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CAPÍTULO II

O Preconceito Rraal
conta os CristãoS“Novos
em Portogal

RETROSPECTIVA HISTÓRICA: O SÉCULO XIV


E AS ORIGENS DO ESTATUTO
DE PUREZA DE SANGUE

A história do racismo contra os cristãos-novos em Portugal e


Brasil é simplesmente fascinante. Sobretudo, por se tratar de tema
onde as relações sociais assumiram aspecto racista apoiado em um
sistema legal e simbólico, voltado para uma ideologia cristã. O
assunto torna-se ao mesmo tempo difícil, vibrante e inesgotável.
A busca de explicação para os fatos ocorridos no Brasil Colô­
nia obrigou-nos a remontar grande parte da História da Península
Ibérica, procurando, entre os judeus, os antecedentes de uma situa­
ção específica. Retrocedendo até a Idade Média, antes da invasão
dos mouros, identificamos os judeus habitando a Península Ibérica
e constituindo grande parte da população. Dedicando-se à agricul­
tura e ao comércio, prestaram grande ajuda aos reinos cristãos, na
guerra contra os invasores.1
Tendo uma vida cultural à parte, esse grupo veio a se consti­
tuir em uma classe distinta por seus costumes e religião. A partir do
Século XII, encontravam-se organizados em comunidades,2 sendo
a de Santarém considerada como a mais antiga.3 Contrariando as
determinações dos Concílios, os judeus não usavam distintivos
para se diferenciarem dos cristãos.
As relações entre os grupos não foram prejudicadas por moti­
vos religiosos, sendo os judeus favorecidos pelos antigos forais que
lhes concediam certo desembaraço e mobilidade.
MARIA LUIZA TUCCI CARNEIRO
II

Protegidos por determinações reais, os judeus gozaram mui-


vezes de condição jurídica favorável, chegando mesmo a usu­
fruir de consideráveis privilégios. Durante o reinado de Afonso II
í i 11 -1223), as determinações reais sofreram grande influência da
.fc-mônica introduzida no pais. Nenhum judeu poderia retornar
ao judaísmo após tê-lo abandonado, nem deserdar o filho que hou-
vesse se convertido ao cristianismo.
Conhecidos como hábeis financistas, os judeus foram chama­
dos a ocupar cargos oficiais durante o reinado de Sancho II (1223-
1248), contrariando a posição adotada pelo Papa Gregorio IX.5
Tratados como um grupo segregado, recebendo proteção especial
do Estado, os judeus preservavam a sua identidade prestando servi­
ços especiais à Corte e aos monarcas. Como conseqüência dessa
situação interna, os judeus usufruíram de certo “status” não con­
dizente com a sua posição social, gerando conflitos com o sistema
simbólico imposto pelo grupo dominante.6
D. Diniz chegou a efetuar acordos com os judeus de Bragan­
ça, que reclamavam pelos altos tributos que lhes eram impostos.
Esses fatos estimularam a antipatia do clero para com os judeus.
Tolerados nas Cortes e favorecidos pela Alta Nobreza, os judeus
influentes identificavam-se com a aristocracia do país. Habitavam
ricas residências em Lisboa, vestiam finos trajes de seda e chega­
vam a possuir escravos motiros convertidos ao cristianismo.
Ao grupo dominante interessava mantê-los como grupo dife­
renciado do restante da população, pois, desta forma, teria condi­
ções de usufruir de seus préstimos financeiros. Assim, novas restri­
ções instigadas pelo Clero foram impostas ao grupo. D. Afonso IV
(1325-1357) reafirmou, em 1325, a lei que obrigava os judeus a usar
distintivos e os proibia de usar colares de ouro e prata. Em 1352,
tirou-lhes o direito de emigrar e, no ano seguinte, organizou o fisco
das comunas judaicas. Essas determinações em nada interferiram
nas atividades comerciais lideradas pelos hebreus. Severas penas
foram impostas à usura, por D. Pedro I (1357-1367), o que não
impediu que grandes fortunas continuassem nas mãos dos judeus.7
Uma série de desordens irrompeu em Portugal durante o rei­
nado de D. Fernando (1367-1383), quando os judeus foram subme­
tidos a maus tratos e as leis, desrespeitadas. Com a morte do rei,
assumiu o trono, como Regente, sua esposa D? Leonor, que, pres­
sionada pelos representantes de Lisboa, restringiu os privilégios dos
judeus e destituiu grande número deles dos cargos públicos.
D. João, mestre de Avis, foi eleito defensor e Regente do Rei­
no (1383), apoiado pela população, inclusive pelos judeus, que
PRECONCEITO RACIAL: PORTUGaL E BRASIL-COLÓNIA 45

deram grande ajuda financeira aos cofres públicos. Aclamado Rei


em 1385, iniciou um período de paz e tranquilidade para os segui­
dores do judaísmo, apesar da atuação contrária dos religiosos, que
tentavam instigar o povo.
Na Espanha, a situação dos judeus não era a mesma. Em
1391 insurgiram ataques contra as judiarias e massacre de judeus.
O terror se espalhou por Castela, Aragão, Catalunha, Valência e
Sevilha. Os que não foram mortos por sua resistência religiosa,
viram-se obrigados a aceitar o batismo ou então a assumir nomes
falsos, refugiando-se em Portugal.8
Fernando I de Aragão procurou incentivar a conversão dos
judeus espanhóis, chegando mesmo a conferir cargos públicos aos
que aderissem ao cristianismo. Muitos voltaram às suas atividades
tradicionais, mas o problema não foi solucionado. Bauer considera
que a aversão contra os judeus não era simplesmente um problema
religioso: “por mais profundo que fosse a fé do povo cristão no
sacramento do Batismo, um usurário, ou um arrecadador de impos­
tos, seria sempre considerado antipático, tanto antes quanto depois
da conversão’’ .9 O batismo dos judeus e sua conversão foram efica­
zes para salvar a vida de inúmeras pessoas, até o momento em que
as autoridades civis e religiosas não haviam encontrado um novo
argumento religioso.10
D. João, rei de Portugal, influenciado pelo Rabino-mor D.
Moisés Navarro, ordenou a proteção aos judeus refugiados da
Espanha, proibindo que fossem castigados. Mesmo em Portugal,
muitos judeus se converteram ao cristianismo, amedrontados pelos
acontecimentos espanhóis e incentivados pelos privilégios concedi­
dos pelo Estado.
A Corte e o Clero continuaram a pressionar o monarca portu­
guês contra os judeus, obrigando-o a restaurar uma série de leis que
restringiam muitas das atividades desse grupo. Essas leis raramente
foram colocadas em prática. Os judeus continuaram a servir como
médicos e cirurgiões no palácio e a ser empregados como cobrado­
res de impostos.11
Outras leis desfavoráveis ao grupo continuaram a ser publi­
cadas pelo sucessor de D. João, seu filho D. Duarte (1433-38),
sem, contudo, modificar a posição social e econômica ocupada por
eles.
Os judeus habitavam, nessa época, judiarias isoladas, mas
localizadas dentro das muralhas da cidade, o que não era comum
aos muçulmanos. Além das posições oficiais e honrosas, tinham
profissões diversificadas, como alfaiates, pedreiros, sapateiros, fer-
MARIA LUIZATUCCl CARNEIRO
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r-ros carpinteiros e coletores de impostos. Comercializavam mel,


