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Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 .

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A FOTOGRAFIA ABSTRATA DE JOSÉ OITICICA FILHO NO


SUPLEMENTO DOMINICAL DO JORNAL DO BRASIL:
ANÁLISE DE UMA FONTE DE PESQUISA

Carolina Martins Etcheverry1


etchev@gmail.com

Resumo
Este trabalho versa sobre a reportagem do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil a
respeito das fotografias – intituladas recriações – do fotógrafo José Oiticica Filho, nos anos
1950. Analisamos e problematizamos a reportagem, a fim de entender de que modo o
fotógrafo pensava sobre a fotografia, bem como o modo como suas fotografias foram
recebidas no Brasil. Dentro do contexto de desenvolvimentismo nacional, no plano político e
econômico, e de crescente tendência ao abstracionismo, nas artes visuais, a reportagem é
uma importante fonte para o entendimento do processo de criação das fotografias de
Oiticica Filho.
Palavras-chave: Fotografia: Concretismo; Artes Visuais.

Abstract
This paper discusses the report in the Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB)
about the photographs – entitled recriações – of the important photographer José Oiticica
Filho, created in the 1950s. We evaluated the report in order to understand how the
photographer thought about photography as well as how his photographs were received in
Brazil. Within the context of national political and economical developmentalism, and of
increasing tendency to abstraction in the visual arts, the report is an important source for
understanding Oiticica Filho’s process of creating photographs.
Keywords: Photography; Concretism; Visual Arts.

Iniciei minha pesquisa de doutorado há três anos, tendo como objeto de pesquisa as
fotografias abstratas2 de José Oiticica Filho (1906-1964) e de Geraldo de Barros (1923-
1998). Tais fotografias foram criadas principalmente durante a década de 1950, marcadas
pela arte abstrata que brotava no ambiente artístico da época. Durante a pesquisa, encontrei
a reportagem ’Recriação’ – ou a fotografia concreta, na página de Artes Plásticas do
Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, dedicada à fotografia de José Oiticica Filho. Esta
se tornou uma importante fonte para que eu pudesse entender não apenas o processo
criativo do artista, mas também a recepção e a circulação de suas fotografias.
Assim, este artigo procura apresentar sucintamente a figura de José Oiticica Filho, a
partir da que é possível entender sua fotografia, especialmente a abstrata, interessante a
1
Doutoranda em História, PPGH/PUCRS. Bolsista CNPq.
2
O termo fotografia abstrata mostra-se sobremaneira problemático. Um dos objetivos da minha pesquisa é trazer
subsídios teóricos para o entendimento deste tipo de fotografia, que, apesar de ser um índice da emanação de
luz gravada em um suporte fotossensível, não é facilmente identificada pelo observador mais atento.
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essa pesquisa. Com isso, passo a apresentar e problematizar a reportagem do SDJB,


composta de um texto introdutório, uma entrevista e um artigo escrito pelo próprio fotógrafo,
além das fotografias em estudo.

O CONTEXTO DAS ARTES NA DÉCADA DE 1950: UMA VISÃO ESQUEMÁTICA SUCINTA

Para entendermos a fotografia de Oiticica Filho é preciso entender também o


contexto das artes visuais na década de 1950. Apesar de a fotografia já ter experimentado
com formas abstratas anteriormente3, ainda que não no Brasil, foi nesta década, de
atividade artística abstrata intensa, que a fotografia brasileira abraça a abstração e, de um
modo mais geral, a experimentação.
As artes visuais brasileiras, no período anterior aos anos 1950, estavam voltadas
principalmente para uma arte figurativa que procurava enaltecer o país, buscando forjar
assim uma identidade nacional. Na medida em que o contexto nacional4 foi se alterando,
também as artes plásticas começaram a buscar novos caminhos. Com a ideia de
desenvolvimento nacional, a partir do fortalecimento da indústria, foi-se percebendo que o
Brasil ainda era um país dependente, não apenas economicamente, mas também
culturalmente. Começa-se a pensar em formas de sair do atraso cultural existente, e uma
das formas encontradas pelas artes visuais foi voltar-se para a abstração, forma de arte de
vanguarda na Europa e nos Estados Unidos do período. Assim, também se fazia frente à
arte voltada para a criação de uma identidade nacional baseada em aspectos unicamente
brasileiros, bem como voltada para aspectos sociais. Buscava-se uma arte internacional.
Maria de Fátima Morethy Couto (2004) sintetiza do seguinte modo o período do pós-
guerra no Brasil:

