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OBRAS DE AMIE KAUFMAN E JAY KRISTOFF

THE AURORA CYCLE


Aurora Rising
Aurora Burning

THE ILLUMINAE FILES


Illuminae
Gemina
Obsidio

TAMBÉM POR JAY KRISTOFF


A TRILOGIA LIFEL1K3
LIFEL1K3
DEV1AT3
TRUEL1F3

TAMBÉM POR AMIE KAUFMAN E MEAGAN


SPOONER
A TRILOGIA STARBOUND
These Broken Stars
This Shattered World
Their Fractured Light

DUOLOGIA THE UNEARTHED


Unearthed
Undying

DUOLOGIA THE OTHER SIDE OF THE SKY


The Other Side of the Sky
Este é para o Esquadrão 312.
Cada um de vocês.
Traduzido por Jane
Revisado por Jane

Editado por Vik

Divulgado por sherlockteca.


CONTÉUDO

Capa
Folha de Rosto
Obras de Amie Kaufman e Jay Kristoff
Dedicatória
PARTE 1: DE MAL A PIOR NA CIDADE ESMERALDA
1. TYLER
2. AURI
3. SCARLETT
4. ZILA
5. KAL
6. FINIAN
PARTE 2: O SANGUE ENTRE NÓS
7. FINIAN
8. AURI
9. KAL
10. FINIAN
11. SCARLETT
12. ZILA
13. TYLER
14. KAL
15. TYLER
16. SCARLETT
PARTE 3: HORA DE INCENDIAR
17. FINIAN
18. AURI
19. TYLER
20. KAL
21. TYLER
22. ECHO
23. TYLER
24. ECHO
25. ZILA
26. AURI
27. TYLER
28. SCARLETT
PARTE 4: SOMBRA NO SOL
29. KAL
30. FINIAN
31. TYLER
32. KAL
33. TYLER
34. ZILA
35. AURI
36. TYLER
37. SCARLETT
38. KAL
39. TYLER
40. SCARLETT
41. TRÊS UM DOIS
AGRADECIMENTOS
GLOSSÁRIO
COISAS QUE VOCÊ DEVE SABER
► LIVRO 1: AURORA RISING
▾ CAST
AURORA JIE-LIN O’MALLEY ― A GAROTA FORA DO TEMPO.
AURORA FOI MANDADA PARA FORA DA TERRA COM DEZ MIL OUTROS
COLONISTAS MAIS DE DOIS SÉCULOS ATRÁS, DESTINADA A OCTAVIA III.
SUA NAVE, O HADFIELD, FOI PERDIDA EM UM ESPAÇO
INTERDIMENSIONAL CONHECIDO COMO DOBRA, SÓ PARA SER
REDESCOBERTA SÉCULOS MAIS TARDE PELO LEGIONÁRIO DA LEGIÃO
AURORA, CADETE TYLER JONES.
AURORA FOI A ÚNICA SOBREVIVENTE.
APÓS SEU RESGATE, AURI COMEÇOU A TER SONHOS PROFÉTICOS E A
APRESENTAR PODERES TELECINÉTICOS. NA CORRIDA COM OS
DESAJUSTADOS DO ESQUADRÃO 312, ELA FOI EVENTUALMENTE
CONDUZIDA DE VOLTA A OCTAVIA III. ALI, ELA DESCOBRIU QUE O
PLANETA QUE PRETENDIA SER SUA CASA ERA, NA VERDADE, UM MUNDO
BERÇÁRIO PARA O RA’HAAM – UMA ANTIGA ENTIDADE DE GESTALT
COMPOSTA POR MILHÕES DE FORMAS DE VIDA ASSIMILADAS DORMINDO
SOB O MANTO.
AURORA TAMBÉM APRENDEU QUE SEUS PODERES FORAM DADOS A
ELA PELO ESHVAREN, UMA RAÇA MISTERIOSA QUE DERROTOU O
RA’HAAM EONS ATRÁS. SABENDO QUE SEUS ANTIGOS INIMIGOS UM DIA
TENTARIAM CONSUMIR A GALÁXIA NOVAMENTE, O ESHVAREN
ESCONDEU UMA ARMA NA DOBRA PARA COMBATER O RA’HAAM E
AJUSTAR EVENTOS EM MOVIMENTO PARA CRIAR UM "GATILHO" PARA
ACIONAR A ARMA.
AURORA APRENDEU QUE ELA É ESSE GATILHO.
AURI É PEQUENA EM TAMANHO, GRANDE EM DETERMINAÇÃO. ELA
AINDA ESTÁ SE ESFORÇANDO PARA SE ADAPTAR EM SEU LUGAR NESTE
NOVO TEMPO E GALÁXIA, MAS SENTE UMA FEROZ LEALDADE COM OS
LEGIONÁRIOS DA AURORA QUE A ACOLHERAM.
ELA TEM CABELO PRETO CORTADO EM ESTILO PIXIE COM UMA MECHA
BRANCA NA FRENTE E É DE HERANÇA CHINÊS-IRLANDESA. SUA ÍRIS
DIREITA FICOU BRANCA E BRILHA QUANDO ELA USA SEUS PODERES.

TYLER JONES ― O GAROTO DE OURO. TYLER SE ALISTOU NA LEGIÃO


AURORA AOS TREZE ANOS, APÓS A MORTE DE SEU PAI, JERICHO. ELE
ENTROU NO CURSO DE ALFA DA ACADEMIA, DEVOTANDO SUA VIDA À
BUSCA DA PAZ E DA ORDEM GALÁCTICA. MAS DEPOIS DE SALVAR
AURORA NA DOBRA, TY ENCONTROU-SE RESPONSÁVEL POR UM GRUPO
DE DESAJUSTADOS, PERDIDOS E CASOS DE DISCIPLINA: ESQUADRÃO 312
DA LEGIÃO AURORA.
APÓS SEREM CAPTURADOS PELA AGÊNCIA DE INTELIGÊNCIA GLOBAL
A BORDO DA ESTAÇÃO DE MINERAÇÃO SAGAN, TYLER E SEU
ESQUADRÃO SE ENCONTRAM NA CORRIDA CONTRA O GOVERNO
TERRÁQUEO. VISITANDO O MUNDO INTERDITADO DE OCTAVIA III,
TYLER E SEUS COMPANHEIROS DESCOBRIRAM UMA ANTIGA
CONSPIRAÇÃO QUE AMEAÇA TODAS AS RAÇAS SENTIDAS DA GALÁXIA. E
OS DESAJUSTADOS DO ESQUADRÃO 312 PARECEM SER OS ÚNICOS QUE
PODEM PARÁ-LO.
TY É UM LÍDER NATURAL E UM TÁTICO BRILHANTE, MAS DE ACORDO
COM SUA IRMÃ, ELE "NÃO SABERIA SE DIVERTIR SE INVADISSE SEU
PLANETA." ELE É AUTOCONFIANTE AO PONTO DE SER ARROGANTE, MAS
GERALMENTE TEM OS BENS PARA APOIAR ISSO.
ELE TEM OLHOS AZUIS, CABELO LOURO E DESGRENHADO E COVINHAS
QUE PODEM EXPLODIR OVÁRIOS A TRINTA METROS.

KALIIS IDRABAN GILWRAETH ― O ESTRANGEIRO. KALIIS É UM DOS


POUCOS SYLDRATHI QUE SE JUNTOU À LEGIÃO AURORA DESDE QUE A
GUERRA ENTRE A TERRA E SYLDRA TERMINOU. ELE É MEMBRO DA
CABALA WARBREED – A CASTA DOS GUERREIROS SYLDRATHI – E SUA
TEMÍVEL DESTREZA DE COMBATE O LEVOU NATURALMENTE PARA O
CURSO DE TANQUE DA ACADEMIA. NO ENTANTO, ELE FOI TOMADO
COMO EXCLUÍDO E ACABOU NO ESQUADRÃO 312.
APÓS ENCONTRAR AURORA, KAL SE ENCONTROU IMEDIATAMENTE
SOB A INFLUÊNCIA DO “PUXÃO” – UM INSTINTO DE ACASALAMENTO
SYLDRATHI IMPOSSIVELMENTE INTENSO. NÃO DESEJANDO FORÇAR
AURORA EM UMA SITUAÇÃO OU RELACIONAMENTO QUE ELA NÃO
PODERIA ENTENDER KAL DECIDIU DEIXAR O ESQUADRÃO. MAS APÓS
AURORA CONFESSAR OS SENTIMENTOS POR ELE, RESOLVEU FICAR E
DEVOTOU-SE A PROTEGER SUA BE’SHMAI (QUERIDA).
KAL LUTA CONSTANTEMENTE COM SEU INSTINTO DE GUERREIRO, E
SUAS BATALHAS COM ESTE ASSIM CHAMADO DE INIMIGO INTERIOR,
DANDO DICAS DE UMA INSINUAÇÃO DE ESCURIDÃO EM SEU PASSADO
QUE ELE AINDA NÃO COMPARTILHOU.
KAL É UM EXCELENTE AMIGO. HONESTAMENTE, ELE PODERIA SER
MAIS AMIGAVEL EM UM NÍVEL MAIS PROFISSIONAL.
ELE TEM FANTASTICOS OLHOS VIOLETAS, PELE COR DE OLIVA E LONGOS
CABELOS PRATEADOS. NEM ME FALE EM SUAS MAÇÃS DO ROSTO.

SCARLETT JONES ― A DESTRUIDORA DE CORAÇÕES. IRMÃ GÊMEA DE


TYLER (MAIS VELHA POR TRÊS MINUTOS E 37,4 SEGUNDOS), SCARLETT
ALISTOU-SE NA LEGIÃO AURORA JUNTO COM SEU IRMÃO – NÃO POR
QUALQUER SENSO DE DEVER PARA COM A LEI E A ORDEM, MAS PARA
MANTER TYLER LONGE DE PROBLEMAS. ELA SE JUNTOU AO CURSO DE
DIPLOMACIA E SE APLICOU MENOS DO QUE QUALQUER CADETE NA
HISTÓRIA DA ACADEMIA, MAS SEU QUASE SEXTO SENTIDO SOBRE O QUE
OS OUTROS ESTAVAM PENSANDO A AJUDOU A SE TORNAR UMA FACE
BRILHANTE.
SCAR TEM FAIXA PRETA EM SARCASMO. EMBORA ELA ESTEJA FORA DE
FOCO, ELA É ALTAMENTE INTELIGENTE E PODE APRENDER RAPIDAMENTE
O SUFICIENTE SOBRE QUALQUER SITUAÇÃO/CULTURA/AMBIENTE PARA
SE ENCAIXAR PERFEITAMENTE NA MAIORIA DOS CENÁRIOS. ALIÁS, ISSO A
TORNA UMA RAINHA DAS NOITES TRIVIAIS.
SCAR É PÁLIDA, ESCULTURAL E TEM CABELOS RUIVOS FLAMEJANTES
CORTADOS EM UM BOB ASSIMÉTRICO. ELA NUNCA TEVE UM
RELACIONAMENTO QUE DUROU MAIS DE SETE SEMANAS, E O RASTRO DE
CORAÇÕES PARTIDOS QUE ELA DEIXOU EM SEU CAMINHO SERIA TÃO
LONGO QUANTO MEU BRAÇO.
QUER DIZER, SE EU TIVESSE BRAÇOS...
FINIAN DE KARRAN DE SEEL ― O ESPERTINHO. FINIAN É UM
BETRASKAN E UM GÊNIO MECÂNICO CUJA PERSONALIDADE ABRASIVA E
HABILIDADES INTERPESSOAIS MENOS DO QUE ESTELARES O FIZERAM SER
ESCOLHIDO POR ÚLTIMO DENTRE TODOS OS GEARHEADS DE SEU ANO NA
ACADEMIA AURORA.
FINIAN CONTRAIU A PRAGA LYSERGIA QUANDO CRIANÇA E, EMBORA
A DOENÇA NÃO TENHA CONSEGUIDO MATÁ-LO, PREJUDICOU BASTANTE
SUA MOBILIDADE. MANDADO DE TRASK PARA VIVER A BORDO DE UMA
ESTAÇÃO ESPACIAL DE GRAVIDADE ZERO COM SEUS TERCEIROS AVÓS,
FINIAN USOU SUAS HABILIDADES TÉCNICAS PARA CONSTRUIR UM
EXOSUIT, QUE USA CONSTANTEMENTE. O TRAJE PERMITE QUE ELE SE
MOVA SEM AJUDA E CONTÉM UMA SÉRIE DE FERRAMENTAS E
DISPOSITIVOS ÚTEIS.
FINIAN ESCONDE SUAS INSEGURANÇAS ATRÁS DE UMA PAREDE DE
CINISMO. COMO TODO O SEU POVO, ELE TEM PELE E CABELOS PÁLIDOS E
USA LENTES DE CONTATO PRETAS SOBRE OS OLHOS PARA PROTEGÊ-LOS
DA RADIAÇÃO ULTRAVIOLETA.
ELE NÃO TEM UMA QUEDA DESESPERADA POR SCARLETT JONES,
OBRIGADO POR PERGUNTAR. QUAISQUER RUMORES DE QUE O IRMÃO
DELA SERIA UM PRÊMIO DE CONSOLAÇÃO SATISFATÓRIO TAMBÉM NÃO
SÃO DA SUA CONTA.

ZILA MADRAN ― A ASSUSTADORAMENTE INTELIGENTE. OU


APENAS A ASSUSTADORA. ZILA É A OFICIAL DE CIÊNCIAS DO
ESQUADRÃO 312. EMBORA FALE RARAMENTE, SEUS INSIGHTS SÃO
GERALMENTE PERFEITOS E ELA ENCARA A VIDA COM UM SENSO DE
RACIONALIDADE FRIA.
ZILA TEM POUCAS OU NENHUMA HABILIDADE SOCIAL. ELA É DIRETA E
DISTANTE E TEM DIFICULDADE EM DEMONSTRAR EMPATIA PELOS
OUTROS. ELA DEMONSTROU TRAUMAS ANTERIORES COMO A RAZÃO
PARA ESSE COMPORTAMENTO, MAS ELA AINDA NÃO REVELOU O QUE
ESSE TRAUMA PODE TER SIDO. ZILA É BAIXA, COM PELE NEGRA ESCURA E
CABELOS LONGOS E ENCARACOLADOS QUE PARECEM TER VONTADE
PRÓPRIA (O QUE EXPLICARIA MUITA COISA, NA VERDADE). ELA USA UMA
VARIEDADE DE BRINCOS DE OURO, QUE ESTRANHAMENTE PARECEM
COMBINAR COM O QUE ELA ESTÁ FAZENDO NO MOMENTO. DE FALA
MANSA, ELA É ASSUSTADORAMENTE INTELIGENTE E ADOOOORA ATIRAR
EM COISAS COM SUA PISTOLA DISRUPTIVA.
CATHERINE BRANNOCK ― A FIGURONA. CAT “ZERO” BRANNOCK FOI
UMA PILOTA BRILHANTE E MEMBRO DA LEGIÃO AURORA. MELHOR
AMIGA DE TY E SCAR JONES DESDE A INFÂNCIA, CAT FOI A
RESPONSÁVEL PELA CICATRIZ NA SOBRANCELHA DIREITA DE TYLER (ELA
QUEBROU UMA CADEIRA NA CABEÇA DELE NO PRIMEIRO DIA DO JARDIM
DE INFÂNCIA).
CAT E TY DORMIRAM UM COM O OUTRO NA NOITE EM QUE SE
FORMARAM NO ÚLTIMO ANO COMO CADETES. EMBORA TYLER TENHA
CONVENCIDO A CAT DE QUE UM RELACIONAMENTO SÉRIO NÃO ERA
UMA BOA IDEIA, CAT CONTINUOU A CARREGAR UMA TOCHA POR TY E
FICOU COM ELE QUANDO O MESMO FOI DESIGNADO AOS DESAJUSTADOS
DO ESQUADRÃO 312.
CÍNICA E COMBATIVA, ELA FREQUENTEMENTE ENTRAVA EM CONFLITO
COM AURORA E TENTAVA MANTER O ESQUADRÃO EM LINHA RETA E
ESTREITA. TRAGICAMENTE, ELA FOI INFECTADA PELA MENTE COLMÉIA
RA'HAAM QUANDO O ESQUADRÃO VISITOU OCTÁVIA III. EMBORA ELA
TENHA LUTADO BRAVAMENTE CONTRA O GESTALT, PERMITINDO QUE
SEUS COMPANHEIROS TEVISSEM TEMPO DE ESCAPAR DO PLANETA, ELA
ACABOU SENDO ABSORVIDA PELA COLETIVIDADE.
EU SEI. EU TAMBÉM FIQUEI TRISTE. ☹
OS ESHVAREN ― DEPENDENDO DE PARA QUEM VOCÊ PERGUNTA, OS
ESHVAREN SÃO UMA RAÇA ANCESTRAL DE SERES MISTERIOSOS QUE
MORRERAM HÁ UM MILHÃO DE ANOS OU UMA FRAUDE PERPETUADA
POR VENDEDORES AMBULANTES E FORNECEDORES DE ARTEFATOS
FALSOS.
NA VERDADE, NÃO APENAS OS ESHVAREN EXISTIAM, MAS ELES
REALMENTE TRAVARAM UMA GUERRA CONTRA O RA'HAAM PELO
DESTINO DE TODA A GALÁXIA. OS ESHVAREN ACABOU VENCENDO.
SABENDO QUE SEUS ANTIGOS INIMIGOS PODERIAM UM DIA
RETORNAR, MAS QUE PROVAVELMENTE NÃO ESTARIAM VIVOS PARA VÊ-
LO, OS ESHVAREN ESCONDERAM DISPOSITIVOS NA DOBRA QUE
LEVARIAM À CRIAÇÃO DO GATILHO – UM SER DE IMENSO PODER
PSÍQUICO. ELES TAMBÉM SUPOSTAMENTE ESCONDERAM UMA ARMA
CAPAZ DE DERROTAR O RA'HAAM.
SE VOCÊ SOUBER ONDE ENCONTRÁ-LA, HONESTAMENTE, ISSO
REALMENTE NOS AJUDARIA...

O RA'HAAM ― UM ÚNICO SER COMPOSTO POR MILHÕES DE MENTES.


QUERENDO INCORPORAR A GALÁXIA EM SUA "UNIÃO", O RA'HAAM
UMA VEZ PROCUROU CONSUMIR TODAS AS MENTES SENCIENTES DA
GALÁXIA.
DERROTADO PELOS ESHVAREN, O RA'HAAM MERGULHOU EM
HIBERNAÇÃO EM VINTE E DOIS MUNDOS BERÇÁRIOS ESCONDIDOS,
ESPALHADOS PELA VIA LÁCTEA. ANINHADO SOB A SUPERFÍCIE DESSES
PLANETAS – TODOS LOCALIZADOS PERTO DE PORTÕES NATURAIS NA
DOBRA – O RA'HAAM VEM LAMBENDO SUAS FERIDAS HÁ UM MILHÃO
DE ANOS.
INFELIZMENTE, UM DESSES MUNDOS É OCTAVIA III, UM PLANETA
ESCOLHIDO PARA A COLONIZAÇÃO TERRÁQUEA. DESCOBRINDO O
RA'HAAM NASCENTE ABAIXO DA SUPERFÍCIE, OS COLONOS FORAM
CONSUMIDOS E ADICIONADOS À SUA TOTALIDADE, INCLUINDO O PAI DE
AURORA, ZHANG JI.
O QUE ACONTECEU A SEGUIR É UM POUCO OBSCURO, MAS O
RA'HAAM APARENTEMENTE ENVIOU ESSES COLONOS CORROMPIDOS DE
VOLTA A TERRA, INFILTRANDO-SE NA AGÊNCIA DE INTELIGÊNCIA
GLOBAL PARA PROMOVER SUA AGENDA. AGORA ESPERA ABAIXO DE
SEUS VINTE E DOIS MUNDOS, REUNINDO FORÇAS PARA O MOMENTO EM
QUE PODE DESOVAR NOVAMENTE, ESPALHANDO-SE PELA DOBRA PARA
INFECTAR TODA A GALÁXIA.

MAGELLAN ― SOU EU! OLÁ! SENTI FALTA DE SEUS MACIOS ROSTOS


HUMANOS!
OK, TUDO EM DIA? BEM, SENTEM-SE, PESSOAL. NÃO ESTAMOS MAIS NO
KANSAS...
1
TYLER

A explosão do disruptor atinge a Betraskan bem em seu peito.


Ela grita e sua braçada de e-tech voa enquanto ela desmaia em
uma pilha de baba. Eu salto sobre ela, me esquivando quando outro
disruptor passa sibilando pela minha orelha. O bazar ao nosso redor
está lotado, a multidão se separando diante de mim em pânico
enquanto mais explosões ecoam atrás de nós. Scarlett está correndo
bem nos meus calcanhares, o cabelo vermelho-fogo colado nas
bochechas de suor. Ela salta sobre a mulher Betraskan inconsciente
e seus bens espalhados, oferecendo um grito de desculpas.
― DESCUUUUULPA!
Outra explosão ecoa. Os gangsters que nos perseguem rugem
para que a multidão se afaste. Pulamos sobre o balcão de uma
barraca de semptar, passamos pelo proprietário amedrontado e
saímos pela porta dos fundos para outra rua úmida e lotada.
Paredes verdes claras ao nosso redor, céu vermelho acima,
plascreto amarelo sob nossos pés, um arco-íris de roupas e tons de
pele à frente.
― ESQUERDA! ― Finian grita nos comunicadores. ― VÁ PARA
ESQUERDA!
Nós viramos à esquerda, entrando em um beco sujo fora da rua
principal. Vendedores ambulantes e fienders1 nos encaram enquanto
passamos correndo, botas batendo, lixo voando. Os minúsculos
gangsters que nos perseguem alcançam a entrada do beco,
enchendo o ar com o BAMF! BAMF! de suas explosões de disruptor.
A lufada de partículas carregadas passa pelo meu ouvido.
Deslizamos atrás de uma caçamba de lixo cheia de peças
descartadas de máquinas, procurando algum tipo de cobertura.
― EU DISSE QUE ISSO ERA UMA MÁ IDEIA! ― Scarlett engasga.
― E EU DISSE QUE NÃO TENHO MÁS IDEIAS! ― eu grito,
chutando uma porta.
― AH NÃO? ― ela pergunta, disparando contra nossos
perseguidores.
― NÃO! ― eu a arrasto para dentro. ― APENAS AS MENOS
INCRIVEIS!

·····
Sim, vamos voltar um pouco.
Cerca de quarenta minutos, talvez, antes que as coisas ficassem
tão confusas. Eu sei que já fiz isso antes, mas é mais emocionante
assim. Confie em mim. Covinhas, lembra?
Então, quarenta minutos atrás, estou sentado em uma mesa
lotada em um bar lotado, a música martelando em meus ouvidos.
Estou vestido com uma túnica preta justa e calças mais justas, que
presumo que sejam elegantes – Scarlett as escolheu para mim,
afinal. Minha irmã está espremida na cabine ao meu lado, também no
guarda-roupa civil: vermelho-sangue e bem ajustado e com corte tão
baixo do jeito que ela gosta.
Sentados à nossa frente estão uma dúzia de gremps.
O lugar em que estamos é um mergulho, toda luz pulsante e ar
enfumaçado, estufado até as vigas. Há um amplo fosso no centro da
sala onde acho que eles realizam algum tipo de esporte sangrento,
mas felizmente ninguém está matando ninguém aqui agora. O
comércio de drogas e peles está acontecendo ao nosso redor, os
pequenos traficantes da estação e sua rotina diária. E junto com o
cheiro de fumaça e o barulho dos alto-falantes, uma única pergunta
está zumbindo em minha cabeça.
Como em nome do Criador vim parar aqui?
Os gremps sentam-se à nossa frente – uma dúzia de pequenas
figuras peludas amontoadas do outro lado da cabine. Seus olhos
semicerrados estão fixos no uniglass que Scarlett colocou na mesa
entre nós. O dispositivo é um painel plano de silicone transparente do
tamanho da palma da mão, iluminado com telas holográficas.
Girando alguns centímetros acima está uma imagem brilhante de
nosso Longbow. A nave é em forma de ponta de flecha, reluzente de
titânio e carbonita. O sigilo da Legião Aurora e nossa designação de
esquadrão, 312, estão estampados em seus flancos.
É o estado da arte. Bela. Já passamos por muita coisa juntos.
E agora temos que deixá-la ir.
Os gremps murmuram entre si em sua própria língua sibilante e
ronronante, bigodes se contorcendo. A líder tem pouco mais de um
metro de altura, o que é grande para sua espécie. O pelo de
tartaruga que cobre seu corpo é perfeitamente penteado e seu terno
branco pérola grita "gangster chic". Seus olhos verdes claros são
contornados com pó escuro e têm o brilho de alguém que dá prazer
aos animais de estimação.
― Arriscado, Garota da Terra. ― a voz da gremp é um ronronar
suave. ― Arrrrriscado.
― Disseram-nos que Skeff Tannigut era uma senhora que podia lidar
com pequenos riscos ― sorri Scarlett. ― Você tem bastante
reputação por aqui.
A mencionada Sra. Tannigut tamborila suas garras no tampo da
mesa, levanta os olhos do holograma de nosso Longbow para os
olhos de minha irmã.
― Existe o risco regular, Garota da Terra, e então existe o risco de
vinte anos na Colônia Penal Lunar. O tráfico de hardware roubado da
Legião Aurora não é brincadeira.
― Nem o hardware ― eu digo.
Doze pares de olhos semicerrados giram em minha direção. Doze
mandíbulas com presas caem. Skeff Tannigut olha para minha irmã
com espanto, as orelhas se contorcendo no alto da cabeça.
― Você deixou seu homem falar em público?
― Ele é... Espirituoso ― Scarlett sorri, me dando um olhar de
soslaio cheio de Cale a booooca.
― Eu poderia te vender uma coleira de dor? ― a gangster oferece.
― Quebra-lo?
Eu levanto minha sobrancelha.
― Obrigado, mas– ugh!
Eu agarro minha canela machucada sob a mesa e olho quando
Scarlett se inclina para frente para olhar a líder do sindicato nos
olhos.
― Se você está se sentindo tão generosa, vamos pular as
preliminares, certo? ― ela acena para a imagem holo do nosso
Longbow. ― Cem mil e ela é sua. Códigos de acesso de armas
incluídos.
Tannigut conversa brevemente com seus colegas. Não querendo
outra bota na canela, eu mantenho minha boca fechada e estudo o
clube ao nosso redor.
O bar está repleto com garrafas das cores do arco-íris e as
paredes são iluminadas com exibições holográficas – jogos de jetball
e os mais recentes relatórios de economia da Central e feeds de
notícias de naves do Inquebrado em movimento nas Zonas Neutras.
Esta estação fica muito longe do Núcleo, mas ainda estou surpreso
com o número de espécies diferentes aqui. Desde que atracamos há
duas horas, devo ter contado pelo menos vinte – Betraskans pálidos,
gremps peludos, Chellerianos azuis desajeitados. Este lugar é como
uma fatia suja de toda a Via Láctea, jogada em um caldeirão sub-
orbital duvidoso.
O planeta em que flutuamos acima é um gigante gasoso, um
pouco menor do que Júpiter. Esta estação paira na estratosfera,
suspensa sobre uma tempestade que tem quatro séculos de idade e
20 mil quilômetros de largura. O ar é filtrado, toda a cidade flutuante
selada dentro de uma cúpula transparente de partículas ionizadas
estalando fracamente no céu acima de nossas cabeças. Mas ainda
posso sentir o cheiro forte do gás cloro que dá à tempestade sua cor
e a esta estação seu nome.
Eu tomo um gole da minha água. Dou uma olhada na montanha-
russa abaixo dela.
BEM-VINDO À CIDADE ESMERALDA! diz. NÃO OLHE
PARA BAIXO!
Os gremps pararam de conversar e os olhos brilhantes de
Tannigut estão de volta em Scar. A gangster alisa seus bigodes com
uma pata enquanto fala.
― Vou te dar trinta mil ― ela diz. ― Primeira e última oferta.
Scar levanta uma sobrancelha perfeitamente cuidada.
― Desde quando gremps fazem stand-up comedy?
― Desde quando os legionários da Aurora vendem suas naves? ― a
gremp pergunta.
― Nós poderíamos ter roubado este bebê. O que te faz pensar que
somos da Legião?
Tannigut aponta para mim.
― O corte de cabelo dele.
― O que há de erra– ugh!
― Com todo o respeito, mas os porquês não são da sua conta ― diz
Scarlett suavemente. ― Não há tecnologia em qualquer lugar da
galáxia como a que sai dos laboratórios Aurora. Cem mil é uma
pechincha e você sabe disso. ― Scar joga seu cabelo vermelho-fogo
fora de seus olhos e consegue não olhar para nenhum lugar
especifico tão desesperada quanto nós realmente estamos. ― E,
portanto, senhora, desejo um bom dia.
Scar está se levantando para sair e Tannigut está tentando
impedi-la quando a comoção começa no bar. Eu olho em direção ao
barulho para ver o que é o alarido, noto que os vários jogos de jetball
e relatórios de ações nos monitores foram interrompidos por um feed
de notícias especial.
Meu estômago gira enquanto leio a mensagem na parte inferior
das telas.
ATAQUE TERRORISTA DA LEGIÃO AURORA
Um grande Terráqueo pede ao barman para aumentar o volume.
Um Chelleriano maior berra para colocar o jogo de volta. Quando
uma pequena briga começa, o barman abaixa o volume do deepdub
e aumenta o feed de notícias pelos alto-falantes do pub.
“... mais de sete mil refugiados Syldrathi foram mortos no
ataque, com os governos Terráqueo e Betraskan ambos
expressando indignação com o massacre...”
Meu coração bate e começa martelar no meu peito enquanto
assisto a filmagem. Ele mostra as bolhas cinza-metálico de uma
plataforma de processamento de minério aninhada no flanco de um
asteroide enorme, flutuando em um mar de estrelas.
Eu reconheço a estrutura imediatamente. É a Estação Sagan – a
plataforma de mineração para a qual nosso esquadrão foi enviado
em sua primeira missão longe da Academia Aurora. Fomos
capturados por um contratorpedeiro Terráqueo ali e mantidos em
cativeiro pelo GIA. Eles destruíram Sagan para silenciar qualquer
testemunha que pudesse tê-los visto levando Auri sob custódia. Não
sobrou nada daquele lugar, exceto detritos agora.
Difícil de acreditar que foram apenas alguns dias atrás...
Enquanto eu observo, uma nave se aproxima e dispara uma
saraivada de mísseis, imolando a estação. Mas, quando a filmagem
congela na embarcação de ataque, percebo que não é o pesado
corpo de nariz arrebitado de um contratorpedeiro Terráqueo
disparando o tiro mortal. A nave de ataque é em forma de ponta de
flecha, reluzente de titânio e carbonita, o sigilo da Legião Aurora e
sua designação de esquadrão estampado abaixo em seus flancos.
312.
― Grande Criador...
Eu olho para Scarlett. A narração se eleva acima da briga cada
vez pior.
“Os perpetradores do massacre de Sagan também são
procurados em conexão com a violação da Interdição Galáctica
enquanto eram perseguidos por forças Terráqueas. O comandante
conjunto da Legião Aurora, Almirante Seph Adams, divulgou a
seguinte declaração momentos atrás...”.
A filmagem corta para a figura familiar do Almirante Adams, nosso
CO da Legião Aurora, vestido com uniforme de gala. Dezenas de
medalhas brilham em seu peito largo. Seus braços cibernéticos estão
cruzados, sua expressão sombria. Ele bate um dedo protético em
seu antebraço enquanto fala, metal tocando suavemente em metal.
“― Condenamos”, diz ele, “nos termos mais rigorosos possíveis, as
ações do Esquadrão 312 da Legião Aurora na Estação Sagan. Não
podemos explicar seus motivos, exceto para dizer que este time
claramente se tornou desonesto. Eles violaram nossa confiança.
Eles quebraram nosso código. O Comando da Legião Aurora
oferece toda a assistência ao governo Terráqueo em sua busca por
esses assassinos, e nossos pensamentos e orações estão com as
famílias dos refugiados mortos.”.
Fotografias piscam na tela. Os rostos e nomes da minha equipe.
Finian de Karran de Seel.
Zila Madran.
Catherine Brannock.
Kaliis Idraban Gilwraeth.
Scarlett Jones.
Tyler Jones.
Abaixo de cada um de nossos nomes, aparecem mais palavras.
PROCURADO. RECOMPENSA OFERECIDA:
100.000CR
E é nessa hora que meu estômago parece pronto para rastejar
para fora da minha boca.
Eu olho para minha irmã sem palavras. Precisamos nos mover.
Scar já está arrebatando seu uniglass da mesa quando as garras de
Tannigut afundam em seu pulso.
― Pensando bem ― a gremp sorri com dentes pontiagudos ― cem
mil créditos soa como uma pechincha.
Scarlett olha para mim. Eu sempre disse que é engraçado ser
gêmeo. Às vezes, sinto que sei o que minha irmã vai dizer antes que
ela diga. Às vezes, juro que ela sabe o que estou pensando apenas
olhando para mim. E agora, estou pensando que precisamos sair
completamente deste bar fedorento e sair desta estação fedorenta.
Como da última vez.
Scarlett bate com a palma da mão no nariz de Tannigut. Ela é
recompensada com um ruído alto seguido por um grito agudo de dor
e uma gota de magenta profundo. Eu pego a mão ensanguentada da
minha irmã e a arrasto para fora da mesa enquanto os outros
gremps uivam e pulam em nós.
A briga pelo controle remoto na outra extremidade do bar agora
está a todo vapor, e eu acho que um pouco mais de caos não vai
doer. Então eu atiro na cara de um gremp com meu disruptor, chuto
as presas de outro com minha bota, empurro Scar em direção à
porta.
― VAI! VAI!
Alguém grita. Um botequeiro voa contra a parede acima da minha
cabeça. Três gremps saltam sobre mim, arranhando e mordendo. Eu
chuto e os liberto, rolo pelo chão e fico de pé, saio correndo pela
porta da frente atrás da minha irmã e entro no labirinto de ruas que
compõem a Cidade Esmeralda.
A estação cobre oitenta níveis, cem quilômetros de largura. Os
níveis inferiores são ocupados por uma floresta invertida de turbinas
eólicas, que aproveita as imensas correntes de tempestade abaixo e
as transforma em energia. A cidade está interligada por uma enorme
rede de tubos transparentes de transporte público, alimentados por
essas mesmas correntes. E é um desses tubos que minha irmã e eu
pulamos de cara.
― GRANDE BAZAR! ― Scarlett grita.
― ENTENDIDO. ― o computador emite um bipe e, antes que eu
possa piscar, estamos sendo chicoteados ao longo do tubo em uma
almofada de oxigênio ionizado.
― FIN? VOCÊ ESTÁ ME LENDO? ― eu grito por cima da
correnteza.
― Hum, sim ― vem à resposta. ― Você viu as notícias, Garoto de
Ouro? Essa não foi uma foto minha lisonjeira.
― Sim, nós vimos. Metade das pessoas nesta cidade também, eu
acho. Incluindo o sindicato para o qual estávamos tentando vender o
Longbow.
― Sem acordo, presumo?
Eu olho para trás, vejo um pacote de alças chicoteando direto em
nossas caudas, disruptores prontos para disparar assim que
estivermos fora do tubo pressurizado.
― Você poderia dizer isso ― eu respondo. ― Estamos voltando pelo
bazar, preciso que você nos dê instruções. Diga a Kal e Zila para se
preparar para o lançamento. Cada caçador de recompensas, homem
da lei e benfeitor mal acabado neste buraco vai estar atrás de nós
agora.
― Eu disse que isso era uma má ideia.
― E eu disse a você. Não tenho más ideias.
― Apenas as menos incríveis?
A Cidade Esmeralda está passando rapidamente pelo tubo de
trânsito do lado de fora, dezenas de níveis, milhares de segredos,
milhões de pessoas. As nuvens ao nosso redor giram e mudam em
belos padrões, como aquarelas em tela molhada. As paredes, arcos
e pináculos reluzentes sob a cúpula ionizada estão tingidos de verde
pálido pela tempestade de cloro abaixo, o céu acima como sangue
em uma ferida.
Eu sabia que iríamos forçá-lo ao chegar a uma estação tão
remota como esta. Era apenas uma questão de tempo antes que se
espalhasse que tínhamos ficado desonestos e eu sabia que a
Agência de Inteligência Global estaria atrás de nós depois de
Octavia III. Mas eu deveria saber que eles nos atacariam pelos
lados. Enquadrar-nos como os perpetradores do massacre que eles
cometeram foi inteligente. Algo que eu poderia ter feito se jogasse
minha moral no reciclador. Ao nos pintar como assassinos de
refugiados inocentes, bem como violadores da interdição, eles nos
isolaram da Academia Aurora e de qualquer pessoa que nos
ajudasse.
Não posso culpar Adams por nos rejeitar. Mas ele colocou a mim
e a Scar sob sua proteção quando papai morreu – tenho que admitir
que doeu ouvi-lo nos chamar de assassinos. E embora faça sentido
para ele nos desligar depois que fomos acusados de terrorismo
galáctico, parte de mim está arrasada por ele acreditar.
― Atenção, Bee-bro ― Scar chama.
― PRÓXIMA PARADA, GRANDE BAZAR ― diz o
computador.
― Você está pronta para isso? ― eu pergunto.
Minha irmã olha para mim e pisca.
― Eu sou uma Jones.
Uma rajada de ar vindo da outra direção nos retarda até uma
parada perfeita ao lado das portas de tubo. Nós saltamos, entramos
no mar de barracas e barulho que é o Grande Bazar da Cidade
Esmeralda. Se eu tivesse um momento, pararia para admirar a vista.
Mas do jeito que está eu acho que só tenho um momento antes de
nós dois estarmos mortos.

·····
Atravessamos a porta do beco e entramos na cozinha de um
Betraskan segurando uma colher gordurosa, o ar cheio com o doce
cheiro de óleo de nozes luka e javi frito. O chef está prestes a
começar a gritar conosco quando vê as pistolas disruptivas em
nossas mãos. Então, ele e seus cozinheiros decidem sabiamente
fazer uma pausa.
Os gremps explodiram atrás de nós e Scarlett e eu
descarregamos com nossos disruptores. Eu atiro em quatro (98 por
cento no meu exame de pontaria), e os outros saltam de volta para o
beco do lado de fora. Antes que eles possam se reagrupar, estamos
correndo novamente, pelas portas da frente da lanchonete lotada, e
para a rua além.
Um adolescente humano sentado em um hoverskiff do lado de fora
da lanchonete desce da sela. Quando seus pés tocam a calçada, eu
o derrubo pelas pernas, pego suas chaves mestras que estão caindo
e pulo em nossa carona. Scar pula no esquife atrás de mim e
oferece um grito de desculpas ao proprietário enquanto decolamos.
― DESCUUUUULPA!
Nós disparamos para a via pública, drones e veículos tripulados
balançando e desviando ao redor e acima de nós. O tráfego aqui é
puro caos – uma perpétua hora do rush de alta velocidade, três
camadas de profundidade e espero que possamos perder nossos
perseguidores na confusão. Mas uma explosão de disruptor em
nossas costas me deixa saber...
― ELES AINDA ESTÃO ATRÁS DE NÓS! ― Scar grita.
― ENTÃO OS DESTRUA!
― VOCÊ SABE QUE EU SOU UMA PÉSSIMA ATIRADORA! ― ela
arranca o cabelo dos olhos. ― PASSEI MINHAS AULAS DE TIRO
AO ALVO FLERTANDO COM MEU PARCEIRO DE TIRO!
Eu balanço minha cabeça.
― LEMBRE-ME POR QUE VOCÊ ESTÁ NO MEU ESQUADRÃO?
― PORQUE EU DISSE SIM, ESPERTINHO!
A voz de Finian interrompe a comunicação.
― Você tem que pegar a próxima saída, Garoto de Ouro. Leva
direto para as docas.
― Oiiiii, Finian.
― Hum... Ei, Scarlett.
― O que você está fazendo?
― Ah... ― meu Gearhead limpa a garganta. ― Bem, quero dizer...
― SCAR, PARE COM ISSO! ― eu grito, descendo o desvio com
mais explosões de disruptor soando atrás de nós. ― FIN, A
SEGURANÇA DA ESTAÇÃO TEM ALGUMA IDEIA DE QUE JÁ
CHEGAMOS?
― Nada nos boletins até agora.
― MOTORES PREPARADOS?
― Pronto para lançar assim que vocês dois chegarem aqui. ― Fin
limpa a garganta novamente. ― Embora, sem você... Nós realmente
não temos um piloto...
E assim, o mundo voando por mim a cento e vinte quilômetros por
hora fica lento.
O braço de Scar aperta um pouco em volta da minha cintura.
Minha respiração fica presa na minha garganta. Estou tentando não
pensar nela. Tentando não lembrar o nome dela. Tento não
reconhecer a dor em meu peito e apenas nos manter em movimento,
porque, por mais fundo que estejamos, não há tempo para tristeza
agora. Mas ainda...
Cat.
― ESTAREMOS LÁ EM SESSENTA ― eu digo. ― PORTAS DA
BAÍA ABERTAS – ESTAMOS CHEGANDO PERTO.
― Entendido.
Chegamos à rampa de saída tão rápido que quase
ricocheteamos, o tráfego passando por nós como um borrão. Arrisco
um olhar por cima do ombro e vejo um hovercruiser rebaixado
abrindo caminho entre os veículos atrás de nós. Mais de uma dúzia
de gremps estão agarradas nas laterais. Não tenho certeza de como
ela conseguiu isso tão rápido, mas Tannigut chamou reforços e eles
se parecem com Profissionais.
A rampa está lotada de carregadores e esquifes pesados e Scar
dispara uma dúzia de tiros selvagens, esvaziando o pacote de força
de seu disruptor e acertando alguns alvos aleatórios. Mas ela grita
em triunfo quando sua explosão final atinge um gremp no ombro,
fazendo o gangster tombar na estrada.
― EU PEGUEI UM! ― Scar aperta minha cintura, me sacudindo
freneticamente. ― SIM! VOCÊ VIU ISSO? EU–
Eu ajusto meu disruptor para Matar e descarrego na barriga de
um caminhão de lixo volumoso cruzando na pista diretamente acima
de nós. A explosão destrói seus estabilizadores, enviando-o para
uma nuvem de fumaça. Eu desvio para o lado quando o caminhão
bate em nossa pista, virando de ponta a ponta, espalhando algumas
toneladas de materiais recicláveis por toda a rampa atrás de nós.
Buzinas soam, os freios a ar disparam e o hovercruiser dos gremps
é acertado bem em cheio, enviando seus ocupantes voando em uma
chuva de pelos fumegantes e palavrões.
Todo o pelotão, atingido por um único tiro.
Eu assopro o cano do meu disruptor. Sorrio por cima do ombro
enquanto o coloco de volta no coldre.
― Sabe, ― Scarlett faz beicinho, ― ninguém gosta de exibicionismo,
Bee-bro.
― Eu odeio quando você me chama assim ― eu sorrio.
Chegamos às docas, ziguezagueando pelo tráfego de pedestres,
embaladores automáticos e carretas carregadas de carga. O espaço
porto da Cidade Esmeralda está diante de nós, todas as luzes
cintilantes e céus zumbindo e naves elegantes atracadas. Posso ver
nosso Longbow bem à frente, em repouso entre um enorme
longhauler Betraskan e um cruzador de recreio Rigelliano novinho em
folha dos estaleiros Talmarr.
Fin está parado na parte inferior da rampa de carregamento,
observando as docas com uma expressão preocupada. Sua pele
branca como os ossos brilha sob as luzes do Longbow, seu cabelo
claro penteado em pontas curtas. Suas roupas cívi de corte fino são
escuras em contraste com o exosuit prateado reluzente que envolve
seus membros e costas.
Ele nos localiza, acena freneticamente.
― Eu vejo você, Garoto de Ouro. Mova essa almofada de palmada,
nós temos que–
― ESTE É UM ALERTA DE SEGURANÇA ― ressoam os alto-falantes do
cais. ― TODOS OS OFÍCIOS ATUALMENTE NAS DOCAS DA CIDADE
ESMERALDA ESTÃO BLOQUEADOS ATÉ SEGUNDA ORDEM. REPETINDO:
ESTE É UM ALERTA DE SEGURANÇA...
― VOCÊ ACHA QUE ISSO É PARA NÓS? ― Scarlett grita no meu
ouvido.
Eu olho para o céu acima, vejo um drone de segurança em meio
ao enxame de carregadores e levantadores.
― Sim ― eu suspiro. ― Isso é para nós.
O piso abaixo de nós estremece e enormes grampos de
ancoragem começam a se erguer do convés do espaço porto à
frente. Eles cercam as naves atracadas, provocando palavrões dos
membros da tripulação e dos trabalhadores ao nosso redor. Eu
aposto toda minha energia, tentando desesperadamente nos levar
para casa, mas derrapamos até parar perto de Fin no momento em
que a maquinaria da doca trava nosso Longbow no lugar.
Scar pula do esquife. Enquanto o alerta continua soando ao nosso
redor, eu tiro o loiro úmido dos meus olhos, examinando os grampos
com as mãos nos quadris. Titânio reforçado, liso com graxa,
eletromagnético. E eles são enormes.
― De jeito nenhum temos o impulso para nos libertar disso ― eu
digo.
Fin balança a cabeça.
― Eles vão rasgar o casco em pedaços.
― Você pode hackear o sistema? ― eu pergunto. ― Desbloquear-
nos?
Meu Gearhead já tem seu uniglass, o dispositivo acende com uma
dúzia de minúsculos monitores holográficos quando ele começa a
digitar.
― Dê-me cinco minutos.
― Não quero alarmar ninguém ― diz Scar. ― Mas não temos cinco
minutos.
Eu olho para onde minha gêmea está apontando, o coração
afundando quando vejo dois hoverskiffs blindados correndo pelas
docas. Suas luzes piscando e alarmes estridentes enviam a multidão
para fora do caminho, e eles estão cortando uma linha direta em
nossa direção.
Nas carrocerias atrás das cabines de controle, posso ver duas
dúzias de robôs de segurança pesados armados com canhões
disruptivos. Estampadas no capô do caminhão, nas placas peitorais
dos SecBots, estão as palavras SEGURANÇA DA CIDADE
ESMERALDA.
― Então, ― Scarlett diz, olhando para mim. ― mais alguma ideia
incrível?
2
AURI

Já estamos de pé quando Fin chega subindo a rampa, mancando


pesadamente.
― PEGUEM SEU EQUIPAMENTO, ― ele late. ― ESTAMOS NOS
MANDANDO!
Tyler e Scarlett estão logo atrás dele, correndo para seus
beliches e armários.
― VINTE SEGUNDOS! ― grita nosso líder de esquadrão quando ele
passa por Kal e por mim. ― VINTE SEGUNDOS, FORA DA PORTA!
Eu não possuo nada, exceto meu uniglass, Magellan – que está
enfiado no meu bolso como sempre – e as roupas que estou
vestindo. Então, corro até onde Fin está freneticamente guardando o
kit de ferramentas que ele e Zila estavam usando para consertar seu
traje.
― Vá ― digo a ele. ― Pegue suas coisas. Eu posso guardar isso.
Ele me lança um olhar agradecido e se vira para a parte de trás
da nave. Não tenho tempo para colocar nenhuma das pequenas
ferramentas ou maquinários em suas camas de espuma confortáveis,
então simplesmente coloco tudo na bolsa.
― DEZ SEGUNDOS! ― Ty grita de algum lugar atrás de mim.
― OBJETOS PORTÁTEIS E DE VALOR! ― grita Scarlett em
resposta. ― VIAGEM LEVE!
Eu levanto a bolsa com as mãos trêmulas, olhando ao redor da
cabine em busca de qualquer outra coisa que eu deva pegar.
Kal e eu passamos as últimas horas sentados no banco de trás
enquanto ele tentava me ensinar alguns exercícios Syldrathi que
esperava que me ajudassem a concentrar minha mente. O poder
selvagem que controlei brevemente em Octavia III ainda está
espreitando dentro de mim – posso senti-lo lá, girando e rolando
atrás de minhas costelas – mas meu comando dele é instável, na
melhor das hipóteses. Se eu abrir a válvula que o mantém enfiado ali,
não tenho ideia do que vai sair, mas sei que não vai ser bonito. A
esperança de Kal é que com treinamento, com disciplina, eu possa
controlar como eu uso isso.
Mas enquanto eu tentava imaginar uma chama roxa piscando
lentamente, afastando a realidade para me concentrar no meu sa-
mēi – um conceito Syldrathi que ainda não entendo – foi difícil não
espiar por baixo dos meus cílios e olhar para ele em vez disso. Kal
fica com uma pequena carranca quando ele está se concentrando, e
que eu poderia felizmente afastar a realidade e focar muito bem.
Mas acho que ele pode considerar isso uma versão indigna de
treinamento.
Passei meus cinco segundos finais agarrando os pacotes de
ração espalhados pela mesa e colocando-os em cima das
ferramentas de Fin, jogando a bolsa por cima do ombro enquanto os
outros saíam da parte de trás.
― Vamos! ― Tyler se encaixa. ― Kal, você está no ponto. Temos
dois hoverskiffs blindados chegando, a talvez trinta segundos de
distância. Vamos embora antes que eles cheguem.
― Sim senhor. ― Kal diz simplesmente, olhando para verificar minha
posição, então liderando o caminho ele desce a rampa. Tyler está
bem atrás dele e eu sou a próxima, o que significa que eu corro para
as costas de nosso Alfa quando ele para.
― Ei, o que–
Eu me inclino para o lado para ver ao redor dele e percebo que
ele parou porque Kal parou. E Kal parou por que...
― Eu acho, ― nosso Tanque diz baixinho. ― que sua estimativa de
trinta segundos estava incorreta.
Nós três somos alvos fáceis na rampa de carregamento do
Longbow, o que é uma má notícia, porque não estamos sozinhos.
Dois enormes caminhões-plataforma flutuantes pararam na frente de
nossa nave, as luzes piscando em um azul urgente. E coisas
gigantescas e aterrorizantes de soldados robôs que parecem
baratas de metal estão pulando deles, joelhos dobrados para trás
para receber o impacto quando atingem o solo. Eles estão armados
com armas do tamanho do meu torso, sua armadura polida refletindo
as luzes estroboscópicas.
― ATENÇÃO, SUSPEITOS! ― alguém exclama, embora eu não veja sua
boca se mexer. ― VOCÊS ESTÃO SENDO DETIDOS PARA
INTERROGATÓRIO. A RESISTÊNCIA SERÁ RESPONDIDA COM FORÇA.
LEVANTEM SUAS MÃOS PARA INDICAR CONFORMIDADE.
Por um longo momento, tudo está quieto. Até mesmo o rugido da
cidade ao nosso redor diminui e como se eu estivesse debaixo
d'água, tudo que posso ver é a luz azul piscando e dançando contra
a armadura dos soldados-robôs baratas. Kal ajusta seu peso
levemente, usando seu corpo para proteger o meu. Eu sinto um
formigamento na nuca, adrenalina batendo em minhas veias. Eu sinto
o mundo... Mudar, e sem aviso, minha mente está um turbilhão de
imagens.
Outra visão.
É como se eu pudesse ver os próximos instantes passando
dentro da minha cabeça, como se estivesse assistindo em uma tela
de vídeo. Posso ver os caminhos que poderíamos seguir, cada um
se ramificando na minha frente, claros como vidro.
Eu os vejo nos algemando, nos carregando em uma daquelas
carrocinhas, prendendo as restrições na longa barra no meio para
nos segurar. Vejo as mãos de Zila torcidas atrás das costas, a
mandíbula de Ty contraída em derrota e frustração.
Ou, descendo outro caminho, vejo Kal começar a avançar e Ty
mergulhar para o lado, e me vejo paralisada pela indecisão enquanto
os soldados se abrem, o fogo cortando nossos corpos.
Ou eu vejo...
― Be'shmai ― diz Kal suavemente.
― Sim ― eu digo baixinho, parando para uma respiração longa e
lenta. Sinto meus pulmões se expandirem, sinto minhas costelas
incharem com a pressão interna, a coisa que acordei turva e pronta,
querendo e exigindo ser livre. Eu levanto minha voz um pouco para
que todo o Esquadrão 312 me ouça.
― Pessoal, cheguem ao convés em três...
Eu ouço uma pergunta atrás de mim, o rugido já subindo em
meus ouvidos.
― Dois...
Espero que a confusão do time não os atrapalhe. Que eles vão
confiar em mim, embora nossa nova confiança seja uma coisa frágil,
construída sobre o coração partido.
― Um.
Tyler e Kal caem no chão e eu levanto minhas mãos, soltando
cada pedaço de mim. Meu corpo se foi, deixado para trás onde
estava na porta do Longbow, balançando no lugar. E eu sou um
tumulto de energia mental azul meia-noite, entrelaçada com fios de
prata viciosos, explodindo em todas as direções.
Para o resto do mundo, sou invisível, ou estou de volta onde meu
corpo está, ou talvez algo no meio. Mas no plano onde existo, sou
uma esfera turbulenta, expandindo-se na velocidade da luz para
envolver os SecBots na minha frente.
É uma onda que mal estou surfando, nem estou controlando e
não posso escolher minha direção – posso manter o tsunami longe
de mim, poupando os corpos fracos e frágeis de Kal e Tyler, o
esquadrão atrás de mim, mas ele balança para fora e para cima e
além deles em um milissegundo.
A onda de força explode em trezentos e sessenta graus e estou
vagamente ciente do Longbow se dobrando no mesmo instante que
os robôs. Meus fios de prata se enrolam em torno deles, agarram-se
com força mortal e o prazer ruge através de mim enquanto eu
aperto, esmago e seu metal amassa e seus circuitos queimam e
morrem.
Tudo está em silêncio e o rugido é ensurdecedor e eu sou parte
da minha nuvem azul meia-noite, estou agarrando-os com meus fios
de prata e estou voltando ao meu corpo como um pedaço de elástico
esticado demais, e de repente...
... Acabou.
E mais uma vez sou uma coisa infinitamente frágil, apoiada em
duas pernas trêmulas, e ao meu redor há gritos e alarmes, e na
minha frente estão os destroços dos hoverskiffs e dos SecBots, e ao
meu redor está a ruína do nosso Longbow e estou balançando de
novo e meus joelhos querem dobrar para trás como os robôs fizeram
quando pularam da carroceria, há sangue em meus lábios, estou me
movendo e estou caindo e então o chão está correndo para me
encontrar.

·····
Quando eu acordo, Kal está se inclinando sobre mim, sua mão
gentil na minha bochecha. Seus olhos violetas são grandes e bonitos,
seus longos cabelos prateados são emoldurados por um halo de luz
difuso.
― Você parece um anjo ― murmuro.
― O que é um anjo? ― ele pergunta, enrolando sua mão na minha.
Sua expressão está tão séria como sempre, mas posso ver a
preocupação em seus olhos.
Eu posso sentir a contenção que ele está exercendo para evitar
esmagar minha mão com seu aperto.
― É uma criança suja com asas ― Finian diz de algum lugar atrás
dele.
As sobrancelhas de Kal se erguem.
― Os humanos não têm asas.
― Como você saberia? ― Fin pergunta. ― Já viu um nu?
As sobrancelhas de Kal se erguem e suas orelhas começam a
corar quando Scarlett intervém para salvá-lo.
― Seja legal, Finian. Você está viva aí, Auri? Isso foi um grande
kaboom.
Ela e Tyler aparecem, pairando sobre o ombro de Kal, e eu
percebo que ninguém está usando uma auréola – estamos apenas
dentro de algum lugar e eles são iluminados por trás pelas lâmpadas
colocadas no teto. Eu me sinto como uma forma humana feita de
macarrão, meus membros fracos e não cooperativos, mas
lentamente minha visão está clareando. Zila gentilmente muda Kal
para o lado e começa a passar um scanner médico em mim.
― Onde estamos? ― eu tento.
― Hotel na parte inferior da Cidade Esmeralda ― diz Tyler. ― O tipo
de aluguel barato e sem perguntas. Eu reservei como um backup
antes do acordo com os gremps, apenas no caso de as coisas
realmente irem mal.
― O que é estranho ― diz sua irmã, batendo em seu ombro. ―
Porque eu achei todas as suas ideias incríveis. Sorte que você sabia
que precisaríamos de uma posição de reserva.
― Quase como se eu tivesse estudado táticas ― diz ele, batendo
nas costas dela.
― Você está bem ― Zila pronuncia, olhando para mim. ― A
atividade das ondas cerebrais ainda está um pouco elevada, mas as
bio-leituras estão se normalizando.
― O que aconteceu? ― eu pergunto.
― Você perdeu a consciência ― Kal responde.
― Depois de reduzir uma pilha de SecBots a sucata e arrastar seus
hoverskiffs do céu ― Fin fornece. ― Estava muito quente. Mas
poderíamos ajudá-la a aprender a mirar essa coisa? Se não
tivéssemos nos abaixado...
― Nós nos abaixamos ― diz Scarlett. ― E a esfera de força de Auri
salvou nossas costas bem torneadas, então, obrigada, Auri.
A Face do nosso esquadrão me ajuda a sentar contra os
travesseiros finos e eu tenho uma visão melhor do quarto de hotel
sujo. É o mesmo tipo de decoração de piso pegajoso que acho que
nunca sai de moda com um determinado orçamento. Há uma tela de
holograma ocupando uma parede e duas camas – estou ocupando
uma, com o esquadrão ao meu redor. Fin está em outra, trabalhando
em seu traje novamente, seu kit de ferramentas espalhado pelo
colchão. Há uma única janela manchada, nossas coisas empilhadas
embaixo dela.
Tyler responde sem ser perguntado.
― Fiz o check-in sozinho depois de fugirmos das docas ― explica
ele. ― Puxei o resto de vocês pela janela. Menos chance de alguém
se lembrar de nós dessa maneira. Devemos estar seguros aqui por
um tempo. Eu paguei com créditos não marcados.
― Portanto, temos um pouco de tempo. ― Scarlett afunda na
beirada da minha cama. ― Podemos respirar.
Ela olha ao redor da sala, estudando cada um de nós, e eu
percebo que a proteção da irmã mais velha que ela costumava
manter por Tyler está crescendo para abranger a todos nós. Zila
voltou a ajudar Fin com seu traje e ele estremece cada vez que ela
move seu joelho. Kal é uma estátua ao meu lado e Tyler está perdido
em pensamentos. Ou memória.
Eu sei que ele está pensando em Cat a cada poucos batimentos
cardíacos. Todos nós estamos.
Esta derrota é uma vitória, ela me disse antes de desaparecer
para sempre na mente coletiva do Ra'haam.
Mas não parece nada assim agora. Estamos fugindo dos
governos Terráqueos e Betraskans – até mesmo a legião que leva
meu nome está contra nós agora. Perdemos nosso ativo mais valioso
no Longbow, quase não temos armas e ainda menos dinheiro, e não
temos ideia para onde ir a seguir.
― Então o que fazemos agora? ― eu pergunto suavemente.
Tyler está olhando para o chão, a sobrancelha cicatrizada
curvada em uma carranca profunda. Eu posso ver que ele está se
esforçando tanto para nos liderar e eu sofro por ele a cada segundo.
Mas às vezes parece que a única razão de ainda estarmos nos
movendo é que nenhum de nós percebe que já fomos mortalmente
feridos. Não percebemos que deveríamos cair.
― Comida! ― diz Scarlett, batendo palmas no silêncio
desconfortável. ― Em caso de dúvida, coma o que quiser.
― Gosto da maneira como você pensa ― suspiro.
Scar desenterra as refeições que embalei e, com uma
demonstração bastante convincente de falsa alegria, ela se agita,
lendo em voz baixa os nomes nos sachês e distribuindo-os com um
floreio. Eu ganho um pacote de papel alumínio de “Ensopado” de
Carne-e-Purêᴛᴍ sem nenhuma explicação no pacote de citações em
torno do Ensopado.
― VOCÊ GOSTARIA DE UMA ANÁLISE NUTRICIONAL DISSO? ― vem à
voz de Magellan do meu bolso. ― PORQUE EM ALGUMAS CULTURAS,
UMA REFEIÇÃO COMO ESSA SERIA CONSIDERADA UM ATO DE GUERRA,
ESPECIALMENTE–
― Modo silencioso ― dizemos em coro e é o suficiente para
despertar a sombra de um sorriso ao redor.
Fin balança a cabeça.
― Eu sei que aqueles modelos antigos eram um pouco bugados,
mas essa coisa realmente ganha o prêmio.
― Sim ― suspira Tyler. ― Nunca mais foi o mesmo depois que Scar
instalou aquele beta persona da DealNet.
Kal pisca para Scarlett.
― Você acessou atualizações para seu uniglass de um canal de
compras?
― Não ― diz Tyler. ― Ela acessou atualizações para meu uniglass
de um canal de compras.
― Ele veio com uma bolsa grátis. ― Scar encolhe os ombros. ― E
era a sua antiga unidade de qualquer maneira, irmãozinho.
Tyler revira os olhos e muda de assunto.
― Como está o exosuit, Fin?
― Bem ― diz ele.
― Este somatório está incorreto ― diz Zila quase imediatamente. ―
O traje de Fin sofreu danos significativos em Octavia III e ainda
precisa de reparos sérios. Além disso, o próprio Finian precisa de
tempo em gravidade baixa ou zero para descansar e se recuperar.
Ele forçou seu corpo vários dias além de seus limites habituais.
Fin está com a boca aberta no momento em que ela está na
metade de seu discurso, mas não sai nada. Finalmente, ele
consegue falar com os dentes cerrados.
― Estou bem. Eu dou conta disso. E talvez você deva cuidar da sua
própria vida.
Embora às vezes seja um pouco difícil ler sua expressão através
das lentes de contato pretas que ele usa, não há dúvidas sobre o
brilho da morte que Fin está atirando em Zila agora. O Cérebro de
nosso esquadrão estuda nosso Gearhead por um longo momento,
então se vira para Tyler, seu rosto tão vazio como sempre. Mas há
algo na maneira como ela pisca e puxa seu brinco de ouro pendurado
– os de hoje têm a forma de gremps – que é um pouco menos à
prova de balas do que costumava ser.
Quer dizer, todos nós somos um pouco menos à prova de balas
do que costumávamos ser. Mas, para Zila, essa sugestão de degelo
deve ser enervante.
― Eu sou a oficial científica da equipe e médica ― diz ela, dirigindo-
se a Ty diretamente. ― É apropriado que eu informe ao meu Alfa
sobre a condição dos membros da equipe.
― Está tudo bem ― diz Ty, gentil. ― Obrigado, Zila.
Finian, no entanto, parece estar ignorando completamente o
conselho de Zila sobre repouso na cama. Ele arranca uma
ferramenta da mão dela e sorve sua refeição pré-embalada ao
mesmo tempo em que novamente começa a trabalhar em seu traje
sem dizer mais nada. Depois de olhar para Ty, Scarlett se levanta do
meu lado e se acomoda ao lado de Fin.
― Se você grudar Tipo Tacos de Verdadeᴛᴍ em seus circuitos, isso
nunca vai sair ― ela o informa suavemente.
― Eu preciso consertar isso ― ele insiste com a boca cheia.
― Espere um pouco, Fin. ― Scarlett põe a mão sobre a dele. ―
Coma. Respire.
Ele encontra os olhos dela por um segundo, de alguma forma
mastigando e fazendo beicinho ao mesmo tempo. Mas uma pitada de
tensão sai de seus ombros enquanto ele engole, como se estivesse
admitindo algo diferente da possibilidade de fritar seu traje.
― Sim, ok. ― ele suspira.
Todos nós nos calamos um pouco, terminando nossas refeições.
Estou me concentrando em colocar comida na boca enquanto fico
encostada no ombro de Kal, onde ele se senta na cabeceira da
cama comigo. Dolorida como estou, estou ciente de cada pequena
mudança, de cada uma de suas respirações. Ele passou tanto tempo
evitando me tocar depois que nos conhecemos, restringindo qualquer
indício do Puxão que está sentindo, que quando ele se permite o luxo
agora, isso envia faíscas através de mim. Ele me dá isso, quando
ainda é tão cuidadoso com todos os outros... Eu sei que não é o
lugar para isso.
Mas me vejo querendo mais.
― Tudo bem, precisamos fazer um balanço ― diz Tyler assim que o
jantar termina. ― Kal, veja se consegue encontrar alguma menção a
nós nos feeds locais. Precisamos saber o quão profundo estamos
nisso. Zila, Scar, façam um inventário. Fin descubra o que aconteceu
com o Longbow.
― Não estava com a melhor aparência ― diz Kal, olhando para mim
com admiração. ― Uma vez que Aurora acabou com isso.
― Eu sei ― concorda Ty. ― Mas se não houver maneira de salvá-lo,
vamos precisar de outra maneira de sair deste buraco.
Fin limpa as mãos, puxa seu uniglass e começa a hackear a rede
da estação. Kal liga a holoscreen, passando pelos canais de notícias
para ver se estamos fazendo alguma aparição especial. Zila e
Scarlett metodicamente começam a mexer em nossas malas,
categorizando tudo o que tiramos do Longbow em propriedade
pessoal, propriedade do grupo e coisas que podemos vender. Vejo
que Zila resgatou os dois uniformes do GIA que roubamos a bordo
do Sempiternidade e me vislumbro em uma daquelas máscaras
reflexivas vazias. Faixa branca em minha franja, íris branca em meu
olho direito. A garota que olha para mim no espelho às vezes ainda
se sente uma estranha.
Vejo o momento exato em que Scarlett tira o dragão de pelúcia
de Cat, Shamrock, da bolsa de Fin. Ela olha por cima do ombro para
Tyler, os olhos brilhando com lágrimas, então se inclina para lhe
entregar o brinquedo. Ele gentilmente envolve as mãos em torno dele
como se fosse infinitamente precioso, pressionando-o contra o peito.
Então Tyler olha para Fin, que o está observando. Fin, que deve ter
corrido até a cadeira do piloto quando deveria estar deixando o
Longbow, para pegar este último pedaço de Cat.
O Betraskan apenas acena com a cabeça e volta para seu
uniglass.
Embora esse esquadrão seja a coisa mais próxima de uma
família que tenho agora, ainda me sinto como um peixe fora d'água
perto deles. É em momentos como esse que me lembro do quão
longe de casa estou, o quão longe do tempo. Duzentos anos se
passou em um piscar de olhos enquanto eu estava perdida em crio.
Para mim, só se passaram algumas semanas desde que embarquei
no Hadfield, partindo para uma nova vida em Octavia. Mas agora
tudo que eu sei se foi, e todos que amo está indo junto com isso.
Não sei como deveria estar me sentindo. Mas olhando para o
velho brinquedo de Cat, para aqueles uniformes cinza sem rosto, não
posso deixar de pensar em nosso confronto com o Ra’haam em
Octavia III. Os colonos foram absorvidos em sua mente coletiva junto
com ela. O rosto de meu pai sob a máscara de um agente do GIA,
flores prateadas em seus olhos.
Jie-Lin, eu preciso de você.
E embora uma parte de mim queira se enrolar e gritar com a
memória, a maior parte está apenas furiosa. Saber como isso o
consumiu, o usou, o vestiu como uma roupa. Eu posso sentir o azul
da meia-noite formigando na ponta dos meus dedos. O dom que o
Eshvaren me deu estalando logo abaixo da minha pele. O antigo
inimigo do Ra’haam, de alguma forma vive em mim.
Posso aprender a controlar isso. Eu sei disso. Eu posso ser o
Gatilho que eles me fizeram ser.
Mas, como Tyler disse assim que saímos de Octavia, ainda
precisamos encontrar a Arma.
― Ok, Garoto de Ouro, ― Finian suspira, a cabeça inclinada sobre
seu uniglass. ― Você quer as boas ou más notícias primeiro?
― O que for menos dramático ― responde Tyler.
― Bem, a boa notícia é que o Longbow já está em pedaços em um
depósito de salvamento da Cidade Esmeralda. Peças muito
pequenas, muito planas e muito caras.
Tyler fecha os olhos. Mesmo que todos nós soubéssemos que as
chances de conseguir a nave de volta eram baixas, ainda é um golpe
mortal ter perdido qualquer chance de vendê-la.
― Como isso são boas notícias? ― ele pergunta.
― Eu acho que são boas notícias em contraste com as más
notícias?
Tyler suspira.
― Bata em mim.
Fin continua.
― A má notícia é que a única nave que podemos pagar com nossos
fundos atuais é um cargueiro Chelleriano de cento-e-setenta-anos
sem acionamento, navegação ou sistemas de suporte de vida, cujo
último trabalho foi transportar resíduos sólidos de Arcturus 4.
― Parece agradável ― Scarlett diz com uma expressão neutra.
― Parece perfumado ― murmuro.
― Parece inútil ― Tyler franze a testa. ― Não há mais nada?
Finian dá de ombros e, com um movimento do dedo, projeta sua
imagem uniglass no display de parede. Posso ver um nó de rede
complicado com milhares de naves diferentes em oferta, de
cruzadores enormes a pequenos rebocadores. Cada um deles está
tão fora de nossa faixa de preço que eu realmente me sinto um
pouco nauseada. Eu olho para o nome da empresa no topo do
mastro, um logotipo brilhante de uma roda dentada envolta em fogo.
― Corporação Hefesto. ― murmuro.
― Eles são o maior grupo com um depósito de salvamento na
Cidade Esmeralda ― explica Fin. ― Partículas do Criador, se
tivéssemos os créditos, poderíamos obter uma carruagem digna de
nosso status de notórios criminosos interestelares, mas...
― Não temos os créditos ― observa Tyler, sombrio.
― Por favor, diga que não estamos pensando em comprar a nave de
esgoto? ― Scarlett diz. ― Porque eu não acho que estou vestida
para isso.
Kal olha para Scar, uma sobrancelha prateada se erguendo.
― Como você se vestiria para isso?
― Espere, espere um minuto... ― eu sussurro. Minha respiração
presa na minha garganta. ― Fin, pare de rolar, volte para...
Meu tom acalma todos na sala. Fin levanta uma das mãos,
passa-a da direita para a esquerda como um condutor, percorrendo
lentamente as naves no pátio de salvamento.
― Pronto, pare aí! ― todos os olhos se voltam para mim enquanto
fico de pé lentamente, apontando para uma das naves na parede.
― Auri? ― Tyler pergunta.
― Esse é o Hadfield ― eu digo.
Tyler se aproxima e aperta os olhos para a tela. Fin perfura a
entrada, expande-a e pronto. Direto das minhas memórias para o
mundo desperto.
Parece um pouco com uma antiga nave de guerra da Terra, longa
e em forma de charuto. O casco está enegrecido, longos cortes
foram rasgados nas laterais e o metal parece que foi liquefeito em
alguns lugares, mas eu a reconheceria em qualquer lugar. A nave em
que subi a bordo duas semanas e duzentos e vinte anos atrás,
partindo para uma nova vida em Octavia III. Uma vida que se foi
agora, junto com tudo e todos que já conheci.
― Pelo Criador, você está certa, Auri. ― Ty balança a cabeça,
olhando para o Hadfield com uma espécie de espanto. ― A última
vez que a vi, ela estava sendo dilacerada por um FoldStorm. Como
alguém conseguiu pegar ela?
Fin dá de ombros.
― Suponho que uma equipe de resgate de Hefesto tropeçou com ela
na Dobra depois que você resgatou a Clandestina aqui? As
especificações dizem que ela está em um mega-comboio rumo a um
leilão em Picard VI.
― Por que alguém iria querer um pedaço de lixo assim? ― Scarlett
olha para mim. ― Quero dizer, sem ofensa...
― Nenhuma tomada ― murmuro.
― Diz bem aqui, ― Fin acena. ― ‘O naufrágio mais famoso da era
da exploração estelar Terráquea! Tenha um pedaço genuíno da
história!'
― Temos que chegar até ela. ― as palavras saem antes que eu
perceba que estou falando.
Tyler se vira da tela para me encarar.
― Pelo que?
― Não sei. Eu só... Sinto isso.
― É o seu dom, be'shmai? ― Kal pergunta.
― Talvez. ― eu olho ao redor para um mar de rostos incertos,
percebendo que por mais que eles estejam crescendo para confiar
em mim, os legionários do Esquadrão 312 vão precisar de mais do
que um pressentimento. ― Olha, sabemos que devo impedir o
Ra’haam de florescer, certo? Caso contrário, ele se espalhará pela
Dobra e consumirá a galáxia. Mas não sabemos nada sobre os
Eshvaren. E foram eles que colocaram tudo isso em movimento, que
de alguma forma me transformaram em... O que quer que eu seja.
Kal fica lentamente ao meu lado, olhando para os destroços do
Hadfield. De todas as raças da galáxia, os Syldrathi são os únicos
que realmente acreditam que os Eshvaren existiram. A luz da
projeção brinca em suas íris violetas enquanto ele fala.
― E você acredita que podemos aprender mais sobre os Antigos a
bordo?
― Não sei ― admito. ― Mas eu sei que algo aconteceu comigo
naquela nave. Eu era apenas uma pessoa normal quando entrei
naquele criópode, e quando Tyler me puxou para fora, eu estava... ―
eu olho para o meu reflexo no capacete novamente. A estranha
olhando para mim. ―… Assim.
― Eles podem ter recuperado a caixa preta ― diz Fin. ― O
gravador de voo nos diria se o Hadfield fosse parar em qualquer
lugar que ela não deveria, se algo incomum acontecesse que os
instrumentos pudessem medir. Quando. Como. Onde.
― Estaremos mais bem equipados para apoiar à missão de Aurora
se entendermos a natureza dela ― concorda Zila. ― E aqueles que
deram a ela.
Kal acena com a cabeça.
― Conheça o passado ou sofra com o futuro.
Tyler olha para Scarlett por um longo momento. Ela inclina a
cabeça e encolhe os ombros com elegância.
― Tudo bem ― ele diz então, seus dedos apertando Shamrock. ― É
um lugar para começar. E não temos nenhuma outra pista para
prosseguir. Sun Tzu disse: ‘Se você conhece o inimigo e conhece a si
mesmo, não precisa temer uma centena de batalhas’.
― Quem é Sun Tzu? ― Fin pergunta.
― Um velho morto ― responde Scarlett.
― E estamos seguindo o conselho dele por que...?
Os olhos de Tyler estão no Hadfield e posso ver o fogo neles
enquanto ele fala.
― Nós sabemos um pouco sobre nosso inimigo. Vamos aprender
algo sobre nossos amigos.
― Ok ― responde Scar. ― Podemos começar aprendendo como
sair desse monte de lixo?
3
SCARLETT

Minhas garotas são grandes demais para este uniforme.


Não me entenda mal, eu amo minhas garotas. Chi-chis2. Ta-tas3.
Qualquer eufemismo que você deseja usar. Sabe aqueles dias em
que você consegue esculpir o decote perfeito e pode ouvir os
pescoços das pessoas estalando quando você passa bruscamente?
Sim, isso. Elas são um detector de idiotas fantástico. (Dica: eu não
culpo você por espiar, mas se você está falando com elas em vez da
minha cara, você falhou no Teste.) Muitas vezes são muito divertidas
de se ter por perto à noite.
Mas em alguns dias, elas são apenas umas vadias chatas para se
ter.
Eu tenho que segurar as malditas coisas quando corro, para
começar. Eu não estou fazendo isso para apontá-las para vocês,
pessoal – só dói se eu não fizer isso. Bons sutiãs são caros e você
tem que lavá-los com muito cuidado ou logo comprará outro sutiã
caro. Não me fale sobre toda a coisa do arame. A humanidade é
uma raça capaz de viagens interestelares e ninguém inventou um
sutiã para meninas do meu tamanho que não pareça uma prisão.
Aqui está uma verdade universalmente reconhecida – tirar essa coisa
no final do dia é o maior sentimento do mundo.
Desculpe, garotos.
E então há momentos como este. Tentar desafiar as leis da física
comprimindo a matéria em um espaço muito pequeno para caber.
Tenho certeza de que Zila tem uma equação para isso em algum
lugar daquele grande cérebro dela: Area.ñ − [Desgraça æ {onde. æ
= densidade de sutiã}] = DOOORR.
― Eu sempre odiei física. ― murmuro, me ajustando pela décima
sétima vez.
― Você o que? ― Tyler pergunta por meio de comunicações.
― Nada. ― eu suspiro.
Zila e eu estamos marchando ao longo da Seção 12, Ceta
Promenade das docas na Cidade Esmeralda, vestindo os uniformes
de dois agentes da Agência de Inteligência Global da Terra.
Roubamos essas roupas durante nosso ousado roubo de volta a
Nave Mundial, tirando os corpos de dois capangas do GIA que tentou
nos prender. Tentou é a palavra-chave – Legionário Kaliis Idraban
Gilwraeth, adepto da Cabala Warbreed, desmontou aqueles agentes
do GIA como quebra-cabeças com as próprias mãos.
Eu admito que costumava ficar um pouco quente e me
incomodava em assistir Kal trabalhar. O Tanque de nosso esquadrão
não é nada fácil para os olhos. Mas eu posso dizer pelos olhares
não-tão-secretos que eles trocam constantemente que ele e Auri têm
algum tipo de Coisa acontecendo agora. Então, solidariedade entre
irmãs, devo agora (principalmente) desviar meus olhos. Lê suspiro.
Pena, eu nunca namorei um Syldrathi antes...
DE QUALQUER MANEIRA, uniformes roubados geralmente
significam uniformes mal ajustados. Embora eu jure que essa coisa
não se encaixou tão mal da última vez que a coloquei. Mas ninguém
na equipe pode mentir tão bem quanto eu, e se passar por um
agente do GIA é uma trapaça que já fiz antes. Então, estou vestida
da cabeça aos pés com uma nanofolha cinza-carvão, fazendo o meu
melhor para caminhar como se fosse meu. Zila está marchando ao
meu lado, ignorando cuidadosamente minha décima oitava tentativa
de ajuste de bap ao assistir a denúncia pública de Adams sobre nós
em seu uniglass novamente.
“… Este time claramente ficou desonesto. Eles violaram nossa
confiança. Eles quebraram nosso código. O Comando da Legião
Aurora oferece toda a assistência...”.
― Você já teve esse problema? ― eu pergunto a ela.
Zila silencia seu uni e olha para mim.
― PROBLEMA?
― Você sabe ― eu digo, acenando para o meu peito. ― Tamanho...
Flutuação.
Zila inclina a cabeça, sua voz ficou ainda mais plana do que o
normal pela máscara do espelho do GIA.
― AS ALTERAÇÕES HORMONAIS DURANTE A OVULAÇÃO PODEM
CAUSAR INCHAÇO. A PRODUÇÃO DE ESTROGÊNIO ATINGE O PICO UM
POUCO ANTES DO MEIO DO CICLO, E ISSO PODE CAUSAR AUMENTO–
― Hum, Scarlett?
― Sim, Finian?
― Você e Zila ainda estão transmitindo.
―... Então?
― Hum... Deixa pra lá.
― Boa resposta.
Tyler invade antes que alguém consiga cavar muito fundo.
― Ok, Scar, estamos na linha seis, cerca de trezentos metros para
trás. Marque-nos.
Eu olho para trás e vejo Tyler e o resto do esquadrão à espreita
na sombra de um posto de reabastecimento. Eles estão vestidos
com macacões roubados para se encaixar no resto da multidão,
capuzes e bonés de jetball puxados para baixo para cobrir suas
feições. A Cidade Esmeralda é um lugar muito civilizado e as
patrulhas SecDrone são regularmente sobrecarregadas – é um risco
estar a céu aberto assim, é o que estou dizendo, especialmente com
aquela recompensa por nossas cabeças. Mas se vamos chegar ao
Hadfield antes que ele acabe em leilão, temos que sair desta
estação. E com nosso Longbow completamente fora do jogo, isso
significa pegar outra nave.
― NÓS VEMOS VOCÊ, TYLER ― relata Zila.
― Estaremos observando através de seus uniglasses, então os
mantenha a mão. Se vocês tiverem problemas, saiam e vão para a
estação de transporte público.
― Relaxe, irmãozinho. ― eu digo. ― Eu cuido disso.
― Não tenho dúvidas.
― Booooa resposta.
― A nave que procuramos deve estar chegando à sua direita.
Eu examino a multidão ao meu redor, grata pela primeira vez por
ser alta o suficiente para ver isso. E se você acha que ser uma
garota de um metro e oitenta soa como uma festa, eu o convido a
tentar comprar calças que caibam. Ou encontrar um menino que não
se incomode por ser mais baixo do que você.
O espaço porto fica no nível superior da Cidade Esmeralda, mais
próximo da cúpula de partículas carregadas que mantém a
atmosfera venenosa sob controle. Essas docas são tão coloridas e
frenéticas quanto o bazar da cidade, embora haja um tipo diferente
de urgência aqui. O bloqueio de segurança causado por nossas
escapadas relacionadas aos gremps durou vinte e quatro horas
antes que as autoridades fossem forçadas a retirá-lo, o que significa
que todas as naves no porto estão agora totalmente atrasadas.
Capitães estão gritando para suas tripulações, dockers automáticos
e reabastecedores estão trabalhando na linha vermelha, o ar está
cheio de drones de carregadores.
À nossa esquerda está à estação de trânsito, um emaranhado
estonteante de tubos transparentes que transportam pessoas e
cargas para outros níveis. E à nossa direita, em uma das pistas de
pouso de tamanho médio, vejo um cruzador elegante, quase
retrocedendo.
Ela é cinza metálica, em forma de coração, destacada por longas
listras brancas correndo em seus flancos. O nome Opha May está
escrito perto de seu arco. Proa? É, eu realmente não sei a diferença.
Para falar a verdade, nunca me interessei por espaçonaves. Dormi
durante a maior parte das minhas aulas de mecânica, exceto por
uma temporada de quatro semanas no terceiro ano, quando prestava
atenção para impressionar um garoto.
(Liam Chu. Ex-namorado nº 32. Prós: Escreveu canções de amor
para mim. Contras: Não sabe cantar).
Mas Tyler me disse que o Opha May é uma boa nave. Pequena o
suficiente para uma tripulação de seis. Rápida o suficiente para
superar a maioria dos problemas e vigorosa o suficiente para lutar
contra o resto. E se meu irmãozinho sabe de alguma coisa além de
me enfurecer, ser um sabe-tudo e ter um cabelo perfeito, é sobre
naves. É uma das razões pelas quais ele e Cat se dão tão bem.
Quer dizer, se davam tão bem.
Oh inferno...
E assim, meus olhos estão queimando novamente. Meu coração
está doendo com outro lembrete de que ela se foi. Eu conhecia Cat
desde o jardim de infância. Fomos colegas de quarto na academia
por cinco anos. E é estúpido, mas são as pequenas coisas sobre ela
que eu mais sinto falta, porque elas foram as constantes em minha
vida, e é tão continuamente óbvio que elas se foram agora.
Sinto falta da maneira como ela falava dormindo. Escondia
minhas meias em uma tentativa amigável de me deixar totalmente
louca. Pegava minhas coisas emprestadas sem pedir. Aqueles
pequenos toques de Cat o dia todo, todos os dias, era como eu
sabia que ela estava por perto. Eles eram a garantia de sua
presença. E sua presença significava que eu sempre tinha minha
melhor amiga comigo. Sempre tive minha parceira no crime. Eu tinha
todas as coisas maiores e mais difíceis de articular que vieram com
Cat fazer parte da minha vida.
Encontrei o delineador dela na minha bolsa ontem à noite e chorei
por uma hora.
Então, eu me permiti sentir agora. Deixo isso me lavar por um
momento que parece durar para sempre. Não quero negar o quanto
dói, porque de alguma forma isso seria negar tudo o que ela
significou para mim. Mas então respiro fundo e empurro os
pensamentos sobre Catherine “Zero” Brannock da minha mente.
Focando no que preciso fazer.
Porque é isso que Cat gostaria que eu fizesse.
Zila e eu caminhamos em direção ao Opha May e a multidão nos
dá um amplo espaço. Aposto que não é sempre que os agentes da
Agência de Inteligência Global viajam tão longe do Núcleo, mas sua
reputação como Pessoas Com Quem Você Não Se Mete garante
que, mesmo entre essa multidão de alienígenas do outro lado do
Caminho, ninguém mexe conosco. Trabalhadores robustos
Chellerianos dão uma olhada em nossos uniformes e dão um passo
para o lado. Grupos de durões de cara azeda com as cores do
sindicato partem como fumaça. Juro que até mesmo um drone de
carregadores sai correndo do nosso caminho enquanto avançamos
para a pista de pouso. Eu penso nos rostos das pessoas que
encontramos dentro desses uniformes, o pai de Auri e o resto, todos
eles totalmente corrompidos pelo Ra’haam. E parte de mim se
pergunta até onde essa corrupção se espalha.
Afasto o pensamento por mais um dia e olho para o pequeno
grupo de homens e bots trabalhando na nave à nossa frente. A
tripulação é uma mistura de tons de pele, mas todos são Terráqueos.
O que, é claro, é o motivo pelo qual Ty escolheu esta de todas as
naves do registro da doca na Cidade Esmeralda.
― Esse é o capitão na rampa de carregamento ― diz Finian em
nosso link uniglass. ― O homem gritando com aquela coisa de
pelos em seu rosto.
― Isso se chama bigode ― diz Tyler.
― Isso se chama repugnante, Garoto de Ouro.
― Parece que um skenk rastejou sobre seu lábio e expirou ― diz
Kal.
― Não é? ― Finian concorda. ― Pelos do corpo humano, ew.
― Espere ― eu ouço Aurora dizer. ― Você quer dizer que Syldrathi
não deixa pelos faciais crescer?
― Não, be'shmai.
―... Você deixa crescer em outro lugar?
― Podemos, POR FAVOR ― Tyler diz lentamente. ― manter
nossas mentes neste trabalho?
Eu ouço um pequeno coro de desculpas nos comunicadores e
não posso deixar de sorrir. Disfuncional como nossa pequena família
é, pelo menos está começando a se parecer como uma. Eu olho ao
redor da pista de pouso movimentada e realmente vejo um homem
baixo gritando com o que parece ser uma lagarta morta colada
acima de sua boca. Ele está vestido com um traje de voo e botas
magnéticas. Ele está abatido, com o rosto vermelho de tanto rugir
para sua tripulação, os bots ajudando com sua carga e os
transeuntes aleatórios. Ele parece velho o suficiente para ser meu
pai.
Quer dizer, papai morreu quando tínhamos onze anos, mas você
sabe o que estou dizendo...
― Tudo bem. ― eu aceno para Zila. ― Vamos fazer um pouco de
mágica.
― NÃO EXISTE MÁGICA, SCARLETT ― diz Zila.
― Veja e aprenda, minha amiga.
Caminhamos até o capitão do Opha May, nossas botas brilhantes
soando no convés. Ele nem mesmo levanta os olhos de seu uniglass.
― Josef Gruber ― digo, usando o nome que Fin hackeou dos
servidores do cais.
― Quem está perguntando? ― o baixinho responde, ainda sem olhar
para mim.
― Por autoridade da Lei de Registro Terráquea, Artigo 12, Seção B,
estamos por meio deste, comandando sua embarcação.
Agora eu tenho sua atenção. E quando ele finalmente olha para o
meu rosto, estou usando todos os anos de treinamento na única aula
que não dormi para resumi-lo. Posso não ter tido as melhores notas.
Eu não era a melhor atiradora, estrategista ou pilota. Mas Scarlett
Isobel Jones ainda é muito boa no que faz. E ela é boa com
Pessoas.
Ele deve ter dormido cerca de quatro horas. Já se passaram
cerca de seis meses desde que ele voltou para casa e ele sente falta
disso. Posso ver que um de seus olhos é cibernético e, pela mancha
de veias em seu nariz, ele gosta de uma bebida. Olhando por cima
de seu rosto enrugado, sua postura enquanto ele se dirige a mim,
posso sentir hostilidade. Descrença. E um pouco de medo.
― Você está brincando comigo, certo? ― ele rosna.
― Garanto-lhe, Capitão Gruber, estamos falando muito sério.
Ele olha ao redor da doca, a incredulidade lutando contra a raiva.
― Estamos a sessenta milhões de anos-luz da Terra ― ele cospe,
seu lábio de lagarta balançando em fúria. ― O que, em nome do
Criador, o GIA está fazendo aqui?
Eu me inclino em seu botão do medo.
― Como explicamos Capitão, estamos tomando posse de sua nave.
Você é um cidadão Terráqueo; sua nave está sujeita à legislação
Terráquea. Acredite em mim quando digo que você não quer que eu
reporte seu descumprimento em meu relatório de missão. ― eu
estendo uma das mãos enluvadas. Não treme. Nem um pouco. ― As
chaves de acesso, por favor.
A equipe de Gruber parou de trabalhar agora, reunindo-se ao
nosso redor em um pequeno semicírculo hostil. O Capitão está me
olhando com raiva. Estou usando o mesmo tom de voz que todo
instrutor da academia já usou para me disciplinar por atrasos ou me
censurar por tarefas atrasadas ou me citar por falar/dormir/beijar na
aula. Todos aqueles professores que me avisaram que eu nunca
seria nada.
E com uma série de maldições que sou muito elegante para
repetir, o Capitão Gruber enfia a mão na jaqueta e me entrega um
conjunto de chaves mestras brilhantes.
Mostra o quanto meus professores sabiam.
― Bom trabalho, irmã ― vem à voz de Tyler no meu ouvido.
― Eu sou uma Jones.
― O que? ― o pequeno Capitão zangado diz.
― Você e seus homens têm cinco minutos para remover seus
pertences pessoais ― digo a ele. ― Certifique-se de que a nave
está abastecida para a partida.
― Cinco minutos? ― ele estala. ― E a minha carga?
― Você pode apresentar formulários de compensação por meio do
webnode da GIA.
Eu viro minhas costas, já procurando por Ty no meio da multidão.
― OBRIGADA POR SUA COOPERAÇÃO ― Zila diz a ele.
Posso sentir o olhar do Capitão entre minhas omoplatas. Sua
vergonha e raiva por ter sido derrubado na frente de seus homens.
Mas direi uma coisa sobre a burocracia Terráquea: o último lugar no
‘jeito que você quer ser’ está no lado ruim. Você teria que ser idiota
como nós para sequer considerar isso. E com outra maldição,
Gruber late para seus homens para juntarem suas coisas.
Vejo Ty e o time se movendo no meio da multidão em nossa
direção, e a emoção do meu pequeno triunfo está quente em meu
peito. Isso foi ainda melhor do que eu esperava. Enquanto eu sorrio
por trás da máscara do espelho, Zila se aproxima de mim e
sussurra.
― AQUILO FOI...
― Mágico? ― eu respondo.
― NOTÁVEL.
― Sim. Mas não se apaixone por mim, Zila. Vou apenas quebrar seu
coração.
― ISSO PARECE CONSISTENTE COM SEU MODUS OPERANDI ROMÂNTICO.
― ela faz uma pausa antes de acrescentar: ― VOCÊ TAMBÉM É
MUITO ALTA PARA MIM.
Eu pisco com isso.
― Espere... Você gosta de meninas?
Zila dá de ombros, examinando a multidão.
― NÃO AS ALTAS.
Na verdade, estou um pouco surpresa com isso. Para ser
honesta, não achei que Zila gostasse muito de alguém. Mas antes
que eu possa refletir sobre esta nova revelação, Ty e os outros
chegam até nós no cais do Opha May.
O sorriso no rosto do meu bee-bro me faz sorrir de volta, apesar
do fato de que ninguém pode ver sob meu capacete. Assim que
Gruber e seus meninos juntarem seus equipamentos, partiremos.
― É uma bela nave ― Auri suspira através de nosso canal de
comunicação, olhando para ela.
Mesmo não sabendo nada sobre naves, tenho que concordar – é
uma beleza. Todos nós passamos por dificuldades nas últimas
semanas, mas parece que as coisas estão finalmente indo do nosso
jeito. Nossa garota Gatilho parece cansada, mas totalmente
acordada. Pela primeira vez na vida, Finian parece ter ficado sem
atrevimento, atirando-me um sorriso bobo em vez disso. Apenas Kal
parece um pouco estranho.
Syldrathi é um pouco difícil para eu interpretar além de sua
arrogância geneticamente arraigada. Acho que se eu fosse viver
trezentos anos e todos ao meu redor estivessem mortos pela
metade, eu também estaria um pouco distante. Mas esta não é a
atitude típica Você é apenas efémera de nosso Tanque em trabalho.
Olhando para a carranca em seu rosto bonito, a dilatação de suas
pupilas, eu diria que ele parece quase... Nervoso.
― Você está bem? ― eu murmuro.
―... Kal? ― Auri pergunta, estendendo a mão para roçar a mão dele
com a ponta dos dedos.
Ele esfrega a testa, olhando ao redor das docas.
― Eu sinto–
― Olá, Kaliis.
A voz vem de trás dele. Afiada o suficiente para cortar o clamor.
Algo sobre isso enche meu estômago com borboletas geladas. E
virando na doca lotada, vejo uma jovem olhando carrancuda para a
parte de trás da cabeça de Kal.
Quer dizer, ela parece uma jovem. Talvez dezenove ou vinte. Mas
com Syldrathi é difícil dizer. Ela é mais alta do que eu. Ela tem a pele
cor de oliva impecável, as maçãs do rosto salientes e a elegância
etérea e dolorida de todo o seu povo. Seus olhos são estreitos,
deslumbrantes, de um violeta brilhante. Seu cabelo é longo, penteado
para trás sobre as orelhas afiladas em tranças ornamentadas de cor
preta – ela é a única Syldrathi que eu já vi com o cabelo dessa cor.
Ela tem o tipo de beleza que arranca seu coração pelas costelas.
Mas ela está usando uma armadura preta, pintada com escrita
Syldrathi branca. O glif da Cabala Warbreed está gravado em sua
testa – três lâminas cruzadas, assim como as de Kal. Há uma faixa
de tinta preta correndo de têmpora em têmpora, bem em seus olhos.
Seus lábios também estão pintados de preto e há um colar que
carrega polegares cortados, em volta de seu pescoço. E quando ela
sorri, noto que ela afiou seus caninos em pontas.
Eu já vi uma armadura como a dela antes. Nos feeds de notícias
da Incursão Orion. O ataque surpresa onde papai foi morto. Ela faz
parte da cabala renegada de militantes que iniciaram a guerra civil
Syldrathi.
Inquebrado.
― Espíritos do Vazio... ― Kal respira, olhando para ela.
Ty olha para ele de soslaio.
― Kal?
Posso sentir a tensão repentina irradiando do nosso Tanque em
ondas. Cada músculo flexionado, as mãos cerradas em punhos. Sua
voz cai para zero absoluto.
― Todos vocês, ouçam-me com atenção ― diz ele. ― Não a deixe
chegar perto de vocês.
A jovem ainda está se aproximando, cortando a multidão como
uma faca. Kal estende a mão para Auri ao lado dele que a pressiona
de volta.
― Fique atrás de mim, Aurora.
Ela pisca.
― Kal, o que–
― Be'shmai. ― ela encontra seus olhos incompatíveis com os dele.
― Por favor.
Eu volto minha atenção para a mulher do Inquebrado. Ela parou a
cerca de dez metros de distância, olhando para Kal com os lábios
curvados. Ela está falando em Syldrathi, mas estudos de línguas
eram uma das poucas disciplinas na academia em que eu era boa,
então, surpresa, querida, eu também falo. Uma mão está apoiada
em seu quadril, o desprezo transformando aquele lindo rosto em algo
feio e horrível.
― Quando os adeptos que você bateu naquela briga de bar na Nave
Mundial me contaram a história, eu mal pude acreditar ― diz ela a
Kal. ― Cortei suas gargantas para silenciar suas mentiras. Mas eu
deveria saber que você era capaz de afundar a qualquer
profundidade. Qualquer vergonha. ― os olhos violetas piscam para
Aurora. ― O suficiente até para nomear uma humana de querida.
A mão de Kal desliza para o disruptor sob sua jaqueta.
― O que você quer, Saedii? ― ele pergunta.
Hmm. Eles usam o primeiro nome. Interessante...
Madame Badass abaixa o queixo e sorri com os dentes
pontiagudos.
― Você sabe o que eu quero, Kaliis ― ela responde
A tripulação do Opha May está emergindo da nave atrás de nós
agora, com os braços carregados de bagagem, franzindo a testa em
confusão com a cena na frente deles. Tyler sussurra um aviso e vejo
de relance mais seis do Inquebrado se espalhando no meio da
multidão. Vejo outros dois no telhado do armazém em frente à nossa
plataforma de pouso. Todos eles têm armadura negra, longos
cabelos prateados, lindos rostos com cicatrizes de batalha. Glifos do
Warbreed entre suas sobrancelhas e sorrisos em seus lábios e ódio
naqueles olhos grandes e bonitos.
Mas por mais perigoso que esta tripulação possa parecer, essas
docas são muito ocupadas para que eles causem problemas reais.
Não sei quem são essas fadas, mas o que quer que esteja
acontecendo aqui, já estou farta. É hora de colocar esse uniforme
para funcionar novamente e dar o fora desta estação antes que o
problema real chegue.
― Você vai se abster de chegar mais perto ― digo em Syldrathi,
colocando minha Voz da Autoridade novamente. ― Esses indivíduos
estão sob custódia do GIA, e–
― Você é um oficial da Agência de Inteligência Global tanto quanto
eu, humano ― a mulher zomba, seus olhos nunca deixando Kal. ―
Agora acalme sua língua antes que eu corte sua cabeça.
― Precisamos ir ― murmura Kal, olhando para Tyler. ― Agora.
Ty acena com a cabeça em concordância, os olhos ainda em
Madame Badass.
― Todos subam a bordo.
Começamos a recuar em direção à rampa de carregamento do
Opha May. A mulher do Inquebrado inclina a cabeça. E com zero
preliminar, nem mesmo um beijo de despedida, um de seus amigos
no armazém dispara um foguete de pulso maldito em nós.
Parece um raio de um verde luminoso, deixando um rastro de
fumaça fina. Sibilando quando vem. Auri grita um aviso e joga as
mãos para o alto, e eu vejo um clarão de luz branca em seu olho
direito. Por um segundo, o ar ao nosso redor estala com tensão,
oleoso e quente. Mas, à medida que o foguete pulsante passa
voando por cima de nossas cabeças, percebo que não está
direcionado a nós.
Gruber e sua tripulação se espalham enquanto Tyler ruge a
plenos pulmões.
― SE ABAIXEM!
Kal se joga em cima de Aurora; o resto de nós atinge o convés
enquanto o foguete passa direto pelas portas abertas do meu plano
de fuga recém-requisitado. A explosão rasga o interior do Opha May
e expande suas portas de escapamento. Um estilhaço passa zunindo
pela minha cabeça, deslizando pela armadura de nanofolha nas
minhas costas. Eu ouço Aurora gritar, Zila suspirar, Fin xingar.
Alarmes começam a soar nas docas; a multidão ruge em pânico.
Alertas piscam no visor dentro da minha máscara quando um aviso
sai do sistema de endereços públicos.
― INCÊNDIO NA SEÇÃO 12, CETA. PROSSIGA PARA A SAÍDA MAIS
PRÓXIMA.
O caos se espalha nas docas. Fumaça negra rola no ar.
Incêndios e explosões a bordo de uma estação sub-orbital raramente
são uma coisa boa, e ao nosso redor a multidão começa a se
espalhar em direção aos tubos de transporte, balbuciando,
pisoteando, desesperada. Bocais se abrem no convés, espalhando
produtos químicos na carcaça em chamas do Opha May.
Eu aperto os olhos através da fumaça e vejo o Inquebrado vindo
em nossa direção através da multidão em pânico. A jovem está na
liderança, o olhar violeta ainda fixo em Kal. Nosso Tanque está com
os braços em volta de Auri e vejo sangue derramando de um corte
de estilhaços em sua testa. Sua mandíbula está frouxa, seus cílios
tremulando.
― Aurora? ― ele chora, tocando o rosto dela. ― Aurora!
― F-filha da... ― ela geme.
Eu me levanto cambaleando, balançando a cabeça para clareá-la.
Mas a armadura GIA me protegeu do pior da explosão, e eu tiro
minha pistola disruptiva do coldre e miro na mulher Syldrathi que se
aproxima.
― Parada! ― digo a ela.
Ela para por um momento. Perfeitamente imóvel. E então ela se
move.
Bem, eu já vi Kal desmantelar uma sala cheia de soldados da
Força de Defesa Terráquea em segundos. Ele derrubou dois agentes
do GIA sem suar a camisa. Mas Madame Badass dá um novo
significado à palavra rápido. Em um momento, estou desenhando
uma conta em sua cabeça e no próximo ela está parada na minha
frente, seu punho colidindo com meu peito. Minha respiração salta
por entre meus lábios; Sinto que estou sendo retirada do plasteel. Eu
ouço algo rasgar, vejo estrelas negras, sinto o gosto de sangue. E
então eu estou deitada de costas, ofegando, segurando minhas
partes.
― SCAR! ― Tyler ruge.
― Owwww ― eu gemo.
― Pelo Criador, você está bem? ― Finian engasga, de joelhos ao
meu lado.
― Não. ― um gemido baixo escapa dos meus lábios. ― Ela s-
socou... As garotas...
Vê o que quero dizer sobre essas coisas serem horríveis?
Estou apenas vagamente ciente de meu irmão se levantando,
apontando seu disruptor para a mulher que acabou de me socar as
ta-tas. Mas em um piscar de olhos, ela se esquiva de suas
explosões, aproximando-se dele como um borrão negro. Eu vejo
suas mãos baterem nos ombros de Ty. Eu ouço um rangido feio, um
grito desafinado de dor, quando seu joelho colide com a fábrica de
diversão do meu irmão gêmeo com tanta força que quase posso
sentir em nosso DNA compartilhado.
Pobre Bee-bro...
Ela agarra o braço de Ty e o joga por cima do ombro,
derrubando-o no convés com uma força que balança o plasteel. Seu
pulso ainda está preso em seu aperto quando ela se agacha, a
palma da mão aberta puxada para trás para bater na cabeça do meu
irmão.
― PARE! ― vem um choro.
Pisco com força, observando Kal se erguer ao lado de uma
Aurora semiconsciente. Há um corte de estilhaço em sua bochecha,
uma linha fina de sangue roxo derramando do ferimento.
Uma longa mecha de cabelo prateado se soltou de uma de suas
tranças, flutuando sobre seus olhos na corrente ascendente em
chamas.
As pontas dos dedos dele estão molhadas com o sangue de Auri.
Seu belo rosto está contorcido por uma fúria que é totalmente
aterrorizante.
― Saedii, pare com isso ― ele cospe.
― Só você tem o poder de parar isso, Kaliis. Você pertence a nós.
― Não ― ele diz. ― Eu não sou como você.
Eu olho do glif entre sua sobrancelha para o glif idêntico na dele.
O ódio em seus olhos, refletido nos dela. Os outros adeptos do
Inquebrado se reuniram ao nosso redor agora, armadura negra
brilhando a luz dos destroços do Opha May. Os dois nos telhados
desceram se aproximando de nós com mais foguetes de pulso
prontos. Fin está agachado ao meu lado, a mão no meu ombro; Zila
está ao lado de Auri, verificando a garota que geme com um scanner
médico. E eu estou me perguntando o quão fundo o buraco em que
estamos pode realmente ir quando um dos Syldrathi se aproxima de
Kal com a mão estendida.
― Venha conosco, camarada.
Em um flash quase rápido demais para rastrear, Kal agarra o
pulso do homem, dobra-o para trás com um estalo brilhante. O
homem grita e Kal o torce; Eu ouço outro barulho quando o cotovelo
do cara se curva na direção totalmente errada. Outro guerreiro do
Inquebrado dá um passo à frente, mas com um chiado, a jovem
chamada Saedii o segura. E enquanto eu assisto, horrorizada, Kal
derruba o homem e começa a bater com o punho em seu rosto.
Suas feições estão distorcidas. Tranças prateadas penduradas em
seu rosto. Lábios descascados de seus dentes. Olhos ardendo.
Crunch.
― Grande Criador ― Fin respira.
Crunch.
― Kal, pare ― eu sussurro.
Crunch.
Kal se levanta quando ele termina. Sangue púrpura escorrendo
de seus dedos. Salpicado naquelas belas bochechas. A mulher olha
para ele com triunfo.
― Lá está ele! ― ela respira. ― Aí está o Kaliis que eu conheço.
Ele dá um passo em sua direção. Em um flash, ela saca uma
pistola disruptiva de seu cinto, apontada diretamente para o peito
dele. Não é preciso ser um Tanque para saber pelo zumbido que a
arma está configurada para Matar.
― Não faça isso ― ela avisa.
― Você não vai me matar, Saedii ― diz Kal.
― Verdade. ― ela vira a arma para Fin e eu. ― Mas e eles?
― Eu não vou com você ― Kal diz. ― Eu não vou voltar.
― Oh, Kaliis. ― a jovem suspira, olha para as mãos dele, pingando
sangue púrpura no convés a seus pés. ― Você nunca deixou–
O impacto a joga para trás, os braços girando e o cabelo preto
caindo sobre o rosto. Seu pelotão é jogado para trás também, cuspe
e sangue, caindo no ar. Observo uma esfera de força translúcida
surgindo, esmagando as naves ao nosso redor como papel,
descascando o convés, lançando os enxames de drones acima de
nós como insetos em um para-brisa. O chão treme embaixo de nós;
o ar ao nosso redor estala com estática, oleosa e quente. Todos os
pelos do meu corpo estão em posição de sentido.
Eu me viro e vejo Aurora cambaleando em seus pés, a mão
estendida. Seu olho direito está piscando com a luz pálida da lua.
Seu cabelo sopra como se houvesse um vento, franja branca se
retorcendo, quase incandescente. O sangue jorra da fenda em sua
testa.
― Auri? ― eu gerencio.
Como se alguém apagasse uma luz, o brilho em seus olhos morre
e ela cai de joelhos novamente, o sangue escorrendo de suas
narinas. Kal a pega quando ela cai, puxando-a em seus braços.
Impossivelmente gentil, onde um momento atrás ele era tudo menos
isso.
― Nós... ― Auri engole em seco, enxuga o lábio.
― Be'shmai? ― Kal diz.
― Precisamos… d-dar o fora daqui ― diz ela.
― AURORA ESTÁ CERTA ― diz Zila, tirando a máscara. ― A
segurança virá.
Eu olho ao nosso redor, o peito ainda doendo, lutando para
respirar enquanto rastejo para o lado do meu irmão. Ele está apenas
semiconsciente, gemendo baixinho.
Os guerreiros do Inquebrado estão espalhados como brinquedos
de crianças, desmaiados, afastados com um simples aceno da mão
de Aurora. Mas o cais e as naves ao nosso redor também estão
destruídos. O Opha May é um peso de papel fumegante e não
temos as chaves de acesso de nenhuma das outras naves na doca.
Nosso plano para sair da Cidade Esmeralda está no banheiro.
― Precisamos n-nos esconder ― diz Aurora. ― Profundo e escuro o
quanto n-nós... Podermos.
Eu posso ouvir sirenes chegando.
― Ok ― eu digo. ― Temos que nos mover.
― Aqui, segure-se em mim ― diz Fin, ajudando-me a ficar de pé.
― Kal, você p-pode pegar Ty? ― Auri pergunta.
Nosso Tanque obedece, puxando Tyler para cima.
― De pé, irmão.
Kal apoia Ty; Fin e eu apoiamos um ao outro. Zila lidera o
caminho com seu disruptor na mão. E o mais rápido que podemos,
estamos mancando pelas docas de carregamento em ruínas, os
conveses empenados, a fumaça ainda ondulando ao nosso redor,
alarmes soando, o Inquebrado gemendo espalhado como dominós
caídos.
Chegamos à estação de trânsito e Fin está consultando seu
uniglass, esfaqueando um destino com mãos trêmulas enquanto
esperamos que a pressão dentro do tubo se iguale. Felizmente, a
onda de choque de Aurora nocauteou qualquer SecDrone, então as
autoridades da estação podem não ser capazes de rastrear para
onde estamos indo. Se chegarmos ao ponto baixo da Cidade
Esmeralda, poderemos encontrar um lugar profundo o suficiente para
nos esconder.
Aurora está olhando para trás, através das docas, para os
Syldrathi caídos, sangue nos olhos e nos lábios. Meu estômago vira
quando vejo Madame Badass tentando se levantar.
― Vocês dois se conhecem ― Auri diz, apalpando o nariz
sangrando.
― Sim ― responde Kal.
― Deixe-me adivinhar ― diz Finian, olhando por cima do ombro e
golpeando com um vigor renovado os controles do tubo. ― Ex-
namorada má?
― Não.
Eu olho para Auri.
― Atual namorada má?
― Pior.
― O que poderia ser pior do que isso? ― Zila pergunta.
Kal suspira quando as portas tubulares se abrem. Olha para trás
enquanto ele entra no fluxo.
― Ela é minha irmã.
4
ZILA

