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CUTUCANDO A NORMA CULTA

Um estudo sobre licença poética e liberdade criativa

Carlos Scopelly
2017
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
ENTENDENDO A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA
AS VARIANTES NA LITERATURA
CONCLUSÃO
ANEXOS
INTRODUÇÃO
“Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro”.
(Pronominais, Oswald de Andrade)
O movimento modernista da literatura, no início do século XX, foi um escândalo, pornográfico até.
Levantando-se contra a prisão das formas e das regras na arte, os modernistas buscavam a liberdade criativa. Afinal, se a arte é uma forma de
manifestação da liberdade de pensamento, não seria um paradoxo escravizá-la com uma vigilância severa de normas de estilo e expressão?
No século XIX, o apego à rigidez literária chegou ao auge no parnasianismo, que primava pelo rigor ortográfico, a busca de rimas perfeitas, métrica
precisa e vocabulário erudito.
Os modernistas se apresentaram como rebeldes. E, apesar de hoje nomes como Manuel Bandeira, Oswald de Andrade e Carlos Drummond de
Andrade (com a sua teimosa pedra no caminho ao estilo Sísifo) serem ícones de grande respeito, na época foram alvo de críticas, como se estivessem
vandalizando a arte.
No poema “Pronominais”, Oswald de Andrade satiriza uma regra ortográfica muito prezada pelos puristas, a de que uma frase não pode começar
com pronome oblíquo. O correto é “Dê-me um cigarro”, diz a regra. Mas o poeta reage: “Deixa disso camarada/ Me dá um cigarro”. Também é bom notar
que neste poema ele não demonstra interesse algum em colocar pontos e vírgulas em seus devidos lugares.
Devemos então abraçar o caos? Pode-se escrever de qualquer maneira? Não existe o certo e o errado na escrita?
Ah, nada de extremos. É preciso entender que a língua possui várias formas, cada qual adequada a um contexto. É o contexto que determina as
regras.
Regras existem. Do contrário, como as pessoas se entenderiam? Se não houvesse um consenso de que a palavra “maçã” significa “maçã” e não
“limão”, como seria possível pedir uma maçã e não receber um limão?
Você pode ir de roupa de banho para uma praia, mas não para um tribunal, não é? Assim, na literatura, há momentos de praia e há momentos de
tribunal. O que não pode haver é o excesso de rigor, como exigir um terno na praia ou reprimir o uso da linguagem coloquial na literatura.
É justamente na literatura que se experimenta a língua em suas variadas formas, da forma mais erudita à livre experimentação da licença poética e do
falar cotidiano.
ENTENDENDO A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA
Denominar um texto ou uma fala apenas como “certo” ou “errado” é uma visão por demais simplista e anacrônica. Hoje a linguística compreende
bem que existe o texto “adequado”, e que varia conforme a circunstância.
“Variação” é a palavra. A língua é flexível e mutante, de modo que se apresenta de formas variadas. Existe uma forma chamada de “padrão” ou
“norma culta”, mas deve-se notar que ela não é a única forma. No mundo existem várias línguas e a diversidade não para por aí. Cada língua, cada idioma,
possui suas próprias ramificações, dialetos, regionalismos, gírias para diferentes grupos sociais, faixas etárias, profissões. A língua é plástica, maleável,
assumindo muitas formas.
Usando uma clássica metáfora, imagine-se que a língua é um gigantesco iceberg; a norma culta é apenas a ponta do iceberg que aparece sobre a
superfície da água; todo restante, o maior volume que fica submerso, é o conjunto de variantes da língua.
A língua padrão, aquela que encontramos nos livros de gramática, existe como um bem comum. Se cada pessoa resolvesse falar à sua própria
maneira, sem se importar que os outros entendam, viveríamos como no conto da torre de Babel, numa grande confusão em que ninguém entende ninguém.
É para isto que existe a língua padrão, para evitar equívocos, para ser um idioma comum que todos podem usar, uma bússola norteadora. Daí ser ela
adequada a situações formais.
Em termos práticos: na redação de um concurso, usa-se a norma culta; ao redigir um documento oficial, norma culta; escrevendo uma carta formal,
norma culta; um livro técnico, científico, um manual, norma culta. Mas vejamos outros contextos em que a língua assume formas diferentes da chamada
forma padrão.
O contexto social
Você já deve ter percebido que geralmente existe uma fala dos adolescentes e outra dos adultos. Os adolescentes se comunicam por gírias típicas da
idade, algumas expressões cunhadas que têm curto tempo de duração e logo saem de uso.
Quando um adulto tenta usar determinada expressão típica dos adolescentes, logo causa uma reação de estranhamento. Não parece natural, parece
que ele está forçando uma linguagem que não lhe pertence ou está fazendo isso de forma caricata, talvez de brincadeira.
