promoção de ações e o alcance de metas que
permitam a esse mesmo agrupamento social a superação de sua materialidade, o que requer
algum grau de planejamento e o conhecimento claro e conciso das realidades que conformam
o comportamento dos agentes que servirão, ao mesmo tempo, como insumo e alvo dessas
mesmas ações de políticas públicas. Torna-se premente, então, entender quais os efeitos das
ações de políticas públicas sobre o nível de bem-estar das cidades constituintes da microrregião
de Aracaju, no estado de Sergipe, que vem a ser composta pelos municípios de Aracaju, Barra
dos Coqueiros, Nossa Senhora do Socorro e São Cristóvão.
A microrregião de Aracaju possui, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), nos resultados do Censo Demográfico 2010, uma população residente de
mais de 835 mil habitantes e, conforme a Secretaria do Tesouro Nacional, elas geriram juntas,
em 2013, uma execução orçamentária de quase R$ 1,7 bilhões. Em níveis per capita é possível
identificar que a despesa liquidada média dessas localidades foi de R$ 1.679,80. Contudo, há
um considerado nível de dispersão na distribuição espacial desses dados. Aracaju possui uma
despesa liquidada per capita de R$ 2,4 mil; Barra dos Coqueiros, de R$ 2,2 mil; Nossa Senhora
do Socorro, R$ 1,2 mil e São Cristóvão, com o mais baixo nível, R$ 1 mil.
A despeito das diferenças existentes – população residente, dotação orçamentária,
volume de gastos público e nível do produto – será que é possível afirmar que essas
municipalidades passaram por um processo de distanciamento nos seus perfis de
desenvolvimento municipal e de gestão fiscal? O presente trabalho, então, coadunando os
referenciais teóricos de três campos distintos do conhecimento – Administração Política,
Federalismo Fiscal e a Nova Gestão Pública – intenta dar resposta a esse questionamento. Mas
o seu escopo não encerra com a elaboração de uma simples resposta monotônica.
Também foi requerido que as impressões a serem levantadas não ficassem circunscritas
à subjetividade de percepções analíticas. Por isso foi demandado o uso de indicadores sintéticos
de desempenho e de uma ferramenta quantitativa para que a interpretação dos resultados fosse
feita em bases concretas. Sabendo-se que os municípios brasileiros possuem fontes rígidas de
financiamento (tributação própria e transferências legais), a abrangência das políticas públicas
dos demais entes federativos, bem como as sua atribuições constitucionais, o problema que
emerge desses itens é o de se saber até onde a ação governamental local permitiu uma
aproximação dos perfis de desenvolvimento e de gestão fiscal das quatro cidades constituintes
da microrregião de Aracaju, em Sergipe.
Considerando também que os gastos dos municípios per capita não são aproximados,
surge a necessidade de se inferir se a execução destes recursos estaria também repercutindo de
forma simétrica nos índices de desenvolvimento humano de cada município da região estudada.
A hipótese principal da pesquisa é a de que, entre 2006 e 2013, os indicadores de

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

desenvolvimento e da qualidade da gestão fiscal dos municípios estudados foram objeto de um


processo de aproximação, ou seja, de um aumento do seu grau de parecença.
Deveria, portanto, o estudo apontar assimetria entre os índices de gestão fiscal e os de
desenvolvimento, dado que, a despeito de a elaboração e execução orçamentária serem
normatizadas de forma uniforme para os entes municipais, não possuem parecença quanto aos
recursos municipais per capita de cada unidade pesquisada. Neste estudo, tem-se como objetivo
geral a análise da trajetória dos indicadores de desenvolvimento e de qualidade da gestão fiscal
dos municípios componentes da microrregião de Aracaju (Aracaju, Barra dos Coqueiros, Nossa
Senhora do Socorro e São Cristóvão) entre os anos 2006 e 2013.
Dentre os objetivos específicos busca-se apresentar as medidas disponíveis de
mensuração do desenvolvimento e da qualidade fiscal municipais, descrever as metodologias
de cálculo desses índices, demonstrar os referidos indicadores dos municípios estudados, no
período definido, comparar as trajetórias dessas unidades territoriais e desenvolver análise
comparativa acerca dos resultados obtidos de cada município estudado.
Conforme já expresso, a presente proposta está assentada na combinação dos preceitos
da Administração Pública, da base teórica da Administração Política e no estudo das
características do Federalismo Fiscal brasileiro e nos modelos de análise do desenvolvimento
municipal e da sua consequente gestão fiscal. A sua pertinência advém do seu ineditismo e da
possibilidade de aplicação como instrumento de mensuração da relação da gestão fiscal com o
desenvolvimento dos municípios estudados.
Espera-se que do seu resultado surjam prescrições e indicações que venham a contribuir
para o aperfeiçoamento dos mecanismos de governança pública nos municípios estudados, mas
que poderiam muito bem ser aplicados às demais localidades do interior brasileiro. Na relação
entre o Estado e sociedade brasileira, a história recente nos mostra que dentre os anseios da
sociedade está o de verem refletidas na atuação estatal a busca por melhorias na educação, saúde
e renda e emprego.

2. Referencial teórico
A pesquisa está calcada em três suportes teóricos: os preceitos da Nova gestão Púbica,
o estudo da Administração Política e os princípios do Federalismo Fiscal. A Administração
Política será utilizada para analisar os resultados da ação governamental ao nível do município
no que tange à implementação das políticas públicas nas áreas de educação, emprego e renda e
saúde, e a sua gestão fiscal. A Administração Pública fornecerá modelos de interpretação da
organização das formas de gestão da máquina governamental. O Federalismo Fiscal serve como
lupa de observação das atribuições e das fontes de financiamentos.

2.1 Nova Gestão Pública


Kanayama (2012) conjuga o direito, enquanto conformador dos direitos dos indivíduos;
a política, como o campo da discussão e de embates de ideias e o conceito de consenso – dado
como o resultado do processo de escolha – como os fundamentos da preferência eficiente das
ações de políticas públicas. A despeito do seu caráter econômico, deve ser lembrado que a
escolha é um elemento essencialmente político, resultando da vontade dos elementos
envolvidos, sendo esse mesmo querer mediado pelos limites impostos pelo Direito e pelo nível
de liberdade política presente naquele dado momento.
É premissa da Nova Gestão Pública atuar com foco nos resultados decorrentes da
atuação administrativa, dando importância à informação, à definição de indicadores de
desempenho e ao permanente acompanhamento e aferição dos resultados obtidos a partir das
políticas públicas implementadas, com o escopo de potencializar a eficiência, efetividade e
“accountability” na administração pública (Gomes, 2009).

455
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Entenda-se por eficiência a melhor relação entre o nível de recursos empregados e a


qualidade dos resultados obtidos, ou seja, a gestão do emprego de recursos de forma a obter o
melhor grau da proporção entre os objetivos estabelecidos e os recursos utilizados. A
racionalidade deriva, então, da coerência entre os objetivos e as metas estabelecidos e as ações
e os recursos operacionalizados, obedecendo à seguinte sequência lógica: fixação dos objetivos,
identificação e análise das alternativas existentes, eleição da opção mais indicada e julgamento
dos resultados obtidos.
Os principais determinantes do aumento de eficiência nas organizações públicas
possuem características políticas, organizacionais, culturais, psicológicos dentre outros mais.
Contudo, todos esses podem, resumidamente, ser problematizados a partir dos seguintes tópicos
(GOMES, 2009):

• O processo de estabelecimento dos objetivos, ou seja, qual o método de tomada


de decisão envolvido;
• A disponibilidade e os predicados dos diversos tipos de recursos necessários;
• O nível de racionalidade disponível para processar tal adequação entre meios e
fins, entre recursos e objetivos.

A Nova Gestão Pública não deve ser encarada como um rompimento radical com o
modelo burocrático, uma vez que ela procura apenas coadunar o papel do Estado às modernas
necessidades sociais, trazendo para o léxico do serviço público conceitos como flexibilização
gerencial e controle de resultados (SANO, 2003).

Administração política
A Administração Política como disciplina acadêmica tem por objetivo elucidar a
contribuição da gestão no desenvolvimento econômico, social e ambiental sob os mais variados
cortes espaciais, ou mesmo conceituais, como a própria organização (SANTOS, 2010). O
raciocínio que estriba todo o arcabouço da Administração Política é a concepção de que a gestão
– ação de coordenação e controle com vista ao atingimento eficiente dos objetivos assumidos –
é o objeto da Administração Científica (SANTOS, 2009). Dessa forma, à Administração
Política caberia a compreensão das formas de gestão da sociedade.
Os estudos e as pesquisas no campo da Administração Política diagnosticam que existe
uma hipertrofia de base neoclássica e funcionalista na produção acadêmica da Administração
Científica e que essa necessita, também, se voltar para as mais sortidas formas de gestão das
relações sociais, independentemente do período histórico e do sistema de produção (SANTOS
et al., 2003). Assim, ao mesmo tempo em que ela questiona o funcionalismo das teorias
tradicionais de Administração Científica, ela pauta a sua interpretação da realidade pela
interação entre o Estado, a Sociedade e as Organizações (SUMYIA, SILVA e ARAÚJO, 2014).
Santos (2009) pontua que a simbiose entre essas entidades, ao ver da Administração
Política, se dá num sentido em que a Sociedade mostra-se capaz de definir o nível de bem-estar
ao qual deseja, o Estado manifesta politicamente essas preferências e as Organizações –
enquanto membros executores do Capitalismo – podem por em movimento suas ferramentas
para o alcance desses objetivos. Santos, Santana e Piau (2011) lembram que o sistema produtivo
não conseguiria atingir os seus objetivos sem um planejamento anterior, o que permite
determinar uma relação entre o modelo de gestão adotado (projeto de nação) com os resultados
obtidos (nível de bem-estar social). Resumidamente, é nesse modelo que repousa a finalidade
dos trabalhos da Administração Política.
Esses conceitos são importantes para a Administração Política. Isso porque – conforme
explicam Sumiya, Silva e Araújo (2014), ao analisarem a evolução dessa área do conhecimento
– é defendido pela própria Administração Política que as sociedades são construídas tendo

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

como base as relações entre os elementos da coletividade. Ao assumir essas concepções,


principalmente aquelas atreladas ao pensamento institucionalista, a teoria busca reforçar o seu
caráter crítico e a necessidade de aceitação de que, ao contrário do proclamado pelas teorias
tradicionais da Administração, a divisão do trabalho – dentro e fora da organização – é função
dos elementos constituintes da vida social.
Santos, Santana e Piau (2011) veem na Administração Política um sinal de
amadurecimento e de avanço nos referenciais teóricos e metodológicos da Administração
Científica, uma vez que aquela permite a essa última uma melhor compreensão das relações
sociais que gerenciam a produção, a distribuição e o consumo da sociedade. E determinando
para si uma proposta metodológica específica: para qualquer nível de renda, promover uma
política de distribuição de bem-estar; sendo responsabilidade da sociedade bancar uma ação
política que a permita atingir esse anelo (SANTOS, RIBEIRO e SANTOS, 2009).
A ação estatal, na concepção da Administração Política, mesmo que complementar à
dos demais agentes, deve tomar como objetivo primeiro o atendimento da insatisfação
manifestada pela sociedade e que sirva como suporte para o esforço de plena obtenção da sua
materialidade (SANTOS et al, 2007).
No âmbito da Administração Política, as relações que se constroem entre a política
econômica, o cenário internacional, a correlação das forças políticas e econômicas e a ideologia
vigente, ao passo que dão suporte ao modelo econômico existente, influenciam a condução das
políticas públicas e a qualidade de vida das pessoas numa determinada sociedade (GOMES,
2012).
Myrdal (1996) proclama que a luta política, na vida real, é completamente travada no
âmbito dos arranjos institucionais existentes e os interesses manifestos podem ser modificados
pelas possibilidades de alterações institucionais, ou seja, o bem-estar não é função do status
quo, mas sim, das decisões e das ações dos agentes econômicos.
Santos e Santana (2010) inserem a Administração Política como parte integrante da
Administração do Desenvolvimento, que vem a ser o campo do saber vinculado à ciência
administrativa que tem por escopo o estudo de formas de aplicação de ações gerenciais que
possam promover a evolução e o crescimento dos lugares e das organizações, sob a perspectiva
social, a econômica, a política e a humana.

Federalismo Fiscal
O Federalismo é a forma de organização do Estado nacional caracterizado pela
autonomia administrativa e política dos entes, bem como pela cooperação e reciprocidade entre
suas esferas constituintes da estrutura estatal. Como requisito, as federações possuem, a partir
do pacto político firmado, um arcabouço jurídico que delimitam e expressam as atribuições e
competências da União, estados e municípios, versando aquela sobre questões políticas, da
gestão pública, de tributação e finanças públicas.
A organização governamental federal rege-se por três bases, a saber, a alocação eficiente
de recursos através da descentralização de bens e serviços públicos; a participação política da
sociedade ao escolher os representantes desta nos espaços políticos e de governo e a proteção
das liberdades civis, pois a descentralização é pressuposto para o respeito ao exercício pleno da
cidadania. (BARBOSA et al., 1998).
A escolha por um sistema federativo tem como justificativa teórica a repartição de
funções a cada ente, com o objetivo de se encontrar um ponto perfeito ente demanda e oferta
de serviços e bens públicos. (OATES, 1999). Para Shah (1991), aliada à política de taxação, os
itens que determinam a divisão das despesas são características básicas de uma federação, sendo
esta última de maior importância. A descentralização foi a principal característica do sistema
constitucional tributário com a Carta Magna de 1988, em que se vislumbrou o aumento dos

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

recursos destinados aos estados e municípios, como também foram ampliadas suas atribuições
e despesas (SOUZA, 1997).
Também como saldo surgem o fortalecimento da democracia e a participação nos
governos ao possibilitar maior capacidade de respostas e transparência nos atos desenvolvidos
pelos governos locais, e da mesma forma possibilitar uma maior correlação dos serviços e bens
ofertados com as demandas da população (TER-MINASSIAM, 1997). Com o advento da
Constituição de 1988, alcançou-se o maior avanço e consolidação do federalismo brasileiro, na
medida em que se incrementou a autonomia dos estados, municípios e do Distrito Federal e
celebrou acentuada descentralização dos recursos no capítulo destinado ao sistema tributário
nacional, conferindo expressamente as competências para a criação de impostos, taxas e
contribuições sociais e de melhorias (TRISTÃO, 2003.
Apesar de a Constituição brasileira ter inovado ao incluir o município como ente, surge
como crítica o fim da solidariedade do governo federal com as políticas locais e regionais
(SANTOS E RIBEIRO, 2004). Esta independência dos municípios em relação ao governo
central, considerada por alguns como relativa, com a promulgação da Constituinte de 1988,
vem aliada a formação de desequilíbrios verticais e horizontais na distribuição dos recursos
decorrentes dos tributos estabelecidos.
A reformulação fiscal brasileira a partir da Constituição de 1988 com o processo de
descentralização política, fiscal e tributária também sofre críticas pela ausência, concomitante,
de um processo de descentralização planejada dos encargos e obrigações dos governos sub-
nacionais. Para Souza (1997) o pacto federativo brasileiro busca acomodar os conflitos,
principalmente os de origem regional, em detrimento da busca por sua harmonização,
delimitando estas contradições à estrutura organizativa de seus entes.
De acordo com a Constituição de 1988, a competência dos entes federativos se divide
em dois parâmetros, o legislativo e o material, referindo-se este à atividade executiva estatal e
se orientam, as competências explícitas e implícitas, pelo interesse local. No tocante à
competência legislativa, cabe aos municípios a formulação de normas sobre matérias de
interesse local e suplementar as matérias de autoria federal e estadual, excluindo-se aquelas
privativas da União. Relativo às competências executivas dos municípios, a Constituição, Art.
30, as delimita em atribuições municipais exclusivas, as de competência comum e as referente
ao desenvolvimento urbano.
Tendo como origem a necessidade de diminuir as disparidades arrecadatórias em
contrapartida ao aumento de obrigações entre os entes federados, as transferências
intergovernamentais de recursos, estabelecidas constitucionalmente por lei ou mesmo por
decisão discricionária do governo repassador, visam compensar diferenças regionais de receitas
e alocação de recursos, podendo estas transferências serem condicionadas a determinado
objetivo apontado pelo concedente.
As transferências de recursos federais às unidades federativas podem assim serem
classificados: 1) as definidas constitucionalmente, de caráter obrigatório ou vinculante; 2)
voluntárias, realizadas através de convênios ou contratos de repasse; 3) transferências de gestão
tripartite (SUS e SUAS); 4) de transferência de renda e 5) as transferências que buscam
responder a situações de calamidade ou emergência (LOUZADA, 2012)
No Brasil os principais mecanismos de transferências são gerados a partir da
arrecadação de tributos que tem como fato gerador a renda (IRPF), o consumo (ICMS) e sobre
a prestação de serviços de transporte municipais e intermunicipais e de comunicações. O fluxo
destas transferências é vertical e sempre para baixo, ou seja, não há transferências dos
municípios para os estados ou a União, mas sim, da União para os municípios ou estados ou
destes aos municípios.

3. Métodos e materiais

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O universo de abrangência da pesquisa será conformado pelos municípios constituintes


da microrregião de Aracaju (Microrregião 28011/IBGE), no Estado de Sergipe, conforme
definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): Aracaju, Barra dos
Coqueiros, Nossa Senhora do Socorro e São Cristóvão. A escolha das cidades alvo do estudo
decorre de serem estas que compõem a única região metropolitana do estado, conforme Lei
Complementar nº 25/95.
De acordo com o Sistema IBGE de Recuperação Automática (SIDRA), Tabela 202, a
microrregião de Aracaju possui a maior taxa de urbanização do Estado de Sergipe (97,5%) e
detém mais de 40% da população residente da referida unidade federativa, conforme dados do
Censo 2010/IBGE.
Quadro 1 – População residente dos e participação relativa no Estado - Censo 2010 & PNAD 2012
Município População Produto Interno Despesa corrente Produto interno Despesa corrente
residente Bruto (R$ mil) liquidada (R$ mil) bruto per capita liquidada per
(habitantes) (R$) capita (R$)
Aracaju 571.149 9.813.852 1.344.691,00 17.182,65 2.354,36
Barra dos Coqueiros 24.976 333.515 53.873,00 13.353,42 2.156,99
Nossa Senhora do Socorro 160.827 2.049.719 194.178,00 12.744,87 1.207,37
São Cristóvão 78.864 590.069 78.900,00 7.482,11 1.000,46
MICRORREGIÃO DE
835.816 12.787.155 1.671.642,00 15.299,01 2.000,01
ARACAJU
Fonte: Elaboração dos autores

Ainda de acordo com aquele banco de dados (Tabela 21), as cidades de Aracaju, Barra
dos Coqueiros, Nossa Senhora do Socorro e São Cristóvão possuem importante protagonismo
no cenário estadual, tendo em vista que elas correspondem por mais de 46% do produto interno
bruto. O período de análise está compreendido entre os anos de 2006 a 2013. O que justifica
este período escolhido do estudo decorre do fato de os indicadores terem sido inaugurados na
análise dos anos de 2006 e que a suas últimas edições publicadas se referem ao ano de 2013.
Os dados relativos ao desenvolvimento e à qualidade da gestão fiscal dos municípios
investigados serão obtidos junto aos relatórios IFDM (Índice Firjan de Desenvolvimento
Municipal) e IFGF (Índice Firjan de Gestão Fiscal) publicados pela Federação das Indústrias
do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN), entre os anos de 2006 e 2013.
O Índice FIRJAN de Desenvolvimento Municipal – IFDM foi criado em 2008 para
monitorar anualmente o desenvolvimento socioeconômico brasileiro, fazendo um
acompanhamento dos 5.565 municípios brasileiros, abordando três áreas fundamentais ao
desenvolvimento humano, educação, saúde e emprego e renda. Sendo uma ferramenta de
accountability social e importante farol às políticas públicas locais e regionais. Estando em
constante atualização com a expectativa de capitar os novos desafios do desenvolvimento
brasileiro, levando em consideração a ampla revisão da literatura, a identificação de novas
variáveis e aplicação de testes estatísticos com vistas a confirmar as hipóteses teóricas e avaliar
a estrutura de pesos do índice.
As variáveis que compõem o cálculo do IFDM são: geração de emprego formal,
absorção da mão de obra local, geração de renda formal, salários médios do emprego formal,
desigualdade, matrícula em educação infantil, abandono no ensino fundamental, distorção idade
- série no ensino fundamental, média de horas aula diárias no ensino fundamental, docentes
com ensino superior no ensino fundamental, resultado do IDEB no ensino fundamental, número
de consultas pré-natal, óbitos por causas mal definidas, óbitos infantis por causas evitáveis e
internação sensível à atenção básica.
As dimensões e variáveis do IFDM são divididas em Emprego e Renda, Saúde e
Educação. A variável Emprego e Renda avalia a geração de emprego formal e a capacidade de
absorção da mão de obra local e acompanha a geração de renda e sua distribuição no mercado

459
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

de trabalho do município. As fontes de dados são os registros da Relação Anual de Informações


Sociais (RAIS) e do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED), ambos do
Ministério do Trabalho e Emprego, e projeções oficias de população do IBGE. O objetivo da
vertente Emprego e Renda é capitar tanto a conjuntura econômica como características
estruturais do mercado de trabalho do município.
A variável Educação é composta por seis indicadores que capitam a oferta de educação
infantil e, principalmente, a qualidade da educação prestada no ensino fundamental em escolas
públicas e privadas. A fonte de todos esses dados é o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP), do Ministério da Educação.
A variável Saúde é composta por quatro indicadores com pesos iguais e tem foco na
saúde básica e contempla indicadores cujo controle é de competência municipal. Para esta
variável são utilizados os bancos de dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM),
do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) e do Sistema Internações
Hospitalares (SIH), todos do DataSUS - Ministério da Saúde.
O Índice Firjan de Gestão Fiscal (IFGF) foi criado em 2012 para analisar a forma como
os tributos pagos pela sociedade são administrados pelas prefeituras, trazendo maior
transparência às contas municipais ao facilitar o entendimento dos dados e informações
prestados pelas prefeituras. Ele busca retratar os desafios da gestão municipal na alocação dos
recursos, tendo em vista as restrições orçamentárias com as quais se deparam as prefeituras
brasileiras e todos os indicadores estão em conformidade com os parâmetros definidos pela Lei
de Responsabilidade Fiscal (LRF). O índice é dividido em cinco indicadores:

• IFGF Receita Própria: mede o total de receitas geradas pelo município,


em relação ao total da receita corrente líquida (RCL). O índice permite avaliar o grau
de dependência das prefeituras no tocante às transferências dos estados e da União.
• IFGF Gastos com Pessoal: representa quanto os municípios gastam com
pagamento de pessoal, em relação ao total da receita corrente líquida (RCL). Tendo em
vista que esse é o gasto com maior participação na despesa total de um município, este
indicador mede o grau de rigidez do orçamento, ou seja, o espaço de manobra da
prefeitura para execução das políticas públicas, em especial dos investimentos.
• IFGF Investimentos: acompanha o total de investimentos, em relação à
receita corrente líquida (RCL). Ruas pavimentadas, iluminação pública de qualidade,
transporte eficiente, escolas e hospitais bem equipados são exemplos de investimentos
municipais capazes de aumentar a produtividade do trabalhador e promover o bem-estar
da população.
• IFGF Liquidez: verifica se as prefeituras estão deixando em caixa
recursos suficientes para honrar suas obrigações de curto prazo, medindo a liquidez da
prefeitura como proporção das receitas correntes líquidas.
• IFGF Custo da Dívida: corresponde às despesas de juros e amortizações,
em relação ao total das receitas líquidas reais (RLR). O índice avalia o
comprometimento do orçamento com o pagamento de juros e amortizações de
empréstimos contraídos em exercícios anteriores.

Com relação à Base de Dado do IFGF índice é inteiramente construído com base nos
resultados fiscais declarados pelas próprias prefeituras, informações oficiais disponibilizadas
anualmente pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) por meio dos arquivos ‘Finanças do
Brasil’, conhecido como Finbra. São dados oficiais referentes a despesas, receitas, ativos e
passivos dos entes públicos brasileiros.
O período escolhido se deve ao fato de que somente nesse espaço de tempo foram
publicados relatórios de ambos os indicadores, o que permitiria uma interpretação mais segura

460
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

dos dados, sem a necessidade de se promover extrapolações dos resultados obtidos. Os dados
obtidos foram alvo de alguns tratamentos matemáticos a fim de que possam ser feitas as
considerações necessárias. A técnica a ser utilizada será a mensuração da Distância Euclidiana,
que é dada pela seguinte fórmula (FAVERO et al, 2009):

dij = √[(xi – xj)2 + (yi – yj)2] 01

Onde:

dij - Distância Euclidiana


xij- Coordenadas do atributo x dos elementos i e j
yij - Coordenadas do atributo y dos elementos i e j

A análise dos resultados obtidos será também objeto de estudo através de métodos e de
técnicas da estatística descritiva, que se refere à parte da estatística que coleta, critica, organiza,
resume e apresenta dados característicos e relativos aos atributos dos fenômenos estudados, tais
como média aritmética e desvio padrão. Nesse rol de ferramentas estão inclusos a média
aritmética, que é uma medida de posição, o desvio-padrão e o coeficiente de variação, que são
medidas de dispersão. Esses constructos tiveram por missão permitir a localização e a
comparação entre os resultados obtidos.
No presente caso, cada um dos dois indicadores (atributos) – IFDM e IFGF – serão
tratados como coordenadas dos municípios estudados, para cada um dos anos examinados. Dos
resultados obtidos serão definidos os níveis de similitude ou de diferenciação entre esses
mesmos entes federativos. Quanto maior a separação entre os pontos, ou seja, a magnitude da
Distância Euclidiana, menor será a semelhança entre os elementos investigados (os municípios
da microrregião de Aracaju) em cada um dos anos. De modo inverso, maior será o grau de
parecença.
Logo, caso os municípios estudados estejam convergindo no que tange ao seu
desenvolvimento e à qualidade da sua gestão fiscal, será esperado que a Distância Euclidiana
esteja reduzindo-se com o passar dos anos. Em ocorrendo o contrário, esse distanciamento
apresentará um viés de crescimento.

4. Análises dos resultados


O estudo ora em tela parte inicialmente da análise do IFDM e do IFGF dos quatro
municípios componentes da microrregião de Aracaju, no período compreendido entre os anos
de 2006 a 2013. Onde pode ser visto que não há uma pronta similaridade das quatro trajetórias,
mas sim pontos de tangências em aspectos específicos. Os resultados da pesquisa possibilitaram
perceber que os municípios de Nossa Senhora do Socorro e Barra dos Coqueiros possuem perfis
mais centrais, ao passo em que as cidades de São Cristóvão e de Aracaju detém um
comportamento mais distante dos demais.
Isso vai redundar na percepção de que essas unidades territoriais podem ser divididas
em três conjuntos. No primeiro, encontra-se a cidade de Aracaju, com um desempenho maior
nos dois Índices (IFDM e IFGF); no segundo, numa posição intermediária, localizam-se Barra

461
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

dos Coqueiros e Nossa Senhora do Socorro e, por fim, no terceiro agrupamento, com uma
Quadro 2 – Distâncias Euclidianas média dos conjuntos municipais IFDM x IFGF
Aracaju Barra dos Coqueiros N. Sra. Socorro São Cristóvão Mútua
2006 0,214 0,170 0,151 0,303 0,210
2007 0,238 0,231 0,223 0,334 0,256
2008 0,289 0,228 0,266 0,497 0,320
2009 0,256 0,220 0,224 0,321 0,255
2010 0,273 0,135 0,115 0,117 0,160
2011 0,295 0,151 0,134 0,172 0,188
2012 0,221 0,180 0,163 0,249 0,204
2013 0,174 0,128 0,145 0,134 0,145
Média 0,245 0,180 0,178 0,266 0,217
Fonte: elaboração dos autores
menor performance, a histórica São Cristóvão.
Aracaju, nos oito anos analisados, retornou uma média de 0,733, para o IFDM, e 0,668,
para o IFGF. Logo após, surge Nossa Senhora do Socorro com um par ordenado médio de 0,634
x 0,545, para a combinação IFDM x IFGF. A Barra do Coqueiros, obtém coordenadas médias
de (0,595; 0,529) e São Cristóvão, (0,636; 0,330).
Logo se vê o que distancia São Cristóvão das demais é a qualidade da sua gestão fiscal.
Mas o desempenho de Aracaju também não é constante. Se, entre 2006 e 2011, ensaia um
movimento de distanciamento dos perfis das três municipalidades, em 2013 obtém seu pior
resultado dentre os anos sob estudo. Em 2006, a distância média de Aracaju para os demais
municípios é de 0,186 pontos. Em 2013, é de 0,174.
Esse fenômeno pode explicar o processo de retomada de convergência dos indicadores
após o ano de 2008, ou seja, é por meio da trajetória da capital sergipana que os perfis de
desenvolvimento humano e de gestão fiscal da microrregião de Aracaju vão se tornar
semelhantes. Entretanto, a principal constatação foi a de que os municípios constituintes da
microrregião de Aracaju se tornaram mais parecidos no que concerne à relação entre
desenvolvimento e gestão fiscal, nos anos de 2006 a 2013, dado que a distância média entre
eles reduziu-se nesse mesmo período. Não custa relembrar que o trabalho, tomando como
coordenadas num espaço bidimensional o IFDM e o IFGF dos municípios aqui estudados,

Figura 1 – Evolução do IFGF – Municípios da Microrregião de Aracaju – 2006 a 2013


0,8

0,6

0,4

0,2

2013

Fonte: Elaboração dos autores

462
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

intentou calcular a distância euclidiana entre cada uma daquelas unidades federativas para os
anos que vão de 2006 a 2013.
Os cálculos promovidos no âmbito do presente artigo mostraram que, em 2006, a
distância euclidiana mútua entre as localidades aqui estudadas estava na média de 0,210. Sete
anos depois, essa mesma medida de tendência central encontrava-se num patamar inferior ao
inicial: 0,145. Contudo, tal trajetória não é linear. Houve momentos de retração alternados com
situações de expansão. Uma divisão temporal possível seria entre antes e de depois de 2008.
Isso porque, de 2006 até aquele ano, a distância mútua entre as municipalidades alcançou uma
marca nunca mais atingida (0,320).
Em suma, as trajetórias dos indicadores de desenvolvimento humano e de gestão fiscal
dos quatro municípios aqui estudados mostraram-se, desde o ano de 2008, estarem num
processo de convergência, de modo em que os seus valores estão se aproximando período após
período. Daí para frente, a única ocasião onde ocorreu algum tipo de aumento da disparidade
entre as referidas cidades – de 2010 a 2012 – em nada se comparava com o que foi detido pelos
três anos iniciais da série temporal coberta pela análise ora desenvolvida.
Para todo o espaço de tempo aqui estudado, a distância média entre os quatro municípios
foi de 0,217. Entretanto, de 2006 a 2008, essa medida chegou a 0,262 e no período seguinte –
2009 a 2013 – decaiu para 0,190. Ou seja, qualquer movimento de distanciamento entre as
localidades foi abortado após 2008. Por todos os oito anos, a cidade com maior grau de
disparidade para com as demais foi São Cristóvão – com uma distância média de 0,266 das
demais cidades – de perto acompanhada por Aracaju (distância média das outras unidades de
0,245). De modo análogo, Barra dos Coqueiros e Nossa Senhora do Socorro foram as de menor
distância média: respectivamente, 0,180 e 0,178.
Esboça-se, assim, um quadro no qual essas duas últimas localidades são elementos de
diminuição das distâncias médias e as outras duas são fatores de aumento desses valores.
Registrando que, entre 2006 e 2008, São Cristóvão era o agente dispersor da similaridade. A
partir de 2009 até 2012, esse papel cabe ao município de Aracaju. Em 2013, todos os quatro
apresentam números semelhantes, formatando um cenário de convergência dos seus respectivos
perfis.
Os números obtidos pela pesquisa não são suficientes para determinar se há algum tipo
de associação entre os indicadores para o conjunto dos municípios estudados. Mas a análise das
trajetórias dos dois indicadores mostra que, para o conjunto das quatro cidades, o IFDM é mais

