Você está na página 1de 32

TEOLOGIA & POLÍTICA

SABE LÁ O QUE É ISSO?

por

Alberto Liberato
2ª Edição Revista

Porto Alegre
2011

2
INTRODUÇÃO À CRÍTICA DO ENSINO NORMATIVO

O r o m a n ç o g a l e z i a n o : c r i s t i a n i s m o e r e v o l u ç ã o s o c i a l . Com a queda do
Império Romano, por o todo território europeu, o latim usado pelas suas populações
evoluiu para as formas linguísticas neolatinas. A resistência da Lusitânia à romanização
retardou a dominação romana que introduziu, tardiamente no norte da península, um
latim vulgar já modificado pelo transcorrer do tempo, daquele que entrara a sudeste, na
Hispânia. No extremo da península, o romanço desenvolveu-se pela fácil assimilação
entre o latim e o celta; e, como de resto, pela dominação romana caracterizada pelo
recrutamento de legionários, abertura de rodovias e escolas e, mais tarde, a concessão da
cidadania romana e, finalmente, pelo cristianismo com a sua ética niveladora e o latim
acessível dos diáconos cristãos. Formava-se o latim baixo “eclesiástico”, adotado em
detrimento do grego para a liturgia e pastoral da comunidade cristã romana, em uma
forma vulgar facilitada, devido ao sucesso que o cristianismo tivera em sua expansão nas
camadas populares. Quando a província da Hispânia passou a compor a diocese da Gália,
viu aumentada constantemente sua autonomia face ao desmantelamento do império.
Enquanto língua viva, o maior desenvolvimento para o romanço deu-se com as inva-
sões bárbaras. Foram, então, suprimidas a nobreza e a escola romanas, onde se cultivava
o latim erudito; o direito romano caiu a direito consuetudinário e foi colocado em
situação inferior aos direitos tribais, organizados sob a forma de conselhos populares,
nas assembléias do povo.
Com o avanço dos povos bárbaros, a única organização burocrática que permaneceria
após o desmantelamento do império romano seria a rede de paróquias do patriarcado
cristão romano. A seita cristã, estatizada pelo imperador ocupou a burocracia de estado
com um clero e assomou à classe dos intelectuais imperiais, continuando uma buro-
cracia intelectual criada por Júlio César, perpetuando o cosmopolitismo que impusera,
então, o latim médio como língua douta. O clero romano organizaria a dominação do
papado sobre a européia România, com táticas maquiavélicas, ao ver rejeitada a autori-
dade pontifícia pelas igrejas mediterrâneas do Oriente. Assim, organizou-se a comuni-
dade cristã do patriarcado romano para o fortalecimento econômico que lhe permitiria,
após a ocupação do espaço legal, a sua instituição definitiva no poder sob a forma de
igreja (evkklhsi,a: convocação); passa a consolidar-se o regime de cristandade.
Primeiramente, rompendo os liames de parentesco dos membros de sua comunidade
e subtraindo-os aos compromissos civis romanos, como no caso das virgens que se
desobrigam de casar. Logo, constrói um novo sistema de regras de trocas de bens,

3
ampliando a interdição do incesto e proscrevendo toda prática que punha em risco a
concentração da propriedade privada, como a poligamia, o concubinato e o divórcio;
mas, principalmente, reorganiza o direito de forma a permitir a alienação dos bens às
famílias.
Com o casamento por consentimento mútuo, a igreja cristã estendeu o direito ao
matrimônio a toda a população, apresentando-o como um benefício. Com o tabu do
incesto sujeitou os príncipes e a aristocracia laica ao poder “espiritual” em virtude dos
preceitos de saude, permitindo, com este sistema de trocas exógamo baseado no matri-
mônio, a fluidez da possessão rural, como patrimônio; a grande maioria de bens móveis
reunidos pela imensa fortuna do clero foi acumulada impedindo os parentes de
depositar na sepultura a “parte do morto”, suas jóias e bens pessoais; com a liberdade de
testar obteve doações e com o celibatismo clerical a herança de uma imensa fortuna
acumulada, somente tornada possível com o reforçamento da célula conjugal e do
matrimônio sob as suas novas leis de herança.
Os direitos tradicionais dos povos locais não interessavam à igreja. O cristianismo
elevado a fé oficial no panteon romano e instituido no direito público organizou um
direito religioso para ocupar o antigo lugar do direito sacro. E, em consequência disso, o
clero da igreja processou a codificação do método romano de resolver as questões
jurídicas, beneficiando a dominação do papado pela constituição legislativa permanente,
criando um direito normativista cujo modelo seria trazido ao Brasil, por Portugal.
O patrimônio fortalecido por estas novas regras instauradas principalmente com a
reforma gregoriana (do papa Gregório VII), regras de trocas exógamas, reorganização de
toda a transmissão hereditária dos bens familiares, foi formado por um sistema total e
absolutamente novo que não derivava nem do direito romano e nem do direito mosai-
co e, nem mesmo, do Novo Testamento. Estas novas regras impostas pela igreja romana
no ocidente defenderam e produziram a acumulação de patrimônio em proveito da
concentração da propriedade privada, criando famílias mais ricas em detrimento de
outras famílias empobrecidas. Estas novas leis, constituidas em proveito da concentração
da propriedade privada, passaram a ser regularizadas juridicamente através da jurispru-
dência das leis canônicas do Matrimônio e, com um tal artifício, foi criado, efe-
tivamente, dentro da igreja, o clero que, por isso mesmo, traz este nome (klh/roj: herdade
obtida por eleição). Se houvera um sentido metafórico na designação de clero como
herdeiros, com a espantosa afluência de riquezas que se acumulou como propriedade
privada dos clérigos, a herança espiritual da igreja assumiu os seus contornos materiais
definitivos.
No entanto, o direito cristão, ainda que oferecesse certas vantagens à população, não
seria reconhecido como o foram os direitos locais tradicionais, pelo legislador laico.
O nascimento e a organização dos feudos no meio rural e a constituição privada-
mente da igreja em sociedade religiosa, separada da vida política social, iniciou, então,
um dualismo próprio da idade medieval: uma cultura e um direito da elite ante várias
culturas populares com seus respectivos direitos populares.

4
O imperialismo católico: capitalismo e usura da igreja. Tendo como última influência o
árabe falado pelos mouros invasores, expulsos pelas cruzadas cristãs, o dialeto portu-
guês-galego aparecia, já, com alguma frequência a partir do século IX. O infante Afonso
Henriques constituiu-se o primeiro rei do ducado portucalense, que se constitui, assim,
no reino de Portugal. Começa a haver, portanto, necessidade de unificação nacional
destes territórios. Para a consecução da unidade nacional dos seus reinos, os reis cató-
licos permitiram o emprego do romanço nos documentos públicos e, finalmente, for-
jando a unidade política dos seus reinos, constantemente empenharam-se em fomentar
a cultura, abrindo escolas e elegendo o romanço para a língua oficial e unificadora. A
burocracia cosmopolita católica adotou, enfim, o ensino normativo da própria língua já
falada pelo povo.
Uma tal política, baseada no ensino normativo da gramática, abarcando todo o
volume linguístico territorial pelo seu conjunto de regras normalizantes, unificaria
politicamente o povo, territorial e culturalmente, pelo reconhecimento de uma camada
dirigente, criando um bloco hegemônico submisso ao conformismo unitário.
Nesse cenário político, o aparecimento da imprensa foi providencial para a educação
popular e o gênero literário do romance apareceu sob a forma de novelas que passam a
ser escritas e circular nas mãos da população. Todas as mudanças linguísticas de toda a
România foram frutos do desenvolvimento beletrístico que vinha se dar a par do
desenvolvimento científico preumanista, a partir das movimentações populares. A
língua portuguesa entrava no seu período histórico. Passaram a existir redações integrais
e surgiram-se as poesias cancioneiras, inspiradas na poesia provençal; fizeram-se, tam-
bém, muitas traduções e cópias plagiadas que vieram caracterizar a cultura popular
medieval. Mas, acima de tudo, o humanismo prérrenascentista fora anti-democrático,
antierético e anti-comunista, comprometido com o comensalismo burocrático.
Os humanistas se opunham à ruptura com o cosmopolitismo católico feudal que
estava implícito nas comunas populares. Contudo, a par da audácia dos reformadores
religiosos protestantes, os grandes movimentos camponeses ergueram uma verdadeira
onda de revolta contra toda autoridade, a concentração das terras e pelo direito do
homem de viver de acordo com a sua mesma consciência. O romanço era a língua
popular das comunas cuja literatura vulgar começava a se sobrepor à clássica, irrom-
pendo sentimentos com formas ideológicas plebéias. Surgida do romance novelesco,
desenvolveu-se uma rica literatura moralizante com a descrição de heróis populares, da
aventura da vida humana e do homem como o são na realidade. Aparecia a heresia!
Readquirindo o poder legislativo, o papado proclamou a primazia do poder “espi-
ritual” sobre o estado. Com o crescimento e a organização dos feudos sob a forma de
reinos independentes, a igreja impôs a sua autoridade e o direito canônico tornou-se
obrigatório à toda população, por ser acolhido entre as leis do estado. Mas não reduzido
a direito pessoal pelo povo, o direito canônico assumiu sua importância na economia
jurídica das novas formas estatais e na formação da mentalidade burocrática imperial
medieval católica. O papa constituiu-se no senhor feudal dos senhores feudais, legiti-
mando estes como nobreza e firmando o poder político como divino.