Após a guerra, o país, que havia participado timidamente do conflito mundial, conhece um período de
forte crescimento econômico e de modernização industrial. O fim do Estado Novo, simultâneo ao
restabelecimento da paz na Europa, contribuirá igualmente para a criação de um clima de otimismo
generalizado. Esse processo, que se intensificará durante o governo Juscelino Kubitschek (1956-1960),
foi acompanhado de um movimento de abertura às trocas internacionais. A emergência de uma nova
elite econômica, urbana e industrial, que se queria cosmopolita, foi decisiva para a transformação da
vida cultural das grandes metrópoles brasileiras (COUTO, 2004, p. 46).

Com isto, a autora lembra a criação dos principais museus de arte da cidade de São
Paulo, bem como do Rio de Janeiro – Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP),

3
Refiro-me, especificamente, às práticas de Man Ray, Moholy-Nagy, Alvin Langdon Coburn, entre outros.
4
As alterações do contexto nacionais aos quais me refiro envolvem a Revolução de 1930, seguida dos governos
Vargas, Dutra e, principalmente, Kubistchek. Seria muito longo me deter nesse assunto agora, mas é importante
termos em mente que, a partir da Revolução de 30, o país começou a passar por uma série de mudanças
políticas, econômicas, sociais e culturais que contribuíram para novos modos de sociabilidade e de visualidade.
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Museu de Arte de São Paulo (Masp) e Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-
Rio) –, bem como outras iniciativas artísticas, tais como o Teatro Brasileiro de Comédia
(TBC), a TV Tupi e a criação da Escola Superior de Propaganda e do Instituto de Arte
Contemporânea (COUTO, 2004). Estes dois últimos foram, durante a década de 1950, os
principais centros de formação dos publicitários e dos designers brasileiros. Havia, ainda
segundo Couto, uma necessidade de redefinição do papel social do artista brasileiro, e este
papel estaria ligado ao processo de industrialização voltado à modernização do país.

JOSÉ OITICICA FILHO: FOTÓGRAFO

José Oiticica Filho, formado em Engenharia na Universidade do Brasil5, começou a


fotografar de modo puramente utilitário: queria registrar as lepidópteras, borboletas que
estudava no Museu Nacional. Estudou, então, técnicas fotográficas, entre elas, a
microfotografia. A partir deste interesse inicial, associou-se ao Photo Club Brasileiro, no qual
contribuiu com fotografias para exposições e nas discussões internas. Participou, como
membro do ambiente fotoclubista, de inúmeras exposições tanto no Brasil quanto no
exterior, sendo ganhador de inúmeros prêmios. Terminou sua carreira criando fotografias
abstratas bastante instigantes, nas quais subverte a tríade tomada-revelação-ampliação, ao
criar o objeto a ser fotografado e manipular o processo de revelação e cópia em laboratório.
Paulo Herkenhoff (1983) identifica algumas fases em sua produção fotográfica,
buscando, assim, caracterizar didaticamente cada um dos momentos de pesquisa
fotográfica de Oiticica Filho. Assim, o fotógrafo teria passado pelas seguintes fases: utilitária,
fotoclubista, abstrata e construtiva. O autor adverte para o fato de que “algumas dessas
linhas se identificaram ou tiveram um desenvolvimento simultâneo e paralelo”
(HERKENHOFF, 1983, p. 11). Ou seja, não há linearidade na sua obra fotográfica.
Estas fases causam certa divergência entre os autores que estudaram a trajetória do
artista, principalmente pelo fato de que, quando se estabelecem diferentes fases, tende-se a
pensar em um progresso, no qual uma fase suplanta a outra em qualidade e importância. No
entanto, não é possível pensar assim a respeito das pesquisas fotográficas de José Oiticica
Filho, justamente pelo fato de o fotógrafo ver seu trabalho como uma “pesquisa visual”
(OITICICA FILHO, 1958, p. 3). E, como em toda pesquisa, tudo é sempre aproveitado, não
sendo nada deixado de fora. Annateresa Fabris (1998), por exemplo, afirma que, em
determinado sentido, Oiticica Filho nunca deixou de ser um fotógrafo pictorialista,
característica ligada à fase pictorialista. Segundo a autora,

5
Posteriormente, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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Se, de fato, luz e superfície são questões fundamentais para o Oiticica pós-pictorialista, o que não se
pode deixar de levar em conta (...) é que sua visão de fotografia continua a ser informada pelos
postulados da estética que ia abandonando. (...) Oiticica supervaloriza o papel da técnica, detectando o
nascimento da fotografia no trabalho de laboratório, “quando se graduam os cinzas, as luzes, o corte”
(FABRIS, 1998, p. 71-74).