Outro caso é o “jargão técnico”. Os atores de teatro, por exemplo, usam normalmente a expressão “merda pra ti” como um sinônimo de “boa sorte”,
“sucesso”. Mecânicos, médicos, policiais, cada grupo desenvolve uma série de termos que usam entre si e geralmente alguém “de fora” não compreenderá
perfeitamente.
O exemplo dos médicos deixa bem claro a necessidade da adequação. Ao conversar com um colega de trabalho, o médico estará “correto” ao usar
termos técnicos e “difíceis” para os leigos, mas se ele fizer isto numa conversa com o paciente, estará “errado”, pois deveria adequar a linguagem ao
possível nível de compreensão do ouvinte. O paciente não é obrigado a entender a terminologia médica, sendo assim, se o médico a utiliza, corre o risco de
estar falando grego, de não ser compreendido.
Note-se, portanto, que o que faz a língua estar “certa” ou “errada” é, especialmente, a sua adequação ou inadequação ao contexto social.
O contexto geográfico
Nenhuma língua é uniforme em termos geográficos. O regionalismo é um fenômeno universal. O inglês que se fala na Inglaterra não é idêntico ao
que se fala nos Estados Unidos. O inglês de um texano não é o mesmo de um nova-iorquino.
A dialetologia surgiu no final do século XIX como uma ciência linguística voltada ao estudo destas variantes regionais, chamadas “dialetos”. Cada
dialeto se desenvolve ao longo do tempo, processado por uma série de fatores, como o tipo de habitantes da região, a cultura e história de cada povo.
O mesmo se dá com as línguas. Na península ibérica, os povos celtas nativos falavam a língua “celtibérica” e esta, em contato com o latim dos
romanos, resultou em novas variações, na formação de algo que nem era puramente celta, nem puramente latim, como o latim vulgar, o romanço, o galego
e, com o tempo, prevaleceu esta forma sobre o latim. E assim se formou a língua portuguesa e a espanhola.
Faz-se distinção entre língua (idioma) e dialeto. Português e inglês são línguas, e é fácil perceber isto, pois elas têm uma estrutura e vocabulário bem
diferentes. Já o português falado em Minas Gerais (mineiro) e o falado no Rio Grande do Sul (gaúcho) são a mesma língua, mas com suas variações
regionais, daí serem dialetos.
É cada vez mais comum usar o termo “brasileiro” para diferenciar este português do de Portugal. Isto, porém, não significa que o português falado
no Brasil seja outra língua, mas com certeza tem suas particularidades que o distinguem do falar de Portugal, como uma espécie de macrodialeto.
Observemos, por exemplo, que em Portugal seria perfeitamente normal chamar uma mulher de “rapariga”, que nada mais é que o feminino de
“rapaz”. No Brasil, todavia, desenvolveu-se uma variante que significa “prostituta” e de tal forma se popularizou, que pode-se considerar o significado
padrão ou mais comum em nosso dialeto.
A mesma língua, portanto, é falada de formas relativamente diferentes em cada região.
A influência do tempo
O linguista Edward Sapir chamou de “deriva” a essa tendência das línguas se modificarem continuamente ao longo do tempo. É algo tão natural
quanto o processo de crescimento de uma árvore.
Através do tempo, que testemunha a ação de uma série de influências culturais, sociais e circunstanciais, a língua vai sofrendo mudanças na escrita,
na pronúncia, nos significados e usos das palavras.
Nota-se normalmente um processo de desgaste das palavras, afinal, a tendência é que as pessoas reduzam palavras por uma questão de praticidade.
Foi assim que o latim “pedem” se tornou o português “pé” ou (um exemplo bem conhecido) o “vossa mercê” do português antigo se tornou o moderno
“você”.
Hoje escrevemos a crase “à”, mas se você vasculhar alguns livros antigos, poderá encontrar a forma “aa”. Até o “aa” se tornar “à” e o “vossa mercê”
se tornar “você”, houve um processo natural de transformação. E tal processo não para. Ao longo das décadas e até dos anos, estamos continuamente
transformando a língua.
Também a fala “errada” do povo contribuiu muito para a mudança da língua. O latim clássico “vitam” era pronunciado “vita” pelo povo que
“engolia” o som do “m”. E, em Portugal, os nativos insistiam em pronunciar diferente, daí surgiu o português “vida”.
Enfim, nós, falantes do português, estamos falando um idioma que surgiu simplesmente por causa dos “erros” do povo que gradativamente foi
modificando a língua latina, adaptando-a e consagrando estas novas formas linguísticas. O nosso querido português, é um “latim errado”.
Insisto em usar aspas justamente porque “errado” não é a melhor palavra para descrever aquilo que nada mais é do que uma variação do padrão, da
forma conhecida como oficial, principal ou de maior prestígio.