Figura 2 – Evolução do IFDM – Municípios da Microrregião de Aracaju – 2006 a 2013


0,8
0,7
0,6
0,5
0,4
0,3
0,2
0,1

2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Aracaju Barra Coqueiros São Cristóvão N Sra Socorro

Fonte: Elaboração dos autores

estável do que o IFGF. O primeiro possui um caminho mais suave e em sentido crescente, ao
passo em que o segundo é mais volátil e instável. Isso pode ser observado quando se extrai o
coeficiente de variação (percentual que é dado pela divisão do desvio-padrão dos dados pela

463
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

sua própria média) dos indicadores. De modo agregado – unificando-se todos os resultados de
todos os municípios, em todos os anos – o coeficiente de variação do IFGF (29%) é mais que o
triplo do IFDM (9%).
Dos três índices que compõem o IFDM, somente o relativo ao Emprego e à Renda
apresenta uma leva tendência de queda entre o início e o fim da série temporal aqui estudada.
O de Educação é ascendente em todo esse período e o de Saúde somente não o é para o
município de São Cristóvão. No que tange ao IFGF, o mosaico é mais disforme. Há momentos
em que esse tende a aumentar, enquanto em outros o seu sentido é de queda. Aracaju mostrou-
se um pouco menos instável do que as outras localidades. Paradoxalmente, São Cristóvão vem
num passo de recuperação desse índice desde 2008. Nossa Senhora do Socorro fecha a série
com um valor menor do que iniciara.
Esse quadro pode refletir a situação dos municípios dentro do mosaico federativo
brasileiro. O IFGF é instável porque o formato da realidade fiscal das prefeituras é precário. As
únicas fontes de receitas próprias que elas possuem são os impostos Predial e Territorial
Urbano, o Territorial Rural e o Sobre Serviços, que são determinados pela capacidade de
pagamento dos munícipes e, também, pela possibilidade de cobrança do poder público local.
Não à toa os indicadores de liquidez e de volume de investimento municipal foram os
mais instáveis entre 2006 e 2013. Isso pode ser interpretado da seguinte forma: são as condições
existentes que vão definir a capacidade dos municípios da microrregião em agregar valor à
economia local. Por outro lado, o IFDM mantem-se menos instável do que o IFGF porque muito
dos seus componentes podem ser atendidos direta ou indiretamente por outros entes federativos,
sem se esquecer das despesas vinculadas – saúde e educação, por exemplo – que garantem uma
disponibilidade mínima desses serviços públicos.
Há de se considerar também um possível espraiamento da abrangência dos serviços
públicos ofertados em Aracaju para as outras três localidades. A integração do sistema de
transporte público reduz os custos de mobilidade entre as cidades satélites e a capital do Estado.
Com isso, os serviços públicos monitorados pelo IFDM conseguem manter um padrão de
comportamento durante todo o período investigado. Já o IFGF, fortemente influenciado pela
capacidade orçamentária e gerencial do poder municipal é mais errático. Principalmente nos
momentos de retração econômica.
Outra constatação a ser feita sobre a combinação dos dois indicadores é a de que os dois
indicadores, no âmbito das quatro unidades municipais, sem que haja a determinação da ordem
de causação, parecem possuir uma relação direta: quanto maior for um deles, maior será o outro
índice. Essa percepção é mais forte quando se retira a cidade de São Cristóvão da análise. Isso
porque, ainda que detenha um IFDM similar ao da Barra dos Coqueiros ou de Nossa Senhora
do Socorro, a qualidade da gestão fiscal daquela cidade é tão distoante das demais que ela acaba
afastando-se dessa tendência. Esse evento ficou mais visível nos anos de 2007, 2009, 2012 e
2013.
Há de se aceitar que uma melhor e mais eficiente gestão fiscal desemboque numa melhor
qualidade de oferta de serviços públicos o que melhora o desenvolvimento humano da
localidade. De modo semelhante um maior desenvolvimento dará condições de o poder público
ter meios mais eficientes de planejar a sua atuação.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Figura 3 – Evolução gráfica da relação IFDM/IFGF – Municípios da Microrregião de


Aracaju – 2006 a 2013

IFGF

N Sra

IFGF
NS
B
Coqueiros

0,000
0,000 0,200 0,400 0,600 0,800 1,000 0,000 0,200 0,400 0,600 0,800 1,000
IFDM IFDM

Fonte: Elaboração dos autores

465
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

5. Considerações finais
Conforme já antecipado, o objetivo principal da presente pesquisa foi o de analisar a
trajetória dos indicadores de desenvolvimento humano, representado pelo IFDM, e o de
qualidade da gestão fiscal, dada pelo IFGF, dos municípios componentes da microrregião de
Aracaju, entre os anos 2006 e 2013. A ferramenta de análise foi a Distância Euclidiana, de
modo que os menores resultados apontariam para uma maior similaridade entre os elementos
sob exame, ao mesmo tempo em que os maiores sugeririam uma maior diferenciação entre eles.
Foi visto que, depois de um período de distanciamento entre os perfis de desenvolvimento
humano e de qualidade de gestão fiscal da cidade de Aracaju, em relação aos demais
municípios componentes da sua microrregião, essas unidades voltaram a ter perfis
aproximados. Identificou-se que eles poderiam ser agrupados em três conjuntos distintos, uma
vez que a Barra dos Coqueiros e Nossa Senhora do Socorro possuem indicadores mais
similares, Aracaju distancia-se por deter melhores notas em ambos os índices e São Cristóvão
ser detentor de uma gestão fiscal de mais baixa qualidade que as demais unidades.
Muito dessa aproximação pode ter sido determinada pela redução da qualidade da gestão
fiscal, uma vez que os índices de desenvolvimento humano daqueles territórios mostraram-se
pouco instáveis no período estudado. Desse último, apenas o indicador de Emprego e Renda
apresentou queda entre 2006 e 2013. A gestão fiscal mostrou-se bastante instável. Todos os
seus indicadores componentes oscilaram no período pesquisado. Principalmente os que se
referenciavam na situação de liquidez e no volume de investimento realizado pelo poder público
local, sugerindo que essas duas rubricas são mais expostas às mudanças do ambiente fiscal e
orçamentário de curto prazo do que determinadas pelo planejamento de longo prazo.
Foi visto que é possível uma relação causal entre ambos os índices. Mas não procurou-
se identificar a qual dos dois pode ser atribuído o papel de determinante e o de determinado.
Tal proposição pode ser a base de uma expansão do estudo ora detalhado, de modo que se
explique tal relacionamento. Como outra sugestão pode ser indicado tentar descobrir quais dos
indicadores componentes possui mais eminência na determinação dos dois índices – IFDM e
IFGF – esforço que complementaria e, ao mesmo tempo, expandiria o alcance de algumas
constatações aqui extraídas.

466
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Quadro 3 – Matrizes de Distância Euclidiana entre os municípios da microrregião de Aracaju - IFDM x IFGF – 2006 a 2013
2006 2007
BARRA DOS SÃO N SRA DO BARRA DOS SÃO N SRA DO
ARACAJU ARACAJU
COQUEIROS CRISTÓVÃO SOCORRO COQUEIROS CRISTÓVÃO SOCORRO
ARACAJU 0,000 ARACAJ 0,000
BARRA DOS BARRAU DOS
0,172 0,000 0,254 0,000
COQUEIROS COQUEIROS
SÃO SÃO
0,345 0,286 0,000 0,390 0,226 0,000
CRISTÓVÃO CRISTÓVÃO
N SRA DO N SRA DO
0,124 0,053 0,278 0,000 0,071 0,213 0,385 0,000
SOCORRO SOCORRO
2008 2009
BARRA DOS SÃO N SRA DO BARRA DOS SÃO N SRA DO
ARACAJU ARACAJU
COQUEIROS CRISTÓVÃO SOCORRO COQUEIROS CRISTÓVÃO SOCORRO
ARACAJU 0,000 ARACAJ 0,000
BARRA DOS BARRAU DOS
0,151 0,000 0,269 0,000
COQUEIROS COQUEIROS
SÃO SÃO
0,531 0,440 0,000 0,408 0,182 0,000
CRISTÓVÃO CRISTÓVÃO
N SRA DO N SRA DO
0,184 0,094 0,520 0,000 0,209 0,372 0,000
SOCORRO SOCORRO 0,090
2010 2011
BARRA DOS SÃO N SRA DO BARRA DOS SÃO N SRA DO
ARACAJU ARACAJU
COQUEIROS CRISTÓVÃO SOCORRO COQUEIROS CRISTÓVÃO SOCORRO
ARACAJU 0,000 ARACAJ 0,000
BARRA DOS BARRAU DOS
0,280 0,000 0,282 0,000
COQUEIROS COQUEIROS
SÃO SÃO
0,276 0,059 0,000 0,335 0,109 0,000
CRISTÓVÃO CRISTÓVÃO
N SRA DO N SRA DO
0,262 0,067 0,016 0,000 0,267 0,064 0,072 0,000
SOCORRO SOCORRO
2012 2013
BARRA DOS SÃO N SRA DO BARRA DOS SÃO N SRA DO
ARACAJU ARACAJU
COQUEIROS CRISTÓVÃO SOCORRO COQUEIROS CRISTÓVÃO SOCORRO
ARACAJU 0,000 ARACAJ 0,000
BARRA DOS BARRAU DOS
0,116 0,000 0,151 0,000
COQUEIROS COQUEIROS
SÃO SÃO
0,340 0,275 0,000 0,531 0,440 0,000
CRISTÓVÃO CRISTÓVÃO 467
N SRA DO N SRA DO
0,207 0,150 0,133 0,000 0,184 0,094 0,520 0,000
SOCORRO SOCORRO
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

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Administração Política e Questões Sociais

471
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Ser Professor: O Labor E O Alarme Da Profissão - Um Estudo Sobre A


Saúde Do Educador Nas Escolas Estaduais Da Cidade De Poções – Bahia

Marisa Oliveira Santos


Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

Angélica Gonçalves de Oliveira


Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

Resumo:
A qualidade de vida no trabalho está diretamente relacionada, dentre muitas variáveis, às
condições de trabalho a que o trabalhador está constantemente exposto. O presente estudo tem
como principal objetivo analisar as condições de trabalho oferecidas aos docentes das unidades
escolares estaduais do município de Poções, Bahia, na realização de suas tarefas contando para
discussão com autores como Soratto e Olivier-Heckler (1999); Sampaio, Rocha e Sampaio
(2011). A presente pesquisa buscou estudar e compreender os fatos por meio do estudo de caso,
no qual fez-se o censo da população estudada, os professores efetivos das três escolas estaduais
do município citado. Os resultados da pesquisa demonstram níveis satisfatórios para alguns
parâmetros: local de trabalho, investimento na carreira e satisfação e motivação elevados.
Contudo, ressalvou-se fatores que sinalizam cuidado: dificuldade na realização tarefa,
elementos estruturais, tempo para a vida pessoal, excesso de trabalho, jornada de trabalho
exaustiva, dentre outros. No que se remete à saúde, a mesma encontra-se comprometida pelo
exercício da docência, sendo relatados pelos mesmos, principalmente, os seguintes sintomas e
doenças ocupacionais: ansiedade, problemas digestivos, distúrbios do sono, cansaço físico e
mental, síndrome de Burnout e patologias das cordas vocais.

Palavras-chave: Doenças ocupacionais, qualidade de vida no trabalho, estresse no trabalho.

Summary:

The quality of working life is directly related, among many variables, working conditions to
which the worker is constantly exposed. This study aims to analyze the working conditions
offered to teachers of the state school units Potions municipality, Bahia, in carrying out their
duties relying discussion with authors like Soratto and Olivier-Heckler (1999); Sampaio, Rocha
and Sampaio (2011). This research aimed to study and understand the facts through the case
study, which made the census of the population studied, effective teachers of the three state
schools in the municipality in question. The survey results demonstrate satisfactory levels for
some parameters: the workplace, investment in high and career satisfaction and motivation.
However, it cautioned to factors that signal caution: difficulty in performing the task, structural
elements, time for personal life, overwork, exhausting working hours, among others. As refers
to health, teachers say this is compromised by the practice of teaching, being reported by them,
mainly, the following symptoms and illnesses: anxiety, digestive problems, sleep disorders,
physical and mental fatigue syndrome Burnout and pathologies of the vocal cords.

Keywords: Occupational diseases, quality of working life, work stress.

472
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Introdução

As inúmeras transformações verificadas nos últimos anos, sejam de ordem econômica, política
e sobretudo social, trouxeram consigo alterações em várias instâncias, quiçá não dizer que as
mesmas adentraram com intensidade no ambiente de trabalho. A sobrecarga de trabalho,
relações de competitividade e poder, mais exigências, a busca por mais e melhores resultados,
novas competências, dificuldades e barreiras na realização de tarefas, más condições de trabalho
e falta de suporte institucional, tem sido as principais causas para insatisfação e,
consequentemente, razão para o aparecimento e desenvolvimento das doenças relacionadas ao
trabalho.
Percebe-se então, que o trabalho pode se transformar em um elemento desencadeador do
adoecimento tanto físico como psíquico. Sendo os educadores uma das classes trabalhadoras
que mais correm risco de sofrerem com tais problemas, haja vista as más condições de trabalho
em que a maioria está exposta, fatores como o desgaste físico e psicológico, a má remuneração
e a falta de ações governamentais e da gestão escolar são fundamentos precípuos para uma
inclinação reflexiva na situação de saúde dos profissionais de educação.
Além disso, a prática docente abarca cada vez mais funções e tarefas, e como salientam Costa
e Germano (2005), muitas atividades inerentes ao ensino são realizadas no período extraclasse,
em casa, em seu horário de descanso. E são essas horas extraordinárias e pouco remuneradas e
reconhecidas que tem efeitos particularmente nocivos sobre as condições de trabalho e de saúde
dos educadores, uma vez acentua ainda mais as condições já estressantes presentes no trabalho.
De modo que, para atender aos objetivos da produção escolar há uma mobilização das
capacidades físicas, cognitivas e afetivas de forma mais intensa, o que gera sobre-esforço, que
consequentemente, pode evoluir para manifestações clínicas diversas que tem levado ao
afastamento temporário ou permanente destes profissionais.
Esta pesquisa, realizada em três escolas estaduais (definidas como Escola A, B e C) da cidade
de Poções, Bahia, se propôs analisar quais as condições de trabalho que geram sobre-esforço
do corpo docente dessas instituições para realização de suas tarefas, relatando como são as
condições de trabalho e quais os principais fatores que têm contribuído para seu afastamento e
estresse, os possíveis sintomas e patologias que desenvolveram e que estão direta ou
indiretamente relacionados à sua profissão.
O estudo torna-se importante no sentido de contribuir de maneira positiva para ações de
prevenção e diagnóstico, por parte dos gestores escolares, dos riscos ocupacionais existentes
nas escolas estudadas, os efeitos negativos a saúde destes profissionais, bem como para que as
políticas públicas possam conhecer com relevância os principais problemas enfrentados pelos
mesmos na realização de seu trabalho e que prejudicam a sua saúde física e mental e, por
conseguinte, para diminuir os impactos negativos no processo de aprendizagem dos alunos e
nos custos financeiros ocasionados pelo absenteísmo, afastamento de regência, atestados e
licenças médicas.

O trabalho docente
Para Webber e Vergani (2010: 8807), “os professores fazem parte de uma classe diferenciada
de trabalhadores”. Já que independente das condições de trabalho a que estão submetidos, estes
carregam em sua profissão um grau de responsabilidade muito elevado, sendo neles depositados

473
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

a tarefa de preparação do futuro de crianças, adolescentes e adultos, além de serem visto como
mediadores entre o conhecimento e o aprendiz (SORATTO; OLIVIER-HECKLER, 1999).
Assim, “as transformações sociais, as reformas educacionais e os modelos pedagógicos
derivados das condições de trabalho dos professores provocaram mudanças na profissão
docente” (GASPARINI; BARRETO; ASSUNÇÃO, 2005: 191), corroborando para que esta
profissão assumisse um papel cada vez mais importante na sociedade e concomitantemente,
devido à falta de condições dignas de trabalho, contribuíssem para a incidência cada vez maior
de adoecimento em seu meio.
Outro fator agravante, citado por Gasparini, Barreto e Assunção (2005), é que o sistema escolar
vigente acaba abarcando ao profissional a responsabilidade de cobrir as falhas comumente
existentes em muitas escolas, que por sua vez não possuem políticas adequadas a prevenção do
afastamento e melhora da qualidade de vida destes profissionais.
Salários baixos; condições precárias; falta de flexibilidade na administração de
recursos; pouca perspectiva de progressão na carreira; trabalho importante, exigente e
sem reconhecimento no mesmo nível. Visto desta forma, em termos organizacionais,
tudo o que a escola fornece ao trabalhador a coloca como uma das piores organizações
para se trabalhar (SORATTO; OLIVIER-HECKLER, 1999: 97).
Diante disso, infere-se que a docência, uma profissão, há algumas décadas respeitada e
valorizada, foi perdendo seu reconhecimento. Se por um lado houve reformas educacionais
exigindo cada vez mais dos professores, com uma maior exposição dos mesmos a fatores de
risco, por outro, não houve uma preocupação no mesmo nível, em como os desgastes inerentes
ao exercício da docência podem contribuir para o adoecimento de seus profissionais, o que
implica na predominância de afastamentos, absenteísmo e readaptações em virtude de
patologias clínicas diversas.

Modelos de qualidade de vida no trabalho aplicáveis à docência


De acordo com Vasconcelos et al. (2012) a qualidade de vida corresponde a um fator
constantemente buscado por aqueles que trabalham, tanto no aspecto pessoal como no próprio
trabalho, já que dedicam a maior parte de sua vida ao mesmo.
“Essa atual preocupação com a qualidade de vida no trabalho parece estar intimamente
relacionada, dentre outros fatores, à importância que o trabalho vem ocupando no plano
psíquico dos indivíduos” (SANT’ANNA; KILIMNIK; MORAES, 2011: 9). Nesse sentido, é
de consenso que a qualidade de vida no ambiente do trabalho repercute em toda a vida do
indivíduo, logo se este está satisfeito com as condições do meio em que executa suas tarefas,
consequentemente seu rendimento será maior e melhor.
Segundo o modelo de Walton para a QVT, “a experiência de trabalho de um indivíduo pode ter
efeito negativo ou positivo sobre outras esferas de sua vida tais como suas relações com sua
família” (MARQUES; BORGES; ADORNO, 2008:72).
Para este autor existem oito fatores que afetam a QVT, que são a compensação justa e adequada,
condições de segurança e saúde no trabalho, utilização e desenvolvimento de capacidades,
oportunidade de crescimento contínuo e segurança, integração social na organização,
constitucionalismo, trabalho e espaço total de vida e relevância social da vida no trabalhador
(VASCONCELOS et al., 2012).
Entende-se que “as condições de trabalho não devem expor o trabalhador a situações
potencialmente danosas e inseguras. Para tanto, deve-se procurar assegurar que a jornada de
trabalho seja razoável, o ambiente seja seguro e saudável e o local de trabalho não se configure
como insalubre” (SAMPAIO; ROCHA; SAMPAIO, 2011: 45). Dessa forma, a segurança e

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

saúde no trabalho envolvem a jornada de trabalho, os horários, o tipo de trabalho desenvolvido,


sua organização e os aspectos físicos que podem interferir e ser prejudiciais à saúde do
trabalhador.
Segundo o modelo de William Westley, considerado a mais abrangente, os problemas que
afetam a QVT e devem ser combatidos são de ordem política, econômica, psicológica e
sociológica. O problema político traria insegurança; o econômico, a injustiça; o psicológico, a
alienação; e o sociológico, a falta de envolvimento moral (anomia).
Os problemas de natureza econômica são detectados por meio de questões como equidade
salarial, remuneração, benefícios, local de trabalho, carga horária e ambiente externo. Os
problemas de natureza política têm a ver com as questões relacionadas a segurança no emprego,
atuação sindical, liberdade de expressão, valorização do cargo e relacionamento com a chefia.
Os problemas de ordem psicológica, por sua vez, se originam de questões relacionadas à
realização profissional, desafio, desenvolvimento pessoal e profissional, criatividade, variedade
e identidade de tarefas. Por fim, os problemas na esfera sociológica resultam de questões
relativas à participação nas decisões, grau de responsabilidade, autonomia, relacionamento
interpessoal e valor pessoal (MARQUES; BORGES; ADORNO, 2008:74-75).
Percebe-se que tais modelos mostram abordagens diversas para a qualidade de vida no trabalho
(QVT), sendo que esta condiciona a organização a se preocupar com trabalhador de forma
humanista, sempre visando criar condições para a satisfação do mesmo com suas funções
exercidas, se preocupando com sua saúde e primando por um ambiente de trabalho seguro e
saudável.

Os efeitos negativos da profissão docente na saúde do educador


Ao se referir aos riscos da profissão docente, Webber e Vergani (2010: 8811), diz que,
[...] os riscos mais significativos a que estão expostos os professores [são] ruído,
iluminação, pó de giz, escadas, postura antiergonômica, movimentos repetitivos,
trabalho em pé, material de trabalho inadequado e antiergonômico, intenso uso da voz,
controle rígido de produtividade, estresse, assédio moral, acúmulo de tarefas
diversificadas, violência, competitividade.
Da mesma forma, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1983, já distinguia a
docência como a segunda categoria profissional, em nível mundial, a acarretar doenças de
caráter ocupacional, desde as reações alérgicas, distúrbios vocais, gastrite até esquizofrenia
(VASCONCELLOS apud ANDRADE, 2010).
“A Lesão por reforço repetitivo / distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho
(LER/DORT) é considerada a segunda patologia do trabalho com maior incidência no Brasil e
tem como consequência a mudança de hábitos cotidianos que geram muitas vezes incapacidade
laboral” (TORRES et al., 2011: 46). A mesma pode levar a incapacidade de trabalhar
temporária ou permanente, sendo que as intensas dores e limitações acabam, em alguns casos,
levando a sintomas depressivos, estresse, ansiedade, angústia e medo.
Também conhecida como Síndrome de esgotamento profissional, a Burnout, outra patologia
presente na docência, é considerada uma doença que leva o trabalhador a perder o sentido da
relação de trabalho por ele estabelecida, sendo que afeta principalmente aqueles profissionais
que possuem uma relação direta e afetiva com os usuários de seus serviços (CODO;
VASQUES-MENEZES: 1999).
Diversos autores ressaltam que esta síndrome é consequência do estresse profissional crônico
e caracteriza-se pela exaustão emocional, avaliação negativa de si mesmo, quadros depressivos
e insensibilidade com relação a quase tudo e todos que o cerca (WEBLER; RISTOW: 2006). A

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Burnout já se tornou uma verdadeira epidemia na área da educação, declara Webber e Vergani
(2010), justamente por levar, em casos extremos, a desmotivação total pelo ensino, além do
absenteísmo e desejo de abandonar de vez a profissão.
É pertinente também, abordar o estresse, caracterizado como doença endêmica da atualidade,
que acomete vários trabalhadores de diversas ocupações, principalmente aqueles que têm uma
relação afetiva mais intensa ao exercê-lo.
O prolongamento do estado de estresse pode resultar em consequências muito danosas ao corpo
humano, de forma que se o mesmo não consegue lidar com tensão emocional excessiva, tanto
o corpo como a mente dão sinais de alerta, que vão desde falhas na memória, sonolência
excessiva a estágios de apatia e desinteresse pelas coisas que antes proporcionavam satisfação,
o profissional passa a sentir ainda mais exaurido, sem energia, depressivo, com crises de
ansiedade e desânimo, com dificuldade de se concentrar e trabalhar, podendo em casos
extremos, desenvolver úlceras, hipertensão e crises de pânico (LIPP, 2000).
Um dos desgastes mais comum e inerente à profissão do professor, sem dúvida é o da voz, seu
instrumento de trabalho. Os distúrbios de voz, segundo Webler e Ristow (2006), fazem parte
do cotidiano destes profissionais, isso em razão das condições de trabalho a que são submetidos,
como ministrar aula em salas lotadas e sem auxílio de microfone, competindo com o barulho
da rua, dos ventiladores e da conversa dos alunos.
Para Webler e Ristow (2006), a carreira docente também sofre outros desgastes que podem
comprometê-la seriamente, como problemas de postura corporal, bexiga, problemas digestivos,
cansaço físico e mental e má alimentação, que podem ocasionar queda no sistema imunológico
e se agravar causando outras doenças crônicas.
O pouco tempo para se dedicar a vida familiar e a atividades de lazer, as exigências e tensões
presentes na vida em sociedade, responsabilidades ocupacionais, longa jornada de trabalho,
indisciplina em sala de aula, agressões verbais, entre outros fatores tem acarretado sofrimento,
sobrecarga, insegurança e insatisfação para muitos professores, sendo que tais agravantes são
determinantes de doenças (WEBLER; RISTOW, 2006).

Metodologia

Os procedimentos metodológicos desta pesquisa condescendem com a ideia de que o


conhecimento científico lida com ocorrências ou fatos, além de possuir proposições que podem
ser comprovadas ou não pela experiência. Assim, este estudo está baseado na ideia de ciência
defendida por Lakatos e Marconi (2003: 80) que a define como “uma sistematização de
conhecimento, um conjunto de proposições logicamente correlacionadas sobre o
comportamento de certos fenômenos que se deseja estudar”.
Segundo Andrade (2010: 109), em sentido amplo, “pesquisa é o conjunto de procedimentos
sistemáticos, baseado no raciocínio lógico, que tem por objetivo encontrar soluções para
problemas propostos, mediante a utilização de métodos científicos”. Para Lakatos e Marconi
(2003) pesquisa se define também como um procedimento formal com métodos, que busca
refletir sobre pensamentos e requer um tratamento científico dos mesmos, sendo o
direcionamento para tornar conhecido uma realidade ou para descobrir verdades parciais da
mesma.

Caracterização da pesquisa

A análise, quanto aos fins da pesquisa, fez a combinação da pesquisa exploratória e descritiva,
pois houve uma preocupação em descrever as características do fenômeno estudado, visando o

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

conhecimento das variáveis ou hipóteses que suscitaram a problemática levantada. Lakatos e


Marconi (2003) salientam que este tipo de estudo, o exploratório – descritivo, se trata de um
estudo exploratório que objetiva descrever determinado fenômeno em sua totalidade. Os
autores citam como exemplo os estudos de caso para o qual são realizadas análises empíricas e
teóricas.
Em complemento a este pensamento, Andrade (2010) se refere à pesquisa exploratória como
aquela que proporciona maiores informações sobre determinado assunto a ser estudado,
podendo ser considera como trabalho preliminar e preparatório para outros tipos de pesquisas.
De acordo com a autora, é na pesquisa descritiva que os fatos são observados, registrados,
analisados, classificados e interpretados, tendo como técnica padronizada para coleta de dados,
principalmente, os questionários.
A metodologia escolhida, quanto aos procedimentos técnicos, para realização da pesquisa foi o
estudo de caso, que segundo Yin (2001) é uma forma de pesquisa que compreende um método
que abrange tudo, desde a coleta à análise dos dados. No trabalho em questão, têm-se como
objeto de estudo, as três escolas estaduais da cidade de Poções, BA, no qual se investigou as
condições do trabalho docente.
Ainda segundo Yin (2001: 63), o estudo de caso é definido como “uma investigação empírica
que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real, especialmente
quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos”. O autor
salienta que esta técnica pode ser útil para explorar situações da vida real que são complexos
demais para outras formas de pesquisa por estudar um objeto com maior precisão.
A população, “totalidade de indivíduos que possuem as mesmas características definidas para
um determinado estudo” (PRODANOV; FREITAS, 2013: 98), de acordo com a temática em
questão, são todos os professores efetivos que compõem o quadro funcional das escolas A, B e
C, considerando-se que muitos exercem suas funções em mais de uma destas instituições de
ensino, totalizando 65 respondentes.
A coleta dos dados ocorreu no período de outubro a novembro de 2014, sendo que o instrumento
de coleta de dados contemplou as seguintes variáveis: o perfil, tempo de exercício profissional,
horas de trabalho/dia, tempo de carreira, carga horária de trabalho, condições do ambiente de
trabalho, qualidade de vida no trabalho, remuneração, horas destinada a atividades de lazer e
família, dificuldades físicas e mentais no local de trabalho e doenças relacionadas ao trabalho.

Apresentação e análise dos resultados


Na pesquisa, ao cruzar carga horária e quantidade de horas trabalhadas diariamente pelos
entrevistados, percebeu-se que um percentual relevante trabalha além da sua carga horária de
trabalho. Os professores que possuem 20 horas semanais afirmaram estar trabalhando mais que
4 horas de trabalho ao dia, destes, 9% trabalham entre 7 e 8 horas diárias, 6% acima de 11 horas
diárias, quase 4 e 7 horas a mais, respectivamente.
Já a maioria dos profissionais com 40 horas semanais, 17%, dizem trabalhar de acordo com sua
carga horária, de 7 a 8 horas ao dia. Chama-se a atenção para o percentual destes que disseram
trabalhar acima de 11 horas por dia, 11%.
Gráfico 1 - Carga horária de trabalho dos professores

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40 horas 20 horas
Menos de 7 horas diárias 2%
5%
Entre 9 e 10 horas diárias 6% 14%

Entre 8 e 9 horas diárias 6% 15%

Entre 7 e 8 horas diárias 17%


9%
Entre 10 e 11 horas 6%
3%
diárias Acima de 11 horas 11%
6%
0 5 10 15 20
Fonte: Pesquisa de campo, 2014.

