Você está na página 1de 15

DOI: http://dx.doi.org/10.18315/argumentum.v7i1.

9033

ARTIGO

Feminismo e autonomia: organização feminista em Natal (RN)

Feminism and autonomy: feminist organization in Natal (RN)

Lissa Crisnara Silva do NASCIMENTO1

Resumo: O feminismo concretiza sua construção teórica e prática no movimento feminista – primeira forma
de apresentação da mulher enquanto sujeito político – propondo um projeto de sociedade fundamentado na
liberdade e autonomia das mulheres. A noção de autonomia no feminismo logo se coloca enquanto teoria e
ação para a construção horizontal e autodesignada das mulheres no projeto de transformação social. Dessa
forma, analisamos as novas expressões do feminismo, tendo como pressuposto as novas organizações autô-
nomas de mulheres enquanto antíteses da institucionalização do movimento feminista. Buscou-se, através de
uma pesquisa documental referente ao Coletivo Autônomo Feminista Leila Diniz, da cidade de Natal (RN),
compreender a noção de autonomia no processo de organização de mulheres.
Palavras-chave: Feminismo. Autonomia. Organização de mulheres.

Abstract: Feminism realizes its theoretical and practical construction in the feminist movement - first
presentation of women as political subject - proposing a reasoned society project in the freedom and
autonomy of women. The notion of autonomy in feminism, therefore, arises as a theory and action to
landscape construction and self-appointed women in the project of social transformation. This, we analyze
the new expressions of feminism, with the assumption: the new autonomous organizations of women as
antitheses of the institutionalization of the feminist movement. Sought through a documentary research in
the 'Coletivo Autônomo Feminista Leila Diniz' Natal city (RN), understand the notion of autonomy in the
organization process of women.
Keywords: Feminism. Autonomy. Women organization.

Submetido em: 24/01/2015. Aceito em: 23/04/2015.

1Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN, Brasil) e professora do
curso de Serviço Social pela Universidade Potiguar (UnP, Brasil). E-mail: <lissachrisnara@gmail.com>.
152
Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 152-166, jan./jun. 2015.
Lissa Crisnara Silva do NASCIMENTO

Introdução autônomo e como esse coletivo tem


buscado consolidar discursos e estratégias

A
o longo do tempo, a seguinte pre- autônomas enquanto sujeito político.
missa tem fundamentado o femi-
nismo: esse movimento, enquanto Para tanto, esse trabalho analisa as recentes
sujeito político das mulheres, desde sua expressões do feminismo, tendo como pres-
primeira expressão na França, em 1789, suposto as novas organizações de mulheres
afirma-se e deve ser considerado como “[...] enquanto antíteses (negação) da institucio-
elemento imprescindível, em qualquer pro- nalização do movimento feminista que se
cesso de transformação radical das relações deu nos anos de 1980, período no qual, se-
sociais” (GURGEL, 2009, p. 8). gundo Gurgel (2014), a noção de autonomia
atribuída ao feminismo deslocou-se da
Nessa perspectiva, as feministas questio- perspectiva de autodeterminação do mo-
nam e alertam para as demarcações do ho- vimento de mulheres para o terreno da ins-
mem enquanto sujeito universal, chamando titucionalidade das Organizações Não Go-
atenção para as problemáticas advindas vernamentais (ONGs).
dessa universalização, numa tentativa de
desmistificar a perspectiva de igualdade Em síntese, constituiu-se sujeito-objeto des-
diante das desigualdades entre homens e sa investigação o Coletivo Autônomo Fe-
mulheres nos espaços da vida social. minista Leila Diniz, formado por mulheres
de múltiplas identidades: anarquistas, mu-
Particularmente na América Latina, o femi- lheres vinculadas à Articulação Brasileira
nismo terá a participação ativa de mulheres de Mulheres (AMB) e jovens. O grupo or-
do campo popular atualizando demandas, ganizou-se autonomamente a partir do le-
na perspectiva de totalidade da vida social, gado da ONG Coletivo Leila Diniz, que há
e enriquecendo a organização e teoria femi- pouco deixou de existir enquanto institui-
nista com demandas da imediaticidade co- ção. Essas mulheres assumem uma identi-
tidiana, que se expressa, segundo Gurgel dade diversa e atuam, na cidade de Natal
(2009, p. 21), na “[...] extrema pauperização (RN), a partir de ações “artivistas” – termo
e invisibilidade política.” usado por elas, que faz menção a arte e ati-
vismo – contra culturais e, nacionalmente,
Ao tomar a noção de autonomia – expressa por meio de frentes feministas, como a
em uma organização sem hierarquias, pau- Frente Nacional Pela Descriminalização e
tada na horizontalidade da luta estratégica Legalização do Aborto.
–, o pensar e o fazer do feminismo se consti-
tui como aquele que parte da autodesigna- Logo, esse trabalho fundamenta-se por
ção das mulheres. meio de uma pesquisa documental feita
sobre o grupo feminista supracitado, na
Dessa forma, dialogaremos sobre o Coletivo qual foram discutidos três documentos re-
Autônomo Feminista Leila Diniz, de Natal ferentes ao grupo: a carta aos(às) “Ami-
(RN), a fim de compreender como se gos(as) e Parceiros(as)”, texto redigido pelo
estabelece a relação com o feminismo grupo ainda enquanto ONG; uma reporta-