Sobre isso, Monteiro Lobato já havia falado muito claramente em Emília no País da Gramática, comparando o português do Brasil [“cidade nova”]
com o de Portugal [“cidade velha”]:
“Uma língua não para nunca. Evolui sempre, isto é, muda sempre. Há certos gramáticos que querem fazer a língua parar num certo ponto, e acham
que é erro dizermos de modo diferente do que diziam os clássicos.
– Que vem a ser clássicos? – perguntou a menina.
– Os entendidos chamaram clássicos aos escritores antigos, como o Padre Antônio Vieira, Frei Luís de Sousa, o Padre Manuel Bernardes e outros.
Para os carrancas, quem não escreve como eles está errado. Mas isso é curteza de vistas. Esses homens foram bons escritores no seu tempo. Se
aparecessem agora seriam os primeiros a mudar ou a adotar a língua de hoje, para serem entendidos. A língua variou muito e sobretudo aqui na cidade
nova. Inúmeras palavras que na cidade velha querem dizer uma coisa aqui dizem outra. Borracho, por exemplo, quer dizer bêbado; lá quer dizer filhote de
pombo – vejam que diferença! Arrear, aqui é selar um animal; lá, é enfeitar, adornar.
– Então lá há moças bem arreadas? – perguntou Emília.
– Sim – respondeu a velha. – Uma dama bem arreada não espanta a ninguém lá do outro lado. Aqui, Moço significa jovem; lá, significa serviçal,
criado. Também no modo de pronunciar as palavras existem muitas variações. Aqui, todos dizem Peito; lá, todos dizem Paito, embora escrevam a palavra
da mesma maneira. Aqui se diz Tenho e lá se diz Tanho. Aqui se diz Verão; lá se diz V’rao.
– Também eles dizem por lá Vatata, Vacalhau, Baca, Vesouro – lembrou Pedrinho.
– Sim, o povo de lá troca muito o V pelo B e vice-versa.
– Nesse caso, aqui nesta cidade se fala mais direito do que na cidade velha – concluiu Narizinho.
– Por quê? Ambas têm o direito de falar como quiserem, e portanto ambas estão certas. O que sucede é que uma língua, sempre que muda de terra,
começa a variar muito mais depressa do que se não tivesse mudado. Os costumes são outros, a natureza é outra – as necessidades de expressão tornam-se
outras. Tudo junto força a língua que emigra a adaptar-se à sua nova pátria. A língua desta cidade está ficando um dialeto da língua velha. Com o correr
dos séculos é bem capaz de ficar tão diferente da língua velha como esta ficou diferente do latim. Vocês vão ver.”
Lobato também toca nesse assunto em seu conto O Colocador de Pronomes, em que o professor Aldrovando, fanático pela língua clássica, de tal
forma não tolera a plasticidade e a mudança contínua da língua que até propõe que se faça uma lei proibindo o seu “mau uso”:
“Os pronomes, aí! Eram a tortura permanente do professor Aldrovando. Doía-lhe como punhalada vê-los por aí pré ou pospostos contra regras
elementares do dizer castiço. E sua representação alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da pátria à criação dum Santo Ofício
gramatical.”
Por fim, citemos o linguista Marcos Bagno (Preconceito Linguístico): “Temos de fazer um grande esforço para não incorrer no erro milenar dos
gramáticos tradicionalistas de estudar a língua como uma coisa morta, sem levar em consideração as pessoas vivas que a falam.”
Formalidade e informalidade
A variante que costumamos chamar de “português correto” ou “falar bonito” nada mais é que um nível mais formal da língua. Mas isto não faz dela
a única forma aceitável. Como foi dito, cada variante tem seu devido contexto em que se encaixa.
O linguista Martin Joos classificou cinco níveis, a saber: protocolar, formal, informativo, familiar e íntimo.
Este tipo de classificação ajuda a compreender que o uso da língua é multiforme e não deve ser classificado apenas duma maneira simplista como “a
forma certa” e “a forma errada”. Na prática, cada nível tem a circunstância adequada. Por que a linguagem formal seria considerada “certa” quando
estamos conversando intimamente com amigos?
O nível mais formal costuma ganhar um status de prestígio, tanto que é comum se dizer que alguém está “falando bonito” quando usa a linguagem
formal, também conhecida como “norma culta”. Mas este tipo de valor que se dá a uma variante é subjetivo. Afinal, também há quem diga que determinada
forma intimista de comunicação é bela, agradável. Avaliar a beleza de uma fala é como avaliar uma música ou pintura. Há uma questão de gosto e de
impressão pessoal.
Obviamente, em se tratando de avaliação artística ou cultural, é sábio usar de bom senso e evitar extremos. Não podemos ser relativistas a tal ponto
de achar que um quadro de Leonardo DaVinci seja menos excelente que uma mancha de tinta pintada por algum pretenso artista pós modernista. Também
seria injusto comparar uma escrita rica como a de Camões ou Shakespeare, a um poeta amador que diz que rosas são vermelhas e violetas são azuis.