5
Começou um rápido desenvolvimento do comércio terrestre e o surgimento dos
burgos como sociedades comerciais, alcançando o comércio uma proporção grandiosa.
Mas os produtores artesanais e pequenos produtores rurais cairam na miséria, explorados
pelos comerciantes que enriqueceram, os burgueses ascendentes. Enquanto estes peque-
nos produtores e artesãos, perdendo a sua independência econômica, converteram-se
em trabalhadores assalariados, sem bens materiais e a igreja estimulava o desenvolvi-
mento do pré-capitalismo, visando os fartos proventos dos dízimos cobrados aos novos
ricos, a burocracia do estado acabou passando a ter seus aparelhos burocráticos domi-
nados pelo poder econômico da nova classe, a burguesia, que forçava violentamente os
camponeses a abandonar suas terras e tornarem-se trabalhadores assalariados, junta-
mente com os artesãos.
Toda essas populações empobrecida e aglutinada nos centros urbanos passaram a
viver uma vida miserável, sujeitas à constituições legislativas que as alienaram dos seus
antigos direitos e compromissos, devidos pelos senhores feudais e mestres de ofícios, e,
seduzida pelo logro da liberdade falsa que a escravizava à burguesia viram-se obrigadas a
trabalhar para estes ricos comerciantes, agora donos de fábricas que emergiram com o
aperfeiçoamento das máquinas, extinguindo as manufaturas medievais. De todos os
comerciantes, os que mais enriqueceram foram os cambistas, que comerciavam com
dinheiro e tornaram-se banqueiros.
A igreja cristã não somente deu continuidade às operações creditícias dos antigos
templos dos gentios, mas desenvolveu-as em grande escala.
A igreja católica criou o Banco do Espírito Santo, com um fabuloso capital inicial
sacado da exorbitante riqueza que acumulara em seus cofres. Seu propósito fora tornar
mais expedita a exação e facilitar o pagamento de dízimos e indulgências e a usura. Mas
não satisfeita com a posse de um banco particular, autorizou alguns mosteiros e templos
a comerciarem com dinheiro, à usura. Enquanto, ao mesmo tempo, proibia seus fiéis
que cobrassem juros por seu dinheiro. O papa lançou, também, um anátema e conde-
nou às masmorras pontifícias os populares que emprestassem dinheiro a juros, mesmo
que o juro fosse menor do que aquele que ela exigia pelo seu próprio dinheiro.
Ambiciosa, assegurava para si o monopólio absoluto na exação dos juros.
O papa declarou mesmo que a exação dos lucros era admissível e que aquele que
assegurasse o contrário seria excomungado, apesar das prescrições evangélicas escritas na
BÍBLIA.
O poder papal expandiu-se através do discurso intelectual do qual a igreja tornou-se
detentora exclusiva. O discurso do poder adotou como ideologia o direito romano e
passou a interpretá-lo sob as novas formas de vida originadas nas novas estruturas sociais
de parentesco e troca de patrimônio, das relações familiares e civis criadas pela nova
postura moral cristã católica. O monopólio das supraestruturas socio-políticas pela
igreja fez confundir o especialista intelectual com o clérigo e os padres tornaram-se,
além de comissários do consenso “espontâneo”, também policiais da coerção legal. Os
clérigos tornaram-se médicos ou juristas e detiveram toda função intelectual.

6
A imagem estereotipada da moral liberal das práticas religiosas superadas e os laços de
parentesco abandonados pela moral católica, supostamente cristã, projetou-se na figura
matriarcal da grande mãe, identificada como bruxa demoníaca. De fato, as práticas de
demonismo sobreviveram na cultura de uma população que reconhecia na igreja e no
seu clero somente opressores e avaros gananciosos. Mas foi principalmente por serem
especialistas leigas, isto é, profanas “não-especializadas”, que mulheres estereotipadas
como bruxas passam a ser perseguidas pelo seu prestígio tradicional junto às populações,
devido às suas múltiplas funções sociais orgânicas de médica, advogada, juiza e sacer-
dotisa, que agora, assumindo o aparelho religioso-burocrático-estatal do Império
Romano, a igreja rivalizava. Papas usavam feitiçarias na sua luta pela obtenção da tiara.
Utilizando-se do cristianismo como um mero aparelho ideológico do estado na
cristandade, mas transformando-o e desenvolvendo-o em seu aspecto opressor, a igreja
manteve a concepção pedagógica da Antiguidade, juntamente com os seus princípios
políticos. Assimilando e sincretizando os grandes sistemas filosóficos estóico, neoplatô-
nico e gnósticos da Antiguidade, a divisão entre o empírico e o ideal platônico orientou
a pedagogia escolástica tomista pelos rumos do aristotelismo, que buscava a imitação de
um modelo ideal. Constrangida por este modelo ideal e utilizando categorias estoico-
gnósticas, a pedagogia cristã não podia conceber o conhecimento como aquisição de
experiência, abandonando, consequentemente, o sentido do conhecimento judaico. E,
assim, apostatando da verdadeira doutrina cristã, não poderia buscar o pleno desenvol-
vimento da personalidade moral através das experiências da vida quotidiana. Então,
ainda com mais intensidade, acentuou o conflito interior de um homem dilacerado
entre a matéria e o espírito.
O desenvolvimento de uma teoria do Pecado Original, obsecantemente sexualizada
pela misoginia, e das suas consequências duradouras servia de advertência contra a reali-
dade física e, com isso, ela submeteu o homem ao poder oculto da metafísica, através da
morte e da Vida Eterna. O próprio conceito gnóstico de Vita Æterna foi cristalizado na
sua doutrina herética e anti-cristã e introduzido com o uso do latim no Evangelho, pela
tradução imprópria da expressão grega “tempo presente” (zwh, aivw/noj: vida do tempo). A
expressão “eternidade” é originária da cosmovisão gentílica de práticas demonistas de
desenvolvimento de mediunidade. O Éter (VAi,qer), para os antigos, era o espaço sob o
céu, mas acima do Ar (VAh,r), ocupado pelos demônios, os quais, na sua “eternidade”,
apresentavam-se aos olhos humanos em suas verdadeiras formas de estrelas. Entendia-
se, naqueles dias, que estrelas cadentes fossem descidas de demônios à terra para
apresentar-se em suas epifanias. O conceito de éter que os antigos criam assemelha-se
ao atual conceito de mediunidade dos espíritas modernos.
O cristianismo católico substituiu o belo e bom, objeto da maiêutica socrática por
uma revelação adulterada com a tradução bíblica latina da Vulgata. Com princípios
pedagógicos aristotélicos buscava de forma autoritária e dogmática uma equivocada
suposta essência “verdadeira” do homem.
Transformando-se no próprio estado, a igreja católica romana distanciou-se do
modelo democrático das outras igrejas irmãs, que a circundavam no Mar Mediterrâneo.

7
Adotava o modelo político naturalista e, para mediá-lo, o sistema pedagógico essen-
cialista; ambos os modelos são autoritários e são, também, ambos naturalistas, chama-
dos aristotélicos. Este modelo revelava-se apropriado para a construção do poder políti-
co e da ideologia da classe social dos burgueses.
O modelo autoritário de dominação é um modelo social natural porque desen-
volveu-se naturalmente na política familiar da tribo primitiva; dando-se o apossamento
das atribuições de rei pelo pai exatamente no momento histórico em que a humanidade
atravessava o período silábico do desenvolvimento da escrita. Na concepção política
autoritária funda-se a organização social em uma desigualdade suposta como natural:
dependência entre superior e inferior em que se baseia a dependência hierárquica. Uma
estrutura paternalista e pré-capitalista que o rei de Portugal implantaria nas suas colônias
ultramarinas, através dos seus vice-reis.
Quando a sede do vice-reinado tornou-se a capital do império colonial lusitano e a
corte real portuguesa se transladou para o Brasil, acompanhando o príncipe regente, foi
trazida a sua clientela burocrática burguesa e organizaram-se os alicerces do patrimo-
nialismo colonial que formaria a república positivista brasileira sobre bases naturalistas.
O modelo naturalista é um modelo plural e aberto: da família ao estado os graus
intermediários podem variar de número. Num tal modelo, a liberdade não é conside-
rada um atributo do homem, mas como uma qualidade acidental que alguns obtém
pelo nascimento, por determinação natural. Trata-se, evidentemente, de uma concep-
ção bárbara de dominação e exploração do homem pelo homem que é naturalmente
beligerante, porque supõe a supressão de um estado de guerra através da divisão em
classes hierárquicas de indivíduos: o estado monárquico; tornado constitucional pela
burguesia. E este modelo também é naturalmente falso.
Uma outra ideologia, ou falsa concepção de modelo social, que igualmente pressu-
põe um estado de guerra foi o modelo seguinte criado pela burguesia: o modelo racio-
nalista, o qual supõe a guerra permanente entre indivíduos iguais. Concebida a partir das
necessidades e aspirações da classe burguesa, a teoria racionalista surgiu como a capaci-
dade potencial de acabar com a miséria da guerra permanente de indivíduos imaginados
em igualdade de condições. O racionalismo foi uma ideologia que criou o direito indi-
vidual, o direito natural individual que organizou o estado burguês, a primeira forma de
socialismo. Dava-se, assim, o surgimento natural do socialismo bárbaro: a democracia
representativa eleita; elegia-se uma nova modalidade de clero: o político, o burocrata do
estado moderno.
Para destronar os reis, a burguesia inventou o consenso racional da democracia, que
o sistema econômico capitalista por ela desenvolvido não permite nunca consumar-se
de fato. O racionalismo burguês criou ideologicamente uma democracia utópica, base-
ada no sistema natural da cultura; uma concepção ideológica que remodelou e moder-
nizou a expressão das teses fundamentais da filosofia e da pedagogia que utilizavam a
tradicional noção de essência do homem para coagi-lo à submissão hierárquica “natu-
ral”. Seu artifício foi afirmar que os homens, enquanto indivíduos, seriam “natural-
mente” iguais.