153
Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 152-166, jan./jun. 2015.
Feminismo e autonomia

gem sobre o Coletivo Leila Diniz (ONG); e de direito ao trabalho encontrou resistência
o manifesto atual do grupo autônomo. diante dos próprios trabalhadores. O receio
de perder postos de trabalho para as mu-
1 Feminismo, história e teoria: a lheres e a reafirmação da hierarquia na fa-
emergência do feminismo autônomo mília, por meio dos valores de organização
da sociedade burguesa, legitimaram, na
A Revolução Francesa, ocorrida no final do época, a contraposição dos homens.
século XVIII, foi um marco histórico das
primeiras mobilizações e reinvindicações No entanto, Álvarez González (2010) expõe
por igualdade construídas por mulheres2. que as mulheres não se aquietaram a esse
Essas mulheres, então organizadas, entra- domínio patriarcal das organizações de es-
ram em resistência às relações de submis- querda, enquanto que Clara Zetkin – figura
são postas ao sexo e afirmaram que não alemã feminista e socialista de destaque
haveria igualdade enquanto a dualidade do internacional do século XIX – propunha o
público e do privado e, com isso, a desi- compromisso dos partidos socialista na luta
gualdade entre os sexos continuasse exis- pelo sufrágio universal feminino3.
tindo (GURGEL, 2009). Segundo a autora,
“[...] as mulheres realizaram ações radicais A perspectiva da aliança entre a luta de
de combate a sua exclusão da soberaneida- classes e a luta das mulheres, devido a au-
de popular, inaugurada com a sociedade todeterminação destas, deixava clara a
moderna que se propôs a eliminar todo tipo perspectiva de classe tomada pelo movi-
de desigualdade já que insurge com o lema mento de mulheres socialistas que, apesar
da igualdade, liberdade e fraternidade” (GUR- de reconhecerem as conquistas reais pauta-
GEL, 2009, p. 9, grifo da autora). Nesse sen- das pelas feministas burguesas, confronta-
tido, a legitimidade dessa resistência pau- vam as suas perspectivas de luta.
tava-se no questionamento aos domínios do
político, com sua negação à participação É nesse terreno que a noção de auto-
das mulheres, desnaturalizando-as da esfe- organização do feminismo ganha ampla
ra pública e de suas relações. Logo, suas discussão. Na medida em que pautar a li-
reivindicações se caracterizaram pela cen- berdade da mulher dentro de organizações
tralidade da luta pela igualdade.
3“A reivindicação pelo direito ao sufrágio mobilizou
A história do Movimento Feminista retrata as mulheres por sete décadas em diferentes países e
que, mesmo articuladas às organizações de regiões do mundo. De início, tanto nos Estados Uni-
dos quanto em alguns países da Europa, as sufragis-
esquerda, compromissadas com a classe e
tas tinham como estratégia a busca de apoio parla-
com a luta socialista, a bandeira feminista mentar a partir de uma ampla mobilização popular.
Assim, o movimento chegou a envolver milhões de
2Marcaremos nossa discussão sobre o feminismo a mulheres e realizou inúmeras ações de grande en-
partir da Revolução Francesa em virtude da vergadura social. Esta estratégia é abandonada nos
centralidade da luta pela igualdade, pautada pela inícios do século XX, quando parte das organizações
coletivização das mulheres tanto proletárias quanto sufragistas passam a adotar ações mais radicais e são
burguesas, em busca da afirmação política do sexo e duramente reprimidas pelo Estado, segundo Alves e
ainda para as mulheres da classe trabalhadora na Pitanguy (1991)” (GURGEL, 2009, p. 13).
transformação social.
154
Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 152-166, jan./jun. 2015.
Lissa Crisnara Silva do NASCIMENTO

lideradas por homens e direcionadas por político só emerge com o movimento de


valores patriarcais de sociedade não daria caráter feminista a partir dos anos 1970.
conta de suas bandeiras de luta, tornou-se
urgente um espaço e uma organização As décadas de 1970 e 1980 representaram
construídos por mulheres, onde suas parti- um período também de crescimento ma-
ciço na participação política das mulhe-
cularidades de ser social fossem o palco
res. A presença em movimentos sociais
central das lutas.
ativos, respondendo às novas demandas
surgidas em particular nas grandes con-
Costa (2005) destaca a especificidade nas centrações humanas, introduziu novas
organizações feministas latino-americanas formas de sociabilidade e oportunidades
em sua relação com as organizações de es- para as mulheres fora do âmbito familiar
querda, nas quais as feministas das décadas (GODINHO, 2004, p. 151).
de 1960-1970 rompem com as organizações
de esquerda, em termos organizativos, à Segundo Souza-Lobo (2010), a prática femi-
medida que reconhecem o sexismo que ba- nista brasileira é marcada por três momen-
liza as relações orgânicas dos coletivos. To- tos: 1º - Articulação das lutas contra as for-
davia, essas mulheres não perdem de vista mas de opressão das mulheres e as lutas
seus vínculos ideológicos e seu compromis- pela redemocratização (década de 1970) – o
so com a mudança radical das relações so- Estado era o inimigo comum dos movimen-
ciais de produção, mesmo continuando a tos; 2º - Reorganização partidária e desca-
luta contra o sexismo dentro da esquerda. racterização das práticas autônomas dos
movimentos (de 1980 a 1982), no qual o dis-
Em relação às manifestações das feministas curso feminista invade os discursos parti-
daquela época, é importante destacar, “[...] dários, mas as práticas autônomas são re-
a articulação estratégica entre a luta pela duzidas; e 3º - Ocupação de novos espaços
autonomia e autodeterminação das mulhe- governamentais pelos movimentos, o que
res com a busca incessante da emancipação gera polarização entre as feministas que
humana, frente às forças destrutivas do ca- queriam ocupar esses espaços e as que in-
pital” (GURGEL, 2009, p. 14). De modo que sistiam na exclusividade dos movimentos
as bandeiras de lutas trazidas pelas mulhe- como espaços das feministas.
res centravam-se na denúncia e no enfren-
tamento da ordem patriarcal dominante, Acerca do assunto, Costa (2005, p. 17) ainda
assim como nas contradições do sistema argumenta que “[...] a atuação do feminis-
capitalista-racista. mo em nível institucional, isto é, na relação
com o Estado, nesse e em outros momentos,
No que condiz ao contexto brasileiro, Go- não foi fácil de ser assimilado no interior do
dinho (2004) expõe que a participação das movimento.” A relativa perda de autono-
mulheres no mundo público é uma das mia e as perspectivas focalizadas – tendo
mudanças mais marcantes na segunda me- em vista as políticas públicas conquistadas
tade do século XX, pois apesar de ter a ci- e que deveriam ser implementadas pelo
dadania formalizada por meio do voto em governo – de enfrentamento à opressão pa-
1932, a presença da mulher como sujeito triarcal inquietavam os grupos que se pro-

155
Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 152-166, jan./jun. 2015.
Feminismo e autonomia

punham a ações radicais e de maior comba- tos teórico-político do feminismo como


tividade. sujeito coletivo (GURGEL, 2014, p. 63).

