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ARTIGO
Resumo: O feminismo concretiza sua construção teórica e prática no movimento feminista – primeira forma
de apresentação da mulher enquanto sujeito político – propondo um projeto de sociedade fundamentado na
liberdade e autonomia das mulheres. A noção de autonomia no feminismo logo se coloca enquanto teoria e
ação para a construção horizontal e autodesignada das mulheres no projeto de transformação social. Dessa
forma, analisamos as novas expressões do feminismo, tendo como pressuposto as novas organizações autô-
nomas de mulheres enquanto antíteses da institucionalização do movimento feminista. Buscou-se, através de
uma pesquisa documental referente ao Coletivo Autônomo Feminista Leila Diniz, da cidade de Natal (RN),
compreender a noção de autonomia no processo de organização de mulheres.
Palavras-chave: Feminismo. Autonomia. Organização de mulheres.
Abstract: Feminism realizes its theoretical and practical construction in the feminist movement - first
presentation of women as political subject - proposing a reasoned society project in the freedom and
autonomy of women. The notion of autonomy in feminism, therefore, arises as a theory and action to
landscape construction and self-appointed women in the project of social transformation. This, we analyze
the new expressions of feminism, with the assumption: the new autonomous organizations of women as
antitheses of the institutionalization of the feminist movement. Sought through a documentary research in
the 'Coletivo Autônomo Feminista Leila Diniz' Natal city (RN), understand the notion of autonomy in the
organization process of women.
Keywords: Feminism. Autonomy. Women organization.
1Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN, Brasil) e professora do
curso de Serviço Social pela Universidade Potiguar (UnP, Brasil). E-mail: <lissachrisnara@gmail.com>.
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A
o longo do tempo, a seguinte pre- autônomas enquanto sujeito político.
missa tem fundamentado o femi-
nismo: esse movimento, enquanto Para tanto, esse trabalho analisa as recentes
sujeito político das mulheres, desde sua expressões do feminismo, tendo como pres-
primeira expressão na França, em 1789, suposto as novas organizações de mulheres
afirma-se e deve ser considerado como “[...] enquanto antíteses (negação) da institucio-
elemento imprescindível, em qualquer pro- nalização do movimento feminista que se
cesso de transformação radical das relações deu nos anos de 1980, período no qual, se-
sociais” (GURGEL, 2009, p. 8). gundo Gurgel (2014), a noção de autonomia
atribuída ao feminismo deslocou-se da
Nessa perspectiva, as feministas questio- perspectiva de autodeterminação do mo-
nam e alertam para as demarcações do ho- vimento de mulheres para o terreno da ins-
mem enquanto sujeito universal, chamando titucionalidade das Organizações Não Go-
atenção para as problemáticas advindas vernamentais (ONGs).
dessa universalização, numa tentativa de
desmistificar a perspectiva de igualdade Em síntese, constituiu-se sujeito-objeto des-
diante das desigualdades entre homens e sa investigação o Coletivo Autônomo Fe-
mulheres nos espaços da vida social. minista Leila Diniz, formado por mulheres
de múltiplas identidades: anarquistas, mu-
Particularmente na América Latina, o femi- lheres vinculadas à Articulação Brasileira
nismo terá a participação ativa de mulheres de Mulheres (AMB) e jovens. O grupo or-
do campo popular atualizando demandas, ganizou-se autonomamente a partir do le-
na perspectiva de totalidade da vida social, gado da ONG Coletivo Leila Diniz, que há
e enriquecendo a organização e teoria femi- pouco deixou de existir enquanto institui-
nista com demandas da imediaticidade co- ção. Essas mulheres assumem uma identi-
tidiana, que se expressa, segundo Gurgel dade diversa e atuam, na cidade de Natal
(2009, p. 21), na “[...] extrema pauperização (RN), a partir de ações “artivistas” – termo
e invisibilidade política.” usado por elas, que faz menção a arte e ati-
vismo – contra culturais e, nacionalmente,
Ao tomar a noção de autonomia – expressa por meio de frentes feministas, como a
em uma organização sem hierarquias, pau- Frente Nacional Pela Descriminalização e
tada na horizontalidade da luta estratégica Legalização do Aborto.