Sim, na literatura, como na arte em geral, é possível usar critérios objetivos para medir a qualidade de um texto, mas isto não envolve
necessariamente a sua proximidade com a norma culta.
Um escritor de romance que sabe reproduzir em seus personagens uma fala típica e popular, com certeza demonstra mais habilidade com a língua do
que aquele que dá a todos os personagens a mesma fala indistinguível e inverossímil seguindo a norma culta.
O poeta Horácio, no primeiro século antes de Cristo, já falava sobre isso em sua Arte Poética:
“Há uma grande diferença se fala um deus ou um herói; se um velho amadurecido ou um jovem impetuoso na flor da idade; se uma matrona
autoritária ou uma ama dedicada; se um mercador errante ou um lavrador de pequeno campo fértil; se um colco ou um assírio; se um homem educado em
Tebas ou em Argos.”
AS VARIANTES NA LITERATURA
Chegamos então à questão mais interessante: na arte literária (conto, romance, novela etc.), até que ponto o distanciamento da norma culta é
permitido?
Que dois amigos podem conversar de maneira informal, ninguém questiona. Que a norma culta é melhor para se escrever um ofício, ninguém
duvida. Na literatura, porém, a escolha da variante é outros quinhentos.
Desde os primeiros movimentos literários no Brasil, houve quem ousasse em reproduzir a fala popular nos textos, como o fez Gregório de Matos.
Mas foi a partir do romantismo que este tipo de atitude ganhou forma e argumento. Os romantistas empunharam a bandeira do nacionalismo e da
independência criativa.
Não foram tão ousados como os modernistas, mas foram seus precursores. O escritor romântico procurava explorar a cultura nacional, diferente dos
classicistas que veneravam a cultura estrangeira, particularmente a europeia clássica.
O romantista, sendo individualista, buscava o estilo próprio, de modo que cada autor fazia suas próprias experimentações literárias e procurava
inventar um estilo particular.
O desejo de inovar na arte também envolveu o uso da língua e a busca por novas formas de expressão literária que não se limitassem à norma padrão
dos textos clássicos.
José de Alencar foi um bom exemplo disso, tendo inclusive recebido críticas em sua época. Diz ele:
“O autor deste volume e do que o precedeu com o título de Lucíola sente a necessidade de confessar um pecado seu: gosta do progresso em tudo,
até mesmo na língua em que fala. Entende que, sendo a língua instrumento do espírito, não pode ficar estacionária quando este se desenvolve. Fora
realmente extravagante que um povo, adotando novas ideias e costumes, mudando os hábitos e tendências, persiste em conservar rigorosamente aquele
modo de dizer que tinham seus maiores” (Diva, Pós-escrito).
Fica claro que a motivação desta busca de uma linguagem nova era encontrar a identidade nacional, um “português brasileiro”, diferente do
português de Portugal que até então os escritores brasileiros procuravam manter.
Esta busca continuou no modernismo, como bem resume Oswald de Andrade:
“A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos” (Manifesto
da Poesia Pau-Brasil).
Bom, vamos ilustrar na prática por meio dos experimentos que os próprios escritores já fizeram com a língua.
Invenção de onomatopeias
Umas poucas onomatopeias são “dicionarizadas”, reconhecidas como parte da língua padrão. Por exemplo, a palavra “miau”, representando o som
que o gato produz.
A literatura está cheia de exemplos de onomatopeias inventadas livremente pelos escritores para atender ao propósito do texto. Vejamos alguns:
“Cavalo, cavalo, cavalo? É assim: ...Rinhinhim, rinhinhim, rinhinhim... Sariema no cerrado é assim: ...Káu! áu! Káukákáufkáuf...” (João Guimarães
Rosa, Campo Geral).
“Recomeçava a andar José Anaiço, era este o seu nome, e os estorninhos levantavam-se de rompão, todos ao mesmo tempo, vruuuuuuuuuu” (José
Saramago, A Jangada de Pedra).
“...o pobre Leandro acabou no tronco, lanhado a chicote... lepte! Lepte!” (Monteiro Lobato, Bugio Moqueado).
Imitação da fala popular
Há um exemplo interessante em Oswald de Andrade, que usou o “rl” como uma forma de representar na escrita o “erre enrolado” do sotaque caipira:
“Uma veiz uma escorlta atirou em mim… Nóis não deixava o pessoal do outro lado entrá na cidade pra votá” (Oswald de Andrade, Marco Zero II).
Machado de Assis também não tinha receio de representar a maneira de falar do “preto”:
“Artura não qué dizê nada, não, senhô” (Machado de Assis, Bons Dias).
“Me acuda, meu sinhô moço!” (Machado de Assis, O Caso da Vara).