O feminismo, assim, se defrontava inter- Foi nessa conjuntura que se estabeleceram


namente com uma multiplicidade de tensi- os grupos de mulheres que são sujeitos des-
onamentos, tendo em vista as diferentes se artigo, o Coletivo Autônomo Feminista
experiências de opressões sofridas pelas Leila Diniz4, que em 2013 ainda era organi-
mulheres e suas diversas formas de enfren- zado como ONG Coletivo Leila Diniz
tamento individual e coletivo (GURGEL, (CLD). Segundo reportagem de julho de
2014). 2014 do Novo Jornal,

Os anos iniciais da década de 1990 foram O CLD foi fundado há 13 anos por um
caracterizados pela apresentação de uma grupo de mulheres que já atuavam no
considerável fragilidade dos organismos de movimento feminista nacional. A institui-
governo para com as mulheres, os quais em ção teve como missão contribuir para a
atendimento às determinações dos orga- democratização do Estado e da sociedade,
nismos internacionais (Banco Mundial e através da igualdade de gênero, com jus-
Fundo Monetário Internacional), intensifi- tiça social a partir de uma perspectiva
caram a mercantilização dos direitos e cor- feminista. Em seu nome fez homenagem à
atriz Leila Diniz, símbolo de liberdade se-
tes nos gastos sociais. Com isso, o bloqueio
xual, transgressão e emancipação da mu-
conservador dominante do Estado desacre-
lher. E teve como objetivo central fortale-
ditava do movimento feminista autônomo. cer a luta nos movimentos de mulheres e
feminista local, como o Fórum de Mulhe-
Todavia, Gurgel (2014) discute que, em fi- res do Rio Grande do Norte (NOVO
nais dos anos de 1990, a autonomia, en- JORNAL, 2014).
quanto elemento fundamental ao sujeito
político do feminismo, deslocou-se da
perspectiva de autodeterminação do mo- Logo, desde 2002 o CLD passou a construir
vimento de mulheres, em relação a partidos ações feministas junto ao Estado, especifi-
políticos, para a dimensão de instituciona- camente na cidade de Natal (RN). Refletin-
lidade das ONGs que se consolidavam. As do acerca da própria atuação, em uma carta
ações feministas, então, se condicionavam aos(às) Amigos(as) e Parceiros(as), enviada
intensamente aos ditames do Estado e dos no ano de 2013, o coletivo declara:
organismos financiadores de projetos soci-
ais. Ao longo desse período, firmamos parce-
rias na luta por uma sociedade mais justa
[...] essa transformação contribuiu para a e nos tornamos uma referência ao cons-
profissionalização de militantes que se
distanciam cada vez mais de uma atuação 4 Em termos gramaticais, tomaremos a discussão
na base social, ao assumirem um fazer po- quanto a esse grupo no plural, a partir do
pressuposto de que nele se constituem politicamente
lítica que reproduz as esferas de hierar-
diversos coletivos internos, expressos por diversas
quização e centralidade decisórias, fenô-
demandas, experiências, estratégias de ações e
menos cuja negação é um dos fundamen- identidades.
156
Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 152-166, jan./jun. 2015.
Lissa Crisnara Silva do NASCIMENTO

truir uma força política na cidade de Na- Portanto, não são tantos os editais que
tal pautado em projetos e ações contracul- atendem ao nosso perfil institucional e,
turais, na intervenção na agenda pública, dentre estes, nos preocupamos em seleci-
na formação de lideranças de base e no onar apenas os que estejam de acordo
enfrentamento das lutas cotidianas na com nosso projeto político institucional.
busca por melhores condições de vida pa- Na concorrência em editais que provêm
ra as mulheres natalenses (COLETIVO de recursos públicos, também enfrenta-
LEILA DINIZ, 2013). mos dificuldade de acesso, pois, o sistema
de convênios estabelecido pelo governo
federal coloca as organizações governa-
Essa carta teve como temática central a mentais no mesmo patamar de disputa
transição organizativa pela qual o grupo por recursos com outras organizações da
precisaria passar, saindo da estrutura de sociedade e até mesmo com as prefeituras
ONG para a de organização autônoma. As (COLETIVO LEILA DINIZ, 2013).
dificuldades com o financiamento das ações
se tornou algo incontornável, acerca dessa Se expressa nessa forma de fazer a luta con-
condição, o Coletivo Leila Diniz, como se- tra a opressão sofrida pelas mulheres o que
gue relatando a carta, Gurgel (2014) discute enquanto nível de
dependência financeira e exigência burocrá-
tica diante da profissionalização de militan-
[...] apesar da reconhecida trajetória, [...]
tem enfrentado dificuldades para manter
tes. Segundo a autora, a liberdade na cons-
as suas atividades. Desde a nossa criação, trução de estratégias, compreendendo o
a mobilização de recursos para a nossa movimento feminista enquanto sujeito polí-
sustentabilidade advém da aprovação de tico, perde em amplitude e efetividade.
projetos em editais públicos. Com a eco-
nomia do país fortalecida, os convênios
Esta situação nos fez refletir, durante os
com agências de cooperação internacio-
últimos três anos, a respeito de como se-
nais vêm diminuindo, comprometendo a
guir existindo, dado o peso de uma orga-
sustentabilidade das organizações não
nização não governamental, em que suas
governamentais. Esse reflexo é sentido
militantes também são profissionais e seu
principalmente em organizações que tem
trabalho teria que ser remunerado. Não
sua atuação voltada para a formação poli-
temos mais como nos manter nesse for-
tica, educação, acesso aos direitos huma-
mato, mas, feministas e militantes que
nos, cultura e fortalecimento dos movi-
somos, em função de nossa opção de
mentos sociais, como é o nosso caso (CO-
transformar o mundo pelo feminismo,
LETIVO LEILA DINIZ, 2013).
decidimos encerrar o CNPJ do Coletivo
Leila Diniz, ou seja, concluímos aqui a vi-
A realidade do CLD apresenta os dilemas da do Coletivo Leila Diniz como uma
postos à institucionalização do movimento ONG e renasceremos como um grupo de
feminista, tendo em vista as amarras políti- militância (COLETIVO LEILA DINIZ,
2013).
cas das ações sob o controle do Estado, as-
sim como os interesses divergentes nessa
Esse direcionamento político, expresso no
relação neoliberal de concorrência. Como
documento, reforça a nossa hipótese de que
demonstram na supracitada carta:
157
Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 152-166, jan./jun. 2015.
Feminismo e autonomia