–, o pensar e o fazer do feminismo se consti-
tui como aquele que parte da autodesigna- Logo, esse trabalho fundamenta-se por
ção das mulheres. meio de uma pesquisa documental feita
sobre o grupo feminista supracitado, na
Dessa forma, dialogaremos sobre o Coletivo qual foram discutidos três documentos re-
Autônomo Feminista Leila Diniz, de Natal ferentes ao grupo: a carta aos(às) “Ami-
(RN), a fim de compreender como se gos(as) e Parceiros(as)”, texto redigido pelo
estabelece a relação com o feminismo grupo ainda enquanto ONG; uma reporta-
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gem sobre o Coletivo Leila Diniz (ONG); e de direito ao trabalho encontrou resistência
o manifesto atual do grupo autônomo. diante dos próprios trabalhadores. O receio
de perder postos de trabalho para as mu-
1 Feminismo, história e teoria: a lheres e a reafirmação da hierarquia na fa-
emergência do feminismo autônomo mília, por meio dos valores de organização
da sociedade burguesa, legitimaram, na
A Revolução Francesa, ocorrida no final do época, a contraposição dos homens.
século XVIII, foi um marco histórico das
primeiras mobilizações e reinvindicações No entanto, Álvarez González (2010) expõe
por igualdade construídas por mulheres2. que as mulheres não se aquietaram a esse
Essas mulheres, então organizadas, entra- domínio patriarcal das organizações de es-
ram em resistência às relações de submis- querda, enquanto que Clara Zetkin – figura
são postas ao sexo e afirmaram que não alemã feminista e socialista de destaque
haveria igualdade enquanto a dualidade do internacional do século XIX – propunha o
público e do privado e, com isso, a desi- compromisso dos partidos socialista na luta
gualdade entre os sexos continuasse exis- pelo sufrágio universal feminino3.
tindo (GURGEL, 2009). Segundo a autora,
“[...] as mulheres realizaram ações radicais A perspectiva da aliança entre a luta de
de combate a sua exclusão da soberaneida- classes e a luta das mulheres, devido a au-
de popular, inaugurada com a sociedade todeterminação destas, deixava clara a
moderna que se propôs a eliminar todo tipo perspectiva de classe tomada pelo movi-
de desigualdade já que insurge com o lema mento de mulheres socialistas que, apesar
da igualdade, liberdade e fraternidade” (GUR- de reconhecerem as conquistas reais pauta-
GEL, 2009, p. 9, grifo da autora). Nesse sen- das pelas feministas burguesas, confronta-
tido, a legitimidade dessa resistência pau- vam as suas perspectivas de luta.
tava-se no questionamento aos domínios do
político, com sua negação à participação É nesse terreno que a noção de auto-
das mulheres, desnaturalizando-as da esfe- organização do feminismo ganha ampla
ra pública e de suas relações. Logo, suas discussão. Na medida em que pautar a li-
reivindicações se caracterizaram pela cen- berdade da mulher dentro de organizações
tralidade da luta pela igualdade.
3“A reivindicação pelo direito ao sufrágio mobilizou
A história do Movimento Feminista retrata as mulheres por sete décadas em diferentes países e
que, mesmo articuladas às organizações de regiões do mundo. De início, tanto nos Estados Uni-
dos quanto em alguns países da Europa, as sufragis-
esquerda, compromissadas com a classe e
tas tinham como estratégia a busca de apoio parla-
com a luta socialista, a bandeira feminista mentar a partir de uma ampla mobilização popular.
Assim, o movimento chegou a envolver milhões de
2Marcaremos nossa discussão sobre o feminismo a mulheres e realizou inúmeras ações de grande en-
partir da Revolução Francesa em virtude da vergadura social. Esta estratégia é abandonada nos
centralidade da luta pela igualdade, pautada pela inícios do século XX, quando parte das organizações
coletivização das mulheres tanto proletárias quanto sufragistas passam a adotar ações mais radicais e são
burguesas, em busca da afirmação política do sexo e duramente reprimidas pelo Estado, segundo Alves e
ainda para as mulheres da classe trabalhadora na Pitanguy (1991)” (GURGEL, 2009, p. 13).
transformação social.