Também Afonso Arinos:
“Não é à toa que nós mulato gosta mêmo de vancê!” (Afonso Arinos, O Mestre de Campo).
Neologismos
O neologismo é uma das mais notáveis expressões de licença poética. O autor toma a liberdade de inventar palavras, ou brincar com o significado
delas, dar novos sentidos a palavras já existentes, etc.
Mesmo sem intenção, toda criança naturalmente faz isso. Crianças inventam palavras constantemente, coisa que muitos adultos reprimem e
corrigem, podando a criatividade infantil. Pois bem, poetas são crianças, e brincam com as palavras:
“Uma andorinha só
não faz cantoria
Faz cantorinha”
(Leo Cintra, Clave de Lua).
“O algodão está encimíssimo” (Fala de Emília em A Chave do Tamanho, de Monteiro Lobato).
“E quando tudo ficou claro, as gentes penduradas na parede deram um baita sorriso. E a cadeira de balanço que nheque-nhequezava, nheque-
nhequezou contente” (Mirna Pinsky, Pequenininha).
“Anteontem futebolei bastante com uns amigos. Depois cigarrei um pouco e nos divertimos montanhando, até que o dia anoiteceu. Então
desmontanhamos, nos amesamos, sopamos, arrozamos, bifamos, ensopadamos e cafezamos. Em seguida, varandamos. No dia seguinte, cavalamos muito”
(Correspondência, Millôr Fernandes).
“Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!”
(Mario Quintana, Poeminha do Contra).
Palavrões
Não é raro encontrar na literatura o uso de palavrões. Em muitas circunstâncias do cotidiano, o palavrão é ofensivo, inadequado e pode até resultar
em processos e penalidades. Na literatura, o seu uso faz parte da licença poética. Um uso ousado, brincalhão. O palavrão é uma forma de impressionar,
incomodar ou divertir o leitor. Vejamos alguns exemplos:
“Retornai, desgraças,
à buceta de Pandora!
E que ela se foda!”
(Waldo Motta).
“azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu”
(Ferreira Gullar, no Poema Sujo, poema que lhe rendeu o prêmio Camões 2010).
“A ditadura e o oprimido
O prometido e não cumprido
E o programa do partido
Tudo vira bosta...”
(Rita Lee, Tudo Vira Bosta).
CONCLUSÃO
Usando as agulhas da licença poética, cutucamos a norma culta, mas não com o objetivo de matá-la.
Como fora dito, a norma culta é uma bússola. E é um porto seguro. Nela podemos ancorar o texto com menos riscos de haver equívocos.
A principal conclusão a que devemos chegar nesta obra é a de que a língua é um organismo multiforme, e não uniforme.
Uma língua é feita de variantes, de versões. São os idiomas, dialetos, as falas de grupos específicos, a fala individual, a língua literária, desenvolvida
à sua maneira pelo escritor com o fim de produzir arte.
Entendendo a existência de variantes na língua, deve-se então buscar o bom senso para o uso adequado de cada forma em seu devido contexto.
Este é o segredo do “bom falar”: falar da forma adequada à “fôrma”.
No caso específico da arte literária, é comum que o narrador utilize a norma culta em sua fala, mas use uma forma mais coloquial na fala das
personagens, o que lhes dá mais realismo e naturalidade.
A escolha vai depender do tipo de texto, do público ao qual se dirige, da intenção e estilo do autor. Como em tudo na vida, vale equilibrar estas duas
forças: o bom senso para evitar extremos e a ousadia para experimentar o novo.
Dino Preti (Sociolinguística: Os Níveis de Fala) resume a questão:
“O dialeto social culto é quase sempre usado pela literatura e por outras espécies de linguagem escrita, exceto, as cartas familiares, a literatura
dita popular (o cordel, por exemplo), os diálogos mais realistas dos romances, os versos das músicas populares etc., em que predomina, em geral, o
dialeto social popular. Como língua-padrão, o dialeto culto serve diretamente às intenções do ensino, no sentido de padronizar a língua, criando
condições ideais de comunicação entre as várias áreas geográficas e também propiciando aos estudantes condições para a leitura e compreensão dos
textos literários e científicos, que se expressam nessa linguagem… [quanto à “língua literária”] Pode-se afirmar, sem grande risco de errar, que, em
geral, o literato escreve dentro dos padrões da norma culta (…) Admitimos, porém, que a literatura atua como um processo estético, recriador da
realidade social, e é possível aceitar que a obra literária (em especial a prosa, mas, sob certa forma, também a poesia) funciona igualmente como uma
recriação da realidade linguística de seu tempo, mormente nos seus diálogos, em que as personagens podem reproduzir, às vezes com perfeição, o
complexo problema da variação linguística”.
Em termos práticos, como o autor pode desenvolver esta dança entre norma culta e licença poética?