Aurora confirma que nosso esconderijo é profundo e escuro o


suficiente para cumprir sua visão.
O esquadrão está pressionado, todos os seis de nós espremidos
na junção entre onze tubos de transporte diferentes. É uma posição
precária, cada parede em um ângulo diferente, o que nos obriga a
nos apoiarmos simplesmente para permanecer na posição. Um
momento de desatenção significaria uma queda considerável por
uma lacuna.
Finian conseguiu interromper nosso progresso por tempo
suficiente para abrir uma escotilha de acesso de emergência no túnel
que estávamos usando, e saímos do sistema de tubos para os
espaços escuros dentro da rede de trânsito. Nosso refúgio atual é
um espaço pequeno e apertado que constantemente vibra e
estremece enquanto os moradores passam zunindo por nós, um
após o outro, todos se movendo rápido demais para registrar nosso
acampamento improvisado. Somos um emaranhado de membros e
mochilas, mas estamos temporariamente seguros.
Estou pensando, acompanhada pela sinfonia de zumbidos e
assobios ao nosso redor, minha mente zumbindo tão rápido quanto
qualquer tubo de transporte. Encontro-me batendo um dedo no
joelho, o ritmo variando, depois repetindo. Não sei a origem deste
padrão, mas sinto que está subindo à superfície da minha mente.
Tap.
Tap, tap.
Tap.
Tyler é quem quebra o silêncio. Ele está encolhido em um canto
com sua irmã pressionada contra ele, seus joelhos levantados para
proteger sua virilha. Eu deveria pedir para examinar seu ferimento
mais recente, mas calculo que a probabilidade de uma recusa,
seguida por uma resposta sarcástica de Finian, é de quase cem por
cento.
Tyler ainda parece um pouco confuso enquanto fala.
― Kal ― diz ele. ― Já estamos com muitos problemas fervendo
sem que esse tipo de surpresa apareça.
― Minha irmã se orgulha de aparecer quando menos necessário ―
diz nosso Tanque. Seu rosto ainda está manchado com seu próprio
sangue e o do guerreiro Inquebrado.
― Bem, de onde ela veio? ― Scarlett pergunta.
― Eu não sei ― Kal responde. ― Não vejo Saedii desde antes de ir
para a academia. Ela não sabia que eu tinha me juntado à Legião
Aurora.
― Ela mencionou aqueles Inquebrados contra os quais lutamos no
bar da Nave Mundial ― diz Tyler. ― Eu estou supondo que eles
contaram a ela sobre você?
Kal inclina a cabeça.
― Eu disse a você que comecei essa luta como uma diversão.
― Porque usei o seu nome ― diz ele.
Kal acena com a cabeça, pensativo.
― Talvez eu devesse tê-los silenciado permanentemente...
Meu dedo bate no meu joelho novamente, o movimento
involuntário. Minha mão parece mudar por conta própria e, em vez
disso, começa a bater o ritmo no meu antebraço esquerdo.
Ah.
Percebo que estou imitando o ritmo do dedo do Almirante Adams
durante a transmissão em que ele nos condenou. Eu assisti a
filmagem quatorze vezes agora. Não tentei livrar-me da compulsão
de fazê-lo. Por experiência própria, quando minha mente se agarra a
algo aparentemente insignificante, geralmente está resolvendo um
problema que ainda não identifiquei.
É uma marca registrada dos altamente inteligentes.
Tap, tap, tap.
Tap, tap.
Tap.
Condenamos, nos termos mais rigorosos possíveis, as ações do
Esquadrão 312 da Legião Aurora na Estação Sagan...
Aurora pousa uma mão gentilmente no braço de Kal.
― Conte-nos sobre sua irmã ― ela sugere, alheia à minha resolução
de problemas internos.
Kal engole, baixando o olhar para os dedos de Aurora. Eles estão
manchados com seu próprio sangue, vermelho ao lado de seu roxo,
seco e descascando em torno de suas unhas.
― Nosso pai era um guerreiro da Cabala Warbreed ― diz ele. ―
Mas nossa mãe era uma Waywalker. Eles são os mais espirituais do
meu povo. Eles estudam os mistérios da Dobra e do eu. Meu pai nos
ensinou a matar. Mas minha mãe tentou nos ensinar os resíduos
encontrados na morte. ― ele fica quieto por um momento e vejo a
mão de Aurora apertar a dele. ― Levei suas lições a sério. Saedii
não.
Eu considero a diferença entre meus próprios pais. Minha mãe
era mais prática. Meu pai era mais caloroso. Eu me pergunto o que
ele pensaria da pessoa que me tornei. Agora sou muito diferente da
garotinha que costumava ser.
É uma pergunta incômoda e que não considero há anos.
Eu a afasto.
Tap.
Tap, tap, tap.
Kal continua.
― Saedii e eu crescemos juntos, mas crescemos cada vez mais
separados. Depois que nosso pai morreu durante a batalha em
Orion, entrei para a Academia Aurora para ajudar a preencher a
lacuna entre nossos dois povos. Minha irmã se juntou ao Starslayer
para dilacerá-lo. Nessas escolhas, você encontra tudo o que precisa
para nos entender.
― Você... ― Scarlett começa. ― Você... Perdeu seu pai em Orion
também?
Kal balança a cabeça lentamente. Eu vejo os gêmeos Jones
trocando um olhar – obviamente se lembrando de seu próprio pai,
que morreu naquela mesma batalha infame. O olhar de Scarlett
suaviza quando ela olha para o garoto Syldrathi.
― Sinto muito, Kal ― ela murmura. ― Você nunca disse...
A postura normalmente perfeita de Kal cai levemente. Aurora
aperta sua mão novamente. Por um momento, os olhos de nosso
Tanque estão nublados, sua expressão de dor. Mas, apesar dessa
revelação – que três dos membros do nosso esquadrão perderam
seus pais no mesmo conflito amargo – Tyler mantém sua mente na
tarefa em mãos.
― E agora sua irmã quer o quê? Matar você?
Kal ouve a nota na voz de nosso Alfa e se endireita mais uma vez.
― Ela deseja que eu abrace a guerra em meu sangue. O fato de eu
não ter me juntado ao Inquebrado é uma vergonha para ela. E ela
não vai parar de me perseguir até que ela consiga o que quer.
― Somos muito bons em evitar perseguições, Kal ― diz Scarlett. ―
Temos praticado muito ultimamente.
O Syldrathi balança a cabeça.
― Os Waywalkers entre meu povo são sensitivos. Empatas. E
embora ela tenha sido criada como Warbreed, Saedii herdou um
toque do dom de nossa mãe. Minha irmã pode... me sentir. Ela tem
feito isso desde que éramos crianças. Não de uma distância infinita,
mas certamente enquanto estivermos presos na Cidade Esmeralda.
― ele faz uma pausa, erguendo o queixo da maneira que aprendi,
muitas vezes segue um de seus pronunciamentos que devem mais à
nobreza do que ao bom senso. ― Eu sou um risco para todos vocês.
É melhor eu ir embora e afastar o perigo.
Aurora começa a protestar, mas é interrompida por Ty, que
levanta uma das mãos – até aquele movimento é doloroso – e fala:
― Ninguém vai a lugar nenhum ― diz ele.
Estou apenas ouvindo pela metade. Minha mente está zumbindo
tão alto quanto os tubos ao nosso redor, e enquanto vejo outro par
de corpos passando, estou me lembrando do rosto de Adams em
sua mensagem. O ritmo e inflexão de suas palavras.
Eles violaram nossa confiança.
Tap.
Tap, tap, tap.
Eles quebraram nosso código.
Tap, tap, tap.
Minhas bochechas esquentam com um rubor momentâneo de
vergonha que levei tanto tempo para entender. Mas não há tempo
para tal indulgência. Pego meu uniglass e começo meus cálculos.
― Você pode sentir sua irmã também, Kal? ― Aurora pergunta. ―
Porque quando estou... Quando uso meus poderes... Posso ver algo
em você. Sinto algo em sua mente. Talvez você tenha um toque de
sua mãe também?
― É possível, be’shmai ― ele responde. ― O dom é passado pelo
sangue.
Percorro outra rodada de cálculos e – arquivando com interesse
o fato de que realmente sinto necessidade – me permito um pequeno
sorriso de satisfação.
― Zila? ― Scarlett nota minha mudança de comportamento, olhando
para o meu uniglass. ― Você tem algo que deseja compartilhar com
a classe?
― Sim ― eu digo, os olhos ainda em meus cálculos.
―... Então? ― Scarlett pergunta.
― O Almirante Adams não nos abandonou ― declaro. ― A
transmissão dele continha uma mensagem codificada.
Eu viro meus olhos para Tyler.
― E eu acabei de quebrá-la.
5
KAL

Ainda nem nos beijamos.


Os membros do meu esquadrão diriam que este é um
pensamento estranho para se entreter no meio de uma crise. Sei que
a própria Aurora provavelmente acharia isso uma tolice. E isso, em
essência, é o cerne do problema. Porque não estou sentindo o que
os humanos sentem. Não estou sentindo vontade, nem desejo, nem
mesmo amor.
Estou sentindo o Puxão.
Os poetas Syldrathi passaram milênios tentando descrevê-lo.
Estudei o trabalho de nossos mestres mais renomados em Syldra.
Às vezes eu colocava seus versos em música e os tocava em meu
siif sob as árvores de lias fora de nossa casa. Bilhões de palavras ao
longo de milhares de anos. Músicas e sonetos, dísticos e hinos.
Todos tentando evocar até mesmo uma fração de como era sentir
isso.
Tendo vivido isso agora, eu sei que nenhum deles chegou perto.
O Puxão é mais do que palavras.
O amor é uma gota no oceano do que sinto por ela.
O amor é o único sol em um céu cheio de estrelas.
E sei que Aurora realmente não consegue entender. Que os
humanos não se sentem como os Syldrathi. E por mais que eu a
queira, não desejo apressá-la ou – os espíritos me proíbem –
assustá-la. E assim guardo tudo isso da melhor maneira que posso.
Mas ainda nem nos beijamos.
Espíritos do Vazio, isso é tortura...
― Pare com isso, Garoto Fada ― Finian murmura.
―... O que?
O Betraskan pisca seus grandes olhos negros.
― Eu disse para vir aqui, Garoto Fada ― ele repete. ― Precisamos
repassar isso.
Eu respiro fundo, passo a mão na testa. Minha equipe se reuniu
no espaço apertado de nosso apartamento. Este lugar é menor do
que um covil de Enlei e cheira duas vezes mais nocivo. Mas não
temos escolha com nossos fundos disponíveis, e com minha irmã
agora caçando pela Cidade Esmeralda, devemos nos esconder entre
a escória que não faz perguntas. Pelo menos com os poderes de
dedução de Zila – nada menos que brilhante, devo admitir – agora
temos a chance de sair desta estação maldita de uma vez por todas.
A tela de parede em nosso novo casebre não é funcional, e Finian
tem seu uniglass plugado em seu exosuit, projetando um esquema do
Repositório Domínio na parede oposta em uma luz brilhante. Sento-
me no minúsculo sofá ao lado de Aurora, olhando para a imagem.
Sua sobrancelha dividida é fechada por uma pequena sutura da cor
da pele; o hematoma sob o olho direito é uma constelação escura.
Seus lábios são suaves, em forma de arco, hipnóticos de assistir. Ela
estende a mão e toca a minha suavemente, as pontas dos dedos
acendendo fogueiras em minha pele.
― Você está bem? ― ela pergunta suavemente.
Dou a ela o meu melhor sorriso tranquilizador.
― Estou bem.
― Vocês dois querem que a gente saia da sala? ― Tyler diz.
―... O que? ― eu o olho com mau humor.
― Eu disse que há duas maneiras de entrar na sala ― diz Tyler,
apontando para o esquema. ― Entrada principal pelo sul e uma
menor pelo oeste. Ambas são vigiadas, mas o oeste tem dois
capangas a menos. Então, se o problema surgir, é assim que
partimos.
― Mas o problema não vai surgir, certo? ― Scarlett diz. ― Porque
todas as suas ideias são incríveis?
― Exatamente ― diz Tyler, ignorando o golpe de sua irmã. ― Agora,
de acordo com a mensagem codificada do Almirante...
Aqui, Tyler faz uma pausa para oferecer a Zila uma pequena
salva de palmas, na qual eu e o resto da equipe nos juntamos. Zila
abaixa a cabeça, cachos escuros caindo sobre seus olhos. Mas eu
percebo o fantasma de um sorriso em seus lábios enquanto Tyler
continua.
―... há algum tipo de cache esperando por nós na sala de depósito
de segurança, depois do saguão principal. Aparentemente, está
codificado para aceitar a identidade de DNA de Scar. Não sei por
que Adams pensou em configurar dessa forma.
Scarlett levanta uma sobrancelha.
― Porque eu sou fabulosa?
― Sim, é definitivamente isso ― murmura Tyler, revirando os olhos.
― De qualquer forma, isso significa que a Scar vai tomar conta deste
aqui. Não temos ideia do que está lá atrás em termos de peso, então
Kal, você vai com ela no caso de ser pesado.
Scarlett olha para mim.
― Você e eu, Musculoso. Roupas sexy.
Ela pisca para Aurora, e Aurora sorri de volta, apertando minha
mão. A maioria de nós se acostumou com a insistência de Scarlett
em flertar com qualquer coisa com um batimento cardíaco. Mas eu
noto que Finian está olhando para o chão, parecendo totalmente
taciturno.
― Fin, você quer levá-los durante a corrida? ― Tyler pergunta.
Nosso Gearhead pisca em confusão.
― Hum... Sim, se você quiser?
― Desculpe. ― nosso Alfa manca em direção a um assento. ― Só
preciso sentar um minuto.
Scarlett observa seu irmão se abaixar na almofada mofada ao
lado dela, com uma das mãos na virilha. Ela estremece em agonia
simpática.
― Pobre bebê ― ela murmura. ― Madame Badass realmente
mexeu com os meninos, hein?
―Quer dizer, eu sempre posso adotar ― ele choraminga.
― Se te faz sentir melhor, o olho roxo combina com você? O
injetamento de sangue realmente realça o azul.
Tyler lança um olhar fulminante para Scarlett e ela sorri e
bagunça seu cabelo loiro. Ele geme em protesto e alisa seus cachos
de volta no lugar, apenas para tê-los bagunçados novamente pela
mão de sua irmã.
Eles são tão diferentes – ele a epítome da ordem, ela a
personificação do caos – que às vezes acho difícil pensar neles
como irmãos. Mas olhando para os dois, posso ver o quanto os
gêmeos Jones se amam. Eles estão unidos na dor que sentem pela
morte de Zero. A incerteza em que nos encontramos. Preso em
sangue. Uma verdadeira família. Inseparável e invencível.
Minha própria irmã e eu fazemos uma comparação vergonhosa.
― Eu tenho duas faixas-pretas ― suspira Tyler. ― Dez anos
treinando em Sistema e Krav Maga. E ela me balançou como uma
bola a jato.
― Não sinta vergonha ― digo a ele. ― Saedii é mestra do Aen
Suun.
Scarlett franze a testa enquanto traduz.
― O... Caminho das Ondas?
Eu aceno.
― A mais mortal das artes marciais Warbreed. Antes de morrer,
meu pai nos treinou pessoalmente. Desde que éramos crianças. ― a
tristeza enche meu coração com a memória de nós três treinando
sob as árvores de lias. Dou um sorriso triste para Tyler. ― Saedii me
chutou abaixo da cintura em mais de uma ocasião. Então você tem
minhas simpatias.
― Mais de uma vez? ― Tyler estremece e muda novamente. ― Pelo
Criador, como você ainda está vivo?
― Eu te avisei para não deixá-la chegar perto.
― Não foi por escolha, acredite em mim ― ele geme. ― Se eu tiver
algo a dizer sobre isso, a jovem em questão será mantida a uma
distância mínima de segurança a partir de agora. Um par de
sistemas estelares de distância deverá resolver.
― Isso pode não depender de nós. Saedii e seus adeptos ainda
estarão me caçando. Ninguém se torna um Templário do Starslayer
desistindo facilmente de sua presa.
― Mais uma razão para entrar e sair do Repositório rapidamente ―
Aurora diz.
― Boa sequência, Clandestina ― Finian sorri, voltando-se para seu
esquema e respirando fundo. ― Ok, então o plano é simples. Entre,
acesse tudo o que Adams deixou para nós na caixa de depósito e
depois saia. Nosso grande problema é claro, a recompensa que
temos sobre nossas cabeças para o terrorismo galáctico.
― Suposto terrorismo ― aponta Zila.
― Certo. Suposto. Então, a boa notícia é que a Cidade Esmeralda
tem uma população de mais de um milhão de pessoas, então não
seremos fáceis de detectar. A má notícia é que o Repositório
Domínio tem um sistema de segurança que alimenta os webnodes da
maioria dos principais governos galácticos, e suas câmeras são
equipadas com software de reconhecimento facial de primeira linha.
Estou falando do tipo que pode reconhecê-lo pelas sobrancelhas.
Scarlett joga seu cabelo vermelho-fogo.
― Bem, elas são incríveis.
― Hum, sim. ― Finian bate em uma resma de dados de rolagem ao
lado do esquema. ― Então, o que estou dizendo é que um boné
jetball e óculos de sol não vão adiantar. Esses sistemas vão nos
identificar como criminosos procurados bem rápido.
― Poderíamos usar os uniformes do GIA novamente? ― Aurora
oferece.
Tyler balança a cabeça.
― Muito arriscado depois do que aconteceu nas docas. É tão raro
ver o GIA longe do Núcleo que esses uniformes vão atrair a atenção
agora.
― Presumo que você tenha uma solução? ― eu pergunto.
― Na verdade, nós temos, Garoto Fada ― Finian sorri. ― As
câmeras do Repositório nos marcarão assim que entrarmos. Não
tem como ajudar. Mas haverá um atraso enquanto seus sistemas
transmitem para seus afiliados. A velocidade da luz viaja tão rápido,
mesmo através da Dobra. No momento em que os dados estão
voltando, posso estar executando uma tela aberta no uplink. Bloqueio
o sinal de entrada por tempo suficiente para que possamos entrar e
sair.
― Impressionante ― eu digo.
Scarlett sorri.
― Impressionante é o nome do meio de Fin.
Uma mancha suspeita muito próxima de um rubor se espalha
pelas bochechas de Finian com a lisonja de Scarlett, mas Tyler
intercede.
― Nnnnnnem tanto ― diz ele.
― Uau, obrigado, Garoto de Ouro ― Finian murmura. ― Bela
maneira de elevar o moral.
― Desculpe. ― nosso Alfa se mexe na almofada novamente. ― São
as joias da coroa; elas estão me matando. Mas você sabe o que
quero dizer, Fin – diga a eles à parte complicada.
Finian admite seu status não-tão-impressionante com um aceno
relutante.
― A parte complicada é que tenho que estar dentro do Repositório
enquanto executo o hack.
Uma pequena carranca enruga a testa de Zila.
― Eu acho altamente improvável que a segurança do Domínio
permita que você simplesmente sente-se em seu foyer e se envolva
em espionagem de computador.
― Certo ― diz Tyler. ― É aí que você e eu entramos, Zil.
A garota pisca.
― Você e... Eu?
― Sim ― ele sorri, sua covinha característica vincando sua
bochecha. ― Então escuta, você quer sair comigo?

·····
Não sei como Scarlett continua adquirindo essas roupas.
Sua habilidade de invocar novas roupas aparentemente à vontade
é quase sobrenatural. Ela ficou ausente por um total de 87 minutos
com apenas alguns créditos no bolso e voltou com um novo guarda-
roupa para cada um de nós, adequado para a missão em questão.
Ela não roubou – ela acenou os recibos nos rostos de Zila e Aurora e
os regalou com contos de proezas no varejo, usando palavras
misteriosas como twofer 4e desconto clivado. Aurora expressou uma
enorme alegria pelos sapatos que Scarlett encontrou para ela. Eu
estava preocupado que seus gritos pudessem atrair a segurança do
bairro.
Faço uma anotação mental disso.
Ela gosta de sapatos.
Scarlett joga uma sacola de compras no meu peito e eu olho
desconfiado para o conteúdo, uma sobrancelha subindo até a linha
do cabelo.
― Sério?
O gêmeo mais velho dos Jones apenas sorri.
― Confie em mim.
A missão nos aguarda, então nos retiramos para vários
aposentos em nosso apartamento sombrio para nos trocarmos.
Aurora, Scarlett e Zila vão para o quarto; Finian vai para o banheiro
para ter um pouco de privacidade. Noto que seu exosuit sibila
enquanto ele anda e que está favorecendo fortemente a perna
esquerda. Suspeito que ele precise de ajuda para trocar de roupa,
mas está recusando na tentativa de afirmar sua independência. Não
sei o suficiente sobre sua condição para ficar preocupado, mas me
preocupo da mesma forma.
Sem nenhum lugar para usar, Tyler e eu trocamos de roupa juntos
na minúscula sala de estar. É a primeira vez que ficamos sozinhos
desde um certo beijo em uma certa sala de manutenção de
computadores na Nave Mundial. Tiro meu uniforme de manutenção e
coloco as calças que Scarlett me deu. Tyler tira o macacão, tira a
camiseta, ficando apenas com o short e a corrente de prata que usa
no pescoço, com o anel de seu pai preso nos elos. Enquanto ele
pega as calças que sua irmã comprou para ele, eu me pego
estudando-o com o canto do olho.
Nosso Alfa parece cansado. Ombros caídos. Hematomas da
surra da minha irmã espalhados em listras nos músculos de suas
costas, as linhas de seu torso. Ele puxa uma túnica sobre o dano,
passa a mão pelo cabelo loiro desgrenhado e suspira.
Posso sentir sua mente trabalhando. A incerteza que ele mantém
escondida atrás de uma parede de otimismo. Seu uniglass soa
baixinho sobre a mesa – um lembrete de seu calendário interno. Vejo
as palavras MEU ANIVERSÁRIOOOO – 2 DIAS! iluminar a
tela.
― Eu não sabia que seu aniversário e de Scarlett é em breve ― eu
digo.
Tristeza preenche os olhos de Tyler, mudando de um azul
brilhante para um cinza de aço.
― Não é ― ele diz baixinho, apontando para o uniglass. ― Eu joguei
meu uni no ultrassauro na Nave Mundial. Aquele pertence a...
Eu percebo o que Tyler quer dizer sem que ele tenha que dizer o
nome dela. Ele deve ter tirado o dispositivo de Cat em Octavia III. Eu
posso ver a dor nos olhos de Tyler enquanto ele olha para aquela
mensagem – mais um lembrete de tudo que ela nunca terá, nunca
será.
― Eu sofro por Zero ― eu digo a ele suavemente. ― Eu sei o que
ela significava para você.
Ele ergue os olhos para aquilo. Eu vejo o rosto dela refletido em
seus olhos – a tinta em sua pele, o fogo em seu olhar. Então ele olha
para o teto, piscando rapidamente.
― Sim.
― Você está fazendo a coisa certa, Tyler Jones.
Ele olha para a risada abafada no quarto. As vozes das pessoas
de quem gostamos. Existe uma teia tão frágil entre todos nós; ele e
eu sabemos disso. Talvez melhor do que qualquer um deles. Eu pego
um vislumbre por trás de suas paredes por um momento. Apenas
uma lasca de incerteza brilhando através das rachaduras.
― Espero que sim ― ele suspira.
― Temos toda a galáxia contra nós ― digo a ele. ― Mas é aqui que
devemos estar. Somos parte de algo maior agora; Eu sinto isso nos
meus ossos. Você vai nos guiar por isso. E eu vou te seguir, irmão.
Syldrathi não toca, exceto em momentos de intimidade ou ritual.
Mas Tyler Jones e eu brigamos na barriga de destroieres
Terráqueos, batemos de frente na Dobra, olhamos nos olhos da
morte lado a lado. Ele pode ser humano. Cansados, machucados e
defeituosos como o resto deles. Mas na batalha, todos sangram
igual.
Eu ofereço a ele minha mão.
― Eu conheço meus amigos e eles são poucos. Mas eu morreria
pelos poucos que tenho.
Ele olha nos meus olhos novamente. Músculo flexionando ao
longo da linha de sua mandíbula enquanto ele dá um tapa na minha
mão.
― Obrigado, Kal. Significa muito saber que você está me
protegendo.
― Del’nai ― eu respondo.
Uma carranca perplexa franze sua testa ao me ouvir falar em
minha própria língua.
― Acho que Scar explicou o que isso significa, mas eu não...
― Sempre ― eu digo. ― Sempre e pra sempre.
Ele me olha de cima a baixo com um sorriso irônico.
― Uma roupa e tanto que ela escolheu para você.
Eu olho para as minhas roupas novas com desânimo. As calças
são feitas de plástico preto brilhante, uma fileira de fivelas prateadas
indo dos meus tornozelos aos quadris. Minha camisa é de malha
transparente, também preta, bem esticada no tronco e deixando
muito pouco para a imaginação. Normalmente, eu só usaria botas
desse tipo se estivesse planejando uma longa guerra terrestre na
superfície de um planeta hostil.
― Uau ― eu ouço uma voz dizer.
Eu olho para cima e vejo Aurora na porta do quarto. Ela está
vestindo um terno branco que provavelmente seria descrito por
outros como chique. Mas para mim ela está vestida de luz, radiante
como o sol.
Seus olhos correm das minhas botas para o meu rosto.
― Você parece...
― Eu tenho bom gosto? ― Scarlett pergunta atrás dela. ― Ou eu
tenho bom gosto?
Aurora olha para a garota mais alta.
― Você tem bom gosto.
A própria Scarlett está vestida de forma semelhante à minha.
Polímero vermelho colante. Um espartilho que constituiria tortura sob
a maioria das convenções galácticas. Uma centena de fivelas que
parecem não servir a nenhum propósito estrutural. Uma peruca loira
platinada, descendo até a cintura.
Eu olho para mim mesmo, levanto uma sobrancelha em questão.
― Não consigo ver por que essas calças devem ser tão justas.
Scarlett gira o que pode ser uma coleira em volta do dedo e sorri.
― Kal, querido, você quer interpretar o papel, você tem que se vestir
para o papel.

·····
Entramos por portas separadas para evitar suspeitas.
O saguão do Repositório Domínio é vasto, o plasteel feito para
se assemelhar ao mármore preto, as guarnições douradas. As
paredes e pisos são revestidos com resmas de dados de várias
trocas galácticas. Apesar do tamanho, o espaço está lotado, gente
de uma dúzia de espécies diferentes atrás dos balcões e no chão –
Tyler escolheu a hora mais movimentada do ciclo para nossa jogada.
Ele e Zila vão primeiro. Nosso Cérebro parece um pouco sem
palavras, mas Tyler a mantém por perto, inclinando-se
ocasionalmente para sussurrar em seu ouvido. Eles caminham de
braços dados, parecendo jovens amantes saindo para um passeio ao
meio-dia.
Finian vem logo atrás, vestido com simplicidade, cores escuras
sob o brilho prateado de seu exosuit. Ele finge receber uma chamada
em seu uniglass imediatamente após entrar, arrastando-se até um
canto silencioso do Repositório com um dedo no ouvido como se
quisesse ouvir melhor a conversa.
Scarlett e eu chegamos por último e como era sua intenção,
nossa entrada é marcada por quase todos no saguão – suponho que
não seja sempre que eles veem uma loira escultural em policloreto
de vinilo colante à pele conduzindo um Syldrathi em uma coleira. A
confiança escorrendo por todos os poros, Scarlett desliza até um
gerente Terráqueo de meia-idade em traje de negócios.
O homem a olha da cabeça aos pés.
― Posso ajuda-la?
― Claro que você pode, querido ― diz Scarlett, colocando muitos h’s
em uma palavra que parecia não possuir nenhum. ― Meu nome é
Madame Belle, terceira esposa de Rielle Von Lumiere e imperatrix da
Corte Crepuscular de Elberia IV. Meu marido deixou algo para mim
em suas instalações de depósito.
O gerente olha para mim.
― Seu... Marido?
― Oh, não, ele não ― Scarlett ri alegremente, tocando o braço do
Terráqueo. ― Não, Germaen aqui é meu... Personal trainer. Sabe
como é. ― ela puxa a coleira em volta do meu pescoço e sibila: ―
Fique de pé direito, Germaen!
Eu a encaro com uma carranca mais quente do que uma dúzia de
estrelas anãs antes de me lembrar do papel que devo interpretar.
― Desculpas, Imperatrix ― murmuro ficando mais ereto.
Scarlett revira os olhos para o gerente.
― É tão difícil encontrar bons animais de estimação hoje em dia.
― Eu... Entendo.
Ela dá ao homem um sorriso que só posso descrever como
perverso e dá outro toque prolongado em seu braço.
― Tenho certeza que sim, querido.
Queridohhhhh.
― Bem ― diz o gerente, parecendo mais do que um pouco confuso
com as atenções dela. ― Por favor, siga-me, Imperatrix. Nossos
cofres estão por aqui.
Scarlett dá um lindo sorriso para o homem e sai atrás dele, me
arrastando com um puxão.
― Venha, Germaen, não demore!
À medida que atravessamos o andar movimentado, vejo Finian
trabalhando silenciosamente no canto com seu uniglass. Enquanto a
maioria do pessoal da segurança está ocupada olhando para o
espetáculo que Scarlett está fazendo de nós, posso ver que um dos
atendentes mais conscienciosos do Repositório está a caminho para
perguntar se nosso Gearhead precisa de ajuda.
Que é quando o segundo estágio de nossa distração entra em
ação.
― Seu DESGRAÇADO!
Scarlett para, assim como todo mundo no Repositório. Eu me viro
para ver Aurora, com o rosto vermelho, parada na frente de Tyler e
Zila. Ela está apontando um dedo acusador para o nariz de nosso
Alfa enquanto grita com toda a força.
― VOCÊ DISSE QUE ESTAVA INDO PARA A CASA DE SUA MÃE!
― ela olha para Zila. ― ISSO DE NOVO?
Tyler olha ao redor da sala, notando que todo mundo está
olhando para ele.
― Hum, oi, amorzinho...
Aurora traz de volta uma mão e, com um som que me faz
estremecer, estala no rosto já machucado de Tyler.
― NÃO ME CHAME DE AMORZINHO! ― Aurora grita.
― Oh meu. ― Scarlett pressiona a mão no espartilho e olha para o
gerente. ― Não achei que fosse esse tipo de estabelecimento.
― A segurança cuidará disso ― garante o gerente, estalando os
dedos e apontando para o drama que se desenrola. ― Por favor,
venha por aqui, Imperatrix.
A segurança desce de todos os cantos enquanto Aurora continua
a gritar e praguejar. Um guarda toca seu braço e explica que ela está
"fazendo uma cena". Ela apunhala um dedo sob seu queixo e grita:
“NÃO ME TOQUE! EU SEI KUNG FU!” enquanto Tyler tenta se
explicar e Aurora grita por cima dele, e entre tudo isso, Zila
simplesmente parece horrorizada, o que eu suspeito que não esteja
longe da verdade.
Mas enquanto o gerente nos acompanha em direção a uma porta
pesada na parte de trás do saguão, vejo Finian, ainda em seu canto,
trabalhando silenciosamente em seu uniglass.
A porta pesada se abre com uma varredura da retina do gerente
e, depois de uma varredura magnética em busca de armas e
subcutâneos, passamos para a sala de depósito, os gritos de Aurora
ainda soando atrás de nós. Em contraste com a extravagância do
saguão, esta sala tem um design simples. Uma longa mesa de
plasteno fica no centro. As paredes brancas são revestidas com
milhares de pequenas escotilhas feitas de estelite endurecido.
― Posso, Imperatrix? ― o gerente diz, segurando um pequeno
cotonete.
― Claro que pode ― ela sorri, projetando o queixo e formando um
beicinho perfeito. O gerente leva o cotonete aos lábios. ― Sete um
oito quatro alfa ― ela ronrona.
O gerente acena com a cabeça e se volta para a escotilha
apropriada. Enquanto ele pressiona o cotonete de DNA no receptor,
eu me pego prendendo a respiração. Se for algum tipo de ardil, se
formos forçados a lutar para sair daqui...
O diodo na portinha muda de vermelho para azul. Eu ouço um
trinado eletrônico quando o compartimento é destrancado. O gerente
sorri e eu abro a escotilha, puxando uma longa caixa de metal de
dentro.
― Meu marido é péssimo com datas ― diz Scarlett, batendo no
lábio. ― Você poderia ser um querido e me dizer a quanto tempo ele
fez este depósito para mim?
― Claro. ― o gerente consulta seu uniglass. ― Esta caixa foi
adquirida em... 17/9/2372.
― Setenta e dois? ― eu franzo a testa. ― Mas isso foi há oito anos.
Scarlett dá um puxão forte na guia.
― Obrigada, Germaen, podemos contar. Agora cale a boca ou não
haverá punição para você esta noite!
Eu mordo meu protesto quando ela se vira para o gerente,
sorrindo docemente.
― Alguma privacidade, se podermos?
Com uma reverência e um pequeno sorriso, o homem sai da sala,
deixando-nos sozinhos. Eu olho para as lentes de segurança em
cada canto, rezando para o Vazio para que Finian seja tão bom
quanto esperamos que ele seja. Eu franzo a testa para Scarlett a
olhando de lado.
― Você está gostando muito disso ― murmuro.
― Você não teeeeem ideia ― sussurra Scarlett.
Abro a caixa, verificando o conteúdo antes de sairmos. Posso ver
meia dúzia de pacotes, cada um marcado com uma pequena
TYLER. SCARLETT. KALIIS. FINIAN. ZILA. Outro pacote,
etiqueta.
marcado como ESQUADRÃO 312.
― Esta caixa esperou aqui por quase uma década ― eu digo.
― Eu sei ― responde Scarlett, perplexidade em seus olhos. ― Isso
foi antes de nos conhecermos. Antes mesmo de qualquer um de nós
entrarmos para a academia.
― Como? ― eu exijo. ― Como o Almirante Adams possivelmente
teve sua sequência de DNA antes de conhecê-la? Como ele poderia
saber nossa designação de esquadrão? Nossos nomes? O fato de
que estaríamos aqui?
― Se você realmente quer fazer seu cérebro girar ― murmura
Scarlett, com a voz trêmula ― pergunte-se como ele sabia que Cat
não estaria aqui?
Eu olho para o conteúdo da caixa de depósito novamente e
percebo que ela está certa – não vejo nenhum pacote para Zero em
qualquer lugar. Mas, sob os outros pacotes, há um conjunto de
chaves de acesso e uma etiqueta com um número de cais nas docas
da Cidade Esmeralda.
SEÇÃO 6, GAMA PROMENADE. ANCORADOURO 9[A].
Entrego a chave para Scarlett, minha mente correndo.
― O que quer que esteja acontecendo aqui, pelo menos Adams
achou por bem nos fornecer uma nave. Isso é um começo.
Scarlett olha para as câmeras.
― É melhor irmos andando.
Eu aceno, fecho a tampa e jogo a caixa debaixo do braço.
Saímos da sala de depósito, Scarlett na frente, eu seguindo
obedientemente atrás. Enquanto caminhamos de volta para o
saguão, Finian olha para nós, o alívio claro em seu rosto. Zila não
está em lugar nenhum, mas Aurora e Tyler estão na via pública do
lado de fora. Aurora ainda está gesticulando freneticamente, sua
indignação apenas ligeiramente abafada pelo vidro.
― Ela está se divertindo mais do que eu. ― Scarlett sorri.
Nós dois caminhamos calmamente pelo vasto saguão, cada
passo em direção à porta parecendo uma milha. Finian se levanta
devagar, mancando até a outra saída. A multidão ao nosso redor se
move e balança; o gerente sorri em despedida. E parece que, no
momento, podemos ter sido bem-sucedidos em nosso engano.
Podemos estar livres e irmos para casa.
― Posso lhe fazer uma pergunta? ― digo suavemente.
― Você não vai me pedir em casamento, vai? ― Scarlett murmura.
― Não. E eu sei que é tolice perguntar isso agora. Mas raramente
estamos sozinhos, e pode haver pouca oportunidade de perguntar
em outro momento.
― Isso parece sério.
Eu engulo em seco, repentina e profundamente desconfortável.
― Eu li muito sobre... Cortejo humano. Mas existe um grande abismo
entre a palavra escrita e a realidade. E você parece... Bem
familiarizada com envolvimentos românticos.
― Essa é uma boa maneira de colocar isso. ― eu pego um sorriso
no canto da boca de Scarlett. ― Isso é sobre Aurora, certo?
Eu suspiro. Até o som de seu nome faz meu coração inchar.
― Sim.
― Você tem um caso de amooooor.
― Eu... Gosto muito dela, sim.
Estamos quase na porta agora, Scarlett falando baixinho.
― Provavelmente não sou a pessoa certa para você pedir esse tipo
de conselho, Musculoso. Nunca estive em um relacionamento que
durasse mais do que sete semanas.
― Você é uma garota humana ― eu digo desesperadamente. ―
Você sabe o que as garotas humanas gostam.
As portas se abrem diante de nós e Scarlett olha para mim sobre
os ombros, sobrancelha levantada.
― Não somos um monólito5, Kal, nós...
Suas palavras são interrompidas quando ela se depara com uma
pequena figura entrando no Repositório. Eu ouço um grunhido de
indignação, olho para baixo para ver uma pequena gremp feminina,
cercada por uma dúzia de outros.
― Oh, me perdoe, querida ― diz Scarlett.
A gremp líder tem talvez um metro de altura, o que é grande para
sua espécie. O pelo de tartaruga que cobre seu corpo está
perfeitamente penteado sob seu terno branco pérola. Seus olhos
verdes claros são contornados com pó escuro e têm o brilho de
alguém que alimenta seus animais de estimação por esporte.
Ela olha para Scarlett, os lábios deslizando de volta sobre suas
presas.
― Você ― Skeff Tannigut rosna.
― Oh, merda ― Scarlett respira.
6
FINIAN

Eu saio pela porta lateral, dolorido como se tivesse sido


pisoteado por um ultrassauro. Meu traje está quase estragando, mas
estamos muito perto de conseguir isso – a última coisa que quero é
a atenção de alguém. As portas se fecham atrás de mim com um
assobio de satisfação e eu viro à direita, em direção ao cruzamento
de quatro vias fora do Repositório Domínio. A esta altura, Scar e Kal
devem estar desfilando seus eus comestíveis pela porta da frente,
onde nos encontraremos com os outros.
Finalmente, finalmente, algo está acontecendo do nosso jeito. Kal
tinha uma caixa debaixo do braço quando eles deixaram o cofre,
então eu sei que temos um próximo movimento. Estou me sentindo
um pouco satisfeito comigo mesmo enquanto tento dar uma volta na
esquina, bem a tempo de ver Scarlett ficar cara a cara – ou da
cintura a cara – com um gremp que parece irritado.
Eu literalmente tenho tempo para pensar: Uau, imagine se fosse
o mesmo que– antes de subitamente, a calçada ficar cheia de armas
e todo mundo está tendo um dia muito tenso.
Eu congelo no lugar. Scar já está falando em alta velocidade, as
mãos levantadas em apaziguamento, na ponta de uma dúzia de
pistolas disruptivas. Atrás dela, os guardas de segurança do Domínio
responderam puxando suas munições, que estão todas do lado
errado da coisa. Isso significa que, pelo lado positivo, Skeff Tannigut
não pode simplesmente arrastar Scarlett e Kal para longe para
cortá-los em pequenos pedaços. No lado negativo, meus
companheiros de equipe agora estão ameaçados por todos os lados.
― Esses dois são fugitivos procurados! ― a gremp cospe,
estreitando os olhos com as bordas pretas. ― Eles atacaram a mim
e a minha ninhada, quase mataram meu companheiro de ninhada!
― Bobagem, querida ― diz Scarlett. ― Eu nunca conheci você antes
na minha vida.
― Eu sabia que seu tipo não era confiável ― rosna Tannigut.
― Meu tipo? ― Scarlett demonstra um ultraje convincente. ―
Suponho que todos nós, humanos, parecemos iguais para você,
hein?
Os guardas do Domínio, muitos dos quais são Terráqueos,
parecem menos do que impressionados com as acusações da
gângster. Eu manco para longe do Repositório, tentando ficar fora de
vista. Não tenho ideia de onde Zila está, mas logo após a discussão
crescente, Tyler e Auri estão voltando para o cruzamento lotado,
tentando seguir meu exemplo e garantir que ninguém os perceba.
― Finian? ― Ty murmura em seu uni. ― Você pode nos arranjar
uma distração?
Estou digitando no meu uni enquanto respondo.
― Já estou nisso, Garoto de Ouro. Terá uma diversão em trinta
segundos. Vamos todos nos certificarem de fugirmos na mesma
direção, sim?
Tyler dá outro passo lento para trás, olhando para cima e para
baixo na movimentada via pública.
― Vire na ala central e nós vamos–
Um grito atravessa os comunicadores, juntamente com um som
crepitante vicioso. Levanto os olhos do meu uni e vejo Aurora deitada
no chão como uma marionete com as cordas cortadas. Ela está
envolvida em faixas do que parece ser energia vermelha crepitante,
vapor subindo de sua pele, boca aberta em um grito silencioso. E é
quando tudo desmorona. Kal salta em sua direção com um grito de
raiva perfeita, esquecendo completamente que Scarlett ainda tem
sua maldita coleira enrolada em seu pulso.
Quer dizer, uma coleira, sério?
De qualquer forma, Scarlett é puxada como se ela não tivesse
peso, batendo direto em Skeff Tannigut e caindo em um emaranhado
de membros se debatendo e espartilhos. Todo mundo começa a
atirar. Os gremps se soltam com seus disruptores enquanto sua líder
cai; os guardas do Domínio abrem fogo em resposta. Alguns corpos
caem de cada lado e explosões estalam no ar, gremps e capangas
se abaixando para se proteger ou desabando com gritos de dor.
Um tiro perdido atinge um esquife que passava, fazendo-o
derrapar para o lado e bater em outro veículo estacionado,
capotando e colidindo em uma loja. A multidão ao redor do
cruzamento grita e se espalha. Outro tiro passa zunindo pela minha
cabeça e eu me agacho atrás de um hoverskiff estacionado, meu
exosuit gemendo, uma dor aguda subindo pelos meus joelhos.
Eu olho para o tiroteio e a fumaça e vejo Ty e Scar se esconder
atrás de outro hovertruck. Kal arrastou Auri para trás de uma fileira
de vendedores ambulantes. Nossa clandestina ainda está envolta
naquela energia vermelha crepitante, convulsionando onde foi
colocada deitada. Kal está agachado sobre o corpo dela com os
dentes à mostra, olhando por cima do meu ombro. Eu percebo que
alguns dos tiros neste tiroteio estão vindos de trás de mim.
Com uma sensação horrível de mau presságio – e eu realmente
tive a chance de ajustar essa sensação recentemente, então eu sinto
que acertei – eu me viro.
Partículas do Criador.
O Inquebrado está descendo a rua em nossa direção. A irmã de
Kal está carregando uma arma que parece um caso de amor entre
um rifle disruptor e uma velha besta Terráquea – percebo que esta é
a arma que derrubou Auri. Seus capangas estão espalhados atrás
dela, armadura preta pintada com glifos brancos, lábios puxados
para trás em rosnados. Nenhum deles é tão assustador quanto
Saedii, seus caninos afiados até aquelas pontas perfeitas, a faixa
preta de tinta em seus olhos destacando o violeta e fazendo-os
brilhar. Os Syldrathi estão atirando nos capangas da segurança do
Domínio, os disruptores explodem o BAMF! pelo ar. Eles se
protegem ao longo da via pública enquanto outro esquife cai na
estrada em uma explosão de fagulhas e metais retorcidos.
Eu me abaixo, fazendo as contas. Ninguém me viu ainda, pelo
menos, mas meu esquadrão agora está encurralado em um tiroteio
de três vias.
O tráfego terrestre parou; o tráfego aéreo está um caos. Uma
breve calmaria cai sobre a cena enquanto todos param para
recarregar. Os civis estão fugindo em pânico, os alarmes estão
tocando e já há um SecDrone pairando sobre nossas cabeças.
Posso ver Scarlett agachada ao lado de Kal, sussurrando em seu
ouvido, enquanto Ty olha para cima e para baixo na rua, em busca
de uma rota de fuga. O chefe dos guardas do Repositório Domínio,
um Rikerite alto com dois chifres enrolados na testa, levanta a voz.
― A SEGURANÇA DA CIDADE ESMERALDA ESTÁ A CAMINHO!
TODOS LARGUEM SUAS ARMAS!
Nossa Sra. da Beleza e do Terror o ignora completamente,
apontando para Kal e uma Aurora ainda em convulsão e se dirigindo
a Skeff Tannigut com pelo menos um grau de civilidade.
― Estou aqui apenas por aqueles dois, pequenina.
Espere... Eles querem Auri também?
Nosso Tanque se levanta em um movimento fluido, seu rosto
contorcido em um rosnado.
― Você a está machucando! Pare com isso, Saedii!
Mesmo em um momento como este, tenho que admitir que todas
aquelas fivelas e telas são um espetáculo para ser visto. O queixo de
sua irmã cai quando ela o vê.
― O que você está vestindo, Kaliis? ― ela sibila, abertamente
horrorizada.
― Solte-a de uma vez!
― ARMAS NO CHÃO! ― o capanga berra novamente. ― ISSO
SIGNIFICA TODO MUNDO!
Eu roubo um pouco de campo para chegar mais perto do meu
esquadrão, espreitando perto do prédio em frente à entrada principal
do Domínio, ainda batendo no meu uniglass com uma mão. Em toda
a tensão desse impasse a três, as multidões em pânico, ninguém me
viu ainda. Mas olhando através da fumaça e destroços, vejo Tyler
atirar em minha direção o menor dos acenos. Ele é afiado, meu Alfa.
― Se você quer ficar com aqueles dois ― chama a líder gremp,
acenando para Kal ― então vamos pegar o resto e nos separar
antes que isso se torne mais complicado. Concorda?
― Agora ouça ― começa o capanga do Dominion. ― Temos
autoridade aqui. Todos desistam imediatamente!
― Nós somos os fiéis de Caersan, Matador de Estrelas ― Saedii
chama. ― Este é um negócio do Inquebrado. Mantenha seus chifres
fora disso antes que eu os corte.
Isso balança o capanga do Domínio de volta em seus
calcanhares. O Starslayer tem os governos da maior parte da
galáxia apavorados, e ninguém quer ficar no lado ruim – muito
menos algum segurança ignorante apenas tentando ganhar a vida.
Todos os guardas do Domínio trocam olhares inquietos e soltam
suas armas. Com desprezo em seu rosto, Saedii emerge da
cobertura, flanqueada por seus irmãos do Inquebrado, e começa a
caminhar em direção ao Repositório Domínio. Kal e os outros ainda
estão presos pelos gremps – eles não têm para onde correr. E
minha mente está correndo anos-luz por segundo, me perguntando
como exatamente vamos sair dessa bagunça, quando a voz de Zila
estala em meu comunicador.
― Finian, a diversão que você mencionou ainda está disponível?
― Zila? ― quase tinha esquecido que ela não estava aqui. ― Onde
você está?
― A diversão ainda está disponível?
― Definitivamente.
― Por favor, ative-a em exatamente doze segundos da minha
marca ― Zila responde, calma como sempre. ― Estou a caminho
com transporte. Marca.
Posso ouvir as sirenes se aproximando – a Segurança da Cidade
Esmeralda está a caminho. Eu deslizo meus dedos sobre o uniglass,
forçando meu caminho para os sistemas do Repositório Domínio com
toda a sutileza daquele ultrassauro metafórico que me pisou antes.
Eu pego o olhar de Tyler – ele ouviu a mensagem de Zila também. E
conforme Saedii e sua equipe se aproximam, eu ativo os extintores
de incêndio instalados na marquise em frente ao Repositório e o
mundo inteiro desaparece em uma nuvem de névoa branca e
cegante.
Acima dos gritos e maldições de pelo menos cinco espécies,
ouço sirenes aumentando, o assobio dos freios a ar atrás de mim.
Meu estômago afunda quando um pesado carro aéreo entra no
PATRULHA DE
cruzamento, as luzes piscando, as palavras
SEGURANÇA DA CIDADE ESMERALDA gravadas na lateral.
Mas meu coração dispara quando a porta é aberta e vejo uma figura
familiar sentada atrás dos controles.
― Zila?
Ela acena para mim, rosto calmo, olhos vazios. Eu saio da
cobertura, tentando correr. Mas meu traje finalmente estremece com
o movimento repentino; meu joelho cede e eu tropeço, o impulso me
levando para frente, as mãos se agitando enquanto eu caio. E então
alguém me pega, a dor subindo pelo meu ombro quando eles pegam
meu cotovelo e me puxam para cima.
É Tyler e, além dele, Kal com Auri mancando em seus braços,
Scarlett carregando a caixa que eles resgataram do cofre. Uma
dúzia de explosões de disruptor voa da espuma de fogo atrás de
nós, atingem a parede perto da minha cabeça, borrifando-me com
faíscas. Minha respiração está ficando rápida e difícil, e Tyler meio
que me carrega enquanto nos jogamos para dentro da van. Eu quase
deslizo de volta para fora quando Zila acelera e todo o veículo se
inclina. Os gêmeos Jones me agarram em concerto e Scarlett me
puxa de volta enquanto Tyler passa por mim para bater a porta, uma
enxurrada de explosões de disruptor e outra daquelas bobinas de
energia vermelha estalando contra o casco.
― SOQUE ISSO, ZILA! ― Tyler grita.
Todos os cinco de nós na parte de trás estão esmagados contra
uma parede enquanto Zila pisa no acelerador, vira uma esquina como
se estivesse cansada de viver e sai voando para a via pública. Tyler
passa por mim para deslizar para o assento do copiloto.
― Você roubou uma viatura da polícia? ― ele pergunta.
― Você me pediu para garantir o transporte ― diz Zila serenamente,
estendendo a mão para aumentar o volume de nossas sirenes. Os
veículos à nossa frente se separam enquanto seus pilotos
automáticos entram em ação e se fecham atrás de nós mais uma
vez, ajudando a bloquear a perseguição. Eu percebo que ela está
usando brincos de ouro pendentes com pequenas máscaras de
ladrão de banco neles.
Espere, ela não estava usando gremps esta manhã?
Prédios altos passam rapidamente enquanto passamos
ruidosamente pela extremidade chique da cidade, fachadas douradas
e brancas mescladas com topiarias vermelhos e verdes e portais
decorados para a rede de tubos de transporte.
Na parte de trás da van, Scarlett e Kal conseguiram
desembrulhar as bandas crepitantes ao redor do corpo de Auri.
Enquanto Kal os chuta para um canto, a energia neles estala e
morre. Auri está ofegante, suas bochechas manchadas de lágrimas.
Tecnicamente, sou o membro do esquadrão que deveria ajudar Zila
nas tarefas médicas, então, rangendo os dentes, meu traje
gemendo, rastejo e trago a função de varredura médica no meu
uniglass. Scarlett está me dando uma visão inesquecível daquele
maldito espartilho enquanto se inclina sobre Auri, embora, para meu
crédito, eu tente muito não notar.
― Com o que eles atiraram nela? ― ela exige, olhando para as
faixas sem vida.
― A arma preferida de Saedii ― diz Kal. Seu rosto está sério, seus
olhos cheios de fúria enquanto ele embala a cabeça de Auri. ― Um
agonizador.
― E agora?
― Uma arma Syldrathi ― ofereço, lembrando-me de minhas aulas
de mecânica na academia. ― As bandas se prendem à sua rede
neural, sobrecarregam o seu sistema nervoso. É meio que um
disruptor na configuração da Pacificação, mas muuuuito mais
doloroso.
― Ela vai ficar bem? ― Scarlett pergunta.
― Ela está apenas atordoada ― digo um momento depois,
segurando o medscanner. ― Nenhum dano permanente. Eu estou
supondo que o Inquebrado não queria que ela os atacasse com sua
magia cerebral novamente. Alunos rápidos.
― Aurora? ― Kal pergunta, acariciando suavemente a bochecha de
Auri. ― Você pode me ouvir?
― K-Kal? ― ela sussurra.
O Garoto Fada suspira de alívio, os músculos de sua mandíbula
relaxam.
― Sim, be'shmai?
― Sua i-irmã é uma verdadeira vadia...
A piada nos faz sorrir, apesar do problema em que nos metemos.
Mas a voz de Zila do banco do motorista mata nosso sorriso bem
rápido:
― Não é minha intenção interromper ― ela diz. ― Mas estamos
sendo perseguidos.
― Por? ― Kal pergunta, levantando a cabeça.
― Skeff Tannigut e seus associados, o Inquebrado, a segurança do
Repositório Domínio, a polícia da Cidade Esmeralda e os oficiais que
anteriormente eram responsáveis por este airvan.
― E...? ― eu ofereço.
― Temos um destino? ― Zila pergunta.
Scarlett remexe em seu espartilho (Olhos para frente, de Seel,
olhos para frente) e brande uma chave mestra.
― Há uma nave esperando por nós em Gama Promenade.
Seu irmão se vira em seu assento para ficar boquiaberto.
― O que?
― Você não vai acreditar no que encontramos no Repositório ― diz
Scarlett a ele. ― Mas, por enquanto, há uma nave esperando e
precisamos de uma carona para fora daqui.
― Gama Promenade então ― Tyler diz, voltando para a estrada à
frente. ― Mas não podemos levar todos eles até lá. Precisamos
despista-los.
Eu sei que, neste momento, não sou o único que pensa em Zero.
Aquela garota poderia dirigir qualquer coisa que você possa
imaginar, guiá-lo pelo buraco de uma agulha com uma mão amarrada
nas costas. A pontada me atinge como um soco.
Eu fui um idiota com ela. Ela levou isso a sério? Ela entendeu que
eu sou péssimo em sinceridade?
Em vez de Zero, temos Garoto de Ouro e Zila na frente do
airvan. Ty é um piloto decente, mas até hoje, eu nem sabia que Zila
sabia dirigir. E eu estou me perguntando se Ty deve ser o único no
comando quando ela estreita os olhos, olhando para frente.
― Despista-los. ― ela acena. ― Entendido.
Ty levanta uma sobrancelha cheia de cicatrizes.
― Zila?
― Esquadrão ― diz ela calmamente ―, por favor, coloquem seus
cintos de segurança.

·····
O airvan guincha no Gama Promenade em um jato de fagulhas,
as turbinas gritando como cantores de ópera rigelianos. Vapores
negros sufocantes estão saindo do compartimento do motor, vários
cones de tráfego estão embutidos em nossas entradas de ventilação
e estamos arrastando uma grande faixa fumegante que diz FELIZ
50º DIAS DE VIDA, FRUMPLE em Chelleriano. Tyler se vira
para verificar se estamos todos intactos, e eu não acho que já vi algo
tão selvagem ao redor dos olhos do nosso destemido líder.
― Pelo Criador, Zila ― ele murmura.
― Um desempenho formidável ― concorda Kal, profundamente
respeitoso.
Auri geme em sua cadeira, recostando-se no arnês.
― Você deveria projetar montanhas-russas.
O motor dá uma última tosse desesperada, estala e morre. Zila
estende a mão para a liberação no momento em que a porta inteira
cai com um estrondo. Todos ficam sentados onde estão por um
longo momento, saboreando a sensação de estarem vivos. Ou, no
meu caso, revisar algumas das promessas precipitadas feitas ao
meu Criador nos últimos quinze minutos, em troca de minha
sobrevivência.
― Devemos prosseguir com a pressa devida ― diz Zila, olhando
para nós com expectativa. ― Eles poderão facilmente seguir nossa
trilha.
― Deixamos alguns destroços ― concorda Scarlett.
Um por um, voltamos à vida, saindo de nosso pobre veículo de
fuga, cambaleando em busca de equilíbrio. Tento não estremecer de
dor quando meus pés atingem o convés. Acontece que as docas
Gama são a área de atracação de longo prazo da Cidade Esmeralda
– muitas das naves ao nosso redor estão protegidas para uma
estadia prolongada. Nosso ancoradouro fica mais longe, mas o
airvan não está se movendo mais um metro, então estamos a pé.
Estou quase tão instável quanto Auri, tropeço atrás dos outros
em direção ao Ancoradouro 9, contando as naves e pesando
mentalmente cada uma. Aquela seria okay, aquela seria boa, aquela
seria incrível...
Eu vejo algumas naves saindo e involuntariamente desacelero,
meus olhos fixos na... Coisa que está esperando por nós. Eu conto
novamente, apenas no caso de estar errado. Quando paramos na
frente dela, eu olho para o número gravado no chão aos nossos pés.
9[a].
― Você deve estar brincando ― sussurra Tyler.
― Devíamos ter ido com o caminhão de esgoto ― Scarlett responde
baixinho. ― Pelo menos não parecia que era feito de merda.
O balde de ferrugem à nossa frente é um pouco maior do que o
nosso velho Longbow e traz um novo significado para feio de doer.
Parece que alguém destruiu seis ou sete outras embarcações,
vasculhou os destroços para encontrar todas as partes menos
atraentes e depois as soldou. Já foi pintado de vermelho, mas agora
está completamente coberto de ferrugem, a janela bulbosa da cabine
quase opaca de sujeira, listras pretas escorrendo pelos flancos de
cada parafuso e rebite. É como se alguém que odiava velocidade,
eficiência e estilo sentasse para desenhar a nave dos seus sonhos. E
então teve um ótimo dia no escritório.
― Temos certeza de que o Almirante está do nosso lado? ― eu
pergunto.
Esta não pode ser a que estamos procurando – não há como
Adams prometer nos ajudar e depois nos deixar algo assim.
― Talvez a-alguém tenha trocado as naves? ― Auri tenta.
― Não... ― a voz de Tyler é baixa. ― É essa.
Ele caminha para frente para limpar a ferrugem e a sujeira que
cobrem a placa de identificação ao lado da escotilha principal.
Quando ele puxa sua mão agora suja, todos nós podemos ver o
nome da nave gravado no metal.
ZERO
Como a nave poderia ter o nome dela?
Tyler pressiona a palma da mão na placa do sensor perto da
escotilha. Estou prestes a dar a notícia de que esta coisa tem menos
energia do que meu quarto bisavô – e ele morreu antes de eu nascer
– quando a porta se abre silenciosamente.
Nosso Alfa olha para nós e depois para a doca. Ele sabe que não
perderemos nossos perseguidores por muito tempo e não temos
tempo para brincar. E, por mais terrível que seja, tentar colocar essa
coisa em órbita não é realmente nossa pior escolha hoje. Posso ver
um SecDrone pairando acima de nossa posição e uma variedade de
outras opções horríveis estão, sem dúvida, se aproximando de nossa
posição enquanto falamos.
Então, quando Garoto de Ouro passa pela escotilha e entra no
interior escuro, o resto de nós o segue. Estou prendendo a
respiração, mas é mais um medo de fungos tóxicos do que
suspense. Com um zumbido suave, a iluminação interna ganha vida.
E é como se estivéssemos em outro mundo.
Um mundo impecável, brilhante e de alta tecnologia que chama
minha atenção quase da mesma forma que Scarlett Jones.
― Uau ― Auri murmura.
― Você disse isso, Clandestina ― murmuro.
Grande Criador, isso é... Incrível.
Tudo é lindamente projetado, desde a cabine até os consoles em
toda a extensão da cabine principal. Um conjunto de telas acende
enquanto eu assisto, transmitindo a visão de segurança do exterior
da nave, do controle de tráfego principal da Cidade Esmeralda e de
feeds de notícias ao redor da galáxia. Se o exterior desta nave foi
projetado para ser o mais feio possível, seu interior foi projetado
com a filosofia exatamente oposta em mente. É elegante, claro, de
ponta. O sonho molhado de um Gearhead.
Tyler já está deslizando para o assento do piloto, começando sua
verificação pré-voo.
― Aperte o cinto ― ele diz simplesmente. ― Vamos embora antes
que eles cheguem aqui.
Há um console longo e elegante que ocupa metade do
comprimento da cabine principal atrás dele, alinhado com três
cadeiras de cada lado. A metade traseira da cabine tem consoles
com mais potência e monitores maiores, sofás e portas que levam
ao armazenamento, dormitórios e cozinha.
Scarlett toca meu braço e aponta para uma cadeira do outro lado
do console. Eu percebo que foi projetada para mim. Há portas para
eu conectar e o assento é moldado para permitir o meu traje.
Quando olho em volta, percebo que todos os assentos são
personalizados – o de Kal é maior; Os de Auri e Zila são menores.
Troco um longo e perplexo olhar com Scarlett e então deslizamos
para nossos lugares atribuídos. Nossos arreios cobrem nossos
ombros automaticamente, nossas cadeiras girando para frente para
o lançamento.
― Temos companhia hostis chegando ― relata Kal.
Seus dedos dançam sobre o console de sua cadeira, projetando
uma das câmeras externas no ar acima de nós. Vejo que ele está
certo – o Inquebrado chegou primeiro e estão correndo ao longo da
doca em nossa direção, empurrando qualquer um em seu caminho
direto para a borda. Posso ver a Segurança da Cidade Esmeralda
atrás deles.
Tyler ainda está correndo em seu pré-voo, trabalhando na
velocidade da luz agora, murmurando para si mesmo enquanto soca
os controles. Com um clunk, o Zero se desacopla da doca, subindo
suavemente no ar com o ruído suave de nossos sistemas de
acionamento.
Mas Saedii está a apenas alguns passos de distância e está
acelerando.
Seu cabelo preto chicoteia em torno de seu rosto na correnteza
da nave, sua expressão é fria, linda e assustadora. Eu a vejo chegar
à beira do cais duas batidas de coração depois de nos afastarmos, e
sem nem mesmo olhar para o vazio abaixo, ela simplesmente se
lança sobre nós através da abertura.
Assistimos pelas câmeras, fascinados enquanto ela se agarra à
nossa escotilha fechada com as pontas das botas e unhas, batendo
no metal, a ferrugem descascando sob seus punhos. Estou
paralisado, olhando para a porta, meio que esperando que ela abra
caminho.
A boca de Kal está aberta e, embora ele não fale, posso dizer o
que ele está pensando. É uma queda loooonga para a tempestade
de cloro que assola a cidade, e a pressão e a temperatura vai matá-
la rapidamente. Apesar de tudo, tenho certeza de que ele não quer
que sua irmã morra.
Felizmente, Tyler não está se sentindo tão assassino quanto ela.
Com cuidado, ele inclina seus controles, circulando de volta acima do
cais enquanto os pés dela se afastam. Saedii fica pendurada pelas
pontas dos dedos por um longo e agonizante momento, e então, com
uma maldição que quase derrete um buraco direto no casco, ela é
forçada a se soltar, caindo no cais abaixo e pousando entre os
outros Syldrathi, que se espalham como pássaros kazar.
― Entrada de segurança ― relata Zila.
Sem uma palavra, Tyler endireita Zero, girando através da cúpula
ionizada e na atmosfera furiosa além. Nossa nova nave mal registra
a turbulência quando a atingimos, voando mais suavemente do que
eu pensava ser possível.
― Este bebê é uma besta ― eu suspiro.
― Tchau, Cidade Esmeralda ― murmura Scarlett. ― Você não fará
falta.
Auri olha em volta com um sorriso.
― Conseguimos.
― Sim. ― Tyler acena com a cabeça. ― Mas ainda temos um longo
caminho a percorrer.
Nosso Alfa se vira em sua cadeira, sua voz toda profissional
enquanto olha para mim.
― Legionário de Seel?
― Sim senhor?
― Traga essas coordenadas. Vamos encontrar o Hadfield.
7
FINIAN

As portas de nossos aposentos levam a um corredor branco


cintilante, as luzes automáticas lentamente ganhando vida à minha
frente. Algumas das portas não estão marcadas, mas a segunda à
esquerda tem a imagem de um besouro khyshakk – o símbolo
indomável de meu povo e a espécie mais antiga que ainda vive em
nosso planeta – delineada em tinta azul.
Eu passo meus dedos no painel de acesso e, enquanto a porta
zumbe suavemente para o lado, posso ver por que este quarto é
para mim. Em vez das cores claras e limpas que adornam o resto do
Zero, as paredes são cinza escuro para dar a impressão de que
estou no subsolo. Há até mesmo uma trepadeira crescendo na
parede à minha direita, me levando de volta por um momento ao covil
do meu primo Dariel na Nave Mundial, e mais além, para a casa dos
meus pais em Trask. Quando a porta se fecha atrás de mim, as
folhas da mosca ganham vida, brilhando suave o suficiente para que
eu possa tirar minhas lentes de contato, se quiser.
Estou tão ocupado relaxando no escuro, respirando o ar mais
fresco, que levo um momento para perceber que não há beliche. Meu
coração bate em um ritmo rápido – ohporfavorporfavorporfavor –
enquanto eu me viro em direção à porta.
E lá está. Aperto o botão e uma voz suave fala em Terráqueo.
“REDUÇÃO DA GRAVIDADE EM TRINTA SEGUNDOS. POR FAVOR,
PROTEJA TODOS OS LÍQUIDOS”.
Eu faço a contagem regressiva, prendendo a respiração em
antecipação, e então os pesos que têm me arrastado para baixo por
semanas diminuem lentamente, até que com o menor impulso de um
pé, eu posso levantar do chão. É como entrar em água fria em um
dia escaldante. Como toda a tensão simplesmente sangra para fora
do meu corpo e, pela primeira vez em muito tempo, não estou com
dor, não sinto dor, não estou trabalhando apenas para ficar de pé.
Tive aposentos como esse crescendo com meus avós e na
Academia Aurora. Eles foram feitos para serem instalados em nosso
Longbow, mas é claro que nunca voltamos de nossa primeira missão.
A gravidade baixa significa que poderei tirar meu traje para repará-lo,
o que tornará tudo mais fácil. Com tanto peso removido, posso
manobrar quase sem esforço. E agora eu olho mais de perto, vejo
que a parede esquerda está coberta de ferramentas – uma
variedade de tudo que eu poderia querer ou precisar.
Estou quase chorando de alívio. Esta é a minha saída. Eu tenho
blefado que estou bem desde a Nave Mundial, enquanto meu corpo e
traje têm piorado progressivamente, temendo o momento em que
meu Alfa não fosse mais capaz de ignorar minha condição. Mas
agora poderei fazer algo a respeito.
O alto-falante no teto toca novamente, e desta vez a voz que sai
dele é a de Tyler.
― Assim que todos estiverem situados, vamos nos encontrar na
cabine principal. É hora de abrir a caixa de Pandora, esquadrão.
Enquanto eu caminho de volta pelo corredor, todas as minhas
dores e sofrimentos se reafirmando, eu me pergunto quem é
Pandora – e por que nós temos sua caixa. Tyler e Zila estão com o
Zero zumbindo no piloto automático agora, bem longe da Cidade
Esmeralda. Estamos indo para um Portão na Dobra e a contagem
regressiva acima do console principal diz que terminaremos em cerca
de uma hora. Shamrock é colocado em uma posição acima da
cadeira do piloto, e meus olhos se voltam para o dragão de pelúcia
enquanto deslizo para o meu assento. Existem seis assentos aqui,
seis cabines na popa. Entre isso e o nome da nave, está bem claro
que quem fez tudo isso por nós sabia que Cat não estaria aqui para
precisar de nada.
Um por um, os outros vão surgindo. Kal e Auri encontraram a
enfermaria porque ela está parecendo um pouco menos rude depois
de seu encontro com o agonizador, e Scar está mastigando uma
pilha de biscoitos que sugere que ela encontrou a cozinha.
Zila examina a pilha na mão de Scar.
― Essa pilha representa significativamente mais do que sua ingestão
calórica diária necessária, Scarlett.
A ruiva dá um tapa na bunda dela.
― Só mais de mim para amar, Zee.
Eu não posso deixar de sorrir. Zila franze os lábios, refletindo
sobre o assunto e, finalmente, pega um biscoito.
Rápido o suficiente, estamos todos em nossas cadeiras,
inclinando-nos para frente em antecipação. Todo mundo quer saber o
que está na caixa. Tyler gira a cadeira do piloto para longe das telas
dianteiras para encarar o resto de nós em torno do console.
― Tudo bem ― diz ele. ― Scar, Kal, vamos ver o que vocês
retiraram do banco.
Scarlett limpa as migalhas, fica de pé e puxa a tampa da caixa.
― Ok, primeiro, há um monte de pacotes aqui que não tivemos
tempo de desembrulhar. Mas eles têm nossos nomes neles.
Ela entrega um pequeno pacote para Zila. Nosso Cérebro tira o
embrulho azul e estende a mão. Aninhado contra o pano está um par
de brincos de argola de ouro como os que ela normalmente usa. Mas
esses amuletos são pássaros.
― Falcões ― Auri diz, olhando mais de perto.
― Muito bonito ― murmura Zila. ― Eu me pergunto como eles
sabiam que eu gostaria deles.
O próximo é um pacote maior para nosso líder destemido. O
Garoto de Ouro puxa o embrulho de lado, todo profissional, aquela
testa bonita franzindo quando ele encontra um par de botas dentro.
Parecem perfeitamente normais: pretas, brilhantes e pesadas nas
solas.
― Algo errado com as que você tem? ― sua irmã pergunta.
― Não ― ele diz, confuso, olhando para baixo. ― Quer dizer, eu não
fui capaz de poli-las por alguns dias...
― Oh, grande Criador. ― Scar estende sua mão e pega a dele, a
preocupação em seu rosto. ― Como você está se sentindo?
― Tem sido uma luta.
Zila estuda seu presente por um momento antes de falar.
― Eu sugiro usá-las, senhor. Como Scarlett observou, quem deixou
esses presentes me conhece bem. Devemos presumir que eles
também o conheçam e acreditam que isso é necessário. Até agora,
nossos benfeitores demonstraram que têm os melhores interesses
em mente.
Tyler considera isso, encolhe os ombros e se inclina para
começar a trocar suas botas velhas pelas novas.
Scarlett abre seu próprio pacote em seguida. É mais ou menos
do tamanho do de Zila, e aninhado contra o invólucro azul está um
medalhão redondo de prata em uma corrente. De um lado, as
palavras Vá com o Plano B estão gravadas em uma escrita
ondulada.
― ‘Vá com o Plano B’? ― Tyler pergunta.
― Normalmente, uma boa ideia no que diz respeito aos seus planos,
irmão meu.
― Insensível, Scar. Insensível de verdade.
Scarlett deixa o medalhão girar na corrente entre os dedos,
olhando-o com atenção. Do outro lado, posso ver que é inserido com
um pedaço de diamante bruto. As luzes da cabine refratam na
superfície, minúsculos arco-íris dançando em seus olhos.
― Bonito ― eu digo.
Scarlett encolhe os ombros.
― Acho que diamantes são os melhores amigos de uma garota.
―... Eles são? ― Kal pergunta, olhando para Aurora.
Ninguém tem sabedoria a oferecer e, depois de um momento,
Scar afrouxa a corrente pela cabeça e enfia o medalhão dentro do
uniforme.
O pacote de Kal também é pequeno e, quando ele o abre, vemos
uma caixa retangular fina e prateada. Têm dobradiças e parece que
foi feita para abrir, mas quando ele tenta arrancar o que parece ser a
tampa, ela não se move.
― O que é? ― eu pergunto, esticando meu pescoço.
Achei que fosse um dispositivo Terráqueo ou Syldrathi, mas me
deparei com uma série de balanços de cabeça perplexos. Auri
finalmente enfia a mão no bolso, tira Magellan e o segura sobre a
pequena caixa de metal na palma da mão de Kal. Não posso
acreditar que agora estou chamando mentalmente essa coisa pelo
nome também, mas acho que seu programa de personalidade
certamente... O diferencia do padrão uni.
― Magellan? ― ela diz.
― OLÁ! SENTI FALTA DO SEU ROSTO!
― Sim, o seu também. Você pode me dizer o que é isso?
― EU A-DO-RA-RI-A! ― o uniglass percorre uma linha de luz verde por
toda a extensão da coisa e emite um bipe. ― ISSO É UM ARTEFATO
TERRÁQUEO, ANTERIOR À VIAGEM INTERESTELAR, CHEFE! FOI
PROJETADO PARA CONTER CARTÕES DE VISITA OU CIGARRILHAS!
A maioria dos rostos em volta da mesa ainda parece perplexa.
― Bem, eu sei o que é um cartão de visita ― diz Auri. ― É um
pedaço de papel com seus dados pessoais. Você os entrega às
pessoas para que possam entrar em contato com você.
Eu franzo a testa.
― Você não apenas bate em uniglasses?
― Não havia uniglasses no meu tempo ― diz ela.
― DIAS SOMBRIOS DE FATO ― Magellan emite um bipe.
Kal franze a testa.
― Não estou de posse de cartões de visita ― ele a informa
gravemente, como se isso pudesse ser um problema.
Ela olha para Magellan.
― Magellan, defina cigarrilha.
― NADA ME DEIXARIA MAIS FELIZ, CHEFE! UMA CIGARRILHA ERA UM
PEQUENO CIGARRO! ― ele faz uma pausa, absorve o silêncio confuso
e tenta novamente. ― UMA PLANTA CONHECIDA COMO TABACO FOI
ENROLADA DENTRO DE UMA FINA FOLHA DE PAPEL, DEPOIS INCENDIADA
E OS TERRÁQUEOS INALAVAM A FUMAÇA PARA ESTIMULAÇÃO!
― Isso parece perigoso para a saúde ― opina Zila.
― CORRETO! ― Magellan diz. ― A PRÁTICA SAIU DE MODA NO
SÉCULO VINTE E DOIS, DEPOIS QUE OS TERRÁQUEOS DESCOBRIRAM NO
SÉCULO VINTE QUE ELA MATAVA VOCÊ!
― Eles levaram duzentos anos para parar de fazer isso? ― eu
pergunto, perplexo.
― NÃO É LOUCURA? ― Magellan diz. ― HONESTAMENTE, ISSO NÃO
SOA COMO UMA ESPÉCIE QUE SE BENEFICIARIA DE ALGUM TIPO DE
MÁQUINA SOBERANA BENEVOLENTE?
― Modo silencioso ― diz Tyler.
― AW.
Compartilhamos uma série de olhares vazios, ponderando sobre
a caixa na mão de Kal. Nosso tanque estuda a pequena caixa de
metal mais uma vez, em seguida, enfia-a no bolso da camisa de seu
uniforme, com uma pequena mudança de postura que é o mais
próximo de um encolher de ombros que nosso membro de esquadrão
mais digno parece chegar.
Agora é a hora do meu presente. Eu não vou mentir: estou
animado para ver o que é. Mas minha empolgação desaparece
quando desembrulho o papel e descubro um pequeno cilindro de
metal simples. É algo como uma caneta, mas não há nada de
eletrônico nisso.
― Para que serve isto? ― eu pergunto. ― É algum tipo de
ferramenta?
Auri estende a mão para pegá-la e pressiona o polegar contra
uma das pontas, produzindo um som de clique. Uma pequena ponta
surge da outra.
― É uma caneta esferográfica ― ela diz, devolvendo-a para mim.
― É o que agora?
― É um instrumento de escrita da minha época ― diz ela.
― Eu fui roubado ― eu informo a ela. ― Não preciso de um
instrumento de escrita antiquado.
― Quer trocá-la pelas minhas botas? ― Tyler oferece.
― Ou minha caixa de fumo que não abre? ― Kal diz.
Eu pressiono meu polegar até o fim como Auri fez e retiro o
ponto. Admito que o clique seja um pouco satisfatório. Scarlett enfia
a mão na caixa novamente e tira um pacote marcado com nossa
designação de esquadrão, 312, que contém uma pilha inteira de
fichas de crédito Domínio vermelhas e douradas.
― Nada para Auri, receio ― diz ela.
― Eu já recebi meu presente ― Auri responde simplesmente.
―... Você já recebeu? ― Tyler pergunta.
― Sim. Vocês. ― ela olha ao redor para o Esquadrão 312 e faz uma
careta. ― Bolo sagrado, isso soou insuportavelmente extravagante,
não é?
― Imperdoavelmente ― Scar sorri, largando os chips de crédito no
console. ― Mas, exceto pelos documentos que nos direcionam para
a nave e as chaves-mestras, isso é tudo.
― Pelo menos não nos faltará fundos ― Kal concorda.
― Este não é um chip de crédito ― diz Zila, recuperando um chip
com uma faixa turquesa debaixo do vermelho e dourado. Ela passa
para mim, enquanto estou sentado na frente de um slot de dados.
Paro por um momento, porque tenho a política de nunca colocar
um chip que um estranho me dá em meu equipamento, a menos,
você sabe, que toda a frase seja uma metáfora. Mas se nossos
benfeitores quisessem nos colocar nisso, eles já tiveram sua chance
e mais alguma. Então, com um estremecimento, eu empurro o chip
no equipamento.
A tela principal acima de nós ganha vida e somos recebidos pelo
Almirante Adams e pela Líder de Batalha de Stoy. Eles estão em
uniforme de gala, o sigilo da Legião Aurora estampado em seus
ombros. Adams levanta uma mão cibernética em saudação e de Stoy
favorece a câmera com um pequeno aceno de cabeça, seus olhos
negros ilegíveis até mesmo para outro Betraskan.
― Saudações, legionários ― Adams diz gravemente. ― Em
primeiro lugar, parabéns por decifrar nosso código. A Líder de
Batalha de Stoy e eu lamentamos não poder estar aí para informá-
los pessoalmente, mas se vocês estão assistindo esta mensagem,
é nossa esperança que vocês estejam a bordo do Zero e se
dirigindo ao comboio de Hefesto.
Ele faz uma pausa, o que é útil, pois deixa espaço para um
coletivo "O quêêêêêêêêêêêêêêêê?”.
Antes que a descrença assustadora de todos ao redor da mesa
saia do controle, de Stoy retoma a narrativa.
― Isso sem dúvida será estranho para todos vocês, legionários.
Sabemos que vocês devem ter muitas perguntas candentes.
Infelizmente, e por razões que um dia ficará claras, ainda há muito
sobre sua situação que não podemos revelar. Lamentamos as
provações que vocês enfrentarão como resultado, mas vocês
devem saber pelo menos isso. ― ela olha ao redor da ponte, como
se pudesse realmente ver todos nós. ― Todos os nossos esforços
estão voltados para apoiá-los. Sabemos que vocês assumiram a
causa dos Eshvaren. E sabemos que vocês são nossa última
esperança contra o Ra'haam.
― Não podemos declarar nosso apoio publicamente ― continua
Adams. ― Na verdade, a Legião Aurora deve ser vista trabalhando
ativamente contra vocês. O Ra’haam tem agentes dentro da
Agência de Inteligência Global e, potencialmente, outros governos
estelares.
Meu olhar passa rapidamente para Auri, cujo rosto é como uma
pedra. Eu sei que, assim como eu, ela está imaginando seu pai no
uniforme branco do GIA de Princeps, chamando-a, implorando para
que ela se junte ao Ra’haam.
― Peguem esses presentes ― continua Adams. ― Mantenha-os
com vocês o tempo todo. E saiba que vocês estão viajando no
caminho correto.
― Saiba que acreditamos em vocês ― diz de Stoy. ― E vocês
devem acreditar uns nos outros. Somos a Legião. Somos a luz.
Queimando forte contra a noite.
Adams olha direto para a câmera e repete as palavras que nos
disse quando saímos da Academia Aurora, ignorando tudo o que
estava à nossa frente.
― Vocês devem acreditar ― ele diz simplesmente.
E assim, a mensagem termina.
Ficamos todos em silêncio por um longo momento. Tentando
processar o que acabou de acontecer. Meus pensamentos estão
correndo anos-luz por segundo, a enormidade de tudo soando em
meu cérebro e ameaçando explodir tudo para fora do meu crânio.
Nossos comandantes sabem sobre os Eshvaren. Eles sabem
sobre o Ra’haam. Eles sabem o que estamos enfrentando e, de
alguma forma, por mais impossível que pareça, eles sabiam o que
estava por vir – encontrar Auri, perder Cat, nossas novas carreiras
como fugitivos interestelares – antes que qualquer uma dessas
coisas acontecesse. Esta mensagem nos esperou no cofre de
segurança por anos antes de qualquer um de nós sequer entrar na
Academia Aurora. Muito menos de nos tornarmos legionários.
Auri é quem finalmente quebra o silêncio.
― Não conheço bem seus chefes, mas se eles sabiam que isso
aconteceria, um pequeno aviso teria sido bom.
Scarlett olha para Shamrock, sentado acima da cadeira vazia do
piloto. Toda a cor sumiu de suas feições e de sua voz.
― Você pode dizer isso de novo.
Kal estende a mão para tentar pegar a de Auri.
― Tenha fé, be’shmai. Adams e de Stoy trabalharam para o melhor
até agora. Devemos acreditar que, mantendo o que eles sabem de
nós, eles continuem a fazê-lo.
Claro, isso é exatamente um beco Syldrathi – cheio de mistério e
quase profecia. Não é à toa que Kal está engolindo tudo. Mas eu
vejo Tyler olhando para mim, me prendendo com aqueles grandes
olhos azuis dele.
― Devemos acreditar ― ele diz suavemente
Somos as duas únicas pessoas religiosas na nave, Tyler e eu, e
sei que ele se sente da mesma forma que eu – que a mão do
Criador está de alguma forma nisso. É a fé de Tyler que Adams atrai
quando diz essas palavras. Mas é dolorosamente difícil continuar
acreditando quando já nos custou tanto. Quando as pessoas de
quem gostamos pensam que somos traidores. Quando estamos
lutando para salvar uma galáxia e parece que toda a galáxia está
lutando contra nós.
Quando a cadeira do piloto está vazia.
― Bem ― diz Scarlett, deliberadamente alegre. ― O lado positivo: é
que sabemos que definitivamente estamos indo na direção certa.
Zila acena com a cabeça.
― A caixa preta do Hadfield é nosso próximo objetivo.
Esse pronunciamento quebra o clima sombrio que se instalou
sobre a mesa, e Tyler acena com a cabeça, transformando-se em
Garoto de Ouro novamente com um movimento rápido de sua
cabeça. Ele endireita os ombros e fala com autoridade.
― Ok ― diz ele. ― Foi um longo dia. Vamos pegar um pouco de
comida e traçar estratégias, então, assim que passarmos do Portão
da Dobra, podemos tentar e obter algum tempo de descanso.
A confiança em sua voz parece galvanizar o resto do esquadrão,
e todos logo estão se movendo novamente – voltando-se para suas
exibições ou vasculhando armários de suprimentos ou se preparando
para a Dobra. Eu olho para o meu presente no console à minha
frente – opaco, metálico, quase tão útil quanto um traje espacial sem
um suprimento de oxigênio.
Com um suspiro, coloco a caneta no bolso de cima.
― Eu espero que saibamos o que estamos fazendo.

