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MANUAL

DE ESTILO
(1926)

JOSÉ
OITICICA
ADVERTÊNCIA
Podemos afirmar que, no Brasil, a generalidade dos homens
públicos, jornalistas, advogados, médicos, engenheiros,
funcionários, historiadores, geógrafos, escrevem mal.
Relatórios, conferências, livros didáticos ou de polêmica,
entre nós, surpreendem pelo desmanchado, pela incorreção, pelo
excesso, prolixidez ou amontoamento.
Qual o motivo desse desalinho no estilo? Minha observação
no magistério, sobretudo nas bancas de preparatórios, me confirma
numa causa única: desorientação geral dos professores primários e
secundários. Sem terem aprendido nunca a técnica de escrever,
cada qual corrige a esmo as composições dos seus alunos,
emendando e aconselhando conforme o seu gosto pessoal, muitas
vezes malformado.
Citarei, para ilustrar minha asserção, um caso eloquente.
Tendo assumido a regência de uma turma na Escola Normal,
determinei, para avaliar o adiantamento das alunas, uma
composição com elementos descritivos de paisagem e tipo.
Em todos os trabalhos observei um sem-número de velhas
chapas, o estilo alambicado e meloso dos falsos românticos
perífrases contínuas e o vago do inexpressivo jeito arcádio, diluído
em lirismo à Herculano. Eram os mimosos cantores da floresta
saltitando de galho em galho; eram dentes comparados a um colar
de finas pérolas, ou o orvalho semelhante a lágrimas da noite.
Tomei uma das composições e fiz-lhe a crítica em aula,
mostrando os vícios de tal estilo. A autora, vaidosa de ter sido, no
ano anterior, uma das primeiras, declarou-me escrever assim, por
assim lhe haver aconselhado o professor. Disse-me textualmente:
- Meu professor me dizia que era necessário florear o estilo.
Ao que retruquei ser mau conselho e consistir a virtude
exatamente no oposto, em fugir, por todos os meios, o estilo
floreado.
Essa mesma aluna, meses depois, fazia composições ótimas,
algumas admiráveis de precisão, cor local e originalidade. Era um
notável temperamento artístico, desaproveitado e transviado pelo
mau gosto do professor.
Nas bancas examinadoras tenho lidado com sábios colegas,
os quais louvam composições insulsas e palavrosas, e nenhum
valor dão a algumas excelentes pela simplicidade, concisão e
elegância.
Cumpre consignar, efetivamente, o pendor artístico dos
rapazes e moças brasileiros. Com alguns preceitos simples e bons
modelos podemos levá-los facilmente a escrever bem, suscitar
mesmo, não raro, escritores, poetas e poetisas.
Certo disso, resolvi condensar, em regras práticas, muito
simples, o essencial do que ensinam os mestres na matéria. Este
Manual, fruto de laboriosa seleção, contém as normas
fundamentais, apenas, para quem quer escrever satisfatoriamente,
com elegância, simplicidade, clareza e vigor. Não visa, de modo
algum, e insisto neste ponto, fabricar escritores. Ministra, tão
somente, os princípios clássicos, segundo os quais, podem os mais
destituídos de veia literária redigir a contento dos leitores.
Entretanto, os mesmos gênios necessitam de iniciação. A arte de
escrever, como toas as artes, é difícil e a de hoje é resultado de
multisseculares aperfeiçoamentos conseguidos por grandes
mestres, cujos processos a crítica esmiuça e apura. Supor que o
talento natural, por si só, tudo adivinha, e descobre, de salto ou de
oitiva, o que gerações de gênios pouco a pouco revelaram, é
incorrer no lamentável erro de tantos músicos, pintores, escultores,
perdidos para a arte de não quererem conquistá-la de mansinho,
nem lhe aprender custosamente a técnica severa.
Para amenizar o texto ou confirmar-lhe a doutrina, valorizei
o livro com passos de tratadistas, conselhos de mestres, desparzidos
sob a forma de leituras.
Aos professores novos advirto: não se limitem ao
indispensável deste Manual, mas versem as obras dos especialistas
até se familiarizarem com todas as variedades de estilo e
conseguirem discriminar o bom do mau. Demais, importa, ao
corrigirem uma frase ou período, que expliquem ao aluno o motivo,
o porquê da correção, dando-lhe a liberdade de aceitar, ou não, a
emenda. Só assim lograrão formar-lhe o gosto, criar nele o
sentimento de responsabilidade e o esforço de pesquisa, caminho
de toda a arte.
Aos meus colegas, tarimbados no ofício, rogo o favor de me
apontarem falhas, omissões, descuidos. De tudo me valerei para
melhorar este Manual e torná-lo, se possível, guia seguro nas
escolas.

Rio – 16/11/1925
PRIMEIRA PARTE
TEORIA DO ESTILO
1 – Há três gêneros de estilo: descrição, narração,
dissertação. Todos os variados tipos literários: cartas, diálogos,
fábulas, apólogos, sermões, discursos, contos, etc., se resolvem,
intimamente, num equilibrado uso desses três gêneros
fundamentais.
2 – DESCRIÇÃO é uma sequência de aspectos. Há dela três
espécies, como em pintura: a de interior, a de paisagem, a de tipo
ou figura. Podemos, numa só descrição, misturar essas três
espécies. A descrição pode ainda ser de natureza morta ou de
natureza movimentada, conforme forem os aspectos imotos ou não.
Neste último caso, temos a cena, interior e exterior.
3 – NARRAÇÃO é uma sequência de fatos ou episódios.
4 – DISSERTAÇÃO é uma sequência de opiniões. Essas
opiniões podem ser pessoais ou mera reprodução de alheias.
5 – Há seis qualidades essenciais de estilo: correção,
concisão, clareza, harmonia, originalidade, vigor. Há seis defeitos
essenciais correspondentes a tais qualidades: impureza, prolixidez,
obscuridade, desarmonia, banalidade, frouxidão.
6 – A correção consiste em observara tradição gramatical dos
mestres da língua.
A concisão consiste em no expressar os aspectos, factos ou
opiniões com o menor número de frases ou palavras. Podemos
defini-la: o dispêndio mínimo de esforço com o máximo efeito de
expressão. Naturalmente, só se considera qualidade se não
prejudica as demais qualidades o excesso de concisão redunda em
obscuridade e desarmonia.
A clareza consiste na transmissão mais facilmente
compreensível do pensamento.
A harmonia consiste em dispor a descrição, a narração, ou a
dissertação do modo mais artístico, evitando as dissonâncias e
compondo as frases com os ritmos mais bem combinados.
A originalidade consiste em apresentar os aspectos, fatos ou
opiniões de modo pessoal, sem imitação de processos ou
particularidades alheios.
O vigor consiste em transmitir o aspecto, o fato ou a opinião
do modo mais incisivo, que mais excite a atenção ou a emoção do
leitor.
7 – DA CORREÇÃO – Pouco vale o melhor estilo sem
correção de linguagem. A língua tem uma disciplina que importa
respeitar. Um dos traços mais distintivos entre o grande escritor e
o escritor vulgar é a frase estreme. Verdade é que, em todas as
línguas, sumos prosadores e poetas, há incorretos. Porém são raros
e melhor seria não pecassem por isso. E sempre um senão que os
diminui.
A língua é um patrimônio; devemos amá-lo, acrescê-lo; mais
ainda, protegê-lo das contaminações deformadoras ou
conspurcadoras.
Nenhum pianista suportaria um piano desafinado ou
executaria uma sonata cheia de erros técnicos.
8 – Para obter correção, importa: 1.º evitar os solecismos; 2.º
evitar as cacografias; 3.º evitar a deformação; 4.º evitar o
cruzamento; 5.º evitar os barbarismos. 6.º evitar o arcaísmo inútil
ou chocante; 7.º evitar o neologismo malformado, feio ou
pretensioso.
9 – Solecismo é o erro de sintaxe; ex.: “Ao chegar ontem na
estação, soube que tinhas te metido no negócio das sedas e já não
íeis de mudança para S. Paulo”. – “Entre eu e tu não devem haver
divergências. Nada poderás fazer em eu, nem eu sem tu” – “Não
respondi o teu bilhete porque tive de ir na casa de Pedro que mora
daqui a cinco léguas”.1
10 – Cacografia é o erro de grafia; ex.: esparthano, delectério,
dhália, defesa, lyrio, paysagem. É claro que, segundo o sistema de
grafia adotado, diferem os erros. Por exemplo, as palavras collegio,
theatro, escripta, visinho, notavel, corretamente grafadas em
ortografia usual, são cacografias para o sistema português
simplificado; para os partidários da grafia comum, entre nós, são
cacografias êle, sôbre, ano, aflição, etc., corretas no sistema
português.
Consegue-se evitar as cacografias com o ditado e, depois,
com o estudo apurado da morfologia e etimologia.
11 – Deformação é o erro na forma da palavra; exs.:
nquilíbrio, fazerei, sube, interti, interviste, fosteis, farso.
12 – Cruzamento é a troca de palavras parecidas; ex.: tráfico
por tráfego, incipiente por insipiente, intemerato por intimorato,
estalado por estrelado, etc.
13 – Barbarismo é o emprego abusivo de palavras ou
construções estrangeiras.
Os mais comuns são os galicismos (debutar, constatar,
controle) e os anglicanismos (flertar, referee, groom). Os
germanismos são raros e limitam-se à técnica científica: quartzo,
talvegue, nickel. Os espanholismos, italianismos e latinismos
foram comuns no século XVI e XVII; hoje, são raros.
Vamos tratar especialmente dos latinismo e galicismos.
O latinismo foi vício literário dos clássicos portugueses,
mormente os da escola arcádia, no século XVIII. Francisco
Manuel do Nascimento, mais conhecido por Felinto Elísio,

1
O processo mais prático de exercitar a correção é emendar trechos errados, sempre sob
a direção do professor. Servem muito bem os Textos para corrigir do professor Othelo
Reis.
combatendo os francesismos, assim justifica o latinismo dos
clássicos:
Se temos de pedir a alguma bolsa
Termos que nos faleçam, seja à bolsa
Da nossa mãe latina, que já muito
Nos acudiu com pressas mais urgentes,
Quando em broca escassez já laboramos
Ao sairmos das mãos da bruta gente.
Os autores modernos recorrem pouco aos latinismos novos e
refugiam os inumeráveis aventados ou inventados pelos anti-
galicistas. Ninguém usará hoje de um velocípede no sentido de
rápido, ligeiro; de armo por ombro; averso por voltado. Nem de
palavras compostas deste feitio: eri-lustroso, olhi-cerulea, braci-
candida, nubícogo, etc.
O latinismo não é somente léxico; há também o sintáticoe o
de estilo. Eis um exemplo de estilo alatinado:
Isto os atiça e alenta. E um Élio os Teucros
Talvez de acorbardados se acoutassem,
Lá se não fosse Heleno Priamides,
Áugur sem par: “Em vós, Heitor e Enéas,
Que sois no pulso e aviso os meus prestantes,
Lícios e Troas a esperança libram.
De ala em ala ide já deter os nossos,
Quem em destroço nos braços das consortes
Não se salvem com riso dos contrários.
Mas, assim que exortardes as falanges,
Nós, de cansaço opresso, neste aperto
Combateremos firmes, para aos muros
Ires, Heitor. A nossa mãe requeiras
Que as matronas congregue, e de Minerva
Subindo o sumo alcáçar, os batentes
Do sacrário descerre; oferte às plantas
Da olhi-cerúlea, crini-pulcra déa,
De quantos peplos guarda o que mais preza
Por grande e donoso, e doze intactas
Anejas indomadas lhe prometa
Sacrificar, se houver dos nossos filhos
E das esposas dó, longe da santa
Ílio apartando o campeão Tidides
Formidoloso artífice da fuga.
Dos Gregos valentíssimo o reputo;
Nem de Aquiles que prole creem divina
Nos temíamos tanto: agora aquele
Mais sanhudo de mostra e inelutável”.
(Odorico Mendes – Ilíada – pág. 78)
14 – Muito mais comum nas principais línguas modernas é o
galicismo. Há galicismos léxicos e sintáticos. Os primeiros nem
sempre são evitáveis. É natural que, sendo a França um país de
grande influência em todos os ramos da atividade humana, seus
termos técnicos, científicos, de moda, de trato social, emigrem com
suas criações, pensamentos e vida. O inglês e o alemão absorvem
rapidamente as palavras não só francesas como latinas de qualquer
país, dando-lhes feição nacional e incorporando-as ao léxico
vantajosamente. O francês, por seu lado, está cheio de palavras
estrangeiras, sobretudo inglesas: steamer, croup, budget, dandy,
dandiner, lunch, pamphlet, partenaire, tramway, gallon, etc.
A propósito, para aqui traslado as seguintes considerações de
Fénelon em sua carta a Dacier, sobre as ocupações da Academia
Francesa:
“Ser-me-ia lícito aventurar, por excessivo zelo, uma
proposição que submeto a tão douta companhia? Carece nossa
língua de um poder de palavras e de frases: suponho até que, de há
cem anos, por querer purificá-la, a temos contrafeito e
empobrecido. É verdade que estava ainda um pouco informe e por
demais verbosa. Dá-nos, porém, saudade essa linguagem velha se
a topamos em Marot, em Amyot, no cardeal de Ossat, nas obras
mais aceitas ou mais sérias; possuía não sei que de breve, ingênuo,
ousado, vivo e apaixonado. Suprimimos-lhe, se me não engano,
mais palavras do que nela introduzimos. Aliás, eu desejaria não
perder nenhuma delas e adquirir novas. Prazer-me-ia autorizar
qualquer termo que nos falte, que seja suave, sem perigo de
equivocação.
“Se apurarmos a significação dos termos, notaremos que não
há deles sinônimos perfeitos. Incontáveis são os incabais de
designarem apropriadamente um objeto sem o apêndice do
segundo termo. Daí a frequência das circunlocuções. Cumpriria
abreviar adotando um termo simples e ajustado à expressão de cada
objeto: é o meio de evitar todo equívoco, variar as frases, facilitar-
lhes a harmonia, escolhendo, entre os múltiplos sinônimos, o mais
consoante ao resto do discurso. Os gregos fabricavam
numerosíssimos compostos, como pantocrator, glaucopis,
eucnemides, etc. Embora menos livres nesse gênero, imitaram os
latinos, algum tanto, os gregos: lanifica, malesuada, pomifer, etc.
Servia tal composição de abreviar e facilitar a magnificência dos
versos. Demais, reuniam, sem escrúpulos, no mesmo poema, vários
dialetos, para mais variada e facilmente versificarem. De vocábulos
estranhos, que lhe faleciam, opulentaram os latinos sua língua. Por
exemplo: minguavam-lhes termos próprios à filosofia, tão
retardatária em Roma; aprendendo o grego, apanhavam-lhe as
palavras para raciocinar em ciências. Conquanto muito escrupuloso
na pureza da língua, emprega Cícero livremente os termos gregos
de que precisa. À princípio, a palavra grega se considerava
estranha; pedia-se licença no citá-la; depois, fazia-se posse e direito
à permissão. Dizem-me que os ingleses não refusam palavra
alguma cômoda; tomam-nas aos vizinhos, onde as acham. Tais
usurpações consentem-se. Neste particular tudo se faz comum pelo
simples uso. As palavras são apenas sons com que arbitrariamente
figuramos nossos pensamentos. Por si mesmos tais sons não tem
valor. Pertencem tanto ao povo que os empresta, como ao que os
adota. Que importa seja um termo nato em nossa terra ou nos venha
de terra estranha? Pueril seria o zelo quando não se trata mais que
do jeito de mover os lábios e ferir o ar. Além disso, não temos nada
que salvaguardar desse falso pundonor. Nossa língua é mescla de
latim, grego e tudesco, mais uns restos confusos de gaulês. Já que
vivemos de tais empréstimos feitos nosso próprio lastro, por que
nos envergonharmos da liberdade de fazer outros que nos
acabariam de enriquecer? Tomemos, de toda a parte, quanto nos
possa tornar mais clara a língua, mais precisa, mais breve e mais
harmoniosa; todo circunlóquio enfraquece o discurso.
“Naturalmente, cumpre que pessoas de provado gosto e
discernimento selecionem os termos autorizáveis. Mais
convinháveis nos parecem os vocábulos latinos: suaves são as suas
vozes e eles se prendem a palavras enraizadas em nosso idioma;
nosso ouvido está mais afeito a eles. Basta-lhes um passo para nos
entrarem casa adentro, convindo apôr-lhes uma terminação
agradável. Se entregarmos ao acaso, ou à plebe ignara, ou à moda
feminina a introdução dos termos, vários surgirão sem a clareza ou
a brandura desejáveis. Confesso que, se atufássemos a nossa
língua, às pressas e sem toque, de termos peregrinos, reduziríamos
o francês a um montão grosseiro e informe de outras línguas
diferentíssimas em gênio”.
Logo adiante, continua: “Falta-nos um termo? Sentimos
carência dele? Escolhamos uma voz suave e sem equívoco,
acomodável a nossa língua e cômoda à brevidade do discurso.
Todos lhe sentirão, a princípio, a comodidade; quatro ou cinco
pessoas o arriscarão modestamente na conversa familiar, outros o
repetirão pelo prazer da novidade; ei-lo na moda”.
Essas considerações são, de todo ponto, justas. O escrúpulo
excessivo empobrece a língua e a torna ridiculíssima. O demasiado
descuido a perverterá. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Pois
não é despropositado ciúme condenar termos como agir, detalhe,
abandonar, adiar, afrontar, aguerrido, aléa, avalanche, e centenas
de outros indispensáveis ou belíssimos? Que desfalque lamentável
na língua se fôramos aspar todos os termos condenados pelos
puristas! Chegamos até a duvidar oficialmente da adoção de
palavras como bar, chope, esporte, picô e, naturalmente, futebol,
gol, chute, chuteiras, chutar, chutaço, e numerosos outros
derivados, criações vernáculas de um termo inglês. Pois nessa
faculdade de absorção e desenvolvimento é que se acha a vida
mesma de uma língua. Ela é o atestado mais eloquente e
envaidecedor da vitalidade do português.
O que importa fazer é dar aos termos estrangeiros a feição
gráfica e prosódica do nosso idioma. Assim, os mais ferrenhos
apuradores continuam grafando bond, club, praças de prêt, pince-
nez, etc., etc., com prejuízo grave do aspecto gráfico da língua. A
senha deve ser: nacionalizar os termos estrangeiros necessários ou
belos.
O verdadeiro mal, esse grave, está nos galicismos de sintaxe,
por nocivos à riqueza e ao caráter mesmo da nossa língua, mais
opulenta, maleável e original, nos modos de dizer, que a francesa.
Os professores devem insistir no apuramento da sintaxe
portuguesa, condenando sistematicamente o francesismo de
construção.
15 – Eis aqui os galicismos de sintaxe mais comuns:
1º. – abuso dos pronomes pessoais subjetivos; ex.: Eu saí
apressadamente pela porta do quintal; eu abri a cancela do fundo e,
dentro em pouco, eu me achava perto do riacho2.
2º. – abuso dos indefinidos um, uma; ex.: “Um homem
honesto, que entra, por um acaso, numa dessas casas de jogo e
bebedeira, sente uma instintiva repugnância a essa sociedade
corrompida”. Deveria ser: “O homem honesto, que entra por acaso
numa dessas casas de jogo e bebedeira, sente instintiva repugnância
a essa sociedade corrompida.”
3º. – uso da expressão de que em vez de cujo; ex.: “Não
encontrou o homem de que você comprou a casa, em vez de: “Não
encontrou o homem cuja casa você comprou. A frase não
encontrou o homem do qual você comprou a casa tem outro
sentido: das mãos do qual, ou de quem, a quem, não lhe
pertencendo a casa.
4º. – abuso da passiva impessoal; ex.: “Quando se é rico,
generoso, tem-se a preocupação de cuidar dos infelizes e é-se
levado às obras de boa caridade”. Devemos sempre evitar essa
construção malsoante e modernamente introduzida em português.

2
Nota de D. Fr. De São Luiz: “Ultimamente, não será inútil advertir aqui que, quando
reprovamos o abuso dos pronomes, não pretendemos excluí-los totalmente do discurso,
porquanto, além de poderem empregar-se muitas vezes sem erro, nem ressaibo de
galicismo, há também ocasiões em que é absolutamente indispensável o seu uso claro e
expresso, como por exemplo: 1.º quando há oposição entre dois ou mais membros do
período e dizemos v. g. eu como e tu dormes; eu estudo e tu te divertes; nós trabalhamos
e eles passeiam, etc.; 2.º quando o pede a ênfase ou o ornato do discurso, como v.g. nesta
frase: Deus é digno do nosso amor; Ele manda que o amemos, Ele o pede; Ele até o
solicita, etc.; 3.º quando, sem a expressa declaração do pronome, ficaria escura ou
ambígua a frase ou ainda suspensa por algum tempo a sua verdadeira inteligência, como
sucede, por exemplo, na tradução de uma excelente obra cujo primeiro parágrafo diz
assim: Ainda que tivesse toda a sutileza de espírito que se pode desejar nas mais
agradáveis sociedades; bem que tivesse composto obras em que brilhasse todo o fogo da
imaginação e do engenho; quando tivesse inventado sistemas capazes de emudecer e
admirar o universo. Ainda que tivesse formado projetos dignos de sustentar ou realçar
os impérios... se não tenho por objeto a religião, a minha alma perde os seus trabalhos
etc. Aonde o verbo tivesse, repetido quatro vezes nos quatro membros do período, devia
ser determinado, desde o princípio, pelo pronome eu, sem o que fica por muito tempo
suspenso o verdadeiro sentido do discurso e o leitor ignorando a pessoa se refere aquele
verbo etc.” (Glossário – 1846 – pg. 159).
Muito ganharia o período construído assim: “Todo indivíduo rico
e generoso tem a preocupação de cuidar dos infelizes e é levado à
obras de boa caridade”.
5º. – uso do se como sujeito indefinido, ex.: “Nas ruas se
encontrava a cada passo grupos de descontentes e se ouvia acesas
discussões entre exaltados. Concorrente com esse erro aparece
comumente, nos exercícios de tradução francesa, a passiva com
objeto direto; exs.: “Procurou-se o menino por toda a parte, mas
não se o achou; esta notícia não é exata, não se deve, pois,
transmiti-LA aos companheiros”. Nesta última frase, deve
transmitir forma uma expressão verbal, não se podendo analisar a
oração de infinitivo (transmiti-la) como sujeito de deve3.
6º. – abuso da expressão o mais; ex.: ele é o mais competente,
o mais sério, e o mais ativo dos diretores desta empresa.
A supressão, neste caso, é muito mais estilo português.
Parece-me, entretanto, que a repetição, como aliás todas as
repetições, pode empregar-se para insistir nas qualidades, como
reforço.

3
D. Fr. De S. Luiz, apontando esse grosseiro galicismo, assinala um erro de João de
Barros e dá como viciosa a seguinte construção da Eneida de João Franco:
“Ver-se-á primeiro as naus mais excelentes
Correr nas salsas ondas à porfia.”
corrigindo para ver-se-ão. É injusta a emenda, porque o sujeito de ver-se-á é toda a oração
de correr, substantiva.
Provém tal galicismo de traduzir on francês por se, atribuindo-se a este a função
de sujeito. Não quero discutir a legitimidade desse uso. É lícito contudo assinalar que o
português tem nada menos de onze modos diferentes de verter o on, conforme o
demonstrou D. Fr. De S. Luiz. Aqui vão seus próprios exemplos:
1º modo: gran trabalho e custosa coisa é fazer homem o que deve, etc. (É processo
arcaico, literariamente possível em certos casos). 2º Não pode um homem ser justo sem
se expor à perseguição dos maus. 3º: o mundo não merece que uma pessoa empregue...
(pode ser criatura, indivíduo etc.) 4º: convém que o homem forme na solidão o seu caráter.
5º: na solidão pode um tudo o que quer. 6º: o que a gente desperdiça, tira aos seus
herdeiros. 7º: se alguém me opuser que esta é a prática...; cada um fará o juízo que quiser;
ao seu gesto guerreiro quem quer o reconheceria facilmente. 8º: ele quer brilhar e todos
zombam dele; ninguém escreve, se não para ser entendido. 9º: não se limitaram a isso;
temos referido. 10º: foram celebradas as cortes, ou celebraram-se as cortes. 11º: nadou
tanto ao largo que custou muito salvá-la. É a oração infinitiva sujeito ou predicativo
como em era de esperar que...
7º. – repetição da correlativa que; ex.: não podia comprar
mais que um cavalo e que uma junta de bois. Deverá ser: mais que
um cavalo e uma junta de bois.
8.º - orações integrantes com de ou para; ex.: ele me pediu
para trazer o livro amanhã em vez de que eu trouxesse; ele me
disse de passar lá de manhã, igual a: pediu-me que passasse lá de
manhã. Quando para representa a expressão licença para é correto
o seu emprego: por exemplo, a primeira frase estaria correta no
caso de significar: pediu licença para trazer o livro, sendo o sujeito
de trazer ele e não eu.
9º. – segundo membro da correlação com para ex.: o medo
foi muito grande para o deixar tranquilo. Nessa construção, alheia
ao português, o segundo membro da correlação é negativo e a
correlação se mascara. Em português aclara-se a correlação assim:
o medo foi tão grande que não o deixou tranquilo.
10º. – não, nas orações, em vez de nem; ex.: todos os meus
amigos não são ricos. O correto é: nem todos os meus amigos são
ricos.
11º. – sem, nas orações exclusivas ou condicionais negativas,
em lograr de se não; ex.: sem meu primo eu não poderia ter
embarcado ontem, em vez de: se não fosse meu primo, ou: não fora
meu primo etc.
12º. – repetição de o nas expressões superlativas; ex.: era o
homem o mais digno da sua roda, por: era o mais digno homem de
sua roda.
13º. – abuso do gerúndio em oração adjetiva; ex.: entregou-
me um copo contendo vinho branco; comprei uma casa tendo
quatro quartos; etc... Só é legítimo o emprego do gerúndio quando
equivale a uma expressão progressiva; ex.: vi um boi passando a
ponte, equivalente a: vi um boi que estava passando ou a passar a
ponte.
14º. – emprego indevido da preposição a; exs.: tenho a
estudar a lição de francês; tinha duas consultas a fazer; tenho
muito a dizer; sistema de equações a duas incógnitas. Corrija-se:
de estudar; tinha de fazer duas consultas; muito que dizer; de ou
com duas incógnitas.
Note-se especialmente a construção de modo a, de molde a,
de forma a, etc.; ex.: bebeu de modo a cair na rua, em vez de:
bebeu de modo que caiu na rua, isto é, de modo tal que caiu. Em
português a correlação não se pode fazer com a preposição a.
15º. – vicioso emprego de por; ex.: amor pela pátria;
desprezo pela religião; aversão pelos neologismos, repugnância
pela música. Deve ser: amor à ou da pátria; desprezo à ou da
religião; aversão aos neologismos; repugnância à música.
16º. – vicioso emprego da preposição de; ex.: tábua larga de
vinte centímetros; o maior mal que faziam era de estragar às
árvores do pomar; a força enviada consistia de duzentos homens.
Deve ser: a tábua de vinte centímetros de largura, ou tábua vinte
centímetros larga; era estragar (sem de); consistia em (ou então
constava de).
17º. – vicioso emprego de em; ex.: estátua em bronze, vestido
em seda, por de bronze, de seda.
16 – Várias palavras e construções que parecem galicismos
ou erros não o são. Eis alguns exemplos:
PALAVRAS – atender (no sentido de esperar), contagião,
davantagem, ceguidade, demandar (pedir), guarir e guarecer
(curar-se), maladia (doença), marchante (negociante), abrevar
(beber água), grandura, reguardar (regarder), conforto,
confortável, gages e gajas, engajar, largezas, remercear, prodigar,
sujeito (assunto), bom mercado (bom-marché, barato), potagem,
sobre (acerca de), redator em chefe, reproche, grande manhã,
grande tempo, todo possante, assaz bem (assez bien), a grande
pena (à grand’peine) etc.
EXPRESSÕES – fazer esmola, fazer fazer, fazer música etc.,
em efeito (em effet), ver dos olhos, em ordem a, começar de, dever
de, acontecer de, recear de, costumar de, desejar de, esperar de,
pretender de, merecer de, temer de etc., a seu aviso, vir de (acabar
de), beber do leite, bem de dias, a condição que, que eu vença! etc4.
17 – ARCAÍSMO – É o emprego de palavra ou construção
antiga atualmente em desuso. Há, portanto, arcaísmos léxicos e
sintáticos. Alguns são, por assim dizer, totais, outros parciais. Com
efeito, muitas palavras desaparecem totalmente, outros arcaízam-
se numa forma, perdurando todavia com outra; tal o verbo consirar
que é o nosso considerar; a conjunção continuativa entonces, que
é o nosso então; o substantivo romãos que é o nosso romanos; o
pronome esto por isto, aquelo por aquilo etc.
Eis uma lista de palavras tomadas à Crónica de El-Rei d.
João, o primeiro, de Zurara: assocegamento, graveza (peso),
descende (dece), similhavelmente, compridamente
(completamente), avondaça (abundância), empero (porém), pera
(para), compridoura, trigosamente (apressadamente), abastosos
(bastantes), esguardar (ver), filhada (tomada), segre (século),
remembrança (lembrança), ensujeitado, encarregos (encargos),
avisamentos (notícias), departidas (repartidas), cabeça cã (branca),
castelão (castelhano).
Palavras há arcaizadas apenas numa acepção e vivas noutras.
Eis alguns exemplos colhidos na mesma obra: soterrava os
mortos; cuja força ocupou muito o seu acordo (cujo
empreendimento preocupou muito o seu espírito); os mestres tem
constume de demoverem grandes questões a seus discípulos
(proporem); buscar as provações de um problema (as provas) etc.

4
Ver Ruy Barbosa – Réplica – pag. 536 e sgs. Consulta-se ainda Carlos Góes, Diccionário
de Galicismos, onde se mencionam os galicismos aparentes. Note-se que muitos desses
galicismos autorizados pelos clássicos foram realmente galicismos no tempo deles e não
merecem, se esquecidos ou refugados da língua, ressureição atual.
Esses arcaísmos léxicos podem ser temporários, logrando
muitas palavras, antiquadas numa época, reviver noutras5.

5
Leitura – Rejuvenecimento de palavras antiquadas - Ruy Barbosa, replicando ao
professor Carneiro Ribeiro que lhe censurava o emprego do adjetivo lídimo, dado como
arcaico por Duarte Nunes em 1606, escreve: “Por que? Porque já há três séculos passava
lídimo por velho aos olhos de Duarte Nunes. Certo é; mas, no mesmo rol de velharias, de
envolta com lídimo, não sabe o mestre quantos vocábulos ali figuravam, tão lustrosos
hoje em dia, como se acabassem de nascer? Releia esse elenco e veja onde foi cair.
Afigura-se-lhe obsoleto acoimar? afan? aguçoso? aleive? alfageme? algo? albergar?
algures? alhures? aquém? arrefecer? aturar? atroar? confortar? haveres? covilheira?
desempachar? doesto? encalçar? esmerar? estado? falha? finado? grei? grado?
(vontade) jogral? lidar? ufano? possança? puridade? quebrantar? sagaz? sanhudo?
sanha? talante? tanger? vindicta?
Pois tudo isso passava por obsoleto, em 1606, para o cronista d’el-rei D. Duarte,
quando estampava a sua Origem e Ortografia da Língua Portuguesa.
Mais de século e meio depois (em 1765) imprimia Francisco José Freire às suas
Reflexões sobre a Língua Portuguesa, em um de cujos capítulos dava revista aos
arcaísmos de seu tempo. Pois entre eles já se não enumera lídimo. Em compensação ali
figuravam um sem conto de vocábulos hoje em plena atualidade.
Tais estes: acatar, acendalha, acendrado, achanar, açodado, acompadrado,
adrede, amamentar, amercear-se, andrajo, arremangar, atreito, aviventar, cainho,
caroável, córrego, denodado, embaimento, ementa, empantufar-se, entaliscado,
escandir, esmar, ferropeia, gafeira, gafaria, guarida, menestréis, mesurado, mordomear,
ornear, passos, palafrém, passamento, peso, perigalhos, píncaro, pinchar, precalçar,
pujança, quejando, reptar, retouçar, roaz, roçagante, roldão, sandeu, sobrejuiz,
tabolagem, talar, tosquenejar, trabuco, zarguncho, abobadar, alardear, alfaiar,
amarelecer, amigar-se, atalaiar, barbar, bastardear, abolinar, abonançar, chocarrear,
desdar, destinar, embelecar, enxamear, marida, ameigar, amolentar, parvoejar, despear,
pejar-se, perjurar, aquinhoar, rabiar, sortear, tartamudear, tratear, trombejar,
velhaquear.
Tinha este antigo filólogo a simpleza de cuidar irremediavelmente perdidos para
o nosso idioma todos esses termos; porque, discorria ele, “não está presentemente em
vigor a regra de Horácio: Multa renascentur quae jam cedirere”. Mas Horácio não
consignara um fato antigo e solitário: esboçara um cânon perene e geral à evolução das
línguas. Longe de se continuarem a fossilizar, todas aquelas palavras reviveceram e
pompeiam hoje como recém-criadas no vocabulário dos nossos dias. Ainda mais tarde
(em 1793) saía à luz Antônio das Neves Pereira com o seu Ensaio sobre a Philologia
Portuguesa, nas Memórias de Literatura publicadas pela Academia Real das Sciências
de Lisboa; e aí lamentava o abandono em que se iam sumindo grande número de
vocábulos excelentes “sem outra causa mais que o perder-se a familiaridade com os bons
escritores”. Imagina o dr. Carneiro quais esses vocábulos a esse tempo já quase
esquecidos? Muitos dos que hoje mais contínuo circulam no uso literário ou no vulgar,
com as melhores notas: agricultar, atascar, cumprir, na debuscar; embeber, enxergar,
enfrear, sofrear, desenfrear, fundear, montear, mariscar, ornamentar, voltear,
incomportável, ledo, mesquinho, haver mister, sovar. Ainda após os catálogos de Cândido
Lusitano e Antônio das Neves, continuou esse movimento de ressureição. Não vai por
muito mais de vinte anos que Adolpho Coelho perguntava, aludindo ao expurgatório de
18 – Cumpre evitar cuidadosamente os arcaísmos sintáticos.
Só escritores amestrados logram arriscar algum sem grave
impugnação do leitor.
Eis alguns exemplos de tais construções, hauridos no mesmo
cronista: a) uso do verbo ser pelo verbo estar: “as virtudes do céu
não vem à terra que não passem primeiramente por os corpos que
são entre elas”; b) separação violenta entre os pronomes pessoais
átonos e os verbos de que são complementos: “saibam como o dito
rei se em elas houve acerca deste feito”; c) concordância do
particípio passado, em tempo composto, com o objeto da oração:
“... ela que tantas e tão grandes cousas tinha acabadas”; d)
frequente uso da preposição de com verbos volitivos: “ordenaram
de fazer; não é cousa convinhável de serem festas feitas; começou
de, desejou de saber”; e) abundância de formas passivas: “não eram
estas razões postas em fim; em semelhantes cousas são apartados
os homens avisados dos outras de grosso engenho; e como foram
todos chegados”; f) emprego corrente do verbo haver por ter:
“porque hão saída por terra”; g) gosto do se espletivo ou ético junto
a verbos volitivos intransitivos: “não se poderiam partir; e se
tornaram outra vez a el-rei;... logo se trabalhou de imaginar lograr
e maneira como pudesse fazer serviço a Deus”.
19 – Enfim, os mais sensíveis arcaísmos estão no próprio
arranjo da frase e do período. A frase é muito mais invertida e o
período sobrecarregado de subordinações e intercalações.