8
Pode-se ver, portanto, quer os elementos que se propunham fornecer uma definição
duradoura das normas de vida e de conduta da filosofia platônica e aristotélico-tomista
foram reunidos pela teoria do direito da Natureza, através do seu fundamento último: a
concepção filosófica estóica das relações políticas.
Mas a filosofia estoica da Natureza nada tinha de cristã, pelo contrário, sua essência,
suas categorias e seu destino eram demoníacos; demoníacos no sentido de pertencerem
à realidade espírita, não cristã.

Mantinha-se a velha estrutura socio-política Antiga anti-cristã: o estado.

A gramática gerativa: moralidade e aprendizado. O humanismo trouxera ao renasci-


mento as conservadoras concepções pedagógicas de um princípio fundamentalmente
essencialista, herdadas das tradições antigas, gentias (agora chamadas pagãs) e anti-cristãs,
desenvolvendo-as ainda mais; admitindo somente algumas concessões em relação aos
meios práticos de as realizar.
O uso da gramática normativa nasce sempre da necessidade de domínio político. O
uso do latim como língua douta, o latim médio usado com sua gramática normativa foi
o primeiro ato pedagógico de política imperialista, implantado na cristandade, cuja
consequência histórica foi a forma cristalizada do latim médio como língua oficial do
cristianismo ocidental nos processos burocráticos. O segundo ato político pedagógico
do império foi o ensino normativo do romanço; o que lhe matava a vivacidade orgânica
e o cristalizou. Existe na moralidade um impulso de ascensão linguística, cultural, eco-
nômica e social que busca a nivelação pela classe dominante. A moralidade tem sido um
agente de dominação que explora as possibilidades da gramática gerativa, através do
absolutismo gramatical na escola.
O enorme e paciencioso trabalho de aprendizado das regras de gramática requer do
aprendiz um processo de disciplina e adestramento militar. A gramática normativa, que
somente por abstração poderia ser considerada separadamente da língua viva, tende a
fazer com que se aprenda todo o organismo da língua em questão e criar uma atitude
espiritual que torna as pessoas capazes de se orientar sempre no ambiente linguístico. O
desempenho do aprendiz no seu processo de aprendizagem assimila esquemas que
constroem um determinado pensamento lógico, definindo certos fatos observáveis que
estabilizam o desenvolvimento cognitivo num específico nível de observáveis.
Devido à propensão da estrutura linguística genética humana inata para a linguagem s
observáveis que esquematizam o pensamento lógico determinam a aquisição das regras
certas, em relação às possibilidades no curso da vida, por etapas maturacionais, em
porções graduais acessíveis ao aprendiz, mediante o crescimento linguístico com pro-
gressivo conhecimento das particularidades da sintaxe. As regras inflexíveis da gramática
gerativa do inconsciente coletivo, idealmente selecionadas e agrupadas sob o critério
político da classe dominante, visam a uma homogeneidade, um modelo culto escrito,
desenvolvido sobre a matriz biológica fornecida pela estrutura inconsciente inata
desenvolvida sobre o programa de um sistema geneticamente determinado, que serve de

9
base para o desenvolvimento próprio da codificação linguística especificada pelo ensino.
Insere-se o aprendiz num determinado discurso linguístico que domina com sua
regência não somente a fala, mas, principalmente, o comportamento. A resolução é
intuída por associações de sistemas, comparações e conclusões sintéticas, até o estado
estacionário final; um determinado estado de programação composto de uma estrutura
de esquemas e princípios deduzidos, determinadores da mentalidade e comportamento
específicos.
O ensino da teoria gramatical ao educando, o treinamento forçado pela interna-
lização de qualquer estrutura de discurso autoritário é o treinamento que prepara a
aptidão do indivíduo ao condicionamento de submissão ao discurso do poder. Como
todo fenômeno existencial se representa na mente da criança integradamente em uma
estrutura, por intuição, o aprendiz aprende toda a extensão do seu comprometimento,
do seu inserimento naquela estrutura de discurso, de forma subconsciente, já desde a
aquisição da fala.
A profunda teoria elaborada pelo nascituro através da observação do comporta-
mento moral e socio-verbal e das regras gramaticais está sujeita à própria teoria da
comunicação: o que o aprendiz aprende é a sobreviver numa sociedade opressora.
Já, de início, ele deverá conviver com um complexo edipiano de castração; ou de
Electra. No caso da escola, o ensino da lecto-escrita aos alunos atrofia o desenvolvi-
mento da aquisição de conhecimentos pela imposição de um método abortivo da
psicogênese espontânea da lecto-escrita, que é o ensino da gramática normativa pela
alfabetização sintética. Isso revela o desconhecimento, pela escola (pelo estado), do fato
básico que o conhecimento da gramática, o domínio prévio das suas regras foi a
condição primeira para a possibilidade da fala, por mais simples que seja este ato de fala.
Pelo processo da comunicação social do discurso dominador, a escola fortalece a
submissão ao autoritarismo, através do ensino da lecto-escrita, onde a imposição se dá
usualmente pela figura do mestre, assumindo uma figura paterna repressiva, impondo
ao educando um saber. A este modelo chama-se essencialista por impor–se como um
objetivo a alcançar.
Como a teologia natural cristã considera o homem essencialmente pecador, o
naturalismo pedagógico defende o princípio que a educação deva formar o homem de
acordo com uma finalidade previamente estabelecida, fazendo a distinção daquilo que
suponha a verdadeira essência do homem, mas concebendo-o como um ser natural-
mente mau. Esse argumento demonstra a necessidade da própria pedagogia tradicio-
nalista para dominar o indivíduo de forma semelhante à que a própria religião antiga se
tornava necessária para controlar a mediunidade. Apresenta-se repressoramente o
modelo essencialista a fim de conter eventuais irrupções da libido sob a forma de
reprimido psicanalítico. Os efeitos mais dramáticos tinham como consequência as
possessões demoníacas na forma de epifanias.
Após uma relativa vitória no combate ao demonismo, a igreja perdera o referencial
de leitura de seus próprios princípios, vendo-se deslocada para um novo cenário onde
pouca infuência se verificava das forças mediúnicas. Assim, herdeira da cristandade, a

10
filosofia burguesa perfilha a orientação principal das investigações no domínio das
ciências sociais, retomando particularmente o estoicismo (a exemplo do espiritismo e
da doutrina kardecista), e utilizando os resultados humanísticos das incipientes ciências
da natureza para definir a moralidade e dominar toda atividade humana.
Assim, construido para orientar o aparelho repressor do estado burguês, o jusnatu-
ralismo, determinando o princípio da igualdade, a igualdade idealista do racionalismo,
veio se opor ao historicismo que determinava os princípios da autoridade, porque o seu
modelo era a reunião de todos os indivíduos, cada um isoladamente em estado de
suposta liberdade, igualdade e independência recíprocas. O contrato social, que passou a
unir racionalmente todos estes indivíduos, pressupunha sujeitos livres e iguais para o uso
da razão; mas fora, apenas, por deter uma ideologia individualista que sua ética tornou-
se aparentemente racional. Na verdade a existência desses indivíduos será sempre e
necessariamente social.
Foi, assim, construída uma ética separada da teologia que permitiu uma análise
racional, orgânica e que diferiu da concepção igualmente idealista da teologia; a qual
deu, então, o homem ”a priori” como autônomo e livre por excelência, sem nenhuma
ligação nem com o desenvolvimento intelectual biológico e nem com a situação social
econômica; e muito menos com uma condição de “eternidade”, isto é, mediunidade.
Surgiu, então, por essa época, a noção de ideologia no despertar da questão existen-
cial do homem no mundo; e surgiu e se desenvolveu a ciência matemática da Natureza
que se expandiu por todas as ciências. Desenvolvia-se, então, precisamente a ciência
matematizante da utilidade, a Aritmética Política, como inicialmente foi chamada a
economia. A expansão da economia no universo cultural fora semelhante à do estrutu-
ralismo que, incipiente, estendeu a ciência da linguística à todas as ciências.
Abandonando toda referência medieval ao místico, os anseios de modernidade
adotaram a razão matemática como pura positividade. Sua maior expressão foi o
positivismo adotado como filosofia da religião da pátria; mas da nova pátria burguesa, a
nação moderna, e não a pátria goética da Antiguidade. A forma perfeita desta nação
moderna era, enfim, a república democrática.
A república, no Brasil, nasceu, portanto, sob o signo do humanismo e com uma
imensa e hipócrita significação de paz no lábaro estrelado de seu emblema nacional,
com uma divisa positivista, cristalizando as forças armadas no governo do país. A divisa
provocou a maledicência clerical, pela derrubada da monarquia que lhe garantia os fartos
proventos, e abalou a opinião pública educada na concepção divina de poder político,
expresso, ainda hoje, no preâmbulo constitucional. A tese da liberdade religiosa revela-
se, assim, um desafio face à solução teológica. Desafio não resolvido e ameaçado pelo
fundamentalismo bíblico evangélico, após um século de república.
Enfim, tendo sido transplantado o modelo de comodato da burguesia portuguesa
para o Brasil, a burocracia brasileira desenvolveu-se num sistema complexo de órgãos
públicos a viver de si para si, com o crescimento da estrutura administrativa dado pelo
aumento das funções do estado acompanhando o aumento da prole das elites; mas
ignorando o proletariado. Os filhos do burguês foram ocupar um lugar ao lado dos