·····
Algumas horas depois, estou de guarda, os pés apoiados no
console central para aliviar a pontada na parte inferior das costas.
Será uma Dobra mais longa chegar ao portão mais próximo do
comboio – Dobras mais longas podem vir completas com qualquer
coisa, desde paranoia a tremores e psicose, mas somos todos
jovens o suficiente para estar bem em um salto como este.
Quando você atinge os 25 anos, a equação se torna muito
diferente. Depois dessa idade, você não pode viajar pela Dobra por
muito tempo sem ser colocado em êxtase. É por isso que os
esquadrões da Legião Aurora começam tão jovens. Nós nos
formamos por volta dos dezoito anos e temos sete anos antes de
mudarmos principalmente para empregos administrativos.
Às vezes, me pergunto se o estresse em meu corpo significará
que vou ficar menos tempo antes que a Dobra comece a me
desgastar. Mas hey, como diria Scarlett, o lado positivo: eu preciso
estar vivo para que isso se torne um problema. E as chances de isso
acontecer são, na melhor das hipóteses, ruins.
Se Ty soubesse em que formato meu traje estava, ele não teria
me dado um relógio. Mas ele ainda não percebeu completamente o
quão ruim é, e Scar respeitou meus pedidos para mantê-lo em
segredo. Não será um problema em breve, de qualquer maneira – eu
tenho tudo que preciso na minha cabine para reparos e, uma vez que
meu traje esteja devidamente alinhado e funcionando, vai tirar a
tensão dos meus músculos e deixá-los começar a cicatrizar também.
Eu verifico os scanners pela quinta vez em poucos minutos. Ainda
estamos no curso, sem perseguição, minhas exibições reduzidas a
monocromáticas nítidas como tudo o mais na Dobra. Preto e branco
não é uma extensão enorme para um Betraskan – a vida no subsolo
não é muito colorida nos melhores momentos. Mas às vezes me
pergunto se meus companheiros de esquadrão ficam estranhos com
isso.
Eu ouço passos suaves e olho para cima da minha tela para ver
Auri emergindo do corredor em um suéter e calças de pijama. Ela
deve ter ido visitar a cozinha superelegante na popa, porque está
segurando duas canecas fumegantes.
― Ei, Clandestina. Não conseguiu dormir?
Ela responde com um pequeno estremecimento.
― Pesadelos.
Eu faço uma cara simpática e puxo meus pés para fora do
console, estendendo a mão para pegar minha caneca dela. É baris,
uma bebida favorita pelo meu povo que ninguém mais na galáxia
realmente gosta.
― Uau ― murmuro. ― Eles realmente abasteceram a cozinha com
tudo.
― Com certeza ― ela concorda. ― Nunca pensei que veria
camomila de novo.
Eu me inclino para olhar sua bebida e ela estende a caneca para
que eu possa inalar o vapor.
― Cheira a flores ― eu decido.
― É um dos meus favoritos. É tradicionalmente para antes de
dormir. Ajuda você a relaxar.
― Camomila. ― repito a palavra para guardá-la na memória, caso
precise fazer para ela algum dia. ― Quer falar sobre o sonho? Uma
carga compartilhada é uma carga reduzida pela metade.
Ela sorri.
― Isso é alguma sabedoria antiga de Betraskan ou algo assim?
Eu balanço minha cabeça.
― Li isso em um porta copos de algum bar. Mas, você sabe, às
vezes os sonhos não são tão ruins quando você os diz em voz alta.
Mesmo enquanto estou dizendo isso, estou pensando sobre os
sonhos que ela provavelmente está tendo. Sobre o que eu tive,
quando vi Trask coberto de neve azul que acabou por ser o pólen do
Ra'haam. É o destino que aguarda meu mundo natal se não
conseguirmos impedir que o Ra'haam se espalhe. O destino que
aguarda toda a galáxia.
Ela fecha os olhos e toma um gole de chá.
― É o que você pensa ― ela diz baixinho. ― Não foi Octavia desta
vez. Muitas luas. E o céu estava mais verde. Mas as plantas eram as
mesmas. Exceto que elas pareciam maiores e mais fortes. Eu estava
tentando olhar mais de perto, mas o pólen era muito espesso para
ver. Acho que havia... botões. Nas plantas.
Um dedo de gelo traça um caminho pela minha espinha.
Sua voz é um sussurro.
― Acho que estava se preparando para florescer e estourar.
Eu realmente não sei o que dizer sobre isso. Estou me
perguntando como me sentiria se fosse eu em sua posição – se toda
a galáxia estivesse descansando em meus ombros estreitos, não nos
dela. Estou tentando descobrir uma maneira de dizer o quão
corajosa eu acho que ela é. Como a maioria das pessoas teria se
despedaçado se tivessem vivido a vida dela nas últimas semanas.
Mas nunca fui bom em Pessoas. Eu nunca sei o que dizer.
Felizmente, sou resgatado da minha luta pela chegada de Scar e
Kal. Os dois parecem sonolentos, mas Kal se deu ao trabalho de
vestir o uniforme, seu cabelo está imaculado como sempre. Scar
está em um envoltório de seda que me convida a imaginar o que ela
está vestindo por baixo. Eu faço o meu melhor para não fazer isso,
com resultados mistos.
― Ei, você ― Auri diz, sorrindo para Kal.
― Ei ― eu digo, soando como uma idiota alegre. ― Sonhos ruins
para vocês também?
― Não sei o que me acordou ― admite Scarlett. ― Eu só estava...
―... Inquieto ― Kal termina.
Eu me pergunto sobre essa inquietação. Eu sei que a mãe de Kal
era uma empata, e se sua irmã herdou um pouco de seu dom, talvez
ele também? Talvez ele tenha percebido o pesadelo de Auri. Na
verdade, não explica por que Scarlett não consegue dormir...
O silêncio se estende, Auri deixando a conversa sobre seu sonho
recuar como se fosse um espelho retrovisor, Kal e Scarlett
procurando por um motivo melhor para terem saído até ali.
Bem, isso é tão alegre quanto uma cerimônia de partida de três
almas.
― Tudo bem ― eu digo. ― Eu tenho mais meia hora antes de sair
do turno. Já que ninguém está dormindo, o que dizer de ensinarmos
a Clandestina aqui a jogar frennet?
― Estou familiarizado com o jogo, mas não com as regras ―
responde Kal.
Eu reflito por um momento que nenhum Betraskan na Academia
Aurora jamais teria considerado socializar-se com Kal, muito menos
ensiná-lo a jogar – não com seu sigilo Warbreed tatuado bem ali em
sua testa.
― Sem problemas ― digo a ele. ― Que tal dar uma lição para você
e Auri e colocarmos alguns desses novos créditos em uso?
Scar me dá uma piscadela que diz que ela sabe que estou no
dever de animar, e aprova isso, e eu trabalho duro para ter certeza
de não dar a ela um sorriso grande e idiota de volta.
Sei que os três assumiriam minha supervisão se eu pedisse para
que pudesse trabalhar no meu traje, mas meia hora disso parece
mais importante. Depois de nossa conversa sobre estratégia
anterior, todos nós sabemos que teremos tempos difíceis pela
frente. Eu acho que não há mal nenhum em fazer um pouco de luz
para nós mesmos, aqui no escuro.
― Vou buscar bebidas ― diz Scar. ― Fin, por que você não abre o
programa?
― Ok ― eu digo, passando pelos submenus da nave para encontrar
um programa frennet decente e puxando uma tela 3-D para projetar
no console. ― Portanto, na primeira rodada, há dezessete dados em
jogo.
― Dezessete? ― Auri gagueja.
― Não se preocupe, vou pegar leve com você.
Uma pequena linha aparece entre as sobrancelhas de Kal, um
sinal de grande preocupação.
― Sem piedade, Finian ― ele diz. ― Aprendemos perdendo.
― Eu nunca disse que iria pegar leve com você, Garoto Fada ― eu
sorrio, atribuindo as fichas de jogador. ― Você, meu amigo de
orelhas pontudas, está prestes a aprender muito.
― Hmm. ― seus olhos violetas brilham com a piada. ― Veremos.
― Sabe, se você não quer arriscar nada dessa riqueza recém-
descoberta, há outra versão que podemos jogar. Strip frennet.
― Licença?
― Sim ― eu sorrio. ― Todo mundo aposta uma peça de roupa por
jogada, e quem perde tem que tirar. Torna as coisas mais
interessantes.
Admito que sinto uma sensação perversa de deleite quando os
olhos de Kal deslizam involuntariamente para Aurora, e vejo uma
onda de calor se espalhando por suas bochechas sardentas.
― Não acho isso apropriado ― diz Kal.
― Ei, eu não sabia que Syldrathi corava com as orelhas.
― Eu não estou corando ― Kal olha carrancudo.
Scar retorna com a bandeja de bebidas equilibrada em uma das
mãos e dá um tapinha na minha orelha quando ela passa.
― Pare de ser um desgraçado, Finian.
― Mas eu sou tão bom nisso!
Scarlett sorri e balança a cabeça, e seu sorriso me faz sorrir
ainda mais. Nós vamos ao que interessa e, no final, Kal não é o único
que acaba aprendendo muito. Eu aprendo que Auri começa a bufar
quando ela ri muito forte. Eu descobri que Kal tem uma risada
profunda e estrondosa que você pode sentir no peito. Eu aprendi que
Scarlett não pode ser blefada, não importa o quanto você tente. E eu
aprendi que talvez eu não seja péssimo em Pessoas tanto quanto eu
suspeitava.
Ficamos acordados depois do meu turno. Jogamos muito mais
tempo do que deveríamos.
Mas ei, ninguém mais está tendo pesadelos.
8
AURI

Não sei o quão bem os outros dormiram na Dobra – meus sonhos


eram desconexos e estranhos – mas estou mais descansada do que
antes. As dores do agonizador de Saedii estão desaparecendo,
embora eu ache que não serei convidada para a casa dela nas férias
tão cedo. Foi estranho acordar enquanto viajamos por aqui. Tudo na
nave foi moldado em preto e branco pela Dobra, e parecia que eu
ainda estava sonhando.
Mas agora estou na câmara pressurizada do Zero, ocupada me
vestindo com Fin e Kal enquanto Zila verifica diligentemente nossos
trajes espaciais. Minhas luvas se encaixam e ela segura minhas
mãos, virando-as para confirmar o selo. Zila prende meu cabelo para
trás do rosto – minhas próprias mãos são muito pesadas em minhas
luvas. Acho que deveria ter pensado nisso com antecedência. Tive
uma curta palestra de Tyler e meia hora de prática na baixa
gravidade disponível no quarto de Finian, que é tudo o que alguém
precisa para uma caminhada no espaço, certo?
Isso mesmo. Estou prestes a caminhar.
No.
Espaço.
Os gêmeos Jones estão na frente nas cadeiras do piloto e do
copiloto, nos guiando cada vez mais perto do comboio de resgate de
Hefesto, do Hadfield e da caixa preta dentro. Eu posso ver uma
exibição disso nos cames de longo alcance em nosso casco, e é
assim... Bem, é como algo saído de um filme de ficção científica. O
comboio é enorme – centenas de naves, todas em vários estados de
abandono, de "levemente surrada" a "esperemos que tenha uma boa
personalidade." As formas e tamanhos são alucinantes: elegantes e
bonitas ou volumosas, mas funcionais ou o que bolo sagrado é isso.
Cada nave está sendo rebocada por um rebocador muito menor,
marcado com a roda dentada em chamas da Corporação Hefesto.
Pelo que Ty disse, esses rebocadores são em sua maioria
motores, feitos para transportar naves muito maiores pelo espaço ou
para portos estelares. Eles não parecem muito assustadores, mas o
comboio também é acompanhado por uma pequena frota de
cruzadores fortemente armados. Posso vê-los na tela – cunhas de
prata reluzente, movendo-se nos previsíveis padrões de voo de
pilotos que estão entediados. Ninguém aqui espera ser roubado.
Afinal, as naves que eles estão transportando são todos pedaços de
lixo quebrado.
E, por falar no diabo, na periferia do comboio, lá está ela.
O Hadfield é enorme, em forma de nave de guerra, com o casco
enegrecido e rasgado. A última vez que a vi, esta nave era
considerada o estado da arte. Ela era a maior nave de classe Arca
que a Terra já havia feito. Ela carregou dez mil colonos e as
esperanças de um planeta inteiro. E agora todos eles estão mortos,
exceto eu.
Pela milésima vez, me pergunto por que fui eu que sobrevivi. Ora,
de todas aquelas pessoas inocentes, os Eshvaren me escolheram
para ser o seu Gatilho. Olhando para o abandonado flutuando lá fora
em todo aquele preto, eu sinto um arrepio correr pela minha espinha,
algo sussurrando na parte de trás da minha–
― Aurora?
Eu pisco, percebendo que Zila está olhando para mim com
expectativa.
― Huh?
― Incline-se, por favor.
Eu faço o que me foi dito, em seguida, curvo-me para frente para
que ela possa colocar meu capacete. Ty transmite da ponte.
― Tudo bem, estamos quase prontos para ir aqui. O tac-comp e eu
estivemos analisando seu padrão de voo de segurança e há uma
lacuna em sua varredura a cada 37 minutos.
― Ainda estamos a 25 horas do destino do comboio em Picard VI.
― Zila coloca as travas no lugar, sua voz repentinamente abafada na
vida real, mas clara como cristal no meu sistema de comunicação. ―
A segurança deles não deve estar em alerta alto.
― Concordo – a maioria deles está voando no piloto automático ―
diz Tyler. ― Mas ninguém toma isso como um convite para vadiar.
Entre, pegue o que viemos buscar e saia. Qualquer outra coisa é
um bônus.
Por “qualquer outra coisa”, ele se refere a qualquer coisa com
que possa contribuir. Fin está embarcando no Hadfield para baixar o
conteúdo da caixa preta. Kal está lá para nossa proteção. E eu
estou lá para o caso de ver algo que me lembre de... Bem, qualquer
coisa, realmente. O que quer que tenha acontecido comigo, ou
como. Dado que não temos certeza do que estamos procurando,
vamos pegar todas as pistas que pudermos obter. Mas espero
descobrir o que os sistemas do Hadfield lembram sobre o momento
em que fui... Transformada... Vai pelo menos nos colocar nas
próximas etapas do nosso caminho.
― O Zero ativou o modo furtivo ― continua Tyler. ― E sua
tecnologia de camuflagem é de primeira, então não vamos aparecer
em nenhum de seus alcances. Mas essas pessoas ainda têm olhos
para nos localizar. Portanto, certifique-se de não chamar atenção
para si mesmo.
A voz de sua irmã entra na conversa.
― Estaremos em posição em noventa segundos.
Em nossos monitores, estou observando um minúsculo ponto
vermelho que nos representa, deslizando até o comboio através da
lacuna nas rotas de voo da patrulha de segurança. Eu nos vejo
entrando e saindo da frota sob a mão experiente de Tyler, e meu
estômago está prestes a rastejar para fora da minha boca. Zila está
verificando os lacres do capacete de Kal agora, na ponta dos pés
para alcançá-lo.
― Vocês terão 60 segundos para chegar ao Hadfield antes que as
frotas de segurança ajustem a formação e a lacuna feche ― diz ela.
― Só não olhe para baixo, Clandestina ― Fin sorri.
Zila sai da câmara de descompressão e fecha a porta.
― Boa sorte.
Estamos fechados agora, apenas mais uma porta entre nós e o
espaço. Minhas palmas estão úmidas. Posso sentir uma gota de
suor frio escorrendo pela minha espinha.
― Abrindo a porta externa em dez segundos ― Zila relata pelo
comunicador. ― Posições seguras. Segure as restrições da parede
em caso de movimento repentino.
Eu empurro minhas duas mãos pelas alças, me ancorando com
firmeza, embora não haja nenhuma razão real para eu cair da nave e
cair no vácuo sem fim. Ainda assim, não vou deixar passar nenhuma
precaução de segurança agora. Quer dizer, eu treinei para viajar por
ele, com certeza. Mas há uma grande diferença entre ser carregada
em um criópode e atirada pelo espaço e, na verdade, você sabe,
andar nele.
A porta externa se abre e, filho de uma biscoiteira, esse é o
Espaço bem ali!
É muito grande.
Quer dizer, obviamente é muito grande; é literalmente famoso por
ser muito grande. E ainda assim, de alguma forma, isso é diferente
de vê-lo por meio de uma janela de exibição ou monitor.
Esta é a primeira vez que entendi que poderia flutuar pelo espaço
para sempre.
Kal está ao meu lado, apoiando a mão enluvada em meu braço.
Seu olhar está calmo, sua voz gentil.
― Tudo ficará bem, be'shmai. Finian e eu vamos ajudá-la.
Acontece que Fin igualou a pontuação perfeita de Ty em seu
exame de orientação de gravidade zero – aparentemente o resultado
de anos dormindo nele. Ele acena sabiamente.
― Eu estarei lá, Clandestina. Essa boa aparência de super-herói
não é apenas para exibição. ― ele me lança um sorriso, então se
agacha sobre o lançador, todo profissional. ― Verifique o tempo, por
favor, Scar.
― Quinze segundos ― ela relata. ― Dez, nove, oito...
Na ponte, Tyler ajusta seus controles e a visão infinita do espaço
é substituída pelo lado bombordo do Hadfield, um pedaço de metal
perfurado que preenche nossa visão através da escotilha aberta. De
acordo com as telas, agora estamos voando em perfeito paralelo
com o abandonado: mesma velocidade, mesmo rumo, talvez
cinquenta metros de distância.
Respiro fundo, verificando minha pegada, certificando-me de que
realmente poderei descascar minhas mãos quando precisar me
mover. Pequenos movimentos, digo a mim mesma, repetindo as
palavras que Fin e Tyler entoaram para mim sem parar durante
minha breve sessão de treinamento. Em gravidade zero, um
empurrão ou estocada repentina me deixará desequilibrada e o
impulso me manterá girando desamparadamente. Cada movimento
deve ser preciso e suave. Não há espaço para cima. Não há queda.
Mas um movimento errado e eu posso acabar caindo para o resto da
minha vida.
Pequeeeeenos movimentos.
Scarlett ainda está em contagem regressiva.
―... Três, dois, um, marca.
Fin olha calmamente através da mira e puxa o gatilho do grappler.
Uma linha de metal voa através da lacuna entre o Zero e o Hadfield,
conectando-se silenciosamente a nave maior perto de um enorme
corte derretido em seu casco.
― Linha segura ― sussurra Fin. ― Transferência em andamento.
― Por que você está sussurrando? ― eu pergunto.
― Eu... Não sei exatamente.
― Você não é um grande guerreiro, não é, Finian? ― Kal provoca.
― Você quer simplesmente sair daqui? ― Fin sibila. ― Temos
travessuras a fazer.
Com a menor sugestão de um sorriso curvando seus lábios, Kal
sai da câmara de descompressão, puxando-se com as mãos ao
longo da linha de metal entre as duas naves. Eu sou a próxima e
posso ouvir minha respiração tremendo quando saio do Zero.
Mesmo que estejamos voando a centenas de milhares de
quilômetros por minuto, não há sensação de estarmos realmente nos
movendo e, além da minha respiração, tudo ao meu redor está
perfeitamente silencioso. Kal, Fin e eu estamos amarrados um ao
outro e à linha principal, e todos nós temos unidades de propulsão a
jato em nossos trajes para o caso de algo dar errado. Mas, ainda
assim, o vazio ao nosso redor é tão enjoativamente enorme e preto e
há apenas nada que eu quase não consigo envolver minha cabeça
em torno dele. E então eu paro de tentar, me concentrando no cabo
à minha frente, sussurrando instruções para mim mesma:
― Mão direita, mão esquerda, mão direita, mão esquerda.
Eu sei que Fin está atrás de mim, pronto para ajudar se eu
precisar. Mas isso não muda o quão impossivelmente pequena eu me
sinto agora. No entanto, de alguma forma, em vez de ficar com
medo, eu me encontro... Eufórica. Sentir-me tão pequena me faz
perceber o quão grande é o que todos nós fazemos. E estar aqui em
todo esse vazio de alguma forma me torna completamente
consciente de tudo o que sou e tenho.
Esses amigos, que estão arriscando suas vidas por mim. Nossa
pequena luz, brilhando em toda essa escuridão. Eu nunca acreditei
realmente em destino. Mas em todo esse nada, nunca estive tão
certa de quem sou e onde devo estar.
À minha frente, através do trecho sem fundo da escuridão, Kal
alcança o corte. Lentamente, com cuidado, ele testa as bordas até
encontrar um ponto que não abre suas luvas. Então, com o que
parece ser um movimento sem esforço, ele se puxa para o interior
escuro como breu do Hadfield.
É a minha vez a seguir e tenho que me forçar a soltar a linha e
agarrar o rasgo na pele do Hadfield. Enquanto flutuo na escuridão,
empurro com muita força e Kal me salva antes de eu navegar contra
a parede. Ele me pega em seus braços e me puxa para baixo
graciosamente. Meu coração está martelando e minha respiração
está batendo forte em meus pulmões, e agora que meu tempo lá
fora acabou, percebo que tudo o que quero é fazer tudo de novo.
― Que pressa ― eu suspiro.
Kal olha para mim.
― Eu sei exatamente o que você quer dizer.
Meu corpo está pressionado contra o dele, seu rosto a apenas
alguns centímetros do meu, e a luz das estrelas refletida em seus
olhos são como faíscas dançando dentro de chamas violetas. Eu
engulo o nó na minha garganta, meu coração batendo ainda mais
forte do que antes.
Fin se puxa pelo corte atrás de nós, fingindo não notar enquanto
eu relutantemente me empurro para fora dos braços de Kal.
― Linha lançada, Garoto de Ouro ― ele declara. ― Vejo você em
breve.
― Entendido ― responde Ty. ― Boa caçada.
Eu observo através da brecha no casco enquanto o Zero se
descola silenciosamente. Ele desaparece atrás do arco dos
propulsores do Hadfield e desaparece de vista, escondendo-se no
comboio antes que as patrulhas de segurança voltem. Ativamos
nossas luzes do capacete e vejo que estamos em um longo corredor
de plasteel. Parece quase familiar. Tudo parece perfeitamente
normal. Exceto, você sabe, está totalmente escuro. E se abre para o
espaço.
― Tudo bem ― diz Fin. ― A ponte é por aqui. Sigam-me,
pombinhos.
Fin se levanta do chão, movendo-se tão naturalmente quanto um
peixe na água. Com toques suaves na parede para nos impulsionar,
Kal e eu flutuamos atrás dele, nossos faróis iluminando o caminho à
nossa frente. Fin está estudando o mapa no uniglass amarrado em
seu antebraço esquerdo. Seus movimentos são suaves e elegantes.
― Seu traje parece muito melhor, Fin ― eu digo.
― Não vou ganhar nenhum concurso de dança em breve, mas
estou chegando lá.
― Tenho certeza que você é um dançarino incrível.
Ele sorri para mim de lado.
― Você está tentando fazer eu me apaixonar por você também,
Clandestina?
Kal olha na direção de Fin, mas com aquela frieza que eu
costumava achar tão irritante, mas o Betraskan não se irrita.
Caminhamos mais para dentro da barriga do Hadfield, e tudo ao
nosso redor está silencioso e escuro. A nave não parece tão ruim
daqui, e quase posso imaginar que ela ainda está no seu auge. Mas
é quando contornamos uma antepara quebrada que toda a escala do
dano me atinge como um chute no peito. À nossa direita, há um
rasgo que atravessa toda a nave, desde o convés superior até a
quilha. Cabos e conduítes derramam-se das rendas entre os níveis,
metal e plástico todos retorcidos e rasgados. Parece que a
tempestade quântica de relâmpagos através da qual Ty lutou para
me alcançar realmente atingiu o Hadfield. Ou talvez ela tenha
resistido a muitas Tempestades na Dobra antes de ele me
encontrar?
Todos nós paramos por um longo momento, simplesmente
olhando para essa destruição, tentando absorver sua escala. Sei que
cada um dos meninos está preocupado comigo à sua maneira,
imaginando como estar aqui pode me fazer sentir. Mas do lado de
fora, pelo menos, não devo parecer muito confusa. Sem palavras,
Fin empurra a parede mais uma vez e eu flutuo atrás dele, Kal na
retaguarda.
― Ainda sem sinais de vida ― Kal relata, sua voz nítida.
― Que bom. Não tive tempo de arrumar meu cabelo esta manhã.
― Fin verifica seu mapa novamente. ― São cerca de novecentos
metros até a ponte. A velha Sra. Caixa Preta estará em nossas
mãos pegajosas em cerca de cinco minutos, Tyler.
― Entendido ― responde Ty. ― Todos fiquem calmos.
Parece um bom conselho e eu faço o meu melhor para segui-lo,
para ignorar a inquietação que posso sentir crescendo dentro do meu
estômago. Mas enquanto sigo o feixe da minha lâmpada ao longo do
corredor escuro, começo a sentir uma leve sensação de
formigamento na pele.
É como alfinetes e agulhas, ou eletricidade estática, estalando do
meu peito em direção aos meus dedos das mãos e dos pés. Eu ouço
um pedaço de conversa à nossa frente, minha respiração presa na
minha garganta quando um grupo de cinco figuras vira a esquina,
caminhando pelo corredor em nossa direção.
Bolo sagrado, elas são pessoas.
Elas estão todas vestidas com os macacões cinza da missão
Hadfield e uma das mulheres está rindo – um som brilhante e
cristalino no escuro. O choque de vê-las é como um tapa. Eu tento
parar e, assim como fui avisada, o movimento repentino me envia
girando para trás, de cabeça para baixo, girando direto no peito de
Kal. Ele grunhe quando eu bato nele, envolvendo um braço forte em
volta de mim e agarrando o batente de uma porta para nos firmar.
― Tudo bem aí, Auri? ― Fin pergunta, virando-se para ver o que
aconteceu.
Com a pulsação batendo nas têmporas, percebo que as pessoas
se foram.
E eu percebo que nenhuma delas estava usando traje espacial.
E eu podia ouvi-las, embora estejamos no vácuo.
E elas estavam andando, quando não havia gravidade.
Elas eram... Fantasmas?
Não, não, isso não está certo. Sinto um formigamento em meus
dedos agora, um acúmulo de eletricidade estática. Exatamente como
quando destruí aquela nave nas docas da Cidade Esmeralda. Assim
quando sonho com coisas que se tornam realidade. Eu posso sentir
meus poderes trabalhando se eu fechar meus olhos – azul meia-noite
e sem fundo sob minha pele. Mas isso parece menos com uma das
minhas visões e mais com... Uma das memórias do Hadfield
ganhando vida?
― Você está bem? ― Kal pergunta, olhando atentamente nos meus
olhos.
Pisco no local onde vi as pessoas, balançando a cabeça.
― Eu...
― Você viu algo, be'shmai?
― Eu... ― eu engulo em seco, minha boca seca de repente. ― Não
sei... .
Os meninos trocam um olhar, nenhum deles realmente
acreditando em mim, mas ambos educados demais para me
chamarem a atenção. Fin tenta aliviar o clima sombrio.
― O que esquecemos, Clandestina? ― ele pergunta.
― Esquecemos a regra de ouro. ― tento fazer minha voz soar
alegre, mas sei que não consigo. Ainda assim, Fin é um bom
esportista e canta minha lição comigo novamente:
― Pequeeeeenos movimentos.
Continuamos em direção à ponte, e há uma sensação definitiva
de errado, de mau presságio, crescendo atrás dos meus olhos.
Estar de volta aqui agora, vendo este lugar... Quer dizer, não é que
eu não soubesse que estava a mais de dois séculos no futuro. Claro
que sim. Tudo ao meu redor me diz isso – os alienígenas, a
tecnologia, a completa ausência de qualquer coisa familiar. Mas de
alguma forma, isso é diferente de ver algo que eu conhecia, brilhante
e novo apenas algumas semanas atrás, agora tão antigo. Totalmente
morto.
Estou tão triste pelo Hadfield.
Zila fala nos comunicadores.
― Aurora, seus sinais vitais estão disparando. Você está em
perigo?
― Estou bem ― minto, mas ainda há um tremor em minha voz.
― Estamos quase na ponte ― diz Fin. ― Há um poço de elevador
aqui. Se não estiver bloqueado, podemos flutuar por todo o
caminho para cima, passando os níveis criogênicos.
Os níveis crio. Onde fui dormir, esperando acordar em um novo
mundo, com uma nova vida. Onde Tyler me encontrou, cercada pelos
cadáveres de todos com quem eu tinha saído. Meu coração está
batendo forte, meus ouvidos estão zumbindo e eu me faço falar.
― Eu vou... Eu quero vê-los.
― Be'shmai? ― Kal pergunta, me olhando incerto na escuridão.
― Se vou me lembrar... Se vou aprender alguma coisa,
provavelmente estará lá. ― eu engulo. ― Onde... Onde aconteceu.
Parece quase razoável saindo da minha boca. Como se eu
estivesse sendo científica sobre isso, em vez de estar sendo atraída
pelo lugar onde sobrevivi, como uma mariposa por uma chama. Não
quero contar aos meninos, não quero dizer nada que me faça
parecer maluca, mas todo o corredor ao nosso redor está vivo
agora. Cheio de gente correndo, rindo e conversando. Eu posso
senti-los. Eu posso vê-los. Eu posso ouvi-los.
Mas todos eles estão mortos. Ecos, impressos na nave como
velhas manchas de sangue.
― Quer que eu te acompanhe? ― Kal pergunta suavemente.
Eu aceno silenciosamente, olhando para as figuras ao meu redor.
Acho que não queria mais nada na minha vida.
― Garoto de Ouro? ― pergunta Fin. ― Não temos sinais de vida
aqui, e estarei apenas algumas centenas de metros acima deles.
Tudo bem para eu prosseguir para a ponte sozinho?
Há uma longa pausa antes de Tyler responder.
― Permissão garantida. Mas mantenha sua comunicação aberta o
tempo todo. Auri, Kal, quero atualizações constantes, entendido?
― Sim senhor ― Kal responde.
Com um grunhido de esforço, Kal abre as portas do elevador,
permitindo-nos empurrar para dentro. O poço é enorme e escuro,
estendendo-se desde os níveis superiores da nave, mas pelo menos
não há nenhum daqueles ecos fantasmagóricos aqui dentro. Nós
empurramos nosso caminho para cima, Fin liderando o caminho, Kal
perto de mim. Eu sei que é minha imaginação, mas enquanto
navegamos para cima, eu juro que posso sentir o calor de seu corpo
através de seu traje. Apesar dos ecos ao meu redor, posso me
lembrar de como ele se sentiu pressionado contra mim. E de alguma
forma, apenas o conhecimento de que ele está lá torna um pouco
mais fácil respirar.
Foco no trabalho, O'Malley.
― Ok, essa é a sua parada, crianças ― diz Fin alegremente,
apontando para uma porta no poço acima. ― Estarei a uma dúzia
de andares acima.
― Ligue se precisar de ajuda ― Kal avisa. ― E cuide-se.
― Sempre. ― ele olha para trás e para frente entre nós. Seus olhos
são ilegíveis através de suas lentes, mas seu sorriso com certeza
não. ― Não faça nada que eu não faria.
Kal abre a porta dos níveis crio de lado e eu toco as paredes,
sinto o som através do meu traje. Ele chuta para a escuridão
enquanto Fin segue para cima. Eu empurro meu caminho suavemente
para fora do elevador, seguindo Kal para o corredor.
As enormes portas para as abóbadas criogênicas surgem à
nossa frente, derretidas e transformadas em escória em algum ponto
por um raio quântico. Meu estômago está cheio de borboletas frias.
Posso ouvir vozes vazias, como se viessem de muito longe.
Minha luz corta um feixe fino através da escuridão além. Eu olho
para Kal, com cuidado para virar minha cabeça lentamente. Suas
tranças estão flutuando dentro de seu capacete, prata cintilante,
seus olhos se estreitaram na escuridão à frente. As linhas de seu
rosto são suaves e duras, suas maçãs do rosto tão marcadas que
poderiam cortar meus lábios se eu as beijasse.
Ele encontra meus olhos, e seu olhar é lindo, frio, alien. Mas por
trás disso posso sentir um calor, uma profundidade, como se ele
pudesse ver cada parte de mim. Isso me faz estremecer. Sem
palavras, ele estende a mão para Magellan amarrado ao meu
antebraço. Ele bate na minha tela, depois na sua.
― Ainda estamos monitorando o canal do plantel ― afirma. ― Mas
podemos conversar em particular agora.
―... Como você sabia que eu queria conversar?
― Seus olhos ― ele diz simplesmente. ― Eles falam.
― Não tenho... Nem certeza do que queria dizer ― admito.
― Quem poderia saber o que dizer em tal momento? ― ele
pergunta, apontando para a câmara crio além das portas derretidas.
― Este é o lugar onde o futuro do seu povo mudou para sempre.
Onde o seu futuro mudou para sempre.
― Pelo menos eu tive um futuro ― eu digo baixinho. Porque é isso
que está pesando em mim, fazendo meu coração bater tão forte,
secando minha boca até ficar difícil de falar. ― Eu saí daqui quando
ninguém mais saiu. O que era tão especial sobre mim que eu
merecia viver quando todas essas pessoas tinham vidas e
esperanças e famílias e histórias próprias, e eles não saíram?
A resposta de Kal é suave, solene.
― É difícil. Ser aquele que resiste.
E, claro, é quando me lembro de que todo o planeta de Kal foi
destruído. Que todo Syldrathi que ainda vive é, em última análise,
sem-teto, sem estado. E aqui estou eu, pronta para chorar por
apenas uma nave.
― Kal... ― eu começo.
― Eu sei o que você diria. ― ele me corta suavemente. ― Mas não
há comparação de perda, be’shmai. Eu não tive a intenção de fazer
isso. Só quis dizer que entendo o que você sente. E se eu pudesse
tirar sua dor, eu o faria.
Nós paramos nas portas do cofre e eu enrolo minha mão
enluvada na dele. Como sempre, há uma leve hesitação. Mas então
ele aperta sua mão em volta da minha como se fosse tudo o que ele
sempre quis fazer. Syldrathi realmente não toca – aprendi isso com
Magellan. Mas eu não posso evitar – eu preciso – e eu sei que Kal
está começando a gostar, então eu não me contenho. É uma forma
de nos comunicarmos quando as palavras nos faltam, como costuma
acontecer.
Ele olha para mim, ali no escuro, e posso sentir o quanto ele me
quer. Quase posso ver, a maneira como vi aqueles ecos – fios
invisíveis de ouro e prata em chamas derramando-se dele em ondas,
controlados apenas por medo de me queimar. Mas olhando em seus
olhos, percebo que quero que ele me queime. Eu quero senti-lo
pressionado contra mim novamente enquanto ele me coloca em
chamas. E eu sei que ele também quer.
Estamos tão longe no fundo do poço, para duas pessoas que
acabaram de se conhecer.
O momento é quebrado quando a voz de Fin estala nos
comunicadores.
― Bem ― diz o Gearhead do esquadrão. ― Eu tenho boas notícias,
crianças.
― Eiiiii, isso é uma mudança ― responde Tyler.
― Estou brincando. Na verdade, tenho más notícias e outras más
notícias.
― Pelo Criador, Finian... ― Tyler geme.
― Sim, eu sei, sou um personagem ― diz Fin. ― Então,
basicamente, alguém já esteve aqui e esculpiu a caixa preta direto
do chão.
― Brilhante ― suspira Tyler.
― Então, a caixa preta pode estar em qualquer lugar, é o que você
está dizendo? ― Scarlett pergunta.
― Hmm, nah ― diz Fin. ― Este foi um trabalho cirúrgico. As
leituras do meu uni estão marcando essas queimaduras com talvez
20 horas. Eu acho que os meninos do Hefesto o cortaram e o
guardaram a bordo do rebocador líder do comboio.
― Temos problemas ― diz Tyler
― Não há como alimentar esses consoles e procurar backup, e
eles estão derretidos em chakk de qualquer maneira. Dê-me um
minuto – vou olhar em volta, mas não estou otimista. Mesmo com
meu poderoso gênio em nosso canto.
― Kal? ― Tyler pergunta. ― Você ou Auri encontraram alguma
coisa?
Kal olha nos meus olhos.
― Podemos estar perto de algo. Espere.
Eu olho em seus olhos, esperando que ele entenda.
Eu não quero entrar lá. Eu não quero ver o que sei que preciso.
Mas eu tenho que controlar isso.
Eu posso fazer isso.
Ele aperta minha mão e acena com a cabeça uma vez. Ele fala
sem dizer uma palavra. E, sentindo-me mais forte, sentindo-me mais
com ele ao meu lado, finalmente reúno minha coragem e passo pelas
portas do crio-cofre.
Nós nos encontramos em uma de uma série de vastas câmaras,
alinhadas com tanques e mais tanques empilhados como
intermináveis filas de caixões. Todo o lado esquerdo da câmara foi
destruído, mas todos os cadáveres do lado direito ainda descansam
em paz. Eu me pergunto quem está aí. Onde estão os outros.
Flutuando em algum lugar atrás de nós, de volta onde a nave
naufragou, caindo sem parar na Dobra?
― Be'shmai? ― Kal diz, e eu percebo que estou apertando sua mão
com força suficiente para quebrar seus dedos.
Já estive aqui antes, nesta mesma sala. E de repente estou de
volta naquele momento. Estou na orientação, fazendo meu tour pela
nave. Uma senhora alegre com cabelo em um bob rosa como
algodão-doce está conduzindo um grupo de jovens através da sala,
ao longo das fileiras, fazendo piadas sobre como em apenas alguns
dias vamos tirar uma soneca de que precisamos tão
desesperadamente, o que com todos os preparativos para a viagem.
Rimos, alguns de nós nervosos – crio ainda era uma tecnologia
relativamente nova, a Dobra um lugar misterioso ― e com um clarão
repentino, como um relâmpago, nossa guia turística é um cadáver
ressecado. Todos ao meu redor estão mortos, a animação
desapareceu de seus rostos e eles começaram a flutuar para longe.
Posso sentir Kal me sacudindo, mas não consigo responder. Meu
corpo inteiro está zumbindo, como se houvesse um furacão
crescendo dentro de mim, e eu estou lutando para me controlar. O
espaço ao nosso redor está cheio de ecos, pessoas caminhando,
conversando, passando sobre nós e através de nós como se
fôssemos aqueles que não somos reais, mas mortos e esquecidos
há séculos.
Posso sentir o violeta profundo da mente de Kal agora, os fios de
ouro e prata tecidos através dela. Ele me disse que não achava que
tinha herdado nada de sua mãe Waywalker, como sua irmã herdou,
mas neste momento, eu sei que ele está errado. Seus fios de ouro
estão enterrados tão profundamente que não tenho certeza se ele
percebeu que eles estão lá. Mas eu me agarro a sua mente com o
azul meia-noite da minha, minha poeira prateada da luz das estrelas
girando em uma dança selvagem. Eu não consigo parar. Eu não
posso conter isso.
Eu tenho que conter.
EU TENHO QUE CONTER.
Eu não estou mais no corredor e ainda estou – com um flash de
relâmpago após o outro para anunciar cada mudança, novos lugares
são sobrepostos a ele. A nave é repentinamente envolvida pelas
vinhas do Ra'haam enquanto elas sobem na estrutura que contém os
criópodes. E então estou cega pelas luzes brancas da enfermaria na
Academia Aurora. Elas se transformam nas telas multicoloridas do
bar de esportes em Sempiternidade, onde Kal e Tyler lutaram contra
o Inquebrado. Em seguida, elas rodam no salão de baile subaquático
de Casseldon Bianchi. Eu ouço o rugido de seus convidados, de
dançarinos, o baque da música, e então esse ritmo se torna o som
de pés correndo.
O rugido se torna uma alegria e estou na pista de corrida em
casa, cercada por alunos do ensino médio. E então eles se
transformam em cadáveres ressecados e se desfazem em pó.
Posso sentir uma força crescendo dentro de mim, como uma
enchente contra uma represa. Vejo Cat se virando para mim,
estendendo uma mão, e então seus olhos piscam e ficam azuis, suas
pupilas se transformam em flores e ela grita. Vejo o Almirante Adams
olhando para mim pelo cano de uma câmera. Eu vejo Kal, vestido
com o mesmo traje espacial que ele usa agora, embora o Kal
verdadeiro ainda esteja bem ao meu lado. Uma visão. Um fantasma.
Um futuro. Ele levanta as mãos como se fosse se defender de um
golpe e então um tiro acerta-o bem no peito. Ele voa para trás com
um grito terrível.
― KAL! ― eu grito.
Eu ouço sua voz em algum lugar distante, tentando me levar de
volta para casa, de volta para os cofres crio, de volta para mim. Mas
a visão, o fantasma, o futuro Kal cai contra a parede atrás dele, um
buraco fumegante em seu peito e o furacão dentro de mim explode
em uma confusão de tristeza, raiva e medo.
Eu não consigo...
Eu
NÃO CONSIGO!
E eu sou puxada de volta para o meu corpo e finalmente perco
meu controle, e a força ruge para fora, furiosa em uma esfera
perfeita de destruição, Kal e eu no epicentro. As paredes do
Hadfield descascam e os criópodes ao nosso redor se desintegram,
os corpos caindo no vazio. O convés abaixo de nós desmorona e o
teto acima de nós é rasgado, luz prateada derramando para cima e
para fora do meu olho direito, brilhando como um farol.
― PELO CRIADOR, QUE PORRA FOI ESSA? ― Finian ruge.
Posso ouvir vagamente os outros gritando, o Hadfield tremendo
sobre mim e acho que Kal está se movendo, me rebocando com ele.
O poder está saindo de mim em inundações, a represa dentro de
mim quebrada, minhas mãos pressionadas contra as fendas que se
alargam.
A voz de Tyler penetra na névoa ao meu redor.
― Recuperação de emergência! Estou travando em seus faróis,
levando o Zero ao lado. Vão, vão!
Não consigo ver Kal – tudo que consigo ver é uma paisagem
rochosa e árida, a areia e os destroços de um cinza desbotado, as
sombras de um azul profundo, o céu acima sem vida e morto.
Nunca vi esse lugar, mas tudo que quero é ir para lá.
Os braços de Kal se fecham ao meu redor.
A visão se desvanece.
Tudo fica preto.
9
KAL

Tudo está sem som.


O casco do Hadfield descasca em uma esfera perfeita de azul
meia-noite, as abóbadas crio demolidas em um momento. Titânio e
carbite se dobram sob a força da onda de choque de Aurora, e eu a
seguro perto enquanto a barriga da poderosa nave é explodida de
dentro para fora. Fragmentos de plasteel, metal e vidro giram para
fora e para o sempre, e eu engato a unidade de propulsão a jato em
meu traje para nos manter firmes no olho da tempestade, esse caos
que minha be'shmai desencadeou, seu olho direito brilhando como
uma lanterna no escuro. E tudo isso, tudo isso, acontece em
completo e total silêncio.
― Kal, relatório! ― Tyler exige na comunicação. ― Finian, status!
― ESTOU BEM! ― Finian grita. ― MINHA CUECA NEM TANTO. O
QUE, EM NOME DO CRIADOR NOS ATINGIU?
― Aurora ― eu respondo, segurando-a com força. ― Os corpos,
estando aqui... Ela viu algo. Ela perdeu o controle.
― Você está bem? ― Tyler pergunta.
Como poderia ser diferente? Como posso ser menos do que
perfeito quando ela está em meus braços? Seu cabelo flutuando
solto sobre seu rosto na gravidade zero, cílios vibrando contra
bochechas sardentas. O brilho ofuscante em seu olho direito se
tornou um brilho fraco agora, quente como a luz do fogo contra a
minha pele. Eu conheço cada linha dela, cada curva, pressionando
meus dedos contra o visor de seu capacete e traçando a...
― Kal, relatório!
― Aurora está semiconsciente ― eu respondo. ― Ainda estamos
nos cofres criogênicos. O que resta deles, de qualquer maneira. A
segurança de Hefesto com certeza saberá que estamos aqui.
Ordens, senhor?
― Mantenha a posição ― diz Tyler. ― Estamos resgatando Fin,
então vamos atrás de vocês.
― Entendido.
E eu faço. Segurando firme, claro. Embalando Aurora no meu
peito. O Hadfield está uma ruína, o casco que nos rodeia está
totalmente dilacerado. O rebocador que nos puxa está tentando
desesperadamente diminuir a velocidade e o estresse de conter
nosso ímpeto continua a destruir o Hadfield. Um alarme do display
digital é projetado no interior do meu capacete, e posso ver as naves
de segurança de Hefesto fervilhando no escuro lá fora, visualizando
as transmissões em pânico voando entre elas.
Todas as chances de furtividade estão perdidas.
E ainda não temos a caixa preta pela qual viemos aqui.
― K-Kal?
Meu coração dispara enquanto ela fala e eu olho em seus olhos,
ônix e pérola, e sinto o universo desmoronar sob meus pés.
― Está tudo bem, be'shmai ― murmuro. ― Tudo está bem.
― O que a-aconteceu? ― ela sussurra.
― Seu poder. Você perdeu o controle.
― Me d-desculpe ― ela sussurra, olhando em lenta perplexidade
para o caos e a destruição ao nosso redor. Eu posso ver o sangue
acumulando em torno de suas narinas, vermelho brilhante, aderindo à
sua pele na gravidade zero. ― Eu pensei... Pensei que estava
melhorando nisso.
― Você está. ― eu olho para ela atentamente. ― Você irá.
Ela balança a cabeça.
― Eu vi...
― O quê, be'shmai?
Ela encontra meus olhos e sinto medo nela. Medo e tristeza, até
os ossos.
― Eu vi você... Se machucar. Muito.
Meu coração dá um salto e desejo que fique quieto. Warbreed
não teme a morte. Warbreed não teme dor. Warbreed teme apenas
nunca experimentar a vitória. Meu pai me ensinou isso.
―... Como? ― eu pergunto.
Ela balança a cabeça, estremecendo enquanto a nave continua a
se separar em torno de nós, os pilares falhando, as anteparas se
retorcendo. A totalidade da destruição que ela desencadeou deve
ser assustadora. Seu poder, aterrorizante.
Em vez disso, sinto apenas admiração.
― É... Nebuloso ― diz ela. ― Você levou um tiro. Você estava a
bordo de uma nave. Eu vi... Metal escuro. Dados difusos. Você...
Você estava vestido da mesma forma que está vestido agora.
― Ninguém vai me machucar ― eu sorrio. ― Com você ao meu lado,
sou inquebrável.
Ela balança a cabeça e sussurra:
― Kal, eu não estava ao seu lado.
― Kal, você me leu?
Toco meu uniglass para transmitir.
― Afirmativo, senhor.
― Pegamos Fin. Enviando coordenadas para o encontro. A
segurança está em cima de nós como uma erupção agora, então
estamos chegando ao topo. Zila irá guiá-lo.
― Você pode me ouvir, Legionário Gilwraeth? ― vem uma voz baixa
e calma.
― Sim, Zila, alto e claro.
― No momento, estamos sendo perseguidos por treze caças da
classe Scythe e dois cruzadores da classe Reaper, então não
poderemos reduzir a velocidade abaixo de 1.500 quilômetros por
hora, a menos que queiramos ser incinerados por seus mísseis.
― Entendido.
― Você tentará igualar nossa velocidade e interceptar o Zero,
fazendo uma aterrissagem na baía de carga enquanto voamos.
― A mil e quinhentos quilômetros por hora ― eu digo.
― Correto ― Zila diz, tão inexpressiva quanto.
― Entendido.
― É mesmo possível? ― Aurora pergunta, olhos arregalados.
― É mais provável que o Legionário Gilwraeth tenha sucesso do
que um ser humano. ― responde Zila. ― Os reflexos Syldrathi são
superiores aos Terráqueos. Se ele corresponder à velocidade de
Zero ao longo do eixo de perseguição, sendo X, e mantiver
velocidades abaixo de cem quilômetros por hora ao longo do eixo
de abordagem, sendo Y, eu calculo as chances de ele realizar esta
manobra com sucesso em aproximadamente seiscentos e–
― Obrigado, Zila, não precisamos de uma análise matemática
agora. ― diz Tyler. ― Kal, eu enviei a você a trajetória; apenas
queime o combustível de seu propulsor a jato com força e siga a
marca de Zila.
― Entendido.
― Você pode fazer isso, amigo. ― diz Tyler.
Eu olho para Aurora em meus braços e sorrio.
― Eu sei ― eu digo.
― Dez segundos, Legionário Gilwraeth ― Zila diz.
Aurora aperta a mandíbula e acena com a cabeça. Ela desliza os
braços em volta da minha cintura e meu estômago dá uma dúzia de
cambalhotas ao seu toque.
― Oito segundos.
Eu cerro os dentes, respiro fundo.
― Seis.
― Kal? ― Aurora diz.
― Quatro.
― Sim, be'shmai?
― Três.
Ela se inclina e pressiona seu visor no meu, como se fosse beijar
minha bochecha. Existem apenas alguns milímetros de viseira entre
nós. Hálito quente e suave embaçando o plasteel. O universo inteiro
está perfeitamente imóvel.
― Dois.
― Você consegue ― ela diz, encontrando meus olhos.
― Marca.
Eu engato meus propulsores, empurrando-os com força enquanto
decolamos pelos destroços do Hadfield. Movendo-me devagar no
início, eu nos guio passando por anteparas maciças e paredes em
desintegração, toneladas de metal, crescendo a uma velocidade
assustadora. Posso ver o Zero que chega como uma pequena
mancha verde em meu HUD digital, cercada por pontos escarlates
pulsantes, Aurora e eu representados como uma pequena mancha
branca.
Eu nos coloco através de uma tempestade turbulenta de detritos,
feixes de metal do tamanho de casas, rasgados como papel de
seda. Estamos nos movendo rápido agora – rápido o suficiente para
que qualquer colisão nos mate. O preto fora do casco do Hadfield
está sendo iluminado por explosões e traçadores, e posso senti-lo
dentro de mim. A única coisa que fui criado para ser, me esforçando
com o pensamento da batalha lá fora, de sangue sendo derramado.
I’na Sai’nuit.
Mas eu o empurro de volta. Longe.
― Segure-se em mim ― eu digo.
Aurora aperta, seus olhos fixos em mim com admiração. Tudo é
um caos sobre nós, uma tempestade retorcida de metal quebrado e
destroços enquanto o Hadfield continua a se desintegrar. Eu corro
por entre conduítes imensos, caindo de ponta a ponta, vinte
toneladas de escotilha passa cortando o preto a apenas um metro
da minha cabeça, o Zero se aproximando cada vez mais.
― Sua velocidade é insuficiente, Legionário Gilwraeth.
Eu vejo o Zero se aproximando, enferrujado e feio, mas voando
em nossa direção rápido e direto como uma lâmina. Eu vejo os
lutadores de Hefesto enxameando ao redor dela como vaga-lumes
no escuro. Eu ajusto o curso, seguindo o caminho delineado em meu
HUD, propulsor a jato em combustão máxima agora, voando para
cima em um arco suave para interceptar nossa nave, suas portas de
ancoragem abertas para nos receber, uma luz na escuridão. O fogo
rastreador se espalha silenciosamente pela noite e Aurora me aperta
com tanta força que é difícil respirar, meu coração batendo forte
contra minhas costelas.
― Estamos entrando ― digo simplesmente.
― EU VEJO VOCÊ! ― Tyler grita. ― MAIS ALGUNS SEGUNDOS.
― Alfa, ajuste o curso, zero vírgula quatro graus–
― Entendi, entendi!
― Eles não vão sobreviver!
― KAL, PUXA PARA CIMA!
Um borrão de metal enferrujado. Um brilho de luz primitiva. Uma
linda garota em meus braços. E ao nosso redor, silêncio. Eu vejo
isso em câmera lenta, o Zero aparecendo diante de nós, os
minúsculos momentos da minha minúscula vida piscando diante dos
meus olhos. Minha irmã e eu, de pé sob as árvores de lias com
nosso pai, treinando no Caminho das Ondas. O Inimigo Interior,
esticando-se e flexionando-se, florescendo como uma flor na terra
escura sob sua mão. Minha mãe, estendendo a mão para tocar meu
rosto, as contusões que compartilhamos trazendo lágrimas aos seus
olhos, suas palavras ressoando em minha alma.
Não há amor na violência, Kaliis...
― Chegando!
A luz aumenta e eu envolvo meus braços em torno de Aurora com
força enquanto voamos pelas portas abertas da baía. Eu bato em
meus propulsores para nos desacelerar, torcendo para protegê-la
com meu corpo quando atingimos a parede oposta. Meus dentes
mordem minha língua e meu cérebro estremece dentro do crânio
quando colidimos com a antepara e caímos no convés. Sinto a
vibração das portas do compartimento fechando atrás de nós.
Aurora está deitada em cima de mim, ofegando em meus braços.
Machucada. Sem fôlego.
Mas viva.
A gravidade está voltando e seu cabelo está caindo sobre seu
rosto, seu nariz manchado de sangue. Mas quando ela se levanta
para olhar para mim, ela ainda é a visão mais linda que já vi em
minha vida. A atmosfera voltou à baía e ela se atrapalhou com os
fechos de seu capacete, arrancando-o e puxando o cabelo de seus
olhos, brilhando em triunfo.
― Bolo sagrado, isso foi incrível! ― ela respira.
Ela está sorrindo, perplexa, maravilhada. Seus olhos estão
selvagens, delirando com o simples pensamento de que estamos
vivos, contra todas as probabilidades, vivos. E antes que eu saiba o
que ela está fazendo, ela estende a mão e puxa meu capacete
também.
― Você é incrível.
― Aurora–
E então sua boca está na minha, sufocando qualquer pensamento
ou palavra. Ela agarra meu traje e me puxa para mais perto,
suspirando em meus pulmões enquanto eu a aperto no meu peito,
quase forte o suficiente para quebrá-la. Ela é um sonho, viva e
quente em meus braços e eu queimo com a sensação dela, o cheiro
dela, o gosto dela. Ela é fumaça e luz das estrelas, ela é sangue e
fogo, ela é uma canção em minhas veias tão antiga quanto o tempo e
profunda como o Vazio, e quando eu a sinto se agitando contra mim,
o toque suave de sua língua contra a minha, ela quase me destrói.
Beijo.
É uma palavra tão pequena para uma coisa tão maravilhosa.
Nosso primeiro beijo.
Estou em chamas com a suavidade doce e urgente de sua boca,
a pressão afiada de seus dentes enquanto ela morde meu lábio, as
pontas dos dedos entrelaçando em minhas tranças. Seu toque é
enlouquecedor, há tanto peso nele para um de meu povo, tanta
promessa por trás dele, e não há nada para mim – absolutamente
nada – exceto a sensação dela em meus braços e a única palavra
que queima como um primeiro nascer do sol atrás dos meus olhos.
Mais.
Eu quero mais.
O impacto nos joga de lado, um alarme soando em toda a baía
de encaixe do Zero quando as luzes de emergência começam a
piscar. Nós nos separamos, os lábios de Aurora cortam e se
separaram dos meus, o gosto de seu sangue ainda na minha boca.
O convés estremece embaixo de nós.
― Vocês dois estão bem aí? ― Tyler pergunta pelo comunicador.
Eu olho nos olhos de Aurora e seu sorriso é o único paraíso que
eu já conheci.
― Estamos perfeitos ― ela sussurra.
― Bem, não quero apressá-los, mas eu poderia usar meu
especialista em combate aqui!
Eu pisco com força para limpar minha cabeça, desejando
respirar.
― Estamos a caminho, senhor.
Aurora sai de cima de mim e eu deslizo para cima, puxando-a
comigo. Eu não quero nada mais do que ficar aqui. Para afundar
lentamente na promessa não dita por trás daquele beijo. Mas o
perigo é tão forte quanto o fogo que ela acende dentro de mim. E
então pego sua mão e corremos juntos, mancando e
ensanguentados, pelo corredor principal até a ponte.
Scarlett levanta os olhos do console e pisca.
― Belo voo, Musculoso.
― Qual é a nossa situação? ― eu digo, deslizando para a minha
estação.
― Um dos cruzadores sofreu danos críticos no campo de destroços
do Hadfield ― relata Zila. ― Dez caças e o segundo cruzador ainda
em perseguição.
― Eles estão enviando um SOS ― relata Finian. ― Nossa
identificação de nave e filmagem de vídeo.
― ELES ESTÃO PENSANDO QUE SOMOS PIRATAS! ― Tyler
grita, apoiando-se fortemente em seus controles enquanto
ziguezagueamos pelo comboio ao redor. ― VOCÊ PODE
BLOQUEAR A TRANSMISSÃO DELES?
Fin balança a cabeça.
― Eles mandaram antes de eu embarcar. Eu não sou um fazedor de
milagres, Garoto de Ouro!
― QUALQUER PESSOA QUE ESTAVA NOS MONITORANDO
QUANDO SAÍMOS DA CIDADE ESMERALDA VAI SABER QUE
ESTAMOS NESTA NAVE! ― Scarlett grita sobre os alarmes. ―
TDF. GIA. NOSSOS COMPANHEIROS LEGIONÁRIOS.
CAÇADORES DE RECOMPENSA. ESTE SETOR VAI FICAR MAIS
QUENTE DO QUE MINHAS ROUPAS ÍNTIMAS QUANDO A
ARMADA CHEGAR À CIDADE!
― OBRIGADO, SCARLETT, NÃO PRECISO DE UM RELATÓRIO
DO STATUS DA SUA ROUPA ÍNTIMA AGORA! ― Tyler ruge.
― Quer dizer, eu poderia ouvir um pouco mais? ― Fin diz.
O uniglass de Aurora emite um bipe em seu bolso.
― O PRIMEIRO REGISTRO DE ROUPAS ÍNTIMAS HUMANAS FOI A TANGA,
UMA VESTIMENTA SIMPLES COMUMENTE USADA EM...
― MODO SILENCIOSO! ― Tyler grita.
O fogo rastreador rasga a escuridão ao nosso redor. Solto uma
rajada de nossos canhões traseiros e sou recompensado com um
clarão de fogo brilhante e uma explosão silenciosa. Os caças
respondem ao fogo, mas o flakscreen e os interceptores do Zero
são de última geração e ainda estamos à frente do grupo por
enquanto. Tyler não é o ás que Zero era, mas ele ainda é um piloto
impressionante, enviando-nos voando sobre as vastas extensões de
bronze dos abandonados ao nosso redor, ziguezagueando entre as
naves quebradas como um dançarino.
― Deixando a roupa íntima de lado ― diz Scarlett ― eu gostaria de
manter minha bunda dentro das calças, se possível. Devemos sair
daqui antes que apareçam problemas reais.
― Ainda precisamos da caixa preta ― indico. ― Se recuarmos
agora, não teremos outra chance de nos aproximar do comboio.
― Não sabemos onde está à caixa preta ― ressalta Zila.
― Como eu disse, eles provavelmente apenas o guardaram no
rebocador principal ― diz Finian.
― BEM, MÁS NOTÍCIAS, ELES NÃO ESTÃO DIMINUINDO A
VELOCIDADE PARA QUE POSSAMOS PARAR E VERIFICAR! ―
Tyler grita. ― E NÃO TEMOS MUITO TEMPO ATÉ QUE ESSES
CAPANGAS NÃO SEJAM OS ÚNICOS ATIRANDO EM NÓS!
Alarmes soam quando uma rajada de mísseis explode abaixo de
nós, esculpindo faixas pretas na pele de um abandonado. Meu pulso
está batendo forte, eletricidade crepitando na ponta dos dedos, uma
euforia feroz e ardente brotando dentro de mim – tanto com a
memória do beijo de Aurora quanto com a emoção da batalha ao
meu redor.
Eu me sinto invencível.
Inquebrável.
― Eu posso recuperá-la. ― eu me ouço dizer.
Scarlett pisca para mim, cabelo ruivo emoldurando olhos
incrédulos.
― Você está chapado?
― Kal... ― diz Aurora.
Estou olhando para meu Alfa, ainda curvado sobre seus
controles.
― Precisamos desses dados, senhor ― digo a ele. ― Se
perdermos nossa chance aqui, o comboio estará duplamente
protegido. E em menos de vinte e quatro horas, eles terão atracado.
Este é o nosso momento. Aproxime-me daquele puxador de chumbo.
Eu farei o resto.
Tyler arranca os olhos de suas exibições, encontrando os meus.
― Acredite, irmão. ― eu digo.
Ele aperta a mandíbula, mas acena com a cabeça.
― Vou nos aproximar o máximo que puder.
Já estou de pé, meu sangue aceso. Estou pegando um rifle
disruptor e uma bolha de cargas termex do armário de armas quando
Fin se levanta com um suspiro.
― Onde você está indo? ― Scarlett pergunta.
― Com ele.
― Sério, há um vazamento de CO2 aqui ou algo assim? ― ela diz,
olhando entre nós. ― Ou todos nós caímos com um caso de
heroísmo estúpido quando eu não estava olhando?
― Eu sou o Gearhead desta equipe. ― Fin dá de ombros e verifica a
integridade do traje. ― O Garoto Fada não reconheceria uma caixa
preta se ela caísse do céu, pousasse em seu rosto e começasse a
se mexer.
Ela faz uma careta.
― Presumo que sejam pretas? E, não sei, em forma de caixa?
― Bem, com liceeeeença, Srta. Scarcasmo ― diz ele, levantando a
sobrancelha ― Mas elas são laranja, não pretas. Facilita a
localização e recuperação em uma situação de acidente. Além disso,
eu já estou vestido. E não temos tempo para discutir.
Jogo outro rifle disruptor pela ponte e, com um gemido rápido de
seu exosuit recém-consertado, Finian o pega. Scarlett levanta as
mãos em resignação. Zila está agachada ao lado de Aurora,
verificando seus sinais vitais, limpando o sangue seco de seus lábios.
Eu encontro os olhos de minha be'shmai e posso ver o medo em seu
olhar. Eu posso ver o fogo. Eu posso ver a memória do nosso beijo e
a promessa por trás dele, e o pensamento de mais pairando no
infinito entre nós.
― Eu vou voltar ― eu digo.
― É melhor que volte ― ela diz.
Com um aceno de cabeça para Finian, estou correndo de volta
pelo corredor para a câmara secundária. Eu coloco meu capacete,
ativo meu display heads-up e observo a vista de fora do Zero
enquanto entramos e saímos rapidamente entre as naves do
comboio. Os sistemas de fogo automático em nossos canhões
ferroviários são bons o suficiente para manter os caças longe de
nossas caudas, embora não muito mais, e nossos interceptadores
podem manter os mísseis do cruzador à distância. Mas se mais
problemas chegarem – e certamente estão a caminho – estaremos
em desvantagem.
― Devemos ser rápidos ― digo enquanto Finian se embrulha na
câmara de descompressão ao meu lado.
― Não se preocupe ― diz o Betraskan, puxando o capacete. ― Só
estou fazendo isso para parecer impressionante. Eu não quero ficar
lá por mais tempo do que o necessário. ― ele encontra meus olhos
e sorri. ― Sim, sim, eu sei. Não sou muito guerreiro, Kal.
Olho para ele de cima a baixo, o rifle na mão, os pedaços de seu
exosuit embaixo do equipamento espacial. Ele é estranho, este
Betraskan. Uma concha de gume afiado, construída em torno de um
coração frágil cheio de tristeza. Na verdade, nós Warbreed temos
pouca compaixão pela fragilidade. Com sua deficiência, alguém como
Finian teria sido colocado de lado entre meus irmãos e irmãs –
jogado ao drakkan para que sua fraqueza não infectasse o resto da
cabala. Esse era o nosso jeito. Apenas os fracos buscam
misericórdia. E apenas os mais fracos o concedem.
Mas eu vejo a tolice disso agora. Eu vejo uma coragem em Finian
que outro Warbreed invejaria. Ele não pede nada, esse menino.
Nenhum favor. Nenhum alojamento. Ele vive cada momento de sua
vida com dor, mas ainda assim, ele vive isso. E ele permanece onde
outros teriam caído há muito tempo.
― Você parece um guerreiro para mim, Finian de Seel. ― eu digo.
Ele pisca com isso. Abre a boca como se fosse falar, mas–
― Aproximando-se do rebocador líder agora. ― relata Tyler. ―
Cento e cinquenta klicks e fechando. Vou chegar o mais perto que
puder, mas ainda estaremos chegando rápido.
― Entendido. ― eu olho para Finian. ― Você está preparado para
isso?
Ele acena com a cabeça, desliza os punhos nas restrições da
parede.
― Preparado.
Eu pressiono os controles da porta externa e, com uma breve
rajada de ar, o silêncio desce mais uma vez. Eu observo as naves do
comboio passarem por nós em um borrão, vejo as estrelas caírem e
girarem enquanto Tyler se abaixa e serpenteia através do fogo atrás
de nós. Eu posso sentir a beleza neste momento. A guerra em meu
sangue, desejando ser desencadeada.
Não há amor na violência, Kaliis...
Estamos nos aproximando do rebocador líder, seus motores
queimando intensamente, a escuridão ao nosso redor iluminada por
tiros de canhões e rajadas de mísseis. Eu vejo o nome
TOTENTANZ gravado em sua barriga. Eu aceno para Finian e
aciono meus propulsores, uma contagem digital diminuindo em
nossos HUDs. O Zero tece e rola, chegando cada vez mais perto, o
rebocador crescendo em tamanho até que se torna a única coisa que
posso ver.
Meus lábios ainda estão formigando de onde ela os beijou.
― Agora ― eu digo.
O Zero se afasta do rebocador líder no momento em que nos
livramos da eclusa de descompressão, e eu sinto o calor de seus
motores enquanto ele ruge silenciosamente acima de sua cabeça. A
escuridão infinita ao nosso redor está em chamas, os foguetes em
nossos propulsores em plena combustão para nos atrasar antes de
sermos jogados nos flancos do Totentanz. Posso ver nosso alvo bem
à frente – uma eclusa de ar terciária, logo abaixo da matriz do
propulsor principal. Saímos da escuridão, eu na frente, Finian logo
atrás, e meu coração troveja no peito.
Eu me inclino, envolvo minhas botas magnéticas, preparando
meus joelhos para o impacto. Meus propulsores estremecem
enquanto queimam, a desaceleração rápida arrastando minha barriga
na nave. Eu bato no flanco do Totentanz com força e minha bota
magnética direita desliza, mas a outra fica firme quando chego a uma
parada de quebrar-os-ossos logo abaixo da porta da câmara de
descompressão. Eu me viro e agarro Finian quando ele vem rápido
atrás de mim. Ele bate forte, xingando alto, e eu agarro seu traje
enquanto ele quase salta livre. Ele se debate, agarrando meu braço,
os olhos negros arregalados enquanto o vazio ao nosso redor se
abre, mas, finalmente, ele coloca suas botas no casco.
― Você está bem? ― eu pergunto.
Ele leva um momento para recuperar o fôlego, dobrado ao meio,
boquiaberto.
― Aquilo ― diz ele ― não foi minha ideia de diversão.
― Status do relatório! ― Tyler diz.
― Estamos seguros ― eu respondo, procurando na escuridão ao
nosso redor. Eu posso ver os enormes cascos do comboio fluindo
atrás de nós, avisto o fogo piscando distante enquanto o Zero
continua a iludir seus perseguidores. ― Preparando-se para entrar.
Os dedos de Finian dançam em seu uniglass, seus olhos se
estreitaram na tela.
― Rápido ― eu insisto.
― Você quer hackear isso, Garoto Fada, fique à vontade ― ele se
encaixa.
Cada segundo parece uma eternidade, cada momento que
passamos é mais um momento em que o SOS de Hefesto viaja mais
longe. A cada momento, ele acelera em direção a mais ouvidos:
caçadores de recompensas, a Força de Defesa Terráquea, o GIA,
minha irmã.
Mas, finalmente, com um pequeno sorriso de triunfo, Finian olha
para mim e acena com a cabeça. Sinto uma série de baques
pesados percorrendo o metal e me abaixo segurando a escotilha. Eu
puxo, as veias saltadas em meu pescoço enquanto arrasto a eclusa
de ar larga o suficiente para Finian se espremer dentro. Eu sigo
rapidamente, fechando a escotilha atrás de nós. Nosso Gearhead já
está trabalhando na escotilha interna enquanto a câmara pressuriza,
a gravidade e o volume retornando com força total, globos vermelhos
piscando, alarmes gritando.
― Eles sabem que estamos aqui ― digo.
― Acabamos de violar seus sistemas ambientais e abrimos sua
nave no espaço – é claro que eles sabem que estamos aqui!
― Mantenha a cabeça baixa ― digo a ele. ― E fique atrás de mim.
A escotilha interna estala, a porta se abre com um zumbido suave
e, imediatamente, uma rajada de fogo disruptor se espalha pela
câmara de descompressão. Eu empurro Finian para fora de vista
contra uma parede, me protejo atrás da escotilha enquanto as
partículas carregadas chiam e queimam. Outra explosão enegrece o
metal perto da minha cabeça, fazendo meu sangue latejar.
― VOCÊS SÃO LOUCOS? ― vem um grito.
― DÊEM O FORA DA MINHA NAVE! ― chora outro.
O Inimigo Interior está perto da superfície agora. Nadando logo
abaixo da minha pele.
Eles não são guerreiros, ele sussurra.
Eles são vermes.
Eu espero até que haja uma pausa no fogo, coloco minha cabeça
pela porta e volto novamente. Conto seis homens em um piscar de
olhos. Todos armados. Sem armadura. Meia proteção.
Quebre-os.
Eu saio para o corredor e eles passam do esconderijo para abrir
fogo. Eu tento passar para o lado de suas rajadas, sinto uma
explosão de partículas carregadas queimarem minha bochecha, todo
o universo se movendo em câmera lenta. E com seis toques no meu
gatilho, seis tiros curtos do meu rifle disruptor, todos estão caídos
sem sentido e babando no chão.
Acabou. Quase antes de começar.
Você deveria ter matado eles, ele sussurra.
A misericórdia é território dos covardes, Kaliis.
― Puta merda ― sussurra Finian, espiando pela capa. ― Aquilo
foi...
― Decepcionante ― eu digo. ― Venha. Devemos ser rápidos.
Pulando sobre a tripulação caída, corremos em direção à ponte.
10
FINIAN

Portanto, a ideia deste capitão de enviar todos que ele tinha foi
obviamente um erro, visto que Kal os deixou esparramados na baía
de embarque como um bando de cadetes em licença.
Quer dizer, eu ouvi que é o que acontece na licença da costa.
Obviamente, sempre sou um modelo de padrões acadêmicos.
No entanto, com toda a tripulação do Totentanz remetida à terra
dos sonhos por enquanto, o rebocador está sob o controle oficial do
Esquadrão 312, e a missão está ocorrendo exatamente de acordo
com o planejado. O que sempre me deixa nervoso. Claro que as
coisas ainda estão um pouco empolgantes para Tyler e a turma lá
fora, e há uma pequena questão de como, em nome do Criador,
vamos voltar ao Zero sem sermos vaporizados, mas como minha
segunda mãe sempre diz: uma coisa de cada vez.
Estamos na ponte e estou ocupado namorando a caixa preta do
Hadfield (que noto com satisfação que é laranja) e observando Kal
com o canto do olho. Se esconder uma paixão por Scarlett Isobel
Jones não fosse um trabalho em tempo integral, eu consideraria
seriamente adicioná-lo à lista dos sonhos. Eu entendo o que Auri vê
nele. Forte, silencioso, taciturno. Todas essas coisas boas.
Ele me pega olhando para ele e levanta uma sobrancelha
perfeita.
― Quanto tempo até que sua tarefa seja concluída? ― ele
pergunta, completamente sem romantismo.
― Estou trabalhando nisso, garotão ― digo a ele. E estou mesmo.
Estou enviando um fluxo de dados da caixa laranja no chão para o
meu uniglass, murmurando palavras doces para apressá-lo. A equipe
de resgate esculpiu o gravador de voo do pobre e velho Hadfield
com bastante nitidez, mas ainda assim, é um pouco assustador ficar
sentado ali no chão da cabine. Você sabe, pensando sobre o tipo de
situação para a qual foi construído e tudo...
Eu balanço minha cabeça para afugentar esse pensamento, o
que levará diretamente a nave fantasma cheia de cadáveres que
deixamos para trás, se eu não tomar cuidado, e em vez disso olho os
dados que estou roubando conforme eles passam. À primeira vista,
posso dizer que muitas das informações são de navegação, que é
exatamente o tipo que procuramos. Esperançosamente, isso
marcará o lugar onde algo estranho aconteceu com o Hadfield. E
Aurora.
Eu defino os fluxos de dados para criptografar à medida que são
armazenados, para que ninguém possa entrar neles, exceto eu. É
uma senha de ofuscação mimética de 64 dígitos – apenas uma
coisinha especial que criei na academia. Eu tinha muito tempo livre
por causa da minha vida social inexistente. Mas quem está rindo
agora, hein? Eu tenho essa criptografia matadora, uma nave espacial
de última geração e um grande amigo bonito que atira em pessoas
para mim sempre que eu quiser.
O que mais um menino poderia querer?
Como se para responder a essa pergunta, a voz de Scar soa no
meu fone de ouvido.
― Equipe de operações, temos um problema.
Os olhos de Kal se estreitam ligeiramente.
― Por favor, elabore.
― Embarcações de entrada ― relata Zila. ― Eles usaram
tecnologia de camuflagem para chegar perto, mas agora temos
recursos visuais. Existe pelo menos uma dúzia. Abordagem rápida.
― Alguém está respondendo ao SOS do Hefesto ― diz Scarlett.
Eu franzo a testa, mastigando os números na minha cabeça.
― Já?
― Eles devem ter estado muito mais perto da Cidade Esmeralda
para já ter chegado aqui. Que sorte a nossa.
Kal olha para mim, sua voz fria como gelo.
― Quanto tempo, Finian?
― Noventa segundos ― digo a ele, pedindo mentalmente que os
dados se movam mais rápido. Porque isso sempre funcionou.
― Estaremos prontos para recuperação em dois minutos ―
aconselha Kal.
A voz de Tyler interrompe.
― Entendido, nós podemos– oh, pelo Criador...
Estou prestes a pedir que ele elabore isso também, mas o som
de Kal amaldiçoando baixinho em Syldrathi chama minha atenção
para a matriz de monitores. Através da tela de visão frontal do nosso
rebocador, temos uma imagem desimpedida de meia dúzia de naves
de caça esguias e afiadas acelerando para dizer olá. Elas são
moldadas para serem furtivas, e meu coração cai até minhas botas
quando vejo uma delas casualmente executar uma corrida
metralhando que deixa três naves da segurança em ruínas,
destroços caindo lentamente no escuro.
Mais dos recém-chegados começam a se engajar, mísseis e
pulsos de fogo iluminando a escuridão. Em instantes, as naves de
segurança de Hefesto com as quais Tyler brincava de esconde-
esconde estão sendo simplesmente aniquiladas.
― Kal ― eu sussurro. ― Essas naves são...?
― Syldrathi ― ele responde, sua voz abaixo de zero.
― Mas elas são apenas interceptadores ― protesto. ― Elas são
muito pequenas para virem aqui sozinhas. Elas têm que estar com...
Eu olho para nossas câmeras traseiras, meu coração apertando
no meu peito.
― Ah merda...
Uma forma escura está pendurada na tela, iluminada por trás
pelo sol do sistema, apenas uma silhueta contra um disco vermelho
ardente. É grande, pontuda e a coisa mais foda que eu já vi. Toda
preta, com enormes glifos brancos pintados nas laterais em uma
escrita linda e furiosa.
Eles são os glifos do Inquebrado.
Uma pequena ruga se forma lentamente entre as sobrancelhas de
Kal, que está quase tão chateado quanto demonstra.
― O Andarael ― ele sussurra.
― Kal? ― Ty interrompe novamente. ― Você conhece esta nave?
Mas Scar responde por ele, já dois passos à frente.
― É a irmã dele.
Uma luz verde pisca aos meus pés e eu olho para baixo.
― Download completo ― digo baixinho, embora essa não seja mais
a nossa maior preocupação. Ainda assim, sou um legionário da
Aurora e tenho minhas ordens, então me ajoelho e começo a
trabalhar fritando a caixa preta – dessa forma, a única cópia de seus
dados agora será nossa. Apenas no caso de sairmos vivos para usá-
la.
Eu ouço uma explosão de estática no painel de comunicação do
Totentanz e, infelizmente, a ideia de sair vivo começa a parecer
muito menos provável.
― Olá de novo, Kaliis.
Kal encara inexpressivamente a luz piscando aguardando sua
resposta.
― Saedii ― ele murmura
Como um homem sonâmbulo, nosso Tanque cruza a cabine do
piloto até o transmissor. Eu olho ao redor da ponte, procurando por
qualquer coisa que possa nos ajudar. Uma caneca suja que diz A
MELHOR AVÓ DA GALÁXIA! está pousada na cadeira do copiloto. Uma
jaqueta do time de jetball está amassada no convés perto da
estação de navegação. Um par de dados felpudos está pendurado
acima da cadeira do piloto. Quando Kal fala, ele parece legal,
coloquial. Ele fala em Syldrathi, mas meu uni tem capacidade de
processamento sobressalente suficiente para executar uma tradução
para mim.
― Não esperávamos sua companhia tão cedo, irmã.
― Perdoe-me ― ela responde, seu sorriso audível. ― Você saiu
com tanta pressa que se esqueceu de fazer um convite, irmão.
― No entanto, aqui está você.
― Aqui estou eu ― ela ronrona.
―... Como?
― Kaliis, toquei na sua nave ― diz ela. ― Você está me dizendo
que você nem mesmo procurou pelo rastreador? Você se tornou
lento, suave e estúpido em sua pequena academia miserável. Eles
ensinam idiotice aí?
Os olhos de Kal estão fechados novamente. Assim como eu, ele
está imaginando o momento em que deixamos a Cidade Esmeralda.
Saedii se jogando no Zero, segurando por aqueles poucos segundos
preciosos antes de Ty derruba-la. Ela deve ter colocado um
sinalizador no casco. É por isso que o Inquebrado estava tão perto
quando o SOS foi transmitido pela segurança do comboio. Eles não
precisavam do pedido de socorro para saber onde estávamos.
― Saedii ― tenta Kal. ― Você perguntou e perguntou, e eu
respondi e respondi. Eu não quero participar dessa coisa que você
faz.
― Essa coisa que eu faço ― ela responde, sua raiva audível ―
quer você. Ele quer você.
Kal muda o transmissor para a posição desligada, matando sua
linha com Saedii por um momento para que ele possa falar com o
Zero.
― Tyler, você deve ir ― diz ele simplesmente. ― Agora.
Há um coro de protestos na linha do Garoto de Ouro, de Scarlett e
de Auri. Ty é quem prevalece, pelo menos por um momento.
― Não é uma opção, Kal.
O transmissor no painel ganha vida novamente.
― Nós hackeamos suas comunicações, então ainda posso ouvi-lo,
irmãozinho. E ninguém vai a lugar nenhum. Você vai se render às
tropas que estou enviando para a sua nave e seu esquadrão vai
atracar com Andarael.
― O que você poderia querer com a minha equipe? ― Kal
pergunta, e por um momento, ele soa incrivelmente Syldrathi. Como
se nenhum dos humanos a bordo do Zero pudesse ter qualquer valor,
qualquer coisa que valesse a pena atrasar sua jornada, mesmo que
por um minuto.
― Kaliis ― ela o repreende suavemente. ― Você não acha
adequado que sua irmã mais velha deseje ser devidamente
apresentada a be'shmai do irmão dela?
E há algo na maneira como ela fala – algo terrível e frio – que me
diz que ela não quer apenas insultar Kal. Que Auri também tem
algum valor para ela.
― Minha equipe não é da sua conta, Saedii. Solte-os e eu irei me
juntar a você.
Kal olha para mim e posso ver o pedido de desculpas em seus
grandes olhos violeta. Nós dois sabemos que, aconteça o que
acontecer com os outros, sua irmã não vai me deixar voltar ao Zero
antes que ele vá embora. E nós dois sabemos o que o Inquebrado
fará com minhas limitações físicas. Meu traje.
E partículas do Criador, isso é péssimo.
Mas também está tudo bem. Eu quero que eles vão. Eles são
meu clã escolhido e quero que vivam. Então eu respiro fundo, aceno
para ele silenciosamente.
Ele estende a mão para apertar meu ombro, completamente
alheio ao fato de que ele quase o esmaga.
― Kal. ― Aurora corta o canal. ― Kal, eu não vou te deixar.
Posso ouvir o medo em sua voz, a mágoa, a dor no coração. Eu
me aborreço com Kal e Auri sobre isso, porque ei, sou eu, mas não
estou cego para o quão perto esses dois estão crescendo. O quanto
ela significa para ele e o quanto ele está começando a significar para
ela. Eu me pergunto como seria se alguém se sentisse assim por
mim. Ter encontrado alguém que olhou para mim como ele olha para
ela. E sim, provavelmente é uma coisa estúpida estar pensando em
um momento como este.
É por isso que a vejo meio segundo tarde demais.
Uma figura na escotilha da ponte, apoiada com força contra a
porta, sangue escorrendo pelo nariz. Ela não é Syldrathi, eu percebo
– ela é uma da tripulação do rebocador de Hefesto que Kal derrubou
quando chegamos. Talvez a Melhor Avó da Galáxia. Talvez apenas a
fã de jetball. Seja ela quem for, parece que a morte se aqueceu, mas
de alguma forma ela se levantou e cambaleou para a cabine.
E ela está segurando um disruptor.
― KAL! ― eu grito, levantando minhas mãos como se elas
pudessem parar uma explosão.
Os olhos de nosso Tanque ainda estão na linha de comunicação,
o orador de onde as ameaças de sua irmã estão vazando. Mas ao
som da minha voz, ele se vira, puxando o disruptor em seu cinto. Ele
se move rápido – mais rápido do que qualquer Betraskan, qualquer
humano – mas ainda não rápido o suficiente. Ele me empurra para o
lado, seu dedo apertando o gatilho, assim com o silvo de navalha de
um disruptor transfigurado para Matar, o tiro dispara rasgando a
cabine zumbindo em meus ouvidos.
Meu coração afunda no peito enquanto vejo tudo se desenrolar
em câmera lenta.
Kal girando para o lado, tentando se esquivar da explosão.
O tiro acertou-o bem no peito.
Olhos violeta arregalados de dor, boca aberta em choque.
E então ele está voando, cuspe espirrando entre seus dentes à
mostra, para trás no painel de controle e se espatifando no chão. O
capanga de Hefesto cambaleia e cai com o tiro de retorno de Kal,
seu rifle fazendo barulho no convés. Posso ouvir nosso esquadrão
gritando em nosso canal, a irmã de Kal através da unidade de
comunicação do Totentanz, exigindo saber o que está acontecendo.
Mas não consigo encontrar minha voz.
Não posso fazer nada além de olhar para o buraco fumegante no
traje de Kal, marcado por marcas pretas de queimadura.
Bem sobre seu coração.
Mas apesar de todas as vozes, do choque, de uma forma que iria
agradar e definitivamente surpreender meus instrutores da academia,
meu treinamento de Legião começa.
Primeiro, assegure sua posição.
Isso é fácil – um olhar para a vovó me diz que a explosão de Kal
a deixou estúpida e ela está deitada inconsciente na passagem.
Em segundo lugar, emergências médicas.
Caindo de joelhos com um baque e tirando uma multi-ferramenta
de um recesso em meu exo, eu corto uma linha limpa no tecido do
traje de Kal e através do isolamento abaixo. Ele não se move o
tempo todo, e meu cérebro está evocando imagens de Cat em
Octavia – imagens de seus olhos azuis brilhantes, em forma de flor,
de sua mão estendida, da tristeza em seu rosto enquanto ela nos
observava ir embora.
Primeiro sete.
Depois seis.
Agora cinco?
― FINIAN, RELATÓRIO! ― Tyler grita.
De novo não, não, Kal também não, por favor, Criador, ele
também não...
― Fin, o que aconteceu? ― Auri chora.
― Kal foi atingido ― eu gerencio.
― Fin, não!
― Ele foi atingido...
Meu pulso está martelando em meus ouvidos, a boca seca como
poeira enquanto eu puxo o tecido do traje para o lado, esperando por
um jorro de um roxo profundo e quente ensopar minhas mãos.
Mas...
Mas não há nada.
Pisco com força, algo entre um soluço e uma risada explodindo
em meus lábios. Porque lá, sob o forro queimado do traje de Kal e o
tecido chamuscado de seu uniforme da Legião, louvado seja o
Criador, vejo que algo parou o pior da explosão. Minhas mãos estão
tremendo quando eu o puxo para fora do bolso da camisa,
observando as luzes do console brilharem na prata queimada, minha
boca aberta em admiração.
Aquela maldita caixa de cigarrilha...
Kal está inconsciente, talvez pela explosão, talvez por bater no
console. Ele vai ter um hematoma como prêmio quando acordar.
Mas ele está vivo.
Não posso dizer o mesmo para a pobre caixa da cigarrilha. Está
dobrada e aberta, e quando meu coração bate contra minhas
costelas, quando as vozes de meus companheiros de equipe
ressoam nos comunicadores, eu percebo que há algo dentro da
caixa.
― Finian, status! ― Tyler exige.
― Fin, o que está acontecendo? ― Auri chora.
― Está tudo bem ― eu informo, minha voz tremendo. ― Ele está
bem...
Eu separo a caixa, forçando minhas mãos a cooperar, embora a
adrenalina inundando meus nervos esteja tornando difícil para meu
exo compensar. Há um pedaço de papel dentro do metal amassado,
pequeno, quadrado, marcado com uma letra preta.
É uma nota.
Cinco palavras.
DIGA A ELA A VERDADE.
Dizer a quem?
Que verdade?
Ambas são boas perguntas. Mas, por enquanto, quando ouço
Saedii exigir nossa rendição novamente, conforme mais lutadores
Syldrathi se aglomeram no espaço ao nosso redor, enquanto ouço Ty
dar a ordem relutante para que eu me retire, meu cérebro os
empurra de lado em favor de uma muito mais convincente.
Eu viro a nota em minhas mãos trêmulas, arrastando respirações
trêmulas em meus pulmões. Tentando fazer as peças se encaixarem.
Porque, como o resto dos presentes no cofre do depósito, como o
Zero nas docas da Cidade Esmeralda, este bilhete está esperando
para ser encontrado desde que Kal e eu éramos crianças.
Então como, em nome do Criador, está escrito na minha letra?
11
SCARLETT

Lembre-se de Orion.
Essas são as duas palavras queimando em minha mente
enquanto Ty guia o Zero para a baía de ancoragem do Andarael. Eu
deveria estar preocupada com Kal. Preocupada com Auri.
Preocupada que o nome Andarael signifique “Aquela Que Mente com
a Morte” em Syldrathi. Eu deveria estar pensando no que vou falar
para sair dessa. Afinal, eu sou a Face da equipe. Estamos
desarmados – a única maneira de ficarmos claros aqui é a
diplomacia. Mas eu não consigo trazer meus pensamentos para o
problema em questão, não consigo pensar em nada para dizer,
espirituoso, atrevido, sexy ou outro.
Porque essas são as pessoas que mataram nosso pai.
Lembre-se de Orion.
Ele era um grande homem, nosso pai. Isso é o que todo mundo
disse a mim e a Ty. Essas foram às palavras repetidas
continuamente no funeral do senador Jericho Jones. Todos aqueles
diplomatas e chefes de estado, todos aqueles tipos de militares com
baús cheios de medalhas brilhantes. Eles disseram essas palavras
com seriedade. Eles diziam como se eles estivessem se referindo a
eles.
Capitão G. Capitão M.
Um grande homem.
O que acontece com os grandes homens é que eles geralmente
não são grandes pais.
Nunca conhecemos a mamãe. Ela morreu quando éramos jovens
demais para lembrar. E não é que papai não tenha tentado – ele
realmente tentou. Mas o problema era que todos queriam um pedaço
do grande Jericho Jones. E simplesmente não havia o suficiente para
todos.
A guerra Syldrathi contra a Terra durou vinte anos antes que Tyler
e eu entrássemos em cena, e papai havia sido soldado em doze
delas. Ele era do TDF, nascido e criado – um piloto ás que escapou
do cativeiro inimigo e liderou o rali em Kireina IV, onde a armada
Terráquea deteve uma armada Syldrathi com o dobro de seu
tamanho. Ele era literalmente um garoto-propaganda depois disso. A
Força de Defesa Terráquea realmente o colocou em seus anúncios
de recrutamento, olhos azul-gelo olhando diretamente para você
enquanto ele dizia: “A Terra precisa de heróis”. Um ano depois, ele
era um contra-almirante – o mais jovem da história do TDF.
Então Ty e eu aparecemos, e ele renunciou ao cargo.
Bem desse jeito.
Não era para criar seus filhos, com certeza. Um ano depois de
sair do TDF, papai concorreu ao Senado e venceu com uma vitória
esmagadora. Depois disso, ele estava sempre ausente. Mas Ty
apenas o idolatrava e eu não poderia estar realmente brava com
isso, não com o trabalho que meu pai estava fazendo. Porque,
apesar de ser o garoto-propaganda do TDF, Jericho Jones se tornou
a voz mais forte pela paz no Governo da Terra. O discurso
contundente que ele fez contra a guerra em 2367 ainda é ensinado
na Academia Aurora. Não consigo mais olhar nos olhos dos meus
filhos sem ver o mal em matar os de outras pessoas, disse ele, e
isso sempre me deixou meio furiosa, considerando o quão pouco
tempo ele realmente passou conosco.
Mas ver o maior herói da Terra defendendo a paz com os
Syldrathi ajudou a transformar o sentimento público contra a guerra.
Foi Jericho Jones quem iniciou as primeiras conversações de paz
reais com o governo Syldrathi, Jericho Jones quem organizou o
cessar-fogo em 2370. A guerra já durava quase trinta anos até
então. As derrotas que sofreram fizeram os Warbreed perder a
ascensão no conselho Syldrathi, e os Watchers e Waywalkers
estavam tão cansados do derramamento de sangue quanto nós. O
tratado foi desenhado. Todos estavam prontos para assinar.
E depois?
Lembre-se de Orion.
O Warbreed viu o tratado como uma desonra. Como fraqueza. E,
sob a liderança de seu maior Arconte, uma facção de Warbreed
atacou durante o cessar-fogo. Em desespero, o TerraGov ativou
seus reservistas para um contra-ataque.
Papai não pilotava um caça há anos. E ainda assim, ele atendeu
a chamada. Lembro-me dele beijando minha testa e enxugando
minhas lágrimas e nos dizendo que voltaria a tempo para o nosso
aniversário.
Em vez disso, uma pequena lata de alumínio voltou com suas
cinzas dentro. Lembre-se de Orion se tornou o grito de guerra
depois disso. Lembre-se de Orion era a chamada em cada pôster
de recrutamento, cada simcast, cada feed de notícias. “Lembre-se
de Orion!” berrou o próprio presidente no funeral de papai, logo
depois que ele contou a todos nós sobre o Grande Homem que
havíamos perdido.
Mas eu não perdi um Grande Homem em Orion. Eu perdi meu
pai. E por mais que eu desejasse que ele tivesse sido um pai melhor
do que o homem, pode apostar que eu me lembro.
Lembro-me que o Arconte que liderou o ataque de Orion se
chamava Caersan, mais tarde conhecido como Starslayer. E a
facção que ele liderava? Aqueles desgraçados tão apaixonados pela
ideia de guerra que não podiam suportar a ideia de viver em paz?
Lembro que eles se autodenominaram Inquebrados.
E agora estamos cercados por eles.
A baía de atracação do Andarael é grande o suficiente para vinte
Zeros caberem – a irmã mais velha de Kal está entre esses
maníacos, e sua nave é puro poder. A nave em si seria
impressionante se eu realmente me importasse, mas estou mais
preocupada com o pequeno exército de guerreiros Syldrathi
esperando por nós do lado de fora enquanto Tyler desliga nossos
motores. Ele está tentando se manter calmo, mas posso ver que a
ideia de se render a esses bastardos o está queimando tanto quanto
eu. Auri está com os olhos arregalados, mal reprimindo seu pânico –
ainda não sabemos o quanto Kal se machucou a bordo do Totentanz.
Mas sem ele a bordo, cabe a eu informar meu esquadrão.
― Ok, Kal disse que Saedii é uma Templária ― murmuro, saindo de
trás do meu console. ― O que basicamente significa que ela é a
comandante de uma nave de guerra importante na ativa. Você não
chega a esse posto no Inquebrado sem ser uma má notícia, de todo
modo.
― Entendido ― afirma Ty.
― Lembre-se, a maioria dos Inquebrados já pertenceu à Cabala
Warbreed como Kal. Warbreed respeita força. Proeza. Destemor.
Ty encontra meus olhos enquanto encolhe os ombros em sua
jaqueta do uniforme da Legião Aurora.
― Tenho plena confiança de que você será tudo isso e muito mais,
legionária.
Eu balanço minha cabeça.
― Você deve ser o único a falar aqui, Ty.
― Você é minha Face, Scar. Você foi treinada para isso. Não falo
Syldrathi tão bem quanto você, não conheço os costumes, eu...
― Você é nosso Alfa, Bee-bro ― eu digo. ― Se você quer que eles
o vejam como um líder, você precisa estar na frente e no centro. E
nossa família tem história com essas pessoas. Kireina IV foi a pior
derrota sofrida pelos Syldrathi em toda a guerra. Esses bastardos
vão se lembrar do nome do papai. ― eu encontro seu olhar, meus
lábios pressionados finos. ― E é o nosso nome também, Ty.
Ele aperta a mandíbula, respirando fundo. Posso ver papai em
seus olhos agora. A lembrança daquela caixinha de alumínio cheia de
cinzas chegando bem a tempo da nossa festa.
Feliz aniversário, crianças.
― Ok ― ele acena. ― Não vamos deixar nossos anfitriões
esperando.
Marchamos pelo corredor até o hangar principal, reunindo-nos na
rampa de carregamento. Zila está quieta como um túmulo. Eu olho
para Aurora, vejo sua mandíbula cerrada, o medo na posição de
seus ombros, a inclinação de seu queixo. Eu olho atentamente para
seu olho direito, mas não parece haver qualquer sinal de brilho lá,
nenhum indício de seu poder. Ainda assim, eu a vi rasgar o Hadfield
apenas com a força de sua mente e se ela perder o controle aqui...
― Você está bem, querida? ― eu pergunto.
― Eu disse a Kal ― ela murmura, tremendo e furiosa. ― Eu disse a
ele. Eu o vi se machucar em minha mente e ele ainda saiu correndo
como um idiota.
A mão de Tyler paira sobre o botão de liberação.
― Você não viu nada sobre o que está por vir, não é?
Ela balança a cabeça.
― E eu não quero olhar. Achei que estava... melhorando. Eu pensei
que tinha controle sobre isso, mas...
― Está tudo bem, Auri ― diz Ty, apertando a mão dela. ― Apenas
fique perto de mim. Tenho certeza de que Kal está bem. Nós vamos
sair dessa, ok?
― Você tem um plano? ― eu pergunto.
― Você tem? ― ele pergunta, encontrando meus olhos.
Dou um tapinha no logotipo do curso da diplomacia estampado
em minha manga: aquela florzinha em seu anel de ouro.
― Táticas não são meu departamento.
Ele sorri e balança a cabeça.
― Você pode querer praticar. Um dia, você poderá se ver fazendo
isso sem mim.
― Hoje não ― eu encolho os ombros. ― Então vá pega-los, Tigre.
Tyler aperta o botão de liberação e a porta se abre com um
zumbido eletrônico baixo. A rampa se estende até o convés do
Andarael, e posso ver que o interior é de metal escuro, brilhando
com uma luz vermelho-sangue. O design aqui é impressionante:
linhas elegantes e curvas suaves, tão graciosas quanto os cem
guerreiros Inquebrados que esperam por nós.
Seus rostos são etéreos e lindos, cabelos prateados ferozes e
cruéis amarrados para trás em uma variedade de tranças
ornamentadas. Cada um usa uma armadura tática preta lindamente
confeccionada, pintada com escrita Syldrathi fluente e decorada com
medalhas de batalha. Cada um carrega um rifle disruptor e um par
de lâminas de prata nas costas. Eles se posicionam em fileiras
organizadas, alinhando nossa saída para a baía. E esperando no
final, com aquela agonizante besta em repouso na curva perigosa de
seu quadril, está à irmã de Kal, Saedii.
Todos os Syldrathi são lindos, mas a boa aparência
definitivamente faz parte da família do nosso Sr. Gilwraeth. Ela
pode ser uma vadia má, mas Saedii é linda de morrer,
deslumbrantemente você-pode-ser-linda-mas-eu-sou-melhor-que-
você. Sua pele oliva é sem poros, sem defeitos. Seu longo cabelo
preto está penteado para trás em um rosto em forma de coração
que poderia derrubar um milhão de naves. Seus olhos são de um
violeta fumegante, emoldurados por aquela faixa perfeita de tinta
preta. Uma corrente de prata do que pode ser um polegar decepado
está pendurada em seu pescoço. Ela fala em Syldrathi, sua voz baixa
e musical, quase como se ela cantasse em vez de falar.
― Bem-vindo a bordo de Andarael, imundície humana.
E com um sorriso, ela arranca aquele agonizador de seu quadril e
atira direto em Auri.
Acontece em uma fração de segundo, quase rápido demais para
rastrear. Auri grita, levanta as mãos, mas antes que ela possa
invocar seu dom, as faixas vermelhas se enrolam em torno dela e
ganham vida. Seu grito ressoa pela baía enquanto ela cai no convés,
resistindo e se debatendo.
― AURI! ― Tyler grita. Ele cai de joelhos ao lado dela, toca seu
ombro e é recompensado com um choque crepitante de energia
agonizante.
Puxando a mão para trás com um assobio de dor, ele se levanta
e encontra uma centena de rifles disruptores apontados para seu
peito. Não estou muito preocupada com ele – Ty não é estúpido o
suficiente para acusar uma centena de assassinos Syldrathi
armados, e sua linguagem não vai ficar muito ofensiva, porque Tyler
Jones, Líder de Esquadrão, Primeira Classe, não fala palavrão.
Scarlett Isobel Jones com certeza fala, no entanto.
Em Syldrathi fluente, nada menos.
― O QUE HÁ DE ERRADO COM VOCÊ, SUA VADIA LOUCA? ―
eu grito.
― Você fala a nossa língua. ― os olhos de Saedii brilham enquanto
ela me olha de cima a baixo. ― Um truque divertido, pequenina.
Tyler fala em seu travado e quebrado Syldrathi.
― Nós... Somos o tratamento exigente... Convenções sob...
Saedii olha para ele, franzindo os lábios.
― Você, no entanto, é menos divertido.
― Não estamos aqui para te divertir, fadinha vadia ― digo.
― Talvez você deva repensar essa estratégia, Terráqueo ― diz ela.
Saedii estende o braço e faz um som sibilante no fundo da
garganta, e ouço o bater de asas como couro. Uma criatura cai de
uma viga acima e desce pela baía. É mais ou menos do tamanho de
um gato, reptiliano, com largas asas de morcego e uma longa ponta
de cauda em forma de serpente com alguns ferrões de aparência
cruel. Isso me lembra muito o dragão de pelúcia de Cat, exceto que
é preto e elegante, em vez de verde e fofo. A besta pousa no
antebraço de Saedii e treme, piscando para nós com olhos
dourados.
Saedii sussurra para ele; esfrega o nariz em sua orelha longa e
afilada e ronrona. Tirando o cabelo do ombro, a fadinha vadia desce
a linha de guerreiros em nossa direção. Ty está tenso ao meu lado,
os punhos cerrados quando ela para na nossa frente. Aurora ainda
está deitada de costas, choramingando e convulsionando dentro
daquelas faixas vermelhas crepitantes.
― Meu Alfa está exigindo tratamento justo sob o Acordo de Jericho
― eu digo, -― conforme assinado pelo governo Terráqueo e o
Conselho Interno de Syldra em 2378.
Saedii é tão alta quanto Ty, então quando ele encontra os olhos
dela, eles estão quase nariz com nariz.
― Seu Alfa deve fazer suas próprias exigências.
― Exijo apenas um tratamento sob o Acordo de Jericho ― diz Tyler,
seguindo meu sotaque e padrões de fala perfeitamente. ― Conforme
assinado pelo governo Terráqueo e pelo Conselho Interno de Syldr–
― O Conselho Interno de Syldra queimou junto com a própria Syldra
― responde Saedii. ― Não respeitamos o seu governo lamentável,
nem o seu tratado patético. ― ela se inclina para perto, olhando para
Ty, olho no olho. ― Nós nascemos com nossas mãos em punhos,
pequenino. Nascemos com gosto de sangue na boca. Nós nascemos
para a guerra.
― Inquebrado. ― os guerreiros ao nosso redor dizem, todos como
um. E eles não gritam como os tontos do TDF em algum desfile. Não
latem como seus idiotas típicos de uniforme. Eles murmuram,
reverentes, como se a própria palavra fosse uma prece.
Saedii estende uma mão esguia. Tão perto, posso confirmar que
as protuberâncias desidratadas na corrente de prata em volta do
pescoço são definitivamente polegares.
― Seus uniglasses. ― ela diz, fria como gelo.
Tyler encontra seu olhar e não se move. Ainda posso sentir o
chute que ela deu em seu criador de bebês ecoando fracamente em
nosso código genético compartilhado. Saedii toca a lateral de seu
agonizador e, aos nossos pés, Auri arqueia as costas e grita.
― Ela canta docemente. ― o sorriso de Saedii é frio como o preto lá
fora. ― Eu posso ver por que Kaliis pode se rebaixar em seu templo.
A coisa dragão se enrola no braço de Saedii. Auri grita
novamente. A expressão da Templária do Inquebrado é calma, seu
rosto lindo e terrível.
― Cada momento que vocês desperdiçam, ela vai cantar mais,
pequeninos.
― Ela quer nossos unis ― eu explico.
Tyler olha para mim e acena com a cabeça, e nós alcançamos
nossas jaquetas e os entregamos. Saedii os joga para outro
Syldrathi próximo – um homem alto e esguio com uma cicatriz funda
em uma bochecha e um cordão de orelhas Syldrathi cortadas e
penduradas em seu cinto. Ele os pega e se curva.
― Onde está meu irmão, Erien? ― Saedii pergunta a ele.
― Nossos adeptos o prenderam junto ao Betraskan, Templária ―
responde o tenente. ― Eles estão a bordo de um ônibus espacial a
caminho de Andarael.
― Seus ferimentos?
― Fui informado de que ele se recuperará, Templária.
Saedii acena com a cabeça, fria e indiferente.
― Leve-o ao médico quando ele chegar, veja se ele precisa. Leve
esta aqui, ― ela gesticula para Auri ― para as celas de retenção e
sede-a até a morte. Se ela acordar antes de estar na posse do
Arconte Caersan, ficarei descontente.
― Sua vontade, minhas mãos, Templária. ― ele se curva, olha para
mim e Ty. ― E esses?
Ela nos examina com os lábios franzidos. A coisa dragão treme
novamente, batendo as asas e lambendo o lóbulo da orelha de
Saedii com uma longa língua rosa.
― Não temos tido muito tempo para esportes ultimamente, certo? ―
ela diz. ― Devíamos dançar no sangue para celebrar o retorno do
meu irmão. Então, quando o Betraskan chegar?
Ela encontra meus olhos e encolhe os ombros.
― Jogue-os todos para o drakkan.