Do mesmo modo, Maria Teresa Bandeira de Mello (1998) questiona-se a respeito


das diferentes fases de Oiticica Filho, colocando que o pictorialismo não o teria abandonado:
“É curioso observar que, mesmo depois de se libertar dos cânones fotoclubistas e de se
entregar a experimentações modernizadoras, ainda podem ser encontradas em suas obras
semelhanças com a concepção de fotografia pictorialista” (MELLO, 1998, p. 120).
O que parece contribuir para que possamos entender o artista e suas diferentes
fases é justamente apontado por Mello (1998) na citação anterior: a relação entre
fotoclubismo, pictorialismo e a experiência moderna. O movimento pictorialista, entendido
como uma forma de aproximar a fotografia das artes visuais, se desenvolveu na maior parte
dos casos em agremiações fotográficas, a partir do início dos anos 1890. Tinha como mote
a diferenciação entre os fotógrafos industriais, que utilizavam a técnica fotográfica com fins
comerciais, e os fotógrafos que, ao contrário, eram desejosos de ver a fotografia alcançar o
mesmo patamar das artes visuais.
Os fotógrafos voltados ao pictorialismo faziam uso de variadas técnicas, algumas em
laboratório e outras não, para obtenção dos resultados plásticos desejados, assim como
Oiticica Filho fazia uso do extensivo trabalho em laboratório – como veremos a seguir, em
sua entrevista – para a obtenção dos resultados visuais almejados. O pictorialismo pode ser
visto, talvez, como a raiz da experimentação moderna que viria a acontecer na fotografia, ao
longo do século XX. Nesse sentido – o da manipulação da fotografia para a obtenção de
determinados resultados, geralmente vinculados a padrões artísticos – Oiticica Filho nunca
se desvinculou da tendência pictorialista, apesar de ter se afastado do ambiente fotoclubista
voltado a esta vertente, aproximando-se do Foto Cine Clube Bandeirante, voltado à
experiência moderna na fotografia6.
É interessante também pensar as fotografias de José Oiticica Filho do ponto de vista
do próprio fotógrafo. A reportagem analisada a seguir ajuda-nos nesse objetivo, mostrando
uma das quatro séries de fotografias a que se dedicou. Segundo classificação do fotógrafo,
suas imagens são divididas entre os seguintes grupos: Formas, Derivações (dentro das
quais está presente a série Ouropretense) e Recriações. Tais séries tratam da relação entre
o fotógrafo e o processo de criação da fotografia. Segundo Antonio Fatorelli (2000), “essas
três séries distinguem-se objetivamente pela natureza da participação do fotógrafo no
processo de criação” (FATORELLI, 2000, p. 153).

6
Sobre o Foto Cine Clube Bandeirante, ver COSTA e SILVA (2004).
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O SDJB: IMPORTÂNCIA DA FONTE ESTUDADA

O Suplemento Dominical do Jornal do Brasil circulou entre 3 de junho de 1956 e


dezembro de 1961. A seção de artes plásticas (também havia a de literatura, cinema,
música, teatro, dança e filosofia) estava a cargo de Oliveira Bastos e de Ferreira Gullar,
passando a circular em outubro de 1956, com artigo inaugural sobre a I Exposição de Arte
Concreta (VARELA, 2007, p. 11). A ligação com os movimentos artísticos de vanguarda era
inegável.
O SDJB, bem como todo o Jornal do Brasil, estava passando por mudanças gráficas,
feitas principalmente por Amilcar de Castro. A consolidação de tais mudanças, segundo
Bastos (2008) foi no ano de 1960. A primeira diagramação de Amilcar de Castro no SDJB foi
em março de 1959 (VARELA, 2007). A principal modificação na diagramação apresentada
por ele foi a eliminação parcial dos classificados (o jornal era quase todo de classificados),
dispondo-os em um formato em L, ao redor das principais notícias. Elizabeth Catoia Varela
(2007, p. 6) afirma que “O SDJB se diferencia dos outros jornais, pois permite-nos fruir
artisticamente a sua diagramação. A página é trabalhada como um todo, a sua imagem é
construída e estruturada. Ela é pensada para existir enquanto unidade”.
É notável o fato de o SDJB ser um dos grandes divulgadores da arte de vanguarda
do século XX, formando um público capaz de absorver as novidades artísticas no Brasil.
Assim, dava-se ênfase à abstração, principalmente à vertente informal que daria origem ao
Neoconcretismo (VARELA, 2007). No entanto, o suplemento também contribuiu para a
divulgação da abstração geométrica, mais em voga na cidade de São Paulo.

