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Comunicação e infância: o papel da imprensa na garantia dos direitos de crianças e adolescentes

Crianças como matéria jornalística

Cristina Ponte

Em 1976, dois investigadores norte- pesquisa de Anura Goonasakera (2001) que


americanos, Everette Dennis e Michael Sadoff envolveu 13 países (Bangladesh, China,
davam conta na revista Journalism Quarterly da Filipinas, Índia, Indonésia, Japão, Malásia,
quase ausência de cobertura de situações de Nepal, Paquistão, Singapura, Srilanka, Tailândia
vida das crinaças pelos media noticiosos do e Vietname).
país, tanto mais significativa quanto coincidia Iniciamos o comentário destas
com um interesse pela infância, no pós-guerra, transformações pelos Estados Unidos, dada a
em frentes como a educação e a assistência. influência que têm fora das suas fronteiras.
Em breve esta situação alterar-se-ia, neste e Procuramos entender o fenómeno crescente
noutros países, com o agendamento de notícias desta noticiabilidade a partir da própria
envolvendo crianças como nova prioridade nas realidade do país e do seu jornalismo nas
redações, a partir dos anos 80, e que se últimas duas décadas. Daí vamos ao encontro d
intensificaria na década seguinte. como jornalistas de diversos países encaram a
Três anos depois daquele artigo, em crianças e a infância enquanto potencial
1979, Ana Internacional da Criança, consagrava noticioso e em que medida consideram que o
a criança universal e em 1989 era aprovada a jornalismo deve ter um papel social de
Convenção dos Direitos da Criança, pelas compromisso com a lei aprovada pelas Nações
Nações Unidas. Importantes foram os Unidas, e com as crianças de cada país e do
compromissos decorrentes da sua rectificação, mundo.
a produção de diagnósticos sobre a situação da
infância no país subscritor, a identificação de O kidsbeat no jornalismo norte-
problemas e a apresentação de relatórios americano
sujeitos a avaliação de uma Comissão Para entender o fenómeno do kidsbeat
Internacional. (“espaço sobre miúdos”) nas redacções norte-
Esta “viragem para a infância” fez-se americanas, temos em conta a situação da
sentir em instâncias de pressão, que infância e dos media no país. Como em todo o
procuraram influenciar a cobertura jornalística mundo, também nos Estados Unidos não existe
sobre crianças e infância de acordo com o texto “uma” mas sim muitas infâncias. São
da Convenção das Nações Unidas.A influência é relevantes a diversidade da de minorias
notória nas acções promovidas pela Unicef¹, étnicas, as características da intervenção
pela Federação Internacional de Jornalistas pública do estado federal e a autonomia
(FIJ), por organizações não-governamentais legislativa que em matérias de educação,
com destaque para a Childwatch ou a Save the assistência ou direito penal têm os vários
Children, ou a brasileira Agência de Notícias estados federados.
dos Direitos da Infância (ANDI). A história recente do país dá conta deste
Mas este agendamento é também filtrado panorama social e de mudanças a partir do
pelas condições de produção da notícia e isso pós-guerra, nomeadamente nas batalhas pelos
verifica-se tanto na situação do jornalismo direitos cívicos, nas décadas de 50 e 60, e no
norte-americano nos anos 90 e no seu esforço, sobretudo nos finais da década de 60 e
kidsbeat, como nas justificações dos critérios na década seguinte, em prol de sistemas
de noticiabilidade de jornalistas asiáticos, na facilitadores da integração social de crianças de
minorias étnicas, nomeadamente por anos 70. Para o projeto Censored News – que
programas de compensação educativa e de confronta o que é divulgado por agências
assistência pública. Nos anos 60 e 70, a públicas, em relatórios ou Conferências ou
educação e a assistência foram marcadas por acontecimentos de particular relevância, com a
discursos engajados socialmente, que cobertura (ou silêncio) que suscitam nos media
impulsionaram a sua democratização e norte-americanos – a escassa visibilidade desse
alargamento das possibilidades de acesso e de relatório das Nações Unidas justifica que tenha
sucesso de crianças socialmente sido colocado no topo das “histórias
desfavorecidas. Deste movimento é apanágio a censuradas” desse ano (Jensen, 1997).
produção televisiva de programas como O crescente investimento afectivo na
Sesame Street, orientado como contributo infância, por outro lado, é também insuficiente
curricular para o público em idade pré-escolar para explicar o desmesurado interesse que
de camadas sociais desfavorecidas notícias sobre crianças passaram a ter a partir
(v.Brederode-Santos, 1991; Ponte, 1998). dos anos 80, intensificando-se nos anos 90.
Apesar deste esforço, a situação das No pólo dos media, há que ter presente
crianças no país continua pejada de as transferências econômicas, sociais e
contradições, agravadas a partir dos anos 80 políticas (liberalização, aumento da
por um clima de desregulamentação e de concorrência e intensificação das lógicas de
liberalização em vários sectores. A idéia do mercado) a partir dos naos 80. No jornalismo
mercado como regulador acompanhou o acentua-se a vertente comercial, que se vai
declínio da concepção da educação como parte substituir ao ideário da “responsabilidade social
integrante da responsabilidade pública e da da imprensa”, esta associada a preocupações
comunidade, passando a ser estimulada a com o controlo e a concentração dos media,
constituição de parcerias entre escolas e com receios de exclusão de perspectivas
empresas.Tal teve conseqüências na definição políticas contrárias e de que a comercialização
de currículos e de espaço escolar e na criança ofusque uma cobertura responsável.
aluno como mercadoria, como assinala Henry A orientação do jornalismo para o
Giroux. A responsabilidade social da mercado não nasce nesta altura mas aqui se
comunidade neste e noutros sectores potencia no conceito de “jornal total” (Hallin,
transferia-se para a responsabilidade privada 1996). Nete modelo, a circulação, vendas e os
das empresas e dos seus interesses, bem como esforços editoriais combinam-se num projecto
das famílias e dos seus orçamentos. de marketing-news-information: peças curtas,
Cortes orçamentais e redução de cores e grafismo atraente, novas agendas,
investimentos públicos na educação e nos peças sobre estilos de vida e informações
serviços de assistência tiveram resultados utilitárias. A procura de leitores em nova
particularmente graves na situação de milhões camada de público (nomeadamente feminino)
de crianças de famílias com menos acompanha a pressão de distribuidores, na
recursos.Cerca de 20 milhões (20,5% das gestão dos jornais e seus temas.
crianças norte-americanas) viviam nos anos 90 Nota Daniel Hallin que vários fatores
em situação de pobreza, mais de 6,8 milhões tinham quebrado velhos consensos político-
sem casa própria e muitas sem acesso a sociais nos Estados Unidos e com eles a
assistência pública, cenário que coloca o país credibilidade de um “jornalismo objectivo”. A
na cauda dos serviços de apoio à família entre juntar a factores externos, ocorreram
os países desenvolvidos (Giroux, 2000,p.22). transformações internas nas redacções, com a
No mesmo sentido ia um relatório das feminização e outras minorias, agora mais
Nações Unidas sobre a Infância, de 1993, presentes.Neste cenário de comercialização a
quase sem referência nos media norte- que se juntavam novas sensibilidades sobre o
americanos. O documento apontava os Estados trabalho mediador do jornalista, Hallin sublinha
Unidos como o país industrializado com maior possíveis traços positivos, como uma maior
percentagem de assassinatos de crianças e aproximação dos jornais aos leitores comuns,
jovens (nove em cada 10 mortes) e onde a saindo da esfera estreita das elites.
percentagem de crianças pobres mais que Não dissociada deste cenário, é também
duplicava a de outros países desenvolvidos, nos Estados Unidos que se afirma a corrente do
tendência que se vinha a acentuar desde os jornalismo cívico. Reivindicando a tradição de
comunitarismo na sociedade norte-americana, media noticiosos norte-americanos, observa
um dos seus ideólogos, Jay Rosen (1993), também Susan Moeller (2002). Uma das
extrapola o ideal de intervenção cívica dos mudanças decorre do declínio da imagem da
intelectuais do registro da “denúncia dos fatos” mulher como ser desprotegido, na seqüência
para um tónica na acção do jornalista no dos movimentos feministas da década de 70.