·····
Não sou uma aficionada por naves espaciais, mas tenho feito
minha parte. Junkers e cruzadores, caças e destruidores. Um dos
meus namorados tinha seu próprio iate estelar e me levou em um
cruzeiro de Talmarr IV a Rigel no meu aniversário de dezessete anos.
Sua nave tinha seu próprio salão de baile, completo com uma
orquestra de trinta instrumentos.
(Pieres O'Shae. Ex-namorado nº 30. Prós: Alto. Rico. Bonito.
Contras: Muita. Língua. No. Beijo.)
Ainda assim, não me lembro de estar em uma nave que tinha uma
arena antes.
Ela está localizada nas entranhas da nave, afundada cerca de
dez metros no convés. As paredes são do mesmo metal escuro que
o resto do Andarael, iluminadas por globos carmesim, marcadas
com o que podem ser marcas de garras. O chão da arena está cheio
de milhões de pedras lisas e brilhantes e torres altas e retorcidas de
metal escuro e afiado. Arquibancadas compridas são dispostas em
anéis concêntricos, olhando para o poço abaixo.
Nós marchamos sob a mira de um rifle, centenas de guerreiros
do Inquebrado tomando seus lugares de acordo com a classificação.
Eles são homens e mulheres, todos armados, todos lindos, todos
usando as três lâminas cruzadas da Cabala Warbreed em suas
sobrancelhas. Eles possuem a tradicional arrogância Nós Somos
Melhores que Você, que torna as fadas tão divertidas de se ter nas
festas. Mas posso sentir um tremor de antecipação fluindo por eles
também. Uma ânsia pela violência e derramamento de sangue por
vir.
Saedii toma seu lugar em uma varanda, reclinada em uma cadeira
semelhante a um trono, as costas feitas de três lâminas cruzadas.
Seu animal de estimação está sentado em seu ombro, observando
com olhos dourados brilhantes. Uma pequena legião de guardas
espreita ao seu redor como belas sombras.
As fadas nos levam até a borda, em uma ampla prancha que fica
pendurada um pouco além do poço. Eu ouço uma comoção atrás,
viro para ver Finian sendo conduzido até nós, cercado por mais
Syldrathi. Ele parece um pouco desgrenhado, mas quase ileso, e
dou-lhe um abraço forte e um beijo rápido em sua bochecha.
― Você está bem? ― eu pergunto.
Nosso Gearhead espia em torno da multidão da arena, para
dentro do fosso abaixo de nós.
― Você quer dizer, além do fato de que estou prestes a ser comido
para o entretenimento dessas pessoas? Sim, estou cem por cento,
Scar.
― Touché, Sr. de Seel. ― eu sorrio. ― Como está o Kal?
― Ele está bem. ― Fin franze a testa, pensativo, como se de
repente não tivesse certeza sobre isso. ― O estojo de cigarrilha que
Adams deu a ele... parou o tiro. Como Adams sabia...
― Como isso é possível? ― eu pergunto, perplexa.
Tyler intervém antes que a especulação possa começar, cortando
para a parte importante como sempre.
― Você tem os dados da caixa preta, certo?
Fin acena.
― No meu uni. Eles confiscaram, mas criptografei a informação o
máximo que pude. Eles terão um tempo para quebrá-la sem limpá-lo
completamente.
― Bom trabalho, legionário.
Fin balança a cabeça com o elogio, olha para o poço e engole em
seco.
― Então, alguém sabe alguma coisa sobre esse drakkan para o qual
estão nos jogando?
Eu encolho os ombros.
― Eu dormi durante a xenobiologia.
― Alguma chance deles serem alérgicos a Betraskan?
― Ali. ― Ty aponta para o ombro de Saedii. ― Aquilo é um drakkan.
― Oh. ― Fin franze a testa para o pequeno réptil de escama escura
enrolado em torno da garganta de Saedii. Ela enfia a mão em uma
tigela ao seu lado e joga para a coisa um pedaço de carne irregular,
que estala no ar com dentes minúsculos e afiados.
― Ohhhh ― eu digo, iluminando-me consideravelmente.
As sobrancelhas pálidas de Fin se unem em uma carranca.
― Hum, não sou de julgar o desempenho com base no tamanho,
mas não é um pouco... Pequeno?
Saedii se levanta e mantém as mãos erguidas, matando nossa
discussão. Ela olha ao redor para os outros adeptos, irradiando uma
vontade sombria e imperiosa, até que suas conversas murmuradas
vacilam, até que os sussurros param, até que o único som é o
tamborilar baixo dos motores e as batidas do meu coração.
Uma vez que a arena está perfeitamente quieta, ela fala em
Syldrathi e eu traduzo suavemente.
― Aquele que estava perdido foi encontrado. ― diz ela. ― Em
agradecimento ao Vazio pelo retorno do meu irmão, devemos cantar
a canção da ruína e dançar a dança do sangue. Devemos festejar no
coração de nossos inimigos, para que a força deles se torne nossa.
Ela aponta para a cova, para uma mulher Syldrathi alta de pé ao
lado de um painel de controle na parede abaixo de nós. Os lábios de
Saedii se curvam em um pequeno sorriso.
― Solte o drakkan ― ela diz.
A mulher aperta um botão. O chão no coração do poço racha e
se estilhaça, repentinamente, violento, revelando um covil mais
profundo abaixo.
E dele vem um rugido estridente e profundo.
― Isso ― eu sussurro. ― não parece pequeno.
Os Inquebráveis ao nosso redor começam a bater os pés,
solenes, o tempo todo, e meu coração afunda no estômago enquanto
uma criatura sai do covil com as garras. Tem vinte metros de
comprimento, sinuoso, reptiliano, preto como a meia-noite – uma
versão muito maior e mais raivosa da besta no ombro de Saedii. Ele
joga a cabeça para trás e urra, as presas brilhando na luz escarlate,
e sinto aquele rugido em meu peito. Suas garras são tão longas
quanto meu braço. A ponta afiada em sua cauda é tão longa quanto
o resto de mim.
― Pelo Criador, nós vamos morrer. ― sussurra Finian.
Tyler olha para mim, sua mandíbula cerrada, seus olhos
arregalados enquanto ele procura por alguma maneira de sair disso.
Ele é um gênio tático, meu irmão mais novo. Por mais que eu o
provoque sobre isso, por mais irritante que eu seja com ele, seus
planos sempre nos guiaram. E embora eu não seja religiosa, estou
perigosamente perto de orar ao Criador para que Ty tenha algo na
manga.
Os lábios de Saedii se abrem em câmera lenta e meu coração
para quando ela começa a falar.
― ESPERE! ― Tyler ruge.
O trovão da batida dos pés diminui um pouco. Saedii olha para
Tyler e inclina a cabeça, como se ele fosse um cachorro que de
repente aprendeu a falar.
― Scar, traduza para mim. ― murmura Ty. ― Tudo que eu digo. Isso
é uma ordem.
Sua voz é de ferro, seus olhos são gelados e, por um segundo,
posso ver tanto papai nele que me dá vontade de chorar.
― Ok. ― eu digo suavemente.
Tyler se vira para Saedii, de braços abertos. Eu traduzo enquanto
ele fala.
― Meu nome é Tyler Jones. Eu sou filho de Jericho Jones!
A quietude cai sobre a arena com isso, o nome de papai
ondulando entre os guerreiros como uma chama. Como eu disse,
eles também se lembram do Grande Homem aqui.
― MEU PAI LUTOU CONTRA SEU POVO POR ANOS NA
GUERRA! ― Tyler grita. ― ELE DERRAMOU O SANGUE DE SEUS
GUERREIROS AOS MILHARES. E O SANGUE DELE CORRE EM
MINHAS VEIAS.
O silêncio é total agora, uma raiva sutil e ardente refletida
naquele mar de olhos violetas. Eles se lembram da derrota que
nosso pai liderou em Kireina. A vergonha a que toda a sua cabala foi
submetida depois daquela perda.
Ty olha para Saedii, sua mandíbula quadrada, olhar estreito.
― Eu sou o comandante deste esquadrão. Eu lidero e eles seguem.
Seu irmão entre eles. Minha irmã não é uma guerreira. Minha
tripulação não é guerreira. Então, se alguém tiver que ser jogado
naquele buraco, sou eu e apenas eu. O filho de Jericho Jones não
precisa de ajuda para fazer uma bolsa de algum lagarto.
Eu vacilo com isso, meus olhos no meu irmão.
― Ty...
― Você disse que essas pessoas respeitam o destemor ― ele diz
baixinho, ainda olhando para Saedii. ― Isso é o mais destemido que
eu consigo. Diga a eles, Scar.
Eu traduzo, vejo os olhos de Saedii se estreitarem com as
palavras de Ty.
― Eles não ― diz ele, apontando para o peito. ― Apenas eu.
A Templária do Inquebrado se recosta em seu trono, uma unha
negra traçando a linha de sua sobrancelha. Seu bebê drakkan
envolve o rabo em seu braço e treme em seu ouvido. Mamãe
Drakkan berra em resposta:
― SE VOCÊ DESEJA MORRER SOZINHO, TERRÁQUEO ― diz
ela. ― QUE ASSIM SEJA.
Saedii acena com a cabeça para os guardas ao nosso redor e
antes que eu possa realmente protestar, eles estão nos arrastando
de volta para fora da prancha. Eu grito quando a batida começa
novamente, um trovão crescendo com a pulsação em minhas
têmporas. Ty é meu irmão caçula, a única família que me resta. Eu
sou sua irmã mais velha – eu deveria estar cuidando dele.
― TYLER!
O guerreiro Inquebrado que permaneceu com Tyler entrega a ele
uma pequena lâmina ornamentada de seu cinto. A faca mal é grande
o suficiente para cortar um pão, então o que ela deveria ser contra
uma máquina de matar de 20 metros está além da minha
compreensão. A guerreira Syldrathi no fosso abaixo pressiona os
controles novamente e as portas do covil do drakkan se fecham. Ela
foge para fora do poço enquanto a besta ronda embaixo de nós, seu
rugido sacudindo o convés sob meus pés. Meu estômago vira e rola
dentro de mim. Fin se abaixa para apertar minha mão. Ty olha para
mim e pisca.
― JOGUE-O LÁ DENTRO! ― Saedii grita
O guerreiro levanta a mão, mas Ty já está se movendo, pulando
na cova ao invés de ser jogado fora de equilíbrio e agarrado antes
que ele possa reagir. Suas botas esmagam as pedras e o drakkan
ruge.
Suas asas devem ter sido cortadas, porque ele na verdade não
voa, em vez disso, salta no ar e desliza para baixo em direção a Ty
com sua boca aberta.
Ty já está se movendo, rolando atrás de um daqueles estranhos
afloramentos metálicos. A criatura cai no chão onde ele estava um
momento antes, chicoteando em direção a ele com um berro de
raiva, pescoço comprido se desenrolando como uma cobra ao
atacar. Mas meu irmão está se movendo novamente, rolando,
usando as barricadas para se proteger, esquadrinhando
desesperadamente a arena em busca de uma saída disso.
― TYLER, CUIDADO! ― eu grito.
Eu não posso acreditar que isso está acontecendo – não parece
real, os pés batendo e rugidos trêmulos lavando sobre mim em
ondas sombrias terríveis. Ty é rápido, ágil, treinado pelos melhores
da academia no combate corpo a corpo. Mas a coisa que ele está
lutando nem tem mãos. Ele salta no ar novamente, sobre a cabeça
de Ty, sua cauda farpada esmagando-se na terra enquanto meu
irmão rola para o lado. Ele ataca com braços longos, cortando
pedaços de metal – e, sim, aparentemente essa coisa corta metal
com suas garras.
Fragmentos espirram nas pedras, alguns do tamanho da cabeça
de Tyler. Ele balança com a cauda, colidindo com Ty e fazendo-o
voar pelo ar, caindo nas pedras brilhantes enquanto eu grito
novamente. Meu irmão se levanta, uma mão segurando suas
costelas enquanto ele tropeça para longe de outro golpe. Posso ver
sangue em sua testa agora, respingado em seus lábios. Eu posso
ver o quão horrivelmente, irremediavelmente derrotado ele está.
Um golpe direto e vou perder a única família que me resta.
Eu olho ao redor para os Syldrathi, a raiva crescendo em meu
peito.
Como eles podem simplesmente sentar e assistir isso?
Na verdade, não há apenas isso. Eles estão torcendo. Eles estão
assistindo a este jogo mortal unilateral e se deleitando com isso.
Onde está à honra nisso?
Como isso pode ser justo?
Eu olho para Saedii e juro para mim mesma, juro sobre o túmulo
de papai, se algo acontecer com meu irmãozinho...
Eu vou matar você, vadia.
Tyler está ficando sem espaço, sem fôlego, sem movimentos –
parece que aquele último golpe com o rabo o machucou muito. O
drakkan ataca, todo tendão e músculos, rápido como uma serpente.
Tyler salta para frente, desesperado, mergulhando sob o arco de
suas mandíbulas em direção ao centro do poço, derrapando de
estômago ao longo daquelas pedras lisas e brilhantes.
O drakkan se contorce e salta no ar, suas asas travadas abertas,
meu irmão abaixo dele. Tyler está agarrando o chão, tentando ficar
de pé, levantando sua pequena faca em desespero. Estou pensando
que talvez Ty tenha se manobrado por baixo dele para golpear sua
barriga, mas aquela faca nada mais é do que um palito de dente.
O drakkan grita em triunfo e desce.
Tyler rola e arremessa a lâmina – não para cima na barriga da
besta, como eu pensava, mas através do poço. Por um segundo eu
acho que ele perdeu todo o seu sentido, que ele desperdiçou a única
arma que tinha, que ele acabou de se matar com certeza.
Mas então eu vejo a lâmina caindo, formando um arco, uma ponta
a outra – um lançamento perfeito e bonito que a envia voando com o
punho para o painel de controle na parede.
Ty já está de pé, mergulhando para frente quando as portas do
covil do drakkan se abrem. O drakkan berra quando o chão se abre
abaixo dele, batendo suas asas inúteis enquanto cai de volta para o
cercado de onde saiu rastejando. A coisa bate no chão com um ruído
estrondoso, seu grito de raiva ecoando no metal. Meu coração está
subindo em minha garganta, meus olhos estão arregalados. Mas
Tyler está de pé, atacando desesperadamente, pequenas pedras
voando enquanto ele salta, o braço estendido em direção aos
controles no momento em que o monstro salta para fora de seu covil.
É uma corrida: Tyler contra drakkan, humano contra monstro, fome
feroz contra a vontade desesperada e indomável de sobreviver.
Tyler vence.
A besta salta, rugindo. As portas se fecham. As bordas pegam o
drakkan através de suas costelas conforme ele sobe, e os
Inquebrados estão de pé, alguns deles até gritando em consternação
quando as portas do cercado esmagam as costelas do drakkan,
sangue escorrendo de sua boca enquanto ele se debate e sacode.
Tyler dá alguns passos à frente, ofegante, ensanguentado.
Assistindo a besta se debater em agonia, arranhando o metal que a
está esmagando. O drakkan é espancado, mas não está morto, e
seus gritos me fazem mal ao estômago enquanto ele tenta se soltar,
o fedor de sangue preto enchendo minhas narinas.
Um flash crepitante queima o ar, um tiro mortal de um rifle
disruptor atingindo o olho do drakkan. A besta se debate mais uma
vez e então desaba. A arena inteira está quieta, as legiões de
Inquebrado chocadas e consternadas. Eu olho para cima e vejo
Saedii, de pé agora com um rifle disruptor em seu quadril. Ela está
olhando para o meu irmão, seu rosto uma máscara perfeita e ilegível.
Meu coração está batendo forte, minha barriga cheia de
borboletas. Warbreed respeita a destreza na batalha acima de
qualquer outra coisa, mas eu honestamente não sei como isso vai
acabar. Afinal, Ty acabou de matar o animal de estimação dessa
vadia louca.
Saedii aponta seu rifle para a cabeça de Tyler. Ele olha para ela,
ensanguentado e desafiador. Basta apertar o gatilho.
― Talvez ― ela finalmente diz ― você me divirta um pouco, afinal.
Eu suspiro de alívio, ombros caindo, meu corpo inteiro
murchando. Saedii se vira para seu tenente e acena com a cabeça
em nossa direção.
― Leve-os para o nível de detenção. Prenda-os com força.
― Sua vontade, minhas mãos, Templária ― ele responde. ― E o
Alfa deles?
Saedii olha para Tyler com os olhos apertados.
― Alimente-o e tratem de suas feridas. ― ela franze os lábios, joga
as tranças para trás dos ombros. ― Então o mande para meus
aposentos. Desejo interrogá-lo pessoalmente.
O tenente se curva e o guerreiro Inquebrado se apressa em
cumprir as ordens de sua senhora. Eu olho para Tyler lá embaixo no
poço, não posso deixar de sorrir e balançar a cabeça enquanto ele
olha para mim e pisca, apalpando o sangue em sua boca. Então, um
punhado de lindos capangas estão me pegando e me empurrando de
volta escada acima.
Finian está sendo empurrado bem atrás de mim, parecendo tão
perplexo quanto eu. Ainda estamos sob custódia do Inquebrado, com
certeza. Ainda isolados de Auri e Kal e agora de Ty, ainda sendo
terroristas galácticos, ainda sendo arrastados de volta para sabe-se
lá onde sob os cuidados da irmã psicótica de Kal. Ainda estamos
nisso, até o pescoço.
Mas de alguma forma, ainda estamos vivos.
Somos levados por uma série de corredores escuros, iluminados
com faixas de luz vermelho-sangue. Glifos Syldrathi decoram as
paredes, o design de interiores uma estranha colisão de belas curvas
e linhas com uma vibração gótica mórbida. O barulho dos motores é
o único som.
Chegamos a uma área marcada DETENÇÃO e, sem cerimônia,
somos empurrados para uma pequena cela. As paredes são pretas,
sem adornos. Há um banco ao longo de uma parede para dormir,
faixas de luz vermelha no chão.
A porta se fecha sem fazer barulho. Eu afundo no banco, os
braços em volta do meu estômago. Meu corpo inteiro está tremendo.
― Scar? ― Fin diz.
― Sim? ― eu sussurro.
― Você acha que Tyler vai aceitar propostas de casamento em
breve?
Eu rio e a risada se transforma em um soluço estrangulado, e eu
aperto o abraço em volta de mim para segurar tudo. Por um minuto,
é tudo o que posso fazer para me impedir de me desfazer em
pedaços. A ideia de quase perder Ty, de perder o único sangue que
me resta, é quase demais.
Fin se senta ao meu lado, o gemido suave de seu exosuit é
familiar e reconfortante. Ele coloca um braço estranho em volta dos
meus ombros.
― Ei, está tudo bem ― ele murmura. ― Ty está bem.
Eu aceno e fungo com força, afasto as lágrimas. Eu sei que ele
está certo. Eu sei que tenho que me manter juntos, tenho que nos
colocar de volta juntos. Estamos espalhados por toda a nave agora:
Kal na ala médica, Auri presa em algum lugar pesado, Ty nas garras
de Saedii e...
Eu pisco e olho ao redor da cela e há uma torção terrível no meu
intestino quando percebo que mais alguém está faltando.
Ah merda...
Não me lembro de tê-la visto na arena. Eu não posso acreditar
que perdi que ela se foi, mesmo tão quieta como ela é, mesmo com
todo o caos da luta. Mas, pensando bem, minha testa franzida em
concentração, eu percebo que a última vez que me lembro de vê-la
foi a bordo do Zero quando estávamos prestes a desembarcar.
Eu falo na escuridão, minha voz um sussurro.
― Onde diabos está Zila?
12
ZILA

As aberturas de ventilação a bordo da nave de Saedii estão


evocando memórias desagradáveis enquanto eu rastejo por elas.
Minha frequência cardíaca está elevada e minha respiração
acelerada. Ambos os fatores estão reduzindo minha eficiência
consideravelmente.
Faço uma pausa para organizar meus pensamentos, fechando os
olhos e me concentrando na sensação de meus pulmões se
expandindo lentamente e, em seguida, se contraindo. Lembro a mim
mesma que não há conexão entre o que aconteceu quando eu tinha
seis anos e o que está acontecendo agora. As semelhanças se
limitam ao fato de que estou escondida em um sistema de ventilação
e que indivíduos hostis estão, ou logo estarão, me procurando.
E que outros estão contando comigo para salvar suas vidas.
Esses outros não são meus pais desta vez, mas meus
companheiros de equipe. No entanto, meu esquadrão é... Importante
para mim. E, claro, nossa missão é importante.
Desta vez, não irei falhar, não importa o que seja exigido de mim.
Pela minha avaliação, ninguém está em perigo imediato. Finian e
Scarlett estão, sem dúvida, desconfortáveis, mas não mais do que
incomodados por sua cela de detenção. Aurora está sedada e
provavelmente não sabe de sua situação. Kal e Tyler devem estar
sendo bem tratados, de acordo com as ordens da Templária.
Com base nisso, decidi recuperar nosso equipamento antes de
empreender o resgate de meu esquadrão. Sou mais ágil sozinha e
percebi que meus companheiros de equipe costumam conversar em
momentos tensos, o que considero inútil.
É mais fácil sozinha.
·····
Eu tinha seis anos.
Estávamos morando em uma pequena nave de pesquisa
chamada Janeway, orbitando Gallanosa III. Era um planeta inóspito,
mas um dos principais candidatos à mineração. A nave não era
grande – eu poderia percorrê-la em aproximadamente nove minutos
e correr por ela em três – mas era o lar de cinco cientistas e eu.
Eu tinha apenas seis anos.

·····
Estou no sistema de suporte de vida do Andarael, um labirinto de
aberturas que serpenteia abaixo de seu convés e entre seus níveis.
Estou olhando através de uma grade para sete técnicos Syldrathi,
todos tentando invadir nossos uniglasses. A tecnologia da Academia
Aurora é top de linha e estou confiante de que seus esforços serão
infrutíferos pelos próximos setenta a oitenta minutos, dependendo de
seu nível de competência.
Isso será suficiente.
No momento, parece que dois dos técnicos estão se preparando
para sair no intervalo, então me acomodo em minha posição
privilegiada e espero. A partida deles aumentará minhas chances.
Paciência.

·····
Paciência era necessária a bordo da Janeway, e não foi fácil
para mim. Tínhamos uma grande biblioteca digital, uma área de
recreação comum, uma plataforma de exercícios e uma unidade de
hidroponia. Mas, na verdade, havia muito pouco a fazer lá. Eu era
uma criança turbulenta – corria por toda a extensão da nave para
queimar energia, escalei a plataforma de exercícios de várias
maneiras que ela não foi projetada para suportar e cultivei flores em
meu próprio trecho minúsculo da baía hidropônica.
Minha mãe era a líder da expedição, com foco na avaliação de
locais de mineração em potencial. Meu pai era o oficial ambiental
simbólico da empresa, para certificar que nada raro ou único
estaria em perigo pelas operações de mineração. Ele tinha muito
tempo livre, dada à natureza de seu trabalho, então cuidou de
minha educação também. Ele tinha um talento especial para tornar
minhas aulas divertidas, e minha inteligência fez com que minha
educação fosse acelerada sem qualquer sensação de pressão ou
excesso de trabalho.
Eu estava concluindo minha equivalência escolar no dia em que
os homens chegaram.

·····
Os homens acima de mim estão curvados sobre um banco de
silicone transparente, conversando em um suave Syldrathi. Ao lado
dos uniglasses que eles estão tentando hackear, posso ver as
chaves de acesso do Zero através do vidro em que se apoiam.
Escapar em nossa própria nave seria a opção mais conveniente,
já que estamos familiarizados com suas instalações, e elas foram
projetadas para atender às nossas necessidades. Pode ser possível
para eu recuperar as chaves de acesso furtivamente, mas não
considero possível remover os uniglasses sem chamar a atenção.
Dirijo meus pensamentos para outros planos.

·····
Meus pais haviam me explicado que meus planos eram
irrealistas – uma criança de seis anos de idade, tendo aulas de
nível universitário, encontraria muitas dificuldades, não importa
quão avançada ou socialmente apta. Ainda pequena, eu preferia as
ciências, então minha mãe e meu pai me levaram com eles para
Gallanosa III, com a intenção de iniciar o ensino superior quando
fosse a hora certa.
Embora eu entendesse desde muito jovem que minha
inteligência era incomum, eles não queriam que eu me sentisse
isolada. Eles queriam que eu estivesse segura.
Eles falharam em ambos os casos.

·····
Os dois técnicos sênior Syldrathi partem, deixando-me com cinco
para cuidar. Eu rastejo por baixo deles, ao longo da minha ventilação
em direção à junção no final do laboratório.
Eu considero minhas opções, executando análises estatísticas em
cada curso de ação da melhor maneira que posso com as
informações que tenho em mãos.
Primeira etapa: alarmes.

·····
Os alarmes haviam disparado setenta e três minutos antes, o
que não era incomum em nossa localização isolada. A falha da
embarcação de entrada em responder aos gritos era mais
preocupante, mas eles podem ter tido dificuldades de comunicação.
Não éramos o alvo principal – tínhamos pouco valor. Mas nossas
dúvidas foram apagadas quando eles foram acoplados à força com
a Janeway e destruíram nossas eclusas de ar.
Nesse ponto, ficamos muito preocupados.
A nave inteira estremeceu quando as fechaduras explodiram.
Meu pai me empurrou – a primeira vez que me lembro dele sendo
rude, fora de um jogo de saigo na plataforma de exercícios – me
fazendo tropeçar em direção ao laboratório de Max e Hòa.
― Esconda-se! ― ele sussurrou quando eu olhei para trás,
perplexa.
Eu não entendia, mas era uma criança obediente, então corri
pela porta, escolhendo um lugar entre as caixas de amostra que
entregaríamos em nossa próxima viagem à Estação Marney. Eu
podia observar o que estava acontecendo através da porta.
Minha mãe avançou para enfrentar os recém-chegados. Havia
três deles, vestidos com roupas tão surradas quanto sua nave. Eu
os reconheci instantaneamente – eu os conheci uma semana antes,
quando visitei Marney com meu pai.
Lembro-me da visão de minha mãe naquele momento. Ela
usava um macacão azul e seu cabelo estava solto, cachos pretos e
justos como os meus flutuando sobre seus ombros.
Não consigo mais me lembrar de seu rosto.
Mas lembro de que atiraram nela sem dizer uma palavra.

·····
Sem um som, eu alcanço a junção de ventilação e a escotilha de
controle de manutenção montada na parede. Demoro mais do que o
previsto para desativar o sistema de segurança com meu uniglass.
Não sou a especialista em espionagem de computador como Finian
é.
A fechadura da caixa de controle é um assunto mais mundano, e
eu uso minha faca multifuncional para arrancar a tampa, que corta
meu dedo indicador à medida que se solta. A dor é uma linha de fogo
afiada e eu fecho meus olhos com força, contorcendo meu rosto
involuntariamente com o esforço de ficar quieta.
Meu coração está muito disposto a aceitar uma desculpa para
acelerar seu ritmo mais uma vez e tento outra rodada de exercícios
respiratórios enquanto extraio um conjunto de pontos quik do meu
macacão e os aplico. Eu olho para os técnicos do Inquebrado, mas
eles permanecem absortos em sua luta com as medidas de
segurança uniglass.
Volto ao meu trabalho, estudando o painel de manutenção até ter
certeza de que entendi. Eu posso ler os glifos Syldrathi com meu
uniglass e existem muitas maneiras de sistemas de suporte de vida
baseados em oxigênio operarem. Mas eu verifico e verifico
novamente, totalmente ciente das consequências do fracasso. Então
começo a trabalhar no sistema de filtragem, desviando os extratores,
e me sento para esperar.
Estimo que os resultados que espero levarão cerca de quinze
minutos e meio para serem alcançados. Mais ou menos três ou
quatro segundos depois.

·····
Três ou quatro segundos foi o suficiente para que tudo se
desfizesse. Para o corpo de minha mãe dobrar no chão e para a
próxima rodada de tiros disruptivos queimarem o ar.
Nos vídeos de ação que eu tinha visto – meus pais não os
toleravam, mas Miriam me deixava assistir quando eles não
estavam prestando atenção – as pessoas que levavam tiros sempre
voavam para trás. A terceira lei do movimento de Newton proíbe
isso, é claro – uma bala não tem força para reverter o impulso de
um corpo. Mas ainda me lembro de me sentir surpresa quando Max
cambaleou para frente depois que os tiros o atingiram, antes de cair
no convés.
Os três adultos restantes, incluindo meu pai, levantaram as
mãos em sinal de rendição. Eu observei as caixas, segurando meu
grito lá dentro. Lembro que minha frequência cardíaca estava
elevada, minha respiração beirando a angústia, minha boca seca.
Lembro que não gostava de me sentir assim.
― Cadê a criança? ― o atacante líder estalou. Era a voz de um
homem, com sotaque, talvez de Tempera.
― Que criança? ― meu pai perguntou antes que Hòa ou Miriam
pudessem responder.
― Sua criança ― diz o homem, sua voz caindo no registro. Houve
um tremor e ele parou para apoiar a mão na borda do buraco que
haviam feito em nossa nave. Concluí que ele estava sob efeito de
drogas.
Ele estava inalando uma substância ilegal quando o conheci
uma semana antes. A estação Marney não era respeitável, mas era
possível acessar muitos produtos do mercado ilegal ali, e meu pai
era um homem prático. Depois de preenchermos nossas últimas
amostras, baixamos o elevador gravitacional para os níveis mais
baixos para que ele pudesse comprar ingredientes para uma
refeição especial para comemorar o aniversário de Hòa.
― Não saia da minha vista ― ele me disse.
Segui sua orientação, mas fui atraída por um grupo de
jogadores participando de um jogo de tintera. Eu adorava jogos e
ficava na ponta dos pés para observar as cartas distribuídas – a
cada rodada os jogadores decidiam se aceitariam uma nova carta
do dealer. O objetivo era segurar cartas que, somadas, totalizavam
vinte e quatro.
Foi simples observar quais cartas já haviam sido distribuídas,
calcular a probabilidade favorável com as cartas restantes e decidir
de acordo.
A primeira vez que aconselhei o homem sobre sua escolha, ele
riu.
Na segunda vez, ele ouviu.
Na terceira vez, ele me deu cinquenta créditos e me convidou
para jogar.
― Venha, seja meu amuleto da sorte. ― disse ele.
Todos riram e eu sorri. Foi emocionante ter novos
companheiros. A vida na Janeway era tão previsível.
Quando meu pai me recuperou quinze minutos depois, eu
estava com mil novecentos e cinquenta créditos. Ele me fez deixá-
los à mesa e me escoltou com uma pressa que não entendi.
Agora o homem estava aqui em nossa nave, pedindo para me
ver.
― Não há nenhuma criança aqui ― disse meu pai.
E então o homem atirou em Hòa. Ele não fez nenhum som ao
morrer.
Miriam foi quem quebrou.
― Não atire – ela está aqui! Vou ajudá-lo a encontrá-la. ― ela se
virou para me procurar, com a voz trêmula. ― Zila? Zila, saia!
Eu também não gostei dos sentimentos que senti então. Raiva,
que minha amiga que assistia vídeos comigo me traísse. Desprezo,
que ela pensasse que eu era estúpida o suficiente para obedecer.
Medo, que agora eles sabiam que eu estava aqui.
― Ela não está aqui ― disse meu pai, quieto e calmo. ― Nós a
mandamos para a escola.
Eles iriam procurar em breve, eu percebi. E eles encontrariam
minhas coisas. A voz do meu pai se transformou em um zumbido
suave e familiar enquanto eu subia pelas aberturas de ventilação e
rastejava para baixo da nave até nossos aposentos.
Quando entrei em nosso quarto, pude sentir o cheiro de minha
mãe. O cheiro quente e picante de seu perfume, um luxo ultrajante
em um lugar como o nosso.
Eu tinha apenas alguns pertences. Enfiei minhas roupas no
cesto de roupa suja, tirei minha cama e joguei os lençóis por cima
para escondê-los. Amassei o modelo de equipamento de mineração
que vinha fazendo com meu pai e coloquei na lixeira.
Mantendo-me nas aberturas, esquivei-me dos homens enquanto
eles procuravam por mim na nave. Eles já haviam atirado em três
pessoas. Eles me queriam. Eles atirariam em meu pai e iriam
embora assim que me pegassem. Portanto, cabia a mim mantê-lo
seguro.
A lógica ditou isso.

·····
A lógica diz que não pode demorar muito, mas ainda assim, sinto
uma sensação de alívio na marca dos doze minutos, quando um dos
Syldrathi abafa um bocejo. Faço uma nota mental para pesquisar
quais variáveis podem ter causado o impacto do gás nele antes dos
outros. O monóxido de carbono é mais leve que o ar. Talvez ele seja
mais alto?
Eu inspeciono os outros quatro técnicos do meu ponto de vista.
Um está visivelmente enfraquecendo, mas três ainda parecem estar
bem. Espero que a constituição Syldrathi não seja, em seus casos,
mais resistente do que eu esperava.
·····
Foi mais difícil do que eu esperava manter meu pai seguro, mas
consegui por um tempo. Era uma nave pequena, mas eu também
era pequena e tinha muita experiência em brincar de esconde-
esconde. Desta vez, porém, não houve risadas abafadas enquanto
eu escapava dos meus caçadores. Nenhum sorriso secreto
enquanto eles passavam por mim.
Eu empurrei meus sentimentos com muita força enquanto saía
das aberturas para o escritório da minha mãe. Eu me imaginei
colocando-os em uma caixa e fechando a tampa para que não me
distraíssem.
Eu me arrastei para debaixo da mesa dela, onde seu
equipamento de comunicação estava conectado, e puxei os cabos.
A plataforma foi configurada para auto transmitir uma atualização
de status a cada três horas. Se não, alguém viria em busca de
respostas. Eles poderiam esperar até que perdêssemos dois check-
ins, mas se uma nave corpórea estivesse na área, nós poderíamos
ter sorte.
Duas horas depois, o equipamento não conseguiu transmitir.
Depois de quatro horas, os invasores começaram a brigar. O efeito
das drogas estava acabando e o ataque não havia sido concluído
tão facilmente quanto eles esperavam. Um dos homens argumentou
que eles deveriam reduzir suas perdas.
O líder apontou que (a) minha capacidade demonstrada de
calcular probabilidades ainda seria lucrativa para seus
empregadores e (b) eu tinha visto seus rostos e poderia
testemunhar contra eles.
Mas depois de mais três horas de busca, eles perderam a
paciência. Eles atiraram em Miriam, apesar de seus pedidos e
lágrimas. E então eles apontaram a arma para a cabeça do meu
pai.
― Saia, Zila ― chamou o homem. ― Eu não quero atirar no seu
pai também. Apenas saia e ele estará seguro, Amuleto da Sorte.
Eu considerei minha posição. Se eu emergisse, tinha certeza de
que eles iriam atirar nele e me levar imediatamente. Do contrário,
talvez eles optassem por pesquisar um pouco mais, prolongando a
vida dele para usar contra mim mais tarde. Dando ao corp mais
tempo para enviar uma equipe para investigar nosso silêncio.
Eu segurei minha posição.
― Ela não está aqui ― disse meu pai obstinadamente. ― Mas se
ela estivesse, eu diria a ela que a amo. ― ele olhou para as
aberturas. Talvez esperando que eu estivesse assistindo. ― E que
isso não é culpa dela.
O homem atirou nele.
Em seguida, eles saquearam a Janeway e foram embora.
Quando saí do meu esconderijo, o campo de ionização de
emergência da nave estava estalando sobre o buraco irregular que
eles haviam deixado na lateral, segurando o vácuo.
Lembro-me de pensar que tinha um campo exatamente como
aquele mantendo meus sentimentos sob controle. Eu não sabia
quanto tempo duraria também. Mas eu coloquei todas as minhas
forças para mantê-lo. Achei que estaria melhor sem eles.
Por doze anos, eu estava certa.

·····
Eu estava certa. Na marca de dezesseis minutos, todos os cinco
Syldrathi estão inconscientes, caídos sobre a bancada de vidro. Eu
cuidadosamente removo a ventilação, mantendo-me abaixada
enquanto subo para a sala. Embora meu coração insista em bater, o
treinamento da Legião Aurora me garantiu que, se eu ficar perto do
solo e trabalhar rapidamente, evitarei uma dose perigosa do gás.
― OLÁ!
Eu me assusto quando o uniglass de Aurora fala de seu lugar no
balcão, meu coração agora batendo descontroladamente contra
minhas costelas.
― VOCÊ COM CERTEZA DEMOROU PARA CHEGAR AQUI! ― ele gorjeia,
inconsciente de minha angústia. ― EU ESTAVA COM MEDO QUE ELES
FOSSEM ME DISSECAR!
― Você é uma máquina. ― eu digo. ― Você não pode ter medo.
― DIGAMOS, ESSE FOI UM TRUQUE BACANA COM O GÁS! VOCÊ É
MUITO INTELIGENTE PARA–
― Fique quieto. ― eu digo.
― SABE, VOCÊS TEM SORTE DE EU GOSTAR TANTO DE VOCÊS ― ele
gorjeia. ― OUVIR CONSTANTEMENTE PARA FICAR QUIETO PODE LEVAR
UMA MÁQUINA INFERIOR A TALVEZ COMEÇAR A PLANEJAR SEUS
TERRÍVEIS ASSASSINATOS E–
― Modo silencioso! ― eu assobio.
Magellan finalmente obedece, ficando mudo. Rapidamente reúno
as chaves-mestras e os outros uniglasses, então aproveito o
armamento em oferta – os técnicos Warbreed estão mais fortemente
armados do que os cientistas da Unidade de Autoridade Terráquea
estariam. E não perdendo mais tempo, coloco minha carga em uma
de suas bolsas antes de rastejar de volta para as aberturas.

·····
Quando desci pelas aberturas, descobri que era pequena
demais para mover os corpos, mas os arrumei da melhor maneira
que pude. Até Miriam. Ela estava com medo, eu sabia disso. Foi
por isso que ela fez isso.
Por isso era tão importante não sentir.
Todos aqui agiram de acordo com seus sentimentos e estavam
mortos por causa disso.
E por minha causa.
Alguém acabaria sendo enviado para investigar por que o sinal
falhou. Obviamente, minha esperança da chegada de uma nave
corpórea depois de seis horas e duas transmissões perdidas era
otimista – a Janeway era um trunfo secundário. Mas com o tempo,
eles viriam. Eu só precisava me sustentar até então e esperar que
os campos de força não cedam.
Passaram-se outras setenta e seis horas antes de eu acordar na
cama dos meus pais com vozes acima de mim.
― Grande Criador, como ela ainda está viva?
Eu rolei de costas para olhar para eles. Cinco adultos em
uniformes corporativos.
Eu não estava com medo.
Eu não fiquei aliviada.
Eu não era nada.

·····
Não estou... Sentindo nada enquanto prossigo para o próximo
estágio de minha missão. Pensando seriamente no assunto pela
primeira vez, percebo que os membros do Esquadrão 312
comprometeram minha integridade emocional. Lentamente, parte do
que eu era quando criança está voltando. Ainda não decidi se este é
um desenvolvimento bem-vindo.
Três níveis abaixo, eu encontro à enfermaria, onde Kal está
contido em um berço biológico, assistido por dois médicos do
Inquebrado. Eu levanto meu disruptor roubado para a grade do poço
e miro com cuidado. Espero. Paciente. Finalmente, eu ouço o que
estou esperando – um anúncio em toda a nave transbordando do
sistema de alto-falantes, avisando a todos para se prepararem para
a entrada na Dobra. Alto o suficiente para esconder uma explosão de
disruptor.
BAMF!
Meu tiro atinge o primeiro médico na parte de trás de sua
cabeça. O segundo saca sua arma com velocidade surpreendente,
mas meu tiro acerta sua garganta, deixando-o no convés ao lado de
seu camarada.
Isso foi muito perto.
Eu subo pelas aberturas quando o anúncio termina.
― Quem está aí? ― Kal exige, tentando virar a cabeça.
Eu não perco palavras, começando a trabalhar em suas
restrições.
― Zila... ― ele sussurra.
― Eu entendo que você foi baleado. Seus ferimentos são graves?
― Não ― ele responde simplesmente. ― Onde está Aurora?
Decido que mencionar o uso do agonizador por sua irmã não
ajudará Kal no pensamento racional.
― Ela está nas celas com Finian e Scarlett.
― Precisamos ir até ela ― ele insiste, sentando-se assim que seus
braços ficam livres.
― Eu concordo. Podemos fazer o nosso caminho pelos dutos.
― Eu não vou caber lá ― protesta Kal.
Estou perfeitamente ciente de que, se Finian estivesse aqui, ele
faria alguma piada desagradável neste momento. Limpo minha
garganta, franzindo a testa em concentração.
― Eu...
Kal simplesmente me encara, obviamente impaciente.
Estou descobrindo rapidamente o valor do alívio da comédia.
― Deixa pra lá ― eu finalmente digo.
Kal é capaz de derrubar os guardas posicionados do lado de fora
da enfermaria atacando com o benefício da surpresa. Eu defino, mas
não exprimo, que ele despende mais esforço do que o estritamente
necessário para subjugá-los. Suspeito que ele, assim como eu,
esteja lutando por níveis ideais de compostura.
Outro anúncio em toda a nave soa sobre o PA enquanto Kal tira a
armadura do primeiro guarda. Nosso Tanque parece claramente
desconfortável enquanto ele se disfarça de guerreiro Inquebrado,
mas agora não é o momento de explorar seus sentimentos sobre o
assunto.
Kal remove as restrições magnéticas de seu berço biológico e as
coloca em meus pulsos.
― Ande na minha frente ― diz ele. ― Olhos baixos. Não diga nada.
Eu aceno e depois de uma verificação rápida do lado de fora
para garantir que está tudo limpo, marchamos para o corredor. Kal
parece saber se virar em uma nave de guerra Syldrathi e me
direciona rapidamente para um turbo elevador, que leva ao bloco de
detenção abaixo.
― Obrigado, Zila ― ele murmura ao meu lado. ― Você fez bem.
Um leve calor se agita em meu peito com seu elogio.
Não estou... Sentindo nada.
― Você está bem? ― eu o ouço perguntar.
Minha voz está firme. Minha expressão vazia. Mas...
― Estou... Feliz. ― eu franzo a testa. ― Por sair do escuro.
Eu encontro seus olhos, o que não é algo que eu realmente me
lembre de ter feito antes. Eu me pergunto se ele pode vê-la. Essa
garotinha. Rastejando por aquelas aberturas daquela estação
silenciosa. Os pedaços que ela deixou na escuridão. O medo. A
mágoa. A raiva.
Ela apenas os deixou para trás? Ou ela se deixou para trás com
eles?
Ela fez isso porque era mais fácil?
Ou porque ela tinha que fazer?
E, depois de doze anos, o que ela fará agora que está finalmente
começando a rastejar para fora?
Não estou... Sentindo nada.
Não estou sentindo nada.
13
TYLER

Cuide de sua irmã.


Essas foram às últimas palavras que papai me disse. Depois que
ele beijou Scar na testa, disse a ela que voltaria a tempo para o
nosso aniversário. Depois que ele se ajoelhou e me envolveu no
último abraço que ele me daria. Ele se levantou e bagunçou meu
cabelo daquele jeito que eu odiava, e falou comigo daquele jeito que
eu amava. Não como se eu fosse uma criança. Como se eu fosse um
homem. Como se ele estivesse dizendo algo importante e eu fosse
digno disso.
Cuide de sua irmã, ele me disse.
Eu cuidei. Sempre.
E ela cuidou de mim também.
Scar e eu éramos inseparáveis quando crianças. Papai disse que
inventamos nossa própria linguagem antes de podermos conversar. E
mesmo que eu não acreditasse que minha irmã gêmea ingressasse
na Legião Aurora – tentei dissuadi-la, na verdade – eu estava
secretamente feliz por Scar estar ao meu lado quando eu assinei a
linha na estação de New Gettysburg. Eu teria sentido como se um
pedaço de mim tivesse sido arrancado se eu a tivesse deixado para
trás. E eu seria capaz de cuidar melhor dela se estivesse por perto.
Não há nada que eu não faria para mantê-la segura.
Como pular em um buraco com um drakkan adulto?
Parte de mim não consegue acreditar que consegui isso, para ser
honesto. O Tyler Jones que se formou no topo da Academia Aurora
nem mesmo teria considerado isso. Ele era um cara que jogava pelo
livro.
Regrado. Cauteloso. Consideração cuidadosa antes de cada
movimento. Mas quanto mais fico aqui, no limite, mais em casa me
sinto. E com os inimigos contra os quais estamos jogando?
Às vezes, a única maneira de vencer é interrompendo o jogo.
Estou olhando para um conjunto de ladrilhos hexagonais
quadriculados, empilhados com seis de altura, espalhados por
pedras brancas e pretas. É um tabuleiro dóa da Chelleria – um jogo
tático, considerado um dos mais difíceis de dominar na galáxia. Eu
sou um jogador de terceiro nível, na melhor das hipóteses. O
tabuleiro está sobre uma mesa esculpida de metal escuro nos
aposentos externos de Saedii, vibrando suavemente com o zumbido
dos motores do Andarael.
Olhando ao redor da sala na iluminação fraca, monocromática da
Dobra, posso ver outros jogos. Um samett definido de Trask. Três
lindas tábuas de tae-sai de Syldra, todas esculpidas em madeira de
lias. Até mesmo um jogo de xadrez pela metade. Esperando por
minha anfitriã, sentada em uma cadeira confortável em frente a sua
mesa, posso dizer que ela é uma estrategista. Tudo sobre a sala –
os jogos, os livros, até a arte geométrica simples – me diz que a
irmã de Kal é fascinada por estratégia.
Pego uma das peças de dóa, minhas costelas e músculos ainda
gemendo depois do meu encontro com o drakkan. A peça é um disco
liso branco marcado com um símbolo triangular preto. Eles
desempenham o papel de peões no jogo – mais ou menos, pelo
menos. Cordeiros sacrificados costumavam ganhar vantagem em
outras partes da batalha.
Estou começando a apreciar como eles se sentem.
― Você joga? ― vem uma voz baixa e doce atrás de mim.
Eu me viro e vejo Saedii passando por um conjunto duplo de
portas automáticas, uma bandeja de prata posta em uma das mãos.
Seu drakkan de estimação cavalga em seu ombro, me observando
com olhos dourados brilhantes. Antes que as portas se fechem atrás
deles, vejo seus aposentos internos: obras de arte simples, uma
cama grande, um terminal de computador. Eu brevemente me
pergunto onde ela pendura as peles de suas vítimas.
Ela tirou sua armadura e colocou o uniforme de gala Syldrathi –
preto justo, linhas elegantes, brilhando com enfeites de prata e
medalhas de batalha. Seu cabelo preto desce sobre os ombros em
sete tranças grossas, assim como o de Kal. Ela se deu ao trabalho
de retocar a tinta preta que reveste seus lábios e a faixa que
emoldura seus olhos. Posso ver seu irmão na forma deles, a linha de
suas bochechas e sobrancelha. Ela irradia uma aura de comando:
fria, cruel, calculista.
― Você joga? ― ela repete.
Coloco a peça de dóa de volta onde a encontrei.
― Tyler Jones ― eu respondo. ― Alfa. Legião Aurora, Esquadrão
312.
Saedii vai até a mesa e coloca a bandeja no chão. Nela contém
uma garrafa de água cristalina e dois copos. Há também uma bela
faca de lâmina longa e quatro esferas que reconheço como uma fruta
Syldrathi chamada bae'el.
Sentada à minha frente, Saedii me encara com um olhar violeta
fulminante.
― Mesmo? ― diz ela, falando perfeitamente terráqueo. ― Essa é a
sua jogada inicial? Nome, posto, número do esquadrão?
Ela levanta uma sobrancelha escura, em seguida, derrama a
água. O drakkan rasteja para as costas da cadeira, vibrando
suavemente enquanto continua a me encarar. Saedii empurra o copo
de cristal sobre a mesa e murmura para seu animal de estimação.
― Sim, Isha, meu amor, ele me decepciona também ― ela diz, os
olhos voltando para os meus. ― Achei que ele saberia como esse
jogo é jogado.
Estou desesperadamente com sede depois da minha briga na
arena, mas em vez de beber, encontro seu olhar, falando baixinho,
minha voz calma.
― O primeiro passo para uma técnica de interrogatório bem-
sucedida é estabelecer relacionamento ― eu digo. ― Ofereça
gentileza ao sujeito – um presente como água, comida ou alívio da
dor. Aliviar o sofrimento deles destacará o sofrimento que eles já
suportaram e evocará um senso de empatia em você, em contraste
com seus outros captores. ― eu olho para a água, então volto para
os olhos dela. ― Eu sei exatamente como este jogo é jogado.
Eu me inclino para trás na minha cadeira, coloco meus dedos no
meu colo.
― Tyler Jones. Alfa. Legião Aurora, Esquadrão 312.
Saedii serve outro copo para si mesma e dá um pequeno gole.
― Nós, Warbreed, ensinamos nossos adeptos de maneira diferente,
pequeno Terráqueo ― diz ela. ― O primeiro passo para uma técnica
de interrogatório bem-sucedida é estabelecer o domínio. Assegure
ao sujeito, em termos inequívocos, que você está no controle.
Ela pega a faca da bandeja, pressiona a ponta suavemente
contra o dedo indicador da outra mão. Como seu cabelo, suas unhas
são tingidas de preto.
― Comece com uma amputação leve ― ela sugere. ― Algo
pequeno. Mas algo que fará falta.
Ela olha para a minha virilha e depois para os meus olhos.
― Uma irmã, talvez.
Meu estômago embrulha com isso, mas mantenho o medo longe
do meu rosto. Executando a matemática na minha cabeça.
― Como você sabia que ela–
― Não sou tola, Tyler Jones, Alfa, Legião Aurora, Esquadrão 312. ―
ela enfia a faca em um pedaço de bae'el, em seguida, começa a
remover a casca com torções hábeis da lâmina. ― Quanto mais
cedo você se dissuadir dessa noção, melhor.
― Você fala Terráqueo excelente ― digo. ― Eu vou te conceder
isso.
Ela corta uma lasca de polpa escura da fruta.
― Muito melhor do que o seu Syldrathi.
― Estou surpreso que você se preocupou em aprender. Dado o
quão claramente você nos despreza.
Saedii desliza a lasca entre os dentes. Olha-me morto nos olhos.
― Eu sempre estudo minha presa.
Ela se inclina para trás e coloca os pés em cima da mesa,
empurra o copo d'água em minha direção com o salto prateado de
sua bota que vai até na altura do joelho.
― Beba, garoto. Você vai precisar de sua força.
Isha treme, batendo as asas e observando enquanto eu
finalmente me inclino para frente e pego o copo. É cristal sólido,
pesado na minha mão, e por um momento considero arremessá-lo na
cabeça de Saedii, tentando agarrar sua faca. A parte mais sensível
do meu cérebro me lembra da surra que essa garota me deu da
última vez que nos enroscamos. Minha virilha envia uma transmissão
urgente, indicando que posso querer ter filhos um dia.
Eu bebo.
― Você e sua tripulação estavam obtendo dados da frota de resgate
de Hefesto ― diz Saedii. ― Os registros mostram que o gravador de
voo que seu técnico destruiu a bordo do Totentanz pertencia a um
antigo abandonado Terráqueo. O Hadfield. Uma nave que partiu de
seu mundo há mais de dois séculos. ― ela corta outra fatia de fruta
e pressiona contra a língua. ― O que você quer com verdades de
duzentos anos, pequeno Terráqueo?
― Sou um aficionado por história ― respondo.
― Conheça o passado ― diz ela ― ou sofra com o futuro.
― Exatamente.
― Você está mentindo ― ela diz, fria e suave. ― Continue a fazer
isso, e farei com que sua irmã sofra o mais horrível dos tormentos
antes que eu a jogue no espaço.
― Considerando que você estava disposta a nos transformar em
comida para um monstro uma hora atrás, presumo que você vai
matar todos nós de qualquer maneira. ― eu encolho os ombros. ― E
se esta informação é tão importante para você, talvez você devesse
ter começado com o interrogatório e procedido para a execução, em
vez do contrário?
― Meu irmão também tem todas essas respostas, pequeno
Terráqueo ― ela responde com calma. ― Você não é uma parte
essencial desta equação.
― Então por que se preocupar em falar comigo?
A faca corta. Outra lasca de fruta desaparece entre os lábios
negros de Saedii. Demora muito até que ela responda.
― Não é sempre que vejo um combatente solitário melhor que um
drakkan adulto. ― ela me olha de cima a baixo, os olhos brilhando.
― Eu reconheço sua destreza. E sua linhagem. Jericho Jones era um
inimigo digno de respeito.
Um flash de raiva passa por mim então. Sinto minha mandíbula
apertar, meus dentes cerram.
― Isso não impediu seu povo de assassiná-lo em Orion.
Ela levanta uma sobrancelha perfeitamente esculpida.
― Nós somos guerreiros, Tyler Jones, não viúvas. Não chore pelo
salário da guerra. E embora sua nobreza deva ser respeitada, não
acredite nem por um momento que eu não vou matar você e sua irmã
e seu pequeno aleijado para ter o que eu quero.
Eu me irrito com o insulto a Fin, estreitando os olhos. Ela
simplesmente sorri quando a farpa pousa. Ao encontrar seu olhar,
percebo que essa garota vem de uma cultura totalmente estranha à
minha – uma cultura onde a força é valorizada, a crueldade
encorajada e a fraqueza desprezada. Estou começando a entender o
quão difícil deve ter sido para Kal sair desse ciclo, se tornar a
pessoa que ele é. Quanto mais tempo passo na presença de sua
irmã, mais impressionado com ele fico. E mais eu a detesto.
Mas, embora quase todos os Warbreed pensem genuinamente
dessa forma, eu percebo que Saedii está apenas me provocando.
Pressionando botões. Observando reações. Tudo o que ela fez
desde que chegou – a água, as ameaças, a conversa sobre minha
tripulação, meu pai – foi para avaliar o tipo de pessoa que sou.
Eu olho para os jogos de estratégia ao redor da sala. Uma dúzia
de jogos diferentes de uma dúzia de mundos diferentes. Sei que
todos eles estiveram envolvidos em conflitos com os Syldrathi nos
últimos cinquenta anos.
Eu sempre estudo minha presa.
― Aquela chamada Aurora. ― o lábio de Saedii recua com um leve
desprezo. ― A garota que meu querido irmão chama de be'shmai.
― Finalmente indo direto ao ponto. ― eu digo.
Sua mão vai até a fileira de polegares decepados em volta do
pescoço.
― Vocês, machos ― ela suspira. ― Sempre com tanta pressa.
Isha treme, olhos dourados brilhando.
― Ela não tem as habilidades e o treinamento de um legionário ―
continua Saedii. ― Quem é ela? De onde é? Por que você viaja com
ela?
― Ela se escondeu em nossa nave ― eu respondo. ― Ela é da
Terra. E seu irmão ficaria chateado se eu a mandasse embora.
― Meias verdades. ― Saedii murmura, alcançando para coçar o
drakkan sob seu queixo. ― O pequeno Terráqueo acredita que é
inteligente, Isha. Ele ainda acredita que está no controle aqui.
Devemos matar a irmã primeiro? Ou aquele sapinho Betraskan
retorcido?
― Isso faz você se sentir maior? ― eu pergunto. ― Tentando fazer
os outros parecerem pequenos?
― Você é pequeno, pequeno Terráqueo ― ela responde. ―
Pequeno, fraco e assustado. Seu próprio governo nomeia vocês
como terroristas. Seu próprio povo o caça como cães de caça.
― E como o seu governo o nomearia? ― eu respondo. ― Quero
dizer, se você não tivesse assassinado todos eles por ousar fazer as
pazes com a Terra?
― ‘Paz’ é a forma como um vira-lata grita ‘Renda-se’. ― responde
Saedii, estudando as unhas. ― A misericórdia é território dos
covardes. O Conselho Interno de Syldra estava aliado aos nossos
inimigos. Eles eram traidores do povo Syldrathi.
― Então você os destruiu junto com seu próprio mundo natal? ― eu
exijo, raiva rastejando em minha voz. ― Junto com dez bilhões
daqueles inocentes Syldrathi?
― O povo Syldrathi aceitou o tratado com a Terra, garoto. Eles
haviam perdido sua honra. Eles não mereciam piedade e o Arconte
Caersan não demonstrou nenhuma.
Eu me arrepio novamente com o nome. Caersan. O Starslayer. O
homem que destruiu seu próprio mundo e liderou o ataque a Orion –
o ataque onde perdemos nosso pai.
― Sabe, é engraçado ― eu respondo. ― Vocês do Inquebrado
sempre falam sobre honra. Mas da última vez que verifiquei atacar
durante uma negociação de paz é tão covarde quanto esfaquear
alguém pelas costas. Parece-me que seu amado Starslayer é tão
honrado quanto sua variedade de baratas de jardim.
Os olhos de Saedii brilham com isso.
― Vou avisá-lo uma vez, pequeno Terráqueo. No que diz respeito ao
Starslayer, cuidado com a língua. Ou veja-me entregá-lo a ele.
― Ele é um louco! ― eu cuspo. ― E ele–
Eu realmente não a vejo se mover, eu apenas sinto o golpe – a
palma da mão na ponta do meu nariz. Sinto um aperto, vejo estrelas
negras, sinto o gosto de sangue no fundo da garganta. Eu caio para
trás da cadeira, mas rapidamente me levanto, minhas costelas ainda
doendo da batalha com o drakkan. O mundo está turvo com
lágrimas, e eu só vejo um vislumbre de uma forma escura antes de
duas mãos baterem em meus ombros–
Oh Criador, de novo não...
– e um joelho bate na minha virilha. As estrelas negras em meus
olhos queimam até ficarem brancas, e por um momento eu não sou
nada além da dor, caindo de joelhos, caindo no chão, me enrolando
em uma bola de agonia e miséria. É tudo o que posso fazer para me
lembrar de respirar, e estou esperando que aquelas botas com ponta
de prata comecem a dançar na minha garganta quando uma voz
corta a névoa ardente.
― Templária. Perdoe minha interrupção.
As botas não pousam. Eu reconheço a voz – é o segundo em
comando de Saedii, sua voz ligeiramente distorcida pelo sistema de
comunicação. Em meio às lágrimas, eu olho para cima e vejo Saedii
tocar o transmissor no peito de seu uniforme. Sua voz é fria, e ela
tira uma trança preta de seu ombro enquanto sorri para mim,
completamente imperturbável.
― O que é, Erien? ― ela pergunta.
― Detectamos várias embarcações em curso de interceptação com
o Andarael ― relata o tenente. ― Aproximando-nos de vários
títulos.
― Quem são eles?
― Nave capitais Terráqueas. Quatro destruidores. Duas
operadoras.
Pelo Criador. Isso não é apenas "várias embarcações". Essa é
uma frota de assalto...
― Ignore-os ― responde Saedii. ― Os Terráqueos não ousariam se
arriscar a violar a neutralidade ao abordar uma nave do Inquebrado.
Mantenha o curso para o Neridaa.
― Eles estão se movendo em velocidade de ataque, Templária. E
eles estão nos saudando.
Isso dá a Saedii um momento de pausa. O que ela disse é
verdade – desde que a guerra civil Syldrathi estourou, a Terra tem se
curvado para evitar se envolver com os assuntos Syldrathi. É difícil
culpá-los, realmente – o Starslayer não apenas destruiu seu próprio
mundo, mas de alguma forma fez com que o sol Syldrathi desabasse
sobre si mesmo. O buraco negro subsequente destruiu todo o
sistema Syldra e vários sistemas desabitados nas proximidades.
Ninguém quer ficar do lado errado de um homem com esse tipo
de poder.
Mas agora há uma frota Terráquea em curso de interceptação
conosco?
Andarael é uma enorme nave capital – Drakkanclass, a maior da
armada do Inquebrado – mas isso não significa que sua comandante
tão-legal não estaria pelo menos um pouco preocupada em enfrentar
uma força de ataque Terráquea daquele tamanho.
― Transmissão na tela. ― diz Saedii.
Eu pisco para afastar minhas lágrimas, a dor lancinante na minha
virilha diminuindo para uma dor murmurante quando uma parede
ganha vida. Por um momento, há apenas luz branca, queimando na
parte de trás dos meus olhos. Em seguida, o branco se aglutina em
uma forma familiar e, quando me forço a me sentar, sinto meu
estômago revirar.
Vejo a crista alada da Força de Defesa Terráquea. A nave
identificada como KUSANAGI estampado abaixo dela.
Vejo um uniforme da Agência de Inteligência Global, imaculado e
branco.
Uma máscara de espelho lisa e sem características.
― SAUDAÇÕES DA AGÊNCIA DE INTELIGÊNCIA GLOBAL, TEMPLÁRIA.
VOCÊ PODE SE REFERIR A MIM COMO PRINCEPS. ― sua voz não tem
sexo. Metálica. Não dando nenhuma pista de quem pode estar por
trás daquela máscara. Mas eu conheço o homem, o monstro, por
baixo daquele uniforme perfeito.
O pai de Auri, Zhang Ji.
Ou o que sobrou dele, de qualquer maneira. Ele foi apenas um
das centenas de colonos de Octavia III consumidos e assimilados
pelo Ra'haam. Eles trabalharam nas sombras por dois séculos,
infiltrando-se no GIA e só o Criador sabe quais são os outros braços
do governo Terráqueo. Apagando todas as evidências da existência
da colônia de Octavia. Escondendo a existência dos vinte e dois
mundos que o Ra'haam semeou e preparando o terreno para seu
retorno.
O choque de ver Princeps me acerta como outro chute – da
última vez que soubemos, o tínhamos deixado para trás em Octavia.
E de repente eu estou de volta lá, naquele mundo condenado e
arruinado. Esporos azuis caindo do céu.
A colônia corre com gavinhas frondosas da coisa adormecida sob
seu manto. Os olhos de Cat, azuis brilhantes e em forma de flor,
enchendo-se de lágrimas quando ela olhou para mim pela última vez.
Você tem que me deixar ir.
O mundo está borrando novamente. Eu tiro a queimadura dos
meus olhos.
Criador, sinto falta dela... .
― O que você quer, Terráqueo? ― Saedii responde, olhando para a
figura na tela.
― TEMPLÁRIA, É NOSSO CONHECIMENTO QUE VOCÊ PRENDEU VÁRIOS
CIDADÃOS TERRÁQUEOS ENVOLVIDOS NA ESPIONAGEM A BORDO DE UM
COMBOIO DE RESGATE DE HEFESTO. OS FUNCIONÁRIOS SOBREVIVENTES
DA HEFESTO CONFIRMAM A PRESENÇA DE SUA EMBARCAÇÃO NA
BATALHA.
Por um momento, estou surpreso que o Inquebrado tenha
deixado alguém vivo naquele comboio para dar testemunho. Mas
pensando bem, acho que faz sentido que deixem testemunhas para
ajudar a espalhar o medo. Não é como se os seguidores do
Starslayer tivessem medo de represálias. Ninguém na galáxia é
corajoso o suficiente para mexer com eles.
Exceto...
― Quem eu posso ou não ter adquirido não é da sua conta ―
responde Saedii.
― ESSES CRIMINOSOS SÃO PROCURADOS PELO GOVERNO TERRÁQUEO
POR TERRORISMO INTERGALÁCTICO ― diz Princeps. ― O BETRASKAN
FINIAN DE SEEL E O SYLDRATHI KALIIS IDRABAN GILWRAETH NÃO SÃO
DA NOSSA CONTA. MAS AGRADECERÍAMOS SE NOSSOS CIDADÃOS
FOSSEM DEVOLVIDOS A NÓS.
... Eles querem Auri.
O Ra’haam. A entidade Gestalt, incubada nesses vinte e dois
mundos no mapa estelar de Auri. Se eles a pegarem, eles têm o
Gatilho para a Arma Eshvaren. Eles têm a única pessoa que pode
impedir os planetas de florescer e espalhar os esporos do Ra'haam
por toda a galáxia. E estou tentando reunir fôlego para contestar,
para avisar Saedii que ela não pode nos entregar, para dar uma dica
do que está em jogo aqui.
Mas é claro, eu não precisava ter me incomodado.
― Eu sou uma Templária do Inquebrado ― ela anuncia, imperiosa.
― Warbreed por nascimento e verdade. Quaisquer prisioneiros que
eu possa ou não ter a bordo de minha embarcação são da minha
conta. E você está perigosamente perto de se intrometer nos
assuntos Syldrathi. Aconselho sua frota a se retirar. ― ela se inclina
para frente em sua mesa e olha carrancuda. ― Antes de ganhar à
ira do Starslayer.
E aí está. A última cartada para Fugir da Cadeia. Ninguém mexe
com o Arconte Caersan. Ninguém quer um cara que pode destruir
sistemas solares irritado com eles. É apenas uma política sensata,
realmente.
Mas, aparentemente, o Ra’haam não se importa muito com
Senso.
Princeps olha para alguém fora da tela.
― ALERTE A FROTA. TODAS AS EMBARCAÇÕES, ARMAS TRAVADAS NA
EMBARCAÇÃO SYLDRATHI ANDARAEL. CAÇAS, LANÇAMENTO PRONTO.
Princeps demora um pouco para obter uma resposta. Estou
supondo que, mesmo no calor deste momento, quem recebeu esse
pedido entende exatamente como ele é monumental. Terra não se
envolve em negócios Syldrathi. E certamente não abre fogo contra
uma nau capitânia do Inquebrado carregando um dos ajudantes de
confiança de Caersan. Se isso for para o sul, se essas naves se
engajarem...
... Pode significar guerra.
Mas, finalmente, ouvimos uma resposta fora da tela.
― Senhor, sim senhor.
Um minúsculo alerta soa um momento depois, soando em todo o
PA do Andarael. O tenente de Saedii soa nos comunicadores. Ele
fala em Syldrathi, mas entendo o idioma bem o suficiente para
entender.
Os Terráqueos conseguiram travar as armas.
As portas do compartimento do lutador se abrem.
E pela primeira vez, vejo uma pequena rachadura aparecer na
armadura da minha anfitriã. Ela esconde rapidamente, mas está lá.
Uma pequena lasca atrás de seus olhos.
Incerteza.
Ainda assim, ela zomba, olhando Princeps em sua máscara em
branco, aquela tradicional arrogância Syldrathi deslizando para o
lugar como uma máscara própria.
― Você está blefando, Terráqueo.
― ESTOU? ― Princeps responde.
A transmissão fica preta. Outro aviso vem do segundo em
comando de Saedii e ela responde, ordenando carregarem suas
armas e seus caças para preparar o lançamento. Estamos a cerca
de trinta segundos de um envolvimento em grande escala aqui. A
primeira vez que naves de guerra Syldrathi e Terráqueas abriram
fogo um contra o outro desde o Acordo de Jericho de ‘78 – o pacto
que encerrou oficialmente a guerra entre nossos mundos há dois
anos.
E eu vejo isso então. Como um quebra-cabeça colocado na minha
frente. Como um jogo de xadrez, uma dúzia de jogadas à frente. Eu
vejo o que está acontecendo aqui e aonde isso vai levar. E eu sei,
com uma certeza terrível, que existem apenas duas maneiras de isso
acontecer. Ou Saedii capitula e entrega Auri, o que nunca vai
acontecer. Ou os Terráqueos e os Syldrathi voltam à guerra.
Mas o Ra’haam vence de qualquer maneira.
Porque se a Terra vai para a guerra com o Inquebrado, o mesmo
acontece com nossos aliados, os Betraskans. Isso significa que a
Legião Aurora está subitamente envolvida. O conflito resultante pode
acabar sugando todas as raças sencientes da galáxia. E nesse caos,
nessa carnificina, nessa distração, o Ra'haam será deixado sozinho
para gestar. Até que esteja pronto para eclodir, irrompendo de seus
mundos-semente através dos Portões da Dobra próximos.
Crescer e estourar.
E então tem a galáxia.
― Saedii. ― eu suspiro, minha virilha ainda doendo. ― Não faça
isso.
― Fique em silêncio ― ela diz, nem mesmo me olhando.
Seus olhos estão em uma exibição tática, agora pulsando na tela
onde a imagem de Princeps costumava estar. Posso ver as naves
Terráqueas se aproximando, dois porta-aviões carregados de caças,
quatro destruidores armados até os dentes.
― Eles querem que você atire primeiro ― eu digo, desesperado
agora. ― Eles querem que você seja aquela que começa. Se você
abrir fogo contra aquela frota, isso quebrará a neutralidade entre
Syldrathi e Terráqueos, não entendeu? Significa que estamos em
guerra.
Ela me olha com aqueles olhos frios.
― Nós somos Warbreed, pequeno Terráqueo ― ela diz
simplesmente. ― Nós nascemos para a guerra.
Ela pressiona o transmissor em seu peito e meu coração afunda.
― Erien, notifique os Neridaa de que estamos enfrentando forças
terrestres hostis.
― Imediatamente, Templária.
― As armas estão prontas?
― Aguardando sua ordem, Templária.
― Saedii, não!
Seus olhos se estreitam.
Seus lábios se estreitam.
― Aniquile-os.
14
KAL

O Andarael é uma nave capital, tripulada por mais de mil


adeptos, Paladinos, dragões e pessoal de apoio. Portanto, é fácil
evitar a atenção enquanto marchamos em direção ao bloco de
detenção. Zila se arrasta diante de mim através da vazante e do
corredor, as restrições magnéticas presas, mas destravadas, em
seus pulsos. Recebemos um olhar ocasional, nada mais. Mas uma
parte de mim sabe que esse subterfúgio não pode durar.
Meu peito está com um hematoma escuro do disruptor disparado
a bordo do Totentanz. Minhas costelas estão ardendo como fogo. A
cigarrilha que Adams me deu interrompeu o pior do tiro, mas o
Inquebrado tirou o presente de mim enquanto eu dormia e não tenho
ideia de onde ela está agora. Acho que posso nunca saber o que
estava trancado dentro dela. Mas independentemente disso, eu sei
que salvou minha vida. Sei que fazemos parte de um grande mistério
aqui, há décadas ou mesmo séculos em formação.
O que não consigo entender é como isso vai acabar.
Zila me informou que Tyler foi levado aos aposentos de Saedii
para interrogatório – recuperá-lo significa confrontar minha irmã
diretamente. E ferido como estou, será difícil o suficiente tirar meus
outros companheiros de esquadrão da detenção sem se infiltrar no
centro de comando e controle para resgatar meu Alfa.
Minha irmã sempre foi cruel, mesmo quando éramos crianças.
Nossa mãe detestava, mas nosso pai encorajava. Eu imagino as
torturas que ela pode estar submetendo Tyler. Mas então eu
empurro as preocupações com Tyler da minha mente.
Primeiro, último e sempre, devo cuidar de Aurora.
Chegamos ao bloco de detenção e imediatamente noto que algo
está errado – as celas estão lotadas. É incomum para o Inquebrado
fazer prisioneiros. Mesmo em suas naves maiores, as instalações de
detenção são pequenas e frequentemente desativadas. Mas através
das paredes transparentes, dos campos de castigo crepitantes, vejo
centenas de figuras. Syldrathi, todos eles. Eles estão magros e
miseráveis e minha barriga afunda quando noto que cada um tem um
glif idêntico na testa. Um olho chorando cinco lágrimas. O mesmo glif
que minha mãe gerou.
Por que em nome do Vazio Saedii está capturando Waywalkers?
Não há tempo para perguntas. O adepto que comanda a ingestão
olha para Zila com uma leve perplexidade, volta seus olhos frios para
mim. Sua mesa é circular como o bloco de detenção ao nosso redor.
Ele é apenas um ou dois anos mais velho que eu, mas as medalhas
em sua armadura me dizem que ele não é novato.
― Qual é o seu negócio, adepto? ― ele me pergunta.
Eu olho ao redor da sala, o coração afundando. Eu tinha
planejado blefar para entrar aqui, dominar os poucos guardas de
surpresa. Mas há uma dúzia de sentinelas. Fortemente blindados.
Totalmente armados. Guerreiros e assassinos, todos. Vejo quatro
deles reunidos em frente à mesma cela e meu coração dispara
quando vejo Aurora deitada em uma chapa sozinha. Ela está
inconsciente. Amarrada, amordaçada e vendada. Um adesivo
dérmico em seu pulso liberando um fluxo constante de sedativos em
seu sistema nervoso.
Parece que minha irmã está levando o transporte de minha
be'shmai muito a sério.
Mas por que Saedii a quer, afinal?
E por que esses Waywalkers estão aqui?
Na cela ao lado de Aurora, vejo Scarlett e Finian, desamparados
e silenciosos em seus bancos. Eles foram separados dos Syldrathi
presos e sentam-se isolados uns com os outros. Scarlett me avistou,
ficando ligeiramente tensa. Uma leve raiva surge em mim, ao ver
meus amigos tratados assim.
Estou fazendo cálculos desesperados na minha cabeça. Existem
treze adeptos aqui. Posso sentir o Inimigo Interior rondando para
trás e para frente atrás dos meus olhos. Lutei contra ele desde que
deixei tudo isso para trás: a parte de mim que se delicia com o
derramamento de sangue e a dor. Tentando me tornar algo mais do
que fui criado para ser.
I’na Sai’nuit.
Mas ele pode sentir a tensão crescente em meus músculos
agora, sacudindo as barras de sua gaiola, torcendo minhas mãos
cada vez mais perto dos punhos.
Quebre-os, Kaliis, ele sussurra.
Mate eles.
Mas, por baixo da minha armadura, já estou ferido. E mesmo no
meu melhor, eu nunca poderia derrotar tantos. Eu empurro o Inimigo
de volta.
― Adepto. ― repete o diretor. ― Qual é o seu negócio aqui?
― Entrega de prisioneiro. ― eu explico, acenando para Zila. ― Nós
capturamos esta aqui rastejando nos dutos de ar.
O diretor pisca para Zila.
― Não fui notificado.
Eu dou de ombros. Minhas costelas suspiram em protesto.
― Se desejar, posso liberá-la de volta para o sistema de ventilação?
O adepto encontra meus olhos, irradiando desafio. Eu combino
seu olhar. Destemido. Não impressionado. Este é o caminho entre
Warbreed. Testando sempre. Os fortes sobrevivem. Os fracos
morrem. O medo não tem lugar entre aqueles que nasceram para a
guerra.
Finalmente, ele aponta.
― Coloque-a com os outros vermes Terráqueos.
Eu aceno concordando. Zila e eu marchamos pelo chão da área
de detenção, minhas botas batendo no metal. Uma das sentinelas do
lado de fora da cela de Scarlett e Finian desativa o campo de
punição brilhante e destranca a porta. Zila entra com a cabeça baixa.
Scarlett dá um abraço rápido nela e ela fica tensa, mas não se
afasta.
― Porco! ― Scarlett cospe em mim, ajudando com meu subterfúgio.
― Espero que você apodreça.
― Silencie sua língua, escória Terráquea. ― respondo em Syldrathi.
― Qual é o seu nome, adepto? ― vem uma voz atrás de mim.
Eu me viro lentamente, olho para o diretor. Ele está olhando para
o número de identificação gravado na minha armadura roubada,
consultando o terminal de computador atrás de sua estação. Em uma
tripulação deste tamanho, em uma nave deste tamanho, é possível
que as pessoas sejam meras conhecidas. Mas um completo
estranho é improvável. E como eu disse, esses Inquebrados não são
tolos.
― O meu nome? ― repito, a mão deslizando em direção ao rifle
disruptor em meu ombro.
― De acordo com os registros de tarefas, você deve estar de vigia
no inf–
― ALERTA VERMELHO! ― vem à chamada repentina. ― ALERTA
VERMELHO! EMBARCAÇÕES DA FORÇA DE DEFESA TERRÁQUEA EM
CURSO DE INTERCEPTAÇÃO. TODAS AS MÃOS NAS ESTAÇÕES DE
BATALHA.
Eu pisco enquanto o anúncio se espalha pelo sistema de som,
enquanto a iluminação cai para um tom de cinza mais profundo,
enquanto os Syldrathi na sala compartilham um olhar perplexo.
Terráqueos?
Atacando o Andarael?
O alarme continua soando. O som dos motores fica mais
profundo. Mas posso ler a expressão nos rostos dos guerreiros do
Inquebrado ao meu redor, refletindo meu próprio coração. Isto é
impossível. Nenhuma frota TDF ousaria atacar uma nave do
Inquebrado. Seria m–
― ALERTA VERMELHO! TERRÁQUEOS ADQUIRIRAM BLOQUEIO DE
ARMAS. CAÇAS DE ENTRADA. TODAS AS MÃOS PARA AS ESTAÇÕES DE
BATALHA IMEDIATAMENTE. ISTO NÃO É UM EXERCÍCIO!
Apesar da confusão, a tripulação de Saedii é bem treinada. As
sentinelas entram em ação, algumas falando em unidades de
comunicação, outras sacando armas. Dois marcham imediatamente
em direção às baias de lançamento. Vários outros se reúnem ao
redor da mesa do diretor, olhando com fria descrença em suas
exibições. Posso ver seis naves Terráqueas chegando em nossa
posição. Quatro destruidores. Dois carregadores pesados, eriçados
com caças.
Uma força como essa poderia enfrentar até mesmo uma nave tão
imponente como Andarael.
Se eles ousassem atacá-la...
Eles poderiam realmente derrotá-la.
Pelo canto do olho, vejo Zila tirar um uniglass de dentro da manga
e passá-lo para Finian. Nosso Gearhead se afasta da porta,
despercebido em meio ao clamor repentino, e trabalha febrilmente na
pequena tela brilhante.
Eu vejo a mão de Zila deslizando por baixo de sua túnica até sua
pistola disruptiva escondida.
Eu roubo a sentinela mais próxima.
― ALERTA VERMELHO! ― o PA chama. ― ALERTA VERMELHO.
MÍSSEIS EM DIREÇÃO. ENGODOS ENGAJADOS. TODAS AS MÃOS,
SUPORTE. LANÇAMENTO DE CAÇAS.
Finian encontra meus olhos e acena com a cabeça. O Andarael
se move abaixo de nós enquanto o leme se engaja em manobras
evasivas. Eu ouço o trovão de seus motores, o baque surdo
enquanto suas armas de pulso se abrem. O Inimigo Interior surge
contra a prisão de minhas costelas, ansiando por derramamento de
sangue. Ele quer estar lá fora com seus irmãos e irmãs, vadeando o
preto e o vermelho, deleitando-se com o gosto do sal e da fumaça,
dançando a dança do sangue.
Mas podemos dançar aqui muito bem.
Tiro meu rifle disruptor e atiro quatro disparos nas cabeças das
sentinelas mais próximas de mim.
Os dedos de Finian se borram em seu uniglass e o campo de
punição ao redor de sua cela finalmente cai.
Zila sai pela porta, atirando rapidamente e derrubando outra
sentinela com um tiro na espinha.
Eu jogo meu rifle para Scarlett, tiro as lâminas das minhas
costas. Ela pega a arma e o ar se enche de fogo disruptor: as
explosões aleatórias de Scarlett e as explosões mais refinadas de
Zila.
Os adeptos são pegos de surpresa, alguns se espalhando em
busca de cobertura, outros se virando para mim, e então estou
tecendo, cortando, balançando, enquanto o convés rola abaixo de
mim, enquanto os alarmes continuam a tocar, como a coisa que eu
não desejo ser ruge à minha superfície. Posso sentir a mão de meu
pai em meu braço, guiando meus golpes enquanto ele treina Saedii e
eu nos dias antes do colapso de nossa família, antes de nosso
mundo perecer.
Outro guerreiro cai sob minhas lâminas. Sinto o gosto de sangue
na minha língua. Um tiro disruptor me atinge no ombro e uma das
minhas lâminas se solta da minha mão aberta. Um tiro de Zila
interrompe a continuação e eu contra-ataco apesar da minha dor,
cortando a garganta do meu inimigo, fontes de sangue escuro
pintando o teto, as paredes, minhas mãos e meu rosto.
Mostre a eles quem você é, Kaliis.
Mostre a eles o que você é.
Então eu não sou nada. Nenhum pensamento. Apenas
movimento. Perdido no momento, o hino, a dança hipnótica e
vertiginosa do sangue. E quando a música é interrompida
repentinamente, quando um impacto de quebrar os ossos no casco
do Andarael me arrasta para fora do transe, eu olho em volta e vejo
o que fiz.
Nove corpos. Nove homens e mulheres, antes vivos e respirando
e agora nada além de carne fresca. Eu me sinto exaltado. Revulsivo.
Sinto a pulsação em meus ouvidos e o fedor do sangue em minhas
mãos.
Isso é quem você é, Kaliis, sussurra o Inimigo Interior.
Você nasceu para a guerra.
I’na Sai’nuit.
O Inimigo recua enquanto o Andarael estremece, impactos
pesados soando em seu casco enquanto os alarmes continuam a
soar. Eu olho para Scarlett se levantando do convés, para Finian
lutando para se levantar de onde ele caiu. Posso ver o horror em
seus olhos com a carnificina que criei. Zila é mais pragmática, mas
ainda assim, posso sentir uma sombra sobre ela enquanto examina o
chão escorregadio de sangue, os corpos. Eu posso sentir o medo
neles. Do que sou e do que faço. Mas nada disso realmente importa.
Porque é tudo por ela.
Aurora.
Eu pego uma chave mestra de uma sentinela caída, desativo o
campo de punição em sua cela. Ela está linda como sempre, os
olhos fechados em sono, cachos de preto e branco emoldurando
suas pálpebras tremulantes.
Enquanto eu destranco suas restrições, Zila desliza para dentro
da cela ao meu lado. Ela faz uma leitura rápida com seu uniglass,
remove o adesivo dérmico no pulso de minha be'shmai. Produzindo
os suprimentos médicos que roubou da enfermaria, ela pressiona um
ar hipodérmico na garganta de Aurora.
― Ela está fortemente sedada ― relata Zila. ― Vai demorar um
pouco para ela acordar.
― Eu vou carregá-la ― eu digo, varrendo-a em meus braços. ―
Precisamos nos mover.
― Seu ombro ― objeta Zila. ― Você está–
― Estou bem ― digo, saindo da cela. ― Nós devemos ir. Agora.
― Qual é o plano? ― Scarlett pergunta.
Outro impacto balança o Andarael, depois outro. Eu olho para o
terminal do diretor, vejo imagens da Dobra do lado de fora. A
paisagem colorida é em preto e branco, mas as águas ainda são
vermelhas. Três dos destruidores Terráqueos foram incinerados e um
de seus carregadores está incapacitado. Os Inquebrados estão
lutando sem medo. Brilhantemente. Mesmo assim, a batalha está
indo mal para Andarael. O vazio está fervilhando de lutadores – as
formas de buldogue de nariz arrebitado dos mustangs Terráqueos e
as silhuetas semelhantes a lâminas das corvetas Syldrathi – entrando
e saindo da tempestade de fogo cada vez maior. A grade de defesa
de Andarael foi destruída; Mísseis Terráqueos agora estão atingindo
seu casco. Outro impacto nos balança, faíscas explodindo da
instrumentação, alarmes gritando.
― VIOLANDO PODS A CAMINHO DO TRANSPORTE TERRÁQUEO ―
informa o PA. ― TODOS OS PREPARATIVOS PARA REPELIR OS VIAJANTES.
― Eles estão vindo para pegar Aurora... ― murmuro.
― Quem é você? ― uma voz exige.
Eu me viro e vejo um Waywalker alto olhando para mim de dentro
de uma das celas, cercado por compatriotas magros e exaustos. O
cabelo prateado dele está desbotado com o tempo, linhas finas
gravadas na pele ao redor de sua boca. Ele é um ancião, talvez
duzentos anos atrás de seus olhos. Ele teria vivido a glória antes de
nossa queda. Antes da ascensão do Starslayer. Antes de
abandonarmos a honra e começarmos a rasgar um ao outro como
um talaeni faminto por restos de comida.
Ele olha para o glif Warbreed em minha testa, para a carnificina
que eu causei entre os adeptos, claramente confuso. Posso sentir
sua mente roçando a superfície da minha, tentando refletir sobre
meu enigma.
― Não sou ninguém importante. ― respondo.
Virando-me para Finian, aceno para os cadáveres.
― Arranje uma arma, Finian de Seel. Nós devemos ir.
Scarlett franze a testa, olha para os Waywalkers presos.
― Você não pode simplesmente deixar essas pessoas aqui.
― Não podemos trazê-los conosco ― digo, marchando pelo
quarteirão. ― Não há espaço a bordo do Zero. E não há tempo para
discutir. Venha.
Zila balança a cabeça, já pairando sobre a saída, um rifle
disruptor nos braços.
― Seria um atraso inaceitável. E uma fuga em massa chamará a
atenção para a nossa.
― Eles podem causar uma confusão ― rebate Scarlett, olhando
para a cela mais próxima. ― Eles podem ajudar. Não podemos
simplesmente abandoná-los. Você não pode sentir a dor deles?
Uma ligeira carranca marca a testa de Zila e ela se vira para
olhar para nossa Face.
― Scarlett, nosso único e mais importante objetivo é apoiar Aurora
na prevenção da eclosão dos planetas Ra’haam em toda a Via
Láctea. Qualquer preço que nós ou outros pagarmos pelo sucesso
dessa missão é aceitável.
― Cada segundo que discutimos é outro desperdiçado ― eu digo,
ficando desesperado.
― Temos um tempinho? ― Finian pergunta. ― Zila já conseguiu os
dados de Hefesto e nossos uniglasses de volta.
― Eu tenho todos eles comigo ― Zila diz, dando um tapinha em seu
bolso.
― SIM, EU ESTOU AQUI, EU ESTOU AQUI, NINGUÉM ENTRE EM PÂNICO!
― vem uma voz baixa e abafada.
― Modo silencioso ― diz Zila.
― Precisamos resgatar seu irmão e sair desta nave, Scarlett. ― eu
digo.
― Meu irmão seria a primeira pessoa a libertar essas pessoas ―
diz Scarlett. ― Não se atreva a usá-lo como desculpa para
abandoná-los.
Ela marcha pela sala e começa a remexer no uniforme do diretor
morto. Outra explosão abala o Andarael. Em meus braços, Aurora
franze a testa em seu sono. A ferida em meu ombro é uma agonia
lenta e sangrenta. As luzes estão piscando de branco para cinza, os
alarmes quase ensurdecedores.
― VIOLAÇÃO NOS DECKS 17 E 12 ― diz o PA. ― SEGURANÇA E
TODAS AS MÃOS DISPONÍVEIS PARA 17 E 12.
― Scarlett, não temos tempo para isso. ― diz Zila.
A nave estremece novamente quando Scarlett finalmente
recupera uma chave mestra. Posso sentir o cheiro de fumaça agora,
combustível e carvão. Meu coração está batendo forte, o estômago
revirando enquanto Scarlett se move de uma cela para outra,
arrastando os pés pela sala inteira e libertando uma enxurrada de
Waywalkers confusos e desesperados. Andarael salta como uma
criatura selvagem sob nossos pés.
Aurora abre os olhos em meus braços.
― Kal? ― ela sussurra.
― Está tudo bem, be'shmai ― eu digo e naquele momento, apesar
de tudo, é verdade.
― Filho da mãe. ― ela geme. ― Eu sinto que alguém me mastigou e
cuspiu para fora. Aquela sua irmã... ― ela pisca com força, olhando
ao nosso redor para a fumaça, os corpos, os Waywalkers em fuga.
― O que está a-acontecendo?
― Estamos deixando este lugar. Você pode andar?
― Scar, vamos lá ― implora Finian.
Ajudando Aurora a descer no convés, eu grito:
― SCARLETT, TEMOS QUE IR!
Scarlett mata o campo de punição e abre a cela final. O mais
velho e seus companheiros tropeçam em uma liberdade gritante e
caótica.
― Gratidão, jovem Terráquea. ― diz ele.
― Vá para as baias de transporte ― diz ela. ― Saiam já daqui.
Ele a estuda por um longo momento e então balança a cabeça
profundamente, olhos fechados, entrelaçando os dedos de ambas às
mãos. Tratando nossa Face com a marca de respeito que ele
normalmente reservaria para outro Waywalker.
― Se pudermos pagar nossa dívida com você ― diz ele, digno em
meio ao caos. ― você nos encontrará na estação de Tiernan. Eu sou
Élder Raliin Kendare Aminath.
Scarlett leva tempo para oferecer um aceno cortês em troca,
embora agora até ela esteja claramente possuída pela necessidade
urgente de fugir.
Os Waywalkers reúnem algumas armas e se lançam na fumaça e
na carnificina. A nave balança abaixo de nós enquanto as luzes
piscam e morrem, mergulhando-nos na escuridão repentina. Seguro
Aurora com força contra o peito, apesar da dor.
― VIOLAÇÃO NO DECK 4 ― diz o PA. ― SEGURANÇA PARA
COMANDO E CONTROLE. TODO O PESSOAL SE EQUIPE COM TRAJES
AMBIENTAIS EM CASO DE PERDA DE ATMOSFERA.
A iluminação de emergência entra em ação, nós cinco nos
encarando na escuridão.
― Essa violação está perto das câmaras de Saedii ― eu digo. ―
Onde Tyler está.
― Nós gastamos muito tempo para uma tentativa de resgate ― Zila
diz categoricamente. ― Precisamos chegar à doca. Com a
tecnologia de camuflagem do Zero e o caos se desenrolando do lado
de fora, podemos escapar sem ser detectados.
― Mas... ― Finian olha para trás e para frente entre nós. ― Não
podemos deixar Tyler!
― Não podemos arriscar levar Aurora para mais perto das
embarcações do TDF. ― diz Zila. ― Ela é tudo o que importa aqui.
Ainda turva por causa das drogas, Aurora balança a cabeça, em
busca de foco. Os segundos passam, todos nós em silêncio.
Percebo de repente o quão importante Tyler é para o nosso time.
Estamos sem líder sem ele – ninguém para tomar a decisão
precipitada, a decisão difícil, de assumir a responsabilidade
agonizante de colocar os outros em perigo.
― Auri ― diz Fin. ― Você pode usar... Quero dizer, seu poder ou
algo assim?
Seus olhos se arregalam com isso. Posso ver a memória do
Hadfield brilhando neles. Sua perda de controle na seção crio, o
caos e a destruição que ela causou. Ela poderia ter nos matado. Nós
sabemos. Ela sabe disso. E seus olhos estão acesos com o medo
do que pode acontecer se ela perder o controle novamente.
― Eu... ― ela olha para mim, angústia em seu olhar. ― Eu não acho
que posso...
― Está tudo bem, be'shmai ― eu digo, beijando sua testa.
― Eu não quero machucar ninguém, eu–
― Leve Auri para o Zero ― Scarlett dispara, olhando para mim. ―
Zila está certa – não podemos arriscar que ela seja pega pelo TDF.
Se eu não descer lá em dez minutos, você da o fora daquela baía e
não olha para trás.
― Onde você está indo? ― Fin exige.
Scarlett caminha até um armário de suprimentos de emergência
perto do console do diretor, pega uma máscara de respiro que
encontra dentro. Pegando o rifle disruptor que dei a ela, ela verifica a
alimentação de energia.
― Eu vou buscar Ty.
― Scarlett, isso não é sensato ― diz Zila.
― Os corredores estarão apinhados de adeptos e tropas de assalto
TDF. ― digo.
Ela encontra meus olhos então. Fogo queimando em seus
próprios.
― Ele é meu irmão, Kal.
Mais uma vez, estou impressionado com o empate entre os
gêmeos Jones. Quão profundo é o vínculo entre eles em
comparação com o que compartilho com Saedii.
Lembro que já fomos próximos. Quando éramos crianças em
Syldra, quando nossos pais ainda se amavam, éramos dois
inseparáveis. O sangue entre nós é mais parecido com água agora.
A memória de nossa mãe, o espectro de nosso pai sempre pairando
entre nós. Se eu estivesse em perigo, sei que ela me deixaria
apodrecer, e uma parte de mim dói – mais profundamente do que a
ferida em meu ombro, do que os hematomas em minhas costelas, do
que a certeza de que não posso acompanhar Scarlett nessa busca.
Que não posso colocar Aurora em perigo.
― Scarlett ― Aurora sussurra, com lágrimas impotentes nos olhos.
― Me desculpe... Eu...
― Eu sei ― ela concorda. ― Apenas vá.
Finian pega um respirador e coloca no ombro um rifle roubado.
― Bem, eu vou com você.
Scarlett abre a boca para protestar, mas ele a interrompe.
― Nem tente argumentar ― diz ele. ― Você não vai subir sozinha,
Scar.
Scarlett olha o menino magro de cima a baixo, a mão apoiada no
quadril, os lábios se contorcendo em um sorriso malicioso.
― Ainda sofrendo com aquele ataque de heroísmo estúpido, hein?
Ele encolhe os ombros.
― Esperemos que não seja um caso terminal.
A nave balança embaixo de nós. Sob o grito dos alarmes,
podemos ouvir o barulho de um disruptor distante. Gritos de dor.
Ordens gritadas e metais retorcidos e chamas rugindo. O gosto de
plástico queimado paira pesadamente no ar.
― Dez minutos. ― avisa Zila. ― Então vamos partir sem vocês.
Scarlett acena com a cabeça.
― Auri é a única coisa que realmente importa. Cuide dela, Kal.
― Com minha vida. ― eu juro.
― Tenha cuidado. ― implora Aurora.
Sem outra palavra, Scarlett e Finian colocam suas máscaras de
ambiente e correm para o caos crescente. Eu pego um último
vislumbre deles, lado a lado, antes que desapareçam totalmente na
fumaça.
Sabendo do perigo para o qual eles voam, me pergunto se
veremos algum deles vivo novamente.
15
TYLER

Eu realmente deveria ter estudado mais meu Syldrathi.