o surgimento de novas organizações de novas formas e experiências para organiza-


mulheres indica um movimento de antítese ção da luta feminista. As experiências já
ao processo de institucionalização do mo- vividas podem, assim, contribuir para a
vimento feminista nos anos de 1990 e 2000. superação do que não deu certo em outras
A carta continua: formações organizativas de se fazer a luta
coletiva das mulheres.
Seremos, então, o Coletivo Autônomo
Feminista Leila Diniz. Este é um momen-
Nessa linha de análise, sobre a transição de
to que estamos chamando de “queda para institucionalidade à organização autônoma,
o alto”. Que nos desafia a encerrar uma as feministas do Coletivo Autônomo Femi-
organização com 12 anos de vida e dar nista Leila Diniz expõem:
início a uma nova caminhada, com uma
organização autossustentável e 100% mili-
Autônomo porque essa foi nossa primeira
tante, cujas contribuições virão de todas
pauta e decisão coletiva. Queríamos ca-
nós, que desejam transformar a realidade
minhar com nossas pernas, de forma in-
machista e colaborar ativamente nesse
dependente de partidos políticos e sindi-
processo (COLETIVO LEILA DINIZ,
catos. Somos auto organizadas, descola-
2013, grifo do coletivo).
das de organismos verticalizados, com hi-
erarquias e concentração de poder, prota-
Compreendemos, assim, o Coletivo Autô- gonizamos nossa própria luta (COLETI-
nomo Feminista Leila Diniz como uma no- VO AUTÔNOMO FEMINISTA LEILA
va expressão do feminismo, construído em DINIZ, 2014, p. 1).
uma perspectiva combativa, que retoma a
noção de autonomia do movimento e agre-
ga novos valores feministas, de mulheres Partindo das discussões de Gurgel (2004), a
que proclamam: noção de autonomia propõe, assim, uma
ampliação substancial do sentido atribuído
ao sujeito. Logo, a autonomia se relaciona
Somos seres humanos, gente que não se defi- ao elemento central do feminismo, a liber-
ne pela normatividade, pelas regras, somos dade5.
putxs, bichxs, negrxs, vadixs, degeneradxs,
afetetadxs, grisalhxs, Lésbicas/sapatão, bis- Ser feminista é caminhar rumo a sua au-
sexuais, desnaturadxs, insubmissxs, despa- tonomia pessoal e, ao mesmo tempo, lutar
dronizadxs, monstrxs, gordxs, loucxs, ávidxs coletivamente pela autonomia e liberdade
por liberdade, desbocadxs, revoltadxs, autô- de todas as mulheres. O feminismo é, nes-
nomxs, indignadxs, histéricxs, combativxs, te sentido, um projeto de vida, e isso exi-
desmanteladxs, artivistas, possuídxs, empo- ge coerência entre o nosso pensar, sentir e
deradxs, desequilibradxs, piriguetes, perifé-
ricxs, maconheirxs, vândalxs (COLETIVO
AUTÔNOMO FEMINISTA LEILA DINIZ, A realidade de ação do feminismo, caracterizada
5

2014, p. 1[sic]). pela estratégia de atuar nos pontos comuns, nas


particularidades de cada opressão, na imedia-
ticidade e mediaticidade das relações, sem perder de
Esses novos sujeitos, que constroem as or- vista a emancipação humana, legitima a
ganizações de mulheres, trazem consigo centralidade da liberdade, objetivo maior do
movimento (GURGEL, 2009).
158
Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 152-166, jan./jun. 2015.
Lissa Crisnara Silva do NASCIMENTO