próprio fazer da democracia, “algo que temos As mulheres teriam sido então substituídas
que criar, que re-inventar, de re-imaginar”. pelas crianças como ícones da inocência e da
Designa como jornalismo cívico “uma teoria e pureza. Outras mudanças foram a orientação
uma prática que reconhece a suprema do jornalismo cívico nas redações dos media,
importância que tem o melhorar a vida criando a idéia da criança em risco; os
pública”, caracterizando os jornalistas como imperativos financeiros das instituições
“pessoas que fazem coisas” mais do que mediáticas, procurando alargar a circulação a
“pessoas que descobrem coisas: histórias, novos leitores, neste caso leitoras,
factos, notícias”. O jornalismo cívico reivindica supostamente interessadas nas crianças e em
assim uma activação da vida da comunidade suas questões; a geração baby boomer, agora
local. A definição da “agenda pública” é feita adultos e progenitores que chegava às
com base na auscultação de grupos locais, redacções atraídos por histórias que
como contraponto às agendas oficiais. O envolvessem os seus problemas. Moeller
jornalismo apresenta-se como “uma das mais combina esses aspectos com mudanças na geo-
importantes artes da democracia” cujo estratégica política da última década, quando
“objectivo final não é fazer notícias, reputações escreve (2002, pp.38-39, destaque seus):
ou manchetes mas simplesmente fazer a Na última década, as crianças tornaram-
democracia funcionar”, nas palavras de Rosen se a referência moral.Tornaram-se um motivo
(pp.149-150). para a acção, após o desaparecimento da força
Estas são premissas que outro sociólogo ideológica de conceitos abstractos como
norte-americano Michael Schudson (1998) “democracia” ou “liberdade” com o
questiona quando destaca a diferença entre o desmembramento da União Soviética. Em 1990
conceito d comunidade assente no território e vimos um mundo claramente dividido enre
as comunidades de recursos contemporâneas, “nós” e “eles”; o desaparecimento do bloco
quando alerta como o desenho de uma soviético liberou os americanos da gíria do
oposição entre comunidade e governo pode “Império do Mal”. Mas o final da Guerra Fria
reforçar um cinismo sobre as formas de deixou um vazio. Com quem nos devemos
governação ou quando assinala a diferença agora identificar?
entre “vida pública” e “comunidade de O aumento global de conflitos internos,
cidadãos” pertencentes, por sua vez, a várias religiosos e tribais na ultima década sublinhou
comunidades de identificação pessoal. Quem os constrangimentos do poder norte-americano
continua a decidir o que é notícia são os ao mesmo tempo que se esfumava o dever
jornalistas, sublinha Schudson, fazendo notar ideológico de “salvar a democracia no mundo”.
nesta corrente a ausência de reivindicação de Então, mais do que abandonar esse patamar
que o governo apoie as organizações noticiosas moral, assistimos a uma revisão, a uma
no alargamento da diversidade de pontos de redução desse programa. A doutrina de que os
vista ou a existência de instituições noticiosas Estados Unidos deveriam salvar o mundo
não lucrativas. (digamos, do comunismo) deu lugar de que os
Estas linhas são centrais para entender americanos deveriam salvar as crianças da
porque é que nos anos 80 cresceu o interesse fome ou de maus tratos. Tornou-se necessária
dos media noticiosos norte-americanos pela uma nova gramática ou sintaxe da discussão
cobertura de temas relacionados com a infância pública, para acompanhar esse objectivos
e famílias, que se acentuaria na década diplomáticos, orientações ou objectivos
seguinte. Como iremos ver, esse alargamento programáticos, e as crianças tornaram-se parte
da cobertura não se terá operado no sentido de dessa linguagem.A sua invocação confere calor
matéria pública mas como potenciação de a um argumento favorável (ou desfavorável) a
sentidos mais individuais e privados. uma medida pública e sustenta a orientação
É recente o uso de imagens de crianças moral do debate.
em matérias nacionais e internacionais nos
E acrescenta outros argumentos quotidiana, nomeadamente nos seus papéis
simbólicos para o crescente uso da criança nos como pais , como a escola, o lar, a família e
discursos de políticos e dos media norte- foram dadas condições para esse tratamento.
americanos: Exemplo deste investimento na revista Time é
Falar sobre crianças não é apenas falar narrado pela jornalista Melissa Ludtke, que
sobre crianças em sentido literal. Elas são uma refere os quatro meses que dispôs para fazer
sinédoque sobre o futuro do país, o bem estar uma reportagem sobre crianças. Passar muito
político e social de uma cultura. As histórias tempo com elas foi a sua premissa, encara-las
sobre crianças são sentimentais. Recorrem aos como as melhores testemunhas sobre o que era
mesmos ganchos emocionais que os filmes crescer na América. Cinco crianças, de
melodramáticos. Levam o adultos a agir. (...) A diferentes idades e contextos econômicos e
imagem de uma criança em perigo é um “isco” étnicos, foram o seu guia num território então
perfeito. É tão forte que impede o pensamento pouco explorado. O resultado foi tema de capa:
racional. As crianças acentuam a dramaticidade Through the Eyes of Children: Growing Up in
de uma causa ao ser contrastada a sua America Today, na edição de 8 de agosto de
inocência a malevolência (ou talvez apenas a 1988.
banal hostilidade) de adultos com poder. Por O balanço dos primeiros anos desta
fim, o foco nas crianças serve uma função perspectiva integrada de notícias reunindo
logística. Uma vez que há crianças em todo o educação, justiça, saúde, cultura e assistência
mundo, estão sempre disponíveis, e depressa, à criança foi assim marcado por factores de
para servirem de cabide noticioso. ordem organizacional e de mercado. A
Documentos do Casey Journalism Centre institucionalização do tema nas redacções
on Children and Families (CJCCF,2001), centro seguiu duas linhas: a cobertura de temas de
de investigação da Universidade de Maryland proximidade com os leitores e um “jornalismo
pioneiro na atenção a esta cobertura, de cruzada”.
sublinham a infância como questão social com Quanto à primeira, a cobertura incidia em
impacto no futuro do país “enquanto nação temas favorecedores da integração social
competitiva”, numa sugestão da criança (religião, educação, saúde e bem-estar,
nacional e capital humano. Acrescentam a sua questões familiares) por equipas constituídas
dimensão demográfica e o declínio do bem- por jornalistas mulheres e envolvendo as suas
estar das crianças norte-americanas, com famílias. Jornais como o Washington Post e
problemas subjacentes como gravidez New York Times introduziram nos anos 90
adolescente, maus tratos e negligência, baixa secções sobre essas matérias. Temas como a
de nível na educação e aumento do crime custódia de crianças em famílias divorciadas ou
violento entre jovens, numa listagem onde está os serviços de guarda tornaram-se matérias
ausente a dimensão económica. jornalísticas, sustentados por estudos de
O crescimento desta atenção por parte opinião que indicavam que as pessoas queriam
dos media é justificado por razões de ordem esses temas tratados como notícia. A
política, financeira e social. No início dos anos “significância do tópico para os leitores” e o “ir
90, a militância nessa área da então primeira- ao encontro do que os leitores desejam” são
dama, Hillary Clinton, influenciou as agendas argumentos repetidos por editores. A procura
política e pública em torno da preocupação de novos nichos de audiência corresponde
nacional com o bem-estar das crianças e a também a uma aproximação dos jornais ao
ênfase no envolvimento da comunidade. modelo das revistas semanais.
Por seu lado, ganharam relevo os estudos Neste jornalismo de proximidade que
de mercado sobre interesses dos leitores, a convoca vivências do quotidiano de classe
necessidade de alargar o mercado feminino de média para as apresentar como notícia, a
leitores e audiências, isto num momento de noticiabilidade da infância é definida a partir do
perda de influência geral da imprensa. Estudos olhar dos pais e de outras vozes de autoridade,
de opinião indicavam a existência de um como profissionais de educação, especialistas,
“interesse” por crianças por parte dos leitores líderes das comunidades a nível social,
adultos, baseados não em notícias no seu econômico ou espiritual. Nas palavras críticas
sentido clássico mas em boas notícias sobre de um professor do programa Children in the
campos de proximidade com a sua vivência
News da Universidade de Columbia, Samuel divulgação, propunham-se a apresentar
Freedman (1996): respostas e sugestões de resolução.