azeite’e cera, atendendo às cidades e aldeias.
a. rnndicões que favoreciam os judeus nao se alteraram
durante o governo de D. Afonso V (1438-1481). Assimilados aos
costumes dos cristãos, pouco ortodoxos do ponto de vista religioso,
frequentando a Corte, residindo em verdadeiros palácios, os hebreus
geravam um clima de desconfiança e inveja. Essa situação serviu
nara que o Clero incitasse o povo que vivia na miséria, alegando
que os judeus eram os causadores da referida situação.
No que diz respeito aos judeus convertidos ao catolicismo,
estes não encontraram o clima de igualdade que haviam esperado
com a conversão. Mesmo convertidos, voltaram a ser alvo de agita­
ções populares, onde se expressava todo o antigo preconceito anti-
judaico.
Essas agitações tiveram inicio durante um período caracteri­
zado por tensões políticas envolvendo nobres insubordinados e cor­
tesãos. Por outro lado, surgiram conflitos entre estes e as famílias
de liderança municipal apoiadas pelo Estado.12
Paralelamente a essas intrigas nos círculos políticos, distúr­
bios entre cristãos-velhos e os novos convertidos completavam este
quadro, em fins da década dos 40. Esse conflito, inicialmente reli­
gioso, culminou por assumir características raciais, tendo a cidade
de Toledo como sede dos acontecimentos e o ano de 1449 como
data referencial.
A causa incidental dessa revolta foi uma pesada taxa de impos­
to, perto de um milhão de “maravedis” arrecadada por Álvaro de
Luna, favorito de D. João II, para financiar a campanha contra
Aragão. Incitado por Pedro Sarmiento, comandante do burgo de
Alcazar de nomeação real, e por um artesão ignorado, o povo indig­
nado com o tributo atribuiu a um rico comerciante converso, Alon-
so Cota, a suspeita de ter sido o instigador de tal imposto.
A rebelião teve início quando foi ateado fogo à casa de Alon-
so Cota, então cobrador de impostos. Em nome do rei foi saqueado
o quarteirão de Madalena, habitado por ricos conversos, e foram
sequestrados os bens dos negociantes cristãos-novos.'3
mane a™lent0’ com 0 P°der da administração municipal nas
religioso-ind^ pr’sào do líder cristão-novo e, após inquérito
acontecimento^ ’ sentenciou"° a ser queimado. No decorrer desses
miento, Senhor X Toted^6'™ fStatut0 de sanêue> quando Sar-
dianteàeuXss t ’ Pr°claraou a “Sentencia Estatuto”,
dos. Esse acontecimento^eTdè^’ h°m/ ajUda de homens letra‘
» de junho de 1449, é conhecido como
PRECONCEITO RACIAL: PORTUGAL E BRASIL-COLÔNIA 47

“Ajuntamento de Toledo”. O autor Cecil Roth refere-se a essa


assembléia como sendo uma Corte de emergência, na qual se deba­
teu sobre a possibilidade de os conversos regenciarem postos públi­
cos. Além de discutir a posição dos conversos nos cargos importan­
tes de Toledo, elaborou-se uma lista de acusações contra os cristãos-
novos, manifestando-se claramente a oposição do Clero. Após o
pronunciamento da “Sentencia Estatuto”, os conversos ficaram
inabilitados para ocupar cargos públicos e prestar testemunho con­
tra os cristãos. Foram, também, depostos 12 juizes, notários e con­
selheiros cívicos de origem judaica.14
Nesse Edito, os cristãos-novos eram acusados de indignidade
em assunto de religião, pelo fato de guardarem os preceitos da Lei
Mosaica e referirem-se a Jesus de Nazaré como sendo um Judeu,
quando os cristãos o adoravam como sendo o Salvador. Alegava
também que na Sexta-Feira Grande, enquanto nas Igrejas era con­
sagrado o óleo sagrado e a imagem do Redentor celebrizada no
altar, os conversos matavam cordeiros e ofereciam sacrifícios.
Ademais, os conversos eram considerados como inimigos da
cidade e dos habitantes cristãos, além de contribuírem para o em­
pobrecimento de nobres e cavalheiros cristãos-velhos. Conforme a
versão apresentada, os novos convertidos teriam se armado e parti­
do em ação, com o objetivo de aniquilar os cristãos-velhos, termi­
nando por entregar a cidade aos inimigos estrangeiros. Em conse­
quência, Sarmiento proclamou os descendentes de judeus como
incapazes de exercer cargos públicos.15
A segregação imposta aos cristãos-novos recebeu uma funda­
mentação religiosa que logo assumiu conotação racista, encobrindo
os interesses de vários grupos sociais. Endossada mais tarde pela
Coroa, pela Igreja e Ordens Militares, a idéia de limpeza de sangue
recebeu características legais, passando a fazer parte dos valores
culturais espanhóis, para no século seguinte atingir também a socie­
dade portuguesa.
Por trás de todos esses fatos, observa-se um processo de me­
tamorfose, onde o judeu, ao assumir a posição de converso, fez-se
herdeiro de todas as acusações tradicionais portadas pelo seu grupo.
Só que, desta vez, com um sentido depreciativo e pejorativo.
O Estatuto de Toledo deve ser considerado como um fenôme­
no de ordem social e urbano, originado do desejo de se abortar o
desenvolvimento da burguesia cristã-nova. Tanto é que, no saque
ao quarteirão de Madalena, o cristão-velho mata o cristão-novo e
não o judeu, que já tinha uma legislação contra ele. O Estatuto
representou, antes de mais nada, uma luta de classes. O fortalecí-
MARIA LUIZATUCC1 CARNEIRO
48

mento econômico e social ^^£a ““


a°s interesses de ascenwo Bula Ni , v
fc , ^ni.,noava Pedro Sarmiento, autor da Sentencia
ves da qual exc g |ices e ajudantes. Entretanto, essa
Estatuto”, e todos os us cúmplice^ q
cidaUddeedneaToX os cristãos cordovezes fundaram uma confraria
nara o culto da “Madre de Dios”, através da qual alertavam todas
as classes e esferas sociais a respeito da limpeza de sangue. O fana­
tismo e o medo de serem tidos como suspeitos de origem judaica
passaram logo a tomar conta de irmandades religiosas, congrega­
ções de obras pias, capelas, ordens militares, colégios e até mesmo
srêmios de arte.16 .
Para Amador dè los Rios, o Grêmio dos pedreiros de Tole­
do, composto em sua maior parte de mouros conversos, se anteci­
pou a todos os grêmios industriais. Em 1481, publicou um Estatuto
proibindo a admissão, como aprendizes, dos confessos judeus,
seus filhos e parentes.17
Em fins do Século XV, governavam Castela e Aragão os Reis
Católicos, Fernando e Isabel, cujo desejo era transformar a Espa­
nha em uma grande potência. Necessitavam antes de tudo expulsar
os mouros de suas terras. Para isto precisavam de fundos, pois o
tesouro estava vazio. O confisco de bens era uma forma de se con­
seguir encher os cofres públicos. A religião foi o argumento encon­
trado para encobrir os interesses econômicos da Coroa. Os desejos
do rei iam ao encontro das queixas da população contra os conver­
sos. O inimigo objetivo foi detectado. Faltava ainda a máquina
para caçá-los.18
Foi solicitado ao Papa Sixto IV uma Bula nomeando Tomás
de Torquemada como grão-inquisidor, o que se deu em 1481. O
medo e o terror tomou conta do país, sendo os conversos duramente
castigados pelo Tribunal da Inquisição. Muitos judeus procuraram
proteção em Portugal, na tentativa de escapar à morte e aos maltra­
to5^0 Santo Ofício. A maioria dos elementos atingidos pela Inqui­
sição pertencia a diferentes camadas da sociedade burguesa: de
intelectuais, clérigos, funcionários públicos e militares a alfaiates,
sapateiros etc.19
Governava Portugal nesta época D. João II, que encarregou
fa^aT6110 de.inquirir sobre a vida dos imigrados, cuja
Esnanhl^n-V'^ °S Ja haV‘a transposto as fronteiras. Como na
Do Porto em 4«am.C°ndenad0S à fogueira e à Prisâ° perpétua.
, vanos desses criptojudeus foram expulsos,
PRECONCEITO RACIAL: PORTUGAL E BRASIL-COLÕNIA 49