A REPORTAGEM

A reportagem, em página simples, é uma referência importante no estudo da


fotografia de José Oiticica Filho. Ela marca, de certa forma, a importância deste fotógrafo no
meio artístico, visto que ele aparece em um espaço dedicado às artes plásticas. Podemos
inferir, a partir disso, que o diálogo fotografia-artes visuais foi aberto devido à sua ligação
com o Concretismo.
A reportagem possui três partes distintas, mas interligadas: uma apresentação geral,
sob o título de “Recriação” – ou a fotografia concreta; uma entrevista, intitulada Oiticica:
“fotografia se faz no Laboratório”; e um texto escrito pelo próprio fotógrafo, explicando seu
processo criativo: A recriação fotográfica. Juntas, elas permitem entender como o fotógrafo
foi interpretado por seus pares, bem como suas ideias sobre a fotografia e seu processo de
criação. Partimos agora para a análise das três partes da reportagem.
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Figura 1 – Facsímile da página de Artes Plásticas do SDJB.


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“Recriação” – ou a fotografia concreta

A leitura da apresentação da reportagem sobre a fotografia de José Oiticica Filho,


escrita por Ferreira Gullar, é uma fonte importante para entendermos um pouco a recepção
da sua fotografia, notadamente a série “Recriação”. As palavras renovação, pesquisa,
experiência e invenção sintetizam o trabalho de Oiticica Filho que, segundo Gullar, é um
artista7.
O crítico inicia sua apresentação situando o leitor em relação ao fotógrafo: respeitado
nos círculos fotográficos no mundo inteiro, ganhou inúmeros prêmios por suas imagens,
além de figurar em importantes listas dos melhores fotógrafos do mundo 8. Entretanto, ao
iniciar suas pesquisas fotográficas que resultam na série “recriações”, Oiticica Filho perde
este lugar no mundo dos fotoclubes. Gullar coloca que “por se renovar, por pesquisar novas
dimensões expressivas para a fotografia, foi praticamente banido dos salões onde até bem
pouco a maioria lhe tirava o chapéu” (GULLAR, 1958, p. 3). Suas fotografias não são mais
consideradas fotografia pelos membros dos fotoclubes tradicionais, “não se enquadram mais
dentro dos padrões usuais – e por isso não merecem ser expostos” (GULLAR, 1958, p. 3).
Mas são justamente os padrões usuais que Oiticica FIlho procura questionar, ao mostrar
que a fotografia pode ser muito mais do que apenas uma reprodução bem feita do real.
A ênfase de Ferreira Gullar está justamente na pesquisa em busca da renovação da
prática fotográfica a que Oiticica Filho se volta em determinado período de sua carreira. A
partir de um processo de experimentação, o fotógrafo consegue os resultados fotográficos
que podemos ver ilustrando a reportagem. Depois de descrever o processo criativo do
fotógrafo9, Gullar conclui que

Trata-se de uma exploração “concreta” da forma, que se vai desdobrando de si mesma pelas
combinações de seus elementos, controlada pelas qualidades visuais que a conformam, e onde o artista
intervém para escolher dentro das combinações que a própria forma – por assim dizer, em expansão ...
– oferece. (GULLAR, 1958, p. 3).

Gullar (1958, p. 3) prossegue em sua apresentação enfatizando o interesse no


trabalho de Oiticica Filho, ainda que os dois tenham divergências quanto à fotografia
figurativa, conforme veremos na entrevista. Segundo o crítico, o fotógrafo dá “uma função
nova e fecunda aos processos fotográficos”, e esse caráter de novidade é o que faz com
que sua fotografia seja importante, pois ela contribui para a expansão do campo fotográfico
(FERNANDES JÚNIOR, 2006).