A partir desses dados é perceptível o que Soratto e Olivier-Heckler (1999) afirmaram, segundo
eles o trabalho do professor continua para além da sala de aula, provas devem ser corrigidas,
aulas devem ser preparadas e planejadas, enfim muitas tarefas executadas por estes
profissionais continuam após seu período de aula. A jornada de trabalho é intensa e extensa,
como afirmam Costa e Germano (2005), e estes trocam seu horário de descanso para realizar
atividades inerentes ao trabalho, o que tem efeitos negativos nas condições de trabalho e na
saúde dos mesmos.
Tabela 1 – Turnos de trabalho dos professores
Turnos Quantidade %
Matutino, vespertino e noturno 14 22
Matutino e vespertino 17 26
Matutino e noturno 5 8
Vespertino e noturno 15 23
Matutino 8 12
Vespertino 2 3
Fonte: Pesquisa Noturno 4 6 de campo, 2014.
Total 65 100
Constatou-se que 57%
participantes da pesquisa lecionam em dois turnos, matutino e vespertino, vespertino e noturno,
com 26% e 23%, respectivamente. De modo que, a falta de tempo disponível para estes
profissionais é evidente. Se a grande maioria trabalha por quase oito horas, entende-se que resta
apenas um período do dia para que estes se dediquem a outras atividades relacionadas a sua
vida pessoal, como família, descanso, entre outras.
Destarte, ainda se referindo a forma exaustiva do trabalho destes profissionais, quanto a
exigência e a diversidade de tarefas ditadas aos mesmos, os dados também se mostraram
críticos. Dos respondentes, 63% deles disseram que levam trabalho para realizarem em casa
frequentemente e 28% quase sempre.
Gráfico 2 - Professores que levam trabalho para realizar em casa

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

6% 3%

Frequentemente
28% Quase sempre
63% As vezes
Raramente
Nunca

Fonte: Pesquisa de campo, 2014.


Segundo Costa e Germano (2005), estes trabalhos excessivos, podem representar demasiada
exigência física e mental que se refletem nos finais de semana e até nas férias, o que retiram do
professor a oportunidade de estarem com seus familiares, amigos ou mesmo realizar outros
tipos de atividades físicas, culturais e sociais, comprometendo assim sua qualidade de vida e
sua saúde.
Gráfico 3 - Relação entre trabalho e família

5%
9%
18%
28% Sempre
Quase sempre
As vezes
40% Raramente
Nunca

Fonte: Pesquisa de campo, 2014.


Os dados coletados apontaram que nem sempre os professores possuem tempo para se dedicar
à família, já que 40% deles disseram que somente as vezes se dedicam a convivência familiar
como gostaria. Ainda seguindo essa relação trabalho, família e vida pessoal, tem-se que 46%
dos respondentes relataram que somente às vezes podem se dedicar a outras atividades, como
lazer e descanso.
Gráfico 4 - Disponibilidade para dedicar-se a outras atividades
1%
14% 17%
Sempre
Quase sempre
22%
As vezes
46% Raramente
Nunca

Fonte: Pesquisa de campo, 2014.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Para Webler e Ristow (2006) o tempo livre dos professores está atrelado ao capital e as
possibilidades de libertação é quase inviável, de forma que as grandes exigências da profissão
lhes deixa pouco tempo para a vida familiar e o lazer.
Em relação ao ambiente de trabalho, os respondentes afirmaram que todos os quesitos, os
referentes a higiene, organização, ruído, mobiliário, ventilação e salas de aula, no geral estavam
adequados ao desenvolvimento do seu trabalho.
Gráfico 5 - Ambiente de trabalho
Inadequado % Adequado %
Higiene 17
83
Organização 26
74
Ruído 38
62
Mobiliário 45
55
46
54
Ventilação 45
55
Salas de aula (tamanho, acústica e… 28
72
0 50 100
Fonte: Pesquisa de campo, 2014.
Porém, ao se observar o Gráfico 5, percebe-se que a diferença entre o percentual dos
entrevistados que julgaram adequado e inadequado alguns destes quesitos é pequena se
considerada o universo estudado (65 professores). Logo, uma parcela considerável classifica
como inadequado a ventilação, a iluminação e o mobiliário do seu ambiente de trabalho.
Essas inadequações do ambiente laboral, segundo Webler e Ristow (2006), prejudicam de
forma intensa a saúde particular do professor; se a ventilação não é apropriada nas salas de aula
lotadas, pouco ar circula e se o mobiliário não é ergonomicamente adequado, dificulta-se o
sentar, por exemplo. De modo que surgem os problemas na voz, de postura corporal, esforço
repetitivos, desgaste muscular, entre outros.
Quando questionados sobre técnicas de proteção e segurança do trabalho, 49% dos professores
disseram nunca serem utilizadas nas escolas as quais lecionam. Desse modo, entende-se que as
escolas A, B e C não desenvolvem com regularidade ações que visem melhorar e manter a
segurança e proteção destes profissionais, como adequar o mobiliário e ferramentas de trabalho
a função, manter condições ambientais de trabalho apropriados, entre outras ações e técnicas,
como incentivo a cuidados preventivos com a postura física e a voz.
Gráfico 6 - Técnicas de proteção e segurança do trabalho

9% 11%
Sempre
49%
16% Quase sempre
As vezes
15%
Eventualmente
Nunca

480
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Fonte: Pesquisa de campo, 2014.

Para Webber e Vergani (2010), os agentes físicos, como ruídos, vibrações, iluminação,
temperatura, e os agentes ergonômicos, como movimentos repetitivos, levantamento e
transporte manual de peso, trabalho em pé por um período longo, postura inadequada, são os
compõem os chamados riscos ambientais, que podem causar danos à saúde do trabalhador.
Quando questionados acerca da sua qualidade de vida no trabalho, os professores disseram ser
razoável e boa, 42% e 38% deles, respectivamente. Diante disso e dos dados já apresentados
em relação às condições ambientais, físicas e psicológicas do ambiente no qual os professores
exercem suas funções, pode-se perceber aspectos negativos e positivos acerca dos mesmos e
que podem estar direta ou indiretamente ligados ao nível de QVT defendida.
Gráfico 7 - Qualidade de vida no trabalho

11% 1% 8%
Péssima
Ruim
38% Razoavel
42% Boa
Otima

Fonte: Pesquisa de campo, 2014.


Em relação problemas de saúde apresentados pelos docentes, os principais diagnósticos
relatados pelos mesmos, foram tanto aqueles que os levaram ao afastamento das atividades
temporariamente e que foram acompanhados por atestado médico, como as sintomáticas
perceptíveis ao longo do seu trabalho, no dia a dia.
Tabela 2 - Diagnósticos médicos apresentados pelos professores
Diagnósticos médicos Total
Cansaço físico ou mental 38
Nervosismo ou ansiedade 26
Problemas relacionados a postura corporal 17
Dores de cabeça ou enxaqueca 23
Dor nas pernas 21
Patologias das cordas vocais 12
LER/DORT 5
Depressão 5
Síndrome de Burnout 7
Insônia 12
Sonolência 11
Indisposição ou fraqueza 14
Esquecimento 14
Desmotivação 1
Problemas digestivos 10

481
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Hipertensão arterial 5
Tonturas 5
Faringite crônica 1
Dor nos braços 1
Falta de ar 1
Amigdalite 1
Tabela 2: Diagnósticos médicos apresentados pelos professores
(continuação)
Arritmia 1
Problemas de pele 1
Asma 1
Fonte: Pesquisa de campo, 2014.
Assim, o cansaço físico e mental é o principal agravo a saúde identificado pelos professores das
escolas estaduais de Poções. Isso, segundo Andrade (2010) pode estar associado a sobrecarga
gerada por exaustivas horas de trabalho apresentadas entre estes profissionais, sendo também,
em alguns casos, um dos componentes da Síndrome de Burnout e de níveis elevado de estresse.
Outros danos à saúde identificados foram ansiedade, dores de cabeça, dor nas pernas,
esquecimento, problemas digestivos, distúrbios do sono, indisposição que estão relacionados a
ritmos de trabalho acelerado, posição inadequadas ou incomoda ao corpo, longos períodos de
concentração numa mesma tarefa, má alimentação, níveis elevados de estresse prolongados por
vários dias (GASPARINI; BARRETO; ASSUNÇÃO, 2005).
Houve também relatos de doenças ocupacionais como LER/DORT, depressão, síndrome da
exaustão, a Burnout e patologias das cordas vocais. O que segundo Webler e Ristow (2006) é
uma resposta aos movimentos repetitivos de escrever e apagar o quadro, por exemplo, longos
períodos em pé, assentos nada ergonômicos, livros e materiais pesados carregados diariamente,
estresse em fase crônica, e sofrimento que são inerentes às condições de trabalho e a própria
profissão.

Considerações finais

Considerada como penosa por muitos estudiosos da área, a profissão docente é a segunda
categoria profissional mundialmente reconhecida como propensa a acarretar doenças de caráter
ocupacional, segundo dados da OIT. Isso acontece, apontam os especialistas, devido aos níveis
de desgaste físico e psicológico a que estes profissionais estão comumente submetidos na
realização de suas tarefas no ambiente de trabalho, bem como pela hiper-solicitação de suas
capacidades cognitivas para garantir o processo educacional.
Assim, condições de trabalho pouco satisfatórias e os níveis de exigências além do que o
professor pode suportar, têm sido apontados como os principais causadores de adoecimento
físico e/ou mental, que consequentemente são os geradores de afastamento de muitos destes
profissionais de suas atividades.
Um dos pontos negativos encontrados na pesquisa é relacionado às técnicas de proteção e
segurança no trabalho, que dificilmente ou quase nunca são utilizadas pelas escolas, o que
influem no cotidiano de trabalho dos professores, já que estes ficam a mercê de um ambiente
de trabalho inseguro, sem técnicas que os incentivem ou garantam uma boa ergonomia no
ambiente em exercem suas atividades, ou cuidado periódicos com fatores que podem afetar sua
saúde, como o uso da voz, instrumento de trabalho dos professores, por exemplo.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

O quesito tempo apresentou-se como um dos principais agravantes as condições de trabalho


destes professores. A maioria destes trabalha além da carga horária semanal estabelecida pelo
regime trabalhista, com frequência necessitam levar trabalho para realizar em casa, e, por
conseguinte, estes não dispõem de tempo suficiente para descanso, ou para dedicar-se à família
e ao lazer como deveriam ou como gostariam.
Muito embora, não seja possível afirmar que os problemas de saúde apontados pelos
profissionais estudados, baseados em laudos médicos ou pelo próprio diagnóstico pessoal, são
acarretados exclusivamente pelo exercício da docência, é perceptível, diante dos dados
apresentados, que os professores ao longo da carreira são de alguma forma afetados pelas
exigências inerentes a profissão e pelas deficiências na qualidade de vida no trabalho a que
muitas vezes estão expostos.
Diante da importância do professor para sociedade, como principal mediador do aprendizado
do alunado em qualquer instancia da mesma, não há como se calar ante a necessidade de atenção
e acompanhamento destes profissionais, que adoecem por falta de recursos, de tempo, de
descanso, de bons salários, e de reconhecimento. Percebe-se a importância de ações preventivas
que ajudem a proteger a saúde do educador, com estratégias práticas de enfrentamento tanto
por parte dos gestores públicos como pelo próprio professor.

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484
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

A Construção Ideológica do Conceito de Pobreza nos Relatórios Do Banco


Mundial

Gabriela Cordioli Coto


Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Raphaela Reis
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Silvio Cario
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Luis Moretto Neto


UNINTER

RESUMO

Os relatórios do Banco Mundial, nos anos 90, passaram a propor ações para adaptação dos
Estados nacionais à reconfiguração neoliberal do sistema capitalista. A minimização do
Estado e a readequação de suas funções seria possível, de acordo com os organismos
internacionais, por meio de um conjunto de reformas. Essas reformas também exigiam uma
postura mais ativa dos Estados em relação as políticas sociais, reduzidas, no discurso do
Banco Mundial, às políticas de combate à pobreza. Compreendendo que o conceito de
pobreza que sustenta os relatórios de Banco Mundial parte de ascepções neoliberais que
contribuem para o acirramento das desigualdades sociais, bem como dependência
internacional, a partir do arcabouço teórico metodológico da Análise Crítica do Discurso,
procuramos nesse trabalho analisar de que forma a construção do conceito de pobreza nos
relatórios de 1990 e 2000-2001 do Banco Mundial, dissimula relações desiguais engendradas
no desenvolvimento dependente dos países da América Latina.

PALAVRAS – CHAVE: Banco Mundial; Políticas de Combate à pobreza; Pobreza.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

1 INTRODUÇÃO

Os organismos internacionais têm desempenhado um papel crucial na criação de redes


e experiências que servem como molde para o desenvolvimento de práticas políticas dos
países ao redor do mundo, acompanhado pela crescente influência de doutrinas econômicas
pró-mercado neoliberais. Com o aumento da dívida dos países em desenvolvimento,
resultante da crise na década de 1980, as instituições criadas a partir do acordo Bretton
Woods, dentre elas o Banco Mundial (BM) e Fundo Mundial Internacional (FMI), passaram a
desempenhar papel central na redefinição das estratégias de desenvolvimento das nações
(PERIN, 2014).
Como meio de pressionar os governos nacionais, principalmente dos países em
desenvolvimento, esses organismos estabeleceram algumas contrapartidas para obtenção de
seu apoio financeiro e político. Essas condições se imprimiram na promoção de ajustes
fiscais, na realização de reformas estruturais que possibilitassem a descentralização
administrativa e a participação social, bem como o desenvolvimento de políticas, por parte
dos governos, de combate à pobreza.
Para que essas “condições” fossem postas na ordem do dia dos países em
desenvolvimento, o Banco Mundial elaborou, a partir dos princípios neoliberais, um conjunto
de recomendações políticas que redimensionaram a atuação do Estado, de forma a dar maior
liberdade as transações mercantis. De acordo com essas recomendações a atuação do Estado
deveria ocorrer diretamente e quase que exclusivamente em questões sociais, que eram de
interesse e imprescindíveis para o bom funcionamento do mercado (BRESSER PEREIRA,
2009).
Partindo dessas premissas, as políticas sociais, no discurso neoliberal, assumiram
grande relevo dentro das “novas” funções do aparelho estatal, apregoadas pelo Banco
Mundial, de forma a lidar com os custos sociais oriundos dessa nova configuração do
capitalismo internacional. No que se refere as políticas sociais, o Banco Mundial, nos
relatórios elaborados em 1990 e 2000 - 2001, instruiu os países em desenvolvimento, acerca
de estratégias a serem adotadas para o enfrentamento dos problemas sociais. As estratégias
delimitadas pelo BM, nesse sentido, se reduziram ao combate à pobreza (UGÁ, 2004).
O combate à pobreza, desse modo, foi alçado a principal desafio mundial pelo Banco
Mundial e política social central a ser desenvolvida pelos países em desenvolvimento. Assim,
linhas de crédito foram criadas para o financiamento de programas nacionais de combate a
pobreza, por meio das instituições financeiras internacionais, como o Banco Interamericano
de Desenvolvimento, vinculadas ao Banco Mundial (CAMARA, 2014).

486
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Como divulga o próprio BM, seus dois grandes objetivos para o milênio são acabar
com a pobreza e promover maior equidade social ao redor do mundo (BANCO MUNDIAL,
2015). O entendimento acerca da equidade social, assume o tratamento de diferentes enquanto
diferentes, para, desse modo, adaptar as regras caso a caso, na busca efetiva por maior justiça
e igualdade (AZEVEDO E BURLANDY, 2010). Ao passo que a pobreza, definida nos
relatórios do Banco Mundial, deve ser compreendida para além da baixa renda, incluindo
indicadores em educação, saúde, nutrição, entre outras áreas do desenvolvimento humano.
Assim a pobreza pode ser compreendida como incapacidade de atingir um padrão mínimo de
vida (BANCO MUNDIAL apud AZEVEDO E BURLANDY, 2010). Os termos
“incapacidade” e “padrão mínimo de vida”, que consolidam esse conceito de pobreza,
abarcam uma série de pressupostos e contradições inerentes à ideologia neoliberal.
Os princípios balizadores dessa ideologia partem da premissa de que o
desenvolvimento está restrito aos limites econômicos, se transfigurando em diferentes
denominações, entre elas, desenvolvimento mundial, pelo Banco Mundial e desenvolvimento
como liberdade, para Amartya Sen (CAMARA, 2014).
Para essa vertente, a pobreza deve ser superada por meio da ampliação dos direitos
sociais que garantem o desenvolvimento das capacidades por parte dos indivíduos e o
atingimento dos padrões mínimos de vida, estabelecidos por meio de padrões de consumo,
necessários inclusive para alimentar a dinâmica mercantil (AZEVEDO E BURLANDY,
2010). Nesse sentido, essas ações possibilitariam acabar com a vulnerabilidade em que vivem
os pobres, dando sustentação ao mercado e possibilitando a governabilidade neoliberal
(CAMARA, 2014).
A centralidade desse conceito de pobreza, nos relatórios e documentos do Banco
Mundial, fomentou o debate acadêmico acerca dos conceitos correlatos, de forma a
compreender se estamos realmente à caminho do combate efetivo do problema ou apenas
desenvolvendo um conjunto de estratégias pontuais e emergenciais de alívio à pobreza, sem a
responsabilização com a mudança a longo prazo (AZEVEDO E BURLANDY, 2010).
Desde os anos de 1950, o tema da pobreza tem longa trajetória de pesquisa nas
Ciências Sociais na América Latina. Cumpre ressaltar que não podemos afirmar que a
marginalidade e pobreza sejam simples consequências ou então constructos do
neoliberalismo. Esses fenômenos são parte indissociável do modo de produção capitalista e
tipo de capitalismo dependente que se desenvolveu na região e outros países também
dependentes (UGÁ, 2004).
A América Latina facilitou o crescimento quantitativo e acumulação dos países
centrais e contribuiu para que o eixo de acumulação na economia industrial se deslocasse para
o aumento da capacidade produtiva do trabalho e não simplesmente a exploração do
trabalhador. No entanto, o desenvolvimento da produção latino-americana, que permitiu a
região coadjuvar com essa mudança qualitativa nos países centrais, se deu fundamentalmente
com a base da maior exploração do trabalhador, o que acarretou em uma piora nas condições
gerais de vida da população. E é nessa contradição que reside o caráter da dependência latino-
americana e da pobreza existente nesse continente (MARINI, 2000).
Como Lemos (2011) assinala, ainda que o sistema capitalista tenha contribuído para a
evolução da comunicação, do comércio e dos processos de acumulação capitalista, bem como
na disseminação de direitos humanos e no aumento da expectativa de vida nos países
dependentes, sua face perversa se revelou na deploração dos recursos naturais não renováveis,
na deterioração do meio ambiente e principalmente no agravamento de problemas sociais
como a pobreza, violação de liberdades políticas e individuais (LEMOS, 2011).
Essas dificuldades são oriundas do fato de que a economia latino-americana
apresentou especificidades em relação do modo de produção capitalista dos países centrais,
em alguns casos peculiaridades, em outros insuficiências e deformações, no comparativo à

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

este modelo. Ainda que se trate realmente do desenvolvimento insuficiente das relações
capitalistas, os países latino-americanos não poderão jamais se desenvolver da mesma forma
que as economias capitalistas denominadas avançadas (MARINI, 2000).
Esse panorama nos leva ao seguinte questionamento - seria possível a “façanha” de se
erradicar e pobreza e buscar equidade dentro dos termos do desenvolvimento neoliberal?
Como resposta a esta questão, a abordagem marxista, em contraposição a concepção
neoliberal, compreende que a pobreza é parte inexorável do modo de produção e acumulação
capitalista e não apenas uma consequência do desenvolvimento “destorcido” dos países em
desenvolvimento. Partindo dessa compreensão, as estratégias delimitadas pelo Banco Mundial
se reduziram à amenização da precariedade em que vivem os pobres, decorrentes da
superexploração do trabalho humano, principalmente nos países em desenvolvimento
(CAMARA, 2014). Desse modo, o objetivo de combate à pobreza, juntamente com a busca
pela equidade social, seria uma contradição em termos dentro do horizonte neoliberal.
Os Programas de Combate à Pobreza na América Latina lograram aliviar os sintomas
da pobreza, tirando vários indivíduos da linha de miséria. Entretanto não alteraram as relações
de poder e status na sociedade capitalista (UGÁ, 2004; AZEVEDO E BURLANDY, 2010).
Isso acarretou na transfiguração do povo em uma massa de indivíduos dependentes das ações
benevolentes do Estado e mercado, sem capacidade para se insurgir contra a dinâmica de
acumulação capitalista (CAMARA, 2014).
Veblen (apud Conceição, 2002) apresenta uma reflexão importante a esse respeito - a
questão da pobreza envolve termos para além do econômico, e que estão relacionados
principalmente as relações de poder. A erradicação da pobreza só pode ocorrer por meio da
“desinstitucionalização” da mesma, passando assim pela reestruturação das relações de poder
e modificação do status da população denominada “pobre”. Não se trata, desse modo, de
tornar os mais pobres mais produtivos e incorporá-los a um nível de renda mais elevado. Os
pobres devem deixar de ser objetos de caridade para passar a reivindicar seus direitos. A
erradicação da pobreza e a busca pela equidade são questões eminentemente políticas e não
puramente econômicas (CONCEIÇÃO, 2002).
Bresser – Pereira (2009) destaca que os países em desenvolvimento só conseguirão
ser competitivos, em comparação com os países ricos, na medida em que estejam aptos a
rejeitar a associação com o poder hegemônico e consigam desenvolver políticas e reformas
institucionais compatíveis com os interesses nacionais dos países e não aquelas apregoadas
pelos organismos internacionais.
Nessa direção, Ugá (2004) faz um alerta importante, o conceito de pobreza passou a
ser elemento-chave de uma ordem social implícita nos relatórios do Banco Mundial e na nova
configuração hegemônica dos anos 90. As políticas de combate à pobreza, defendidas pelos
organismos internacionais, legitimam essa visão de mundo.
A partir desse panorama, acreditamos que a presença de Programas de Combate à
Pobreza na América Latina, definidos a partir dos “receituários” do Banco Mundial, não são
suficientes para afirmar que existe uma estratégia política efetiva de superação desse mal,
integrando intervenções com objetivos mais amplos. É importante ressaltar que reconhecemos
os avanços em termos de melhoria nas condições de vida de populações miseráveis em países
da América Latina. Afinal, mais de 56 milhões de pessoas saíram da pobreza extrema na
América Latina entre 2000 e 2012, com auxílio das Políticas de Combate à Pobreza.
Entretanto, em relação a diminuição das desigualdades sociais e busca pela efetiva equidade,
pouco se avançou nesse continente (AZEVEDO E BURLANDY, 2010).
Dito isso, compreendemos que a questão de pobreza envolve elementos e questões
muito mais profundas do que a incapacidade do ser humano, mas sim as próprias relações
desiguais inerentes ao acúmulo de capital. Acreditamos que o conceito de pobreza difundido
pelo Banco Mundial engendra crenças e pressupostos que impossibilitam pensar na

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

erradicação efetiva da pobreza, por meio de uma alteração nas relações de poder e status.
A partir do que explanamos e de modo a contribuir para um olhar crítico acerca da
temática que delimitamos, definimos como objetivo desse estudo analisar de que forma a
construção do conceito de pobreza nos relatórios de 1990 e 2000-2001 do Banco Mundial,
dissimula relações desiguais engendradas no desenvolvimento dependente dos países da
América Latina.
Para tanto, em um primeiro momento, discorreremos sobre o caráter do
desenvolvimento dependente da América Latina de forma a compreender o que esboçamos
como relações desiguais engendradas nesse processo. Posteriormente, delinearemos a
abordagem teórico-metodológica, que alicerçada na Análise Crítica do Discurso (ACD) e
teoria da ideologia de Thompson, que nos possibilitará identificar os mecanismos de
dissimulação utilizados na construção do conceito de pobreza pelo Banco Mundial.
Destacamos desde já que, baseadas no constructo teórico de Fairclough (2001),
compreendemos a construção conceitual e ideológica como “arma” bastante poderosa na
arena de disputas hegemônicas. Como assinalam Resende e Ramalho (2006), as construções
discursivas, na contemporaneidade, assumem especial força para sustentação de elementos do
projeto neoliberal, assim como disciplinarização da sociedade global. E o faz por meio de
“poderosa função disciplinadora contra novos barbaros e escravos rebeldes que ameaçam a
ordem vigente” (RESENDE E RAMALHO, 2006, p. 37).
Por fim, apresentaremos a análise das concepções de pobreza presentes nos relatórios
de 1999 e 2000-2001 do Banco Mundial, para, juntamente com uma análise do contexto
discursivo, evidenciarmos a relação que estabelecemos aqui, seguida de algumas reflexões
finais.

2 O DESENVOLVIMENTO DOS PAÍSES LATINO-AMERICANOS

O tema desenvolvimento dos países que ainda não alcançaram o status de


desenvolvidos, nos termos imperantes na contemporaneidade, voltou a agenda de discussão
internacional nos anos 90. Isso porque o balanço após uma década e meio de hegemonia das
políticas econômicas de inspiração liberal aponta para o fato de que, se por um lado estas
lograram êxito na obtenção de estabilidade inflacionária, por outro, ficaram muito aquém do
objetivo de estabelecer um novo padrão de desenvolvimento mais equitativo (CARNEIRO,
2006).
Para compreender como as Políticas de Combate à Pobreza foram alçadas, nos anos
90, a pedra fundamental do desenvolvimento latino-americano, precisamos resgatar toda a
trama de relações dos países desse continente com os países centrais, de forma a identificar as
especificidades do tipo de capitalismo e o sentido do desenvolvimento que se estabeleceu
nesse continente.
Furtado (1992) ressalta que embora a industrialização tenha contribuído para o
aumento da produtividade nos países subdesenvolvidos, não foi condição suficiente para o
desenvolvimento social. A rigor, o conceito de desenvolvimento possui três dimensões
distintas: a do incremento da eficácia do sistema social produtivo, da satisfação das
necessidades elementares da população e da consecução dos objetivos idealizados pelas
classes dominantes que competem na utilização de recursos escassos.
Estas três dimensões são ambíguas. A ambiguidade da primeira dimensão reside no
fato de que os inputs e outputs de produção são heterogêneos e se modificam com o tempo. A
ambiguidade da segunda dimensão é ainda maior, tendo em vista que as necessidades
humanas, quando não referidas as necessidades essenciais, são baseadas em um sistema de
valores ideologicamente, culturalmente e contextualmente definidos. A terceira dimensão é
certamente a mais ambígua, visto que é parte de um discurso ideológico (FURTADO, 1992).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

O aumento da eficácia do sistema produtivo, considerado comumente como principal


vetor de desenvolvimento pelos liberais, mostrou historicamente não ser condição suficiente
para que sejam satisfeitas as necessidades elementares da população (segunda dimensão do
conceito de desenvolvimento). A subordinação da inventividade técnica aos interesses de
reprodução de uma sociedade fortemente desigual e de elevado potencial de acumulação,
constituiu a causa de alguns aspectos paradoxais da civilização contemporânea. Assim, a
eliminação da “pobreza dentro da riqueza” se fez mais difícil com o avanço da acumulação
(FURTADO, 1992).
Como alerta Marini (2000), o capitalismo sui generis que se desenvolveu na América
Latina só pode ser compreendido a partir de uma perspectiva abrangente, que analise seu
conjunto, tanto no nível nacional quanto internacional e não a partir de concepções
dominantes de desenvolvimento.
Resgatando a trajetória de desenvolvimento latino-americano, Marini (2000) destaca
que após a Revolução Industrial, os países da América Latina deram prosseguimento à sua
independência política, ignorando suas vizinhanças e relacionando-se, quase que
exclusivamente, com a metrópole inglesa. Em função das necessidades desta, começaram a
produzir e exportar bens primários, e importar manufaturas e bens de consumo. Estruturada
por essa natureza de trocas internacionais, a riqueza mundial cresceu, mas de forma
extremamente desigual, pois o modelo econômico dominante se baseou na especialização e
exportação de alimentos e matérias-primas e com recorrentes crises cambiais (FIORI, 1999).
O crescimento industrial, vivido nos séculos XIV e XX, teria esbarrado em sérios
entraves e crises, se não tivesse contado com a produção agrícola e de matérias primas dos
países dependentes, pois só assim os países industrializados conseguiram se especializar e
dedicar à uma atividade especificamente industrial (MARINI, 2000).
E é a partir desse momento que a relação dos países da América Latina com os países
do centro se inserem em uma estrutura definida de divisão internacional do trabalho, que será
determinante para o sentido do desenvolvimento posterior nessa região (FURTADO, 1980). O
desenvolvimento dependente, que consiste na subordinação entre nações formalmente
independentes, foi recriado e modificados historicamente de forma a assegurar a reprodução
ampliada da dependência (MARINI, 2000).
As reflexões de Marx (1984) acerca do modus operandi do sistema capitalista nos
auxiliam a compreender algumas questões oriundas desse processo. Na sua formulação acerca
da lei geral de acumulação capitalista, Marx (1984) destacou que o aumento da riqueza em
um polo acarreta, ao mesmo tempo, na “acumulação da miséria, tormento de trabalho,
escravidão, ignorância, brutalização e degradação moral no polo oposto, isto é, do lado da
classe que produz seu próprio produto como capital” (MARX, 1984, p. 210).
Marx (1984) desvelou, desse modo, a maior contradição do modo capitalista de
produção – ao mesmo tempo que produz riqueza o capitalismo produz pobreza, miséria e
alienação. Depreendemos dessa lei geral que a pobreza é produto necessário a reprodução
ampliada da acumulação capitalista.

O próprio mecanismo do processo de acumulação multiplica, com o capital, a massa


de “pobres laboriosos”, isto é, de assalariados que transformam sua força de trabalho
em crescente força de valorização do capital crescente, e, por isso mesmo, precisam
perpetuar sua relação de dependência para com seu próprio produto personificado no
capitalista (MARX, 1984, p. 189).
Partindo dessa compreensão, Marini (2000) infere que o processo de desenvolvimento
capitalista possibilitou aos países centrais o aumento de produtividade sem aumentar a
exploração do trabalhador, conquanto que os países latino-americanos, que coadjuvaram
nesse processo, tiveram que aumentar a exploração do trabalhador para manter as bases
competitivas no cenário internacional. Isso teve como consequências a deterioração das

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

condições de trabalho e de vida dos trabalhadores e aumento do contingente de


desempregados, o chamado “exército de reserva”. Portanto, a pobreza e a desigualdade social
estão engendradas no processo de acumulação de riqueza e desenvolvimento dependente
(MARINI, 2000).
A industrialização latino-americana correspondeu assim a uma nova divisão
internacional do trabalho, em cujo marco são transferidas para os países dependentes etapas
inferiores da produção industrial, sendo reservadas para os centros imperialistas as etapas
mais avançadas e o monopólio da tecnologia correspondente (MARINI, 2000).
O que ocorreu, a partir desse momento, foi uma nova hierarquização da economia
mundial, redefinindo as funções na divisão internacional do trabalho. Este tipo de
desenvolvimento possibilitou intensificar o ritmo de trabalho do operário, elevar sua
produtividade e, simultaneamente sustentar a tendência a remunerá-lo em proporção inferior
ao seu valor real (CAMARA, 2013).