11
rebentos da nobreza no Parlamento. A ideologia escravista, pejorando o trabalho, levou
as famílias nobres e burguesas, unidas pelo sistema burocrático feudal português, a
distribuir os filhos secundários pelo exército, a igreja e esta quimérica burocracia de
estado. Não podiam ocupar o lugar dos primogênitos como senhores rurais e não
queriam igualar-se aos escravos trabalhando.
Do bacharelismo formado pela academia nasceu o empreguismo público no Brasil, o
sistema de autoridade tradicional onde a finalidade do estado identifica-se com o bem
particular do grupo dominante. Este funcionalismo passou a realizar-se através de um
emaranhado de normas jurídicas, redundando na centralização do poder pelo exagero
do formalismo jurídico-burocrático; formalismo que se torna um poder real, no dizer
de Marx. Numa carta, Engels chama de “positivismo de merda” aos tais princípios de que
se serviu a burguesia nacional, esquiva ao movimento internacional dos trabalhadores
europeus, quando proclamou a República.
A proclamação da república brasileira foi uma insurreição de uma parte da elite bur-
guesa que tornou-se revolução pelo sentido ideológico positivista dado pela campanha
maçônica e as suas lojas. Propunha-se o fim do sistema naturalista da igreja.
O pensamento positivista estruturado sobre os princípios jusnaturalistas de igualdade
absoluta e eterna da natureza humana, valorizava a invariabilidade de ideais humanos
supremos simbolizados pelo conceito pagão de Pátria.

A burocracia, o positivismo, a desarticulação do saber. A desmitologização das arcaicas


fórmulas teológicas do pensamento pela burguesia brasileira revelou-se, contudo, nada
além de continuismo do enfoque da dinâmica social como intelectualismo essencial-
mente metafísico: um novo poder espiritual, a Pátria, assumiu secretamente a direção da
sociedade na construção do estado, na sua filosofia comtiana. O positivismo tentava
conciliar os interesses antagônicos da sociedade burguesa, o conflito entre as classes
proletária e burguesa determinando o reforço de mecanismos coercitivos, o aumento
do poder despótico, para harmonizar a dialética política compreendida como casualidade
recíproca.
A sua ética universal deveria dar ao cidadão o sentido global da verdade, cuja
moralidade baseava-se na lógica econômica desta estrutura social: o liberalismo. A
lógica da estrutura social burguesa, a liberdade do mercado, seria a base do elemento
moral e jurídico positivista, causa da abstração da subjetividade humana, isolada em face
da concreção da totalidade social. O positivismo jurídico reproduziria em sua estrutura
interna as exigências próprias da sua função social burguesa, refletida internamente no
fortalecimento da função autoritária, condicionando a função política hegemônica.
O positivismo considera o estado como fonte central de todo o direito e a lei como
sua única expressão, para invocar a validade da sua função socio-política de uma ciência
hegemônica do Direito. Expresso como um humanismo, o direito positivo normativista
visa justificar a realidade social por meio de um conhecimento padronizado, o senso
comum teórico dos juristas, valendo-se, para isso, de uma vulgata do naturalismo.

12
O consenso jurídico estabelecido em torno do monopólio de força do estado, ou o
seu poder de coerção assumido pela burguesia nacional, decorre da necessidade de
eliminar as incongruências da construção sistemática da estrutura burocrática: regras
jamais questionadas por serem elas próprias a supraestrutura que contém a luta de
classes. A conciliação aparente da retórica jurídica projeta uma relação utópica de
relações e esquemas lógico-formais, apresentando harmoniosamente linear e progres-
sista a sociedade burguesa, tal como se dá na economia clássica.
Na verdade, o isolamento da disciplina do direito, à semelhança da teologia, inter-
cepta-lhe qualquer vinculação orgânica, setorializando múltiplas áreas de especialização,
sem visão das situações sociais, desestruturalizada da totalidade real, porque sem sentido
de justiça social, mas em nome da defesa da Lei, fragmenta-se no direito comercial,
direito civil, direito tributário, etc.; como a teologia em teologia bíblica, moral,
dogmática...
A contraditória liberdade burguesa, princípio de legitimação de seu modelo de
sociedade política, o consenso utopicamente democrático e supostamente racional
entre os cidadãos, não é orgânica, mas cristalizada por um processo pedagógico baseado
na estrutura exogâmica da interdição do incesto e perpetua-se pela resolução universal
do complexo de édipo. Na sociedade burguesa, acima de qualquer Declaração Universal
de Direitos do Homem, paira a resolução universal do complexo de édipo.
A necessidade de espelhamento entre os meninos e a compulsão para a cooperação
entre os rapazes são esmagadas pela imposição da competitividade, determinada pelas
leis do mercado e as exigências da guerra burguesa. A amizade é substituida pela
propriedade privada e o amor pelo lucro.
O fato é que, na verdade, não existe o suposto contrato social porque não houve
deliberação. Existe somente obediência às regras onde ninguém possui autonomia. Os
conceitos de certo e errado são aceitos submissamente por imposição de uma neces-
sidade de legitimação da incerteza individual, devido à insegurança moral coletiva. A
moralidade da lógica estrutural mata toda pulsão que considera inadequada, reprimin-
do-a pela auto-censura. E se isso não for suficiente intervém a polícia do estado.
A moralidade da lógica social permite somente a manifestação do que parece
conveniente à organização do equilíbrio de forças psico-sociais, equilíbrio criado pela
dicotomia entre o que seja socialmente correto ou incorreto e introjetado no indivíduo
pela função paterna castradora; o que estimula os impulsos psíquicos secundários de
agressão mórbida e vontade de poder. Este é o fenômeno histórico que tem caracte-
rizado o patriarcalismo dissimulado na representação democrática socialista, quer sob a
forma burguesa, quer soviética.
Dessa maneira, organizada uma sociedade neurótica, até nitidamente dividida em
classes sociais (a experiência do comunismo real não escapou a isso ), a enantiodromia desen-
cadeia seus processos de desorganização, de caça às bruxas. A introjeção dos conceitos
de bom, o Bem, pela identificação empática com a figura paterna simbolizada pelo
arquétipo divino, resulta na projeção inconsciente dos próprios desvalores sobre o este-
reótipo de Mal, cuja vítima torna-se inadvertidamente o bode expiatório, uma bruxa.