As questões das crianças estão a ser mais São exemplos de jornalismo de cruzada,
cobertas e também de um modo diferente. nas campanhas de 1993: Killing our Children e
Vivemos num clima político em que questões Saving our Children in the Shadows, do New
sociais são tratadas como problemas da classe York Times, com grandes recursos humanos.
média, de maneira a chamar a atenção. Os jornais afirmaram-se como órgãos de
Estamos a entrar num processo em que um pressão pública sobre políticas, em particular
problema ou tensão na família (por exemplo, o no domínio da segurança. A ilustrar esta
equilíbrio entre a profissão e o cuidar das espectacularidade, a campanha do Chicago
crianças) é apresentado como equivalente aos Tribune, Killing our children, mobilizou 75
problemas de milhões de miúdos que crescem jornalistas, 35 fotógrafos e artistas gráficos,
nas zonas pobres, onde o conceito de infância numa série de reportagens sobre crianças
está ausente. Os jornalistas sentem que para menores de 15 anos vítimas de violência
chamar a atenção para aquelas questões têm urbana e incluiu um conjunto de editoriais que
de as embrulhar em miúdos ansiosos sobre o mereceram o prêmio Pullitzer para o gênero,
campo de férias ou na resposta a se um nesse ano. O mesmo tom espetacular perpassa
programa de televisão Barney é boa influência na campanha Children First, do Detroit Free
ou não. Nesta maneira de fazer notícias as Press, iniciada por uma carta aberta do
crianças são uma mercadoria e é isso que se director, na primeira página, anunciando ir
vê nos próprios processos de adopção. Há além da mera reportagem e visar a busca de
qualquer coisa de terrível neste processo em soluções. A campanha do New York Times,
que os bebês são uma nova exportação do Children in the Shadows, focou-se na produção
Terceiro Mundo, outro recurso natural pilhado de peças exclusivamente sobre crianças de cor.
pelos países desenvolvidos. Sempre que vejo Estas campanhas suscitaram polémica,
uma história sobre isso, é quase sempre um por ultrapassarem as margens do jornalismo e
testemunho pessoal de alguém que adoptou criarem pressões para soluções políticas
um bebê iugoslavo, coreano ou de outro lado enganosas. Na verdade, sete jornalismo de
qualquer e cnta como é maravilhoso ter campanha, com definição de estratégias de
conseguido finalmente a criança. cobertura temática de longo prazo, vai pautar
Encontramos, por outro lado, um critérios de avaliação do que será noticiado:
jornalismo de causas, ou de cruzada. Este estilo num cenário de agendamento prolongado de
de intervenção pública pautada por critérios de um tema é necessária a alimentação contínua
moralização social tem tradições no jornalismo de notícias que reforcem a pertinência que lhe
norte-americano, nomeadamente a partir de é dada.
Joseph Pullitzer. No campo da infância, Para o agendamento de uma comunidade
destaca-se nos anos 20 a intervenção de uma em perigo, não se estranha que a percentagem
pioneira no jornalismo investigativo, Nellie Bly, de notícias sobre crimes violentos envolvendo
no New York Evening Journal com reportagens crianças tenha sido muito superior a das
de primeira página sobre crianças estatísticas oficiais. Aliás, estudos sobre o
desaparecidas, vítimas de maus tratos ou tratamento jornalístico da criminalidade infantil
abandonadas, enquanto em editoriais defendia onde participaram estudantes do Bronx,
cruzadas em prol da adopção de crianças filhas promovidos pela organização We Interrupt This
de mães solteiras e combatia o trabalho da Message (2001) mostram a sobre-
mulher fora de casa. representação pelo New York Times de jovens
Na imprensa feminina, este clima negros enquanto delinqüentes e a sua
conservador é visível na campanha da revista desvalorização enquanto vítimas, a construção
Woman’s Day, que dedicou o ano de 1993 ao do mito do aumento da violência escolar, a
tema da “família americana”. Na imprensa de não-contextualização da violência em causas
informação geral, os temas eram a violência sociais e econômicas, a ausência de soluções
urbana ou a intervenção da justiça. Os jornais alternativas ao aprisionamento, a distorção na
garantiam permanência em agenda e chamadas construção da história tomando uma só
de atenção nas primeiras páginas. Além da perspectiva e a raça como factos de
diferenciação.
No balanço geral desta cobertura, românticas”. Alex Kotlowitz (1996, pp. 41-42),
registra-se que a maior atenção a temas antigo jornalista do Wall Street Journal,
relacionados com crianças se traduziu em denuncia as conseqüências de estereótipos da
formas de reportar sensacionalistas e criança criminosa e da criança vítima na
superficiais, eu houve escassez de recursos imagem de si e que de si é construída:
humanos nas redacções capazes de cobrir a Os media tendem a ver as crianças que
diversidade de questões críticas, que a crescem nos meios urbanos pobres ou como
anexação de conteúdos e secções já existentes vítimas ou como criminosos. Esta apresentação
(páginas de educação ou de crime) lhes como vítimas da pobreza e da violência presta-
conferiu um enquadramento limitado. Do lhes um mau serviço, sugere que eles estão
jornalismo de cruzada sobressaiu uma escrita destinados a falhar. Quando se apresenta uma
unidimensional, notícias descontextualizadas, criança como criminosa, esquecemo-nos do que
apresentação hegemónica de crianças e significa ser criança: ser vulnerável,
adolescentes como vítimas ou como loucos impressionável e carente. Sobrevaloriza-se uma
criminosos. O kidsbeat não conseguiu ir além dimensão e ignoram-se todas as outras da sua
dos parâmetros tradicionais das notícias de vida quotidiana.
política, crime ou desporto. O sensacionalismo Da apreciação do Casey Center, apesar
nos títulos e fotos, o registro jornalísticos de da crítica ao sensacionalismo perpassa a
factos descontextualizados e o desvio como valorização em agenda de temas relacionados
critério de noticiabilidade marcaram esta com a situação da infância, sobrepondo-se a
cobertura. As notícias envolvendo crianças ou um questionamento dos interesses
eram te a de primeira página pela sua carga instrumentais. Exemplo disse é a apreciação da
dramática ou se confinavam a espaços leves de relevância do tópico educação apreciado pela
informação, sem dar conta de práticas e de vertente empresarial e orientação da criança
mudanças cotidianas e de sus contextos. aluno como futura força de trabalho. Lê-se em
Vejam-se as apreciações de jornalistas Children and Family Journalism: Out from the
sobre esta cobertura, recolhidas pelo Casey Shadows/Media Coverage of Children and
Center. Uma fundadora do USA Today e Family Issues, 1993-94 (CJCCF, 2001):
consultora dos principais jornais e cadeias Forças exteriores à redacção,
televisivas, Nancy Woodhull, nota a confusão nomeadamente dirigentes de empresas,
sobre como cobrir as questões relacionadas começaram a queixar-se sobre os custos de
com crianças e famílias. “Tentam fazer colunas uma força de trabalho com baixo nível de
para pais e páginas especiais para filhos, mas educação. A produtividade americana
isso não chega para colar os leitores ao jornal”. afundava-se enquanto importações japonesas
Uma editora de agência de in formação, Sandy devastavam sectores básicos da indústria
Close, dá conta de estereótipos na construção americana. A educação, muito tempo
de noticiais sobre crianças, num considerada nas redacções como um tema
enquadramento pautado pelo fracasso: “apesar obscuro ainda que importante, de repente
desta geração ter muito para nos dizer, os tornou-se matéria de ponta. Para a sua própria
media apresentam-nas como um universo de reputação, muitos editores passaram a ter
patologias, há uma tônica no fatalismo, como jornalistas a cobrir apenas questões
se esses miúdos fossem marcados pelo educacionais.
destino...”. A consideração da incapacidade Destas apreciações sobre o jornalismo
comunicativa das crianças fazia com que norte-americano na cobertura da infância,
fossem ausentadas de notícias: “O lado das ficam-nos indicações sobre a construção da sua
crianças não conta nas histórias porque os noticiabilidade, marcada por novas definições
jornalistas não estão treinados para isso. Dá-se de interesse:
a perspectiva pró e a contra de tudo e é 1) conbinação entre eventos inseridos em
tudo...”, notava a antiga editora do USA Today, temas previamente definidos pelo jornal
enquanto sublinhava como histórias de crianças (campanhas ancoradas na ideia da criança em
fora de situações de risco também não risco e na sua insegurança) e temas de
refletiam a experiência comum: “se são integração social, como a educação, a família, a
rapazes, são estrelas de atletismo; se são religião, a que não está ausente a criança
raparigas, são jovens modelos ou figurinhas investimento;
2) caracterização das crianças como tratamento de matérias de justiça sobre
futura mão-de-obra (ou “capital humano” crianças e jovens (Hall of Fame).
noutra versão) para a competitividade do país; Uma década após o início desta
3) intervenção dos jornalistas como formação, faz parte do programa desta Escola
protagonistas e fontes de informação e de de Jornalismo o seminário de especialização
experiência; Covering the Youth Beat, em cujo currículo de
4) estreitamento da ligação a fontes de 2001-2002 se lê:
informação de comunidades locais; 5)estilos Os estudantes deste seminário irão
marcados pelo sensacionalismo e proximidade explorar o mundo multifacetado das questões
afectiva, em que a voz do jornalista se torna relacionadas com crianças e as orientações
mais interpretativa e subjectiva do que era políticas que as afectam, através de leituras,
tradição. discussão, produção de reportagens e escrita.