A ponte ao meu redor está em uma espécie de caos rigidamente
controlado. A arrogância Syldrathi é lendária e eles normalmente
fazem do "indiferente" uma forma de arte, mas tudo isso – a
arrogância, o legal, a atitude nós somos muito melhores do que
você – está sendo forçada ao ponto de ruptura. Alguns desses
Inquebrados estão chegando ao ponto de levantar suas vozes, então
eu sei que os negócios estão ficando sérios. Só consigo entender
cada sexta palavra, mas são as mais importantes. Palavras como
esgotado e destruído. Palavras como incapaz e sem resposta.
Palavras que significam que Andarael está perdendo.
Sem tempo para me mandar para a brigada e não querendo me
deixar em seus aposentos, Saedii fez seu guarda pessoal me
arrastar até a ponte com ela, me empurrando para um canto para
assistir aos fogos de artifício. A verdade é que nunca vi uma batalha
desse porte ao vivo antes e o nerd de táticas que habita em mim
está pasmo. Estudando os movimentos e contra-movimentos, as
exibições holográficas projetadas em todas as paredes, imagens
brilhantes de carregadores e destruidores e caças sobrepostas com
a escrita Syldrathi.
Por mais incompreensível que seja o texto, ainda posso apreciar
a batalha que se desenrola ao nosso redor. Por mais que odeie
admitir, Saedii é uma comandante brilhante. Ela fica no centro da
ponte, Isha em seu ombro, dirigindo a batalha como um maestro
diante de sua orquestra. Ela age decisivamente, pensando
rapidamente, lendo o conflito perfeitamente. Ela dá ordens sem
hesitar e sua tripulação obedece instantaneamente – é como assistir
ao funcionamento interno de uma máquina mortal.
O Andarael é uma nave impressionante, com o dobro do poder
de fogo de qualquer nave da armada Terráquea. Mas ela está em
menor número e armada aqui. E a ultima cartada para Fugir da
Cadeia não funcionou, e embora ela tenha destruído três naves e
ferido gravemente outra, os contra-ataques de Saedii estão falhando
em face de números superiores. Não importa o quão inteligente a
comandante seja, sua única opção agora é fugir. E isso é algo que
um Templário do Inquebrado nunca vai fazer.
Outro míssil atinge nossa popa, sacudindo o Andarael em seus
ossos. Os artilheiros TDF estão mirando em nossos motores e
sistemas de orientação, tentando nos paralisar. Os relatórios estão
chegando dos conveses inferiores – os grupos de abordagem
Terráquea estão caindo em suas cabeças na ponte, fuzileiros navais
da TDF em trajes de armadura de força abrindo caminho
inexoravelmente pelos defensores do Inquebrado. Os números são
sombrios; cada Syldrathi está matando pelo menos cinco soldados
Terráqueos antes de cair, mas o TDF simplesmente tem mais corpos
para jogar, e eles estão jogando tudo o que têm.
É um matadouro lá embaixo.
Parte de mim ainda não consegue compreender que isso está
acontecendo. As ramificações de um confronto como este – uma
carnificina total entre as tropas Terráqueas e Inquebrado – nem
quero pensar no que isso significará para a galáxia...
Todos os guerreiros do Inquebrado na ponte usam respiradores
em caso de perda de atmo, mas ninguém foi gentil o suficiente para
me dar um. Posso sentir o cheiro de fumaça no ar agora, carne
queimada, polis carbonizado. Outra cápsula de violação cai no
convés inferior, cheia de ainda mais fuzileiros navais. Eu sinto o
impacto pelo chão, subindo pela minha espinha. Não tenho certeza
de quanto mais deste, Andarael pode aguentar.
E então o tenente de Saedii fala, suas palavras trazendo súbita
quietude à ponte. Eu só pego três delas. Mas, novamente, elas são
as mais importantes.
Transmissão.
Arconte Caersan.
O nome é como um soco no meu estômago. Eu fico tenso, todos
os pensamentos sobre a batalha sumiram da minha cabeça. Saedii
se afasta de suas exibições táticas, fala suavemente e a projeção
central da batalha que está ocorrendo do lado de fora desaparece,
substituída por outra imagem.
A imagem de um homem.
Honestamente, não tenho certeza do que estava esperando. Não
importa o que os livros de histórias digam, os monstros raramente se
parecem. Cresci odiando esse homem por tudo que ele tirou de mim.
Mas olhando para o assassino em massa mais infame da história
galáctica, o homem responsável pela Incursão de Orion, a destruição
de seu próprio planeta natal, a morte de meu pai, eu esperava algo
pelo menos um pouco horrível.
O Starslayer é...
Criador, eu não sei o que ele é...
Impressionante, talvez?
O Arconte do Inquebrado é alto como todo o seu povo, vestido
com um traje ornamentado como armadura de batalha Syldrathi,
fixado com um longo manto escuro. Os ângulos de seu rosto são
cruéis, suas maçãs do rosto altas, suas orelhas se estreitando em
pontas afiadas. Seu longo cabelo prateado está penteado para cima
e sobre o glifo Warbreed em sua sobrancelha em dez tranças
intrincadas, curvando-se para baixo para cobrir um lado de seu rosto.
E esse rosto é como algo saído de uma simulação – lindo e terrível
demais para ser real. É quase doloroso pensar que uma superfície
tão perfeita poderia estar tão podre por baixo.
Mas é o olho dele que mais me impressiona. Aqui na Dobra, não
consigo ver o violeta de sua íris. Mas seu olhar ainda é penetrante
em intensidade. Eu me encontro preso e indefeso diante dele, como
se ele pudesse realmente ver dentro da minha alma.
Sua mera presença na tela traz silêncio para a ponte, mesmo no
meio de um tiroteio total. Ele irradia autoridade, gravidade, medo,
como uma estrela irradia calor.
Ele fala com Saedii, sua voz escura como fumaça e suave como
o semptar Larassian. A transmissão está vindo do Criador sabe de
onde, então Saedii fala rápido, espalhando tudo. Eu a ouço dizer o
nome de Aurora. Nome de Kal. Ataque e Terra e batalha e não pode.
Levará alguns minutos para que a mensagem dela chegue até ele
através do espaço interestelar, mesmo através das distâncias
encurtadas na Dobra. Nesse ínterim, Saedii volta para a batalha que
está ocorrendo lá fora.
Relatórios de danos estão chegando de toda a nave. Os motores
do Andarael agora estão offline. As sirenes de alerta ainda estão
soando, o fedor de fumaça está ficando mais forte, as exibições
táticas são preenchidas com a dança e os padrões de fogo dos
lutadores que ainda travam guerra do lado de fora.
Finalmente, vejo a bela face do Starslayer se contorcer – a
resposta de Saedii chegou ao seu fim. Seu olhar escurece e seus
lábios formam uma linha fina e apertada. Eu vejo a incredulidade,
rapidamente se transformando em fúria e ódio – o tipo de raiva que
poderia levar um homem a destruir seu próprio mundo. O tipo de
raiva que mata bilhões.
― Eles ousam? ― ele cospe.
Ele abre a boca para falar novamente, mas nunca ouvimos o
resto. Algo atinge a ponte de Andarael com força, uma explosão de
luz branca e fogo estridente, e de repente sou jogado para o lado,
batendo na parede atrás de mim enquanto o mundo inteiro vira de
cabeça para baixo. A explosão é cegante, gritante, quase
ensurdecedora e por um breve momento me pergunto se é isso. Se
este é o lugar onde vou morrer.
Tenho seguido os princípios da Fé Unida, vividos da melhor
maneira que posso; Eu deveria estar em paz. Mas eu não quero ir
ainda – há muito para deixar para trás, muitas pessoas de quem
gosto, muito em jogo. E então eu agarro, sombrio, cravando minhas
unhas e me recusando a soltar. Gritando com aquela escuridão.
Ainda não.
Ainda não.
Eu abro meus olhos. Eu vejo metal retorcido. Sufoco com a
fumaça preta.
A ponte sofreu um impacto direto, a explosão despedaçando o
casco como papel alumínio. O poder morreu, as telas dispararam.
Corpos intactos jazem onde caíram, mortos ou moribundos, o sangue
roxo Syldrathi ficou cinza pela Dobra e respingou no chão. O guarda
que estava me observando foi empalado em uma haste retorcida, os
olhos sem vida. Os incêndios estão queimando entre os sistemas de
computador. O convés se inclina para a esquerda – os sistemas de
gravidade artificial ainda estão online, mas os motores estão
desligados, e Andarael agora está à deriva, de lado e indefeso no
escuro.
Eu verifico para ver se algo está quebrado, mas em algumas
horas eu estarei ferrado (presumindo que eu saia da Dobra vivo),
alguns cortes profundos parecem ser o pior de tudo. Meus ouvidos
estão sangrando. Olhos queimando com a fumaça. Eu me levanto
cambaleando com um gemido, tiro a máscara de respiro da cabeça
do guarda morto e a pistola disruptiva de seu cinto. Todos os
Syldrathi na ponte estão de costas ou de barriga para baixo, mas
através do metal amassado e chuvas de faíscas, posso ver que mais
do que alguns estão se movendo, voltando à consciência após a
explosão.
Eu preciso sair daqui.
Preciso encontrar Scar e os outros.
Mas minhas chances disso são zero. Estudei as naves capitais
Syldrathi, mas não conheço seus layouts internos tão bem quanto os
das embarcações Terráqueas – só tenho uma vaga noção de onde
estão as baías do hangar, quanto mais os níveis de detenção. E
mesmo que os conveses inferiores não estivessem repletos de
fuzileiros navais Terráqueos, ainda há o Inquebrado para lidar. Eu
não tenho nenhuma vantagem aqui, nenhum...
Aproveito.
Eu ouço um grito de réptil, localizo Isha através da fumaça, asas
abertas, gritando sua angústia. A pequena drakkan está empoleirada
em uma seção desmoronada do teto e, abaixo dela, de costas, vejo
Saedii. Suas pernas estão presas, seus dentes à mostra em um
grunhido. Ela está tentando se libertar, mas não tem como escapar
do peso.
O piso de espuma temperada e os instrumentos estão em
chamas, alarmes gritando. Os sistemas de supressão de incêndio
devem estar offline e as chamas estão se espalhando em direção a
Saedii. Ela pragueja, socando o metal em frustração. Isha grita
novamente, pequenas garras arranhando os destroços em uma
tentativa desesperada de libertar sua dona.
Eu cambaleio pela ponte em chamas, descendo o chão inclinado.
Saedii ergue os olhos enquanto eu me aproximo dela, o alívio
momentâneo em seu rosto obscurecido quando ela percebe que eu
não sou um de sua tripulação que veio para resgatá-la.
Isha solta um grito de advertência enquanto eu coloco meu
disruptor na função de Matar e o nivelo no rosto de Saedii. A
Templária encontra meus olhos.
Destemida.
Inquebrada.
― Faça isso ― ela cospe. ― Terráqueo covarde.
Eu giro a pistola, explodo o metal quebrado, derretendo-o
parcialmente. Abaixando-me, agarro e levanto o peso, meu rosto fica
vermelho com a tensão. Saedii estremece e empurra, mas consegue
se arrastar para fora dos destroços. Enquanto ela se contorce,
posso ver o sangue encharcando as calças do uniforme em um tom
mais escuro de preto. Ela desaba, o rosto contraído e úmido de
suor. Ela esconde a maior parte de sua expressão, mas ainda posso
ver a dor em seus olhos.
― Por quê? ― ela sussurra, olhando para mim. ― Por que me
salvar?
― Eu não estou salvando você. ― eu digo.
Eu me inclino, passando o braço dela em volta do meu ombro e a
puxo para cima. Ela engasga de dor, mas se endireita, os dentes
cerrados, o rosto manchado de sangue.
― Estou salvando meus amigos.
Eu deveria deixá-la aqui. Deixa-la queimar com o resto desses
assassinos. Mas se eu tenho Saedii em mãos, tenho alguém que
pode me guiar pela nave, evitando os Terráqueos que se aproximam.
E ainda tenho a vantagem de que preciso para manter os outros
adeptos do Inquebrado longe de mim. E por mais que eles pareçam
se desprezar, não tenho certeza se Kal gostaria que eu deixasse sua
irmã queimar até a morte aqui.
― Qual é o caminho para os níveis de detenção? ― eu pergunto.
Ela cospe na minha cara, proferindo uma maldição cruel em
Syldrathi. Eu chuto sua perna machucada e ela realmente grita de
agonia – o primeiro sinal de fraqueza que eu já vi ela mostrar. Eu
empurro meu disruptor sob seu queixo, ainda definido para Matar.
― Não faça isso de novo ― eu digo.
― Ou o que?
Inclinando-me para perto, encontro seu olhar fixo com o meu. Tão
difícil. Tão determinado quanto.
― Ou eu vou fazer você pagar pelo que seu povo fez ao meu pai. ―
eu estalo. ― Agora me diga o caminho para os níveis de detenção.
Ela me encara de volta, olhos como gelo. Eu pressiono a pistola
sob seu queixo com força suficiente para fazê-la estremecer.
Finalmente, ela acena para as portas da ponte, e eu já estou me
movendo, meio carregando, meio arrastando-a para fora das
chamas crescentes e para o corredor além. Isha segue, esvoaçando
de um poleiro a outro e gritando de angústia.
― Cale a boca dela ― eu digo. ― Ela vai derrubar todo o TDF em
nossas cabeças.
― Covarde. ― Saedii aponta a palavra para mim como uma arma.
Eu pressiono a pistola com mais força em sua pele.
― Qual caminho?
Ela acena com a cabeça novamente, os dentes à mostra, os
olhos brilhando de ódio. E assim vamos nós. Lento. Cambaleando.
Tateando nosso caminho em meio à fumaça cada vez mais densa, os
alarmes uivantes. Um esquadrão dos Inquebrados tropeça em nós
quando alcançamos uma escada auxiliar, seu líder clama para que eu
pare. Mas enquanto eles levantam suas armas, um pelotão de
fuzileiros navais do TDF irrompe por uma escada atrás deles. O ar
está cheio de tiros disruptivos, o anel das lâminas, os gritos dos
moribundos.
Eu arrasto Saedii para a escada. Os soldados TDF rugem para
que paremos sobre o estrondo do tiroteio, o estrondo de outro
ataque de míssil. Nós tropeçamos para baixo, Isha circulando atrás,
Saedii quase caindo. Minha respiração está queimando em meus
pulmões, mesmo com a respiração, a fumaça enchendo o poço e
tornando quase impossível ver. Nós explodimos em um nível inferior,
um calor abrasador, uma fumaça mais densa.
― QUAL CAMINHO? ― eu grito.
A irmã de Kal faz uma careta e acena com a cabeça, e nós
tropeçamos. Andarael está inclinado, o piso inclinado quase quarenta
e cinco graus. Saedii está sangrando muito, pegadas sangrentas no
chão atrás de nós. Sua lesão é provavelmente a única razão pela
qual ela ainda não tentou me dominar, mas não tenho certeza de
quanto tempo ela consegue ficar de pé. Não tenho tempo de sobra,
mas se ela desmaiar aqui...
Eu a coloco contra a parede, seus cílios vibrando contra suas
bochechas. Isha pousa em um poleiro próximo, grita comigo,
pequenas presas afiadas brilhando na luz bruxuleante. Olhando
Saedii, vejo que suas calças agora estão encharcadas de sangue,
suas botas cheias dele. Algo importante foi cortado ou esmagado
sob os destroços. Eu arranco minha camisa, rasgo em tiras enquanto
os alertas gritam através do PA. Saedii estremece quando eu enrolo
o tecido em volta de sua coxa ferida para estancar o sangramento.
― Fraco. ― ela sussurra.
― Sim, sim. ― eu digo, amarrando meu torniquete improvisado.
― Desgraçado.
― Cale a boca, ― eu suspiro, jogando seu braço em volta do meu
ombro e a colocando de pé novamente. ― antes que eu esqueça
minhas maneiras.
Ouço botas pesadas descendo a escada atrás de nós. Uma
Syldrathi solitária tropeça ao longo do corredor enfumaçado à frente,
seus olhos se arregalando ao reconhecer sua Templária pendurada
mole nos braços de um garoto Terráqueo sem camisa. Ela levanta
sua arma, mas a minha já está levantada e com um BAMF! ela cai no
convés.
Eu luto com Saedii pendurada no meu ombro, me movendo o
mais rápido que posso. Chegamos a um cruzamento e exijo saber o
caminho. Saedii murmura uma resposta. Esses fuzileiros navais
devem estar bem atrás de mim – não há como eu lutar contra eles
se eles nos pegarem, e não há nenhum lugar onde eu possa me
esconder. Estou percebendo rapidamente que, se quisermos sair
dessa, precisamos de algo muito próximo de um milagre.
E então eu a vejo.
No final do corredor, avançando em meio à fumaça, o rifle
disruptor nos braços. Cabelo vermelho-fogo, olhos grandes tão azuis
quanto os meus, tudo cinza descolorido pela Dobra. Nas bordas de
sua máscara de ambiente, seu rosto está manchado de fuligem,
sujeira e sangue. Mas eu nunca a vi tão bonita como agora.
― Scarlett. ― eu sussurro.
Finian está ao lado dela, agachado. Ele me localiza primeiro,
gritando sobre os alarmes, o incêndio, os alertas.
― ALI ESTÁ ELE!
Confuso, tropeçando e arrastando Saedii para frente, sinto um
sorriso idiota estourar no meu rosto. Scarlett dispara pelo corredor
em minha direção. Meu milagre, exatamente como ordenado.
E é quando algo nos atinge.
Não é grande o suficiente para ser um míssil. Um pedaço de
alguma nave, talvez, ou um lutador se lançando fora de controle no
flanco de Andarael. O golpe atinge o piso acima de nós, entortando
o casco. O impacto é como um trovão, jogando Saedii e eu contra a
parede. Eu bato com um suspiro, ela bate em mim, e então nós dois
estamos caindo no convés, meu disruptor escorregando de minhas
mãos. A inconsciência acena, oferecendo-me calor, escuridão e
silêncio, e eu a empurro de volta, com sangue na boca.
Eu abro meus olhos. Alarmes estão gritando sobre uma violação
do atmo e abaixo deles posso ouvir o silvo mortal de gás escapando
para o espaço. Com o coração apertado, vejo que o corredor à
frente se dobrou – o teto desabou, os cabos elétricos rompidos
lançando corrente elétrica. Além dos destroços, vejo Finian de
joelhos. Minha irmã se arrastando para ficar de pé.
― SCARLETT! ― eu rujo. ― VOCÊ ESTÁ BEM?
― SIM. ― ela tosse. ― E VOCÊ?
― ESTOU BEM ― grito.
― Eu quero mesmo perguntar por que você está sem camisa agora?
― Abdomens como esses anseiam para serem livres, Scar.
Ela ri da piada, mas através dos destroços, posso ver o sorriso
morrer em seus lábios quase que instantaneamente. O corredor é
intransitável – não podemos chegar um ao outro sem uma tocha
cortante ou explosivos. Atmo está vazando do casco e, embora
estejamos todos usando equipamento ambiente, se os sistemas de
triagem do Andarael ainda estiverem online, a nave irá selar este
corredor para evitar mais perda de oxigênio em toda a nave.
― Você precisa sair daqui, Scarlett! ― eu chamo.
― Cale a boca, Tyler! ― ela diz. ― Finian, me ajude com isso.
Ela começa a puxar os destroços, tentando abrir a lacuna grande
o suficiente para me deixar passar. Os cabos cortados faíscam e
cospem quando Finian se inclina contra o metal, o exosuit gemendo
quando ele se coloca de costas.
― Scar, você não será capaz de–
― EU NÃO VOU DEIXAR VOCÊ! ― ela grita. ― AGORA CALE A
BOCA!
Meu coração torce com o tom de sua voz. As lágrimas nos olhos
dela. Porque por mais que ela possa fingir ser, minha irmã não é
simples. Ela sabe a matemática aqui.
E então ouço botas pesadas atrás de mim. O som de rifles
disruptor ligando. Uma voz, cheia de reverberação, falando
Terráqueo.
― MÃOS PRA CIMA!
Eu me viro e vejo o pelotão de fuzileiros navais do TDF. Sua
armadura de força é grande, volumosa, sem graça, decorada com o
tipo de grafite que os soldados usam para preencher o tempo entre
os combates. COMA ISSO. GUERRA É INFERNO. O tenente tem
CANIBAL estampado em seu peitoral. Os olhos em seus capacetes
estão brilhando, membros gemendo enquanto as miras de laser em
seus rifles iluminam meu peito.
Uma dúzia deles. Um de mim.
Probabilidades ruins, mesmo nos melhores dias. E isso está
muito longe disso.
― Saia daqui, Scar. ― eu digo baixinho.
― Tyler–
― Auri é tudo o que importa.
― DE JOELHOS, LEGIONÁRIO JONES! ― o canibal berra. ―
DEVAGAR!
Eles sabem meu nome. Instruídos pelo Princeps para nos trazer
vivos, estou apostando. Aurora acima de tudo. Eu levanto minhas
mãos, afundo no chão. Saedii amaldiçoa e tenta se levantar, mas
uma explosão de atordoamento a derruba de volta. Isha grita e
mostra os dentes, se lança contra os fuzileiros navais. Uma dúzia de
tiros mortais ressoa no corredor e a pequena drakkan cai no convés
em um respingo de sangue escuro.
― NÃO! ― Saedii grita, tentando se levantar novamente.
Outro punhado de tiros de atordoamento ressoa–
BAMF!
BAMF!
BAMF!
– e a Templária do Inquebrado afunda, silenciosa e imóvel.
Eu olho por cima do ombro e vejo o rosto da minha irmã gêmea
através dos destroços, com lágrimas escorrendo por ele. Eu posso
ouvir a voz do papai na minha cabeça. Sentir suas mãos bagunçando
meu cabelo daquele jeito que eu odiava, ouvi-lo falando comigo
daquele jeito que eu amava. Como se ele estivesse dizendo algo
importante. E eu era digno disso.
Cuide de sua irmã.
― Mostre o caminho, Scarlett.
― Tyler... ― ela sussurra.
― Eu disse que você poderia se ver fazendo isso sem mim um dia,
lembra? ― eu olho para o garoto ao lado dela, seu rosto com um
tom mais pálido de branco. ― Cuide dela para mim, Fin. Isso é uma
ordem.
―... Sim senhor ― ele concorda. Pegando suavemente o braço de
Scarlett, ele fala com ela suavemente. ― Temos de ir.
― Não... ― ela diz, balançando a cabeça. ― Não.
― Scar, desculpe, temos que ir! ― Finian chora.
Sinto mãos de metal me agarrar e me empurrarem para o
convés, restrições magnéticas batem em meus pulsos. Os fuzileiros
navais forçam meu rosto contra o chão, então não preciso ver o olhar
dela enquanto seu coração se parte. Mas eu ouço seus soluços
quando minha gêmea finalmente deixa Finian arrastá-la para longe da
única família que ela ainda tem.
― Eu te amo, Scar!
Um rifle disruptor zumbe. Um dedo aperta o gatilho.
BAMF!
E a escuridão desce como um martelo.
16
SCARLETT

A corrida de volta ao Zero é um borrão. Meus olhos ardem de


suor e lágrimas. A nave inteira está inclinada, o convés se afasta de
nós enquanto Finian e eu tropeçamos em meio à fumaça e à
carnificina, em direção à baía de atracação. A iluminação está
piscando, falhando – até mesmo os sistemas de energia de
emergência do Andarael estão lutando agora. Os corredores estão
repletos de cadáveres Terráqueos e Syldrathi, o sangue pegajoso
sob nossos pés. Esta nave se tornou um matadouro. E se não
sairmos disso logo, estaremos mortos na melhor das hipóteses, ou
de volta nas mãos do GIA na pior.
Penso em Tyler, meu coração doendo tanto que quase caio. Por
um momento, Finian é a única coisa que me mantém em movimento,
com o braço em volta do meu ombro, me arrastando através do
turbilhão cinza, das faíscas chovendo, dos alarmes uivantes. Eu sinto
que traí Ty de alguma forma. Como se eu tivesse deixado a parte
mais importante de mim para trás. Mas então eu ouço a voz do meu
irmão dentro da minha cabeça, vejo seus olhos enquanto ele falava
comigo.
Mostre o caminho, Scarlett.
Isso é o que todos os bons líderes fazem, de acordo com o
grande falecido Jericho Jones:
Conheça o caminho.
Mostre o caminho.
Siga o caminho.
Essas são as palavras pelas quais Ty sempre viveu. A razão pela
qual ele passou a vida inteira cuidando de mim e de todos ao seu
redor. A tocha que ele carrega desde que papai morreu. Eu sei que
ele passou para mim porque ele não consegue mais carregá-la
sozinho. Ele está confiando em mim. Contando comigo para ver o
resto de nós através disso.
Mostre o caminho.
Então eu fico mais ereta, me solto do aperto de Finian,
segurando o rifle disruptor contra o meu peito. A máscara de
ambiente ainda está fixada no meu rosto, então não posso enxugar
minhas lágrimas. Mas posso empurrá-las de volta. Prende-las para
outra hora, outro lugar, onde o destino de toda a maldita galáxia não
esteja em jogo.
― Você está bem? ― Fin me pergunta.
Eu fungo forte, engulo com mais força. Toco na tela do meu
uniglass.
― Kal, você pode me ouvir?
― Afirmativo, Scarlett. ― vem a resposta sempre fria. ― Qual é a
sua localização?
― Estamos a caminho do Zero, você pode manter a posição?
― Não por muito tempo. Você deve ser rápida.
― Diga a Zila para aquecer os motores e se preparar para o
lançamento. Se não descermos lá em cinco minutos, ou se parecer
que Auri está em perigo, dê o fora daqui, entendeu?
― Entendido. Qual é o status de Tyler?
Eu respiro fundo. Empurro tudo para baixo até as solas dos meus
pés.
― Diga a Zila que espero que ela seja tão boa em pilotar uma nave
estelar quanto uma van.
―... Reconhecido. ― vem à resposta suave de Kal.
Eu toco na tela para cortar a transmissão, encontro os olhos de
Finian.
― Vamos embora.
Nós evitamos pelo menos quatro tiroteios em nosso caminho para
baixo, mergulhando nas escadas ou circulando de volta ou apenas
correndo loucamente para longe deles. Os fuzileiros navais
Terráqueos e os guerreiros Inquebrado ainda estão se
despedaçando por toda a nave, mas é apenas uma questão de
tempo até que o TDF vença. Esses fuzileiros navais chamaram Ty
pelo nome – eles sabem quem somos e eu sei para que estão aqui.
Precisamos tirar Auri daqui ou tudo isso foi em vão.
Passamos correndo por um eixo do turbo elevador e Finian me
arrasta para uma parada repentina.
― Espere. ― diz ele, tirando uma ferramenta múltipla do braço de
seu exosuit. Ele começa a trabalhar nos controles, retirando o painel
da parede. A luz pisca novamente, nos deixando cair na escuridão
antes de lutar para viver mais uma vez.
― A energia de emergência está quase morta ― eu digo. ― Não
podemos montar nisso.
Ele levanta os olhos do trabalho e pisca.
― Quem falou em montar?
Eu ouço o barulho de uma fechadura, o som de metal sendo
triturado. Fin empurra seus dedos cobertos de prata pela abertura
entre as portas e, lentamente, gemendo de tanto esforço, ele os
separa. As portas se abrem para o nada – apenas um poço vazio
percorrendo toda a profundidade da enorme nave. Ele aperta um
controle em seu traje, e globos na ponta dos dedos se iluminam,
cortando uma faixa brilhante na escuridão.
― Devíamos voar para baixo? ― eu pergunto. ― Eu deixei minha
vassoura nas minhas outras calças.
Fin pisca.
― Ou as vassouras não são o que eu penso ou você está sendo
Scarcástica comigo de novo.
― Como diabos vamos descer, Fin? ― eu exijo, meu temperamento
levando o melhor de mim. ― É uma queda de cem metros e não há
energia para impulsionar o elevador. Até os sistemas de emergência
estão falhando!
― E o que acontece quando os sistemas de emergência falham,
Scar?
― Todos nós sufocamos e morremos?
― Bem... sim, isso é realmente um bom ponto. Mas antes disso?
― Eu não faço ideia! ― eu choro, me debatendo. ― Passei minha
única aula sobre sistemas ambientais ficando com um garoto na
última fila do auditório!
(Jorge Trent. Ex-namorado 24. Prós: adora musical. Vestimenta
incrível. Liga para a mãe dele três vezes por dia. Contras: você vê
aonde isso vai dar, não é?).
Finian bate na têmpora com o dedo indicador e sorri.
― Assista e aprenda.
Esperamos no corredor mais alguns instantes, ouvindo o clamor
de tiroteios distantes, o passo pesado de botas se aproximando. As
sobrecargas estão piscando no tempo do meu batimento cardíaco,
cada segundo que perdemos é outro mais perto de ser capturado ou
executado, e eu não posso acreditar que estamos apenas parados
aqui esperando por–
O sistema de emergência do Andarael tosse seu último suspiro.
O poder finalmente gagueja e morre.
E junto com isso, é claro, vai à gravidade artificial.
Demoro um momento para perceber. Mas então, pela luz das
pontas dos dedos brilhantes de Finian, vejo fios de meu cabelo
flutuando com o menor movimento da minha cabeça. A sensação
nauseante de vertigem que sempre muda com a gravidade baixa
toma conta de mim, a sensação de minhas entranhas subindo e
flutuando livremente dentro do meu corpo. Suprimindo a vontade de
vomitar na minha máscara de ambiente, consigo sorrir.
― Você é um espertinho insuportável na maioria dos dias, Finian de
Seel ― eu suspiro. ― Mas você tem seus momentos.
Finian dá um chute experimental, levantando-se do chão antes de
parar seu ímpeto com uma mão contra a porta do elevador. Ele se
empurra para dentro, movendo-se como um peixe debaixo d'água,
sorrindo e oferecendo a mão.
― Milady?
Eu agarro, seus dedos auxiliados por atuador agarrando os meus
muito suavemente. E com isso, Fin dá um pontapé na parede e nos
manda voando para baixo, voando ao longo do eixo, uma mão
segurando a minha, a outra estendida diante de nós para iluminar o
caminho. Meu cabelo ondula ao redor do meu rosto como nuvens, e
eu sinto como se estivesse caindo e voando ao mesmo tempo e por
apenas um momento eu esqueço onde e quem eu sou.
Mas não com quem estou?
E eu olho para Fin com o canto dos meus olhos e...
Eu ouço o baque surdo de uma arma pesada em algum lugar
abaixo, cheiro de fogo no ar que se torna cada vez mais rarefeito.
Chegamos aos níveis mais baixos do poço e Fin diminui nosso voo
com batidas de suas mãos contra a parede, finalmente nos fazendo
parar completamente do lado de fora das portas do compartimento
de atracação. Então ele começa a trabalhar com sua multi-
ferramenta novamente, abrindo uma liberação manual, dedos
espertos movendo-se rapidamente enquanto a fechadura estala e as
portas se partem apenas uma pequena rachadura.
Olhando para a escuridão da baía, descobrimos rapidamente o
que está fazendo todo o barulho – alguém está nos controles do
Zero, disparando com seu canhão elétrico contra um esquadrão de
fuzileiros navais Terráqueos do outro lado da baía de atracação. Eles
estão respondendo ao fogo com seus disruptores, seus tiros
iluminando a escuridão – eles não são suficientes para perfurar o
casco do Zero, mas é apenas uma questão de tempo antes que eles
tragam algo mais pesado.
― Idiotas. ― eu rosno. ― Eu disse a eles para irem embora se
algum problema os encontrasse.
― Tenho certeza de que Zila está os lembrando disso agora ― diz
Fin. ― É melhor nos movermos.
― Esgueirar-se no escuro? ― eu sugiro.
― Esses fuzileiros navais têm visão termográfica em seus capacetes
― diz Finian. ― Espero que eles estejam muito ocupados evitando
levar um tiro para estarem cuidando de nós. Mas eu cresci em
gravidade zero. Eu posso nos levar lá.
Eu toco minha uni.
― Kal, aqui é a Scar. Eu e Fin estamos em um dos elevadores de
acesso a estibordo.
― Hum ― Finian murmura. ― Lateral do Porto, Scar.
― Pelo amor de... ― murmuro. ― Elevador do seu lado esquerdo,
Kal. Lado esquerdo. Coloque o máximo de poder de fogo que puder
e abra a porta traseira. Esteja pronto para o lançamento.
― Reconhecido .― vem à resposta de Kal.
O Zero abre com outra explosão longa e contínua, cortando uma
faixa através das paredes e da carga. Os fuzileiros navais do TDF
estão escondidos atrás de uma cobertura, mas se estiverem de
cabeça baixa, é provável que não nos vejam.
Finian agarra minha mão e juntos saímos do chão, subimos e
voamos em direção para a baía. Eu posso ver isso se espalhando
abaixo de nós enquanto subimos, iluminados apenas por alguns
fogos desonestos e as rajadas estroboscópicas das armas
dianteiras do Zero.
― Segure-se em mim. ― sussurra Fin.
Eu envolvo meus braços em volta da cintura de Fin, agarrando-
me com força. Atingimos o telhado e Fin rola com nosso impulso,
fazendo piruetas no ar, e nos manda velejando direto para o Zero em
um salto. É uma façanha incrível. De tirar o fôlego, realmente. O
movimento de Fin é normalmente considerado assim, tão trabalhoso
ultimamente. Mas aqui em cima, navegando por este preto e branco
piscando sem gravidade, ele está totalmente em casa.
Nós descemos do teto, Fin estendendo a mão para agarrar um
suporte e nos girar, liberando seu aperto e nos enviando em um arco
perfeito em direção à escotilha traseira do Zero. Eu ouço um dos
fuzileiros navais gritar e seus rifles disruptivos abrirem fogo, e eu
seguro mais forte, desejando ser religiosa o suficiente para começar
a orar. Mas embora eu não tenha um grama de fé, finalmente,
finalmente, atingimos o pouso traseiro do Zero e, com um último
chute, navegamos para dentro.
― OK, SOQUE ISSO, ZILA! VAI! VAI!
Os fechos da escotilha se fecham e, com um rugido maçante,
estamos decolando. Fin e eu somos jogados contra a parede
enquanto giramos, a gravidade artificial do Zero fazendo efeito, e eu
procuro desesperadamente por algo para me segurar enquanto Kal
descarrega nas portas do compartimento de ancoragem do
Andarael. Uma explosão ensurdecedora rasga a baía e eu sinto o
calor através das portas que se fecham. E então estamos
disparando livres, para a tempestade de fogo, um campo de
destroços de lutadores arruinados e cascos em chamas, um longo
fluxo do reator de exaustão derramando do lado ferido do Andarael e
na escuridão fria da Dobra.
― Os motores estão cheios ― diz Zila pelo comunicador. ― Isso vai
ser acidentado.
Eu corro para fora da baía e subo o corredor, Finian vindo quente
nos meus calcanhares enquanto o Zero balança ao nosso redor.
Quando chegamos à ponte, estamos sem fôlego. Vejo Zila na
cadeira do piloto, Kal na estação de armas. Auri voa para fora de
seu assento e envolve seus braços em volta de mim, em torno de
Fin, com lágrimas brilhando em seus olhos.
― Scar, você está bem? ― ela respira. ― Você está–
― Por favor, retome seus lugares. ― Zila diz, parecendo um pouco
ofendida. ― Temos caças Terráqueos chegando.
Presumivelmente, aqueles fuzileiros navais no hangar do Andarael
deram algum tipo de aviso sobre nossa decolagem; nossos
telescópios mostram um bando de combatentes Terráqueos com
nariz de buldogue lutando para nos interceptar. Mas enquanto Auri,
Fin e eu pegamos as cadeiras e nos prendemos, vejo que ainda há
alguma luta restante nos dragões de Saedii. Um pelotão de
elegantes corvetas Syldrathi estão se movendo para interceptar os
Terráqueos, perseguindo-os através dos destroços, mísseis e tiros
de canhão iluminando a escuridão e, incidentalmente, nos dando os
poucos minutos preciosos de que precisamos para escapar.
― Campo Furtivo engajado. ― relata Kal. ― Devemos estar
escondidos do radar deles agora. Só precisamos sair da linha de
visão deles.
― Deixe isso comigo. ― murmura Zila.
Ela olha para Shamrock, ainda empoleirado acima da estação do
piloto. Estendendo a mão, ela toca o dragão verde felpudo, como se
quisesse dar sorte.
― Todo mundo se segure. ― diz ela.
Nossos propulsores rugem.
E nós estamos fora.
·····
Acontece que Zila pode voar tão bem quanto dirige. Ela não é
Cat, nem Zero, nem perto disso, mas, aparentemente, todas aquelas
noites sozinha em seu quarto, sem amigos, ela teve tempo mais do
que suficiente para estudar teoria e praticar simulações. É um
passeio selvagem, porém – ela definitivamente se apoia mais na
teoria do que na prática.
Os lutadores Terráqueos que nos perseguiam não tinham alcance
para acompanhar o Zero, e todas as naves importantes naquela frota
de ataque sofreram grandes danos quando as armas do Andarael os
silenciaram. Embora tenha sido uma derrota, uma nave de guerra
Syldrathi lutou contra seis naves Terráqueas e deixou cada um deles
com o nariz sangrando ou com o pescoço quebrado. Eu não posso
imaginar o que uma guerra entre nós vai significar. Meu pai lutou
metade da vida para construir a paz entre nossos povos.
E agora tudo está em chamas...
Saímos da Dobra perto de uma estrela sem nome, em uma zona
neutra. Este sistema é notável apenas pelo Portão na Dobra que
ocorre naturalmente levando a ele – de acordo com registros e
âmbito, não há assentamentos aqui, nenhuma operação de
mineração, nada. Será um bom lugar para ficar quieto enquanto
descobrimos o que diabos vamos fazer agora.
― Então, o que diabos vamos fazer agora? ― Finian pergunta.
Zila nos prendeu em uma órbita ao redor do primeiro planeta do
sistema – e uma rocha do tamanho da Terra transformada em cinzas
pela anã branca que está circulando. Ela tomou seu lugar com o
resto de nós, sentando em torno de nossos consoles da ponte e
olhando nos olhos de cada um. Kal e Auri estão sentados juntos,
dedos manchados de sangue entrelaçados. Fin está sentado à minha
frente, seu uniglass conectado ao terminal, a superfície iluminada
com resmas de dados rolando. Zila está na ponta do console onde
Ty costumava se sentar.
Onde Ty costumava se sentar...
― Temos que voltar, certo? ― Auri diz, olhando para frente e para
trás entre nós. ― Não podemos simplesmente deixar Tyler nas mãos
do GIA.
― Isso é exatamente o que devemos fazer ― diz Zila.
― Mas isso é minha culpa! ― Auri diz. ― Eles queriam a mim, não a
ele. Isso é por minha conta!
― Não ― Kal suspira. ― Saedii estava me perseguindo. Se não
fosse por sua interferência, o GIA nunca teria nos alcançado. Isto é
minha culpa. Tudo isso. Estou envergonhado. De’sai.
― Escute ― Fin diz, levantando os olhos de seus fluxos de dados. ―
Eu sei que normalmente não sou o Sr. Sunshine, mas não tenho
certeza se devemos apontar o dedo para nós mesmos aqui.
― Concordo ― eu aceno. ― Isso não é culpa de ninguém. Você não
pediu para se tornar o que você é, Auri. E Kal, você não pode evitar
se sua irmã for, e sem querer ofender aqui, uma vadia psicopata com
cara de assassina.
Kal sorri fracamente, mas vejo mágoa brilhando no violeta de
seus olhos.
― Ela nem sempre foi assim ― ele murmura.
Eu respiro fundo, mordendo meu lábio e repassando os eventos
do último dia na minha cabeça. Parece que toda a galáxia está nos
perseguindo. Não podemos contar com a ajuda de ninguém aqui.
Ainda somos terroristas galácticos procurados. E não posso dizer
que meu tempo no cativeiro do Inquebrado tornou querida a ideia de
ter uma vida em uma colônia penal.
― Aqueles Waywalkers que Saedii capturou ― murmuro, pensando
nas celas do Andarael. ― Por que Warbreed estaria prendendo
empatas Syldrathi, Kal?
Ele balança a cabeça.
― Não sei.
― Saedii pareceu ter um interesse real em Auri assim que ela viu
uma demonstração de seu poder ― eu digo. ― Ela fez menção
específica sobre transportá-la direto para o Starslayer. ― eu
encontro os olhos de Auri. ― O que Caersan quer com você?
― Isso tudo é totalmente irrelevante ― Zila se encaixa.
Eu pisco para o nosso Cérebro, um pouco surpresa.
Normalmente Zila fala em um tom monótono, seus maneirismos mais
parecidos com uma caixa de papelão do que com um humano.
Mas ela realmente parece...
Irritada?
―... Você está se sentindo bem? ― eu pergunto.
― Tyler, Saedii, o Starslayer, nada disso importa ― diz ela, olhando
para cada um de nós. ― Não podemos nos desviar do nosso
caminho. As apostas com as quais estamos jogando aqui são
insondáveis. Devemos encontrar a Arma Eshvaren. O Ra’haam deve
ser interrompido. Todas as outras considerações devem ser
secundárias.
Fin limpa a garganta.
― Zila...
― Tudo isso está acontecendo por um motivo ― diz ela. ― Devemos
seguir em frente. A mensagem de Adams e de Stoy, esta nave, a
caixa de cigarrilha que salvou a vida de Kal, tudo isso está se
desenrolando como deveria. A única saída é essa.
Kal toca seu peito onde a explosão do disruptor o atingiu, como
se lembrando do tiro que quase o matou. Auri aperta sua mão,
preocupação em seus olhos.
― Não se atreva a fazer nada parecido de novo, ok? Ouça-me da
próxima vez.
― Eu vou, be'shmai ― ele responde. ― Eu juro.
Fin está olhando para a dupla, para Kal, uma expressão estranha
no rosto. Eu aceno para o uniglass que ele conectou em seu
terminal.
― Então, os dados do Hadfield nos dizem alguma coisa?
― Me dê um segundo ― ele responde. ― Estou procurando leituras
incomuns ou anomalias nos registros, mas há muito o que explorar
aqui.
Um silêncio desconfortável cai, quebrado apenas pelo pulso de
nossas varreduras LADAR e as batidas dos dedos com pontas de
metal de Finian em suas telas. Eu olho para Auri e posso dizer que
ela ainda está dividida. Pensar que isso é culpa dela. Sentindo-se
culpada por deixar Ty para trás, por sua perda de controle no
Hadfield, por perder a coragem no Andarael. Eu sei que ela está
tentando, mas esse poder dela... Ela tem que aprender como
controlá-lo. E eu estou me perguntando como ela vai lidar com isso
se ela nem mesmo reconhece.
― Quando o Inquebrado me sedou... ― ela começa.
Sua voz vacila e Kal aperta sua mão. Ela parece extrair força de
seu toque, respirando fundo antes de falar novamente.
― Eu sonhei ― ela diz, balançando a cabeça. ― Eu senti. Eu vi.
― O Ra’haam ― diz Kal.
Auri acena com a cabeça.
― Está ficando mais forte. Eu posso... Sentir de alguma forma.
Como uma farpa no fundo da minha mente. Cada momento que
passamos aqui é outro momento que tem que crescer. Em meus
sonhos... Eu vi mundos inteiros cobertos por aquele pólen azul. Eu vi
a Terra. Outros planetas. Todos eles iguais Octavia III.
Completamente invadido. ― ela balança a cabeça novamente. ―
Está perto de eclodir agora. Florescendo e explodindo.
― Quão perto? ― eu pergunto, meu estômago dando cambalhotas
geladas.
― Não sei. ― ela suspira, se inclina para frente, os cotovelos sobre
os joelhos. ― Mas em breeeeeve.
Meu estômago revira novamente e penso em Cat em seus
momentos finais. Imagino como seria ser consumida. Perdendo-se
nessa coisa do jeito que ela fez. Imagino mundos inteiros sendo
assimilados, aniquilados e, por um momento, me sinto tão pequena,
tão insignificante que mal consigo respirar. Já perdi minha melhor
amiga. Agora também perdi meu irmão. Quem mais vou perder antes
que isso acabe?
― Espere... ― murmura Finian.
Zila chama a atenção, sentando-se ainda mais reta em sua
cadeira (se isso for possível).
― Finian? O que você encontrou?
Ele estreita os olhos, debruçado sobre os fluxos de dados do
Hadfield.
― Há algo estranho aqui. Anomalia espacial. Grande flutuação de
poder no núcleo do Hadfield. Bio-falha crítica na maioria de seus
sistemas criogênicos. Seus conjuntos de sensores não eram tão
avançados, mas essas leituras... ― ele olha para mim. ― Sim, algo
muito estranho aconteceu a bordo daquela nave.
― Quando? ― Auri pergunta, seus olhos incompatíveis se
arregalando. ― Onde?
― Quase cem anos atrás. ― Fin assobia, digitando um punhado de
comandos na tela. ― Eu tenho coordenadas aproximadas. É cerca
de vinte horas através da Dobra de nossa localização atual, se
colocarmos Zero na queima máxima.
Todos eles olham para mim então. Os restos esfarrapados do
Esquadrão 312 da Legião Aurora. Talvez porque eu seja uma Jones.
Inferno, talvez porque não tenham mais ninguém para quem olhar.
Mas eu não fui feita para isso. Eu não deveria estar fazendo essas
ligações. Tyler deveria.
Quem eu acho que sou?
Quem pensamos que somos, enfrentando algo tão grande
sozinhos?
Zila encontra meus olhos, sua voz suave.
― A única saída é essa, Scarlett.
Eu respiro fundo, aceno lentamente.
― Ok ― eu digo, tentando manter minha voz firme. ― Fin, veja o
que mais você consegue fazer com essas leituras. Descubra tudo o
que puder sobre o que estamos enfrentando. Kal, faça um
diagnóstico dos sistemas de armas e defesas do Zero, prepare-nos
caso tenhamos mais problemas. Zila, defina um curso para essas
coordenadas. Queima máxima.
O esquadrão começa a se mover, provavelmente grato apenas
por ter uma direção a seguir. Não temos ideia de para onde estamos
indo.
O que encontraremos quando chegarmos lá, assumindo que
encontramos alguma coisa. Mas no final, que escolha temos?
A única saída é essa, Scarlett.
A única saída é essa.
17
FINIAN

Estou tentando me concentrar nesses cálculos e falhando


miseravelmente. Os dados que estou retirando da caixa preta do
Hadfield são como um fluxo interminável de alvos móveis, todos
girando e dançando uns em torno dos outros em um jogo
imprevisível.
Estamos a caminho das coordenadas indicadas pelas leituras
originais, onde algo fez com que os sistemas da nave colônia
ficassem descontrolados. O lugar, provavelmente, onde algo
aconteceu com Auri. O problema é que o que quer que seja que o
tenha causado – se fosse um objeto físico – já deve ter se desviado
agora, então eu preciso levar em conta isso. O outro problema é que
uma localização aproximada simplesmente não é boa o suficiente. O
espaço é muito grande, e "em algum lugar por aqui" não é suficiente.
Kal terminou a verificação de suas armas e, tendo estabelecido
nosso curso através da Dobra, Zila o levou para a enfermaria, junto
com Auri para ajudar, ou possivelmente apenas para dizer a ele para
ficar quieto e não ser um bebê enquanto ela olha de lado seu
abdômen (por isso não posso culpá-la). Enquanto eu trabalho,
Scarlett está observando os monitores, alerta até mesmo para a
menor dica de que estamos sendo seguidos ou voando para algo
perigoso. Mas, verdade seja dita, ela está olhando para as telas
como se mal pudesse vê-las, os lábios pressionados com força, sua
respiração lenta e deliberada enquanto ela tenta se controlar.
― Você está bem? ― murmuro, sabendo que é uma coisa estúpida
de se dizer. Eu não estou bem, e ele não era – não é, quero dizer –
meu irmão gêmeo.
Ela ergue os olhos e dá um sorriso fraco.
― Na verdade, não. ― ela admite.
Eu aceno porque, bem, é justo.
― Não vamos desistir dele ― digo a ela em voz baixa. ― Você sabe
que o GIA vai segurá-lo. Ele é mais útil para eles – para Princeps –
vivo. Seja para informação ou apenas como isca.
― Eu sei ― ela concorda em um sussurro. ― Mas ainda não
consigo acreditar que o deixamos. Ele estava bem ali e nós fugimos.
Suas palavras ecoam no silêncio entre nós, sublinhadas pelo
zumbido suave dos sistemas do Zero. Eu sei que nós dois estamos
pensando no homônimo da nave. Sobre Cat, que ainda estava lá
quando corremos também.
Scarlett engole em seco, tenta se sentar um pouco mais ereta na
cadeira, e parte meu coração vê-la assim.
― Ok ― eu digo. ― Qual é o hábito mais irritante do Tyler?
Ela pisca.
― Seu o quê?
― Trabalhe comigo nisso ― eu insisto, convocando um sorriso que
rezo para ser um pouco mais forte do que o dela. ― O que
realmente te deixa maluca sobre ele?
Ela considera a questão.
― Ele rotula suas coisas ― diz ela, os lábios se curvando apenas um
pouco.
― Desculpe, ele o quê?
― Põe o nome dele nas coisas. Desde que éramos crianças. Tudo.
Nunca verifiquei, mas tenho certeza de que sua cueca tem seu nome
costurado atrás.
― O que mais?
― Ele nunca parece se importar quando você estraga tudo ― diz
ela. ― Ele é perfeito, mas quando o resto de nós não é, ele nunca
olha para você e lhe diz o que você poderia ou deveria ter feito
melhor. É como se ele permitisse o fracasso de todos, mas nunca
para si mesmo. Ele é tão santo quanto a isso.
Eu inclino minha cabeça, sentindo o estiramento nos tendões
rígidos do meu pescoço.
― E que forma essa santidade assume?
Ela abana a mão.
― Você sabe. Conversa estimulante. Expressão paciente. Diz para
você continuar tentando.
Eu a estudo por um longo momento.
― Ei, Scar?
― Hm?
― Continue tentando.
Ela enrola a embalagem vazia do Bolo de Morango e Cremeᴛᴍ e
a joga em mim, mas ri. E ela estende a mão para enrolar seus dedos
nos meus e apertar, e meu coração quer estourar no peito.
― Obrigada ― ela diz baixinho. ― E obrigada por voltar por ele
comigo. Eu não vou esquecer isso.
― A qualquer hora ― digo a ela.
― Você precisa que eu fique quieta para que você possa se
concentrar?
― Não, porque sou extremamente inteligente e posso realizar várias
tarefas ao mesmo tempo.
Seu sorriso está cansado e um pouco triste, mas é real.
― Tudo bem, Super Cérebro. O que você acha que estamos
olhando?
Eu olho para minha tela.
― Algum tipo de... Confluência turbulenta e instável de aberrações
de espaço-tempo ― digo, injetando tanta autoridade em meu tom
quanto posso.
― Então você não tem ideia.
― Eu não tenho ideia. ― concordo. ― Mas se for algo deixado para
trás pelos Eshvaren, não tenho certeza que saberia. Vou continuar
trabalhando para bloquear o local exato. Ainda temos um tempo
antes de fecharmos. Nesse ínterim, há alguma chance de você
dormir se tomar um sedativo? Posso ficar de olho nos monitores até
Zila voltar, gritar se algo acontecer.
― Todos nós deveríamos dormir ― ela franze a testa. Modo de
Zeladora iniciado.
― Vou pegar minha vez, eu prometo ― eu digo, levantando minha
mão e acenando com alguns dedos, como vi os Terráqueos fazerem
quando fazem uma promessa. Posso dizer pela expressão dela que
estou fazendo errado.
― Tudo bem, tudo bem. ― ela se levanta, espreguiçando-se
lentamente. ― Vou levar alguma coisa, vou para a cama.
― Você precisa de alguém para colocá-la na cama?
Ela apenas pisca e caminha em direção a seus aposentos,
deixando-me com meus cálculos. Ainda estou repetindo a piscadela
um pouco mais tarde, quando Zila e Auri reaparecem.
― Como está o paciente? ― eu pergunto.
― Eu cuidei das feridas de Kal ― relata Zila. ― Elas são dolorosas,
mas vão sarar de forma limpa. Ele concordou com a sugestão de
Aurora de que ele deveria lavar a copiosa quantidade de sangue que
ele está... Coberto e, em seguida, tentar dormir.
― Scar está tentando um tempo de inatividade também ― eu relato.
― E o radar está limpo.
― Então devemos verificar as fontes de notícias para obter
informações sobre a batalha. ― Zila responde, sentando-se e
puxando os monitores do monitor central.
As notícias são sombrias.
Relatórios estão filtrando através de canais civis – todos nós
podemos acessar – sobre o confronto entre o Inquebrado e o TDF.
Existem relatos conflitantes sobre quem atirou primeiro, o número de
baixas e até mesmo a localização exata da batalha, mas em uma
coisa todos concordam: uma enorme frota do Inquebrado está se
mobilizando e indo em direção ao espaço Terráqueo. A galáxia está
prendendo a respiração, esperando para ver o que acontece a
seguir.
A expressão de Zila está tão ilegível como sempre.
Auri parece que vai ficar doente.
― Bem, ― eu digo, mudando o feed para meus cálculos mais
recentes. ― eu tenho algumas boas notícias para uma mudança,
pelo menos. Eu ajustei para deriva ao longo de nossa linha do tempo
conhecida. Se alimentarmos essas correções de curso, devemos
terminar exatamente onde ocorreu o incidente do Hadfield.
Os dedos de Zila dançam sobre seu console.
― Aurora, você tem alguma premonição sobre o que iremos
encontrar?
― Nenhuma. ― Auri murmura, olhando para suas mãos. Um polegar
está esfregando seu pulso oposto, onde uma mancha vermelha ainda
marca o local onde o adesivo sedativo foi colocado. Quando ela olha
para cima, é para olhar para trás em direção à enfermaria, onde Kal
está. ― Eu não sei o que está lá. ― ela sussurra. ― Eu não sei o
que é. Eu não sei o que sou. Eu não sei o que aconteceu. ― ela
puxa uma respiração instável. ― E não sei o que vou fazer a seguir.
Zila e eu trocamos um longo olhar. Aurora não parece pronta para
nada, muito menos para salvar a Via Láctea. Estamos colocando
tudo em risco – já sacrificamos dois de nosso número – pela chance
incerta que ela representa. Mas ela é tudo que temos.
― Vou te dizer uma coisa ― digo, tornando-me alegre novamente.
― Por que você e eu não dormimos um pouco? Zila pode cuidar de
nós.
Nosso Cérebro inclina a cabeça.
― Vou acordar Scarlett quando precisar de descanso.
Eu quero me oferecer para ficar acordado, mas Zila e eu
sabemos que preciso de um tempo de descanso. Então, em vez
disso, levanto-me e ofereço a Auri minha mão para puxá-la para
cima. Ela me segura, e quando ela está de pé, eu mantenho seus
dedos nos meus, estudando-a.
― Você parece horrível. ― digo a ela.
Seu tom é seco.
― Você, por outro lado, está mais elegante como sempre.
Eu uso minha mão livre para alisar meu cabelo, que
instantaneamente surge na bagunça desastrosa de antes.
― Abraço?
Ela hesita, então acena com a cabeça, apenas um movimento
mínimo. Então eu a puxo e envolvo meus braços em torno dela. Eu
sou o tipo de pernas longas que você ganha quando passa muito
tempo na gravidade zero crescendo, e ela se encaixa embaixo do
meu queixo perfeitamente. Meu traje provavelmente gruda nela em
alguns lugares, mas ela não parece se importar.
E por um longo momento, nós apenas ficamos lá juntos, seus
braços em volta da minha cintura, sua bochecha no meu ombro, meu
queixo apoiado em seu cabelo.
Quando eu olho para cima, Zila está nos observando. Eu me
pergunto o que ela pensa de todos nós às vezes. Há quanto tempo
alguém a abraçou. Se alguém já fez isso.
À medida que avançamos pelo corredor, Aurora levanta uma mão
para arrastá-la sobre a porta fechada do quarto de Ty, olhando-a
como se pudesse ver através dela, ver nosso Alfa desaparecido lá
dentro. Ela ouviu isso repetidamente enquanto o deixávamos para
trás – Aurora é a prioridade, mantenha-a segura. Então ela está
carregando isso com ela, bem como o conhecimento de que tudo
depende de um poder que ela não pode controlar. Um poder que a
assusta.
― Durma bem, Clandestina ― digo a ela enquanto sua porta se
fecha atrás dela. E então, com um suspiro suave, me afasto de meus
aposentos e vou em direção à enfermaria, onde meu próximo desafio
me aguarda.
As luzes lá dentro são fracas e Kal está descansando em uma
bio-cama, um envoltório médico em um ombro. Ele está com o peito
nu, hematomas surgindo em sua pele, que se tornaram pretos e
cinza pela Dobra. Mas a visão de Kaliis Idraban Gilwraeth sem
camisa, mesmo todo surrado, me faz querer agradecer ao meu
Criador por ter vivido para ver este momento. Ele é lindo. Essas
linhas esculpidas e aquele músculo sólido e – quero dizer, ele tem um
pacote de oito gominhos e aquele V estúpido que leva para baixo
para desaparecer (tragicamente) abaixo de sua cintura, ambos os
quais deveriam ser criaturas de mitos e lendas.
Desmaio.
Auri sortuda.
― Há algo errado, Finian?
Eu me assusto quando percebo que ele está olhando diretamente
para mim e fecho minha boca.
― Apenas checando ― eu digo a ele, vagando mais perto e
acenando para seus bíceps. ― Você tem licença para carregar
essas armas, senhor?
Suas sobrancelhas se juntam em uma bela confusão.
― Eu sou proficiente em armamento que... ― mas ele para, porque
pode dizer que não entendeu o ponto.
― Não importa. ― digo a ele. ― Eu tenho uma pergunta.
Ele de alguma forma sabe que deve ser cauteloso, voltando-se
para me ver melhor.
― Pergunte.
― De volta ao rebocador, ― digo, apontando para o ponto acima do
coração onde os hematomas são mais negros ― descobri que a
caixa de cigarrilha havia bloqueado aquele tiro mortal, e assim que
parei de agradecer ao Criador por você estar vivo, percebi que
poderia abrir a coisa.
O interesse de nosso Tanque aumenta.
― Acho que você fez isso.
― Eu fiz. ― confirmo. ― E eu ainda não consigo entender, Kal.
Havia uma nota dentro dela. Uma nota com a minha letra. Uma nota
que tenho absoluta certeza de nunca ter escrito.
Ele volta para a bela carranca.
― E o que ela dizia?
― Dizia: ‘Diga a ela a verdade’. ― estou observando-o com atenção
agora. ― Você sabe o que isso significa?
Ele balança a cabeça um pouco.
― Eu não sei. ― ele responde.
― Porque não podemos permitir que ninguém esconda nada de outra
pessoa agora ― eu continuo. ― Se há algo que você não está
contando para Auri, ou Scar, ou Zila, ou mesmo para sua irmã
maluca, eu entendo, mas agora é a hora, Kal.
Sua expressão congelou.
― Talvez o bilhete fosse para você. Você acredita que foi você quem
o escreveu. E foi você quem leu.
― Mas foi o seu presente. ― eu aponto.
― E ainda não posso responder à sua pergunta.
Não tenho absolutamente nenhuma ideia se ele está sendo franco
comigo. Ele pode muito bem ser Zila, por tudo que posso ler sobre
ele agora. Depois de uma longa pausa, suspiro.
― Você precisa de alguma coisa?
― Não.
― Bem, Zila está com a ponte ― digo a ele. ― Grite se você estiver
com problemas.
― Del’nai, amigo.
Enquanto faço meu caminho para meus aposentos, estou
quebrando a cabeça em busca de qualquer tipo de segredo que eu
possa manter. Qualquer coisa que a nota possa ter significado para
mim. Além de não dizer a Scar que rastejaria sobre o vidro cortado
para um encontro com ela se nós dois sobrevivêssemos a isso, estou
em branco. E a nota – seja qual for o inferno que aconteceu – parece
uma enorme quantidade de esforço para uma paixão não
correspondida.
A porta se fecha atrás de mim e eu aperto o botão de liberação
de gravidade. Ainda estou pensando enquanto a contagem
regressiva suave termina e a pressão no meu corpo diminui. Eu não
tenho respostas.
Na verdade, enquanto tiro meu traje e me empurro do chão para
me enrolar em uma bola de sono, não tenho nada além de
perguntas.

·····
Um leve carrilhão me acorda e, conforme me alongo lentamente,
me deleito em como me sinto muito melhor – meus músculos
doloridos se soltaram e meu corpo volta a gostar de mim.
Então me lembro de que Ty é um prisioneiro do GIA, a galáxia
está à beira da guerra e o Esquadrão 312 não tem ideia do que fazer
para impedir tudo.
Eeeee isso me derruba com um baque.
O carrilhão é seguido pela voz de Scar pelo intercomunicador.
― Bom dia, pessoas incrivelmente bonitas. São 08:00 horas a
bordo; estamos a sessenta minutos do nosso destino. Verei vocês
na ponte quando vocês acordarem e ficarem ainda mais bonitos. Se
isso for possível.
Tiro meu uniforme e, com um toque suave contra o teto, me lanço
navegando até o canto onde fica o chuveiro hidrossônico. Eu ativo o
campo de força que manterá o resto da sala seco, fecho meus olhos
de prazer enquanto os bicos na parede emitem uma névoa suave, e
deixo a parte sônica do chuveiro fazer o resto, as vibrações
combinando com a umidade para limpar a sujeira, o suor e o pânico
dos últimos dias. Meus avós tinham praticamente a mesma unidade
na estação onde moravam e, embora no início eu achasse bizarro –
em Trask, o suprimento de água é muito grande –, atualmente eu
aprecio o fato de que isso realmente deixa você limpo.
Depois de alguns minutos, eu relutantemente o desligo, então
encontro um uniforme novo. Quando coloco meu traje e faço um
diagnóstico, ele está milagrosamente em boas condições.
Eu faço meu caminho para a ponte, sentindo a acomodação usual
que vem com gravidade cheia – tudo protestando um pouco contra o
trabalho extra. Encontro meus companheiros de esquadrão sentados
em torno de seus consoles, tomando café da manhã. Auri desliza um
pacote de papel alumínio pela mesa para mim, e eu inspeciono o
rótulo, então gostaria de não ter feito. Eu não sei o que é Mistura
Salgada Para a Hora do Café!!ᴛᴍ, mas tenho certeza que as
informações extras não vão me ajudar a me sentir melhor sobre isso.
Eu olho para Scarlett, sacudindo meu café da manhã para
esquentá-lo.
― Você não deveria ter me deixado dormir tanto tempo.
Ela pisca.
― Alguns de nós precisam de menos sono de beleza do que outros.
― Alguma novidade? ― eu sorrio.
― Existem declarações oficiais da Terra, Trask e vários sistemas
próximos. Ninguém quer uma guerra. Todo mundo sabe que pode
não ter direito a voto. Os Inquebrados ainda não disseram nada, mas
sua frota ainda está se mobilizando e está parecendo enorme.
Isso adiciona uma nota sombria ao café da manhã. Kal, em
particular, parece preocupado. Terminamos de comer e Zila e eu nos
acomodamos para encontrar o que realmente estamos procurando.
― Compensando a deriva ao longo do século passado, ― eu informo
― devemos estar no local agora, mais ou menos mil klicks.
― Digitalizando agora. ― Zila diz para sua tela.
― Processando dados. ― murmuro quando começa a fluir para mim.
Demora menos de dois minutos antes que algo salte do resto. ― É
isso...?
― Confirmado. ― diz Zila, passando de seu console para os
controles do piloto. ― Objeto não identificado detectado. Alterando o
curso.
Eu sorrio para os outros.
― Cheguei a trinta e sete klicks, meus amigos! ― este anúncio de
proeza incomparável é recebido com acenos educados. ― Oh,
vamos lá! ― protesto. ― Isso é como encontrar... o que vocês,
crianças sujas, dizem? Uma unha em um palheiro?
Auri dá uma risadinha.
― Uma agulha.
― Bem, ainda menor, então. E, neste caso, seja lá o que for um
palheiro, demoraria cerca de um dia para percorrê-lo. E eu
simplesmente nos levei direto para o nosso destino.
― Um esforço louvável. ― diz Zila sem virar a cabeça.
― Grande elogio. ― diz Scarlett, tentando esconder o sorriso.
― É perigoso? ― Kal pergunta.
Eu balanço minha cabeça.
― Tem assinatura de energia quase zero. Parece totalmente inerte.
Tivemos a sorte de descobrir isso aqui, para ser honesto.
― Kal, como está seu ombro? ― Scarlett pergunta.
― Bem o suficiente ― ele relata. ― Você deseja que eu prepare a
baía de atracação?
Scar se inclina para trás e morde o lábio, uma pequena carranca
em sua testa.
― Sim. Vamos trazer isso a bordo e ver o que podemos aprender.

·····
Podemos ver a baía de atracação através de uma vigia de
plasteel, e todos nós nos agrupamos em torno dela para espiar o
objeto que Kal trouxe para dentro. É em forma de lágrima, com
cerca de metade da minha altura. Parece feito de... Cristal, talvez? É
cortado como uma joia, mil facetas, uma luz brilhante dançando em
sua superfície. Não há outras marcações ou detalhes para serem
vistos.
Ele se acomoda quando as portas traseiras se fecham e a baía
começa a se equalizar, de alguma forma mantendo-se em pé,
flutuando alguns centímetros acima do convés.
― É isso? ― Aurora pergunta, dizendo o que pelo menos a maioria
de nós está pensando.
― É isso. ― eu respondo.
― Você sente alguma coisa com isso, be'shmai? ― Kal pergunta.
Auri franze a testa em concentração, mas finalmente balança a
cabeça.
― Nada.
― É meio pequeno. ― acrescenta Scarlett, olhando para ele.
― O que você quer dizer...?
Há uma longa pausa. Como um, todos olhamos ao redor e depois
para baixo.
Essas palavras vieram de Zila, nosso menor membro do esquadrão.
Isso foi...
Ela acabou de fazer uma piada?
― EU CONCORDO COM A LEGIONÁRIA MADRAN! ― diz uma vozinha
alegre no bolso de Aurora.― O TAMANHO GERALMENTE NÃO É UM
INDICADOR DE DESEMPENHO.
― Quieto, Magellan. ― murmura Auri.
― SABE, EU PROVAVELMENTE DEVERIA APONTAR NOVAMENTE QUE SOU
TRÊS VEZES MAIS INTELIGENTE DO QUE QUALQUER UM DE VOCÊS, E
VOCÊS ESTÃO CONSTANTEMENTE ME DIZENDO PARA FICAR QU–
― Modo silencioso ― Scarlett ordena.
― HUMANOS. ― vem uma reclamação murmurada antes que o uni
fique quieto.
―... Podemos entrar lá e dar uma olhada nisso? ― Auri pergunta.
― Isso não é aconselhável. ― responde Zila, ocupada nos controles
de ambiente da baía de atracação. ― A temperatura externa é de
270,45 graus Celsius negativos.
― Pelo Criador! ― eu digo, olhando as especificações. ― Do que é
feito esta coisa?
― Está desafiando a capacidade de nosso scanner de analisar sua
estrutura molecular ― diz Zila, com os olhos vagando pelos dados.
― Mas não estou detectando radiação ou micróbios prejudiciais. Vou
tentar aumentar a temperatura do objeto. Por favor, espere.
Todos nós esperamos impacientemente até que, eventualmente,
uma vida depois, Zila acena com a cabeça. Parece que está tudo
bem para nós entrarmos. Kal soca o controle da porta e nos
movemos com cautela para dentro, aglomerando-nos em torno dela,
retirando nossos uniglasses. A coisa está emitindo energia zero.
Além do fato de que está fisicamente presente, não há como saber
se está transmitindo, se tem uma fonte de energia interna ou para
que serve. Ainda assim, é um lugar para começar, então começamos
nossa análise.
Exceto Aurora. Ela não puxa Magellan. Em vez disso, ela encara
a coisa como se estivesse em transe. E então, sem piscar, mas com
um leve toque de sorriso, ela estende a mão para tocar a superfície.
― NÃO TENHO CERTEZA SE ISSO É UMA BOA IDEIA, CHEFE... ― diz
Magellan.
― Aurora? ― Kal pergunta.
Seus dedos tocam a superfície.
Seu uniglass faz um som de cuspe e estoura.
E ela desmaia aos meus pés.
18
AURI

Eu nunca vi uma vista tão linda na minha vida.


De volta à Terra, não havia trechos verdes como este à
esquerda. Em Octavia, havia intermináveis faixas de terra selvagem,
mas nunca os vi pessoalmente – não até que fossem cobertos pelo
rastejante Ra'haam. Mas este lugar é diferente para os dois.
Quase até onde a vista alcança, é um jardim exuberante e
perfeito. Cachoeiras de flores descem colinas suaves. Ramos de
flores vermelhas pende das árvores. É um desfile interminável de
flores e plantas, cada uma mais requintada do que a outra, cada uma
diferente das anteriores.
Conforme a paisagem se estende – não, se eleva – para longe
de mim, meus olhos não sabem onde se fixar. Este lugar faria Éden
parecer enfadonho. Tudo está brilhantemente claro, o ar fresco, a
temperatura perfeita. No horizonte está uma espécie de cidade, altas
torres de cristal estendendo-se em direção a um glorioso céu
dourado.
Mas o que mais me impressiona é a incrível sensação de bem-
estar. É como se eu estivesse bêbada do sol, do ar mais puro que já
respirei. Acho que não perdi um minuto desde que acordei na
Estação Aurora sentindo nada menos do que cansaço e medo, e o
livramento desse peso me faz sentir como se pudesse saltar uma
daquelas torres de cristal distantes com um único salto.
Sem nada mais para fazer, parto em direção a eles. Afinal, eles
são um marco – talvez eu encontre algo lá que me explique onde
estou. Eu sei que deveria estar mais preocupada, mas de alguma
forma é impossível reunir qualquer preocupação.
Não há caminhos, mas a grama é curta e fácil de percorrer. Eu
desço para um vale com um salto em meus passos, caminhando ao
longo de um campo de flores azuis que chegam até a cintura. Eu sigo
uma mão ao longo delas enquanto eu passo, e elas balançam e se
curvam, virando seus rostos para me seguir.
É um pouco difícil avaliar o tempo, mas parece que estou
caminhando há horas quando vejo a figura. É bem parecido – eu me
pergunto como não percebi antes – e embora tenha a forma humana,
certamente não é um humano.
Não machuca meus olhos, mas não consigo olhar diretamente
para ele. É uma criatura de luz e cristal, um brilho dourado e uma
miríade de arco-íris refratários dentro de sua forma. Ele tem três
dedos em cada mão, e percebo que seu olho direito é branco e
incandescente, assim como o meu. Mas embora seja uma das
criaturas mais estranhas que já vi – e já fui a uma festa de Casseldon
Bianchi – não sinto medo algum. Em vez disso, continuo no meu
caminho para encontrá-lo e não fico surpresa quando ele me
cumprimenta.
As palavras são como música, mas não acho que as ouço em voz
alta. Elas meio que... Chegam à minha cabeça.
Saudações, diz ele. Bem-vinda ao Echo. Eu sou o Eshvaren.
― O Eshvaren? ― eu papagaio de volta para ele, como uma idiota.
― Eu pensei que você fosse uma espécie inteira, não apenas uma,
uh... ― eu olho seu corpo cintilante de cima a baixo. ― Pessoa?
Essa coisa me dá um pequeno arco, quase um sorriso.
Eu sou uma reunião de sabedoria. Uma memória de muitos.
Assim como este lugar é a memória de nosso mundo natal. Um eco
de um lugar que já existiu.
Não tenho ideia da resposta adequada a isso, mas acho que não
posso errar em retornar a saudação.
― É um prazer conhecê-lo. Sou Aurora Jie-Lin O'Malley.
Você é um Gatilho, ele responde, com um toque de cerimônia.
― Sim está certo! ― a ansiedade cresce dentro de mim e eu me
aproximo. ― E se você é o Eshvaren, pode me dizer o que isso
significa.
Ele me oferece mais um de seus pequenos arcos.
Ser um Gatilho significa que você tem opções pela frente,
Aurora Jie-Lin O’Malley.
Ele levanta os braços e simplesmente empurra, elevando-se
acima do solo como se estivesse em gravidade zero.
Eu fico olhando para ele em confusão enquanto ele paira alguns
metros acima da minha cabeça.
Venha, diz pacientemente. Junte-se a mim.
Nada arriscado, nada ganho, eu acho? Sentindo-me ridícula,
dobro os joelhos e me empurro como se estivesse prestes a pular.
Mas em vez disso, completamente sem esforço, eu me levanto do
chão. E assim que eu jogo meus braços, me perguntando como devo
parar, eu já fiz exatamente isso. Há apenas uma textura tênue no ar
– nada tão espesso quanto água, mas o que estou fazendo ainda me
parece um pouco com nadar.
Com outro chute, estou subindo novamente, os braços abertos, o
riso crescendo dentro de mim enquanto a paisagem se espalha
abaixo. Esta é a melhor parte de todos os sonhos de voar que já
tive. Por um instante, é como estar de volta em casa, no tempo,
disparando ao longo da pista de corrida e sabendo que estou na
frente de todos os outros.
Isso é pura alegria.
Um segundo chute rápido me gira em uma cambalhota, e eu caio
em um loop-do-loop, gritando de alegria. O Eshvaren paira em um
estilo muito mais digno, me observando tirar tudo do meu sistema.
Siga, ele finalmente me diz.
Juntos, voamos pela beleza que se estende abaixo de nós.
Grandes vales são unidos por colinas suaves e ondulados, sua
grama verde-dourada dando lugar a massas de flores azuis e roxas
que balançam com a brisa, a campos vermelhos que ondulam
quando passamos por cima. Rios de prata cortam através deles,
serpenteando e enrolando, dobrando de volta sobre si mesmos, e a
cidade de cristal me recebe quando viramos em sua direção.
Mais uma vez, o Eshvaren fala, e posso ouvi-lo apesar do vento.
Este lugar é o eco de muito tempo atrás. Uma época em que
vivemos. Antes de lutarmos contra o Ra’haam. Você conhece o
Grande Inimigo?
― Sim. ― eu digo, olhando para ele. ― Sim, nós nos conhecemos.
Então você sabe que ele acredita no poder de muitos como um.
No sacrifício da individualidade em prol da harmonia.
― Eu sei.
Uma pergunta surge em minha mente e, embora eu saiba que
esta pode não ser a hora ou o lugar para isso, tenho que perguntar.
Estou pensando em meu pai. Em Cat. Nos outros colonos puxados
para seu abraço, seus olhos desabrochando azuis, musgo rastejando
por sua pele, escondendo-se dentro dos uniformes dos agentes do
GIA para evitar que outros se aproximassem de Octavia e
perturbassem o berço onde o Ra’haam dorme.
― Eu vi o Ra’haam absorver as pessoas ― eu digo. ― Consumi-las.
Há... Há uma maneira de sair depois de você fazer parte disso?
Não, diz o Eshvaren calmamente. A dor em sua voz é párea para
a dor aguda em meu peito.
― Oh. ― eu sussurro, porque é tudo o que posso pensar para dizer.
Uma palavrinha.
Um pensamento tão massivo.
Não possivelmente, não talvez. Apenas…
Não.
Ainda estou tentando envolver minha cabeça em torno disso
quando cruzamos um rio largo, uma massa prateada espumosa e de
movimento rápido que tomba sobre si mesma, se chocando contra
as rochas no meio do rio, enviando arcos perfeitos de spray.
Nós somos diferentes do Ra’haam, diz o Eshvaren. Acreditamos
na santidade do indivíduo acima de tudo. Isso é o que lutamos para
defender. Custou-nos tudo, mas a guerra não foi ganha
inteiramente. Embora derrotado, o Ra’haam não morreu. Ele se
escondeu de nós, adormeceu, e sabíamos que não viveríamos para
ver seu próximo despertar. Então preparamos este lugar e esta
memória, para esperar por você.
― Um pouco irônico que as memórias de todas as suas espécies
estejam em um corpo. ― eu observo. ― Quando você é aquele que
acredita na individualidade.
Esses indivíduos consentiram com este processo, responde
solenemente. O Ra'haam não busca tal permissão. Mas você é
nosso legado, Aurora. Morremos para manter viva a esperança de
derrotar o Ra'haam. Agora você deve completar nosso trabalho.
Minha voz soa fraca, mesmo para meus próprios ouvidos.
― Mas eu não sei o que fazer.
Deixamos uma Arma, ele responde. Se implantada antes do
Ra'haam despertar totalmente, ela destruirá seus planetas
berçários, evitando que floresça novamente. Não sabíamos onde o
Inimigo dormia quando fizemos este lugar. Mas anos depois de
nossa morte, nossos agentes ainda procuraram pelos mundos-
semente do Ra'haam. Eles terão deixado pistas–
― O mapa estelar! ― eu aceno, animada. ― Sim, nós encontramos.
Também deixamos os dispositivos na Dobra. Probes. Um
desses dispositivos deve ter detectado seu potencial psíquico e
ativado você. Ele sabia que estava em você a capacidade de
empunhar nossa última arma contra o Ra'haam e trouxe esse
potencial à tona. Agora você deve treinar para estar preparada para
usá-lo. Você deve terminar o ciclo.
De repente, rodeada por uma beleza perfeita, me sinto
incrivelmente pequena em um planeta muito grande. O céu dourado
parece infinito e as torres de cristal parecem chegar até ele.
― Você quer dizer que todo o seu plano dependia de eu ir a algum
lugar perto daquela sonda para que pudesse me sentir e me ativar?
E se eu não tivesse sido selecionada para a missão Octavia? E se
eu nunca tivesse chegado perto dessa parte do espaço? Como você
sabia que eu iria? Você pode ver o futuro? Se sim, tenho perguntas.
O Eshvaren balança a cabeça.
Você é especial, Aurora, mas não única. Deixamos muitas
sondas, adequadas para muitas espécies, todas procurando
potenciais na Dobra.
― Mas não há outros Gatilhos por aí ― eu aponto. ― Ou... Há?
Você está sozinha aqui, ele responde. Mas eu não estou vivo.
Apenas uma coleção de memórias. Uma gravação, se você preferir.
Pode ter havido outros Gatilhos antes de você. Outros que foram
ativados, que vieram treinar aqui. Não sei. O Echo será reiniciado
depois que você deixar este lugar e eu esquecerei sua morte. Mas
você não estaria aqui e o Ra’haam não existiria ainda, se outro
Ativador tivesse sido bem sucedido. E se você falhar, outros virão
atrás de você. Esta tarefa não pode ficar inacabada.
É uma perspectiva bastante sombria.
― Você não gosta muito de conversas estimulantes, não é? ― digo,
tentando parecer mais segura do que me sinto.
O Eshvaren inclina a cabeça ligeiramente para um lado.
Por favor, defina estimulante.
― Você não é muito encorajador. Você está me assustando, é o que
estou dizendo.
O medo é uma resposta apropriada, responde serenamente. Seu
treinamento será árduo. Seu teste é perigoso. Se você falhar, isso
custará sua vida.
― Hum... ― eu digo. ― Minha vida?
Essa responsabilidade é sua, ele responde. Como nós, você
deve sacrificar tudo.
Como se suas palavras lançassem uma sombra, um calafrio me
percorre. De repente, apesar da beleza deste lugar, não quero nada
mais do que voltar ao Zero.
― Escute, eu estive fora por horas ― eu digo. ― Minha tripulação
ficará preocupada – eles podem tentar algo estúpido. Eu deveria
dizer a eles que estou bem.
O tempo se move de maneira diferente no Echo. Para quem
está de fora, apenas alguns momentos se passaram. E nesta tarefa,
sua tripulação é secundária.
― Bem, eles não são secundários para mim ― eu respondo, e
finalmente tenho um toque real de aço em minha voz. ― Diga-me
como acordar.
Vamos acordá-la e mandá-la de volta se desejar. Mas quando
você se levantar, você deve se preparar para voltar aqui. Faça um
ciclo completo do seu próprio tempo, faça o que for necessário e
toque na sonda mais uma vez. Voltaremos a falar, como fizemos
agora.
Ele acena com a cabeça.
Então seu treinamento começará.
Abro a boca para responder, mas antes que possa dizer uma
palavra, estou de repente acordada. O infinito céu dourado acima é
substituído pelo teto da doca do Zero e pelos rostos do meu
esquadrão.
Eles estão amontoados ao meu redor, preocupação em seus
olhos. Finian está segurando Magellan e posso ver que a tela está
escura, sem vida. Tocar na sonda deve ter–
― Be'shmai, você está bem? ― Kal pergunta com urgência,
segurando minha cabeça em suas mãos.
Zila está passando seu uniglass em mim, provavelmente
conduzindo algum tipo de exame médico.
― Isso foi imprudente, Aurora.
― Sério, Clandestina ― diz Fin. ― Você não pode simplesmente
tocar em todas as sondas estranhas que encontramos, sabe? Quem
sabe onde esteve.
― Ela esteve em algum lugar ― diz Scarlett baixinho, olhando para
mim com atenção.
― Eu estive ― eu respondo.
―... Be’shmai? ― Kal pergunta.
Eu olho em seus olhos, vejo o medo nos meus.
― Acabei de conhecer o Eshvaren.
19
TYLER

Acordo com gosto de sangue na boca.


As paredes, o chão, a sujeira que limpo dos meus lábios, todos
eles são de diferentes tons de cinza, o que me diz que ainda
estamos Dobrando. Estou deitado em uma bio-cama, olhando para o
teto, sentindo o zumbido baixo de um motor em meu peito dolorido.
Pelo tom, posso dizer imediatamente que estou a bordo de um porta-
aviões Terráqueo. Um Mark VII-b, eu acho, com as novas entradas
de fusão épsilon e amortecedores inerciais da Série 9.
Ei, eu gosto de naves, ok?
O que quero dizer é que esta é uma nave TDF. O que significa
que estou sob custódia do TDF. O que significa que estou em todos
os tipos de problemas na galáxia. Mas acho que não estou morto?
Pode ser pior, Jones.
Eu me arrisco a me mover, recompensado com pontadas de dor
por todo o meu corpo. Olhando para mim mesmo, posso ver que
recebi alguns primeiros socorros – o pior dos meus arranhões e
cortes é revestido com envoltórios para estimular a cura, e há um
pacote de resfriamento colocado no meu peito nu e machucado para
matar o inchaço. Ainda estou usando minhas calças cargo da Legião
Aurora e as botas que peguei em meu pacote do Repositório
Domínio, mas ninguém achou adequado substituir minha camisa. Por
um segundo eu entro em pânico, alcançando meu pescoço... Mas eu
encontro a corrente de prata, o anel do Senado do meu pai ainda
preso a ela.
Pai...
O que ele pensaria de tudo isso? O que ele me diria para fazer?
As notícias sobre a batalha entre o TDF e o Inquebrado
provavelmente já foram divulgadas agora. A galáxia inteira pode
estar em guerra. E Scar, Auri e os outros... Eles estão lá sozinhos.
Eu não posso mais protegê-los.
Eu me sento, estremecendo de dor enquanto olho ao redor da
sala. Em notícias que não surpreendem ninguém, estou em uma cela
de detenção. A porta está lacrada, a câmera acima dela está ligada,
a temperatura um pouco mais baixa do que confortável – tudo como
esperado.
O que eu não espero é não estar aqui sozinho.
Ela está deitada em outra bio-cama ao longo da parede oposta.
Vestindo seu uniforme de gala da cintura para cima e nada além de
uma calcinha preta da cintura para baixo. Suas coxas estão cobertas
de envoltórios, hematomas escurecendo a pele oliva embaixo. Em
algum momento, ela foi conectada a um soro intravenoso, mas ela o
arrancou, com sangue escorrendo de seu pulso, respingando no
chão. Ela está de costas, com tranças pretas, lábios pretos, coração
preto, dando um olhar de puro assassinato para a cela.
Saedii.
― Finalmente acordou ― diz ela calmamente. ― Eu acredito que
você gostou do seu descanso?
―... Quanto tempo eu estive fora?
― Horas. ― ela balança a cabeça. ― Vocês Terráqueos são tão...
Fracos.
― Você está sob custódia Terráquea ― indico. ― Então, o que isso
torna você?
― Uma prisioneira de guerra. ― ela vira a cabeça e me encara com
seu olhar fulminante. ― Uma que você não pode esperar ganhar.
― Eu te avisei ― digo carrancudo. ― Você se jogou bem nas mãos
deles, Saedii. Você deu a eles exatamente o que eles queriam.
― Um conflito em que não pode haver vitória? A inimizade de um
Arconte que destrói sóis? ― Saedii se senta lentamente, balança as
pernas nuas e coloca os pés no chão. Há apenas o menor traço de
dor em seus olhos, apesar de seus ferimentos. ― Se seu povo
queria aniquilação, então sim. Eu dei isso a eles.
― Não é meu povo por trás dessa bagunça.
― Aquele distintivo patético da Legião Aurora sob o qual você se
encolhe não o poupará da vingança do Starslayer. Caersan não fará
distinção entre o TDF e seus companheiros legionários. ― seus
lábios negros se curvam, caninos pontudos brilhando. ― Ele vai
massacrar todos vocês. Seus sóis entrarão em colapso. Seus
sistemas serão engolidos. Toda a sua raça foi entregue ao pó da
história. Todos vocês.
― Você parece chateada. ― eu digo.
Seus olhos se estreitam atrás da faixa de tinta preta em suas
têmporas. Mas aquela irritante frieza Syldrathi desliza no lugar como
uma luva gasta.
― Você é um tolo, Tyler Jones ― ela diz. ― E você vai morrer como
um tolo.
― Eu não sou o tolo cuspindo ameaças para toda a nave ouvir. ―
aponto para o pequeno ponto preto acima do batente da porta. ―
Você percebe que estamos sob vigilância, certo? Que eles podem
ouvir tudo o que você diz? Vê tudo o que você faz?
― Eu sou uma Templária do Inquebrado. ― ela joga as tranças para
trás, apontando para as três lâminas escritas em sua testa. ―
Warbreed por nascimento e verdade. Ungida com o sangue do
próprio Arconte Caersan. Não tenho nada a temer de seu povo.
― Eu continuo dizendo a você, o pessoal que comanda este show
não é o meu povo. Há coisas acontecendo aqui que você não
consegue entender. Mas acredite em mim quando digo, Saedii,
nascimento, verdade, sangue, seja o que for. Você está perdendo a
cabeça aqui.
Eu me deito de volta na cama, estremecendo enquanto apalpo os
hematomas no meu peito nu.
― Portanto, tome cuidado para não falar demais.
Colocando minhas mãos atrás da minha cabeça, eu olho para o
teto, sentindo o olhar ardente de Saedii vagando pelo meu corpo.
Posso dizer que ela quer me matar – posso sentir a ameaça e a
raiva irradiando dela em ondas. Mas eu sei que ela não é estúpida o
suficiente para tentar qualquer coisa com essas câmeras e, além
disso, suas feridas ainda estão longe de cicatrizar. E então, tentando
tirar os pensamentos da Templária Saedii Gilwraeth da minha mente,
começo a me perguntar como vou escapar dessa cela.
Além do que estou vestindo, não tenho nada em relação ao
equipamento. Eu percebo que eles até tiraram meu uniglass de mim,
e eu sinto uma pontada repentina por perder o último objeto físico de
Cat que eu tinha comigo.
Acho que sempre terei a tatuagem que fizemos juntos...
Eu me pego pensando nela. Sentindo falta dela. Ela sempre me
protegeu. Por um momento, encontro meus pensamentos vagando
para aquela noite na licença da costa, correndo meu dedo sobre a
tinta no meu bíceps, pensando sobre como ela se sentiu, a maneira
como ela estremeceu quando eu–
Você é patético.
Eu pisco. Sentando-me com cuidado, eu olho para Saedii, que
ainda está me observando com aqueles olhos estreitos e odiosos.
― Você me...?
Chamei você de patético? Sim. Fantasiando com uma amante
morta em um momento como este?
Eu pisco novamente. Percebendo que Saedii está falando comigo
sem mover os lábios.
Que de alguma forma, ela está...
Você está... Na minha mente?
Ela bufa baixinho em desprezo.
Se é que pode ser chamada assim.
O que... Como você está fazendo isso?
Muito fraco.
Eu franzo a testa mais profundamente, tentando descobrir o que
em nome do Criador está acontecendo aqui. Se eu estou alucinando
ou tendo uma concussão ou talvez apenas sonhando com tudo isso.
Mas, finalmente, lembro-me de falar com Kal na Cidade Esmeralda.
Lembro-me de seu aviso de que Saedii seria capaz de rastreá-lo...
Porque ela podia senti-lo.
Eu olho para Saedii. Realização se cristalizando em minha mente.
Sua mãe era uma Waywalker...
Eu sinto uma centelha de fúria, escura e distorcida, crepitando
como uma corrente viva entre nós.
Não fale de minha mãe nunca mais, Terráqueo.
Eu balanço minha cabeça. Pensamentos acelerados.
Kal disse que você herdou alguns... Alguns dos dons Waywalker
dela. Eu sabia que os Waywalkers eram empáticos. Que eles
podiam ler o humor. Talvez até mesmo pensamentos superficiais.
Mas eu nunca soube que eles podiam falar com as pessoas
telepaticamente?
Ela me olha, fria e desdenhosa.
Aparentemente, há muito que você não sabe, Tyler Jones.
... O que isso deveria significar?
Ela zomba.
Você é realmente filho de seu pai.
Sinto um lampejo de raiva com isso, tão escuro e profundo quanto
o dela. Minha mão rasteja involuntariamente para a corrente em volta
do meu pescoço, o anel no final dela.
Que tal tirarmos mães e pais da mesa para discussão?
Risos ecoando em meu crânio.
Você é um tolo.
Se você enfiou a cabeça na minha só para me insultar, pode
sair de novo.
Eu “enfiei minha cabeça na sua”, como você disse tão
eloquentemente, porque eu podia sentir sua afrodisia espirrando
nas paredes e eu queria discernir a fonte. Ela olha incisivamente
para suas pernas nuas e calcinha. Se eu fosse o foco de suas
fantasias, cortaria seus polegares fora.
Eu zombo.
Não se iluda.
Eu não me iludo. Isso é o que faço com os homens que
procuram me cortejar, Tyler Jones. Seus dedos vão para o cordão
de polegares cortados e ressecados, ainda amarrados em volta do
pescoço. Eles têm a oportunidade de me superar em combate. E se
eles falharem...
Eu olho para ela, balançando suavemente minha cabeça.
Grande Criador, você realmente é um psicopata, não é?
Mais uma razão para manter os pensamentos sobre mim fora da
sua cabeça, pequeno Terráqueo.
Vou tentar me conter.
Ela coloca as mãos nos joelhos, inclinando-se para frente. Suas
tranças caem em torno de suas bochechas enquanto ela se estica,
lânguida, correndo as unhas pretas por todo o caminho pelas canelas
até a ponta dos dedos dos pés. Seus movimentos são sensuais,
quase sedutores, mas ela obviamente está apenas fazendo isso para
me cutucar. Quando ela olha nos meus olhos, posso sentir a malícia
nela.
É melhor você fazer mais do que tentar, garoto.
Ouça, que tal você apenas–
Meu pensamento é interrompido pela porta da cela que se abre
com um chiado. Eu me sento novamente, estremecendo, enquanto
meia dúzia de soldados TDF em armadura tática leve marcha para
dentro da cela. Saedii olha furiosamente, suas mãos fechando em
punhos. Mas os soldados estão de olho em mim. Vejo a identificação
da nave KUSANAGI em seus uniformes e percebo que devo estar na
mesma nave que...
O tenente que lidera o pelotão acena um disruptor na minha cara.
― Princeps quer falar com você, Legionário Jones.
20
KAL

Ela está com medo.


Eu posso sentir isso, como uma sombra atrás dela, assomando
fria e escura. Como um casaco preto úmido em volta dos ombros,
fazendo-a estremecer de frio. Posso sentir sua decepção consigo
mesma.
Ela sabe que o destino de toda a galáxia está em jogo.
Ela sabe o que acontecerá se falhar.
E ainda assim, ela teme.
Ela está em seus aposentos, cada cor ao seu redor um tom de
cinza. Ela está em uma pequena janela de exibição, olhando para as
marés incolores da Dobra. O espaço além é infinito, inundado de luz.
Um balé cósmico, bilhões de anos em formação. Uma beleza
indescritível como qualquer outra da criação.
E tudo isso diminui para a chama de uma vela ao lado dela.
― Be'shmai?
Ela olha por cima do ombro para mim, o branco de sua íris
refletindo a luz e fazendo meu coração gaguejar. Eu fico na porta e a
vejo envolver os braços em volta de si mesma como se ela estivesse
com frio. E eu sei então, no fundo dos meus ossos, eu faria qualquer
coisa para tirar esse fardo dela.
― Entre. ― ela diz, suavemente.
A porta se fecha atrás de mim quando entro. Olhando ao redor,
posso ver que há muito pouco neste quarto para marcá-lo como
sendo de Aurora. A cabine de Finian está equipada para lidar com
sua condição. A minha é completa, com uma pequena flor de lias em
uma urna de prata e até um siif que eu poderia tocar se estivesse
com vontade. Mas o quarto de Aurora não tem adornos, exceto por
uma única vela escrita com o que eu reconheço como a linguagem de
seu pai. Eu só sei disso porque a caligrafia chinesa tem grande
semelhança com a escrita Syldrathi. Lembro-me da primeira vez que
a vi na academia. Surpreendeu-me que os humanos pudessem
produzir algo que se aproximasse da beleza da minha própria cultura.
Não me surpreende agora.
A vela está sozinha no quarto, separada da garota que deve tê-la
acendido. É quase como se Adams e de Stoy soubessem que aquele
lugar não seria seu lar por muito tempo. E me entristece ver como
ela está à deriva.
― Finian relata que o dano a Magellan não é crítico ― digo a ela. ―
Tocar a sonda realmente sobrecarregou seus circuitos, mas com o
tempo, ele pode consertá-lo.
Aurora simplesmente balança a cabeça, olhando para a janela de
exibição. Suspeito que atualizações sobre dispositivos eletrônicos
quebrados não sejam o que ela precisa de mim agora.
E então eu dou um passo atrás dela e envolvo meus braços em
torno dela. Ela se aconchega em mim, fecha os olhos e suspira,
como se em meus braços ela finalmente estivesse em algum lugar
perto de casa.
Eu olho para o nosso reflexo na janela de exibição, eu atrás, nós
juntos. E percebo o quão bem nos encaixamos. Como duas peças do
quebra-cabeça mais estranho. Como se ela fosse a peça que faltou
toda a minha vida. O Desejo em mim é quase ensurdecedor, mas eu
o seguro, respirando fundo e trazendo um pouco de calma para a
tempestade dentro de mim. Porque além da adoração refletida em
seus olhos, posso ver as palavras que ela deseja dizer, muito antes
de finalmente reunir coragem para dar-lhes voz.
― Estou com medo, Kal ― ela sussurra.
― Eu sei ― respondo. Eu acaricio sua bochecha e ela fecha os
olhos novamente, tremendo. ― O que os Antigos disseram a você,
para deixa-la assim?
Ela suga o lábio inferior, incerta, e eu sei enquanto ela fala que
sou o único na galáxia a quem ela admitiria isso.
― Eles têm que me treinar ― diz ela. ― Como usar a Arma. Mas
eles... ― ela respira, como se estivesse se preparando para um
mergulho profundo. ― Eles disseram que se eu falhar, isso vai me
matar. ‘Como nós, você deve sacrificar tudo’.
Eu sinto um arrepio de raiva perfeita com o pensamento. Antes
que ela fosse minha, eu não sabia o que era ser completo. Antes de
encontrar esta luz, não temia o escuro. Mas ter descoberto essa
garota, essa peça que faltava no quebra-cabeça da minha vida,
apenas para ser confrontado com o pensamento de que poderei
perdê-la tão rapidamente...
― Eu não quero ir. ― ela sussurra. ― Eu sei que é egoísta. Eu sei
que depois de tudo pelo que lutamos, tudo que as pessoas deram,
Cat, Tyler, todo o esquadrão... ― lágrimas brilham em seus cílios
enquanto ela balança a cabeça. ― Mas eu não quero arriscar isso.
Nós.
Ela suspira, afunda em meus braços, inclinando a cabeça para
trás contra meu peito.
― Diga-me que isso é a coisa certa a fazer, Kal ― ela diz.
Eu aliso seu cabelo para trás, acariciando sua bochecha.
― Você já sabe disso, be'shmai ― murmuro.
Ela aperta meus braços ao redor dela.
― Diga-me de qualquer maneira.
Respiro fundo, contente por um momento em simplesmente ficar
com Aurora em meus braços. Sei que ela já sabe o que deve fazer.
Que ela sabe disso, com cada átomo de seu corpo. Ela é nada se
não for corajosa. Mas eu sei que ela também está me pedindo força,
certeza, algo em que ela possa se agarrar enquanto caminha para o
fogo.
E então eu digo a ela algo que nunca disse a ninguém.
― Minhas primeiras lembranças são de meus pais brigando ― eu
digo.
Eu sinto sua incerteza sobre por que estou dizendo isso a ela.
Mas ela confia em mim o suficiente para não questionar e
simplesmente deixa minhas palavras afundarem, então me segura
mais forte ainda.
― Sinto muito ― ela sussurra. ― Isso é triste.
Eu aceno, olhando além de nosso reflexo para a Dobra além.
― Minha mãe e meu pai eram jovens quando se conheceram. Ela
era uma novata no Templo do Vazio. Ele era um Paladino da cabala
guerreira. Quando eles sentiram o Puxão pela primeira vez, seus
amigos e familiares tentaram dissuadi-los de se tornarem presos à
vida.
― Por quê? ― Aurora pergunta.
― Warbreed e Waywalkers raramente fazem bons pares. Aqueles
que buscam respostas e aqueles que respondem à maioria das
perguntas com conflito raramente se dão bem. ― eu encolho os
ombros e suspiro. ― Mas, ainda assim, meus pais fizeram isso de
qualquer maneira. Eles se amaram ternamente no início. Tanto que
machucou os dois.
Ela consegue dar um pequeno sorriso.
― Isso soa romântico. Duas pessoas querendo ficar juntas, não
importa o que os outros digam.
Eu concordo.
― Romântico, talvez. Mal aconselhado, com certeza. Acho que
minha mãe pensou que ela poderia ser capaz de guiar o amor do
meu pai pelo conflito no amor pela família. Mas Syldra estava em
guerra com a Terra naqueles anos. E à medida que a divisão entre
meu povo e o seu se aprofundou, ele se perdeu totalmente dentro
dela. As rachaduras em seu elo vital estavam aparecendo na época
em que Saedii nasceu. E elas ficaram ainda mais profundas quando
eu cheguei.
Eu suspiro de novo, percebendo o quão brilhante é uma bênção
poder falar assim. Para simplesmente ter alguém em quem confio o
suficiente para compartilhar.
― Meu pai era um homem cruel. Ele governou com mão pesada e
não tolerou dissensões. Ele ordenou que minha irmã e eu fôssemos
introduzidos na Cabala Warbreed, e ele supervisionou nosso
treinamento pessoalmente. Quando ele nos deu aulas no Aen Suun,
ele não se conteve. Muitas foram as noites que Saedii e eu nos
retiramos para nossos aposentos machucados e ensanguentados
por suas mãos. Mas ele disse que isso nos tornaria mais fortes. A
misericórdia, ele nos disse, era território de covardes.
“Saedii e eu éramos próximos no início. Quando éramos jovens,
ela era a estrela em meus céus. Mas, à medida que crescemos,
papai começou a me mostrar mais favores do que a ela, e ela ficou
com ciúmes. Saedii amava nosso pai, sabe. Amava-o com uma
ferocidade que eclipsava a minha. Embora eu tenha sido criado como
Warbreed, na verdade sempre senti mais afinidade com minha mãe.
Ela me ensinou o valor da vida, Aurora. A alegria da compreensão, a
justiça de uma mão equilibrada. Eu a amava profundamente, mesmo
quando meu pai me pressionou para abraçar a guerra interna, para
que eu pudesse lutar melhor na guerra externa. Mamãe vinha até
mim à noite, quando papai dormia. Os hematomas que ele colocara
em sua pele eram da mesma tonalidade que os meus. ‘Não há amor
na violência, Kaliis’, ela me dizia, pressionando um pano frio em
minhas feridas. ‘Não há amor na violência’”.
― Isso é horrível ― sussurra Aurora. ― Sinto muito, Kal.
Eu balanço minha cabeça, sentindo a velha picada familiar.
― As linhas de batalha que nossos pais desenharam se tornaram
minhas e de Saedii. Saedii buscou apenas o elogio de nosso pai,
pouco se importando com a sabedoria de minha mãe. ― eu toco as
três lâminas na minha testa. ― Estávamos morando a bordo da nave
do meu pai na época. Ele nos queria perto, eu acho. O melhor para
controlar minha mãe, para moldar Saedii e eu no que ele queria que
fossemos. Eu envelheci. Mais alto. Mais forte. Quando Saedii não
conseguia mais me superar na prática, ela procurou me punir de
outras maneiras. No meu oitavo dia, minha mãe me deu um siif – um
instrumento de cordas, não muito diferente dos violinos Terráqueos.
Foi um presente de sua mãe antes dela. E um dia, quando eu tinha
12 anos, depois de ter vencido ela na prática novamente, Saedii foi
ao meu quarto e o destruiu em retaliação.
“Embora eu sempre tenha tentado levar a sério os ensinamentos
de minha mãe, eu ainda era filho de meu pai. E esta foi a primeira
vez que realmente senti o Inimigo Interior assumir o controle. Eu
provei o ódio em minha língua, Aurora. E eu gostei. E então eu cacei
minha irmã. Eu a encontrei nas quadras de sparring com seus
amigos. Mostrei a ela os pedaços quebrados de meu siif e ela riu. E
então eu a acertei com isso”.
Eu abaixo minha cabeça em vergonha. Minha língua tem um gosto
amargo, seco como cinzas. Aurora olha meu reflexo e posso ver a
pergunta em seus olhos. Mas ela pode ver a culpa nos meus
claramente e, em vez de julgamento, ela encontra compaixão. Aperta
minha mão, gentil como um sussurro.
― Você era apenas um menino, Kal. ― ela diz. ― Você não é a
pessoa que era naquela época. Eu conheço você. Você nunca faria
algo assim agora.
― Isso não é desculpa. ― eu digo. ― Já se passaram sete anos e,
ainda assim, o desprezo que sinto por mim mesmo não diminuiu nem
um pouco. Ela era minha irmã, Aurora. E eu não bati nela por nenhum
motivo, exceto para machucá-la. Quando ela caiu, eu bati nela
novamente. E de novo. Eu podia sentir meu pai em meu ombro
naquele momento. Ouvir suas palavras em meu ouvido.
Amaldiçoando a fraqueza. Pena. Remorso. ‘Misericórdia é território
de covardes’. ― eu olho para a Dobra, para o balé cósmico além da
janela de visualização. ― Eu esperava uma punição. Em vez disso,
meu pai me elogiou. Ele me disse que, quando soube do que eu tinha
feito, nunca ficou mais orgulhoso de eu ser seu filho.
― Kal, ― Aurora diz suavemente. ― seu pai parece...
― Monstruoso. ― eu digo. ― Ele era monstruoso, Aurora. E minha
mãe viu os monstros que ele estava fazendo em Saedii e em mim, e
finalmente, ela decidiu deixá-lo. Para quebrar o vínculo vital e fugir de
volta para Syldra. Meu pai disse a ela que a mataria se ela o
deixasse. Ao abandoná-lo, ela estava deixando tudo para trás. Sua
casa. Os poucos amigos que ele permitiu que ela tivesse. Tudo isso.
Saedii recusou-se a partir, a se separar de nosso pai. Então, no final,
minha mãe desistiu de toda a sua vida só por mim. Foi a coisa mais
difícil que ela já fez. Mas ela fez isso de qualquer maneira. ‘Mai tu
sarie amn, tu hae’si, tu kii’rna dae’, disse-me ela depois.
Aurora balança a cabeça.
― O que isto significa?
― ‘Não há nada tão doloroso ou tão simples quanto fazer o que é
certo’.
Ela olha para as estrelas lá fora, os lábios bem apertados.
― Você me disse que seu pai...
― Morreu ― eu respondo, meu coração apertando com uma força
que me surpreende. ― Ele morreu em Orion, be’shmai. Na mesma
batalha que tirou a vida de Jericho Jones. Tyler, Scarlett, eu, todos
nós ficamos órfãos naquele dia.
― O que... ― ela para de falar, encontrando meus olhos novamente.
― O que aconteceu com sua mãe? Eu gostaria de conhecê-la...
Mas as palavras de Aurora vacilam quando ela vê a dor em meus
olhos. Posso sentir sua presença em minha mente, apenas o toque
mais leve, e nela ela vê o reflexo de um sol brilhando em uma luz
ofuscante e, em seguida, em uma escuridão sem fundo. Envolvendo
os planetas ao seu redor, arrastando sistemas inteiros ao
esquecimento, dez bilhões de vozes Syldrathi gritando enquanto o
vazio se abre para engoli-los inteiros.
― Ela morreu ― sussurra Aurora. ― Quando seu mundo natal
morreu.
Eu penduro minha cabeça.
― O Starslayer tirou muito de mim, Aurora. Mas minha mãe me deu
muito mais. Eu teria estado em Syldra quando ela pereceu se ela
não tivesse incutido sua sabedoria em mim, se ela não tivesse me
forçado a ver a raiva em meu sangue como algo a ser usado para o
bem, e a segurança da galáxia uma causa que vale a pena explorá-
la. Eu me juntei à Legião Aurora por causa dela. Mesmo que deixar
ela e meu mundo para trás tenha sido a coisa mais difícil que eu já
fiz. ― eu encolho os ombros. ― Mas essa decisão me trouxe para
este esquadrão. E você. E sua busca. Eu não teria nada disso, se
não fosse por ela.
― Qual era o nome dela?
― Laeleth.
Ela acena com a cabeça, cabelos claros caindo sobre seus olhos.
― É lindo.
― Ela teria gostado de você, be'shmai. ― eu digo e ela sorri em
meio às lágrimas, porque ela pode ver a verdade do que eu digo em
meu olhar. ― Ela teria visto a força em você. O fardo que você
carrega, esta coisa da qual fazemos parte, este caminho que
percorremos... ― eu balanço minha cabeça em perplexidade. ― O
destino de toda a galáxia está em suas mãos. A coragem que você
demonstrou para chegar até aqui... Eu conheço guerreiros de sangue
que teriam se desintegrado sob tanto peso. E ainda assim, aqui está
você. Forte, bonita e invencível. ― minha mão se fecha em torno da
dela novamente e eu a aperto suavemente. ― E embora me encha
de alegria ter sido aquele a quem você pediu para lhe dizer essa
verdade, não tenho dúvidas de que você já sabia disso. Porque é
isso que você é. É apenas uma das infinitas razões pelas quais eu te
amo como amo.
Ela encontra meus olhos.
― Eu poderia morrer lá, Kal.
Meu coração dá um aperto de novo, mas tento não demonstrar
medo. Ela precisa que eu seja forte agora, e eu posso dar isso a ela.
― Você não vai morrer, be'shmai. ― digo a ela. ― Você é mais do
que jamais imaginou.
―... O que você vai fazer aqui? ― ela pergunta suavemente. ―
Enquanto eu estiver no Echo?
― Finian diz que conseguiu isolar uma trilha de partículas da sonda.
Ele se esforçou muito para explicar como era difícil. ― ela sorri
fracamente. ― Ele diz que pode rastrear o dispositivo de volta ao
seu ponto de origem. De onde quer que o Eshvaren o tenha lançado.
Talvez encontremos a Arma lá. Ou mais pistas sobre sua localização.
― O Eshvaren provavelmente vai me dizer onde fica. Se eu passar
no teste.
― Quando você passar no teste ― digo, apertando a mão dela. ―
Mas Scarlett diz que não podemos arriscar tudo no lançamento de
dados de um milhão de anos. Estou inclinado a concordar. Além
disso, vai nos manter ocupados enquanto você estiver neste... Echo
deles.
― O Eshvaren… ― ela começa. ― Eles me disseram que o tempo
passa de maneira diferente lá. Que os momentos aqui fora são horas
ali. Eu estava me perguntando se talvez... você poderia querer vir
comigo? Seria muito tempo para ficar lá sozinha.
Eu pisco.
― Podemos fazer isso? Quero dizer... é permitido?
Ela inclina a cabeça.
― Eles estão me pedindo para arriscar minha vida para salvar a
maldita galáxia, Kal. Acho que eles podem me dar um pouco de
companhia no passeio.
Eu penso nisso por um momento. Eu realmente não sei o que
esse Echo acarreta, mas tenho certeza de que Scarlett, Finian e Zila
podem conduzir o rastreamento da sonda por conta própria. E, na
verdade, a ideia de me separar de Aurora pesa como uma pedra
sobre meus ombros. E então eu sorrio para ela, concordando com a
cabeça. E por um momento, o sorriso que ela me dá em resposta é
repleto da mesma alegria que sinto em meu coração.
Mas a sombra logo retorna.
Eu vejo isso à espreita com o medo em seus olhos.
― Não há nada tão doloroso ou tão simples quanto fazer o que é
certo ― diz ela.
― Não. Não há.
Ficamos parados em silêncio por um longo tempo. Deixar que
isso nos derrube – a enormidade de tudo isso, aonde ela deve ir, o
que ela deve enfrentar, o que está em jogo, descansando em um
ponto tão pequeno quanto nós dois.
Os olhos de Aurora estão fixos na escuridão lá fora, seus
pensamentos um caleidoscópio silencioso.
― Sabe, antes de eu quebrá-lo, Magellan costumava me mostrar
fatos científicos aleatórios todos os dias. ― ela finalmente murmura.
― Eu estava lendo um ontem sobre átomos.
O calor dela, a pressão de seu corpo contra o meu, é uma droga,
e estou consciente de quão forte e rápido meu coração está batendo
em minhas costelas. Com suas costas pressionadas na curva do
meu peito, com certeza ela deve ser capaz de sentir isso. Mas tento
o meu melhor para ouvir. Estar aqui neste momento para ela.
― Átomos. ― eu digo.
― Correto. ― Aurora concorda. ― Cada célula do seu corpo é um
núcleo rodeado por elétrons. E esses elétrons são carregados
negativamente. Então, eles afastam outros elétrons quando se
aproximam demais. E este artigo disse que, embora seu cérebro
perceba a força criada pela repulsão de elétrons como 'tocando', os
átomos estão na verdade sempre pairando por uma minúscula fração
de um milímetro.
Ela passa o polegar no meu e balança a cabeça.
― Portanto, nunca tocamos em nada ― diz ela. ― Passamos toda a
nossa vida totalmente separados. Nunca chegamos a tocar em outra
coisa viva. Nunca.
A fome em mim se agita. Eu posso sentir isso nela também – o
pensamento de que esse fogo crescendo entre nós, esse sussurro
se transformando em uma tempestade, tudo isso poderia ser
apagado amanhã. Suavemente, eu a viro para me encarar. Olho nos
olhos dela. Ela estremece quando eu desenho um dedo pelo arco de
sua bochecha.
Sua voz é um sussurro quando me inclino para mais perto.
― Magellan disse que se duas partículas realmente se tocassem...
Perto.
―... Isso criaria uma reação nuclear...
― Isso parece perigoso ― eu sussurro, procurando seus olhos.
Mais perto.
― Muito. ― ela respira.
Nossos lábios se encontram, nossos fogos colidem e, naquele
instante, tudo e todos estão absolutamente certos. Não há nave. Não
há Dobra. Há apenas essa garota em meus braços e o Puxão em
meu núcleo e a pressão de sua boca, suas mãos, seu corpo contra o
meu. Ela surge contra mim, sem fôlego, faminta, buscando aquele
mesmo consolo que eu sinto, o abrigo do esquecimento, o tudo de
nós e o nada de tudo o mais. Sua língua roça a minha e ela guia
minhas mãos para onde ela quer que elas estejam, e embora eu
saiba em alguma parte de mim que o que ela disse é verdade, que
não estamos realmente nos tocando, por um momento temo que
realmente estejamos, que o calor entre nós se tornou algum fogo
nuclear que irá consumir a nós dois.
Ela se afasta de mim depois de uma eternidade. Olhando nos
meus olhos com algo perto da adoração que ela deve ver nos meus.
Ela pressiona as pontas dos dedos no meu rosto, minhas orelhas,
meus lábios, seu toque incandescente na minha pele.
― Você é o fogo que desejo queimar por dentro ― digo a ela.
Ela pega minha mão.
Ela me leva para sua cama.
Ela me puxa para baixo com ela.
― Vamos queimar juntos ― ela respira.
21
TYLER

Está frio nesta cela de interrogatório.