13
A escolha que o indivíduo é levado a fazer leva-o à cobrança irremediável da
sociedade pelo sacrifício que lhe causa o sentimento de angústia da opção feita para a
lógica da estrutura social, em detrimento de si mesmo, do seu impulso de prazer. O
velamento de uma parte da visão da realidade, a consciência alienada, o sentido alterado
ou desvalorizado, impõe a sublimação em função da lógica social, da moralidade.
Sujeito à sublimação, o indivíduo necessita encontrar um desvio para a representação
psíquica dos fatos sociais, um significado relativamente falso para o momento, baseado
naquilo que a sua educação lhe permite, uma ilusão de futuro. A consciência torna
insuficiente os dados, criando um sentido interno subconsciente para a percepção do
sujeito, com uma noção falsa que dificulta a comunicação social: uma subjetividade
alienada, uma falsa consciência, uma ideologia.
E, justamente, a ideologia, abstraída da realidade concreta, não permite a comuni-
cação entre os membros desta sociedade neurótica; o sujeito não percebe exatamente a
realidade, por não perceber a si próprio, mas forja para si uma auto-imagem baseada na
totalidade social, pela sublimação. Apenas as mulheres, mais ligadas à terra, mantêm
alguma ligação com a realidade; ao menos a sua própria realidade emocional. Por isso
encarnaram o estereótipo de bruxas.
A moralidade, de fato é preciso concordar com Roland Barthes, é uma mistura de má
fé com boa consciência.
O contrato primitivo, a família, fora sempre o instrumento histórico da transmissão
automática das pressões sociais; mas, agora, sob a forma de estado político, tremenda-
mente aumentadas. É, então, primeiramente através da família, antes que da escola, que
a opressão do estado perpetua a dominação fabricando cidadãos submissos pela
repressão internalizada, domesticados pela função paterna patriarcal, da qual o professor
de escola é uma mera sombra. A situação social reproduzida analogamente à família
redunda em uma neurotizante internalização das regras: neurotizante porque tem no
outro um inimigo que coloca em prática, pelo conflito, a liberdade para si. O conflito
revela-se como a expressão da dominação e da repressão social, a condição da opressão
política.
A divisão da consciência ao buscar o reequilibro, suprimindo a percepção e variando
o valor da representação significativa, não permite uma mudança de papéis sem a sub-
versão da ordem de valores determinados ao comportamento: desorganiza a ordenação
do agir e torna perplexo o sujeito. Então, o inconsciente funciona complementando a
percepção alienada pelas deformações de valor e significado que a consciência sofre,
impostas pela educação e as circunstâncias econômicas, porque a consciência total das
contradições não permitiria ao organismo, em constante mudança, produzir um ato.
O poder estabilizador da palavra torna-se a base eterna da certeza. Mas a palavra
expressa apenas a realidade social, porque sendo um resíduo subjetivo das representações
existenciais, não possui a virtude de comunicar a instantaneidade da realidade humana.
A palavra corta e divide, estabilizando o estado de espírito perplexo e flutuante da
fantasia, separando a alma do corpo e causando uma ilusão de segurança. A palavra, a

14
fala é o princípio que dá sentido à ação, porque falando adoramos o próprio Verbo que
nos vem em auxílio como Lei.
Para se permanecer firme na divisão interior necessitamos orar diariamente, conversar
ou rezar.

Língua e gramática normativa: a lógica social, a sublimação e a fala. A bruxa ritualiza o


poder da palavra no esconjuro dos feitiços. Os esconjuros são sucessivos como o
discurso da própria fala também é sucessivo e linear, porque as palavras não representam
senão simplificando. Falsificam os fatos que são globais e simultâneos, os fatos são
sócio-verbais e históricos, enquanto as categorias gramaticais são apenas verbais. Mas o
indivíduo quando fala valora e valoriza valores.
Qualquer língua é uma classificação, uma ordenação: partição e cominação. A língua
é um código de uma legislação constituida na linguagem que determina não apenas a
forma de falar, mas também de pensar, pela autoridade da asserção da constatação. A
língua subjuga pela fala. O maior perigo que se nos apresentam os meios de comu-
nicação é o de falarmos todos uma língua universal normatizada, porque o poder é
parasita da língua. A língua é a expressão obrigatória da ubiquidade do poder e ele é, de
alguma forma, resistente à literatura pela sua onipresença.
Na verdade, pode-se dizer que há, de fato, em todas as línguas, ainda que não escritas,
uma ou mais gramática normativa, constituida pelo controle e ensinamento recíprocos,
pela censura da caricatura e ironia. Este complexo de ações determina o conformismo
gramatical e estabelece as normas de forma espontânea e descontínua, ao limitar os
grupos sociais ou locais na permissão de formação de dialetos, dando a “liberdade”
necessária para se buscar uma língua comum, mas não de caráter universal. A existência
de dialetos exige a existência de uma norma linguística compartilhada por um grupo
social e a variedade dialetal distingue-se politicamente no processo histórico, que dá o
prestígio econômico a uma variante dialetal da língua. O caráter político deste processo
já permitiu dizer que a língua é um dialeto com um exército e uma armada. Este dialeto
padrão torna-se a gramática normativa que unifica espontaneamente, a partir de um
bloco historicamente situado.
Entretanto, não se pode esperar que se obterá uma língua unitária, como o Espe-
ranto, por exemplo. Obter-se-á uma língua unitária somente se houver tal necessidade
histórica e a intervenção organizada acelerará a rapidez de um processo já existente. Mas
qual venha a ser esta língua é algo que não pode ser previsto e, muito menos,
estabelecido; porque se houver uma intervenção “racional” ela se ligará organicamente à
tradição, o que tem uma importância fundamental na economia da cultura. No nosso
exemplo, o Esperanto, criado artificialmente pelo espírito de Ludwig Zamenhof, mesmo
que concorde com a estrutura genética gramatical e tenha obtido a maior simplificação
possível dos esquemas gramaticais, será fragmentada em toda parte do mundo pelas
populações locais, sob a forma de dialetos.
O Esperanto é uma língua de transcrição fonética e iste é seu maior erro, porque uma
escrita não deve ser a transcrição fonética da fala. O sistema de escrita deve ser ideo-

15
gráfico para adaptar-se com facilidade às variantes dialetais de pronúncia. A represen-
tação fonética dificulta a apreensão analítica, desviando o leitor com detalhes superficiais
irrelevantes para a compreensão, não permitindo-lhe aceder mais diretamente ao nível
significativo do texto. O problema consiste no reconhecimento do lexema e não o do
fonema, para que a escrita permita a transcrição de todos os dialetos da língua falada. a
regularização da conjugação dos verbos, como na língua inglesa, foi apropriada ao
Esperanto. A maior regularidade na grafia inglesa não respeita porém, a forma fonética
observável, mas ao separar amiude as correspondências fonema-grafema, que alcança
um nível mais abstrato de representação lexical. Isto deve ser factível para o uso do
Portunhol na América Latina, caso se obtenha a orientação revolucionária apropriada à
reformulação da educação moral, que crie novas perspectivas de vida.
A moralidade bárbaro-capitalista do imperialismo católico subjugou a América
Latina ao imperialismo burguês, colocando-a numa perspectiva de desumanização tão
extrema que, para a elevação da vida quotidiana acima do nível atual, urge facultar
condições à vida humana e encorajamentos, garantias e organização para lastrear o
desenvolvimento e a devida formação social das camadas subalternas, tornando cada
cidadão um membro responsável da democracia; reabilitando-o de indivíduo para
homem.
Uma pedagogia escatológica, mas não essencialista, que aplique basicamente o
método científico à ética religiosa, para unificar o conjunto da Ciência e criar uma
filosofia de compreensão das condições da existência do homem latinoamericano, será o
único caminho para uma ação social inteligente. E para a valoração da boa-vontade
eliminadora das repressões que liberam a morbidez do impulso secundário de resistência
do instinto de sobrevivência, que se impõe como agressão e violência e sucumbe ao
fascínio da má conduta. Uma pedagogia que, ao contrário da morbidez autoritária do
essencialismo, utilize a impulsão da própria força interior do indivíduo em uma
adaptação que não lhe seja o motor, mas, apenas, uma imagem apreendida pelo espírito
do conjunto dos resultados desse processo espontâneo que é a própria evolução.
Dentro de uma sociedade cujo feiticismo não tolera a crítica da realidade existente e
que, por esse motivo, reduz a atividade pedagógica ao conformismo; não sendo
pedocêntrica, mas uma pedagogia cuja didática é a adaptação pela técnica da subli-
mação... Numa sociedade que adota uma pedagogia personalista, individualista e
desumanizante, a criação de uma língua como o Esperanto evidencia-se um erro
linguístico menor que o erro político: uma língua não revelada, arbitrária, enquanto a
verdadeira língua é em si mesma literatura, arte; é história: a sua origem é um problema
insolúvel!
A variedade dialetal, permeando a concepção existencial dos indivíduos, permite uma
heterogeneidade de ideologias. Uma variedade dialetal propicia melhores experiências
sociais e educacionais pela busca de um equilíbrio conflitivo no consenso deliberativo
que não é possível de ser admitido pela arbitrariedade autoritária, porque a dominação
não admite conflito, ela o sublima.

16
O autoritarismo mantém a tendência de buscar a educação nos princípios imutáveis
que determinem uma vocação eterna e universal para o homem.
Mas a vocação do homem é a liberdade; prometida pelo cristianismo, mas esquecida
pela igreja.