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Os anos iniciais da década de 1990 foram O CLD foi fundado há 13 anos por um
caracterizados pela apresentação de uma grupo de mulheres que já atuavam no
considerável fragilidade dos organismos de movimento feminista nacional. A institui-
governo para com as mulheres, os quais em ção teve como missão contribuir para a
atendimento às determinações dos orga- democratização do Estado e da sociedade,
nismos internacionais (Banco Mundial e através da igualdade de gênero, com jus-
Fundo Monetário Internacional), intensifi- tiça social a partir de uma perspectiva
caram a mercantilização dos direitos e cor- feminista. Em seu nome fez homenagem à
atriz Leila Diniz, símbolo de liberdade se-
tes nos gastos sociais. Com isso, o bloqueio
xual, transgressão e emancipação da mu-
conservador dominante do Estado desacre-
lher. E teve como objetivo central fortale-
ditava do movimento feminista autônomo. cer a luta nos movimentos de mulheres e
feminista local, como o Fórum de Mulhe-
Todavia, Gurgel (2014) discute que, em fi- res do Rio Grande do Norte (NOVO
nais dos anos de 1990, a autonomia, en- JORNAL, 2014).
quanto elemento fundamental ao sujeito
político do feminismo, deslocou-se da
perspectiva de autodeterminação do mo- Logo, desde 2002 o CLD passou a construir
vimento de mulheres, em relação a partidos ações feministas junto ao Estado, especifi-
políticos, para a dimensão de instituciona- camente na cidade de Natal (RN). Refletin-
lidade das ONGs que se consolidavam. As do acerca da própria atuação, em uma carta
ações feministas, então, se condicionavam aos(às) Amigos(as) e Parceiros(as), enviada
intensamente aos ditames do Estado e dos no ano de 2013, o coletivo declara:
organismos financiadores de projetos soci-
ais. Ao longo desse período, firmamos parce-
rias na luta por uma sociedade mais justa
[...] essa transformação contribuiu para a e nos tornamos uma referência ao cons-
profissionalização de militantes que se
distanciam cada vez mais de uma atuação 4 Em termos gramaticais, tomaremos a discussão
na base social, ao assumirem um fazer po- quanto a esse grupo no plural, a partir do
pressuposto de que nele se constituem politicamente
lítica que reproduz as esferas de hierar-
diversos coletivos internos, expressos por diversas
quização e centralidade decisórias, fenô-
demandas, experiências, estratégias de ações e
menos cuja negação é um dos fundamen- identidades.
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truir uma força política na cidade de Na- Portanto, não são tantos os editais que
tal pautado em projetos e ações contracul- atendem ao nosso perfil institucional e,
turais, na intervenção na agenda pública, dentre estes, nos preocupamos em seleci-
na formação de lideranças de base e no onar apenas os que estejam de acordo
enfrentamento das lutas cotidianas na com nosso projeto político institucional.
busca por melhores condições de vida pa- Na concorrência em editais que provêm
ra as mulheres natalenses (COLETIVO de recursos públicos, também enfrenta-
LEILA DINIZ, 2013). mos dificuldade de acesso, pois, o sistema
de convênios estabelecido pelo governo
federal coloca as organizações governa-
Essa carta teve como temática central a mentais no mesmo patamar de disputa
transição organizativa pela qual o grupo por recursos com outras organizações da
precisaria passar, saindo da estrutura de sociedade e até mesmo com as prefeituras
ONG para a de organização autônoma. As (COLETIVO LEILA DINIZ, 2013).
dificuldades com o financiamento das ações
se tornou algo incontornável, acerca dessa Se expressa nessa forma de fazer a luta con-
condição, o Coletivo Leila Diniz, como se- tra a opressão sofrida pelas mulheres o que
gue relatando a carta, Gurgel (2014) discute enquanto nível de
dependência financeira e exigência burocrá-
tica diante da profissionalização de militan-
[...] apesar da reconhecida trajetória, [...]
tem enfrentado dificuldades para manter
tes. Segundo a autora, a liberdade na cons-
as suas atividades. Desde a nossa criação, trução de estratégias, compreendendo o
a mobilização de recursos para a nossa movimento feminista enquanto sujeito polí-
sustentabilidade advém da aprovação de tico, perde em amplitude e efetividade.