Francisco Freire: “Quem empregará hoje acúleo, dealbado, derelicto, excídio, jugular,
lutulendo etc., condenadas por um purista do século XVII?” Ora, nenhum desses termos
tem presentemente nota de antiguidade no léxico português. Jugular é trivial no uso
literário. Acúleo não é raro. Derelicto anda em voga nos escritos jurídicos. As traduções
ovidianas e virgilianas de Castilho deparam excídio e lutulento. Dealbar se encontra nesta
forma em Al. Herculano (Monge de Cistér II, p. 197) e ligeiramente modificado para
dealvar, em C. Castelo Branco (Novelas do Minho, 1º parte, p. – 20).
Cinquenta anos depois de João de Barros que o empregara (Dec. 1, IV, 3),
apontava Duarte Nunes como arcaísmo o advérbio acinte. Mas, séculos depois, o
abraçava, como vocábulo em plena atualidade, Antônio das Neves Pereira. Por sua vez,
porém, tachava de antiquados uns poucos em que, no tempo de hoje, ninguém empeceria:
amecear-se, árdego, ardido, começo, endereçar, exalçamento.
Eis um trecho de Zurara (Cron. de d. João—II—cap. 5):
“Nós andaremos por nossas romarias visitando as relíquias
dos santos pera que possamos cobrar salvação para nossas almas, e
quando jouvermos em nossas camas, chegados a morte, teremos
vagar pera fazer nossas mandas e testamentos, com grande
segurança que se nos hajam de cumprir nossas postrimeiras
vontades, depois do acabamento de nossas vidas, e alegres nos
partiremos deste mundo, quando certamente soubermos que as
nossas carnes se hão de gastar nos cemitérios daquellas egrejas,
onde os dízimos dos nossos fructos e as primícias dos nossos gados
demos aos reitores, padres das nossas almas, e que será outra cousa
a terra que nos gastar, senão carne de nossos padres e avós, filhos
e parentes? Em cuja companhia nos alevantaremos quando
derradeiramente formos chamados pera irmos juntamente áquelle
juízo no qual o Filho da Virgem determinará nossas maldades,
como por sua mercê, os quases proveitos todos nos trouxe a bem-
aventurança da paz”.
Eis o mesmo trecho em estilo moderno (note a frase mais
direta e os períodos formados por coordenação); “Andaremos por
nossas romarias visitando as relíquias dos santos para alcançarmos
a salvação de nossas almas. Na hora da morte, em nossas camas,
teremos vagar para fazer nossas disposições e testamentos.
Teremos segurança de que hão de cumprir nossas últimas vontades
depois de nossas vidas, e alegres partiremos deste mundo, certos de
se haverem de gastar nossas carnes nos cemitérios a cujos reitores,
pais das nossas almas, demos os dízimos dos nossos frutos e as
primícias dos nossos gados. E que será a terra que nos consumir
senão carne de nossos pais, avós, filhos e parentes? Em companhia
deles nos levantaremos quando juntos formos chamados para o
juízo em que o Filho da Virgem determinará, conforme sua mercê,
nossas maldades. Todos esses proveitos nos trouxeram a bem-
aventurança da paz”.
20 – Neologismos – São palavras ou expressões recentemente
criadas ou introduzidas na língua. Duas são as fontes mais
produtivas de neologismos: a nomenclatura técnica (científica e
industrial) e a gíria popular. Outros provém de criação literária por
derivação ou composição; alguns por importação.
Seguem-se exemplos:
Termos técnicos: avião, aviador, borne, selfe, espacial,
fusível, salvarsan, impedência, fonema, semântica, carburador,
hemátia, tropismo, cariocinese, cromossoma, bar, picô.
Termos populares: ranzinza, rambles, roscofe, fuzuê, mafuá,
bagunça, abajú, bigú, esbregue, cocoré, bamba.
Termos literários: propositadamente, cromatino, estadual,
fadaria, quefazeres, sesquiorelhal, profitente.
21 – Consignamos entre as regras de correção a repugnância
ao neologismo malformado, feio ou pedante. Fora disso o
neologismo é aceitável e quase sempre indispensável às
necessidades da indústria, das artes, das relações sociais.
Entre os neologismos acham-se os termos da linguagem
internacional, adotados por todas as línguas de povos civilizados:
bar, cinema, sanduíche, chope, gol, handicape, filme, raide,
talvegue, rifenho, tanque etc.
22 – Eis o que diz, em seu célebre livro Essai de Sémantique,
o filólogo francês Michel Bréal:
“Essa questão do neologismo apresenta os mais diversos
aspectos. Condenar o neologismo, em princípio e de modo
absoluto, seria a mais irritante e inútil das proibições. Cada
progresso na linguagem parte sempre de um indivíduo, capta
depois uma minoria mais ou menos grande. O país onde se
interdissessem as inovações tiraria a sua linguagem, e
consequentemente a seu espírito, uma ensancha de
desenvolvimento. Cumpre entender por neologismo tanto uma
acepção nova conferia à palavra antiga, como um vocábulo
introduzido integralmente. Assim como a mudança modificadora
da pronúncia é conjuntamente imperceptível e constante, a tal
ponto que um estrangeiro, ausente trinta anos, ao voltar a seu país
pode notar a marcha do tempo, também a significação das palavras
se transforma incessantemente, sob a ação dos sucessos,
descobertas novas, revoluções nas ideias e costumes. A um
contemporâneo de Lamartine custaria compreender a linguagem
dos nossos jornais. Trabalhamos todos, mais ou menos, no
vocabulário do porvir, ignorantes ou sábios, escritores ou artistas,
alta roda ou gente do povo. Não têm nisso menor parte as crianças:
apreendendo a língua no ponto em que a deixaram as gerações
predecessoras, acham-se ordinariamente na dianteira dos pais uma
dezena ou uma vintena de anos.
O limite em que deve parar o direito de inovação não se
determina apenas por uma ideia de pureza, contestável sempre; é
imposto pela necessidade de nos mantermos em comunicação com
o pensamento de nossos antecessores. Quanto mais considerável o
passado literário de uma nação, tanto mais se aviva essa
necessidade, como dever, condição de dignidade e força. Daí a
ideia de uma época clássica, oferecida à imitação das idades
subsequentes, ideia nada artificial ou quimérica, desde que não se
refira à época clássica a séculos mui remotos. Em tal caso, não
somente aos linguistas cumpre consultar, porquanto poderiam ser
tentados a se dirigirem por motivos algo profissionais”.
E adiante: “É impossível que o neologismo, depois de se
haver exercido nas palavras não penetre igualmente a construção e
a gramática. Aí, porém, a resistência é maior. Mal poderemos
contar, até agora, três ou quatro novos boleios que hajam logrado
adoção. Há razões sérias para isso. Mudar a construção, mudar as
locuções é tocar nas obras vivas, é arremeter a um patrimônio que
representa séculos de pesquisas e esforços”6.

6
Leitura – Aversão aos neologismos – “Quase todos os maiores artistas da prosa e da
poesia, entre os franceses, no século passado, tinham, contra as inovações do vocabulário,
prevenções enraizadas. Chateaubriand constituía entre eles a grande exceção. Mas esse
era em tudo Chateaubriand. Primeiro e único entre os maiores, reunia no mais alto grau
as qualidades literárias dos verdadeiros criadores, e às suas criações comunicava o sopro
23 – Se o neologismo necessário e bem-feito enriquece a
língua aumentando-lhe o poder de expressão e a maleabilidade, não
assim o neologismo descabido, capaz de usurpar as funções de boas
palavras ou construções clássicas. Pior ainda o vezo das novidades
léxicas e sintáticas. Contra ele se insurgia o nosso gramático Júlio
Ribeiro nestas palavras: “A mania do neologismo é das mais
detestáveis. O neologismo só se justifica pela necessidade de uma
denominação nova, para uma descoberta que também é nova, para
um novo instrumento; ou então quando vem apadrinhado por um

de um gênio habituado a talhar formas imortais. Fora daí, todos os mais estavam pela
regra de “aceitar cautamente a neologia, isto é, a admissão das palavras necessárias, mas
fugir o neologismo, a saber, a inovação injustificada”. Hugo tinha o neologismo por
miserável por miserável recurso da incapacidade. “São os vocábulos novos, dizia ele no
prefácio de Cromwell, os vocábulos inventados, os vocábulos artificiais, são eles que
destroem o tecido de uma língua”. Moderniser, positivisme, utilitarisme, eram, a seus
olhos, heresias. Parlamentarisme inspirava-lhe um movimento de frenesi contra
Napoleão III, “esse acadêmico de golpe de Estado”. Em dez das suas obras poucos
neologismos, realmente tais, logrou apurar um esmerilhador minucioso. “Le tout est fort
peu de chose”, diz Ferd. Brunnot. “Encore Hugo environne-t-ill ces mots de formules
d’excuse”. Gautier acendia-se em ira com a incursão dos estrangeirismos. Raríssimos
foram os criados por ele ou por Musset. Flaubert pensava que as formas existentes poucas
eram para as cousas. “De lá, la torture des conscientieux”. Tímido no inovar, entretanto,
era a tradição que se aferrava e nas escolas dos grandes escritores de outros tempos se
matava em escavar le mot propre, o vocábulo consubstancial à ideia, carne do
pensamento, específico e insubstituível na sua função de o revestir. Só ante a necessidade
absoluta capitulava em transigir com o espírito de inovação. Bem sei que depois, adindo
à sucessão de Chateaubriand e de Balzac, os grandes inovadores, vieram os Goncourts,
os Daudets, os Baudelaires, os Banvilles, os Zolas, os impressionistas, os naturalistas, os
realistas, os simbolistas e a anglomania e a ciência e a tribuna e a imprensa, imaginando,
forjando, engendrando, importando, amalgamando, tumultuando, carreando, golfando
para o vocabulário, para a sintaxe, para a rua, para as letras, para a especulação, para o
trabalho, para a vida, uma torrente de formas inesperadas, cambiantes, revolucionárias,
que desdobram o léxicon, embatem a sintaxe e deixam em caminho a barreira das
tradições, como os rochedos que o rio desapoderado açoita e abandona borbotando. É,
todavia, aos preservadores e mineiros da tradição, como Flaubert, que se agradece o
haverem “aumentado a força de resistência do idioma, recuando a vitórias da barbárie”.
Se a um jurisconsulto, porém, ciente das responsabilidades de sua missão ali pedissem a
matéria, onde se inscreva a epigrafia dos códigos civis, não a iria buscar à areia
inconstante das aluviões: teria de pedi-la ao mármore daquelas canteiras impolutas, onde
Renan o quase único”, talhava, na pureza das formas consagradas, as finas linhas do seu
pensamento”>
(Ruy Barbosa – Réplica – p. 565 e seg.).
nome respeitado na língua. Os neologistas não passam de
deturpadores da língua”7.
24 – Alguns neologismos se impõem, muitas vezes, para
traduzir certas expressões estrangeiras sem perfeito equivalente
vernáculo. Assim, a palavra profiteur, aplicada aos indivíduos que
da guerra se aproveitaram para enriquecer, sugeriu a Ruy Barbosa
o termo profitente; formado com o particípio presente de profiteri.
Por minha vez, empreguei, no mesmo sentido, o substantivo
proventuário, calcado em provento.
Muito cuidado, entretanto, deve haver nessas traduções.
Cumpre sejam feitas segundo as leis da derivação portuguesa,
respeitando a morfologia rigorosamente. No uso diário da ciência,
comércio e indústria, abundam palavras e expressões monstrengas,
mal engendradas por quem desconhece os princípios da morfologia
portuguesa.
Eis um exemplo característico. Os profissionais e amadores
de radiotelefonia falam muito em impedância traduzindo mal o
francês impédance, termo criado para significar a chamada
resistência aparente em circuito indutivo. O étimo latino de onde
formaram os franceses o impédance é o verbo latino impedire, pai
do nosso impedir. Embora ance historicamente só se prenda a
verbos da primeira conjugação, tornou-se modernamente sufixo
francês geral, aplicável a qualquer radical latino ou outro. Assim,
tiraram os franceses de resistire, resistance, de reactum, réactance,
de admittere, admitance e nada lhes podemos opor. Em português,
porém, tais formas são inadmissíveis. Só com verbos da primeira
conjugação se tolera o sufixo anciã. Com radicais verbais da
segunda e terceira conjugações o sufixo há de ser éncia. Não temos
resistância e sim resistência, nem continência e sim continência.
Igualmente não se tolera em português admitância, nem
impedância; há de ser admitência e impedência. Reactancia e

7
Júlio Ribeiro – Grammatica portuguesa – 188.
inductancia, pressupondo reactar e inductar, aceitam-se na
linguagem científica internacional, conquanto feios e trôpegos.
25 – Da concisão. É mau processo querer adquirir
imediatamente ou conjuntamente, as seis qualidades de estilo.
Muito mais fácil e pedagógico é evitar, desde o princípio, os
defeitos. Em regra geral, o professor consciencioso, ao iniciar um
aluno na arte de escrever, deve levá-lo de modo que não contraía
vícios. É cousa aliás facílima. Crianças de dez e doze anos
conseguem redigir com muita concisão e clareza. Os maus hábitos
dificilmente se corrigem, sobretudo nos adultos.
O primeiro cuidado, pois, do professor é não consentir na
leitura de autores prolixos como Herculano e Taunay. Cumpre-lhe,
ao contrário, ministrar ao discípulo modelos impecáveis, o que é
mais difícil, mormente em português. Em todo caso, há muitas
descrições, narrações, ou dissertações perfeitas, ou quase, em
Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz, Machado de Assis,
Coelho Neto e outros, podendo recorrer-se a autores estrangeiros,
como Fromentin, Flaubert, Taine, Loti etc.
O aluno deverá fazer numerosos exercícios visantes
exclusivamente a concisão, base de tudo. Só mais tarde, depois de
estudada a metrificação, deve cuidar especialmente da harmonia.
Quanto à originalidade virá no fim, convindo até que o professor a
deixe surgir espontaneamente, das qualidades nativas dos alunos.
A originalidade procurada é sempre visível e de mau efeito.
26 – Eis as regras práticas para obter concisão:
1º.) Evitar os aspectos, episódios ou opiniões supérfluos,
dispensáveis ao efeito geral8. Ao descrever um mercado, por
8
Leitura – Escolha de aspectos e factos: “Releva observar, na escolha dos pormenores
expressivos de uma ação ou dos caracteres, que nem todo o real e verdadeiro merece
assinalar-se. Só devemos mencionar o que for significativo. Há na natureza milhares de
acidentes, necessários e sem dúvida, já que existem, porém mudos para o espírito, mera
condição dos outros, campo de que ressaem. O homem não vive sem comer: todavia, se
não há razão especial, nascida do próprio assunto, não pomos os heróis dos romances nem
as personagens da história a jantar diante de nós. Geralmente não os vemos a dormir, a
exemplo, não vamos mencionar todos os objetos à venda, nem
todos os detalhes9 arquitetônicos. Devemo-nos ater aos caracteres
que distinguem o mercado descritos dos demais.
2º.) Evitar as palavras inúteis, principalmente os adjetivos. É
tendência geral abusar dos adjetivos. A adjetivação excessiva não
somente torna prolixa a frase, como é causa de frouxidão do estilo.
3º.) Evitar as perífrases ou circunlóquios. Perífrase é o
emprego de muitas palavras para expressar aquilo que se
expressaria melhor com poucas. Exemplos: a abóbada celeste
estava azul – em vez de – o céu estava azul; o astro do dia
despontava na fímbria do horizonte – em vez de – o sol nascia; os
músicos da mata faziam ouvir seus gorjeios suaves – em vez de –
os pássaros gorjeavam.
4º.) Evitar as orações subordinadas desenvolvidas. Evitam-
se usando orações reduzidas de infinito ou compondo o período por
coordenação.
Este ponto é importantíssimo. O estilo prolixo de muitos
clássicos provém do abuso das subordinações. Exemplos: a) Os
animais que se achavam deitados perto da ponte levantaram-se
quando os cavaleiros chegaram – em vez de – os animais deitados
perto da ponte, ao chegarem cavaleiros, levantaram-se – ou
melhor: ao chegarem os cavaleiros, os animais deitados perto da
ponte levantaram-se.

vestir-se, a tossir; entram e saem sem dizer que abrem as portas, que sobrem ou descem
as escadas; se andam na rua, pouco nos importa o lado da calçada e, só por afetação de
uma nova escola, às vezes lemos a comovente enumeração das ruas, cais e bulevares, por
onde passa um homem para ir de Montrouge às Bastignolles. Salvo sempre a necessidade
dos casos particulares, tudo isso nada interessa por si mesmo e está fora da arte. Só deve
prestar na narração o que é expressivo e concorre para pintar os caracteres ou movimentar
a ação”. (Lanson – Conseils sur l’art d’écrire, p. 158).
9
Bem conheço a repugnância, algo afetada, de Ruy Barbosa a detalhe, considerado
galicismo. O vocábulo é internacional, às vezes insubstituível; é morfologicamente
aceitável e, conforme observa Said Ali e o demonstrou H. Graça, vive há mais de um
século em nossa língua, até em documento oficial português do século XVIII, como atesta
D. Fr. De S. Luiz. Ruy admitia piores galicismos.
b) Eis um trecho de Jacinto Freire na Vida de d. João de
Castro: “Feito Çofar cultor de Mafamede começou a grangear
maiores confianças com os Mouros, semeando o ódio dos émulos
com dádivas e o da plebe com a nova apostasia, com que purgou as
suspeitas na fidelidade, obrando com ambição mais cauta, com que
se fazia mais afável aos inimigos que aos estranhos; mas,
conhecendo a instabilidade do soldão, temeroso de segunda queda,
não tendo por segura uma vontade já reconciliada, matando uma
noite à tração a Rax Solimão, seu mortal inimigo, com um filho que
tinha, juntou as joias e dinheiro que pode e se passou secretamente
ao serviço d’el-Rei de Cambaia, de cuja grandeza e liberalidade
tinha inteiras notícias, e da estimação que fazia de homens
estrangeiros, principalmente d’aqueles que tinham alguma prática
das guerras e polícia de Europa”. O trecho ganharia muito em
concisão e clareza evitando-se as contínuas subordinações, por
meio de coordenações ou de adjetivos. Poderia ficar assim: “Fez-
se Çofar cultor de Mafamede, começou a grangear maiores
confianças com os Mouros, semeando o ódio dos émulos com
dádivas e o da plebe com a nova apostasia. Com esta purgou as
suspeitas na fidelidade, obrando com ambição mais cauta, fazendo-
se mais afável aos inimigos que aos estranhos; mas, conhecendo a
instabilidade do soldão e temeroso de segunda queda, não tendo
por segura uma vontade já reconciliada, matou uma noite, a traição,
a Rax Solimão, seu mortal inimigo, e um filho deste. Juntou as joias
e dinheiro que pode e se passou secretamente ao serviço d’El-Rei
de Cambaia. Tinha inteiras notícias da grandeza e liberalidade
deste e de sua estimação de homens estrangeiros, principalmente
dos práticos nas guerras e polícia da Europa”10.

10
Leitura – Da concisão. “Todo exagero produz geralmente o contrário do fim previsto.
Assim, as palavras servem para tornas as ideias perceptíveis, mas somente até certo ponto.
Amontoadas além da justa conta escurentam sempre as ideias a comunicar. Missão do
estilo e encargo do juízo é parar na risca exata; pois, cada palavra demasiada é
contraproducente. Voltaire disse à propósito: “O adjetivo é inimigo do substantivo”. Mas,
nas verdade, muitos escritores buscam esconder, na superabundância das palavras a
pobreza das ideias. Evite-se, consequentemente, toda prolixidez e todo encrustamento de
5º.) Evitar as redundâncias – Redundância é a repetição dos
mesmos aspectos, episódios ou opiniões com as mesmas palavras
ou palavra diferente. Exemplos: a) “O quintal abria ao fundo por
um portão de tábuas grossas pintado de vermelho e fechado por
uma taramela. Eram duas da tarde. Ouvia-se longe um rodar
sacolejado de carroça. Foi-se aproximando o ruído até que, bem
perto do portão pintado de vermelho, o Josino fez parar os burros:
Hô! ...hô! ... Depois rodou a taramela, escancarou o portão
vermelho e pôs-se a descarregar”. – b) “A menina descia a alta
escada em risco de cair. Manoela, vendo a menina em perigo de
queda, sem poder sair ao pátio, gritou por Ventura que dormia no
porão. Ventura acordou sobressaltado e correu a salvar a
pequerrucha da iminência de um tombo”. – c) “Sei que andavas
preocupada com o mau procedimento de teu irmão e por isso não
podias ter o sossego necessário à tarefa de que te incumbi. Por isso
esperarei com paciência. Mas, logo que o ruim comportamento de
teu irmão não mais te atarante, exijo o cumprimento do trabalho
de que te encarreguei.
26 – Exemplo de estilo prolixo:
“Ao tocar, porém, das ave-marias, todas aquelas imaginações
desconsoladas, se ele as tinha, como hoje creio, desapareciam por
um movimento habitual do espírito e do corpo; este para se erguer,
aquele para orar. Sobraçada a bengala, em pé, com as mãos postas,
segurando ao mesmo tempo entre elas o seu chapéu de três ventos,
com a cabeça um pouco inclinada para o chão, o padre prior
murmurava em voz baixa aquela tão poética oração do despedir do

notículas insignificantes que não pagam a pena de ser lidas. Devemos economizar o
tempo, os esforços e a paciência do leitor. Se o fizermos, ele crerá, de boa mente, que
mereça leitura atenta o que lhe oferecemos e recompensará o nosso trabalho. Vale mais
omitir alguma cousa boa que ajuntar algo insignificante. Aplica-se bem, aqui, a frase de
Hesíodo: a metade é preferível ao todo. Em suma: não dizer tudo! “O segredo do
enfaramento é dizer tudo”. Logo, sempre que possível, só a quintessência, só o essencial,
nada que o leitor não possa, por si mesmo, repensar. Recorrer a muitas palavras para
exprimir poucas ideias é sinal infalível de mediocridade. O do cérebro eminente, ao
contrário, é concentrar muitas ideias em poucas palavras”. (Schopenhauer – Ecrivains et
style, p. 58).
dia. Os trabalhadores que, voltando das fadigas do campo,
acontecia passarem por aí nessa ocasião, descobriam-se também, e,
encostando-se ao ancinho e à enxada, punham as mãos e rezavam,
até que o reverendo, acabando os latinórios, que eles iam repetindo
em vulgar, lhes dizia: “Boas noites, rapazes, vá a cobrir!” – E os
ganhapães cobriam-se respondendo: “Guarde-o Deus, padre pior.”
– E partiam, e ele assentava-se outra vez a olhar para o poente, onde
o sol, que se afundara no mar, deixava, entre si e a noite que se
precipitava após ele das alturas do céu, uma barra de vermelhidão
e ouro, estirando-se para um e outro lado do horizonte, como se
tentasse embargar o caminho às trevas. E ali estava cismando até
que a tia Jerônima alçava meia adufa de uma janela baixa, que dava
claridade à cozinha e o chamava para a ceia, ao que prontamente
obedecia; porque, cumpre advertir que o padre prior não só
respeitava, a carga cerrada, todas as restrições do catolicismo
romano, mas também a sabedoria tradicional do povo, que, neste
capítulo da ceia, reza que deve ser comida sem sol, sem luz e sem
moscas, no momento fugitivo do espirar do dia, que não consta
deixasse jamais passar por alto a boa da tia Jerônima”. (Alexandre
Herculano – Lendas e narrativas, II, 121).
27 – Exemplo de estilo conciso:
“Albertina, quando recebeu o aviso, rompeu em pranto
desfeito, rogando às freiras que não a entregassem à vingança do
pai. A comunidade, temerosa do escândalo e do arcebispo com
quem o doutor as ameaçava, instava pelas pronta saída de
Albertina. Enfardaram-se os vestidos a toda a pressa, deram-lhe
muitos beijos e abraços e levaram-na processualmente à portaria.
O doutor Negro, feita uma seca mesura às freiras, deu o braço à
filha e conduziu-a silencioso às portas da cidade onde os esperavam
duas liteiras. Albertina, reconhecendo sua mãe numa das liteiras,
soltou um ai de alegre surpresa; sabia que tinha ali um seio maternal
onde chorar. Grande contentamento e rara fortuna ter a gente quem
nos deixe chorar na sua presença, sem medo de zombaria ou da
injúria disfarçada em conselho! O doutor entrou na outra
locomotiva e mandou andar. A liteiras pararam em Barcelos. No
outro dia seguiram para Viana e, ao cabo de algumas jornadas,
pararam em Valença. Daqui, Albertina e sua mãe, acompanhadas
de dois sujeitos de grave sombra e modos de pessoas palacianas,
partiram na estrada de Monção e o doutor, despedindo-se da mulher
e filha, com visíveis mostras de amargura, voltou para o Porto.”
(Camillo Castello Branco – A filha do Doutor Negro – cap. VII).
28 – EXERCÍCIOS DE CONCISÃO – Estes exercícios
devem ser constantes e prolongados. É o melhor método para
desenvolver no estudante a crítica do próprio estilo, sem a qual
ninguém logra redigir com segurança. O professor encontrará, nas
obras de Herculano, Garrett, Taunay e outros, numerosos trechos
demasiadamente prolixos, excelentes para os exercícios propostos.
Eis alguns:
Primeiro trecho: “A estrada que atravessa essas regiões
incultas desenrola-se à maneira de alvejante faixa, aberta que é na
areia, elemento dominante na composição de todo aquele solo,
fertilizado aliás por um sem-número de límpidos e borbulhantes
regatos, cujos contingentes são outros tanto tributários do rio
Paraná e do seu contravertente o Paraguai. Essa areia solta e um
tanto grossa tem cor uniforma que reverbera com intensidade os
raios do sol quando nela batem de chapa. Em alguns pontos, é tão
fofa e movediça, que os animais das viageiras arquejam de cansaço
ao vencerem aquele terreno incerto que lhes foge de sob os cascos
e onde se enterram até meia canela. Frequentes são também os
desvios que da estrada partem de um e outro lado e proporcionam,
na mata adjacente, trilha mais firme por ser menos pisada”.
(Visconde de Taunay – Inocência – Rio – 1903, p. 17).
Crítica – Fala o autor de certa região já mencionada, sendo
por isso inútil a oração que atravessa essas regiões. Compara a
estrada a uma alvejante faixa, ideia de si mesma já contida no
substantivo estrada, pois quase toda estrada é uma faixa alvejante.
É supérfluo dizer que a estrada é aberta, não havendo estrada que
o não seja. Referindo o autor que a estrada é aberta em areia, ipso
facto sugeriu ser a areia o elemento dominante na composição de
todo aquele solo, frase perfeitamente suprimível. Ideia natural a
regato é ser límpido e borbulhante. Logo, esses dois adjetivos são
dispensáveis. Se os regatos fossem turvos ou lodosos, aí sim,
caberiam os epítetos caracterizantes. Em regra, nunca se deve
mencionar os característicos essenciais ou normais dos nomes.
Assim, é demasiado assinalar que a neve é branca ou o sol
brilhante. Todo o resto do primeiro período é mais redundância
excessiva.
Depois, diz o autor que a areia tem cor uniforme, o que nada
mostra, pois nada define a cor. Supomo-la branca por causa do
alvejante faixa, no princípio. Toda areia necessariamente reverbera
os raios do sol quando nela batem de chapa, podendo-se resumir
esta frase subordinada na expressão a pino.
A expressão animais das tropas viageiras é excessiva; basta
o substantivo animais. Naturalmente esses animais só arquejarão
de cansaço ao vencerem aquele caminho incerto. A oração que lhe
foge de sob os cascos é demasiada redundância, pois o terreno é
incerto precisamente porque foge de sob os cascos. Há falta de
lógica em dizer que os animais arquejam de cansaço antes de referir
que enterram os cascos na areia, porquanto este fato é a causa
imediata daquele. O último período contém duas orações
subordinadas facilmente evitáveis.
Correção – Poder-se-ia reduzir o trecho assim: “Uma estrada
corta essas regiões arenosas e incultas, fertilizadas aliás por
inúmeros afluentes e subafluentes do Paraná e do Paraguai. A areia,
um tanto grossa e uniformemente alva, reverbera intensamente os
raios do sol a pino. Às vezes é tão fofa que os animais afundam
nela os cascos e arquejam de cansaço. Desvios múltiplos levam, de
ambas as margens, para a floresta adjacente, onde é mais firme o
chão por menos pisado”.
Segundo trecho – “Parou finalmente. De um e de outro lado
da senda alargava-se o vale formando uma caldeira entre os dois
montes paralelos. Da esquerda obra de uma oitava parte da pequena
planície estava cercada de um valado, por cujo espigão se
enredavam bastos silvados; um portelo grosseiro dava entrada para
uma espécie de pátio, à direita do qual ficava uma humilde casinha,
e da parte oposta um canavial basto, mas ainda curto, que separava
o pátio da almuinha e do vergel. Ao longo do canavial corria um
regato que ia formar uma presa ou tanque cujas bordas relvosas
eram como um tapete de verdura. A porta da casinha estava fechada
e uma grosseira tela de estopa servia de vidraça à janela que dava
luz para o interior. Reinava sobre isso tudo um silêncio profundo
que só foi interrompido pelo ranger do portelo, quando o mouro o
fez rodar sobre o prumo que lhe servia de quício, e pelo clach!
clach! das tímidas fugitivas”. (Alexandre Herculano – O monge de
Cistér – I, 99 – 1869).
Crítica – Diz o autor que o vale se alargava dando assim a
impressão de um vale grande; mas, logo depois nos fala em
pequena planície. No período seguinte há acumulação de aspectos.
Para que o estilo seja claro importa muito que os aspectos estejam
bem distintos. Todo atravancamento de aspectos obscurece a
descrição. Diz o autor que uma oitava parte da planície estava
cercada por um valado. A construção passiva chama a atenção do
leitor para o sujeito oitava parte da planície estava cercada por um
valado. A construção passiva chama a atenção do leitor para o
sujeito oitava parte quando o aspecto principal a revelar é o valado,
devendo por isto ser ativa a construção. Também no terceiro
período há acumulação, com três subordinadas decorrentes. No
quarto período a oração adjetiva é supérflua, pois toda janela dá luz
para o interior. O último período é confuso, redundante, com
acumulação. O verbo reinava é ruim e a expressão sobre tudo isso
dispensável, como dispensável é o adjetivo profundo; idem para o
foi interrompido. A oração de quando deve ser resolvida numa
coordenada e suprimida a que lhe servia de quício. Facilmente se
desatará em coordenada a cláusula adjetiva que saltaram. É de
rigor aspar o que estavam, verdadeiro trambolho. O resto são
repetições incômodas.
Correção – “Enfim parou. Entre os dois morros paralelos
alargava-se, em caldeira, o valezinho. À esquerda, um valado,
coberto de silvedos bastos, cercava um oitavo da planície. Um
portelo dava ingresso para um pátio. À direita do pátio ficava uma
casinhola e defronte um canavial ainda curto, mas espesso; por trás
dele a almuinha e o vergel.
Um regato cortava o canavial e terminava numa presa ou
tanque de margens relvosas. A porta da casinha estava fechada; na
janela, em vez de vidraça, via-se uma tela de estopa. Silêncio em
tudo; quedavam rãs na beira do pego. O mouro abriu o portelo, o
quício rangeu e as rãs assustadas saltaram na água em repetido
clach! clach!”.
Terceiro trecho – “Tinham-se passado cerca de seis meses
depois que Elias se retirara da fazenda do Major. As vastas e
profundas selvas, no seio das quais corria ruidoso e turbulento o
ribeirão da Bagagem, tinham tombado aos golpes do machado,
deixando descortinada uma larga zona em uma e outra margem. No
meio dos destroços da floresta viam-se dispersas, em desordem, as
frágeis e provisórias habitações dos garimpeiros, cobertas de
compridas palmas de coqueiro babassú. Por aquele terreno bronco
e selvático, onde só se esperaria encontrar o sertanejo ou o africano
semi-nu, girava uma população polida e bem trajada, composta de
pessoas de todas as procedências, que de remotas paragens
acudiam a explorar o novo descoberto, cuja fama se espalhava ao
longe, e ali reinava animação como em uma grande praça
comercial.
Enquanto a alavanca e o almocrafe retiniam pelas grupiaras,
extraindo o cascalho precioso, os golpes de machado reboavam
pelas florestas e, de espaço a espaço, um baque, estrugindo ao
longo das encostas, anunciava a queda de mais um tronco robusto
e secular. O ronco das catadupas servia como de acompanhamento
às cantigas e algazarras dos garimpeiros, que, ao longo da beira do
rio, lavavam alegremente o esperançoso cascalho.
Era uma tarde de novembro, pura, calma e cheia de
esplendores. Já todos abandonavam o trabalho, patrões e
trabalhadores, e se recolhiam a seus ranchos. Começava a acalmar-
se o rumor e agitação do dia e ouvia-se já a voz do sertanejo que,
assentado à porta do rancho, entoava ao som da viola seus cantares,
cujas notas prolongadas e melancólicas iam ecoando ao longe pelas
ribanceiras”.
Crítica – A frase tinham-se passado cerca de seis meses
resume-se em seis meses haveria. A expressão mata virgem
substitui com vantagem o vastas e profundas selvas, e no seio das
quais corre se exprime com o adjetivo marginais. Se as florestas
haviam tombado aos golpes do machado, por força ficaram
descortinadas as duas margens, não sendo mister declarar isso. Se
havia destroços, esses destroços eram naturalmente da floresta.
Não há necessidade de informar que as cabanas dos garimpeiros
são frágeis e provisórias, nem que as palhas do baguaçu são
compridas, nem que o baguaçu é coqueiro; na descrição é
importuno ensinar. Quando for mister isso, o autor ajuntará um
léxico ou recorrerá às notas explicativas, aliás de mau gosto.
O leitor já tem ideia perfeita de estar em terreno bronco e
selvático. O período está cheio de perífrases (exemplo: cuja fama
se espalhava muito ao longe, quer dizer, famoso) e de subordinadas
facilmente redutíveis.
O período seguinte encerra uma concomitância anunciada
pela conjunção enquanto. Essa concomitância melhor se exprimiria
por coordenação. Dizendo que a alavanca e o almocafre retiniam
nas grupiaras, já sugerira o autor que era para extrair o cascalho
precioso, frase supérflua. Do mesmo modo, basta falar no retinir
do machado e no baque dos troncos para lembrar tudo o que se
segue no período. Adiante, em vez do rabilongo servia como de
acompanhamento importa dizer acompanhava e, na oração
adjetiva, o ao longo da beiro do rio equivale a no rio, de nada
servindo o alegremente.
Se os patrões e trabalhadores se recolhiam aos seus ranchos é
que abandonavam o trabalho ou vice-versa. Rumor já se inclui,
neste quadro, em agitação; o ouvia-se é dispensável; entoava seus
cantares é uma perífrase ruim. As subordinadas atravancam todo o
período e obscurecem os aspectos. Demais, a descrição é, toda ela,
vaga, imprecisa, incolor, por falta de aspectos bem particulares,
locais.
Correção – “Retirara-se Elias da fazenda do Major seis meses
haveria. As matas virgens, marginais ao ribeirão de Barragem,
foram devastadas em larga zona. Entre os destroços, erguiam-se em
desordem, cobertas com espalhas do baguaçu, cabanas de
garimpeiros. Não vinham somente sertanejos e africanos. Gente de
toda casta acudia a explorar o novo descoberto já famoso e nesse
descampado havia a agitação das praças comerciais. Retiniam nas
grupiaras a alavanca e o almocafre, reboava o machado na floresta
e baqueavam troncos seculares. O ronco das catadupas
acompanhava a cantiga e a algazarra dos garimpeiros que lavavam
no rio o cascalho precioso.
Era uma tarde esplêndida de novembro. Patrões e
trabalhadores recolhiam-se aos seus ranchos. Serenava a agitação
do dia e o sertanejo, sentado à porta do rancho, cantava ao som da
viola. As notas melancólicas ecoavam longe pelas ribanceiras”11.

11
Leitura – Vício das subordinações: “O princípio dirigente da arte do estilo deveria ser
este: não pode alguém pensar, nitidamente, de cada vez, senão um pensamento. Não lhe
podemos exigir, portanto, que pense ao mesmo tempo, dois e sobretudo vários. Pois é isso
que lhe impõe aquele que os atocha, sob a forma de incidências, nas descontinuidades de
uma frase principal, para isso despedaçada; atira-o dessarte, inutilmente e jovialmente, na
perplexidade. É o que fazem, mais que todos, os escritores alemães. Que a língua se preste
mais a isso que as outras línguas vivas, pode bem ser, mas não justifica o mérito da cousa.
Prosa alguma se lê mais fácil e agradavelmente que a francesa, porque, geralmente, se
acha isenta de tal vício. O francês enlaça os pensamentos na ordem mais lógica e,
normalmente, mais natural, e assim os submete, sucessivamente, ao seu leitor, que os
pode, azedamente, examinar e consagrar a cada qual sua atenção inteira. O alemão, longe
29 – EXERCÍCIOS – Criticar e tornar concisos os seguintes
trechos prolixos:
a) “Como nessas poéticas e populares legendas de um dos
mais poéticos livros que se têm escrito, o Flos Sanctorum, em que
a ave querida e fadada acompanha sempre a amável santa da sua
afeição, Joaninha não estava ali sem o seu mavioso companheiro.
Do mais espesso da ramagem, que fazia sobrecéu aquele leito de
verdura, saía uma torrente de melodias, vagas e ondulantes como a
selva com o vento, fortes, bravas e admiráveis de irregularidade e
invenção, como as bárbaras endechas de um poeta selvagem das
montanhas... Era um rouxinol, um dos queridos rouxinóis do vale
que ficara de vela e companhia à sua protetora, a menina do seu
nome.
Com o aproximar dos soldados e o cochichar do diálogo que
no fim do capítulo se referiu, cessara por momentos o delicioso
canto da avezinha; mas, quando o oficial, postadas as sentinelas a
distância, voltou pé ante pé e entrou, cautelosamente, para debaixo
das árvores, já o rouxinol tinha tornado ao seu canto e não o
suspendeu outra vez agora, antes redobrou de trilos e gorjeios, e,
do mais alto de sua voz agudíssima, veio descaindo depois, em uns
suspiros tão magoados, tão sentidos, que não disseras senão que
preludiava à mais terna e maviosa cena de amor que esse vale
tivesse visto”. (Garret – Viagens de minha terra – cap. XX).
b) “Amanheceu o dia seguinte belo e puro como um dia de
abril que era; o toldo de névoa, que a madrugada costuma estender
sobre o Douro, tinha levantado mais cedo. Desde o nascer do sol,
as mais escuras e tristonhas vielas do Porto se inundaram de
claridade. A nossa rua de Sant’Anna não foi das últimas que, em
sua estreita e cava sinuosidade, viram penetrar a luz aviventadora
daquele dia. Seriam sete horas da manhã: os postigos da gelosia, à
direita do arco da santa, já por vezes se tinham agitado; já os vivos

disso, entrecruza-os num período embrulhado, mas embrulhado, cada vez mais
embrulhado, por querer dizer seis cousas de pancada, em logar de as emitir umas após
outras. (Schopenhauer, Ecrivains et style, p. 78).
e ardentes olhos da animada Gertrude foram vistos fixar-se com
ansiedade nas janelas ainda fechadas da casa fronteira.
Gertrudes está inquieta, não sabem bem por quê; dá-lhe que
entender, hoje mais que nunca, o silêncio daquela casa, que,
todavia, não é das mais temporãs a dar sinais de movimento e de
vida exterior logo de manhã. Anna bem se ergue cedo, com a
aurora, de seu viúvo e desconsolado leito; mas lida muitas horas no
interior da casa, para satisfazer a seus tantos cuidados domésticos,
primeiro que apareça às duas queridas vizinhas que sempre lhe tem
valido, a boa santa que a protege e a boa amiga que a conforta”.
(Garret – O arco de Sant’Anna – cap. IX).
c) A propriedade do Monteiro, apesar de vários
melhoramentos e reformas efetuadas nela, oferecia, ainda claros,
muitos vestígios de seus primitivos usos. Não era raro encontrar-
se, aqui e ali, em pé, uma cruz de pedra, marcando antigos lugares
de devoção; no alto de algumas portas conservava-se visível o
emblema e divisa da ordem, ou restos de inscrições latinas; nas
paredes da arcaria, em que se apoiava a face posterior do edifício,
mantinha-se ainda um azulejo contemporâneo dos frades;
finalmente resistira a sucessivas reformações certo colorido
monástico, que só após muitos anos se dissiparia de todo. Entrava-
se para a propriedade por uma larga, comprida e majestosa aléa de
sobreiros seculares, alcatifada de relva que, sobretudo dos lados,
por pouco trilhada, crescia espessa e verdejante. Abria-se, ao fim
desta rua, o alto porão do pátio.
Henrique, deixado só pelo guia, ao chegar ali, foi caminhando
vagarosamente por esta avenida, dominado por a íntima comoção
e sentimento quase de temor, que se apodera de nó, em todos os
lugares a que se ligam memórias do passado. A fantasia estava-o
transportando a tempos a que não chegavam já as suas recordações,
às épocas em que, por entre estas árvores gigantes, se via perpassar,
como um fantasma, o hábito escuro do monge, cuja sombra o sol,
ao declinar no horizonte, tantas vezes projetou, esguia e estirada,
ao longo daquela mesma avenida.
Impressionado por esta ordem de pensamentos, chegou
Henrique ao portão, transpondo o qual, se introduziu no pátio. Era
um largo terreiro de perfeita forma retangular, limitado ao fundo
pela fachada da casa e, lateralmente, por elevadas paredes,
armadas, à maneira de panos de Arrás, com tapeçarias de vigorosas
heras. A cada uma das paredes encontravam-se dois tanques de
vasta capacidade. No tempo dos frades vomitavam, sem cessar, as
feias e enormes carrancas de todos esses quatro tanques, grossos
jorros de fresca e puríssima água; porém as medidas econômicas
do último proprietário e as exigências dos seus projetos agrícolas
haviam derivado, para outros fins, parte desta abundante veia, de
maneira que três daquelas bacias estavam agora completamente a
seco.
Os fetos de folhas recortadas, as pegajosas parietárias, os
funchos odoríferos, havia muito que tinham invadido a boca dos
encanamentos inúteis onde encontraram asilo imperturbado
lacertos, aranhas e miriápodes e se estabeleciam pacíficas colônias
de caracóis”. (Júlio Dinis – A Morgadinha dos Cannaviais – Porto
– 1868 – p. 45).
NOTA – O professor tomará também, para textos de crítica,
as próprias composições dos alunos.
29 – Da clareza – Clareza é a expressão exata de um
pensamento ou emoção. Conforme a maior ou menor exatidão,
maior ou menor é a clareza do estilo. A concisão concorre muito
para a clareza.
30 – Para obter-se clareza cumpre, além da concisão: 1º)
evitar as ambiguidades (equívocos ou sínquise); 2º) evitar os
anacolutos (quebra da ordem lógica); 3º) evitar a acumulação; 4º)
empregar a palavra precisa; 5º) pontuar bem.
31 – Ambiguidade é a possibilidade de mais de um sentido
para a mesma frase ou período.
Vamos dar exemplos de Camões nos Lusíadas:
a) Na estância 6º do primeiro canto, referindo-se a d.
Sebastião, escreve o poeta:
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade:
Dada ao mundo por Deus que todo o mande,
Para do mundo a Deus dar parte grande.
Esses versos deram lugar à longa discussão e a três
interpretações diversas. Qual o sujeito de mande? A primeira
opinião, de José Agostinho de Macedo e Gomes de Amorim,
prende o relativo que a Deus dando-lhe função subjetiva, achando
assim, ou que o verbo deveria ser manda, trocado em mande para
rimar com grande, ou então que a oração é imprecativa (tomara que
Deus mande todo o mundo!) exprimindo o desejo de que a religião
cristã, o Deus cristão, seja adorado e servido por toda a terra. A
segunda interpretação, patrocinada por Epifânio Dias, considera
que todo o mande oração adverbial de fim, sendo que igual a para
que. O poeta afirma que d. Sebastião vai ser um ente maravilhoso,
dado por Deus ao mundo para, subjugando-o, dominando-o com a
sua capacidade guerreira, dar à religião católica, ao mesmo Deus
cristão, grande parte do mundo. O dr. José Maria Rodrigues acha
absurda essa interpretação. Isso “ultrapassaria o que o decoro e o
senso comum exigiam do poeta”. Camões não ousaria exprimir o
desejo de que d. Sebastião vencesse todo o mundo “submetendo ao
seu domínio a Espanha, a França, a Inglaterra, o Império etc., etc.”
O poeta seria ridiculizado. O sr. J. M. Rodrigues propõe, assim,
terceira interpretação. Para ele a oração que todo o mande não é
final, é adjetiva e o que se refere a Deus, sujeito de mande, mas o
todo não se prende a mundo, senão a ele, rei, temor da Maura lança,
a ele, d. Sebastião. Como porém o tratamento é de 2º pessoa do
plural, em vez de o mande, a gramática exigiria vos mande. Por
isso, pensa o mesmo crítico haver Camões escrito os mande, sendo
os o mesmo vos, como em espanhol. Esse espanholismo era
corrente no século de Camões.
Esta opinião me parece insustentável. A objeção feita à
segunda, isto é, de ser inadmissível exagero mandar todo o mundo,
refuta-se com dois argumentos. Primeiro: o verbo mandar está no
sentido, não de subjugar, as de impor-se, ter supremacia, governar,
como em II, 2:
O Rei que manda esta ilha, alvoroçado
Da vinda tua etc12.
Segundo: o que o sr. José Maria Rodrigues supõe ultrapassar
o decoro e o senso comum é precisamente o que desejava o poeta.
No canto sétimo, depois de profligar Alemães, Ingleses e Italianos
que se digladiam em vez de acometerem os turcos e aumentar a
cristandade, exclama, na estância XIV:
Mas entanto que cegos e sedentos
Andais de vosso sangue, ó gente insana,
Não faltarão cristãos atrevimentos
Nesta pequena casa Lusitana:
De África tem marítimos assentos,
É na Ásia, mais que todas, soberana,
Na quarta parte nova os campos ara,
E, se mais mundo houvera, lá chegara.
O que o poeta deseja, portanto, é que d. Sebastião leve a
influência portuguesa aonde quer que haja mundo, porque assim,
mandando-o todo, dará eles grande parte a Deus.