Os soldados que me escoltaram do nível de detenção ignoraram
todos os meus protestos, todos os meus desafios à loucura do que
eles estão envolvidos. Bons soldados não dão ouvidos a terroristas,
eu sei. Bons soldados não pensam. Em vez disso, eles simplesmente
me levaram para esta sala, amarraram-me a uma cadeira com
restrições e, com uma série de saudações rápidas, pularam de volta
para fora.
Deixando-me com eles.
Eu olho para as três figuras, iluminadas pelos holofotes acima.
Sua respiração sibila, lenta e oca. Eles têm maneirismos idênticos,
máscaras de espelho idênticas, uniformes cinza-carvão idênticos.
Além daquele que os lidera, é claro, que está vestido da cabeça
aos pés em um branco imaculado.
― BOA NOITE, LEGIONÁRIO JONES ― Princeps diz ― BEM-VINDO A
BORDO DO KUSANAGI.
Eu olho para a figura onde acho que seus olhos devem estar.
Imaginando o rosto escondido atrás daquela fachada sem traços
característicos.
― É bom ver você de novo, Zhang Ji. ― eu digo.
O nome do pai de Aurora. O nome da concha que essa coisa
roubou e agora usa como um terno barato. Essa coisa que está
adormecida por um milhão de anos, ferida, escondida nas sombras,
querendo ser invisível, não descoberta, desconhecida.
Mas eu sei seu nome.
― Ou devo chamá-lo de Ra’haam?
Eu olho entre eles, eriçado de raiva. Esperando por uma
resposta. Uma reação. Alguma coisa. Mas eles apenas olham, em
silêncio e parados.
― Eu sei o que você está fazendo! ― eu cuspo. ― Você está
começando uma guerra entre a Terra e o Inquebrado como uma
cortina de fumaça. Ganhando tempo até que seus planetas-berçário
estejam prontos para florescer. Mas milhões de pessoas vão morrer.
Talvez bilhões. Você sabe disso, certo?
Os dois uniformes cinza do GIA se posicionam de cada lado de
mim. O que está à minha esquerda estende as mãos enluvadas e
coloca um colar de dor em volta do meu pescoço. Eu recuo com o
toque do metal frio. Sinto o pequeno passo escorregar para fora e
pressionar minha espinha.
― O uso de colares para dor é proibido pelas Convenções de
Madrid ― eu digo. ― Eles provavelmente deveriam ter escrito algo
sobre serem possuídos por parasitas alienígenas lá também, mas
você peg–
― ONDE ESTÁ AURORA JIE-LIN O’MALLEY? ― Princeps pergunta.
Eu endireito meu queixo, olho para aquele rosto vazio e
espelhado.
― De acordo com os protocolos da Legião Aurora, só posso
fornecer meu nome, posto e número de esquadrão.
Princeps inclina a cabeça.
― ONDE ESTÁ AURORA JIE-LIN O’MALLEY?
Eu lambo meus lábios. Preparando-me.
― Tyler Jones. Alfa. Legião Aurora, Esquadrão 312.
Um raio de agonia sobe pela parte de trás do meu crânio e
explode dentro da minha cabeça. Eu suspiro quando cada centímetro
de pele explode em chamas, como cada nervo é arrancado em carne
viva e arrastado através de vidro quebrado, enquanto meus olhos
explodem dentro do meu crânio e ácido é derramado nas órbitas,
comendo minhas cavidades nasais e gotejando no meu tr–
Isso para. Desligado com um toque do dedo de Princeps. Arrasto
um suspiro trêmulo por entre os dentes, o suor picando em minhas
feridas. Duraram apenas alguns segundos, mas essa foi a pior dor
que eu já senti na minha vida, incluindo aquele momento na sexta
série quando eu me prendi no meu zíper.
Princeps abre uma das mãos com luvas brancas e me mostra o
controle do colar de dor. As configurações variam até 10.
Atualmente, está definido como 1.
― ONDE ESTÁ AURORA JIE-LIN O’MALLEY?
― Tyler Jones. Alf–
O resto das minhas palavras é estrangulado quando o colar volta
a funcionar. Um gemido escapa dos meus dentes. Meu corpo inteiro
treme. Tento ter pensamentos calmantes, tento me convencer de que
isso não é real. Mas embora a parte lógica do meu cérebro saiba
que isso é apenas indução nervosa, apenas a ilusão de dor, a parte
animal está gritando. A pele está sendo arrancada do meu corpo
com facas enferrujadas, uma lixa está sendo raspada contra o
músculo em carne viva, cinzéis cegos estão sendo presos entre
minhas vértebras, sangue e fluido espinhal estão escorrendo m–
A dor para. Um momento de alívio brilhante e indizível.
― ONDE ESTÁ AURORA JIE-LIN O’MALLEY?
― T-Tyler J–
E lá vamos nós de novo.
Eu perco a noção do tempo.
Eu perco a conta dos giros desse interruptor.
Eu sei que chego ao nível 2 antes de começar a gritar.
Eu começo a rugir para eles pararem, pausarem, pelo Criador,
parem, no Nível 3.
Eles não param até o 4.
― ONDE ESTÁ AURORA JIE-LIN O’MALLEY?
― Eu não sei!
Eu me debato fracamente contra as amarras que me prendem,
só para ter algo contra o que me enfurecer. Sinto o gosto de cobre
na língua, cuspo sangue no chão. Percebo que meus gritos devem
ter rompido minhas cordas vocais.
― ONDE ESTÁ AURORA JIE-LIN O’MALLEY? ― Princeps repete,
enlouquecendo.
― Eu não SEI! ― eu rujo, minha voz rouca e quebrada. ― O local
para onde estávamos indo era na direção da caixa preta de Hefesto!
Nunca vi os dados!
Outra lança de dor impossível.
Outro grito sangrento e salpicado de saliva.
― TUDO ISSO PODE ACABAR, LEGIONÁRIO JONES.
De novo.
― DIGA-NOS SIMPLESMENTE A VERDADE.
E de novo.
― ONDE ESTÁ AURORA JIE-LIN O’MALLEY?
E de novo.
― ESTOU DIZENDO QUE EU NÃO SEI!
E então para. Bem desse jeito. Sinto vertigem. Delírio. Cada
segundo que passo sem mais daquela dor parece uma bênção do
Criador, e oro por escuridão, por sono, pelo fim de tudo. Mas
então... Então eu sinto uma mão gentil tocando meu ombro nu.
Lábios macios pressionam contra a pele em chamas da minha testa,
frios como gelo, o alívio lavando sobre mim como uma chuva de
primavera.
― Você sempre amou ser o herói. ― alguém diz.
Eu abro meus olhos. Pisco através do suor, todo o mundo
borrando. E eu sei que estou sonhando então. Que perdi a
consciência, ou talvez esteja morto, porque o rosto que vejo na minha
frente não pode ser real, não pode ser real
não pode
ser
―... C-Cat?
Ela sorri. Seu cabelo escuro está penteado com o mesmo
fauxhawk cortado baixo. A mesma tatuagem de fênix está em sua
garganta. O mesmo rosto bonito, queixo pontudo, lábios em forma
de arco.
― Oh, Tyler ― Cat sussurra, acariciando minha bochecha. ― Meu
lindo Tyler.
Sinto um soluço, estrangulado, tentando borbulhar e sair pela
minha garganta que sangra. O alívio que sinto ao vê-la, a queda das
emoções, alegria, amor, descrença, conforto, tudo isso ameaça
apenas me arrastar para baixo e me afogar. Não é tarde demais, eu
percebo. A maneira como terminamos... Todas as coisas que eu
deveria ter dito e feito...
Mas então eu percebo que ela está vestindo o uniforme cinza-
carvão do GIA, igual aos outros. Que ela tem uma máscara de
espelho debaixo do braço. Olhando para a minha esquerda, eu
percebo que o agente que estava lá há um momento está
desaparecido, e através do borrão, através da névoa, através do
crescente desespero, raiva e medo, eu percebo que ela... Foi ela
quem colocou o colar de dor em volta do meu pescoço. E pior – pior
do que a dor que eles me fizeram passar ou a agonia de vê-la
novamente depois que pensei que ela estivesse perdida, o pior de
tudo é o momento em que me concentro em seus olhos, agora fixos
nos meus. Porque a Cat que eu conhecia, a Cat que eu amava... Os
olhos daquela Cat eram castanhos.
O desta aqui é azul. Fracamente luminoso.
E suas íris têm o formato de flores.
― Não. ― eu respiro. ― Ah não...
― Você não entende, Tyler.
Ela é...
Eu olho para Princeps. De volta à coisa que está usando Cat.
Uma onda de horror e fúria toma conta de mim, através de mim,
encharcando-me até os ossos.
― Você é um deles. ― eu sussurro.
― Eu sou eles. ― ela murmura, tocando meu peito nu, bem sobre
meu coração partido. ― Eles são eu. Eu sou nós, Tyler. Todos nós.
― Criador ― eu sussurro. ― Oh Criador, o que eles fizeram com
você?
Ela balança a cabeça e sorri, me olha como se eu fosse uma
criança.
― É quente aqui, Ty. É maravilhoso. Está cheio e está completo e
isso é casa. Nunca fui tão amada ou aceita. Nunca me senti tão real.
Mal posso esperar para que você sinta isso também.
Ela se inclina para frente e o horror que toma conta de mim
enquanto ela pressiona sua boca na minha é simplesmente...
Indescritível. Sua pele está fria, como a de um cadáver. Seu hálito
cheira a terra e alguma doçura enjoativa, e seus lábios ainda roçam
os meus enquanto ela sussurra.
― Não podemos esperar. ― ela abaixa o queixo. Olhos brilhando
ameaçadores. ― Mas você precisa nos dizer para onde Aurora está
indo, Tyler.
E eu olho em seus olhos.
E eu sinto as minhas próprias lágrimas derramarem.
― Tyler Jones ― eu digo. ― Alfa. Legião Aurora, Esquadrão 312.
E a dor me atinge novamente. E de novo. E de novo. Parece uma
eternidade. E embora no final eu não consiga nem gritar, no final eu
perco qualquer noção de quem ou o que eu sou, eu sei que mesmo
se eu soubesse onde Auri e os outros estivessem, eu nunca diria a
eles agora. Porque por mais que dói, por mais profundo que corta,
toda essa dor não é nada comparada à agonia do único pensamento
a que me agarro.
Minha Cat se foi.
Ela realmente se foi.
E eles a tiraram de mim.
22
ECHO

AURORA
Estou lutando para ficar de pé, os ventos me rasgam de todas as
direções. O vendaval uiva ao meu redor, agarrando minhas roupas,
tentando me desequilibrar e me jogar desamparadamente em
direção ao chão.
Estou talvez cem metros acima da grama exuberante do Echo,
mas não consigo vê-la embaixo de mim. Em vez disso, estou envolta
por uma névoa prateada que a tempestade de vento constantemente
separa e depois reconstrói. O objetivo desse teste – um teste
simples, de acordo com o Eshvaren – é me manter em pé,
controlando minha posição apenas por meio da força mental. Mas é
exaustivo e assustador, como se eu estivesse afogando no mel.
A voz do Eshvaren soa em minha mente.
Você confia demais em sua fisicalidade, ele repreende
suavemente. Você deve concentrar sua força mental aqui.
Certo, claro. Força mental.
Até mesmo fazer uma pausa para pensar sobre isso cria uma
rachadura no meu escudo e eu sou esmagada de cabeça para baixo,
meu grito arrebatado pelo vento. Eu agarro meu caminho de volta ao
equilíbrio, os braços agitando enquanto eu estabilizo, adrenalina
bombeando através de mim enquanto eu luto para ficar de pé por
mais alguns segundos.
Em seguida, outra rajada de vento vem da minha esquerda, me
socando nas costelas e me deixando sem fôlego. Enquanto respiro
fundo, minha concentração vacila e, em um instante, estou caindo,
gritando, batendo os braços em uma tentativa vã de me conter antes
de atingir o solo. O verde abaixo de mim se torna visível através da
névoa nublada e, em seguida, é vívido, correndo direto para o meu
rosto. Eu bato na terra como um cometa, quebrando o chão ao meu
redor.
Acima, minha própria tempestade pessoal continua, mas ao
redor, o Echo permanece tão dourado e bonito como sempre foi. O
sol brilha suavemente, grinaldas de flores vermelhas e amarelas
penduradas nas árvores próximas. O ar tem um cheiro tão bom que
você poderia comê-lo. Mas, enquanto me arrasto para ficar de pé na
cratera quebrada, meu coração está disparado, meu rosto coberto
de lágrimas. Eu viro minha cabeça, e lá está a figura cristalina do
Eshvaren, arco-íris refratado em sua forma, me olhando tão
impassível como sempre. Uma luz parece brilhar de dentro dele,
fazendo brilhar todas as suas cores.
De novo? ele pergunta imediatamente.
― Só m-me dê um minuto. ― imploro, curvada, as mãos apoiadas
nos meus joelhos ― para recuperar... M-meu fôlego.
Isso não é ar em seus pulmões, ele me diz. Isso não é suor na
sua pele. Você não tem um eu físico neste lugar. Aqui, sua única
limitação é sua imaginação. Seus únicos obstáculos são aqueles
que você coloca à sua frente.
Eu fecho meus olhos, tentando lutar contra a frustração que sinto
em outra rodada de psicologia. Está acontecendo comigo assim há
horas. Sei que o Eshvaren sabe do que está falando, mas estou
realmente tentando aqui. E ouvir que cada falha é minha culpa não
está ajudando.
― Isso não está funcionando. ― eu suspiro, endireitando-me
lentamente. ― Isso não está funcionando nem um pouco. Estou
piorando, não melhorando.
Seu desempenho parece estar em declínio, concorda o
Eshvaren.
― Por que estamos fazendo isso? Qual é o ponto? ― eu aceno
minha mão para o céu turvo. ― Vou ter que lutar para abrir caminho
através de uma tempestade para chegar à Arma?
O Eshvaren balança a cabeça.
Paciência é necessária em seu treinamento. Existem duas
etapas para dominar seu poder. A segunda é muito mais difícil.
Começaremos com a primeira: você deve aprender a invocar suas
habilidades sob comando. Você aparentemente acha mesmo esta
lição simples difícil.
― Bem, não tem sido muito bom para mim até agora ― eu aponto.
― Quero dizer, meu poder nos tirou de alguns pontos difíceis, mas
usá-lo é muito parecido com libertar um tigre para lutar por você.
Você realmente não tem certeza de quem será mordido no processo.
Contanto que a batalha seja ganha, o que importa quem o tigre
morda?
Eu pisco
― O que isso deveria significar?
O Eshvaren simplesmente balança a cabeça, o ar ao redor
tilintando como uma risada suave. Através do brilho quente em torno
dele, eu sei que ele está sorrindo para mim.
Primeira lição primeiro, diz simplesmente. Vamos começar de
novo.

KAL
O céu dourado está desbotando para o roxo, pequenas estrelas
se abrindo como flores no céu, quando Aurora finalmente entra
cambaleando em nosso acampamento. Ela parece exausta, seu
cabelo emaranhado, seus olhos empacados nas sombras, mas ainda
assim, ela é linda. Com um suspiro, ela caminha para frente para que
eu possa envolvê-la em meus braços. Beijar a testa dela. Segura-la
com força.
― Como foi seu primeiro dia de treinamento, be’shmai? ― eu
pergunto.
― Dia difícil no escritório. ― ela responde.
Nós nos instalamos em nosso acampamento. Na verdade, o lugar
não merece esse nome – é simplesmente o lugar onde escolhemos
dormir. Ele está situado em uma depressão suave, sob uma árvore
alta e prateada com folhas roxas que se estendem até a grama. Não
temos camas. Nenhum abrigo real. O tempo está perfeito e não
precisamos de paredes ao nosso redor. Mas ainda me deixa ansioso
por dormir ao ar livre.
― Como foi seu dia? ― ela murmura, embalada e inteira em meus
braços.
― Improdutivo. ― eu respondo. ― Eu tentei caminhar para a cidade
de cristal. Pensei em dar uma olhada mais de perto, para ver se
talvez fosse um lugar melhor para descansarmos. Mas não importa o
quão longe eu tenha caminhado, ela permaneceu para sempre no
horizonte.
― Esquisito. Podemos perguntar ao Eshvaren sobre isso?
Eu balanço minha cabeça, pressionando meus lábios finos.
― Não se preocupe, be'shmai. Acho que quanto menos eu lidar com
nosso anfitrião, melhor.
Ela olha para mim.
― Ele disse algo para você?
― Não ― eu admito. ― Mas quando chegamos pela primeira vez...
Ele não ficou contente em me ver. Eu não acho que ele me quer aqui.
― Bem, isso é difícil, Legionário Gilwraeth ― diz ela, aninhando-se
ainda mais em meus braços. ― Porque eu quero.
Eu sorrio, segurando-a com mais força. Por um tempo,
simplesmente ficamos sentados em silêncio, apreciando o calor um
do outro, a forma como nossos corpos se encaixam. Com ela tão
perto, não posso deixar de pensar em nossa noite no Zero antes de
virmos aqui. Eu desejo queimar dentro daquele fogo novamente.
Mas, por enquanto, é suficiente simplesmente estar com ela.
― Está com fome? ― eu pergunto.
― Não ― ela responde.
―... Nem eu ― eu percebo.
― O Eshvaren me disse que este lugar não é realmente físico ― ela
murmura.
― Suponho que faz sentido não sentirmos necessidades físicas?
Ela ri em meus braços, se contorce mais perto.
― Fale por si mesmo, legionário.
Acho que Aurora está fazendo... Qual é a palavra Terráquea para
isso... Insinuação? Mas então ela se endireita e grita na escuridão
que se aproxima.
― Olá? Você pode me ouvir?
O ar ondula e, sem nem mesmo um sussurro, a imagem do
Eshvaren está de repente flutuando silenciosamente diante de nós. A
luz dentro dele refrata e brilha em sua pele cristalina. Ele volta seu
olhar para mim e, embora eu seja novamente atingido com a
sensação de que ele não me quer aqui, ainda admiro sua beleza.
Sim? ele diz, sua voz como música.
― Oi ― diz Aurora. ― Escute, eu sei que este pode ser um pedido
estranho, mas poderíamos talvez conseguir um pouco de comida? Eu
sei que tecnicamente não precisamos comer, mas...
Qualquer refresco de que você precisa pode ser seu, responde
o Eshvaren.
― Oh, ótimo ― diz meu be’shmai. ― E... talvez alguns móveis ou
algo assim? Seria bom dormir em um cobertor e alguns
travesseiros?
Qualquer conforto que você precisar pode ser seu.
― Brilhante. ― Aurora sorri.
O Eshvaren permanece pairando em silêncio diante de nós.
Longos momentos passam sem comida ou cobertores se revelando.
Aurora observa a aparição, sua testa lisa franzindo lentamente.
―... Então? ― ela pergunta.
Tudo que você precisa pode ser seu, diz ele. Você só precisa
querer que isso exista.
―... Querer? ― a carranca de Aurora fica mais sombria.
Sim.
― Eu não consigo nem me manter em pé em um exercício de
treinamento básico ― diz ela, temperamental. ― Você quer que eu
comece a conjurar coisas do nada?
Sou apenas uma coleção de memórias, responde. Eu não quero
nada.
E sem outra palavra, o Eshvaren brilha para fora da existência.
Aurora me olha, claramente incerta. Posso ver como ela está
exausta. Quanto nosso breve tempo aqui já custou a ela. Mas então
eu vejo a determinação brilhando nas profundezas de seus olhos
incompatíveis. Ela respira fundo e se endireita em meus braços.
Inclinando-se em mim como se eu fosse uma rocha em uma
tempestade.
E, com os olhos semicerrados em concentração, ela estende a
mão.
Sinto um leve formigamento na pele. Eu sinto algo vasto se
movendo sob sua superfície. O ar ao nosso redor parece carregado
com a corrente e, por um minuto, acho que talvez o ar à nossa frente
se agite. Brilha. Ondula.
Mas apenas por um momento.
A corrente desvanece-se. O aço nos músculos de Aurora murcha,
suas costas se curvam. Posso sentir sua pulsação martelando sob a
pele, ouço a tensão em sua voz enquanto ela engasga.
― Eu n-não consigo...
Sem fôlego, ela afunda de volta em meus braços, frustrada e
com raiva. Eu sei o que é treinar além de todo limite de resistência,
sofrer sob um mestre implacável. Não sei se posso facilitar. Mas
tento, de alguma forma, torná-lo melhor.
― Tenha coragem, be'shmai ― digo a ela. ― Tudo está bem.
Eu beijo sua testa.
― Nós temos tempo.
Seguro-a com força.
― E nós temos um ao outro.

AURORA
Estou começando a odiar essa rocha.
Não, risque isso. Eu odeio essa rocha. Eu odeio isso com cada
fibra do meu ser. Eu odeio isso mais do que o Sr. Parker da quinta
série, que me deixou na detenção por socar Kassandra Lim, embora
tenha sido ela quem cortou uma mecha do meu cabelo.
Eu odeio isso mais do que Kassandra Lim.
A rocha e eu estamos em um impasse há sete dias, e por todas
as medidas disponíveis, o objeto inanimado está vencendo. Ela fica
no meio de um lindo prado verde azulado, salpicado de pequenas
flores rosa que dão a toda a cena um tom rosado. O céu tem a
mesma cor rosada, e há um pequeno riacho perfeito a leste,
sombreado por árvores baixas com folhas roxas.
A tarefa que me foi estabelecida deve ser simples para alguém
com um poder como o meu. Tudo o que tenho que fazer é pegar a
pedra e movê-la para o outro lado da campina.
Mas é claro que não consigo.
Meu poder ainda não aparece sob um comando assim. E eu
nunca realmente usei isso para manipular objetos antes. Eu apenas
os esmaguei e os separei.
Você está pronta para outra tentativa? Esh pergunta.
― Sim, claro ― eu murmuro, por entre os dentes cerrados. ―
Definitivamente vai ser a sétima milionésima vez, este é o charme.
A autodisciplina vem lentamente, ele responde. Você continua
obtendo pequenos ganhos.
Eu aponto o dedo na direção da rocha.
― Aquela filha de uma biscoiteira presunçosa está sentada
exatamente onde estava há uma semana. Não obtive nenhum ganho,
grande ou pequeno.
Você não chutou em cinco dias, Esh aponta.
― Isso não está nos levando a lugar nenhum, Esh ― eu estalo. ―
Nesse ritmo, eu vou ser uma velha senhora, a galáxia inteira será
uma colônia Ra'haam gigante e eu ainda não terei movido à pedra.
O tempo não é curto, responde Esh. Embora semanas tenham
se passado aqui, pouco mais de uma hora se passou desde a
percepção de sua tripulação. Você está pronta para começar de
novo?
Eu respiro para outra réplica, então faço uma pausa. Minha
tripulação. Eles são a razão de eu estar fazendo isso. Salvar a
galáxia inteira e todos nela parece ridículo. Não é o tipo de coisa que
você realmente consegue entender. Mas salvando apenas algumas
pessoas...
Penso em Cat enquanto ela deslizava para o Ra’haam. Penso em
Tyler, arrastado pelo TDF. Penso em Scarlett, vendo seu irmão ser
deixado para trás. Zila, Fin, arriscando tudo para me proteger. Todos
eles têm algo ou alguém a perder.
E eu penso em Kal, é claro. Constante, paciente, fiel.
Quando eu entendi o que significava o Puxão, entrei em pânico.
Quem não entraria? Mas ele nunca esperou que eu sentisse o que
ele sentia. Na verdade, ele nunca esperou nada de mim. Ele só
ofereceu.
E isso é definitivamente algo pelo qual vale a pena lutar.
― Tudo bem, Esh ― eu digo, endireitando os ombros. ― Vamos
mover essa coisa.
Seu otimismo é louvável, ele responde, piscando para fora do
caminho.
Eu caminho até a rocha e limpo minha mente. Ponho de lado o
pensamento e a emoção como eles me disseram, mantendo apenas
o senso de propósito que sinto quando penso em proteger aqueles
que amo. Eu inspiro. Eu expiro.
Então eu levanto minhas mãos e me concentro na rocha,
visualizando-a se movendo para o outro lado da campina. Suor
escorrendo na minha pele. Minhas sobrancelhas torcendo em uma
carranca. Eu libero minha certeza, minha convicção, minha vontade
de que isso vai se mover.
Vai se mover.
Vai se mover.
E absolutamente nada acontece.
― Filhadeumabiscoiteira.
Com um rugido de frustração, chuto a pedra. Então eu grito e
caio no chão, segurando meu pé, lágrimas de agonia e frustração em
meus olhos.
O Eshvaren assoma acima de mim, sua face cristalina brilhando
com todas as cores do arco-íris.
Por que você falhou? ele pergunta.
― Como eu vou saber? ― eu grito, os olhos ardendo.
Por. Que. Você. Falhou? ele pergunta novamente.
― É você quem deveria estar me ensinando!
O que está nublando sua mente? ele pergunta. O que está no
seu caminho?
― Eu não–
Você não é apenas um recipiente para o poder, Aurora Jie-Lin
O’Malley. Você é o poder. Um poder que deve destruir planetas.
Este é um lugar da mente. Os laços que prendem você a isso – ele
toca meu peito com um dedo cintilante – apenas prendem você.
Você deve abandonar o que você era para se tornar o que você é.
Ele me espreita, olhos brilhando com todas as cores do arco-íris.
Queime. Tudo.
Eu tombo minha cabeça, lágrimas traidoras brotando em meus
olhos.
― E se eu não puder fazer isso? ― eu pergunto.
O Eshvaren encolhe os ombros.
Então você não fará nada.

KAL
Aurora está descontente.
Estamos aqui há semanas e ela parece não estar fazendo
nenhum progresso. Enquanto ela volta para o nosso acampamento
após mais um dia de trabalho infrutífero, posso sentir a frustração
inundando-a. Ela afunda em meus braços, derrete contra meus lábios
e, por um momento, está tudo bem. Eu sei que ela está feliz por
estar de volta aqui. Comigo. Nós, juntos. Mesmo assim, posso sentir
como ela está desanimada.
― Como posso ajudar, be’shmai? ― eu pergunto a ela.
― Eu não sei ― ela murmura. ― Não sei o que devo fazer.
Eu a seguro perto, sua bochecha pressionada no meu peito
enquanto aliso seu cabelo para trás.
― O que o Eshvaren diz?
― 'Libere as restrições da caaarneee'. ― ela adota uma voz
profunda, zombando de nosso anfitrião, e mexe os dedos em meu
rosto. ― ‘Você deve abandonar o que você eeeraaa para se tornar o
que você éééé. Queime tuuudooo'.
Eu rio, e o sorriso que ela me dá em resposta faz meu coração
cantar.
Espíritos do Vazio, ela é tão linda...
― Talvez seja normal progredir lentamente? ― eu pergunto. ―
Talvez isso seja apenas parte da jornada que todos os Gatilhos
fazem?
― Eu nem sei se outros Gatilhos vieram aqui antes de mim ― ela
suspira. ― Eu não sei de nada, exceto que eu não sei de nada.
― Eu te conheço ― eu digo. ― Você é uma das pessoas mais
corajosas e fortes que já conheci. ― eu a afasto de mim para olhar
para a clareira azul-esverdeada ao nosso redor, minhas mãos
descansando em seus quadris. ― Faça o que ele pede.
― O que você quer dizer?
― Esvazie sua mente ― eu a insisto. ― Pense apenas no que você
deve ser, não no que você era. E então nos faça algo.
―... Como o quê?
― Algo simples? ― eu ofereço. ― Uma fogueira, talvez?
Ela respira fundo. Ainda incerta. Mas, finalmente, ela acena com
a cabeça.
― Ok.
Aurora fecha os olhos. Alcança o espaço vazio, a grama lisa e
perfeita a apenas alguns metros de distância. Posso sentir a luta
dentro dela, sinto seus músculos ficarem tensos.
― Eu não consigo... ― ela murmura, os dentes cerrados.
― Você consegue ― eu sussurro.
Ela estremece, a mão trêmula.
― Queime isso ― ela respira. ― Queime tudo.
Eu a seguro com força. Desejando que ela continue. E então,
como se algum novo pensamento tivesse ocorrido a ela, ela puxa
minhas mãos de sua cintura, sai do círculo de meus braços. Espanto
brotando em meu peito, vejo o chão diante dela tremeluzir, o ar
ondular como se fosse água com um punhado de seixos lançados
nele.
― Deixe pra lá ― ela sussurra.
E, como por feitiçaria, uma chama surge do chão à sua frente.
Não apenas uma chama não controlada, mas uma fogueira,
empilhada com troncos em chamas. Posso sentir o cheiro de
madeira queimada, sentir o calor, ouvir a madeira estalando nas
chamas.
Aurora se vira para mim com os olhos brilhando.
― Kal, eu consegui!
Ela grita e cai em meus braços. Exaltação em seu rosto, ela fica
na ponta dos pés e esmaga seus lábios nos meus, e quase tudo de
mim é tomado pela alegria de sua vitória. Mas a menor parte, a
parte que parece indesejável quando o Eshvaren olha para mim, a
parte que doeu quando ela empurrou minhas mãos para longe de
seus quadris e saiu do meu abraço, percebe que, sim, ela fez isso.
Mas ela fez isso...
Sozinha?
Queime isso, ela disse.
Queime tudo.

AURORA
Já faz um mês e ainda sinto um arrepio de satisfação cada vez
que movo a pedra pelo prado. É leve como uma pena agora, girando
no ar apenas sob a força da minha vontade.
― Como você gosta disso ― murmuro baixinho.
A pedra não pode responder a você, Esh aponta, não pela
primeira vez. Além de não ter a capacidade de pensar ou falar,
também não é uma pedra real.
― Então, não vai se importar se eu ganhar à custa dela ― respondo.
Eu posso sentir isso. Tudo isso. As doze pedras que suspendi no
ar acima de nossas cabeças, girando e rodopiando como borboletas
na brisa.
Posso sentir o poder, não apenas dentro de mim, não apenas
uma parte de mim, mas tudo de mim. Eu deixo de lado a sensação
do meu corpo, o sol na minha pele, a sensação de que sou qualquer
coisa, menos essa força dentro de mim quando outra pedra surge do
rio e se junta às outras.
Eu olho para Esh, meus lábios se curvando.
― Nada mal, hein?
― Jie-Lin ― diz uma voz atrás de mim.
Meu coração para de bater. Meu estômago embrulha. Porque
embora eu conheça o som daquela voz tão bem quanto a minha, eu
sei que não pode ser, não pode ser...
Eu me viro e olho para trás e lá está ele.
Ele parece como costumava ser. Antes... Antes de Octavia. Um
sorriso brilhante e olhos cintilantes e as rugas em sua testa que
mamãe costumava provocá-lo tanto. Ele está parado na campina,
cercado por flores ondulantes, sorrindo para mim.
― Papai? ― eu sussurro.
O chão ao meu lado troveja quando uma das pedras acima de
mim cai no chão. Eu grito quando outra cai, depois outra, jogando-me
para o lado enquanto as toneladas de pedra que movi sem esforço
um momento atrás escorregam como areia por entre meus dedos. O
chão se estilhaça, as flores se transformam em polpa.
Por que você falhou?
Espalhada no chão, eu olho para cima e vejo o Eshvaren acima
de mim, a silhueta contra o céu rosa, olhando para baixo com seus
olhos de arco-íris.
O que impede você de queimar? ele pergunta.
Eu olho para o espaço onde meu pai estava. A terra quebrada,
as rochas estilhaçadas. Não há sinal dele agora. Nada resta além
das lágrimas que a visão dele trouxe aos meus olhos. Eu percebo
que ele não era nada além de um espectro. Um fantasma. Um eco.
― Como você fez isso? ― exijo, olhando para Esh, a raiva
crescendo dentro de mim como uma inundação. ― Se você é apenas
uma coleção de memórias-de-milhões-de-anos, como você sabe
como ele era?
Já dissemos isso antes, Aurora Jie-Lin O'Malley, Esh responde.
Seus únicos obstáculos neste lugar são aqueles que você coloca na
sua frente. Você deve deixá-los ir.
Ele se aproxima, sua voz como uma canção em minha mente.
Queime. Tudo.
23
TYLER

Abro os olhos, me perguntando onde estou.


Posso sentir o gosto vagamente metálico que os purificadores de
oxigênio Terráqueos deixam no ar e, por um momento, me pergunto
se estou de volta ao meu dormitório na Academia Aurora. Pensar na
academia me faz pensar no meu esquadrão e, claro, isso me faz
pensar em Cat, e de repente isso está caindo em cima de mim como
uma avalanche. Essa cela de detenção. Essas máscaras espelhadas
sem rosto. Os novos olhos azuis de Cat, penetrando profundamente
nos meus, lábios secos e frios pressionados nos meus.
É quente aqui, Ty. Mal posso esperar para que você sinta isso
também.
Eu me levanto com um suspiro, recompensado com acessos de
dor: cabeça, peito, garganta. Meus gritos rasgaram bem minhas
cordas vocais – parece que engoli vidro quebrado. Eu estremeço,
apalpando meu pescoço, olhando ao redor da cela e encontrando um
par de olhos frios olhando para mim. Cabelo preto. Lábios negros.
Coração preto.
Saedii.
Você ficou fora há muito tempo, pequeno Terráqueo.
Sua voz ressoa em minha mente, irradiando arrogância Syldrathi,
uma melodia de leve desdém. Eu ainda acho mais do que um pouco
assustador que essa psicopata possa falar dentro da minha cabeça,
mas dado o estado da minha caixa de voz, é provavelmente a melhor
maneira. Não acho que o dano seja permanente, mas duvido que
cante no karaokê por um tempo...
O que eles fizeram com você? Saedii pergunta, olhando para
mim.
Com o que você se importa? eu atiro de volta.
Eu me importo, pequeno Terráqueo, porque provavelmente farão
isso comigo a seguir. Assustado? Conheça seu inimigo, garoto.
Minhas sobrancelhas sobem lentamente.
Você está honestamente citando a estratégia militar Terráquea
para mim agora?
Ela zomba suavemente.
Claro que não. Não seja idiota.
Sun Tzu disse isso. Ele era um general Terráqueo. “Conheça o
seu inimigo e conheça a si mesmo, e você não estará em perigo
em cem batalhas.”
Sarai Rael disse isso. Ela era uma Templária Syldrathi.
"Conheça o coração do seu inimigo, se quiser se banquetear com
ele."
... Acho que a maneira de Sun Tzu dizer isso é um pouco mais
poética.
Eu sou Warbreed, Tyler Jones. Que necessidade tem de
poesia?
Saedii estende suas longas pernas na frente dela, deslumbrante.
Estou dolorosamente consciente do fato de que ela ainda está
vestindo nada além de sua calcinha da cintura para baixo, mas,
cavalheiro que sou, mantenho meus olhos fixos nos dela. Os dedos
de Saedii roçam a corda de polegares decepados em torno de seu
pescoço e eu percebo que, mais uma vez, ela está tentando obter
uma reação minha. Ela sabe o quão bonita é. Ela sabe como essa
beleza desequilibra as pessoas se elas permitirem, e ela quer ver o
que isso faz comigo. Tudo sobre essa garota é medido. Estratégico.
Calculado.
Eu também percebi que ainda não estou usando uma camisa.
E que essas pernas dela subam para sempre...
Eles querem informações sobre o meu esquadrão, digo a ela.
Informações que você não possui. Torturar prisioneiros de guerra é
uma violação das Convenções de Madrid. Então não se preocupe.
Ela arqueia uma sobrancelha perfeita.
Eu pareço para você como alguém particularmente preocupado,
Tyler Jones?
Se você tivesse alguma ideia do que realmente está
acontecendo aqui, você estaria.
Eu sei exatamente o que está acontecendo aqui. Seu povo se
condenou ao suicídio. Por quem você mais lamentará, eu me
pergunto, quando seu mundo for arrastado aos gritos para o buraco
negro que Arconte Caersan fará com seu sol?
Eu sinto a raiva explodir dentro da minha cabeça.
Sabe, você fala sobre conhecer seu inimigo, digo a ela. Mas
nada sobre esta situação parece suspeita para você? O governo
Terráqueo passou os últimos dois anos mantendo o nariz o mais
longe humanamente possível dos assuntos Syldrathi. E agora nós
apenas abrimos fogo contra uma nau capitânia do Inquebrado só
para nos divertirmos?
O Inquebrado nunca concordou com o Acordo de Jericho,
garoto. A guerra entre nosso povo nunca terminou de verdade. Era
apenas uma questão de tempo até que as mãos dos Syldrathi
brilhassem mais uma vez com o sangue Terráqueo. É uma questão
de honra.
Você não consegue ver quando está sendo usado?
Ela olha para mim e zomba.
Você tem medo da tempestade que se aproxima.
Claro que estou com medo! Bilhões de pessoas podem morrer!
Você é indigno do sangue em suas veias.
Eu balanço minha cabeça e me afasto. Eu sei que deveria estar
tentando colocá-la do meu lado. Eu sei que o inimigo do meu inimigo
é meu amigo. Mas eu sinto que não adianta nem mesmo falar com
essa garota. Eu entendo o que é ser um soldado, lutar por algo em
que você realmente acredita. Mas a irmã de Kal parece nada além
de raiva e desprezo.
Ainda assim, ela segue em frente, olhando para mim com aqueles
olhos de aro preto.
Jericho Jones teve a coragem de lutar quando seu mundo
precisava dele. Quando a chamada soou em Orion, ele pelo menos
foi honrado o suficiente para atendê-la.
Eu olho para ela, apertando a mandíbula com a menção do meu
pai.
Você acha que há honra em outro massacre? Nós dois
perdemos nossos pais naquela batalha, Saedii – não é o suficiente?
Os olhos de Saedii se estreitam.
É isso o que Ka–
A porta se abre com um sussurro suave. Eu olho para cima e vejo
meia dúzia de fuzileiros navais Terráqueos em armadura tac
completa, disruptores aninhados em seus braços. Meu coração
afunda, minha garganta aperta, quando me lembro daquele colar de
dor deslizando em volta do meu pescoço. O pensamento de outra
rodada de tortura enche meu estômago com gelo escorregadio.
― Oh, Criador. ― eu resmungo.
Os fuzileiros navais entram em fila na sala, as botas ressoando
no chão. Mas, em vez de me agarrar, eles marcham até a bio-cama
de Saedii, envolvendo-a em um pequeno círculo.
― Mãos, sua vadia. ― seu tenente comanda, segurando um conjunto
de restrições magnéticas.
―... O que você quer com ela? ― eu exijo, minha garganta doendo.
― Mãos ― repete o tenente, seus camaradas pontuando o comando
erguendo seus rifles. ― Agora.
― Ela não sabe de nada! ― protesto. ― Você não–
― Cale a boca, traidor! ― rosna um dos fuzileiros navais para mim.
A voz de Saedii ressoa na minha cabeça, aquele pequeno sorriso
crescendo um pouco mais.
Isso é coragem, pequeno Terráqueo. Assista e aprenda.
Ela fica parada, lenta, lânguida, estendendo os braços e
oferecendo os pulsos delgados. Ela está em menor número, seis
para um, e já está ferida. Mas enquanto o TEN se move para dar um
tapa nas restrições, Saedii levanta a mão e enfia os nós dos dedos
em sua garganta.
O homem engasga, voa três metros para trás contra a parede.
Apesar de seus ferimentos, Saedii chuta as pernas de outro e dá um
tapa no rifle do terceiro, incrivelmente rápido. Mas o resto está
pronto para ela, atingindo-a em cheio no peito com tiros de disruptor
à queima-roupa. Explosões de atordoamento ressoam na cela e
Saedii cai para trás, as tranças voando. Estou meio fora da minha
cama antes de perceber, cara a cara com o rifle de outro fuzileiro
naval. Ele olha para mim, sua mira a laser iluminando meu peito nu e
machucado.
― Dê-me um motivo, traidor ― diz o soldado. ― Eu estou te
implorando.
― Não é assim que fazemos as coisas ― digo, apesar da agonia em
minha garganta.
― Nós? ― ele zomba, olhando para a tatuagem no meu braço. ―
Quem somos ‘nós’, garoto da Legião?
― Sou Terráqueo como você. Eu não–
― Aquelas fadas mataram alguns milhares de Terráqueos durante o
ataque no Andarael! ― rosna o tenente, levantando-se do convés. ―
E ela estava no comando. É exatamente assim que fazemos.
Portanto, cale a boca antes de fazermos com você também.
― Você está brincando! ― eu assobio. ― O GIA está usando o TDF
para iniciar um–
O soldado levanta e me bate no rosto com a coronha de seu
disruptor. Eu sou lançado para trás, caindo na cama.
― Mais uma palavra, traidor, ― ele rosna ― e você vai estar
catando os dentes com os dedos quebrados.
Eu levanto minhas mãos, pressionado de volta na cama. Vejo um
dos fuzileiros navais jogar a semiconsciente Saedii nos ombros,
enquanto o tenente me lança um olhar venenoso e, com uma ordem
latida, manda todo o esquadrão marchando para fora da cela sem
dizer mais nada.
Eu lambo o corte em meu lábio, sentindo o gosto de sangue, meu
crânio ainda zumbindo com o golpe.
Não tenho ideia do que eles querem com ela, mas não pode ser
bom. E então eu penso no Ra’haam, vestindo aqueles colonos do
GIA como uma segunda pele. Penso em Cat com seus novos olhos
azuis. Todas as coisas que eu deveria ter dito e feito.
E eu balanço minha cabeça e suspiro.
Pelo Criador, nada disso é bom.
24
ECHO

KAL
Ela chegou tão longe nos últimos meses.
Eu observo Aurora de nosso acampamento, minha respiração é
tomada pelo poder que ela exerce. A clareira em que dormimos foi
transformada. O fogo simples que ela convocou há muito tempo foi
substituído por uma fogueira de pedra ornamentada. A grama em
que dormimos foi coroada com a cama mais grandiosa que já vi em
minha vida – de quatro colunas, madeira entalhada, lençóis de seda.
Minha be'shmai até mesmo criou um siif para que eu pudesse tocar
durante o dia enquanto ela estivesse treinando.
Sento-me agora sob nossas árvores, dedilhando as cordas do
instrumento, observando-a. Aurora flutua bem acima de mim, apenas
uma silhueta contra um céu ofuscante. Pedregulhos maiores que o
Zero orbita em perfeita sincronia, movendo-se em todas as
direções. Ela flutua no centro, sentada como se estivesse no ar, com
o olho direito em chamas. Eu vejo como uma pedra se quebra em mil
cacos, seus fragmentos formando uma esfera perfeita ao redor dela.
O Eshvaren flutua nas proximidades, observando. Não olha para
mim. Não fala comigo. Como sempre, sinto uma vaga sensação de...
Não hostilidade, mas indesejável em sua presença. Mas conforme eu
toco acordes sobre o siif que meu be'shmai me fez, eu vejo que os
matizes dentro de sua forma de cristal mudam com a música que
toco.
― Posso te perguntar uma coisa? ― eu chamo.
Não olha para mim. Mas eu sinto uma fração de sua mudança de
atenção.
Pergunte, ele responde.
― Um pensamento está passando pela minha cabeça desde que
chegamos. ― eu dedico um acorde menor, observo a mudança de
tonalidade e dança do Eshvaren. ― Por que você se parece
conosco?
Então ele vira a cabeça. Olhando para mim com olhos
caleidoscópicos.
Eu não tenho medo disso. Um guerreiro teme apenas nunca
provar a vitória. Mas eu sinto o poder disso. Meu povo é uma das
poucas espécies na galáxia que ainda acredita nos Eshvaren. Os
Antigos eram figuras míticas para mim quando criança. E sentado
aqui na presença de sua memória recolhida, acho seu olhar...
Inquietante.
― Quero dizer, você não se parece exatamente com a gente. Mas
você é bípede. Humanoide. Você parece assim para que seja mais
fácil para nós olharmos para você?
Demora muito até que o Eshvaren responda.
Não nos parecemos com vocês, meu jovem, finalmente diz.
Vocês se parecem conosco.
―... Eu ainda não entendo ― respondo.
Você não precisa.
― Talvez não. Mas eu desejo.
Seus desejos são irrelevantes, meu jovem. Você é irrelevante.
Tento ignorar a dor no meu orgulho, manter minha voz fria.
― Por que nos parecemos com você?
O Eshvaren não responde, seu olho brilhante em Aurora no céu
rosa acima.
― Os Terráqueos, Betraskans, Chellerianos, centenas de outras
raças ― pressiono. ― Todos nós usamos formas semelhantes.
Somos todos bípedes. Com base em carbono. Respiradores de
oxigênio. As chances disso são quase impossíveis. Muitos no meio
consideram nossas semelhanças como à prova final de um poder
maior. Como evidência indiscutível de uma... vontade divina. É a base
de sua Fé Unida. Da existência de um deus. Um Criador.
Novamente, o Eshvaren não diz nada. Mas eu continuo.
― Nosso inimigo sabe muito mais do que nós. O Ra'haam estava lá
durante a última batalha. Não podemos enfrentá-lo na ignorância. Se
houver algum conhecimento com o qual nos beneficiaremos na luta
que se aproxima, pode ser perigoso escondê-lo de nós.
Finalmente, o Eshvaren olha para mim. Sinto um arrepio na
espinha e meus dedos escorregam nas cordas, deixando um arco-
íris solto dentro de sua forma.
Você faria bem em não dar sermão sobre o preço de guardar
segredos.
Eu pisco.
― O que você quer dizer com isso?
Há eras nos preparamos para vencer esta guerra. Quando
derrotamos o Grande Inimigo pela primeira vez, através de mil anos
de sangue e fogo, sabíamos o que precisava ser feito para garantir
que ele não se levantasse novamente. E nós sabemos agora.
Melhor que você. Não se atreva a nos dar um sermão sobre os
perigos do engano de que você exala tão obviamente.
Ele vira seus olhos ardentes de volta para Aurora.
Não ouse.
O siif pesa em minhas mãos. As palavras do Eshvaren pesam em
meu peito.
Coloco o instrumento de lado e me sento em silêncio.
E estou com medo.

AURORA
Esh me trouxe a um lugar novo hoje. Voamos por uma hora,
sobrevoando marcos agora familiar. O prado, com seu tapete rosa
de flores. Devo ter afundado no rio largo centenas de vezes antes de
conseguir separá-lo. A selva emaranhada onde, eventualmente, cada
folha ficava parada com o aceno de minha mão.
Terminamos no topo de um penhasco, olhando para a ampla
vista do Echo, a cidade de cristal no horizonte distante. Nunca pensei
que este lugar tivesse uma borda, mas atrás de nós está uma
espécie de névoa que lentamente gira e turva.
Este é o fim do mundo, eu acho.
Sento-me de pernas cruzadas na beira do penhasco, olhando
para o meu campo de treinamento e espero. Flutuando ao meu lado,
Esh finalmente fala.
Você está falhando conosco, Aurora Jie-Lin O'Malley, ele me diz.
Eu pisco, olhando para seu rosto e tentando esconder a dor em
mim.
Você cresceu, diz ele. Mas não o suficiente.
― O que você quer dizer? ― eu exijo. ― Estou mais forte do que
nunca. Eu posso dividir rios, quebrar pedregulhos...
Seu controle sobre este poder deve ser suficiente para quebrar
não apenas pedras, mas mundos. Você sabe o que deve fazer.
― Eu não–
Você pode, ele responde. Você sabe. Você ainda é uma
prisioneira de seu antigo eu. Você está trancada dentro da ideia do
que você era. Esses afetos, esses laços, eles puxam você para
trás, quando seu foco deve estar no que está por vir. Para abraçá-lo
de verdade, você deve incendiá-los, Aurora Jie-Lin O’Malley. Ou
você deve deixar este lugar e se resignar a tudo que nunca será.
Mesmo que tenha sido há meses, ainda me lembro do meu
fracasso no campo das flores. A imagem do meu pai. Alguma parte
de mim sabe que o que Esh está dizendo é verdade – uma palavra
de um fantasma foi o suficiente para me fazer perder o controle.
Reduzir-me às lágrimas. Posso senti-las agora, queimando em meus
olhos, brotando em meus cílios.
― Eu quero ― digo.
Você quer?
― SIM! ― eu grito. ― Eu odeio me sentir assim. Mas... é difícil,
Esh. Isso é tão difícil. Quando parti para Octavia, deveria acordar
algumas semanas depois e começar uma nova vida. Em vez disso,
dormi duzentos anos. ― eu limpo meus olhos, com raiva das
lágrimas e de mim mesma. ― E eu sei que existem algumas coisas
que são mais importantes do que uma garotinha da Terra chorando
por sua vida, mas talvez você pudesse relaxar um pouco. ― eu olho
para aqueles olhos de arco-íris, acusação em mim. ― Porque tudo
que perdi foi por sua causa.
Ele está lá, brilhando na luz. Eu posso sentir que está quase...
Com raiva de mim.
Nós entendemos o que pedimos quando você desista de tudo.
Mas a galáxia está em jogo.
― Eu sei!
Milhares de mundos habitados. Bilhões e bilhões de almas.
Tudo isso será consumido se o Ra'haam tiver permissão para
florescer.
― Eu também sei disso! ― eu choro, me levantando. ― Eu não sou
uma idiota, Esh. Eu sei!
E ainda assim você recusa. Deixe ir. Queime. Você é o Gatilho,
Aurora Jie-Lin O'Malley. Você é o poder do Eshvaren manifestado.
E se você não largar os obstáculos que a prendem, você irá falhar.
― Mas como? ― eu pergunto.
Você deseja isso? Esh pergunta.
Eu olho para o céu cor de rosa acima da minha cabeça. Os
bilhões de sóis esperando além. Eu penso em tudo o que está em
jogo. A vida de todos aqueles estranhos, a vida de todos os meus
amigos. Tudo isso será perdido se eu tropeçar aqui.
Toda a minha vida quis ser uma exploradora. Para ver e fazer
coisas com que a maioria das pessoas apenas sonhou. Para me
levar até o limite. É por isso que eu treinei em cartografia, por que
me sacrifiquei tanto para entrar na missão Octavia em primeiro lugar,
aquela missão que de alguma forma, dois séculos depois, me trouxe
até aqui.
Para esta borda.
― Sim ― eu me ouço dizer.
Verdadeiramente?
― Sim!
Então feche seus olhos.
E eu faço isso.
Encontro-me em uma sala branca, o sol da tarde brilhando
através das amplas janelas de vidro. Eu percebo que estou em uma
das dezenas de cozinhas que minha família tinha enquanto nós
saltávamos ao redor do mundo em preparação para a missão
Octavia. E então eu sinto uma onda de pressão repentina em meu
peito, uma onda de alegria, dor no coração e amor quando eu a vejo,
bem ali, perto o suficiente para eu estender a mão e tocá-la.
― Mãe... ― eu sussurro.
Ela olha para cima e me dá um de seus sorrisos – aqueles que
me faziam sentir que tudo estava bem no mundo. E olhando ao redor
da sala, deixando a cena mergulhar em mim, eu percebo que já
estive aqui antes. Que este não é apenas um lugar das minhas
memórias – esta é uma noite particular que eu já vivi.
Era o aniversário do meu pai. Mamãe estava cortando legumes
para seu prato favorito do lado dela da família: um ensopado grosso
e marrom cheio de cenouras e batatas, cordeiro e cevada. Eu estava
medindo o amido de tapioca para seu macarrão de arroz fresco
favorito.
Eu tinha cerca de treze anos, e ela e eu nem sempre nos demos
bem nessa época. Eu já tinha decidido que queria tentar para
Octavia. Minha mãe disse que era muito cedo para tomar decisões
como essa na vida. E eu sofro com a memória das brigas que
tivemos sobre isso, o tempo que perdemos brigando por algo tão
pequeno.
Agora eu observo suas mãos rápidas e capazes enquanto ela
trabalha, sua aliança de casamento familiar. Quando esta noite
realmente aconteceu, séculos atrás, nós apenas cantamos,
cozinhamos e conversamos sobre uma de minhas tarefas de casa
até que os outros voltassem para casa. Mas agora, eu sei, posso
desviar a visão se quiser, contanto que não vá longe demais.
E eu quero. Gravemente.
Então, digo ao sistema doméstico para abaixar a música e me
inclino para o lado de mamãe, descanso minha cabeça em seu
ombro. Ela envolve um braço em volta de mim e me dá um aperto. É
tão familiar, a suavidade dela tão perfeita, que sinto lágrimas nos
meus olhos.
― O que é, Auri J? ― ela pergunta, pressionando um beijo no meu
cabelo.
Fico quieta enquanto considero o que quero dizer a ela. Eu sei
que não posso contar a ela o que aconteceu – isso vai quebrar a
ilusão, a forma do que é este lugar. Mas eu sei que posso chegar
perto.
― Acho que só estou pensando em alguns dos meus amigos de
minhas antigas escolas. ― digo.
― Oh?
Eu chupo meu lábio inferior.
― Quer dizer, eu sei que a gente sempre muda, mas alguns deles...
acho que planejavam ficar comigo por muito mais tempo, sabe? Eu
acho que eles sentiram que podiam contar comigo para as coisas, e
agora eu não estou mais lá.
― Oh, minha Aurora. ― ela se vira para mim e me enfia embaixo do
queixo. Logo estarei muito alta para isso. ― Você sempre levou suas
responsabilidades muito a sério. Eu respeito muito isso em você. E
eu sei que é difícil seguir em frente. Mas não podemos nos manter
no mesmo lugar para sempre, querida, para ninguém. A vida é para
viver. Os que você deixou para trás ficarão bem, eu prometo.
Aqueles que você deixar para trás no futuro também ficarão bem,
mesmo se você fizer todo o caminho para outro planeta.
― Mas algumas pessoas dependem de nós. ― eu digo.
― Bem, é verdade que sim ― diz ela. ― Mas você terá muitas
aventuras no futuro e as despedidas virão com muitas delas. Aqueles
que amam você terão orgulho em enviá-la nessas aventuras, eu
prometo.
Eu recuo o suficiente para olhar para ela, meus olhos doendo.
― Eu te amo, mãe. ― eu digo e ela olha para mim com todo o amor
do mundo escrito em seu rosto, na curva terna de sua boca.
― Eu também te amo, minha querida. ― ela diz calmamente. ― E
se um dia você partir em todas aquelas aventuras que você imagina
para si mesma, terei orgulho de ter criado uma filha que é corajosa o
suficiente para ter seguido seus sonhos. Eu prometo.
― Mesmo se eu estiver deixando você para trás?
― Você nunca vai fazer isso. ― diz ela novamente. ― Estarei
sempre contigo.

·····
Naquela noite, eu choro nos braços de Kal.
― Eu a deixei. ― eu digo em seu peito, tão ranhosa e abafada que
eu não tenho ideia se ele pode me entender. ― Eu a deixei por uma
aventura, mas pelo que ela sabia, eu morri.
Ele dá um beijo suave no meu cabelo.
― Para ela, você morreu perseguindo seu sonho. Você estava
vivendo sua vida exatamente como ela mandou. Uma vida bem vivida,
de qualquer duração, é tudo o que qualquer um de nós pode esperar,
be'shmai.
Mais tarde, eu faço batatas, cenouras, cordeiro, cevada e molho
para nós, e mostro a Kal como cozinhar o ensopado e o pão integral
irlandês da minha mãe. E nós nos sentamos lado a lado, ombros
pressionados juntos e eu conto a ele histórias sobre como cresci na
Terra.
Quando termino de explicar o hóquei em campo – ele fica
perplexo com o fato de que é contra as regras usar os bastões para
acertar seus oponentes – eu estou gritando e nós dois rimos.
Estou mais leve e mais fácil, porque a verdade é que só estar
perto de Kal me acalma. Seu toque, seu olhar, os pequenos sorrisos
que tiro dele – especialmente aqueles que são algo que eu nunca
poderia ter imaginado quando nos conhecemos. Mas tudo isso me
deixa aterrada, quando a pressão deste lugar poderia me quebrar
em pedaços. Estar no Echo nos permitiu meses juntos, para
aprender um ao outro da maneira que você só consegue com o
tempo, e estou tão grata por este presente que nem sei como dizer
a ele.
Uma coisa que aprendi sobre ele é que quando seu olhar desliza
para a minha boca do jeito que faz agora, ele está pensando em me
beijar. E eu não quero esperar que ele resolva isso, não esta noite.
E então eu estendo a mão para segurar a frente de sua camisa,
e ele me permite puxá-lo sem esforço em minha direção enquanto eu
levanto meu queixo, um formigamento de antecipação começando
entre minhas omoplatas, descendo até a parte inferior das minhas
costas enquanto nossos lábios se encontram.
Estamos sentados lado a lado, e quando ele muda seu peso para
se inclinar sobre mim, eu enrolo uma mão ao redor de seu pescoço.
Sua mão desliza para me apoiar, e ele me abaixa para que eu possa
deitar contra a grama macia, puxando-o comigo. Sua forma bloqueia
algumas das estrelas, e o som suave que arrasto dele quando
aprofundo o beijo me faz esquecer onde estamos.
Há uma empolgação e familiaridade nele que tornam esses
momentos perfeitos, e mesmo quando eu arqueio minhas costas
para pressionar-me contra ele, estou sorrindo contra seus lábios
novamente.
Isso é o que eu precisava. Entre a lição de Esh de hoje e agora o
conforto silencioso, sólido – e, ei, incrivelmente sexy – de Kal, eu
sinto que há algum... Peso que foi tirado dos meus ombros. Alguma
sombra dentro de mim que foi lavada.
Acho que finalmente estou entendendo o que preciso fazer aqui.
Posso sentir tudo isso – a culpa por deixar minha família para trás, a
raiva por eles terem sido tirados de mim, a tristeza por nunca ter
feito parte da vida que eles tiveram quando eu parti. Mas, ao mesmo
tempo, mantenho o conhecimento e a percepção de que eles criaram
vidas.
Porque todo mundo faz isso.
Aqui, no momento presente, tenho Kal. Ele é tudo que eu sempre
poderia ter desejado, e não preciso sentir o Puxão para saber que o
amo – não de repente, com pressa, mas pedaço por pedaço,
momento a momento, cada nova lição que aprendo adicionando outra
camada do que sinto por ele.
E me enrolando nos braços de Kal naquela noite, minha bochecha
pressionada em seu peito nu, eu sei o que preciso fazer com todo
esse peso que está me puxando para baixo.
Segurando-me de volta.
Preciso deixar meu passado de lado e me concentrar no
presente.
Preciso abandonar quem eu era e abraçar quem eu sou.
Eu só preciso queimar tudo.

·····
Na manhã seguinte, Esh e eu voltamos ao topo do penhasco. Eu
me sinto leve como o ar enquanto voamos sobre o Echo, toda a sua
beleza disposta abaixo de nós. Sento-me na beira da queda, olhando
para a borda do mundo. E desta vez, é meu pai que vejo quando
fecho meus olhos.
Tenho seis ou sete anos e ele veio ler uma história para dormir
para mim. Temos um grande livro de contos de fadas e contos
populares de todo o mundo. Ele se senta na cama ao meu lado, e
nós folheamos as páginas juntos, ele lendo e eu traçando um dedo
pequeno sobre as ilustrações.
Ele envolve um braço em volta de mim e, em um movimento bem
treinado, coloco meus joelhos ao lado dos dele para que ele possa
virar o livro e eu virar as páginas para ele.
Eu o deixo ler por um longo tempo. Respiro o cheiro dele, sinto o
calor de sua pele, lembrando-me da época em que seus braços
pareciam o lugar mais seguro do mundo. Mas, eventualmente, ele
olha para mim, a testa franzida daquele jeito que eu sempre amei.
― Há algo em sua mente, Jie-Lin? ― ele pergunta baixinho.
Ele está tão sintonizado comigo, tão cuidadosamente atento. Só
consigo pensar em nossa última conversa – ou pelo menos, na última
conversa que tivemos quando ele era realmente ele mesmo, em vez
de parte do Ra'haam. Gritei com ele e Patrice e desliguei antes que
tivesse a chance de me responder.
― Estou pensando em alguém que deixei para trás. ― digo a ele.
―... Na sua última escola?
Eu aceno.
― Eu disse algo maldoso. E eu não tive a chance de dizer que sentia
muito antes de sairmos.
― Ah. ― ele fecha o livro com cuidado e o coloca no chão ao lado
da cama. ― Bem, isso é difícil. Se você puder, é sempre bom voltar
e se desculpar. Mas quando isso não é possível, acho muito
importante lembrar que nenhum relacionamento, ou amizade, é
definido por um momento. É uma acumulação de todos os momentos
que passamos juntos. Todas as pequenas maneiras pelas quais
dizemos eu te amo, eu te respeito ou você é importante para mim se
somam. E isso não pode ser apagado com algumas palavras
descuidadas.
― Como você sabe? ― eu sussurro.
― Quando sua avó morreu, lamentei muito não ter ligado para ela
naquela semana. Eu pretendia, mas estava ocupado. Com o tempo,
porém, percebi que uma chamada perdida não definia nosso
relacionamento. Que dezenas de milhares de eu te amo fizeram isso
em vez disso. Ela sabia exatamente como eu me importava com ela
e como a respeitava. E isso era o que importava. ― ele me dá um
aperto. ― Isso ajuda, Jie-Lin?
― Você tem certeza de que as últimas palavras não importam? ―
eu fecho meus olhos com força, absorvendo o calor de seus braços.
― Você tem certeza que ela o perdoaria?
― Num instante. Aqueles que realmente nos conhecem veem o todo,
nunca apenas uma parte.
Eu me acomodo ao seu lado. Fecho meus olhos e sussurro.
― Eu te amo, papai.
― Eu também te amo, Jie-Lin.
Ele beija o topo da minha cabeça e meus lábios se curvam em um
sorriso.
― Sempre.

·····
Naquela noite, Kal e eu caminhamos até a campina e deitamos
juntos no campo de flores rosa, com as pétalas todas fechadas
contra a noite. Nós olhamos para as estrelas que uma vez cobriram o
céu acima do planeta natal dos Eshvaren, à deriva nos braços um do
outro.
Eu sei que estou tornando as coisas mais difíceis para mim.
Estou passando o dia todo afastando as coisas, e então eu volto
para casa todas as noites para cair mais e mais profundamente em
Kal. E ele parece saber disso também. Eu posso sentir isso
crescendo nele, junto com o amor que ele sente por mim. Uma
sombra nele. Está pesando esta noite, pesando sobre ele mesmo
enquanto ele olha para a beleza das estrelas girando em cima.
― Você está bem? ― pergunto-lhe.
Posso sentir sua mente, a tapeçaria de fios de ouro, a leve
empatia que ele herdou de sua mãe entrelaçada com minha própria
força crescente.
― Estou dividido, be'shmai. ― ele finalmente responde.
― Sobre o que?
― Eu estive pensando. ― ele suspira, olhando para o céu noturno.
― Sobre o presente que Adams me deu. A caixa de cigarrilha que
salvou minha vida a bordo do Totentanz.
Eu pisco.
― Por que você está pensando nisso?
― A questão é... Tinha uma nota dentro dela. Uma nota na caligrafia
de Finian que ele não se lembra de ter escrito. Foi ele quem a
descobriu. Mas eu me pergunto se foi para mim.
―... O que dizia? ― eu pergunto, sem saber se eu realmente quero
saber.
Ele olha para mim com os olhos brilhando.
― ‘Diga a verdade a ela’.
Eu permaneço em silêncio, observando-o no escuro. Ele é lindo,
etéreo, quase mágico, e por um momento não posso acreditar que
ele é meu. Mas posso ver a luta nele. Sinto o tormento em sua
mente.
― Há coisas sobre mim, be’shmai ― diz ele, e fico surpresa ao ver
lágrimas em seus olhos. ― Sobre o meu passado. Meu sangue...
― Kal, está tudo bem ― digo a ele, tocando seu rosto.
Ele balança a cabeça.
― Essa coisa em mim. Temo que nunca vou me livrar dele.
Lembro-me da história que ele me contou sobre Saedii. A dor de
sua infância, a crueldade de seu pai para com ele e sua mãe, a
sombra de seu passado que sempre paira sobre ele. Eu sei que ele
luta todos os dias. A violência para a qual foi criado, a violência
dentro dele. Eu posso sentir isso, mesmo agora, rondando por trás
daqueles lindos olhos.
― Você não é o seu passado, Kal. ― eu enrolo meus dedos nos
dele, meus olhos nas constelações acima. ― Você não é o que foi
criado para ser. Se estar aqui me ensinou alguma coisa, é isso.
Nossos arrependimentos, nossos medos, eles nos impedem. Temos
que deixá-los ir para que possamos nos tornar o que devemos ser.
Temos que queimar todos eles.
― Nosso passado nos torna o que somos.
― Não. ― digo a ele, lembrando-me do peso que tirou dos meus
ombros ao soltar minha mãe e meu pai. ― Não, não nos torna. Nós
escolhemos quem somos. Todos os dias. Todo minuto. O passado se
foi. O amanhã vale um milhão de ontem, não vê?
Kal olha para as estrelas acima de nós, carrancudo.
― Eu... Questiono essa estrada que eles fazem você andar,
be'shmai. ― diz ele calmamente.
―... O que você quer dizer? ― eu pergunto.
― Se você se separar de quem você era, queimar tudo o que
significa algo para você como os Antigos pediram que você... ― ele
balança a cabeça. ― O que lhe dará um propósito? O que a levará a
lutar?
― Salvar a galáxia inteira é um propósito suficiente. ― eu digo,
minha voz firme.
― Sua luta é honrosa. ― ele concorda.
― Eu posso sentir um grande mas se aproximando.
― Mas o amor tem um propósito, be’shmai ― diz ele. ― O amor é o
que nos leva a grandes feitos e maiores sacrifícios. Sem amor, o que
resta?
Eu puxo minha mão da dele.
― Kal, eu tenho que fazer isso. Se os planetas berçários do
Ra’haam forem deixados em paz, todos na galáxia, incluindo aqueles
que amo, serão dominados. Já perdi meu pai para isso.
― E agora você perderia tudo o mais para pará-lo?
― Não estou dizendo que quero. ― suspiro. ― Estou dizendo que
preciso.
Eu não sei o que dizer a ele. Eu não sei o que fazer. Então, no
final, odiando estar fazendo isso, eu me levanto e caminho
silenciosamente de volta para o acampamento.
E embora eu possa sentir isso rasgando ele...
Ele me deixa ir.

·····
Espero ver Callie no dia seguinte, mas espero que ela seja uma
criança como era quando a deixei. Em vez disso, ao entrar em minha
visão, vejo uma mulher na casa dos trinta, o cabelo preto e lustroso
alcançando a nuca, ondulando com seus movimentos enquanto ela
toca violino. Ela está parada perto de uma janela iluminada pelo sol,
tocando a música de memória.
― Callie ― eu sussurro, minha voz presa na minha garganta.
Seu sorriso floresce e ela pousa o violino e o arco.
― Aí está você! ― ela diz simplesmente, abrindo os braços para
mim.
Estou do outro lado da sala em um instante, batendo em seu
peito enquanto ela me dobra em um abraço, me segurando com
força.
Ela é mais velha do que eu, o que é estranho, mas deve ter sido
assim quase toda a sua vida. Eu me pergunto como foi para ela
chegar à minha idade e depois ao seu aniversário de dezoito anos,
sabendo que agora ela estava mais velha do que eu.
― Eu sinto muito. ― eu soluço, as lágrimas encharcando a seda
verde de sua camisa. ― Eu sinto muito por ter deixado você. Eu
nunca quis fazer isso.
― Pare com isso. ― ela me repreende suavemente, uma mão
alisando meu cabelo.
― Mas eu te deixei ― eu insisto.
― Nada é para sempre, Auri. Tudo tem sua estação. O mundo
continua girando e as estrelas continuam dançando depois que
partimos, assim como todas faziam antes de chegarmos.
― Eu era sua irmã mais velha, Cal. Eu deveria cuidar de você.
Ela me olha nos olhos então, um pequeno sorriso em seus lábios.
― Venha comigo.
Com um braço em volta dos meus ombros, ela me leva para fora
da porta. Seguimos pelo corredor em silêncio e paramos na porta de
outra sala. Eu vejo uma criança em um berço, enrolada em uma
pequena bola. Há apenas uma mecha de cabelo preto e um rosto
pequeno, flácido de sono, visível acima da colcha.
― Esta é Jie-Lin. ― murmura Callie.
― Ela é linda. ― eu respiro, com lágrimas nos meus olhos.
― Estou com saudades, Auri ― minha irmã me diz. ― Mas estou
bem. Tudo continua sem nós. A dança continua.
Ela está começando a desaparecer e eu quero estender a mão e
agarrá-la, segurá-la com força e me recusar a sair deste momento.
Mas em vez disso, olhando uma última vez para o rosto dela, eu a
deixo ir.
Eu deixei tudo ir. Finalmente. Completamente. Eu olho para
aquele rostinho, aquela linda garotinha que compartilha o meu nome,
e sinto isso ir embora. A raiva e a fúria e a dor e a tristeza. O
pensamento de que perdi tudo isso. Porque eu não perdi, realmente.
Eu estive aqui o tempo todo. No coração das pessoas que deixei,
mas nunca realmente deixei para trás.
Eu deixo tudo ir.
E quando abro meus olhos, encontro o Eshvaren acima de mim.
Eu sinto o Echo ao meu redor estremecer – uma ondulação que
percorre todo o comprimento e largura de todo este plano, mudando
o som do horizonte e a textura do céu. E eu o sinto sorrir para mim
com todas as cores em sua memória.
Finalmente, diz ele.

KAL
O mundo ao meu redor treme.
Meus dedos ficam imóveis; a música que sai do siif em minhas
mãos desvanece-se no silêncio. Eu olho para o céu e percebo que é
um tom diferente de perfeito. Por um momento, sinto uma sombra
em meu ombro e, inexplicavelmente, penso em meu pai tão
profundamente que me viro, quase pronto para vê-lo parado ali.
Meus punhos estão cerrados.
Mas existe apenas o Eshvaren, vestindo sua forma cristalina. Ele
me olha atentamente, como se estivesse me olhando de verdade
pela primeira vez. Eu posso sentir o poder nele, neste lugar, o legado
dos Antigos fluindo em cada átomo deste plano.
Lembre-se do que está em jogo aqui, diz. Isso é mais do que
você. Mais do que nós.
Eu pisco.
― Eu não entendo.
Resta apenas um obstáculo. Apenas um obstáculo que a liga ao
que ela era e se interpõe no caminho do que ela deve ser.
Eu sinto uma carranca na minha testa, ficando lentamente mais
sombrio.
― E isso é?
O Eshvaren inclina a cabeça e sorri como um arco-íris.
25
ZILA

Finian está inclinado perto do rosto de Aurora, estudando o


rápido tremular de suas pálpebras.
― Já se passaram quase 12 horas desde que afundaram. ― diz ele.
― Não deveria ter acontecido algo até agora?
― Eu me consolo com o fato de que nada mudou. ― digo. Mas a
verdade é que, embora meu tom seja calmo, também estou
preocupada. Com base no relato de Aurora de sua primeira visita ao
Echo, parece que durante os dois minutos de inconsciência que
observamos, ela experimentou subjetivamente um período de
aproximadamente doze horas.
Isso sugere que ela passaria um dia em quatro minutos e,
portanto, as quase doze horas que agora se passaram significam
que ela e Kal estão no Echo há quase seis meses. A atividade
cerebral deles está fora do normal, o que implica que eles estão de
fato experimentando a passagem do tempo em velocidades
surpreendentes.
A questão que me preocupa é por quanto tempo um cérebro
humano ou Syldrathi pode manter esse tipo de carga de trabalho
sem sofrer danos permanentes.
― Como está o rastreamento da assinatura de partículas da sonda?
― eu pergunto.
― Estamos na trilha. ― Finian dá de ombros. ― Scar está lá em
cima na ponte agora. Ainda estou tentando consertar o maldito
uniglass de Aurora.
Pisco, lutando por um momento para identificar a sensação em
meu peito.
Alarme, eu percebo.
― Scarlett Isobel Jones está pilotando esta nave?
Finian sorri.
― Ela não é tão ruim assim. A orientação automática está ajudando.
Aparentemente, um de seus ex-namorados lhe deu algumas aulas. E
ela aprendeu um pouco com Cat.
Eu sinto uma pontada de dor com isso. A memória do rosto de
Cat, seu sorriso, seu fim. As barreiras que impedem minhas
respostas a essas coisas não são tão fortes como antes.
Não estou sentindo nada.
― Mas não há como dizer a que distância da Dobra a sonda se
originou ― continua Finian. ― Poderíamos viajar semanas.
― Esperemos que não. ― digo. ― Nossos cérebros não são
adequados para exposição prolongada a Dobra. Nem devemos
tentar a calamidade com Scarlett nos controles por tanto tempo.
Finian concorda.
― Sim. E eu não acho que o Inquebrado vá esperar muito antes de
deixarem a Terra saber o que eles pensam sobre o ataque à sua
nave principal.
Eu aceno.
― É extremamente improvável que um ataque das forças Terráqueas
contra um Templário Syldrathi de sangue fique sem resposta.
Finian olha para a figura adormecida de Kal, mordendo
suavemente o lábio.
― A irmã mais velha do Garoto Fada era realmente incrível, hein?
― Ela era... formidável.
Fin verifica a baía ao nosso redor, como se para ver se alguém
está ouvindo.
―... Tipo quente, certo?
Eu pisco.
― Eu não sabia que você achava a psicopatia uma qualidade
atraente, Finian.
― Qual éééé ― ele sorri. ― Não me diga que você não percebeu.
Tenho certeza que não negaria a ela uma breve visita à sua câmara
de tortura? ― eu franzo os lábios, imaginando o rosto de Saedii. Sua
forma. É verdade. As qualidades estéticas da irmã de Kal são...
Inegáveis, apesar de seu comportamento.
Mas ainda...
― Ela é muito alta para mim. ― eu finalmente declaro.
Finian revira os olhos e me dá um sorriso amigável. Sinto minhas
bochechas esquentarem um pouco com a ideia de discutir noções
românticas com ele. Inclino minha cabeça para frente para esconder
qualquer sinal de resposta vascular, me perguntando se talvez seja
assim que ter amigos é.
Não estou sentindo nada.
Eu aceno para Kal e Aurora em uma tentativa de desviar a
discussão.
― Vou continuar a monitorá-los. ― digo.
― Tudo bem. ― Finian dá um passo para trás, seu exosuit
sussurrando suavemente enquanto ele estica os braços. ― Vou
pegar lanches – você quer alguma coisa?
Eu contemplo.
― Aqueles biscoitos que Scarlett me recomendou para comer eram
adequados.
― Adequado? Vocês duas comeram praticamente todo o estoque.
― A ingestão de calorias em excesso resultará em um aumento da
minha massa, que... ― eu franzo a testa. Isso está incorreto. ―
Quero dizer, sua afeição por mim aumentará à medida que eu
também aumentar em...
Não. Isso também está errado.
Eu fico em silêncio. Olhando para os olhos negros e vazios de
Finian.
― Ainda estou pegando o jeito dessa coisa do humor, hein. ― diz
ele.
Eu abaixo minha voz para um sussurro.
― É extremamente desconcertante.
― Bem, continue trabalhando nisso. Estou indo para a cozinha. ―
sua boca se curva em um sorriso torto e ele olha para Aurora. ―
Vejo vocês em um mês, crianças.
26
AURI

Estou planando para casa em uma tempestade, voando com


asas de trovão. Posso sentir o poder correndo dentro de mim como
uma cachoeira. Todas as algemas me segurando, a culpa, o medo,
quem eu era – tudo se foi.
Eu rujo através do Echo, a terra rasgando pela força da minha
passagem. Meu olho direito queima como uma estrela recém-
nascida, uma tempestade azul meia-noite crepitando em meu rastro,
um tornado de pura força psíquica que posso acenar com um gesto
de minha mão.
Mal posso esperar para mostrar ao Kal.
Eu penso nele esperando por mim, como ele sempre fez. O
tempo que passamos aqui, tudo o que ele passou a significar para
mim. Penso em Scarlett, Finian e Zila esperando por nós do lado de
fora do Echo, essas pessoas que se tornaram minha família. Toda a
fé que eles colocaram em mim, tudo que eles sacrificaram – tudo
isso, tudo isso valeu a pena.
Não sou mais aquela garota que partiu para Octavia. Eu não sou
a garota que acordou dois séculos depois, desligada de tudo que eu
era. Eu sou o recipiente que eles me fizeram ser, a destruição de um
inimigo destinado a consumir toda a vida, toda luz, toda esperança. E
eu sorrio ferozmente, quase tonta com o pensamento disso.
Eu sou a garota que vai salvar a maldita galáxia...
Kal me vê chegando, o poder crescendo em meu rastro, seus
olhos arregalados de admiração enquanto eu caio na bela grama
verde ao redor do nosso acampamento e me jogo em seus braços.
Eu o beijo, deixando-me inundar sua mente, sentindo os fios
dourados de sua psique entrelaçados com os meus, nós dois juntos,
completos e perfeitos.
― Estou pronta, Kal ― eu sussurro pressionando meus lábios nos
dele novamente, acariciando seu rosto, sua mente. ― Estou pronta.
Ainda não.
A voz vem atrás de nós, suave e melódica. Eu me viro e vejo a
forma de arco-íris cintilante do Eshvaren me observando. Eu sinto
algo errado no ar – uma onda estremecendo as árvores ao nosso
redor, os fios dourados na mente de Kal. E de repente posso sentir
algo que nunca senti nele antes.
Kal está com medo.
Você veio de longe, Aurora Jie-Lin O’Malley, diz o Eshvaren.
Mas você ainda não pode empunhar a Arma.
Estendo minha mão e um choque psíquico, maciço, tectônico, flui
pelo Echo, sacudindo cada árvore, cada pedra, cada folha de grama.
― Estou pronta. ― digo.
Pronta, sim, Esh acena com a cabeça. Para se livrar dos
impedimentos finais que a prendem ao seu antigo eu. Cada
pensamento seu. Cada célula sua. Sua própria existência.
As palavras me atingiram como um tapa. Eu olho para Kal e me
liberto de seus braços.
― Minha existência...?
E olhando no olho direito brilhante do Eshvaren, eu finalmente
percebo...
― Isso é o que você quis dizer, ― eu sussurro, meu coração
torcendo um pouco no meu peito. ― quando você disse: ‘Como nós,
você deve sacrificar tudo’.
Eu olho ao redor do Echo, em sua beleza e seu esplendor, tudo o
que resta de uma civilização que entrou em colapso eras antes de a
minha nascer.
Esh me disse que, se eu falhasse no teste, isso me custaria à
vida.
Ele não me disse que mesmo se eu tivesse sucesso...
― Usando a Arma... Sendo o Gatilho... ― eu engulo em seco
quando a verdade finalmente afunda. ― Isso vai me matar, não é?
Com toda a probabilidade, Esh responde. Sim.
―... Filho da mãe.
― Tem de haver outro jeito! ― Kal cospe, sua compostura Syldrathi
se esvaindo.
Olhe ao seu redor, jovem, diz Esh, sua voz é uma canção. Tudo
isso, nosso mundo, nossa civilização, nosso próprio nome, se
perdeu nas areias do tempo. Demos tudo o que tínhamos para
destruir o Ra'haam quando ele surgiu. Mil anos de sangue e fogo
dos quais nunca nos recuperamos. Nossa raça inteira se gastou
para que as raças futuras pudessem ser poupadas das fomes do
Grande Inimigo.
Esh olha para mim e acho que talvez sinto algo perto da pena em
sua mente.
É muito pedir a uma garota?
Eu posso sentir a fúria de Kal. Seu medo de me perder. Mas, no
fundo, eu sei...
― Não. ― digo. Eu balanço minha cabeça e mesmo enquanto falo,
eu sei que é verdade. ― Não, não é muito.
― Be’shmai... ― sussurra Kal, pegando minha mão.
― Está tudo bem. ― eu digo, sorrindo enquanto me viro para
encará-lo. ― Não estou com medo, Kal. Eu fiz as pazes com quem
eu era. Estou pronta para me tornar o que deveria ser.
Penso naquela menina dormindo em seu berço e não consigo
deixar de sorrir.
― É tudo um ciclo, Kal. E se eu tiver que... Parar para que os outros
continuem, vai ficar tudo bem. Porque aqui com você, nestes últimos
meses, eu estava mais viva do que nunca. E mesmo depois que eu
partir, você ainda terá isso. Você ainda saberá que eu te amava.
Eu fico na ponta dos pés e deslizo meus braços ao redor de seu
pescoço. E eu me inclino devagar, beijo-o mais devagar, lágrimas
nos meus olhos, lábios roçando os dele enquanto me afasto o
suficiente para sussurrar.
― Eu te amo. ― digo a ele.
Ele toca minha bochecha e beija minhas lágrimas, me envolve em
seus braços e–
Não, Esh diz.
O mundo fica parado. A magia entre Kal e eu foi quebrada.
Dedos entrelaçados com os dele, eu me viro para encontrar os olhos
de Esh.
― Como assim não?
Você deve abandonar totalmente o seu passado. Você deve
renunciar totalmente ao seu futuro. Existe apenas o momento para
o qual você foi feita, e você deve estar pronta para agir sem
hesitação quando ele chegar. Você não deve recuar. Você não deve
ter nada que a ligue a este lugar, a este eu. Nada mesmo. Você
deve queimar tudo.
Ele me olha com seus olhos brilhantes, até o fundo do meu
coração.
Incluindo ele.
― Mas... Não é isso que os humanos fazem! ― protesto. ―
Lutamos por ideias, claro, mas também lutamos pelas pessoas.
Esh inclina a cabeça, como se eu tivesse dito algo curioso.
Você realmente acredita que ainda é uma garota humana? Você
deve estar vazia se deseja ter sucesso. Quando você ataca o
Grande Inimigo, nenhum impedimento deve permanecer para
conter o fluxo de poder. Você deve ser pura vontade. Sem
arrependimento. Sem dor. Sem raiva. Sem tristeza. Sem medo.
Suas palavras me atingem como um soco no peito.
Sem amor.
Eu olho para Kal, o vejo olhando para mim, agonia em seus olhos.
O sol afundou além da borda do mundo, e todas as estrelas, aquelas
lindas estrelas mortas há muito tempo que olhamos juntos, estão lá
fora.
E eu entendo – finalmente, realmente entendo – o que eles
precisam que eu faça.
Eu tenho que deixá-lo ir.
Eu tenho que queimá-lo.
Tenho que provar a Esh que meus laços não me definem ou me
impedem. Que quando chegar o momento de acionar a Arma, para o
bem de todos ao meu redor, estarei disposta a sacrificar qualquer
pessoa e qualquer coisa.
Meus olhos traçam as feições de Kal à luz das estrelas.
Elas se tornaram tão familiares quanto as minhas nos últimos
meses.
Minha mente é um turbilhão de azul e prata e eu sei o que precisa
ser feito. Eu tenho que controlá-lo e refiná-lo, moldá-lo em uma
lâmina de faca para cortar os laços entre nós. Ele sabe tão bem
quanto eu. O que está em jogo aqui. Tudo está em jogo.
― Kal ― eu sussurro.
Você deve faz isso, Esh responde.
― Be'shmai? ― Kal respira.
Aquela palavra.
Aquela palavra linda, maravilhosa e alienígena. Quando falamos
sobre isso pela primeira vez em Octavia, Kal disse que não havia
uma tradução humana adequada para isso. Ele olha para mim agora,
silenciosamente me fazendo a mesma oferta de seu coração que ele
faz todos os dias. E naquele momento, eu sei que embora eu possa
não ser Syldrathi, e embora eu nunca saberei como é sentir o Puxão,
eu sei o que é se apaixonar. Eu sei que aceitei seu coração e dei a
ele o meu em troca.
― Sinto muito. ― digo. E eu sei que não há universo em que eu seja
mais forte sem ele. ― Eu não posso. ― declaro, virando-me para
Esh.
Silêncio ressoa no Echo. Sinto o coração de Kal acelerando atrás
de mim, as ondas que essas três palavras enviam espalhando-se por
todo o plano.
― Eu não vou. ― digo.
Você DEVE, comanda Esh.
― Não. ― eu digo.
Não.
Porque eu não farei o que Esh quer.
Não porque eu me recuso a me sacrificar.
Não porque estou com medo.
Mas porque cada momento que passei aqui, no treinamento e
com Kal, me levou à mesma verdade profunda. O amanhã pode valer
um milhão de ontem. Mas um amanhã sem ele não vale nada.
Você não terá força, diz Esh, algo próximo à fúria em sua voz. Se
você não for vazia, você falhará.
― Acho que veremos sobre isso ― eu digo.
Você é o gatilho. O GATILHO É VOCÊ.
― Sim ― eu aceno. ― Mas eu também sou Aurora Jie-Lin O'Malley.
― pego a mão de Kal. ― E estou disposta a lutar pelo que amo.
Eu assumo o poder. Desejando que partíssemos, sinto um corte,
uma divisão, uma lágrima tão grande quanto o céu e tão profunda
como o para sempre. E em uma batida do coração, duas batidas do
coração, a minha e a dele, saímos do Echo e voltamos aos nossos
corpos a bordo do Zero.
E a primeira coisa que sinto, antes mesmo de abrir os olhos, é
sua mão na minha.
27
TYLER

Eles trazem Saedii de volta para nossa cela um pouco depois.


A porta se abre e os fuzileiros navais a jogam, mole como se não
tivesse ossos, no convés. O som do corpo dela batendo no chão, a
visão dela – meu estômago revira. Eles rasgaram os envoltórios de
suas pernas. Os hematomas em suas coxas estão desbotados, mas
os de seu rosto são recentes. Seu lábio está cortado, seu olho
inchado, uma mão pressionada em suas costelas. A tinta preta em
seus olhos e lábios está borrada, escorrendo. Suas tranças
imaculadas se soltaram e uma cortina de cabelo preto cobre seu
rosto enquanto ela tenta se levantar.
Eu me levanto, olhando para os fuzileiros navais. Saedii é uma
oficial do inimigo. Uma Templária do Inquebrado. Eu vi a contagem
de mortes durante a batalha no Andarael. Eu sei que a maioria
desses soldados TDF provavelmente perdeu amigos naquele ataque.
Mesmo assim, existem regras aqui. Há uma linha que você não deve
ultrapassar. Essa deve ser a diferença entre nós e eles.
― Pelo Criador, o que vocês fizeram com ela?
Os fuzileiros navais nem mesmo olham para mim. A porta se
fecha sem fazer barulho, deixando Saedii e eu sozinhos.
― Aqui ― murmuro, inclinando-me para ajudar. ― Deixe-me–
― Não me toque! ― ela ruge. Seus dedos estão curvados como
garras, unhas pretas brilhando na luz antisséptica. Eu recuo, fora de
alcance.
Saedii respira fundo, se acalma. Quase não consigo entender,
mas juro que ouço um pequeno soluço estrangulado em sua
garganta.
― Seu sol vai q-queimar ― ela sussurra. ― Toda a sua... r-raça
desgraçada...
Ela sibila, tentando se sentar. Seus braços, sua respiração, seu
corpo inteiro tremendo com o esforço. Mas é demais e ela cai. Sinto
uma pontada de pena, uma onda de vergonha. São Terráqueos que a
trataram dessa maneira. Meu povo.
Ela é a inimiga, com certeza. Ela me jogou em um buraco para
ser devorado por uma máquina de matar reptiliana, claro. Seus
camaradas são responsáveis pela morte de dezenas de milhares de
soldados Terráqueos, incluindo meu próprio pai, claro. Mas posso
ouvi-lo agora em minha cabeça se tentar. As palavras que papai me
ensinou quando eu era apenas uma criança.
Para ser um líder, você deve dar o exemplo. Para ser um líder,
você precisa ser o tipo de pessoa que deseja que o siga.
Conheça o caminho.
Mostre o caminho.
Siga o caminho.
Sei do meu tempo com Kal que o toque físico é um grande
problema entre os Syldrathi. Mas não posso simplesmente deixá-la
sangrando no chão. E então eu a pego em meus braços. Saedii
ganha vida, dentes pontudos à mostra por trás de uma cortina
emaranhada de cabelos escuros. Tenho medo de que ela se
machuque ainda mais, eu a seguro com força, as palavras que ela
cospe com os dentes cerrados ecoando junto com seus
pensamentos em minha mente.
― ME SOLTE!
― Fique calma!
― PONHA-ME NO CHÃO!
― Pelo Criador, eu vou, relaxe!
Ela resiste de novo, como uma coisa selvagem em meus braços
e eu cambaleio até sua cama biológica, segurando sua querida vida.
Saedii cospe com os lábios rachados e inchados, mas posso sentir o
que sua raiva está custando a ela, sinto os tremores percorrendo
todo o seu corpo enquanto ela tenta lutar contra mim. Eu a abaixo
suavemente na cama e me afasto, e ela tenta se erguer atrás de
mim. Mas o esforço é muito grande e ela murcha, arrastando
respirações irregulares para os pulmões e tremendo como um potro
recém-nascido.
― Você ousa colocar as mãos em mim? ― ela cospe, baixo e
mortal. ― Eu vou esfolar você, garoto. Eu vou... a-arrancar suas
joias e u-usar...
― Sim, sim, você está bastante aborrecida comigo, eu entendo. Não
há necessidade de obter gráficos.
Ela tenta falar mais, mas não consegue. Eu me sinto dolorido.
Cansado. E quando me sento em minha cama biológica, fico
surpreso ao perceber que a onda de dor, cansaço...
Nem tudo é meu.
É dela?
Não tenho certeza de como. Mas eu posso... Sentir isso?
Sangrando do subconsciente de Saedii para o meu. Pego imagens
em sua cabeça: uniformes militares Terráqueos, punhos
ensanguentados batendo nela, uma hora sólida de dor, em silêncio,
exceto por seus gritos. E ela gritou. Uivou sua fúria e dor e exigiu
saber o que eles queriam dela. E a sessão inteira, as poucas vezes
que eles falaram... Tudo o que fizeram foi insultá-la.
Eles nunca fizeram perguntas a ela.
― Sinto muito. ― eu digo. Seus olhos machucados se abrem e ela
me encara com um olhar afiado. ― Lamento que eles tenham feito
isso com você. ― digo a ela.
― Eles vão q-queimar. ― ela sussurra. ― E você também...
― Saedii, por favor–
― Covarde. ― ela cospe, a voz trêmula. ― Desgraçado. Terra será
uma vala comum.
Eu esfrego minhas têmporas, tentando manter minha paciência,
tentando ficar calmo, ser o tipo de pessoa que eu gostaria de seguir.
― Saedii–
― Vamos espalhar o Vazio com s-suas cinzas, Terráqueo. ― ela
jura, erguendo-se sobre um cotovelo. ― Beberemos o sangue de
seus corações que ainda batem. Os gritos de seus filhos serão a
música que dan–
― Pelo amor do Criador, Saedii, você pode apenas PARAR E
PENSAR POR UM ÚNICO MINUTO?
Eu não gosto de perder o controle. É por isso que não bebo. Não
uso drogas. E não falo palavrão. Mas naquele momento, isso me
atinge. Tento me conter, mas simplesmente não consigo mais me
controlar. As semanas de fuga. O pensamento de Scarlett, Auri e os
outros lá fora sem mim. A memória do meu pai e o pensamento do
Inquebrado e da Terra em uma rota de colisão sangrenta e o
Ra’haam apenas sentado, silenciosamente orquestrando tudo,
observando através dos olhos novos de Cat. Tudo borbulha e
transborda e eu me levanto, pego minha bio-cama e a atiro na
parede, cabos cuspindo corrente, telas de vidro inteligente se
estilhaçando, metal entortando quando me viro para Saedii e rujo
pela minha garganta ferida.
― E se você não vai pensar, por favor, CALA A PORRA DA BOCA
PARA QUE EU POSSA!
Saedii fica em silêncio com isso. Claramente surpresa. Afundando
em sua cama, ela me olha, da cabeça aos pés. Seus lábios estão
ligeiramente separados, seus olhos demorando em minha mandíbula
cerrada, meu peito nu, meus punhos fechados. Ela estende a mão
para tirar uma mecha perdida de cabelo preto da borda da boca. E
eu posso sentir isso nela então, tão certo como se estivesse escrito
em seus olhos. Fascinação.
Pelo Criador, até mesmo aprovação.
Ela olha para a câmera acima da porta. Cospe sangue no chão.
― Como quiser.
Eu afundo em minhas pernas, de costas contra a parede. O
silêncio ressoa na sala, e estou meio que esperando que os fuzileiros
navais voltem e chutem cabeças, mas ninguém o faz. Eles
obviamente estão nos observando. Esperando para ver o que
acontece a seguir. Talvez na esperança de aprender algo que
possam usar? Talvez só para passar o tempo?
Mas os olhos de Saedii nunca me deixam, seu olhar permanece
primeiro em minhas mãos e nos meus braços, e depois nos meus
olhos. E, finalmente, eu a sinto em minha mente novamente.
Você tem um temperamento forte, pequeno Terráqueo.
Não se eu puder evitar.
Você viu. A surra que me deram.
Eu olho para ela, então olho para longe. Por mais estranho que
seja falar assim, não quero deixar passar para as pessoas que nos
observam que podemos nos comunicar. É uma das poucas
vantagens que temos aqui, e eu preciso de cada uma se estou
saindo dessa...
Sim. Eu vi.
Intrigante.
Eu não tive a intenção. Seus pensamentos meio que...
Sangraram nos meus.
Ela zomba baixinho, balançando a cabeça e voltando o olhar para
a parede.
Você honestamente não tem ideia, não é?
... O que isso deveria significar?
Ela não responde, os olhos brilhando enquanto ela me encara.
Isso está tudo errado, Saedii, digo a ela. E você sabe disso. Eu
vi a maneira como você liderou suas tropas durante o ataque a
Andarael. Você é exatamente a estrategista que eu sou. Eles nem
fizeram perguntas quando bateram em você. Por que se preocupar
em fazer isso?
Ela chupa o lábio rachado. Sua voz ecoando em minha cabeça.
Se o ato não tem propósito, então o próprio ato é o propósito.
Nós estivemos dobrando por quase seis horas, eu aponto. Em
plena combustão, o Portão da Dobra para a Terra estava a apenas
cinco, talvez cinco e meio de onde Andarael nos atingiu. Já
deveríamos estar lá.
Eles não estão nos devolvendo a Terra, ela conclui.
Exatamente.
Para onde eles estão nos levando?
Eu engulo em seco, pensando nos olhos azuis de Cat.
Não sei. Eu tenho minhas suspeitas. Mas pense nisso. Eles
começam uma luta com uma nave capitânia do Inquebrado, mas só
depois de dar tempo para alertar o Starslayer que você está sob
ataque. Contra todas as probabilidades, eles conseguem capturar
um dos membros mais graduados do Inquebrado. Mas eles não o
usam como moeda de troca. Eles nem mesmo interrogam você. Em
vez disso, eles tiram você totalmente do tabuleiro e deixam alguns
garotos com testosterona alta te bater até virar uma polpa enquanto
não voamos para a Terra.
Seus olhos se estreitam, a raiva brilhando no violeta enquanto eu
prossigo.
Pense nisso. Por que os agentes do GIA comandando este show
permitiriam isso? Por que eles dariam aquele primeiro soco no
Inquebrado afinal? Depois de dois anos do Governo Terráqueo
fazendo todo o possível para ficar fora do seu caminho?
Eles querem uma guerra, ela finalmente responde.
Uma guerra com o Starslayer. Um homem que pode destruir
sóis. Por que eles fariam isso? O que a Terra poderia ter a ganhar?
Saedii olha para mim, olho machucado e lábios inchados.
Nada.
Ela respira fundo e, por trás da malícia e da raiva, posso ver a
inteligência em seus olhos. Caersan não escolheria um tolo para ser
um de seus templários e, apesar de sua fúria, Saedii está longe de
ser uma cabeça quente. Agora que ela teve um tempo para perceber
que não sou o inimigo que ela pensa que sou...
Seu GIA não estaria incitando Caersan se não tivesse a ganhar.
Eles não são meu GIA.
Você disse isso antes. A independência da Legião Aurora–
Pelo Criador, não estou falando sobre a Legião. Estou dizendo
que o GIA foi infiltrado, Saedii. Pelo que sei, toda a Agência de
Inteligência Global está trabalhando contra os interesses da Terra. E
toda a galáxia. E o pessoal do TDF a bordo desta nave é muito bem
treinado para questionar pedidos. Mesmo os suspeitos.
Ela pisca com isso, desconfiança evidente em seus olhos.
Infiltrado? Por quem?
Não quem. O que.
Eu me pergunto o quanto devo dizer a ela. Pergunto-me o quanto
ela vai acreditar. O conceito de Ra’haam, seu plano para a galáxia,
pode simplesmente ser demais para ela lidar. Mas pelo que Kal
disse, os Syldrathi ainda têm alguma crença nos Antigos, apesar de
a maior parte do resto da galáxia pensar que eles são um mito. E
Saedii é inteligente o suficiente para saber que algo insano está
acontecendo aqui. Eu preciso que essa garota confie em mim.
Preciso que comecemos a trabalhar juntos.
O inimigo do meu inimigo é meu amigo.
Ou, se não for meu amigo, talvez meu aliado por tempo suficiente
para sairmos dessa.
Porque mais cedo ou mais tarde, vamos chegar aonde quer que
eles nos levem. E se for um daqueles planetas berçários, como eu
suspeito, os Ra'haam serão capazes de nos infectar, assim como
infectaram Cat e os colonos na Octavia III. Arrastando-nos para sua
mente coletiva, absorvendo tudo o que somos e tudo o que
sabemos.
Não tenho certeza de como aqueles agentes corrompidos do GIA
vão explicar isso para a tripulação do TDF a bordo desta nave... A
menos que eles estejam planejando infectar todos a bordo?
Talvez o Ra’haam esteja tão confiante.
Talvez seja tão desesperador, com Auri à solta por aí.
Talvez tenhamos dado o troco.
Talvez eles tenham encontrado a Arma...
Eu sinto minha mandíbula apertar, uma onda de adrenalina correr
pelo meu intestino. E, arrastando minha mão de volta pelo meu
cabelo loiro, encontro os olhos de Saedii.
O inimigo do meu inimigo é meu amigo.
Ok, é melhor você ficar confortável. Isso vai ser muito para
engolir.
28
SCARLETT

― Finian, Zila, vocês estão me lendo?