projetos em editais públicos. Com a eco-
nomia do país fortalecida, os convênios
Esta situação nos fez refletir, durante os
com agências de cooperação internacio-
últimos três anos, a respeito de como se-
nais vêm diminuindo, comprometendo a
guir existindo, dado o peso de uma orga-
sustentabilidade das organizações não
nização não governamental, em que suas
governamentais. Esse reflexo é sentido
militantes também são profissionais e seu
principalmente em organizações que tem
trabalho teria que ser remunerado. Não
sua atuação voltada para a formação poli-
temos mais como nos manter nesse for-
tica, educação, acesso aos direitos huma-
mato, mas, feministas e militantes que
nos, cultura e fortalecimento dos movi-
somos, em função de nossa opção de
mentos sociais, como é o nosso caso (CO-
transformar o mundo pelo feminismo,
LETIVO LEILA DINIZ, 2013).
decidimos encerrar o CNPJ do Coletivo
Leila Diniz, ou seja, concluímos aqui a vi-
A realidade do CLD apresenta os dilemas da do Coletivo Leila Diniz como uma
postos à institucionalização do movimento ONG e renasceremos como um grupo de
feminista, tendo em vista as amarras políti- militância (COLETIVO LEILA DINIZ,
2013).
cas das ações sob o controle do Estado, as-
sim como os interesses divergentes nessa
Esse direcionamento político, expresso no
relação neoliberal de concorrência. Como
documento, reforça a nossa hipótese de que
demonstram na supracitada carta:
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agir, o que todas nós sabemos que é um zado não rompe com as estratégias de do-
permanente desafio (SILVA, 2010, p.12). minação de sexo, “raça”/etnia e classe soci-
al. Dessa forma, o elemento autonomia, pa-
Portanto, partindo dessa abordagem, quan- ra o sujeito do feminismo, exige a supera-
to à importância para o movimento feminis- ção desses espaços hegemônicos.
ta da organização autônoma de mulheres e
da diversidade do feminismo no Brasil, é Ao longo do tempo, a noção de autono-
indispensável para a análise aqui proposta mia, para o feminismo, passou por impor-
construir uma investigação que leve a apre- tantes ressignificações, chegando a desfi-
ender a dinâmica dos grupos de mulheres gurar-se no enfrentamento com a questão
inscritos na atual sociabilidade e dinâmica do Estado. Sua abordagem deve levar em
da noção de autonomia para o Movimento consideração pelo menos três aspectos: a
noção de liberdade, o reconhecimento da
Feminista.
opressão e a ação coletiva das mulheres,
como elementos que conferem um nexo
2 A noção de autonomia: contingências interno as variadas dimensões ontológicas
organizativas às mulheres de Natal (RN) dos sujeitos de ação da práxis feminista
(GURGEL, 2004, p. 100).
A autonomia que o feminismo prescinde ao
se fazer sujeito será tomada aqui a partir de
análises de sua dinamicidade na trajetória Pensar e fazer o feminismo estabelece um
do movimento feminista. Gurgel (2004), direcionamento de luta que, partindo da
nessa direção, relata que no interior dos autodesignação das mulheres, irá conferir
movimentos sociais e libertários a autono- estratégias e táticas construídas na validade
mia tem sido enfrentada à medida que poli- do velho e na aceitação crítica do novo. Na
ticamente se relativiza, consequência da discussão de Freire (1996), pensar certo es-
quase absoluta burocratização das lutas taria, nesse sentido, orientado à disponibi-
adequadas ao sistema de dominação. Isso lidade ao risco de acolhimento crítico do
porque a autonomia discutida por Paulo novo e a perseverança de uma tradição que
Freire, fundada numa leitura marxiana de no tempo continua nova.
análise da realidade, aponta homens e mu-
lheres como seres sociais, sócio-histórico, A trajetória feminista pelo elemento da au-
“[...] capazes de comparar, de valorar, de tonomia expõe os conflitos desse “novo e
intervir, de escolher, de decidir, de romper” velho” na dinâmica de um movimento so-
(FREIRE, 1996, p.18), logo, de superar a cial recente. Compreendendo as mudanças
dominação. A autonomia pressupõe, assim, inerentes às décadas de 1980 e 1990 para o
reconhecer-se no mundo, na coletividade e feminismo brasileiro, no que condiz a sua
na radicalidade do eu. aproximação com o Estado, Gurgel (2014)
trás ao debate da noção de autonomia as
Para o feminismo, a institucionalização jun- críticas do feminismo à “onguização”.
to ao Estado obstaculiza esse complexo de
capacidades autônomas. Não desconside- Em um primeiro momento, Gurgel (2014)
rando as mudanças conquistadas, fato é que aponta que o movimento feminista sofreu
esse feminismo estatalmente institucionali- uma transformação em sua identidade a
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transformações culturais, entrelaçando-se ela engendra novas opções, por isso mesmo
com o reconhecimento da singularidade e em que ela provoca ruptura, decisão e no-
da opressão especifica ao grupo das mulhe- vos compromissos.”
res.