agir, o que todas nós sabemos que é um zado não rompe com as estratégias de do-
permanente desafio (SILVA, 2010, p.12). minação de sexo, “raça”/etnia e classe soci-
al. Dessa forma, o elemento autonomia, pa-
Portanto, partindo dessa abordagem, quan- ra o sujeito do feminismo, exige a supera-
to à importância para o movimento feminis- ção desses espaços hegemônicos.
ta da organização autônoma de mulheres e
da diversidade do feminismo no Brasil, é Ao longo do tempo, a noção de autono-
indispensável para a análise aqui proposta mia, para o feminismo, passou por impor-
construir uma investigação que leve a apre- tantes ressignificações, chegando a desfi-
ender a dinâmica dos grupos de mulheres gurar-se no enfrentamento com a questão
inscritos na atual sociabilidade e dinâmica do Estado. Sua abordagem deve levar em
da noção de autonomia para o Movimento consideração pelo menos três aspectos: a
noção de liberdade, o reconhecimento da
Feminista.
opressão e a ação coletiva das mulheres,
como elementos que conferem um nexo
2 A noção de autonomia: contingências interno as variadas dimensões ontológicas
organizativas às mulheres de Natal (RN) dos sujeitos de ação da práxis feminista
(GURGEL, 2004, p. 100).
A autonomia que o feminismo prescinde ao
se fazer sujeito será tomada aqui a partir de
análises de sua dinamicidade na trajetória Pensar e fazer o feminismo estabelece um
do movimento feminista. Gurgel (2004), direcionamento de luta que, partindo da
nessa direção, relata que no interior dos autodesignação das mulheres, irá conferir
movimentos sociais e libertários a autono- estratégias e táticas construídas na validade
mia tem sido enfrentada à medida que poli- do velho e na aceitação crítica do novo. Na
ticamente se relativiza, consequência da discussão de Freire (1996), pensar certo es-
quase absoluta burocratização das lutas taria, nesse sentido, orientado à disponibi-
adequadas ao sistema de dominação. Isso lidade ao risco de acolhimento crítico do
porque a autonomia discutida por Paulo novo e a perseverança de uma tradição que
Freire, fundada numa leitura marxiana de no tempo continua nova.
análise da realidade, aponta homens e mu-
lheres como seres sociais, sócio-histórico, A trajetória feminista pelo elemento da au-
“[...] capazes de comparar, de valorar, de tonomia expõe os conflitos desse “novo e
intervir, de escolher, de decidir, de romper” velho” na dinâmica de um movimento so-
(FREIRE, 1996, p.18), logo, de superar a cial recente. Compreendendo as mudanças
dominação. A autonomia pressupõe, assim, inerentes às décadas de 1980 e 1990 para o
reconhecer-se no mundo, na coletividade e feminismo brasileiro, no que condiz a sua
na radicalidade do eu. aproximação com o Estado, Gurgel (2014)
trás ao debate da noção de autonomia as
Para o feminismo, a institucionalização jun- críticas do feminismo à “onguização”.
to ao Estado obstaculiza esse complexo de
capacidades autônomas. Não desconside- Em um primeiro momento, Gurgel (2014)
rando as mudanças conquistadas, fato é que aponta que o movimento feminista sofreu
esse feminismo estatalmente institucionali- uma transformação em sua identidade a
159
Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 152-166, jan./jun. 2015.
Feminismo e autonomia

partir do momento em que se instituciona- Os anos de 1990 significaram à trajetória do


lizou. Isso teria reduzido politicamente e feminismo, à sua luta emancipatória e ao
quantitativamente a base social do movi- fundamento da liberdade uma noção de
mento de mulheres. Em seguida, a autora autonomia deslocada da autodeterminação
pontua que a transferência de decisões polí- das mulheres, subordinadas a financiamen-
tico-institucionais para as equipes de pro- tos e editais públicos, que consolidavam
fissionais de ONGs confunde o papel de parcerias pontuais.
assessoria com o de representatividade. Um
papel que deveria ser exercido por militan- Ademais, a conjuntura de organização des-
tes feministas passa a ser desenvolvido por ses grupos marca a hegemonia ideológica
profissionais especializadas que fazem par- individualista e mercantilizada da ofensiva
te de equipes multiprofissionais, não neces- neoliberal, tida como “saída” à crise inicia-
sariamente compostas apenas por feminis- da nos anos 1970. Acerca desse cenário,
tas. Gurgel menciona que

A perspectiva da representatividade posta


[...] num contexto de descenso da organi-
por essa institucionalização pode, assim, zação popular e libertária, o feminismo
estabelecer um isolamento de ações (não dos anos de 1990 é marcado por um pro-
dialógico). Para Gurgel (2004), essa pers- cesso de transferência de campo de repre-
pectiva apresentava-se de forma problemá- sentação e tomada de decisão, sem, com
tica quanto ao reconhecimento da represen- isso se conseguir a construção de um cole-
tatividade múltipla e da contradição identi- tivo total, o qual atuasse com as diversas
tária das ONGs feministas. dimensões de opressão que marcam as
experiências das mulheres (GURGEL,
Tal contradição se estabelece entre os inte- 2004, p. 101).
resses de autodeterminação das mulheres e
as relações institucionais construídas medi- Esse cenário de institucionalização feminis-
ante financiamentos advindos de organis- ta construído por pactos baseados no “pos-
mos como o FMI, Banco Interamericano de sível” às conquistas do movimento e ao Es-
Desenvolvimento (BID) e Banco Mundial tado em sua intervenção, enfraquece o cará-
(GURGEL, 2014). ter subversivo do feminismo diante de um
sistema patriarcal-capitalista-racista, que é
Contraditoriamente, o processo de “on- operado pelas organizações estatais. Assim
guização” e de cooptação de lideranças como, perde de vista a diversidade de sujei-
feministas, por diversos governos, contri- tos que compõe a luta das mulheres, en-
buiu para que o feminismo reproduzisse quanto projeto de sociedade.
a força ideológica desse sistema, ao de-
senvolver novos centros de poder de de-
Em continuação, Gurgel (2004) reflete o fato
cisão, a partir das ONGs e dos espaços de
de que a autonomia assume, primeiro, o
conselhos, conferências e de negociação
direta com o governo (GURGEL, 2014, p.
nível de envolvimento do feminismo com o
69). contexto social em que se realiza e a sua
presença como movimento social e de