Bom, há alguns recursos que funcionam como medidas de cautela para evitar a má impressão do texto sobre o leitor.
Existe uma diferença entre licença poética e despreparo do autor. Não podemos cair no abismo do relativismo e concluir que “tudo pode” e que o
autor não precisa buscar mais conhecimento da língua, particularmente da forma culta. Escrever não envolve apenas inspiração, mas conhecimento e
técnica.
Dito isto, o autor que resolve experimentar, pode desenvolver meios de deixar claro que está experimentando. Visconde de Taunay, por exemplo,
transcreveu nos diálogos de seus personagens a fala popular, as expressões regionalistas, mas em notas de rodapé “traduzia” os termos para a norma culta.
Outro recurso é destacar os termos em itálico, como gírias, estrangeirismos ou neologismos. Fica claro para o leitor que o autor não se equivocou ou
que o texto não carece de revisão, antes está como está intencionalmente.
Por fim, como fez José de Alencar em seu Pós Escrito ao Romance Diva, pode o autor explicar por si mesmo o seu método criativo.
Aliás, é interessante que de alguma maneira o autor mantenha contato com o leitor, além do texto literário ou dentro dele. A intimidade autor-leitor
faz parte da experiência da leitura, seja pelas notas de rodapé, pelos prefácios e posfácios ou pela presença da voz do autor dentro do texto, etc.
A língua como um todo é algo belo e fantástico, o resultado de séculos ou milênios de produção cultural. Aprofundar-se no conhecimento da
gramática e da forma culta da língua é uma demonstração de amor a ela, bem como estar aberto a conhecer e experimentar suas variantes.
ANEXOS
Na crônica “Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim”, Rubem Braga usa de honestidade para admitir sua própria ignorância quanto às minúcias da
língua portuguesa, também faz uma crítica àqueles que são exigentes demais na ortografia. Como um escritor e profissional do idioma, toma a liberdade de
declarar-se à vontade para escrever sem parecer erudito.
Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim
(Rubem Braga)
Conhece o vocábulo escardinchar? Qual o feminino de cupim? Qual o antônimo de póstumo? Como se chama o natural do Cairo?
O leitor que responder “não sei” a todas estas perguntas não passará provavelmente em nenhuma prova de Português de nenhum concurso oficial.
Alias, se isso pode servir de algum consolo à sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto cronista, seu semelhante e seu irmão.
Porque a verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de Português, que eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para
mim, que vivo de escrever, não conhecer o meu instrumento de trabalho, que é a língua.
Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de ouvido. De vez em quando um leitor culto se irrita comigo e me
manda um recorte de crônica anotado, apontando erros de Português. Um deles chegou a me passar um telegrama, felicitando-me porque não encontrara,
na minha crônica daquele dia, um só erro de Português; acrescentava que eu produzira uma “página de bom vernáculo, exemplar”. Tive vontade de
responder: “Mera coincidência” – mas não o fiz para não entristecer o homem.
Espero que uma velhice tranquila – no hospital ou na cadeia, com seus longos ócios – me permita um dia estudar com toda calma a nossa língua, e
me penitenciar dos abusos que tenho praticado contra a sua pulcritude. (Sabem qual o superlativo de pulcro? Isto eu sei por acaso: pulquérrimo! Mas não é
desanimador saber uma coisa dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a uma bela dama: a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu marido
me descesse a mão?).
Alguém já me escreveu também – que eu sou um escoteiro ao contrário. “Cada dia você parece que tem de praticar a sua má ação – contra a língua”.
Mas acho que isso é exagero.
Como também é exagero saber o que quer dizer escardinchar. Já estou mais perto dos cinquenta que dos quarenta; vivo de meu trabalho quase
sempre honrado, gozo de boa saúde e estou até gordo demais, pensando em meter um regime no organismo – e nunca soube o que fosse escardinchar.
Espero que nunca, na minha vida, tenha escardinchado ninguém; se o fiz, mereço desculpas, pois nunca tive essa intenção.
Vários problemas e algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de cupim. Morrerei sem saber isso. E o pior é que não quero saber;
nego-me terminantemente a saber, e, se o senhor é um desses cavalheiros que sabem qual é o feminino de cupim, tenha a bondade de não me
cumprimentar.
Por que exigir essas coisas dos candidatos aos nossos cargos públicos? Por que fazer do estudo da língua portuguesa uma série de alçapões e
adivinhas, como essas histórias que uma pessoa conta para “pegar” as outras? O habitante do Cairo pode ser cairense, cairei, caireta, cairota ou cairiri – e a
única utilidade de saber qual a palavra certa será para decifrar um problema de palavras cruzadas. Vocês não acham que nossos funcionários públicos já
gastam uma parte excessiva do expediente matando palavras cruzadas da “Última Hora” ou lendo o horóscopo e as histórias em quadrinhos de “O Globo?”.