Sublinham os formadores do CJCCF que Iremos examinar os complexos problemas de
as deficiências desta cobertura caminham a par ética que se colocam em reportagens e apreciar
com questões éticas que dela decorrem: que de forma crítica a cobertura mediática de
legitimidade para um jornalismo de causa? Não crianças feita durante décadas. Iremos procurar
colide o rigor da informação com a segurança e compreender a disparidade entre a percepção
o bem-estar da criança cuja situação se noticia? pública e a realidade da vida das crianças
Quais são os problemas específicos da investigando a vida dos jovens e das suas
cobertura da infância? São perguntas que famílias em Nova Iorque.
partem da constatação de Kotlowitz (1996, p. Será dada especial atenção ao
42): “Escrever sobre crianças exige paciência aperfeiçoamento da capacidade de escrever
no acto de reportar e complexidade na forma artigos complexos sobre temas delicados.
de contar”. As reportagens [produzidas pelos
Estas questões vão sustentar uma estudantes] serão feitas em áreas onde vivam
formação de jornalistas. A iniciativa mais antiga ou estejam crianças e cobrirão lares, sala de
é da Graduate School of Journalism, da aula, centro de jovens, centros prisionais, salas
Universidade de Columbia, que realizou em de tribunal.
1992 o primeiro seminário de longa duração, Os jornalistas que cobrem esse beat
Focus on the children, the beat of the future. devem ser capazes de circular pelos mundos da
Porque à atenção a questões sociais educação pública, dos tribunais, dos maus
envolvendo crianças, dos maus-tratos a tratos e dos serviços de protecção e assistência
reformas no campo da educação, tende a às crianças, da pesquisa de saúde. Precisam de
corresponder um tratamento informativo saber dar profundidade e contexto às vidas das
superficial, incaracterístico e por vezes mesmo crianças e das suas famílias, bem como às
falseador, o programa da Universidade de políticas que as regulam.
Columbia visa uma formação que permita a
jornalistas irem além de notícias fragmentadas Se nestes últimos anos surgiram mais
e contextualizar eventos reportados na histórias de educação, de saúde e de questões
legislação sobre educação, saúde, políticas de vida pessoal, “o que representa um
governamentais e sociais. Lê-se na declaração imperioso alargamento do nosso sentido do que
Children and the News da Prudential Fellowship constitui uma questão pública” (Hallin, 1996, p.
for Children and the News (1995): “Os editores 255), a contradição passa pelo ainda estreito
precisam de sair da estreiteza das notícias conceito do que entender por “questão
leves e de chegar à primeira página, os pública”. Como realça Daniel Hallin, este
jornalistas precisam de deixar de olhar as alastramento da agenda a novos temas levou
crianças como gente problemática e sem ao apagamento de outros, como a redução
rosto”. Nos conselhos práticos encontram-se drástica do noticiário internacional. A dimensão
como regras de ouro orientações como trata os provinciana dessa ideia de democracia
filhos dos outros como gostarias que tratassem jornalística orientada para a sua comunidade de
os teus ou acima de tudo, não os prejudiques”. leitores e os sues interesses será visível no
Além da crítica à cobertura da imprensa, esta acentuar do isolamento do país em relação ao
formação também se estrutura em torno de mundo, à sua complexidade e diversidade. Nos
boas práticas, de que são exemplos o últimos 15 a 20 anos, os media norte-
americanos reduziram o espaço dedicado a de perspectivas sobre práticas correntes, de
notícias internacionais entre 70 a 80%, referia jornalistas e fontes de informação, apresentam-
o Los Angeles Times em 2001. Para o director se de forma sumária estes documentos.
do The Boston Globe, Martin Baron, há que
pensar criticamente nas suas conseqüências: Questões da cultura jornalística
tal contribuiu para que a maioria dos
americanos não tivesse “a mínima noção do O relatório Children: Media, Ethics and
que é a ideologia e a região no mundo Reporting of Commercial Sexual Exploitation
muçulmano e, nesse sentido, penso que aponta que me material de exploração sexual
partilhamos alguma responsabilidade”.² as crianças continuam longe das agendas,
Perante os acontecimentos do 11 de excepto em conteúdos de tribunal ou em
Setembro, profissionais sublinharam a situações que envolvem figuras públicas
responsabilidade política do jornalismo e os adultas. Os temas noticiados não se alteram
limites de uma orientação estritamente virada com a Convenção dos Direitos da Criança e
para o mercado. Em Crisis Journalism, Garry outras recomendações. Ao aparente aumento
Gilbert, editor executivo do The Oakland Press, de consciência, contrapõe-se uma “faca de dois
lembra os milhões de dólares gastos em gumes”: ao contarem histórias de abusados e
estudos de mercado e inquéritos que concluíam abusadores, os media também podem
que se poderia vender mais jornais se se desse contribuir para criar imagens sexualmente
mais destaque ao desporto, ao entretenimento provocadoras que podem alimentar circuitos
e às notícias locais. Neste processo, argumenta pedófilos.
que os editores falharam na tarefa de “tornar Kate Holman e Aidan White, jornalistas
as notícias mundiais atractivas e importantes autores do relatório, apontam a necessidade de
para uma sociedade egoísta”. É preciso os media alargarem o foco da cobertura do
também que, além da criação de fóruns de tema, uma vez que ainda não foi
discussão pública, da disponibilização de completamente contada a história da
informações úteis e da luta contra os exploração sexual das crianças e seus aspectos
preconceitos, a imprensa continue a cobrir o comerciais. Esta é também uma área quase
noticiário geral e a contextualizar a ausente nos códigos de auto-regulação
informação.³ profissional mas à qual se ligam questões de
natureza ética, como a confidencialidade das
Uma nova agenda para jornalistas de fontes, subterfúgios para obter informação, a
todo o mundo cooperação com agência legais, a intervenção
em eventos sob observação,a identificação das
Vejamos agora o panorama numa escala pessoas envolvidas.
mais vasta, com base na reflexão da Federação A questão das fontes de informação tem
Internacional de Jornalistas (FIJ) – que reúne ainda particularidades como o estatuto da
140 associações nacionais de jornalistas de 104 menoridade social com que as crianças são
países – a partir dos anos 90. Na década de 90, encaradas, independentemente de sua idade.
a noticiabilidade da infância foi pela primeira Frases como “não conseguem distinguir ficção
vez discutida pela classe e foram produzidos da realidade “ ou “mudam de opinião com
documentos como o relatório Prime Time for freqüência” indicam a recusa dos direitos de
Children: Media, Ethics and Reporting of participação cívica que a Convenção lhe
Commercial Sexual Exploitation, apresentado consagra.
no Congresso Mundial sobre Exploração Radiografia do panorama mundial das
Comercial e Sexual das Crianças (Estocolmo, linhas éticas da cobertura de crianças é o
1996), as Actas do Fórum Child Exploitation documento Information and Child Rightes: The
and The Media, promovido pela Press Wise, no Challenge of Media Engagement (1998), que
Reino Unido (1997), a resolução Information compara a legislação e códigos de conduta de
and Child Rights: The Challenge of Media 54 países subscritores da Convenção e dos
Emgagement, aprovada na Conferência da FIJ Estados Unidos. Foram apreciados os Códigos
(Recife, 1998) ou o Guia The Media and de Conduta ou Deontológicos dos seguintes
Children’s Rights, destinado a jornalistas e países ou regiões autônomas: África do Sul,
editado pela UNICEF (1999). Pela diversidade Alemanha, Armênia, Austrália, Áustria, Bélgica,
Bósnia-Herzegovinia, Brasil, Bulgária, dos direitos das crianças e questões
Catalunha, Croácia, Chipre, Dinamarca, relacionadas com a segurança, privacidade,
Eslováqui, Eslovênia, Espanha, Estados Unidos, educação, saúde e bem estar e todas as formas
Filipinas, Finlândia, França, Grécia, Holanda, de exploração como temas relevantes para
Hog Kong, Hungria, Irlanda, Islândia, Índia, serem investigados.