12 Em VII, 36, o verbo mandar vem duas vezes com o mesmo sentido:
Esta lhe dá co titulo excelente
De Emperador, que sobre os outros mande.
Isto eito se parte diligente
Para onde em sancta vida acabe e ande;
E daqui fica o nome de potente
Camori, mais que todos digno e grande,
Ao moço e descendentes, donde vem
Este, que agora o Imperio manda e tem.
b) No canto VIII, estância 28, Camões diz:
Atenta num que a fama tanto estende,
Que de nenhum passado se contenta.
O poeta refere-se a Nuno Álvares Pereira. Benito Caldera,
que em 1580 traduziu os Lusíadas para o espanhol, e com ele Faria
i Souza e Macedo, consideram fama sujeito de estende e que objeto
direto. Sendo assim, os dois versos significam que a fama elevou
tanto a glória de Nuno Álvares, que já lhe parece herói some-nos
qualquer dos heróis passados, nenhum deles a contenta
comparando-os com o português.
Epifânio Dias não aceita essa interpretação. Para ele que é o
sujeito referindo-se a um, e fama o objeto direto. A oração do
segundo verso não é correlativa de tanto. Esta palavra está no
sentido de muito, acepção vulgar em Camões. A oração é adjetiva
e o segundo que é pronome relativo preso ao mesmo um. O sentido
é este; repara naquele que tão altamente eleva a sua fama e que não
se contenta em rivalizar com os heróis passados, mas pretende
sobrepujá-los.
A ambiguidade neste passo é completa, sendo difícil decidir.
c) Na estância 29 do mesmo canto lemos:
Olha, por seu conselho e ousadia
De Deus guiada só, e de santa Estrella
Só pode o que impossível parecia
Vencer o povo ingente de Castella.
Refere-se Camões ao mesmo Nuno Álvares. O pode do 3º
verso é pôde. A ambiguidade está no só precedente a esse pôde. À
primeira leitura, parece reger o verbo, mas o sentido repele tal
regência, pois que o herói não pode apenas vencer o povo de
Castela. Como no 2º verso há outro só preso a guiada, poderíamos
paralelamente prender o segundo só ao mesmo guiada pondo uma
vírgula depois dele, entendendo que a ousadia era guiada só por
Deus e só pela santa Estrela. Se, porém, puséssemos uma vírgula
depois de Estrela e outra depois de só, este assumiria o sentido de
sozinho e se referiria a Nuno Álvares, significando ter ele podido,
sozinho, vencer Castela.
O dr. José Maria Rodrigues não aceita nenhuma dessas
interpretações e propõe-se a ler-se, em vez de so (no original não
há o acento) se como partícula passivante: se pôde, quer dizer, foi
possível. Não há, penso eu, necessidade disso.
32 – Anacoluto é a quebra da ordem lógica. Em geral faz-se
a quebra por mudança do sujeito. Eis alguns exemplos:
a) [...]e Roma que do mundo foi senhora pacífica, sabido he,
com quam pouca gente e riquezas os Senadores dela começaram
seu Senhorio (Ruy de Pina – Chronica d’El-Rey Dom Duarte – c.
XVII).
O sujeito anunciado é Roma e interfere-se depois o sujeito
Senadores dela. Sem anacoluto seria: “Sabido he com quam pouca
gente e riquezas os Senadores de Roma, que do mundo foi senhora
pacífica, começaram seu senhorio”.
b) “E não era sem razão fazer a mais desta gente isto, porque
Filmor era tão áspero e cruel, que convertia a vontade de todos em
ódio contra ele, e muitos estavão ali, que ele tinha morto pai e
irmãos, marido e outros parentes” (João de Barros – Chronica do
Emperador Clarimundo – ed. rol. 1834 – I, 86).
Evitar-se-ia o anacoluto pondo a preposição a antes de que:
muitos... a que ele tinha morto, ou então: muitos cujo pai, irmãos...
ele tinha morto.
c) “Assi que cada huma tinha cuidado de buscar maneira com
que fosse amada. Porque a natural condição das mulheres, somente
neste ponto de serem queridas ocupão a fantesia” (Id. II, p. 162).
Em vez de concordar o verbo ocupam com o sujeito
anunciado natural condição, deu-lhe o autor como sujeito
mulheres.
Nota – O anacoluto nem sempre é vicioso, embora seja, de
muito, preferível à ordem natural. É raríssimo nos escritores
modernos, não raro nos antigos e comum no falar corrente; ex.:
“Este é o chapéu que eu saí com ele hontem.”
Pode-se encontrar nos Lusíadas numerosos anacolutos: II,1,
27, 40, 43, 47, 82, 104 – III, 4, 16, 21, 22, 26 – V, 6, 54, 92 – VI,
24 – VII, 18, 74 – VIII, 13, 47, 58, 59 – IX, 32 – X, 77, 8313.
33 – Acumulação é o excesso e entrecruzamento de aspectos,
fatos ou opiniões no mesmo período.
Exemplo de acumulação: “Nesse bairro, no fim da rua
chamada, há séculos, das Canastras, junto às Portas-do-mar, corria
uma casa baixa, mas solidamente edificada, a qual contrastava com
as que lhe estavam próximas pela sua muita antiguidade: duas
janelas cujas vergas se arqueavam à feição de uma ferradura, aberta
nos dois extremos da frontaria, a igual distância do largo e
achatando portal que lhes ficava no meio, desdiziam das frestas
pontiagudas e estreitas que davam luz às moradas vizinhas, bem
como o portal, igualmente terminado em volta de ferradura,
contrastava com as elegantes portadas góticas dos outros edifícios,
cujos telhados angulosos e bordados de ameias também
diversificavam do teto daquele edifício mourisco, que oferecia aos
seus habitantes um eirado espaçoso, onde, pelas madrugadas
serenas ou ao pôr do sol de um dia de estio, podiam respirar uma
viração mais pura, que raras vezes passava pelas ruas tortuosas,
estreitas e imundas da velha cidade.” (Alex. Herculano – O monge
de Cistér – I, 142 – 1869.)

13
Os professores devem assinalar aos alunos esses anacolutos que tanto os perturbam na
análise lógica.
Para tornar o trecho claro cumpre evitar a acumulação dos
aspectos num só período estafante, e distribuí-los em vários
períodos.
Pode ser assim: “Nesse bairro, no fim da multissecular rua
das Canastras, junto às Portas-do-mar, havia uma casa baixa, mas
sólida. Contrastava com as casas vizinhas por sua muita
antiguidade. Estas possuíam frestas pontiagudas e estreitas,
elegantes portadas góticas e telhados angulosos, bordados de
ameias. Tinha aquela, nos extremos da frontaria, duas janelas com
vergas arqueadas em ferradura. Ficavam a igual distância do portal
intermédio, igualmente terminado em volta de ferradura. O teto
desse edifício mourisco formava um eirado espaçoso onde, pelas
madrugadas ou nos crepúsculos de estio, se respirava uma viração
mais pura, rara nas vielas tortuosas e imundas da velha cidade.14”
34 – O vício contrário ao da acumulação é a braquilogia,
justaposição de frases muito curtas, sem ligações, com pausas
obrigatórias mui frequentes. Eis um exemplo:
“No entanto a multidão tumultuava. Discutiam-se as facções.
Primeiro vozes ásperas; depois, convícios; por fim, violência.
Luzem, cruzando-se, ferros, nus: o sangue corre; soam brados de
dor, gritos de agonia. Um motim provocado da facção vencida:
quer afogar em sangue o desdouro da derrota. Recresce a luta.
Asklepíades tenta acalmá-la. Vendo estéreis conselhos, súplicas,
dispersa a punhos os magotes. Fecha-o uma roda de homens
ameaçadores. Abre estrada a poder de braços: ninguém se afronta.
14
Leitura – Sobre a acumulação – É claramente contra as regras da sã razão entrecruzar
dois pensamentos como cruz de pau. É no entanto o que se dá quando interrompemos o
que principiáramos a dizer para intercalar alguma cousa diferentíssima, ou quando
confiamos à guarda do leitor, até nova ordem, um período começado, ainda desprovido
de sentido e cujo complemento havemos de esperar. É como se puséssemos um prato
vazio na mão dos convidados, na esperança de que se enchia por si mesmo. Falando
franco, as entre-vírgulas são da mesma família que as notas de infra-página e os
parênteses no trecho; todas três, apurando bem, diferem só de grau. Demóstenes e Cícero,
por vezes, perpetraram desses períodos caudatos, inseridos uns nos outros; melhor teriam
feito evitando-os. Essa construção atinge o mais alto acume da absurdeza quando as
cláusulas incidentes não se intercalam organicamente, mas se encravam fraturando o
período diretamente” (Schopenhauer – ibidem, p. 81).
Súbito um auriga, de peito em arco, pulso rijo, olhar torvo, acerca-
se-lhe cambaleando e joga-lhe ao peito um golpe.
- A faca não me vences! ruge.
Asklepiades apara no braço a ferro que resvala rasgando a
carne: uma punhalada prostou o agressor brutal. A confusão
redobra: gritos, maldições, gemidos, súplicas. Morto Asklepiades!
morto Asklepiades! É o grito geral.” (Souza Monteiro – Os amores
de Julia – 1909, p. 77).
35 – Precisão15 é o emprego da palavra ou da construção mais
exata na expressão de uma ideia ou emoção.
Eis alguns exemplos de imprecisão tomados ao nosso
Fagundes Varella:
a) Quando eu morrer adornem-me de flores
Descubram-me das vendas do mistério,
E ao som dos versos que compus carreguem
Meu dourado caixão ao cemitério
No segundo verso parece querer o poeta que lhe tirem o lenço
do rosto; a imprecisão da palavra venda obscurece de todo o
pensamento e força a imagem.
b) Referindo-se ao oceano, diz o poeta:
A eternidade
Revela-se em teus brados furibundos
Quando alta noite as vagas se abalroam
Coroadas de elétricas centelhas.

15
Sobre o estilo picado (braquilogia): “A verdadeira brevidade de expressão consiste em
dizer somente o que deve ser dito, em evitar toda explicação prolixa daquilo que toda a
gente pode, por si mesma, pensar, distinguindo exatamente o necessário do supérfluo. Por
outro lado, importa não sacrificar a clareza e muito menos a gramática à brevidade.
Enfraquecer a expressão de um pensamento obscurecer ou estiolar o sentido de um
período para economizar algumas palavras é míngua deplorável de juízo”. (Schopenhauer
– Ibidem, p. 60).
Neste último verso pensa o poeta provavelmente nas
ardentias; mas, aquele elétricas parece indicar os raios da
tempestade de que o poeta não faz menção. No primeiro caso seria
impropríssimo o adjetivo porque as ardentias não são elétricas16.
c) Na mesma poesia há estes versos:
Basta-me apenas contemplar-te, altivo,
Cuspindo aos homens que a teus pés rastejam
A férvida saliva do desprezo.
O poeta com esse férvida pretendeu, talvez, exprimir o
mesmo que espumosa, efervescente. Como, porém, férvida
significa ardente, quente, temos uma ideia extravagante, pois a
saliva do desprezo deveria, ao contrário, ser fria.
d) Descrevendo a cidade da Baía escreve:
Sobre coxins de veludo
Aos fogos do meio-dia,
Dorme a esplêndida Baía
Reclinada à beira-mar;
E como servas humildes
Sustendo-lhe o régio arminho
As vagas falam baixinho
Medrosas de a despertar.
A imprecisão está na palavra arminho. Será o manto régio
debruado de arminho? Será o escudo arminhado? Como se
compara a cidade a uma rainha adormecida, ambas as ideias são
inoportunas e ocorre a ideia extravagante de uma colcha
arminhada. Outra ideia possível é a de que o arminho sejam as
espumas sustentadas pelas ondas, servindo esse arminho de
debrum ao manto real17.

16
Talvez seja a mesma ideia por ele expressa nest’outros versos:
A noite desce, os boqueirões de espumas
Rugem pejados de ferventes lumes.
17
Leitura – Valor da precisão: “Entre as muitas expressões que podem traduzir um só
dos nossos pensamentos só uma existe boa. Nem sempre a achamos falando ou
36 – Da pontuação – Nestas notas cuidaremos tão somente do
ponto e vírgula e da vírgula. As demais notações nenhuma
dificuldade nos deparam.
Antes de resumir sistematicamente as regras da pontuação,
cumpre expor uma noção importante: a da prótase e da apósode.
Vejamos alguns exemplos:
a) “Se procederes como te recomendo, observando
cuidadosamente as minhas instruções, asseguro-te o êxito da nossa
empresa”.
b) “Embora saibamos quão numerosos e insuperáveis hão de
ser os obstáculos à nossa iniciativa, nem por isso vacilaremos um
instante”.
c) “Ainda que permaneças insensível ao nosso protesto e
empedernido no teu erro; mesmo que tudo nos convença da
ineficácia dos nossos esforços para te demover de tão iníquo
propósito; enquanto em nós houver uma esperança de poder sustar
o malefício do teu ódio, aqui estaremos atentos no rebate e prontos
à defesa dos inocentes”18.

escrevendo; mas a verdade é que ela existe, que tudo o mais, fora ela, é fraco e não satisfaz
o homem de espírito que se quer fazer ouvir. Um bom autor, cuidadoso no escrever,
observa muitas vezes que a expressão buscada há muito, desconhecida e enfim achada,
era a mais simples e natural, a que deveria acudir logo, sem esforço”.
(La Bruyère – Les caracteres – ed. Flam. p. 59).
18
Leitura – “Essa procura ingênua ou meditada da precisão, pode-se notar mais o menos
em todos os grandes poetas da antiguidade e nos historiadores que, segundo o dito de
Cícero, são também poetas. Para citar um só nome, nas obras de Tácito, espécie de galeria
onde se atulham milhares de retratos, não há dois semelhantes. Cada personagem, numa
só palavra habitualmente, fica assinalado com traço próprio. Na história antiga, a tudo
aplica-se esta lei, mesmo às pequenas anedotas, que só tem preço quando bem
características, se pintam um homem e não outro. Plutarco é o escritor que melhor sabe
retratar um herói com uma historieta, um pormenor aparentemente sem valor, mais cabal
de vivamente o revelar, que longas reflexões. J. J. Rousseau enalteceu tal mérito numa
excelente página e todo leitor de Plutarco atribui a essa arte tão particular o encanto dos
seus escritos. Não basta, com efeito, dizer de um homem que ele é bravo, se não se
distingue seu gênero de bravura, que é generoso, se não mostramos, em seu matiz, seu
gênero de generosidade, seja-nos lícito citar um só desses rasgos insubstituíveis. Quando
o inumerável exército de Xerxes marchou contra Atenas, os Atenienses, não podendo
Nos exemplos a e b nota-se que os períodos constam de duas
partes: a primeira, introduzida por um conectivo subordinativo (se
e embora), firma uma condição ou concessão; a segunda encerra a
oração principal, com uma conclusão obrigada. A primeira parte
chama-se próstase; a segunda, apódose.
No exemplo c há três próstases (introduzidas por ainda que,
mesmo que e enquanto); a apódose começa em aqui estaremos.
Em geral, as próstases sucessivas começam pela mesma
conjunção se... se... se; quando... quando... quando... etc.
Podemos considerar verdadeiras próstases os chamados
considerandos: “Considerando que...” com a apódose:
“Resolvem...”.
Muitas vezes as conjunções da prótase ou das prótases estão
ocultas; ex.: “Soubesse ele do procedimento do irmão, não se
atreveria a elogiá-lo”, em vez de: “Se ele soubesse...” Também
como oração reduzida: “Não vindo ele, nada farei”, igual a: “se ele
não vier, nada farei”.
Cumpre não confundir o processo da prótase e da apódose
como do paralelismo, operado por meio de conjunções
coordenativas; ex.: “Ou tudo se esclarece com a confissão dele, ou
o irmão assume a responsabilidade das ordens abusivas, ou
desfaremos a sociedade sem nenhuma restituição aos dois”.

defender a cidade aberta, treparam nos navios para combater em Salamina e enviaram
filhos e mulheres para Trezeno onde foram otimamente recolhidos. Para indicar a singular
graça dessa hospitalidade, não desdenha Plutarco de informar-nos terem os Trezênios
permitido, por decreto, aos meninos atenienses, colherem a seu grado frutos no campo,
achando importante acrescentar haver sido autor desse decreto um tal Nicágoras. O
honesto historiador pune por transmitir à posteridade o nome desse homem digno. O lance
parecerá mui simples, talvez algo pueril; entretanto, que pode melhor dizer do quanto se
entristeciam em Trezeno os corações à vista desses órfãos exilados, cuja pátria ia ser
destruída por formidável invasão e cujos pais iam morrer pela salvação da Grécia? Não
era uma hospitalidade ordinária a que a cidade de Trezeno pretendia dar, mas
hospitalidade de família. Moralmente é primoroso o episódio; historicamente é o mais
demonstrativo por não parecer-se a nenhum outro”. (Martha – La délicatesse dans l’art,
p. 34 e seg.)
Nesse exemplo o paralelismo é feito por alternação. Pode ser
feito por uma série de conclusões, com as conjunções conclusivas
logo, portanto, etc., repetidas, ou por uma série de adversativas.
Posto isso, vejamos as normas para emprego do ponto e
vírgula e da vírgula.
37 – Do ponto e vírgula – a) Separa próstases sucessivas,
sendo a última próstase separada da apódose apenas por vírgula19.
b) Separa orações adversativas; ex.: “Quiséramos ir de
manhã, pois ameaçava chuva; mas não havia condução”. Sendo
muito curtas as frases ou não sendo muito frisante o sentido
adversativo, basta vírgula; ex.: “Quer vir, mas não pode”. “Subiu,
porém não muito alto”. Ao contrário, ainda curta a frase e oculta a
conjunção, usa-se do ponto e vírgula se for acentuadamente
adversativo o sentido, ex.: “Defenda-se; não se vingue”.
c) Separa as orações paralelas com a conjunção oculta; ex.:
“Um chegou cedo demais e o outro demasiadamente tarde”. A
mesma frase sem a conjunção e será: “Um chegou cedo demais; o
outro, demasiadamente tarde”. Outro exemplo: “Meu dever é
cumprir as ordens recebidas; o teu, ajudar-me na árdua tarefa de
cumpri-las”. Eis um bom exemplo citado na gramática de Pacheco
Junior e Lameira de Andrade: “Dos meninos é próprio o aprender;
dos mancebos, o empreender; dos varões, o compreender; dos
velhos, o repreender”.
Nas orações alternativas, como vem sempre clara a
conjunção, a separação faz-se por vírgula.
d) Separa várias frases dadas como exemplos; ex.: “Eis
algumas frases alternativas: ou Pedro ou João deve chegar hoje;
quer venham, quer não, iremos ao concerto; ora subíamos, ora
descíamos, ora descançávamos numa pedra.
e) Pode-ser por ponto e vírgula em vez de ponto antes da
abreviação ex. (exemplo), como no seguinte período: “Nas orações
19
Releia os exemplos a, b, c, do § 36.
subordinadas, o pronome átono precede o verbo; ex.: quando me
vires, cumprimenta-me”.
38 – Da vírgula – a) Separa frases coordenadas aditivas
assindéticas entre si: ex.: “Saímos cedo, corremos toda a fazenda,
voltamos às 9 horas e almoçamos sob as castanheiras”.
b) Separa orações alternativas; exs.: ou tu me esperas ou não
vou às corridas; nem ela veio, nem minha sobrinha telefonou; ora
nós, ora nossos vizinhos, passávamos lá o verão.
c) Separa orações coordenadas, sindéticas, se precedidas de
termos semelhantes, coordenados; ex.: “Foram louvados atos
espalhafatosos e insinceros, e indivíduos sem mérito guindados à
primeira plana”.
Mostra a vírgula, nesse exemplo, que indivíduos não é termo
análogo de atos e que, portanto, não é sujeito de foram louvados;
mas, ao contrário, que se prende a outra oração.
d) Separa as orações independentes intercaladas: ex.:
“Irmão, disse-lhe o monge, acompanha-me”.
e) Separa as orações correlatas; ex.: “Assim o querem, assim
o tem; era tão forte, que derrubava um touro; vivemos de tal
maneira, que nada pode alterar nossos hábitos”.
Nas orações latentes com mais, menos, mesmo e semelhantes
(com maior, menor, outro), não se usa vírgula por se ter
obscurecido a correlação; ex.: ele é mais forte do que eu; o burro é
menos belo que o cavalo.
f) Separa as orações adjetivas parentéticas, claras ou latentes;
exs.: “Ele, tão generoso, recusou o auxílio que lhe pedimos; ela,
que é a mais formosa das campistas, não teve um voto”.
NOTA – É indispensável, nesse caso, distinguir se a oração é
mesmo parentética ou meramente determinativa. A oração
parentética, embora por seu característico de forma e posição seja
adjetiva, tem, no sentido, algo de adverbial, apontando vagamente
a causa, a concessão, a condição. Nos exemplos dados, as
expressões: tão generoso e a mais formosa, denotam concessão e
equivalem a: embora tão generoso, conquanto a mais formosa.
Outros exemplos: “A cabroeira, alucinada, gritava atrozmente (isto
é, porque estava alucinada); a ele, que é o decano da corporação,
nenhum preito renderam (isto é, apesar de ser).
O critério para verificar isso é tentar a inversão. A oração
parentética pode ser anteposta ao substantivo a que se prende; a
determinativa, nunca. Assim, temos: “Tão generoso, recusou ele o
auxílio que lhe pedimos; a mais formosa das campistas, não teve
ela um voto; alucinada, a cabroeira gritava atrozmente; decano da
corporação, nenhum preito lhe renderam”.
Demais, o elemento parentético pode ser suprimido, ao passo
que o determinativo, não, ex.: “O menino que você viu no mercado
desapareceu” (determinativo e insuprimível, pois sem ele não
sabemos de quem se fala).
g) Separa entre si os termos análogos de uma proposição
(palavras, expressões ou mesmo cláusulas): exs.: “Vieram juntos
Paulo, o irmão, meu primo, o Juvêncio e a mulher” (sujeitos).
“Estava risonha, toda de preto, mais corada ainda, verdadeiramente
bela, a deslumbrar por sua elegância” (adjuntos atributivos).
“Ontem, cerca de meio dia, no largo da Carioca, por imprudência
de um motorista, encontraram-se dois veículos” (adjuntos
adverbiais).
h) Assinala os adjuntos menos lógicos antepostos a seus
análogos; ex.: “Luiza chegou, inesperadamente, à casa do
cunhado”. Nesse exemplo, o adjunto adverbial logicamente preso
a chegou é à casa do cunhado, indicativo do lugar. O adjunto
inesperadamente, interposto, deve estar entre vírgulas. Compare:
“Luiza chegou à casa do cunhado, inesperadamente” sem vírgula
possível depois de chegou.
i) Separa os apostos dos outros termos vizinhos; ex.: “João
Pedroso, funcionário dos Correios, foi aposentado”. Exemplo de
um aposto de realce com outro exclamativo: “Tu, só tu, puro amor,
com força crua etc.
j) Separa os termos de uma enumeração; ex.: Lista de
ferramentas: um serrote, dois rebotes, uma enxó, cinco formões.
k) Separa palavras continuativas, conclusivas, explicativas,
corretivas; exs.: “Assim, tudo fizeram por vencer; então, vieram em
chusma os dançarinos; portanto, malditos sejam todos os tiranos;
ora, querendo o príncipe ver o menino, pediu que lh’o trouxessem;
remem até a praia, melhor, até a rampa; chegamos apenas quatro,
aliás, cinco”.
l) Assinala, nas orações zeugmáticas, a zeugma do verbo;
exs.: “Todos foram visitar a cachoeira; Carlos, não”. “Saímos a
passeio; Carlos, numa caleça; Mário, numa bicicleta; Jandira, no
alazão, e Venâncio, na Mimosa.
m) Assinala a inversão dos adjuntos adverbiais; exs.: “Ele
atirou antes que eu o visse” (ordem lógica, sem vírgula). “Ele, antes
que eu o visse, atirou” (adjunto adverbial deslocado, separado do
sujeito e do verbo por vírgulas).
Outros exemplos: “Em vez de correr, o moço escondeu-se no
paiol”. “Diga-lhes que, por terem vindo tarde, não podem tomar
parte no balaido”. “Os quatro irmãos, depois de muito andarem,
viram, no topo de uma colina, uma choupana”.
NOTA – Se o adjunto for simples advérbio ou se for
desnecessário insistir nele, é facultativo o emprego da vírgula; exs.:
“Ontem saí cedo, ou: ontem, saí cedo; aqui vive-se à farta, ou: aqui,
vive-se à farta”.
39 – Da harmonia – A palavra harmonia significa,
etimologicamente, ajustamento. Harmonia, em estilo é o
ajustamento eufônico das palavras na frase e das frases no período.
40 – São regras práticas da harmonia: 1º. Evitar as
cacofonias; 2º. Construir o período de tal modo que se possa, mais
ou menos, dividir em versos de ritmos vários.
41 – São cacofanias: a) os cacófatons; b) as assonâncias; c)
as aliterações; d) os hiatos. Cacófaton é a palavra obscena ou
inconvenientes resultante do encontro de duas palavras; ex.: a fé de
nosso povo; o pássaro pipila, trina, gorgeia20. Assonância é a
repetição das mesmas vozes na frase ou no período: ex.: o
casamento do Sarmento foi em setembro, se bem me lembro; “o
Serafim pôs a sela no rocim e olhando para mim, disse: “Agora
sim!”. Às vezes a assonância é intencional, é recurso de estilo por
onomatopeia, como nos seguintes versos de Olavo Bilac:
“Tíbios flautins finíssimos gritavam...
Crótalos claros de metal cantavam.”
Aliteração é a frequência ou encontro de sílabas com a
mesma consoante; exs.: nunca cacei; sempre precisei dele; o papa
pede ao povo paz...
A aliteração pode ser propositada, como nestes versos de
Olavo Bilac, onde há também assonância:
“Batem pausadamente as patas compassadas.”
Hiato é o encontro de vozes em sílabas diferentes. Pode ser
intraverbal ou interverbal. Só os interverbais podem ser viciosos;
exs.: faz bem à alma; vi um único soldado lá. Esses hiatos são mui
sensíveis entre ditongos; exs.: passaram ao quarto; não aumentou
no peso; eu auxilio os que precisam. Devem ser evitados com a
maior cautela. Entretanto podem ocorrer alguns inevitáveis.
42 – A harmonia do período se faz de ritmos vários
equilibradamente dispostos. Para bem rimar a prosa e estudar a
harmonia nos autores, importa conhecer a métrica portuguesa.
43 – Verso é a linguagem medida. Para medir devemos
ajuntar as palavras em número prefixado de pés. Chama-se pé uma

20
Esse duplo cacófaton ocorre no Segundo livro de leitura da série Rangel Pestana, do sr.
J. Kopke.
sílaba métrica. O verso português pode ter de duas a doze sílabas.
Os mais comuns são os de seis, sete, oito, dez e doze pés.
44 – Como o verso mais comum, mas espontâneo é o de sete
pés, comecemos nele a contagem métrica.
Exemplo:
“Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá;
As aves que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá.”
Eis como se contam as sílabas
Mi/nha/te/rra/tem/pal/mei/
Não conto a sílaba final ras porque o verso acaba no último
acento tônico. O verso a que sobra uma ou duas sílabas finais
chama-se grave. O terminado por palavra oxítona chama-se agudo,
como o segundo e o quarto do exemplo supra. Eis como se escande
o segundo verso:
On/de/can/tao/as/bi/á/
Nesse verso tao se leem como t’o formando um pé, pela
figura sinalefa. Sabiá, modernamente, se deve contar dissílabo,
porque biá, em duas sílabas, forma hiato. Em geral, quer
interverbal. Os autores antigos e os modernos pouco escrupulosos
toleram muitos hiatos.
Eis a contagem dos outros versos:
As/a/aves/quea/aqui/gor/ge/
Não/gor/ge/iam/co/mo/lá/
Note que a uma sílaba. Não há sinalefa porque ouem as duas
vozes e e a. Dá-se nesse caso sinérese.
É muito importante observar as pausas rítmicas. Nem todos
os acentos tônicos geram pausas. Assim, no primeiro verso, tem se
considera átono e o próprio minha é muito fraco. No terceiro verso
aqui deve considerar-se átono e, no quarto, como também o é. No
verso de sete sílabas, ou redondilha menor, as pausas rítmicas
podem cair em quaisquer sílabas.
Exercícios – Escandir os seguintes versos marcando as
pausas:
“Nossa vida é uma balança
Com duas conchas iguais:
Numa a alegria descansa,
Noutra descansam os ais.

Como são afortunadas


As almas que podem ter
As conchas equilibradas,
Igual dor, igual prazer.

Minhas conchas em porfia


Não se equilibram jamais:
Sempre a dos risos vazia
E sempre cheia a dos ais.
Belmiro Braga
45 – Os versos de quatro, cinco e seis sílabas não apresentam
dificuldade alguma. Eis alguns exemplos para exercício.
De quatro sílabas:
Põe na virtude,
Filha querida,
De tua vida
Todo o primor.

Não dês à sorte


Que tanto ilude
Sem a virtude
Algum valor.
Tudo perece,
Murcha a beleza,
Foge a riqueza,
Esfria amor;

Mas a virtude
Zomba da sorte
E até da morte
Disfarça o horror.

Brilha a virtude
Na vida pura,
Qual na espessura
Do lírio a cor.

Cultiva atenta,
Filha mimosa,
Sempre viçosa
Tão linda flor.
Visconde da Pedra Branca.
De cinco sílabas:
Do vento açoitado
O oceano geme;
Desarvora o mastro
E nos rouba o leme.
Já rasgada, a vela
Pelos ares voa;
Nas ondas mergulha
Soçobrada a proa.

Matéria inflamada
Do ar se desprega,
Clarão cor de enxofre
A vista nos cega,

Raio combustível
Nosso barco arromba;
No bojo dos mares
O eco ribomba.

Três vezes Netuno


Com ânsia imploramos;
Netuno está surdo
Em vão o chamamos.

O terror e o susto
De nós se apodera,
O medo da morte
Só em nós impera.

Montões d’infelizes
Nas ondas sorvidos,
Intentam salvar-se
Por entre alaridos.

Um disputa ao outro
A tábua partida
E qual mais ligeiro
Vai perdendo a vida
Alferes Luiz Paulino
Eis versos de seis sílabas:
Como tranquila a noite
E o céu de estrelas cheio
Em doce devaneio
Convida a meditar!
Como minha alma solta,
Nos ares vagueando,
Num sonho grato e brando
Parece delirar!

Por entre essas estrelas


Toda amorosa voa
E em torno dela soa
Um nome encantador.
Em cada lírio enxerga
Sempre um divino rosto,
Que ali parece posto
Para inspirar-lhe amor.

Esse melífluo nome


É o de Urânia bela!
O divo rosto dela,
Que não me canso de ver,
Por toda a parte o enxergo
Porque nesta alma vive!
Ah! nunca o céu me prive
De vê-lo até morrer.
Domingos de Magalhães – Urania, p. 19.
46 – O verso de oito sílabas tem geralmente a acentuação
principal na quarta. Entretanto, admite outros ritmos como:
segunda, sexta e oitava, ou terceira, sexta e oitava.
Eis alguns versos de Olavo Bilac:
No ar sossegado um sino canta...
Um sino canta no ar sombrio.
Pálida Vênus se levanta...
Que frio!

Um sino canta. O campanário


Longe, entre névoas, aparece.
Sino que cantas solitário
Que quer dizer a tua prece?
Que frio! embuçam-se as colinas:
Chora, correndo, a água do rio...
E o céu se cobre de neblinas...
Que frio!

Ninguém... A estrada, ampla e silente


Sem caminhantes adormece...
Sino que cantas docemente
Que quer dizer a tua prece?

Que medo pânico me aperta


O coração triste e vazio!
Que esperas mais, alma deserta?
Que frio!

47 – O verso de nove sílabas tem dois ritmos diferentes


podendo-se dizer dele que há duas espécies: uma, a que se forma
com três pés anapestos, quer dizer, com duas sílabas átonas e uma
tônica; ex.:
Esta nou/te era a lu/a já mor/ta

a outra com a acentuação principal na quarta sílaba; ex.:


Eu faço ver/ sos como quem cho/ ra

Ambos os ritmos são muito pouco usados; o primeiro,


anapéstico, por excessivamente monótono; o segundo, por
desarmônico. No entanto, ocorrem, com muito efeito, na prosa
onde se entremeiam a vários metros.
Exemplo do primeiro ritmo:
“Esta noute, era a lua já morta,
Anahngá me vedava sonhar!
Eis na horrível caverna onde habito
Ronca voz começou-me a chamar.”
Todo o Canto do Piaga, de Gonçalves Dias, é feito nesse
metro e poderá ser dado aos alunos para exercício.
Eis um exemplo do segundo ritmo:
“Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se, por agora,
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...


Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nesses versos de angústia rouca,


Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca
- Eu faço versos como quem morre.
Manuel Bandeira – A cinza das horas, p. 7.