No fundo o que esse tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não alguma coisa através da qual as pessoas se entendam, mas um
instrumento de suplício e de opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os ignaros.
Mas a mim é que não me escardincham assim, sem mais nem menos: não sou fêmea de cupim nem antônimo do póstumo nenhum; e sou
cachoeirense, de Cachoeiro, honradamente – de Cachoeiro de Itapemirim!
Em “Nosso vocabulário”, o brilhante Millôr Fernandes faz o que podemos chamar de “apologia ao palavrão”. Citando diversos exemplos, ele mostra
o poder de expressão dos palavrões (que fazem parte do grupo das interjeições), de modo que o chamado linguajar vulgar é parte importante de um idioma;
é “o povo fazendo sua língua”.
Nosso vocabulário
(Millôr Fernandes)
Os palavrões não nasceram por acaso. São recursos extremamente válidos e criativos para prover nosso vocabulário de expressões que traduzem com
a maior fidelidade nossos mais fortes e genuínos sentimentos. É o povo fazendo sua língua. Como o Latim Vulgar, será esse Português Vulgar que vingará
plenamente um dia.
“Pra caralho”, por exemplo. Qual expressão traduz melhor a ideia de muita quantidade do que “Pra caralho”? “Pra caralho” tende ao infinito, é quase
uma expressão matemática. A Via-Láctea tem estrelas pra caralho, o Sol é quente pra caralho, o universo é antigo pra caralho, eu gosto de cerveja pra
caralho, entende?
No gênero do “Pra caralho”, mas, no caso, expressando a mais absoluta negação, está o famoso “Nem fodendo!”. O “Não, não e não!” e tampouco o
nada eficaz e já sem nenhuma credibilidade “Não, absolutamente não!” o substituem. O “Nem fodendo” é irretorquível, e liquida o assunto. Te libera, com
a consciência tranquila, para outras atividades de maior interesse em sua vida. Aquele filho pentelho de 17 anos te atormenta pedindo o carro pra ir surfar
no litoral? Não perca tempo nem paciência. Solte logo um definitivo “Marquinhos, presta atenção, filho querido, NEM FODENDO!”. O impertinente se
manca na hora e vai pro Shopping se encontrar com a turma numa boa e você fecha os olhos e volta a curtir o CD do Lupicínio.
Por sua vez, o “porra nenhuma!” atendeu tão plenamente as situações onde nosso ego exigia não só a definição de uma negação, mas também o justo
escárnio contra descarados blefes, que hoje é totalmente impossível imaginar que possamos viver sem ele em nosso cotidiano profissional. Como comentar
a bravata daquele chefe idiota senão com um “é PhD porra nenhuma!”, ou “ele redigiu aquele relatório sozinho porra nenhuma!”. O “porra nenhuma”,
como vocês podem ver, nos provê sensações de incrível bem estar interior. É como se estivéssemos fazendo a tardia e justa denúncia pública de um
canalha. São dessa mesma gênese os clássicos “aspone”, “chepone”, “repone” e, mais recentemente, o “prepone” – presidente de porra nenhuma.
Há outros palavrões igualmente clássicos. Pense na sonoridade de um “Puta-que-pariu!”, ou seu correlato “"Puta-que-o-pariu!”, falados assim,
cadenciadamente, sílaba por sílaba... Diante de uma notícia irritante qualquer um “puta-que-o-pariu!” dito assim te coloca outra vez em seu eixo.
Seus neurônios têm o devido tempo e clima para se reorganizar e sacar a atitude que lhe permitirá dar um merecido troco ou o safar de maiores dores
de cabeça.
E o que dizer de nosso famoso “vai tomar no cu!”? E sua maravilhosa e reforçadora derivação “vai tomar no olho do seu cu!”. Você já imaginou o
bem que alguém faz a si próprio e aos seus quando, passado o limite do suportável, se dirige ao canalha de seu interlocutor e solta: “Chega! Vai tomar no
olho do seu cu!”. Pronto, você retomou as rédeas de sua vida, sua autoestima. Desabotoa a camisa e saia à rua, vento batendo na face, olhar firme, cabeça
erguida, um delicioso sorriso de vitória e renovado amor-íntimo nos lábios.
E seria tremendamente injusto não registrar aqui a expressão de maior poder de definição do Português Vulgar: “Fodeu!”. E sua derivação mais
avassaladora ainda: “Fodeu de vez!”. Você conhece definição mais exata, pungente e arrasadora para uma situação que atingiu o grau máximo imaginável
de ameaçadora complicação? Expressão, inclusive, que uma vez proferida insere seu autor em todo um providencial contexto interior de alerta e
autodefesa. Algo assim como quando você está dirigindo bêbado, sem documentos do carro e sem carteira de habilitação e ouve uma sirene de polícia atrás
de você mandando você parar: O que você fala? “Fodeu de vez!”.