Itália, Israel, Japão, Letônia, Lituânia, Malásia, Este ideal da profissão depara com
Malta, Marrocos, Nova Zelândia, Nigéria, dificuldades no seu exercício, sejam restrições
Noruega, Paquistão, Paraguai, Peru, Polônia, legais em muitos países ou tendências para a
Portugal, República Checa, Reino Unido, simplificação máxima de conteúdos com vista a
República da Coréia, Rússia, Sérvia, Singapura, atingir mais mercados, realça o documento do
Sri Lanka, Suécia, Suíça, Tanzânia e Turquia. A Recife. Também se enunciam como
comparação realçou que poucos referem características d profissão as relações difíceis
explicitamente direitos das criança ou têm com o poder, a resistência à hetero-regulação,
orientações sobre sua cobertura. Os jornalistas o cepticismo em relação a intervenções de ONG
tendem a pensar questões éticas com base no no terreno, a dificuldade de agir entre códigos
“senso comum”, o que leva a que crianças de conduta e pressões comerciais. Relevantes
mereçam mais atenção do que outros membros nesta discussão são os paradoxos sobre as
da sociedade, sobretudo enquanto vítimas. crianças como matéria noticiável. As crianças
Por sua vez, a Conferência Mundial têm um apelo universal e, em teoria, são
Jornalismo 2000, promovida pela FIJ, produziu acarinhadas em todas as culturas, enquanto
linhas de orientação para jornalistas e dedicou constituem também um importante segmento
especial atenção a indústrias de turismo sexual para a publicidade e o mercado. As ameaças
envolvendo crianças. Esta assembléia, que sobre elas geram respostas emotivas que
contou também com especialistas e podem captar leitores e audiências. Daqui
organizações no terreno, votou um plano de decorre o risco de as histórias e imagens serem
acção a três anos, Journalism 2000: Child mais apreciadas pelo seu valor sentimental e de
Rights and the Media, e aprovou o Guião para a captação de audiências do que pelo seu
cobertura dos direitos da criança a que faremos significado social.
referência. Os documentos da Federação
Perpassa por estas iniciativas uma Internacional de Jornalistas consideram que os
assunção da “responsabilidade social dos profissionais dos media têm nas suas mãos o
jornalistas”. Aí se considera que são “os olhos, imenso poder de estimular a revolta pública
os ouvidos e as cozes do público”, com a pelo uso de crianças como ilustração de
função central de o informar não só sobre matérias traumáticas como doença, a guerra, a
eventos e debates público tal qual são fome, a pobreza. Este valor de choque é visto
promovidos por agentes interessados mas como técnica válida para penetrar nas defesas
também sobre actividades de governos e que protegem as pessoas das duras realidades
organizações que afectam a sociedade, sobre da vida, sobretudo quando se mostra a falta de
atitudes sociais, ainda que sejam mais meios dos que vivem no hemisfério sul, em
discretas ou sobre as quais se procure o zonas da Europa central ou oriental, nos
silêncio. Sai-se da estreita dimensão do relato subúrbios dos meios desenvolvidos. Mas, como
de eventos para se entrar também na atenção resultado, as crianças são muitas vezes
a questões menos visíveis e por vezes representadas como vítimas, vilões ou meios
desconfortáveis. Esta responsabilidade social é fáceis de atrair atenção dos adultos sem que se
sublinhada no dever de identificar falhas e equacionam as respectivas conseqüências.
aspectos positivos no campo dos direitos Também se reconhece que a identificação de
humanos, e acompanha também a defesa de crianças específicas em risco de perigo,
um “jornalismo ético”, que procure “a verdade exploração ou abuso lhes pode trazer perigo,
independente de interesses obscuros” e que bem como às famílias, mas a recusa de
alie uma “sensibilidade às conseqüências da imagens reais pouco melhora o reconhecimento
publicação”. Deste espírito são exemplos dos seus direitos como seres humanos.
orientações que enfatizam o direito das Daqui vai um passo para a defesa da
crianças à sua privacidade e o dever das história de interesse humano, como porta para
organizações jornalísticas de encarar a violação uma contextualização. Lê-se no documento
Children´s Rights and Media: Guidelines and família lidou com a cobertura jornalística no
Principles for Reporting on Issues Invol-ving momento do crime e destacou as relações de
children: conveniência de parte a parte nesse momento,
Os jornalistas devem produzir histórias que que se quebraram quando os media noticiosos
ajudem as pessoas a compreenderem o mundo à prolongaram a cobertura e usaram imagens do
volta delas. A história de interesse humano é um caso dois anos depois, sem autorização da
dispositivo dramático para captar o interesse, a família. Uma organização não-governamental,
fúria ou a simpatia e daí explicar uma verdade Children´s Society, apresentou a sua estratégia
mais ampla. Por isso precisam de boas histórias para com os media em campanhas contra a
no seu contributo para a melhoria da prostituição infantil – dar informação de que os
compreensão pública das crianças. jornalistas precisam, incluindo estatísticas,
O estudo comparado dos códigos de estudos de caso e depoimentos, garantindo o
conduta revelou que poucos jornalistas anonimato das crianças e jovens incovenientes
conheciam a Convenção dos Direitos da Criança – e como recorria a uma posição pró-activa,
e os documentos publicados na sua seqüência. sugerindo casos ou protestando contra a
Ignoravam mesmo se o seu país era subscritor violação de regras estabelecidas.
da Convenção e as conseqüências daí O confronto entre a defesa da liberdade
decorrentes. A tônica tradicional na flexibilidade de informnar e o constrangimento da cobertura
e na não-especialização dos jornalistas fazia de crianças à luz dos seus direitos de protecção
com que as crianças raramente surgissem para foi um dos momentos polêmicos. Um professor
além de “materiais atractivos” ou parte de de jornalismo e antigo jornalista especializado
disputas legais. em assuntos de tribunal , Tim Crook, acusou a
legislação britânica de proteger em demasia as
Olhares de diferentes arenas crianças criminosas. Por seu lado, Robert Pink,
profissionais presidente da Press Complain Comission,
criticou a pressão dos jornalistas na cobertura
O fórum Child Exploitation and The de casos dramáticos e na invasão da
Media, promovido pelo PressWise em 1997 no privacidade sempre que se invocam a qualquer
Reino Unido, reuniu jornalistas, fotógrafos dos momento acontecimentos do passado,
media, trabalhadores sociais, professores de obrigando as famílias a rever a exposição
jornalismo, pais de crianças que tinham sido pública da sua dor. Também o director da
notícia e organizações não-governamentais. As Action on Child Exploitation, David Niven,
relações entre fonte e jornalistas, a regulação reflectiu sobre o direito à protecção da imagem,
profissional e a dificuldade de tratar matérias criticando a espectacularização que
como os maus tratos, abusos sexuais e organizações não governamentais e jornais de
pedofilia foram os temas deste encontro, onde referências fazem de temas como a doença, a
se discutiram as difíceis relações entre violância ou a pobreza nos países do Terceiro
jornalistas e trabalhadores sociais, as formas Mundo. Em nome do direito à protecção da
como familiares de crianças e vítimas de identidade, questionou a representação dos
pedofilia lidaram com os media e as estratégias media dessas crianças, considerando que o
pró-activas de organizações não- público pode compreender as suas
governamentais no combate à prostituição necessidades sem que sejam imperiosas suas
infantil e os seus riscos. imagens.