sendo-lhes,proibida a emigração por via marítima sem autorização


régia.:o
Os acontecimentos na Espanha tiveram grande repercussão
em Portugal, onde a propaganda antijudaica crescia dia a dia. A
explicação para a miséria em que se encontrava o povo português
foi logo encontrada: o falo de os judeus continuarem ocupando
cargos oficiais, como o dc cobradores e arrecadadores de impostos
e taxas. Essa posição dava-lhes condições de impor sua autoridade
sobre o povo, havendo abusos da parte de muitos. Alegando extor­
são, os representantes das cidades e vilas pressionavam o Rei, nas
Cortes, contra os judeus.
Em 1492, outros refugiados espanhóis buscaram acolhida em
Portugal.21 O rabino Isaac Aboab interferiu junto a D. João II,
solicitando a entrada daqueles em terras portuguesas. A admissão
dos judeus em terras portuguesas era um negócio muito lucrativo
para o Reino, que, diante da política colonial, tinha, como priori­
dade, realizar as conquistas na África. A necessidade de restabele­
cer os tesouros do Estado influenciou as atitudes do monarca a
aceitar os refugiados, contrariando os conselhos da Corte. Cerca de
120000 judeus espanhóis embarcaram para Portugal, através dos
portos liberados: Oliveira, Arronches, Castelo Rodrigo, Bragança
e Melgaço. Aqueles que pagassem uma certa quantia, estipulada
antecipadamente, poderiam residir no Reino. Os demais teriam
que, com o prazo de apenas 8 meses de permanência, se retirar para
outro país.22
O clima de euforia que envolveu o Império Português, na
época dos descobrimentos, facilitou a integração dos judeus recém-
chegados da Espanha à sociedade judaica e cristã do país. Nume­
rosos judeus foram admitidos no convívio de D. João II, princi­
palmente aqueles que poderiam ser aproveitados por seus conheci­
mentos científicos. Outros, dedicando-se ao comércio marítimo
internacional, acabaram por atingir certa estabilidade financeira e
social.23
Os conflitos tornam-se cada vez mais iminentes. Encobertos
pelo nome de cristãos, os judeus são alvo da inveja e ódio daqueles
que se consideravam portadores da verdadeira fé católica. Confor­
me afirma Ortiz:

"... si odiados eran los judios, no lo fueron menos los que


ahora aparecian com mas prepotência escudados com el nom-
bre de cristianos”.24
TUCCI CARNEIRO
MARIA LU1ZA
50
mntra o erupo convertido encon-

preendida contra a burguesia cristã.


.. 0 relevo que adquiriam na vida comercial colocou-os
frente a rente com a burguesia cristã, e seus padrões cultu­
rais diferentes serviram para alimentar o preconceito contra
eles”.25
Outro acontecimento somou-se a esta situação vivenciada
nelos refugiados espanhóis: o vencimento do prazo de 8 meses de
permanência no país daqueles que não pagaram a quantia estipula­
da. Em navios providenciados pelo monarca, esses judeus foram
obrigados a se retirar. Entretanto, a forma de tratamento dado ao
grupo, durante a viagem, foi de desprezo e violência, conforme
descrição dos cronistas da época. Aqueles que permaneceram no
país, após o prazo dado para emigrar, foram transformados em
escravos, e seus filhos, crianças entre 2 e 10 anos, foram transpor­
tados para as ilhas de S. Tomé ou Perdidas. A maioria das crianças
morreu durante a viagem e as que sobreviveram tornaram-se, segun­
do os cronistas, ricos plantadores.26
Com a morte de D. João II, subiu ao trono de Portugal seu
sobrinho D. Manuel (1495-1521), que se beneficiou dos conheci­
mentos científicos e culturais dos judeus, muitos dos quais eram
matemáticos, cartógrafos e médicos. Os nomes de muitos deles
constam entre aqueles que cooperaram para as grandes descobertas
do Século XV.27
Esta situação dos judeus espanhóis e portugueses no reino
lusitano durou pouco. Interesses políticos de D. Manuel, que pre­
tendia estender seu império por toda Península Pirenaica, levaram-
no a propor casamento a Isabel, filha dos Reis Católicos da Espa­
nha. Uma condição foi imposta ao monarca português pelos Reis
espanhóis: que todos os judeus e mouros fossem expulsos das terras
portuguesas.
Conforme decreto real, os judeus teriam de abandonar o país
no prazo de 10 meses, sob pena de morte e confisco de bens. Em
fms de outubro de 1497, não deveria haver um só infiel no Reino. O
ecreto inc uia não só os judeus, mas também os muçulmanos.
. Anfhsando esse Edito de expulsão percebemos, de forma
Um* s^tuaç^° identificada por Sartre no comporta-
aue o antí^c 1 S5.mita’ ,e que p°de ser adaptada a esta situação: a de
que o anti-semitismo e originalmente um maniqueísmo; explica o
PRECONCEITO RACIAL: PORTUGAL E BRASIL-COLÔNIA 51

ritmo do mundo “mediante a luta do princípio do Bem contra o


Mal”. Persiste sempre a idéia de que um poder malévolo inflige a
sociedade. A tarefa do anti-semita não é construir a sociedade, mas
purificar a já existente.
Relacionando com os termos dessa lei promulgada por D.
Manuel, encontramos as seguintes referências aos judeus e mouros:
que os judeus e mouros, obstinados no ódio à Santa Fé Católica,
“tem cometido, e continuadamente, contra ele grandes males, e
blasfêmias em Nossos Reynos...”; que os judeus e mouros são
filhos da maldição; que “apartam muitos cristãos da verdadeira fé
católica... etc.”. A partir destas razões determinou-se que “até ér
todo mez d’ outubro do anno do nascimento de Nosso Sr. de mil
quatrocentos e noventa e sete, todos os judeus, e mouros forros,
que em Nossos Reynos ouver, se saiam fora delles, sob pena de
morte natural, e perder as fazendas.”28
Motivos diversos, que não analisaremos aqui, levaram o rei a
lançar mão dos mais variados artifícios. Determinou pois que, em
abril de 1497, os filhos de judeus, menores de 14 anos de idade, fos­
sem retirados de seus pais e educados na fé cristã. Essa ordem foi
posta em prática através de agressão e lamentações.
Em outubro de 1497, expirou o prazo de emigração. Apesar
dos pedidos dos judeus, a indicação de um porto permitido para
saída, Lisboa, somente foi dada após o vencimento do prazo. Para
lá se dirigiram milhares de judeus mas, pelo fato de o prazo ter
expirado, lhes foi comunicado serem considerados escravos do rei.
A esperança de que se convertessem voluntariamente ainda fazia
parte dos planos de D. Manuel. Não conseguindo realizar tal inten­
to, o monarca português ordenou que fossem batizados à força.29
Como a Espanha, Portugal passa a enfrentar o problema
cristão-novo, que ganhará forças, meio século depois, com o esta­
belecimento do Tribunal da Inquisição e com a gradativa aplicação
do Estatuto de pureza de sangue.30
Tanto na Espanha como em Portugal, a perseguição ao judeu
convertido ao cristianismo foi alimentada pelos cristãos-velhos,
muitos dos quais eram pequenos comerciantes burgueses que, nessa
ação, encontraram uma maneira de se livrarem daqueles que lhes
faziam concorrência comercial.
O problema tornou-se mais conflitante quando os cristãos-
velhos perceberam que, através da conversão ao catolicismo, os
judeus passaram a ter acesso às mesmas oportunidades que eles.
Integrando-se à sociedade portuguesa cristã, grande parte dos con­
versos aceitou convictamente a fé católica. Outros entregaram-se a
MARIA LU1ZATUCCI CARNEIRO
52
prática secreta de sua religião de origem, nascendo dessa forma 0
criptojudaismo. ’ rdo e finanças, muitos conversos foram
■ rendo ganhando prestigio, igualdade social e emancipa-
ennq ômica Passaram desta forma a fazer parte de um grupo
Cortante de negociantes e financistas, constituindo poderosa for-
ça econômica no pais.'2 A burguesia cristã-velha, manipulada pela
propaganda anticristã-nova, apelou para os argumentos religiosos,
com o objetivo de impedir sua ascensão social e economica.
Um racismo em termos teológicos surge, também, encobrin­
do os interesses daqueles que manipulavam as forças de poder: o
Estado e a Igreja. O receio de que os marranos competissem com
seu grupo de status levou o grupo dominante a reforçar a imagem
deturpada de que todos os conversos eram falsos cristãos. A partir
do reinado dos Felipes, através de perseguições religiosas e confis-
cação de bens, de torturas e terror, de barreiras sociais e estereó­
tipos, o preconceito contra o cristão-novo ganhou força dia a dia.
Os valores culturais e sociais de Portugal vão sendo substituí­
dos. Ao orgulho de ser fidalgo juntou-se o de ser limpo de sangue,
ou seja, de não descender de judeus, a raça impura e infecta. A
aristocracia se vale constantemente desse conceito, que lhe forta­
lece a posição de grupo de status, e se transforma em uma casta pri­
vilegiada. Como na Espanha, a Igreja se tornou cúmplice dessa
aristocracia. Conforme lembra Miguel de Castilho:

“A Igreja se lança contra os comerciantes, os joalheiros e os


banqueiros, ela neutraliza a monarquia quando lhe assegura
ingressar na riqueza líquida, na metade das somas confis­
cadas.”33

Para ser nobre precisava-se antes de mais nada comprovar a


limpeza de sangue. Dessa forma, alguns valores culturais se inter-
igam, interferindo diretamente no comportamento social dos gru-
P°S Se djZen? limpos de sanêue: Pureza, honra, honestidade,
1 e i a e e ignidade. Não comprovar sua ascendência cristã sig-
nnivprddTd31^ ^PÇdido de ocupar cargos públicos, de freqüentar
de Honra ° mgressar nas Ordens Sacras e de receber títulos

pos: o dos dkcdm^H001106^05’ ten]os a configuração de dois gru-


minador participam osTdaZs^a D° grUP° d'SCr‘'
Aos fidalgos não interessava â,tb^eUeSla Crlstâ'velha e 0 p0V°'
a que ocorressem mudanças sociais,
PRECONCEITO RACIAL: PORTUGAL E BRASIL-COLÓN1A 53

pois a ordem social estabelecida e mantida por seu grupo lhes ga­
rante e manipulação do poder e sua decorrente riqueza, pompa e
luxo. Retomando Miguel de Castilho:

“O fidalgo era por definição um reacionário, ele se opunha


violentamente a toda reforma.”34

A burguesia cristã-velha se une ao grupo dominante, coope­


rando para a segregação racial do cristão-novo, atendendo cada
facção aos seus interesses particulares. Os comerciantes cristãos-
velhos, pelo fato de se dedicarem à atividade mercantil e ao traba­
lho manual, ficavam impossibilitados de ascender socialmente,
contrapondo-se aos valores culturais da aristocracia. Entretanto,
viram no endosso ao conceito de pureza de sangue uma forma de
vencer essa barreira social, pelo fato de serem cristãos convictos,
sem ascendência judaica.
Essa luta de interesses vai se processar no plano religioso, sob
a alegação de que o cristão-novo é um falso cristão. O racismo surge
como um fenômeno urbano, característico dos tempos modernos.
Para a gente oprimida do povo, manipulada e doutrinada pelo
Clero, o converso se transformou no ponto de fixação de descon­
tentamento e frustrações de várias origens.35
Iniciaram-se desta forma, em Portugal, as manifestações de
racismo contra o cristão-novo, as quais foram transferidas, mais
tarde, para o Brasil. Baseado em uma ideologia cristã, e valendo-se
do sistema simbólico mantido pelo grupo discriminador, esse pre­
conceito assumiu aspectos legais.
Fatos se sucederam a partir do Século XVI, cooperando para
o fortalecimento do racismo. Dentre eles podemos relacionar: o
estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício, o alastramento do
conceito de pureza de sangue, a aplicação de uma política antiimi-
gratória, a divulgação de obras antijudaicas e a aplicação de uma
legislação francamente racista.

O RACISMO INSTITUCIONALIZADO

As origens da legislação discriminatória


Os estigmatizados
A coexistência étnica é um dos fatos que, desde o início da
Idade Média, marcou a História da Península Ibérica, distinguin-
MARIA LU1ZATUCC1 CARNEIRO
54

. naises de além Pirineus. Nela habitavam as


do-a da dos de P> celtaSj itàhcos> visigodos,
"TusTmouros cujas relações intergrupais se caracterizaram pela
judeus e mour , J religião e os costumes nao constituíam
emempecilho para a realização de casamentos mistos, mantendo-se
Um XXlmentrpàrÍ^ídeus, os Séculos XII e XIII foram

de plenitude, paz e amizade:

“Judios, cristianos y mudejares viviam en una simbiosis que a


todos reportaba benefícios basada en gran parte en una divi-
sion de trabajo y de Ias funciones sociales. La comun lealtad
al soberano mantenia entre estos grupos um embrión de uni-
dad política.”37

A Igreja durante a Idade Média preocupou-se em impedir o


convívio dos judeus com os cristãos. Procurou evitar as influências
religiosas dos judeus, mas as medidas não eram levadas a sério,
nem pela população nem pelos monarcas.38 Havia preocupação
com o herege e o apóstata, mas sem conotação racista.
Os municípios legislavam baseados nos forais antigos, sem
levar em conta a interferência das leis canônicas. Não existia ainda
no reino uma legislação regularmente codificada. Os usos e costu­
mes do povo estavam muitas vezes acima das resoluções do Estado
e da Igreja.
As Cortes — assembléias de dignatários seculares e eclesiásti­
cos — em vários momentos interferiram junto ao soberano, repu­
diando as condições de liberdade em que viviam os judeus. Constan­
temente se fez sentir sobre os reis a forte pressão dos eclesiásticos,
forçando-os a retificarem e a endossarem leis canônicas discrimina­
tórias contra os judeus. Mas, na prática, não eram obedecidas. A
população cristã era, muitas vezes, instigada pelo Clero contra as
minorias étnicas — judeus e mouros —, alimentando o conflito de
interesses entre a Igreja e o Estado.39
Durante séculos, as leis discriminatórias se repetiram sem
conseguir impedir o relacionamento entre cristãos e judeus. A atua-
çao os rabinos-mores junto ao soberano ainda contribuiu para
neutralizar a prática dessas resoluções.
As cartas de foral, as leis gerais, os estilos, usos e costumes
l a Ser codificados durante o reinado de D. João
rneira cnlpra0' 6 & ,°jada a última cod>ficação, dando origem à pri-
Ção geral das leis portuguesas, conhecidas como “Orde­
PRECONCEITO RACIAL: PORTUGAL E BRASIL-COLÕNIA 55