Sem contar que o nível de stress de uma pessoa é inversamente proporcional à quantidade de “foda-se!” que ela fala. Existe algo mais libertário do
que o conceito do “foda-se!”? O “foda-se!” aumenta minha autoestima, me torna uma pessoa melhor. Reorganiza as coisas. Me liberta. “Não quer sair
comigo? Então foda-se!”. “Vai querer decidir essa merda sozinho(a) mesmo? Então foda-se!”. O direito ao “foda-se!” deveria estar assegurado na
Constituição Federal.
Liberdade, igualdade, fraternidade e foda-se.
Em 18 de março de 1924 o jornal Correio da Manhã publicara o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”. Em 1928, na Revista de Antropofagia, seria
publicado o “Manifesto Antropófago”. Estes dois textos se tornaram um símbolo do movimento modernista e sua intenção de dar asas à criação artística.
Em tom satírico, Oswald de Andrade brinca com os literatos presos a antigas convenções, chama os parnasianos de “máquinas de fazer versos”, usando de
um estilo de escrita de frases soltas, sem concatenação, a própria redação é uma declaração de independência literária.
Manifesto da Poesia Pau-Brasil
(Oswald de Andrade)
A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação
étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma
cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil.
O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser
doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.
A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.
Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.
A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, crítica, donas de casa tratando de cozinha.
A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.
Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo: o teatro de tese e a luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra de
sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus Juris.
Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Ágil e ilógico. Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil a poesia.
A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.
Uma sugestão de Blaise Cendrars: – Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor
descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.
Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das ideias.
A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.
Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros.
Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.
Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadros de carneiros que não
fosse lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho... Veio a pirogravura. As
meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa
genialidade de olho virado – o artista fotógrafo.
Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas.
A pleyela. E a ironia eslava compôs para a pleyela. Stravinski.
A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas.
Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta parnasiano.
Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as elites começaram desmanchando. Duas fases: 1º) a deformação através do
impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e Malarmé, Rodin e Debussy até agora. 2º) o lirismo, a apresentação no templo, os
materiais, a inocência construtiva.
O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil.
Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio rotamento dinâmico dos fatores destrutivos.
A síntese
O equilíbrio
O acabamento de carrosserie
A invenção
A surpresa
Uma nova perspectiva
Uma nova escala.
Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil.
O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a
cópia, pela invenção e pela surpresa.
Uma nova perspectiva.
A outra, a de Paolo Ucello criou o naturalismo de apogeu. Era uma ilusão ética. Os objetos distantes não diminuíam. Era uma lei de aparência. Ora, o
momento é de reação à aparência. Reação à cópia. Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual,
irônica, ingênua.
Uma nova escala:
A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos livros, crianças nos colos. O redame produzindo letras maiores que torres. E as
novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros Rails.
Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O correspondente da
surpresa física em arte.
A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A peça de tese era um arranjo monstruoso. O romance de ideias, uma mistura. O quadro
histórico, uma aberração. A escultura eloquente, um pavor sem sentido.
Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.
Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz.
A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma
valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente.
Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.
Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira e do
chá de erva-doce. Um misto de “dorme nenê que o bicho vem pegá” e de equações.
Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas; nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu
Nacional. Pau-Brasil.
Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça solar. A reza. O Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco
sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação militar. Pau-Brasil.
O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional.
Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.
O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser uma atitude do espírito.
O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica.
A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna.
Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos.
Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia.
Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A
vegetação. Pau-Brasil.
Manifesto Antropófago
(Oswald de Andrade)
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia
impressa.
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema
americano informará.
Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos
touristes. No país da cobra grande.
Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental.
Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.
Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.
Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a
Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.
A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.
Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao
Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos.
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.
Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel, mas sem muita
lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as
religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.
Só podemos atender ao mundo orecular.
Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.
Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das
injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
O instinto Caraíba.
Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.
Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar
cheio de bons sentimentos portugueses.
Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.
Catiti Catiti
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipeju*
A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte
com o auxílio de algumas formas gramaticais.
Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli
Mathias. Comia.
Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?
Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.
A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.
Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.
Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida.
Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.
Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.
Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.
As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.
De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.
O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas + fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa.
É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à ideia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.
O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.
A alegria é a prova dos nove.
No matriarcado de Pindorama.
Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.
Somos concretistas. As ideias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as ideias e as outras paralisias. Pelos roteiros.
Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.
Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.
A alegria é a prova dos nove.
A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modus
vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras
elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males
catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a
amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de
catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.
Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.
A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro
o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem
penitenciárias do matriarcado de Pindorama.
OSWALD DE ANDRADE
Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.
* “Lua Nova, ó Lua Nova, assopra em Fulano lembranças de mim”, in O Selvagem, de Couto Magalhães.

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