7
Vale lembrar a existência, na época, da polêmica sobre a fotografia ser ou não arte.
8
Ferreira Gullar cita o American Annual of Photography e a Fedération Internationale d’Art Photographique.
9
“JOF parte de determinada composição desenhada por ele mesmo e, pela combinação de positivos e negativos
dessa composição inicial, desenvolve novas formas e relações latentes nela” (GULLAR, 1958, p. 3).
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A busca por um “novo vocabulário visual”, segundo Gullar, “não pode permanecer
submetida à comodidade das convenções acadêmicas ou a um emprego que, embora
legítimo, deixa de lado grande parte de suas possibilidades criativas” (GULLAR, 1958, p. 3).
Ou seja, a fotografia criada por Oiticica Filho ultrapassa as convenções acadêmicas
determinadas para este meio, fornecendo ao observador uma fotografia muito mais
instigante do que o mero registro documental do real.
Ferreira Gullar conclui a apresentação da fotografia de José Oiticica Filho
enfatizando a descoberta de uma “expressão nova com os meios fotográficos”, que,
segundo ele, deveria servir de inspiração para que jovens fotógrafos experimentassem e
inventassem mais com a fotografia. Assim, o crítico traça o percurso do artista, da
consagração à “subversão”, através da experimentação e invenção na fotografia, que teriam
proporcionado “novas possibilidades criativas” e um “novo vocabulário visual”, bem como a
possibilidade de existência de uma “expressão nova com meios fotográficos”. A importância
da novidade no trabalho de José Oiticica Filho, que traz um sopro de ar fresco no campo da
fotografia, é o foco da apresentação de Gullar.

A recriação fotográfica

José Oiticica Filho escreveu para a seção de Artes Plásticas do SDJB um artigo
explicando seu processo criativo, bem como os casos com os quais depara ao fazer uma
“pesquisa visual”. O texto inicia explicando o processo fotográfico clássico, para, então,
apresentar a especificidade da pesquisa do autor:

Ao tirar uma fotografia e revelá-la, fico com um negativo da coisa fotografada. Esse negativo é
transparente. Posso copiar o negativo obtido por contato ou por ampliação, em papel fotográfico ou em
filme transparente. No primeiro caso obtenho uma cópia positiva, não transparente, conhecida por
todos. No segundo caso obtenho um positivo transparente (OITICICA FILHO, 1958, p. 3).

O positivo transparente é a parte experimental do trabalho de Oiticica Filho. A


primeira parte é bastante tradicional: a imagem é gravada pela câmera em um negativo, que
pode ser copiado por contato ou ampliação, geralmente em papel fotográfico, obtendo uma
cópia positiva normal. No entanto, Oiticica Filho também faz ampliações em filme
transparente, obtendo, assim, um positivo transparente.
Sobre o positivo transparente, devemos tecer alguns comentários, visto não ser uma
prática fotográfica ordinariamente praticada. Em conversa com um fotógrafo paranaense,
João Urban, foi sugerido que o filme transparente usado por Oiticica Filho seja um filme
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gráfico10. Tal filme, ao ser revelado com revelador comum, gera imagens altamente
contrastadas, como as que o fotógrafo apresenta.
Oiticica Filho prossegue em sua explicação:

Copiando o positivo assim obtido tenho outro negativo, deste posso obter outro positivo e assim por
diante. Posso portanto ter da coisa original fotografada vários negativos e positivos transparentes tantos
quantos me forem necessários para a realização da pesquisa visual em mira (OITICICA FILHO, 1958, p.
3).

Ou seja, é da combinação de negativos e positivos que Oiticica Filho obtém sua


fotografia. Ele adiciona ainda o fato de que “o negativo obtido tem potencialmente a
propriedade de me dar inúmeras imagens. Dependente agora do artista pesquisador o
resultado final a atingir” (OITICICA FILHO, 1958, p. 3).
Mas a pesquisa visual empreendida pelo fotógrafo vai além, fazendo com que
identifique dois casos a serem considerados. Ele faz uma distinção entre a “coisa
fotografada” ser ou não ser criação sua. No caso de o objeto fotografado não ser obra sua,
acontece de a combinação de positivos e negativos transparentes ser o que ele chama de
“derivações fotográficas”. Explica: “claro que obtenho novas imagens, novas criações, mas
partindo de algo que não foi minha criação. Tenho várias derivações que me deram
interessantes resultados pictóricos” (OITICICA FILHO, 1958, p. 3). A série Ouropretense é
um exemplo de derivação fotográfica, a partir dos muros da cidade de Ouro Preto.
Já no segundo caso, em que o objeto fotografado é criação de Oiticica Filho, sendo
em geral uma composição em preto e branco, a combinação de positivos e negativos
transparentes chama-se recriação. Ele afirma:

A recriação fotográfica é, a meu ver, um método interessantíssimo para estudos e pesquisas em artes
visuais, sob um ponto de vista geral, e não apenas fotográfico. Com os exemplos que ilustram a
presente reportagem é fácil ver até que ponto um negativo fotográfico contém em si, em estado
potencial, um mundo de novas combinações, de novos problemas, não apenas visuais, mas estético
visuais (OITICICA FILHO, 1958, p. 3).

É interessante perceber que José Oiticica Filho pensava além da fotografia em si,
buscando abarcar questões estéticas de valor. O resultado de sua pesquisa visual deveria
ser algo de valor visual, deveria ser a proposição de um problema visual a ser resolvido,
tanto pelo fotógrafo quanto pelo observador.

10
URBAN, João. Depoimento em conversa por email com a autora, em 30 de setembro de 2010.
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A entrevista – síntese da reportagem

A entrevista, intitulada Oiticica – “a fotografia se faz no laboratório” pode ser


entendida como uma síntese das duas partes da reportagem, na qual crítico e fotógrafo
conversam sobre as fotografias. A primeira questão tratada pelos dois é se as recriações
são, de fato, fotografias. A resposta de Oiticica Filho é peremptória: “Por que não? Desde
que apresento o resultado como uma cópia fotográfica é fotografia” (OITICICA FILHO,
GULLAR, 1958, p. 3).
A polêmica da entrevista gira em torno da fotografia dita documental, da qual o
entrevistado não é nem um pouco partidário. Segundo ele, confunde-se arte fotográfica com
reportagem fotográfica, na qual não há, ainda de acordo com ele, nenhuma expressão
pessoal do autor. Esse seria o caso, por exemplo, das fotografias de Cartier-Bresson: “o que
há de belo ou dramático (se é que há) é do próprio fato e não do fotógrafo. Na minha opinião
isso não é arte fotográfica” (OITICICA FILHO, 1958, p. 3). A captura de cenas fortuitas não
era considerada arte fotográfica por ele, talvez porque ele próprio estivesse empenhado em
fazer com que suas fotografias experimentais fossem vistas como tal. No entanto, essa
opinião forte sobre fotografias de ampla aceitação pelo público gerou muitas polêmicas.
Finda esta parte mais polêmica, Gullar e Oiticica Filho passam a discorrer sobre a
fotografia ser ou não um trabalho principalmente de laboratório. Contrariando as práticas
fotográficas correntes (e inclusive as atuais), o entrevistado defende que

o papel da máquina fotográfica ainda é bem menos importante que o que vem depois. Se o fotógrafo
bate a chapa, revela e manda copiar, ele entrega ao copiador a fase mais importante do trabalho de
criação fotográfica. Quanta coisa se pode fazer ao copiar uma foto. É nessa hora, quando se graduam
os cinzas, as luzes, o corte, que a fotografia bem dizer nasce. Mas os fotógrafos neo-realistas batem as
fotos e mandam copiar. É até um crime uma pessoa assinar como sua uma foto que outro copiou.
(OITICICA FILHO, GULLAR, 1958, p. 3).

Por fim, Oiticica Filho analisa suas recriações, sob o ponto de vista da crítica, que
não as considera fotografias. Gullar aponta para o fato de que o fotógrafo como que elimina
o que a fotografia tem de específico, no caso, os meio-tons, e isso faz com que as pessoas
vejam na sua foto mais um desenho do que uma fotografia. Oiticica Filho rebate essa
possibilidade do seguinte modo:

Há quem não considere como foto minhas recriações, porque não uso nelas cinzas, próprios da
fotografia tal como é entendida pela maioria. Acham que é desenho, porque as formas se imprimem em
preto e branco. Ora, trata-se de um raciocínio equivocado. Minhas recriações são fotografias porque
nascem de um processo fotográfico legítimo como qualquer outro. Se não uso cinzas é porque o que
me interessa é a forma e a dinâmica do plano, o que só se pode conseguir pela impressão, sem meias
luzes, do preto sobre o branco. Não tenho culpa de que, por usar o preto-e-branco, confundam minhas
recriações com desenho que, em geral, é em preto-e-branco também (OITICICA FILHO, GULLAR,
1958, p. 3).
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Assim, podemos perceber como o fotógrafo pensava não só a respeito de suas


recriações, mas também a respeito da própria prática fotográfica como um todo. Polêmico,
José Oiticica Filho tem opiniões fortes a respeito da arte fotográfica, que deveria ser voltada
à criação e não à reprodução.