Antropologia do pensamento e reforma religiosa: a Teologia da Libertação. Como


forma de escapismo à angústia insolvida do impasse político, a multiplicação das seitas
religiosas tornou-se uma exigência da necessidade das massas populares de uma fusão
completa entre intelectuais e povo. A falta de ligação orgânica, experimentada pelas
massas com políticos burgueses ou representantes sindicais reclusos a uma aristocracia;
mas todos descompromissados e desqualificados, alguns intelectualmente, quase todos
moralmente; foi fruto da visão autoritário-hierárquica feudal, de adesão espontânea ao
sistema (estoicista) de ambos os lados. Por ser holista, isto é, hierática se expressa
especialmente na religião. Mas é um claro reflexo da própria moralidade.
O modelo político brasileiro constituido sob a ideologia hierárquica do modelo
feudal católico-português, herdado do império pela república, viu, naturalmente,
multiplicarem-se ilimitadamente as seitas religiosas. Primeiramente, com o afastamento
do clero católico e seu enfraquecimento junto às camadas populares, sem a contra-
partida da sedimentação de intelectuais orgânicos no aparelho burocrático do estado. Os
representantes “democráticos” rapinam os cofres públicos de maneira tão vergonhosa
que a população que os elege, sem a devida consciência do processo político real, mas
iludida por uma publicidade de marketing do estado, a todos eles vê como traidores
oportunistas, simples “ladrões” do erário.
Em sua busca pela felicidade, a população brasileira acostumou-se, afinal, a passar
pelos cultos goéticos de magia negra européia, enviada pelo rei de Portugal com uma
leva de ciganos, em 1530, em sua trajetória dos templos católicos aos evangélicos em
busca de soluções mágicas para os seus problemas políticos. E, em qualquer das instância
deste percurso, norteando-se por um pensamento essencialmente mágico. Antanho
puramente demonista, hoje espírita, com entrismo nas teologias cristãs católica e
evangélica; e nenhum, absolutamente, racional.
Não obstante a cosmovisão demoníaca do espiritismo que as embasasse, a mediação
do cristianismo com o modelo consensual racionalista produziu uma forma de pensa-
mento característico nos paises protestantes que diferencia-se dos paises latinos por seu
simbolismo próprio, diferenciado do simbolismo naturalista católico.
Uma análise antropológica realizada por Roberto Kant de Lima demonstrou ser o
costume norteamericano estruturalmente diferente do costume brasileiro. Por exemplo:
ao invés da proposição hierárquica e diferenciadora, expressa na interrogação largamente
empregada no Brasil: “Você sabe com quem está falando?”, encontra-se no uso popular
norteamericano esta outra expressão: “Ponha-se no seu lugar!”, que indicaria com mais
propriedade o igualitarismo dos contratantes livres da sociedade socialista, dado pelo
consenso racional, ao invés da hierarquização social de uma clientela patrimonialista.

17
E, principalmente, as características formais da disciplina acadêmica e sua metodologia
de escritura científica, demonstrou o pesquisador brasileiro, seriam regras que passaram a
permear e orientar a expressão da nacionalidade norteamericana nas áreas dos negócios
do planejamento, do direito e da economia mundial, através dos executivos formados
pelas suas universidades, dada a posição que a universidade e a sociedade yankies ocupam
na conjuntura imperialista (Comissão Trilateral). A metodologia científica norteame-
ricana influenciaria preponderantemente na organização do comércio internacional, nas
negociações diplomáticas entre estados, na formulação de políticas econômicas e na
atuação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da Organização das Nações Unidas
(ONU).
Enquanto a colonização católica e a sua estrutura de pensamento mágico, antes que
religioso, e dependente criou no Brasil um aparelho burocrático patrimonialista, oposto
ao modelo democrático norteamericano. A diferença entre estas estruturas de pensa-
mento simbólico podem ser caracterizadas, também, pelo ritual da comida no uso
latino.
A hóstia que a bruxa oferece ao seu demônio é uma comida que “obriga” irresis-
tivelmente o exú a obedecer à sua ordem. A bruxa serve a comida primeiro ao Bará, para
estabelecer a importância das condições materiais na ordenação do mundo.
Corroborando as afirmações acima, o antropólogo Roberto da Matta mostra que, no
Brasil, além da comida-de-santo, também existe uma comida apropriada para ser ofere-
cida em um almoço com um superior e outra comida diferente própria à intimidade de
um convidado inferior. Até mesmo o serviço de mesa obedece a uma hierarquia: o
prato principal seria servido primeiro e rodeado pelos secundários, contrariamente ao
uso cotidiano norteamericano de misturar comidas sem nenhuma relação aparente.
As formas de pensar revelaram-se, portanto, consequência direta da vinculação entre
a organização social, a língua e o discurso da ciência acadêmica.
Visto assim, impossível seria não fazer eco a Proudhon e dizer que, no Brasil e em
toda a América Latina, a fraqueza da nação e do estado que entrega a Pátria à pilhagem
se deve, ao menos em boa parte, à ausência de uma reforma religiosa à semelhança da
protestante.
Disto se vê que a teologia que se organizou no seio da Igreja Católica Romana, na
América Latina, e que assumiu a responsabilidade intelectual de legitimar e orientar os
movimentos populares foi impropriamente chamada de Teologia da Libertação. A im-
propriedade do nome se deve à moralidade tradicional que se revela no atrelamento dos
movimentos populares à política pontifícia de reobtenção do prestígio político histórico
perdido pelo poder papal, com o surgimento do racionalismo socialista, manifesto
inclusive por várias visitas do papa a paises comunistas, até mesmo americanos, onde
veio a ser vaiado.
Os freios ao movimento de libertação cristã são impostos pelo grupo dominante
dentro da igreja, encastelado na hierarquia, que se opõe a um processo rápido e limita na
mediocridade qualquer iniciativa, diluindo-a no tempo e no espaço. Por processo
rápido, entenda-se processo de mudança, pois extintas as condições históricas que se

18
apresentam no momento atual, a Teologia da Libertação também se extinguirá, perpe-
tuando a dominação romana milenar.
Ao agitar-se revolucionário da teologia protestante, na América Latina, a hierarquia
católica acolheu todos os teólogos dissidentes expulsos pelas igrejas protestantes pro-
pondo-se, tão somente, a abafar e deixar esfriar os ânimos revolucionários, movendo
inquéritos pontifício. Contudo, desde Puebla, através do próprio papa, enquadrou os
quadros mais inquietos do seu clero na sua política encaminhada pela Doutrina Social da
Igreja e a Ação Católica.
A Teologia da Libertação, portanto, enquanto movimento social, propunha-se a
socializar algumas áreas da sociedade, apenas, onde a crise se tornara mais emergente,
protegendo outras áreas do conflito.
Pronunciado publicamente pelo presidente da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), o interesse da igreja deve ser, exatamente, o de organizar a sociedade de
acordo com um outro sistema que não seja o socialista, nem o burguês e nem o
comunista.
Ora, se evita os modelos socialistas, resta-lhe, apenas, evidentemente, o modelo
aristotélico naturalista. E, então, não é possível margem alguma para dúvida: a igreja não
vai abrir mão de sua hegemonia moralizante, da coerção moral, da chantagem emo-
cional.
A intenção reformista que se travestiu com a bandeira revolucionária não estava
muito distante, na verdade, dos mesmos propósitos da Comissão Trilateral, na defesa
dos interesses econômicos do domínio do Império Burguês Yankee na América Latina:
propunha-se a “diminuir” a miséria até colocá-la em “níveis suportáveis” pelos povos
latinos, impedindo, assim, a deflagração de uma revolução e a consequente perda desses
mercados coloniais.
A proposta da Teologia da Libertação foi somente um pouco mais aberta, um pouco
mais humana e propunha condições um pouco melhores para “remediar a situação” e
manter a dominação capitalista, para cuja política unitária que domina todo o bloco
ocidental só haveria a alternativa única de rompimento total; na verdade, este tipo de
caridade social é uma benevolência que assenta muito bem no clero.
A política de «libertação» e o «político» da teologia. Atrelada ao Vaticano, não
obstante sua enorme movimentação que lhe dá ares de revolucionária, a Teologia da
Libertação nunca possuiu uma definição política que a resguardasse dos interesses
políticos pontifícios. Pelo contrário, a sua política de desacato às burguesias nacionais
favorecia à política internacional da burguesia global, na sua colônia americana. Não
tendo um compromisso com o socialismo comunista e nem com o socialismo burguês,
mas disfarçando o seu discurso como uma busca do novo homem cristão, buscava uma
reformulação específica das instituições econômicas, e daí as socio-políticas, que lhe
reabilitasse no cenário internacional assegurando tacitamente a dominação moral que
embasa a forma natural de autoridade, porque, dentro da atual situação social mundial e
latinoamericana, a instituição eclesial sacramental mostrou-se impotente e ineficaz para
apoiar o homem na busca da retidão que ela deveria ditar.