160
Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 152-166, jan./jun. 2015.
Lissa Crisnara Silva do NASCIMENTO

transformações culturais, entrelaçando-se ela engendra novas opções, por isso mesmo
com o reconhecimento da singularidade e em que ela provoca ruptura, decisão e no-
da opressão especifica ao grupo das mulhe- vos compromissos.”
res.
Como assumido pelas mulheres do Coleti-
Partido desses imperativos a noção de au- vo Autônomo Feminista Leila Diniz:
tonomia do Coletivo Autônomo Feminista
Leila Diniz parece ser lançada em seu Ma- A primeira reunião aconteceu logo após a
nifesto publicado em 2014: Marcha das Vadias de 2013, tratava-se de
reconhecer com solidariedade feminista e
Surgimos da queda para o alto do Coleti- deixar vivo um legado de luta. De uma
vo Leila Diniz. Processo que encerra a ins- luta que ainda pulsava forte o suficiente
titucionalidade e traz a tona o fazer arti- para não se entregar ao capataz burocráti-
vista desconcertante para o feminismo. co do estado, para não se permitir por
Ocupamos o espaço de luta feminista co- fim. E aceitamos ocupar esse lugar, resis-
letivizada, horizontalizada e autogestio- tir e imprimir com liberdade e autonomia
nada em natal, no país e no mundo para um novo rearranjo político (COLETIVO
transformá-lo (COLETIVO AUTÔNOMO AUTÔNOMO FEMINISTA LEILA DI-
FEMINISTA LEILA DINIZ, p. 1). NIZ, 2014, p. 1).

O Coletivo, assim, demarca a própria orga- Compreendendo a validade da proposta de


nização na sociedade, expressando-se como ação feminista exercida pelo Coletivo Leila
coletivo total, sob a leitura das diversas sin- Diniz enquanto ONG, o grupo, agora autô-
gularidades e sem hierarquização, compre- nomo, com novas militantes, composto por
endendo um processo de construção como novas experiências, constroe uma identida-
sujeito coletivo de uma unidade diversa de que lhe permite realizar o caráter coleti-
identitária. vo de sua representatividade.

O feminismo como coletivo total proporciona, É pensando criticamente a prática de hoje


portanto, a inclusão horizontalizada das de- ou de ontem que se pode melhorar a pró-
mandas específicas que compõem o sujeito xima prática. O próprio discurso teórico,
“mulheres”, tendo como princípio fundador a necessário à reflexão crítica, tem de ser tal
superação de sua reificação, apresentando his- modo concreto que quase se confunde
toricamente as mulheres em sua diversidade com a prática. O seu "distanciamento"
(GURGEL, 2011, p. 108). epistemológico da prática enquanto obje-
to de sua análise e maior comunicabilida-
de exercer em torno da superação da in-
A autonomia enquanto elemento para or-
genuidade pela rigorosidade (FREIRE,
ganização de mulheres implica assumir
1996, p. 22).
compromissos com a coletividade, com a
luta das mulheres, com o fim da opressão.
Para Freire (1996, p. 23), na construção da A carta do CLD e também o Manifesto do
autonomia “[...] a assunção se vai fazendo Coletivo Autônomo Leila Diniz expõem a
cada vez mais assunção na medida em que rigorosidade radical tomada pelo grupo
161
Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 152-166, jan./jun. 2015.
Feminismo e autonomia

diante de sua organização autônoma, dian- Pensar-se em relação ao mundo, como diz
te da necessidade de superação dos obstá- Paulo Freire (1996), e poder construir estra-
culos que a institucionalidade trouxe e di- tégias para a transformação prescindem o
ante das novas experiências que não apenas estranhamento, a negação, a rebeldia.
são somadas ao feminismo, mas o recons-
trói. Nessa perspectiva, elas proclamam: Somos todas descontentes e ávidas por li-
berdade e relações livres sem posse, nas
quais a família e casamento são institui-
E o mais importante, sabemos quem so- ções construídas como um espaço de tira-
mos: somos todas Leila Diniz. nia e controle masculino, uma estrutura
Queremos de nós mesmas viver um femi- opressora do patriarcado não nos prende
nismo orgânico e visceral, respaldado no mais, renegamos, pois somos mesmo des-
autoconhecimento e autotransformação. naturadas com aqueles que tentam nos
Onde o pessoal é político, rejeitando a se- prender e nos submeter (COLETIVO AU-
paração sexuada entre privado e público, TÔNOMO FEMINISTA LEILA DINIZ,
uma separação que coloca a dominação 2014, p. 2).
exercida sobre as mulheres ao abrigo da
crítica da autoridade arbitrária (COLETI-
VO AUTÔNOMO FEMINISTA LEILA Compreender-se sujeito e objeto nas con-
DINIZ, 2014, p. 1). tradições e antagonismo construídos em
uma sociabilidade que barbariza as relações
humanas, desvelando as abstrações dos
Nessa esteira, Gurgel (2004) discute que a sistemas de opressão e exploração, faz do
autonomia incorporada pelo feminismo se feminismo um projeto político de desafio
materializa na cidadania das mulheres, a pedagógico para a transformação.
qual não precisa ser recuperada, mas reali-
zada, inventada, criada e formulada. Logo, Assim, ser mulher configura-se como uma
a autonomia do sujeito feminista expõe o experiência compartilhada historicamente
seu projeto contra-hegemônico de socieda- com a multiplicidade de mulheres, ainda
de. que seja uma experiência singular para ca-
da uma. Ou seja, para Camurça (2007, p. 3),
Freire (1996), ainda na mesma perspectiva, as mulheres agem “[...] compartilhando
nos ajuda a compreender essa autonomia uma visão comum sobre a explicação de
como um novo projeto civilizatório, huma- sua própria condição e compartilhando
nista, emancipador. O projeto feminista formas de luta e articulação.”
(autônomo e libertário) seria pressuposto a
organização de grupos de mulheres, en- Nesse sentido, elas acabam por estabelecer
quanto projeto de sociedade, ações e estra- laços de sororidade, em suas dimensões
tégias de enfrentamento e resistência a toda prática, política e ética, na construção do
desigualdade de sexo/sexualidade, ‘raça’ sujeito feminista e de sua estratégia de fazer
/etnia e classe social sobre a vida das mu- luta e superar a reificação, construindo,
lheres. dessa forma, a autodesignação organizativa
das mulheres.