3 TRAJETÓRIA TEÓRICO METODOLÓGICA

Antes de discorrer acerca da trajetória que seguimos para realização desse trabalho,
entendemos ser imprescindível sintetizarmos aqui os pressupostos e conceitos que embasaram
nossas reflexoes, evidenciando assim nosso posicionamento político dentro do campo
academico e social.
Nos apropriamos da Análise Crítica do Discurso (ACD), por ser esta uma abordagem
teórico-metodológica, que a partir de conceitos como discurso, práticas discursivas, práticas
sociais, poder e ideologia, articula um quadro analítico que busca a compreensão de discursos
enquanto práticas de representação e ação sobre o mundo social (FAIRCLOUGH, 2000;
MAGALHÃES, 2005; MISOCZKY, 2005).
A ênfase da ACD está nas relações entre linguagem e mundo social, visto que os
elementos linguísticos são sociais a medida que agimos e representamos o mundo social
discursivamente (FAIRCLOUGH, 2001). O objetivo dessa abordagem e que assumimos aqui
como objetivo da discussão que promovemos nesse artigo, é contribuir para a melhora da vida
cotidiana de pessoas comuns, desvelando as relações de poder que as oprimem, assim como o
conteúdo ideológico dos discursos.
Neste sentido, Pereira e Misoczky (2007) preconizam que a teoria da ideologia,
proposta por Thompsom auxilia na análise textual, já que possibilita identificar elementos
simbólicos de operação da ideologia representados em um texto. Thompson (2002, p. 378)
ressalta que o interesse pela ideologia deve se direcionar para a identificação de
“características estruturais das formas simbólicas que facilitam a mobilização do significado”.
Ou seja, a análise destas estruturas simbólicas, possibilita a interpretação da ideologia.
Para atingir o objetivo proposto, delimitamos a dimensão representacional do discurso
para realizar a Análise Crítica. O significado representacional possibilita a identificação de
aspectos do mundo e contexto social que estão sendo representados por um discurso
(FAIRCLOUGH, 2003), ou seja, qual sentido de desenvolvimento e de relações sociais que
são representadas e reforçadas pelas concepções adotadas no discurso do Banco Mundial.
Para dar prosseguimento à análise, da teoria da ideologia de Thompson (2002) nos
apropriamos do mecanismo da dissimulação, como modo de operação da ideologia e algumas
categorias relacionadas à esta dimensão. Esta escolha se deve ao fato de que os relatórios do
Banco Mundial não fazem alusão clara ao tipo de desenvolvimento (de cunho eminentemente
dependente) e interesses que estão legitimando.
Nessa direção, Thompson (2002) aponta para o fato de que as relações de dominação
podem ser sustentadas por serem ocultas e representadas de uma maneira que desvia a atenção
destas relações. A ideologia, como dissimulação, pode se expressar por meio de uma

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

variedade de estratégias bastante sutis. Usos de estratégias de delocamente, eufemização ou


figurativos da linguagem como sinédoques, metonímias, e metáforas também são
recorrentemente utilizadas para dissimulação de ideias e ideologia nas produções simbólicas
(THOMPSON, 2002).
Assim a partir desse conjunto de elementos e da contextualização que apresentamos
anteriormente, nos possibilitará identificar de que forma a construção do conceito de pobreza
nos relatórios de 1990 e 2000-2001 do Banco Mundial, dissimula relações desiguais
engendradas no desenvolvimento dependente dos países da América Latina.
Desse modo, para compor nosso corpus de análise, selecionamos trechos dos discursos
do Banco Mundial nos relatórios de 1990 e 2000/2001, resgatando assim a construção
ideológica do conceito de pobreza pelo Banco Mundial, a partir dos anos 90, e desvelando as
relações que estão indubitavelmente estão engendradas nessa trajetória e que são ocultadas
nesse discurso.

4. CONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA EM TORNO DO CONCEITO DE POBREZA NOS


RELATÓRIOS DO BANCO MUNDIAL: CONCEPÇÕES E CONTRADIÇÕES
IMPLÍCITAS

A pobreza, no continente latino-americano, passou a ser compreendida como um dos


principais limitantes ao desenvolvimento, tendo em vista que para o mercado funcionar dentro
dos termos capitalistas é necessário a existência de força trabalho e mercado consumidor.
Como já assinalou Marx (1984), para o capitalismo não interessa a miséria absoluta, tendo
que é necessário que os indivíduos consumam as mercadorias produzidas pelo sistema para
alimentar a dinâmica da acumulação capitalista.
Diante da crise dos anos de 1980, o “receituário” neoliberal passou a preconizar a
necessidade de recuperar o crescimento econômico pautado pelo aumento do consumo das
massas (BRESSER PEREIRA, 2009). Para tanto era preciso “auxiliar” as massas a
transporem a condição de pobreza extrema. Não era uma tarefa difícil identificar a concepção
de política social e perceber suas articulações com a concepção social no constructo
ideológico neoliberal. A redução da questão social à pobreza e a definição de pobreza como
uma situação em que os indivíduos carecem de determinadas capacidades, foram essenciais a
sua inserção no mercado (VIANNA, 2008).
A partir dessa definição, o Banco Mundial preconizava que as políticas de natureza
coletiva, universais, são anacrônicas e ineficazes para lidar com a “questão social”, pois
possuem um valor muito elevado, penalizam investimento em setor privado e não alcançam
os pobres (VIANNA, 2008). Aliado à essa premissa, está o entendimento de que inclusão
social de margem excluída da população se resume a entrar no mercado. Afinal, o cidadão, no
sistema capitalista, é aquele que possui direitos civis, sociais e políticos, e que é produtor e
consumidor de mercadorias. Assim, a ação do Estado, em matéria social, deve ser reduzida a
política social de ação para os pobres (VIANNA, 2008). Como já preconizava Polany (apud
Vianna, 2008), as ações governamentais, de cunho social, voltadas especificamente para os
pobres, têm historicamente a função de proteger a sociedade de todos os riscos que a
expansão do mercado acarreta, em particular, as desigualdades, que, no limite, ameaçam a
própria ordem social.
Nos relatórios dos anos de 1990, o Banco Mundial definiu a pobreza como a
incapacidade de atingir um padrão mínimo de vida. O padrão de vida mínimo, de acordo com
o Banco Mundial, deveria ser definido a partir das despesas necessárias para que os
indivíduos tenham acasso ao mínimo para sua nutrição e outras necessidades básicas
(AZEVEDO E BURLANDY, 2010).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Assim, a renda como critério de pobreza consistiu na definição de um valor mínimo de


força trabalho e, a partir desse marco, seria possível identificar aqueles que possuem uma
renda abaixo desse valor, os denominados a partir de então de “pobres”. Já no concernente à
incapacidade, a mesma deveria ser enfrentada, por um lado, aumentando as possibilidades de
emprego – que só seria possível por meio de crescimento econômico resultante de um
aumento de investimento no setor produtivo – e por outro com políticas que provessem aos
“pobres” de serviços essenciais.
A construção do conceito de pobreza, a partir do poder de consumo individual medido
por meio da renda e acesso às beneces do desenvolvimento econômico se imprime nas pré -
condições para existência de pobreza: áreas rurais, pouco urbanizadas, com baixa
escolaridade. A sobrevivência, desse modo, depende da capacidade de trabalhar e das
oportunidades de conseguir um trabalho. A falta de instrução, a falta de terra e a extrema
vulnerabilidade às doenças e às sazonalidades afetam as famílias em diferentes graus.
“Problemas como esses estão no âmago da pobreza” (BANCO MUNDIAL, 1990, pg. 25).
O relatório também destaca que pobreza não é o mesmo que desigualdade. A pobreza
está relacionada ao padrão de vida absoluto de uma parte da sociedade – os pobres –
desigualdade se refere à padrões de vida de toda a sociedade. “Se as famílias tiverem
oportunidades seguras de usar proveitosamente sua mão de obra e se seus membros forem
capacitados, instruídos e saudáveis, certamente estará assegurado o padrão de vida mínimo e a
pobreza desaparecerá” (BANCO MUNDIAL, 1990, pg. 39).
Dentro dessa perspectiva, a primeira das indicações do Banco Mundial era a
identificação de possibilidades de criação de oportunidades econômicas que para que os
pobres pudessem obter maiores rendimentos, de forma a ultrapassar a linha da pobreza. E
essas possibilidades só poderiam ser produzidas com a livre atuação do mercado. Ainda que o
Banco Mundial assumisse a importância do crescimento econômico para redução da pobreza,
no que tange o papel do Estado, esse deveria se limitar ao desenvolvimento de políticas mais
focalizadas, que proporcionassem o aumento do capital humano, com acesso a educação e
saúde (UGÁ, 2004)
Nessas definições de pobreza no relatório de 1990 do Banco Mundial, podemos
identificar algumas estratégias utilizadas pelo Banco Mundial para atuar nos pontos de
instabilidade e ambiguidade das dimensões que compõe o conceito de desenvolvimento
apresentado por Furtado (1992), de forma a criar um consenso necessário para a
governabilidade neoliberal.
Como afirma Fairclough (2001), são exatamente nos pontos de instabilidade
discursiva em que a luta hegemônica ocorre. Afinal, os discursos criam uma realidade social
por meio da produção de conceitos, objetos e posições de sujeito, que moldam a forma como
entendemos o mundo e reagimos a ele, assumindo a função de recurso estratégico utilizado
pelos grupos para intervir nas atividades discursivas e relações sociais (HARDY, 2000).
Resgatando o conceito de desenvolvimento apresentado por Furtado (1992), podemos
perceber que, na definição de prioridades políticas a serem adotadas pelas classes dominantes
(terceira dimensão do conceito de desenvolvimento) dos países periféricos, o Banco Mundial
buscou consolidar a necessidade de que os governos, principalmente dos países em
desenvolvimento, assumissem o combate à pobreza como o principal vetor de sua
intervenção, deixando o mercado internacional livre e responsável pela produção de riqueza.
Ademais, ao definir um padrão mínimo de vida, o Banco Mundial buscou consolidar o que
seriam as necessidades elementares dos indivíduos (segunda dimensão do conceito de
desenvolvimento), dentro dos padrões capitalistas.
Marini (2000, p. 176) fez um alerta importante a respeito das recomendações feitas
aos países em desenvolvimento:

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[...] as recomendações que se têm feito para os países dependentes, onde se verifica
uma grande disponibilidade de mão de obra, no sentido de que adotem tecnologias
que incorporem mais força trabalho, com objetivo de defender os níveis de emprego
e de vida dos trabalhadores, representa um duplo engano: levam a preconizar a
opção por um menor desenvolvimento tecnológico e confundem os seus efeitos
sociais especificamente capitalistas da técnica com a técnica em si.

A intervenção do Estado, por meio do financiamento do consumo das massa (consumo


necessário e definido dentro do conceito de padrão mínimo de vida do Banco Mundial),
implicou no rebaixamento ainda maior dos salários reais na América Latina, com o objetivo
de contar com excedentes suficientes para efetuar a transferência de renda. Mas, na medida
em que comprimiu, dessa forma, a capacidade de consumo dos trabalhadores, fechou também
qualquer possibilidade de estímulo ao investimento tecnológico no setor de produção nacional
destinado a atender o consumo popular interno (MARINI, 2000).
Com essas limitações do mercado interno, o América Latina voltou a velha economia
exportadora, tanto de bens essenciais como supérfluos para os países centrais, o que é bastante
oportuno para o acúmulo de capital nesses países (MARINI, 2000). Assim, as políticas de
combate à pobreza se tornaram bastante funcionais a manutenção do status dos países em
desenvolvimento.
As estratégias discursivas utilizadas pelo Banco Mundial na construção do conceito de
pobreza ficam ainda mais evidentes quando utilizamos os elementos de dissimulação
delimitados por Thompson (2002) para analisar o discurso dessa instituição. Verificamos
nessa primeira conceituação (do relatório dos anos 90) a tentativa de reduzir a pobreza,
enquanto contingente social, à um poblema de ordem individual. A utilização da sinédoque,
em que um termo relacionado ao todo é utilizado para se referir a uma parte, evidencia a
redução da pobreza, enquanto situação de um grupo social, a incapacidade individual de
atingir um padrão mínimo de vida, ou seja, uma situação individual e passageira. Essa
estratégia busca recontextualizar os termos, possibilitando a inversão nas relações entre
coletividade e suas partes.
Como ressalta o documento do Banco Mundial, o principal bem dos pobres é o tempo
para trabalhar e a educação aumenta a produtividade desse bem e consequentemente o nível
de renda individual. A premissa implícita a essa compreensão é de que quanto mais educação
o indivíduo se torna mais apto se torna a competir com os outros por um emprego melhor no
mercado (UGÁ, 2004). Em outros termos, o produto do próprio modo de produção capitalista
e das relações que se estabeleceram no capitalismo dependente – a pobreza – é relegado a
responsabilidade do indivíduo, que com auxílio de ações do Estado, deve aumentar sua
empregabilidade
Outrossim, nessa definição também podemos identificar o uso da metonímia, enquanto
utilização de característica, para atribuir conotação positiva ou negativa, mobilizando o
sentido de um elemento ou frase de maneira sutil, deixando implícita relações de conexão
entre os termos referidos. Assim, na assertiva de que ser pobre consiste na incapacidade
individual de atingir um padrão mínimo de vida, o referente suposto de – padrão mínimo de
vida – se pauta pelo valor da força trabalho, definido por Marx (1984) como o pagamento do
trabalhador não pelo que ele produz, mas pelo valor definido pelo mercado. O valor da força
trabalho é determinado pelo tempo de trabalho necessário para a sua produção e pelo valor
necessário para subsistência do trabalhador e sua família, dentro dos padrões de consumo,
funcionais ao mercado, para essa classe (MARX, 1984).
Essa concepção de pobreza, definida nos anos de 1990 pelo Banco Mundial, encontrou
fortes limitações nos países mais pobres. Ainda que a pobreza tenha sido avaliada, a princípio,
do ponto de vista da renda, a simples transferência de renda e aumento do número de
empregos não possibilitou a inserção dos ditos “pobres” no mercado de trabalho e nem

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possibilitou a redução das desigualdades existentes nesses países (UGÁ, 2004).


Diferentemente do primeiro relatório, o Banco Mundial passou a enfatizar aspectos
relacionados à desigualdade, haja vista que os 10 anos de crescimento econômico de países
em desenvolvimento não acarretaram na diminuição da pobreza em função da distribuição
desigual da mesma riqueza produzida. Constatando essas limitações, e tendo que responder à
elas, de modo a manter sua legitimidade e dar continuidade ao processo de construção
ideológica nos países em desenvolvimento, os relatórios do Banco Mundial dos anos
2000/2001 apresentaram um ponto de inflexão – passaram a assumir o caráter multifacetado,
considerando a pobreza como uma situação decorrente da privação produzida por processos
econômicos, politicos e sociais. “Assim, além da forma monetária de pobreza, ela é
considerada uma ausência de capacidades, acompanhada pela vulnerabilidade do indivíduo e
de sua exposição ao risco” (UGÁ, 2004, p. 59).
O Banco Mundial (2000) assumiu uma outra concepção de pobreza mais ampla que a
primeira - embasados nos estudos de Amartya Sen - entendendo o pobre como aquele sem
liberdade fundamental de ação e escolha, pois não dispõem de condições mínimas de
alimentação, moradia, saúde e educação, sendo mais vulneráveis à catástrofes naturais, crises
econômicas e problemas de saúde. “(...) Pobreza é mais que renda ou desenvolvimento
humano inadequado; é também vulnerabilidade e falta de voz, poder e representação”
(BANCO MUNDIAL, 2000, p. 12). Isso porque os pobres “não são bem tratados por
instituições do Estado e da sociedade e não podem influenciar as decisões que afetam sua
vida. ” (BANCO MUNDIAL, 2000/2001, pg. 1).
Desse modo o Banco Mundial reconhece que a pobreza vai além da questão da renda
ou desenvolvimento humano inadequado, passando também pela vulnerabilidade, falta de
voz, poder e representação. Essa visão apresentada como visão multidimensional da pobreza,
traz a baila para a discussão de estratégias de redução de pobreza aspectos como fatores
sociais e forças culturais. Além da forma monetária de pobreza, característica do conceito no
relatório de 1990, a mesma passou a abranger, no relatório 2000/2001, a ausência de
capacidades, acompanhada da vulnerabilidade do indivíduo e de sua exposição ao risco.
Em uma sociedade em que os indivíduos possuem capacidades e oportunidades
desiguais, é necessário realizar essas capacidades individualmente - enquanto valores criados
socialmente (CAMARA, 2014). A essência dos trabalhos de Amartya Sen - que, a partir dos
anos 2000, passaram a ser referências centrais dos Relatórios do Banco Mundial - reside na
ideia de desenvolvimento como liberdade, isso é, criação de oportunidades para que os
indivíduos realizem suas capacidades, por meio de funcionamentos por eles valorizados
(SEN, 2000).
A privação de liberdade econômica, na forma de pobreza extrema, pode tornar a
pessoa uma presa indefesa na violação de outros tipos de liberdade. (...) A privação
de liberdade econômica pode gerar a privação de liberdade social, assim como a
privação de liberdade social ou política pode, da mesma forma, gerar a privação de
liberdade econômica (SEN, 2000, p. 23).

Banco Mundial preconiza que as estratégias para combater a pobreza – a partir de uma
perspectiva multidimensional - devem estimular a autonomia e participação local, trazendo à
cena a necessidade de mecanismos participativos que possam proporcionar dar voz às
mulheres e homens, especialmente dos segmentos pobres e excluídos da sociedade, visto que
são os pobres os principais agentes da luta contra a pobreza. “Assim, devem ocupar um lugar
central na elaboração, implantação e monitoramento das estratégias de redução da pobreza”
(BANCO MUNDIAL, 2000, pg. 12).
Nessa definição de Sen (2000), podemos identificar elementos de dissimulação de
relações desiguais que são definidas como naturais, e não produto das relações econômico e
sociais. Liberdade econômica, enquanto uma eufemização, é uma forma agradável e palatável

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de dizer, aquilo de Marx (1984), ao analisar o modo de produção capitalista, definiu como
concepção de liberdade – na verdade trata-se de uma liberdade abstrata – nesse sistema: a
classe operária tem duas opções dentro desse sistema, ou vender sua força de trabalho ou
então morrer de fome. A liberdade econômica, se dá, portanto, no campo da igualdade
abstrata, visto que as relações se estabelecem a partir da troca de mercadorias (seja força de
trabalho ou produtos da força de trabalho), que são produzidas individualmente.
Observamos também, nessa mesma passagem de Sen (2000), a utilização do
mecanismo da metáfora, em que o termo presa indefesa, utilizado comumente para se referir a
atividades de caça, busca, transferir, por meio de aproximações semânticas, a conotação
negativa desse termo – vulnerabilidade, incapacidade de reação - para os indivíduos que estão
privados da liberdade econômica, ou seja, que não vendem sua força de trabalho para o
mercado. Podemos identificar aqui, a passifização do sujeito, estratégia em que, de acordo
com o Fairclough (2001), o sujeito discursivo busca anular a ação de determinados atores, no
caso os indivíduos pobres, reforçando a necessidade de que esses sujeitos sejam foco de ação
de outros atores mais capacitados.
Todos esses elemetos legitimam o ideário de desenvolvimento enquanto uma
sequência de etapas lineares, em que os países centrais já completaram o ciclo de
desenvolvimento, ocultando o fato de que, eles só se tornaram desenvolvidos a partir da
existência e subordinação dos países subdesenvolvidos, como bem apontou Marini (2000). A
partir dessa assertiva depreende-se que quando existente esse mal nessas localidades, é
responsabilidade do pobre, pois ele teve todas as chances desenvolver suas capacidades e se
inserir no mercado.
Embasadas nesses entendimentos contraditórios e que refletem compreensões
superficiais e enviezadas de um problema que é estrutural, as políticas de combate à pobreza,
apregoadas pelo relatório 2000/2001 do Banco Mundial, foram reduzidas a atuação incisiva
do Estado na expansão das capacidades humanas dos ditos “pobres” de forma que estes se
tornassem aptos e livres para aderir ao mercado. “Pressupondo assim não um Estado
garantidor dos direitos sociais, mas sim um Estado caridoso, que tem deveres a cumprir para
com os pobres“ (UGÁ, 2004, p. 60).
Como defende Ugá (2004), a construção do conceito de pobreza pelo Banco Mundial
nos anos 90 e 2000-2001, teve como objetivo a manutenção da ordem social capitalista diante
da crise dos anos 80 e que ameaçava sua estabilidade. Nesse sentido, as Políticas de Combate
à Pobreza reproduziram relações sociais imbricadas à esse contexto. A partir da concepção de
pobreza, defendida pelo Banco Mundial, podemos concluir que o mundo é composto por dois
tipos de indivíduos, o competitivo e o incapaz (UGÁ, 2004).
Assim o que antes consistia em classes sociais (trabalhadores) agora se torna um
conjunto de indivíduos atomizados e responsáveis pelo fracasso ou sucesso individual. As
Políticas de Combate à Pobreza, propostas pelo Banco Mundial, resumem-se a transformação
do indivíduo incapaz em competitivo, por meio do aumento do capital e capacidades humanas
(UGÁ, 2004), negligenciando assim a lei central da acumulação capitalista – a acumulação de
riqueza em um pólo, no caso, países centrais, é também o aumento da miséria e pobreza no
outro, no caso países em desenvolvimento. Ou seja, a pobreza não é fruto da incapacidade
individual, mas sim das relações estabelecidas nesse processo. A perversidade dessas políticas
está em seu potencial de esvaziamento político, desarticulação social e aprofundamento das
relações de dependência centro-periferia.
E nisso se reflete os resultantes contraditórios de implementação de Programas de
Combate à Pobreza na América Latina, dentro das diretrizes do Banco Mundial. Como
ressalta Ugá (2004), os resultados da implementação dos receituários neoliberais mostram que
o continente latino-americano teve um declínio constante nas taxas de investimento e
crescimento. Ademais, a adoção das políticas neoliberais acarretaram na piora na distribuição

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de renda e aumento do desemprego, pois não atuam nas raízes do problema. “Em suma, esse
tipo de política passou e significar crise, exclusão social e falta de investimento no setor
produtivo” (UGÁ, 2004, p. 57).

REFLEXÕES FINAIS

A partir de reflexões e aproximações iniciais, constatamos que os Programas de


Combate à Pobreza na América Latina, delineados a partir do conceito de pobreza neoliberal,
difundido pelo Banco Mundial, não são o caminho correto para o enfrentamento dessa
questão, e contribuem para manutenção da divisão internacional do trabalho, consolidada a
partir dos interesses dos países centrais.
E, tendo em vista os interesses defendidos pelo Banco Mundial, depreendemos que a
construção ideológica do conceito de pobreza nos relatórios desse organismo - concebido de
forma individual e a partir das capacidades humanas, assumindo as assimetrias de poder e
status como naturais - visam criar um consenso social em torno do tema, que impossibilite o
desvelamento das relações que estão na base dessa problemática: a contradição entre
acumulação de riqueza e pobreza que consolida o desenvolvimento dependente dos países da
América Latina. Apenas a evidenciação dessas contradições, veladas nesses constructos, nos
possibilitarão chegar a verdadeira natureza do problema.
Esse cenário evidencia aquilo que Marx e Marini já destacaram em seus escritos - a
pobreza na América Latina não é decorrente de problemas individuais de distribuição de
renda - como afirma o Banco Mundial e intelectuais que sustentam seus receituários - e nem
da impossibilidade de realizar capacidades valorizadas, como propõe Sen (2000).
Assim, a mesma só pode ser superada a partir do destruição das relações
socioeconômicas de exploração da classe trabalhadora que sustentam o modelo de
acumulação vigente, envolvendo o protagonismo consciente do povo. E nesse sentido, ao
aliviar os sintomas da pobreza e ao relegar para o indivíduo uma questão que é social, as
políticas neoliberais acabam por mascarar e legitimar as relações que estão na base
estruturante desse problema social.

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Integrada. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.

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Gestão societal: o papel das cooperativas de materiais recicláveis na


inclusão social e na obtenção de renda das mulheres do Sudoeste da Bahia

Tiara Oliveira Cardoso Nunes


Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

RESUMO
No Brasil, assim como em outros países, é notória a quantidade de pessoas envolvidas com
trabalho informal nos últimos anos, devido à escassez do trabalho formal e o aumento da
pobreza e da exclusão social. Essa mudança, no Brasil, se deu a partir do final da década de
1980, quando o país abriu os mercados internos gerando níveis alarmantes de desemprego. Para
tanto, os brasileiros passaram a viver cada vez mais do subemprego e de práticas de economia
informal. Devido a essa ruptura, nos últimos anos, o Estado vem estimulando, por meio de
políticas públicas de inclusão social, a conversão do trabalho informal em postos de trabalho
formal e para isso, os empreendimentos de natureza coletiva têm sido utilizados como uma
forma de economia plural. Dentre os diversos tipos de empreendimentos informais ou
econômicos solidários, encontra-se as cooperativas. Diante do exposto, o propósito deste
trabalho é apresentar a experiência do gênero feminino através da associação em uma
Cooperativa. Para tal, realizou-se um estudo em duas Cooperativas de Catadores de Materiais
Recicláveis que integram a Rede Catabahia.

INTRODUÇÃO
O bem-estar pessoal, fruto das conquistas materiais adquiridas por cada indivíduo, é
mantido através da continua dedicação ao mundo do trabalho e a busca pela aquisição de novos
bens, obtenção de sucesso e aspirações pessoais de enriquecimento. No entanto, a manutenção
dos empregos, na atual economia, está cada vez mais difícil devido a não caracterização do
“homem” produtivo perante o perfil exigido pelo modelo econômico vigente.
Dessa forma, o indivíduo, diante da ameaça da flexibilidade profissional da civilização
capitalista, cria em si a fragilidade e o medo da perda do seu status, através do desemprego.
Porém, ainda que “grande parte do capital comercial pode ser – e é – acumulado a partir da
insegurança e do medo” (BAUMAN, 2007) ora teme-se perder o fruto das conquistas pessoais
e o conforto material, seja pelas crises econômicas, seja pela insegurança e instabilidade da vida
urbana ou mesmo pelas catástrofes naturais. Nessas condições, o medo se torna imprescindível
para a manutenção da ordem social. Seja ela percebida através da produção e/ou consumo
desenfreado ou das disparidades entre “classes” sociais.
Para Bauman (2009), o medo e a incerteza são o habitat natural da vida humana, no
entanto, ainda que a esperança de escapar da incerteza seja o motor das atividades humanas
muitos homens e mulheres têm encontrado dificuldades em se manterem inseridos no mercado
de trabalho devido a criação desse novo paradigma (mais flexível, precário e instável) que gera
insegurança e preocupação com a exclusão social, podendo ser ela através da obtenção de renda,
da integração social do indivíduo ou na formação da sua personalidade.
Noutras palavras, num mundo de necessidades crescentes, onde a maioria das pessoas
não participam da gestão dos meios e dos recursos de produção, em oposição a esta economia
capitalista, surgi a gestão social, também chamada de societal, que visa “humanizar” o
capitalismo. Para Carrion (2012) a temática gestão social foi responsável por estabelecer uma
luta política e/ou uma mudança no interior da Administração, através da inclusão de
instrumentos administrativos voltados para a sociedade e não para o mercado, fortalecendo as
lutas sociais ao invés dos interesses do capital.

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Para tal, é neste confronto entre mercado e Estado que os especialistas em gestão social
direcionam suas atenções para o chamado “terceiro setor”. Este setor é formado por
organizações não governamentais, cooperativas, associações e outros organismos considerados
na teoria social e na teoria política como órgãos da sociedade civil. Assim, como consequência
dessa nova economia, surgi o trabalho informal que é um fenômeno social encontrado
praticamente em todo o mundo capitalista que, no entanto, assume dimensões de maior
proporção nos chamados países de capitalismo periférico, como o Brasil (LEIBANTE, 2008).
Porém, salienta-se que, além de todo sofrimento proporcionado por uma exclusão social
ao “homem” produtivo, às mulheres é imposto enfrentar a pobreza de forma mais severa que
aos homens, devido às barreiras socioculturais de ingresso e permanência no mercado de
trabalho, diante da falta de igualdade e de oportunidade com o sexo oposto.
Para tanto, nessa conjuntura, o gênero feminino tem se organizado, cada vez mais, em
todo o mundo na busca de trabalho, renda e melhorias de vida apoiando-se na criação de
empreendimentos de natureza coletiva e cooperativa. Espera-se que nesses empreendimentos
não haja discriminação de gênero, uma vez que possuem uma lógica inclusiva e igualitária, de
superação das mazelas do sistema econômico excludente que ele visa contrapor.
Desta forma, para compreender os fenômenos que exercem influência sobre a
participação feminina no cooperativismo, o presente estudo apresenta as vantagens e
desvantagens encontradas pelas mulheres ao participarem de uma cooperativa de materiais
recicláveis no sudoeste da Bahia. Para tal, realizou-se um estudo em duas Cooperativas de
Catadores de Materiais Recicláveis que integram a Rede Catabahia.