Esse ritmo se compõe, evidentemente, de dois versos de


quatro sílabas com o primeiro sempre grave.
48 – Irmão gêmeo do verso de nove sílabas é o onze, que pode
ter os mesmos ritmos, considerando-se um verso de nove precedido
de um pé jambo, isto é, de duas sílabas com acentuação na segunda;
ex.:
Nas ho/ ras cala/ das das noi/ tes de esti/ o
Senta/ do sozi/ nho com a fa/ ce na mão/
Eu cho/ ro e solu/ ço por quem/ me chama/ va
O’ fi/ lho queri/ do do meu/ coração./
Esse tirmo está quase abandonado por muito monótono. O
poeta Hermes Fontes tentou um hendecassílabo com ritmos
variados e bastante harmônicos; ex.:
“Folha a folha, frase a frase, termo a termo,
- alvas pétalas do lírio de tua alma –
estas cartas, sobre o meu espírito ermo,
são como essas que a Saudade, voando, espalma...
- Alvas pétalas do lírio de tua alma –
sempre (e é sempre que t’as leio) as recomponho
estas cartas – estas flores desfolhadas...
E auroreiam, num dilúculo risonho,
alvoradas... alvoradas... e alvoradas...
Estas cartas – estas flores desfolhadas –
são os lenços com que enxugo os macilentos
olhos – ilhas, salvas dessas enxurradas
que a rima chama – prantos, mágoas ou lamentos...
São os lenços com que enxugo os macilentos
olhos – fontes, donde, ó Lágrima, desatas
pensamentos, misteriosos pensamentos,
árias tristes dolorosas serenatas!...
Olhos – fontes, donde ó Lágrima, desatas
perspectivas interiores;
grandes mares, grandes serras, grandes matas
astros, nuvens, madrugadas, aves, flores...
Hermes Fontes
49 – O verso de dez sílabas, decassílabo, tem ritmos muito
variados, sendo, com o de doze, o mais rico.
Para metrificá-lo bem é bastante contar a acentuação
obrigatório da sexta sílaba.
Não sendo acentuada a sexta, devem ser acentuadas a quarta
e a oitava. Há, porém, versos em que só se acentua a quarta.
Ex.: com a sexta sílaba acentuada:
“Vão-se despetalando em chuvas de ouro
Os florões amarelos das acácias.”
Exemplo com a quarta e oitava acentuadas:
Descobridor/ da solução/ suprema

Exemplo em que só se acentua a quarta (raro):


“Nos meus tormentos de meditação”

Para exercício, metrificar o seguinte soneto marcando as


pausas essenciais e as secundárias, colocando por cima da sílaba
acentuada o número correspondente:
“Essa invisível! Causa, que eu procuro
Nos meus tormentos de meditação,
Inda é o mesmo problema, ingrato e obscuro,
Que atormenta homens bons desde Platão.
Esse maldito sonho, por ser puro,
- Apurado na dor – é sonho vão:
E irá semeando dores no futuro...
Pobres dos sonhadores que virão!
Ai de mim! que, entrevendo o atroz problema,
Me pus a refletir e a meditar,
Descobridor da solução suprema.
Fiquei na horrível noite deste mar,
Ouvindo a dupla voz do meu dilema,
Incapaz de afirmar e de negar.
José Oiticica – Sonetos, 2º. Série, p. 61.
50 – O verso de doze sílabas, do decassílabo ou alexandrino,
pode ser considerado como junção de dois versos de seis sílabas,
sendo o primeiro grave ou agudo.
Cada verso de seis se chama hemistíquio. Daí resulta que a
sexta sílaba do alexandrino deve ser sempre acentuada.
Quando o primeiro hemistíquio for agudo, isto é, findar em
palavra oxítona, a justaposição do segundo faz-se naturalmente.
Ex.:
“Precisamos de paz, de esforço e de preparo.”
Se o primeiro hemistíquio, porém, for grave, isto é, findar em
palavra paroxítona (não pode nunca terminar por proparoxítona), é
de rigor elidir-se a última sílaba desse hemistíquio à primeira do
segundo. Ex.:
“Casa onde se trabalha e escola onde se ensina”
sendo lha e es contados uma só sílaba.
Modernamente criou-se um novo ritmo para o dodecassílabo.
Suprimem-se os hemistíquios e grupam-se três versos de quatro
sílabas, havendo portando duas pausas divisórias ou cesuras. Ex.:
“Em nosso corpo e em nosso espírito se encerra”.
notando-se que a acentuação de nosso desaparece no verso. As
pausas tônicas, rítmicas, estão em cor e pi. É um verso muito rico;
permite várias pausas secundárias e, entremeado ao alexandrino
clássico, aumenta a grande opulência dos dodecassílabos.
Para exercício, escandir os versos do seguinte soneto:
“Moços, quero, entre vós, falar à nossa terra...
Somos suas esperança e p seu último amparo;
Em nosso corpo e em nosso espírito se encerra
O que ela agora tem de mais certo e mais caro.
Heróis para o trabalho e inimigos da guerra,
Precisamos de paz, de esforço e de preparo!
Eia, ao mar que nos chama, ao solo onde se enterra,
Inútil para a vida, um tesouro amplo e raro.

Gente que surge, a nós, moços, cumpre por sorte


Construir, neste recanto, outra colmeia humana!
Honremos a missão sendo povo uno e forte.

Ergamos nós, aqui, nossa própria oficina!


Que ela seja, no afã da vida americana,
Casa onde se trabalha a escola onde se ensina.
José Oiticica – Sonetos, 2º. série, p. 159.
51 – Depois de exercitados os alunos na métrica dos versos,
separadamente, convém fazê-los escandir versos em poesias de
métrica livre, onde os ritmos se sucedem variadamente. Eis um
exemplo:
O burro e o peru
José Oiticica
Amarrado ao moirão um burro olhava triste
Para um feixinho de capim...
Mede a corda tirana apenas meia braça
E a distância da boca ao feixe não tem fim.
Mestre burro deduz, calcula, insiste
Nas equações, extrai raízes, visa, traça...
Em vão! Nada lhe adianta a geometria
Não lhe vale de nada o cálculo de pi.
“E dizer que eu pertenço à Academia!”
Pensa o pobre entre si.
“Homem! tu tens razão em dar meu nome
Aos que, por falta de talento,
Se não morrem de fome,
Vão servir aos galegos de juramento...”
Dias depois, passando num terreiro,
Livre das rédeas e do carroção,
O burro vê, pasmado, um peru onzeneiro,
A lutar por sair de um círculo pequeno
Que um menino riscara com carvão.
“Santo Deus! o peru não resolve o problema!
Pondera o burro em sua ilustração;
“Parece não saber o que é cosseno...
Mas isso é estupidez ultra-suprema!
Vamos lá! Não em enforco: achei no mundo
Um mais burro do que eu...
...e hei de encontrar segundo!”

Outro exemplo para exercício:


Estival
Acende-se o Verão.
A selva é uma oficina
onde operando estão
todos os elementos naturais:
e, ao violento calor das forjas estivais,
a cigarra buzina,
marcando as horas de descanso e ebulição.

O ar, que de azul se adensa,


expele irradiações de polido cristal;
o olhar se eleva e pensa
que uma poeira de vidro cai da altura,
que há vidro em pó no chão, na montanha, no val.

O Sol culmina, o Sol deslumbra, o Sol fulgura!


- É um rútilo vitral
pondo todo o esplendor da sua iluminura
no largo teto azul da etérea catedral.

A água se inflama, o azul se inflama, a terra


parece toda em combustão:
o olhar a custo se descerra
e os olhos ardem como brasas, diante
da paisagem cremante
do Verão.

Longe, distingue-se a feição das casas


qual uma singular constelação.
O ar é tão morno,
que parece porvir de uma oculta cratera,
que a sensação nos traz do bafio de um forno.

A natureza reverbera
e o Sol, que se destaca
no azul de um céu fulmíneo,
é uma acesa placa
de alumínio.
A toda a vastidão da selva inunda, invade,
a solar claridade.
Nas árvores se faz um tal sopor,
nas frondes há uma tal oleosidade,
que as árvores, suponho, à solar claridade,
estão tressuando de calor.

Do meio-dia à hora
é plena a quietação; nem uma ave apressada
faz ouvir de seu voo a cadência sonora,
nem a expressão de um gesto o olhar divulga; nada
se move, a Terra está como que asfixiada;
apenas, de onde em onde,
ecoa pelo espaço e sai de cada fronde
um som agreste, um som nervoso e emocional,
um som de verde vegetal:
é a cigarra que canta, é a cigarra que tece
hinos ao Sol, ao deus possante, ardente e louro!
mas, tal é a solidão na selva, que parece
a natureza inteira estar cantando em coro.
Gilka Machado

52 – Sabendo metrificar bem, podemos prosseguir no estudo


da harmonia em prosa. Este exercício é preciosíssimo, não somente
para obter-se excelente ritmo, como também para a arte da leitura.
Não conseguirá ler bem o que for incapaz de perceber os ritmos
dos períodos.
Seja o seguinte trecho:
“Ricardo teve uma suspeita de que a filha do banqueiro o
estava debicando, como costumam as moças bonitas e prendadas,
para mostrarem espírito e darem expansão à natural petulância de
um coração de dezoito anos. O primeiro impulso foi retrair-se; mas
não se deixou levar dele: seu caráter sério não o inibia de aceitar
com a moça esse desafio de garrulice. A borboleta queria voejar
ostentando suas roupagens magníficas e farfalhando as asas
sussurrantes. Não havia ali flor que libasse; pois seria ele o pretexto
desse inocente devaneio, do qual também de sua parte contava
participar.” (José de Alencar – Sonhos d’Ouro – II, 77)
Decomponhamo-lo em seus ritmos naturais:
Ricardo teve uma suspeita (8)
de que a filha do banqueiro (7)
o estava debicando (6 ou 7)
como costumam (4)
as moças bonitas e prendadas (9)
para mostrarem espírito (7)
e darem expansão (6)
à natural petulância (7)
de um coração de dezoito anos (8)
O primeiro impulso (5)
foi retrair-se (4)
mas não se deixou levar dele (8)
seu caráter sério (5)
não o inibia de aceitar com a moça (10)
esse desafio (5)
de garrulice (4)
A borboleta (4)
queria voejar (5)
ostentando suas roupagens magníficas (11)
e farfalhando as asas sussurrantes (10)
Não havia ali flor, que libasse; (9)
pois seria ele (5)
o pretexto (3)
desse inocente devaneio (8)
do qual também de sua parte (8)
contava participar (7)

CRÍTICA – Esse trecho, sofrivelmente harmônico, pode


todavia ser muito melhorado quanto ao ritmo. Aquele: as moças
bonitas e prendadas forma um verso de nove sílabas com
acentuação maior na quinta, o que é ruim para os versos de oito,
nove, dez, e doze sílabas e normal no de onze por corresponder à
terceira do verso de nove sílabas. Evite-se sempre essa quinta
acentuada nesses metros. Só muito raramente, em combinação com
outros, se tolera. O como costumam dificilmente se há de separar
do verso seguinte. Contando assim: como costumam as moças
bonitas daria um verso de dez pés, com acentuação na quarta e
sétima, desarmônico de todo. No verso: para mostrarem espírito e
no seguinte: e darem expansão, há hiato mui desagradável: em es.
O encaixe de: à natural petulância, heptassílabo, entre um de seis
e outro de oito, é mau, principalmente porque forma com o
primeiro um verso de treze sílabas, sem ritmo: o primeiro impulso
e foi retrair-se facilmente se converteriam num de dez sílabas, com
vantagem: foi seu primeiro impulso retrair-se. O seguinte mas não
se deixou levar dele é de oito sílabas, com acentuação na quinta e
portanto substituível. Somos forçados a decompor: esse desafio de
garrulice em dois versos, um de cinco, outro de quatro,
decomposição forçada para a leitura. A fusão dos dois daria um
decassílabo com a tônica na quinta, insuportável, embora o tenham
feito alguns poetas modernos sem ouvido. Adiante vem uma
desarmonia com o verso de onze sílabas: ostentando suas
roupagens magníficas que a leitura não permite decompor em um
de três e outro de sete. É fácil consertá-lo invertendo assim:
ostentando as magníficas roupagens, decassílabo lindo, com a
vantagem de realçar o magníficas. Segue-se: pois seria ele o
pretexto, octossílabo de quinta acentuada com hiato em seria ele.
A dissolução em cinco e três pouco adianta.
CORREÇÃO – Teve Ricardo uma suspeita de que a filha do
banqueiro o estava debicando uso comum nas moças lindas e
prendadas, para mostrar espírito e expandir a petulância natural de
um coração de dezoito anos. Foi seu primeiro impulso retrair-se;
mas não se deixou levar por ele: seu caráter sério não o inibia de
aceitar com a moça esse desafio de garrulice. Queria a borboleta
voejar ostentando as magníficas roupagens e farfalhando as asas
sussurrantes. Não havia ali flor que libasse; ele serviria de pretexto
para o inocente devaneio do qual também de sua parte contava
participar”.
Esse trecho poderia melhorar-se ainda quanto à concisão. O
professor pode fazê-lo em aula.
53 – EXERCÍCIOS – Fazer a crítica e a correção dos
seguintes trechos quanto à harmonia, decompondo-os primeiro em
versos rítmicos.
Primeiro trecho – “Três meses depois da chegada ao Rio de
Janeiro, tinha Jorge liquidado todos os negócios de família. Os
haveres herdados podiam dispensá-lo de advogar ou de seguir
qualquer outra profissão, uma vez que não fosse ambicioso e
regesse com critério o uso de suas rendas. Tinha as qualidades
precisas para isso, umas naturais, outras obtidas com o tempo. Os
quatro anos de guerra, de mãos dadas com os sucessos
imediatamente anteriores, fizeram-lhe perder certas preocupações
que eram em 1886 as únicas de seu espírito. A vida arredia solta, o
desperdício elegante, todas as seduções juvenis eram inteiramente
passadas. O espetáculo da guerra, que não raro engendra o orgulho,
produziu em Jorge uma ação contrária, porque ele viu, ao lado da
justa glória de seu país, o irremediável conflito das cousas
humanas. Pela primeira vez, meditou; admirou-se de achar em si
uma fonte de ideias e sensações, que nunca lhe deram os receios de
outro tempo. Contudo não se pode dizer que viera filósofo. Era um
homem, apenas, cuja consciência reta e cândida sobrevivera às
preocupações da primeira quadra, cujo espírito, temperado pela
vida intensa e uma longa campanha, começa de penetrar um pouco
abaixo da superfície das cousas”.
(Machado de Assis – Iaiá Garcia – pág. 107)
Segundo trecho – “O tempo embruscado e chuvoso, que veio
a fazer para a tarde, levou-os a procurar abrigo mais confortável do
que o prometia em perspectiva do repouso sob a tolda. Dormiriam
na Embira, na fazenda do tenente Amâncio Gusmão, amigo e
comensal da Boa Vista, quando assistia lá em cima pelo Jacarandá,
e que havia ainda de agradecer a hospedagem concedida. Bateram
à casa, noite quase fechada, trancadas já as portas para o descanso
noturno. Na roça recolhem-se ainda cedo, vedando pelas aberturas
cerradas, a invasão dos insetos que as luzes chama o procurando no
sono distração para as longas horas sem que fazer. A casa soerguida
e avarandada, suspensa nos esteios contras as inundações das
cheias e para abrigo, nas épocas normais, dos tabuleiros onde é
secado o cacau, tinha o aspecto e a simplicidade uniforme das que
se distribuem pelas margens do rio. A sala que de fora dava
ingresso, de entrada, espera, visita, permanência e até de dormida
dos hóspedes ou de algum adventício ou agregado, possuía a
mobília simples, costumeira, da vida rústica: o relógio de parede, a
mandolina sobre a mesa, a espingarda num dos cantos, algumas
cadeiras e bancos rudes para assento.”
(Afrânio Peixoto – Maria Bonita – pág. 190).
Terceiro trecho – “Mas o cuiabano Manuel Alves, arrieiro
atrevido, não estava por esses abusões e quis tirar a cisma da casa
mal-assombrada. Montado em sua mula queimada, frontaberta,
levando adestro seu macho crioulo por nome Fidalgo, dizia ele que
tinha corrido todo esse mundão, sem topar cousa alguma, em dias
de sua vida, que lhe fizesse o coração bater apressado de medo.
Havia de dormir sozinho na tapera e ver até onde chegavam os
receios do povo. Dito e feito. Passando por aí, de uma vez, com sua
tropa, mandou descarregar no rancho com ar decidido. E enquanto
a camaradagem, meio obtusa com aquela resolução inesperada,
saltava das selas, ao guizalhar das rosetas de ferro batido das
esporas e os tocadores, acudindo cá e lá, iam amarrando nas estacas
os burros, divididos em lotes de dez, Manoel Alves, o primeiro em
demonstrar, quedava-se de pé, recostado a um moirão de braúna,
chapéu na coroa da cabeça, cenho carregado, faca nua aparelhada
de prata, cortando vagarosamente fumo para o cigarro. Os
tropeiros, em vaivém, empilhavam as cargas, resfolegando ao peso.
Contra o costume, não proferiram uma jura, uma exclamação; só,
às vezes, uma palmada forte na anca de algum macho teimoso. No
mais, o serviço ia-se fazendo e o Manoel Alves continuava quieto.
As sobrecargas e os arrochos, os buçais, a penca de ferraduras,
espalhadas aos montes; o surrão da ferramenta aberto e para fora o
martelo, o puxavante e a bigorna; os embornais dependurados; as
bruacas abertas e o trem da cozinha em cima de um couro; a fila de
cangalhas de suadouro para o ar, à beira do rancho, denunciaram
ao arrieiro que a descarga fora feita com a ordem do costume,
mostrando também que à rapaziada não repugnava acompanhá-lo
na aventura.”
(Affonso Arinos – Pelo sertão – pág. 5).
54 – Originalidade. A condição principal da originalidade é
possuir o estilo rico. Essa riqueza, com efeito, é o que mais
distingue o autor do comum dos escritores, pois há de ser uma
riqueza própria, individual, tirada de si mesmo e não tomada aos
outros.
Para obter essa riqueza é necessário: 1º. Evitar as chapas ou
banalidades (quer de ideias, que de expressão); 2º. Procurar
imagens, comparações e ideias novas ou renovar as antigas; 3º.
Evitar a repetição de um termo enquanto o leitor se recordar dele;
4º. Possuir grande vocabulário para empregar sempre o termo exato
e variar as expressões; 5º. Particularizar os aspectos ou os fatos.
55 – O primeiro cuidado do professor deve ser não tolerar as
chapas ou os aspectos banais. Os principiantes tendem sempre a
reproduzir, nas descrições, não aspectos realmente observados,
mas aspectos lidos em modelos ruins ou descrições corriqueiras.
Por exemplo, se descrevem paisagem, fatalmente falam nos
passarinhos que saltitam de galho em galho, no astro rei que
esparge os seus raios luminosos sobre os campos revestidos de
boninas etc., etc. Cumpre evitar, o mais possível, os aspectos gerais
ou mencioná-los rapidamente e salientar sempre os particulares, os
mais característicos, de tal modo que a descrição ou a narração seja
vista, diferente de qualquer outra, localizada no espaço e no tempo.
56 – Eis um exemplo de descrição banal:
“O sol, despenhando-se para o oceano parecia descer
reclinado em coxim imenso de nuvens negras que se dilatavam no
horizonte orladas de fímbrias de ouro arroxeada. A lua, erguendo-
se entretanto, para as alturas do céu, ia velando o fulgor de milhares
de estrelas com o pálido cendal de luz frouxa e melancólica. A
rainha da noite subia ao seu trono para dali assoberbar a terra; mas
a procela, semelhante ao povo indócil, rugia cá em baixo nos
mares. Trepando torvas umas por cima das outras e seguidas de
novos grupos que surgiam das ondas, as nuvens assenhoreavam-se
pouco a pouco do espaço, e a sua vanguarda, rareada pelo luar,
tornava logo a cerrar-se. Entretanto, alguns focos brancos,
elevando-se tênues no oriente, tomavam gradualmente vulto e
espessura e vinham topar pela noite e pelo meio-dia com os bulcões
ocidentais. Na sua ascensão contínua, os dois exércitos embebiam
debaixo de si o chão alumiado do firmamento. A atmosfera estava
tépida e pesada e os relâmpagos começavam a fuzilar nos
horizontes e substituíam, passageiros, mas frequentes, por súbitos
clarões, os raios débeis que o astro, lutando debalde com a
escuridão, mandava furtivamente à terra. Os trovões, a princípio
longínquos, duvidosos como um ruído subterrâneo, começavam a
ecoar nos montes, a reboar no rio e enfim a estalar em volta da
cidade, de cujas alturas se descortinava, para os lados opostos do
quadrante, o serpear dos coriscos. Era uma daquelas trovoadas de
estio que arrebatam, com a sua solene terribilidade, quem as
contempla.”
(Alex. Herculano – Monge de Cistér – II, 221 – 1869)21.

21
Leitura – Exprimir o abstrato pelo concreto. “Os termos abstratos gerais, coletivos,
não dizem grande cousa a espíritos de jovens pouco afeitos à contemplação do universal.
Todavia, por um passe mecânico da memória, esses mesmos espíritos repensam com
vocábulos abstratos, gerais ou coletivos: tendo-os pensado e expresso, cuidam esgotados
ao mesmo tempo os seus poderes de invenção e não logram ir além.
Daí a esterilidade da imaginação, a secura da elocução.
Quebrai essas palavras onde se petrificou a ideia, desinchei-a do seu conteúdo.
Transportai a abstração às realidades concretas; desfazei a generalização e decomponde
a coleção; fitai os fatos e os indivíduos. Vossa língua se desatará diante do particular:
tereis de emitir um juízo, enunciar uma razão, notar uma emoção. Muitas vezes essa
Crítica – A descrição é geral, não especializada, feita de
aspectos comuns a qualquer tempestade, sem cor local que a
distinguira das outras tempestades. Não existe um só aspecto
diferenciador que indique ser em Portugal ou em que lugar. As
imagens são todas velhíssimas; o autor não cria imagens novas e
plagia assim a todo o mundo. Eis algumas das suas chapas: coxim
imenso de nuvens negras; pálido cendal de luz frouxa e
melancólica; a rainha da noite subia ao seu trono; compara
prosaicamente a procela ao povo indócil e as nuvens tempestuosas
a dois exércitos em batalha. Não há nenhuma inversão que realce
os termos. A frase é constituída geralmente com o tipo: sujeito,
verbo, complemento, o que torna a construção monótona e,
portanto, pobre22.
57 – Eis um exemplo de boa descrição:
“Guilherme ficou a cismar nas ironias do padre e adormeceu
acalentado pelo chilrear das andorinhas que papeavam na cornija
da casa. A ramada, suspensa em esteios de pedra formava o
enfolhado docel do tanque.
Pendiam, já dourados, os enormes cachos de ferral. Alguma
folha escarlate, outra amarelecida pelo queimar do sol, realçavam,

análise é o desenvolvimento mesmo que buscais, e, pelo simples fato de haverdes


substituído o abstrato, a lei, o gênero pelo concreto, pelo fenômeno, pelo indivíduo, tereis
roçado a meta, pintareis, provareis, comovereis”. Lanson – Conseils sur l’art d’écrire –
pág. 48).
22
Leitura – Um bom escritor, rico de ideias, impõe-se bem depressa ao seu leitor, como
tendo alguma cousa que dizer; e isso dá, a este último, a paciência de o seguir atentamente.
Um escritor desse estofo, precisamente porque tem algo que dizer, exprimir-se-á
sempre do modo mais singelo e mais claro. Timbra, com efeito, em despertar no leitor a
ideia mesma que lhe ocorre no momento e não outra... O que também o caracteriza é que
evita, quanto possível, todas as expressões fixadas, feitas para desembaraçar nas ocasiões
difíceis. Eis porque se vale sempre, em qualquer caso, da expressão mais abstrata, ao
passo que os de tino escolhem a mais concreta, que faz ver as cousas de mais perto e é
fonte de toda evidência. (Schopenhauer – Ecrivains et style=tr. Dietrich, pág. 51 e 52).
“Os homens de talento, ao contrário, nos falam realmente em seus escritos e sabem
consequentemente comover-nos e interessar-nos; só eles colocam as palavras com plena
consciência, escolha e reflexão. Seu estilo, assim, é, relativamente aos outros, o que um
quadro, pintado realmente, é, contraposto a um quadro feito por padrão. Aí, em cada
palavra, como em cada pincelada, há uma intenção especial; aqui, ao revés, tudo é feito
mecanicamente.” (Schopenhauer. Idem – pág. 53).
variegando as cores, a abóbada afestoada. Nos rebordos da bica
rústica, por onde a água derivava, grogolejando nas algas,
verdejavam vegetações filamentosas, pendentes como meadas de
esmeraldas e miniaturas de relvedos, onde os insetos de pousavam
num ruflar deleitoso de asas, no regalo da frescura, oscilando as
antenas. Duas falinhas com as suas ninhadas esgaravatavam na
leiva úmida, a cacarejarem a cada grânulo ou inseto que bicavam,
e deixavam cair e retomavam de novo, com umas negaças, para
ensinar os pintainhos que se disputavam a posse do cibato em
corrimaças impetuosas, azoratadas. De vez em quando, à tona
d’água, rente com o combro de cantaria afofado de musgos verdes,
emergia a cabeça glauca de uma rã que pinchava para a alfombra,
coaxava o seu diálogo interrompido com outra rã do beiral fronteiro
e ambas, a um tempo, mergulhavam de pincho, quando Cacilda
batia a roupa na pedra esconsa do lavadouro. Estava o sol a pino:
mas, pela densidade folhuda do parreiral, apenas coavam umas
lucilações a laminarem tremulamente a água ondulosa e escumada
de sabão.”
(Camilo Castello Branco – Serões de S. Miguel de Seide – V, 40).
Nessa descrição os aspectos são todos bem particulares,
perfeitamente discriminados. Vemos: as andorinhas na cornija;
uma ramada em esteios de pedra cobrindo um tanque; uma vinha
com cachos de uva ferral; nessa ramada verde realçam folhas
vermelhas ou amareladas; há uma bica d’água; dentro da bica
filamentos de algas verdes; aos lados relvedosinhos onde pousam
insetos; os insetos satisfeitos balançavam as antenas; duas
galinhas com pintos cacarejam, bicam insetos e grãozinhos; os
pintainhos correm para apanhar o alimento; há um combro de
cantaria afofado de musgos verdes; rente surge a cabeça de uma
rã; a rã pula para a relva; no beiral fronteiro surge outra; ambas
coaxavam; Cacilda bate a roupa; as rãs pincham para a água; o
sol está no zénite; os raios coam pelo parreiral; laminam a água
do tanque escumosa de sabão.
É um quadro completo. Apontaríamos alguns senões, que
nada ofuscam a beleza dessa obra-prima. Em vez de empregar o
termo geral insetos a pousarem no relvedo, seria melhor mencionar
a espécie ou espécies (duas ou três) de insetos; por exemplo:
longicórnios e pulgões. Algumas frases podiam reduzir-se, outras
melhorar no ritmo. Note-se a riqueza do vocabulário e o colorido
da paisagem.
Além disso faz-se tudo com absoluta simplicidade.
58 – Eis uma lista de metáforas, imagens, comparações e
frases triviais que se devem evitar sistematicamente no estilo.
Servem apenas de exemplos. Cada professor poderá multiplicá-los
tirando-os de livros como o Orador popular. Estas aqui são catadas
em Herculano:
“Um abismo está cavado debaixo dos seus pés;
caíram todos no abismo do passado:
esses atalhos levam... ao abismo da perdição;
apagou-se na alma o último clarão da esperança;
abriga-se à sombra da árvore santa da liberdade;
a fome veio assentar-se no limiar da porta;
nas asas da piedade divina;
Portugal foi pesado na balança da eterna justiça;
encheram o cálice das amarguras públicas;
beber, até as fezes, o cálice das amarguras;
trilhar o caminho da perdição, a senda do crime etc.;
levavam o féretro ao campo do esquecimento;
a vitória lhes coroava a fronte;
a morte ceifou os mais deles...
ao passo que a febre e a sede lhe devoravam as entranhas.
... sobre os quais dorme o silêncio dos tempos...
Dormir o último sono, dormir o sono da morte...
...folgavam nos banquetes da embriaguez.
...estavam escritas com letras de fogo as palavras seguintes:
Maldição de Deus.
A história escrevia o teu nome na página das bençãos.
...e a história de cada um destes lia-se na face da pedra,
escrita pela mão do arcanjo.
...palavras que logo foram escritas no livro da morte
...o vulto da esperança erguido sobre a lousa do sepulcro
A plebe desenfreada é como o fantasma do crime, como o
espectro da morte...
...tinha o seu nome gravado no coração em letras de fogo...
a discórdia sacudia o seu facho;
ateou-se o facho da discórdia;
...onde tu achares estampado o ferrete do crime:
...levareis na fronte duplicado o ferrete da infâmia e do
aviltamento;
...e no gesto lia-se lhes a amargura do coração.
...o Senhor leu no fundo dos corações;
Deus riscou-me do livro da vida;
...o povo que jazia no lodaçal;
...e o arrojar de ti o manto da ignomínia.
...migalhas caídas das mesas dos teus banquetes;
...o oceano da tua cólera (pélago de agonia, mar de crimes);
no seu rosto estava pintada a doença e a fome;
o raio da fúria popular;
esta terra tão regada de lágrimas de amargura;
reinava o silêncio, reina a tristeza, é o reinado da licença, a
rainha da noite, o astro-rei etc.
riscou-me do livro da vida;
a sede lhe roía as entranhas, devorava as entranhas, a sede
da glória, de tirania etc.
o seio da noite, no seio da morte etc.
punham o selo do silêncio nas frontes... o selo da morte;
uma floresta de espadas, uma selva de edifícios;
buscavam semear a cizânia e os ódios;
esgotar os tesouros da misericórdia divina;
mergulhou-se na torrente da perversidade; a torrente das
vinganças etc.;
viveram nas trevas da ignorância; o arcanjo das trevas, o
espírito das trevas etc.
encheste o vaso das iniquidades; o vaso da sua cólera;
acenderam o vulcão popular,
os vermes do pecado lhe corroem as entranhas;
um campo revestido de bonina; a vegetação vestia o monte;
nossas armas vomitavam a morte;
as lágrimas da inocência orvalharam o seio de Deus;
dobrar a cerviz;
A mão de Deus, a mão da morte, a mão do crime etc.;23

23
Leitura – Da originalidade – Para acabar, nenhuma revelação se fará dizendo que
originalidade não implica necessariamente bondade; nem estilo, beleza de forma. A
59 – Evitar as chapas é condição para fugir ao estilo floreado
sinônimo de estilo comum, vulgar, de mau gosto. Isso, entretanto,
não basta para dar originalidade ao estilo. Essa requer índole
artística, talento literário natural. Mas, o cuidado de arredar a
banalidade e o consequente esforço de procurar expressões
próprias, estimulará no estudante as qualidades literárias e o levará
seguramente, quando nada, a escrever bem. E é quanto se procura
nas escolas.
60 – O exercício mais necessário para cultivar a originalidade
é a procura de imagens novas. Bom começo, todavia, e excelente
método de treino, é propor aos estudantes imagens mais ou menos
conhecidas e incitá-los a exprimi-las de modo diferente, até
conseguirem dar-lhes aspecto novo e original.
61 – Toda imagem é uma relação estética entre objetos,
fenômenos ou ações. Por exemplo, nos versos de Castro Alves:
“O inglês, marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou
(Porque a Inglaterra é um navio
Que Deus na Marcha ancorou)”

originalidade, quer no pensamento, quer na expressão, pode constar tanto do que


louvamos como excelências, quanto do que desabonamos por imperfeições. A sua
consequência digna de nota é que ela separa, faz diferenciar com maior nitidez um artista
do outro, por vícios ou perfeições, excessos ou defeitos, pouco importa. O original
interessa na arte, como na natureza interessa mais a variação que a repetição de formas.
O original não é tampouco o enorme ou o monstruoso, em que a natureza parece
transgredir as suas próprias leis.
Em seu tempo, foram talvez Camões e Vieira temperamentos excessivos. O
primeiro passava por criador de neologismos quando introduzia na língua pátria o matiz
da sua expressão pessoal. Foram divergências profundas, casos de originalidade refratária
ao meio identificador, os de Balzac, dos Goncourts, de Baudelaire, na literatura francesa;
o de Gregório de Matos nas letras brasileiras; em toda a parte os de alguns decadentes
modernos, e só de alguns, pretendo, porque, a estas linhas dedicadas aos caracteres
normais, escapam às anomalias e forma de desagregação, que pertencem à psicologia
anormal e à psicologia mórbida do estilo.”
(Xavier Marques – A arte de escrever, pág. 172 e seg.)
temos, nos dois primeiros versos, uma definição e, nos dois
seguintes, uma justificação feita por uma imagem. Essa imagem se
opera por comparação ou metáfora. O poeta aproxima a forma
alongada da Inglaterra à de um navio e sua imobilidade à dos barcos
ancorados.
Há relações estéticas facilmente apreensíveis. Quem quer
pode comparar um rio ou uma estrada a uma serpente, e assim o
fazia sempre Herculano. É, pois natural que tais relações tenham
sido e ainda sejam comumente repetidas, desvalorizando-se e
passando à categoria das chapas. As imagens valiosas, originais,
são as dificilmente perceptíveis, aquelas onde a aproximação das
semelhanças não seja evidente e portanto surpreendam pela
novidade e justeza. Cumpre insistir em que o maior mérito da
imagem consiste exatamente na justeza, isto é, na precisão com que
retrata e reforça a apreensão de um aspecto, episódio ou ideia.
62 – Ótimo exercício para obter relações estéticas originais é
o descoberto e recomendado por Antônio Feliciano de Castilho no
seu livro sobre Camões. Intitulou-o máquina de pensar e,
conquanto pareça antipedagógico ou depreciativo o seu processo,
é, na realidade, perfeitamente natural e concorde com a psicologia.
Manda Castilho escrever em quadrinhos de papel, que se
dobram, nomes de objetos, animais, seres quaisquer, e depois tirar
por sorte dois. O aluno procura então todas as relações possíveis
entre os dois nomes, anotando as ideias e imagens sugeridas.
Quanto mais longínquos os objetos, mais curioso o exercício e,
frequentemente, mais originais os símiles encontrados.
Suponhamos que num dos papéis se acha: estrela e, no outro,
espádua. São cousas díspares e remotas; podemos, todavia,
considerar o céu a espádua da noite e as estrelas gotas d’água a
rolarem por essa espádua. É a linda imagem de Castro Alves nesta
oitava, onde outras imagens aparecem.
“Hora meiga da tarde! Como és bela
Quando surges do azul da zona ardente!
Tu és do céu a pálida donzela
Que se banha nas termas do oriente,
Quando é gota do banho cada estrela
Que te rola da espádua refulgente
E, prendendo-te a trança a meia-lua,
Te enrolas em neblinas, semi-nua.”
63 – Do vigor – Vigor do estilo é a energia de expressão dos
aspectos, episódios ou concepções. A concisão e a clareza muito
influem no vigor do estilo; são suas condições indispensáveis.
É necessário ainda: 1º. Evitar a voz passiva nas expressões
movimentadas (em geral é mais vigorosa a construção: Paulo
arrastou o animal do que: o animal foi arrastado por Paulo)24; 2º.
Evitar o emprego do infinitivo substantivado se houver substantivo
correspondente (será sempre melhor dizer: a respiração do doente
assustava a todos, do que: o respirar do doente etc.); 3º. Usar com
propriedade as inversões; 4º. Realçar as ideias por meio das
antíteses.
64 – A inversão consiste em alterar a ordem lógica dos termos
oracionais. Essa ordem varia em cada língua.
Em português é a seguinte: sujeito e seus adjuntos, verbo,
objeto direto, objeto indireto, adjuntos adverbiais. Ex.: A mocinha,
vestida de branco, dava rosas vermelhas ao pagemzito, sorrindo
meigamente. A mesma frase com inversão: Vestida de branco e
sorrindo meigamente, dava a mocinha ao pagemzito rosas
vermelhas.
65 – A inversão é poderoso meio de realçar as palavras,
melhorar a harmonia, valorizar as imagens. É um dos grandes