162
Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 152-166, jan./jun. 2015.
Lissa Crisnara Silva do NASCIMENTO

Nossa política é sem receitas, nossa forma O feminismo tem assim um papel revoluci-
de falar é nossa, não somos acadêmicas, onário, do qual a história dos homens e das
não renegamos os livros e seus aprendi- mulheres não pode prescindir, preenchen-
zados e encantamentos, contudo falamos do, formulando, inventando os espaços,
sobre eles conforme nossas vivências e
superando a opressão, os valores que o ex-
experiências de vida e luta cotidiana, isso
ploram e desumanizam-no, bem como os
é nossa referência para as nossas reivindi-
cações, direito à cidade, intervenção ur-
que o discriminam. Opressões e valores
bana, à existência plena e livre (COLETI- estes que criam divisões desiguais, catego-
VO AUTÔNOMO FEMINISTA LEILA rizações perversas e padronizadas que pou-
DINIZ, 2014, p. 2). co dizem da realidade.

Dessa forma, o movimento feminista tem


Nesse sentido, a autonomia organizativa
sido palco de novas expressões de luta, a
dispõe da dialogicidade entre as experiên-
luta das mulheres, no plural, na diversida-
cias e as tendências que apontam no hori-
de, na multiplicidade. O universo de mu-
zonte, compreendendo, conforme debatido
lheres, experiências e demandas, exige uma
por Freire (1996), a construção permanente
prática coerente, uma identidade unitária,
do sujeito, de suas relações e da própria
que se faz na autonomia enquanto elemento
história e constituindo a luta diversa por
ético.
uma nova sociedade, por novos valores.
Queremos construir um feminismo autô-
Queremos dar visibilidade pública à nomo, libertário, comprometido com a li-
opressão de gênero, raça e classe, trans- berdade, autonomia e reconhecimento da
formando o mundo pelo feminismo. Por subjetividade, rompendo com as amarras
um mundo sem ordem, sem opressão, neoliberais e com a opressão de gênero
sem dominação, sem controle, sem explo- estruturante da sociedade, sem repressão
ração, sem colonização, sem civilização. as escolhas individuais, rejeitando por
Por um mundo livre! (COLETIVO AU- completo qualquer expressão de mora-
TÔNOMO FEMINISTA LEILA DINIZ, lismo crítico setorial. Lutando com liber-
2014, p. 2). dade, de forma horizontalizada, autoges-
tionada e apartidária (COLETIVO AU-
TÔNOMO FEMINISTA LEILA DINIZ,
A autonomia organizativa permite-nos, 2014, p. 2).
ainda, alcançar patamares de realização da
liberdade, potencializando o fazer histórico A luta feminista, em tempos neoliberais,
humano de ser mais e estranhar, como disse pede por autonomia, em detrimento de
Freire (1996). Nesse sentido, “[...] é com ela, uma relação neoliberal com o Estado e o
a autonomia, penosamente construindo-se, grande capital, o qual condiciona as mulhe-
que a liberdade vai preenchendo o espaço res à escala mais alta de pobreza e miséria,
antes habitado por sua dependência. Sua de negação de direitos, submissão e exten-
autonomia que se funda na responsabilida- siva exploração-dominação.
de que vai sendo assumida” (FREIRE, 1996,
p. 58). A luta das mulheres pede pelo feminismo,
em seu elemento fundamental: a liberdade.
163
Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 152-166, jan./jun. 2015.
Feminismo e autonomia

Comprometida com a interseccionalidade para si, a qual deve estar centrada nas expe-
como horizonte político, por compreen- riências, na assunção, na dialogicidade, na
der que o feminismo não diz respeito ética, ou seja, em experiências respeitosas
apenas às mulheres, mas a toda forma de da liberdade.
opressão, dominação e controle. Enten-
demos que não existe hierarquia de
Destarte, compreendendo que nas relações
opressões, tanto a opressão de gênero,
quanto a de raça, etnia e classe devem ser
de opressão “[...] vislumbra-se a possibili-
combatidas (COLETIVO AUTÔNOMO dade de não apenas revoltar-se contra as
FEMINISTA LEILA DINIZ, 2014, p. 2). relações pré-determinadas, mas de alterá-
las” (IASI, 1999, p. 34), pensar essa dimen-
Como projeto social o feminismo expõe sua são dentro da hipótese das novas expres-
luta contra a opressão, tendo como análise sões do movimento de mulheres nos permi-
sua consubstancialidade, inscrita na reali- tirá conhecer melhor a realidade contempo-
dade das mulheres, nas mais diversas rela- rânea do movimento feminista.
ções e lugares do mundo. Saffioti (2004),
nessa linha de pensamento, discute a im-
Considerações finais
portância de cada relação estrutural e suas
contradições estarem enoveladas, fundidas,
Podemos, nesse momento, considerar que a
formando uma unidade de compreensão da
perda gradual de autonomia, sofrida pelo
ordem – que acaba por legitimar as relações
movimento feminista entre meados dos
capitalistas-patriarcais-racistas, assim como
anos de 1980 até os anos 2000, consequência
apontar um potencial de resistência e sub-
da relação de cooperação entre as ONGs
versão – a qual chamou de ‘nó analítico’.
feministas, o Estado e os organismos inter-
Daí surge o entendimento de que a perspec-
nacionais, é central aos rumos das lutas das
tiva de desmistificar a realidade vivida pe-
mulheres tomados no último período, em
las mulheres não pode se privar dessa uni-
específico no Brasil.
dade.
A profissionalização da militância, que se
Para tanto, é necessário um movimento de
afasta do ativismo; as amarras dos financi-
libertação das mulheres. Delphy, com base
amentos e editais, que esquartejam o proje-
nisso, diz que tal movimento “[...] deve se
to de transformação social; assim como a
preparar para uma luta revolucionária”
contraditória representatividade hierárqui-
(DELPHY, 2009 apud CISNE, 2013, p. 157).
ca exercida pelas ONGs, preocupadas em
Para a autora a luta revolucionária é radi-
ajustar seus projetos à exigência das agên-
cal, não se limita a reformas e desenvolvi-
cias de fomento, expressam descaminhos
mentismo, tendo em vista que a luta é pela
para a construção de um movimento que
derrocada/superação absoluta do patriar-
articule a diversidade das experiências vi-
cado.
vidas pelas mulheres e potencialize a uni-
dade enquanto sujeito político.
Paulo Freire (1996) nos possibilita a com-
preensão da autonomia com o processo do
Dessa forma, é necessário compreender a
vir a ser, enquanto amadurecimento do ser
transformação radical da sociedade e sua
164
Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 152-166, jan./jun. 2015.
Lissa Crisnara Silva do NASCIMENTO