nações Afonsinas”. Foram admitidos como’ fonte de valor do Di­


reito Romano e o Direito Canônico.40
Como podemos ver no quadro seguinte, os mouros e os judeus
encontram-se discriminados na Legislação Portuguesa a partir de
meados do Século XV até a segunda metade do Século XVIII, sendo
constantemente tratados como elementos distintos do restante da
população. Essa situação legal refletiu a necessidade de reforçar as
barreiras sociais contra eles.41
Conforme já relatamos anteriormente, esses grupos minoritá­
rios vinham gozando de condições de prestígio e ocupando cargos
públicos, em contradição com as resoluções tomadas pelos Concí-
lios, Bulas Papais e Decretos reais.
Essa distinção entre cristãos, judeus e mouros consta literal­
mente na legislação. Na maioria das vezes, assume um aspecto nega­
tivo, impondo aos judeus e mouros restrições e proibições, tanto4na
vida pública como na religiosa.
É interessante notar que, com o tempo, aumentam os grupos
estigmatizados da sociedade portuguesa, tornando-se nítidas as me­
didas de exclusão.42 É a partir de 1514/21 que surgem nas Ordena­
ções iManuelinas três novas caracterizações: cristão-novo, ciganose
indígena. Essa situação se mantém até 1603, quando serão acres­
centados o negro e o mulato.43 As razões alegadas são as mais varia­
das: algumas com caráter essencialmente racial e outras apoiando-
se na religião, em comportamentos, atitudes, idéias e crenças.44
Os primeiros sinais da estigmatização do cristão-novo em
Portugal podem ser identificados a partir de 1497, quando se pro­
cessou a conversão forçada dos judeus.45 Uma série de leis discrimi­
natórias, aplicadas principalmente a partir dos fins do Século XVI,
institucionalizaram essa exclusão, dando ao fenômeno característi­
cas racistas.
A partir de 1774, a discriminação contra o judeu, o mouro e o
cristão-novo desaparecerá da legislação portuguesa, mas o precon­
ceito contra essas minorias étnicas continuará vivo no âmbito da
sociedade global. Com Pombal, o sistema mantido durante séculos
se modifica. Após 1774, não mais encontramos qualquer lei discri­
minatória referente aos grupos acima citados. Contudo, as medidas
legais contra o herege e o apóstata continuam. Tudo leva a crer que
eram de origem cristã-nova numerosos portugueses que caíram, já
às margens do Século XIX, na alçada do Tribunal da Inquisição.
É a partir de 1671 que o negro e o mulato aparecem discrimi­
nados na Legislação, fenômeno que se estende até o Século XIX.
Discriminados racialmente como inábeis para determinados cargos
MARIA LUIZA TUCCI CARNEIRO
56

Civis e religiosos, estes elementos ficaram durante séculos relegados


uma posição secundária na estrutura das sociedades portuguesa e
brasileira, atendendo, como já o provaram numerosos estudos, aos
interesses do Império Colonial.46 ......
Com base nos estudos referidos acima e nas leis discriminam-
rias identificadas desde o Século XV ao XIX, obtivemos o seguinte
quadro cronológico (ver na página seguinte).
Marcada pela ideologia cristã dominante, a Legislação Portu­
guesa delimita o espaço social, determinando a posição de cada
grupo ou indivíduo na hierarquia social. No ápice encontramos o
grupo representativo da Igreja e do Estado. Esse grupo sera não
apenas o responsável pela distribuição de poder,, como também
organizará toda estrutura de ordem legal com o objetivo de manter
suas posições privilegiadas.47
A participação no poder garante a esse grupo prestígio e honra
social, os quais por sua vez lhes proporcionam uma série de privilé­
gios. A margem de aproximação (com o sentido de participação) ou
de afastamento de determinados elementos nesse grupo está direta­
mente ligada aos conceitos de superioridade e inferioridade que os
grupos dominantes possuem e que em grande parte se apoiam no
tradicional mito de pureza de sangue.
Os grupos portadores de poder e honra criam uma imagem
deturpada de determinados grupos, uma visão “negativa” daque­
les aos quais pretende marginalizar. Essa situação vai garantir-lhes
a continuidade de seu status. Os indivíduos são valorizados com
base em falsos argumentos raciais, religiosos e culturais.
O crístão-novo, o judeu, o mouro, o cigano, o indígena e o
mulato serão, durante séculos, os grupos estigmatizados “par exce-
lence”. Excluídos da categoria social daqueles que possuem “hon­
ra de status” e que se denominam “puritanos”, isto é, os limpos de
sangue, aqueles elementos encontraram uma série de barreiras que
os impediram de ascender socialmente, podendo ser considerados
como verdadeiros párias.
A separação social dos “limpos de sangue” dos “infectos”
deu ao sistema político os meios de criar uma linguagem que, apli­
cada a um discurso, conferiu à Legislação Portuguesa um caráter
racista. Aquele que não se enquadra nas normas estipuladas é excluí­
do, recebendo, conforme o seu comportamento, a denominação de
r °-UC0IA J1616?6 ’ aPÓstata” ou “vadio”. Estruturando a sua
ntílí^/ a eso a/orma de leis e estatutos, o grupo dominante se
ut iza de uma terminologia específica empregada no discurso, delí-
o assim o espaço social em função de determinados valores.
PRECONCEITO RACIAL: PORTUGAL E BRASIL-COLÕNIA
QUADRO CRONOLÓGICO DOS GRUPOS ÉTNICOS ESTIGMATIZADOS

Legislação Afonsinas Manuelinas Cód. Sebastiânico FHipinas/Leis Extrav. C.L.P.

Período 1446/7 1514/21 1521/29 1603/1774 1774/1800

Grupo étnico estigmatizado Judeus Judeu Judeu Judeu


Mouro x. Mouro Mouro Mouro
\ Cigano Cigano Cigano
Cristão-Novo —---- >- Cristão-Novo ------ ------ >- Cristão-Novo
Indígena Indígena Indígena
Negro Negro
Mulato Mulato
MARIA LUIZATUCCI CARNEIRO
58
In o discurso como um “conjunto ordenado de
Consideram escritas, como se o tivessem de o
frases proferidas em pu todo conjunto de leis, alvarás,
Xpõ* a Legislação Portuguesa foi conseqüência
- atos totalmente irracionais do grupo dirigent •
Ao contrário, cada resolução, cada determinação, fosse regia
ou eclesiástica, teve lugar no tempo e espaço, fundamentada em
atitudes racionalizadas. Os objetivos depreciativos ou qualificati­
vos são empregados sempre no momento certo, para que o defei­
to’’ de alguns garanta as “qualidades” positivas de outros.
Antonio Nunes Ribeiro Sanches, famoso humanista portu­
guês, em meados do Século XVIII, jâ sabia que:

“... quanto mais vil he o nascimento e o officio do Christão


velho, tamto mais fortemente insulta o Christão Novo; por­
que como he honra ser Christão Velho, que insulta e despreza
a huma da Nasção, honra-se, e distingue-se; ... hum quando
falia com elle lhe diz hua meya palavra de Cão, outro por
giria lhe chama judeo; outro põem a mão no nariz; ... a maior
parte faz acenos que tem rabo.”49

Honra e Nobreza são identificadas na sociedade portuguesa


com o conceito de “pureza de sangue”. Ser puro de sangue signifi­
cava não ter ascendência judaica, moura ou negra. Comprovar que
não se tinha nenhuma gota de sangue infecto significava um possí­
vel acesso a cargos políticos e religiosos, honrarias e benefícios.