24
Não é preceito absoluto. Casos há em que a frase passiva pode ser mais vigorosa do que
a ativa. Só o gosto e o sentido podem determinar a escolha.
segredos e encantos do estilo clássico, bem frisante em Camillo
Castelo Branco. Devemos chamara a atenção dos professores para
essa riqueza da nossa língua, ameaçadíssima de perder-se por
imitação do francês, mais pobre.
É conveniente multiplicar os exercícios até infundir no aluno
o sentimento da inversão e a consciência do seu valor.
Não quer isso dizer que invertamos continuamente ou
façamos inversões violentas. Cairíamos no vício do arrevesamento
muito comum nos indivíduos desejosos de imitar os clássicos. Não
é caso normal a inversão é recurso para variar, realçar, ornar.
Devemos empregá-la com esse fim, sem que o leitor a sinta ou
sentindo-a como tal, só nos seus efeitos.
66 – Eis um exemplo de estilo sempre reto:
“As palavras de Atanagildo vibraram no coração de
Crimhilde, como vibra o primeiro dobre pelo finado, que ainda jaz
em seu leito de derradeira agonia, na alma do bom filho que reza
chorando ajoelhado ao pé dele. Recuou aterrada e, volvendo para o
céu os olhos enxutos, porque a aflição neles estancara as lágrimas
que despontavam, ficou por alguns momentos com as mãos
erguidas, como implorando uma inspiração de cima. Pouco a
pouco, porém, as suas faces tingiram-se da cor da vida, o sorriso da
esperança rodeou-lhe os lábios, e as lágrimas, consolo supremo das
maiores mágoas e também expressão eloquente dos
contentamentos mais íntimos, lhe rebentaram com força e lhe
orvalharam a negra estamenha do hábito.”
(Al. Herculano – Eurico – pág. 87).
CRÍTICA – Na primeira frase toda a força concentra-se em
vibraram. Cumpre, portanto, destacá-lo, torná-lo bem visível. A
ordem direta encaixa o verbo entre o sujeito e o adjunto adverbial,
abafando-o. Na segunda oração o vibra invertido ressai, mas a
construção seguinte é viciosa, pois desprende a circunstância de
lugar expressa por na alma do bom filho do verbo dominante,
intercalando entre ambos uma cláusula adjetiva importuníssima,
obscurecendo a relação dos dois. No seguinte período o neles deve
evidentemente preceder a aflição, único meio de lhe dar valor.
Além disso, a harmonia o exige. No terceiro período, enfim, para
vivificar o tingiram-se e o sorriso da esperança é mister inverter.
CORREÇÃO – “No coração de Crimhilde vibraram as
palavras de Atanagildo como vibra, na alma do filho que, chorando,
reza ajoelhado diante do pai morto, o primeiro dobre pelo finado
que jaz no seu leito de derradeira agonia. Recuou aterrada e, para o
céu volvendo os olhos enxutos, porque neles a aflição estancara as
lágrimas que despontavam, ficou, por alguns momentos, com as
mãos erguidas, como implorando uma inspiração de cima.
Pouco a pouco, porém, tingiram-se as suas faces da cor da
vida, rodeou-lhe os lábios o sorriso da esperança, e as lágrimas,
consolo supremo das maiores mágoas e também expressão
eloquente dos contentamentos mais íntimos, rebentaram-lhe com
força e lhe orvalharam a negra estamenha do hábito.”
Nota – Esse trecho é muito mal escrito; falta-lhe concisão,
colorido, harmonia, relevo, ardor. Está cheio de expressões banais
e não discrimina os aspectos claramente. Poderia ser assim:
“No peito de Crimhilde vibraram tais palavras como dobre de
sinos na alma de um filho ajoelhado ante o pai morto. Recuou
apavorada. Ao céu volveu o olhar vidrado e, por momentos, ficou
de mãos erguidas, como implorando uma inspiração. Porém, pouco
a pouco, voltaram-lhe as cores, sorriu esperançada, as lágrimas
romperam-lhe dos olhos e orvalharam-lhe a estamenha negra do
hábito.
67 – Exercícios – Assinalar as inversões dos seguintes trechos
e inverter onde for a inversão melhor que a frase direta:
a) “A passo cheio mas não precipitado, o jesuíta adiante e o
andador das almas atrás, chegaram ambos ao arco das portas de
Santo Antão. O primeiro risonho e sereno, o segundo cada vez mais
preso de terror.
Amanhecera o dia limpo e claro; o ar estava seco e frio, e nas
ruas o silêncio era completo. As portas e janelas fechadas davam
testemunho do recolhimento dos vizinhos.
O jesuíta parou debaixo do arco e, de leve, muito de leve,
pousou de novo a mão no ombro do honrado Tomé. Se visse
desabar a abóbada não se encolhia tanto o milagreiro trêmulo. A
voz do padre acompanhou o gesto; era uma voz límpida e vibrante,
quase tão suave como o timbre da voz feminina; mas, apesar da
melodia, tinha um timbre que penetrava mais do que a rudeza de
certas falas ásperas.
Certo jeito estrangeiro na acentuação das vogais dava cunho
particular às menores frases.
Algumas vezes a sua vista parecia desbotada, armando-se de
felina doçura, e então fazia esfriar as pessoas para quem olhava. O
sorriso impenetrável e acerado de ironia cortava como o fio de um
estilete. Nessas ocasiões a amabilidade do padre metia medo.
Em geral, o semblante do jesuíta era espirituoso e reflexivo;
a vista profunda, dessas que medem num relance e vem tudo; e a
boca, séria ou risonha, nunca descobria o pensamento.
As feições bem acusadas, a testa alta e o nariz aquilino e bem
formado, caindo com graça, retratavam, na mais pura expressão, o
tipo das famílias italianas, cuja figura engana facilmente os
observadores pouco afeitos a interpretá-las. A idade, rareando os
cabelos, coroava de cans e de majestade uma figura aonde o dedo
de Deus imprimia o selo indelével do gênio e da grandeza.
A sorrir e a cada momento mais meigo nas palavras, o
reverendo padre rompeu as hostilidades, deixando cair amigável,
mas um pouco mais pesada, a mão no ombro da sua vítima, como
dissemos.”
(Rebello da Silva – A mocidade de D. João V. 1862, I, 52).
b) “Na sala onde o comendador persistia mais, rasgavam-se
três janelas grandes por onde a claridade entrava à vontade. As
paredes eram forradas de coiro vermelho com lavores de prata; a
papeleira de pau santo, lavrada com primor e ornada nos cantos de
cabeças de querubins, de colunas torcidas e capitéis floridos,
atestavam a opulência do velho erudito. Um escritório (secretária)
de xarão precioso, embutido de figuras chinas e ornado de armários
de portas e espelhos, defronte da papeleira, tinha a gaveta caída e
sustentava uma escrivaninha de feitio e dimensões curiosas.
Cadeiras de costas e pés arrendados, abertos em belíssima talha,
vestiam o aposento; nos assentos representavam-se, em matiz
delicado, algumas cenas da Eneida e os espaldares variados
retratavam aves raras do Ganges e do Nilo. Eram bordadas na Ásia
com perfeição inimitável. As altas estantes, torneadas e entalhadas
a capricho vergavam com o peso dos volumes. Em um bofete,
coberto de damasco, brilhavam duas jarras do Japão, daquele barro
transparente como vidro, daquele azul e oiro finíssimos, cujo
segredo se perdeu talvez. Duas talhas da Índia, grandes e
majestosas, aos cantos da casa, descansavam sobre leões dourados.
As cortinas das janelas e os reposteiros das portas, em varetas
prateadas, ondeavam as pregas de vistosa tela verde, apanhadas em
cordões de seda com bolotas de ouro.
A cadeira do comendador era semicircular, assento de estofo
de carmesim, costas abertas em grinaldas de rosas, imitando um
açafate de flores; pés de garras com seu globo nas unhas. Feitio
esbelto e caprichoso, em que a arte se combinava com a
comodidade. Diante de si um velador grande, também de pau santo,
de pé lavrado de passarinhos em ramos de acanto, servia de banca
de escrever a Lourenço Teles, e viam-se em cima dele vários livros,
um covilhete com arroz cozido e um púcaro de geleia especial. Ao
lado um contador de pau da Índia, marchetado de grifos de
madrepérola, com esfinges nos pés, sustentava dois pagodes de
marfim e uma curiosa fonte chinesa.
O comendador devia ter sido o que se costuma dizer: um
bonito homem; e, apesar dos oitenta anos e dos estragos da cabeça,
a sua velhice não era repugnante.”
(Idem, ibidem, pág. 75 e sg.)
68 – Da antítese – Segundo a definição de La Bruyère, a
antítese é uma “oposição de duas verdades que se aclaram
mutuamente”, ou, segundo Albalat: “a arte de tirar um pensamento
o contrário desse pensamento gerando assim uma série de
contrastes e oposições.”
Essas duas definições completam-se. Com efeito, um
pensamento sugere facilmente o seu contrário e a menção desse
contrário avigora o primeiro. Realmente, não passa a antítese de
um realce pelo contraste de dois pensamentos.
Tem razão Albalat quando eleva a antítese a processo artístico
no estilo de ideias, isto é, na dissertação. É, sem nenhuma dúvida,
o mais poderoso meio de reforço, sistematicamente usado pelos
mestres.
Vale a pena transcrever o que diz esse autor25.
“Lendo atentamente Montaigne, esforçando-nos por
decompor-lhe o mecanismo da frase e fazendo e mesmo trabalho
em Gui de Balzac, Saint-Evremond, na parte abstrata de Bossuet,
Rousseau, Fléchier, Massillon, Monstesquieu, La Rochefoucauld,
La Bruyère, Duclos, numa palavra, nos bons escritores de qualquer
gênero e gosto, chegamos a esta conclusão: que o processo
intrínseco de seus estilos, o que lhes dá variedade às frases, a razão
de sua força e brilho, é a antítese. A antítese não deve ser
considerada como simples o ocasional artifício de pensamento. É
um processo de escrever, um modo de produzir, desdobrar e
explorar ideias, processo aplicável a todo estilo abstrato e com o
qual podemos tratar qualquer assunto e dar relevo a qualquer
sequência de frases. A antítese é a chave, a explicação, a razão

25
Albalat – La formation du style – pág, 192.
geradora de metade da literatura francesa, ou melhor, do estilo
francês escrito pelos nossos melhores autores, de Montaigne a
Victor Hugo”.
69 – Todo de antíteses é o estilo do padre Antônio Vieira. Eis
aqui três exemplos, com as antíteses sublinhadas26.
a) “Com razão comparou o seu evangelho a divina
providência de Cristo a um tesouro escondido no campo. Uma
coisa é a que todos vem na superfície; outra, a que se oculta no
interior da terra, e, onde menos se imaginam as riquezas, ali estão
depositadas. Não as descobre quem as cava, só as achou quem teve
maior ventura: e isto é o que me aconteceu (de que dou graças à
Virgem Santíssima) com o presente evangelho de hoje”.
(Vieira – Início do 16º sermão de Maria Rosa Mística).
b) “Como não há comunidade tão boa em que se não ache
algum mau, de que foi o maior escândalo Judas, assim não há
comunidade tão má em que se não ache algum bom, de que é o
melhor exemplo esta boa mulher que do meio da turba levantou a
voz em louvor de Cristo. A mulher louvou o Filho pela Mãe e a
Mãe pelo Filho; porém a turba nem louvou o Filho, nem louvou a
Mãe. Assim se dividiram em duas partes contrárias, a mulher e a
turba; e assim havia de ser para que o louvor ficasse inteiro. Antes
digo que tanto louvou a turba em não louvar, como a mulher
louvando, porque, se a turba também louvara, ficava o louvor
desautorizado e suspeitoso. Os louvores da turba, não só são
turbados, mas turbulentos.”
(Vieira – Início do sermão 17º de Maria Rosa Mística)
c) “Quem negará que são os homens filhos de Adão? Quem
negará que são filhos daquele primeiro soberbo, o qual, não
reconhecendo o que era e querendo ser o que não podia, por uma
presunção vã se perdeu a si e a eles? Fê-los Deus a todos de uma
mesma massa, para que vivessem unidos e eles se desunem; fê-los

26
O professor assinalará uma por uma aos alunos.
iguais e eles se desigualam; fê-los irmãos e eles de desprezam de
parentesco; e, para maior exageração do esquecimento da própria
natureza, baste o exemplo que temos presente. O domingo passado,
falando na linguagem da terra, celebraram os brancos a sua festa
do rosário e hoje, em dia e ato apartado, festejam a sua os pretos e
só os pretos. Até nas cousas sagradas e que pertencem ao culto do
mesmo Deus, que fez a todos iguais, primeiro buscam os homens
a distinção que a piedade”.
(Vieira – Início do Sermão 20º de Maria Rosa Mística).
70 – Exercícios – Eis alguns trechos de Vieira, cujas antíteses
os alunos devem apontar e explicar:
1º) “Digam -me os ricos quem foi este rico e os pobres quem
foi este Lázaro. O rico foi o que são hoje os que se chama senhores
e Lázaro foi o que são hoje os pobres escravos. Não são os senhores
os que vivem descansados e em delícias e os escravos em perpétua
aflição e trabalhos? Os senhores vestindo holandas e rasgando
sedas e os escravos nus e despidos? Os senhores em banquetes e
regalos e os escravos morrendo à fome?
Que muito, logo, que, acabada a comédia desta vida, a fortuna
troque as mãos e que, os que neste mundo lograram os bens, no
outro padeçam os males, e os que agora padecem os males, depois,
também eles, vão lograr os bens? E se alguém me disser que os
escravos que nesta vida padecem os males também tem pecados, e
os senhores que logram os bens, também tem boas obras?
Respondo que tais podem ser as boas obras de uns e muitos os
pecados dos outros, que uns e outros sejam a exceção desta regra.
Mas, geralmente falando, a sentença de Abraão é fundada no que
ordinariamente sucede. Dá a razão muito adequada S. Gregório,
papa: Mala Lazari purgavit Ignis inopiae; bona divitis reumeravit
felicitas transeuntes vitae27. Lázaro também teria alguns pecados,
como tem os escravos, mas esses purgaram-se pela sua pobreza,

27
“Osmales de Lázaro purgou-os o fogo da miséria; os bens do rico remunerou-os a
felicidade da vida transeunte.”
pela sua miséria, pelos seus trabalhos; e o rico também teria
algumas boas obras, como hoje têm os senhores; mas essas pagou-
lhes Deus com os bens que logram nesta vida. De sorte que os ricos
e os senhores têm nesta vida o seu paraíso e os Lázaros e os
escravos o seu purgatório. Ensoberbeçam-se agora os senhores com
a sua fortuna e desprezem a dos seus escravos.
(Vieira – Sermão 20º de Maria Rosa Mística)
2º) “Pecou o anjo no céu e o homem no paraíso; que resolveu
Deus nestes dois casos tão semelhantes? Aos homens remiu e aos
anjos, não. Aos homens, como diz Zacharias, abriu as entranhas da
sua misericórdia e com os anjos executou toda a severidade da sua
justiça.
Pois se os anjos são as mais nobres de todas as criaturas e os
homens formados de barro; os anjos de tão sublime entendimento
e os homens ignorantes; os anjos, por natureza, imortais e os
homens sujeitos a todas as misérias da mortalidade, porque se
compadeceu Deus da caída dos homens e não reparou a ruína dos
anjos?
Por isso mesmo. Porque a vileza, a ignorância e a miséria
estavam só na parte dos homens, como cá da parte dos escravos e,
para onde carregou o peso da miséria, para ali inclinou a balança
da misericórdia.”
(Idem, ibidem.)
3º) “Foram dois homens a orar ao templo, diz Cristo, um deles
religioso de profissão e outro publicano. Este, com grande
humildade, sem se atrever a levantar os olhos ao céu, pedia perdão
de seus pecados. E o outro, que fazia ou dizia? ‘Deus, gratias ago
tibi quia non sum sicut caeteri hominum’ (Luc. XVIII, 11) –
‘Senhor, dou-vos muitas graças porque não sou como os outros
homens’. Não orava, diz Santo Agostinho, para rogar a Deus, senão
para se engrandecer a si e se antepor aos outros: ‘Ascendens orare,
noluit Delum rogare, sed se laudare’28. E isto mesmo é o que fazem
as presumidas do seu modo de orar. O outro dizia entre si (apud
se): ‘Senhor, dou-vos muitas graças porque não sou como os outros
homens’; e elas também, dentro em si, estão dizendo com sua
presunção: ‘Senhor, dou-vos muitas graças porque não sou como
as outras mulheres Elas rezam pelas contas, eu rezo pelo breviário;
elas rezam padre-nossos e ave-marias, eu rezo hinos e salmos; elas
com o vulgo rezam em linguagem29 e eu rezo em latim’, e em tão
bom latim e tão bem pronunciado que melhor poderão dizer que
rezam em grego. Mas, como saíram das suas orações os dois
oradores? O que rogou por seus pecados saiu com perdão deles, e
o que se quis estremear dos outros e levantar-se sobre todos, saiu
com um pecado de mais, que foi o da sua presunção e altiveza.
Miséria verdadeiramente grande, que, sendo a oração o meio
de aplacar e conciliar a Deus, se converta em motivo de o
desagradar e ofender; e, em vez de diminuir os pecados, os
acrescente: ‘Oratio ejus in peccatum’30.
(Idem, ibidem).

28
“Subindo a orar, não pretendeu rogar a Deus, mas louvar-se.”
29
Isto é, em vernáculo, em português.
30
“Sua oração faz-se em pecado.”
SEGUNDA PARTE
MODELOS E TRECHOS PARA EXERCÍCIOS
Descrições de interior
I
É uma sala simples; duas janelas para a rua, três oleografias
nas paredes, um grupo a um canto e, no fundo, um piano meio-
armário coberto por um pano achamalotado.
Vê-se no centro uma mesinha de peroba com uma jarra azul
cheia de flores murchas.
São oito horas da manhã. O sr. Simeão, sentado no sofá, lê o
jornal. É um velho magro, de barbas longas, quase calvo e que
respira alto, porque aperta o pince-nez nas asas do nariz. Vai lendo
e vai mexendo os lábios; de quando em quando respira mais forte,
engole em seco e pigarreia.
Ouvem-se agora passos pelo corredor. Surge na sala Emília,
menina de uns nove anos, loura, vestida de azul, com um laço
branco no cabelo.
- Bom dia, vovô.
O sr. Simeão pousa o jornal nos joelhos, olha por sobre os
vidros e responde-lhe sorrindo:
- Ora viva! Dormiu bem?
Emília toma-lhe a benção. Ele agarra-lhe a cabecinha,
trêmulo, amima-a muito e dá-lhe um beijo chocho.
A menina vai para o piano, abre-o, ajeita na estante o caderno
de exercícios, senta-se no mocho, esfrega as mãos e começa a
estudar escalas.
Pouco depois, entra na sala Tilintim. É um gato preto, grave,
de olhos amarelos, fulgurantes. Vem pausadamente, com ares de
quem sabe o que vai fazer. Costuma cochilar na mesinha, junto à
jarra. Chega-se à mesa, encolhe-se todo e salta firme. Por desgraça,
a mesa está em falso, desequilibra-se, e vão ambos, gato e jarra, ao
chão.
Com o barulho o sr. Simeão assusta-se; Emília para a escala,
roda no mocho, bate as mãos e exclama:
- Ih! Quebrou-se a jarra de mamãe! Foi Tilintim, atrás dele31.

II

31
Leitura – “Descrição não é inventário onde os objetos de refugo são lançados com o
mesmo zelo que os mais preciosos. Comporta a escolha de tudo o que nos pode dar a
conhecer a cousa descrita; o insignificante deve ser eliminado dela. Nos vários graus e
múltiplas formas de que é possível, oscila entre dois limites: a pesquisa do caráter geral
que aloja o objeto numa série, num gênero, e a pesquisa do traço particular que o separa
e o coloca, em sua individualidade distinta, sozinho, perante os objetos seus análogos”.
(Lanson – Conseils sur l’art d’écrire – pág. 51).
“O grande encolho da descrição é que se não faça de cabeça. Quem quer logra
descrever uma paisagem, diz do céu azul, das plantas verdes, nota as árvores, se à direita
há um caminho, à esquerda uma colina. O inventário à Delille, que esgota o céu, depois
a terra, depois a água é processo fácil, mas de efeito nulo. Embora se trate de descrever,
não é perante a cousa mesma que nós devemos colocar. Entendamo-nos: é preciso tê-la
visto, mas nem sempre é bom tê-la sob as vistas no ato de descrevê-las; a vontade de
pintá-las vos embaçaria; veríeis tudo, nada ressaltaria... Se vistes o objeto, não o revejais;
se o não vistes, vede-o e esperai. Algum tempo depois o revereis dentro em vós mesmos
e evocar-lhe-eis a imagem. Incompleta, fragmentada, deformada, reviverá tal emoção, tal
ideia que a vista involuntária, o inesperado choque da realidade vos impõe. Trapo de
imagem, inconscientemente enganchado em vosso espírito, é precisamente o que há de
característico no objeto, é o que à descrição cumpre aclarar”. (Lanson – Ibidem, pág. 53).
A cozinha é grande, ladrilhada, com paredes caiadas de
amarelo e teto de ripas gradeadas. Há duas janelas, uma lateral e
outra ao fundo. Vai-se ao quintal por uma porta larga, inteiriça, e
uma escadinha de granito, ensombrada por uma roseira enorme e
um galho de abacateiro.
Na cozinha há dois fogões, um de lenha, outro de gás. O de
lenha não funciona; serve de mesa agora e está forrado com jornais
e estopas. Por cima da pia de madeira e zinco ressaem prateleiras
cheias de panelas, pratos, caldeirões e frigideiras.
- Papagaio real! Para Portugal!
Quem fala é o louro, trepado na gaiola de folha de Flandres.
A gaiola está no portal da entrada, quase por cima da tábua de
engomar. O louro está contente; comeu bem, teve laranja, e, por
isso, abre de vez em quando as asas, levanta o pé, vira a cabeça,
ginga-se todo e canta forte:
- Cabocla de Caxangá!....
Josefa, a cozinheira, está sentada num pilãozinho, com um
aguildar nas pernas, tratando peixe. Traz um pano amarrado à
cabeça. É gorda, ruça, com três manchas pretas na face esquerda.
Preocupada, não vê Negrito que entra de manso, pula na tábua
de engomar, olha desconfiado e se atira ao louro, violentamente. O
papagaio esvoaça aos gritos, sacode a alcândora, defendendo-se e
entornando a água do bebedouro.
Josefa põe depressa o alguidar na pia, agarra uma vassoura e
corre atrás do gato.
- Bicho do diabo!
O louro ginga-se todo, estala o bico, mexe a língua, estira o
pescoço, assustadíssimo e nervoso32.

32
Leitura – Descrever é pintar: “Pintar é, não somente, descrever as cousas, mas
representar as circunstâncias de modo vivo e sensível, de tal jeito que o leitor suponha
Descrições de paisagens
I
Tarde morna de verão. O sol cai obliquamente sobre a lagoa
cor de chumbo, mosqueada de largas manchas azuladas. Emergem
da água, esparsas e pontudas, as varas dos currais e vêm-se, longe
ou perto, canoas pretas, de velas pandas, jogando e a espumejar.
Umas atracam do outro lado, em Fernão Velho, ferrando os panos,
como fatigadas; outras visam Maceió e somem-se no recorte das
ilhas canais. Uma delas entra o Mundaú que desagoa ao norte, entre
margens cobertas de aninga e mangue escuro. Passa rente com a
restinga de areia parda, torce no canal da foz e desaparece.

quase vê-las. Por exemplo: um historiador frio, ao recontar a morte de Dido, contentar-
se-ia com dizer: “Ela subiu ao topo do palácio, trepou na fogueira e suicidou-se”. Ouvindo
essas palavras sabeis do fato mas não o vêdes. Escutai Virgílio; ele vo-lo porá diante dos
olhos. Não é verdade que, enfeixando todas as circunstâncias desse desespero, mostrando-
vos Dido furiosa, com aquele rosto onde se pinta a morte, fazendo-lhe falar perante esse
retrato e essa espada, vossa imaginação vos transporta a Cartago, julgais ver a frota dos
Troianos a fugir da praia e a rainha inconsolável, penetrais os sentimentos que moviam
os verdadeiros espectadores? Já não ouvis Virgílio; estais atento às últimas palavras da
infeliz Dido e não pensais nele. O poeta desaparece, não vemos senão o que nos mostra;
não ouvimos senão os que ele nos faz falar. Essa é a força da imitação e da pintura. Daí
vem a semelhança entre o pintor e o poeta; um pinta para os olhos, o outro para os
ouvidos; ambos devem levar o objeto à imaginação dos homens. Citei-vos um exemplo
tomado a um poeta para melhor vos explicar a cousa, porque a pintura ainda é mais viva
e mais forte nos poetas que nos oradores. A poesia não difere da simples eloquência senão
porque pinta com entusiasmo e traços mais ousados. Suas pinturas tem a prosa, embora
mais moderadas; sem tais pinturas não podemos aquecer a imaginação do ouvinte nem
fustigar suas paixões. A simples narração não pode comover; cumpre, não somente
informar o ouvinte dos sucessos, como lh’os tornar sensíveis e excitar-lhe os sentidos
com a perfeita representação do modo comovedor por que se deram.” (Fénelon –
Dialogues sur l’éloquence – pág. 35).
“A descrição é a prova máxima da imaginação do poeta, é o que distingue um
gênio original de um espírito de segunda ordem. Quando um escritor de merecimento
curto tenta descrever a natureza, encontra-a exausta pelos que o precederam no mesmo
rumo. Nada vê de original no objeto que quer pintar; vem-lhe vagas e indecisas as ideias
e, por consequência, sai-lhe a dição descolorida e fraca. Prodigaliza mais palavras do que
pensamentos; reconhecemos, não há dúvida, a linguagem da descrição poética, mas não
concebemos claramente o que descreve, ao passo que um poeta nos faz crer que temos
esse objeto sob as vistas, apreende-lhe os traços distintivos, dá-lhe as tintas da vida e da
realidade, expõe-o à luz meridiana, de modo que um pintor poderia copiá-la”.
(Blair – Cours de rhétorique).
Do alto do Coqueiro Seco distinguem-se, meio iluminadas,
entre as ilhas planas e verdachas, as tiras dos canais quase paralelas
e arqueadas. Vê-se a ponta do Cadoz, o Calunga, ilha dos
Remédios, tudo muito quieto, monótono como um deserto.
No horizonte, ao sul, a faixa branca do pontal da barra. Ela
estende-se até Maceió. Aí começa a linha alteada do tabuleiro,
desde o farol do Jacutinga, alerta sobre o mar. À luz do ocaso a
cidade brilha, cravada ao pé do morro, numa semi-confusão de
torres, muros e telhados. Entre Fernão Velho e Maceió, uma
mancha branca: Bebedouro.
Olho para baixo e vejo, enfileiradas no atracadouro, canoas
grandes. A água suja cantarola chofrando-lhes nos cascos, arrasta
lama e tenta galgar a rua onde apodrecem troncos de coqueiros,
cascas de coco e frutapães. Uma delas vai sair.
O canoeiro suspende-a pelo beque, empurra-a, sobe pela proa
e toma o remo. Ela se desequilibra, balança-se pimpona, como ave
satisfeita que quer voar. Vejo-lhe o nome; chama-se Voadeira.

II
À noite
Sobe a lua. Há um clamor na natureza!
A várzea inteira acorda em sons magoados;
Ouve-se o grogrolejo da represa
E a algazarra das rãs pelos valados.

Vendo aquela ave de ouro no alto acesa,


Os bacuraus redobram seus bradados,
Despertando, por toda a redondeza,
Os outros passarinhos descuidados.
Em pé, na ribanceira alta do rio,
Um touro olha os reflexos da água mansa...
Na água se estira sua sombra enorme.

A lua galga o céu resvaladio...


Sobe... Uma aragem tímida balança,
Pesadamente, o bambuzal que dorme.
José Oiticica (dos Sonetos, 2ª série, pág. 27)
III
A manhã
Cresce a luz! Há lampejos sobre as folhas,
Abrem-se as palas dos oricoris.
Dos ninhos, dos lajedos, das encolhas,
Saem rolas, calangos e quatis.

Dos mangues, a um rumor crebro de bolhas,


Surgem goiamuns fartos e siris...
Surgem, movendo as projeções zarolhas...
Vem balidos plangentes dos redis.

Tudo se agita: há um taralhar de gansos


No palhiço do engenho; lerdos, mansos,
Mugindo, passam bois para os currais.
Inquieta apita a máquina do engenho;
Rangem eixos... e eu venho, abstrato... venho
Sonhando em manhãs de ouro, espirituais.
José Oiticica (dos Sonetos, 2ª série, pág. 22)

IV
Lembranças
Riachão! Remiro o engenho hoje parado
E a casa grande junto à capelinha,
O alambique, o curral, a água, o cercado,
Quase tudo o que outrora me entretinha.

Quase tudo! Não vejo mais o gado,


O bambuzal, a casa de farinha...
Não sinto agora o cheiro do melado;
A bica d’água em vão corre sozinha.

Foram-se cambiteiros, formas, cana...


Cresce o capim na antiga bagaceira;
O Gongó mal nas pedras espadana.

Ouço o rumor soturno na banheira,


E sinto a minha vida, a vida humana,
A fugir-me, a fugir-me sem que eu queira.
José Oiticica (dos Sonetos, 2ª série, pág. 120)
V
Mundaú! Eis a ponte de madeira
E os pés de cana-fístula na estrada,
O rio tardo, os mulungus à beira;
Sob a ponte, morcegos em revoada.

Toda a várzea, ao cair da tarde, cheira...


Chiam carros ao longe... A casa amada
Espera-me, e a igrejinha, sobranceira,
Surge branca na luz que se degrada.

O cabalo vai sôfrego e eu sonhando:


A arapuca, os sanhaços, a almanjarra,
Coisas da um tempo de nem sei mais quando.

Agora o pé de oiti, meu velho amigo,


Chorando, junto à usina a que se agarra,
As horas idas que viveu comigo.
José Oiticica (dos Sonetos, 2ª série, pág. 121)

Descrições de tipos
I
(Aluísio de Azevedo – O coruja, pág. 2)
O pequeno era, de fato, muito triste e muito calado. Em casa
do reverendo não se lhe ouvia a voz durante semanas inteiras; e
também quase nunca chorava e ninguém se poderia gabar de tê-lo
visto sorrir. Se o vestiam e o levavam a espairecer um bocado à
porta da rua, deixava-se o mono ficar no lugar em que o largavam;
o rosto carrancudo, o queixo enterrado entre as clavículas e seria
capaz de passar assim o resto da vida se não tomassem a resolução
de vir buscá-lo.
A criada, uma velha mui devota, mas também muito pouco
amiga das crianças, só olhava para ele pelo cantinho dos olhos e,
sempre que olhava, fazia depois uma careta de nojo “Apre! Só
mesmo a bondade do sr. Vigário, podia suportar em casa
semelhante lorpa!”
E cada vez detestava mais o pequeno; afinal era já um ódio
violento, uma antipatia especial, que se manifestava a todo instante
por palavras e obra de igual dureza. E a graça é que jamais uma
dessas vinha só; era chegar a descompostura e aí estava já o
repelão, em duas, três, quatro sacudidelas, conforme o tamanho da
frase.
O André deixava-se sacudir à vontade da criada, sem o menor
gesto de oposição ou contrariedade.
- Ah! Só mesmo a paciência do sr. vigário!
Apesar, porém, de tanta paciência, o sr. vigário, se não se
mostrava arrependido daquela caridade, era simplesmente porque
esse rasgo generoso muito contribuíra para a boa reputação que ele
gozava, não só aos olhos da paróquia inteira, como também aos dos
seus superiores a cujos ouvidos chegara a notícia do fato. Mas, no
íntimo, abominava o pupilo; mil vezes preferira não o ter a seu
lado; suportava-o, sabia Deus como! como quem suporta uma
obrigação inevitável e aborrecida.
Ah! não havia dúvida que o pequeno era com efeito muito
embirrantezinho. Sobre ser uma criança feia, progressivamente
moleirona e triste, mostrava grande dificuldade para aprender as
cousas mais simples. Não era com duas razões nem três murros que
o tutor conseguia meter-lhe qualquer palavra na cabeça.
O pobre velho desesperava-se, ficava trêmulo de raiva
defronte de semelhante estupidez. E com não tivesse jeito para
ensinar, como lhe faltasse a feminil delicadeza com que se abrem,
sem machucar, as tenras pétalas dessas pequeninas almas em botão,
recorria aos berros e, vermelho, com os olhos congestionados, a
respiração convulsa, acabava sempre empurrando de si os livros e
o discípulo, que iam simultaneamente rolar a dois ou três passos de
distância.
- Aquele maldito estúpido não servia senão para encher de
bílis! O melhor seria mantê-lo num colégio como interno... Era
mais um sacrifício – Vá! mas com a breca! ao menos ficava livre
dele!
Oh! o bom homem já não podia aguentar ao seu lado aquela
amaldiçoada criança. Às vezes, ao vê-la tão casmurra, tão feia, com
o olhar tão insociável e tão ferrado a um ponto, tinha ímpetos de
torcê-la nas mãos, como quem torce um pano molhado.
Nunca lhe descobrira a mais ligeira revelação de um desejo.
À mesa comia tudo que lhe punham no prato, sem nunca deixar ou
pedir mais. Se o mandavam recolher à cama, fosse a hora que fosse,
deitava-se incontinente; se lhe dissessem “Dorme!” ele dormia ou
parecia um protesto, como se estivesse à espera daquela ordem.
Qualquer tentativa de conversa com ele era inútil. André só
respondia por monossílabos, no mais das vezes incompreensíveis.
Nunca fazia a ninguém interrogação de espécie alguma e, certo dia,
perguntando-lhe o padre se ele o estimava, o menino sacudiu a
cabeça negativamente.
- E que tal?... considerou o vigário; - olha que entranhas tem
o maroto!
E segurando-lhe a cabeça para o fitar de frente:
- Com que, nõ gostas de mim, hein?
- Não.
- Não és agradecido ao bem que te tenha feito?
- Sou.
- E se fores para o colégio não sentirás saudades minhas?
- Não.
- De quem, então, sentirás?
- Não sei.
- De ninguém?
- Sim.
- Pois então é melhor mesmo que te vás embora, e melhor
será que nunca mais me apareças. Calculo que bom ingrato se está
preparando aí. Vai! Vai, demônio! e que Deus te proteja contra teus
próprios instintos.
Entretanto, à noite, o padre ficou muito admirado, quando, ao
entrar no quarto do órfão que dormia, o viu agitar-se na cama e
dizer, abraçando-se ao travesseiro e chorando: “Mamãe! minha
querida mamãe!”.
- São partes, sr. vigário, são partes deste sonso!... explicou a
criada trejeiteando com arrelia33.

33
Leitura – Imagem e metáfora – A imagem é uma pintura o maneira viva e pitoresca de
dizer. Fundada quase sempre em similitudes de objetos, de sensações, de sentimentos, de
ideias, implica de ordinário uma comparação, explícita ou subentendida, desenvolvida
como na alegoria, ou rápida como na metáfora. Sendo a metáfora e suas variedades, entre
todas as imagens, as de uso mais comum, são também aquelas em que frequentemente
naufraga o escritor incipiente, prosador ou poeta, hoje mais do que nunca desconformado
com a enumeração simples das ideias. A língua literária em geral, e não só a da poesia,
ambiciona o relevo das formas translatas. Diríamos com suficiente clareza falando de um
orador: “ele sabia discorrer com agrado sobre assuntos enfadonhos”. Não nos basta já
essa singeleza clareza, a frase correta, a expressão justa. Queremos ainda o modelado, o
colorido, que ferem mais ao vivo a inteligência e preferimos aquilo mesmo dito assim por
Eça de Queiroz: “a sua palavra tinha o segredo de florir os terrenos mais áridos”. Em vez
II
(Raul Pompéia – O ateneu, 3ª edição, pág. 33 e sg.).
Os companheiros de classe eram cerca de vinte, uma
variedade de tipos que me divertia: Gualtério, miúdo, redondo de
costas, cabelos revoltos, motilidade brusca e caretas de símio –
palhaço dos outros, como dizia o professor; o Nascimento, o
bicanca, alongado por um modelo geral de pelicano, nariz esbelto,
curvo e longo como uma foice; o Alvares, moreno cenho
carregado, cabeleira espessa e intensa de vate de taverna, violento
e estúpido, que Mânlio atormentava, designando-o para o mister
das plataformas de bonde, com a chapa numerada dos recebedores,
mais leve de carregar que as responsabilidades do estudo; o
Almeidinha, claro, translúcido, rosto de menina, faces de um rosa
doentio, que se levantava para ir à pedra com um vagar lânguido
de convalescente; o Maurilo, nervoso, insofrido, fortíssimo em
tabuada: cinco vezes três, vezes dois, noves fora vezes sete?... lá
estava Maurilo, trêmulo, sacudindo no ar o dedinho esperto... olhos
fúlgidos no rosto moreno marcado por uma pinta na testa; o
Negrão, de ventas acesas, lábios inquietos, fisionomia agreste de
cabra, canhoto e anguloso, incapaz de ficar sentado três minutos,
sempre à mesa do professor e sempre enxotado, debulhando um
risinho de pouca vergonha, fazendo agrados ao mestre, chamando-
lhe bonzinho, aventurando a todo ensejo uma tentativa de abraço
que Mânlio repelia, precavido de confianças; Batista Carlos, raça

do termo que vai diretamente ao espírito, adota-se o que lhe chega através dos sentidos,
tomando a cor particular de uma sensação. Bela vantagem, sem dúvida, se não intervém
o mau gosto do artifício e da preciosidade, o capricho de fazer estilo sob a obsessão da
metáfora perpétua. E que se não confunda esse modo indireto e feitio pinturesco de
apresentar as ideias com a amplificação e com a superfluidade das perífrases cujo único
mérito consista em evitar o desadorno do termo próprio. A metáfora tem antes por fim
poupar longas frases explicativas e distendidas comparações postas em pé com o socorro
indispensável dos como, qual, tal, assim, semelhante a, à semelhança de, parecendo,
feito, dir-se-ía etc. A energia resultante da sua brevidade é o que a torna preferível às que
os retóricos chamavam “semelhanças”.
(Xavier Marques – A arte de escrever, pág. 54).
de bugre, valido, de má cara, coçando-se muito, como se o
incomodasse a roupa no corpo, alheio às cousas da aula, como se
não tivesse nada com aquilo, espreitando apenas o professor para
aproveitar as distrações e ferir a orelha aos vizinhos com uma seta
de papel dobrado. Às vezes a seta do bugre ricocheteava até a mesa
de Mânlio. Sensação! Suspendiam-se os trabalhos; rigoroso
inquérito. Em vão, que os partistas temiam-no e ele era matreiro e
sonso para disfarçar.
Dignos de nota havia ainda o Cruz, tímido, enfiado, sempre
de orelha em pé, olhar coverde de quem foi criado com pancadas,
arrefado aos livros, forte em doutrina cristã, fácil como um
despertador para desfechar as lições de cor, perro como uma
cravelha para ceder uma ideia por conta própria; o Sanches,
finalmente, grande, um pouco mais moço que o venerando Rebelo,
primeiro da classe, muito inteligente, vencido apenas por Maurilo
na especialidade do noves fora vezes tanto, cuidadoso dos
exercícios, émulo do Cruz na doutrina, sem competidor na análise,
no desenho linear, nas cosmografia.
O resto, uma cambadinha indistinta, adormentada nos últimos
bancos, confundidos na sombra preguiçosa do fundo da sala.
Fui também recomendado ao Sanches. Achei-o supinamente
antipático: cara extensa, olhos rasos, mortos, de um pardo
transparente, lábios úmidos, porejando baba, meiguice viscosa de
crápula antigo. Era o primeiro da aula. Primeiro que fosse do coro
dos anjos; no meu conceito era a derradeira das criaturas.