GESTÃO SOCIETAL: RELAÇÕES DE GÊNERO E O MERCADO DE


TRABALHO
As crises socioeconômicas advindas do capitalismo sempre foram motivo de críticas,
haja vista que este sistema possui em suas normalidades a oscilação entre crises de acumulação
de capital e crises sociais. No entanto, nos últimos tempos, têm se tornado mais evidente, não
sobre uma visão crítica anti-capitalista, mas sim de bom senso socioeconômico, que este
modelo já não é suficiente para a ordem econômica global, pois, como poderia ser benéfica a
sua influência se o mesmo dilacera o meio-ambiente, joga milhões no desemprego e remunera
mais os especuladores do que os produtores? Ou seja, o capitalismo sabe produzir, mas não
sabe distribuir, afetando assim não apenas os pobres, mas todo o sistema produtivo.
Em contraste, o sociólogo e filósofo Morin (MONTANO, 2011) têm sido um dos
grandes defensores do desenvolvimento do capitalismo financeiro, como ele chama o atual
sistema econômico, através da mundialização ambivalente. Ainda para Morin, o a atual cenário
está preste a sofrer uma catástrofe ambiental e econômica que só poderá ser contida através da
mundialização com desmundialização.
A desmundialização vem como um anseio por um descrescimento ou crescimento negativo do
ponto de vista econômico em que será preciso não apenas de um comércio justo, mas também
de uma economia solidária, que vença o domínio da perspectiva do ganho exacerbado. Para
isso, na busca por uma sociedade psiquicamente mais sadia, é preciso reorganizar o presente
sistema econômico na direção de libertar o homem do seu uso instrumental como meio de
lucro e de desenvolver um caráter social produtivo no trabalhador através da sua participação
ativa e responsável, na qual o trabalho seria atraente e significativo e o capital não empregaria
o trabalho, mas o trabalho empregaria o capital (FROMM, 1983).
Fromm (1983), ainda, sugere que o processo de reorganização do capitalismo deva
acontecer pacificamente, conduzindo a reforma econômica de maneira a não ir de frente com a
iniciativa privada dos capitalistas, mas sim de forma que lhes fosse concedido apenas o

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pagamento justo pelo uso do seu capital, não retornando para o trabalhador o direito ao lucro
da “mais-valia’ e de uma administração autoritária e centralizada.
Logo, neste novo cenário, a condição de ser empregável – de ter a capacidade de
aprender a se adaptar às novas realidades do mercado de trabalho – torna-se mais importante
do que o emprego. Pois, nessa conjuntura, muitos homens e mulheres buscam através da gestão
societal um novo meio de (re)inserção social.
Ainda, em reflexo a esse novo paradigma, ocorrem diariamente transformações na
estrutura produtiva, no processo de urbanização e a redução das taxas de fecundidade nas
famílias, proporcionando uma maior inclusão das mulheres no mercado de trabalho.
Apesar de nas últimas décadas do século XX ter sido presenciado um dos fatos mais
marcantes na sociedade brasileira, que foi a inserção, cada vez mais crescente, da mulher no
campo do trabalho, ainda é vivenciado por algumas preconceitos e abusos trabalhistas, às vezes,
pelo simples fato de ser mulher.
Sobretudo, antes de mais nada, deve-se destaca-se que o Art.5º, Inc. I da Constituição
Federal do Brasil de 1988 menciona que:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I- homens e mulheres
são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.
No entanto, apesar do discurso de igualdade de condições e oportunidades proposto e
evidenciado na Constituição Federal, ainda se observa na prática a desigualdade de gênero no
mercado de trabalho, seja em relação aos níveis salariais, às possibilidades de crescimento na
carreira ou às oportunidades de exercer determinadas funções. Essas diferenças de gênero foram
e são construídas, pela sociedade, ao longo dos anos, através dos processos sociais.
O gênero, assim, cumpre um papel decisivo ao definir os papéis de cada um na
sociedade. Para tanto, uma análise das relações de gênero parte do pressuposto de que:
a divisão de trabalho e as relações entre homens e mulheres não são construídas em
função de suas características biológicas, senão de um produto social que legitima as
relações de poder dentro de um processo histórico que pode ser transformado.
Portanto, gênero é uma categoria social que permite analisar papéis,
responsabilidades, limitações, e oportunidades, que são de forma diferente, para
homens e para mulheres, no interior da unidade de produção, da família, da
comunidade e da sociedade (ABRAMOVAY; SILVA, 2000, p.348)
Sendo assim, a explicação, inicialmente, encontrada para essa relação estabelecida e
dada para homens e mulheres advinha do patriarcado fortalecido pela sexualidade e
maternidade. O patriarcado refere-se a um tipo hierárquico de direitos sexuais dados aos
homens sobre as mulheres e filhos, praticamente sem restrições. Essa dominação masculina
sobre o gênero feminino passou ao longo dos anos por algumas transformações, adaptando-se
a cada era. Todavia, para alguns autores, como Saffioti (2004), a base material do patriarcado
ainda não foi totalmente destruída. Dessa forma, há a perspectiva de desconstrução de um
sistema de dominação e discriminação machista no que tange o papel da mulher na sociedade.
Quanto a essa desconstrução Castells relata que:
a incorporação maciça da mulher na força de trabalho remunerado aumentou o seu
poder de barganha vis-à-vis o homem, abalando a legitimidade da dominação deste
em sua condição de provedor da família. Além disso, colocou um peso insustentável
sobre os ombros das mulheres com suas quádruplas jornadas diárias (trabalho
remunerado, organização do lar, criação dos filhos e a jornada noturna em benefício
do marido) (CASTELLS, 2002, p.170).
De maneira geral, a dita divisão sexual do trabalho, no que se refere aos papéis de cada
um dos sexos, gira em torno do trabalho produtivo e reprodutivo. Apesar de as mulheres,
atualmente, desempenharem as duas funções, sendo o reprodutivo ainda mais associado,
principalmente as mulheres de baixa renda, o papel feminino na sociedade da produção só tem
evoluído ao longo dos anos.

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O trabalho produtivo é aquele valorizado socialmente, remunerado economicamente e


que atribuí prestígio social a quem o realiza, enquanto que o reprodutivo é desenvolvido no
ambiente doméstico familiar, que visa reproduzir a vida cotidiana. Este último, normalmente, é
desempenhado pela mulher, no entanto, quando, na direção oposta, as atividades domésticas
realizadas pelos homens são igualmente consideradas “ajuda”, por se afastarem de sua
“atribuição própria”, que são as atividades produtivas (SILVA; PORTELLA, 2004, p. 134).
Apesar de sempre associada ao trabalho reprodutivo, as mulheres mostram muitos
avanços no que se refere ao trabalho produtivo. Hoje, há um grande número de mulheres que
deixaram de ser apenas esposas, donas de casa e mães, ampliando seu espaço na economia
nacional e mundial.
A evolução é lenta, porém, constante e pôde ser acompanhada, ao longo dos anos,
através dos dados apresentados pelos Institutos de Estatísticas. No Brasil, no ano de 2014,
através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio - PNAD, o número de domicílios que
possuíam uma mulher como referência representavam 39,8% do total, alta de um ponto
percentual em relação ao verificado em 2013. Em 2014, 27,7 milhões de lares eram chefiados
por mulheres, sendo que, de 2004 a 2014, a quantidade de lares chefiados por mulheres
aumentou 67% (VETTORAZZO, BÔAS, 2015)
Contudo, a maior presença da mulher no mercado de trabalho não se reverte, por si só,
em sucesso na inserção. A despeito da expansão da taxa de participação, as taxas de desemprego
feminino apresentam-se, sistematicamente, superiores às masculinas. No primeiro trimestre de
2015, a taxa entre as mulheres foi de 9,6%, maior do que a total no período, que foi de 7,9%.
Entre os homens, a taxa foi de 6,6%. Assim, as mulheres são maioria entre as pessoas
desempregadas, representando 52,9% dessa população
O Diretor Executivo para Emprego da OIT, José Manuel Salazar-Xirinachs, citou,
através do site da ONU, que para combater às desigualdades de gênero no trabalho é necessário
realizar investimentos em capacitação, educação e políticas que facilitem o acesso ao emprego
e reduzam as disparidades. O Diretor ainda salienta que “as políticas destinadas a reduzir as
disparidades de gênero podem melhorar significativamente o crescimento econômico e os
níveis de vida. Nos países em desenvolvimento podendo contribuir de maneira considerável
com a redução da pobreza”.
Nessas circunstâncias, contra o desemprego e a exclusão social, tem crescido a
participação de homens e mulheres, esta última mais fortemente, em iniciativas do Terceiro
Setor.
De acordo com Cabral (2007) o Terceiro Setor deve ser considerado como um espaço
onde lógicas diversas, discursos e racionalidades emergidos do Estado, do setor mercantil e da
comunidade, são interconectados por um propósito comum de proteção e desenvolvimento
sociais. Ainda quanto ao surgimento do Terceiro Setor, pode-se relatar que o mesmo é
suportado pela necessidade de existência de mecanismos sociais públicos, não-estatais,
assumindo que o “Estado não é o provedor único de bens e serviços destinados a um interesse
coletivo” (CAMARGO, 2001, p.19).
O Terceiro Setor é basicamente formado por organizações e entidades sem fins
lucrativos, não governamentais e que tem como objetivo gerar serviços de caráter
público. Neste rol de instituições inseridas no Terceiro Setor pode-se incluir as Associações, as
Fundações, os Sindicatos, os Partidos Políticos e também as Cooperativas.
Tais empreendimentos são uma excelente alternativa, pois permitem o resgate social a
um baixo custo econômico. Nestes casos, as estratégias e decisões são tomadas por todos e as
responsabilidades são compartilhadas. Porém, vale salientar que, para que haja sucesso nestes
grupos, é necessária a participação de todas as pessoas envolvidas e não apenas a vontade de
participar. Por isso, essa nova economia
parte de valores distintos aos valores predominantes na economia capitalista,
destacam-se: autonomia, democracia, fraternidade, igualdade e solidariedade. Aqui a

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racionalidade social, sendo mais importante que a racionalidade técnica está


fundamentada na cooperação com a exploração coletiva das potencialidades
profissionais, em benefício dos próprios produtores. O trabalho é o elemento central.
A manutenção de cada posto de trabalho tem prioridade maior do que a lucratividade.
A acumulação deve estar subordinada ao atendimento das necessidades definidas pelo
coletivo de trabalhadores (EID, 2007, p.58-59).
Os empreendimentos de natureza coletiva, assim como a Economia Solidária, surgem
como alternativas de combate à pobreza e a crise da economia capitalista, oferecendo às
mulheres e, principalmente, à comunidade como um todo, uma possibilidade de inclusão
sociopolítica através do trabalho em grupo. Dessa forma, Culti (2004, p. 2) idealiza que “um
processo de organização coletivo como este, pode transformar o papel das mulheres na
sociedade, como a identidade a elas relacionada, apesar de não ser um movimento ou ação
coletiva apenas de mulheres”.
Segundo Guérin (2005), as iniciativas solidárias são funcionais em três aspectos que são
importantes para a diminuição das desigualdades sociais, principalmente no que tange as
relações trabalhistas:
Em primeiro lugar, elas desempenham um papel de justiça de proximidade; ora, esta
é essencial diante do caráter multidimensional da pobreza. Em segundo lugar, elas
constituem espaços de discussão, de reflexão e de deliberação coletivas; elas se
apresentam nesse aspecto como modo de acesso à fala pública para pessoas que
geralmente não o têm. E, por meio da expressão e da reivindicação coletivas, elas
podem participar da transformação das instituições, quer se trate da legislação ou das
normas sociais. Em terceiro lugar, elas contribuem com a redefinição da articulação
entre família, autoridades públicas, mercado e sociedade civil, e participam da
revalorização das práticas reciprocitárias; ora, essa redefinição e essa revalorização
devem tornar possível que se lute contra as desigualdades intrafamiliares ao permitir
que as mulheres, mas também os homens conciliem melhor vida familiar e vida
profissional (GUÉRIN, 2005, p. 17-18).
Portanto, a coletividade pode ser destacada como um elemento fundamental para o
desenvolvimento humano e para a organização da classe trabalhadora.

COOPERATIVISMO DE MATERIAIS RECICLÁVEIS


A inclusão das Cooperativas como instituição do Terceiro Setor é polemica devido a
suposta natureza lucrativa do empreendimento, entretanto, sua inclusão se dá em razão da
promoção do desenvolvimento socioeconômico para milhões e milhões de pessoas em todo o
mundo.
O cooperativismo, conforme a Aliança Cooperativa Internacional – ACI, é uma
associação autônoma de pessoas que se unem, voluntariamente, para satisfazer aspirações e
necessidades econômicas, sociais e culturais comuns, por meio de uma empresa de propriedade
coletiva e democraticamente gerida (ALIANÇA COOPERATIVA INTERNACIONAL – ACI,
1995).
Vitorino e Benato (1994) ainda acrescentam que o cooperativismo opera como um
sistema reformista da sociedade que quer obter resultados favoráveis, fruto de um trabalho
coletivo que abrange o lado social. Esse sistema se destacou como um grande fator
socioeconômico por possuir em seus principais objetivos não apenas o foco no aumento do
nível de renda dos associados, mas também na distribuição de forma mais igualitária da renda
de modo a proporcionar maior desenvolvimento da economia local.
Dentre os diversos tipos de Cooperativa, destaca-se aqui as de Reciclagem de Resíduos
Sólidos. Destaca-se que as primeiras organizações de catadores em cooperativas e associações
tiveram início na década de 1990, com a perspectiva de relação dos grupos de catadores com o
poder público dos municípios, visando a valorização e profissionalização do trabalho do catador
(DEMAJOROVIC; BESEN, 2007). De forma geral, essas cooperativas visavam a possibilidade
de inclusão social e econômica daqueles que trabalhavam nos lixões e que eram vistos, naquela

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época, como sendo um grupo invisível socialmente e estigmatizado pela sua atividade de coleta
de lixo. Ainda, devido à grande parte dos catadores desempenharem suas atividades em
condições precárias, sofrendo preconceitos e possuindo baixo reconhecimento do papel que
representam na economia e no meio ambiente, embora tenham uma profissão reconhecida e
sejam resguardados por um comitê específico.
Apesar de o ato de catar lixo ser considerado uma atividade excludente pela própria
natureza do tipo de trabalho, alguns estudiosos acreditam que a catação é uma possibilidade de
inclusão social de uma parcela de trabalhadores no mercado de trabalho e na sociedade como
um todo (BARROS, SALES E NOGUEIRA, 2002). Ainda, acrescenta-se que, os catadores de
materiais recicláveis configuram-se como sendo trabalhadores de um grupo de desempregados,
que, por sua idade, condição social e baixa escolaridade, não encontram lugar no mercado
formal de trabalho (Medeiros e Macedo, 2006).
Dessa forma, através das cooperativas, como meio social, pode-se colocar o homem na
perspectiva de sujeito da sua história e não apenas como objeto dela (FROMM, 1983, p.21),
cabendo a ele o papel de buscar ou apoiar-se em alternativas oferecidas pelo Estado e/ou meios
criados pela própria sociedade para sua re(inserção) e/ou manutenção social. Para isso, é preciso
desconstruir a ideia de um saber apenas para especialistas, tendo conhecimento de que a ação
de cada ser não repercute apenas de forma micro, como também é de responsabilidade de cada
um a totalidade da sociedade, todavia é fundamental que se preserve a ideia de solidariedade
entre os humanos e assim é necessária a preservação do elo orgânico com a localidade, a cidade
e seus “parceiros” sociais (MORIN, 2001).
Apesar desse desenvolvimento dos catadores, quanto à associação em cooperativas de
matérias recicláveis, muito ainda deve ser feito em prol desses profissionais pelo setor público.
Dessa forma, Porto et al. (2004) corroboram salientando que, grande parte dos estudos já
realizados com catadores de materiais recicláveis, tem a finalidade de discutir os impactos do
lixo sobre a saúde destes trabalhadores. As questões relativas à exclusão social, cotidiano,
perspectivas, qualidade de vida, dentre outras, ainda são pouco discutidas.
Faz parte da natureza humana a necessidade de ser visto e valorizado, seja no aspecto
social, financeiro ou afetivo. No entanto, os catadores de materiais recicláveis perpassam pela
invisibilidade social, tanto na ótica atrelada ao consumo como no que se refere ao
reconhecimento social. Tal estigma se baseia na lógica de que o indivíduo que desempenha a
atividade de catar lixo é comparado, muitas vezes, ao próprio lixo, como um ser sujo e
impregnado de doenças, além da noção deturpada de que as pessoas que desenvolvem essa
atividade são perigosas e que se deve manter distância das mesmas. No entanto, outro aspecto
agrava ainda mais a situação desse profissional, que é o caso da associação ao gênero feminino,
conforme supracitado.

MÉTODO DE INVESTIGAÇÃO
Para compreender o processo de inserção dessas mulheres no Cooperativismo de
Materiais Recicláveis utilizou-se uma pesquisa quali-descritiva de natureza teórico-empírica,
ou seja, os dados que foram coletados em campo foram analisados com base no referencial
teórico sobre gestão de recursos sólidos e cooperativismo.
Para obter resultados de maior abrangência, foi utilizado um estudo de multicasos, o
qual se mostrou mais adequado perante a proposta aqui desenvolvida.
A pesquisa foi realizada no primeiro semestre de 2013 e compreendeu o seguinte
universo e amostra de pesquisa: a Cooperativa ITAIRÓ possui atualmente uma população de
38 cooperados, sendo 18 do gênero feminino e a Cooperativa de Catadores Recicla Conquista
possuí 60 cooperados, sendo 20 do gênero feminino. O universo de amostra foi formado por 16
mulheres no Recicla Conquista e 13 na ITAIRÓ, representando, respectivamente, 80% e 72%

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das cooperadas de modo respectivo as suas Cooperativas. Destaca-se que a autora, também,
coletou dados com os dois presidentes das Cooperativas através de entrevista pré-agendada.

REDE CATABAHIA: UMA BREVE DESCRIÇÃO


Visando auxiliar não apenas as mulheres no processo de (re)inserção no mercado de
trabalho, como os catadores de forma geral, o PANGEAi–Centro de Estudos Socioambientais–
em parceria com a Petrobrás, criou em 2004 o Projeto Rede de Catadores Catabahia. O Projeto
compreende a implantação de uma Rede Solidária de Coleta e Comercialização de Materiais
Recicláveis, possibilitando a comercialização dos resíduos recicláveis em escala, gerando assim
maior renda para os catadores cooperativados.
Em sua essência, o Projeto busca legalizar e organizar os catadores de lixo em
cooperativas, com a finalidade de amenizar a baixa renda proveniente desse tipo de trabalho,
da prática do trabalho infantil e da exploração de atravessadores na imposição do preço de
compra do material coletado.
A Rede atuou, inicialmente, na cidade de Feira de Santana – Bahia, com uma
cooperativa formada por 17 catadores e hoje “beneficia diretamente mais de 1.000 catadores de
materiais recicláveis e cerca de 1 milhão de pessoas indiretamente, residentes em bairros
populosos dos municípios atingidos, que passam a ter uma melhoria na qualidade do meio
ambiente urbano e o aumento da vida útil dos aterros sanitários” (PANGEA, 2013).
Atualmente, nove cooperativas fazem parte do programa, sendo elas: CAEC e
COOPERBRAVA, na cidade de Salvador; Recicla Conquista, em Vitória da Conquista;
COOBAFS, na cidade de Feira de Santana; COOPERJE, em Jequié; ITAIRÓ, em Itapetinga e
Itororó; CAEC, em Lauro de Freitas, CORAL, em Alagoinhas e VERDECOOP, no Porto do
Sauipe.
Para realização deste projeto, a Catabahia promove um diagnóstico participativo sobre
os municípios que integram a rede, implantando, fortalecendo e acompanhando o processo de
incubação de cooperativas de catadores de materiais recicláveis, através da promoção de cursos
de capacitação em habilidades básicas, como a triagem de materiais recicláveis, habilidades
específicas, como a manipulação do maquinário, e de gestão. Além disso, auxilia na aquisição
do galpão de triagem, da compra de maquinários, EPI’s e de um caminhão para a coleta seletiva
dos resíduos.
Quanto à implantação do projeto nas cidades de Vitória da Conquista e Itapetinga, o
mesmo aconteceu a partir da oportunidade identificada pela Rede Catabahia juntamente com as
prefeituras das respectivas cidades.
Conforme relato da Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista (PMVC), “até meados
de 2004, a cidade ainda possuía um lixão a céu aberto, que abrigava um grande número de
pessoas que trabalhavam na coletava dos resíduos que, ainda, poderiam ser reaproveitados”. No
entanto, após a implementação do Projeto Recicla Conquista e, posteriormente, da Cooperativa
de Catadores Recicla Conquista, houve uma conversão e legalização desses profissionais
através do cooperativismo.
Quanto a Cooperativa de Catadores de Itapetinga e Itororó – ITAIRÓ, surgiu a partir da
conversão da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Itapetinga – ASCMARE,
que foi desenvolvida através de uma ação do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) e da
Prefeitura Municipal de Itapetinga, em Cooperativa de Reciclagem. Salienta-se que essa
Cooperativa se diferencia das demais do Projeto Catabahia por ser a única que envolve
catadores de dois municípios, Itapetinga e Itororó, cidades que estão separadas por 30 Km de
distância. No que tange a sua estrutura, a Cooperativa funciona através de dois núcleos, um em
cada cidade, em galpões que funcionam como sede administrativa e centros de triagem.
Assim como no Recicla Conquista os cooperados da ITAIRÓ, antes de iniciarem as suas
atividades, passaram por capacitação, proporcionada pela ONG PANGEA, para atuarem como

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catadores e assumirem efetivamente a gestão da cooperativa. Neste período de capacitação,


todos os associados aprenderam noções de trabalho em grupo, cooperativismo, normas de
segurança do trabalho, e a operar os equipamentos que fazem parte da rotina da cooperativa,
como a prensa hidráulica e o picotador de papel. Atualmente, todos os catadores que entram na
cooperativa passam por um treinamento de um mês, realizado pelos próprios catadores que já
foram capacitados no início da cooperativa e têm mais habilidades na área.
A prática da Rede trouxe muitos benefícios para os catadores, como: regularização dos
documentos; aumento significativo na renda média dos cooperados; redução de 30% no índice
de analfabetismo; retirada de crianças dos lixões; inclusão dos catadores e familiares em
programas municipais de assistência social e no Bolsa Família; ações de assistência
sociosanitárias; aumento da autoestima dos catadores; além do desenvolvimento de uma rede
social e profissional sólida e solidária por meio das cooperativas.

RESULTADOS E IMPLICAÇÕES DO ESTUDO


Primordialmente, faz- se necessário descrever, em suma, que o perfil das cooperadas
aqui em estudo pode-se traduzir a partir da constatação de que a grande maioria das mulheres
do Recicla Conquista é casada, tem idade entre 26 e 47 anos, possui o ensino fundamental
completo, tem de um a três filhos, reside em casa própria e recebe, na grande maioria dos casos,
o benefício bolsa-família. Enquanto que na Cooperativa ITAIRÓ, a maioria do gênero feminino
é solteira, têm entre 26 e 63 anos, possui o ensino fundamental incompleto, em média, tem cerca
de quatro filhos, possui casa própria, recebendo, também, o benefício bolsa-família do Governo
Federal. Essa alternância no estado civil das mulheres, nas duas cooperativas, se dá pela
necessidade já visualizada na década de 1980, onde já era apontado um aumento no número de
mulheres casadas que sustentavam os seus domicílios, antes com maior participação das
solteiras (CARVALHO, 1998).

INSERÇÃO E PERMANÊNCIA EM UMA COOPERATIVA:


VANTAGENS E DESVANTAGENS
Através dos dados, evidências e reflexões advindas da pesquisa, foi possível
diagnosticar que a grande maioria das mulheres que se associaram nas cooperativas ITAIRÓ e
Recicla Conquista, conforme esperado, buscavam no cooperativismo uma nova fonte de renda
e uma possibilidade de emancipação social.
Para tanto, através do Gráfico 1, é
possível mensurar que a maioria das
mulheres que trabalham neste tipo
de empreendimento econômico
solidário buscam auxiliar ou
realizar o sustento dos seus lares
sozinhas. Ainda, como a maioria
dos cooperados do Recicla
Conquista são advindos do próprio
lixão que a cidade possuía, é comum
na rotina da cooperativa encontrar
marido e mulher trabalhando juntos.
A união do casal na mesma
atividade se dá, principalmente,
Gráfico 1: Posição da cooperada na renda familiar
pela falta de oportunidade de um
Fonte: Autora, 2013.
dos individuos, ou os dois,
desempenharem outra função que não seja a já imposta pela sua situação social e economica.

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Assim, em relação aos seus cônjuges, em conversa informal, muitas cooperadas alegam
que os mesmos, também, fazem parte da Cooperativa e, como a renda dos cooperados varia de
acordo com a quantidade de material coletado e vendido, em alguns meses, as famílias não
conseguem somar 1 salário mínimo como total das suas rendas. Essa afirmativa pode ser melhor
compreendida através dos 33% das famílias das cooperadas da ITAIRÓ que recebem 1 salário
mínimo da mesma forma que 25% das famílias do Recicla Conquista permanecem na mesma
situação (Gráfico 2).

Gráfico 2: Renda da família


Fonte: Autora, 2013.

Considerando o período de realização desta pesquisa, bem como da situação econômica


que o País vivia, vale ressaltar que, segundo o IBGE, através da Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios (Pnad), o número de trabalhadores que recebem até um salário mínimo por mês
cresceu entre 2011 e 2012 (IBGE, 2012). No entanto, no caso das cooperadas do Recicla
Conquista e da ITAIRÓ, conforme os Gráficos 3 e 4, pode-se verificar que essa posição
financeira nem sempre foi assim, pois, mesmo que de forma não muito significativa,
principalmente para as mulheres do Recicla Conquista, o retorno financeiro adquirido através
de outros empregos, sendo este principalmente dos antigos lixões de suas respectivas cidades,
era maior. Os números caíram de 19% no Recicla Conquista para 6% e 38% na ITAIRÓ para
31%. Em contrapartida, na mesma sequência de análise, a quantidade de mulheres que recebiam
menos de 1 salário mínimo em Vitória da Conquista subiu de 75% para 94%, enquanto que em
Itapetinga subiu de 46% para 69%.

Gráfico 3: Média salarial antes de entrar na Gráfico 4: Média salarial depois de entrar na
Cooperativa Cooperativa
Fonte: Autora, 2013. Fonte: Autora, 2013.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Esse reflexo se dá pelo fato de, em Vitória da Conquista, o projeto contar com um
número maior de associados do que em Itapetinga, além de se utilizar uma forma diferenciada
de rateio dos ganhos da Cooperativa. Segundo as cooperadas do Recicla, através de conversas
informais, cada ecoponto é responsável por recolher, triar e enviar o material para a sede da
Cooperativa que fica localizada no aterro sanitário da cidade. Lá, ele é retransmitido para o
segundo galpão do terreno, onde o material é prensado e, posteriormente, enviado para venda.
No entanto, no primeiro galpão, existe uma esteira elétrica, que possibilita maior agilidade e
volume de coleta de resíduos sólidos. Dessa forma, é anotado pela Presidente a quantidade de
Kgs ou Toneladas que cada grupo recolhe, fazendo, assim, após a venda, um rateio dos ganhos
por base na quantidade que cada grupo recolheu. Ainda segundo as cooperadas, a diferença em
reais, referente aos ganhos dos dois grupos, costuma ser considerável, pois, as cooperadas do
segundo grupo, normalmente, ganham em média R$400,00 a R$500,00, enquanto que o
primeiro grupo ganha de R$900,00 a R$1.100,00.
O Sr. Juvêncio Borges, da ITAIRÓ, também relata que o procedimento referente ao
rateio dos ganhos em sua cooperativa não é muito diferente. Antigamente, eles dividiam os
ganhos de forma igual, retirando apenas o valor estipulado para os gastos da Cooperativa, no
entanto, sempre ocorriam divergências entre os cooperados em razão deste motivo. Dessa
forma, baseados no modo de gestão do Recicla Conquista, a Cooperativa ITAIRÓ adotou o uso
de uma ficha de controle de resíduos sólidos, para cada associado. Ali é anotado todas as
quantidades recolhidas por pessoa e no final do mês o somatório da quantidade. Após a venda
dos resíduos e em contrapartida o recebimento, é realizada a divisão dos valores de cada
cooperado com base na sua produtividade. Segundo Sr. Juvêncio Borges, o problema é que cada
associado.
[...] só pensa no eu, eu, eu, o pessoal não evoluiu. Esquece que na Cooperativa somos
um por todos e todos por um [...] [...] ninguém pensa na Cooperativa. Aqui cada qual
recebe o seu, por exemplo, se eu recolher 1.000 kg, esses 1.000 são meu. Quando
vender e receber o dinheiro daqueles 1.000 kg é da pessoa, só tira uma taxa de ajuda
para as contas da Cooperativa. Foi um erro, mas tem gente que trabalha menos e que
escora nos outros. Essa foi a única forma do pessoal parar de reclamar (BORGES,
2013).
Observa-se, ainda, que as cooperadas do Recicla, na sua maioria, 75%, não possuem
outra fonte de renda enquanto que na cooperativa ITAIRÓ, 100% das associadas não trabalham
em outro lugar, o que representa um grande vínculo das cooperadas com a Cooperativa. Apesar
de ser afirmado pelas cooperadas, das duas Cooperativas, que a renda proveniente do
cooperativismo é insuficiente para cobrir todas as despesas familiares, poucas mulheres
possuem vínculo com outra empresa (Gráficos 5 e 6).

Gráfico 5: Associadas que possuem vínculo Gráfico 6: Associadas que possuem outra fonte de
empregatício em outro local além da Cooperativa renda além da Cooperativa
Fonte: Autora, 2013. Fonte: Autora, 2013.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

O fato das cooperadas da ITAIRÓ receberem, normalmente, mais do que as cooperadas


do Recicla Conquista, influencia na busca dessas últimas, por outras fontes de renda,
representando um universo de 19%.
Apesar de ser afirmado pelas cooperadas, das duas Cooperativas, que a renda
proveniente do cooperativismo é insuficiente para cobrir todas as despesas familiares, poucas
mulheres possuem vínculo com outra empresa. Dentre os casos relatados, através de entrevista
informal, as cooperadas destacam a impossibilidade de manter outro emprego devido a jornada
de trabalho dupla realizada pelas mesmas na Cooperativa e em suas casas. Segundo Castells
(2002), a jornada diária atribuída a mulher, muitas vezes, é quádrupla (trabalho remunerado,
organização do lar, criação dos filhos e jornada noturna em benefício do marido).
Ainda, no que tange a inserção e a permanência no cooperativismo, destaca-se que 50%
das entrevistadas do Recicla Conquista escolheram fazer parte da Cooperativa por falta de
emprego e 56% das cooperadas permanecem na Cooperativa porque ainda não encontraram
emprego. Santos (2008) corrobora com tal afirmação, quando relata que as cooperativas vêm
se apresentando como proposta alternativa para o desemprego, ou seja, forma de superação da
condição de pobreza de grande parte da população. Na Cooperativa ITAIRÓ, não houve
alteração quanto ao motivo que levou (31%) e faz com que as cooperadas permaneçam (31%)
na cooperativa (Gráficos 7 e 8).

Gráfico 7: Motivo que levou a participar da Gráfico 8: Motivo que faz continuar na Cooperativa
Cooperativa Fonte: Autora, 2013
Fonte: Autora, 2013.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Assim, mesmo que as vezes não seja tão perceptível aos olhos das cooperadas, a filiação
a uma cooperativa ajuda no desenvolvimento econômico e social de qualquer indivíduo, mesmo
que de forma pequena e pouco perceptível para alguns, o desenvolvimento existe, como afirma
Bialoskorski Neto (2004). Ainda, a emancipação feminina, a sensação de liberdade e
autonomia, ocasionada pela não dependência do cônjuge ou de um ente familiar, é indescritível,
muitas vezes, superando a dificuldade financeira.
Quanto as vantagens e desvantagens do ingresso em uma cooperativa de materiais
recicláveis, conclui-se que a associação em uma cooperativa permitiu as mulheres em estudo
um aumento de renda, ao eliminar a figura do atravessador na compra dos materiais vendidos
às indústrias e um resgate de autoestima. No entanto, destaca-se que a grande maioria das
associadas salienta como desvantagem, o fato de receberem mensalmente uma renda inferior a
um salário mínimo, não possibilitando que elas possam comprar produtos à prestação. Porém,
a emancipação feminina, a sensação de liberdade e autonomia, ocasionada pela não
dependência do cônjuge ou de um ente familiar, é indescritível, muitas vezes, superando a
dificuldade financeira.
Apesar desse desenvolvimento dos catadores, quanto à associação em cooperativas de
matérias recicláveis, muito ainda deve ser feito em prol desses profissionais pelo setor público.
Dessa forma, as Cooperadas do Recicla Conquista e da ITAIRÓ, enquanto participantes
no Projeto Catabahia do PANGEA, tiveram e têm suas vidas alteradas para melhor, pois, através
da associação e criação de suas respectivas Cooperativas, as mulheres das cidades de Vitória
da Conquista e Itapetinga/Itororó foram reinseridas no mercado de trabalho e passaram a ter
uma renda mais equilibrada.