O mito de pureza de sangue

O conceito de pureza de sangue, como atributo profunda­


mente depreciativo, foi tradicionalmente cultivado nos países ibéri­
cos desde a Idade Média, estendendo-se até os inícios do Século
XIX, tendo a Igreja como a principal propagadora e sustentadora
de tal mito.50
Interferindo diretamente no modo de conduta dos espanhóis
e portugueses, a discriminação assumiu, com o tempo, característi-
cu tirgal1SaIns.tltucl0naliZ0u-se e transformou-se em um fenômeno
So iaseomníhretCOrrram.ÍnCeSSantemente todas as categorias
econômicas e política! & Sat’SfaZer SUaS aspirações morais, sociais,

Codificada, a pureza de sangue se expressou por meio de uma


PRECONCEITO RACIAL: PORTUGAL E BRASIL-COLÕNIA 59

linguagem dinâmica, cujos vocábulos se encontram envoltos por


uma conotação agressiva, malévola e depreciativa. Partindo da
concepção de que todos os judeus-conversos eram falsos cristãos e
de que o seu sangue transportava hereditariamente uma série de
vícios concretos, a idéia de pureza dividiu as sociedades do mundo
Ibérico em dois grupos distintos: o dos puros, cristãos-velhos con­
victos; e o dos infectos ou impuros, descendentes da nação hebréia.51
Os portugueses, cujas origens remotas não estivessem infecta­
das pelo sangue judeu ou mouro, tinham, inicialmente, em poten­
cial, as condições que poderíam coroá-los com títulos de honra e
torná-los aptos a ocupar cargos públicos e eclesiásticos.52
Do pomo de vista religioso, a população devia pensar e agir
conforme os preceitos da Igreja Católica, pois um simples gesto
poderia se transformar em um pretexto para o indivíduo ser denun­
ciado ao Tribunal da Inquisição como criptojudeu.53
O cristão-novo, com o objetivo de fugir às perseguições da
Inquisição ou ingressar na carreira pública e religiosa, lançou mão,
muitas vezes, de falsos atestados de Genere para comprovar, peran­
te a sociedade cristã-velha, sua limpeza de sangue. Através de casa­
mentos mistos, os conversos conseguiram, freqüentemente, enco­
brir sua ascendência judaica.54
O modelo de indivíduo imposto pela ideologia religiosa influiu
no nivelamento dos cristãos-novos, levando muitos deles a adotar
um modo de vida em função das normas e padrões vigentes. Isto
significou para muitos uma relativa integração e assimilação dos
valores cristãos-velhos, dificultando a identificação dos caracteres
judaicos através das inquirições da Genere. Esse fato tornou os
cristãos-novos indiretamente colaboradores do sistema, reforçando
ao mesmo tempo a idéia de pureza.
A incessante busca de comprovação das origens dos indiví­
duos gerou, no seio das sociedades Ibéricas, uma forma de racis­
mo. Sucedendo ao mito gótico na Espanha, país onde detectamos
as origens dessa doutrina racial, o mito de pureza de sangue foi
posteriormente transferido para Portugal e suas Colônias, inclusive
para o Brasil.55
A idéia de “pureza” forneceu ao grupo dominante as conven­
ções necessárias para impedir que o cristão-novo participasse de seu
grupo de status, definindo de certa forma a posição social dos con­
versos na estrutura social.
Ideologicamente, a burguesia cristã-nova foi cerceada no seu
processo de ascensão social, sendo alvo de constantes acusações que,
elaboradas sob a forma de uma linguagem estereotipada, culminaram
PRECONCEITO RACIAL: PORTUGAL E BRASIL-COLÕNIA 61

Fortemente aculturados, mesclando-se à população cristâ-


velha e escondendo suas origens judaicas, muitos conversos ultra­
passaram essas barreiras sociais. Porém, psicológica e culturalmen­
te, o cristão-novo foi sempre um cidadão sem Pátria, um fiel sem
Igreja e uma “raça” biologicamente indefinida. Era um pária, pois
assim o colocavam os meios de propaganda e comunicação da épo­
ca. Foi o “inimigo objetivo” e excelente bode expiatório das des­
graças que assolavam a Nação.
Como já dissemos, cristãos-novos ocuparam cargos eclesiásti­
cos e civis, que segundo a lei lhes eram vedados. Nas Ordens Reli­
giosas e Militares, nas Misericórdias, nas Câmaras Municipais,
mesclados com as elites políticas e religiosas, os conversos foram
acumulando títulos, honrarias e testemunhos, dando aos seus des­
cendentes condições favoráveis de vida.59
A limitação das oportunidades que a limpeza de sangue impôs
aos cristãos-novos obrigou muitos a procurarem outras terras no
próprio Império, menos vigiadas, como por exemplo o Brasil. Aqui
chegavam continuamente, encontrando condições favoráveis para
sobreviver e progredir economicamente, apesar das leis que proi­
biam sua entrada.
As exigências legais foram, muitas vezes, contornadas e são
freqüentes as alegações de que os responsáveis pelas inquirições de
Genere, por amizade, dinheiro ou outros interesses, favoreciam os
habilitandos. Podemos dizer que o rigor da aplicação de uma lei
variava segundo interesses. Assim, títulos honoríficos, cargos ecle­
siásticos e civis foram concedidos freqüentemente a elementos de
origem “suspeita”, mediante dispensa do próprio rei em troca de
serviços prestados. Outras vezes, com o objetivo de atender às difi­
culdades financeiras do Erário Régio, eram dadas ordens para se
confiscarem os bens dos conversos.60
Esse fato se encontra bem evidente em uma Carta Régia envia­
da por Felipe III (II) ao Bispo, ordenando que os bens seqüestrados
fossem vendidos e reduzidos a dinheiro, com a finalidade de aten­
der às despesas urgentes da Fazenda Real.61 Além de pedir uma
relação das. propriedades de raiz de boa qualidade e importância,
em que haveria necessidade de mais tempo para se venderem, ou
que conviesse não vender, o Monarca recomenda, com certo sigilo,
que se fizesse ver o dinheiro existente em todas as Inquisições do
Reino e que Iho enviassem.62
Na primeira metade do Século XVI, o mito de pureza de
sangue está apenas aparecendo em Portugal e sua aplicação não é
ainda sistemática. Mas já sentimos nas Ordenações Manuelinas a
MARIA LUIZATUCCI CARNEIRO
62

- q “ideolosia purificadora”, separando os “lim-


'nTsegunda metade desse século, a discrimi-
nação se acentua, até adquirir, posteriormente, um carater segrega-
cionista. Durante o Século XVII o m.to de pureza de sangue se
transforma numa verdadeira obsessão, assumindo, em.função da
ordem simbólica vigente na época, as características de signo,
Certos conceitos, endossados tanto pelo Tribunal do Santo
Oficio como pela população em geral, permitiam distinguir simbo­
licamente os cristãos-novos dos cristàos-yelhos. Esses signos passa­
ram a criar na mente do povo português determinados mitos ,
que por sua vez transformaram-se em nítidas barreiras sociais.

Conceitos —Signos (Mitos) —Criação de —Divisão da


barreiras sociais sociedade

O Tribunal do Santo Ofício, instaurado durante o governo de


D. João III por Bula do Papa Paulo III, em 23/03/1536, endossou
o Estatuto de pureza de sangue. Dessa forma, o cristão-novo teve
contra si não apenas a legislação civil, mas toda uma burocracia
organizada sob a forma de um Tribunal religioso que ajudou a
divulgar a idéia de sua inferioridade racial e social.
Através de uma imagem estereotipada, divulgada pelas fontes
oficiais e adotada por grande parte da burguesia cristã-velha, ficam
claramente expostos os interesses econômicos e sociais de certos
grupos da sociedade. O preconceito contra o cristão-novo aparece
xv °xvn tOvtmSUa f0FÇa' A S0ciedade Portuguesa dos Séculos
XV!, XVII e XVIII, segundo alguns autores, como Kamen, Saraiva
e Novmsky, foi manobrada pelo grupo minoritário aristocrático,
PRECONCEITO RACIAL: PORTUGAL E BRASIL-COLÔNIA 63