As difíceis relações entre jornalistas e O tema dos maus tratos e abuso sexual
assistentes sociais foram sublinhadas por uma cruzou também as intervenções. A recordação
dirigente da Associação Britânica dos de como os media trataram em notícia o
Trabalhadores Sociais, Jane Tarbun, que referiu síndroma da falsa memória que faremos
serem poucas profissões alvo tão permanente referência no próximo capítulo foi feita por uma
da acusação de negligência por parte de jornalista, Marjore Orr, que deu conta de como
jornalistas. Destacou contudo a importância dos poucos jornalistas tentaram ir ao outro lado da
media na criação de uma maior compreensão história. Do ponto de vista jornaçistico, era
para as acções de intervenção social no sentido uma história simples: terapeutas obcecados
da protecção das crianças. Um pai cuja filha com o abuso sexual levavam pessoas a
fora violada e assassinada relatou como a acreditar que tinham também sido abusadas na
infância. As vantagens deste ângulo são
inúmeras: podia ser facilmente coberto como Um Guião para as Notícias
questão unilateral; era “confortável” porque
apagava o pânico social sobre o abuso; não era A atenção aos modos como as notícias
arriscado do prisma das responsabilidades dos são construídas é uma das mais valias do Guião
jornalistas; era “fácil” porque se baseava em Media The and Children´s Rights (1999),
testemunhos. resultado de estreita cooperação entre a
Outro jornalista, Dean Nelson, considerou UNICEF e a FIJ. O documento apresenta a
que o tratamento do tema do abuso secual não Convenção e traça sugestões de cobertura
vendia jornais pois a maioria das pessoas não noticiosa em torno de 15 tópicos: 1)crianças
queria ler assuntos desconfortáveis: por isso com deficiências; 2)discriminação; 3) crianças
muita desta cobertura devia ser feita enquanto na família; 4) trabalho infantil; 5)crianças e
serviço público. Chamou também a atenção conflitos armados; 6) cuidados de saúde e
para os seus custos financeiros, pelos bem-estar; 7) questões de identidade; 8)
processos judiciais que pode suscitar. O opiniões e liberdades civis; 9) serviços de
director da PressWise, Mike Jempson, com base assistência pública; 10) crianças e media; 11)
na sua esperiência profissional, integrou o tema crianças nos media; 12) educação; 13) crianças
nas difíceis relações entre fontes de e crime; 14) abuso sexual e exploração; 15)
informnação e jornalistas e como essa essas responsabilidades do Estado. Para cada tópico
dificuldades podem disttorcer a amplitude e há sugestões (storylines) e uma lista de
profundidade do tratamento. Jempson passara verificações (checklist) que incide no
dois anos a investigar redes pedófilas no tratamesnto e se alarga a uma avaliação de
sudeste de Inglaterra, para um documentário potencialidades gerais. Vejamos, por exemplo,
televisivo. Apesar da polícia admitir que a o tópico de Educação. Nele são apresentados
informação que recolhera estava correcta, como sugestões de temas a explorar
fontes de informação com trabalhadores jornalisticamente:
sociais, políticos, autoridades locais e 1. Investigar a dimensão real da
organizações voluntárias só queriam falar off- igualdade de oportunidades para todas as
the-record. Por isso, só pôde usar 20% da crianças dentro do sistema educativo (rapazes
informação recolhida sobre redes pedófilas, e o e raparigas; crianças rurais e urbanas; crianças
documentário centrou-se nas actividades de um com deficiência e membros de minorias
professor que entretanto se suicidara para comunitárias)
evitar julgamento. 2. Qual é o espaço de manobra
O secretário geral d FIJ, Aidan White, das crianças na escola e nas suas disciplinas,
recordou como era recente o respeito pelos por intermédio dos conselhos de escola: podem
direitos das crianças e sublinhou o papel dos escolher as matérias que querem estudar?
media. As imagens estereotipadas de crianças, Pesquisar se e como os pais podem influenciar
como vítimas sem nome ou como adolescentes o currículo e os serviços educativos e que
problemáticos, reflectem a falta de papéis têm na gestão da escola.
compreensão sobre as crianças enquanto 3. Comparar diferentes tipos de
sujeitos e o seu direito de serem ouvidos. estabelecimentos de ensino – pré-escolar,
Como sugestões de mudança de práticas primário e secundário; público e privado; são
jornalísticas, apontou a auto-regulação e a as crianças afastadas das escolas por causa do
conduta ética; uma maior formação não só seu custo?
nesta matéria mas também nas formas de 4. Observar o ratio
apresentar histórias e seu impacto, com maior professores/alunos. Que diferenças decorrem
grau de conhecimento e de sensibilidade; a da dimensão de classes? Que recursos estão
correcção nas relações entre fontes disponíveis para os professores e alunos – têm
promocionais e jornalistas, de modo a evitar a as crianças acesso a equipamentos
desconfiança destes face a exageros daquelas; actualizados? E como é a segurança nos
um papel pró-activo nesta matéria e de edifícios?
processos de revisão, também do prisma das 5. Averiguar se são possíveis
crianças, sobre como as notícias são propostas “alternativas” ao modelo dominante
construídas.
de educação e comparar os seus métodos,
acompanhamento, disciplina e resultados. O enfoque está nos processos de
6. Como é que as escolas lidam produção da notícia, numa proposta inovadora
com as crianças indisciplinadas? Como são as das culturas de redacção e do seu vocabulário
punições? Ainda se usam castigos corporais? As de precedentes, conceitos de Ericson et al.
crianças têm o direito de recorrer das medidas (1987), que apontam os saberes de
disciplinares? Como é que as escolas lidam com reconhecimento (como situar jornalisticamente
a violência entre as crianças? Existe um um evento), os saberes de procedimento (como
problema de violência contra professores e desenvolver um tema, que fontes ouvir, que
quais são as causas? métodos usar para contactar e interrogar
fontes, como gerir o tempo) e os saberes de
Na verificação de procedimentos narração (como apresentar um dado de uma
jornalísticos e da organização da redacção, forma jornalística; como justificar uma acção se
apresentam-se as seguintes propostas: esta for questionada). A par de novos sabores
de reconhecimento (como enquadrar
1. O meio onde trabalha tem uma jornalisticamente) e de saberes de narração
secção especializada em educação? Quem (como apresentar o tema de forma
produz esses materiais – jornalistas jornalística), há ênfase em novos saberes de
especializados, professores, especialistas em procedimento (desenvolvimento do tema, que
ciências da educação? Como são as crianças e métodos usar para recolher informação)
os jovens estimulados a darem contributos? visíveis no alargamento dos enquadramentos
2. Conhece o sistema educativo do habitualmente usados para tratar o tema da
país que está a cobrir? Costuma visitar educação. Entram em linha de conta variáveis
instituições de educação para estar a par dos sociológicas (diferenciação de gênero, meio
problemas actuais, das mudanças ou de social, redes escolares), económicas e
iniciativas positivas nos sistemas educativos? tecnológicas. Também a dimensão
3. A história que escreveu inclui a organizacional é questionada, definindo um
perspectiva dos estudantes da mesma forma novo perfil de jornalista, mais conhecedor das
que inclui a dos professores responsáveis ou problemáticas que reporta.
directores?
Recolheu comentários da parte dos pais, A noticiabilidade da infância vista da
dos responsáveis de escola,dos professores da Ásia
classe e dos seus sindicatos?
O estudo comparado de Anura
4. Tem a certeza de que as crianças estão Goonasekera, Children in the News (2001),
conscientes de que podem ser citadas e trabalho sistemático de avaliação no terreno,
identificadas e que a sua história não lhes irá aprecia como jornalistas de 13 países asiáticos
causar problemas de que elas não se tenham incorporaram ou não nas suas práticas as
apercebido? O que pode fazer para ajudar as orientações da Convenção dos Direitos da
crianças a compreenderem o papel dos media Criança, em particular o Guião que acabámos
na sociedade? A empresa jornalística onde de apresentar. Foram ouvidos profissionais dos
trabalha já pensou em produzir material jornais mais influentes de cada país, pela sua
interessante e de forma acessível para motivar tiragem e orientação para as camadas sociais
as crianças ou mesmo em colaborar com os de maior decisão política. Nenhum conhecia o
professores no trabalho com as crianças na Guião do jornalista aprovado no Congresso do
classe? Como é que a sua empresa usa a Recife, dois anos antes.
internet? Tem investigado os usos que as Este estudo comparado permitiu ainda
crianças fazem da rede? Tem produzido destacar um imaginário da notícia partilhado e
material a que as crianças possam aceder por enraizado. É um imaginário que reproduz as
via electrónica? Tem considerado formas tendências da orientação para o mercado e
positivas de envolver os mais novos nas valorização económica. A noticiabilidade de
notícias, nos assuntos correntes e na produção uma matéria continua a ser expressa em
de media pelo desenvolvimento de ligações termos de “faro jornalístico”, num ideal de
interactivas com as escolas? imparcialidade e objectividade “factual”, e por
uma confiança em saber decidir o que interessa nossa tarefa. O resto depende do que as
ou não aos leitores. Afirma um editor da pessoas com poder no país possam fazer.