À GUISA DE CONCLUSÃO – A CONTRIBUIÇÃO DA PÁGINA DE ARTES PLÁSTICAS


DO SDJB AO ESTUDO DA HISTÓRIA DA FOTOGRAFIA BRASILEIRA

Sabemos já que o estudo sobre o SDJB proporciona aos pesquisadores grandes


subsídios para o estudo da história do design brasileiro, bem como das artes visuais,
notadamente do Concretismo. No entanto, é preciso considerar também sua contribuição
para o estudo da história da fotografia brasileira. O fato de José Oiticica Filho ter ganhado
destaque com essa reportagem em um jornal de grande circulação mostra a aceitação –
ainda que tímida – que a fotografia começou a ter no período. Saindo do espaço específico
dos fotoclubes, a fotografia ganhou visibilidade de um público maior, que passa a encará-la
como uma forma legítima de arte, ou pelo menos com potencial para tal11.
Oiticica Filho contribuiu em muito para o crescimento da “arte fotográfica” brasileira,
abrindo caminho, com suas experimentações, para que outros fotógrafos e artistas também
buscassem inovações no campo da fotografia. Até hoje, José Oiticica Filho, Geraldo de
Barros e outros fotógrafos dos anos 1950 servem de referência para jovens artistas.

REFERÊNCIAS

COSTA, Helouise; SILVA, Renato Rodrigues. A fotografia moderna no Brasil. São Paulo:
Cosac Naify, 2004.
______. Da fotografia como arte à arte como fotografia: a experiência do Museu de Arte
Contemporânea da USP na década de 1970. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.
16, n. 2, p. 131-173, jul.-dez 2008.
COUTO, Maria de Fátima Morethy. Por uma vanguarda nacional. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2004.
FABRIS, Annateresa. A fotografia além da fotografia: José Oiticica Filho (1947-1995). In:
Imagens, Campinas, n. 8, maio-ago. 1998.
FATTORELI, Antonio. José Oiticica Filho e o avatar da fotografia brasileira. Lugar Comum,
(UFRJ), Rio de Janeiro, v. 11, p. 141-158, 2000.

11
Note-se que não estamos aqui falando sobre a institucionalização da fotografia nos espaços expositivos.
Existem bons estudos sobre esse assunto. Ver COSTA (2008) e CAMERA.
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FERNANDES JÚNIOR, Rubens. Processos de criação na fotografia: apontamentos para o


entendimento dos vetores e das variáveis da produção fotográfica. In: FACOM, n. 16, 2.
semestre de 2006.
GULLAR, Ferreira. “Recriação” – ou a fotografia concreta. In: Jornal do Brasil, Suplemento
Dominical, 24 ago. 1958, p. 3.
HERKENHOFF, Paulo. A trajetória: da fotografia acadêmica ao projeto construtivo. In: José
Oiticica Filho: a ruptura da fotografia nos anos 50. Catálogo. Funarte/Núcleo de Fotografia,
1983.
MELLO, Maria Teresa Bandeira de. Arte e fotografia: o movimento pictorialista no Brasil. Rio
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OITICICA FILHO, José. A recriação fotográfica. In: Jornal do Brasil, Suplemento Dominical,
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OITICICA FILHO, José; GULLAR, Ferreira. Oiticica: “fotografia se faz no Laboratório”. In:
Jornal do Brasil, Suplemento Dominical, 24 ago. 1958, p. 3.
VARELA, Elizabeth Catoia. SDJB – veículo ideológico e objeto artístico do movimento
neoconcreto. In: Arte e Espaço: ambientações híbridas. (Museu Nacional de Belas Artes),
2007. Anais do XIV Encontro do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da
EBA/UFRJ. Disponível em: <http://ow.ly/4c7aO>. Acesso em: 10 de março de 2011.

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