imprescindível tomada da luta das mulhe- lar; Sempreviva Organização Feminina


res, auto-organizada, horizontalizada e au- (SOF), 2010.
todesignada. Secundarizar as particulari-
dades de opressão sofrida pelas mulheres, CAMURÇA, Silvia M. S. ‘Nós mulheres’ e
em específico pelas trabalhadoras e não- nossa experiência comum. Cadernos de
brancas, ou tomar categorias de análises Crítica Feminista, Recife: SOS Corpo, ano
“sexualmente cegas”6 para pensar projeto 1, n. 0, 2007.
revolucionário, não dá conta da superação
absoluta da dominação patriarcal-racista. COLETIVO LEILA DINIZ (CDL). Carta
para amigas/os e parceiras/os. Natal, 2013.
Assim, analisamos o atual processo organi-
zativo do Coletivo Autônomo Leila Diniz, CISNE, Mirla. Feminismo, luta de classes e
como uma tendência para o novo período, consciência militante feminista no Brasil.
compreendendo que a emergência dessa 2013. Tese (Doutorado em Serviço Social)-
autonomia é também indicadora do esgo- Programa de Pós-Graduação em Serviço
tamento do espaço político institucional das Social da Universidade do Estado do Rio de
ONGs enquanto espaços de correlações de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, 2013.
forças. Isso porque a tentativa de reinventar
espaços hegemônicos de dominação, apesar COLETIVO AUTÔNOMO FEMINISTA
das conquistas simbólicas na dimensão da LEILA DINIZ. Manifesto do coletivo autô-
emancipação política do sujeito mulher, não nomo feminista Leila Diniz. 5 ago. 2014.
propiciou as rupturas desejas contra o Disponível em:
“inimigo principal”7 – o patriarcado. <https://www.facebook.com/ColetivoLeila
Diniz/posts/706700192716777>. Acesso em:
Todavia, o fundamento da autonomia na 13 set. 2014.
organização de mulheres pauta-se em in-
ventar a cidadania das mulheres e construir COSTA, Ana Alice Alcantara. O movimen-
sua história, dando um novo olhar aos fa- to feminista no Brasil: dinâmicas de uma
tos, aos antagonismos, às contradições e às intervenção política. Revista Gênero, Nite-
desigualdades existentes nas relações entre rói, v. 5, n. 2, 2005.
os sexos, “raça”/etnia e classe social.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia:
Referências saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura).
ÁLVAREZ GONZALEZ, Ana Isabel. As
origens e a comemoração do dia internaci- GODINHO, Tatau. Democracia e política
onal das mulheres. Tradução de Alessan- no cotidiano das mulheres brasileiras. In: A
dra Ceregatti. São Paulo: Expressão Popu- mulher brasileira nos espaços público e
privado. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2004.
6Expressão de Heidi Hartman, citada por Souza-
Lobo (2010).
7Livro de Delphy, um marco na direção do
movimento feminista dos anos de 1960.
165
Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 152-166, jan./jun. 2015.
Feminismo e autonomia

GURGEL, Telma. Feminismos no Brasil resistência. São Paulo: Fundação Perseu


contemporâneo: apontamentos críticos e Abramo, 2010.
desafios organizativos. Revista Temporalis,
Brasília (DF), ano 14, n. 27, p. 57-76,
jan./jun. 2014.

GURGEL, Telma. O feminismo como sujei-


to coletivo total: a mediação da diversidade.
Cadernos de Crítica Feminista, Recife, ano
5, n. 4, dez. 2011.

GURGEL, Telma. Feminismo e luta de clas-


se: a auto-organização das mulheres pela
história. In: Caderno de debates: Consulta
Popular e Feminismo, n.1, 2009.

GURGEL, Telma. Feminismo e Liberdade.


Universidade e Sociedade, Brasília (DF),
ano 14, n. 43, p. 99-109, out. 2004.

IASI, Mauro Luís. Processo de consciência.


São Paulo: Centro de Documentação e Pes-
quisa Vergueiro, 1999.

NOVO JORNAL. Ato político e cultural


celebra 13 anos do Coletivo Leila Diniz. 31
jul. 2014. Disponível em:
<http://www.novojornal.jor.br/noticias/cult
ura/1233>. Acesso em: 13 set. 2014.

SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado e


violência. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2004. (Coleção Brasil Urgente).

SILVA, Carmen. Os sentidos da ação


educativa no feminismo. In: SILVA,
Carmen. (Org.). Experiência em pedagogia
feminista. Recife: SOS Corpo; Instituto
Feminista para a Democracia, 2010.

SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária


tem dois sexos: trabalho, dominação e

166
Argumentum, Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 152-166, jan./jun. 2015.

Você também pode gostar