Estou sentada na ponte do Zero, olhando para as leituras
frenéticas e as luzes brilhantes no console do piloto enquanto toda a
nave balança ao meu redor. Não se pode dizer, de forma alguma,
que está indo bem. Na verdade, muito possivelmente estamos
prestes a morrer. A única coisa que me traz algum tipo de calma é o
eletropop batendo forte sobre o caos – eu descobri como ligar meu
uni na ponte PA quatro horas atrás, e o último single de Brittneee
Vox, "Get It", está tocando repetidamente e eu sei que sou ateia e
muito provavelmente estou prestes a morrer no meio de uma
anomalia espacial não mapeada, mas PELO CRIADOR EU AMO
ESTA MÚSICAAAAA.
Antes que você comece a me julgar, só quero que saiba que sou
a pior pilota da galáxia. Não tenho mais negócios a fazer nesta
cadeira do que o Grande Ultrassauro de Abraaxis IV ter uma
pedicure. Algumas pessoas nascem para voar, é o que estou
dizendo. Eu nasci para voar. De preferência na primeira classe, com
um comissário de bordo criminalmente bonito chamado Julio
esperando por mim da cabeça aos pés.
A nave balança novamente. Mais forte dessa vez.
Pelo PA, Brittneee pede que eu vá Pegar Isso. Sem pontos para
adivinhar o que é Isso. Essa música é um monte de coisas, mas sutil
não é uma delas.
― Hum, Finian? ― eu pergunto na comunicação novamente. ― Zila?
Quer dizer, eu namorei um Ás brevemente no segundo ano –
minha primeira incursão no mundo do ego elevado, sim-nós-
sabemos-que-somos-gostosos-mas-você-também-sabe do mundo
de pilotos espaciais que Cat nadou tão facilmente. (Kyle Reznor. Ex-
namorado nº 19. Prós: beijador incrível. Contras: piadas constantes
na cabine do piloto.) Eu sei o suficiente sobre voar para,
aparentemente, não ter nos matado no caminho para cá, mas
honestamente, passei mais tempo em uma cadeira de piloto desde
que escapei do Andarael do que no resto da minha vida combinada.
As informações estão rolando pelas telas, palavras
desconcertantes como DISTORÇÃO
ESPACIAL, ALERTA DE
PROXIMIDADE e PERIGO EXTREMO. As luzes da ponte
estão todas cinzas porque ainda estamos dobrando, mas elas estão
piscando muito rápido, e os ALERTAs que aparecem nas minhas
telas são todos rotulados como VERMELHOS, e eu sei que
qualquer uma dessas coisas geralmente não é boa, mas temo que
se eu tocar em alguma coisa, vou piorar.
A nave balança novamente como se concordasse comigo.
Em tons abafados, Brittneee pergunta se eu realmente Quero
Isso.
― Finian? ― eu pergunto, tocando no comunicador novamente. ―
Zilaaaaa?
Eu olho para Shamrock, sentado acima do console do piloto. O
dragão me olha com seus olhos pretos de botão. Ele não diz nada
porque é um brinquedo de pelúcia, mas...
― Posso sentir que você está me julgando ― digo a ele.
― Scar?
Eu ouço a nota de pânico na voz de Fin, giro na cadeira para
encará-lo.
― Oiiiii, Finian.
Ele olha para as leituras atrás de mim, os olhos arregalados.
― O que você fez?
― Eu voei na direção da trilha da sonda como deveria.
― Sim, mas... ― seus olhos se arregalam com a visão no monitor
central. ― Pelo Criador, o que é ISSO?
No console, renderizado em alta definição, está uma imagem
holográfica de... Bem, eu não tenho a mínima ideia do que seja,
honestamente. Tem cerca de mil quilômetros de diâmetro, o que
parece grande até que você assista a uma palestra de astrometria
de três horas sobre como o espaço realmente é de tirar o fôlego.
Parece um redemoinho ― uma estranha energia cinza multicolorida
girando em uma espiral sem fim. É muito linda. Mas, a julgar pelo
ajuste que meus controles estão jogando, também é muito perigosa.
― De onde veio isso? ― Fin exige.
― Isso apareceu na nossa frente, tipo, cinco minutos atrás.
― Por que ainda estamos voando em direção a isso? ― ele exige,
ligeiramente em pânico.
― Porque não podemos parar.
― O que? ― ele pergunta, abandonando o ligeiramente em pânico
por totalmente.
― Eu tentei me virar. Tentei desligar nossos motores. Até soquei o
console como Cat costumava fazer quando estava irritada. O
computador de voo gritou comigo.
A nave balança novamente, muito mais violenta desta vez.
Shamrock cai de seu poleiro. Finian pisca ao redor da ponte,
franzindo a testa para os alto-falantes do PA.
―... O que há com o eletropop?
― Oh, não finja que você não é um fã de Brittneee, de Seel.
― Estamos sendo sugados por uma anomalia espacial a centenas de
milhares de quilômetros por segundo, sem motor ou controle de
navegação. Não deveríamos ter um monte de alertas gritando sobre
isso? Sirenes e outros enfeites?
― Eu os desliguei.
―... O QUE?
Eu giro minha cadeira, solto o botão Mudo no meu console. Os
tons cantáveis de Brittneee são abafados conforme a ponte mergulha
em uma cacofonia ensurdecedora de avisos do computador de voo.
― AVISO: NÚCLEO DE PODER FLUTUA–
― SISTEMAS DE NAVEGAÇÃO OFFLINE, REP–
― AUMENTO DE ENERGIA NO NÚCLEO DE ANOMALIA, RECOM–
Eu aperto o botão novamente.
Brittneee pergunta a Finian se ele gostaria de Pegar Isso.
― Viu? ― eu digo. ― Muito mais relaxante.
― Grande Criador, vamos morrer... ― Fin declara.
― Não, não vamos. ― diz uma voz.
Minha fachada cuidadosamente cultivada de frio diante da morte
certa se esvai quando olho para além de Fin e a vejo parada na
soleira da ponte.
― Auri! ― eu respiro.
Eu me levanto para encontrá-la, para dar um abraço em torno
dela, muito feliz por vê-la de pé novamente. Não tenho ideia do que
ela passou no Echo. Eu sei que a atividade em suas ondas cerebrais
estava fora de série – Zila disse que Auri e Kal estavam vivendo
semanas do tempo em apenas alguns minutos. Mas a expressão em
seu rosto, sua pose, tudo sobre ela...
Mudou.
Posso sentir quando olho em seus olhos incompatíveis. Quando
estudo sua linguagem corporal. De alguma forma, até mesmo o ar ao
seu redor. Ela está... viva. Rachando com propósito, com poder,
tanto que só a visão dela arrepia minha pele. Kal assoma em seu
ombro, sempre a apenas um sussurro de distância. Zila está atrás
deles, o olho fixo na anomalia para a qual estamos sendo
rapidamente atraídos.
― Você sabe o que é isso, Clandestina? ― Finian pergunta.
Aurora olha fixamente para o redemoinho, sua luz refletida em
sua íris direita. Por um segundo, eu juro que posso ver a luz dentro
dela, pulsando em resposta.
― É um portal. ― ela sussurra.
― Para onde? ― eu pergunto.
― Não onde. ― Auri balança a cabeça. ― O que.
― Ok ― eu digo. ― Eu vou morder. Um portal para o quê?
Ela inspira profundamente em seus pulmões.
Seu olho direito brilha como um minúsculo sol.
― Para a Arma. ― ela diz.

·····
Nós mergulhamos na anomalia quarenta segundos depois, assim
que as batidas iniciais do clássico dubpunk de bêbado do
Disasterpiece, "Last Heartbeat in the Club", começam a pulsar no
PA. Eles não são tão bons quanto Brittneee, mas ei, ninguém é.
De qualquer forma, tenho o prazer de informar que não
morremos.
A paisagem colorida da galáxia mudou do monocromático da
Dobra para todas as tonalidades do arco-íris, batendo direto na
minha cabeça. Quando cruzamos a brecha, o Zero resistindo abaixo
de nós, avistei Aurora de pé no centro da ponte – mãos estendidas,
olhos queimando como um farol – firme como uma rocha enquanto o
resto de nós se agarrou para salvar sua vida. Tive a nítida sensação
de que, se ela não estivesse lá conosco, todos nós teríamos sido
feitos em pedaços subatômicos pelo portal. Do jeito que estava,
mergulhar nele foi um pouco como levar uma pancada na cabeça de
um astrofísico nu.
Um pouco divertido.
Definitivamente estranho.
Mas principalmente doloroso.
E agora estamos do outro lado. Eu estou supondo que a
anomalia era algum tipo de Portão da Dobra ― escondido, semi-
senciente, esperando que alguém como Aurora o acionasse para
abrir. Os alertas se acalmaram para níveis quase normais. Eu
desligo o dubpunk – o momento parece exigir um pouco de
seriedade. Porque à medida que todos nos reunimos em torno do
visor holográfico central, podemos finalmente ver o ponto de origem
da sonda. O lugar em que esta jornada – Aurora, todas as nossas –
começou, incontáveis milênios atrás. O ponto no espaço onde os
Eshvaren fizeram sua última e desesperada aposta para impedir a
ressurreição do Ra'haam.
É um planeta.
Um planeta totalmente morto.
Sem vida. Sem água. Ele paira no espaço, emoldurado pela luz
suave de uma estrela anã vermelha pulsante, estéril e sozinha.
― O que é este lugar? ― eu sussurro.
― A casa deles. ― diz Aurora, com os olhos na tela. ― O que
sobrou dela, de qualquer maneira.
― Os Antigos. ― Kal diz reverentemente.
― Eshvaren. ― Finian respira.
Aurora suspira.
― Eu gostaria que vocês pudessem ter visto como era.
― Não consigo detectar nenhuma atividade tectônica. ― diz Zila,
olhando por cima de seus telescópios. ― O núcleo está totalmente
congelado. Atmosfera quase inexistente. Sem sinais de vida. ― ela
olha ao redor da ponte, olhos escuros finalmente fixos em Aurora. ―
Nem mesmo microbiano.
― Este é o lugar. ― Auri diz, sua voz como aço. ― Onde eles
fizeram a sonda. Onde eles fizeram a Arma. Eu posso... Vê-los.
Senti-los. ― sua testa se franze e ela pressiona os dedos na
têmpora. ― Seus ecos. Suas vozes. ― ela olha para Kal, pega sua
mão. ― Eu sei para onde precisamos ir.
Kal acena com a cabeça, os olhos brilhando.
― Eu a seguiria até o fim de todas as coisas, be'shmai.
O resto de nós parece cansado, a meio caminho entre maltrapilho
e coma. Como de costume, Kaliis Idraban Gilwraeth não tem um
único fio de cabelo prateado fora do lugar em sua cabeça. Mas há
algo diferente nele também.
Algo que não consigo identificar.
― O que aconteceu no Echo? ― eu pergunto, olhando entre eles.
― Seu treinamento foi bem-sucedido? ― Zila diz. ― Você pode
empunhar a Arma?
Auri olha para o mundo morto abaixo de nós. Eu posso sentir o
fogo nela. Um calor queimando como um sol. Mas também...
Incerteza?
Ela olha para Kal. Endireita a mandíbula, fecha os punhos.
― Vamos encontrá-la primeiro.

·····
Aterrissamos dezessete minutos depois, após uma descida sem
atrito para os céus livres de atmosfera acima do mundo de Eshvaren.
Zila educadamente sugeriu que ela pudesse assumir os controles –
bem, tão educada quanto Zila fosse de qualquer maneira. Depois do
meu tempo no bastão, ter alguém que sabe o que está fazendo nos
pilotando foi um alívio bem-vindo.
Não há mais oceanos neste mundo, nem continentes, mas
pousamos em algum lugar perto de seu polo sul. Zila nos traz para
uma aterrissagem perfeita: um baque suave e um suave toque de
navegação são os únicos indicadores de que pousamos.
― Você está apenas se exibindo agora. ― eu sorrio.
― Sim. Mas não se apaixone por mim, Scarlett. Eu só vou quebrar
seu coração.
Eu rio e lanço uma piscadela para ela.
― Eu sou muito alta para você, lembra?
Seus lábios se curvam em um pequeno sorriso, e ela enfia um
cacho escuro atrás da orelha. Percebo que seu olhar permanece em
mim, embora ela normalmente o desvie.
Interessante...
Logo estamos reunidos na baía de atracação, nos preparando. O
Zero está equipado com trajes de ambiente suficientes para todo o
esquadrão. Eles são volumosos, feios, escandalosamente
monótonos – ajustados para nós pessoalmente e cuidadosamente
armazenados em armários marcados com nossos nomes. Zila está
ajudando Fin a puxar o exosuit. Auri e Kal estão ajudando um ao
outro a mudar com a facilidade casual de pessoas que estão
absolutamente, definitivamente, cem por cento dormindo juntas
agora.
Garota de sorte.
Claro, minhas reflexões sobre as atividades extracurriculares do
Sr. Cabelo Perfeito e da Pequena Senhorita Gatilho são
interrompidas ao ver o armário de Tyler. Um olhar para seu nome
gravado no metal é o suficiente para fazer meu estômago embrulhar
e rolar dentro de mim. Apesar de onde estamos, da extensão de
tudo o que estamos fazendo, eu me encontro preocupada de novo.
Eu sei que estamos salvando a maldita galáxia aqui, que estamos
fazendo exatamente o que ele nos ordenou que fizéssemos. Mas ele
é meu irmão gêmeo, e ainda estou pensando, esperando, rezando
para que ele esteja bem.
Fin parece perceber, deslizando um pouco mais perto, tentando
aliviar a tensão.
― Que bom que esses trajes são resistentes. ― ele brinca,
apontando para o espectrógrafo ao lado da porta do compartimento.
― Definitivamente, não é o tempo para biquínis lá fora.
― Que vergonha. ― eu sorrio fracamente em resposta. ― Eu fico
incrível em duas peças.
― Ei, que coincidência, eu também.
Mas não é seu esforço mais forte, e enquanto fala, ele olha para
o armário de Tyler. Engole com força.
― Ele vai ficar bem, certo?
― Sim. ― suspiro.
― Sério. ― Fin diz, olhando para os outros em busca de apoio. ―
Depois que terminarmos aqui, vamos trazê-lo de volta, Scar.
Kal se curva, o que é um aceno de cabeça Syldrathi.
― Eu juro pela minha honra.
― Sem dúvida. ― Auri concorda, aço em sua voz.
― Eu sei que isso é difícil, Scarlett ― Kal continua, olhando para
mim intensamente com aqueles olhos-lindos-como-fotos. ― Mas
estamos no caminho certo aqui. De todas as pessoas, Tyler Jones
entenderia isso.
Eu empurro um pouco, fico um pouco mais ereta. Estimulada por
essas pessoas ao meu redor, esse esquadrão que se tornou meus
amigos, amigos que se tornaram minha família.
Eu fungo e aceno com a cabeça, arrasto meu capacete para
baixo no lugar.
― Eu sei que ele entenderia. ― Fin me dá um tapinha no ombro um
pouco sem jeito. ― Ok ― eu digo. ― Vamos encontrar esse maldito
atirador.
Nós nos carregamos na eclusa de ar e logo estamos pisando na
superfície congelante do planeta Eshvaren. Olho para Aurora,
lembrando-me da última vez que fizemos isso, em Octavia III. Ela
estava com os nervos em frangalhos naquela época, lutando para
entender quem ela era. Mas agora ela assume a liderança,
marchando pela rocha em ruínas. A paisagem está cinzenta e sem
vida. O vento ártico está soprando a centenas de quilômetros por
hora, mas a atmosfera é tão rala que mal chega a ser uma brisa.
Até o ar neste lugar está morto.
Kal e Zila carregam rifles disruptores, eu e Fin andamos com as
mãos nas pistolas. Não há uma sensação real de perigo aqui
enquanto seguimos Auri. Nada perto da hostilidade estranha e
sobrenatural que encontramos em Octavia III. Estou impressionada
com isso, então, como isso é injusto – que o Ra’haam tenha que
continuar, e a corrida que deu tudo para eliminá-los terminou assim.
Eu me sinto triste. Pequena. Com frio, apesar do meu traje.
Marchamos por vinte minutos, indo por uma subida constante, até
que finalmente nos encontramos em um penhasco com vista para
uma cratera de impacto: uma reentrância maciça e circular na pele
deste mundo morto, estendendo-se até o horizonte.
Mas no centro disso, estou surpresa por ver–
― Uma porta. – sussurra Finian.
Pelo menos, é o que parece. É enorme – pelo menos dez
quilômetros de largura. Aberto como uma boca para o céu, leva a
uma passagem vasta e escura além. A superfície deste planeta é um
terreno baldio, mas o interior do túnel está virtualmente intocado
pelos elementos.
― Deveria... Estar aberta? ― eu pergunto, incerta.
Eu olho para Aurora de lado, sinto a tensão saindo dela em
ondas.
― Be'shmai? ― Kal pergunta, olhando para ela atentamente.
― Aqui é onde ficava a cidade de cristal, Kal. ― ela diz, sua voz não
é bem sua. ― Isso é... ― ela balança a cabeça. ― Todos vocês.
Segure-se em mim e um no outro.
Ela oferece as mãos, ainda olhando para o abismo abaixo de
nós. Kal pega a direita e eu a esquerda, segurando firme. Zila agarra
Kal e Finian cruza os dedos comigo, dando-me um pequeno aperto
de segurança.
― Você está bem, Clandestina? ― ele pergunta a Auri.
― Apenas segure-se ― ela responde.
Sinto um formigamento na nuca. Um poder, um ímpeto, um travo
gorduroso no ar. E sem aviso, sou levantada do chão, para o céu
sem cor.
Eu suspiro, tentada a gritar como uma garotinha por um tempo.
E, olhando para Aurora, para sua boca apertada, seus olhos
queimando com uma luz branca cegante, eu percebo que ela é quem
está fazendo isso – nos movendo com nada além do poder de sua
mente.
Quando o Ra’haam nos atacou em Octavia III, ela também nos
colocou em segurança. Manteve o Ra’haam sob controle. Mas ela
mal tinha controle sobre isso – tive a sensação de que ela nem era
realmente ela mesma, apenas uma marionete do poder dentro dela.
Mas posso ver, posso sentir, ela é ela mesma agora. Esta é Aurora,
empunhando o dom que os Eshvaren lhe deram como um mestre.
Levantando-nos como se fôssemos brinquedos de criança, sobre a
paisagem destruída, para dentro da cratera e, em seguida, para
aquele túnel longo e escuro além.
― Uau ― diz Finian, observando o rosto de Aurora.
― Eu concordo. ― murmura Zila.
Nós entramos no túnel, acelerando sob a força de vontade de
Auri. Posso sentir que cada um de nós está se divertindo, cada um
reagindo a essa demonstração de poder recém-descoberto de uma
maneira diferente. Kal aceita melhor – ele provavelmente provou isso
no Echo, afinal. Eu posso sentir sua adoração quando ele olha para
sua garota, admiração com o quão longe ela foi. Mas, novamente,
tenho a sensação de que ele está incerto de alguma forma. Sobre o
quê, só posso imaginar.
Zila está olhando para Auri com algo parecido com fascínio.
Fazendo leituras em seu uniglass. Aquele grande cérebro dela em
overdrive. Fin está um pouco mais pasmo, e eu estou bem ali com
ele. Menos de um dia atrás, Auri era uma criança pequena e
assustada, com medo de usar essa coisa dentro dela por medo de
machucar as pessoas ao seu redor. Agora ela o empunha como se
tivesse nascido para isso. Como se isso fosse exatamente o que ela
deveria estar fazendo.
Deixamos a superfície para trás. A luz da anã vermelha que
orbitamos se desvanece, mas a luz do olho de Auri ilumina o túnel
diante de nós. O poço tem quilômetros de diâmetro – tão grande que
não consigo ver todas as bordas. A pedra é perfeitamente lisa, belos
padrões tecidos pelas camadas de rocha sedimentar que estamos
cortando. Meu traje de ambiente me avisa que a temperatura está
caindo, a gravidade diminuindo, nossa velocidade aumentando. Eu
olho para Auri, um pouco preocupada, mas ela parece totalmente no
controle, determinação escrita nas linhas de seu rosto.
As paredes mudam de rocha para cristal com as cores do arco-
íris. A temperatura fora de nossos trajes está agora cem graus
abaixo. Eu posso ouvir meu coração batendo contra minhas costelas,
e o túnel se estende por tanto tempo e vazio ao nosso redor
enquanto flutuamos para baixo no centro deste mundo morto que
estou quase prestes a dizer algo, estou quase a falar quando–
― Grande Criador... ― Finian respira.
Diante de nós, o túnel se abre em uma câmara enorme. Um
espaço oco gigante, esculpido bem abaixo da superfície do mundo
Eshvaren, coberto com a poeira de um milhão de anos. Posso ver
estruturas bizarras feitas do mesmo cristal que reveste as paredes,
seu propósito totalmente desconhecido. A sensação de espaço aqui,
a estranheza absoluta, é quase assustadora. Cada um de nós olha
ao redor com admiração e admira essas formas impossíveis,
brilhando e mudando na luz de Aurora.
― O que é este lugar? ― eu sussurro.
― Uma... Oficina? ― Finian respira.
― Uma fábrica de armas. ― diz Zila.
Nós voamos em direção ao centro, entre as máquinas
alienígenas, a sensação de excitação em meu peito crescendo. Todo
o tempo que passamos, todas as perdas que sofremos, tudo vai
valer a pena. Eu posso ver isso na nossa frente agora: um andaime
enorme erguendo-se da escuridão. Eu posso sentir a alegria de
Aurora derramando em mim, a emoção dessa descoberta, o
pensamento de que apesar do inimigo que estamos enfrentando,
essa guerra pode ser vencida, o Ra'haam pode ser derrotado,
porque essa garota ao meu lado, essa pequenina potência vibrando
com energia azul meia-noite, é o Gatilho, e agora, finalmente...
... Nós temos a Arma.
Alcançamos o andaime de cristal. Altos como arranha-céus.
Grande como uma cidade. Meus olhos se esforçam enquanto eu
espio na escuridão além, procurando a chave para tudo.
― Hum... ― diz Finian.
― Sim... ― eu franzo a testa. ― Hum.
― Oh não ― Aurora sussurra.
― Be'shmai? ― Kal murmura.
― Não, não, não...
Todos nós olhamos para Auri, em seu rosto, e não é preciso ser
um diplomata treinado na Legião para saber que algo está
terrivelmente errado. Nós subimos na escuridão, tecendo através do
cadafalso, o cristal brilhando ao nosso redor. Mas é óbvio que este
andaime foi construído para conter algo. E, por mais estranho que
seja, todos nós podemos dizer que está vazio.
Quando vejo as lágrimas começarem a escorrer pelo rosto de
Auri, vejo seu rosto se contrair, sinto o ar ao nosso redor ondular
com seu poder enquanto sua frustração, seu horror, seu desespero
vem borbulhando à superfície, eu conheço a terrível verdade.
― Não está aqui ― sussurro.
Eu olho para Finian, para Zila, para Kal e, finalmente, para
Aurora.
Meu coração afunda no peito enquanto ela fala.
― A Arma sumiu...

·····
Voltamos para o Zero. E a partir daí, de volta à Dobra.
Não sabemos mais o que fazer.
Queria que Tyler estivesse aqui. Eu desejo tanto, é como uma
faca nas minhas costelas. Compartilhamos um útero juntos, ele e eu,
compartilhamos tudo, e nos encontrarmos sem ele, sem líder, sem
leme, nos lembra do quanto precisamos dele. Estamos na ponte do
Zero, a paisagem colorida mais uma vez reduzida a preto e branco.
Aurora está andando de um lado para o outro, com a carranca
mais sombria que já vi. Kal fica de lado, a testa franzida em
pensamento. Fin está sentado à minha frente na estação central,
vasculhando os feeds de notícias, Zila em cima do console,
mastigando uma mecha de cabelo escuro.
― Como isso poderia ter sumido? ― eu pergunto. ― Como isso é
possível?
― Não sei ― responde Auri, com a voz trêmula.
Finian balança a cabeça.
― Cruzar para a anomalia teria destruído qualquer nave normal. E
até mesmo saber onde estava... Eles deveriam ter encontrado uma
sonda.
― Ou os Antigos disseram sobre a localização ― responde Kal.
A resposta é óbvia.
― Outro Gatilho. ― diz Zila.
Auri franze os lábios.
― O Eshvaren disse que pode ter havido outros antes de mim. O
Echo é reiniciado quando alguém o deixa, e esse plano existe há um
milhão de anos. Mas eles também disseram que quem veio antes de
mim deve ter falhado, porque o Ra'haam ainda está vivo. ― ela
balança a cabeça, o ar sobre ela ondulando com sua frustração. ―
Eu não entendo.
Finian começa a cuspir.
― Talvez esse outro Gatilho tenha completado o treinamento,
reivindicado a Arma, então... Não sei, caiu da escada ou se
engasgou com um bolo de crosta ou algo assim?
― Talvez eles tenham completado o treinamento, ― diz Kal, olhando
para Aurora ― e depois recusaram o preço que pagariam para
derrotar o Ra’haam.
Auri olha para Kal, sua voz suave.
― Não vamos falar sobre isso, ok?
A sobrancelha de Zila sobe dois milímetros, o que é praticamente
um grito de alarme até onde ela vai.
― Que preço?
― Não importa. ― diz Auri, o temperamento explosivo de repente. ―
Não importa, porque a maldita Arma nem está aí! ― o ar crepita ao
seu redor, uma luz pálida brilhando em sua íris. ― Depois de tudo
isso! Depois de tudo que passamos e alguém roubou de nós! Filho
de uma biscoiteira, eu só quero... Gritar.
Eu olho para Kal, mas, bom rapaz, ele já está trabalhando,
embalando Auri naqueles braços cobiçados dele. Ele beija sua testa
com ternura, alisa o cabelo para trás.
― Tudo ficará bem, be'shmai. ― ele promete. ― Confie nisso. Em
nós. O sol vai nascer.
Ela afunda contra ele, suspirando. Eu observo os dois,
percebendo o quão profundo eles estão agora. Posso sentir o
vínculo que cresceu entre eles no tempo que compartilharam no
Echo, àquelas horas para nós que foram meses para eles. O amor.
E, destruidora de corações que sou, matadora de pretendentes com
mais de cinquenta mortes confirmadas em meu pequeno livro
proibido, me pergunto por um momento se algum dia terei alguém
que significa tanto para mim quanto eles significam um para o outro.
― Hum... ― Finian diz.
Eu olho para o nosso Gearhead, seus grandes olhos negros fixos
em suas telas.
Eu faço minha melhor imitação de Tyler, sobrancelha levantada.
― Você tem algo que gostaria de compartilhar com a classe,
Legionário de Seel?
Sem palavras, ele estala um dedo coberto de metal, seu exosuit
zumbindo enquanto ele transfere seu feed para o display holo acima
do console principal. É um feed de notícias da TerraNet, a fonte de
notícias mais confiável da Terra, com as palavras ÚLTIMA
ATUALIZAÇÃO rolando na parte inferior da tela. Ele mostra imagens
de uma enorme armada Syldrathi, milhares e milhares de naves,
todos flutuando como tubarões na Dobra.
É a maior frota que já vi.
― Amna diir. ― Kal respira.
Fin pressiona outro botão, aumentando o volume do feed.
―... Uma armada do Inquebrado está atualmente se acumulando
na Dobra perto do portal para o espaço Terráqueo. As forças
terrestres ainda não se engajaram, em vez disso se reuniram dentro
do sistema Solar em postura defensiva. Esta declaração foi emitida
pela chefe da Força de Defesa Terráquea, Almirante Emi Hotep,
uma hora atrás.
O feed muda para uma mulher severa de pele bronzeada com
cabelo escuro e curto, em um uniforme elegante de oficial da TDF.
― Estou enviando esta mensagem em todos os canais, dirigindo-
me à frota do Inquebrado: Embora tenhamos tido diferenças em
nosso passado, os Syldrathi são amigos da Terra. Nós os
consideramos um povo honrado, guerreiros nascidos e não temos
nenhum desejo de se envolver em hostilidades com as Forças do
Inquebrado. No entanto, se as naves Syldrathi invadirem o espaço
Terráqueo, serão recebidas com força mortal.
O feed muda para um homem Betraskan em traje de oficial. O
rótulo abaixo dele diz: GRANDE LÍDER DE BATALHA DO CLÃ ANALI DE
TREN.
― O povo Betraskan sempre se esforça pela paz, em nossos
corações, em nossas tocas e em nossos céus. Mas se qualquer
mundo ou força se envolver em hostilidades injustificadas, Trask
estará ao lado de nossos aliados Terráqueos.
Meu coração afunda no peito enquanto olho ao redor da ponte.
Posso ver o mesmo desespero nos rostos do meu time. A galáxia
está à beira de uma guerra.
O feed continua.
― Perturbadoramente, uma nave desconhecida foi detectada na
frota do Inquebrado. O Comando TDF rejeitou as reivindicações de
uma "super arma", mas o destino do mundo natal Syldrathi nas
mãos do líder do Inquebrado Arconte Caersan, também conhecido
como o Starslayer – um ataque no qual dez bilhões de Syldrathi
perderam suas vidas – não pode ser ignorado. Momentos atrás,
antes de nosso drone ser destruído, TerraNet conseguiu filmar
imagens exclusivas desta nave Syldrathi desconhecida.
A imagem corta de volta para uma imagem da armada, cruzando
a Dobra. Mais uma vez, estou impressionada com o tamanho disso –
o poder de fogo absoluto que o Starslayer trouxe em retaliação ao
ataque a Andarael.
― Esse Caersan parece estar levando isso para o lado pessoal. ―
murmura Finian.
― Sim. ― eu aceno. ― Eu me pergunto o que–
― Filho da mãe. ― Auri sussurra, olhos arregalados.
O rosto de Kal está pálido e tenso enquanto ele observa a
noticia, uma faixa de medo e tristeza aparecendo nas fendas de seu
comportamento Syldrathi normalmente frio como o gelo. Mas com a
nota na voz de Auri, ele se vira para ela.
― Be'shmai?
Eu olho de volta para a tela. A filmagem está borrada, alguns
quadros capturados um ou dois segundos antes do drone TerraNet
ser morto. Ele mostra um vislumbre de uma nave entre as silhuetas
de dois encouraçados do Inquebrado. É absolutamente enorme –
facilmente a maior nave que eu já vi. Quilômetros de diâmetro, do
tamanho de uma cidade. Em contraste com os perfis de metal preto
liso das naves Syldrathi, é uma forma estranha e cônica, como um
oboé ou um clarinete. E é feito do que parece ser...
Cristal?
― Filho de uma biscoiteira, é isso ― sussurra Auri.
Fin pisca.
― O que?
― É isso ― diz ela, aumentando a voz. ― A Arma! A Arma
Eshvaren!
O silêncio ressoa na ponte, o choque diminuindo lentamente.
Meus pensamentos estão acelerados, meu coração batendo forte, a
impossibilidade disso me ensopando.
― Aurora deve usar a Arma para destruir os mundos-sementes
Ra'haam. ― Zila diz suavemente. ― E o Starslayer de alguma forma
destruiu o sol Syldrathi.
― Foi assim que ele fez! ― Aurora respira. ― Ele usou a Arma em
seu próprio mundo!
― Então, Caersan... ― sussurra Fin.
― Ele é outro Gatilho? ― eu pergunto.
Os olhos de Kal estão arregalados de terror.
― Sai'nuit. ― ele sussurra, os olhos na tela.
― O que isso significa? ― Fin pergunta.
― Starslayer ― murmuro em resposta.
― Acabou de entrar ― relata TerraNet. ― Estamos recebendo uma
transmissão da frota do Inquebrado, em todas as bandas. Agora
nós cortamos ao vivo para esta última gravação.
A imagem da Arma desaparece, substituída pela figura de um
homem.
O homem mais deslumbrante que já vi.
Ele é alto, vestido com um traje preto de armadura Syldrathi
ornamentada, uma longa capa escura fluindo sobre seus ombros
largos. Seu rosto é pálido e suave, apenas morra-por-mim-linda,
maçãs do rosto de navalha e um penetrante olho violeta. Seu cabelo
prateado é formado em dez tranças, curvando-se para baixo sobre o
lado direito do rosto. Suas orelhas são afiladas em pontas perfeitas,
o glif Warbreed gravado entre suas sobrancelhas prateadas. Ele é
resplandecente, etéreo e terrível, brilhando com uma luz escura.
Com a simples visão dele, minha pele se arrepia, minha barriga vira,
meu coração dispara.
Este é o homem que liderou o ataque a Orion.
Este é o homem que matou meu pai.
E então ele fala, e por mais terrível que seja, uma parte de mim
quase se apaixona pela música de sua voz.
― Eu sou Caersan. Arconte do Inquebrado. Matador de Estrelas.
Olhando ao redor da ponte, vejo que estamos todos abalados ao
vê-lo de alguma forma. Auri eriçada de poder, raiva e medo, Fin
afundando na cadeira, Zila virando a cabeça, mastigando uma mecha
de cabelo. Kal está pálido como a morte, suas mãos com nós, uma
veia latejando em seu pescoço. De todos nós, ele parece o pior –
como se alguém tivesse aberto seus pulsos e sangrado cada gota
dele no chão. Ele está claramente horrorizado, abalado ao ver o
monstro que destruiu seu planeta.
Caersan fala novamente. Cada palavra um golpe de raio.
― Minhas forças agora estão concentradas nos limites do espaço
Terráqueo. Contra o Inquebrado, não pode haver vitória. Povo da
Terra, ouça-me agora. Eu te presenteio uma chance. Uma escolha.
Um caminho pelo qual você pode poupar seu povo, seu mundo, seu
sol da aniquilação que o aguarda sob meus punhos.
O Starslayer olha para a câmera e eu sei que parece loucura,
mas eu juro que posso sentir seu olhar queimando em minha alma.
― Uma dos meus Templários foi capturada pelas forças Terráqueas
durante uma altercação na Dobra. Agora lhe dou doze horas para
libertá-la.
Eu olho para Kal e sussurro:
― Saedii...
― Se no final deste tempo ela não voltar para mim, eu irei destruir
o seu sol. Vou entregar todo o seu mundo ao esquecimento do
Vazio. E se qualquer dano tiver acontecido a ela enquanto estava
sob sua guarda, saiba disso: Para cada segundo de sofrimento que
ela suportou, eu retribuirei em sua espécie dez mil vezes mais. Não
vou me contentar com a destruição de seu planeta. Vou passar os
séculos restantes da minha vida caçando sua espécie, até que
nenhum humano permaneça vivo nesta galáxia.
Caersan se inclina para frente, olhando furioso para as lentes. E
então ele fala três palavras simples que trazem toda a galáxia sobre
nossas cabeças.
― Devolvam minha filha.
O feed cai na escuridão.
Eu não consigo respirar.
Eu não consigo ver.
Eu não consigo falar.
O pensamento disso me lava como água escura e gelada. O
peso disso me atinge no peito com tanta força que ponho a mão no
coração dolorido.
― Filha... ― eu digo.
Todos nós olhamos para Kal, mas Kal está olhando para Auri,
horror em seus olhos. O mesmo horror que posso ver refletido no
dela, sinto no meu.
― I’na Sai'nuit. ― ela sussurra, a voz trêmula. ― Aqueles
Inquebrados na Nave Mundial. Foi assim que eles chamaram você
quando Tyler usou seu nome.
― Be'shmai, por favor ― ele implora. ― Deixe-me explicar...
I’na Sai'nuit.
Filho do Starslayer.
― Você é dele ― sussurro.
Eu me levanto lentamente, minhas pernas tremendo, meu rosto
se contorcendo enquanto as lágrimas caem dos meus olhos.
Eu não posso acreditar. Todos nós temos sido tão cegos.
― Você é o filho daquele desgraçado.
29
KAL

Diga a verdade a ela.


Isso é o que a nota me disse. Uma mensagem transmitida a mim
através de uma mudança de tempo improvável e inexplicável. A letra
não era minha. Não fui eu quem a descobriu. Mesmo assim, eu sabia
em meu coração que a mensagem era para mim. E, olhando a dor
em seus olhos, ela que é meu tudo, meu tudo, e agora talvez meu
nada, sei que deveria ter escutado.
― Ele é seu pai? ― Aurora me pergunta, perplexa.
Por que não contei a verdade, quando ela me deu tanto?
Porque você estava com medo.
― Be’shmai... ― eu sussurro.
― Você me disse que ele estava morto. ― ela diz, com lágrimas nos
olhos. ― Você me disse que ele morreu em Orion. Você mentiu para
mim.
― Eu não menti! ― digo, o calor inundando minhas orelhas. ― Ele
está morto. Ele está morto para mim.
Finian balança a cabeça, horrorizado.
― Pelo Criador, Kal–
― Ele morreu no dia em que escolheu o orgulho em vez da lealdade!
― quase grito. ― Ele morreu no dia em que jogou a honra de lado
em nome da vitória. Ele matou dezenas de milhares de soldados em
Orion sob a bandeira do engano e permaneceu morto para sempre
em meu coração. Ele não é meu pai! ― eu cerro meus punhos. ― E
eu não sou filho dele.
Eu sinto fúria em mim. Sussurrando.
Você se rebaixa diante desses vermes? Você é um guerreiro
nascido. Nós, Syldrathi, chamávamos as estrelas de nosso lar
quando esses insetos ainda estavam descendo de suas árvores.
Você não deve nada a eles, Kaliis.
― Silêncio ― eu assobio.
Ele não escuta. Ele fala novamente, como sempre fez.
Com a voz do meu pai.
I’na Sai'nuit.
Mas a voz de Scarlett interrompe a dele.
― Ele matou meu pai. ― eu olho para Scarlett enquanto ela fala e
vejo traição. Suas bochechas estão molhadas de lágrimas, seu lábio
inferior tremendo. Mas sua voz é dura como ferro. ― Ele matou meu
pai e você sabia. Você sabia o que ele fazia. O que ele tirou de nós.
E você nos olhou nos olhos e não disse uma palavra a respeito.
Tínhamos o direito de saber. ― ela balança a cabeça, enojada. ―
Mas, em vez disso, você teve a coragem de fingir ser nosso amigo.
― Scarlett, eu sou seu amigo.
― VOCÊ COLOCOU TODOS NÓS EM PERIGO! ― ela grita. ―
SAEDII ESTAVA CAÇANDO VOCÊ PARA ELE! SE NÃO FOSSE
POR ELA, SE NÃO FOSSE POR VOCÊ, NUNCA ESTARÍAMOS A
BORDO DO ANDARAEL! TYLER NUNCA TERIA SIDO
CAPTURADO PELO TDF! E O RA’HAAM NÃO TERIA UMA
MANEIRA DE INCITAR SEU PAI BASTARDO PARA UMA GUERRA
QUE VAI COLOCAR A GALÁXIA EM CHAMAS! ― ela me encara
com os punhos cerrados. ― ISSO É CULPA SUA, KAL!
Zila limpa a garganta suavemente.
― Scarlett, isso é exagero–
― É isso? ― Scarlett chora. ― Você acha que se ele tivesse nos
contado quem ele era, ele teria sido autorizado a se juntar a este
time? Que ele teria recebido permissão para ingressar na Academia
Aurora? ― ela se vira para mim, olhos estreitos. ― Aposto que você
mentiu em sua inscrição também, certo? De jeito nenhum Adams e
de Stoy teriam aceitado o filho do assassino mais infame da galáxia
na Legião. De jeito nenhum.
Eu encontro seu olhar, meus lábios pressionados finos. Sinto a
raiva crescendo dentro de mim com seu desafio, empurro-a para
baixo com todas as minhas forças.
― Então? ― ela exige.
― Eu peguei o nome da minha mãe depois de Orion. ― confesso. ―
Eu não queria ter nada a ver com Caersan, ou o Inquebrado. Entrei
para a Academia Aurora porque queria expiar o que ele fez! Mas eu
sabia que os comandantes nunca me deixariam entrar na Legião se
soubessem quem eu realmente era.
― Então você mentiu! ― diz Scarlett.
Meu temperamento explode.
― NÃO ERA DA CONTA DELES!
― MAS ERA NOSSA! ELE MATOU NOSSO PAI, KAL! ― ela cospe,
olhando para os outros para registrar que o golpe acertou. ― Mais
alguma coisa que você quer confessar enquanto está nisso? Seu
nome é Kaliis, certo? Ou você mentiu sobre isso também?
Todos eles olham para mim então. Até Aurora, e como meu
coração dói por ver isso. Eu vejo como o pensamento passa pela
mente em cada uma de suas cabeças – que talvez tudo sobre mim
seja engano. Que eles não me conhecem.
― Eu sou Kaliis ― digo. ― Você me conhece, Scarlett.
Mas ela balança a cabeça, perdida em uma raiva justa.
― Eu não sei nada sobre você, sua fada desgraçada. Fora isso, não
podemos confiar em uma única palavra que saía da sua boca.
Zila está mastigando furiosamente o cabelo, obviamente
angustiada com o confronto. Recolhendo-se para dentro de si
mesma, curvada, pequena e silenciosa.
Finian fala, sua voz suave:
― Você conhecia seu pai... ― ele balança a cabeça, claramente
magoado enquanto olha para mim. ― Você sabia que o Starslayer
era um Gatilho? Que ele tinha a Arma?
― Não! ― eu insisto. ― Eu não fazia ideia. Minha mãe e eu o
deixamos anos atrás. Eu tinha onze anos da última vez que olhei
para ele em carne e osso, e ele não possuía nenhum dos dons de
Aurora então. Ele vagou por muitos anos desde Orion. Talvez ele
tenha descoberto outra sonda na Dobra durante suas viagens. Talvez
ele tenha tropeçado no portal ou–
― Ou talvez você esteja mentindo sobre isso como tudo o mais. ―
rosna Scarlett.
― EU NÃO ESTOU MENTINDO! ― eu estalo
Finian encontra meus olhos.
― Como podemos saber disso, Kal? Como podemos confiar em
qualquer coisa que você está dizendo?
Meu coração afunda no meu peito. Posso senti-los se voltando
contra mim, sua dor, seu senso de traição, tudo isso os cegando
para a pessoa que fui. Então eu me volto para aquela que me
conhece melhor.
― Aurora...
Ela me olha como se eu a tivesse golpeado. Lembro-me da
mesma expressão nos olhos de minha mãe quando criança, quando
ela olhou para meu pai. Quando ela percebeu que ele não era o
homem que ela pensava que ele fosse.
― Aurora, sinto muito ― eu digo. ― Perdoa-me, por favor.
― Você mentiu para mim, Kal ― ela diz. ― Aquela noite no meu
quarto. Na noite em que... ― ela balança a cabeça, os braços em
volta de si mesma. ― Quando você contou aquela história sobre
seus pais. Você me olhou nos olhos e mentiu.
― Ele está morto para mim. Meu pai morreu em Orion, be’shmai. Ele
morreu novamente quando queimou meu mundo em cinzas. Quando
ele tirou minha mãe de mim. Tudo o que restou depois daquele
momento foi o que ele se tornou. ― eu cuspo o nome, como ácido
na minha língua. ― Sai'nuit. Starslayer.
Dou um passo em direção a ela, e ela tira um, e meu coração
está sangrando, quebrando dentro do meu peito. Eu deveria ter visto
isso chegando. Nunca me senti tão desesperado, tão indefeso, como
me sinto aqui e agora. Posso senti-la escorregando por entre meus
dedos a cada respiração.
― Eu tentei te dizer ― eu digo. ― No Echo. Naquela noite na
campina. Tentei falar, custe o que custar. Mas você me disse que eu
não era o que fui criado para ser. Você me disse que o amanhã vale
um milhão de ontem. Lembra?
― Eu me lembro ― ela sussurra. ― E eu lembro que você disse que
nosso passado nos torna o que somos. Lembro que você me disse
que amor é propósito.
― E é ― eu respiro.
― Mas como você pode dizer que me ama? ― ela pergunta,
confusa. ― Quando você pode simplesmente mentir na minha cara
assim? E como posso dizer que te amo? Quando eu... ― ela balança
a cabeça. Lágrimas brilhando em seus cílios. ― Quando eu nem sei
quem você é?
― Você me conhece ― eu imploro. ― Você é minha lua e meu sol,
Aurora. Você é o meu tudo.
Suas lágrimas não caem. Elas quebram, sacudindo a nave ao
meu redor. Eu olho para Finian, para Zila, para Scarlett,
desesperado por alívio. Para qualquer coisa.
― Eu lutei ao lado de vocês. Sangrei por vocês. Não conheci
nenhuma casa desde que o Starslayer levou a minha, exceto aqui
entre todos vocês. ― eu bato meu punho no meu coração. ―
Esquadrão 312. Eu sei que posso parecer frio. Eu sei que sou difícil
de ler e mais difícil de lidar. ― eu olho para cada um deles. ― Mas
eu conheço meus amigos e eles são poucos. E eu morreria por
esses poucos.
O silêncio ressoa na ponte.
E nesse silêncio, Scarlett cospe:
― Diga isso para Cat.
Eu sinto as palavras como um golpe no meu peito.
Por um momento, não consigo nem respirar.
― Scarlett... Isso não é justo.
― Justo?
Eriçada de fúria, ela atravessa o convés em minha direção. Finian
se levanta, cauteloso, mas não chega mais perto. Zila abraça suas
canelas, pressiona o rosto contra os joelhos. Mas Scarlett está na
minha cara agora, gritando. Ela só alcança meu queixo, mas sua
raiva compensa sua falta de estatura.
― VOCÊ ESTÁ FALANDO DE JUSTIÇA? ― ela grita. ― MEU
IRMÃO ESTÁ NAS MÃOS DO GIA POR SUA CAUSA, SEU FILHO
DA PUTA! COMO ISSO É JUSTO? E SE ELES O LEVASSEM DE
VOLTA PARA OCTAVIA, HEIN? VOCÊ JÁ PENSOU NISSO? E SE
ELES FIZESSEM COM ELE O QUE FIZERAM COM C... COM CA...
Murmuro enquanto sua voz falha.
― Se eu pudesse trocar de lugar com ele, eu trocaria, Scarlett. Eu
sinto muitíssimo.
― Foda-se suas desculpas! ― ela diz, levantando a mão. ― E foda-
se você também, Kal.
Ela balança. Cheia de raiva. Desajeitada. O Inimigo Interior se
inflama, a violência para a qual nasci, a violência em meu sangue
correndo em minhas veias como um trovão. Eu me movo, instinto e
memória muscular, agarrando o pulso de Scarlett com tanta força
que ela grita de dor.
― Não me toque ― eu a advirto.
― EI! ― Finian grita, dando um passo à frente. ― SOLTE ELA!
― Finian... ― Zila começa.
― SOLTE ELA! ― ele grita.
Nosso Gearhead coloca ambas as mãos em meu peito e
empurra, seu exosuit zumbindo. Todo o meu corpo se eriça, todos os
meus instintos inflamados com ameaças.
Quebre-o, Kaliis.
QUEBRE-O.
Eu me afasto, suave como água. Scarlett se contorce em minhas
mãos e eu a solto, o impulso enviando-a contra Finian e os dois para
o convés. Fin grita, a perna torcida, e quando eu levanto minhas
mãos, eu sinto outro empurrão no meu peito – forte como o ferro, o
poder azul meia-noite estalando no ar ao meu redor.
Eu olho para cima e vejo a mão de Aurora levantada. Voltada
para mim. Seus olhos queimam como um sol poente, o cabelo
chicoteando ao redor de sua testa com a brisa de um mundo há
muito perdido.
― Não faça isso ― ela diz.
― Eu nunca...
E eu vejo. O que todo mundo que aprendeu a verdade sobre mim
sempre viu. Eu nasci de um monstro, um assassino de bilhões. E é
isso que eles veem quando olham para mim agora. Essa sombra da
qual eu nunca vou sair, não importa o quanto eu tente.
Aurora olha para mim, as lágrimas brilhando como diamantes em
sua pele. Eu sei o que ela vai dizer antes de dizer.
― Você precisa ir, Kal.
― Aurora, não ― eu imploro. ― Não.
Ela acena com a cabeça.
― Vá.
Eu estou rasgado. Desesperado. Procurando por qualquer coisa
que possa influenciá-la.
― Você não o conhece, be'shmai ― digo, olhando para a tela onde o
homem que me fez falou. ― Você não pode começar a imaginar
como ele é. Ele era um monstro mesmo antes da queda de Syldra.
Se ele de alguma forma se tornou como você, imbuído do poder dos
Antigos–
― Você vai me dizer que não terei chance quando o enfrentar?
Meus olhos ficam duros, minha voz como aço.
― Você não o conhece, Aurora.
― Eu sei de uma coisa, Kal ― ela diz suavemente, enxugando as
lágrimas de sua bochecha com as costas da mão. ― Eu sei que
estou pronta agora. Verdadeiramente pronta, como o Eshvaren
disse. Eu sou o Gatilho. O Gatilho sou eu. E quando eu atacar o
Grande Inimigo, não haverá mais nada para me segurar. Sem dor.
Sem raiva. Sem medo. ― ela balança a cabeça. ― Sem amor.
Eu ouço as palavras do Eshvaren na minha cabeça então. Aquele
aviso fatídico que falou em nosso último dia no Echo.
Lembre-se do que está em jogo aqui. Isso é mais do que você.
Mais do que nós.
Queime.
Queime tudo.
Aurora abaixa a mão e parte meu coração.
― Adeus, Kal.
30
FINIAN

Cerca de quatrocentos anos-luz de Trask, há uma estrela


chamada Meridia. O núcleo da estrela é um diamante do tamanho da
lua de Trask, estimado em cerca de dez decilhões de quilates. Meu
povo construiu um espaço porto lá – um grande centro de trânsito
que é um dos mais movimentados da galáxia. Você pode pegar uma
carona em qualquer lugar do 'Caminho através de Meridia. Diz muito
sobre nós, Betraskans, que construímos uma estação de ônibus em
torno do maior diamante da galáxia.
De qualquer forma, é onde despejamos Kal.
Ainda somos terroristas procurados e tudo, então não perdemos
tempo com despedidas. Zila traz o Zero para uma das docas
terciárias, parando apenas o tempo suficiente para deixar Kal sair.
Ninguém está lá para se despedir. Eu o observo através das
câmeras da baía, saindo para o convés da estação com uma mochila
nas costas. Ele está vestindo roupas civis – casaco longo escuro,
aquelas calças de PVC ridículas que Scarlett comprou para ele na
Cidade Esmeralda, bolsos cheios com sua parte dos créditos que
Adams e de Stoy deixaram para nós no cofre.
Acho que ele deixou seu uniforme da Legião em seu quarto.
Com raiva, ele endireita os ombros e se afasta.
Ninguém fala por um tempo depois que deixamos Meridia para
trás, saindo do sistema e voltando para a Dobra. De minha parte,
simplesmente não sei o que dizer. Estou procurando algo – sei que
devo ser aquele que, de alguma forma, quebra esse silêncio
espesso, pesado e doloroso, mas não sei por onde começar.
Tudo o que os Betraskans fazem, tudo em que acreditamos, tudo
o que somos tem a ver com família. E entre perder Cat, deixar Tyler
para trás e agora à traição de Kal, está ficando cada vez mais difícil
manter meu olhar focado no futuro. Parece que levei um tiro, mas
ainda estou me movendo. Estou no automático, mas agora que a
poeira baixou, simplesmente não sei o que fazer a seguir.
A ponte parece muito grande – somos apenas nós quatro agora,
com Shamrock no console e os assentos vazios de Tyler e Kal para
nos lembrar do que perdemos. O que, dado que é nossa pilota
durona, nosso gênio tático e nossos músculos, não é brincadeira.
Scarlett está com os olhos vazios. Assim como eu, não consigo
fazer um comentário inteligente para nos manter em movimento, ela
não consegue encontrar nada no livro de truques dos Faces para
fazer isso soar melhor do que é. Eu sei que ela está se culpando por
não ter previsto isso, mas embora sua capacidade de ler todos que
ela encontra seja quase sobre-humana, ainda há limites. Pela
primeira vez que me lembro, ela parece... Não tenho certeza de
como chamá-la. Abatida? Assustada?
Auri está em seu próprio lugar, seu olhar distante. Tudo sobre ela
mudou – até mesmo sua postura. Ela não é mais a garota que
conhecemos. Ela está totalmente focada agora. Achei que ela ficaria
mais fraca sem o apoio de Kal, mas é como se o calor e o fogo que
acabamos de passar a transformou em algo mais forte.
Algo inquebrável.
É Zila quem acaba com o silêncio. Ela está de costas para nós,
pilotando o Zero através do Portão da Dobra e em segurança no
preto-e-branco. Agora ela se vira, seu rosto tão vazio quanto quando
nos conhecemos. Eu não percebi quantas pequenas mudanças eu
tinha visto até que elas foram embora, junto com Kal. Ela se fechou
novamente, falando com cuidado e uniformemente, sua voz monótona
e cinza.
― Devemos considerar nossos próximos passos.
A resposta de Auri é imediata e inabalável.
― Precisamos assumir o controle da Arma.
Scarlett acena com a cabeça.
― Idealmente, antes que Caersan o use para explodir a Terra. E já
estamos três horas em sua contagem regressiva de doze horas.
Auri olha para ela, o olhar ardente, o queixo erguido.
― E então temos que virar isso contra o Ra'haam.
― Certo. ― eu concordo. ― Então isso significa que precisamos
embarcar, correto? Depois de uma enorme frota de guerra Syldrathi
em alerta máximo, pronta para descarregar suas muitas, muitas
armas em qualquer coisa que pareça remotamente hostil.
Zila inclina a cabeça.
― Este é um resumo preciso.
― Temos alguma vantagem? ― Scar pergunta. Ela está tentando
descobrir o que Tyler faria, eu acho. Tentando desesperadamente
preencher o buraco que seu irmão gêmeo deixou para trás.
― Eles certamente não estarão nos esperando.
Eu gostaria que Zila estivesse fazendo uma piada agora,
exercendo aquele novo senso de humor dela. Mas ela está apenas
afirmando o óbvio. Eles não esperam que ninguém faça algo tão
temerário, que enfrente dificuldades por tanto tempo. Porque é
suicídio.
― Auri pode achatá-los com suas balas cerebrais ― eu ofereço. ―
Colocar isso na coluna da vantagem, eu acho?
Aurora nem sorri.
― Isso é verdade ― Zila concorda, igualmente grave. ― No entanto,
demonstrações de poder psíquico devastador certamente chamariam
a atenção entre a armada Syldrathi. Se quisermos manter nossa
vantagem de surpresa, precisaremos nos misturar.
O olhar de Auri se volta para Zila.
― Precisamos de uma nave Syldrathi.
Eu franzo a testa.
― Onde é que nós vamos...
Minha voz desaparece quando vejo o olhar de Scarlett. Posso ver
a inteligência por trás deles, a inteligência que ela mantém escondida
atrás de uma máscara de atrevimento e indiferença. Ela me disse
uma vez que nunca quis se juntar à Legião. Que ela só se inscreveu
para cuidar de Tyler. E ela sente a ausência do irmão pior do que
qualquer um de nós, eu sei. Mas de repente ela está calçando os
sapatos dele muito bem.
― Raliin Kendare Aminath. ― diz ela.
Pelo Criador, é claro. O ancião Waywalker que resgatamos em
Andarael nos disse para encontrá-lo se houvesse uma maneira de
ele pagar sua dívida para conosco.
Scar olha para Zila e nosso Cérebro acena com a cabeça, seus
dedos voando pelo console do piloto.
― Podemos chegar lá em quatro horas ― diz ela. ― Devo definir um
curso?
Scarlett acena com a cabeça.
― Queime o mais forte que puder.

·····
Cada um de nós encontra uma maneira de se ocupar nas
próximas quatro horas. Zila está no controle, verificando as leituras
continuamente. Auri desaparece em seu quarto e fecha a porta.
Scarlett puxa os arquivos do Syldrathi e começa a ler.
Eu? Não recebi nada, exceto tentar consertar Magellan e, para
ser franco, ouvir um resumo implacável e alegre de como sou
estúpido não parece muito divertido agora. Em vez disso, encontro
algo para comer e alimento Zila e Scar – Auri não responde à minha
batida – então ando um pouco. Eu fico olhando para a porta fechada
dos aposentos de Kal, tentando descobrir o que acho do que ele fez.
Mas, embora eu geralmente seja um campeão da classe galáctica
em sonhar com retornos uma ou duas horas após a oportunidade de
dizê-los, desta vez não consigo. Só posso ter certeza de como é a
sensação agora que Kal se foi. E honestamente, depois de tudo que
passamos juntos, parece que alguém alcançou nosso coração e
arrancou um punhado.
Eventualmente, seguindo um palpite, volto para as baias de
armazenamento. Com certeza, empilhados em um canto atrás das
células de combustível sobressalentes e peças de reposição estão
tambores de tinta preta espessa. Exatamente o que precisamos.
Esta nave realmente tem tudo.
Começo a pensar nisso. Sobre a nota na caixa da cigarrilha de
Kal. A pequena caixa de metal em si provou ser útil, e a nota dentro
dela provou ser correta.
E quanto aos outros presentes que achamos no cofre da Cidade
Esmeralda? Os brincos de Zila, o pingente da Scar, as botas novas e
brilhantes de Tyler. É como se Adams e de Stoy soubessem o que
estava por vir – onde estaríamos, o que estaríamos fazendo – e não
pela primeira vez, me pergunto como.
Eu alcanço minha carga, encontro a caneta esferográfica que
eles me deram. Eu franzo a testa para isso. Querendo saber em
nome do Criador para que serve. Eu acho que se os comandantes
da Legião sabiam sobre Kal levando um tiro, se eles soubessem o
suficiente para avisá-lo para dizer a verdade, talvez essa coisa na
minha mão tenha alguma magia para trabalhar em nossa hora mais
sombria.
Eu clico no botão no final, para dentro e para fora. Esperando por
algum tipo de milagre.
Nada.
Absolutamente nada.
― Eu fui roubado. ― suspiro.

·····
Quando chegamos à estação Tiernan – Zila queimou o
combustível, mas o relógio ainda está correndo – não sabemos
como será a recepção. Assim, saímos com cautela pelo Portão da
Dobra, a cor restaurada a nave mais uma vez. A estrutura da
estação é linda, como todos os designs Syldrathi. Tem a forma de
um grande ovo, todo salpicado de luzes. Há um enorme glif
Waywalker pintado de um lado em uma escrita elegante, e perto há
uma centena de caças e cruzadores fervilhando ao redor da estação
em arcos graciosos e extensos.
Cada um deles aponta suas armas para nós assim que
aparecemos.
Scar se inclina para frente para falar com muito cuidado ao
microfone. Não entendo Syldrathi, mas posso acompanhar o tradutor
do meu uni, e esse encontro é tão importante que ela praticou seu
roteiro comigo antes de chegarmos.
― Estamos aqui para ver Élder Raliin Kendare Aminath.
Há uma pausa e, em seguida, a resposta estala de volta.
― Para qual propósito?
Scarlett respira fundo e suspira. Quando você não tem outro
ângulo, é sempre melhor correr com a verdade, ela me disse. Então
ela pressiona o botão Transmitir e aumenta sua seriedade para onze.
― Precisamos da ajuda dele para salvar a galáxia.

·····
Cerca de meia hora depois estou em uma das baías de pouso da
Estação de Tiernan, pintando cuidadosamente os glifos Syldrathi na
lateral de um velho ônibus espacial. Os sigilos do Inquebrado são
lindos, elegantes... Mas possuidores de uma selvageria. Alguma
sugestão da violência que os guerreiros do Starslayer tanto adoram.
Estou seguindo um guia visual que Scar enviou ao meu uniglass,
observado por uma série de Waywalkers muito duvidosos.
Zila está dentro do ônibus espacial, tendo uma aula de pilotagem.
Auri finalmente saiu de seus aposentos e está dando uma volta
lenta na baía de pouso. Ela se move com uma espécie de graça que
associo mais a Kal, e ela me lembra um predador inquieto. Ela
parece ignorar o resto de nós. Mas os Waywalkers que resgatamos
de sua prisão no Andarael estão fascinados por ela, acompanhando
seu progresso para frente e para trás. Todos os Waywalkers têm
algum tipo de habilidade psíquica de baixo grau. Eles são empatas.
Ressonantes. Eu ouvi rumores de que alguns podem até falar
telepaticamente uns com os outros. Talvez eles estejam sentindo
seus novos músculos cerebrais.
Scar está conversando com o mais velho, que parece
profundamente preocupado com suas escolhas de vida. Embora seu
sotaque seja terrível, ele está falando em um Terráqueo fraturado
para o benefício de Auri.
― Não podemos ajudá-los nisso. ― diz ele às meninas. ― Caersan
– a maldição do Vazio seu nome – já destruiu nosso mundo. Levamos
muitos ciclos para reunir este enclave. Não podemos arriscar sua ira,
jovens Terráqueos.
― Eu entendo. ― diz Scarlett.
Raliin sorri suavemente.
― Sua mentira é apreciada. E temos uma dívida com você por nosso
resgate a bordo do Andarael, sem dúvida. Mas nós, Waywalkers,
éramos a menor cabala entre meu povo, mesmo antes de nosso
mundo ser destruído. E desde a queda de Syldra, os agentes de
Caersan têm nos caçado incessantemente.
Os olhos de Auri estreitam com isso. Ela para de andar, olha
Raliin nos olhos.
― Por que eles estavam caçando vocês?
Syldrathi se curva com a cabeça em vez de se dobrar, então,
quando o mais velho faz uma pausa e acena com a cabeça por um
longo e lento momento antes de responder, eu percebo que essas
pessoas devem ter uma pequena noção do que ela é. O que ela está
prestes a fazer.
― Não temos a pretensão de conhecer os desígnios de um louco. ―
ele responde. ― Sabemos apenas que poucos nos reunimos aqui
cuidadosamente, secretamente. Não podemos chamar a atenção
para nós mesmos. ― ele aponta para a nave que estou repintando.
― Mas, como eu disse, nosso resgate entre o Inquebrado não ficará
sem recompensa. Esta é a nave mais rápida que temos, capaz de
ser tripulada por quatro pessoas. E os códigos de identificação que
demos a vocês foram levados recentemente pelos poucos agentes
de inteligência que ainda temos no campo. Com a graça do Vazio, o
tamanho da armada do Starslayer e a emoção do próximo ataque, o
Inquebrado pode não detectá-la.
― Obrigada, Élder Raliin. ― Scar acena profundamente em respeito.
― Se não entrarmos em contato com você em um dia, o Zero é seu.
Não importa a segurança que você acha que tem aqui, sugiro que
use ela e o resto de sua frota para fugir. Se não conseguirmos, o
Inquebrado será o menor dos problemas da galáxia.
Para ser honesto, um dia parece meio otimista para mim. Agora
são duas horas e meia até que o Starslayer caia no sistema
Terráqueo para reorganizar os móveis. E dado que estamos indo
direto para ele para tentar impedi-lo, as chances são boas de que
levará duas horas e meia até que Caersan nos reorganize também.
Há muitas coisas que eu gostaria de ter feito ou dito.
Mas a verdade é que não consigo pensar em qualquer lugar que
eu gostaria de estar, exceto aqui.
31
TYLER

Ra’haam.
Saedii me encara do outro lado da cela de detenção, com os
lábios franzidos. No tempo que levei para explicar para ela – Aurora,
o Eshvaren, o Ra'haam, Octavia III, Cat, o armário na Cidade
Esmeralda, o GIA, tudo isso – seu sangue secou em seu rosto, no
chão entre nós. Ela não lançou um único pensamento em minha
mente. Sua expressão mudou apenas uma vez – uma piscada rápida,
olhos estreitando, quando mencionei a Arma, que mesmo agora
espero que os outros tenham encontrado sem mim.
Scarlett.
Auri.
Grande Criador, espero que estejam todos bem...
Saedii se senta lá depois da minha confissão. Eu espero que ela
ria. Para me chamar de mentiroso e lunático, para reagir da maneira
que qualquer pessoa normal faria quando você lhes contasse que um
antigo ser-planta que perdeu uma guerra contra uma raça de antigos
médiuns está prestes a acordar depois de uma soneca suja de um
milhão-de-anos em toda a galáxia.
Mas quando ela finalmente fala em minha cabeça, seus
pensamentos estão quietos.
Isso explica a garota em quem você pensa constantemente.
Eu pisco com isso.
... O que?
Cat, eu acho? Ela pesa muito em seus pensamentos, Tyler
Jones.
Eu engulo em seco. Doendo no peito.
Ela era uma... Uma amiga minha.
Os olhos de Saedii se estreitam.
Mais que uma amiga.
... Talvez.
E isso a levou. Este Ra’haam. Transformou-a. Absorveu-a.
Eu sinto a raiva crescer dentro de mim. Bem-vinda e calorosa.
Sim. Sim, ele fez isso.
Da mesma forma que absorverá a galáxia se permitirmos.
Sim, eu aceno. Da mesma forma.
Devemos escapar desta cela, Tyler Jones.
Eu levanto uma sobrancelha. A com cicatrizes. Para um efeito
extra.
Estou feliz que você esteja aqui para me dizer essas coisas,
Saedii.
Isso foi sarcasmo, pequeno Terráqueo?
Eu encolho os ombros.
Minha irmã herdou a maior parte. Mas alguns passaram para
mim.
Seus olhos se estreitam novamente com a palavra herdou. Ela
me olha longo e duramente. Olhos brilhantes emoldurados por cílios
escuros e tinta escura. Seu olhar demorou talvez uma fração de
tempo demais no meu peito nu.
Escute, eu sei que esses peitorais podem concorrer à
presidência e ganhar, penso para ela, mais do que um pouco
irritado. Mas você poderia ser um pouco menos óbvia sobre como
obter uma visão cheia. Caso você tenha perdido, estamos nisso até
o pescoço.
A Templária do Inquebrado inclina a cabeça com isso. Devagar,
lentamente, recostando-se em sua bio-cama e esticando as pernas
longas e nuas à sua frente. Eu sei o que ela está fazendo. Eu sei o
que ela quer. Encho minha cabeça com uma enxurrada de
pensamentos nada sexy – meu velho companheiro de beliche
Björkman aparando as unhas dos pés com os dentes, daquela vez
que eu me peguei no meu zíper, na calcinha da minha avó, enormes
monstruosidades cor de creme, ondulando como velas na cl–
Eu não posso evitar. Eu olho para baixo por uma fração de
segundo.
Droga.
Eu olho nos olhos de Saedii novamente. Seus lábios cortados se
retorcem em um pequeno sorriso.
Eu não estou “obtendo uma visão cheia”, como você tão
eloquentemente disse, Tyler Jones.
Ela olha de volta para o meu peito, pensativa.
Estou me perguntando que tipo de coração bate sob essas suas
costelas.
... Significa o quê?
Significa que o inimigo do meu inimigo é meu amigo. O que
significa que, apesar da inimizade e do insulto entre nós, respeito à
confiança que você deposita em mim para revelar seus segredos. E
que existem segredos que talvez você também tenha. Segredos
sobre mim.
Ela olha nos meus olhos.
Segredos sobre você.
Eu franzo a testa.
... Eu?
Ela encolhe os ombros gentilmente, brincando com uma mecha
de cabelo preto enquanto me olha mais uma vez.
Você e sua irmã, suponho.
... O que Scar tem a ver com isso?
Gêmeos, não é?
Sim, e daí?
Jericho Jones escapou do cativeiro Syldrathi antes da batalha
em Kireina IV, certo?
Minha carranca se aprofunda.
Como você sabia disso?
Ela sorri novamente.
Seu pai deteve uma frota duas vezes maior que a dele em
Kireina. Foi a pior derrota que sofremos em toda a guerra. Conheça
seu inimigo, Tyler Jones.
Eu não–
Jericho Jones era contra-almirante menos de um ano após sua
vitória. Um guerreiro, nascido e criado, que lutou contra o melhor
dos Warbreed até a paralisação e causou nossa queda de
ascendência no Conselho Interno de Syldra. E ainda assim, ele
renunciou à sua comissão. Tornou-se o mais forte defensor da paz
em seu Senado. Por que a mudança de coração?
Eu não tenho ideia de onde ela quer chegar com isso. Mas algo
em seus olhos me incita a continuar com isso.
Ele fez um discurso sobre isso em 2367, digo a ela, o orgulho
inchando meu peito. Ainda é ensinado na Academia Aurora. “Não
consigo mais olhar nos olhos dos meus filhos sem ver o mal em
matar os de outras pessoas.”
Ela funga.
Uma bela mentira.
Eu enrijeço.
Cuidado como fala sobre meu pai, Saedii.
Quando falei com sua mente pela primeira vez, você disse que
não sabia que aqueles que possuíam dons Waywalker podiam falar
com outras pessoas telepaticamente.
Eu encolho os ombros.
Eu não estava ciente.
Saedii balança a cabeça, leve desprezo derramando em minha
mente, apesar de seu melhor esforço para mantê-lo sob controle.
Isso porque não podemos falar com outras pessoas, Tyler
Jones. Só podemos falar aos outros com o dom.
Meu estômago embrulha.
Eu não…
Eu sou Warbreed por nascimento e fé, Saedii me diz. Mas...
Embora eu a detestasse, herdei alguns dos talentos da minha mãe.
Ela encontra meus olhos, os dela brilhando como vidro.
Parece que sua mãe também compartilhou seu dom com você.
O pensamento tira o fôlego de meus pulmões. Meu coração está
batendo forte, minha mente girando. Mas estou tentando segurar os
fios na minha cabeça, costurá-los juntos em uma tapeçaria que faça
algum tipo de sentido, enquanto Saedii olha, fria e indiferente.
Nunca conhecemos nossa mãe – sempre me perguntei sobre ela,
mas pude perceber o quanto doía papai falar sobre ela. Eu não
queria forçar. E eu pensei que tínhamos uma vida inteira para
perguntar a ele sobre o que aconteceu. Onde ela foi.
Mas papai estava desaparecido atrás das linhas inimigas por
meses. Admito que sempre me pareceu meio estranho – ele ter se
transformado de maior inimigo do Syldrathi no homem que mais
defendia a paz. Acho que parte de mim queria colocá-lo em um
pedestal. O nobre herói de guerra que passou a respeitar o inimigo
contra o qual lutou. Para entender, somos todos, de alguma forma
essencial, iguais.
Mas faria muito mais sentido se...
Enquanto ele foi capturado, se ele...
É engraçado ser gêmeo. Às vezes eu sinto que sei o que minha
irmã vai dizer antes que ela diga. Às vezes, juro que ela sabe o que
estou pensando apenas olhando para mim. Scar e eu éramos
inseparáveis quando crianças. Papai disse que inventamos nossa
própria linguagem antes de podermos conversar. E a maneira como
minha irmã lê as pessoas instintivamente – como livros, como se ela
pudesse realmente ver dentro de suas cabeças às vezes...
― Pelo Criador. ― eu respiro em voz alta.
Você não tem muita aparência, diz Saedii. Provavelmente por
que sua mãe o mandou embora. Mas é inegável que você e sua
irmã possuem certa... ― seus olhos piscam sobre meu corpo
novamente ― Graça. Altura. Equilíbrio. Você viu as imagens da
minha tortura em sua cabeça. Você pode falar comigo em minha
mente. Eu sinto você aqui ― ela toca sua testa ― tão certa quanto
você me sente. Existe apenas uma explicação, Tyler Jones.
Saedii enfia uma longa mecha preta atrás da orelha.
Sua mãe era uma Waywalker.
Eu engulo em seco. Olho para o meu antebraço. Minha pele
bronzeada. As veias abaixo do músculo marcadas em longos
rabiscos de um azul claro.
Scar e eu... Temos sangue Syldrathi em nossas veias?
As pontas dos dedos de Saedii deslizam sobre a cadeia de
polegares decepados em sua garganta. Ela está me olhando de cima
a baixo, a ponta da língua pressionada contra um canino afiado.
A questão é: você é digno disso?
Minha cabeça está girando, tentando processar tudo isso. Como
isso aconteceu? Por que papai não nos contou? Quem foi nossa
mãe?
... Ela está viva?
Concentre-se, garoto, Saedii diz. Mantenha-se firme.
A maior bomba da minha vida acabou de cair na minha cabeça,
Saedii. Acho que vou precisar de um minuto aqui...
Não temos um minuto, Tyler Jones. Se o que você me contou
sobre este... Antigo inimigo é verdade, cada segundo que perdemos
nesta cela entre esses insetos é outro segundo mais perto da
destruição da galáxia.
Eu franzo a testa, meu temperamento queimando vermelho
sangue em nossas mentes compartilhadas.
Você acha que eu não sei disso?
Saedii me observa por um longo e silencioso momento. Posso
senti-la, suas emoções, seus pensamentos, tudo dela. É difícil
manter tudo certo na minha cabeça, processar quais partes que
estou sentindo sou eu e quais são ela. É como se estivéssemos nos
tocando... Mas não.
Acho que há muita coisa que você não sabe, ela responde.
Pelo Criador, o que mais?
Saedii dobra as pernas nuas sob o corpo, encosta-se à parede e
cruza os braços sobre o peito.
É melhor você ficar confortável, garoto. Isso vai ser muito para
engolir.
32
KAL

Existe uma gravidade em tudo.


Eu disse isso a Aurora, não faz muito tempo. Olhando em seus
olhos enquanto eu finalmente confessava tudo o que sentia por ela.
Cada átomo em nossos corpos, cada átomo no universo exerce uma
gravidade sobre os átomos ao seu redor. A gravidade é uma das
forças que mantêm tudo isso unido. É inexorável. Nada sobe sem
cair. Não é uma questão de se, mas de quando.
Nós, Syldrathi, acreditamos que tudo é um ciclo. Um círculo sem
fim. Que um dia a expansão do universo cessará, a força gerada
pela explosão que o iniciou será superada pela gravidade. E nesse
dia, o universo começará a se contrair. Não mais espiralando para
fora, mas caindo para dentro, cada átomo existente arrastado para
trás em direção ao seu ponto de origem, colapsando mais uma vez
na singularidade que deu início a tudo. Apenas para começar de
novo.
Todos nós somos escravos da gravidade.
Todos nós somos puxados por isso.
De volta ao lugar onde tudo começou e onde sabemos que deve
terminar.
Não demorei muito para encontrar transporte em Meridia. Não
faltam pessoas na galáxia que temem o Starslayer, que assistem ao
desenrolar da calamidade entre a Terra e o Inquebrado com a
certeza absoluta de quem triunfará. O contrabandista Chelleriano que
concordou em me transportar para a armada do Inquebrado ainda
demorou muito para ser convencido, considerando os perigos de se
aproximar da maior frota dos Inquebrados reunida desde a queda de
Syldra. Mas minha parte da pequena fortuna que o almirante Adams
e a Líder de Batalha de Stoy deixaram para nós no cofre da Cidade
Esmeralda foi suficiente para comprar sua paz de espírito.
Eu me pergunto se nossos comandantes sabiam para que esse
dinheiro seria usado quando o deixassem para nós.
Se eles sabiam onde meu caminho levaria.
Eu estou na cabine ao lado do contrabandista e seu copiloto – um
Rikerite ranzinza com um de seus chifres quebrado na raiz. O
contrabandista gosta de sua fumaça de pedra, e a cabine está cheia
do fedor, metálico e espesso, que sai do queimador do console. A
tagarelice dos feeds de notícias se espalha pelo sistema de som da
cabine.
A Dobra ao nosso redor está incolor como sempre, tão cinza
quanto às nuvens de tempestade ao redor da minha cabeça. Estou
observando as naves do Inquebrado que se aproximam em nossos
escopos – quatro batedores de classe Fantasma em curso de
interceptação. Eles cortam a Dobra em nossa direção e, além deles,
posso ver incontáveis naves, lustrosas, escuras e mortais, reunidas
no limiar do sistema Terráqueo. Uma força para atear fogo aos céus.
E, no fundo, ele espera por mim.
A sombra da qual nunca fui capaz de sair.
Uma transmissão do batedor principal corta nossos feeds de
notícias, trazida à tela com um toque dos dedos do contrabandista.
Vejo um jovem adepto do Inquebrado, o glifo Warbreed em sua
testa, pintura de guerra negra sobre os olhos cinza brilhantes.
― Embarcação não identificada ― diz ele friamente. ― Você é
louco ou suicida. Recue ou será destruído. Este é o seu primeiro e
último aviso.
O contrabandista olha para mim. Eu pressiono um dedo no
console e falo.
― Estou aqui para ver meu pai. ― respondo.
O olhar do adepto endurece quando ele percebe o glif em minha
testa, as sete tranças em meu cabelo.
― Estamos prontos para reclamar a honra que o Conselho de
Syldra rendeu há muito tempo, garoto. Somos a morte com asas
negras e mataremos uma estrela neste dia. Este não é o lugar para
uma reunião de família.
Eu pressiono o botão Transmitir novamente, minha voz suave com
a ameaça.
― Arconte Caersan pode discordar de você, adepto.
Os olhos do adepto se estreitam, então lentamente se alargam
conforme a compreensão o afunda. Ele respira fundo, seu sibilo se
derrama sobre os lábios sem sangue.
― I’na Sai'nuit.
Eu pressiono o botão Transmitir, falo com uma voz tão cinza
quanto a Dobra ao nosso redor.
― Diga a meu pai que desejo falar com ele.

·····
Meu coração é um tambor de guerra, batendo contra minhas
costelas.
Estou a bordo da nave que ele enviou para mim, as mãos
cruzadas nas minhas costas, cercado por seis de seus paladinos. A
decoração da nave Syldrathi é preta, sua luz carmesim transformada
em cinza pela Dobra. Os guerreiros Inquebrados ao meu redor estão
vestidos com armaduras cerimoniais, me observando por baixo dos
cílios de prata. Ninguém é corajoso o suficiente para dar voz aos
seus pensamentos, mas na verdade ninguém precisa. Eu sinto.
Curiosidade. Ressentimento. Medo.
O filho perdido voltou.
Eu observo as telas dianteiras do ônibus espacial enquanto
avançamos pela armada do Inquebrado. A visão disso é inspiradora,
aterrorizante: a escala absoluta de tudo, as incontáveis naves
prontas para desencadear o caos em sua palavra. Ele impõe
respeito, meu pai. Seu próprio nome é o suficiente para causar medo
onde quer que seja falado. Um homem que estava preparado para
queimar seu próprio mundo natal em vez de sacrificar sua honra. Um
homem a quem o assassinato de bilhões era preferível a se render.
Lembro-me dele parado atrás de mim sob as árvores de lias. Sua
mão no meu ombro. Guiando meus golpes enquanto ele me ensinava
no Caminho das Ondas.
Posso senti-lo agora, se tentar.
Meu Inimigo Interior.
E então eu vejo.
Um vislumbre entre as formas crescentes de dois carregadores
maciços. Todo o alcance disso se desdobra conforme as naves
partem diante de nós como água. A respiração é arrancada. Eu me
sinto como um inseto na presença de um deus.
A Arma.
É a maior nave que já vi, estendendo-se por vinte quilômetros do
nariz à cauda e fazendo brinquedos infantis das naves mais
poderosas ao redor. Sua forma é vagamente cônica e uma série de
estruturas côncavas maciças está disposta no que presumo ser o
arco, como lentes enormes – assimétricas, misteriosas e totalmente
estranhas. É esculpida do mesmo cristal vivo que o Eshvaren usou no
Echo, e o arco-íris de luz brincando em todas as suas superfícies,
hipnótico, melódico, teria sido impressionante o suficiente se não
fosse pelo pensamento que de repente me ocorre:
Estamos na Dobra.
Tudo ao nosso redor deve ser monocromático. Tons de cinza
suaves. Mas a Arma Eshvaren é uma canção colorida, quase
comovente em sua beleza. Este é um dispositivo projetado para
destruir sóis, e ainda assim minha alma incha ao vê-la.
A guerra em meu sangue aumenta. Algo nele me chama,
estendendo a mão através do abismo entre nós, turvando, correndo,
fazendo meu pulso bater mais rápido, minhas pontas dos dedos
formigando. Um poder ao mesmo tempo estranho e familiar. Uma voz
que não ouço há anos e, no entanto, ouço todos os dias da minha
vida, ecoando agora na minha cabeça.
Kaliiiiiissssss.
Conforme a nave se aproxima da Arma, passamos por um campo
de algum tipo – vagamente brilhante, translúcido. A nave estremece
embaixo de mim. Os Paladinos ao meu redor balançam em seus pés,
e eu sinto uma inundação de... Poder em minha cabeça. Espesso
como xarope. Pesado como ferro. Desfocando meus olhos.
O ônibus espacial pousa em uma estranha baía de ancoragem,
estruturas cristalinas no teto e no chão, a paisagem colorida quase
cega em intensidade. Eu olho para os Paladinos ao meu lado, mas
eles permanecem em silêncio. Eles não têm portas – nenhuma
maneira de manter o frio aspirador do lado de fora. Mas os
guerreiros me levam até a eclusa de ar do ônibus espacial e, sem
hesitação, abrem o ciclo.
Nós não congelamos. Não sufocamos.
O comandante Paladino me encara com um olhar cinza.
― Não podemos ir mais longe, I’na Sai'nuit. ― ele me diz.
Eu saio para a baía, à superfície zumbindo sob meus pés. Não
sei dizer como, mas... Conheço o caminho. Desenhado como uma
agulha para o norte, caminho por caminhos sinuosos de cristal
cantante, sussurrando, vibrando com poder.
Sinto-me estranho. Todas as emoções dentro de mim parecem
mais altas. Eu vejo uma imagem de Aurora em pé com a mão
levantada a bordo da ponte do Zero, seu poder me atingindo no peito
quando ela me mandou parar. Eu ouço o veneno na voz de Scarlett
enquanto ela me amaldiçoava, me culpava, me batia. Eu sinto a dor
perplexa de Finian, a aquiescência silenciosa de Zila quando eles me
expulsam. Eu que lutei por eles. Sangrei por eles. Arrisquei tudo para
mantê-los seguros. Nenhum deles conseguiu entender o que
significava para mim entrar para a Legião, o quanto eu dei, o quanto
sofri, como é estar totalmente sozinho, mesmo em uma sala lotada.
Desde que minha mãe voltou para Syldra, eu nunca tive um
momento de paz. Banido entre meu próprio povo pelo glifo Warbreed
em minha testa, o sangue em minhas veias. Banido entre os cadetes
da academia como o antigo inimigo, o Garoto Fada, a aberração:
Lembre-se de Orion, lembre-se de Orion. Entre os membros do
Esquadrão 312, pensei ter encontrado um lar. Um lugar para
pertencer. Algo pelo qual vale a pena lutar.
Mas fui um idiota.
Eu deveria saber que a sombra do passado ficaria para sempre
entre nós. Não podemos negar quem e o que realmente somos.
E Aurora...
― Aurora. ― eu sussurro o nome, como se fosse veneno em meus
lábios. Empurrando os pensamentos dela de lado, a memória de
nosso tempo no Echo, as coisas que compartilhamos, trancando ela
e eles em um quarto dentro da minha cabeça e jogando fora a chave.
Eu não sou ninguém agora.
Eu sou apenas isso
O que sempre fui.
Não há uma alma nestes vastos e cintilantes salões. Nem um
único soldado, cientista ou servo. A nave inteira está vazia, exceto
por esse poder, familiar e desconhecido ao mesmo tempo. À medida
que desço pelo caminho de cristal, sinto catatonia, vertigem, clareza
perfeita. Meu pulso está acelerado, assíncrono, como uma batida
fora do tempo. Minha boca tem gosto de ferrugem.
Esta nave é enorme. Esses corredores parecem intermináveis.
Mas, eventualmente, os caminhos convergem, abrindo-se em uma
vasta câmara esférica.
O poder goteja do ar, vermelho e latejando na minha pele. As
paredes estão perdidas na sombra e meus olhos são atraídos para a
luz, às torres concêntricas de cristal no centro da sala, acesas e
radiantes. Um estrado em constante ascensão, erguendo-se do
chão, coroado por um enorme trono reluzente. Ramos de cristal se
estende do teto, das paredes, como as raízes de uma árvore se
esforçando para alcançar a água. Apertando os olhos, colocando
minha mão contra a luz do arco-íris, vejo uma figura sobre ela.
Ele está vestido com uma armadura preta com um colarinho alto,
e uma longa capa está enrolada em seus ombros, derramando-se
sobre os degraus abaixo dele em uma cauda carmesim. Seu cabelo
é brilhante como prata, tecido em dez tranças e envolto em ondas
longas e grossas sobre um lado do rosto. E esse rosto é tudo de
que me lembro e muito mais. Belo. Terrível. Irradiando uma
majestade sombria. Ele observa impassível, enquanto eu subo o
estrado, o poder ao meu redor se adensando, meus passos soando
ocos na vasta esfera de cristal, a gravidade dele me atraindo.
Puxando-me de volta.
Tudo é um ciclo. Um círculo sem fim.
Tudo levou a isso.
Eu estou diante dele.
― Pai. ― eu digo.
― Filho. ― ele responde.
E então, finalmente, eu me ajoelho.
33
TYLER

Kal...
Saedii apenas me encara. A revelação sobre seu irmão, seu pai –
quem e o que ele é – é quase demais para eu entender. Toda essa
conversa aconteceu na velocidade do pensamento. Passaram-se
talvez dez minutos desde que começou. Mas parece uma vida inteira.
Pensei em Kal como um amigo. Alguém em quem eu pudesse
confiar. Estável, forte e seguro. Mesmo quando fui arrancado do
time, era mais fácil lidar com isso – sabendo que ele estaria lá para
cuidar deles. Mas descobrir que ele é o filho do homem que matou
meu pai, que ele estava mentindo para nós o tempo todo...
Eu vou te seguir, irmão, ele me disse.
Um irmão...
Mas eu empurro a dor, a traição de lado. Concentrando-me no
problema, posso realmente fazer algo a respeito. A galáxia ainda
está no limiar da guerra. O TDF e o Inquebrado já podem estar se
despedaçando. Mas se tudo que Saedii acabou de me dizer for
verdade, se a Arma que o Starslayer usou para destruir o sol
Syldrathi...
Como você a chamou? eu pergunto a Saedii.
Meu pai a chamou de Neridaa, ela responde.
Eu balanço minha cabeça.
Meu Syldrathi não é tão polido quanto o de Scar.
Saedii zomba.
Suas botas são mais bem polidas do que seu Syldrathi.
Olho tristemente para as botas que recebi do cofre da Cidade
Esmeralda. Elas estão arranhadas, espancadas, manchadas de
sangue. Eu mataria por uma lata de esmalte, honestamente.
Uau, que insensível, moça.
Saedii levanta uma sobrancelha levemente. É incrível o quanto ela
pode embalar em um gesto simples como esse. Diversão. Desdém.
Arrogância. Superioridade presunçosa. Scar poderia ter aulas com
essa garota.
Neridaa é um conceito difícil de traduzir para a língua Terráquea
crua.
Vamos deixar minha língua Terráquea fora disso, certo?
A sobrancelha sobe ainda mais.
A palavra descreve... Paradoxo. Um estado de início e fim. O
ato de destruir e criar.
E você tem certeza de que esta nave é a Arma Eshvaren?
Eu sinto uma pequena lasca de medo, bem no fundo de sua
mente.
Não tenho certeza de nada. Meu pai segue seu próprio
conselho. E eu não estava presente quando ele descobriu a
primeira relíquia.
... Que relíquia? eu pergunto.
Algum tipo de sonda. Três anos atrás. Eu já era uma Templária
na época, servindo a bordo do Andarael. Lutando nossa guerra
contra os traidores do Conselho de Syldra. Mas fui alertada por
uma transmissão em pânico da nau capitânia de meu pai depois
que eles descobriram um objeto vagando na Dobra. Aparentemente,
meu pai tinha... Sonhado com isso. Ele disse à sua divisão de
ciências que isso o havia chamado. E quando o trouxeram a bordo,
ele o tocou e caiu imóvel no convés.
Saedii balança a cabeça.
Mandei seu corpo de cientistas serem jogados ao drakkan por
causa disso. Idiotas. O objeto que encontraram era um cristal.
Negando toda análise de sua estrutura. Meu pai estava deitado no
convés ao lado dele. Nada do que fizemos conseguiu despertá-lo.
Achei que tudo estava prestes a ser desfeito. Depois de tudo que
havíamos sacrificado, nosso Arconte tinha sido derrubado por um
encontro estranho com alguma antiga curiosidade no espaço
interdimensional? Pareceu um final cruel para nossa música.
Mas dezoito horas depois, meu pai acordou, como se tivesse
dormido profundamente. Estalando com algum novo poder. Quase
chorei de alívio. Perguntei o que tinha acontecido e ele me olhou
como se eu fosse uma estranha. Em seguida, ele comandou o leme
para traçar um novo curso. Uma fenda na Dobra, nos levando a um
mundo morto há muito tempo. E de lá para a Arma que venceu
nossa guerra, acabou com a traição do conselho de Syldra para
sempre, e escreveu seu nome, sangrento e belo, entre as estrelas.
Eu olho para Saedii, totalmente perplexo.
Você não perguntou a ele sobre isso? Nenhum de vocês se
perguntou como ele sabia que estava lá, ou levantou uma
sobrancelha que uma arma capaz de destruir sistemas estelares
inteiros havia sido deixada por aí? Você não se perguntou para que
era?
Saedii zomba.
Claro que nos perguntamos. Mas ele era nosso Arconte, Tyler
Jones. Nós, seus Templários, seus paladinos, seus adeptos. Leais
até a morte. A guerra civil Syldrathi estava ocorrendo desde o
ataque de Orion. E, finalmente, ele nos levou à vitória contra os
malditos e covardes que tanto nos envergonharam – os Weavers,
Watchers e Workers tão ansiosos para dobrar os joelhos e assinar
a maldita paz de seu pai.
Eu balanço minha cabeça.
A paz é uma coisa tão horrível?
É através do conflito que alcançamos a perfeição, Tyler Jones. A
lâmina fica cega quando dorme na bainha. Afiada quando
pressionada contra a pedra.
Saedii me encara com os olhos brilhando. Eu posso ver... Não,
sinto a convicção dela. A chama queimando em seu peito. A guerra
é mais do que um modo de vida para essa garota. É uma religião. E
o pior é que posso ver uma espécie de verdade no que ela diz – é
desafiando a nós mesmos que nos tornamos mais fortes, melhores,
mais.
Mas não é toda a verdade.
Não tenho medo de lutar, digo a ela. Mas sempre foi por alguma
coisa. Família. Fé. Criador, até a própria paz. Lutando por lutar–
Eu nasci para a guerra, Tyler Jones, ela me diz, aquelas
sobrancelhas perfeitas unidas em uma carranca perfeita. E se você é
digno do sangue Syldrathi dentro de você, é melhor familiarizar-se
com essa noção. Porque precisaremos abrir caminho para sair
desta nave se quisermos escapar. Devemos pintar esta nave de
vermelho.
Estamos dobrando. Tudo é preto e branco.
Seu rosto está amargo.
Ah. Esse maravilhoso sarcasmo Terráqueo.
Eu balanço minha cabeça, mandíbula cerrada.
Essas pessoas estão seguindo ordens. Eles são soldados
fazendo seu trabalho. O Ra’haam é o inimigo aqui. O GIA, não o
TDF.
Eles me torturaram.
Você assassinou seus amigos!
Isso é certo aos seus olhos?
Eu respiro fundo. Olhando para os hematomas em seu rosto. Ela
sabia como eu responderia a essa pergunta antes mesmo de
perguntar.
Não, não é. Mas meu pai me ensinou que, para ser um líder, é
preciso dar o exemplo. Para ser um líder, você precisa ser o tipo de
pessoa que deseja seguir.
Sim, ela sibila, sentando-se mais ereta. Um guerreiro. Invicto e
sem medo.
Não. Melhor. Precisamos ser melhores do que o inimigo contra
lutamos. O Ra’haam quer que nos despedacemos uns aos outros.
Ele nos quer na garganta um do outro. Tudo o que precisa fazer é
parar aqui. Para semear o caos e a confusão por tempo suficiente
para que eclodam daqueles mundos-sementes e então saiam para
a Dobra.
Saedii cruza os braços, tirando o cabelo dos olhos.
Não sei se meu pai entende o propósito da Arma que ele
reivindicou. Mas devemos sair desta nave e avisá-lo sobre este
inimigo maior. Nós estamos intactos. Não somos peões de
ninguém. Dizer que ele ficará aborrecido por ser manipulado é um
eufemismo.
Aborrecido o suficiente para explodir meu planeta, mesmo se
nós levarmos você de volta para ele?
Seu olhar se estreita com isso.
Se eu voltar, a Terra será poupada. Acredite em mim quando
digo, Tyler Jones, meu pai não deseja usar o Neridaa a menos que
seja necessário.
Ele parecia muito ansioso para usá-lo em Syldra.
Isso era uma questão de honra. Foi também à primeira vez que
ele liberou todo o potencial da Arma. Ele não terá pressa em fazê-lo
novamente.
... Por que não?
Saedii me encara, fria e calculista. Posso ver sua suspeita
lutando contra seu instinto. Ela sabe que temos que confiar um no
outro. E tudo isso é muito maior do que ela acreditava inicialmente.
Mas ainda assim, leva muito tempo antes que ela responda.
Meu pai pagou um preço quando usou a Arma, Tyler Jones.
Que preço?
Eu não estava com ele quando disparou... Ela balança a cabeça.
Mas mesmo a bordo do Andarael, a seis mil quilômetros da popa do
Neridaa, eu senti isso. Como se a essência estivesse sendo tirada
de mim como água em uma esponja. E meu pai estava no coração
da Arma quando ela foi desencadeada.
Você quer dizer que isso... Esgotou ele? Como uma bateria?
Ela apenas encolhe os ombros.
Demorou muitos ciclos para se recuperar.
Então ele não pode sair por aí atirando com essa coisa por
capricho. Você está dizendo que a ameaça dele de destruir a Terra
é apenas um blefe?
Ah não. Meu pai é um homem mais cruel do que nunca. Se eu
não voltar para ele, ele fará uma desolação em sua casa. Ele
tomou medidas para garantir que, da próxima vez que for forçado a
usar Neridaa, o esgotamento será reduzido. Uma bateria própria,
por assim dizer.
Por um momento, sinto um pequeno arrepio percorrê-la.
Mas ele não vai desperdiçá-lo a menos que seja forçado a isso.
Devo voltar para ele.
Eu inclino minha cabeça e encontro seus olhos.
Bem, você é tão estrategista quanto eu. Você vê alguma saída
desta cela? Pelo menos até a doca?
Quando os guardas entrarem para nos alimentar. Nós os
dominamos. Pegamos suas armas.
Isso pressupõe que eles vão nos alimentar, eu aponto.
Então vou fingir que meus ferimentos são piores do que são.
Seguro meu estômago. Desmaio. Quando eles enviarem pessoal
médico e segurança, nós atacamos.
Finja fraqueza, eu aceno. Sim, pensei nisso. Mas eles mandam
esses meninos em um pacote com seis, caso você tenha perdido.
Eu certamente não perdi, ela olha carrancuda.
Portanto, mesmo presumindo que derrotemos meia dúzia de
fuzileiros navais TDF totalmente armados e blindados, a câmera
acima da porta nos sinalizará assim que nós pularmos. A nave
inteira será bloqueada antes de sairmos deste nível.
Talvez você queira fazer uma sugestão em vez de criticar a
minha.
Ei, não seja ríspida comigo, mocinha.
O olhar furioso de Saedii fica quente o suficiente para queimar a
porta da cela.
Você se refere a todas as mulheres que deseja insultar como
“mocinha”, garoto?
Só aquelas que me chamam de “garoto”, mocinha.
Eu olho ao redor da cela, chupando meu lábio. Eu estudei naves
TDF desde que era criança. A boa notícia é que, se conseguirmos
sair desta cela, sei exatamente como descer para as baías de
pouso. A má notícia é que também sei exatamente como essas celas
são construídas e como elas são impossíveis de se libertar.
Eu lanço meus olhos sobre os destroços da bio cama que
esmaguei durante meu pequeno acesso de raiva. Meu olhar vagueia
para o sistema de irrigação acima. As minúsculas e estreitas grades
que conduzem aos sistemas de ventilação. Eu imagino planos, então
os descarto com a mesma rapidez.
Não temos nenhuma vantagem aqui.
Então? Saedii exige. Impressione-me.
Eu posso sentir estar ficando frustrado novamente. O
pensamento de tudo o que poderia estar acontecendo lá fora
enquanto estamos presos aqui está me tirando os trilhos. Sinto-me
desamparado. Sem utilidade. Eu respiro fundo, abrindo e fechando
meus punhos. Minha mente correndo. Eu sei que nenhuma cela de
prisão é perfeita. Não há problema que seja insolúvel. Em algum
lugar, de alguma forma, há uma chave a ser encontrada aqui. Eu só
preciso saber para onde olhar.
Você não está me impressionando, Tyler Jones.
Pare. Você esta partindo meu coração.
Eu poderia arrancá-lo de suas costelas e colocá-lo de volta no
lugar, se quiser?
Cale a boca e deixe-me pensar, está bem?
Saedii suspira e se levanta de sua cama. Erguendo os braços
acima da cabeça, os longos cabelos negros caindo em cascata pelas
costas, ela se estica como um gato e começa a andar pela cela,
apesar de seus ferimentos.
Isso não está ajudando, eu digo a ela.
Isso me ajuda a pensar.
Eu fecho meus olhos e suspiro.
Olha, eu entendo a seriedade de nossa situação, mas você
percebe que andar para cima e para baixo na minha frente de
calcinha pode não ser totalmente propício para a clareza de
pensamento?
Saedii me lança um olhar fulminante e chuta um grande pedaço
da bio-cama destruída em minha direção. Eu paro com o salto da
minha bota antes que possa bater nas minhas pernas.
Cresça, ela me diz.
Eu chuto os destroços para longe de mim.
“Crescer” é exatamente a situação que estou tentando evitar.
Saedii revira os olhos, dá mais uma volta na cela, então se vira e
afunda de volta em sua cama. Eu faço beicinho, olhando para os
destroços que ela chutou para mim, tirando os estilhaços de vidro da
sola da minha bota. Carrancudo com os novos arranhões no couro.
Pelo Criador, essas coisas realmente precisam de uma camada de
esmalte e um–
Clique.
Eu pisco e olho para a lente da câmera afastando meu olhar com
a mesma rapidez. Eu me movo para sentar de pernas cruzadas,
curvando-me para que o arco do meu ombro esconda meus pés da
câmera. Eu olho para as minhas botas novamente. Essas botas que
estavam esperando por mim naquele cofre da Cidade Esmeralda por
oito anos. Essas botas que o Almirante Adams e a Líder de Batalha
de Stoy queriam que eu tivesse. Lento quanto posso me mover, eu
me abaixo e pressiono a pequena rachadura que apareceu no
calcanhar.
Eu vejo um brilho metálico no compartimento escondido dentro.
Saedii percebe a mudança no meu humor. Cuidadosamente
desvia o olhar de mim enquanto sua voz desliza de volta para minha
cabeça.
O que é? ela pergunta.
Pela primeira vez em muito tempo, quase sorrio.
Algo impressionante, digo a ela.
34
ZILA

A frota do Starslayer é maior do que qualquer um de nós sonhou.