Um candomblé
(Do romance O Feiticeiro de Xavier Marques34)

34
Notável romancista baiano. Autor de Jana e Joel, O sargento Pedro, Holocausto, A
cidade encantada, Boa madrasta, Pindorama, Maria Rosa e O Arpoador, romances ou
novelas; de uma Arte de Escrever e de ensaios críticos. O trecho aqui transcrito é uma
cena de interior com tipos, conjuntamente.
A esse tempo, atravessando o brejo por um aterro, entre
talhões de legumes que se banhavam no escorrimento esverdinhado
do pântano, os três chegavam à vertente da ribanceira oposta.
Aí, numa solidão sugestiva, cercado ao fundo de capões de
mato, se ocultava a casa baixa, de quatro águas e telhas bolorentas,
com as paredes de barro sem encasque, porta e duas janelas que
olhavam por uma extensa latada de maracujá-assú. A água
estagnada do charco esplendia nos regos com uma luz micante e
pálida, em torno das leiras viçosas de couve e repolho.
Pela sombra da latada seguiram os passeadores até o átrio do
singular pagode africano, caverna e santuário, de onde saíam
ligeiras chocalhadas e rufos intermitentes.
- Eis o terreno do tio Elesbão, disse Paulo aos dois
companheiros.
Elesbão devera ter sido um príncipe, aprisionado pelos chefes
de outras tribos na sua aringa35 destruída e vendido aos negreiros a
troco de fumo e cachaça. Exilado e cativo, conseguira aqui, como
“capitão de canto”36, ajuntar economias e comprar a carta de
alforria. As artes da feitiçaria, a sua primitiva dignidade sacerdotal,
o seu profundo conhecimento dos seres e objetos divinizáveis, da
pedra, do osso, da cobra, da planta ou do búzio onde se podiam
alojar os espíritos, granjearam-lhe desde logo a veneração e a
vassalagem dos parceiros nagôs. Teve casa na cidade e fez capela
na roça. Aí reinava e celebrava o pontífice africano, cercado de
negros e mulatos, de caboclos e brancos.
Com efeito, entre os convivas da festa que apenas começava,
não eram poucos os homens de cor limpa e cabelos lisos, que se
agitavam em volta da casa, engravatados, metidos em lustrosos
fatos engomados, com ares complacentes, quando não de todo

35
Aringa é palavra africana; designa um campo fortificado.
36
Capitão de canto era o chefe dos pretos forros carregadores. Reuniam-se em pontos
vários da capital baiana onde aguardavam chamados para os carretos. Elegiam um capitão
que fazia contratos e distribuía os serviços.
sérios. Paulo conheceu-os e falou a mais de um. Eram ougans37
como ele, mas ainda em pleno exercício de suas funções.
Na vasta sala do candomblé, ornada de palmas desfiadas,
mobiliada de mochos, bancos e tamboretes dispostos em roda, num
chão de terra escura, bem socada, formavam círculos africanos de
ambos os sexos, mancebas crioulas, mulatas cor de âmbar e cor de
chocolate, cabras de tez brunida, fulas ardentes como tijolo
queimado e pretas fuscas, sem matiz, parecendo cobertas de um pó
fino de carvão. Trajavam saias de cores variadas, panos da Costa e
camisas de cabeção de rendas, com fios de contas em volta do
pescoço e dos pulsos.
Pela cor das vestes e dos enfeites que predominava na roda –
saia branca e contas amarelas – viu Paulo que era Oxun o santo do
dia, a divina Oxun, esposa de Xangô, do gênio que troveja nas
nuvens e lança as pedras de raio, partículas da sua divindade.
Mas outras yauôs38 filhas de Yê-man-já, de Oxô-Ocy, de
Iansam, de Ogum, de Orixalá e Omonalú tinham vindo comungar
a alegria religiosa do terreiro, todas com algum distintivo de
irmandade, estas adereçadas de contas vermelhas, aquelas de
missanga azul opalina e transparente, outras combinando o branco
marfim e o açafrão nos colos e braços tintos ou azeitonados.
Ao centro da sala vieram os tocadores com os tabaques39 e os
deitaram no chão. Um velho marabú40, diretor de orquestra, tomou
a iniciativa. Enquanto mastigava obi41, ia mergulhando os dedos

37
Affonso Taunay (Rev. de líng. port. n. 30. 1924, p. 2008) define esse termo: “Acólito
na macumba”. Essa designação é muito vaga. Em sua substanciosa memória A raça
africana e os seus costumes na Bahia, publicada nos Annaes do 5º Congresso Brasileiro
de Geografia, o sr. Manoel Querino dá explicação completa do que seja ongan (pág. 655),
ou ôgan. É uma autoridade honorária no candomblé; representa um dos vários santos e
passa pelas cerimônias da iniciação e da confirmação.
38
Yauô ou i-a-ô, como escreve M. Querino, é uma iniciada na religião africana. Pode-se
ver todo o rito da iniciação na citada memória desse autor, pág. 646 e segs.
39
Tabaques ou atabaques, tambores usados pelos negros da costa africana ocidental.
40
Beato muçulmano, religioso.
41
Obi “é uma pequena fruta da África indispensável nos negócios feiticistas” (M.
2

Querino, loc. cit. p. 644).


numa quartinha e aspergindo um por um dos instrumentos. Os
companheiros mascavam das mesmas nozes servidas pela mãe do
terreiro num prato de barro vidrado.
Em seguida foram levantados os tabaques e cada qual ocupou
o seu lugar. Salustiano e Amâncio rejubilavam na expectativa de
revelações.
No banco mais comprido, os pretos se dispuseram segundo a
ordem decrescente dos tabaques. Na ponta da fila, aquele cujo ar
traía a dignidade de mestre de capela prendia entre os joelhos o
grande tabaque de seis palmos. Aos instrumentos de percussão
seguiam-se as cabeças vestidas de redes de búzios, prontas a rolar
nas mãos fouveiras que as empalmavam. No extremo da linha
ficava o mais moço, aguardando o momento de ferir o gan
metálico.
Chegou esse momento. A música em surdina parecia
interpretar o sentimento de temor e respeito que pairava, deveras,
sobre a sala. As ancilas dos orixás42, de olhos fitos no invisível,
sentindo já atração de um mistério nascente, moveram-se a
compasso, antes rosnando que cantando. De vez em quando, pelos
ombros oleaginosos das mais nédias, passava um leve frêmito que
podia ser provocado pelo sopro de um espírito ou pelas patas de
uma mosca.
A roda prosseguia morosa e quase tristonha. Algumas traziam
quartinhas e copos de barro, e, ao passo que mugiam no adágio
medroso, iam borrifando o chão e a testada da casa.
O Nery, interessado, foi encostar-se ao batente da porta para
seguir melhor os atos do cerimonial. Acudiu logo uma negra a
pedir-lhe com suas mais delicadas maneiras:
- Reda daí, yôyô.

42
Orixá, segundo Af. Taunay, é o Santo da macumba. Segundo M. Querino há vários
orixás conforme o dia. “Cada inovação feiticista tem o seu orixá que é a representação
simbólica do santo. Assim se diz: ourixá de Changô, de Yêmanjuá etc. (loc. cit. pág. 633).
Amâncio arredou-se; mas, estranhando que ninguém
ocupasse a entrada, olhou para o Boto.
- É uma medida de prudência, disse-lhe este. Antes de
começar o candomblé, despacha-se Exú. É o que eles estão
fazendo. Exú, o mau espírito, exige atos propiciatórios; é uma
condição para que não aconteça desgraça ou qualquer perturbação
durante a festa. E Exú tem de sair pela porta principal. Se encontrar
alguma criatura que lhe sirva de estorvo, é de recear, pelo menos,
que a atire ao chão com um ataque de estupor.
A passagem ficou livre até que as vozes e as aspersões
cessaram dando por findo o despacho. Imediatamente, num acesso
de paixão, despertaram os xequerês43 com fragor, anunciando uma
presença soberana.
Os olhos recolhidos e mórbidos das filhas do terreiro
espevitaram-se e volveram engrilados para as janelas onde se
mostravam as ougans. As faces torvas iluminaram-se de prazer; o
rebate dos instrumentos acentuava essa expressão:
- Quem é?... perguntou Amâncio, impressionado.
À porta da camarinha44, surgindo da penumbra como de um
retiro espiritual, alteava-se a figura atlética e prelatícia de Elesbão.
Apareceu e dobrou-se num salamaleque diante dos ougans
brancos, mostrando, num arreganho afável, a forte dentadura de
marfim.
Recebendo esta alta cortesia, saudados assim pelo terreiro
agraciado, os seus protetores sorriam uns para os outros. Elesbão
deu então alguns passos para o assento que o esperava. A cabeça
encoifada num gorro de veludo amarelo vergava um pouco sobre o

43
Manoel Quirino escreve chéré ou chéréré e define: “vasilha de cobre contendo calhaus,
espécie de chocalho, tido como objeto de mistério. Sacudindo que seja, as filhas do santo
ficam alvoroçadas: pertence a changô”. (pág. 666).
44
A camarinha é o quarto onde a iaô fica presa durante a iniciação e por três, seis meses,
um ano, depois de iniciada (M. Quirino, loc. cit. pág. 647).
peito da camisa de babados, que lhe caía como uma sobrepeliz por
cima das calças. Sentado, correu os olhos meio ictéricos pela sala,
deixando ver, em cada uma das façoilas cor de polme de café, um
gilvaz oblíquo e lustroso.
Depois de breve pausa começou a invocação de Oxun.
Ainda Amâncio estudava o aspecto e sondava a alma do
Merlin africado, dizendo de si para si: “quantos corações, quantos
espíritos, quantas vidas não se movem ao som da sua harpa
mágica...” e eis que vieram discorrendo as bailadeiras, seduzidas
por aquele canto irresistível. Pelas suas riçadas chorinas passava o
calafrio do transporte místico.
A roda estremeceu. A essa hora as águas doces das fontes,
dos lagos e dos rios, onde mora a mãe Oxun, lhes murmuravam
segredos inquietantes.
- Que temos hoje? perguntou Paulo Boto a um dos seus
conhecidos.
- A iniciação de Belmira.
Era o que ele esperava. Belmira, acrescentou o ougan, já
estava lá dentro no peji45, de cabeça raspada, lavada e guisada,
libando o licor místico que requinta as energias das neófitas.
No meio da sala, duas a princípio, depois cinco, oito, dez, já
dançavam e pinchavam: o tronco e as ancas num balanço uniforme
sobre os jarretes, os braços ora estendidos, ora em gancho,
governados pela mesma cadência, achatando num vai e vem
contínuo, com os cotovelos grossos, as ilhargas das camisas.
Em breve o jogo dos braços variou. Roliços e magros, negros,
escuros e pardos, os braços iam caindo ao longo das saias,
estirando-se para a rente e erguendo os punhos em figa. Tornaram-

45
Peji é o santuário do candomblé e se instala no interior da casa. O santo, diz M. Querino
(pág. 638), é representado por pedras, búzios e fragmentos de ferro, conforme a
invocação, e encerrado tudo isso em uma urna de barro da conformação de uma sopeira”.
se mais leves, mais ágeis, e flexíveis, pareciam deslocar-se e dançar
sozinhos, no ar, mutilado dos corpos, semelhantes a jiboias aladas.
As cabeças também dançavam num balouço que pressagiava
o esvaecer da vertigem. Empinavam-se, descaíam sobre as nucas,
pendiam para os colos, oscilavam, como pêndulas, com jogos
novos de fisionomias, todas porém transfiguradas na mesma
expressão de feitiço. A mesma luz raiava dos olhos caliginosos, dos
olhos congestos, dos olhos de topázio. Do mesmo álcool provavam
os lábios esbranquiçados, os lábios de carne cozida, os lábios
grossos, sucosos, roixos como jenipapos. Latejavam, suavam os
narizes batidos, de asas duras e concheadas, os narizes rombos e
nodosos, as faces de lustrina, as faces afumadas, as gordas, as
redondas, as longas e angulosas.
- Tunc – tunc – tunc!...
Cruel despotismo, látego inexorável que mal consentia
respirar as sacerdotisas da Terpsícore negral. Batiam os tabaques
reforçados sempre pelo rascar das cabaças. Da baixada pantanosa
subia e espairava a melopéa enervante, no tom e no compasso em
que rugiria ainda longos dias e noites a fio.
Onde estava o alarve divino que se nutria de tanto esforço?
Era uma divindade surda que aí se invocava? Ou estas suas servas
não mereciam a graça de a encarnar e possuir na hipóstase
miraculosa que já parecia tardar aos profanos do candomblé? À
impaciência destes respondia de vez em quando um brado
convulsivo de todas as festeiras:
- Ora – iê – iê!...
Os movimentos da ronda se desconcertavam a esse grito e
mais de uma yauô, de olhar chocalheiro e mamas trêmulas quase a
saltar pelo toral da camisa descaída, pinoteia com os braços
abertos, como que obedecendo às atrações de um imã desgastado
no teto. O pai do terreiro, que tudo observa, deita um olho alvação
aos tocadores e manda acelerar a música. Todos os passos se
fundem numa coréa delirante. Tresanda forte o bodum acre das
axilas e dos cangotes molhados de suor.
As bocas ofegantes mastigam e salivam, ruminam os
corações convulsionados. Mas, no seio deste caos, entoa-se um
cântico diverso e, traçados pelos tabaques, vão-se reconstruindo,
pouco a pouco, os passos medidos do bailado.
Em frente a Elesbão já algumas, enclavinhando os dedos e
deixando tombaram os braços, dançam rendendo-lhe adoração.
Outras apoderam-se de quartinhas douradas, tintas de rubro, e as
vão equilibrando na cabeça. Surge, porém, a mais imponente dentre
todas, alta, esgrouviada, fantástica; empunha um molho de clinas
alvas que se desfiam e voam em torno do seu pulso magro,
arrochado numa volta de missanga amarela. A saia curta mostra-
lhe os tornozelos em anilhos de caurim46. Ginga e meneia-se com
trejeitos mandingueiros, farejando o mistério com as narinas altas
e o beiço macilento arreganhado. As outras já lhe viram os sinais
de eleição. É o grande astro sinistro a arrebanhar os satélites; ao
capricho de sua curva, todas elas se movem. Com ela avançam,
recuam, giram, pendem para o solo, soerguem-se reverentes, fazem
continências e de repente se afastam para deixar só, no centro, a
imperar, a rainha do batucagé.
A pele retesa dos tabaques vibra em crescendo. A negra
desengonça-se em mesuras e momos trágicos. Ao jogo das
espáduas dançam-lhe o ventre e as nádegas sobre os jarretes
dobradiços como molas de aço. Pelo sulco do dorso correm-lhe
fluídos que vão explodir em chispas nas candeias dos olhos
bugalhudos. Os braços nus e finos não cessam de oscilar, nem os
pés de bater à marcação dos instrumentos. O canto que lhe sai da
gorja imita, às vezes, o ronquido de uma égua estrompada.
A pouco e pouco faz-se um anjo das trevas. Na cabeça uma
réstea de luz do poente, traspassando o verdor da latada, vem

46
Caurim ou cauri ou coril (ver o Diccion. de Moraes) é um molusco africano cujas
conchas serviam de adorno e de pinheiro entre os negros.
iluminar-lhe o êxtase diabólico. A mãe do terreiro entra em cena e
enxuga-lhe, com uma toalha alva, o carão lavado de suores. Só o
ritmo dos tabaques e o canto das outras filhas de Oxum dirigem o
fantasma. O feixe de clinas treme-lhe apenas no pulso. Ela dorme
na roda. É uma sonâmbula. Respira sem esforço. Delira num sonho.
Sonha talvez que vai voando ao seio de Olorum, que está no céu.
Quando desperta como que ébria de uma embriaguez por
tabaco de cão, o olhar ainda extático a seguir visões que se diluem,
prorrompe na sala um alarido tão estridente, que chega a assustar
os próprios ougans habituados.
A cabroeira, alucinada, grita, misturando num sincretismo de
língua bunda e língua de branco, aclamações fetichistas e vivas a
“Sinhô do Bonfim”.
Da camarinha sai de novo, à pressa, a mãe do terreiro
trazendo uma faixa larga, bordada de contas e búzios da Costa.
Passa-a por baixo dos seios de Belmira, aperta-a fortemente e deixa
cair as pontas do laço.
- É o ojá que lhe põem, disse ao Nery um dos assistentes.
Sem lhes dar mais tempo nem repouso, parte a esgalgada filha
do terreiro, no balanço exaustivo, aos golpes ferinos do gan e ao
tunc-tunc dos tabaques, em volta dos quais revolucionam as
cabeças. Reaparece a tremelga viscosa, convulsiva, a tresfolegar.
Daí a pouco já não é figura humana; é uma harpia, uma górgona
perseguida por um dardo secreto. Treme e tressua, rumina e devora,
com as ventas túmidas, o ar saturado de catinga e bafos de álcool.
Braços e tronco, pernas e cabeça, agitam-se-lhe em trepidações de
calafrio. Reergue-se e oscila, as mãos abertas, os dedos hirtos,
como palpando uma sombra. As contrações do rosto, a palidez do
beiço, o esgazear dos olhos já denunciam demasiado sofrimento. É
uma angústia contagiosa, de que parece sofrer todo o terreiro. Mas,
esta mesma agonia exalta ainda mais as irmãs da ronda e dá-lhes a
ânsia mórbida do paroxismo e da possessão. Suas vistas
coruscantes pareciam invejar a ditosa dor da companheira.
Elesbão está fechado e profundo acompanhando no interior
da própria alma, como em um espelho, os progressos dessa divina
alienação. Os tocadores entram a mexer-se no banco, pressentindo
a iminência de um desfecho.
E tangem a atordoar, tangem a ensurdecer47. Apodera-se do
monstro um delírio muscular. Todos os membros lhe estrebucham.
Dos pés ligeiros ao dócil cangote, mordem-na invisíveis
maribondos de fogo. As clinas sacodem furiosamente o ar. Da
garganta rompe-lhe um brado estertoroso:
- Oxum!...
Dilatam-se-lhe ainda mais as asas do nariz borrachudo.
Crispa-se-lhe a face. Vê-se-lhe o arquejar doloroso do peito. Neste
trance, pula do seu assento o pai Elesbão, e, como algoz inexorável,
entra a bater-lhe em torno da cabeça e junto às orelhas a dupla
campânula do agogô48 que torna mais infernal a confusão.
O terreiro em peso fica suspenso na expectativa da queda.
- A filha eleita dos orixás vai enlouquecer ou morrer?...
Ei-la em disparada, num frenesi de energúmena. É debalde
que o ritmo atroante do batuque tenta regrar-lhe os movimentos.
- Orá-iê-iê! Clamam todos em delírio.
Ela revoluteia, dá um último pinote; empalidece e por fim
baqueia, como fulminada por um raio de Xangô...
- Tem o diabo no corpo, disse Amâncio, disfarçando a sua
própria angústia.
- Não! emendou Paulo, foi o santo que lhe chegou à cabeça...

47
Construção viciosa esse emprego da preposição a. O correto seria: tangem de atordoar,
de ensurdecer. Demais, evitaria os hiatos em a e em a em.
48
Agogô, segundo M. Quirino, é um instrumento de ferro cujo som é produzido por uma
baqueta (pág. 667).
A sala descarrega, numa descompassada celeuma, a emoção
que a esmagava.

Narrações
I
(Raul Pompéia – O Ateneu, págs. 177 a 180)
Os novos passeios foram mais consideráveis. Primeiro o
Corcovado, assalto ao gigante hoje domado pela vulgaridade da
linha férrea. Às duas horas da noite troaram os tambores como em
quartel assaltado. Os rapazes, que mal haviam dormido na
excitação das vésperas, precipitaram-se dos dormitórios. Às 3 e
pouco estávamos na serra.
Aristarco rompia a marcha, valente como um mancebo,
animado a desfilada como Napoleão nos Alpes. Passeio noturno de
alegria sem nome. As árvores beiravam a estrada de muros de
sombra, num e noutro ponto redada de frestas para o céu límpido.
No caminho, trevas de túnel e a agitação confusa das roupas,
malhadas a esmo de placas de luar brando – réptil imenso de cinza
e leite em vagarosa subida... Subíamos. Pelas abertas no arvoredo
devassávamos abismos; ao fundo a iluminação pública por
enfiadas, como rosários de ouro sobre veludo negro.
A boa altura acampamos para o café. Criados que nos
precediam com o farnel improvisaram um balcão e nos serviam
sucessivamente na ordem da forma. Felizes, alguns conseguiram
uma gota de fino Porto, mais quente que o café, reforçando com
um banho interno de conforto contra a umidade da altitude e da
hora, inflamando a coragem com um Punch, avivando a alegria
com um brinde de fogo.
O espaço aparecia mais claro sobre a renda das ramas; as
últimas estrelas, por entre as folhas, emurcheciam como jasmins e
fechavam-se.
Aristarco deu ordens à banda. A subida recomeçou em festa:
um dobrado triunfal rasgou o silêncio das montanhas espavorindo
a noite; o bombo do Rômulo trovejou robusto, com imensa
admiração da passarada que o espiava metendo o bico à beira dos
ninhos.
Ao passo que nos elevávamos, elevava-se igualmente o dia
nos ares. Apostava-se a ver quem primeiro cansava.
Cada avanço de luz no espaço era como um excitante novo
para a jornada, suavizando a doçura do alvorecer todo o esforço da
ascensão. Quando a música parava, ouvíamos na alvenaria do
grande encanamento, pelos respiradouros, as águas do Carioca
ciciando queixas poéticas de náiade emparedada. Avistávamos, por
hiatos de perspectiva, a baía, o oceano vastamente desdobrado em
chamas, extenso cataclisma de lava.
No planalto do Chapéu de Sol paramos. O diretor
convencionou que, ao sinal de debandar, assaltaríamos na carreira
o espigão de granito empinado à extrema do monte. A rapaziada
aclamou a proposta e, com um alarido bárbaro de peleja, arrojamo-
nos à conquista da altura.
Chegou na frente o Tonico, meninote nervoso, de S. Fidelis,
especialista invicto na carreira, corredor de prática e princípios,
que, de cada exame da Instrução Pública, fugia duas vezes à
chamada, entendendo que a fuga era a expressão verdadeira da
força e a bravura uma invenção artificial dos que não podem correr.
Rômulo fez a asneira de tentar o espigão; ficou a meio do
caminho, sufocado, inanimado, roncando por terra.
Almoçamos às dez horas, cada um para seu lado, depois da
distribuição frugal do mantimento. Fartos de paisagem, formamos
para a descida.
Descida penosa. Tínhamos imprudentemente esgotado as
forças na folgança. A marcha de volta foi uma miséria. Formamos
ainda, mas não havia quem olhasse para o alinhamento. As correias
frouxas escapavam à cintura, as blusas às correias; os pés
cambavam, mal equilibrados no calçado, bambeavam os joelhos
passadas de bêbedo.
As crianças, adiante, voltavam os olhos dolorosamente para
o diretor, segurando-se uns aos outros pelos ombros, seguindo em
grupos atropelados como carneiros para a matança. Aristarco, tão
lépido como na subida, estimulava o seu povinho, chasqueando
compadecidas ironias.
Quis recorrer ao estimulante da música. Os músicos,
derreados, haviam deixado os instrumentos na carroça da
matalotagem que vinha longe. Nem tambores, nem clarins; apenas
Rômulo, atrás de todos, trazia o bombo de roldão pela estrada,
como uma pipa.
Por maior tormento, fundia-se a soalheira em chumbo ardente
sobre nós, acendendo reflexos insuportáveis na areia da estrada,
enquanto reverberava o dia lá em baixo, sobre as casas, pelos
jardins nublados e vaporizações de estio, sobre a vegetação das
montanhas, a florescer das tristes flores da Paixão da aleluia.
Voltávamos de um dia alegre como soldados batidos. A
ordem da marcha decompôs-se aos poucos. Quando chegamos ao
Rio Comprido íamos por bandos dispersos, arquejantes, os de
maior fôlego na vanguarda; depois, em cauda interminável de
alquebramento, os mais fracos, até aqueles que ficavam pelo chão
como enfermos e que os inspetores buscavam como gado perdido.

II
Mestre esperto
(Conto de José Oiticica).
Era famoso, em Quebrangulo, o Zé Prudente, professor
primário com escola à beira do rio Paraíba.
Vinha-lhe a celebridade do inexplicável adiantamento dos
alunos sendo ele quase de todo analfabeto. Chegara mesmo à
extraordinária proficiência de ensinar gramática latina a alguns
rapazes filhos de fazendeiros.
Despertou-lhe a vocação magisterial no engenho Sucupira.
Havendo aprendido a ler com nhá Florinda, arranjou Prudente
umas cartilhas e entrou a desaranhar as cabeças de uns moleques a
três cruzados cada um. Era pardavasco, desempenado, olhos
gázeos, cara quadrada e enérgica.
Nha Florinda ria-se muito das tentativas pedagógicas do
discípulo, afirmando-lhe ser prodígio sobre-humano basculhar
aqueles cérebros encorreados.
- Sim, pensava lá consigo Zé Prudente, haveria milagre, não
há dúvida, se eu fosse a ensiná-los como a senhora me ensinou.
Comigo a história é outra.
E, realmente, quem passasse pela casa de purgar, num de
cujos cantos instalara Zé Prudente, com licença do major
Simplício, sua escolazinha, ouviria ininterruptas estaladas de
palmatória rija.
Em seis meses toda a molecada soletrava, alguns liam por
cima, sabiam de cor a tabuada dos tostões, patacas e cruzados e
aprumavam-se na soma.
Tão pasmoso êxito levou o major Simplício a confiar no Zé
Prudente, por sua conta, o molecame das senzalas.
Nesse ínterim, nhá Florinda exercitou-o em três operações e
ia martelar-lhe a quarta quando lastimosamente morreu de cólera.
Desfez-se com a peste, a escolazinha e Zé Prudente, forro que
era, deixou o Sucupira e botou-se para Porto Calvo, longe como
quê.
Esteve por lá dois anos, mas não se deu bem. Voltou para
Quebrangulo, casou-se com sua prima Elvira e, decididamente
eleito pelos deuses apóstolo da luz, recomeçou, naquele barracão
juntinho ao Paraíba, sua faina desemburratória.
A prática aperfeiçoara-lhe o processo malhativo aguçando-
lhe o senso de dosagem, requintando-lhe o jeito de aplicar, entre
conselhos paternais, anedotas cômicas, pedidos de desculpa e
solecismos.
As poucas liçõezinhas de nhá Florinda não lhe haviam
desenferrujado a bossa matemática e Zé Prudente calculava mal.
Pouco importava! Estendia a rapaziada em arco, empunhava a
quinquipontilhada férula e perguntava ríspido:
- Você, Manuel! Cinco vezes quatro noves fora vezes sete!
Vamos, depressa!
E como o lorpa do Manuel titubeava, repetindo a pergunta, de
olhos na telha vã, berrava logo:
- Adiante! Adiante! Adiante!
E desandava bolos na cabroeira.
Com efeito, a bússola de Zé Prudente na avaliação do rumo
certo era a presteza da resposta.
- Vamos! Oito vezes cinco noves fora mais sete menos três!
Responda, Florêncio!
O Florêncio sacudia os dedos, mexia os beiços e respondia
trêmulo:
- Oito.
- Ah! É assim que você sabe tabuada? Passe pra cá.
E assentava-lhe dois bolos repuxados.
Mas, se o pequeno respondia prontamente: “Dezessete!” ou
equipolente asneira, ele sorria, agitava a palmatória e confirmava
elogiando:
- Assim, sim.
Não sei por quais mistérios despencou-lhe nas mãos, um dia,
a Arte da língua latina do padre Pereira. E eis Prudente mestre de
latim. Passava a lição à pequenada e aquilo tinha de vir sem uma
falha, uma hesitação, na ponta da língua.
Quem se revoltava com o processo era o dr. Camilo, promotor
público. Inconcebível cousa para ele entregar-se a tal azémola a
educação de crianças. Ensinar a força de pancadas era barbaridade
quanto surrar negros a lampião, metê-los no tronco, sem comida,
por três dias, queimá-los com pontas de fogo e outros horrores.
Lá no seu íntimo, o liberal dr. Camilo era republicano; lia
sofregamente os discursos incendiários dos propagandistas e, entre
amigos, também dava sua ajudazinha à destruição do império.
Uma vez, tendo pousado em casa do sub-delegado Generoso,
quase vizinho da renomeada escola, indignou-se com a pancadaria,
entrou pela casa a dentro e exprobou, em plena sala de aula,
semelhante sistema.
Foi o grande bate-boca, mas não passou disso. Queixou-se o
promotor ao presidente da província, mas nada obteve, ao passo
que Zé Prudente reapertou no bolo, conseguindo tudo.
Ora, sucedeu, meses depois, a Abolição e em 15 de novembro
fez-se a República!
Reviravolta em tudo: pretos alforriados, senhores
descontentes, conservadores bem baixo, liberais nos cargos
públicos, padres sem côngrua, casamento civil obrigatório, eleições
para a constituinte, etc., etc. Só não mudara, na sua inalterabilidade
de cousa filosoficamente necessária, a prática pedagógica de José
Prudente, por ele diariamente resumida nesta frase programática:
- Menino sem pancada não aprende.
Tão inflexível e definitiva era a sentença que formava um
verso heroico.
Desgraçadamente para o desunhante pedagogo, foi nomeado
pelo governo provisório estadual, para o cargo de subdelegado de
Quebrangulo, o Pedro Belo, concunhado do dr. Camilo.
Estava Zé Prudente à porta de casa, sentado num tamborete
baixo, a pitar seu fumo de rolo, quando Pedro Belo, dando-lhe boa
tarde, lhe pediu desculpas e entrou em falação.
- Como o sr. mestre sabe, estamos agora na República e o
governo, uma de suas primeiras decisões foi acabar com a
palmatória nas escolas49. Está portanto o sr. mestre ciente que não
pode mais dar pancada nos discípulos.
Zé Prudente exaltou-se:
- E como hei de ensinar? Menino sem pancada não aprende.
Mas eu bem sei de onde parte isso. É do seu concunhado o dr.
Camilo. Eu queria que ele viesse para aqui dar lição em meu lugar.
Havíamos de ver se alguém saía daqui sabendo.
- Isso é lá com ele. A ordem que tenho é esta e hei de cumpri-
la. Vá botando fora a Santa Luzia e tratando de castigar as crianças
de outro modo.
- Já sei! Já sei!
José Prudente ficara combalidíssimo. Ver falir assim o seu
processo! E como ensinar sem palmatória? Ninguém pegava mais
em livro!
No dia imediato, sorumbático, desaprumado, fez uma
preleção aos seus vinte e três alunos. Agora podiam vadiar à
vontade. Fora proibida a palmatória, e, como menino sem pancada
não aprende, nenhuma responsabilidade lhe cabia mais no
aproveitamento deles.
Estava quase resolvido a fechar a escola, o que decidiria
dentro de três dias.

49
Note-se o anacoluto, muito comum na conversação familiar, sobretudo entre pessoas
menos cultas.
Mas não fechou. No terceiro dia, com efeito, abrira as aulas
folgazão, visivelmente reanimado, e, como os chamados à lição
nada sabiam, observou que tomara o seguinte alvitre: chamaria
diariamente os alunos à lição; se porém um deles gaguejasse ou não
soubesse, ficariam todos presos até oito da noite e perderiam a
merenda.
Foi um pavor na sala silenciosa. Os pequenos entreolharam-
se avaliando que sanhudas tempestades se iam acastelando sob
aqueles caibros de praíba.
E logo no outro dia começou o infamíssimo processo.
Haviam todos estudados de morrer, mas o João Grangeiro não
dissera depressinha quantos mil réis eram seis cruzados, dez
patacas e doze vinténs. Foi um desespero. O fessô confiscara todos
os pãezinhos de quarenta réis e os deixara secos de fome até cinco
da tarde.
- Vão às cinco porque é a primeira vez! avisou-lhes o
malvado.
E todo o santo dia a mesma cousa. Zé Prudente aguardava
ansioso o êxito do estratagema, até que, no oitavo dia de prisão, se
comprovou a eficiência do processo.
Dessa vez fora chamado o Felisberto. Errou lamentavelmente
todo o verbo pôr que os demais sabiam na perfeição.
Mal o mestre os soltou às seis e meia, os pequenos, ainda no
oitão da escola, por natural impulso vingativo, caíram de sopapo,
tapona, pontapé, no descarado Felisberto.
- Fessô! Fessô! gritava o pobrezinho.
Quanto mais gritava, mais desapiedadamente lhe choviam, na
cabeça e nas costas, punhaços, lamparinhas, chacoletas e cipoadas.
Sim, que o Pedro Eusébio, o maior deles, arrancara um talo de
tapichaba e zurzia ferozmente os lombos do maroto.
- Toma, seu safado!
Felisberto urrava, mas o professor acudia.
Estava na cozinha, trepado num pilão alto, espiando a tunda
por um olhal, rindo de estourar os cós.
Dona Elvira, sem compreender, perguntava-lhe o que era, que
havia, aflita com o berreiro.
- Vai ver o que é Prudente!
Mas Zé Prudente fez sinal que se aquietasse, rindo sempre.
Por fim, tudo cessou. O ilustre mestre parou de rir, limpou na
manga de riscadinhos uma lágrima contente e descendo cauteloso
do pilão resmungou severo:
- Hão de convencer-se: quer na monarquia, quer na república,
menino sem pancada não aprende.
E, sungando as calças, foi descansar triunfante em sua rede
de tucum.

III
Conto de Escola
(Machado de Assis – Várias Histórias, p. 211 e sg.)
A escola era na rua do Costa, um sobradinho de grade de pau.
O ano era de 1840. Naquele dia, uma segunda-feira do mês de
maio, deixei-me estar alguns instantes na rua das Princesas, a ver
onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o
campo de Sant’Ana, que não era então esse parque atual,
construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos
infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou
capão? Tal era o problema. De repente disse comigo que o melhor
era a escola. E girei para a escola. Aqui vai a razão.
Na semana anterior tinha feito dois suetos, e, descoberto o
caso, recebi o pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma
sova de pau de marmeleiro. As sovas de meu pai doíam muito
tempo. Era um velho empregado do arsenal de Guerra, ríspido e
intolerante. Sonhava para mim uma grande posição comercial e
tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e
contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas
que tinham começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último
castigo que me levou, naquela manhã, para o colégio. Não era um
menino de virtudes.
Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e
cheguei a tempo; ele entrou na sala três ou quatro minutos depois.
Entrou com o andar manso do costume, em chinelas de cordão, com
a jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e grande
colarinho caído. Chamava-se Policarpo e tinha perto de cinquenta
ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o
lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos pela
sala. Os meninos que se conservaram de pé durante a entrada dele,
tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os
trabalhos.
- Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o
filho do mestre.
Chamava-se Raimundo este pequeno e era mole, aplicado,
inteligência tarda. Raimundo gastava duas horas em reter aquilo
que a outros levava apenas trinta ou cinquenta minutos; vencia com
o tempo o que não podia fazer logo com o cérebro. Reunia a isso
um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara doente;
raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-
se antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco.
- O que é que você quer?
- Logo, respondeu ele com voz trêmula.
Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos
mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos
mais inteligentes por um escrúpulo fácil de entender e de excelente
efeito no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não
era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro. Na
lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas
deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação
sem nobreza nem espiritualidade, mas, em todo caso, ingênua.
Naquele dia foi a mesma cousa; tão depressa acabei, com entrei a
reproduzir o nariz do mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes
diferentes das quais recordo a interrogativa, a admirativa, a
dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre
estudante de primeiras letras que era; mas, instintivamente, dava-
lhes essas expressões. Os outros foram acabando; não tive remédio
senão acabar também, entregar a escrita e voltar para o meu lugar.
Com fraqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que
ficava preso, ardia por andar lá fora e recapitulava o campo e o
morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o
Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero
humano. Para no claro azul do céu, por cima do morro do
Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda
imensa, que bojava no ar, uma cousa soberba. E eu na escola,
sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos
joelhos.
- Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.
- Não diga isso, murmurou ele.
Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra
vez que queria pedir-me alguma cousa e perguntei-lhe o que era.
Raimundo estremeceu de novo, e, rápido, disse-me que esperasse
um pouco; era uma cousa particular.
- Seu Pilar... murmurou ele daí a alguns minutos.
- Que é?
- Você...
Ele deitou os olhos ao pai e depois a alguns meninos. Um
destes, o Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo,
notando essa circunstância, pediu alguns minutos mais de espera.
Confesso que começava a arder de curiosidade. Olhei para o
Curvelo, e vi que parecia atento, podia ser uma simples curiosidade
vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma cousa
entre ele. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze
anos, era mais velho do que nós.
Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto,
remexendo-me muito, falando-lhe baixo, com instância, que me
dissesse o que era, que ninguém cuidava dele nem de mim. Ou
então, de tarde...
- De tarde, não, interrompeu-me ele; não pode ser de tarde.
- Então agora.
- Papai está olhando.
Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para
o filho, buscava-o muitas vezes com os olhos para trazê-lo mais
aperreado. Mas nós também éramos finos; metemos o nariz no livro
e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas do dia, três
ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as ideias e as paixões.
Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência e que era
grande a agitação pública. Policarpo tinha de certo algum partido,
mas nunca pude averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para
nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada do portal da
janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era só levantar
a mão, despendurá-la e brandi-la com a força do costume, que não
era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas
dominassem nele a ponto de poupar-nos uma ou outra correção.
Naquele dia, ao menos, pareceu-nos que lia as folhas com muito
interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou tomava uma
pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a valer.
No fim de algum tempo – dez ou doze minutos – Raimundo
meteu a mão no bolso das calças e olhou para mim.
- Sabe o que tenho aqui?
- Não.
- Uma pratinha que mamãe me deu.
- Hoje?
- Não no outro dia, quando fiz anos...
- Pratinha de verdade?
- De verdade.
Tirou-a vagarosamente e mostrou-me de longe. Era uma
moeda do tempo do rei, cuido que doze vinténs ou dois tostões não
me lembra; mas era uma moeda e tal moeda que me fez pular o
sangue no coração. Raimundo revolveu em mim o olhar pálido;
depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-lhe que
estava caçoando, mas ele jurou que não.
- Mas então você fica sem ela?
- Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô
lhe deixou, numa caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?
Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de
olhar para a mesa do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à
boca um gesto amarelo, que queria sorrir. Em seguida propôs-me
um negócio, uma troca de serviços; ele me daria a moeda, eu lhe
explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não conseguiria reter nada
do livro e estava com medo do pai. E concluía a proposta
esfregando a pratinha nos joelhos...
Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da
virtude uma ideia antes própria de homem; não é também que não
fosse fácil eu empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos
ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da
proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva,
toma lá da cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à
toa, sem poder dizer nada.
Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que o
Raimundo, não o tendo aprendido, recorria a um meio que lhe
pareceu útil para escapar ao castigo do pai. Se me tem pedido a
cousa por favor, alcançá-lo-ia do mesmo modo, como de outras
vezes; mas, parece que era a lembrança das outras vezes, o medo
de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como
queria, - e, pode ser mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse
ensinado mal, - parece que tal foi a causa da proposta. O pobre
diabo contava com o favor, - mas queria assegurar-lhe a eficácia, e
daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava como
relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à
minha vista, como uma tentação... Realmente, era bonita, fina,
branca, muito branca; e para mim, que só trazia cobre no bolso,
quando trazia alguma coisa, um cobre feio, grosso, azinhavrado...
Não queria recebê-la e custava-me recusá-la. Olhei para o
mestre, que continuava a ler com tal interesse, que lhe pingava o
rapé do nariz.
- Ande, tome, dizia-me baixinho o filho. E a pratinha
fuzilava-lhe nos dedos, como se fora diamante... Em verdade, se o
mestre não visse nada, que mal havia? E ele não podia ver nada,
estava agarrando aos jornais, lendo com fogo, com indignação...
- Tome, tome...
Relanceei os olhos pela sala e dei com os do Curvelo em nós;
disse ao Raimundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos
observava; então dissimulei; mas, daí a pouco, deitei-lhe outra vez
o olho, e – tanto se ilude a vontade! – não lhe via mais nada. Então
cobrei ânimo.
- De cá...
Raimundo deu-me a pratinha sorrateiramente; eu meti-a na
algibeira das calças, com alvoroço que não posso definir. Cá estava
ela comigo, pegadinha à perna. Restava prestar o serviço, ensinar a
lição e não me demorei a fazê-lo, nem o fiz mal, ao menos
conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho de papel
que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que
despendia um esforço cinco ou seis vezes maior para aprender um
nada; mas, contanto que ele escapasse ao castigo tudo iria bem. De
repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós,
com um riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas, daí a pouco,
voltando-me outra vez para ele, achei-o do mesmo modo, com o
mesmo ar, acrescendo que estava a remexer-se no banco,
impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a
testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador.
O coração bateu-me muito.
- Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.
- Diga-me isto só, murmurou ele.
Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava e a moeda, cá no
bolso, lembrava-me o contrato feito. Ensinei-lhe o que era,
disfarçando muito; depois, tornei a olhar para o Curvelo, que me
pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior.
Não é preciso dizer que também eu ficara em brasas, ansioso que a
aula acabasse; mas, nem o relógio andava com das outras vezes,
nem o mestre fazia caso da escola; este lia jornais, artigo por artigo,
pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros, com uma
ou duas pancadinhas na mesa.
E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno
papagaio guinando de um lado e outro, como se me chamasse a ir
ter com ele.
Imaginei-me ali, com os livros e pedra em baixo da
mangueira, e a pratinha no bolso das calças, que eu não daria a
ninguém, nem que me serrassem; guardá-la-ia em casa, dizendo a
mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse, ia-a
apalpado, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato
a inscrição, com uma grande vontade de espiá-la.
- Ô seu Pilar! bradou o mestre com voz de trovão.
Estremeci como se acordasse de um sonho e levantei-me às
pressas. Dei com o mestre olhando para mim, cara fechada, jornais
dispersos e, ao pé da mesa, em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar
tudo.
- Venha cá! bradou o mestre.
Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência
dentro um par de olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a
escola tinha parado; ninguém lia mais, ninguém fazia um só
movimento. Eu, conquanto não tirasse os olhos do mestre, sentia
no ar a curiosidade e pavor de todos.
- Então o sr. recebe dinheiro para ensinar a lição aos outros?
disse-me Policarpo.
- Eu...
- Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! clamou.
Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a
tremer muito. Policarpo bradou de novo que lhe desse a moeda, e
eu não resisti mais; meti a mão no bolso, vagarosamente, saquei-a
e entreguei-lh’a. Ele examinou-a de um e outro lado, bufando de
raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E então disse-nos
uma porção de cousas duras, que tanto o filho como eu acabávamos
de praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para
emenda e exemplo, íamos ser castigados.
Aqui pegou na palmatória.
- Perdão seu mestre... balbuciei eu.
- Não há perdão! Dê cá a mão! dê cá! vamos! sem vergonha!
dê cá a mão!
- Mas, seu mestre...
- Olhe que é pior!
Estendi-lhe a mão direta, depois a esquerda e fui recebendo
os bolos um por cima dos outros, até completar doze que me
deixaram as palmas vermelhas e inchadas. Chegou a vez do filho e
foi a mesma cousa; não lhe poupou nada, dois, quatro, oito, doze
bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos sem
vergonha, desaforados, e jurou-nos que, se repetíssemos o negócio,
apanharíamos tal castigo que nos havia de lembrar para todo o
sempre. E exclamava: Porcalhões! tratantes! faltos de brio!
Eu por mim tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém,
sentia todos os olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando,
fustigado pelos impropérios do mestre.
Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia
ninguém faria igual negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara
de medo. Não olhei logo para ele; cá dentro de mim jurara quebrar-
lhe a cara na rua, logo que saíssemos, tão certo como três e dois
serem cinco.
Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para
mim, mas desviou a cara e penso que empalideceu. Compôs-se e
entrou a ler em voz alta; estava com medo, começou a variar de
atitude, agitando-se à toa, coçando o joelho, o nariz. Pode ser até
que se arrependesse de nos ter denunciado; e, na verdade, por que
denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma cousa?
- Tu me pagas! tão duro como osso! dizia eu comigo.
Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, eu
não queria brigar ali mesmo, na rua do Costa, perto do colégio;
havia de ser na rua larga de S. Joaquim. Quando porém cheguei à
esquina, já não o vi; provavelmente escondera-se em algum
corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em outras casas,
perguntei por ele a algumas pessoas; ninguém me deu notícia. De
tarde faltou à escola.
Em casa não contei nada, é claro; mas, para explicar as mãos
inchadas, menti a minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a
lição. Dormi nessa noite, mandando ao diabo os dois meninos,
tanto o da denúncia como o da moeda. E sonhei com a moeda;
sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua
e a apanhara sem medo nem escrúpulos...
De manhã acordei cedo. A ideia de ir procurar a moeda fez-
me vestir depressa. O dia esplêndido, um dia de maio; sol
magnífico, ar brando, sem contar as calças novas que minha mãe
me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo isso e a pratinha... Saí
de casa como se fosse subir ao trono de Jerusalém. Piquei o passo
para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim não
andei tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram
bonitas! Mirava-as, fugia aos encontros, ao lixo da rua...
Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros,
tambor à frente, rufando. Não podia ouvir quieto. Os soldados
vinham batendo o pé rápido, igual, direita, esquerda, ao som do
rufo. Eu senti uma comichão nos pés e tive ímpeto de ir atrás deles.
Já lhes disse: o dia estava lindo, e depois o tambor... Olhei para um
e outro lado; afinal, não sei como foi, entrei a marchar também ao
som do rufo, creio que cantarolando alguma cousa: Rato na
casaca...
Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela
Saúde e acabei a manhã na praia da Gamboa. Voltei para casa com
as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento
na alma. E contudo a pratinha era bonita, e foram eles, Raimundo
e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um, da
corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...