Como assumido pelas mulheres do Coleti-
Partido desses imperativos a noção de au- vo Autônomo Feminista Leila Diniz:
tonomia do Coletivo Autônomo Feminista
Leila Diniz parece ser lançada em seu Ma- A primeira reunião aconteceu logo após a
nifesto publicado em 2014: Marcha das Vadias de 2013, tratava-se de
reconhecer com solidariedade feminista e
Surgimos da queda para o alto do Coleti- deixar vivo um legado de luta. De uma
vo Leila Diniz. Processo que encerra a ins- luta que ainda pulsava forte o suficiente
titucionalidade e traz a tona o fazer arti- para não se entregar ao capataz burocráti-
vista desconcertante para o feminismo. co do estado, para não se permitir por
Ocupamos o espaço de luta feminista co- fim. E aceitamos ocupar esse lugar, resis-
letivizada, horizontalizada e autogestio- tir e imprimir com liberdade e autonomia
nada em natal, no país e no mundo para um novo rearranjo político (COLETIVO
transformá-lo (COLETIVO AUTÔNOMO AUTÔNOMO FEMINISTA LEILA DI-
FEMINISTA LEILA DINIZ, p. 1). NIZ, 2014, p. 1).
diante de sua organização autônoma, dian- Pensar-se em relação ao mundo, como diz
te da necessidade de superação dos obstá- Paulo Freire (1996), e poder construir estra-
culos que a institucionalidade trouxe e di- tégias para a transformação prescindem o
ante das novas experiências que não apenas estranhamento, a negação, a rebeldia.
são somadas ao feminismo, mas o recons-
trói. Nessa perspectiva, elas proclamam: Somos todas descontentes e ávidas por li-
berdade e relações livres sem posse, nas
quais a família e casamento são institui-
E o mais importante, sabemos quem so- ções construídas como um espaço de tira-
mos: somos todas Leila Diniz. nia e controle masculino, uma estrutura
Queremos de nós mesmas viver um femi- opressora do patriarcado não nos prende
nismo orgânico e visceral, respaldado no mais, renegamos, pois somos mesmo des-
autoconhecimento e autotransformação. naturadas com aqueles que tentam nos
Onde o pessoal é político, rejeitando a se- prender e nos submeter (COLETIVO AU-
paração sexuada entre privado e público, TÔNOMO FEMINISTA LEILA DINIZ,
uma separação que coloca a dominação 2014, p. 2).
exercida sobre as mulheres ao abrigo da
crítica da autoridade arbitrária (COLETI-
VO AUTÔNOMO FEMINISTA LEILA Compreender-se sujeito e objeto nas con-
DINIZ, 2014, p. 1). tradições e antagonismo construídos em
uma sociabilidade que barbariza as relações
humanas, desvelando as abstrações dos
Nessa esteira, Gurgel (2004) discute que a sistemas de opressão e exploração, faz do
autonomia incorporada pelo feminismo se feminismo um projeto político de desafio
materializa na cidadania das mulheres, a pedagógico para a transformação.
qual não precisa ser recuperada, mas reali-
zada, inventada, criada e formulada. Logo, Assim, ser mulher configura-se como uma
a autonomia do sujeito feminista expõe o experiência compartilhada historicamente
seu projeto contra-hegemônico de socieda- com a multiplicidade de mulheres, ainda
de. que seja uma experiência singular para ca-
da uma. Ou seja, para Camurça (2007, p. 3),
Freire (1996), ainda na mesma perspectiva, as mulheres agem “[...] compartilhando
nos ajuda a compreender essa autonomia uma visão comum sobre a explicação de
como um novo projeto civilizatório, huma- sua própria condição e compartilhando
nista, emancipador. O projeto feminista formas de luta e articulação.”
(autônomo e libertário) seria pressuposto a
organização de grupos de mulheres, en- Nesse sentido, elas acabam por estabelecer
quanto projeto de sociedade, ações e estra- laços de sororidade, em suas dimensões
tégias de enfrentamento e resistência a toda prática, política e ética, na construção do
desigualdade de sexo/sexualidade, ‘raça’ sujeito feminista e de sua estratégia de fazer
/etnia e classe social sobre a vida das mu- luta e superar a reificação, construindo,
lheres. dessa forma, a autodesignação organizativa
das mulheres.