A paisagem em preto e branco da Dobra está repleta de naves
Syldrathi. Eles se aglomeram ao redor da boca do Portão da Dobra
que leva à Terra, cruzando os caminhos uns dos outros com apenas
alguns metros de sobra. Em algum lugar entre uma exibição
impecável de coreografia intrincada e um jogo de galinha6 do
tamanho de uma frota de batalha.
Chegamos ao limite do pelotão enquanto a frota continua a se
reunir, escondendo-se entre a enxurrada de chegadas tardias e
fazendo um balanço. Estou pilotando e Scarlett e Finian estão
amarrados em seus assentos nas estações auxiliares atrás de mim.
Aurora está ao meu lado como um cão pronto para a caça, quase
tremendo ao apontar na direção de sua presa.
Ela não é nada como era antes, seu olhar fixo na direção da
Arma, obscurecido apesar de seu tamanho por trás da massa de
naves que o Arconte comanda. É como se a Aurora que conhecemos
tivesse partido, deixando para trás sua concha para ser habitada por
este novo predador, para todos os fins.
Quando começo a abrir caminho pela frota, me pergunto se ela
ainda registra em sua mente que o homem de quem estamos nos
aproximando é o pai de Kal.
Kal, a quem ela amava.
De minha parte, aprendi minha lição há muito tempo. Abra seu
coração para qualquer pessoa e isso acabará mal. Eles vão traí-lo,
como fez Miriam, dispostos a trocar o paradeiro de uma criança de
seis anos por sua própria segurança. Ou eles vão deixar você, como
meus pais fizeram, incapazes de manter nossa família segura. Frio,
morto e deixado para trás, comigo jogada no sistema de assistência
governamental, sozinha como nunca tinha estado.
Abra seu coração para qualquer um, e eles o trairão ou o
abandonarão.
Cat, Tyler e Kaliis me ensinaram essa lição de novo.
Logo Aurora se juntará a eles.
Sei que seria melhor voltar ao meu estado anterior, mas... Apesar
de meus desejos, não sinto nada.
Parece que perdi o jeito.
Contorno a popa de um cruzador de batalha e atrás de mim
Scarlett murmura uma tradução de seu nome. “Belzhora. ‘Bebedor
de Sangue’”.
Há algo surreal, fantasmagórico, na frota da qual agora fazemos
parte. O silêncio é perfeito, quebrado apenas pelo zumbido suave
dos movimentos de nossa nave. Nunca encontrei tanto potencial
violento em um só lugar. Como uma mola em espiral esperando para
descarregar. Como um guerreiro esperando o primeiro piscar de seu
oponente.
― O que todos eles estão esperando? ― Fin pergunta.
― Talvez os Terráqueos ainda procurem negociar ― sugiro em voz
baixa.
― Eles estão prestes a ficar sem tempo no relógio de Caersan ―
responde Scarlett.
E então as naves do Inquebrado se separam, e nós vemos isso.
Uma maravilha reluzente em meio ao preto e branco apagado, um
arco-íris de cristal refratado e cores infinitas. Cor impossível. Isso
não deve ser visível na dobra.
― Parece que um lustre e um telescópio tiveram um bebê ― diz Fin,
tentando encontrar uma maneira de cortar a tensão cantante em
nossa pequena nave. Ele está assobiando no escuro, tentando
desafiar seu poder. Mas todos nós estamos olhando para a nave,
todos intimidados por ela, exceto Aurora. Isso quebra todas as
regras, irradia poder e nós sabemos disso.
A Arma.
Eu me forço a fazer uma observação prática.
― Há um perímetro claro em torno dela. Aproximar será difícil.
Seremos vistos.
Aurora muda seu peso ao meu lado.
― Isso não será um problema por muito tempo.
Até agora ela tem estado quieta, totalmente focada, mas agora
eu começo a ver aquele silêncio pelo que ele era – um fusível
queimando lentamente em direção aos explosivos que esperam por
seu fim. Ela estala com força, com intenção, com determinação
absoluta.
Não quero que ela esteja em nossa nave quando a faísca chegar
ao seu destino.
― Opções? ― pergunta Scarlett, inclinando-se para olhar a nave
com os olhos semicerrados.
― Duas ― responde Fin. ― Se precisarmos colocar Auri a bordo, ou
tornamos nossa abordagem menos óbvia ou criamos uma distração.
― Uma distração pode ser fatal ― eu aponto.
Há um breve silêncio. Esta missão será fatal de qualquer
maneira, todos nós sabemos disso. Mas o que quero dizer é que não
deve ser fatal cedo demais.
― Odeio sugerir isso ― começa Finian. ― Mas se esperarmos o
suficiente, eles vão pular para o sistema Terráqueo e teremos toda a
distração de que precisamos.
― Isso provavelmente resultará em uma perda massiva de vidas
Terráqueas e Syldrathi, uma vez que o TDF envolva a frota do
Inquebrado ― indico.
― Eu não disse que era um plano perfeito ― Finian dá de ombros.
― Eu não sou o cara da estratégia. Tenho uma profunda suspeita de
que só passei nas táticas do primeiro ano porque o instrutor não me
queria de volta à aula no próximo...
A piada de Finian se transforma em silêncio quando ele percebe o
que fez.
Deu-nos outro lembrete de que Tyler não está conosco.
Outro lembrete de tudo o que perdemos.
Scarlett endireita os ombros, a mandíbula cerrada.
― Podemos ouvir as comunicações do Inquebrado? ― ela pergunta.
Eu inclino minha cabeça.
― Isso exigirá a utilização dos códigos de login que o ancião nos
deu, mas se eles estiverem corretos, então sim.
― Faça isso ― Auri me instrui.
Eu me conecto a rede de comunicações do Inquebrado, digito os
códigos de acesso e tento manter minha respiração enquanto espero
para ver se eles serão aceitos. Um dedo de gelo desce pela minha
espinha, mas eu não falo. De repente, uma voz Syldrathi sai de
nossos alto-falantes.
Scarlett escuta por alguns instantes, com a testa franzida.
― Oh droga.
― Más notícias? ― Fin pergunta.
― Eles estão se preparando para atravessar o Portão da Dobra.
Uma ondulação passa pela frota à medida que ela se posiciona.
Um fechamento das lacunas entre as naves para que o Inquebrado
possa passar pelo Portão da Dobra em massa. Um fluxo
incomensurável e imparável.
Auri agarra as costas do meu assento com tanta força que ouço
a estrutura interna ranger.
― Aproxime-nos da Arma! Um pouco mais e eu posso chegar lá.
― Você quer caminhar no espaço, Clandestina? ― Fin pergunta. ―
Você tem metade do tamanho de um Syldrathi médio. Nenhum dos
trajes aqui–
― Eu não preciso de um traje. ― ela encontra meus olhos. ― Zila,
apenas me aproxime.
Eu olho para Scarlett, que acena com a cabeça, e então eu
obedeço.
Fin amaldiçoa, correndo em direção à popa da nave e à câmara
de descompressão, Aurora em seus calcanhares. Ela não se
despede.
Eu inclino a nave lateralmente, deslizo entre dois cruzadores
enormes e cada vez mais perto das refrações do arco-íris da Arma.
Atrás de mim, Scarlett põe a mão no meu ombro e aperta.
Acho que seu toque inesperadamente alivia a tensão dentro de
mim.
― Assim que atravessarmos o portão para o espaço Terráqueo ―
ela diz suavemente ― o TDF estará atirando em nós.
― Sim.
― Não podemos revidar. Não podemos lutar contra nosso próprio
povo.
― Farei o meu melhor para evitar o combate. ― o resto da frase
não é dita: por tanto tempo quanto possível.
Uma voz se espalha pela rede de comunicações do Inquebrado.
Profunda e musical. Uma voz que todos reconhecemos
imediatamente.
― De’na vosh, tellanai ― diz o Starslayer.
― ‘Não temam, meus filhos’ ― murmura Scarlett.
― De’na siir.
― ‘Não se arrependam’.
― Tur, si mai’lesh de’sai.
― ‘Hoje, nós queimamos nossa vergonha’.
― Turae, si aire’na aire no’suut.
― ‘Esta noite, dançaremos a dança do sangue’.
Com um flash de luz ofuscante, a frota do Inquebrado começa a
cair através do Portão da Dobra. Encouraçados e transportadores.
Onda após onda de cruzadores e destruidores, caças e drones.
Finalmente, a própria Arma desaparece diante de nossos olhos. Eu
me preparo, engato nossos propulsores e, um momento depois,
também passamos por ele, com uma onda de sensação que sinto
em todos os poros.
Emergimos no caos absoluto da batalha, mísseis e projéteis
passando por nós, a frota do Inquebrado se espalhando para
enfrentar os defensores Terráqueos. As naves estão girando e
rodopiando, esquivando-se e dando cambalhotas, explodindo
silenciosamente e voando em pedaços ao nosso redor. As instruções
de Syldrathi são disparadas e gritadas nos comunicadores,
transmitindo através de nossa ponte, rápido demais para eu seguir.
― Puta merda! ― Scarlett chora.
A frota do Inquebrado se divide em caças, espalhando-se por um
amplo perímetro, iluminando a escuridão em chamas. Apesar dos
feeds de notícias contestando a existência da super arma do inimigo,
parece que o Comando TDF está levando a alegação a sério; uma
falange de naves Terráqueas está jogando tudo que pode contra a
parede das naves Syldrathi, na esperança de abrir caminho através
das defesas do Inquebrado.
― Esses são Betraskan ― sussurra Scarlett, apontando para os
nossos telescópios.
É verdade – entre os cascos de nariz arrebitado da frota
Terráquea, podemos ver as formas suaves em forma de besouro dos
destroieres e naves de guerra Betraskan, travados em combate com
a força do Inquebrado. Parece que os aliados da Terra mantiveram
sua palavra, avançando em defesa dela. Meu coração bate
levemente quando percebo que estamos vendo os primeiros planos
do que pode se tornar a primeira guerra galáctica verdadeira. Eu
faço o meu melhor para ignorar, mas a resposta biológica à visão é
forte.
Naves explodem ao nosso redor em silêncio absoluto. A cabine é
uma cacofonia de alarmes gritando e avisos do computador de voo,
Scarlett gritando conselhos desnecessários e o barulho de nossos
motores, e entre tudo isso me sinto tão pequena, tão insignificante,
que me pergunto o que estou fazendo aqui. Eu voo o melhor que
posso, mas sei que meu melhor não será o suficiente por muito mais
tempo, minhas juntas brancas em meus controles. Eu olho para o
dragão de pelúcia dobrado acima da minha cadeira. Shamrock me
observa com olhos redondos, supervisionando na ausência de Cat.
Queria que você estivesse aqui.
Então, como se a própria Cat tivesse me dado isso, vejo meu
momento. Os porta-aviões que protegem a Arma soltaram seus asas
de caça, movendo-se para interceptar uma tempestade de
cruzadores TDF que se aproximam. Eu empurro meus controles,
ziguezagueando sob a barriga de um encouraçado do Inquebrado
cheio de armas. Por um breve momento, não há nada entre nós e a
Arma. Ao passar por perto, girando em uma espiral entre uma rajada
de tiros de canhão, uma luz no meu console pisca – um alarme me
avisa que a câmara de descompressão traseira foi aberta.
Sete batimentos cardíacos depois, ela fecha novamente.
― Boa sorte, Auri ― murmura Scarlett.
Uma rajada de mísseis de uma nave TDF corta nossa proa, e eu
ataco instintivamente os controles para fazer uma ação evasiva.
Enquanto me afasto da Arma reluzente, de volta ao caos mais
amplo, minha visão parece se ampliar. A batalha fica cada vez maior,
até que estou captando um oceano de naves com milhares de fortes,
que se estende até onde posso ver.
Não consigo ver Aurora de jeito nenhum.
Respiro profundo e lentamente e afrouxo o controle sobre o
console, obrigando-me a me concentrar na tarefa à frente – vivendo
o suficiente para prestar a Aurora qualquer ajuda que pudermos. Por
menor que esteja me sentindo, honestamente não tenho ideia se será
o suficiente.
Mas no final, o que mais posso fazer?
― Scarlett, segure-se.
35
AURI

Leva apenas o menor canto da minha mente para manter uma


bolha de ar e pressão ao meu redor. Apenas a menor fração do meu
Eu para me impulsionar através do vazio gelado do espaço em
direção à Arma. À minha volta, mil naves giram em uma dança de
morte e destruição, mas para mim, o tempo fica mais lento. Eu vejo
cada movimento antes que eles o façam. Eu conheço seus destinos
antes de serem selados.
E estou chegando cada vez mais perto do meu destino.
Para o meu destino.
Eu voo através de um campo brilhante e translúcido enquanto me
aproximo da Arma, e com seu toque sinto a energia do Eshvaren. Os
criadores da coisa que paira diante de mim, radiante no escuro. Há
uma familiaridade instantânea sobre essa sensação, como um velho
amigo pegando minha mão. Por um momento, estou diante de Esh
mais uma vez, dentro do Echo, ouvindo aquela instrução simples.
Seus únicos obstáculos são aqueles que você coloca à sua
frente.
Você deve deixá-los ir.
Foco.
E eu faço.
O homem que me espera dentro da Arma saberá que estou aqui.
Estou certa disso. Mas não sinto medo, nem hesitação. Apenas
certeza sobre o que devo fazer.
Eu queimei meus amores e meus laços.
Nada resta além do meu propósito.
A baía de atracação é como uma enorme caverna cristalina,
cintilante e intensa. Está completamente vazia enquanto eu voo para
dentro. Sento-me no chão e, no instante em que me conecto a
estrutura de cristal ao meu redor, estou em casa, encaixando no
lugar, uma parte integrante desta vasta refração de arco-íris, o
poder cantando através dela e dentro de mim.
Eu conheço o homem a que vim encontrar em seu centro, e é
nessa direção que caminho. Os caminhos parecem quase sem rumo,
torcendo-se uns sobre os outros, subindo e descendo. Mas eu sou
paciente enquanto ando neles. Eu sinto a maneira como eles
canalizam a energia deste lugar, focalizam seu poder e o meu, e me
deleito com a sensação dele fluindo sob meus pés.
Eu me agacho para desamarrar minhas botas, tirar minhas meias,
abandonando-as atrás de mim enquanto continuo, descalça. Estou
conectada com a superfície ao meu redor inteiramente, totalmente. A
Arma Eshvaren canta para mim. Em mim. Através de mim. Eu sou
parte deste lugar. Como se eu sempre tivesse que estar aqui. Eu sou
o Gatilho e o Gatilho sou eu.
E então eu não estou surpresa quando o encontro parado à
minha frente em uma encruzilhada.
Kal.
Ele está vestido com o preto do Inquebrado e está ereto e alto,
tão bonito e desafiador quanto da primeira vez que o vi. Ele era
apenas uma visão então, aparecendo em meu quarto na Academia
Aurora antes que eu soubesse que os Syldrathi existiam. Agora, com
a mesma elevação arrogante do queixo, ele me cumprimenta.
― Você não deveria ter vindo. ― ele diz calmamente.
― Você sabia que eu viria.
― Você não entende o que enfrenta, Aurora.
― Não, Kal ― eu revido. ― Você não entende. O que eu sou. O que
eu me tornei.
― O que eles fizeram com você.
― Eles estavam tentando salvar a galáxia, Kal. Eles estavam
tentando fazer o que é certo.
― Você não compreende ― Kal diz, seus olhos assombrados
enquanto ele olha para o corredor. ― Mas temo que você logo
entenda. Ele vai te mostrar.
Meus lábios se curvam. Aqueles lábios que não estava a muito
tempo pressionados contra os dele.
― Então você é discípulo dele agora também? ― eu pergunto. ―
Assim como o resto deles?
― Eu não queria isso, Aurora. Eu não queria que nada disso
acontecesse. Eu te amei.
― Você não pode construir amor com uma mentira, Kal.
― Olhe em meu coração, então. Diga-me o que você sente.
Eu me estico. Um momento. Mesmo aqui, mesmo agora, não
consigo evitar. Sinto um toque de ouro familiar, uma dica de quem e
o que éramos. Eu o corto com um aceno de minha mão.
― Você sentiu engano ou devoção? ― ele pergunta.
―... Ambos ― eu percebo.
― Apenas um deles é para você, Aurora.
― Só... ― eu olho para ele de cima a baixo, então balanço minha
cabeça. Pegando tudo o que ele significava para mim, embrulhando
bem e com um esforço consciente de queimá-lo mais uma vez. ― Se
você veio me levar até ele, faça isso, Kal.
Ele franze a testa para mim. Ombros ajustados, mandíbula
cerrada com força. Eu posso sentir isso então. Dentro dele. A
sombra sobre a qual ele falou. Seu Inimigo Interior.
E eu sei, apenas naquele corredor, ele espera por mim.
― Siga ― diz Kal.
Caminhamos pelos lindos caminhos de cristal, ele na frente e eu
atrás. O poder cresce ao meu redor agora, pressionando minha
pele, meu crânio.
A parte de mim que dói, que quer, que deseja poder segurar a
mão de Kal enquanto caminho em direção à luz, está em silêncio. A
parte de mim que lamenta, que deseja que isso pudesse ter
acontecido de outra maneira, se foi. Há apenas o poder agora, a
coisa que eles me fizeram ser, essa garota que vai salvar a galáxia,
enquanto segue o garoto que ela pensou que amava pelo caminho
cintilante e finalmente, finalmente, para o coração da nave.
É lindo. Perfeito. Uma câmara esférica enorme, suas paredes
quase perdidas na sombra, curvando-se para cima e para fora da
base e depois para dentro novamente para se encontrar em seu
ápice. Elevado desse ponto mais baixo, em espirais de cristal, está
um trono – enorme e recortado, brilhando com todas as cores do
arco-íris.
Este é o centro da Arma, o centro de tudo, e toda a sala parece
se esticar em direção a ela. Cacos de cristal emergem das paredes
da câmara, todos voltados para dentro como mãos que se agarram,
como se para reivindicar aquele que está sentado no topo daquele
trono, ou talvez para lhe oferecer uma homenagem.
Vejo Kal em seu rosto – as maçãs do rosto familiares, o queixo
erguido, o arco arrogante de uma sobrancelha. Ele está vestindo
uma armadura preta de colarinho alto e uma capa vermelha-sangue
que desce as escadas que conduzem ao seu trono. Suas tranças
prateadas cobrem metade de seu rosto e um lado de sua boca está
enrolado no mais ínfimo dos sorrisos.
Arconte Caersan.
Starslayer.
Pai do menino que eu amava.
Gatilho do Eshvaren.
Traidor do Eshvaren.
Kal recua para ficar contra a parede curva enquanto eu procuro
por palavras que irão testar seu pai, cutucá-lo um pouco, para ver o
que ele faz.
― Isso ― digo a ele ― é uma fantasia muito dramática. Onde você
compra uma capa assim? Ou você a encomendou?
Ele não responde. Mas ele se levanta e lentamente desce as
escadas em minha direção, a capa se espalhando atrás dele. Tenho
que admitir, é impressionante. Ele não fala nada até estar diante de
mim, elevando-se sobre mim, a apenas alguns metros de distância.
Ele leva seu tempo, olhando-me de cima a baixo como se estivesse
me medindo e me achando desejoso.
― Eu pensei ― diz ele finalmente, sua voz linda, musical, totalmente
hipnotizante ― que você seria mais alta.
― Desculpe desapontar. ― eu respondo, sem fazer nenhum esforço
para me endireitar. Eu sou o que sou, e isso é pequeno,
especialmente em comparação com um Syldrathi.
― Eu estive esperando por você. ― ele continua. ― Eu senti você
acordar.
― E agora estou aqui. E eu sei o que tenho que fazer.
Ele levanta uma sobrancelha prateada.
― Entregar-se à causa dos Eshvaren?
― Derrotar o Ra’haam ― eu o corrijo. ― Salvar milhares de mundos.
― Protegendo seu playground ― ele reflete. ― E as bonecas que
eles fizeram para morar lá.
Eu pisco para ele.
― O que isso deveria significar?
― Você não sabe ― diz ele ― o que você é.
― Eu sei que sou a garota que vai fazer o que você falhou.
― Falhei? ― ele sorri. ― Tudo que eu deixei de fazer foi me ajoelhar
como eles desejavam.
― Os Eshvaren fizeram de você o que você é. Eles deram a você
esse poder para salvar a galáxia, e você o usou para matar bilhões.
― É nisso que você acredita? ― ele pergunta, seu sorriso fino. ―
Que eles desejam salvar a galáxia? Que eles realmente se importam
conosco? ― ele bufa uma respiração suave e zombeteira. ― Nós
somos coisas para eles, criança. Meras ferramentas. Eles nos
criaram.
― É claro que eles nos criaram ― repito, sem rodeios. ― Eles nos
criaram para defender o–
― Não nós ― ele sibila. ― Não você e eu. Todos nós.
Ele aponta para o lado de fora, para a batalha que posso sentir
sendo travada até agora.
― Tudo ao seu redor – cada raça, cada indivíduo, desde o mais
velho grisalho até o bebê mais jovem. Todos nós fomos criados pelos
Eshvaren na esperança de que entre esses bilhões, eles possam
encontrar um para continuar sua luta contra o Ra'haam. Uma
embarcação capaz de se vingar da raça que os venceu. ― seus
lábios se curvam em um sorriso quase conspiratório. ― Os Eshvaren
não são os modelos nobres que eles querem que você acredite. Não
mártires abnegados que deram suas vidas por nós. Eles são
demônios. Demônios que seriam deuses.
Eu zombo.
― Eu devo acreditar nisso?
Ele balança a cabeça um pouco, como se eu fosse um aluno
ligeiramente estúpido.
― Você nunca se perguntou por que todos nós nos parecemos?
Pense, criança. Cada raça na galáxia. Todos nós temos dois pés.
Respiramos o mesmo ar. Falamos línguas que os outros possam
compreender. A chance de centenas de raças evoluindo em padrões
semelhantes em uma linha do tempo e distância tão vasta é
inexistente. ― ele cruza os braços e faz uma careta. ― Os Eshvaren
semearam a galáxia à sua própria imagem. Somos um vírus em uma
placa de Petri para eles. Não melhor do que insetos.
As palavras reverberam em minha mente, enviando arrepios por
cada parte de mim. Já ouvi Tyler e Fin falarem sobre a United Faith.
A religião que cresceu entre as raças galácticas para explicar essas
semelhanças.
Eu olho para Kal, pressionado contra a parede da câmara.
― Mas... O Criador ― eu digo.
O Starslayer balança a cabeça.
― Não é um Criador, criança ― diz ele. ― Criadores.
A palavra me sacode, gelando meu sangue.
― Os Eshvaren são nossos titereiros7 ― diz Caersan, com o olho
violeta brilhando. ― E nós seus fantoches. Imagine a arrogância
necessária para semear vida à sua própria imagem em centenas de
mundos. Tudo por causa de alguma vingança mesquinha? ― ele
aponta para a Arma ao nosso redor, os arco-íris dançando no cristal.
― Essa é a piada, Aurora Jie-Lin O’Malley. Isso é tudo o que somos.
Não existem deuses. Não existe um grande projeto. Nenhum
propósito, além da última facada desesperada de um império caído.
Uma loteria de um milhão de anos e incontáveis vidas, para uma
última chance de vingança.
O pensamento é quase demais para eu assimilar. Mas pelo poder
que nos une, nos vincula, sei que Caersan não está mentindo. Todas
as religiões de todos os mundos, todas as histórias da criação, todas
as crenças de como e por que isso começou...
E realmente, foi o Eshvaren que fez todos?
É uma pedra no meu peito. Uma mão fria apertando minhas
entranhas. Eu me pergunto o que Finian pensaria se soubesse. O
que Tyler diria se eu contasse a ele.
Criadores...
Mas então eu empurro o pensamento, o peso disso e deles, de
lado. Eu forço minha atenção de volta para Caersan enquanto ele me
olha de cima a baixo e zomba.
― Você não é nada para os Eshvaren. E ainda assim, você morreria
por eles?
― Claro que sim ― digo. ― Não importa o que você diga, o
Ra’haam ainda quer consumir toda a galáxia e todos os seres vivos
nela. Pedir apenas mais uma vida para parar parece um preço
pequeno o suficiente para mim. ― eu olho para ele, sem pressa. ―
É uma pena que você tenha sido covarde demais para pagar.
Por apenas um milissegundo, vejo raiva em seu olhar.
Interessante.
― Eu era forte o suficiente para forjar meu próprio destino ― ele
responde friamente. ― Para sair do caminho que meus supostos
mestres estabeleceram para mim.
Eu bufo.
― E sua ideia de força era destruir seu próprio mundo natal? Para
matar bilhões de seu povo?
Com o canto do olho, vejo Kal mudar de posição.
Seu pai simplesmente dá de ombros.
― Você fala como se o esforço me custasse algo. Mas todas as
minhas gravatas há muito foram queimadas. Assim como eles nos
ensinaram.
Queime tudo.
Faz sentido, suponho. Se Caersan cortasse todos os seus laços
– família, amor, honra, lealdade – mas não os substituísse pela
devoção para destruir o Ra'haam, o que sobraria? Apenas uma
concha vazia, com todos os poderes do Gatilho.
Mas de alguma forma, não tenho certeza se isso está certo. Há
algo em seu olhar – aquele lampejo de temperamento que veio à
superfície como um peixe prateado e depois desapareceu – que me
diz que tudo o que ele queimou começou a voltar lentamente.
Que talvez eu seja mais forte.
Eu o ataco com uma onda de puro poder, rápida como um estalo
de chicote. Ele tropeça um passo para trás, então se endireita,
irradiando desdém.
― O que foi isso, criança?
― Só um olá ― eu respondo, tão docemente quanto eu sei.
Caersan revida, mas instantaneamente, instintivamente, eu
levanto minhas mãos. Minha energia é azul meia-noite, atravessada
por fios prateados, como nebulosas, como a luz das estrelas. A dele
é de um vermelho escuro e empoeirado, como sangue seco, com
fios de ouro antigo. Há uma profundidade nisso, uma riqueza e um
poder que eu acharia assustador se ainda fosse eu.
Mas eu não sou. Os Eshvaren cuidaram disso, e agora eu por
quê.
Ele vem para cima de mim novamente, liberando seu poder como
uma cobra atacando, e eu o encontro, segurando a linha. Azul meia-
noite e profundo e castanho-avermelhado se entrelaça entre nós,
cada um tentando sufocar o outro. Eu me inclino para o meu poder,
impassível, sabendo que sua paixão o comprometerá. Saber meu
propósito vai me levar.
Eu o ataco de novo, o mais forte que posso, um estalo de força
psíquica como um tapa em seu rosto. A cabeça de Caersan vira
para um lado, um pequeno corte se abre naquela bochecha perfeita.
As tranças prateadas que ele mantém penduradas em um lado do
rosto são jogadas de lado, mostrando-me o olho que estava
escondido do resto da galáxia.
E, claro, como o meu, brilha em branco puro.
Mas ao redor daquele olho brilhante, posso ver cicatrizes
esculpidas nas feições de Caersan, como rachaduras em um antigo
leito de rio. O lado direito de seu rosto está murcho, velho, como se
toda a vida tivesse sido sugada para fora dele. O brilho de seus
olhos se derrama pelas rachaduras em sua bochecha enquanto ele
me encara, arrastando suas tranças de volta sobre o rosto como se
estivesse com vergonha. Ele olha para a Arma ao nosso redor, as
lanças de cristal apontadas para o trono em seu centro.
― Então agora você vê. O que me custou usá-la. E o que isso vai
custar a você. ― seus dentes pontudos estão à mostra enquanto ele
rosna. ― Eles concederam esse poder a nós, com a intenção de que
essa coisa o arrancasse de nós novamente. Para nos desmontar
pedaço por pedaço. Nenhuma bela morte. Nenhum sacrifício final.
Eles pretendiam que morrêssemos em fragmentos. Vinte e dois
planetas para destruirmos, vinte e dois fragmentos de nossas almas
para serem arrancados de nós um por um e alimentados para sua
máquina de vingança.
Até mesmo o pensamento é suficiente para me fazer recuar.
Posso sentir a memória dentro dele, reverberando ao longo do
vínculo entre nós. Posso sentir apenas uma sugestão da dor que ele
sentiu ao disparar a Arma, e mesmo isso é quase opressor. Mas,
dado o que ele costumava fazer, sei que ele também merecia.
Ele levanta as mãos, seu poder rolando no espaço entre nós. A
Arma treme quando eu o forço a recuar, suas botas derrapando no
cristal. Enquanto o poder aumenta ao nosso redor novamente, caindo
em cascata sobre nós em ondas de azul e vermelho, o homem bonito
e poderoso diante de mim dá um passo relutante para trás. Eu
empurro para fora, batendo nele com tudo o que tenho, e ele
cambaleia com um grunhido de esforço. Sua elegância está se
desintegrando, sua postura está enfraquecendo e ele se inclina para
frente como um homem lutando contra o vento, aquelas tranças
prateadas chicoteando atrás dele. O azul meia-noite gira em torno de
mim em uma tempestade crescente, trovejando enquanto endurece
minha voz.
― Você corrompeu o dom que recebemos, Caersan. Você escolheu
anos de poder para si mesmo, preso em uma galáxia moribunda, ao
longo de milênios de vida para centenas de espécies.
Meu poder colide com ele enquanto convoco tudo o que tenho. A
minha força, o poder dentro de mim, puro e desimpedido, o atinge
como um maremoto. Ele se debate, cai no chão e voa de volta para
a parede, batendo no cristal com um estalo estrondoso. Eu bato nele
de novo, de novo, de novo, enquanto uma linha minúscula de sangue
roxo escorre de seu nariz e desce sobre seu lábio. Meu azul meia-
noite começa a consumir o sangue antigo com o qual luta, cercando-
o, prata se torcendo sobre ouro. E, finalmente, ele cai no convés.
― Uma vida não é muito para pagar ― digo a ele. Dou mais um
passo em direção a ele, banhada pela brilhante meia-noite. ― Nem
duas, Starslayer.
Ele olha para mim então, as tranças em volta do rosto, e vejo o
orgulho e o ódio estalando em seu olhar. Eu sinto seu poder crescer
e me forço a me concentrar, para mantê-lo firme. Kal dá um passo à
frente na tempestade, gritando por cima do rugido.
― AURORA!
Mas eu o ignoro, meus olhos fixos em seu pai.
― Eu posso sentir isso ― eu digo a ele. ― O que você perdeu
quando disparou.
Caersan fecha os punhos, o ar crepita.
― O que eles tiraram de mim.
― E, uma vez que acabar, acabou para sempre.
― Sim.
Eu sorrio com isso.
― O que significa que você é menos do que era, Starslayer. ― eu
alcanço dentro de mim, pronta para terminar. ― Menos que eu.
― Talvez ― ele sussurra. ― Mas você não está prestando contas de
uma coisa.
Há uma oscilação repentina em sua presença que eu não gosto,
que me deixa desconfiada.
― E o que é isso?
― Que eu não estou sozinho.
Seu poder flameja, como um sol nascendo no horizonte, e o
cristal nas paredes ao nosso redor responde, iluminando-se por
dentro.
É quando eu os vejo, não mais escondidos nas sombras, mas
iluminados por trás por uma luz vermelho-sangue. Fileiras e mais
fileiras de Syldrathi, centenas deles, estão presos às paredes da
câmara acima de mim por alguma força invisível. Seus olhos fixam o
nada, as mãos estendidas para os lados.
― Filho da mãe. ― eu respiro.
Os glifos em suas sobrancelhas me dizem que eles são
Waywalkers. Todos eles. E um arrepio passa por mim quando eu de
repente percebo por que os Inquebrados os têm caçado pela
galáxia.
Cada Waywalker grita, flexionando os dedos, o rosto contorcido.
O fluxo repentino de seu poder em Caersan é como ser pego por
uma onda, caindo de ponta a ponta até que não haja nada a fazer a
não ser prender a respiração, os pulmões estourando, lutando para
durar mais um segundo, rezando para quem está ouvindo o ar.
Seus olhos – tão parecidos com os de seu filho – fixam-se nos
meus enquanto ele fala novamente.
― Eu sou um guerreiro nascido. Eu esculpi meu nome com sangue
entre as estrelas enquanto você dormia em seu berço. Eu sou
Warbreed. Eu estou intacto. Eu sou um comedor de mundos e
matador de sóis. Não sou menos do que era antes, criança. Eu sou
mais.
Ele se levanta lentamente, os braços estendidos. O poder ao
redor dele dobra, triplica, uma tempestade psíquica de ouro
vermelho sangue e reluzente. A câmara ao nosso redor, a Arma
inteira, treme, os gritos daqueles Waywalkers enchendo minha
mente.
E eu percebo com horror arrepiante que ele está se contendo.
― Você me deu o seu melhor, pequena Terráquea. ― diz ele.
Lentamente, o Starslayer fecha os punhos. ― Agora vou te dar o
meu.
36
TYLER

É chamado de gremlin.
Nos pôsteres Terráqueos de propaganda de guerra que estudei
para história do conflito no quarto ano, gremlins eram descritos como
humanoides minúsculos e maliciosos com orelhas pontudas e garras.
Mas era basicamente uma forma de os pilotos manterem o moral
elevado. As falhas de equipamento eram atribuídas aos gremlins,
então os pilotos evitavam apontar o dedo às tripulações de que
dependiam para mantê-los vivos, e a guerra foi vencida.
Hoje em dia, gremlin é um apelido para qualquer número de
dispositivos contra eletrônicos portáteis – assassinos de sinal,
bloqueadores de rede ou, no caso do milagre que acabei de
descobrir no salto da minha bota, geradores de pulso
eletromagnético.
Como eles poderiam saber?
Eu olho para Saedii, que parece estar me ignorando para o
benefício da câmera acima da porta da nossa cela. Mas ela teve um
vislumbre do gremlin no meu calcanhar, e por mais afiada que seja,
ela sabe exatamente o que isso pode fazer por nossa situação.
Aqueles que deixaram isso para você, ela continua. Como eles
poderiam saber?
Eu não tenho ideia, eu admito.
Como os fuzileiros navais Terráqueos não descobriram?
Certamente eles escanearam você!
O calcanhar parece protegido. Quem quer que tenha colocado
isso aqui sabia que eu precisava escondê-lo.
Como? Saedii exige. Como isso é possível?
Não importa. Precisamos sair daqui. Não sei para onde estamos
indo, mas literalmente não há nenhum lugar que o Ra’haam possa
ter escolhido que seja uma boa notícia para nós. E o Inquebrado e o
TDF provavelmente estão se despedaçando agora.
Ela olha na minha direção por um breve momento.
Então estaremos em guerra mais uma vez, pequeno Terráqueo.
Você pode arrancar meus olhos mais tarde, certo? Pela
aparência deste gremlin, tem um alcance decente. Mas os
encouraçados TDF são enormes. Quando o pulso disparar,
precisamos nos mover rápido. Vá para as baias de lançamento e
saia desta nave. Portanto, esteja pronta.
Saedii zomba.
Ela provavelmente está sempre pronta para o combate e meu
aviso é um pouco insultuoso. Apesar da punição que sofreu, Saedii
irradia uma vontade fria de aço, seus olhos se estreitaram e
focaram. Curvando-me para esconder minhas botas da câmera,
deslizo minha mão para o gremlin, rezando ao Criador para que,
apesar de toda a punição que apliquei nessas botas nos últimos dias,
de alguma forma ainda funcione.
Meu dedo encontra o pino de ativação. Eu encontro os olhos de
Saedii.
Vá.
Eu pressiono o botão. Sinto uma leve vibração na minha bota, um
zumbido no limite da audição. E então todas as luzes da cela
morrem.
A câmera morre.
A fechadura magnética morre.
Saedii está de pé em um piscar de olhos. A iluminação de
emergência foi desligada – cada dispositivo eletrônico ao nosso
redor que não é blindado é basicamente um peso de papel agora.
Sem as luzes, está quase escuro como breu aqui, mas eu tenho uma
vaga impressão dela enquanto ela agarra os destroços da bio cama
que eu quebrei e o encrava no batente da porta. Eu pulo ficando de
pé, agarro a estrutura retorcida de metal e lhe dou uma mão. Nós
nos inclinamos para ela, Saedii em silêncio, eu grunhindo baixinho
com o esforço. Mas, entre nós dois, abrimos a porta da cela em
alguns segundos.
O corredor lá fora também está quase escuro, todos os terminais
fritos. Mas, como eu disse, estudo as naves Terráqueas desde
criança e, apesar do breu ao nosso redor, sei exatamente para onde
precisamos ir.
Eu estendo a mão no escuro e pego a de Saedii.
Ela imediatamente a puxa para longe de mim.
― Eu não te dei permissão para me tocar, Tyler Jones ― ela rosna.
― Faça de novo por sua conta e risco.
Eu a encaro na escuridão, mas não consigo ver seu rosto.
― Bem, que tal isso ― eu estalo de volta para ela. ― Eu dou
permissão para você me tocar. Eu conheço o layout desta nave
como sei meu próprio nome. Então você pode tropeçar no escuro
sozinha, ou podemos colocar o cinto de segurança e correr. ― eu
estendo minha mão no escuro. ― A senhorita pode escolher.
O silêncio se estende entre nós, quebrado apenas pelo barulho
dos motores dobráveis. Alarmes crescentes. Botas de corrida. Vejo
miras a laser cortando a escuridão no final do nosso corredor. Eu
posso ver a silhueta de Saedii agora, curvas pretas contra a luz
distante.
Ela respira fundo.
Ela pressiona sua mão na minha.
E, de mãos dadas, corremos para a escuridão.

·····
Oito minutos depois, Saedii e eu estamos em um almoxarifado,
tentando ignorar um ao outro enquanto nos despimos até ficarmos
inomináveis.
O espaço é pequeno e a iluminação é fraca, fornecida por uma
lanterna pendurada sob o cano de um rifle disruptor. O dono do rifle,
junto com um alto camarada, está no armário de suprimentos do
outro lado do corredor, sem os uniformes que roubamos. Abordamos
os dois fuzileiros navais no meio de sua varredura de segurança,
dominando-os antes que pudessem disparar. O elemento surpresa
ajudou. Ter uma mestra do Aen Suun lutando ao meu lado também
não doeu muito. Os dois fuzileiros navais foram espancados até
chegarem a poucos centímetros de suas vidas – se eu não estivesse
lá para impedi-la, Saedii os teria vencido até o fim.
― Mantenha seus olhos em você mesmo, Terráqueo ― ela me avisa
baixinho. ― Ou eu vou arrancá-los.
― Estamos em uma situação de vida ou morte aqui. Acho que posso
manter minha mente no trabalho. ― eu fixo meus olhos nas minhas
botas enquanto as tiro. ― Além disso, eu já vi sutiãs antes e,
acredite em mim, o seu não é tão espetacular.
Ela faz uma pausa no meio do caminho para inspecionar o colete
tático feminino da marinha.
― Eu visto as roupas de uma Templária do Inquebrado, garoto. Elas
não foram feitas para serem espetaculares.
― Bem, ― eu digo, desabotoando minha calça. ― Elas estão tendo
um sucesso admirável.
Sua carranca é quase o suficiente para queimar um buraco no
meu peito. Eu faço o meu melhor para ignorar isso e ela. E eu estou
com a minha boxer, e ela está vestindo muito pouco no estilo das
vestimentas dos Templários do Inquebrado, quando a primeira
explosão atinge a nave.
Forte.
Saedii agarra uma prateleira de suprimentos para se equilibrar,
mas eu sou muito lento. Jogado através do armário como um
brinquedo de criança, eu bato bem nela. Ela cospe uma palavra que
sei que tem uma tradução de cinco letras em Terráqueo, e ambos
caímos no chão. Eu me encontro de costas, Saedii deitada em cima
de mim, seus longos cabelos negros caindo em torno de nós, nossos
rostos apenas alguns centímetros de distância.
― O que era–
― Silêncio! ― ela sibila, com a cabeça inclinada.
Ficamos deitados ali por alguns momentos, e pelo Criador, estou
realmente tentando ignorar isso, mas há dois metros de princesa
guerreira Syldrathi deitada em cima de mim em nada além de sua
roupa íntima. E embora a Legião Aurora provavelmente não dê uma
medalha por isso, eu ainda acho genuinamente que mereço uma pelo
que digo a seguir.
― Saia de cima de mim.
― Fique quieto, Tyler Jones!
Fico deitado no escuro com Saedii esticada em cima de mim,
olhando para o teto, as mãos pressionadas firmemente ao meu lado.
Tenha pensamentos nada atraentes.
Tenha pensamentos nada atraentes.
― Eu ouvi isso ― ela sussurra, olhando para mim.
― Olha, eu sei que te dei permissão para me tocar, mas isso está
empurrando o–
Outro impacto atinge a nave. Estrondoso. Correndo pelo metal
abaixo de nós. Os olhos de Saedii encontram os meus, iluminados
com triunfo.
― Pronto ― ela sorri.
Eu franzo a testa para ela, minha mente correndo.
― Isso soou como um–
― Canhão de pulso Syldrathi. ― ela pressiona a língua em um
canino afiado. ― Eles estão aqui.
― ALERTA ― grita o PA a bordo, como se fosse uma deixa. O uivo
distante de uma sirene perfura a escuridão. ― ALERTA. TODAS AS
MÃOS NAS ESTAÇÕES DE BATALHA.
Eu pisco
― Quem são ‘eles'?
― Meu tenente Erien, eu imagino ― Saedii responde. ― Meus
Paladinos. O que restou de meus adeptos. Seria uma morte para
eles voltarem para meu pai sem mim. Espero que eles tenham nos
rastreado através da Dobra desde a batalha em Andarael.
― REPETINDO: TODAS AS MÃOS PARA AS ESTAÇÕES DE BATALHA ―
grita o PA. ― EMBARCAÇÃO SYLDRATHI EM ENTRADA. ISSO NÃO É UM
EXERCÍCIO. ISSO NÃO É UM EXERCÍCIO.
Eu franzo a testa para a garota em cima de mim.
―... Você sabia que eles viriam?
― Eu suspeitei.
― E você não me contou?
― Eu não confiei em você, Tyler Jones ― ela franze a testa. ― Eu
ainda não confio em você. Você é Terráqueo. O filho de Jericho
Jones, nosso grande inimigo. Nossos povos estão em guerra.
― Nossos povos? ― eu respondo. ― Você acabou de me dizer que
sou meio Syldrathi, Saedii. Meu povo é seu povo.
Ela faz uma pausa nisso. Olhos violetas procurando os meus.
― Talvez ― ela diz.
Minha pele se arrepia quando Saedii pressiona a ponta dos
dedos no meu peito, leve como penas. Outra explosão balança a
nave, mais alertas começam a gritar e eu estremeço quando sua
unha arranha minha pele.
― Que sangue realmente queima nessas suas veias, eu me
pergunto?
― Se não sairmos desta nave em breve ― digo a ela ― você
poderá examinar meu sangue de perto e pessoalmente. Porque vai
se espalhar por todo o chão.
Seu sorriso vem lentamente.
― Hmm.
Outra explosão balança a nave enquanto Saedii desliza de cima
de mim, agacha-se e agarra as peças roubadas do traje tac, agora
misturadas. Respiro fundo, então me levanto e separo o
equipamento de que preciso enquanto as sirenes continuam soando.
Olho para ela uma vez enquanto nos vestimos, apenas para
descobrir que Saedii já está me observando. Nós dois imediatamente
desviamos o olhar.
Em alguns minutos, estamos equipados, totalmente armados e
envoltos em uma armadura tac TDF, com rostos escondidos atrás de
nossos capacetes.
― Pelo som dos impactos das armas ― diz Saedii, com a cabeça
inclinada ― a nave que está nos atacando tem de quatro a seis
baterias de canhão de pulso.
― Sim ― eu aceno. ― É a classe Eidolon, pelo menos. Uma nave
da capital.
― Em uma batalha deste tamanho, o caos será nosso amigo. Se
conseguirmos chegar aos pods de fuga, posso definir a unidade de
comunicações para transmitir em frequências de emergência do
Inquebrado. Com sorte, minha tripulação será capaz de nos resgatar.
― A menos que o TDF destrua nossos pods ― eu digo.
Saedii encolhe os ombros.
― Guerreiro ou verme, Tyler Jones?
Eu pego o rifle disruptor do fuzileiro naval caído e o coloco em
Atordoar.
― Vamos andando.
37
SCARLETT

A batalha travada em nossas telas de holograma é a coisa mais


insana da qual já fiz parte na minha vida. E eu digo que, tendo uma
vez enganado meu caminho através de seis camadas de capangas
de segurança para derrubar a festa de lançamento da banda de rock
interestelar multiplatina The Envied Dead, uma aventura envolvendo
doze casos de semptar Larassian, nadar pelada em um planeta
vulcânico, sessenta e uma prisões, e um breve desastre de trem
romântico. (N1kk1 Gunzz. Ex-namorado nº 34. Prós: Estrela do
Rock. Contras: Baterista).
A escuridão ao nosso redor está fervilhando de naves: Syldrathi,
Terráquea, Betraskan. Canhão de pulso e disparos de canhões,
mísseis serpenteando pela escuridão, explosões estourando
silenciosamente naquele grande vazio. Dezenas de milhares de
pessoas lutando, matando e morrendo. E eu nunca estive tão
assustada em toda a minha vida.
― OLHE! ― Finian ruge.
― Por favor, abaixe sua voz. ― Zila diz, girando seus controles de
voo. ― O aumento do volume não equivale ao aumento da aptidão
de pilotagem.
― Bem, me perdoe por–
― FINIAN, CALE A BOCA! ― eu grito.
Zila está curvada sobre o console do piloto, seus dedos se
movendo em um borrão. Fin e eu estamos atrás dela, sentados lado
a lado nas estações auxiliares, com exibições de hologramas da
batalha em andamento flutuando acima de nossos consoles. Nossa
nave está voando perto da Arma, longe da sangrenta periferia
externa da batalha, mas para ser honesta, é um milagre ainda
estarmos voando. O ar está fervilhando de caças e Zila está voando
na defensiva, não atirando em ninguém que se abrir contra nós,
esperando que as milhares de naves lá fora estejam mais
interessadas em matar algo que pareça remotamente perigoso. Mas
nossa sorte vai acabar mais cedo ou mais tarde.
A Arma meio que... Pisca. Já aconteceu uma ou duas vezes
agora, e nenhum de nós tem certeza do por que. É como uma
lanterna no escuro, como um coração de cristal batendo em meio à
carnificina. E a carnificina está piorando.
― Você acha que Auri está bem? ― Finian sussurra, olhando para
aquilo.
― Eu espero que sim ― eu suspiro.
― Por favor, apertem os cintos de segurança ― diz Zila.
― Você está brincando? ― Fin zomba, olhando para ela de lado. ―
Zila, se meu arnês estiver mais apertado, eu estarei casado com–
Fin grita quando Zila bate em nossos propulsores, girando para
longe de um jato de fogo de canhão elétrico. Um míssil explode
silenciosamente fora de nossa asa, outro bem à nossa frente, os
amortecedores inerciais que fornecem a gravidade ao redor de
nossa pequena nave lutando para compensar enquanto Zila nos joga
em um mergulho em espiral. Olhando para os nossos telescópios, eu
percebo que pegamos perseguidores – lutadores TDF, de nariz
arrebitado e de aparência raivosa. Não posso culpá-los por atirar em
nós – afinal, estamos usando as cores do Inquebrado. Mas ainda...
― Quatro caras maus vindo rápido em nossa proa ― eu relato.
― POPA! ― Fin estremece quando outro míssil explode. ― ESSA É
A POPA, SCAR!
― DROGA, EU DISSE QUE NÃO SEI NADA SOBRE
ESPAÇONAVES! ― eu grito. ― ELES ESTÃO ATRÁS DE NÓS,
OK? QUATRO NAVES MUITO ATIRADAS EM NOSSAS BUNDAS
BEM TORNEADAS, ZILA!
― Eu os vejo ― responde Zila. ― Segurem-se.
― Bundas bem torneadas? ― Fin murmura.
― Não me diga que você não percebeu, de Seel.
Nós tecemos e rolamos através do caos, a escuridão fora de nós
iluminada como fogos de artifício no Dia da Federação. E Zila está
dando um show impressionante, sem dúvida, mas ela não é uma
pilota especialista em nenhum trecho, e mesmo com a ajuda da
orientação automática, eu me pergunto por quanto tempo tudo isso
pode durar. Fora de nossas telas de proteção à frente, o preto é
vermelho com fogo e sangue. A Terra está jogando tudo que pode na
frota Syldrathi, mas esses Syldrathi são Inquebrados. Treinados em
cada momento de suas vidas para a batalha. Fanaticamente leais ao
psicopata que os lidera – tanto que eles estavam dispostos a sentar
e aplaudir enquanto ele destruía seu maldito sol.
E meu coração está afundando lentamente no meu peito, porque
o problema é que fazemos parte de uma batalha emocionante aqui.
Carregando direto em direção ao coração do sistema solar
Terráqueo. Já ultrapassamos o Cinturão de Kuiper, nos aproximando
rapidamente de Netuno. E eu não sei qual é o alcance da Arma, mas
a cada minuto que passa, a frota do Inquebrado se aproxima do meu
mundo natal e do sol que orbita.
O sol que eles vão destruir.
A Arma pisca novamente, iluminada por dentro, como se
houvesse um coração feito de pura luz pulsando dentro dela. O brilho
vem da parte traseira da nave, mas toda a Arma responde,
iluminando-se como um pedaço de cabo óptico cristalino.
― Por que aquilo está fazendo isso? ― Fin sussurra.
― Não sei ― respondo.
― É meio assustador–
Eu suspiro quando sou jogada para trás na minha cadeira, Zila
executando um rolo de barril que nos envia em uma espiral para cima
e entre dois cruzadores Syldrathi. Os caças TDF atrás de nós
pegaram seus próprios perseguidores, e dois deles fogem para lutar.
Mas dois ainda estão lá, nos perseguindo como se tivéssemos
roubado o dinheiro do lanche.
A Arma pulsa novamente. Se eu apertar os olhos, a luz parece
estar se reunindo em uma extremidade. Essas estranhas formas
abstratas no arco (Ha! Viu, eu posso ser ensinada!) parecem estar
brilhando mais intensamente a cada pulso.
― Precisamos de uma estratégia alternativa ― declara Zila,
fazendo-nos passar por uma tempestade de fogo.
― Você quer dizer um Plano B? ― eu pergunto a ela.
Ela olha por cima do ombro e acena com a cabeça.
― E precisamos disso agora.
― O que te dá tanta certeza? ― pergunto.
― Eu não tenho. Mas a Arma Eshvaren está claramente acumulando
poder.
― Zila, nós temos olhos ― diz Fin. ― Mas isso não–
― Talvez seus olhos tenham notado as posições das embarcações
intactas? ― ela pergunta. ― A forma como a formação deles está
mudando?
A explosão de um míssil nos balança e quase engulo minha
língua. Mas olhando para as telas de holograma, as leituras de
nosso computador tático, eu percebo...
― A frota do Inquebrado está saindo de seu caminho.
― Eles estiveram desocupando o arco de tiro frontal da Arma nos
últimos três minutos ― relata Zila. ― Eles sabem claramente que
está se preparando para disparar.
― Merda ― eu respiro.
Eu olho para nossos telescópios, as exibições de holograma de
nosso pequeno sistema solar. Os gigantes gasosos de Netuno e
Urano. Saturno com seus belos anéis de gelo, Júpiter com sua
grande tempestade vermelha, que assola há setecentos anos. Além
do cinturão de asteroides está a primeira colônia planetária da Terra
– a orbe vermelha de Marte. Em seguida, para o nosso ponto azul
claro, Terra, o planeta onde cresci, minha casa, meu mundo. Depois
disso, a escaldante Vênus, onde está tão quente que o céu chove
chumbo derretido. Por último, Mercúrio. E no centro de tudo isso,
esses bilhões de vidas, essa história, essa civilização, um pequeno
sol amarelo. A estrela no coração do meu sistema solar.
A estrela que Caersan vai matar.
― O que podemos fazer? ― eu pergunto. ― Como podemos pará-
lo?
― Esta nave não tem poder de fogo suficiente para danificar a Arma
― diz Zila. ― Mas estamos voando com as cores do Inquebrado.
Podemos chegar perto disso
Fin pisca.
― Quão perto?
Zila olha para ele, gira os controles.
― Muito perto.
A Arma pulsa novamente. A luz se reunindo, torcendo dentro dela.
Seria lindo se não fosse tão horrível. Um final, todas as cores do
arco-íris.
― Você quer dizer bater ― eu respiro.
― Esta nave pesa mais de duzentas toneladas ― diz ela. ― Ela é
capaz de atingir velocidade de seis fatores com tempo de aceleração
suficiente. Se colidirmos com a Arma em velocidade máxima, iremos
impactar com força equivalente a vários dispositivos termonucleares
de alto rendimento.
― Mas não podemos destruir a Arma ― eu franzo a testa. ―
Precisamos disso para vencer o Ra’haam.
― Não podemos esperar destruí-la ― diz Zila. ― É muito grande.
Mas um impacto dessa magnitude deve ser suficiente para danificar
ou pelo menos desalinhar essas lentes. Talvez ganhe mais tempo
para Aurora.
Finian olha para mim. De volta a Zila.
― Isso é um pouco do Plano B, Legionária Madran.
― Se você tiver um melhor, estou disposta a entretê-lo, Legionário
de Seel.
E então me ocorre.
Lá naquela tempestade de fogo, com caças TDF e cruzadores
Syldrathi e encouraçados Betraskan explodindo uns aos outros em
torno de nós, com o destino do meu mundo, minha civilização inteira
e talvez toda a galáxia além de estar na balança... Eu me lembro.
Eu me lembro!
Eu remexo dentro do meu uniforme, Finian observando enquanto
eu pesco em torno do meu decote.
― Hum... ― ele diz.
― Droga, você pode perder o Grande Ultrassauro de Abraaxis IV
aqui ― eu rosno.
―... Scar? ― Fin pergunta.
― A-HA! ― Eu grito, meus dedos fechando em torno de um pedaço
de corrente de prata. Pego meu prêmio para fora da túnica, o seguro
entre o polegar e o indicador em triunfo.
Um medalhão de prata. Um medalhão que esperou por nós oito
anos naquele cofre do Repositório Domínio. Um cofre que foi
codificado pelos comandantes da Academia Aurora para abrir com
meu DNA, anos antes de eu entrar para a Legião ou eles terem a
chance de me conhecer.
De um lado, é inserido com um pedaço bruto de diamante. Do
outro lado, gravado em uma escrita ondulante...
― Zila? ― eu digo.
― Sim, Scarlett?
― Vá com o Plano B.
38
KAL

― Você me deu o seu melhor, pequena Terráquea. Agora vou te dar


o meu.
A câmara estremece.
Os Waywalkers acima de mim gritam.
Meu pai levanta a mão.
Uma marreta de força psíquica atinge Aurora, fazendo-a deslizar
de volta para o coração da Arma. Fragmentos de cristal caem como
chuva, brilhando em seu rastro. Seu rosto está torcido, a boca
aberta em um grito silencioso, novelos de azul meia-noite crepitando
vermelho ardente no ar ao seu redor.
A parede contra a qual estou pressionado reverbera, o poder de
sua troca coalescendo no cristal ao nosso redor. Cada vez que
Aurora e meu pai se atacam, a Arma pulsa com mais intensidade, o
ar fica mais denso. Parece uma mola enrolada, como uma corda de
um relógio muito apertada, esticada para quebrar. Posso dizer que
está quase pronta para disparar, transbordando com as barragens
de energia que jogam um no outro.
Os Espíritos do Vazio ajudam qualquer coisa em seu caminho
quando ele é liberado.
Aurora ataca novamente, uma fita de força cortando o ar, rápida
como uma faca prateada afiada. Meu pai levanta a mão, quase
preguiçosamente, como fazia quando eu era criança atacando-o sob
as árvores em Syldra. Ele nunca deixou de aproveitar a vantagem
naquela época, apesar de seu tamanho, de sua força. Punindo cada
falha, cada passo em falso, cada erro, mandando-me para a cama
machucado e espancado.
Ele faz o mesmo com Aurora agora, e eu observo, impotente,
enquanto ele perfura suas defesas e a faz voar. Ela colide com a
parede novamente, o cristal rachando sob a força do golpe.
Aurora cai de joelhos. Mas ela se levanta novamente um
momento depois, o poder fluindo dela em ondas enquanto ela arrasta
os nós dos dedos pelo nariz sangrando.
― Belo tiro. ― ela murmura.
Eu não queria que fosse assim.
Aurora surge pela sala, parecendo quase piscar dentro da
tempestade crescente. O olho dela queima como um sol, igualado
em intensidade apenas pelo dele. Eu posso ver o quão duro ela luta,
pura e sem forma. Mas embora meu pai seja menos do que ela
sozinho, ele não está sozinho. Ele atrai o poder dessas pobres almas
aprisionadas ao nosso redor.
Ele ataca de novo e de novo, um borrão carmesim, movendo-se
tão rápido que deixa uma imagem residual no ar atrás de si. Aurora
voa para cima, quebrando o teto. Ela cai no meio de uma chuva de
cristal cintilante, e com uma centelha de poder carmesim, ele está lá
embaixo dela, atacando novamente. Ela é jogada pela sala, mole e
sem ossos, caindo no chão cristalino, as cores do arco-íris
quebrando como ondas na costa do pôr do sol. Os Waywalkers
gritam mais uma vez. E embora Aurora se levante novamente, os
punhos cerrados, ela se move um pouco mais devagar do que fazia
um momento atrás.
Eles colidem como pólvora e chamas. Ele se eleva sobre ela,
atraindo para si o poder da multidão ao nosso redor. Seu rosto é
uma máscara de dor e sangue, seus olhos brilham no escuro. Ela
parece pequena então. E olhando para ela, que era minha única e
meu tudo e agora talvez seja meu nada, eu sei a verdade.
Afinal, eu disse a ela antes de vir aqui.
Não posso culpá-la por me odiar. Eu nunca deveria ter mentido
para ela ou para o resto deles. Mas eu a avisei para não vir aqui. Eu
queria lidar com isso sozinho. Minha vergonha. Meu sangue. Nas
minhas veias e em minhas mãos. Pensei em derrubar o gigante.
Matar o monstro que eu me lembrava da minha infância, o homem
que colocou aqueles hematomas em mim, em minha irmã e em minha
mãe.
Mas assim que vi meu pai, soube que ele havia se tornado muito
mais e muito menos do que antes. Pensei em esperar. Talvez
enquanto se preparava para usar a Arma, ele se distraísse o
suficiente para que eu o atacasse. Ou talvez, depois de dispará-la,
ele pudesse ficar fraco o suficiente para que eu o matasse de uma
vez por todas. Eu não tinha um plano real, exceto poupar Aurora
dessa luta.
Meu engano e minha devoção. Apenas um deles para ela.
Mas agora...
Agora.
Eu olho ao meu redor para os Waywalkers, presos no lugar
contra as paredes curvas de cristal como insetos em um tabuleiro.
Seus olhos estão abertos, mas eles não veem. Homens e mulheres
Syldrathi, até crianças, o glif Waywalker – um olho chorando cinco
lágrimas – marcado entre em suas sobrancelhas.
O mesmo símbolo que minha mãe usava na testa.
Não há amor na violência, Kaliis, ela me diria.
Eu alcanço o chão embaixo de mim. Meus dedos procuram o
cristal quebrado solto da parede. Pego um fragmento – longo e
pontudo, como uma adaga. E eu olho para esses pobres
desgraçados dos quais meu pai tira seu poder. O cristal corta minha
palma enquanto eu aperto com força.
Não demoraria muito para acabar com eles. Liberta-los desta
vida e dele. Enfraquecendo-o. Talvez o suficiente para derrubá-lo?
A misericórdia é território dos covardes, Kaliis.
Mas não. Essa é uma escolha que ele faria, não eu. E se devo
finalmente sair desta sombra, não posso fazê-lo caminhando para a
escuridão. Eu não sou meu passado. Eu não sou aquele que me fez.
Devo ficar na luz do sol.
Não importa o que isso me custe.
Eu me esgueiro pelo chão trêmulo, à adaga de cristal na minha
mão, lutando contra a tempestade de poder crescendo ao redor
deles. Meu pai e minha be'shmai estão unidos, a Arma ao nosso
redor tremendo agora com violência tectônica. O sangue escorre do
nariz de Aurora, suas orelhas, seus olhos. Seus braços tremem.
Seus joelhos dobram.
Ela não pode vencer isso sozinha.
Mas não é verdade, é?
Ela nunca estava sozinha.
Eu me aproximo atrás de meu pai. Como uma sombra. Como se
o passado voltasse para assombrá-lo. Como as vozes de dez bilhões
de almas indo para o Vazio, minha mãe entre elas. E eu envolvo meu
braço em volta de sua garganta e mergulho a lâmina de cristal em
direção ao ponto ideal entre sua quinta e sexta costela.
O cristal perfura a armadura de meu pai e, por um breve e lindo
momento, sinto a carne se partindo, a lâmina afundando em direção
ao coração que só posso presumir que ele ainda possui um.
Mas então para.
Eu sinto seu aperto em meu pulso, embora ele não me toque. Eu
sinto sua mão em minha garganta, embora suas próprias mãos ainda
estejam presas às de Aurora. Eu luto, impotente, ofegante enquanto
seu aperto em mim aumenta. Ele olha por cima do ombro para mim,
seus olhos queimando como uma chama fria.
― Tsc, tsc. ― diz ele.
Com um movimento de cabeça, ele joga minha be'shmai para
trás, fazendo-a derrapar pelo chão, sangrando e ofegando.
E então ele se vira para mim.
Eu estou preso no lugar. Suspenso um metro acima do chão,
totalmente imóvel.
Ele olha para mim, a tempestade forte ao nosso redor. Ele está
tão mudado agora. Separado dos laços que o prendiam. Mas eu olho
profundamente em seus olhos e acho que vejo algo do que ele era.
Algo do homem que eu temia, amava e odiava.
― Então ― ele diz, desapontado. ― você ainda é filho de sua mãe.
E embora eu não possa me mover para golpeá-lo, embora eu mal
consiga reunir forças para respirar, ainda assim puxo o suficiente
para falar.
― Eu n-não sou seu.
Seus olhos se estreitam. O vento da tempestade aumenta ao
nosso redor, os Waywalkers começam a gritar e eu olho para a
garota que era minha única e meu tudo, observando enquanto ela
levanta a cabeça e olha para mim.
― K-Kal...
― Be'shmai ― eu sussurro.
E então eu sinto meu pai entrar em minha mente.
E ele me rasga a–
39
TYLER

A energia auxiliar foi restaurada para esta seção da nave, e


Saedii e eu estamos avançando em direção aos pods de fuga sob o
brilho fraco das luzes de emergência. Presumo que os esquadrões
da marinha TDF ainda estão nos procurando no nível de detenção,
mas o ataque do Inquebrado parece estar ocupando a maior parte
da atenção da tripulação. Os conveses são uma colmeia de
atividade: fuzileiros navais, técnicos, equipes de reparos, pilotos,
todos inundando seus postos de batalha, a nave balançando ao
nosso redor enquanto o conflito fica furioso na Dobra.
Os relatórios que recebemos pelos fones de ouvido em nossos
capacetes roubados não são tão bons. Acontece que Saedii e eu
estávamos errados – não é um Eidolon nos atingindo, mas quatro
cruzadores Syldrathi classe Banshee. A nave em que estamos, o
Kusanagi, é um porta-aviões pesado, mas os Banshees têm
tecnologia de camuflagem que os torna quase invisíveis para o radar
convencional – provavelmente como eles se aproximaram de nós em
primeiro lugar. Isso significa que os artilheiros do Kusanagi precisam
mirar visualmente, o que é difícil de fazer quando seu oponente está
se movendo alguns mil chutes por segundo. Tudo isso quer dizer que,
embora as naves Syldrathi sejam menores, ainda haverá uma briga.
Sinceramente, não tenho ideia de quem sairá por cima.
Outra explosão balança o Kusanagi, fazendo Saedii tropeçar em
mim e eu tropeçar na parede. Meia dúzia de técnicos Terráqueos
passam por nós, e os alarmes continuam soando enquanto eu me
coloco de pé.
― Apenas para referência futura. ― eu pergunto, me firmando ― Se
você estiver caindo e eu te pegar, você vai me dar uma joelhada na
virilha de novo?
― Fique quieto, Tyler Jones ― Saedii suspira, cambaleando para
frente.
Talvez eu devesse apenas deixar você cair de bunda, sua
arrogante, penso comigo mesmo.
Eu ouvi isso, vem sua voz dentro da minha cabeça.
― PRIMEIRA EMBARCAÇÃO INIMIGA DESTRUÍDA ― relata o PA. ―
DANO CRÍTICO A SEGUNDA NAVE INIMIGA. VIOLAÇÃO NO CASCO DO
KUSANAGI NO NÍVEL 4, BATERIAS PORTUÁRIAS DESATIVADAS. EQUIPES
DE TECNOLOGIA REPORTEM-SE AO NÍVEL 6, CORREDORES 6 BETA E
EPSILON, IMEDIATAMENTE.
― Os pods de fuga devem estar logo à frente ― eu informo.
― Eu os vejo ― responde Saedii, avançando na escuridão.
Um portador TDF possui cápsulas de escape em todos os níveis
– unidades de uma pessoa, alimentadas de forma independente no
caso de danos catastróficos ao reator. Posso ver um monte no
entroncamento em frente – algumas dezenas de escotilhas na
parede. Seus mecanismos operacionais são basicamente grandes
botões vermelhos atrás de painéis de vidro marcados QUEBREM EM
CASO DE EMERGÊNCIA – eles são feitos para serem fáceis de operar,
mesmo em um cenário de desastre. Se tivermos sorte, podemos–
A explosão do disruptor atinge Saedii bem em sua cabeça. O
capacete tac que ela está usando absorve o impacto do golpe, mas
o tiro ainda a faz girar como um pião.
― CONTATO! CONTATO! ― um fuzileiro naval grita atrás de nós. ―
SEÇÃO A, NÍVEL 3!
Eu mergulho para longe das cápsulas de fuga, arrastando Saedii
comigo para um corredor adjacente enquanto mais rifles se abrem
contra nós. Seus tiros vão longe quando Kusanagi dá outro golpe.
Posso ver meia dúzia de fuzileiros navais da TDF atrás da cobertura
no final do nosso corredor. Não tenho certeza de como eles nos
zeraram – talvez os números de identificação em nossas placas
peitorais – mas, de qualquer maneira, seus disruptores estão
configurados para Matar. Eu pressiono as costas contra o canto do
entroncamento, disparando alguns tiros aleatórios. As cápsulas de
escape estão bem ali, talvez a cinco metros de distância. Mas elas
podem muito bem estar a cinco quilômetros agora.
VOCÊ ESTÁ BEM?, eu grito na cabeça de Saedii.
Abaixe a voz, Tyler Jones, diz ela, tirando o capacete
esfumaçado.
Tirando o cabelo dos olhos, Saedii levanta o rifle e começa a
atirar na esquina. E de repente estamos em um tiroteio por nossas
vidas. A luz fraca é perfurada por flashes, alarmes estridentes são
abafados por disparos de disruptor. Saedii grita avisando em minha
mente quando outro grupo de fuzileiros navais surge do outro lado do
corredor. Se eles manobrarem atrás de nós, estaremos mortos.
O ar está cheio com as rajadas de tiros de disruptor, meu rifle
resistindo em minha mão. Não estou atirando com muita sutileza,
apenas tentando fazer com que os fuzileiros navais do TDF
mantenham a cabeça baixa. Mas um olhar por cima do meu ombro
me diz que Saedii já derrubou três deles – dois com tiros no rosto e
outro com uma explosão no extintor de incêndio na parede ao lado
dele, que explodiu e o deixou inconsciente. E tudo isso depois que
ela deu um tiro Mortal no crânio.
Pelo Criador, essa garota é boa...
Eu ouvi isso.
CARAMBA, PARE COM ISSO.
Saedii sorri por cima do ombro para mim enquanto eu miro um
golpe de sorte, acertando um sargento da marinha com um tiro de
Atordoamento direto em seu visor. Ele cai desmaiado.
Belo tiro, Tyler Jones.
Todos os bons tiros no Caminho não vão nos ajudar aqui –
estamos em desvantagem numérica de dez para um!
Outra explosão balança o Kusanagi, outra explosão de fogo me
força a voltar para a cobertura. Se ficarmos aqui por muito mais
tempo, estaremos acabados. Eu arranco meu capacete para que eu
possa respirar um pouco melhor, limpando o suor dos meus olhos
enquanto olho para as cápsulas de escape do outro lado do
corredor. Elas são feitas para abrir rapidamente em caso de
emergência; não demoraria muito para entrar em uma. Mas correr
pelo corredor para alcançá-los, arriscando o fogo cruzado entre nós
e eles...
Dê-me seu rifle, digo a Saedii, estendendo minha mão.
... Por quê?
Você vai primeiro. Eu vou te cobrir.
Ela franze a testa.
Não preciso de sua ajuda, garoto.
Pelo Criador, tudo tem que ser uma luta com você?
Sim, ela diz, explodindo outro fuzileiro naval. Eu nasci para a
guerra, Tyler Jones.
Bem, você não pode lutar uma guerra se estiver morta! Então
entre na cápsula de fuga e alerte sua tripulação de psicopatas para
nos pegar em vez de nos explodir.
E deixar você aqui?
Eu irei te seguir.
Eu me abaixo quando uma explosão de disruptor chia sobre
minha cabeça, relâmpagos contra a parede ao meu lado. Eu atiro e
consigo atordoar um fuzileiro naval que corre para se proteger.
Olhando por cima do ombro, encontro Saedii olhando para mim.
O que? eu exijo.
Saedii não diz nada. Alcançando o cinto de sua armadura tac, ela
agarra o pacote de energia sobressalente para seu disruptor e o
joga através do corredor em um painel de controle da cápsula de
escape. Sua pontaria é perfeita (por que não estou surpreso?), o
vidro realmente quebra no caso dessa emergência em particular e o
painel muda de vermelho para verde quando a escotilha abre. Eu
continuo atirando, mas sinto as mãos de Saedii no meu cinto,
agarrando a célula de energia sobressalente do meu rifle. Ela repete
o procedimento – outro tiro certeiro, mais vidro quebrado, outra porta
do compartimento aberta, esta para mim. Os fuzileiros navais estão
se aproximando agora e temos apenas alguns segundos.
Saedii me entrega seu rifle. Olha-me nos olhos.
Você tem coragem, Tyler Jones. Seu sangue é verdadeiro. Ela
agarra o peitoral da minha armadura e, inclinando-se beija minha
bochecha. Que os Espíritos do Vazio cuidem de você, diz ela.
Eu engulo em seco, encontrando seu olhar.
… Você também, eu falo.
Se você me deixar levar um tiro, arrancarei seu coração de seu
peito e o alimentarei com ele.
Eu quase rio.
Vai. Eu te dou cobertura.
Eu me inclino para o corredor, solto uma rajada de tiros, um rifle
em cada mão. A explosão é aleatória – de jeito nenhum vou acertar
nada. Mas o spray desajeitado de fogo força os fuzileiros navais a se
protegerem por tempo suficiente para que Saedii faça uma pausa.
Ela dispara pelo corredor e mergulha como uma lança, o cabelo
preto escorrendo atrás dela enquanto as explosões do disruptor
cortam o ar ao seu redor, direto pela porta aberta da cápsula de
escape para a segurança.
A porta se fecha atrás dela. O diodo muda de verde para azul. E
quando outra explosão abala o Kusanagi, o casulo de Saedii se
liberta.
Eu posso sentir o gosto da fumaça agora, os relatórios de danos
derramando grosso e rápido no PA enquanto Kusanagi leva outro
golpe. Agradeço ao Criador que mais fuzileiros navais ainda não
foram embaralhados, mas acho que eles estão muito ocupados não
sendo despedaçados por aqueles Syldrathi Banshees por aí. Por um
segundo, me pego rezando para que Saedii fique bem. Que seu povo
pôde pegá-la antes que o TDF a atire para fora do espaço. Mas
então eu percebo que realmente deveria orar por mim mesmo.
Meu rifle de repente fica vazio. Eu olho para o nível de poder da
arma que Saedii me deu – caiu para 13 por cento. E, olhando para o
outro lado do corredor, com o fogo do disruptor, posso ver minhas
duas únicas células de energia sobressalentes caídas no chão entre
cacos de vidro.
Hmm. Talvez ela não seja uma estrategista perfeita, afinal.
Eu coloco minha cabeça para fora, recompensado por um spray
de disruptor de ambas as direções. Os fuzileiros navais estão
avançando rapidamente – é apenas uma questão de tempo antes
que eles cortem atrás de mim e me atinjam de todos os lados.
Não tenho certeza de como vou fazer isso...
― CESAR FOGO! ― vem um comando frio e metálico.
― CESSAR FOGO! ― um tenente fuzileiro repete, gritando. ―
CORPO, CESSAR FOGO!
Eu pressiono as costas contra a parede. Coração batendo contra
minhas costelas. É um dos agentes do GIA por aí. Princeps, talvez,
veio me arrastar de volta para minha cela. Ou talvez apenas para
acabar comigo de uma vez por...
― TYLER?
Meu coração paralisa.
Mesmo sob o metal, a máscara de espelho, eu conheço essa
voz. Eu sei disso desde que tínhamos cinco anos, naquele primeiro
dia do jardim de infância, quando a empurrei e ela quebrou uma
cadeira na minha cabeça.
A voz da minha melhor amiga. A garota que sempre cuidou de
mim. A garota que eu deveria cuidar também. A garota que eu
amava e a garota com quem falhei.
Eu espreito para o corredor e ela está bem ali. Revestida da
cabeça aos pés no cinza carvão do GIA. Aquela máscara de espelho
inexpressiva em seu rosto.
Mesmo assim, eu a conheço.
― TYLER, NÃO VÁ ― Cat diz.
― Senhora ― rosna o fuzileiro naval atrás dela. ― Este prisioneiro
escapou de sua cela e–
― VOCÊ ESTÁ DISPENSADO, TENENTE ― Cat diz, sem olhar para ele.
O Ten. parece inseguro.
― Senhora, temos ordens para–
― ESTOU REVOGANDO ESSAS ORDENS ― rebate Cat. ― EXISTEM TRÊS
CRUZADORES FURTIVOS SYLDRATHI DO LADO DE FORA TENTANDO NOS
LEVAR ÀS MOLÉCULAS COMPONENTES. TENHO CERTEZA DE QUE
EXISTEM MANEIRAS MELHORES PARA VOCÊ E SEUS HOMENS PASSAREM
O SEU TEMPO AGORA, TENENTE.
― Mas o prisioneiro, senhora...
Cat ainda está olhando para mim com a cabeça inclinada.
― ELE NÃO VAI A LUGAR NENHUM. VOCÊ VAI, TYLER?
Meus olhos estão fixos naquela máscara de espelho. Minha boca
seca como cinzas.
― ORDENE SEUS HOMENS PARA VOLTAREM, TENENTE ― comanda
Cat. ― TENHO CERTEZA DE QUE NÃO PRECISO LEMBRÁ-LO DE QUE ESTA
OPERAÇÃO ESTÁ SOB O COMANDO DA AGÊNCIA DE INTELIGÊNCIA
GLOBAL.
Eu posso ver o conflito nos olhos do Ten. As ordens não parecem
certas e ele e sua equipe sabem disso. Mas eu já disse uma vez e
direi novamente – os militares Terráqueos não ensinam você a
pensar em combate. Ele ensina que ou você segue as ordens ou as
pessoas morrem. E agora, devido ao ataque que está acontecendo
lá na Dobra, esses fuzileiros navais provavelmente têm uma maneira
melhor de passar o tempo do que discutir comigo.
― Sim, senhora ― o Ten. acena com a cabeça e puxa sua tripulação
de volta.
Eu escuto os fuzileiros navais se retirando. Olhando para o poder
do meu rifle.
Oito por cento.
A coisa que veste o corpo de Cat espera até que estejamos
sozinhos no corredor trêmulo e cheio de fumaça. E então eu ouço um
pequeno assobio úmido. A nave estremece ao meu redor.
― Tyler? ― chama com sua voz novamente.
Não digo nada. Mordendo meu lábio.
― Ty? ― isso chama novamente.
― O QUE VOCÊ QUER? ― eu finalmente grito.
― Eu quero que você fique.
Arrisco um olhar para fora e vejo-o sozinho no corredor. Ainda
está revestido do pescoço aos pés no cinza carvão do GIA. Mas foi
retirada a máscara do espelho agora, e seu rosto, seu nariz, seus
lábios – são todos dela. Todos, exceto os olhos, brilhando suaves e
venenosos.
― Fique conosco, Tyler ― responde a coisa que veste o corpo de
Cat. ― Por favor.
― VOCÊ NÃO É CAT! ― eu grito. ― NÃO FINJA SER!
― Mas eu sou ― ele chama. ― Você não entende? Eu sou mais do
que costumava ser, mas ainda estou aqui! Eu ainda sou eu!
― VOCÊ NÃO É NADA COMO ELA! VOCÊ ESTÁ
ORQUESTRANDO UMA GUERRA NA QUAL BILHÕES DE
PESSOAS PODERIAM MORRER, E PELO QUÊ? SÓ PARA VOCÊ
INFECTAR O RESTO DA GALÁXIA?
― Estou tentando salvar você, Tyler ― implora. ― Você não
entende?
Eu ouço um estalo em sua voz. Parece que está perto de chorar.
E arrisco outro olhar por trás da cobertura e a vejo ali parada, as
mãos fechadas ao lado do corpo e meu estômago se contorce como
um punho cerrado quando vejo... Aquilo está chorando. Lágrimas
brilhando daquelas pupilas em forma de flor. O Kusanagi treme
embaixo de mim, mas não é o movimento da nave que quase me
deixa de joelhos. É o que essa coisa diz a seguir que me atordoa.
― Eu amo você, Tyler.
Eu fecho meus olhos. Sinto cada uma dessas palavras como
balas em meu peito. Uma parte de mim sabia o que ela sentia por
mim. Uma parte de mim sempre soube disso. Mas Cat nunca disse
essas palavras em voz alta. Nem mesmo depois da noite que
passamos juntos. E ouvi-las agora...
― Eu amo você ― diz. ― Então, o Ra’haam também te ama.
Um pavor frio toma conta de mim. Meus piores temores se
confirmaram.
― Eu sabia ― eu respiro. ― É para lá que você está nos levando. É
por isso que ainda estamos dobrando. Você... Você quer...
― Queremos você aqui conosco ― aquilo diz, com lágrimas
escorrendo pelo rosto enquanto dá um passo à frente. ― Queremos
que você fique.
Eu olho para o corredor novamente. E eu posso vê-la lá. A garota
que sempre me apoiou quando eu precisei dela. A garota que se
sentou ao meu lado naquele estúdio de tatuagem na costa e ria
enquanto me servia outra dose no bar depois, que suspirou meu
nome enquanto puxava minha camisa pela minha cabeça e afundava
comigo na cama. Eu posso vê-la.
Eu posso vê-la.
― Cat? ― eu sussurro.
― Sim ― ela respira.
― Você consegue me ouvir?
― Sim ― ela sussurra. ― Sou eu, Ty. Sou eu.
Eu pensei que ela tinha morrido. Achei que nunca teria outra
chance de falar com ela. Para contar a ela tudo que eu deveria ter
dito quando ainda estava viva. Eu sei que ninguém tem uma segunda
chance como essa. Eu sei que deveria dizer a ela o que eu sinto,
como eu faria as coisas de forma diferente se pudesse, como eu
sempre a amei e sempre amarei. Eu sei que ela gostaria de ouvir. Eu
sei que gostaria de saber. E meu estômago dá um nó e meu pulso
está martelando e eu não posso negar o que meu coração está me
dizendo. Ela está lá. Olhando para mim com aqueles olhos novos e
estranhos.
Mas, no final das contas, isso só piora.
― Me desculpe por ter falhado com você, Cat.
Porque ela está lá.
― Tudo que posso fazer é prometer que não falharei com você
novamente.
Mas ela não está lá sozinha.
E eu levanto o rifle disruptor em meus braços. E eu vejo seu rosto
se contorcer, e tenho a sensação de algo vasto, algo antigo, algo
terrível por trás do brilho de seus olhos. E eu puxo o gatilho,
gastando o resto da força do rifle, e o tiro atinge a coisa que é Cat e
a coisa que não é, mandando-a de volta em um jato de sangue cinza.
E então estou de pé e me movendo, correndo pelo corredor e
mergulhando pela escotilha da cápsula de escape. Batendo com
força em seus gritos.
― Tyler!
Eu sinto muito.
― TYLER, NÃO VÁ!
Eu sinto muito.
E eu coloco meu cinto de segurança.
E eu aperto o botão Ejetar.
E eu estalo na Dobra em chamas.
40
SCARLETT

Zila voa como um demônio, mas ela não é Cat Brannock.


Tudo ao nosso redor é um caos. Naves de todas as formas e
tamanhos, pequenos lutadores de um homem só até o maior que o
comando de batalha TerraFleet e Betraskan pode lançar. Todo o
sistema solar parece em chamas. Mas por mais louco que pareça,
eu me pego pensando na minha melhor amiga. Minha colega de
quarto. A minha garota. Se Cat estivesse por trás do bastão deste
junker, ela poderia tê-lo feito dançar. Não há um piloto vivo que
poderia tocá-la.
Mas agora ela se foi.
Tyler também. E Kal. E Auri.
Fin, Zila e eu somos os últimos juntos.
Três de sete.
Os motores estão uivando, empurrados para a linha vermelha
enquanto avançamos pela escuridão em direção à Arma. Zila teve
que se balançar para longe, finalmente jogando fora os dois caças
TDF em nossa cauda, ziguezagueando por uma tempestade de balas
e mísseis e eu não sei o que mais. Seus dedos ficaram borrados
enquanto ela calculava nossa trajetória, apontando-nos em direção a
um dos pilares de suporte mais finos segurando aquelas lentes de
cristal maciço no lugar. Estamos voando bem na sua cara agora.
Uma última carga condenada para salvar nosso mundo.
E talvez toda a galáxia.
― Quarenta e cinco segundos para o impacto. ― relata Zila.
Honestamente, não tenho ideia se isso tem alguma chance de
funcionar. Não tenho ideia se estamos fazendo a coisa certa. Mas o
medalhão em volta do meu pescoço brilha quando eu olho para ele,
luzes vermelhas de alerta brincando na superfície do diamante
enquanto os alarmes ao meu redor gritam.
Vá com o Plano B.
Eu nunca fui uma crente. Nunca acreditei na ideia do Criador ou
da Fé Unida. Ty e eu costumávamos brigar por isso o tempo todo –
como parecia bobo para mim, como parecia óbvio para ele. Mas no
final, ele acreditou bastante por nós dois. E eu não sei exatamente
como vamos fazer isso, mas o Comando Aurora nos disse que
estávamos no caminho certo.
Saiba que acreditamos em vocês. E vocês devem acreditar um
no outro. Somos a Legião. Somos a luz. Queimando forte contra a
noite.
E enquanto avançamos em direção a nossas mortes, eu me pego
olhando para os últimos membros do Esquadrão 312 da Legião
Aurora. E eu percebo que é como Tyler disse.
Às vezes você só precisa ter fé.
― Trinta segundos. ― diz Zila.
Eu engulo em seco. Coração batendo forte no meu peito.
― Você está bem? ― Finian pergunta suavemente.
Eu olho para ele ao meu lado, a Arma cada vez maior na nossa
frente a cada segundo. Eu posso dizer que ele está com medo. Eu
sei o que ele quer ouvir. Que esta é a coisa certa a fazer. Tenho
certeza disso. Que, embora eu tenha apenas dezoito anos e ainda
tenha toda a minha vida pela frente, está tudo bem. Porque isso é
para algo maior do que nós. Isso é para algo maior.
Mas isso é besteira.
Estou morrendo de medo.
― Não ― digo a ele. Estendo a minha mão e pego a sua. ― Mas
estou feliz que você esteja comigo, Fin.
E então isso nos atinge. Um míssil. Uma explosão de pulso. Eu
não tenho ideia. Mas nós somos duramente abalados, o impacto é
como um cargueiro totalmente carregado, me jogando de volta na
minha cadeira e para frente no meu cinto de segurança. Estrelas
explodem em meus olhos. Os monitores à minha frente lançam
faíscas e morrem, alarmes soando, supressores de incêndio
disparando, enchendo a cabine de comando com névoa química. Eu
posso sentir o gosto de sangue na minha boca, minha cabeça está
zumbindo, meu...
― SCAR, VOCÊ ESTÁ BEM? ― Fin grita, desafivelando o cinto.
― Eu estou... b-bem... ― eu gerencio.
Ele se ajoelha ao meu lado e me examina.
― Zila?
Nossa pilota se endireitou atrás de seus painéis de controle
cintilantes e cuspidores, arrastando uma cortina grossa de cachos
pretos para fora de seu rosto. Pela primeira vez, eu percebo que ela
está usando os brincos que estavam esperando por ela naquele
cofre do Repositório Domínio. O pequeno falcão encantador que
alguém deixou para ela, sabendo que ela nunca está sem seus aros
de ouro.
Eu me pergunto se há alguma chance de nós vivermos para
descobrir quem foi.
― Estou viva ― declara ela.
― O que n-nos atingiu? ― eu exijo.
― Uma bala perdida de canhão, eu acredito. ― ela balança a
cabeça, um fluxo de sangue escorrendo da divisão em sua
sobrancelha enquanto ela golpeia seus controles. ― Talvez um
pedaço de entulho que se move rapidamente.
― Relatório de danos? ― eu tusso, olhando ao redor da cabine
fumegante.
― Envolvendo sistemas de orientação secundários e energia auxiliar.
O controle deve estar online em breve. ― seus dedos dançam em
seus consoles. ― Mas a bobina de energia está gravemente
danificada. Os motores estão offline.
A Arma pulsa novamente, o mais brilhante que já existiu. O
impacto não nos tirou muito do curso – ainda estamos olhando para
o cano dessas lentes cristalinas maciças. Ainda bem em sua linha de
fogo. Mas não temos impulso.
Estamos boiando na água.
Olhando para a Arma, posso ver uma colisão de energia com as
cores do arco-íris se aglutinando como o olho de uma tempestade.
Eu sei que o espaço é um vácuo, aquele som não viaja por ele, mas
eu juro, juro que posso ouvir um som. Construindo lentamente.
Correndo além do limite da audição agora. Cada vez mais alto.
E todos nós sabemos disso.
― Vai disparar ― diz Zila, apenas um tremor em sua voz.
― Não vamos conseguir ― eu sussurro.
― Sim, nós vamos ― Finian rosna, arrastando uma máscara para
respirar.
Eu levanto uma sobrancelha.
― Fin?
― Motores off-line soam como um trabalho para o melhor Gearhead
de toda a maldita Legião Aurora, se você me perguntar.
― Você pode consertar isso?
― Uma maneira de descobrir. ― ele sacode o pulso e uma
ferramenta múltipla se estende do braço de seu exosuit. Todo o
medo que ouvi em sua voz antes evaporou totalmente, substituído
por seu sorriso de navalha. ― E vamos ser honestos, já faz muito
tempo que eu não fiz algo incrivelmente ousado e heroico.
― Eu vou com você. ― eu digo, tirando meu arnês.
― Tenham cuidado. ― diz Zila. ― Sejam rápidos.
Finian agarra minha mão e abre a porta da cabine.
Eu arrasto o fôlego sobre meu rosto.
E nós corremos.
41
TRÊS UM DOIS

AURORA
Kal desmorona no chão, o familiar violeta e ouro de sua mente
oprimidos pelo sangue escuro e seco de seu pai. É apenas quando a
escuridão desce sobre ele completamente que eu percebo que ele
ainda estava tocando minha mente, até o último segundo, a mais leve
das conexões.
Uma que ele não podia desistir.
Uma que eu nunca queimei completamente.
Decepção e devoção. Eu senti os dois nele.
Só um é pra você, disse ele
Os Waywalkers gritam acima de mim, suas vozes se elevando
em um lamento discordante.
E quando seu pai deixa Kal deitado ali como se ele não fosse
nada, voltando-se para mim, lembro-me de outra coisa que Kal me
disse.
Amor é propósito, be’shmai.
O amor é o que nos leva a grandes feitos e maiores sacrifícios.
Sem amor, o que resta?

TYLER
A Dobra está pegando fogo. Chamas queimando em preto e
branco.
Naves de combate TDF enxameiam na escuridão, explosões
iluminando a noite ao meu redor. O naufrágio de um Syldrathi
Banshee está pendurado no arco do Kusanagi, sem vida e preto.
Outro está à deriva, vazando vapor de combustível e finos fios de
fogo, girando para longe em uma espiral lenta da batalha em
andamento.
Mas os outros dois Banshees estão cortando o Kusanagi em
pedaços.
O nerd de táticas em mim está totalmente encantado com a
batalha, mas honestamente, tenho coisas maiores com que me
preocupar do que o vale-tudo que está acontecendo ao meu redor.
Coisas ainda maiores do que a guerra que provavelmente está
assolando a Terra agora.
O problema é que esses pods de escape TDF são basicamente
mísseis, feitos para voar para longe da nave que você acabou de
ejetar tão rápido quanto seus pequenos motores irão impulsioná-los.
A Dobra ao meu redor está cheia de destroços – lutadores
abandonados, pedaços enormes de Banshee caindo, arcos de
plasma em chamas. E embora este pod possa se parecer com um
peixe e se mover como um peixe, ele se move muito como uma vaca.
Eu luto contra os controles, falando nos comunicadores enquanto
me distancio da matança.
― Saedii, aqui é o Tyler, câmbio?

FINIAN
Eu agarro descontroladamente o corrimão, quase caindo da
escada na minha pressa para alcançar os motores. Tudo é
construído um pouco grande demais para mim – aqueles Syldrathi
ridiculamente altos.
Eu grito quando meu pé escorrega do degrau, e Scarlett me
agarra por trás, de alguma forma me segurando por um braço até
que eu recupere o equilíbrio. Eu não perco fôlego com
agradecimentos – nós fazemos uma descida mal controlada para o
corredor e começamos a correr.
Uma parte de mim está ciente de que estou correndo para tentar
colocar minha própria morte de volta nos trilhos, e isso não é algo
que eu já vi chegando.
Mas Scarlett não largou minha mão agora que estamos em
terreno plano. E isso não é nada.
A porta da sala de máquinas está lacrada e eu estendo uma mão
para pegar o painel de toque – então o puxo de volta no último
segundo, horrorizado com o que quase fiz.
A luz de advertência ao lado do painel está piscando em
vermelho.
Eu fico na ponta dos pés (bastardos altos) e dou uma olhada pela
janela de visualização.
Oh.
― O que está acontecendo aí? ― Scarlett exige.
Quando eu não respondo, ela me coloca de lado. E mesmo que
ela não seja nosso talento mecânico mais forte, Scar sabe o que
roubou minhas palavras no segundo que ela viu. Dentro da sala de
máquinas, o gás e os fluidos são liberados para o espaço.
Há um buraco enorme na lateral desta nave chakk. Suas bordas
irregulares estão dobradas para dentro e posso ver a batalha ainda
em andamento lá fora. Eu posso ver as estrelas. O que quer que
tenha nos atingido foi direto.
Nossos motores estão em pedaços.
Eu não posso consertar isso.

ZILA
A Arma à nossa frente se ilumina, girando em cores, milhares de
arco-íris refratados para frente e para trás.
Lentamente, tiro minhas mãos dos controles. Eu deixo minha
mente descansar. Meus pensamentos se aquietaram.
Não há mais cálculos exigidos de mim.
É estranhamente pacífico.
Eu me inclino em meu microfone para falar com meus
companheiros de equipe.
― Finian, Scarlett. Foi um privilégio servir no Esquadrão 312 ao lado
de vocês.
Não estou sentindo nada.
TYLER
Um Syldrathi Banshee passa por mim, silencioso como a morte,
preto e em forma de lua crescente. Meus alarmes de proximidade
estão gritando, minhas palmas úmidas de suor enquanto eu passo
pelo casco despedaçado de um caça TDF, errando por pouco um
pedaço giratório do casco do Banshee.
― Embarcações do Inquebrado, aqui é Tyler Jones, estão me lendo,
câmbio?
Eu empurro a comunicação novamente. Querendo saber se algo
aconteceu com Saedii. Querendo saber se sua tripulação conseguiu
pegá-la. Pensando se...
... Se ela decidiu me deixar aqui para morrer.
Ela não faria isso, faria?
― Saedii, você copia?
― COPIAMOS VOCÊ, TYLER.
A resposta soa no meu canal de emergência, fazendo meu
coração disparar. É fria como o ferro. Afiada com estática. Mesmo
assim, conheço essa voz.
Eu sei disso desde que tínhamos cinco anos.
―... Cat.

SCARLETT
Espero que Tyler ainda esteja vivo em algum lugar.
Eu sei que ele vai entender que eu não queria deixá-lo.
Eu nunca imaginei que iria sair heroicamente. Mais do que no ano
passado, enquanto transava escandalosamente com um menino na
piscina, sabe?
Mas... Está tudo bem também.
Eu encontro os olhos de Fin. Eles estão totalmente pretos e as
lentes de contatos devem tornar impossível ler sua expressão. Mas
eu nunca achei difícil.
Eu percebo que ainda estamos de mãos dadas.
Então eu me viro para ele e seguro sua outra mão na minha.
AURORA
Eu me levanto cambaleando, todos os músculos gritando, minha
mente se esforçando para conter os ataques do Starslayer. A
energia psíquica dos Waywalkers se derrama dentro dele em uma
torrente agora, e ele é tão grande que eu nem consigo encontrar
suas bordas.
Ele ri enquanto eu mal consigo afastá-lo, minha visão
escurecendo nas bordas.
Kal está imóvel.
Mas estou pegando fogo.
E eu estou queimando
queimando
queimando.

ZILA
Sempre fui agnóstica. A fé é difícil para mim. Não fui feita para
isso.
Mas me pergunto se meus pais estarão esperando por mim.
Fracassamos, mas espero que vejam o quanto tentamos.

TYLER
― SENTIMOS MUITO, TYLER. ― Cat diz.
Eu franzo a testa.
― Pelo quê?
Um alerta soa no HUD do pod de fuga, seguido por um alarme
cortante do computador principal.
― AVISO: BLOQUEIO DE MÍSSIL DETECTADO.
Meu estômago embrulha e rola. Momentos depois, outro alarme
soa através da cabine do pod, luzes piscando quando um novo ponto
aparece no meu visor.
― AVISO: MÍSSIL CHEGANDO. REPETINDO: MÍSSIL
CHEGANDO.
Direto para mim.
― Criador, me ajude. ― eu sussurro.

FINIAN
Eu não consigo desviar o olhar dela.
Ela aperta minhas mãos com as dela e, de alguma forma,
impossivelmente, ela sorri. Criador, mas ela é tão brilhante.
E de alguma forma, impossivelmente, ela puxa um sorriso meu
em resposta.

SCARLETT
Eu nunca o vi apenas sorrir antes – sem cinismo, sem guarda
levantada.
Ele é lindo.
Ele morde o lábio enquanto olhamos um para o outro, e ei, é uma
questão de segundos até que a Arma atire, ou uma nave TDF nos
exploda do céu.
Então eu uso nossas mãos unidas para puxá-lo para mais perto.
Ele tem exatamente a minha altura.
Tudo o que preciso fazer é inclinar um pouco a cabeça.

FINIAN
Obrigado, Criador, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado.
Não consigo deixar de baixar um pouco o olhar – estou prestes a
fechar os olhos e sair em grande estilo, beijando Scarlett Isobel
Jones.
Juro que não estou verificando seu decote enquanto meus cílios
baixam, mas meus olhos pousam em seu colar.
Vá com o Plano B.
Plano B, uma ova. Falhou totalmente. E nunca descobri para que
servia a minha caneta.
Mas o inferno com isso. Eu vou...
... Espere um minuto.

SCARLETT
Ele solta minhas mãos, alcançando meu p– oh, meu colar.
― Scar ― diz ele, sem fôlego. ― Isso não é diamante.
Ele levanta um olhar perplexo para encontrar o meu.
― Este é o cristal Eshvaren.

TYLER
― É TÃO LINDO AQUI, TYLER ― Cat diz. ― EU GOSTARIA QUE VOCÊ
PUDESSE TER VISTO.
Eu assisto aquele sinal, acelerando mais perto, alarmes gritando
ao meu redor.
― IMPACTO DO MÍSSIL EM CINCO SEGUNDOS.
Eu penso no meu esquadrão, esperando que eles estejam bem.
― QUATRO SEGUNDOS.
Penso em minha irmã e dói saber que a estou deixando sozinha.
― TRÊS SEGUNDOS.
Eu alcanço o anel do Senado pendurado na corrente em volta do
meu pescoço.
― DOIS SEGUNDOS.
Imaginando se ele estaria orgulhoso de mim.
― UM SEGUNDO.
― Vejo você em breve, pai. ― eu sussurro.
― IMPAC–
AURORA
Tudo é dor e não consigo mais sentir Kal.
E os Eshvaren estavam errados. Eu nunca deveria queimar tudo.
Amor é propósito, be’shmai.
O amor é o que nos leva a grandes feitos e maiores sacrifícios.
Sem amor, o que resta?
Eu não tenho que descobrir a resposta para essa pergunta.
Porque eu o amo.
Eu tenho minha força. Eu tenho meu propósito.
A mente envenenada de seu pai está em sintonia com a Arma
agora – ao nosso redor o cristal está vibrando, cantando, gritando
enquanto se prepara para destruir o sol do meu povo.
Eu não posso parar agora. Está muito longe, muito perto do
momento em que esta incrível e impossível onda de energia será
liberada.
Mas talvez, apenas talvez...

ZILA
Um feixe de luz pura acende à minha frente.
É a coisa mais linda que já vi.
E então tudo
é
escuridão
escuridão
escuridão
escuridão
escuridão
SAUDAÇÕES, CADETES!

ACONTECE QUE ESCREVEMOS UM LIVRO TÃO LONGO QUE NOSSO


EDITOR DISSE QUE RESTOU APENAS UMA PÁGINA PARA NOSSOS
AGRADECIMENTOS. OPS. ENTÃO LÁ VAMOS NÓS, O MAIS BREVE
POSSÍVEL: UMA LISTA DOS CRIMINOSOS E RÉPROBOS QUE TORNARAM
ESTE LIVRO UMA REALIDADE. ESTEJAM AVISADOS, ELES SÃO PERIGOSOS.

HÁ BARBARA, MELANIE, KAREN, ARTIE, JAKE, JUDITH, JOSH, AMY,


DAWN, KATHLEEN, JOHN, ARELY, HEATHER, TRISH, RAY E NATALIA,
ALÉM DAS EQUIPES EM VENDAS, MARKETING, PUBLICIDADE E
GERENCIAMENTO DE ED. DEB E CHARLIE, É CLARO, ALÉM DE ANNA,
NICOLA, SOPHIE E OS PERSONAGENS QUESTIONÁVEIS COM OS QUAIS
ELAS SE ASSOCIAM. HÁ TAMBÉM JULIET, SHADI, AIMEE, MARK, KATE,
MOLLY, BEN, HAYLEY, PAUL, LAURA E LUCY. E NÃO VAMOS ESQUECER-
NOS DE ATRIBUIR ALGUMA CULPA AOS NOSSOS EDITORES E TRADUTORES
INTERNACIONAIS.

NÃO DEIXE JOSH, TRACEY, CATHY OU STEPHEN FORA DO GANCHO E


FIQUEM DE OLHO EM NOSSOS AGENTES ESTRANGEIROS E ESCOTEIROS.
NÃO CONFIE NA EQUIPE DE LIVREIROS, BIBLIOTECÁRIOS, LEITORES,
VLOGGERS, BLOGGERS, TWEETERS E BOOKSTAGRAMMERS, QUE TAMBÉM
ESPALHAM A PALAVRA. DEPOIS, HÁ O NICK, NOSSA EQUIPE DE ÁUDIO E
NOSSO ESQUADRÃO DE NARRADORES. TOTALMENTE INDIGNO DE
CONFIANÇA.

FAÇA O QUE FIZER, NÃO DÊ AS COSTAS À NOSSA EXTENSA REDE DE


ASSOCIADOS CRIMINOSOS: MEG, MICHELLE, MARIE, LEIGH, KACEY,
THE KATES, SORAYA, ELIZA, DAVE, PETE, KIERSTEN, LT, RYAN, THE
CATS, THE ROTI BOTI CREW, THE HOUSE OF PROGRESS, TSANA, NIC,
SARAH, MARC, B-MONEY, RAFE, WEEZ, PARIS, BATMAN, SURLY JIM,
GLEN, SPIV, ORRSOME, TOVES, SAM, TONY, KATH, KYLIE, NICOLE,
KURT, JACK, MAX, POPPY, MARILYN, FLIC, GEORGE, KAY, NEVILLE,
SHANNON, ADAM, BODE E LUCA. TAMBÉM SAM E JACK. E POR
ÚLTIMO, MAIS E SEMPRE, HÁ AMANDA E BRENDAN... E AGORA PONTO.
GLOSSÁRIO
Notas

[←1]
Fienders: Uma pessoa que é extremamente perversa,
especialmente por ser muito cruel ou brutal.
[←2]
Chi-Chis: Um termo mexicano/nome de gíria para seios. EX:
“olhe bem para o chi chis daquela mamacita”.
[←3]
Ta-tas: Mamas, geralmente de variedade grande e corpulenta.
[←4]
Twofer: um item ou oferta que inclui dois itens, mas é vendido
pelo preço de um.
[←5]
Monólito: Obra ou monumento feito de uma só pedra.
[←6]
Jogo de Galinha: A frase “jogo de galinha” também é usada
como metáfora para uma situação em que duas partes se
envolvem em um confronto onde não têm nada a ganhar e
apenas o orgulho os impede de recuar.
[←7]
Titereiro: O titereiro é aquele que manipula bonecos. Estes
bonecos podem ser de madeira, pano e outros materiais.

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