IV
Duas cavalgaduras
(Monteiro Lobato50)
Um grande amigo de livros, o estudante Baptista, de Ribeiro
Couto51. Na sua dolorosa miséria de rapaz pobre, solto sem
padrinhos, na voragem carioca, desses bons amigos se socorria para
desafogo da alma crestada ao vento das decepções. Falhava-lhe o

50
Do livro de contos: O macaco que se fez homem – S. Paulo – 1923.
51
O crime do estudante Baptista, livro de contos de Ribeiro Couto.
sonhado emprego? Abria “D. Casmurro”, e logo a malícia de
Capitu o empolgava, levando-o para casos bem distantes do seu
dorido caso pessoal. Traía-o algum amigo? O moço embarcava
para Florença, no “Lys Rouge”, hospedava-se com Miss Bell e, de
visita às igrejas com Duchatre, ei-lo embriagado no ardente amor
da condessa.
O estômago, porém, é Sancho. Não digere contemplações.
Exige pão. E a fome, um dia, apresentou ao estudante o seu
inexorável ultimatum. Mata-me ou mato-te.
Um só recurso lhe restava: reduzir a pão duro seus amados
livros. Fê-lo, mas com que mágoa! Como vacilou na escolha da
primeira vítima! E como lhe doeu o sórdido negocismo do belchior,
miserável depreciador da mercadoria, sempre com o fito de obtê-
la pelo mínimo!
Era este belchior certo judeu mulato com um sebo à rua do
Catete52. Mulato de barbicha irônica, própria para coçadelas nos
momentos de engatilhar o preço. Tinha um jeito irritante de pegar
nos livros e de ler o título por baixo dos óculos, como se os
cheirasse. Tipo desagradável de múmia ressurreta, em perfeita
harmonia com a sordidez da casa. Que vitrina! Já ali se lhe
anunciava a alma. Livros encardidos, brochuras de cantos surrados
canetas de vintém, lápis qubra-a-ponta, tinteiros de refugo – tudo
desbotado pelo sol e tamisado pela horrível poeira negra da rua.
Dentro, um cheiro de velhice e ranço, bafio proveniente metade da
múmia, metade das estantes prenhes de brochuras infectas.
Pois foi nas garras de tal aranha barbada que o pobre
contemplativo caiu, e um a um lhe sorvia ela todos os volumes da
amada biblioteca, sempre a ratinhar, a rosnar, a espichar níqueis
para o que valia notas.

52
Está muito generalizada a errônea expressão à rua, como aqui: à rua do Catete. Basta
ver que ninguém diz: moro ao beco do Rio, moro ao largo da Sé. O correto é dizer: moro
na rua, na praça, na avenida, na ladeira, na estrada etc., uma casa situada na travessa do
Ouvidor, na rua do Costa (veja neste volume, pág. 152, o conto de Machado de Assis,
primeira linha). À rua designa o lugar para onde: vou à rua do Bispo.
Uma vez recebeu o moço más notícias de casa e instante
pedido de uma irmãzinha que deixara em Catalão. Era forçoso
servi-la, inda que mister fosse vender a alma ao diabo. O jeito era
um só: negociar em bloco os livros restantes. Que vá, que vá! Uma
grande dor, única, é de preferir-se a mil dorezinhas parceladas. Que
vá tudo!
Contou-os. Trezentos. Pelo preço médio que o judeu lhe
pagava por unidade, obteria, com aquele sacrifício derradeiro, os
duzentos mil réis necessários e mais uns bicos. Que vá!
Batista retesou-se d’alma, amordaçou o coração, meteu na
carroça os velhos amigos e, como vai para a guilhotina o
condenado, foi com eles para a rua do Catete.
O judeu examinou os volumes um por um, cheirou-os,
sopesou-os e, depois de longas manobras, engasgos, meias palavras
e coçadelas de barbicha, abriu oferta.
- Dou-lhe quarenta mil réis, moço, por ser para o senhor. E
lamba as unhas, hein?
O estudante, tomado de súbita onda de cólera homicida, não
lambeu as unhas: lambeu-lhe a vida. Estrangulou-o.
Havia eu lido esse formoso conto e ficara com os tipos
gravados em alto relevo na memória, tanta nitidez dera à pintura o
autor. O judeu mulato, sobretudo, passara a viver dentro em mim,
em lugar de honra na sala de Harpagão53.
Somos todos nós uns museus de tipos apanhados na rua ou
tirados de romances. Museus classificados com salas disto e
daquilo. A minha sala dos usurários encerrava com número de
shylockezinhos54 modernos, fisgados à porta de cartórios ou
diretamente nos antros onde costumam empoleirar-se como

53
Harpagão é a personagem principal da comédia de Molière L’avare. È o tipo do
avarento.
54
Diminutivo de Shylock, nome próprio de uma personagem da tragédia de Shakespeare
O judeu de Veneza. É outro tipo de avarento, implacável com os devedores.
harpias55 pacientes, à espera dos náufragos da vida. Ombro a ombro
conviviam eles com os patriarcas do clã56: mestre Harpagão, tio
Grandet57 e o João Antunes58 de Camilo Castelo Branco.
Lida a novela do Couto, entrou para a sala mais um, o judeu
mulato do Catete, tipo de tal vida que uma suspeita breve me
tomou:
- Esse diabo existe. Não pode ser ficção. Há nele traços que
não se inventam. E, se existe, hei de vê-lo, bem vivinho. E pus-me
a procurá-lo em certo dia de folga. Fui feliz. Logo adiante do
palácio das águias certa vitrina atraiu-me a atenção. Acerquei-me
dela, com cara de Colombo. Aqueles livros desbotados, aquelas
canetas... Tudo exato. Mas... aquele coelhinho?...
Sim, havia a mais, na sórdida vitrina, um coelhinho de lã,
menor que um punho fechado. Encardido, os olhos de louça já
bambos, as longas orelhas roídas – visivelmente brinquedo de
criança já muito brincado.
Aquele coelhinho! Uma criança existe de quem o usurário
comprou o coelhinho...
Meu Deus! Poderá haver em corpo humano almas assim?
Shakespeare, Balzac, que fraca imaginação a vossa! Criastes
Shylock, Grandet, mas a potência do vosso gênio não previu este
caso extremo. O judeu mulato reabilita os nossos heróis e atinge a
suprema expressão do sórdido. Furtou o coelhinho à criança...
Furtou-o com a gazua de um níquel... Privou a pobrezinha do seu
único brinquedo, que era o seu único amigo talvez.
Abre-se um parêntesis.
Aqui intervém a imaginação.

55
Monstros da mitologia, filhas de Netuno e da Terra, com rosto de mulher, corpo de
abutre, asas, garras e orelhas de urso. Caracterizavam-se pela ferocidade e voracidade.
56
Grupo de famílias em tribo, com um chefe, na Escócia e Irlanda.
57
Tipos de avarento no romance Eugénie Grandet do célebre romancista francês Honoré
de Balzac.
58
Esse tipo de avarento figura no romance Onde está a felicidade?
Bastou que meus olhos vissem na sórdida vitrina o coelhinho
de lã, para que a irrequieta Mab59 me viesse cabriolar na cachola.
E todo um drama infantil se me antolhou nitidamente. Era um
menino de poucos anos, filho de pais miseráveis. O homem bebia
e a mãe definhava nas unhas de pertinaz moléstia. Minto: da tísica.
Pertinaz moléstia é doença de rico... O clássico operário bêbado,
em suma, e a clássica mãe tuberculosa. É sempre assim nos
romances e é sempre assim na vida, essa impiedosa plagiária dos
romances do tipo clássico.
Reina a miséria na cafua úmida em que vivem, ele a delirar o
seu eterno delírio alcoólico, ela a tossir os pulmões cavernosos, e a
triste criança, sempre de olhos assustados, a criar-se um mundinho
de sonhos para refúgio da almazinha que teima em ser alma.
Só tem um amigo essa criança: o coelhinho de lã que a mãe
lhe deu em certo dia de doença grave, seu confidente de todas as
horas, seu irmãozinho mais novo. Conversavam o dia inteiro,
brincavam, contavam-se mutuamente lindas histórias e, à noite,
abraçadinhos, dormiam o sono dos anjos e dos coelhos.
Aquele coelhinho de lã!...
É preciso ser Dickens60 para compreender o papel dos
brinquedos únicos na vida das crianças miseráveis. O comum dos
homens não vê nisso coisa nenhuma. Triste coisa o comum dos
homens...
Um dia o pai desapareceu. Inutilmente a tísica o esperou até
altas horas e o esperou no dia seguinte e o esperou a semana inteira.
Desapareceu e está dito tudo. Na vida os miseráveis desaparecem
tal qual nos romances. Vida, romance; romance, vida: será tudo
um?

59
Rainha Mab é uma figura da fadaria inglesa. Representa a imaginação.
60
Célebre romancista inglês (1812 – 1870).
A tísica piorou e, certa manhã, não pode erguer-se da cama.
E a fome veio. E foi mister vender, hoje isto, amanhã aquilo, todos
os trapos e cacos de mansarda triste.
A mansarda! Que lindo efeito traz em romance esta palavra
lúgubre! A mansarda!...
Venderam tudo. Luizinho era o leva-e-traz. Levava o trapo, o
caco, e trazia os níqueis do pão. E assim até que as reservas se
esgotaram e a mansarda ficou nua com Job61.
- E agora?
A tísica lançou os olhos cansados pelas paredes nuas, pelos
cantos nus. Nada! Só viu o coelhinho. Mas era um crime sacrificar
o coelhinho de lã... Resistiu ainda algum tempo. Por fim, disse:
- Vai, meu filho, vai vender o coelhinho de lã...
A criança relutou, mas cedeu ao cabo de muitas lágrimas...
A fome impunha-lhe aquele sacrifício supremo: trocar seu
tesouro por um pão.
O que chorou essa manhã! Como apertava contra o peito o
amiguinho, sem ânimo de lhe dar conta da tragédia iminente!
Resolveu mentir:
- Sabes? disse ao coelho; vou pôr-te numa casa que tem uma
vitrina para a rua. Ficas lá sentadinho, a ver quem passa, os bondes,
os automóveis tão bonitos! E eu vou todos os dias espiar-te através
do vidro. Queres?
- Mas, por quê? Estou tão bem aqui...
Não era fácil iludi-lo; a fome, porém é capciosa e Luizinho
continuou a mentir:

61
Personagem da Bíblia, símbolo da pobreza extrema e resignada.
- É cá uma cousa que sei. Uma pândega! Por enquanto é
segredo. Ficas lá quietinho uns tempos e depois te trago de novo e
te conto a história.
O coelhinho de lã piscou para o menino, cavorteiramente62.
Gostava desses mistérios...
Luizinho levou-o ao belchior. Mostrou-o ao judeu e ofereceu-
lh’o. O aranho tomou o coelhinho entre os dedos rapinantes,
examinou-o, apalpou-o, cheirou-o e, abrindo a gaveta suja, tirou de
dentro o menor níquel.
- Toma!
Luizinho ressentiu-se. Já conhecia o valor do dinheiro e
achou aquilo pouco demais. Vendo, porém, pela cara de judeu, que
era inútil insistir, pegou no níquel, beijou o coelhinho e disparou, a
correr.
No dia seguinte reapareceu. Parou diante da vitrina e longo
tempo ficou a namorar o amigo, trocando com ele sinais de
inteligência. O coelhinho piscava-lhe com uma vontade de rir e ele
piscava para o coelhinho com uma vontade doída de chorar. E
assim todos os dias, a semana inteira.
- A semana inteira, senhor novelista?! Não estou
compreendendo nada. Vosmecê disse que o último recurso dos
famintos fora o coelhinho de lã, que trocaram por um pão. Ora,
comido o pão, e nada mais havendo para vender, manda a lógica
que mãe e filho tenham morrido de fome!
- Obrigado, senhor lógico! Vejo que leu Stuart Mill e Bain,
mas que nunca leu Dickens, nem Escrich, nem Montepin63. Devia
ser como dizes, se a vida fosse feita pelos lógicos. Mas Jehovah
não era lógico, era apenas romancista. Não morreram, nem mãe,

62
De cavorteiro ou caborteiro, velhaco, matreiro, potoqueiro, mentiroso.
63
Stuart Mill e Alexandre Bain, filósofos ingleses, autores de tratados de lógica. Escrich
e Montepin, romancistas franceses.
nem filho. E não morreram porque justamente o pai bêbado
reapareceu...
- Oh!
- Sim, meu Bain, reapareceu. E sabe que mais? Reapareceu
regenerado.
- Oh! Oh!
- ... e com dinheiro no bolso. Quer mais? E rico! Quer mais?
E milionário, com a sorte grande de Espanha no papo. Quer mais?
Quer mais? Nos romances há o epílogo e não sabe que o epílogo é
o esparadrapo que une os bordos da ferida? o dedo de Deus que
recompensa? o suspiro de alívio que nos reconcilia com a vida?
- Mas isso, afinal de contas, é vida ou romance?
- Grande tolo!... Isto é vida com a lição da arte. A arte corrige
a vida, dizendo-lhe: “Se não és assim, megera, devias sê-lo; se não
fizeste o bêbedo reaparecer no momento oportuno, carcaça, devias
tê-lo feito. A arte ensina à vida o seu dever”. Imagina tu, amigo
lógico, que quando Deus criou o mundo...
Fecha-se o parêntesis
Mas acordei! A rainha Mab fugiu-me do cérebro, a galope,
em sua carruagenzinha made by the joiner squirrel64 e entrei no
64
Frase de Shakespeare na sua tragédia Romeu e Julieta, onde vem descrita a rainha Mab.
Eis a descrição:
Mercutio – Oh! Já sei, a rainha Mab esteve com você. Ela é a fada aparadeira, e,
do tamaninho de uma ágata no fura-bolos de um alderman, vem, carreada por um bando
de átomos a pousar nos narizes dos que estão dormindo. Os raios das rodas são feitos com
longas pernas de aranhiço; a capota, com asas de gafanhoto; os varais com a mais fina
teia de aranha; as coalheiras com raios úmidos de luar; o cabo do chicote é um osso de
grilo e a correia uma tira de película. É bolieiro um mosquitinho de libré cinzenta, nem
metade de uma nígoa tirada do dedo ociso de uma rapariga. É uma noz vazia sua
carruagem fabricada pelo esquilo, marceneiro, ou pela velha broca, carpintaria imemorial
das fadas. Desse jeito ela galopa, noites e noites, pelos cérebros dos enamorados, e daí
seus sonhos de amor, pelos joelhos dos cortezãos e ei-los sonhando com salamaleques;
pelos lábios das damas e entram elas a sonhar com beijos – lábios que, não raro, a irada
Mab cobre de erupções por estar o hálito delas empestado por confeitos. Galopa às vezes
no nariz de um áulico e ele sonha que farisca um empregalhão; outras, vem ela com um
belchior. Lá estava no balcão o judeu mulato, com sua barbicha de
bode, os óculos de latão, o gorro sebento. Não morrera o aranho;
apesar de estrangulado na navela de Ribeiro Couto passava muito
bem de saúde, o infame.
Era ele mesmo! Naquele momento cheirava o lombo de um
livro que um novo estudante Batista lhe oferecera. Enquanto
negociavam, pus-me a espreitá-lo disfarçadamente. Exatinho!
Couto fotografara-o com objetiva Zeiss. Até a voz...
- Hum! hum! fungou, depois de lido o título, Oscar Wilde65...
Isso não se vende, já passou da moda. Tenho às carradas.
Dorian Gray... a pior coisa que ele escreveu...
- Mas, quanto oferece? indagou o estudante, desapontado e
aborrecido de tantas miragens.
- Por ser freguês, dou-lhe sete tostões. E lamba as unhas, que
hoje me pegou de veia!
O meu estudante Batista não fez como o do Ribeiro Couto.
Não lhe lambeu a vida. Lambeu-lhe os sete níqueis oferecidos
e saiu a pegar o bonde displicentemente.
- E o senhor, que deseja? disse-me o pirata, depois de
encafuar o livro na estante.
Eu não desejava coisa nenhuma, além de vê-lo, apalpá-lo,
cheirá-lo, talvez estrangulá-lo pela segunda vez. Não obstante fiz-
me de tolo.

rabo de porca dizimeira a fazer cócegas nas ventas de um prebendário adormecido, que
sonha então com outra prebenda. Sucede também rodar pelo pescoço de um soldado e ei-
lo a sonhar com cortes de guelas estrangeiras, brechas, emboscadas, lâminas de Toledo,
com saúdes de cinco toesas de altura. Depois ela rufa nos ouvidos dele; ele se alarma,
acorda e resmunga espantado uma jura ou duas e torna a dormir. Essa é a mesma Mab
que trança, à noite, as crinas dos cavalos e as retorce em cachos nojentos, os quais, uma
vez soltos, pressagiam muitas desgraças.
65
Famoso escritor inglês uma de cujas mais notáveis obras é The Picture of Dorian Gray,
novela de grande intensidade trágica.
- Ando à procura de um livro. Um livro de Wilde. Tem aí
alguma coisa deste escritor?
A fisionomia do estrangulado iluminou-se.
- Tenho a melhor coisa que Wilde escreveu: O retrato de
Dorian Gray, é a obra-prima de Oscar Wilde.
Meus dedos se crisparam. Que prazer estrangular aquela
harpia! Contive-me, porém.
- E aquele coelhinho? perguntei-lhe, quanto?
- Que coelhinho? exclamou a aranha, mudando de cara.
- Um que está na vitrina.
- Ah! Sim... Aquele coelhinho não vendo.
- Por que o expõe, então?
- Expu-lo ao sol. Mora aqui na minha mesa, mas como a casa
é úmida, ponho-o às vezes lá para evitar o bolor.
Diabo! O homem principiava a desnortear-me. Tinha em casa
um objeto que não vendia. Era lá possível que um judeu d’aqueles
não vendesse até a alma?
Insisti:
- Dou-lhe cinco mil réis pelo coelhinho!
- Já lhe disse que não é de venda. Cinco mil réis!... Nem cinco
contos, sabe?
Revoltei-me. Veio-me à imaginação toda a tragédia do
Luizinho e tive ímpetos de insultá-lo. Contive-me e disse apenas:
- No entanto, furtou o a uma pobre criança miserável...
O meu Shylock abriu a mais expressiva cara de espanto que
jamais topei na vida. Depois encarou-me a fito e seus olhos
lacrimejaram. Sentou-se, como aniquilado de súbita dor e explicou-
me em voz entrecortada:
- Não sou casado, não tenho filhos, não tenho ninguém no
mundo. Mas tive uma criança. Enjeitaram-me aqui à minha porta e
recolhi-a. Criei-a. Foi durante sete anos a minha única alegria. O
Antoninho... Um dia veio a gripe e levou-m’o para o céu. Seu
último brinquedo foi esse coelhinho de lã. Conservo-o aqui na
minha mesa como joia preciosa, pois ele me fala do Antoninho
melhor do que um livro aberto. Como quer que lh’o venda? Não há
no mundo dinheiro que para mim valha esse coelhinho...
Foi até à vitrina e recolheu o brinquedo. Pô-lo sobre a mesa,
ao lado do tinteiro. E, depois de uma pausa, exclamou, olhando-me
com um sorriso que me pareceu divino.
- Tinha um nome. Antoninho só dizia o Labi...
- ??
- Sim, Rabi... Quer dizer rabicó, sem cauda...
Saí da casa do velho completamente desorientado. Fui ao
telégrafo e expedi ao autor d’O crime do Estudante Baptista o
seguinte despacho66: “Couto, somos duas cavaldaguras!”.

Dissertações
I
Nossos parentes pobres
(Afrânio Peixoto – Parábolas, pág. 97)
Quem buscasse na velha história da humanidade as palavras
que os homens chamam uns aos outros, quando possessos de
desespero ou de cólera, revelaria, aos de hoje que tais sentimentos
sempre tiveram uma voz e que o insulto humano, desde esse tempo
até agora, não variou. Sempre foram os animais os nossos motivos
de comparação ultrajante.

66
A palavra despacho, em vez de telegrama, é considerada, com razão, galicismo inútil.
- Cão! – é o insulto que Aquiles dirige a Heitor, agonizante a
seus pés; “coração de veado”, “olho de cachorro” são outros
desaforos de desprezo e de raiva que o herói lançara a Agamenon,
rei dos homens, quando lhe roubou Briseida, por cujo ciúme se
passa Ilíada, como pela outra, a divina Helena, se peleja a guerra
de Troia. Na Odisséia, diante de Telêmaco, esta se acusa de cadela.
Não era mais polida a gente do Olimpo. Atenê é para Ares
mosca de cão, desprezo sobre desprezo; mosca de cão é Afrodite
para Hera a quem Ártemis chama cadela rabugenta. Pallas, o
divino pensamento de Zeus, é ainda, nesses sentimentos, violenta
e audaciosa cadela (Ilíada, Rapsódia VIII). Não admirar: são
homens os deuses.
Eram cães os idólatras para os hebreus. Tu me tomas por um
cão? diz Golias a Davi. Abner é tratado com o maior desdém, como
cabeça de cachorro. Cão é o que pratica o pecado nefando (Deut.
XXIII, 18), também o impudico no Apocalipse XXII, 15. Tal como
o anel de ouro em focinho de porco é a formosura da mulher sem
juízo, diz uma parábola de Salomão (Prov. XI, 22). S. Pedro
compara os falsos doutores, que ensinam o erro depois de
conhecida a verdade, a porca lavada que tornou ao lodaçal (II Pet.
II, 22). O próprio Jesus proíbe que se deem coisas santas aos cães,
isto é, aos homens, impuros, o que seria como deitar pérolas aos
porcos (Math. VII, 6). A preferência pelos cães é porque são bichos
mais próximos na domesticidade67.
Tem os modernos mais cabedal de injúrias; a descompostura
porém não varia; serão sempre, os que desejamos agredir: burros,
camelos, víboras, onças, raposas, galinhas, morcegos... e tantos
mais, todos que, além de outros préstimos, com que os amesquinha,
servem ao homem para se vingar do seu semelhante. É o primeiro
que lhe acode... desabafa-se na zoologia!

67
Embora defendida pelo dr. Ruy Barbosa e usada por escritores modernos, não se deve
considerar vernácula a construção preferência por. O correto no texto seria preferência
aos cães.
Desprezo e desapreço é o mesmo sentido; quando se decai de
um, na estima, chega-se ao outro no ultraje e há sempre um bicho
perto com que insultar o nosso irmão, sem sair da família.
Nossos parentes? Sim, diz a ciência. Pelo trato que lhe damos,
pela vergonha que nos inspiram, devem ser, na criação, os nossos
parentes pobres.

II
É demais
(Afrânio Peixoto – Parábolas, 26)
Conta Heródoto (Eut. 68) que os crocodilos do Egito deixam
entrar-lhes pelas fauces a tenros passarinhos, os tróquilos,
impunemente, pelo bem que deles recebem com o se nutrirem de
bichos, aderentes às suas mucosas da boca. Confirmam naturalistas
contemporâneos o velho historiador e põem nome legítimo de
Cusorius egyptius ao amigo e comensal do crocodilo.
No interior do Brasil os anus e caracarás fazem o mesmo
ofício ao gado limpando-lhe a pele de vermes e carrapatos. Dessa
intimidade de mútuo auxílio derivam respeito e gratidão.
Os homens, entretanto, matam a tiro, a pedradas, pegam a
visgo e alçapão, enxotam a espantalho os passarinhos que lhe
comem nas searas os insetos daninhos. Por isso os insetos
proliferam e destroem as searas. Ingratos, vá; é da natureza deles;
mas estúpidos, como nem os bois, nem os crocodilos, é demais.

III
O teatro
(Coelho Netto – Às quintas, pág. 31)
Teatro, na acepção literal do termo, quer dizer “lugar de onde
se olha”. Assim os gregos criaram um vocábulo eminente para
designar a construção dionisíaca, adossada à colina da Acrópole,
em cujo cimo o Partenon culminava, servindo de pedestal
grandiosos a Atena augusta, armada e pacífica.
Esse lugar, de onde o povo clássico dominava superiormente
o espaço e o tempo, era um sítio sagrado, como Elêusis ou Delfos.
Evocados pelo prestígio dos poetas, desnublando-se das
tradições, ali ressurgiam os deuses e os heróis legendários; os fastos
gloriosos da raça repontavam, como na terra renascem as sementes
das árvores caídas; as crônicas, destacadas das logografias,
tomavam vulto; os homens de outrora levantavam-se da sombra e,
diante da tímele68, recapitulavam os feitos que os haviam tornado
venerandos.
De tal modo a Pátria, ligando-se ao passado pela Poesia,
prosseguia unida para o Futuro. O exemplo dos antigos servia de
estímulo aos novos e o ator que interpretava a obra de um trágico
ou que vibrava a sátira de um poeta cômico, mantinha, como pedia
Aristófanes, a unidade do sentimento grego, ou apontava ao povo
o erros que lhe comprometiam a virtude, que lhe dessoravam o
vigor, que o levavam à moleza, preparando, pela bastardia do
indivíduo, a degradação da nacionalidade.
Assim o teatro foi para os gregos verdadeira escola de energia
cívica.
Toda a cultura de uma nação reflete-se no seu teatro, que não
é só “o lugar de onde se olha”, como é também o mostruário onde
se vê.
É como um litoral de onde quem nele chega abrange, em
conjunto, todo o progresso de uma raça.
No teatro apura-se o vernáculo mantendo-se-lhe a legítima
prosódia, escoimando-se a frase de todos os vícios que a deturpem,
epregando0se os termos próprios e prestigiando-se os modismos do

68
Tímele é o grego thyméle, altar. Aqui, significa o altar de Dionísio armado no meio da
orquestra grega (hoje nossa platéia) em frente ao proscênio.
povo, de tanta força expressiva em certas locuções, como provou
Victor Hugo na sua famosa defesa do dizer plebeu.
No teatro comenta-se a história, manifesta-se a vida da
coletividade, analisam-se os costumes, exibem-se caracteres, e a
poesia original do povo, sempre sincera, enflora, aqui, ali, as cenas
com as suas imagens.
O livro é mais profundo, de penetração mais difícil; para
senti-lo é necessário conhecer intimamente o idioma.
O teatro expõe-se logo e, das suas escaleiras, quem quer que
por elas suba avista o bastante para julgar o adiantamento de um
país, ver como nele se vive e, de um lance d’olhos, apreende não
só o tumulto da rua, como devassa a intimidade doméstica e nela
familiariza-se com as almas, e observa, desde o trajo, as maneiras
e as atitudes, até as manifestações mais delicadas do sentimento.
Através das maiores catástrofes o teatro sempre esteve à tona,
até quando o livro, desaparecido em subterrâneos ou acorrentado
nos mosteiros, escondia-se dos bárbaros.

IV
As estrelas
Ao vir da noite, pelo céu remoto
Elas ficam sozinhas, a cismar;
E eu, vendo-as, por ser delas tão devoto,
Rezo dentro da luz crepuscular.

Então, no meu fervor de crente, noto,


No brilho delas, algo singular;
Há, naquelas pupilas, o esto ignoto,
O estranho anseio de quem quer falar.

Astros, falai! Contente vos escuto,


Eu, que tenho o condão de vos ouvir,
Entendedor do Sempre e do Absoluto.

Elevai-me! Tenho a alma de faquir!


Oh! Vertei, no meu sonho irresoluto,
A vertigem perpétua de subir.

José Oiticica
(dos Sonetos, 2ª série, pág. 28)

Fábulas69
I
O pau ferro e o caniço
(José Oiticica)
“Você parece mais um cabelo plantado!
Disse o pau-ferro ao caniço.
Que talo de borracha, ou arame movediço,
O força a cabecear assim desconjuntado?
Deus meu! Você nem serve de poleiro
A um filhote de rola ou de coleiro...

69
A fábula participa dos três gêneros de estilo, pois é uma narração com descrição e
dissertação.
Meu cerne, rompedor do aço maciço,
São fibras de titão e tendões de gigante!
Mire esta fronde que se arqueia ondeante,
Como um verde turbante,
Ou o cocar de um cacique da floresta!
Que faz você quando o tufão braveja,
Assim molengo, mais medroso que barata?
Não luta, não resiste, não protesta!
Eu defendo, sozinho, a honra sertaneja
E os direitos da mata.
Você só presta
P’ra flexa de foguete ou apagador de igreja”.
Respondeu-lhe o caniço pachorrento:
“Cada qual como Deus o fez, diz o ditado.
Você resiste ao vento?
Está bem. Porque pode. Eu não posso e me curvo.
Mas... quem muito se expõe cedo ou tarde é baleado”.
Nisso o trovão roncou; fez-se o céu turvo;
Urrou nos chapadões a cangussú viageira;
Despegou-se dos céus o furacão sanhudo,
Silvou, zuniu, levantou poeira,
Torceu galhos, abalou tudo,
Assustou nos grotões as trocazes ariscas!
O pau-ferro se opôs, o caniço vergou...
Chisparam no ar novas faíscas,
Novo estrondo se ouviu...
Tremeu a serra, o vento redobrou...
E a um rojão turbinoso de rajada
O pau-ferro estalou, rodou no ar e caiu.
A fibra dos titães e os tendões dos gigantes
Se é mais rijo o pagão, partem como barbantes...
Não valem nada.

II
O macaco valentão
(José Oiticica)
Um macaco, valente como as armas,
Jogador de capoeira,
Famoso na baiana e na rasteira,
Provocador de turras e de alarmas
No mercado e na feira,
Num dia de Ano Bom, depois de entrar num gole,
Meteu-se a desafiar a Deus e a todo o mundo:
“Olhe o durão que cresça!
Berrava o quera. O trufo é pau, cambada mole,
Que eu sou primeiro nem segundo;
Senão, quem for mais onça que apareça.
Vamos ver lá, ó seus aristocratas,
Quem diverte melhor no coco e na bicuda.”
Tremiam de pavor os cidadãos de patas;
Era um Deus nos acuda.
Porquanto o ferrabaz ia falando
E provocando a multidão mofina:
Fisgadas num, fosquinhas noutro, um peteleco,
Um beliscão, um puxavante... O pobre bando
Implorava em segredo a proteção divina
Contra a farromba audaz do badameco.
Ora, ao passar junto do burro,
O bonzão abanou-lhe os dedos no focinho.
Pra que! O burro que é pacato, mas camurro,
Danou-se. Deu-lhe um coice. Ao recuar, o capoeira
Virou por cima de um barril de vinho.
Toda a arraia animal, vendo aquela faisqueira.
Tomou o brio e animou-se a malhar no bulhento.
Fechou-se o tempo. O bode assentou-lhe a chifreira;
O macaco saltou, mas caiu numa bueira.
Safou-se e, num momento,
Fez, com um rabo de arraia, ir ao chão o cavalo.
O novilho investiu para marrá-lo,
Ele tapeou, num átimo, o pomboca;
Porém, ao desfechar-lhe o quengo,
Escorregou num talo da mandioca.
Pulou para o grampear, mas qual! nisso o carneiro,
Solta a testa por trás e um quarto lhe desloca!
E adeus macaco! Até o animal mais molengo,
A preguiça, correndo ao lugar do salseiro,
Das costas do infeliz fez pilão e pandeiro.
E o coitado, apanhando, assim dizia:
“Canalhas! Foi o azar! não faço caso
De vocês! foi porque eu escorreguei, senão
Mostrava pra que presto!” Uma cotia
Respondeu-lhe de cara: “Isso é lição;
Isso acontece a quem não faz conta do acaso.
É sempre o acaso quem, mais dia, menos dia,
Tira a prosa de todo valentão”70.