Malásia (p.189): Contudo, segundo Gilani (1999), os
Qualquer matéria é escrita como notícia se media paquistaneses fazem mais do que
se considera que contém informação e que pode silenciar pois sustentam o trabalho infantil
educar o povo sobre o que acontece na sociedade. como alternativa à fome. Poucos são os artigos
As notícias sobre crimes e acidentes interessam que discutem as suas causas profundas ou
muito as pessoas e se se fala de crianças é porque condições, preferindo o enquadramento de que
crianças estão envolvidas nesses casos. as campanhas internacionais nestas matéria
Idéia próxima circula nas palavras de um mais não são do que “o ocidente contra as
editor de Singapura: “o foco é a noticiabilidade nossas crianças”. Enquanto o governo e figuras
e se isso inclui crianças então elas são notícias” públicas fazem tabu do problema, um
(p.337). jornalista que denunciou o assassinato de um
A primeira tendência é, pois, considerar rapaz de 12 anos, que dera a cara falando do
que não existem constrangimentos externos à seu trabalho nos teares, passou longo tempo
definição de notícia, que são os jornalistas que na prisão.
decidem o que é ou não publicado. Há, Outra influência decorre do referente
contudo, um outro olhar sobre esta cultural dos jornalistas para quem os assuntos
noticiabilidade, mais calculista. Directores e de interesse público não passam pela situação
editores de jornais indianos convidados a referir das crianças do pai. Àquelas não reconhecem
constrangimentos na cobertura de questões autonomia como problemática social: não há a
relacionadas com crianças, ou os consideravam construção da criança nacional como a
inexistentes ou referiam a escassez de fundos e encontramos no ocidente.
a falta de jornalistas especializados ou ainda No Bangladesh, dados de um estudo
apontavam a falta de interesse dos leitores por nacional sobre trabalho infantil indicaram que
essas matérias e os seus riscos, pois os que mais de 15% das crianças urbanas entre os 5 e
empregam mão-de-obra infantil constituem um os 14 anos fazem parte da força de trabalho,
lobby poderoso. Receavam, pois, reacções desempenhando tarefas diversas, a maioria no
adversas de leitores se escrevessem sobre sector privado informal. Entre os trabalhos
trabalho infantil e questões relacionadas. Assim mais comuns nas áreas urbanas surgem os
se constrói um critério de noticiabilidade serviços domésticos, envolvendo entre 200 000
segundo o qual “as notícias sobre crianças não a um milhão de crianças na capital. Quando os
interessam leitores de jornais nem justificam as jornalistas foram convidados a referir
despesas que suscitam”, nas palavras de um espontaneamente os problemas sócio-
leitor indiano. económicos prioritários do país quase
Exemplar da proximidade entre ignoraram o trabalho das crianças: dos
interesses na ausência desta cobertura é a jornalistas mais velhos e com responsabilidades
situação do Paquistão, um dos maiores países editoriais nenhum indicou essa questão, apenas
da Ásia e onde mais de metade das famílias são referida por um quarto dos jornalistas mais
incapazes de compreender o lugar da criança novos. Todos ignoraram os direitos das crianças
definindo no ocidente: aí ela é parte activa da e, quando questionados, sublinharam como
economia familiar e os rapazes são preferidos a principais direitos a educação (em destaque), o
raparigas. Num clima político onde a liberdade acesso a serviços de saúde e a uma
de imprensa não está assegurada, os media alimentação equilibrada.
são cautelosos nas suas agendas. Afirma uma Noutra perspectiva, o director de um
jornalista paquistanesa (p.261): jornal de referência na Indonésia, o Republika,
Procuramos assuntos que sejam Parni Hadi, sublinhava que as crianças
simpáticos aos leitores, que os interessem. constituem hoje um tema importante para os
Sobre os problemas das crianças do Paquistão media mas que são ignoradas quando se fala
não sabemos se a nossa cobertura é adequada em desenvolvimento.
ou não. Também pertinentes são os processos
Na verdade não há certezas no jornalísticos que decorrem da auto-referência.
jornalismo. Escrevemos e editamos e é essa a Muitos jornalistas do Nepal afirmaram ter
coberto questões relevantes sobre crianças com
base nas suas próprias apreciações e no que potencial afectivo e simbólico é capitalizado
tinham aprendido em outros jornais de como valor jornalístico, numa senda que não
prestígio. anda longe da mercantilização da infância e dos
O relatório sobre o jornalismo na China sentimentos que desperta. Aí como aqui, um
situa-se, mais do que qualquer outro, num bebé abandonado vale mais do que um mero
registro de reverência face ao poder político, roubo, como avaliava um repórter de crime, se
citando frequentemente os seus responsáveis. Singapura.
Às declarações formais de apoio ao espírito da
Convenção quanto a direitos das crianças, A busca de “soluções” na cobertura da
contrapôs-se o desconhecimento de textos, ou infância no Brasil
mesmo da sua existência, por parte dos
jornalistas. Com muita prudência política, os Do Brasil, onde de perto um terço da sua
autores do relatório chinês não deixam de população (32,3%) tem menos de 14 anos e a
referir a escassez de recursos para reportar mortalidade infantil é de 58/1000, vem um
questões relevantes sobre crianças e a olhar orientado para cobertura jornalística da
intensificação da pressão do mercado. infância, de uma organização não-
Se nalguns países a expressão educar o governamental promotora da sua visibilidade
leitor ainda surge na reflexão jornalística, nos meios de comunicação social com uma
como na Malásia e na China, a tendência filosofia que se aproxima das correntes do
comercial é muito forte, expressa ou não. jornalismo cívico norte-americano. A Agência
Editores de jornais da Tailândia destacaram o de Notícias dos Direitos da Infância (ANDDI)
“interesse humano”, o “apelo emocional” e as desenvolve desde 1996 um trabalho de
“forças de mercado” como elementos pesquisa e de intervenção junto dos media
importantes nos processos de selecção das brasileiros sobre como estes comunicam a
notícias. Valores profissionais de rigor e de infância a juventude nas suas páginas, com
credibilidade eram incorporados numa lógica uma orientação social assumida: contribuir
em que, em nome do “direito a informar”, se para a formação de uma cultura jornalística que
considerava não dever haver restrições investigue a situação das crianças e jovens
protectoras da identidade dos mais novos. Os brasileiros em situação de exclusão social.
factos deviam ser impressos, com nomes ou A intervenção da ANDI junto dos meios
moradas das vítimas, as fotografias eram a de comunicação social brasileiros é constituída
melhor prova de que a acção tinha realmente pela prestação de serviços informativos, oferta
ocorrido. Este culto da notícia como matéria de permanente às redacções de sugestões de
facto que se sobrepõe a outros direitos, como o assuntos e experiências sociais bem sucedidas,
direito à privacidade, também é vincado pelos bem como por incentivos, como prêmios para
jornalistas das Filipinas. as melhores reportagens. Procura assim a
A falta de fundos e a escassez de ampliar a atenção da cobertura jornalística para
jornalistas é o argumento principal para a o que define como conjunto de temas
quase ausência desta cobertura no Nepal, um estratégicos para o desenvolvimento social que
dos países mais pobres do mundo, com elevada não fique pela denúncia de situações, mas que
natalidade e mortalidade infantil e onde muitas se constitua como um jornalismo de
crianças vivem sozinhas nas cidades ou vão investigação de soluções. Equaciona que
para a Índia. Ainda que os jornalistas quase investigar soluções é igual a denunciar
desconhecessem o texto da Convenção, saibam omissões e que, pelo confronto dos indicadores
que o país fora um dos primeiros a assiná-la e sociais mais alarmantes com os resultados
que existia a obrigatoriedade da prestação de concretos das acções bem sucedidas, a
contas, mas isso, observavam, era apenas “um imprensa pode reconstituir o poder das
ritual”. denúncias, sendo a denúncia das omissões
Deste estudo comparado de 13 países ainda mais efectiva e estrondosa que a
asiáticos, são assim relevantes as assimetrias denúncia dos factos.