que se apoiava principalmente nos cristãos-velhos, adotando em


seu programa de ação o Estatuto de pureza de sangue, que lhes for­
necia as diretrizes morais com as quais passavam a delimitar o espa­
ço social.
Garantidos pela vigilância do Tribunal do Santo Ofício e
apoiando-se na Legislação, a Coroa, a Nobreza e o Clero davam as
diretrizes e os limites possíveis de transgressão do pensamento e
comportamento do povo português. As bases efetivas desse proces­
so não estavam no que o povo acreditava e pensava, e sim “naquilo
que se queria que o povo acreditasse’’, como diz Saraiva. As alega­
ções de que os judeus e crislãos-novos eram homens “cheios de
vícios, perigosos e medíocres” vieram reforçar uma velha e secular
tradição antijudaica.65
Uma idéia que antecipou a moderna concepção anti-semita é
aquela em que se concebiam os filhos segundo o que foram os pais.
Essa concepção é manifestada na Legislação Portuguesa, nos Esta­
tutos das Ordens Militares, Ordens Sacras e Misericórdias. Por
exemplo: o fato de um indivíduo, candidato a cargo público, ser
filho, neto ou parente de alguém condenado como herege pela
Inquisição constituía razão de impedimento. Jean-Paul Sartre lem­
bra que “nestes casos deve-se crer serem os mais novos capazes de
praticar o que os mais velhos fizeram; é preciso estar persuadido de
que o caráter judeu é hereditário”.66
Para conhecer a origem dos indivíduos, várias instituições
civis e religiosas adotaram o sistema de investigar a vida do habili­
tando até a 4.a geração. Caso ficasse provado, mesmo que fosse por
“fama ou rumor”, mediante o testemunho de pessoas fidedignas
cristãs-velhas, que nenhum de seus ascendentes pertencera à ‘Taça
infecta”, o candidato estaria “habilitado” para ocupar cargos civis
e religiosos ou a receber os títulos honoríficos ambicionados.67
Essas inquirições de Genere são a aplicação efetiva do Esta­
tuto de pureza de sangue e expressam o pensamento segregacionsita
que predominou na sociedade portuguesa a partir do Século XVI.
A discriminação chegou a ser tão rígida que se excluíam também os
indivíduos casados com cristãos-novos. Por ex., nas “Definições e
Estatutos dos Cavalheiros da Ordem de N. Sr. Jesus Christo”, está
estipulado que o justificante deveria fazer um memorial “em que
declare os nomes de seus pais e avós... e antes de fazer a comissão
se informará à Mesa com todo o segredo... se sua mulher tem lim­
peza de sangue... ” ,68
A Regra da Cavallaria e Ordem Militar de S. Bento de Aviz,
ao determinar as informações que deveríam ser tiradas das testemu-
mar|A LÜ1ZA TUCC1 CARNEIRO
64


nlias de Genere, dnnneles que
daqueles qt f queriam
q^ se habilitar à Ordem, estipu-

lava que se ie i ... nte dizer a pessoas dignas de Fé, que o


viram ou ouviran ‘ havidos por pessQas
K m sem — ou raça alSuma de Judeu, mouro, herege,
lN0Dr ’ .J mais remoto qUe seja”.69
°U Xncisco dé Andrade, por exemplo, por Carta Régia de 25/7/
1640 foi impedido de ocupar o ofício de Feitor das Madeiras das
Pederneiras, porque “este homem tem parte de chnstão novo”.7"
As dificuldades econômicas da Nação, a fome que assolava o
povo, a peste que matava centenas de indivíduos, foram considera­
das, por pessoas pias e religiosas, como conseqüentes da presença de
hereges judeus no Reino. Através da Legislação, um dos meios de
comunicação e propaganda que a aristocracia dominante tinha em
mãos, se apresentava a versão “oficial” dos fatos. E o converso se
tornou potencialmente suspeito. Ecoam as justificativas acompa­
nhadas dos “remédios” adequados para eliminar o inimigo objeti­
vo. Em uma Carta ao Conselho Geral do Santo Ofício o rei informa:

”... dos grandes inconvenientes que se seguem contra o servi­


ço de Deus e pureza que convem que haja nos Ministros de sua
Igreja, de se dispensar com pessoas da nação dos christãos
novos... é necessário fazer uma relação mui particular e dis-
tincta dos clérigos da mesma nação que tem sahido em autos
públicos da Fé castigados por erros delia e do Judaísmo, e por
não terem tido tenção de contrahir os Sacramentos...”71

Referindo-se à eleição dos “officiaes de uma das Irmandades


de Misericórdia”, a provisão de 29/5/1610 contém a seguinte justi-
ficativa:

Por se evitarem inconvenientes e desordens... não seja eleita


pessoa alguma que tenha raça de christão Novo...”72

eando^pícd f°‘®xpedido Alvará em nome de D. Felipe III, ale-


conseaüência ocorridas no Reino nada mais eram do que
púb icos Com h°CUParem °S CriStãOS-novos determinados cargos
“na eleicões 1 “ argumentaÇâo, o rei determinou que
gent nobre e " “de Alm^acéis ^e se fa?ã0 em
S at” - nenhUm CaS° " elegerã0 que tenhão
PRECONCEITO RACIAL: PORTUGAL E BRASIL-COLÕNIA 65

A necessidade de ser “limpo de sangue” para ocupar cargos


de governança e Justiça volta a ser lembrada em 1636, como sendo
um dos remédios convenientes para se acabar com o judaísmo, solu­
ção apresentada como sendo “muito antiga e bem fundada...”74
A situação acabou por assumir uma conotação doutrinária.
As instruções manipulam os sentimentos do povo com relação.aos
conversos. Prega-se o ódio mais violento, ao mesmo tempo que se
fala no “amor de Cristo”.
Os que tinham oficialmente permissão para se pronunciar em
nome de Deus, da Igreja e do Tribunal do Santo Ofício deveríam
alertar o povo sobre o perigo representado por aqueles em cujas
veias corria o sangue judeu. Durante o Século XVII, quando a apli­
cação do Estatuto de pureza se intensificou, os cristãos-novos são
vistos ao mesmo tempo como hereges e inimigos políticos, respon­
sabilizados, inclusive, pela invasão holandesa no Brasil.
Os ministros e oficiais da Inquisição eram instruídos de forma
a incentivar, na mente da população, o ódio contra aqueles que,
segundo a sua pregação, “commetteram culpas contra Nossa Fé”.75
Paralelamente à atuação do poder eclesiástico, a Nobreza
também adota determinados estereótipos contra o converso, ten­
tando dessa maneira manter-se como elemento atuante e partici­
pante do grupo de status. Tanto a Junta do Estado Eclesiástico
como a Junta da Nobreza tentam, através de consultas enviadas ao
Rei, justificar suas atitudes com relação aos conversos.76
“Honras, dignidades, benefícios etc. não deveríam jamais
ser concedidos à gente da Nação.” Essa discriminação contra os
descendentes de judeus, exposta pela Junta da Nobreza em uma
Consulta à Junta do Estado Eclesiástico, foi uma das numerosas
formas legais utilizadas para fechar, a um pequeno círculo, a ma­
nutenção do poder.
Divulga-se a idéia de que a presença dos cristãos-novos no rei­
no conduziria a desastrosas conseqüências: além de trazerem incon­
venientes no serviço de Deus, cooperavam para a destruição não só
dos valores da Nobreza, como de todo Portugal. São considerados
“indesejáveis” e diretamente relacionados com o conceito de “pe­
rigo”, de infecção, de “desgraça”, de “falsidade” e “perversão”.
O texto dessa consulta é tão rico nesses detalhes que merece, para
ilustrar, ser aqui ressaltado:

”... se seguia grande destruição do Reino, e Nobreza delle, e


muitos inconvenientes no serviço de Deus Nosso senhor, e sua
Igreja... a experiência tem mostrado o irreparável dano e
marialuizatuccicarne.ro
66
F1 I ES NÃO melhoraram a fé que fingiram
^ar^fnfeccionaram à muitos com esta doutrina, senão
çSandó com o seu sangue os moradores deste Re.no e ainda
^sXXiiesceu tanto a nossa desgraça... é

ruins consequências para futuro vemos o Remo todo


aparentado com esta gente (lastima grande)...