CONCLUSÃO
Este estudo, então, teve como finalidade conhecer a experiência de mulheres que
desenvolvem atividades profissionais em empreendimentos de natureza cooperativa, bem como
as vantagens e desvantagens encontradas pelo grupo. Para tal, fez-se necessário conhecer e
entender o crescente avanço dessas mulheres na luta pela inserção no mercado de trabalho e a
sua absorção na gestão societal a partir do caráter cooperativista com a finalidade de geração
de renda como uma contraproposta ao projeto neoliberal em economias capitalistas como a
brasileira.
A associação do gênero feminino no cooperativismo de Materiais Recicláveis por si só
já traz reconhecimento, organização e um novo método de trabalho, principalmente no que
tange a associação em uma Cooperativa que faz parte da Rede Catabahia. As vantagens são
ainda maiores, haja vista que o Projeto desenvolvido pela Rede trouxe muitos benefícios para
as catadoras, como: regularização dos documentos de todos; aumento significativo na renda
média dos cooperados; redução de 30% no índice de analfabetismo; retirada de crianças
dos lixões; inclusão das catadoras e familiares em programas municipais de assistência social e
no Bolsa Família; ações de assistência sociosanitárias; aumento da autoestima dos catadores;
além do desenvolvimento de uma rede social e profissional sólida e solidária por meio das
Cooperativas.
Dessa forma, apesar desse desenvolvimento das catadoras, quanto à associação em
cooperativas de matérias recicláveis, muito ainda deve ser feito em prol dessas profissionais
pelo setor público. Afinal, a profissão de reciclador/catador é de fundamental importância para
(re)socialização dos indivíduos, assim como para a destinação dos resíduos sólidos recicláveis.
Salienta-se que este estudo busca se traduzir como um incentivo, também, às mulheres
que ainda não descobriram no cooperativismo uma possibilidade de superação social,
autonomia, reconhecimento e geração de renda, não obstante as dificuldades enfrentadas.
Todavia, o presente estudo não esgota as possibilidades de investigação acerca do tema, mas,
certamente, contribui sobre a sua análise e alimenta com mais um passo para os que desejam

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

pesquisar sobre o assunto em discussão. Ainda quanto as suas limitações, abre-se a


possibilidade de estudos posteriores no mesmo tema, tendo como sugestão investigar as
cooperadas das 9 cooperativas do Projeto Catabahia, assim como, realizar um estudo
comparativo entre o gênero masculino e feminino, identificando as diferenças e oportunidades
oferecidas pelo cooperativismo como fator de resgate social e econômico.

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512
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

i
O PANGEA foi fundado em 1996, em Salvador – Bahia, é uma Organização da Sociedade Civil para o
Interesse Público - OSCIP, de utilidade pública estadual e municipal. A Instituição possui uma extensa trajetória
na execução de projetos no âmbito da cooperação internacional desenvolvendo programas de caráter
socioambiental em áreas urbanas e rurais do Brasil.

513
VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Os Movimentos Sociais Enquanto Atores Visíveis: O Estabelecimento de


Agendas Para o Transporte Público no Brasil.

Thais Ribeiro Gomes


Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Fábio Marques da Silva


Universidade Estadual de Maringá (UEM)

William Antonio Borges


Universidade Estadual de Maringá (UEM)

RESUMO
O presente artigo teve como objetivo compreender de que forma os movimentos sociais
conseguiram estabelecer uma agenda que contemplasse o transporte público urbano em
âmbito nacional. Para tanto, para contar a história sobre a construção de uma agenda nacional
referente à mobilidade urbana, a partir das Jornadas de Junho de 2013, considerou-se
prioritariamente as discussões sobre o direito à cidade (HARVEY, 2012) e o estabelecimento
de agendas (KINGDON, 2006). As vozes ouvidas (por meio de documentos e entrevistas) na
pesquisa elucidaram a eficiência de um movimento social, enquanto ator visível, na criação de
agenda para formulação de políticas públicas urbanas. Como resultado, verificou-se que a
questão do preço da tarifa do transporte público urbano se torna um problema público que
ascende a agenda do governo em diferentes cidades brasileiras, tais como: São Paulo,
Salvador, Florianópolis e Maringá.
Palavras-chave: Urbanização Brasileira, Espaço Urbano, Direito à Cidade, Movimentos
Sociais, Jornadas de Junho.

ABSTRACT
This present article was aimed at understanding how the social movements achieved the
agenda setting which would include the urban public transport at national level. For this, to
tell the story about the nacional agenda setting on urban mobility, from June’s Journeys of
2013, priority was given to discussions about right to the city (HARVEY, 2012) and the
agenda setting (KINGDON, 2006). The listen voices (through documents and interviews) in
the research enlightened the effectiveness of the social movement, as a visible actor on the
agenda setting to formulate urban public policies. As a result, it has been found that the issue
of the urban public transport fee became a public problem that emerges on the government’s
agenda in different Brazilian cities, such as: São Paulo, Salvador, Florianópolis e Maringá.
Keywords: Brazilian Urbanization, Urban Space, Right to the City, Social Movements, June’s
Journeys.

1. INTRODUÇÃO

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Diante da problemática de sustentar o direito à cidade, enquanto direito à vida, a


construção de um novo espaço urbano mais igualitário e humanizado pressupõe urgência e
implica na ruptura com a cultura da diferença e da segregação que se instaura nas cidades
brasileiras.
De acordo com Maricato (2013), as desigualdades econômicas e a dificuldade de
determinadas regiões se inserirem na economia nacional, possibilitou a ocorrência de uma
urbanização diferenciada em cada uma das regiões brasileiras, porém, em todas elas, de modo
muito precário em diferentes aspectos: mobilidade e acesso a serviços públicos e ao trabalho,
saneamento, habitação e emprego.
A urbanização brasileira dos baixos salários e precária infraestrutura se estabelece
segregada, fortemente voltada para a rentabilidade do capital, em função da geração de
excedentes, compondo diferentes espaços como mercadoria, tanto para o rico, quanto para o
pobre. O espaço para o pobre, muitas vezes, não se realiza no seio da formalidade, da cidade
legal:
A concepção de cidade, enquanto obra coletiva da sociedade, poderia colocar os
indivíduos – ou citadinos (VAINER, 2012) - como protagonistas do processo de
transformação urbana. No entanto, não é dessa forma que a construção das cidades, no plano
formal e legal, ocorre no Brasil. Em nenhuma de suas esferas verifica-se o protagonismo
generalizado dos citadinos, seja na segurança, no trabalho, na saúde ou no transporte. O que
se vê são cidades sendo construídas a partir dos interesses de uma elite econômica, em grande
parte vinculada ao mercado imobiliário (mas não exclusivamente), que tem a cidade como
espaço criado para a produção de excedentes de capital.
Entretanto, é pertinente destacar que a cidade brasileira sempre se estabeleceu como
um espaço de luta e de disputas pela constituição de territórios. Tratam-se de cidades
extremamente desiguais e, em boa parte, sem infraestrutura na periferia, construídas ao longo
da segunda metade do século XX para consolidação do modo de vida capitalista, calcado no
modelo fordista de produção.
Instrumentalizada pelos movimentos sociais, as “Jornadas de Junho” ocorreram em
mais de 100 cidades brasileiras, nos dias 6, 7, 11, 13, 17, 18, 20, 21 e 22 do referido mês, em
2013, mobilizando milhares de pessoas, lançando mão de reivindicações referentes às
demandas sociais, todas de conotação fortemente urbana, com o intuito de estabelecer um
processo de Direito a Cidade, significando a cidade como um espaço de vida para todos.
A organização da manifestação foi articulada pelo Movimento Passe Livre – MPL - da
cidade de São Paulo e se espalhou por diversas cidades brasileiras ao longo deste mês. O
motivo original do desencadeamento desses movimentos foi o reajuste de vinte centavos na
passagem do transporte coletivo – a primeira vista um valor ínfimo –, que se desdobrou em
diversas agendas esquecidas, contradições e paradoxos vigentes no cenário nacional (SECCO,
2013).
Muitas foram as notícias publicadas na internet e em jornais impressos no Brasil e no
mundo, a exemplo, podemos citar: site UOL, Notícias Cotidiano, publicada no dia 21 de
junho de 2013; página G1, da emissora Globo, publicada na mesma data da anterior; e o site
da Revista de História, mostrando diferentes pontos de vista sobre os protestos, datada de 18
de junho de 2013. Em paralelo às publicações midiáticas, a Editora Boitempo, com o selo
Carta Maior, inaugurou a coleção intitulada Tinta Vermelha com o livro “Cidades Rebeldes –
Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil” que foi usado como base para
este trabalho.
As notícias, de maneira geral, estavam mais preocupadas em abordar atos violentos
que se configuraram nas manifestações que de fato legitimá-las enquanto movimento social
de cunho político necessário ao país e a emancipação do indivíduo. Tanto o Portal G1, quanto
a UOL trataram dos movimentos no sentido de iluminar “problemas” ou “vandalismos”, sem

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dar a real importância à ação social coletiva de se reapropriar do espaço público, ou tocar no
que diz respeito à força que esses movimentos tiveram para ascender enquanto ator visível
que inseriu uma demanda social na agenda de governo.
No portal de notícias G1 pontuaram: “em São Paulo, 100 mil pessoas ocuparam a
Avenida Paulista pacificamente, mas houve confrontos isolados entre militantes de
partidos,sobretudo petistas, e pessoas que se dizem sem partido. “O protesto começou
pacificamente, mas confrontos pontuais foram registrados e fogueiras foram acesas pela
avenida” (G1, 2013).
No site da UOL Notícias, por sua vez, não fugiram a regra: “entre muitos atos
pacíficos, houve registro de violência em confrontos entre manifestantes e policiais e atos de
vandalismo em várias cidades. No interior de São Paulo, um participante de protesto morreu
atropelado. Os protestos ocorreram em várias capitais e centenas de cidades nas cinco regiões
do país” (UOL, 2013).
Em contrapartida, no site de notícias Revista de História, a historiadora que redigiu a
matéria – Carolina Ferro – participou de parte das manifestações: “era visível que o
movimento não era por 20 centavos, mas por 20 X 20 motivos de insatisfação de uma
população que vem sendo negligenciada por muitos anos pelo poder público. Ao chegar à
famosa Avenida Rio Branco, muitos rostos se encheram de lágrimas. Foi belo ver que além
dos muitos jovens que gritavam com todas as forças, havia idosos, cadeirantes, homens e
mulheres de roupas sociais e artistas. De fato é um movimento do povo na maior amplitude da
palavra. Do alto dos arranha-céus do centro financeiro, cultural e comercial da cidade,
trabalhadores acompanhavam a passeata piscando suas luzes, abanando panos brancos e
jogando papel picado” (Revista de História, 2013). O fato de vivenciar a ação e entender a
realidade da qual fazia parte, a historiadora fornece um relato que não pende para o
sensacionalismo.
Devido ao tamanho destaque na mídia, a “Jornada de Junho” reverberou em processos
de problematização de assuntos urbanos, e inclusão destes problemas nas agendas municipais
e estaduais, tais como:
Muitos destes processos foram narrados por estudiosos renomados, tais como: David
Harvey, Carlos Vainer, Ermínia Maricato, Otília Arantes e Raquel Rolnik só para citar alguns.
No entanto, um nó que se estabelece a partir da referida jornada e leituras realizas está
justamente em compreender a constituição destas novas agendas. Neste sentido, em meio as
variadas pautas, o presente trabalho objetiva compreender de que forma os movimentos
sociais conseguiram estabelecer uma agenda que contemplasse o transporte público urbano
em âmbito nacional.
Ao olhar para a dinâmica dos movimentos sociais e seus desdobramentos nas Jornadas
de Junho, é possível localizá-los como atores visíveis, por terem assumido um protagonismo
acerca da inserção de uma demanda social na agenda pública de governo, no que tange aos
transportes urbanos. A compreensão dos movimentos sociais enquanto atores visíveis no
processo de estabelecimento de agenda é debatida por autores como Kingdon (2006), Fuks
(2000) e Cobb e Elder (1971).
Nesse sentido, na sequencia, o presente artigo se ocupa da problemática do direito à
cidade, tal qual é proposto por Harvey (2014), esse direito foi sequestrado da coletividade
humana nas cidades-mercadorias, cidades-empresas e cidades-pátrias (VAINER,2012), e a
única maneira que se vislumbra para acessar plenamente os espaços urbanos é por meio dos
movimentos sociais, de protestos, e, sobretudo, pela tomada das ruas enquanto espaços
públicos de lutas e conflitos sociais (ROLNIK, 2013).
A terceira seção parte ilumina a discussão sobre constituição de agenda de políticas
públicas, a qual consiste na primeira etapa do ciclo de políticas públicas, e tal teoria – agenda
setting – servirá de base para contextualizar e construir uma inteligibildiade acerca das

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

políticas urbanas e seu processo. Não obstante, no que tange a constituição de agenda, é
pertinente abordar a participação e influência de atores visíveis e invisíveis nesse processo
(KINGDON, 2006).
Por fim, realiza-se uma explanação sobre o processo de organização desses
movimentos e de que forma se mobilizaram e espalharam-se por diversas cidades ao longo do
território nacional. Em seguida, encerra-se o estudo tocando no entendimento dos
movimentos sociais enquanto atores visíveis - que tomaram as ruas das cidades brasileiras em
diversos estados - os quais argumentaram acerca de diversas reivindicações e agendas
esquecidas, retomando, dessa forma, as questões que balizam o direito à cidade e como se
materializaram nas ruas das cidades de São Paulo, Salvador, Florianópolis e Maringá, por
meio das Jornadas de Junho de 2013.

2. DIREITO À CIDADE

No Brasil, o processo de produção do espaço urbano se dá por meio do novo


urbanismo, isto é, com a periferização do capital (HARVEY, 2014). Esse movimento da elite
detentora de capital de sair de regiões centrais e mudar-se para áreas periféricas nas cidades
tem sido uma característica comum em todo o território nacional.
A cidade, portanto, se constitui por meio dos produtores do espaço urbano, são os
chamados agentes sociais: os proprietários dos meios de produção, os proprietários fundiários,
os promotores imobiliários, o Estado e os grupos sociais excluídos. Os três primeiros agentes
são grandes consumidores do espaço urbano alinhando a lógica de mercado aos interesses
privados submetendo o poder público a eles (CÔRREA, 1995).
Dessa forma, o espaço urbano ao se estruturar reforça a segregação urbana,
construindo conjuntos habitacionais para grupos excluídos e realocando o excedente de
capital em grandes condomínios fechados em áreas periféricas e shopping centers,
legitimando assim a lógica da produção capitalista que se apropria das cidades. Villaça (2012)
apresenta essa cidade produzida de modo segregado, olhando para a dinâmica do território de
acordo com a lógica de mercado, na qual a demanda pela mobilidade torna-se cada dia mais
intensa, nos permitindo pensar em bairros segregados e excluídos, e até mesmo, regiões
inteiras à margem de grandes metrópoles.
Pensando nisso, a discussão acerca do direito à cidade - suas implicações e
desdobramentos - é pertinente (e urgente), como problematizou Henry Lefebvre, filósofo e
sociólogo marxista precursor na abordagem crítica acerca da questão urbana. Para o autor, o
ponto de partida da problemática urbana é o processo de industrialização, que posteriormente
estará atrelado ao processo de urbanização. A realidade social oriunda do processo de
industrialização – que se justifica pelo crescimento e a planificação das cidades - pode ser
chamada de sociedade urbana. O duplo processo industrialização/urbanização guarda em si a
unidade e o conflito caracterizando um movimento dialético, o que culmina nas desigualdades
que perfazem o âmbito das cidades modernas (LEFEBVRE, 2004).
A primeira definição em Lefebvre (2004, p. 56-57) marca que a cidade é a “projeção
da sociedade sobre um local”, no entanto é insuficiente, e o autor continua: “tornando-se
centro de decisão, ou antes, agrupando os centros de decisão, a cidade moderna intensifica,
organizando-a, a exploração de toda a sociedade (não apenas da classe operária como também
de outras classes sociais não dominantes)”.
Seguindo a linha teórica marxista e dialogando com Lefebvre, a reflexão proposta por
Harvey (2014), ao tratar do direito à cidade, repousa sobre o questionamento: quem detém
esse direito? Partindo do pressuposto de que a cidade é “a tentativa mais bem-sucedida do
homem de reconstruir o mundo [...] ao seu próprio desejo” (PARK, 1967, p. 28 apud
HARVEY, 2014), somos convidados a refletir acerca do direito de exercer o poder coletivo -

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seja moldar a cidade, repensar e reconstruir espaços urbanos - enquanto um direito humano
negligenciado.
Harvey (2011) percorre um panorama histórico das revoluções urbanas e bebe na
escola francesa marxista acerca do direito à cidade:

“O direito à cidade não pode ser concebido como um


simples direito de visita ou de retorno às cidades
tradicionais. Só pode ser formulado como direito à vida
urbana, transformada, renovada [...] Como a um século
atrás, ainda que em novas condições, ela (cidade) reúne
os interesses (aqueles que superam o imediato e o
superficial) de toda a sociedade, e inicialmente de todos
aqueles que a habitam” (LEFEVBRE, 2006, p. 116-117).

Neste âmbito capitalista, argumenta Harvey (2011) que o urbano se coloca como um
elemento central, onde a produção da cidade leva a uma atualização do consumo,
desenvolvendo novos caminhos para realocação de excedentes. Através da urbanização –
assim como também propôs Lefebvre (2004) - o excedente de capital é absorvido em projetos
de longo prazo; ou mesmo pela gentrificação, que lida com o excedente da mão de obra.
De certa maneira, os antigos centros das velhas cidades tornam-se centros de
consumo, o núcleo urbano nada mais é que um produto de consumo de alta qualidade para
turistas, estrangeiros, suburbanos e outros que o acessam, assumindo um duplo papel: lugar de
consumo e o consumo do lugar (LEFEBVRE, 2004).
Em consonância com a problematização do consumo na cidade - e esta, por sua vez,
torna-se o próprio espaço a ser consumido - Arantes (2013) argumenta que a cidade se norteia
pela lógica do “crescimento a qualquer preço”, por meio do qual a mobilização competitiva se
faz permanente entre as cidades concorrentes. Não são oferecidos somente serviços de alta
qualidade, produtos e bens culturais a serem adquiridos, o espaço da cidade, ela própria é um
produto, cidade-mercadoria (VAINER, 2013), objeto de luxo a ser vendido de acordo com a
demanda vigente.
Nesse sentido, é importante observar que as cidades além de serem governadas pelo
poder público, que Lefebvre (2004) vai chamar de Estado, estão sofrendo, sobretudo, a ação
do poder privado (Empresa). Embora esses poderes encampem conflitos e diferenças, na
administração da cidade, convergem para a construção da agenda e a implementação de
políticas públicas, desencadeando a segregação sócio-espacial, entre outros problemas.
No que tange a relação aberta e direta entre o poder público e o poder privado, Vainer
(2013) chama à atenção para o empresariamento da administração pública urbana que se
organiza, por sua vez, a partir de um plano estratégico, assim como a lógica empresarial. Esse
processo que culmina no funcionamento da cidade enquanto empresa é observado nos escritos
de Castells e Borja (1996), os catalães pontuam que “as grandes cidades são as multinacionais
do século XXI”.
Harvey (2011) denomina a associação entre poderes públicos (locais, metropolitanos,
regionais, etc.) e interesses privados (corporativos ou individuais) - acrescentando ainda
formas organizacionais da sociedade civil (sindicatos, igrejas, ONGs, movimentos sociais,
etc.) - de empreendedorismo urbano, o qual se tornou um importante movimento de promoção
e administração do desenvolvimento urbano, por meio de coalizões com vistas à globalização
neoliberal.
Uma vez desenvolvidos esses projetos urbanos na esfera pública, os interesses
corporativos entram em cena com todo o aparato capitalista para modelar o processo de
desenvolvimento urbano seja em âmbito regional ou metropolitano. Dessa forma, o próprio
Estado é submetido ao setor privado, comprometendo o direito à cidade daqueles que a

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habitam, e restringindo assim, a cidade ao gosto de uma pequena elite política e econômica
(HARVEY, 2013).
Para Harvey (2012), a qualidade de vida na cidade tornou-se uma mercadoria. O
direito à cidade se confunde com o direito à vida e implica, por sua vez, na construção do
espaço urbano de forma mais igualitária e humanizada, com intuito de atender à sociedade e o
direito coletivo, que diz respeito àquele que ali transita, faz uso, acessa e vive. A cidade
enquanto obra coletiva pressupõe o protagonismo dos indivíduos no seu processo de
transformação e ressignificação.
Vainer (2011) observa ainda a linguagem da cidade de exceção se perfazendo no
discurso hegemônico construído e difundido pelo interesse privado - em alinhamento com o
poder público – materializando-se na cidade-espetáculo, seja via mega-eventos, seja via
bairros luxuosos, e sobretudo, por meio da publicidade e do City marketing.
De acordo com o autor (VAINER, 2011, p.11), a cidade de exceção “é o lugar da
democracia direta do capital”. A afirmação da cidade de exceção se concretiza enquanto
regime urbano pós-moderno, com estratégias empresariais e competitivas, transformando a
prática da exceção em regra, legalizando aquilo que não é legal, produzindo o espaço urbano
submetido ao interesse privado, cujo funcionamento segue a lógica do mercado, do capital.
Esse cenário provoca a despolitização no espaço urbano, produzindo uma cidade de exceção a
serviço do interesse privado de diversos grupos, operando a partir das parcerias público-
privadas, expandindo sobre todo o território urbano as regras do capital (VAINER, 2013).
À medida que os espaços públicos se perdem entre construções privadas e a cidade se
constrói a partir de grandes rodovias que atendem à lógica do transporte individual, todo o
acesso que deveria – em tese – ser público, via transporte coletivo, nega aos cidadãos uma
possibilidade de exercer seu direito à cidade. Lefebvre (2004, p.77) argumenta que “[...] o uso
maciço do automóvel (meio de transporte “privado”), a mobilidade (aliás, freada e
insuficiente), a influência do mass-media separam do lugar e do território os indivíduos e os
grupos (famílias, corpos organizados)”.
As cidades vão se configurando enquanto mercadorias no sentido de atender a
demanda daqueles que podem pagar por ela – seja por moradia, cultura, transporte ou lazer –
e não a todos os cidadãos que nela habitam. A segregação urbana produzida nas cidades
brasileiras se legitima por meio dos mitos e dos discursos hegemônicos que potencializam a
desigualdade tornando o direito à cidade um elemento cada vez mais distante daqueles que
deveriam ter acesso a ele.
Vainer, Arantes e Maricato (2013) buscam “desmanchar” consensos a partir de leituras
sobre as cidades brasileiras, lançando luz sobre o planejamento urbano que se dá de acordo
com a lógica de mercado, seguindo cada vez mais os manuais modernos de planejamento
empresarial, para que assim, a cidade enquanto mercadoria/empresa consiga se estabelecer no
mercado global competitivo para ser vendida àqueles que possuem capital para acessá-la.
Serpa (2009), dialogando com esses autores, elucida que o discurso oficial dos
equipamentos públicos corrobora com as demandas sociais, no entanto, o que se observa, no
que tange ao acesso nas cidades brasileiras, é o benefício daqueles que possuem automóveis e
tem condições de pagar por atividades de lazer que não são públicas. Portanto, esse direito
negado ao cidadão pode ser compreendido como ações que não são formuladas pelo poder
público, isto é, quais demandas não entram na agenda e por quê.

3. AGENDA SETTING E ATORES VISÍVEIS

No campo dos estudos sobre definição de agenda, a leitura sobre problemas sociais,
comunicação política e movimentos sociais, pode ser construída de modo atento à dinâmica
sociopolítica, envolvendo a articulação de sentidos e o reconhecimento público sobre essas

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questões (FUKS, 2000). Trata-se de compreender a vida política via entendimento das
relações e debates que acontecem nas arenas argumentativas, entre partidos políticos, grupos
organizados, mídia e poder público, não se limitando mais à investigação objetiva. “Essa nova
orientação assume como objetos de estudo os processos sociais responsáveis pela emergência
de um novo assunto público e as disputas em torno de sua definição” (FUKS, 2000, p. 79).
São duas as questões básicas no estudo sobre a definição de agenda. A primeira se
refere a compreender como surgem os novos assuntos públicos e por que alguns (e não
outros) ascendem às arenas públicas e ali permanecem (ou não). Já a segunda, volta-se para a
identificação dos atores que participam do processo de definição de assuntos públicos (FUKS,
2000).
Primeiramente, quando se pensa em agenda pública, é necessário que exista
reconhecimento social que uma dada questão é, de fato, um assunto público. Fuks (2000),
partindo do reconhecimento da necessidade da existência de um assunto público – pelos
atores influentes, tais como agentes governamentais e mídia, por exemplo –, compreende que
o processo de construção de agenda abarca os seguintes elementos:

− Reconhecimento de assunto público;


− Conhecimento;
− Recursos (materiais, organizacionais e simbólicos);
− Contexto cultural;
− Organização do Estado e a Constituição

Esses elementos são demarcados justamente pelo fato de a definição de problemas


ocorrer imersa em um cenário cultural e de organização das instituições públicas. Para o
referido autor, esse contexto acaba condicionando a ação e o debate público por meio dos
parâmetros de legitimidade e regras que ele estabelece. “A identificação dos diversos espaços
constituídos pelas arenas de ação e debate públicos, o peso de cada uma delas, sua interação
e, especialmente, o papel dos canais institucionais na configuração da agenda pública e dos
problemas sociais, têm sido objetos de análise de vários estudos” (FUKS, 2000, p. 81-2).
Para Kingdon (2006, p. 227-8), o estabelecimento das agendas governamentais passa
pelos problemas, pela questão política e pela participação dos atores visíveis. Em relação aos
problemas, o referido autor chama a atenção para a diferença entre estes e as situações. “As
situações passam a ser definidas como problemas e aumentam suas chances de se tornarem
prioridade na agenda, quando acreditamos que devemos fazer algo para mudá-las”. O eleger
as situações como problemas pode ocorrer de três maneiras:

1) situações que colocam em cheque valores importantes, são transformadas em problemas;


2) situações se tornam problemas por comparação com outros países ou com outras unidades
relevantes;
3) a classificação de uma situação em uma certa categoria ao invés da de outra pode defini-la
como um certo tipo de problema.

Ainda, segundo o autor supracitado, “as chances de uma dada proposta ou de certo
tema assumir lugar de destaque em uma agenda são decididamente maiores se elas estiverem
associadas a um problema importante” (KINGDON, 2006, p. 228). Sobre a questão política
como um elemento que influencia a constituição de agenda, Kingdon (2006) afirma que ela se
expressa por meio de mudança de governo, de novas configurações partidárias ou ideológicas,
via negociações políticas, e também podendo ser pelo uso de indicadores, para identificar e
justificar os problemas.

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Por fim, o terceiro elemento de influência na composição de agenda é constituído


pelos atores visíveis. Kingdon (2006, p. 230) reconhece os atores visíveis “como aqueles que
recebem considerável atenção da imprensa e do público, inclui o presidente e seus assessores
de alto escalão, importantes membros do Congresso, a mídia, e atores relacionados ao
processo eleitoral, como partidos políticos e comitês de campanha”. Por outro lado, sem
poder de influenciar a decisão sobre o que entra na agenda, o grupo de atores invisíveis
compreende acadêmicos, burocratas e funcionários do Congresso.
Completando a relação de atores invisíveis destacados por Kingdon (2006), é
pertinente considerar que no Brasil pós-1988 os movimentos sociais e as organizações não-
governamentais se inserem no processo de política pública, mesmo, segundo Fuks (2000),
afastados do centro do poder. Os movimentos sociais acabam conquistando visibilidade
quando da construção de grandiosas manifestações populares, como a que ocorreu no Brasil
em Junho de 2013.
É oportuno dizer que, apesar de os atores invisíveis não terem o poder de influenciar a
agenda, como os participantes visíveis, eles podem influenciar a escolha de alternativas.
Alternativas, propostas e soluções são geradas por comunidades de especialistas. Este grupo
relativamente invisível de participantes inclui acadêmicos, pesquisadores, consultores,
burocratas de carreira, funcionários do Congresso e analistas que trabalham para grupos de
interesses. O trabalho destes participantes consiste em planejamento e avaliação, ou então em
formulações orçamentárias junto à burocracia e seus funcionários (KINGDON, 2006, p. 231).
Ainda, no que se refere aos atores, Cobb e Elder (1995) argumentam que por alguns
grupos estarem localizados estrategicamente na sociedade, seus interesses não podem ser
ignorados (por exemplo, grandes empresas e agricultura). Além disso, estes grupos (como
médicos e líderes da igreja) podem possuir um maior carisma ou valorização social e, desse
modo, obter maior acesso aos decisores (COBB; ELDER, 1995, p. 102).
As diferenças na acessibilidade aos tomadores de decisão são uma função da
legitimidade relativa de vários grupos. Para Fuks (2000), algumas arenas se organizam
restringindo a participação do grande público quando trata do saber técnico, por julgar ser do
interesse de uma comunidade específica. Assim, existe uma tendência de essas arenas não
darem espaço para o debate verdadeiramente aberto, com a pressão do público.
No entanto, “considerando que a intenção dos atores é intervir da forma mais ampla
possível no sistema de arenas de ação e debate público, a estratégia inicial para estes (…) é
encontrar canais institucionais propensos a abrigá-los”, o que pode reforçar sua presença em
vários espaços públicos (FUKS, 2000, p. 82).
De acordo com Fuks (2000), a evolução do debate público se instaura com a interação
de diferentes arenas. Mesmo que exista a tendência da maior parte dos assuntos se
estruturarem em arenas específicas, as de maiores êxitos circulam pelos diferentes canais
institucionais. Com efeito, Fuks (2000) salienta que só existe monopólio sobre a definição
quando há consenso entre as elites que sustentam o debate sobre um dado assunto. Ainda,
segundo o autor, Gusfield argumenta que, por outro lado, o conjunto de atores envolvidos
numa disputa pode variar desde a restrita comunidade de especialistas em determinadas áreas
das políticas públicas até o espaço social mais amplo, onde se identificam diferentes níveis de
influências dos movimentos sociais e da opinião pública.