19
A globalização da miséria, tal como apresenta-se na América Latina, decorrente da
imposição da organização econômica capitalista, condiciona o Pecado no homem
latinoamericano, através da mídia publicitária do mercado.
Entretanto, para o benefício do prestígio político do papa, a forma correta das
instituições sociais deve ser a naturalista aristotélico-tomista de moralidade tradicional,
as quais deverão possuir a virtude de permitir o controle dos homens com eficácia pelo
mecanismo sacramental, cuja detentora é a igreja e a sua ideologia teológica. Este
controle do Pecado, através da moralidade, decorre, por sua vez, do princípio teológico
pelo qual a relação do homem com Deus exclui o Pecado por misericórdia do próprio
Deus; semelhantemente à experiência subjetiva a que remetem as representações de
linguagem: o Pecado somente pode existir em relação com os outros homens, no
discurso de um indivíduo inserido na comunidade. Mas um indivíduo visto isolada-
mente, abstraída a sua relação pessoal, não poderia comportar Pecado, por excluir-se daí
a concepção de pecados contra a Natureza e contra o sentido estrutural da sociedade.
Subvertendo essa visão das relações homem-Deus, o Pecado que corrompe o
homem, no discurso dos teólogos da libertação, passou a ser a opressão política,
simplesmente. A opressão, a constatação de ser dominado ou dominador passou a ser a
primeira categoria da Teologia da Libertação e não a repressão psicológica, a inter-
nalização da opressão social. A Teologia da Libertação buscou uma reconciliação em
que não existisse um conflito, porque entendeu que o conflito fosse consequência do
Pecado; e o é! Mas essa teologia caiu em erro ao conceber a imputabilidade da culpa
individualmente: caiu em erro por ser essencialista.
Um fenômeno social como a Macumba, por exemplo, não pode ser imputada a
indivíduos isoladamente. Cada um é uma vítima a seu modo.
Adotando a teologia clássica como instrumento óptico de observação para a sua
teorização e reflexão, a Teologia da Libertação superou o impasse político do momento
histórico de um século que medeia a revolução burguesa e a comunista, as duas
revoluções deflagradas pelo modelo político racionalista da concepção socialista,
beneficiando a arcaica política papal.
Naquele momento que se tornou propício para a reformulação dos antigos valores
tradicionais, os quais não avaliaram, os teólogos apenas adaptaram-nos às exigências
atuais. Reforçando-os, ao fazê-los atravessar esta crise histórica do papado, conser-
vavam-lhes a hegemonia, após a resolução dos problemas sociais materiais a que se
propõem, o que, consequentemente, após dissolvidas as condições históricas de
presentação da Teologia da Libertação, naquele momento, levaria estes teólogos a
restaurarem, automaticamente, ao poder espiritual a teologia clássica em todo seu
esplendor e glória.
A Teologia da Libertação reforçou, repetindo-os, o caráter de legalidade dos valores
ilegítimos da teologia moral pseudo-cristã, porque a repetição faz o signo. A teologia
moral clássica é totalmente contraditória: enquanto funda a culpa na determinação
própria, rechaçando o inevitável conceito de culpa ou pecado coletivo, social, porque a
estrutura social com seu referencial simbólico não se faz culpável por mera infração

20
material da lei natural. E, como o Pecado exige, para ela, o assentimento de uma consci-
ência, mesmo ignorante da própria lógica inerente à estrutura, como se a estrutura
simbólica, com a sua inteligência própria, não fosse o referencial das categorias, fundou,
paradoxalmente, toda a imputabilidade na razão, assacando o indivíduo, e atribuindo à
vontade uma natureza genérica, categorial, que lhe conferisse resoluções responsáveis
devido ao que chamava de “livre arbítrio”. Ao dividir, separando da paixão a função
orgânica e conferindo à paixão o caráter de fraqueza pela afinidade categorial com os
referenciais simbólicos, considerou o desejo mau.
Para isso foi necessária a subversão semasiológica da noção de Pecado, pela Teologia
da Libertação, usando como instrumento a teologia clássica.
A moralidade teológica clássica pretende dominar e ordenar o fim de cada ato
humano pela escolha “consensual” da vontade “livre” e sua submissão ao seu critério de
bem; nisso consubstancia-se a sua função para a igreja, como aparelho ideológico do
estado. Com o reconhecimento do dever moral assumido, ao aceitar o mal como
ausência do bem, a moralidade teológica não reconhece um bem materialmente, com a
consciência iludida pela sua realização no futuro: a liberdade deve submeter-se ao dever.
Esta ideologia moralizante centra-se no desconhecimento da lógica social como
fundamento do dever; a ausência de justiça social torna impossível a retidão da vontade.
Moralistamente, diz-se explicitamente que o homem determina-se a si próprio
voluntariamente e racionalmente, individualmente portanto, porque não estaria movi-
do por uma necessidade interna, não reconhecendo a sua própria definição de categorial
dada à razão, quando a confunde com a vontade. Ao negar à vontade o caráter de
equação de impulsos e compulsões, diz que o caráter voluntarioso do ato humano é que
o faz materialmente pecaminoso, infrator da determinação consensual, um mal, quando
a conduta transgressora assim se representa a si mesma como uma eleição consciente.
Nega à razão um papel como constelação de forças sociais e confunde a razão com o
espírito ao atribuir-lhe uma função simbolizadora, porque não percebe que a razão
diferencia-se da vontade, do querer, da potência apetitiva espiritual que é, esta sim,
determinada pelo espírito na liberação das pulsões próprias à mentalidade expressa na
conduta resultante. O confronto desse quadro “espiritual” com o “espírito” da época, ou
seja, a ideologia social é que resultará numa equação racionalizada.
Esta moralidade teológica não reconhece o homem como uma totalidade de ego e
id; postulados freudianos que foram indexados nas proibições da “Santa” Inquisição, o
flagelo pontifício. Se o id designa toda a vida inconsciente, inclusive contido naquela
vida arquetípica primordial junguiana, o ego é claramente determinado pelo grupo
como uma equação em função do superego, é uma vítima da mídia publicitária.
Quando impõe ao homem a tarefa moral, ausenta o inconsciente, porque a aceitação
do inconsciente e do superego não lhe permitiria demonstrar a liberdade do homem,
pelo “livre arbítrio” que lhe regularia de forma “livre” a sua vida instintiva “livre”, de
acordo com a ordem moral “livre” reconhecida e querida “livremente” pela sua razão
“livre”. Os teólogos são muito liberais!

21
A emoção como movimento sensível passaria a ser produzida pela vontade ou por ela
assumida como vontade de poder, e este é um caráter que a razão de fato possui, na
verdade. A vontade, dentro do sistema ideológico proposto pelos teólogos às camadas
mais desavisadas da população, vista como consciência, como dever conhecido e assu-
mido, enquanto vontade pretensamente consciente afastar-se-ia da própria natureza da
razão: a liberdade material. A própria liberdade não existe sem autoridade própria!
A razão, como a dianóia, deve ser entendida como a função discursiva do ego, com
princípio explicativo do enunciado de uma análise relacional, uma intelecção, conforme
a etimologia da raiz rat : ratis – estrutura de madeira (entrecruzada); ratio – sistema de
idéias relacionadas entre si (estruturadas); ratus – firme, estruturado, seguro; entenda-se
a capacidade, a faculdade essencialmente discursiva capaz de organizar experiências e
abstrair o absoluto, apreender o ser (em si) tal qual é na condição da vida (para si). A
razão realiza-se no intelecto como prérrequisito para a concepção mental, a qual é
definida pelo espírito. E a vontade será mera expressão da mentalidade. A razão do
homem simples não é mais, portanto, que conflito do espírito com o tempo.
Somente a função kerygmática da Igreja Cristã, no anúncio evangélico, possui a
virtude de introduzir o homem simples no discernimento da razão pura, no que respeita
aos fatos da vida espiritual. O verdadeiro cristianismo é avesso à manipulação simbólica
praticada pela Igreja Católica utilizada pelo estado como aparelho ideológico. A Igreja, a
verdadeiramente cristã, será sempre um instrumento essencialmente civil, jamais públi-
co. Deve servir ao sujeito e não dominar o cidadão.
Assim, a razão do indivíduo poderá conhecer a dimensão temporal do objeto espi-
ritual e não optar por uma idéia abstrata em detrimento de um objeto concreto,
porquanto saiba que se ilude. O sujeito que reflete o que sabe não se ilude, posto que o
apetite espiritual, a vontade humana sempre busca o bem e afasta-se do mal e o apelo
do objeto torna-se irresistível. Jamais a consciência poderá voltar atrás... se chegar a ser
consciência! O indivíduo está sujeito ao grupo.
Mas, ainda, afastada a liberdade material, a vontade animal queda totalmente prisio-
neira e sem livre arbítrio, uma vez que a liberdade espiritual seja atributo exclusivo da
comunidade, jamais do indivíduo. Ela é uma conquista social.
O fim a que pretendeu chegar a Teologia da Libertação era o mesmo consagrado pela
teologia clássica com o uso da teologia moral arcaica: a regulação “responsável” da
economia psíquica, uma vida instintiva configurada pela vontade, de acordo com a
ordem moral conhecida pela razão; ou seja, a legalização dos sistemas político e peda-
gógico naturalistas para poder tornar eficaz a sua dominação sobre o espírito do homem
individualmente; para conformar a sociedade civil através da manipulação dos cidadãos.
A concepção de responsabilidade comunal, dentro desta visão, significa somente
controle hierárquico.
Mas para isso a igreja necessitará dominar toda a mídia publicitária e, principalmente,
as redes de televisão, para o que já usa a sua vedeta, tornada mais popular que a Gio-
conda, sumidade do consumismo cosmopolita romano-itálico.

22
Para que não fiquem dúvidas acerca da natureza repressora e autoritária dos princípios
históricos que a Teologia da Libertação reabilita da teologia clássica, quando trata da
tentação do Pecado, apresentamos o quadro fornecido pelo DICIONÁRIO DE TEOLOGIA
MORAL de Hormann, que dispõe a biblioteca da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUC-RS), em Porto Alegre.
Segundo Hormann, para que a vontade regule a vida instintiva sensível um indivíduo
deve:
RENUNCIAR – a vontade impede a realização do desejo, reprimindo e provocando um
espasmo psíquico. O autor considera inviável a convivência com uma tal
neurose por muito tempo (pág. 871).
FORÇAR – o movimento intensivo da força superior (há de ser a consciência ou o superego)
arrasta a força inferior (o instinto, evidentemente) e subtrai a energia psíquica
inferior; ao que chama “reta economia das forças da lama”. A sua aplicação
exclusiva atrofiaria o desenvolvimento da personalidade e, tampouco é viável
(ibidem).