Assim com base nessa linha ideológica cristã, as facções


dominantes propuseram-se salvar o Reino e a Fé Católica da conta­
minação dos cristãos-novos. Nesse contexto social, e facil entender
que os cristãos-novos foram identificados como a causa de todos os
males, e que o confisco de seus bens, conforme vimos anteriormen­
te, foi a solução para determinados problemas financeiros.
A ordem simbólica mantida pelo grupo dominante privou-os
de direitos iguais aos do restante da população; afastou-os de im­
portantes funções econômicas e sociais e, em vista da conjuntura
histórico-social, paradoxalmente, proibiu-os de emigrarem livre­
mente para outros países.
O povo português foi manipulado e utilizado em função dos
interesses das minorias dominantes, através das leis, dos sermões e
pregações religiosas.78 Suas atitudes foram moldadas em função da
ideologia vigente. Apenas lembrando a afirmação do psicólogo
americano Kevin Whendall:

“As atitudes podem mudar ou ser mudadas de muitos modos,


dependendo da informação e experiência que uma pessoa
adquire”.79

Que força maior seria capaz de levar o povo em massa aos


Autos-de-Fé, para assistir a outros portugueses serem queimados?
Praticamente, todos os réus chegavam à Mesa do Tribunal para de­
nunciar amigos e parentes como praticantes do judaísmo.
Em que medida a Fé guiou as atitudes do povo contra os cris­
tãos-novos ainda é um assunto por estudar. Havia uma fortíssima
pressão social, através das ameaças de excomunhão, que levava os
indivíduos a denunciar o que sabiam, viram ou ouviram. Os pa-
rões de comportamento impostos pelo sistema de poder vigente
em ortugal caracterizavam-se por uma coação social racional'
mente orgamzadâ e, muitas vezes, irracionalmente seguida. A men-
a i a e co etiva foi moldada por meio de estereótipos, e o compor-
tamento passou a ser guiado por atitudes preconcebidas.80
PRECONCEITO RACIAL: PORTUGAL E BRASIL-COLÕNLX 67

O desejo de provar sua “limpeza”, e de ter acesso às honra­


rias e dignidades, levou os cristàos-velhos a assumirem atitudes
negativas com relação aos portugueses de origem judaica. Quere­
mos lembrar que as atitudes sào aprendidas, pois ninguém nasce
com preconceitos/1
Com o objetivo de alcançar o “status” que desejavam ou a
fim de fazerem parte das facções dominantes, os elementos partici­
pantes da burguesia mercantil cristã-velha e parte do povo mise­
rável adotaram atitudes manifestadas pelo grupo dirigente.82
As atitudes do cristão-velho contra o cristào-novo eram refor­
çadas a partir do momento em que ele percebia ter sido apreciado
pelos outros elementos do grupo.83 Essas atitudes contra os portu­
gueses de origem judaica podem ser caracterizadas como preconcei­
to, pelo fato de elas persistirem durante séculos e sempre com uma
orientação negativa para com o grupo. A atitude negativa se con­
cretizou em todos os seus aspectos: tanto no cognitivo e no afetivo
como no amiúde.84
Do ponto de vista cognitivo, a atitude preconcebida contra os
cristãos-novos pode ser percebida através de uma série de estereóti­
pos, os quais, aplicados ao grupo discriminado, nos mostram “o
que os cristãos-velhos sabiam” sobre os conversos. Baseados em
provas superficiais, partiam do pressuposto de que todos os con­
versos eram falsos, inábeis, injustos e nocivos congenitamente.
Através do conceito de pureza de sangue, confundiam a noção
puramente biológica de raça.
O cristão-novo foi tratado como membro de uma “raça”
cujo sangue infecto era hereditário. Sem argumentos científicos
comprovados, apelou-se para o critério religioso, que se misturou
muitas vezes com critérios políticos.85
No início do Século XVI, antes de as leis discriminatórias se
institucionalizarem em Portugal, através da legislação geral, os
cristãos-novos já eram proibidos de ocupar cargos eclesiásticos, de
ter acesso às confrarias, às Ordens Militares e aos cargos de gover­
nos administrativos e militares. Em várias instituições, exigia-se a
comprovação de “genere” para certos cargos e funções.
Essas manifestações de preconceito não ficaram apenas no
campo verbal ou nos regulamentos particulares dessas instituições.
Burocratizaram-se, passando a atuar sobre a forma de leis, impon­
do normas e valores. Dessa forma, as atitudes sociais contra o cris­
tão-novo assumiram as características de um racismo institucional,
passando a limitar as escolhas, os direitos, a mobilidade e o acesso
de grupos de cristãos-novos a outras posições. Posições estas consi-
maría luizatucci carneiro
ÓS
deradas dignas apenas daqueles que não tinham “mancha” da raça

Comdabase
da gente nação.
na legislação gerai, podemos afirmar que os cris-
tàos-novos portugueses passaram a soírei inteidições nos mais
variados setores, a partir das seguintes datas:

1499 — Leis antiemigratórias


1514 — Cargos públicos
1529 — Ordens Militares
1550 — Ordens Religiosas
1581 — Matrimônio
1600 — Misericórdias
1604 — Universidade de Coimbra
1671 — Morgados

O racismo institucionalizado

Os cristãos-novos e a política antiemigratória

A política antiemigratória em relação aos cristãos-novos é um


aspecto que merece especial atenção, pelo fato de retratar a ideolo­
gia segregacionista que predominou contra esse grupo a partir dc
Século XV.
A manipulação da ordem legal possibilitou, tanto à Igrejr
ele a° “Stu °’>ju^^zarem-se do direito de emigração, como un
cíx aVe para atl'n^’r seus objetivos econômicos e políti
fío da Pá^rVêafÇà°^e qUe orcr’stao'novo era um herege, um inimi
elementos ind' da cr*stã> proibia-se a livre saída desse
elementos, individualmente ou em grupo.
varasaídados^rk^00 Sant° Ofício’ não era interessanteincent
Países, não só P°* a0 em*rar °S
bém carregavam °° S 0S bens móveis e imóveis, como tan
de “infiel” do Reinc^0 a ^am‘^a- O esvaziamento desse tip
Potencial herege e cn Igni..icava» Para a Inquisição, a perda deU’
se considerarmos ’ nseqüentemente> das vantagens do confisc'
homens de negócios êrande parte dos cristãos-novos eram ric<

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MARIA LUIZATUCCl CARNEIRO
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deradas dicnas apenas daqueles que nao tinham mancha da raça


da gente da nação.
Com base na legislação geral, podemos afirmar que os cris­
tãos-novos portugueses passaram a sofrer interdições nos mais
variados setores, a partir das seguintes datas:

1499 — Leis antiemigratórias


1514 — Cargos públicos
1529 — Ordens Militares
1550 — Ordens Religiosas
1581 — Matrimônio
1600 — Misericórdias
1604 — Universidade de Coimbra
1671 — Morgados

O racismo institucionalizado

Os crisiãos-novos e a política antiemigratória

A política antiemigratória em relação aos cristãos-novos é um


aspecto que merece especial atenção, pelo fato de retratar a ideolo­
gia segregacionista que predominou contra esse grupo a partir do
Século XV.
A manipulação da ordem legal possibilitou, tanto à Igreja
como ao Estado, utilizarem-se do direito de emigração, como um
elemento “chave” para atingir seus objetivos econômicos e políti­
cos. Sob a alegação de que o cristão-novo era um herege, um inimi­
go da Pátria e traidor da Fé cristã, proibia-se a livre saída desses
elementos, individualmente ou em grupo.
Para o Tribunal do Santo Ofício, não era interessante incenti­
var a saída dos cristãos-novos, pois estes, ao emigrar para os outros
países, não só vendiam todos os bens móveis e imóveis, como tam­
bém carregavam consigo toda a família. O esvaziamento desse tipo
de infiel do Reino significava, para a Inquisição, a perda de um
potencial herege e, conseqüentemente, das vantagens do confisco,
se considerarmos que grande parte dos cristãos-novos eram ricos
homens de negócios.
À Coroa interessava o confinamento dos cristãos-novos no
Remo, através das leis antiemigratórias, pois a aplicação destas

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