entre países onde crianças continuam a ser Na definição de conteúdos de busca de
apreciadas por valores econômicos e onde a solução estão peças que: 1) revelem projectos
infância ainda parece não se ter constituído sociais bem sucedidos; 2) representem
como entidade nacional, e aqueles onde o investigação com foco na denúncia mas
incluindo factos ou idéias que remetam o leitor crianças desaparecidas; 15) mortalidade
para reflexão sobre soluções; 3) apresentem infantil; 16) meio ambiente.
debates entre sectores diversos da sociedade; Vejamos as categorias mais freqüentes
4) esclareçam aspectos legais ou projectos de em 1998 e 1999, assinalando que entre as
lei aprovados a nível municipal, estadual ou categorias com menos referência se situam, em
federal; 5) forneçam resultados de pesquisas ambos os anos, temas como a exploração do
no terreno, produzidas por entidades civis ou trabalho infantil, situação de rua, crianças
governamentais; 6) cooperem com esforços de desaparecidas, mortalidade infantil.
campanhas na área da assistência social; 7) A liderança Educação é consonante com
enfatizem, em editoriais ou artigos, as soluções resultados da cobertura de imprensa nos
existentes ou a necessidade de busca de Estados Unidos e na imprensa portuguesa no
soluções. São excluídas acções policiais, que se refere a sua agenda interna, como
promessas de governantes, propostas que iremos ver. Os dados não são contudo
ainda não tenham sido aprovadas ou de comparáveis, já que aqui se englobam mais
transferência de verbas. itens, como o ensino pré-universitário, e
A agência propõe-se assim a contribuir educação profissional e notícias sobre
para uma equação mais equilibrada entra um professores e suas práticas. Segundo a
“jornalismo de denúncia” e “uma prática agência, quase metade das peças sobre
profissional que se inspira na responsabilidade educação (48,2%) apresentava busca de
de promover e ampliar o debate social”. Esta soluções em 1998, descendo esse valor para
tónica é vincada no relatório de 1999, que 34% em 1999.
enquadra os dados em reflexões sobre os A segunda categoria em 1998, direitos e
dispositivos organizacionais mais favoráveis à justiça, inclui conteúdos como a promoção e
prossecução dos objectivos de maior atenção defesa dos direitos da criança, privação de
das crianças na imprensa. liberdade, medidas sócio-educativas e adopção.
Ano e meio após o início das suas Desceu para quarta posição em 1999, a seguir
atividades, em 1998, a ANDI assinalava o saúde e violência. A sua informação assenta
crescimento da cobertura jornalística da sobretudo em fontes especializadas, como
infância na imprensa brasileira (são por si juristas e advogados, bem como em
cobertos 52 jornais diários e 9 revistas, organizações não-governamentais. As peças
incluindo os principais jornais brasileiros de com busca de soluções ficaram-se pelos 23,4%
qualidade), os conteúdos mais freqüentes e a em 1998, valor que sobe para 25,6% no ano
sua distribuição geográfica e por jornais. O seguinte. O relatório de 1999 destaca como
relatório do segundo semestre de 1998 acontecimentos particularmente negativos as
indicava que das 13.489 peças identificadas, rebeliões e mortes em instituiç~ies prisionais
37,9% podiam ser consideradas como contendo para jovens em São Paulo, mas assinala a
busca de soluções, num crescimento nesse diminuição do tom policialesco e o crescimento
índice de matérias classificadas. Estes dados da defesa de melhores condições para jovens,
eram confirmados no ano seguinte, com uma na óptica dos seus direitos e da falência das
ligeira redução percentual: 30,8% das 48.639 políticas públicas.
peças recolhidas continham busca de soluções. A saúde engloba itens como nutrição,
Note-se que esse valor era de 25,1% no início sida, gravidez e sexualidade (terceira posição
de 1997, significativo da atenção por parte em 1998, segunda em 1999). A busca de
deste jornalismo brasileiro. soluções foi encontrada em 43,8% das peças
As 16 categorias de distribuição das de 1998, em matérias como descobertas
peças foram, por ordem de importância em internacionais e nacionais de novos
1998: 1) educação; 2) direitos e justiça; 3) tratamentos, e campanhas como amamentação
saúde; 4) violência; 5) terceiro sector ou nutrição. No ano seguinte, nesta categoria,
(organizações não-governamentais e empresas a percentagem de peças com busca de soluções
privadas); 6) políticas públicas; 7) baixou para 32,7%.
comportamento; 8) exploração e abuso sexual; A Violência (quarta posição em 1998,
9) cultura e desporto; 10) drogas; 11) terceira em 1999) engloba itens como roubos,
exploração do trabalho; 12) situação de rua; furtos, assassinatos e maus tratos que
13) portadores de necessidades especiais; 14) envolvem a criança como vítima ou
delinqüente. É a categoria com menos peças proximidade afectiva e de cumplicidade com os
com busca de soluções e variação: 11,6% em leitores, também ele contornando o social. O
1998, 12,5% em 1999. O relatório de 1998 terceiro plano terá menores dimensões, mas
destaca mudanças no discurso jornalístico, existe. É a convocação dos jornalistas a partir
como a restrição da palavra menor associada a da responsabilidade social da sua actividade de
crianças com menos recursos econômicos e o mediadores. Preocupações de ordem ética
desaparecimento de termos como pivete e cruzam latitudes, mobilizam palcos e
pixote. Já o relatório de 1999 dá conta do movimentos sociais, na afirmação de que um
acumular de situações de violência nas escolas outro jornalismo é possível.
e da cobertura contraditória dos media:
Quando crianças e adolescentes são
vítimas, aparecem nos jornais e revistas como
vítimas da crise social. Quando o jovem passa de
vítima a agente da violência é tratado meramente 1
Ver, por exemplo, a pesquisa e informação
como criminoso, sem se levar em consideração o disponível nos sites na NORDICOM (nordicom.gu.se) e da
contexto em que vive e do qual também é u Unicef.org/Magic, com recursos sobre crianças e media.
produto. ² In Público, 6 de Outubro de 2001.
Finalizamos com o terceiro setor e as ³ Jornalismo norte americano tira lições do 11 de
políticas públicas, em quinto lugar em ambos Setembro, in Público, 20 de Janeiro de 2002. pp. 44-45.
os relatórios. Engloba organizações não-
governamentais e o que agência designa por
“cidadania empresarial”, onde inclui empresas
privadas, fundações e institutos. Esta categoria Extraído do livro “Crianças em notícia:
apresenta elevados índices de busca de a construção da infância pelo discurso
soluções (59%). Nas políticas públicas, que jornalístico”. (1970-2000. Lisboa: ICS.
reportam acções onde as agências públicas são Imprensa de Ciências Sociais, 2005)
a principal fonte de informação, a busca de
soluções foi encontrada em 43,5% das peças, a
que não é alheia à promoção dos próprios
agentes da informação.
Deste olhar de uma agência promotora
de informação que procura influenciar critérios
de noticiabilidade do meio jornalístico,
destacamos as interacções favoráveis entre
fontes e jornalistas para a configuração
noticiosa, enquanto a relação mais
desfavorável, entre uma elevada freqüência em
notícia e a menor presença de busca de
soluções, ocorre na cobertura da violência
envolvendo os mais novos.

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Destes documentos emerge uma tríade
de planos. A constatação de tempos pré-
modernos à luz dos valores ocidentais, que se
contrapõem à criança universal proposta pela
Convenção, e que colocam milhões de crianças
nas margens das preocupações do poder. Outro
plano remete para a perspectiva comercial da
notícia. A orientação para públicos e os seus
interesse assenta em duas grandes
perspectivas: um jornalismo de cruzada, com
freqüência restrito a uma dimensão
sensacionalista, e um jornalismo de

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