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Nossa política é sem receitas, nossa forma O feminismo tem assim um papel revoluci-
de falar é nossa, não somos acadêmicas, onário, do qual a história dos homens e das
não renegamos os livros e seus aprendi- mulheres não pode prescindir, preenchen-
zados e encantamentos, contudo falamos do, formulando, inventando os espaços,
sobre eles conforme nossas vivências e
superando a opressão, os valores que o ex-
experiências de vida e luta cotidiana, isso
ploram e desumanizam-no, bem como os
é nossa referência para as nossas reivindi-
cações, direito à cidade, intervenção ur-
que o discriminam. Opressões e valores
bana, à existência plena e livre (COLETI- estes que criam divisões desiguais, catego-
VO AUTÔNOMO FEMINISTA LEILA rizações perversas e padronizadas que pou-
DINIZ, 2014, p. 2). co dizem da realidade.
Comprometida com a interseccionalidade para si, a qual deve estar centrada nas expe-
como horizonte político, por compreen- riências, na assunção, na dialogicidade, na
der que o feminismo não diz respeito ética, ou seja, em experiências respeitosas
apenas às mulheres, mas a toda forma de da liberdade.
opressão, dominação e controle. Enten-
demos que não existe hierarquia de
Destarte, compreendendo que nas relações
opressões, tanto a opressão de gênero,
quanto a de raça, etnia e classe devem ser
de opressão “[...] vislumbra-se a possibili-
combatidas (COLETIVO AUTÔNOMO dade de não apenas revoltar-se contra as
FEMINISTA LEILA DINIZ, 2014, p. 2). relações pré-determinadas, mas de alterá-
las” (IASI, 1999, p. 34), pensar essa dimen-
Como projeto social o feminismo expõe sua são dentro da hipótese das novas expres-
luta contra a opressão, tendo como análise sões do movimento de mulheres nos permi-
sua consubstancialidade, inscrita na reali- tirá conhecer melhor a realidade contempo-
dade das mulheres, nas mais diversas rela- rânea do movimento feminista.
ções e lugares do mundo. Saffioti (2004),
nessa linha de pensamento, discute a im-
Considerações finais
portância de cada relação estrutural e suas
contradições estarem enoveladas, fundidas,
Podemos, nesse momento, considerar que a
formando uma unidade de compreensão da
perda gradual de autonomia, sofrida pelo
ordem – que acaba por legitimar as relações
movimento feminista entre meados dos
capitalistas-patriarcais-racistas, assim como
anos de 1980 até os anos 2000, consequência
apontar um potencial de resistência e sub-
da relação de cooperação entre as ONGs
versão – a qual chamou de ‘nó analítico’.
feministas, o Estado e os organismos inter-
Daí surge o entendimento de que a perspec-
nacionais, é central aos rumos das lutas das
tiva de desmistificar a realidade vivida pe-
mulheres tomados no último período, em
las mulheres não pode se privar dessa uni-
específico no Brasil.
dade.
A profissionalização da militância, que se
Para tanto, é necessário um movimento de
afasta do ativismo; as amarras dos financi-
libertação das mulheres. Delphy, com base
amentos e editais, que esquartejam o proje-
nisso, diz que tal movimento “[...] deve se
to de transformação social; assim como a
preparar para uma luta revolucionária”
contraditória representatividade hierárqui-
(DELPHY, 2009 apud CISNE, 2013, p. 157).
ca exercida pelas ONGs, preocupadas em
Para a autora a luta revolucionária é radi-
ajustar seus projetos à exigência das agên-
cal, não se limita a reformas e desenvolvi-
cias de fomento, expressam descaminhos
mentismo, tendo em vista que a luta é pela
para a construção de um movimento que
derrocada/superação absoluta do patriar-
articule a diversidade das experiências vi-
cado.
vidas pelas mulheres e potencialize a uni-
dade enquanto sujeito político.
Paulo Freire (1996) nos possibilita a com-
preensão da autonomia com o processo do
Dessa forma, é necessário compreender a
vir a ser, enquanto amadurecimento do ser
transformação radical da sociedade e sua
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