4. JORNADAS DE JUNHO

Os movimentos populares ganharam destaque, tanto na arena política brasileira


,quanto nas inquietações acadêmicas, no final dos anos 1970 e os anos 1980, um dos períodos
mais importantes da história do país no que tange às lutas, movimentos sociais e novos
projetos para o Brasil. Neste período, a partir da luta pela construção da democracia e em

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relação às carências que afetavam as suas sobrevivências imediatas no espaço urbano - tais
como a falta de moradia, o desemprego, o déficit de saúde pública, o custo de vida e a
precariedade de transporte coletivo – a sociedade passa a se manifestar e buscar um
protagonismo, no sentido de exigir e garantir seus direitos (DOIMO, 1995).
Na contemporaneidade, Safatle (2012, p. 46) ao refletir acerca dos movimentos
sociais, versa sobre sua origem a partir da seguinte definição:

“Existem certos momentos na história em que um


acontecimento aparentemente localizado, regional, tem a
força de mobilizar uma série de outros processos que se
desencadeiam em diversas partes do mundo. Ou seja, as
ideias, quando começam a circular, desconhecem as
limitações do espaço, pois têm a força para construir um
novo [...] aos poucos constrói um novo espaço por meio
dessas mobilizações mundiais em cidades como Nova
York, Cairo, Túnis, Madri, Roma, Santiago e agora São
Paulo”.

De maneira geral, os movimentos sociais são entendidos como uma ação coletiva
organizada por determinado grupo que visa alcançar mudanças sociais por meio do embate
político, dentro de determinado contexto sócio-histórico. Para Harvey (2013), o
desenvolvimento urbano desigual, calcado na luta contemporânea diária da construção da
cidade excludente, traça o cenário ideal para o conflito social. As cidades nunca foram lugares
harmoniosos, sem conflito ou violência, pelo contrário, a história mostra exemplo de conflitos
urbanos ao longo dos anos que perpassaram diferentes países.
A visão de Rolnik (2013) aponta que estas manifestações são fruto de anos da
constituição de uma nova geração de movimentos sociais urbanos, como os movimentos sem-
teto, os movimentos estudantis que foram se articulando em redes mais amplas na luta pela
reforma urbana e pelo direito à cidade, e até mesmo o Movimento Passe Livre, visando, dessa
maneira, fazer da cidade cada vez mais não somente um palco, mas também objeto de
intervenções dos movimentos sociais e das organizações da sociedade civil.
As reivindicações que concernem à temática do transporte público que estavam
relacionadas com a atuação do Movimento de Transportes Coletivos (MTC), nas décadas de
1970 e 1980, são balizadas hoje pelo principal movimento social atuante na questão:
Movimento Passe Livre (MPL).
O Movimento Passe Livre (MPL) é um movimento social autônomo, apartidário,
horizontal e independente, que luta por um transporte público de verdade, gratuito para o
conjunto da população e fora da iniciativa privada. O movimento é formado por um grupo de
pessoas que se junta no sentido de discutir e lutar contra a lógica do transporte individual –
lógica de mercado – buscando alternativas de mudança para a mobilidade urbana.
O MPL atua em várias cidades do Brasil, tais como: São Paulo e ABC, Distrito
Federal, Florianópolis, Fortaleza, Vitória, Guarulhos, Joinville, Natal, Niterói, Ribeirão Preto,
Rio de Janeiro, São José dos Campos e São Luis do Maranhão. O movimento articula uma
série de propostas para o transporte como: municipalização do sistema, criação de um fundo
municipal de transporte coletivo gerido com participação popular, tarifa zero para todas as
pessoas e combate à cultura do automóvel.
De acordo com o MPL é preciso olhar para outras manifestações anteriores aos
movimentos sociais que se deram no mês de junho de 2013, denominadas Jornadas de Junho,
para que se possa entender o processo que se estabeleceu em resposta ao aumento das tarifas
das passagens (MPL, 2013), e saber que este assunto já se estabelecia na agenda social há
algum tempo..

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No ano de 2003, em Salvador/BA, uma série de manifestações se estendeu pelo mês


de agosto em resposta ao aumento da tarifa do transporte público. As manifestações foram
organizadas em assembléias nas ruas de diversos bairros da capital baiana, as quais foram
bloqueadas por estudantes, num processo descentralizado que teve apoio generalizado da
população indignada, que fazia uso do transporte público. Essas manifestações receberam o
nome de “Revolta do Buzu” e possibilitou uma experiência completamente nova de ação
direta da população por meio de assembléias horizontais, que ganhou projeção nacional
(MPL, 2013, p.14-15).
O segundo movimento que se deve observar antes de tatearmos as Jornadas de Junho,
é a “Revolta da Catraca”, em Florianópolis, que ocorreu em 2004, também em resposta ao
aumento das tarifas. A ponte principal que dá acesso à ilha foi bloqueada por estudantes que
forçaram o poder público a revogar o aumento. Foi essa manifestação que deu origem ao
Movimento Passe Livre e sua fundação no ano de 2005 (MPL, 2013, p. 15).
As chamadas Jornadas de Junho foram tomando forma a partir da dificuldade do
acesso do estudante e trabalhador aos locais de trabalho e de estudo, o que se estabelece como
um processo de exclusão, de ausência de direitos.
Para Rolnik e Maricato (2013), esse cenário se configura por conta do sistema de
transporte coletivo ser o ponto nodal na estrutura social urbana, isto é, o acesso à cidade e aos
serviços urbanos está balizado pelo uso do transporte público, uma vez que as tarifas do
transporte público têm função de delimitar o acesso, de acordo com o critério da concentração
de renda, pontuando aqueles que podem circular na cidade e àqueles condenados à exclusão
urbana.
Quando as tarifas aumentam, significa que a contradição foi imposta a todos, a luta
pelo transporte público configura, portanto, um âmbito muito mais abrangente que toma toda
a dimensão da cidade, se desenhando enquanto luta pela reapropriação do espaço urbano. O
objetivo dos protestos era justamente a retomada do espaço urbano enquanto luta política pelo
direito à cidade – e todas as suas demandas bem como transporte, saúde, moradia, etc. -,
muitas bandeiras e agendas se ergueram, e as manifestações foram além do aumento na tarifa
da passagem. O MPL caracterizou a cidade e os movimentos sociais da seguinte maneira:

“A cidade é usada como arma para sua própria retomada:


sabendo que o bloqueio de um mero cruzamento
compromete toda a circulação, a população lança contra
si mesma o sistema de transporte caótico das metrópoles,
que prioriza o transporte individual e as deixa à beira de
um colapso. Nesse processo, as pessoas assumem
coletivamente as rédeas da organização de seu próprio
cotidiano. É assim, na ação direta da população sobre sua
vida [...] que se dá a verdadeira gestão popular” (MPL,
2013, p. 16).

O tema que atravessa transversalmente as Jornadas de Junho é a questão da


mobilidade urbana, a qual está entrelaçada fortemente com outras pautas e agendas
constitutivas da questão urbana, bem como os temas dos megaeventos - a Copa, a Copa das
Confederações, as Olimpíadas e a vinda do Papa ao Brasil - e suas lógicas de gentrificação e
de limpeza social (ISCARO, 2015). Como se verifica, por um lado, trata-se de um conflito
direto entre o povo e a “cidade de excessão”, termo este cunhado por Vainer (2011), para
descrever a cidade construída com vistas a garantir o interesse de uma elite, justificado pela
realização dos referidos megaeventos.
Por outro lado, tendo como base esse pano de fundo, argumenta-se que as Jornadas de
Junho não são uma luta apenas pelos vinte centavos, mas também pelo acesso à cidade e às

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políticas públicas urbanas, pelo direito de viver a cidade e na cidade. Como foi possível
observar por volta do dia 20 de Junho, as manifestações em torno do transporte público
passaram a lançar luz em novas bandeiras e atores, como a Proposta de Emenda
Constitucional (PEC) 338 e a 379, além das lutas contra a ‘Cura Gay’ e contra o ‘Ato
Médico’, bem como os gastos com a Copa das Confederações, a Copa do Mundo e a Reforma
Política, ampliando, assim, as lutas da sociedade civil e a tentativa de abrir novos canais de
acesso ao governo, no sentido de reelaborar as políticas públicas brasileiras.
Ao auferir a demanda principal - isto é, a redução das tarifas de transporte público -
tanto pela inserção da demanda na agenda, quanto com a atenção total da mídia nacional e
internacional, há uma inflexão nos próprios protestos, fazendo com que as lutas se
reorganizem, aglutinando novas pautas e demandas, inclusive promovendo uma mudança no
alvo dos protestos, deslocando dos governos municipais e estaduais, para o governo federal,
como aponta Iscaro (2015).
Dessa forma, passa a se estruturar janelas de oportunidades políticas, que segundo
Kingdon (2006), significa que existe uma maior receptividade das autoridades públicas para
que uma mudança seja efetuada. Ao passo que as primeiras reivindicações são atendidas e as
novas estão em consonância com a de outros atores significativos, passam a criar ou reforçar a
instabilidade do governo, que pressionado, por sua vez, inicia o desengavetamento de
propostas governamentais que há muito tempo tramitavam no âmbito institucional, mas
permaneciam na gaveta.
A visibilidade dada às Jornadas de Junho, tanto pela mídia nacional bem como pela
internacional, perpassou todo âmbito do país, reverberando as demandas sociais de tal forma
que o número de pessoas nas ruas ultrapassou a marca de 1 milhão de pessoas, quase 400
cidades e 22 capitais brasileira (ANTUNES, BRAGA, 2014).
No caso da cidade de São Paulo, em maio, mesmo com o governo federal anunciando
a publicação de uma medida provisória que desonerava o transporte público da cobrança de
dois importantes impostos (PIS e COFINS), para evitar que os reajustes nas tarifas pudessem
pressionar a inflação e, Fernando Haddad (PT), em sua campanha para a Prefeitura de São
Paulo, tendo declarado que não iria realizar reajustes no transporte publico, ainda assim, as
tarifas de ônibus, trens urbanos e metrô foram reajustadas de R$3,00 para R$3,20 a partir de 2
de junho, desencadeando as manifestações.
O ciclo de protestos se intensificou a partir de 6 de Junho, a partir de então, o número
de participantes nos protestos aumentava a cada novo ato do MPL. Houve três manifestações
que foram tomando corpo, em âmbito nacional, no mês de Junho, nos dias 6, 7 e 11,
principalmente nas grandes capitais. No dia 13, os protestos se expandiram para mais cidades,
tendo ampla participação popular (ISCARO, 2015). Tratou-se de forte mobilização, fazendo
dos manifestantes, na condição de coletivo, atores visíveis, estabelecendo diferentes assuntos
na agenda (KINGDON 2006), em diferentes cidades, nas capitais e no interior.
Em Maringá, no inteiro do estado do Paraná, no dia 20/06/2013, houve grande
manifestação no Centro da cidade, quando parte do povo que estava nas ruas se deslocou para
uma sessão itinerante da Câmara de Vereadores que acontecia nas dependências da Igreja
Santo Antonio, no bairro que recebe o mesmo nome (a 2 km do centro). Na ocasião, os
manifestantes ocuparam o local onde se realizava a solenidade, com uma demanda aos
vereadores, qual seja: instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do transporte
coletivo. De acordo com Silva (2015, p. 25), a CPI originária do protesto e manifestação foi a
primeira, nos 63 anos de existência da Câmara, a ter trâmite regular, com o relatório final
aprovado e encaminhado ao Prefeito e Ministério Público para providências.
Verifica-se, na mídia local e estadual, que a abertura de CPI, bem como o
prosseguimento do processo, se estabeleceram por meio de uma problematização nacional (a
partir do Movimento Passe Livre), tendo esta se instituído como uma janela de oportunidade

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para a problematização de diferentes questões urbanas, que no caso de Maringá-PR, tratou-se


da CPI do Transporte Coletivo.
No entanto, apesar de o processo ter resultados na solicitação da redução da tarifa em
R$ 0,20 (vinte centavos), por meio do relatório apresentado pelo vereador Humberto
Henrique (PT), ao executivo, que atendera prontamente a pressão de ocasião, no ano seguinte,
houve aumento de tarifa, instruída pelo próprio executivo, o que motivou o pedido, junto a
Câmara de Vereadores, de instalação de uma Comissão Processante (CP) contra o prefeito
Carlos Roberto Puppin, pela eventual responsabilidade referente ao aumento da tarifa de
ônibus, em discordância as conclusões do relatório da CPI instalada pela própria Câmara de
Vereadores. Em 05/06/2014, por 10 votos contra 4, o pedido foi engavetado pela CMVM.
Com esta experiência, constata-se que os movimentos sociais, na condução de
expressivas manifestações de rua, constroem-se com poder de agenda (KINGDON, 2006).
Porém, trata-se de um poder que não se mantém sem o apoio de um ator visível, tal como a
mídia. Apesar de as grandes manifestações se estabelecerem com visibilidade, em algumas
ocasiões, não se consolidam como atores que permanecem dotados de visibilidade, o que
acaba não tendo o poder de constrangimento necessário para a consolidação de políticas
progressistas. O caso de Maringá ilustra fortemente isso, quando do engavetamento do pedido
de criação da Comissão Processante e o retorno do aumento da tarifa de ônibus.
Com as experiências aqui destacadas, pode-se dizer que a luta urbana, organizada de
forma descentralizada, pressupõe uma alternativa à organização do transporte, da cidade e
toda sociedade e sua relação com os espaços urbanos. As Jornadas de Junho possibilitaram a
vivência da prática concreta da gestão popular em todas as cidades do país, que participaram
dos movimentos e marcaram a história do Brasil, enquanto ação social direta com vistas ao
direito à cidade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da reflexão das mudanças contemporâneas que se dão no espaço urbano


oriundas de articulações entre os poderes públicos e privados objetivando seus interesses
globais de promoção da cidade, todos os esforços nesse processo se canalizam para a
produção da cidade enquanto produto, vendável, visível e objeto de desejo, sobretudo se
materializando pela lógica capitalista de mercado.
As cidades vão se configurando enquanto mercadorias no sentido de atender a
demanda daqueles que podem pagar por ela – seja por moradia, cultura, transporte ou lazer –e
não a todos os cidadãos que nela habitam. A segregação urbana produzida nas cidades
brasileiras se legitima por meio dos mitos e dos discursos hegemônicos que potencializam a
desigualdade tornando o direito à cidade um elemento cada vez mais distante daqueles que
deveriam se apropriar dele.
A produção urbana se constrói com propósito de expandir a economia local e a
riqueza, mediante as coalizões de atores urbanos como incorporadores, corretores, banqueiros,
etc.:

“A fábrica de consensos em torno do crescimento a


qualquer preço – a essência mesma de toda
localização – torna-se a peça-chave de uma situação
de mobilização competitiva permanente para a
batalha de soma zero comas cidades concorrentes.
Uma fábrica por excelência de ideologias, portanto:
do território, da comunidade, do civismo, etc.”
(ARANTES, 2013, p. 27).

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Maricato (2013) afirma que, para reverter essa tendência, é necessário que a
representação ideológica hegemônica seja desconstruída, bem como é preciso que a
consciência da cidade real seja construída com as demandas populares. Nesse sentido, é que
se pensa e aborda o direito à cidade.
Harvey (2014) nos brinda com a seguinte reflexão: como as cidades poderiam ser
reorganizadas de maneira socialmente mais justa e como elas podem tornar-se o foco da
resistência anticapitalista? O direito à cidade está muito além da acessibilidade, é reivindicar
algum tipo de poder configurador do espaço urbano, sobre o modo como nossas cidades são
feitas, ter acesso aos processos de urbanização e pensar ainda em uma cidade para todos, ou
ao menos, para a maioria de sua população.
Viana (2013), apropriando-se do direito à cidade, argumenta que a ocupação do espaço
público deve ser entendida como agenda e prática. Os movimentos sociais que se expandiram
por todas as cidades em diversos países – Egito, Espanha, Grécia, Estados Unidos, Turquia –
reapropriaram-se de praças públicas centrais, protagonizando um cenário num palco de
protestos sociais, sem partidos, sindicatos ou organizações tradicionais.
No que tange a constituição de agenda, os movimentos sociais inseridos nas Jornadas
de Junho, assumiram o seu protagonismo na arena política enquanto atores visíveis, ao
colocar uma demanda social – o transporte público urbano, por exemplo - na agenda de
governo. No entanto, as demandas não se efetivam sem a construção de vínculos entre a
sociedade civil ampliada e o governo. Nesse sentido, no Brasil, faz-se urgente o pensar em
reforma política e na ampliação do diálogos entre a sociedade civil e o governo, bem como
em uma outra lógica de governabilidade, diferentemente da atual que se encontra pautada em
praticas populistas e clientelistas, construídas por meio do vínculo entre o poder politico e as
empresas que financiam as campanhas eleitorais.

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Direito e Administração Política no Capitalismo Brasileiro na Obra


“Evolução Política do Brasil - colônia e Império” de Caio Prado Jr.
Arthur Bastos Rodrigues
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Resumo

O artigo se propõe a compreender os reflexos jurídicos, administrativos e políticos da


formação histórica do capitalismo brasileiro, até meados do século XIX, a partir do ensaio
“Evolução política do Brasil: colônia e império” (1933), do paulista Caio Prado Jr. Para isso,
parte-se de uma crítica marxista do direito, nas suas especificidades e limitações, enquanto
forma aparente na relação reflexiva de determinações com a base-real, a qual só pode ser
auferida numa pesquisa histórica materialista. Busca-se analisar as questões sociais, no âmbito
da luta de classes, em referência com a Administração Política, que age, muitas vezes, através
do direto, inclusive no período em questão a segunda se reduzia à primeira, de forma a se
questionar quais os limites da exposição de Prado Jr. em relação ao reflexo jurídico, e qual a
importância dada por ele ao direito na formação do capitalismo brasileiro e das classes
sociais.

1 - Introdução

A necessidade de se compreender a ciência histórica como ponto de partida para qualquer


análise da realidade é essencial numa perspectiva materialista e a pesquisa no direito e na
administração política não devem escapar a essa premissa. A análise das questões sociais está
relacionada com a história de determinado local e sua formação e, no caso brasileiro, desde a
colônia, a administração pública e o direito sempre estiveram entrelaçados. Tem relevância o
aspecto heterogêneo do direito em que universaliza particularizações em nome da igualdade
jurídica e da justiça abstrata, a realidade substantiva é naturalizada em uma racionalidade
metafísica. O caráter progressista e revolucionário do direito burguês, que substitui o
privilégio feudal, logo se fecha, pois os alargamentos e conquistas dos direitos e da política
democrática são mecanismos de autodefesa do capitalismo, contra o seu próprio anseio
egoísta, um tipo de “freio racional”, como afirma Marx. Esse raio reformista e revolucionário
da ordem só pode ser compreendido se atento estiver o pesquisador em relação aos
movimentos reais, às reciprocidades reflexivas, às dinâmicas históricas e às especificidades de
cada aparato ideológico, no caso, do reflexo jurídico e administrativo. As especificidades
históricas se tornam essenciais no sentido da articulação dinâmica de passado presente e
futuro e, para isso, a categoria de “via-colonial” da particularidade do capitalismo brasileiro
do filósofo marxista José Chasin (1979) é essencial para compreender o fenômeno jurídico no
Brasil, sua formação e papel desempenhado.

Na busca de se empreender a pesquisa nas especificidades do reflexo jurídico, ou seja, como o


direito refletiu a realidade e ainda como o pensamento social brasileiro conseguiu capturar a
funcionalidade do direito na formação do capitalismo tupiniquim, toma-se como objeto
ideológico o autor Caio Prado Jr. (1907-1990), tendo em vista sua importância central na
historiografia materialista brasileira, sendo o pioneiro em 1933 com o ensaio “A evolução
política do Brasil - colônia e Império”, que não se propõe a exaustivo, mas não deixa de ter
enorme valor para a historiografia brasileira. Este livro pode ser visto como o antecessor da,
talvez, sua maior obra “A formação do Brasil Contemporâneo” (1942) em que introduz o
conceito de “sentido de colonização” que é marca genética do Brasil de ontem e de hoje. Este

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

artigo procurará analisar os reflexos políticos e jurídicos a partir da versão histórica de Prado
Jr. neste famoso e pioneiro ensaio, tentando desvendar as formas de administração política das
questões sociais brasileiras. É interessante notar como os autores Chasin e Prado Jr. se
relacionam, sendo que o primeiro fez parte do grupo de pesquisas em torno do segundo nas
edições da Revista Brasiliense. Além disso, Chasin deve sua tese de “via-colonial” a toda
historiografia de Prado Jr., condensada no “sentido de colonização” do Brasil.
Nessa pesquisa histórica, fazendo um diálogo crítico com a obra de Caio Prado Jr., orbitam
vários questionamentos. Qual o papel do direito de fato no capitalismo brasileiro? O direito
foi essencial para a formação da classe operaria no Brasil? Ou melhor, o direito foi uma
mediação essencial nessa historia da formação da classe trabalhadora urbana?

2 - Direito e vias de objetivação do capitalismo

- Crítica marxista do direito

A tarefa, de se conhecer o direito e as possibilidades – e limitações - de mediação deste


aparato ideológico para a conquista da emancipação humana, da superação da “exploração do
homem pelo homem”, que se coloca é, antes de tudo, histórica. A compreensão tradicional do
“jurista”, enquanto pesquisador que tem no seu ponto de partida metodológico o próprio
direito em abstrato, ou seja, a expressão “iluminada” de um senso de justiça idealizado, numa
crítica marxista, deve ser questionada. O ponto de partida não podem ser as problemáticas
“jurídicas” e sim as socioeconômicas. “Não é possível darmos autonomia ao fenômeno
jurídico para somente depois buscarmos integrá-lo (...)” (Sartori, 2012, p. 3). A reprodução da
lógica de ciência parcelar, da chamada “ciência jurídica” (Sartori, 2015, p. 6), impõe a
alienação em relação à esfera manipulatória do direito através da fetichização do caráter
universal e abstrato do direito enquanto “o sublime portador da razão” (Paço Cunha, 2015, p.
4). Por outro lado, também não se pode cometer o erro, em uma interpretação rígida e
economicista, e entender o direito como algo retirado mecanicamente do capitalismo, é
preciso compreender as relações enquanto um “enlace de determinações” (ibidem), em que o
movimento real do reflexo jurídico se dá com a reciprocidade entre a “dependência genética
das forças motrizes de ordem primária” (Chasin, 1978, apud, Paço Cunha, 2015, p. 3), os
produtos ideológicos – superestrutural – cada qual com suas especificidades e, também, com
as formas históricas anteriores à própria consolidação da forma de produção capitalista, que se
adequam e são instrumentalizadas à modernidade, por exemplo, o “homem abstrato” e a
“pessoa jurídica” do direito romano (Paço Cunha, 2015, p. 3). O movimento real é bem mais
complexo e o direito também reflete na base produtiva dentro dos limites condicionadores.

Com as revoluções burguesas surge uma nova ordem social, há um rompimento com os
privilégios feudais e com a ideologia religiosa e neste sentido passa a vigorar uma “nova
concepção de mundo” que é a “concepção jurídica do mundo”, no sentido que o direito divino
é substituído pelo direito humano e a igualdade jurídica aparece em contraponto aos
privilégios feudais, “uma secularização da visão teológica” (Engels; Kautsky, 2012 apud
Sartori, 2012, p. 5). Esta função ideológica do direito na consolidação do capitalismo aparece
além de seu papel mediador concreto da nova ordem que surgia, tendo papel importante na
luta da burguesia contra os privilégios feudais, a forma jurídica também tem função para
revestir e elevar ao nível de “oficialidade” das relações econômicas (Sartori, 2015, p. 9). A
inferência é que se de um lado o direito representa apenas o reconhecimento dos fatos, em
Marx: “direito é reconhecimento oficial do fato” (1985, p. 86 apud Paço Cunha, 2015, p. 6),
de outro, sem esse reconhecimento as conquistas políticas podem não ser duradouras. Outro
ponto importante é a característica heterogênea (Paço Cunha, 2015, p. 5) do direito em relação

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

aos fatos socioeconômicos, ou seja, traduz no reflexo jurídico enquanto uma esfera
obrigatoriamente manipulatória, como um “material não autentico” (idem, p. 9), em que, a
separação - autonomia aparente - da consciência com a base real se dá com a mediação de um
direito abstrato. Quer dizer, “(...) o próprio desenvolvimento das relações jurídicas
correspondentes ao capitalismo (...) é já de partida consideravelmente heterogêneo com
respeito às relações sociais reais” (idem, p. 5).

A heterogeneidade do direito se dá no sentido de se pensar o fenômeno jurídico, dentro do


terreno jurídico burguês, numa ótica aparentemente universalista e, assim, irreal (Sartori,
2015, p. 12). A forma histórica do “homem abstrato” e da ética jusnaturalista enquadra-se na
ordem do capital como em a “igualdade perante a lei”, “todos são iguais em...”, “todos são
livres para...”, “todos gozam...” “toda pessoa tem o mesmo direito...” e assim por diante, de
forma que a desigualdade real fica naturalizada e o reflexo jurídico é, por isso, não autêntico
(Paço Cunha, 2015, p. 9). É a linguagem egoísta da propriedade privada e do controle sobre a
força de trabalho. A prioridade ontológica da base-real cria as condições de possibilidades
para a estrutura formal do direito, o que o reflexo jurídico faz é confirmar o domínio do
capital (idem, p. 13). Assim, tem-se a igualdade jurídica apenas como uma forma de tratar
alguns poucos iguais em detrimento da maioria desigual, que é obrigada a vender sua força de
trabalho. O direito, diz Marx,

por sua natureza, só pode consistir na aplicação de um padrão igual de medida; mas
os indivíduos desiguais (e eles não seriam indivíduos diferentes se não fossem
desiguais) só podem ser medidos segundo um padrão igual na medida quando
observados do mesmo ponto de vista (Gesichtspunkt), quando tomados apenas por
um aspecto [...] todos os outros aspectos são desconsiderados (MARX, 2012, p. 31
apud Sartori, 2015, p. 11).

A desconsideração de “todos os outros aspectos” é a própria heterogeneidade do direito,


tomada enquanto padrão universal de racionalidade iluminada. Como visto, os princípios
norteadores de igualdade e liberdade jurídicas são expressões da heterogeneidade do direito
no sentido que a primeira trata pessoas materialmente desiguais como iguais - “concepção
econômica de igualdade” (Sartori, 2012, p. 9) - e a segunda que diz respeito, essencialmente,
à liberdade contratual, ambas na esfera mercantil (idem, p. 7). Assim, a par das determinações
reflexivas e da preponderância da base-real de produção, os homens reais produzindo sua vida
e a forma com que fazem isso é o “ponto de partido efetivo” (Marx, 2011, p. 49 apud Sartori,
2012, p. 8) da sociedade. Nestes termos é que podemos compreender a reflexividade das
formas ideológicas como direito e Estado, nas suas formas administrativas e políticas, por
exemplo. O desenvolvimento e as mudanças nas formas capitalistas de produção, além da luta
constante entre capital e trabalho, ao longo dos séculos, teve grande impacto no reflexo
jurídico. As conquistas dos direitos se de um lado tem um papel de gerar alívio,
principalmente nos mais miseráveis e em situações extremas, além de evoluções no sentido do
fim da escravidão e do trabalho servil, de outro, os avanços no direito, no limite da ordem,
podem ser instrumentalizados pelo sistema e tem uma função estrutural como “mecanismo
protetivo dos trabalhadores” desempregados que integram o “exército de reserva da
produção” (Paço Cunha, 2015 p.10) e, ainda, podem atuar como um “freio racional ao
impulso incontrolável do capital pela maior produção possível de mais-valor” (idem, p. 17).
Assim, o direito tem grande relevo para a luta de classes na sociedade, mas seu reflexo não
consegue ultrapassar seus próprios limites, no sentido que o direito só pode ser, em si, direito
do capital. O fenômeno jurídico tem seu raio de conquistas fechado nas possibilidades de
emancipação política e nunca em uma capacidade geral de emancipação humana.

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

Vias de objetivação do capitalismo


Tomando o capitalismo inicialmente como uma forma universal – moderna – de produção,
entretanto, não afasta a necessidade de se compreender como se deu e se dá a objetivação do
capitalismo e de suas instituições em cada local e essa tarefa foi inicialmente realizada por
autores clássicos como Marx, Engels e Lênin (Chasin, 1974, p. 625) ao tratar das vias dos
modelos inglês, francês, russo, americano e alemão. Assim, inicialmente vem à tona a
categoria de via-clássica encampada pelos primeiros e a de via-prussiana no último. A “via
prussiana, ou caminho prussiano para o capitalismo, como a denominou Lênin, aponta para
um processo particular de constituição do modo de produção capitalista” (idem, p.621). Esta
se diferencia da via-clássica gerada nas grandes conquistas revolucionárias burguesas do
século XVII e XVIII as quais contaram com rupturas ao modelo historicamente velho e com
os privilégios do feudalismo, além de um desenvolvimento avançado da industrialização e
distribuição de direitos, assim, nesta comparação, o raio potencial do aprofundamento de
reformas sociais e políticas é diverso. Carlos Nelson Coutinho incorpora o debate das vias de
objetivação no cenário brasileiro com a caracterização da “miséria alemã”, como é chamada a
formação particular do capitalismo prussiano. O autor baiano apresenta esta categoria como
“o progresso social lento e irregular sempre em conciliação com o atraso” e “pelo alto”
(Coutinho, 1974, p. 3, apud Souza, 2014, p. 371), de uma forma regressiva de capitalismo, no
sentido de que o progresso social sempre se conciliou com as velhas forças de poder sem que
se houvessem rupturas como é característico na ‘via francesa’ e na ‘via russa’. Chasin (1974,
p. 623) cita uma passagem de Engels em que afirma que para cada solução progressista
tomada pelos franceses, os alemães encontram uma reacionária. No caso da 'via prussiana' o
atraso se deve, além de outros fatores, aos elementos pré-capitalistas feudais que demoraram a
se dissolver e, quando o fizeram, continuaram com a concentração de poder social através da
industrialização tardia e retardatária.

Neste sentido, Coutinho traz para o Brasil o debate da via-prussiana e passa a trabalhar com
esta categoria para definir a especificidades do caso brasileiro, igualando em certa medida o
atraso alemão e suas consequências ao atraso brasileiro (Coutinho, 1979, p. 41). Entretanto,
passa a ser uma categorização rodeada de generalizações no sentido que, entre outras coisas,
ignora a centralidade do passado colonial-escravocrata e não feudal. A partir disso, Chasin
busca nas categorias clássica e prussiana a compreensão da realidade histórica brasileira, não
nas aproximações, mas nas divergências, para isso ele conta, inclusive, com o importante
auxílio das pesquisas materialistas de Caio Prado Jr. sobre a história econômica brasileira
(idem, p. 641).

J. Chasin recusava a aplicação do conceito de “via prussiana” para o caso


brasileiro. Examinando o desenvolvimento desigual e combinado do capital, J.
Chasin contrasta as vias “clássica” e prussiana” da modernização e detecta uma
nova particularidade histórica: a Via Colonial. A objetivação da formação social
brasileira, além de retardatária, era atrofiada e subalterna ao imperialismo (Rago
Filho, 2010, p.71).