70
Leitura – Valor dos prefixos e sufixos – “Consequentemente, cada raiz da língua deve
ser modificabile multimodis modificationibus, para poder prestar-se, como túnica
molhada, a todas as cambiantes da ideia e, daí, às sutilezas do pensamento. Ora, é
precisamente com os prefixos e sufixos que atingiremos tal escopo; eles são as
modulações de cada ideia fundamental no teclado da língua. Eis porque os Gregos e os
Romanos modularam e matizaram com prefixos a significação de quase todos os verbos
e de muitos substantivos. Assim, o verbo ponere modifica-se em imponere, deponere,
disponere, exponere, componere, adponere, subporene, superponere, reponere,
praeponere, proponere, interponere, transponere etc. O mesmo em alemão: o substantivo
Sicht, por exemplo, modifica-se em Aussicht, Einsicht, Duchsicht, Nachsicht, Vorsicht,
Hinsicht, Absicht etc. O verbo suchen torna-se aufsuchen, aussuchen, untersuchen,
besuchen, ersuchen, versuchen, heimsuchen, duchsuchen, nachsuchcn etc. Tal o papel
dos prefixos. Se o suprimirmos por brevidade e se dissermos, sem modificações, somente
ponere, ou Sicht, ou suchen, todas as determinações aproximativas duma ideia
fundamental muito remota não se indicam, e o sentido que o descubram Deus e o leitor.
Dessarte se empobrece a língua, manqueja e enrudece. Pois é esse justamente o processo
dos perspicazes corretores da língua de “hoje em dia”. Lerdos e ignorantes pensam com
certeza que os antepassados, tão sensato, ajuntaram tais prefixos inutilmente, por tolice
pura, e creem, por sua vez, rasgo de gênio aspá-los precipitadamente onde quer que se
tope algum. Ao contrário disso, não existe na língua um só prefixo insignificativo, um
que não sirva para repassar a ideia fundamental por todas as suas modulações,
possibilitando assim determinação, clareza e firmeza de expressão, traduzíveis em relevo
e energia desta. A supressão dos prefixos, ao revés, reduz a uma só muitas palavras, o que
desopulenta a língua. Porém há mais. Não somente palavras se esperdiçam; perdem-se a
demais ideias. Com efeito, minguam depois os meios de fixá-las e temo-nos de contentar,
falando e pensando, com o mais ou menos que do estilo haure o vigor e do pensamento a
nitidez”. (Schopenhauer – Ecrivains et style – pág. 64 e 65).
Cartas de Olavo Bilac71
Milão, 9 de março 1909.
Meu caro Netto.
O livreiro Floury, de Paris, bd. Des Capucines, 1, já deve ter
remetido para o Rio, com o teu endereço, porte pago, a edição de
Balzac. É a edição Calman Levy, em 25 volumes; quando saí de
Paris, há vinte dias, estava sendo acabada a encadernação.
Há outras edições mais ricas; esta, porém, é a integral, a única
completa, contendo, além de todos os romances, o teatro, a
correspondência, as polêmicas, os panfletos, e a história do labor
literário do monstro. Guardarás esses volumes como uma
lembrança da nossa velha e boa amizade. Depois de uma semana
em Nice, estou errando pela Itália, onde vim encontrar inverno
mais duro do que o de França. Anteontem atravessei o Apenino
toscano entre altíssimas paredes de neve. O espetáculo era
maravilhoso à noite; o luar animava prodigiosamente aquele
mundo branco, e passei a noite a imaginar cousas fantásticas –
avalanches, nixes, kobolds72, deuses e deusas de carnes fúlgidas,
poemas de Wagner, - o diabo! a alucinação só se desfez ao romper
do dia, graças à intervenção enérgica de um grog quente no wagon-
bar. O que é espantoso é que o meu reumatismo, tão cheio de
“partes” quando o fustigava o frio (?) do Rio de Janeiro, agora nem
dá sinal de vida: queria o castigo o ladrão! Para a semana, devo
estar de novo em Paris; escreve-me para lá (Consulado, rue
Cambon, 51) dizendo-me se os livros chegaram. Fortes abraços do
BILAC.
Recomendo-me a Mme. Netto.

71
As cartas aqui publicadas em Bilac e Euclides da Cunha devo-as à nímia gentileza do
nosso grande romancista Coelho Netto, que pronto acudiu ao meu desejo de inserir neste
Manual modelos de epistolografia, brasileiros, tão raros em livros. Aqui registro os meus
sinceros agradecimentos ao mestre generoso.
72
Nixes (pronuncie nicses) e kobolds são gênios da mitologia alemã. Os primeiros vivem
na água, os segundos protegem os minerais preciosos na terra.
Rio – 12 de dezembro 1901
Mano querido, um abraço. Deus não me abandonou, apesar
de meus muitos pecados, e, graças à sua bondade, tenho olhos ainda
para ver as mulheres bonitas que há por aqui. Calcula o que deve
ser um mês de escuridão e de desespero, num quarto escuro, com
esta ideia fixa dentro do cérebro: “que será de mim se fico cego?!”.
Ainda não estou bom; mas, numa doença como esta, as mais
escassas melhores valem uma ressurreição. A tua carta, como todas
as que me vem de ti, foi um bálsamo. Agradece por mim a Mme.
Netto o interesse generoso que lhe mereceu a minha infelicidade:
Deus a abençoe. Vês como estou crente? é a segunda vez que
escrevo nesta página o nome de Deus (agora é a terceira): o medo
é o pai da crença. Beijo-te as mãos pela boa nova que me dás de
que levarás à pia, na matriz da princesa de Oeste, o teu terceiro
herdeiro. Mas, ver-nos-emos antes disso; conto seguir para Caldas
na segunda quinzena de fevereiro e fiarei um par de dias sob o teu
teto; é mesmo possível que jante contigo no dia do teu aniversário,
ó gato querido73! Ainda uma vez, não te queixes da sorte que te
acorrentou a Campinas; eu, com toda a minha feroz e intransigente
carioquice, tenho inveja de ti, tão melancólica é atualmente a vida
que se passa aqui: tão melancólica e tão difícil! Parece que, desta
vez, é a miséria...
Fui ao Masson, e dei-lhe o teu recado. Tiveste resposta?
Esta literatura anda sórdida.
V... passou a pontificar no Correio da Manhã, e lá vai
moendo o seu realejo, como o diabo é servido. Por falar em
Correio: disse-me o Ed. Bittencourt, com um grande gáudio, que
lhe prometeste um romance; mas até agora não vi cumprida a
promessa. Que há?
Mandame as tuas ordens, e recebe o meu coração. Saudades
e saudações a Mme. Netto, beijos aos pequenos, e um abraço à

73
Gato era o apelido de Coelho Netto na roda boêmia do Rio.
veneranda Bá que, ao que me consta, está para casar com um
fazendeiro rico e ciumento.
Beijo-te.
Todo teu
OLAVO74.

Rio, 1 de junho de 1902


Netto

74
Leitura – Importância do latim – “Enfim o que refiro acima permite facilmente ver que
a imitação do estilo dos antigos em suas línguas infinitamente superiores às nossas quanto
à perfeição gramatical, é o melhor meio de prepara a expressão azada e acabada dos
pensamentos na língua materna. Para tornar-se alguém grande escritor isso é mesmo
indispensável; tão certo como é necessário ao escultor e ao pintor que se inicia, formar-
se pela imitação dos modelos da antiguidade, antes de se aventurarem à composição. Pelo
só fato de escrevermos em latim aprendemos a tratar a dicção como obra de arte cuja
matéria é a língua; esta deve, pois, ser manejada com o maior cuidado e a máxima
precaução. Consequentemente prestamos atenção mais apurada à significação e valor dos
termos, do seu agrupamento e das formas gramaticais; aprendemos a pesá-las exatamente
e a servir-nos assim do precioso material destinado à expressão e conservação de
pensamentos que o merecem; aprendemos a respeitar a língua em que escrevemos, de
modo que a não tratamos caprichosamente, para reforma-la. Sem essa escola preparatória,
o estilo facilmente degenera em simples palavreado. O homem que não sabe latim
semelha alguém num país lindo, por tempo nebuloso; estreita-se-lhe o horizonte
excessivamente; só vê claro o que o cerca; passos adiante, perde-se no vago. Ao contrário,
o horizonte latinista se dilata longe, através dos séculos modernos, da idade média, da
antiguidade. O grego e o sânscrito alargam o horizonte ainda mais. O ignorante do latim
faz parte do povo seja embora grande prático de máquina elétrica ou tenha em seu cadinho
o radical do ácido fluorídrico. Em vossos escritores incipientes do latim tereis em breve
nada mais que moços perruqueiros lorotões. Já vão no bom caminho com seus galicismos
e torneios pretensamente leves”. (Schopenhauer, Écrivains et style, pág. 93).
“Se deixarmos de estudar um dia as línguas antigas, conforme nos ameaçam,
teremos uma literatura nova consistente numa sarrabulhada bárbara, chata e indigna,
como jamais se viu; tanto mais quanto a língua alemã, que possui aliás algumas perfeições
das línguas antigas, é dilapidada e esquartejada voluntária e metodicamente pelos infames
garatujeiros de “hoje em dia”, de modo que, empobrecida e estropeada, vai descendo
pouco a pouco ao nível de miserável algaravia”. Idem, ibidem, pág. 120).
Schopenhauer previu admiravelmente o pavoroso advento de futuristas, dadaístas,
livre-metristas e mais hunos literários, cultores desregrados do mau gosto plebeu e
mascarados de um carnaval felizmente passageiro. O estudo das letras clássicas na fonte
grega e latina é sobretudo escola de bom gosto, requinte, aristocracia mental e repouso
estético, sem o qual a arte é fogo de vista e arlequinada grotesca.
Com todos os diabos! Agora, o intrigado sou eu... Que
demônio é isto? Escreveste-me uma carta alarmada indagando a
causa do meu silêncio. Em resposta, mando-te quatro páginas
cheias (cousa espantosa em quem, como eu, odeia a epistolografia!)
dizendo-te que a causa do meu silêncio é a minha preguiça; com
essa carta mando-te meu livro; e tu, enlapado nessa medonha e
soturna cidade, trancas-te a sete chaves num silêncio amuado! Que
quer dizer isso? Que tens tu contra mim? Desembucha, explica-te,
esvazia o saco da alma, põe para fora as razões da tua zanga!
Quererá isto dizer que já te naturalizaste campineiro, de corpo e
alma, e que te dedicas ao amor do café e ao ódio da sociabilidade?
Fala, escreve, move-te, sacode-te, vive!
Recomendo-me a Mme. Netto, e beioj aos pequenos.
Todo teu, apesar de esquecido
OLAVO.

31, janeiro, 1902


Meu querido. Os teus volumes já seguiram para Campinas há
mais de seis dias. Encarreguei de tudo a Empresa de Transportes,
que deve ter desempenhado com acerto a incumbência. Mas fui
obrigado a ficar em casa, doente: e, por isso, somente hoje pude
haver dos homens o “conhecimento”, que aqui remeto. Isto vai de
mal a pior: estou agora atacado da garganta, que se me transformou
num túnel de fogo. Um pavor!
Conto partir para S. Paulo no dia 17. Isso quer dizer que no
dia 21 estarei em Campinas.
Estará Mademoiselle disposta a deixar-se levar à pia? Faço
questão de levar daqui o enxoval de minha afilhada. Peço a Mme.
Netto que me mande dizer com urgência “qual a cor que prefere”.
Já fiz encomenda da cousa, mas como entendo pouco desses casos,
sempre é bom que me venha daí alguma informação providencial.
Haverá alguma recomendação especial sobre dimensões do
vestido, sapato etc.? Escreva-me já sobre isto.
Acho melhor que façamos o batizado já. Depois de fevereiro,
quando poderei eu transportar os meus ossos a Campinas?
Recomendo-me à estima de Mme. Netto. Beijo a pequenada.
E abraço-te com todo o coração.
Todo teu.
OLAVO
P.S. Não te mando o dinheiro do Correio, porque, no dia em
que o fui procurar, disseram-me que já o tinham remetido para aí.
O.

Rio 22-4-904
Coelho Netto.
Tens razão... Li a tua carta e, para logo, rompendo com um
propósito que me parecia inflexível, procurei o Lauro Muller e pedi
um emprego. Aquele velho companheiro, com enorme surpresa
minha, tão destemperados andam os homens e os tempos! recebeu-
me admiravelmente. Não era o ministro, era o antigo companheiro
de ideal, o sócio daqueles estupendos sonhos de mocidade (ó
República!) que eu não sei mais onde existem... Mas, antepõe-se
um obstáculo grave: a legião inumerável de engenheiros
desempregados que entope as escadas das secretarias. Não
imaginas o que eu vi. Vê se compões, de momento, com o melhor
da tua fantasia, o quadro de uma espécie de Encilhamento da
Miséria. Há, em cada caracol das escadas que levam aos gabinetes
dos ministros, uma espiras de Dante. Considera agora isto: eu entrei
por um deles; ninguém me conhecia, esquecera-me o preliminar de
um cartão, de um empenho; de sorte que, a breve trecho, no apertão
dos candidatos afoitos, capazes de pagar com dois anos de vida
cada degrau da subida, me vi frechando de olhares rancorosos.
Estaquei, arfando, espetado em pleno peito por um cotovelo, rígido
e duro, de concorrente indomável: não ouvi o trágico ranger de
dentes; ouvi grunhidos. Quis voltar; impossível; não havia romper-
se a falange que se unia em baixo, inteiriça, ombros colados como
os dos suíços medievos na hora da batalha. Tirei desesperadamente
o lenço e amaldiçoei-te, ó homem, que, a cem léguas de distância,
com um movimento de pena e um bater de coração me atiras
naquela cascalhagem de almas, de almas, de músculos e de
nervos!... Mas, naquele instante, alvorou um rosto amigo e
desconhecido e, logo após, sacudia por um gesto que roçou um
impertinente cavaignac vizinho, como a asa de um pássaro num
capão de mato, uma pergunta: “É o sr.?”.
O cavaignac contemplou-me curioso; um sujeito gordo e
tressuante, por sua vez, recuou e, na face cheia, espalmou-se-lhe
um sorriso; um outro, também gordo (que mais podem aspirar estes
homens?75 noto que, na sua maioria, os candidatos estão repletos
de carnes) fez o milagre de afastar-se um pouco... e, num momento,
não sei como isto foi, estava eu lá em cima.
E, lá em cima, empolgou-me a vaidade, porque, afinal, quem
me levara até lá, com tanta felicidade, fora o Euclides da Cunha!
Estas tolices escandalosas só se dizem aos irmãos.
Em resumo, volto amanhã para Guarujá, repleto de
esperanças; e penso quem dentro de 2 ou 3 meses, estarei restituído
à engenharia. Tenho a boa vontade incondicional dos dois Lauros-
Muller e Sodré-além de muitos outros. Mas, como não poderei ficar
inativo (repito: a minha demissão foi uma cartada no vácuo; preciso
trabalhar, já e já) aceitei o convite que me fez o Lage para escrever
n’O País. Escreverei também n’O Estado. Mas tudo isso é
provisório.
Recomenda-me aos teus e aos bons amigos de Campinas.
Abraço-te.

75
Duas pequenas incorreções. A frase devia ser: a que mais podem aspirar esses homens?
Euclides da Cunha.

Lorena 10-9-90376.
Coelho Netto
O vento sul que aí está destroncando as roseiras de Campinas
sacode neste momento as palmeiras imperiais da minha
melancólica Lorena... é uma lufada apenas, um fragmento do
sudoeste bravo que a estas horas se estira e tumultua precipitado
nas planuras dos pampas e dos chacos! O diabo é que ele também
me bate nos nervos e que estou a vibrar, a vibrar à toa, como
aquelas harpas da gongórica peroração do Monte Alverne. Isto não
me impede, porém, de te responder logo – ainda que o faça
impelido por um interesse. De fato, sendo a eleição da Academia
no dia 15 (disse-me isto Machado de Assis quando estive no Rio)
temo que alguns imortais não votem distraídos pelos
acontecimentos; e como não me ficaria bem lembrar-lhes tal cousa,
peço-te que escrevas a respeito aos que te forem mais íntimos.
Estou longe, a braços com esta profissão e a minha candidatura
pode ainda soçobrar. Mando-te a lista dos votos com que conto com
absoluta segurança: o teu e os do Lúcio, Salvador, Araripe,
Machado, Rio Branco, Aff. Celso, Ing. de Souza, Silva Ramos,

76
Leitura – Pensamentos de La Bruyère – “Montões de epítetos, mau louvor, são os fatos
que elogiam e o jeito no contá-los. – Todo o espírito de um autor consiste em definir bem
e bem pintar. Moisés, Homero, Platão, Virgílio, Horácio não pairam acima dos outros
escritores senão por suas expressões e imagens. Cumpre exprimir o verdadeiro para
escrever forte, natural e delicadamente. – Dever-se-ia ter feito no estilo o que se fez na
arquitetura: refugou-se inteiramente a arte gótica, introduzida pela barbaria nos palácios
e nos templos; reviveu-se o dórico, o jônio, o coríntio; o que se não via fora das ruínas da
antiga Roma e da antiga Grécia, modernizado se ostenta em nossos pórticos e peristilos.
Não lograríamos igualmente, escrevendo, atingir a perfeição e, se possível, ultrapassar os
antigos, a não ser imitando-os. Quantos séculos escoados antes que os homens, nas
ciências ou nas artes, tenham revertido ao gosto dos antigos e retomado enfim o simples
e o natural! Alimentamo-nos dos antigos e dos modernos, hábeis; esprememo-los, tiramos
deles o possível, deles enchemos nossas obras e quando, enfim, somos autor e supomos
andar sós, erguemo-nos contra eles, maltratamo-los, semelhantes a meninos, sãos e fortes
com o bom leite que mamaram, e que batem na alma. – O espírito medíocre pensa escrever
divinamente; o são espírito julga escrever razoavelmente”.
Arthur, Veríssimo, J. Ribeiro, Garcia, Filinto, Raimundo, Murat e
Arinos (se tomar posse). Já vês que há, desgraçadamente, nesta
carta, um móvel egoísta. Contingência humana...
Adeus, até breve. Recomenda-nos a todos os teus.
Abraço-te fraternalmente.
Euclides da Cunha.

Manaus – 10 – 3 – 905.
Coelho Netto.
Quando fui hoje ao Correio para assistir á abertura da mala
do Gonçalves Dias levava a preocupação absorvente de encontrar
cartas de casa, porque vai para dois meses que não as recebo. Nem
uma!...
Mas (temperamento singular o meu, feito para todas as dores
e para todas as alegrias!) recebi toda garrida, embora vestida de
preto77, a tua carta gentilíssima. E foi como uma janela que se
abrisse de repente no quarto de um doente...78

77
Coelho Netto estava de luto por morte de sua progenitora.
78
Leitura -Da simplicidade – “Observamos que todo verdadeiro pensador se esforça por
exprimir suas ideias do modo mais puro, claro, certo e breve possível. É por isso que a
simplicidade sempre foi atributo, não somente da verdade, como do próprio gênio. Do
pensamento recebe o estilo sua beleza, ao passo que nesses pretensos pensadores é o estilo
que aformoseia os pensamentos. O estilo, em suma, não é mais que a silhueta do
pensamento. Escrever obscuramente ou mal é pensar lerda e confusamente. Daí a primeira
regra de um bom estilo, que basta por si mesma: é que se tenha alguma cousa que dizer.
Com isso, vai-se longe” (Schopenhauer – Écrivains et style, trad. Dietrich, pág. 50).
“Não achais vós serem Virgílio e Homero agradabilíssimos autores? suporeis que
os há mais deliciosos? Pois não achareis neles isso a que chamamos galas do espírito;
neles tudo é simples, a natureza em tudo, em tudo a arte se esconde cuidadosamente. Não
achareis neles uma só palavra que pareça posta para realçar guapices de poeta. Toda a sua
glória prima em não mostrarem-se para que vos ocupeis das cousas que vos pintam, tal
como o pintor que timbra em vos abrir aos olhos florestas, montes, rios, longes, casas,
homens, suas aventuras, suas ações, suas paixões várias, sem que possais notar as
pinceladas. Grosseira e desprezível a arte se aparece o artista. Platão, que havia
examinado tudo isso muito melhor que a maioria dos oradores, sustenta que, escrevendo,
devemos ocultar-nos, fazer-nos esquecer e apresentar apenas as cousas e as pessoas que
Obrigado, meu esplêndido companheiro de armas. Jamais
avaliarás os resultados de tua verve tumultuária neste meu tédio
lúgubre de Manaus.
Manaus! – há uma onomatopeia complicada e sinistra nesta
palavra – feita do toar melancólico dos borés e da tristeza incurável
do Bárbaro. Não te direi os dias que aqui passo, a aguardar o meu
deserto, o meu deserto bravio e salvador onde pretendo entrar com
os arremessos britânicos de Livingstone e a desesperança italiana
de um Lara, em busca de um capítulo novo ao romance mal
arranhado desta minha vida... E eu já devia estar dominando as
cabeceiras do rio misterioso, exausto nos primeiros boleios dos
Andes ondulados. Mas, que queres? Maniataram-nos aqui as
malhas da nossa administração indecifrável e, só a 19 ou 20 deste,
receberemos as instruções que nos facultarão a partida.
Imagina, se poderes, as minhas impaciências! Esta Manaus,
rasgada em avenidas largas e longas pelas audácias do Pensador,
fez-me o efeito de um quartinho estreito. Vivo se ar e sem luz, meio
afogado e num estonteamento. Nada te disse da terra e da gente.
Depois, aí, e num livro Num paraíso perdido, onde procurarei
vingar a Hilae maravilhosa de todas as brutalidades das gentes
adoidadas que a maculam desde o século XVII. Que tarefa e que
ideal! Decididamente nasci para Jeremias destes tempos. Faltaram-
me apenas umas longas barbas brancas emaranhadas e trágicas...
Vamos a outro assunto. Chegou tarde o teu pedido sobre a
próxima eleição da Academia. Já o Veríssimo me comunicara a
renúncia do Vicente, indicando-me o Sousa Bandeira. Mandei-lhe

nos apraz veja o leitor. (Fénelon. Dialogues sur l’éloquence, pág. 37) – “Nada se opõe
mais ao belo natural que o trabalho de exprimir as cousas ordinárias ou comuns de modo
singular ou pomposo; nada avilta mais o escritor. Longe de o admirarmos lamentamos
que haja perdido o tempo em fabricar novas combinações de sílabas para dizer o que
todos dizem. É o defeito dos espíritos cultivados, mas estéreis; são copiosos de palavras,
não de ideias; trabalham, pois sobre palavras e imaginam terem combinado ideias porque
arranjaram frases, e terem depurado a linguagem quando a corromperam retorcendo-lhe
as acepções. Esses escritores não têm estilo ou, quando muito, não lhe tem mais que a
sombra. O estilo deve gravar pensamentos; eles sabem, tão somente, riscar palavras”.
(Buffon – Discours sur le style, pág. 16).
o meu voto pelo vapor passado. Entretanto da tua carta à dele
mediaram apenas 30 e poucas horas que foi o avançamento do S.
Salvador sobre o Gonçalves Dias. Caprichos da fortuna...
Não te esqueças de ir com a tua sra. a visitarem as minhas
quatro enormes e saudades na minha fazendinha das Laranjeiras.
Escreve-me sempre e sempre. As tuas cartas serão recebidas
mesmo no Alto Purús.
12.º filho! Não sei se devo dar-te parabéns por esse
transbordamento da vida. Neste tempo e nesta terra as criancinhas
deviam nascer de cabelos brancos e de coração murcho, meu velho
Coelho Netto. De mim penso que uns restos de mocidade nacional
estão nas almas de meia dúzia de sexagenários dos bons tempos de
outrora. Entre estes desfiladeiros de imbecis e jovens tenho às
vezes vontade de perguntar a um Andrade Figueira e um Lafayette
e a um Ouro Preto se já fizeram vinte anos.
Mas, façamos ponto, alto! neste rolar pelo declive do meu
pessimismo abominável. Adeus. Até a volta, porque,
infalivelmente, ainda te apertará num abraço o teu
Euclides da Cunha.

Diálogos
(Coelho Netto – Bonança – cena XV)
Lício e Damiana

Damiana (arranjando a bandeja) – O senhor é da Boa Vista?


Lício – Sou sim, senhora.
Damiana – De que família? Desculpe perguntar.
Lício (vexado) – Não sei, não senhora.
Damiana – Uhm! Uhm! Então o senhor não sabe de que família é?
Lício – Não, senhora.
Damiana – Nem o nome de sua mãe, ao menos?
Lício – Não sei. Não, senhora.
Damiana (olhando-o com desconfiança) – Enfim... (Consigo
mesma) Assim, só bicho...
Lício (com acanhamento) – Saí de lá muito pequeno...
Damiana – Saiu de lá?... Com quem?
Lício – Com os ciganos que me roubaram.
Damiana (d’ímpeto) – O senhor?
Lício – Sim, senhora. (Um momento)
Damiana (como inspirada) – Mãe do céu! (Achegando-se de Lício.
Mirando-os atenta). O senhor?! E como foi, filho de Deus! (Outro
tom) Como é o seu nome?
Lício – Lício.
Damiana – Não é Júlio, não? (Aceno negativo de Lício). Mas
conte. Como foi?
Lício – Ao certo não sei. Era muito pequeno.
Damiana (curiosa) – Mas não se lembra de nada?
Lício – Não, senhora.
Damiana (penalizada) – Coitado! (Um momento) Mas então não
sabe quem é seu pai, sua mãe?
Lício – Não, senhora.
Damiana – E já falou a seu Padre?
Lício – Já.
Damiana – E ele que disse? (Lício encolhe os ombros. Ela
contempla-o compadecida. De repente:) Olhe, uma coisa: o senhor
não se lembra de uma cafusa de nome. Narcisa, muito barulhenta,
que vivia rindo, cantando? (Aceno negativo de Lício) Não se
lembra dum preto que tocava urucungo? Pai Luiz. Vivia numa
palhoça, perto do rio, fazendo gaiolas. O senhor chorava com medo
dele...
Lício – Eu?!
Damiana – O senhor... Eu agora... (Triste): É que também
perdemos um menino chamado Júlio, que os ciganos roubaram.
(Lício abre muitos os olhos encarando em Damiana). Fizemos tudo
para encontrá-lo, mas qual! Os malditos levantaram o campo e
sumiram com a criança. E até hoje não se sabe do pobrezinho.
Lício – Era seu filho?
Damiana – Meu, não; de minh’alma. Mas eu criei-o ao colo, era
como se fosse meu. Não viu minh’alma aqui? (Gesto afirmativo de
Lício). Pois é ela a mãe do pequeno, o Julinho...
Lício (repetindo como na perseguição de um sonho arisco) –
Júlio!...
Damiana – Júlio, sim; era o nome dele. Quando meu amo morreu,
um ano depois do desaparecimento do menino, minha ama deixou
Santa Vitória. Conhece Santa Vitória?
Lício – O engenho?
Damiana – Sim.
Lício – Conheço. Estive lá com seu Padre. É tal qual o lugar onde
nasci. Só falta o cercado dos bois perto da casa.
Damiana (olhando-o surpreendida) – É... o cercado. Foi meu amo
que mandou mudar o curral. Mas então o senhor lembra-se?
Lício – Foi Mercedes que me contou. Mas do cercado eu me
lembro.
Damiana (encarada nele, docemente) – A gente ia para lá todas as
tardes ver os bezerrinhos. (De repente, numa inspiração) Minha
Nossa Senhora!... Querem ter! (Vai ao fundo estonteada e torna
apressadamente. Estava diante de Lício d’olhos fitos nele). Uma
coisa, moço... O senhor não tem um sinal (mostrando em si) aqui
no beiço?
Lício – Sinal?
Damiana – Sim, de uma queda, quando era menino. Estava
brincando, lá mesmo, perto do cercado, quando se espantou com
um boi e caiu de boca no chão. Os dentes furaram a carne e ficou
um sinal. Não tem?
Lício – Nunca reparei.
Damiana (desinsofrida) – Olhe, veja ali no espelho (Lício
encaminha-se para o espelho; Damiana, porém, toma-lhe o passo
e, fazendo-o voltar-se, põe-se a examinar-lhe o lábio inferior. Vai-
se-lhe abrindo no rosto um sorriso largo de felicidade, enchem-se
lhe os olhos de lágrimas; entra a tremer, com um balbucio de
palavras ininteligíveis cortadas de interjeições, atrai-o a si, afasta-
o mirando-o, remirando-o ansiosa. Ouve-se a voz de Lenôra que
sobre a escada do terraço cantarolando. Diante do imprevisto da
cena a menina detém-se espantada. Damiana atira os braços aos
ombros de Lício num estremecimento mudo. De repente, com
inefável meiguice, encarada nele). Então você não se lembra de
mim, meu filho? Não se lembra, não? (Num grito d’alma). A sua
Nana! Minha Mãe do céu! Quem podia esperar! Tanto tempo!
(Abraça-se com ele e rompe em choro convulso. Lenôra olhar
imóvel, pasmada. Súbito, voltando-se para o jardim, grita
nervosamente:).
Lenôra – Mamãe! Seu padre! É mesmo!

Uma conversa
- Olá, Brasiliano, por aqui! Bons olhos o vejam.
- Quem é vivo sempre aparece.
- É verdade. E mais gordo, bem disposto.
- É pra quem pode. Os ares de Barbacena curam e o leite de
Minas engorda gente como angú de fubá engorda porco.
- E d. Eudócia, como vai?
- Otimamente.
- Foi-se a asma?
- Quase de todo. Lá uma vez por outra volta o pianço, mas
coisa à toa e passa logo.
- Felizmente. E quando voltam?
- Sei lá! Ando até matutando ficar, de vez, nas alterosas.
- Desde que dá saúde... A questão é arranjar a vida lá.
É só aí que pega o carro; mas, se conseguir vender, por quanto
espero, minhas casas aqui, montarei lá uma fábrica modelo de
laticínios.
- Faz-se industrial, então?
- Que jeito!
- É bom negócio?
- Muito bom. Com a recente propaganda em favor do leite e
seus produtos, tem crescido enormemente a procura e os preços
correspondem fartamente ao capital empregado. Demais, vamos
fazer instalação como jamais se fez, modelar mesmo, cousa que
mais nos falta.
- Invejo-lhe a sorte. Se pudesse, deixaria, de bom grado, este
barulhento Rio de Janeiro.
- Lá isso não. O Rio é bom deveras. Se o deixo, é com
saudade, por não termos, nem eu, nem Eudócia, pulmões rijos para
aguentar-lhe o clima e a poeira.
- Qual! Meu ideal é a roça, a natureza, o sossego do campo.
- Bom de dizer; mas a falta de conforto é real.
- Ora! naturalmente não me iria meter nos cafundós de Judas
nem lá por onde esse cavalheiro perdeu suas famosas botas.
Barbacena é perfeitamente tolerável.
- Sim, mas não tem lírico, não tem companhias francesas, não
tem conferências, não tem civilização.
- Prefiro a vida interior, contemplativa, com a natureza e os
bons livros.
- Pois ande, homem, vá tratando de mudar-se.
- Eu? Não posso. Tenho meu emprego oficial aqui. Depois a
educação da meninada. Luiz estuda na Politécnica; Marina segue o
curso de violino no Instituto; Abelardo faz os preparatórios.
Impossível safar-me deste inferno.
- É fácil. Caso monte a minha fábrica, reservo um lugar para
você. Você pede uma licença e tenta arranjar-se em Barbacena.
Deixa o Luiz em casa de seu irmão, manda a Marina para o recente
Conservatório de Belo Horizonte. Preparatórios, em qualquer canto
se fazem hoje.
- Não vá oferecendo muito que eu aceito.
- É de todo o coração. Pense bem no caso, converse com a
patroa e resolva. Para sujeitos ativos e zelosos como você há
sempre lugar e lucros bastantes. Mais tarde irá comprando sítios e
talvez uma fazenda. Não desanime se é esse o seu ideal.
- Sempre foi.
- Muito bem! Negócio firme então. Recomende-me à cara
esposa. Vou tocando para a Prefeitura a ver uns papéis. Amanhã
passarei de novo por aqui. Até amanhã.
- Até amanhã.
Assuntos para composições
Descrições:
De interior – 1. Sala de jantar, pela manhã; aspecto pobre.
Entra uma criada, põe a mesa para o café. Vem uma senhora com
duas crianças. Sentam-se. A senhora serve o café. Uma das crianças
derrama o café na toalha. (Dentro desse quadro o aluno inventará
outros aspectos da cena e concluirá).
2. Uma saleta, ladrilhada e forrada. Uma janela para uma área.
Uma pia. Um armário. Entra um homem, tipo alemão. Abre o
armário, tira um frasco. Senta-se a uma mesa no centro. Assovia.
Vem um cão (descrevê-lo). O homem põe-lhe remédio numa
ferida. Saem juntos.
3. Quarto de dormir de Eulália.. Sentada a uma mesa desenha
para um concurso na escola. Quase pronto o desenho. Ouvem-se
passos. Entra correndo Lina, menina de sete anos, com uma bola.
Atira a bola contra a parede. A bola pula em cima de um tinteiro e
entorna-o no desenho.
4. Galeria de uma casa rica. Sob a escada um armário,
algumas estantes, disfarçadas por um biombo; um grupo, tapete,
sanefas, telefone. O telefone chama. Acode Vera, pirralha de quatro
anos. Traz um tamborete. Trepa. Vai desligar o fone; porém
desequilibra-se e cai.
5. Uma igrejinha. Aspecto externo. Aspecto interno. Altar-
mór. Aras laterais. Santos. Quadros. Na sacristia. Entram padre e
sacristão. O padre paramenta-se para dizer missa. (O professor dará
aos alunos o vocabulário indispensável com explicações claras).
6. Numa oficina de remendão. Armário com formas, couros
cortados, pilhas de gáspeas, saltos etc. Mesa de sapateiro.
Tamboretes. O sapateiro é italiano. Está pondo meia sola num
sapato. Entra uma rapariga. Traz uns sapatos velhos para consertar,
mas reclama contra o serviço feito em outros. O italiano aproveita
a interrupção, põe fumo no cachimbo, acende-o e tira baforadas
grandes. (O professor dará o vocabulário dos utensílios e partes da
botina).

Paisagem
1. Um riacho. Barrancas altas. Há uma ponte. Vêm-se
mulungus e sapucaias. Ouvem-se trilos de patrulhas na capoeira.
Vem uma rapariga pela estrada. Carrega um saco na cabeça;
Atravessa a ponte, some-se na outra margem. (Exigir dos alunos
outros aspectos, outras árvores, outras aves. Indicar os nomes de
várias. O vocabulário é sempre indispensável nas descrições para
caracterizar o meio e dar cor local).
2. Um sítio. Sol quente. Uma casa de campo. Mangueiras.
Coqueiros. Uma cacimba de tijolo com o calde. Vem um rapazelho
puxando um burro e dois cavalos. Descrevê-los. O rapaz apanha o
balde, desce-o à cacimba, tira água e dá de beber aos animais.
Depois retira-se cantarolando.
3. Beira-mar. Manhã nublada. Ondas batem nas pedras que
cortam a praia. Rapazes e moças armados de forquilhas correm a
atirar para fora da praia os siris trazidos pelas ondas. Um rapaz vem
correndo com uma tarrafa, entra na água, ajeita a tarrafa e joga-a
abrindo-a. Puxa-a depois de vagar. As moças acodem a ver se
apanhou muita cousa.
4. Sol quente. Estrada longa. Buritis e imbuzeiros dispersos
na planície. Palhoças esparsas. Vem um carro chiando, puxado por
quatro bois, guiado por um caboclo forte, vestido de algodãozinho
e chapéu de couro, com um facão pendente ao cinturão. O carro
vem cheio de cana. Ao passar por um dos casebres o carreiro para,
bate à porta, pede água. Uma pequena traz um coco cheio. Ele bebe,
limpa a boca na manga e segue o seu caminho.
5. Longa curva de rio, formando península chata, de relva. Há
uma casita de taipa coberta de sapé. Quintal. Galinhas, um galo,
um peru. Madrugada. Tudo fechado. Sai ao quintal uma velha,
parda, com uma lata. As galinhas correm, ela atira milho, volta,
entra sem fechar a porta.
6. Lagoazinha. Oito da noite. Uma casa à beira d’água. Há
um pontão a que está presa uma canoa. Saem da casa um senhor,
de branco, uma senhora e uma menina. Descem à canoa. O homem
toma os remos e saem a passear.

Tipos
1. Um bêbedo. Sai de uma venda; seu traje, fisionomia,
característicos principais. Alguns atos que pratica. Três garotos o
perseguem até entrar num avenida. Alcunha.
2. D. Genoveva sentada diante de um almofadão, faz rendas
de bilros. Enormemente gorda, de chinelos. Sua e fala sozinha.
Levanta-se, vai a um filtro, bebe água e volta. Os copos e xícaras
tinem no guarda-louças quando ela anda. Senta-se gemendo,
bufando recomeça o serviço. Descrever bem o tipo.
3. Curusú, o cão, e Paxá, o gato, brincam no quintal.
Descrever o tipo de cada um e o brinquedo. Trepado num balanço.
Lulu, pequeno de sete anos, ri com o brinquedo. Descrever o
pequeno.
(Outros tipo aparecem nas cenas anteriores. Há vantagem no
exigir os verbos no presente, para evitar descambem os alunos para
a narração. Servem muito para assuntos descritivos os cartões
postais que o professor escolherá segundo a força do aluno).

Narrações
1. Notícia, para um jornal, de um desastre de automóvel.
Local. Pessoas. Como se deu o acidente. Testemunhos de pessoas
várias. Providências tomadas.
2. Doença e morte de um cão. Contar a vida, descrever-lhe o
tipo e o caráter. Como adoeceu. Cuidados para salvá-lo. Morte.
3. Porque está Julião no hospital. Era inimigo de Pedro
Olímpio. Intrigas de um terceiro. Pedro jurou vingar-se.
Encontraram-se. A briga. Julião ferido gravemente. Assistência.
Julião recolhido. Pedro foge.
(Outras narrações pode ministrar o professor com episódios
interessantes da história do Brasil narrados de momento).

Dissertações
1. Opiniões sobre os seus vizinhos. Que pensa de uma boa
vizinhança. Que é necessário fazer para manter harmonia com os
vizinhos. Exemplos demonstrativos.
2. Opiniões sobre os professores que tem tido.
3. Vantagens e inconvenientes do gramofone, da
radiotelefonia, do cinema.
4. Importância da higiene. Evitar as doenças. Micróbios.
Transmissão e seus veículos. Vantagens do asseio. As vacinas.
Exigências salutares dos poderes públicos. O combate à
tuberculose.
5. O problema da viação pública no Brasil. Vantagem da
comunicações rápidas. A extensão do Brasil. Os brasileiros muito
separados. Estradas de ferro. Estradas de rodagem. Vantagens para
os agricultores. Importância do automóvel. Futuro do aeroplano.
6. O problema da educação. Atraso do Brasil. Os sertanejos
abandonados. O mal do analfabetismo. Nada se constrói com a
ignorância. Alfabetizar o Brasil. A Liga Brasileira contra o
Analfabetismo.
(O professor deve auxiliar com informações precisas cada
uma dessas dissertações).
Cartas
1. A um administrador recomendando-lhe vários serviços na
fazenda. (Tratamento da 3.ª pessoa).
2. A um diretor de fábrica recomendando um rapaz pobre. (2.ª
pessoa do plural).
3. A um irmão subordinado e vadio, aconselhando-o a mudar
de procedimento. (2.ª pessoa do singular).
4. A uma senhora caridosa em favor de uma família de
indigentes. (Tratamento de V. Ex.)
5. A um amigo combinando um passeio. (3.ª pessoa).
6. A um patrão explicando os motivos pelos quais deixou de
dar cumprimento a várias ordens. (Tratamento de: Senhor).
(O professor explicará o concernente à observância das
pessoas nos tratamentos).

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