A teoria de objetivação do capitalismo no Brasil, de ‘via-colonial’, foi apresentada por José


Chasin em sua tese de doutorado em 1978, “O Integralismo de Plínio Salgado: forma de
regressividade no capitalismo hiper-tardio”, no qual, para compreender as diferenças entre
nazismo e integralismo, recorre a diferenciações entre a história brasileira e a alemã. Assim, o
filósofo marxista afirma que o capitalismo se apresenta em três formas de objetivação: a 'via
clássica', onde a burguesia se une ao povo para derrubar a aristocracia; a 'via prussiana', onde

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a burguesia se une à aristocracia local para viabilizar o sistema capitalista e a 'via colonial'.
Esta, última, diferencia-se das outras por ser um processo hipertardio, incompleto e atrófico,
sustentado por uma burguesia caudatária das internacionais, que não cumpre sua função na
industrialização do país e se nutre da hiperexploração das classes trabalhadoras, as excluindo
dos processos políticos. Com a modernização brasileira subordinada, opera o rebaixamento
das condições de vida das massas trabalhadoras, com o intuito de preservar as remessas de
riquezas que alimentam o capital estrangeiro e local - superconcentrado, numa lógica de
dependência colonialista que persiste, é o que Prado Jr. chamou de o “sentido da colonização”
que permanece atual. Portanto, se o caso alemão é tardio e regressivo, o tupiniquim é hiper-
tardio e hiperregressivo e essa especificidade brasileira é traduzida hoje em desenvolvimento
econômico e institucional incompleto e atrófico, o que invariavelmente recai na
hiperexploração das classes trabalhadoras.

Por aqui, não existiria uma realidade pré-capitalista feudal de produção, mas se “conservaria
as determinações dessa estrutura agrária, organização produtiva com base no latifúndio, com
seu sentido da colonização, voltado para fora.” (Rago Filho, 2010, p. 76). Cabe realçar as
principais especificidades da ‘via colonial’, na gênese da burguesia brasileira: a) sem
elementos pré-capitalistas – ausência de rupturas com “restos feudais”, numa realidade agrária
de tipo colonial-escravocrata; b) reformismos pelo alto, através de conciliações e concessões,
sem participação popular nas decisões; c) industrialização hiper-tardia, com superexploração
da classe trabalhadora; d) dependência da burguesia brasileira ao grande capital dos países
centrais imperialistas, numa lógica de colônia-dependência; e) desenvolvimento da burguesia
altamente dependente do Estado. O “capitalismo surgido no Brasil precisou contar com um
Estado abertamente engajado na economia e na sociedade” (Ianni, 1989, p.106). Essas
consequências da via colonial teriam efeitos e cobrariam do direito uma função específica
nessa particularidade, pois o direito no Brasil, em muitos casos, foi cópia importada de
constituições e leis estrangeiras e que pouco conseguia de fato dialogar com a realidade
brasileira, como se verá no próximo capítulo.

3 - Administração Política, Direito e Estado na particularidade brasileira: contribuições


de Caio Prado Jr em “A evolução política do Brasil”.

Formação histórica do capitalismo brasileiro

A expansão marítima e a chegada dos portugueses nas “novas índias”, nesta catarse moderna
que se iniciava nas grandes navegações, tomada as proporções iniciais da vasta costa
brasileira, procederam-se nos primeiros 30 anos apenas como pequenas concessões a
exportadores de madeira, pau-brasil, “nada mais fez a Coroa portuguesa em relação à nova
colônia” (Prado Jr, 1994, p. 12). O aumento do fluxo de comércio de madeira com a presença
de nações europeias, principalmente, os franceses que “desde os primeiros anos de
descobrimento tinham estabelecido um tráfico intenso na costa brasileira” (ibidem), exigiu da
Coroa portuguesa a “prudência” de iniciar com planos de colonização. A tarefa era difícil,
pois território vasto e população portuguesa pequena. Entre outras propostas, como as de
Cristóvão Jaques e João Melo Câmara, o primeiro em 1526 percorrera o litoral expulsando os
traficantes intrusos, é apresentada a ideia das capitanias hereditárias, anteriormente testada em
Açores e das Madeiras. Então, institui-se um governo central (1549) e são distribuídas as
posses das capitanias aos donatários já abastados os quais não tinham a propriedade, pois
pertencia a Coroa, mas detinham amplos direitos de soberano sobre o território da capitania
como a cobrança de tributos, as “dízimas” sobre as riquezas produzidas e encontradas. O
fracasso desse protótipo brasileiro de feudalismo - “este ensaio de feudalismo não vingou” -

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VII Encontro de Administração Política . Juiz de Fora . 29 a 31 de Agosto de 2016

se deu pelo território vasto e pela incapacidade dos donatários, as únicas que vingaram foram
a de Pernambuco e São Vicente (idem, p. 13-14). A partir disso se fortalece a ideia,
contingente, de um poder central e as capitanias passam por um processo de resgate da Coroa.
O caráter fundiário e agrícola da colônia é característico na história brasileira, o que de início
já afasta os comerciantes europeus ainda de olho no comércio com as Índias. O ponto mais
profundo da colonização é a forma com que se é distribuída das terras e o que se vê no Brasil
colônia é a exploração dos recursos através das posses fundiárias que, distribuídas sobre a
forma jurídica de sesmarias, em que os sesmeiros eram proprietários, “alodial”, sem nenhum
tipo de vassalagem ou elemento feudal. Entretanto, era o rei de Portugal que decidia sobre as
concessões (idem, p. 24) e o sesmeiro tinha a obrigação de aproveitar a terra e de 5 em 5 anos,
caso estivesse improdutiva, sofria a sanção de perda da terra (idem, p. 14-15). O principal é
que os sesmeiros já possuíam grande poder econômico para tocar, sozinhos, a produção. Eles
eram os mais abastados e que detinham posição social próxima da corte, muito longe de
representar uma distribuição de pequenas propriedades. Tanto que quanto maior a riqueza
maior a extensão da sesmaria. Percebe-se o início da formação dos grandes latifúndios com
baixa densidade demográfica, qualquer tipo de “feudalismo brasileiro” é pura retórica (idem,
p. 16). A prevalência das grandes propriedades aliada à maior capacidade do sesmeiro de ter
um vasto número de escravos (ambos em larga escala), inicialmente os índios e depois os
negros, impediu a possibilidade de desenvolvimento dos pequenos produtores (idem, p. 20),
da agricultura familiar e do próprio trabalho livre enquanto valor. Isso ainda era intensificada
pela produção toda voltada para o exterior e com a necessidade de grandes investimentos na
última tecnologia da Europa: o Engenho de Açúcar. Além disso, a ausência de urbanização
impedia o escoamento dos pequenos proprietários.

Neste sentido, os primeiros 150 anos da história brasileira foram marcados pela presença das
grandes propriedades e a ausência de comércios e de urbanização. “A sociedade colonial
brasileira é reflexo de sua base econômica: a economia agrária” (idem, p. 23), o senhor rural
monopoliza a terra, o prestígio e o domínio social. De 1550 até 1650, aproximadamente, por
ser o único exportador de cana-de-açúcar, houve um acúmulo enorme de riquezas nas mãos de
muito poucos, tão ricos quanto os mais ricos do mundo à época. Não havia nenhum tipo de
sentimento de nação sendo construído. O estatuto social era dividido em duas classes bem
distintas: “de um lado os proprietários rurais, a classe abastada dos senhores de engenho e
fazenda, doutro a massa da população espúria dos trabalhadores e do campo, escravos e
semilivres” (idem, p. 28-29). Assim, na visão materialista de Caio Prado: “Da simplicidade da
infra-estrutura econômica - a terra, única força produtiva, absorvida pela grande exploração
agrícola - deriva a da estrutura social: a reduzida classe de proprietários, e a grande massa que
trabalha e produz, explorada e oprimida.” (idem, p. 29). As graduações entre essas classes
existiam, mas não eram significativas, eram pequenos comércios rurais, pequenos
proprietários que resistiam e etc. Assim, a organização administrativa e, por consequência, a
jurídica, também era reflexo da preponderância da base-real, todo colono (grande
proprietário) mais ou menos importante era tido como administrador local. “Nomeavam
administradores a rodo” (idem, p. 26) e eles faziam a pecha de juízes e legisladores. Havia
grande excesso de cargos administrativos, o historiador paulista afirma que na vila paulistana,
no fim do século XVII, havia cerca de 400 e nas capitanias anexas cerca de 4000 (ibidem).
Neste caminhar, o estatuto político e jurídico da colônia era reflexo da ordem produtiva, a
Coroa, apesar da presença de um governo central e dos dízimos e quintos reais, não detinha
tanto poder e não conseguiam “controlar” os colonos administradores que agiam por conta
própria e tinham carta-branca, eram os donos da lei. A dependência da metrópole com os
colonos está no fato deles realizarem importante papel de desbravação, proteção e conquista
dos territórios e, também, sobre os índios. Essa atitude passiva da metrópole intensificou a

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lógica do poder local na formação político/jurídica do Estado brasileiro, gerando


posteriormente as fortes câmaras municipais, nos municípios rurais, com grande concentração
de poder econômico. Pode-se perceber, nestes primeiros 150 anos, que o caráter fragmentário
do poder político tem nas câmaras municipais, com grande autonomia e poucas regras,
formada pelos “homens bons” - os proprietários - sua caricatura, que “nada devia sobrepor-se
ao poder das câmaras” (idem, p. 30). “Apresenta-se assim o estado colonial, até meados do
século XVII, como instrumento de classe desses proprietários” (idem, p. 31). Diz o
historiador: “O Brasil colonial forma uma unidade somente no nome. Na realidade, é um
aglomerado de órgãos independentes, ligados entre si apenas pelo domínio em comum, porém
muito mais teórico que real, da mesma metrópole” (idem, p. 32). Não há nação ou identidade
de um povo.

A partir de 1650, com o fim das guerras holandesas, há o fortalecimento da economia da


colônia, inclusive com o descobrimento das primeiras minas, e ganha destaque no cenário
mundial (idem, p. 33). Por outro lado, com o aumento dos rendimentos fiscais para a
metrópole, ao mesmo tempo, Portugal passa por inúmeras crises e degradações, iniciando-se
um período de “parasitismo português” em que para cada crise, a metrópole “descontava” na
colônia em forma de medidas restritivas e fortalecimento do poder central e do pacto colonial.
Alguns exemplos são os de 1661 e 1662 em que é proibido o comércio da colônia com todos
os países, de 1684 que é proibido que qualquer navio que saia da colônia pare em outro porto
a não ser o de Portugal e o de 1711 que nenhum morador da colônia poderia passar
diretamente para qualquer país estrangeiro (idem, p. 35), ou seja, passou-se a obrigar a
mediação da metrópole em qualquer movimentação internacional limitando o escoamento da
produção. Além disso, a metrópole passa a impedir a produção de qualquer produto que seja
produzido em Portugal, como oliveiras, castanheiras e até fogos de artifício, em 1785
qualquer manufatura com algodão também sofre impedimento (idem, p. 38). Assim, “o
círculo de ferro da opressão colonial vai se apertando” (idem, p. 37) a população envolvida
vive sob o mais rigoroso controle e vigilância e o “regime das minas era o mais opressor
possível” (idem, p. 36). A brutalidade do pacto colonial fortalecido restringe o
desenvolvimento da colônia, inclusive em sentidos institucionais, e inicia-se um “verdadeiro
saque organizado” (ibidem). Com essas mudanças na esfera produtiva altera-se também a
esfera social das classes na colônia, o aumento da produção de riquezas faz aumentar a vinda
de portugueses com o aparecimento de uma “rica burguesia de comerciantes” (idem, p. 38-
39), iniciando-se a centralização urbana nas cidades litorâneas do nordeste, principalmente. A
emigração passa a ser tão constante que, inclusive, em 1720 a metrópole proíbe a vinda de
portugueses com medo da evasão. Devido à ausência de capital para investir na cara indústria
agrícola e da escassez de trabalho assalariado, estes imigrantes, com vários privilégios dados
pela Corte portuguesa, abriam pequenos comércios e a nova classe da burguesia comercial se
consolidava ligada intrinsecamente aos interesses da metrópole. “Até a independência, e ainda
em pleno império, (...), o comércio brasileiro é exclusivamente estrangeiro” (idem, p. 40). Na
metade do século XVII a economia agrícola passa por crises e cresce muito o endividamento
dos senhores de terra com os novos credores comerciais (banqueiros e comissários que
vinham de Portugal), passando a fortalecer mais ainda a classe comercial. Neste sentido,
inicia-se uma rivalidade entre as classes mais abastadas, de um lado os brasileiros
(proprietários rurais e a aristocracia fundiária) de outro a metrópole (mercadores portugueses
e a burguesia comercial). Esta caracterização de “brasileiros” que surge é ligada aos interesses
econômicos, sendo totalmente desligada dos interesses das classes miseráveis de escravos,
servos e semilivres.

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Caio Prado Jr. afirma que a alteração, com as crises, na base produtiva da colônia teve muitos
reflexos na esfera política e jurídica. No século XVIII em diante a burguesia comercial passa
a exigir representação nas câmaras municipais e postos na administração. Em 1707 no Rio de
Janeiro e Recife e em 1703 em Pernambuco, os comerciantes já concorrem a esses postos.
Essas transformações políticas vão fazendo com que as câmaras municipais percam o
protagonismo, privilégio e autonomia, iniciando-se um novo sistema administrativo com
maior poder à metrópole via governadores e autoridades reais na colônia (idem, p. 42). Assim,
a opressão econômica determinou a opressão política, fazendo com que os administradores se
curvem para o representante do rei e não mais às câmaras, rompe-se o equilíbrio político
vigente até então e o choque dessas forças contrárias na formação institucional e social do
Brasil será a contradição fundamental entre o desenvolvimento da colônia e a permanência
‘sentido de colonização’. “A nossa evolução política segue portanto passo a passo a
transformação econômica que opera a partir de meados do século XVII” (idem, p. 44). É
importante destacar essas passagens para caracterizar que, em 1933, Caio Prado Jr. dá início à
historiografia materialista brasileira, sendo seu primeiro ensaio relevante nesta metodologia, é
possível perceber interpretações marcadas por uma mecanicidade que, de certa forma, põe
sombras sobre a realidade, dando pouca ou nenhuma autonomia às formas jurídicas.

Com o fim do século XVIII, o “parasitismo português” e a intensificação do pacto colonial


ganham mais destaque. Caio Prado Jr. se diferencia de outros historiadores até então, pois
trata a vinda da família real, D. João VI, em 1808, como a “revolução” da independência no
Brasil (idem, p. 45), haja vista que, em si, já retira o Brasil da condição de colônia e se torna o
centro da metrópole. Enquanto nos outros processos de independência da América espanhola
há uma separação ou rompimento, mesmo que, na maioria, sem contar com a participação das
massas populares, no Brasil, ao contrário, a emancipação se deu com a própria junção do
aparato Real ao território colonial, um processo de independência “às avessas” (idem, p. 46).
E este movimento é que vai criar as bases da formação do Estado-burguês como conhecemos
hoje. A vinda da família real e da corte fez com que o período de 1808-1822 não se
caracterizasse mais como regime colonial, o grito da independência às margens do Ipiranga
foi apenas uma “declaração formal de independência” - nas palavras do autor: “o regente
apenas aboliu ipso facto o regime da colônia” (p. 47). O marcante ano de 1808 permitiu que o
próprio monarca favorecesse a independência do Brasil “pelo alto”; “pacífica”; “sem
participação popular” e sem “luta armada” o que vai gerar enormes reflexos contraditórios nas
formas ideológicas do capitalismo brasileiro, cobrando um preço e uma função específica do
direito e da administração política no Estado tupiniquim.

No pós 1808 caem as restrições econômicas, com a abertura dos portos, e Portugal (Brasil)
fica completamente submisso e dependente do comércio com a Inglaterra. As indústrias
portuguesas quebram e o Brasil passa a importar manufaturas inglesas, 90% da relação
comercial brasileira era com a Inglaterra (idem, p. 48). Os senhores de engenho e a
aristocracia rural perdem cada vez mais privilégios políticos e são excluídos do convívio com
a corte e suas benesses. As camadas sociais de Portugal, livres do domínio francês, mas
quebradas economicamente, no ímpeto revolucionário europeu, declara a Revolução
Constitucional de Portugal e o rei, no Rio de Janeiro, é obrigado a assinar e se “submeter” à
constituição e mais tarde também a retornar do Brasil. A instauração da monarquia
constitucional faz emergir mais fortemente no Brasil as contradições políticas na disputa pelo
poder econômico entre latifundiários e comerciantes, inclusive com a formação do Partido
Brasileiro dos grandes proprietários oligárquicos, na figura de José Bonifácio de Andradas,
“não havia mais risco de recolonização” (idem, p. 49) apesar da reação recolonizadora dos
portugueses e da burguesia comercial existir (idem, p. 50). As camadas populares também

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começaram a aparecer, mas de uma forma muito vaga, sem amadurecimento político, sem
mobilização e heterogêneas de forma que o processo de Independência não altera a ordem
social vigente. Assim, com a revolução constitucional, a organização do Partido Brasileiro e a
volta de D. João VI para Portugal, José Bonifácio e outros utilizam-se da presença do príncipe
herdeiro, D. Pedro I, para consolidar formalmente a independência, em 1822, sem
participação popular e sem rupturas com a ordem socioeconômica (idem, p. 51) e
consequentemente política e jurídica. Com a independência em 22 e a assembleia constituinte
de 23, é implantada no Brasil, como uma luva, a ideologia do liberalismo econômico, de
abertura dos portos, maior interação comercial com os países europeus e, também, mudanças
de hábitos sociais mais “civilizados” segundo o padrão europeu. É o período do primeiro
reinado com inúmeras contradições e disputas por poder, crises entre nativistas e absolutistas,
inclusive com assassinatos e saques a comerciantes portugueses, acaba-se por instituir o Poder
Moderador em que o imperador garante a nomeação dos senadores, ministros e a sanção e
veto aos atos do legislativo, um liberalismo político às avessas (idem, p. 60). Há uma
movimentação intensa na nomeação de ministros por parte do imperador de ambos os lados
polarizados, nativistas x absolutistas, para tentar acalmar ora um ora outro interesse, com
tentativas de coalizão. Mas não houve sucesso e com a queda do ministro José Bonifácio,
representante dos nativistas, há um enfraquecimento do Partido Brasileiro, a assembleia
constituinte é dissolvida e a constituição de 1823 acaba como letra morta (idem, p. 61). O
imperador demorou 2 anos para convocar o parlamento, permanecendo o absolutismo
centralizado, inclusive com o fantasma da recolonização ainda vivo. Ele controlava todos os
cargos administrativos e suprimiu a liberdade de imprensa (idem, p. 60). Essas crises se
intensificam muito, o parlamento eleito em 24 acaba sendo convocado, devido às pressões,
em 26, com a maioria dos deputados do Partido Brasileiro e, por outro lado, a maioria dos
senadores, nomeados por D. Pedro I, do Partido Português. Mesmo com toda tentativa de
coalizão pelo Imperador nomeando ministros e senadores, a opinião pública emergia contra
ele e, sem forças para dissolver o parlamento, em uma viagem a Minas Gerais - o estado mais
oposicionista - acaba ocorrendo, em 1826, a Noite das Garrafadas contra a presença do
imperador, as insurreições consequentes acabam gerando a abdicação e o período, não menos
conturbado, da menoridade (idem, p. 62-63).

O período da menoridade foi tido como a “revolução da Independência” no sentido que a


abdicação de D. Pedro I consolida, em tese, o “Estado nacional” e a autonomia brasileira, com
a vitória dos nativistas (idem, p. 64). A Revolta de 7 de abril, encabeçada pelos grandes
proprietários do Partido Brasileiro, tida como a fixação do liberalismo no país, foi feita às
avessas devido às condições materiais, de forma que os “interesses se ligavam ao regime da
colônia, se integrem na nova ordem estabelecida, evoluindo para outras formas de atividade
política” (idem, p. 65), mantendo, assim, as classes populares à reboque. Essas parcelas do
povo foram instrumentalizadas nas agitações durante o primeiro reinado até conseguirem
depor D. Pedro I, as classes proprietárias utilizavam da retórica liberal abstrata de mais
democracia e mais direitos para usar a população como meio para os seus fins ditos
“nacionalistas”. Ao serem “esquecidos depois da vitória” (ibidem), as classes populares
passaram a sujeito ativo na luta de classes, o Partido Brasileiro passa de nativista para
reacionário e emergem as desigualdades. Esses elementos fazem da menoridade um período
marcado pela agitação popular, “ondas revolucionárias” e muitos levantes. Essa
movimentação não foi capaz de gerar mudanças radicais na estrutura socioeconômica devido
a grande dispersão e não organização dessas massas. Além disso, 50% da população era
escrava e, segundo Prado Jr., devido ao baixo nível intelectual, “só com o tempo eles puderam
passar de uma classe em si para uma classe para si”, politicamente consciente (idem, p. 67).
Entretanto, em algumas localidades se iniciam a deposição de autoridades clamando por

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reformas radicais e o Partido Brasileiro passa a reprimir fortemente os “extremistas


revolucionários”, que nada mais eram que as classes populares em extremo grau de
desigualdade material, criminalizando os movimentos e nomeando figuras reacionárias para o
parlamento. Segundo Feijó, ministro da Justiça mais punitivista do período, era a guerra dos
proprietários contra os anarquistas, que depunham inclusive governadores. Feijó fica até 1833
(idem, p. 72-73), sem conseguir se sustentar, dando espaço novamente para a ala mais
reacionária do Partido Brasileiro, os “Andradas”, que são os Restauradores. Toda essa
movimentação acontece, ao mesmo tempo, que as principais revoltas populares que vão até
1837 como a Revolução dos Cabanos (Pará), dos Balaios (Maranhão) e a Agitação Praiera
(Pernambuco) e, mais tarde, a dos Farrapos (Rio Grande do Sul). Cada uma dessas contou
com suas demandas e especificidades (idem, p. 75), algumas inclusive tiveram sucesso na
deposição do governo e instauração de leis altamente progressistas de direitos, como a de
Pernambuco (idem, p. 78), entretanto os ideais não saírem da perspectiva ideológica, muito
longe de conseguirem alterar a ordem econômica vigente e conquistar a maioria da população
escrava, pois, nem tinham esses anseios, na verdade. Esses movimentos não souberam utilizar
da questão principal que era a escravidão e do próprio negro como agente revolucionário na
luta de classes (idem, p. 80). O que se viu como resposta na década de 1840 foi a completa
trajetória reacionária (1837 - 1849) e “esmagada a revolução, subjugada a onda democrática, a
grande burguesia nacional entra no gozo indisputado do país” (idem, p. 83).

Algumas figuras jurídicas e administrativas, para além das já citadas na descrição histórica
anterior, vão surgindo ao longo do primeiro século de colonização para dar oficialidade aos
interesses produtivos, o índio, por exemplo, com o papel da “obra missionária” dos jesuítas,
passou a ser entendido a partir de “situações jurídicas”: Eram vistos ou como ‘cativos de
guerra justa’ - conceito muito elástico e subjetivista - ou prisioneiros de outras tribos -
“escravos de pleno direito” - ou, por último, como índios livres sob a tutela dos colonos. Na
verdade essas figuras eram o disfarce jurídico encontrado para agradar aos jesuítas e continuar
utilizando os índios como escravos e servos em larga escala (idem, p. 25).

O Estado colonial, por assim dizer, até meados do séc, XVII, tinha no poder local das
câmaras municipais a sua consolidação. Assim, Prado Jr. vem afirmar que apesar do pacto
colonial - colônia/metrópole - ser a estrutura jurídica, formalmente, vigente, é o poder
político/jurídico dos proprietários rurais que “de fato” rege a colônia neste período inicial
(idem, p. 31-32). A administração local, inclusive, contrariava leis centrais da metrópole
superexplorando escravos e interferindo as aldeias, “as leis são moldadas e aplicadas de
acordo com o interesse desses senhores de terra” (idem, p. 31). Formam-se assim sistemas
jurídicos praticamente soberanos, regidos por sua organização política autônoma.

Mais tarde, já no processo de Independência, a emancipação às avessas do Brasil, com a vinda


da família real em 1808 e a consolidação formal de 1822, realizada pelos bastidores em torno
do Partido Brasileiro e do príncipe regente, com os arranjos políticos, mediados pela simples
transferência da metrópole para a colônia, houve uma incorporação do modus operandi da
política e do fenômeno jurídico, não se repensou a administração político-jurídica da nação,
manteve-se colonial, voltada para o mercado estrangeiro, totalmente dependente. “Fez a
independência à revelia do povo” (idem, p. 52-53), a independência é fruto dos interesses de
uma classe e não de uma nação, dessa forma, a expressão jurídica é absorvida para revestir de
oficialidade o poder das classes superioras da ex-colônia ligadas ao regente e à metrópole
(idem, p. 53). Em 1823, isso fica claro com a Assembleia Constituinte, que é a tradução das
condições políticas reinantes, enquanto expressão do poder econômico, nas “normas jurídicas
fundamentais”, “(...) é a forma pela qual ela exerce seu domínio” (p. 53). Após 6 meses de

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discussões, inspirados pelos princípios filosóficos de J.J. Rousseau, do “contrato social”, e nas
constituições inglesa e francesa, foi adotado um modelo de constituição que incluía as
liberdades idealizadas na Europa, numa contradição gritante em relação às condições
materiais de vida da grande parte da população brasileira. Nas palavras de Prado Jr. a
Constituinte de 23 “cai como uma luva” ao “Substituir as restrições políticas e econômicas do
regime colonial pela estrutura de um Estado nacional” (idem, p. 54). A importação de toda
filosofia revolucionária burguesa, na falta de sistema original, adota as formas históricas do
direito civil romano, com código de Napoleão, numa “ganga doutrinária”, nas palavras do
historiador paulista. A ideologia da constituinte, refletindo a necessidade de se racionalizar o
modelo socioeconômico colonial que permanece vivo, agarra-se nesta “ganga doutrinária”
que fica evidente quando se adapta Rousseau e seu “contrato social” à escravidão (!) como no
artigo 265 que dizia “A constituição reconhece os contratos entre senhores e escravos o
governo vigiará sua manutenção” (idem, p. 57). A constituição dizia suprimir as restrições
econômicas para a “mais ampla liberdade econômica e profissional”, mas são muitos os
exemplos dessas contradições, do “mais perfeito retrato do liberalismo burguês” (ibidem), que
não pode contradizer, nunca, o motor produtivo da base-real, que no caso era a escravidão.
Vamos a alguns exemplos: primeiro, o xenofobismo extremado em relação aos estrangeiros,
principalmente, portugueses, com o fantasma português da recolonização implicando em
grandes restrições ao processo de naturalização. Segundo, em nome da soberania nacional os
constituintes buscavam limitar o poder do monarca, impedindo que a palavra do monarca se
sobreponha à da constituição, além disso, havia a impossibilidade do Imperador dissolver a
câmara, apenas “com veto suspensivo” (art. 113), as forças armadas estariam sujeitas ao
parlamento e não ao imperador e o veto do Imperador aos projetos seriam passíveis de sanção
do parlamento (art. 116). Além disso, em terceiro, o caráter classista do liberalismo
constitucional de 1823 em que os direitos políticos eram reservados aos grandes proprietários
rurais, havia uma barreira patrimonialista de rendimento anual superior a 150 alqueires de
farinha de mandioca, toda a população trabalhadora e muitos mercadores foram excluídos, só
poderiam votar em assembleias primárias - a eleição era dividida em dois graus (idem, p. 55-
56). Como se viu anteriormente, essa constituição acaba sendo letra morta nas disputas por
poder durante o primeiro reinado. A lei importada não tem eficácia na realidade do Brasil.

Com a queda de D. Pedro I e as classes populares, mesmo desunidas, insurgindo-se pelo país
contra as desigualdades materiais e a opressão dos grandes proprietários, o Partido Brasileiro
passa a reprimir e criminalizar, surgem leis penais como a de “6 de junho” que passa a proibir
“ajuntamentos noturnos nas praças e é declarado inafiançável crimes com prisão em
flagrante” (idem, p. 67). Os governos regenciais que se seguem possuem o caráter autoritário,
enérgico e punitivista, principalmente, com a nomeação do Ministro da Justiça Antônio Feijó
que os chama de “anarquistas”. A repressão atinge as revoltas populares e também as revoltas
nos quarteis com os soldados (idem, p. 68- 69). Esse período intenso de revoltas e
criminalização dos movimentos durou até 1849, após, há a consolidação do avanço
conservador e reacionário e se instaura o Estado liberal dos proprietários com muitos reflexos
jurídicos. Os proprietários passam a deter pleno controle do Estado e de suas formas já não
mais em disputa, o direito é expresso enquanto meio de apaziguamento e desmobilização
social, são dados “os últimos retoques nas Instituições do Império”, são os reflexos aparentes
do novo equilíbrio do poder econômico e político (idem, p. 86), em que a lei e o judiciário
expressam claramente os interesses “racionais e universais” da classe dominante. Algumas
leis como a de 1841 já demonstram isso, numa certa ‘reforma judiciária’, em que centraliza-se
o poder Estatal na figura da polícia com amplos poderes e atribuições judiciárias, diretamente
subordinadas ao governo central. Em 1846, a reforma eleitoral, traz substantivas alterações
nos direitos políticos, que ficam mais limitados, dobra-se a renda anual mínima exigida para

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participação (idem, p. 88). Ou seja, a partir de 1850 as massas populares, completamente


mantidas numa sujeição por leis e instituições opressivas, passam mais ainda para segundo
plano, sendo a revolta popular substituída pela passividade e lentidão da vida política
(ibidem). A partir daí, o que se vê é a plena consolidação da ditadura da classe dos
proprietários no Brasil.

4 - Conclusão

Nesta tarefa inicial, que vai até meados do século XIX, de se compreender como aparece o
reflexo jurídico e a função do direito na historiografia brasileira do autor Caio Prado Jr.,
talvez fosse o caso de ver criticamente algumas tendências que apareceram como a de um
caráter meramente passivo do direito frente ao conflito social. Embora no século XIX tenha se
demarcado alguma atuação e função, ainda é pouco desenvolvida. Neste sentido, Prado Jr.
parece ter uma visão apenas passiva do direito que surge tanto de uma confusão, justificável
nos primeiros 150 anos de colonização entre administração e judiciário, de certa forma, o
direito fica em segundo plano, como mediação sempre passiva. Prado Jr, neste primeiro
ensaio materialista, apresenta traços economicistas, retirando o estatuto social, administrativo
e jurídico como um reflexo idêntico e determinado mecanicamente pela base real, parece
retirar toda autonomia das formas aparentes. Desta forma, o direito é subdimensionado no seu
papel de acomodação da classe no Brasil, necessitando de maiores análises e
aprofundamentos sobre o direito e a ideologia da classe dominante, assim como a função do
direito na formação da classe trabalhadora. A par disso, o poder do controle produtivo das
riquezas do país, sempre nas mãos de muito poucos, esteve em disputa nestes primeiros 350
anos de Brasil, mas sem perder sua característica colonial voltada ao interesse externo do
comércio internacional. Portanto, os diversos equilíbrios políticos surgidos com as condições
produtivas refletem sim no aparato jurídico tanto como um meio de se consolidar o poder
conquistado como forma de conter o avanço da classe popular revolucionária, como fica
evidenciado por Prado Jr. na introdução deste ensaio analisado.

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Referências

CHASIN, José. O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo híper-


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