SUBMETER – considera que “o „instinto‟ espiritual” (que há de ser a moral coercitiva imposta à
população crédula, pelos teólogos) deve provocar o ajuste do instinto sensível,
“mas isso não é uma repressão, senão uma verdadeira sublimação” (pág. 873).
Por tentações deveríamos entender as inclinações fisiológicas? A busca do
prazer? “A totalidade de valores” (pág. 1263)?
Entretanto, como as tentações do pecado próprio e do mundo recaem em uma só,
resta-nos, então, a concepção simbólica do referencial linguístico da cultura, porque a
“totalidade de valores” há de ser, evidentemente, a estrutura signífica do discurso social!
E, daí, caimos na questão dialética do símbolo divino: Deus-diabo.
A adoração do símbolo torna-se a ocasião por excelência para o pecar, já que o
Pecado só é possível no termo da liberdade do homem (pág. 948) e que o homem só é livre
em sociedade, o seu estado natural. Assim o estabelece no livro DA POLÍTICA o mesmo
Aristóteles que define a organização social histórica, típica do imperialismo romano,
cujo bloco histórico é o estado do Vaticano, de onde deve emanar todo o controle.
A vitória sobre as tentações, como resultado do caminho da renúncia à vida e da
sublimação dos desejos vai conformando o caráter (formação caracterológica muscular, ou
seja, uma couraça muscular, como a definiu o psicólogo Wilhelm Reich ) sustentada psicologi-
camente pela autoimagem da córtex límbica cerebral. Inversamente, a revolta e o afasta-
mento da renúncia, por ironia, conformam também o caráter.
Mas, o caráter é a expressão de uma personalidade formada por um complexo de
pulsões estruturadas sobre o referencial simbólico da cultura imposta à formação da
autoimagem cerebral, pela língua. O caráter é a expressão modal do comportamento
específico da personalidade; considerado transcendente pelo tomismo em decorrência
da visão essencialista de imanência do caráter, a imputabilidade de culpa quedaria, nessas
condições, à consciência. No entanto, contrariamente à visão tomista, o caráter expressa
a modalidade da personalidade pela formação da couraça muscular determinadora da

23
natureza das emoções do indivíduo, conformadora da disposição do organismo interno:
é um fenômeno essencialmente físico e orgânico onde o sujeito é a vítima e a socie-
dade, ou a comunidade, em termos eclesiais, é a verdadeira culpada.
Mas sabemos que os grupos, as comunidades, são submetidos pelas igrejas à hege-
monia ideológica do estado; o que quer dizer, são manipulados pelo grupo que detém o
poder político.
A emoção, enquanto energia motriz orgânica que resulta no impulso nervoso é
neutra, sendo modalizada no comportamento da personalidade, sob a forma psicológica
do caráter, pela cultura, ou seja, pela ideologia do grupo no poder; a emoção não é o
caráter, somente ele possui a qualidade essencialista da imanência em que o tomismo
lastrea a culpabilidade.
O tomismo seria irrenunciável para a Teologia da Libertação porque serve de base
para o objetivo de subordinação contínua da sociedade, da política e do estado à moral e
religião católicas, fundamento da doutrina social da igreja. A Igreja Católica Romana
concebe-se a si mesma como o próprio poder do estado.
O fundamento da Doutrina Social Católica não poderia ser diferente da totalidade do
corpus do Magistério Eclesiástico: a submissão ao papa romano.

O papa em Puebla e Leonardo Boff em Roma. A Doutrina Social Católica expressa no


Magistério Eclesiástico não passa de uma habilidosa confusão entre o Reino de Deus e o
reinado do papa. Não passa de uma ideologização da autoridade eclesiástica à qual se
atribui o poder plenipotenciário de julgar em seu juizo particular onde e como sopre o
Espírito Santo. Em nome do “amor de Cristo”, os documentos pontifícios legalizam a
autoridade do papa na figura do próprio Deus, como sendo a mesma autoridade de
Cristo.
Sob o discurso do reino e do amor, o Magistério Eclesiástico legaliza a autoridade
hierárquica, cujo pontífice é o papa.
A presença do papa em Puebla, durante o Encontro Latinoamericano da Igreja
Romana, representou a ritualização do atrelamento do movimento de libertação, até
então revolucionário, dos teólogos latinos. O Documento de Puebla diz, em seu nº 400,
que não seriam ideologias “nem o Evangelho, nem a Doutrina ou Ensinamento que dele
provém”, após ter o cuidado de analisar os conteudos das ideologias dos dois sistemas
econômicos aplicados com o sistema socialista e de os refutar. Mas, evidentemente, por
ser um sacramento, a igreja está inserida numa conjuntura histórica e, consequen-
temente, deve deter uma ideologia para tornar factível o seu serviço evangélico. Com o
sofisma que define como ideologia exclusivamente o sistema político socialista, ali se
apresenta a sua aspiração universalista de uma sociedade global disfarçada sob o nome
do zeloso amor; chama de “aspiração” o seu interesse pela manutenção da ordem
hierárquica naturalista aristotélica.
O Documento de Puebla, que mudou os rumos da política latinoamericana e acabou
de vez com a Teologia da Libertação, pelo recurso astuto da retórica, admite ser uma
questão estrutural o fundamento do problema da miséria na América Latina, mas esta

24
igreja não foi capaz de abandonar o sistema de acumulação de propriedade privada que
ela mesma desenvolveu na Idade Média, dando origem ao capitalismo. Pelo contrário,
passa a impor as suas estruturas econômicas, juntamente com o sistema filosófico
aristotélico, a base de sua teologia decadente, no último continente do planeta que,
finalmente, lhe consagra o título de católica, a África. Então, torna-se significativa a sua
“aspiração” universalista...
Os interesses naturalistas, ou “aristotélicos”, da hierarquia católica, expressos no
Magistério Eclesiástico mediante ardilosos eufemismos, foram designados generica-
mente de patologias pelo teólogo Leonardo Boff; este teólogo faz uma abordagem, no
livro que o levou à Inquisição (Igreja: Carisma e Poder), demonstrando o caráter ideo-
lógico da escritura dos textos neo-testamentários.
Para tornar clara a enigmática retórica dos documentos pontifícios basta substituir
expressão Reino de Deus por reinado do papa e amor do Cristo por dominação romana.
Já para perceber o tom sarcástico com que é pronunciado o discurso, devem-se ter
presentes as datas do processo de Leonardo Boff: data da Independência do Brasil para o
seu julgamento e Dia do Trabalhador para a sua condenação. Resta aos tíbios conferir o
rol da História r comprovar esta contumaz arrogância do papado.
A imposição pontifícia da subordinação à autoridade do papa, decorrente do sistema
político naturalista com seu consenso autoritário, organiza-se a partir da instituição
natural que é a família. A noção tomista do caráter, noção essencialista, serve à subor-
dinação do econômico ao moral, própria da “democracia cristã” (por cristã entenda-se
católica): organização socio-econômica patriarcal, baseada no matrimônio e no uso da
mulher como unidade econômica.
Através dela a igreja pensa organizar, na verdade, o sistema capitalista, tecendo a rede
de relações de parentesco e propriedade característicos da “família cristã”, a partir do
germe da privatização da propriedade antiga, o patrimônio. Somente, ela, a igreja, não
esperava que os empresários burgueses recusassem qualquer organização no mercado.
Para a burguesia a igreja não serve para nada melhor que mero aparelho ideológico do
estado.
Mas a mulher usada como objeto de troca presta-se a determinar a resolução do
complexo edipiano e o tipo de educação que formará a criança. À semelhança do
direcionamento dado à estrutura social na Europa medieval, que lhe granjeou o
acúmulo de riqueza e poder, a igreja passou a incentivar na África a desorganização dos
sistemas tribais locais, por não se coadunar o sistema tribal com os seus interesses eco-
nômicos (os sistemas político e pedagógico católicos se afilam ao sistema tribal), e se propõe
implantar naquele continente a sociedade familiar “cristã”.
A doutrina social da Igreja Católica Romana é o caminho (isto quer dizer: é o próprio
caráter) do objetivo pontifício de impor o seu poder no continente negro em função
dos interesses econômicos de exploração do povo pelo Estado; esta é a sua “aspiração”
universal: a expansão católica do estado natural, hierárquico e despótico.
Mas, acima de tudo, capitalista e, no mundo moderno, inevitavelmente burguês.

25
A obsidiente impenitência de uma tendência política superada por duas revoluções
políticas seguidas, a burguesa e a comunista, é um fenótipo da estrutura eclesial católica,
onde eclesiologia e política se confundem.
E, uma vez estabelecida a sociedade hierárquicamente autoritária e, através dela, a
imposição pedagógico-essencialista de um modelo patriarcal, o caráter tomista, tal
como é apresentado pelo Aquinate, revela-se uma quididade da natureza genética do
temperamento e, por conseguinte, não deve ser confundido com a noção psicológica de
caráter e nem com os tipos psicológicos característicos da sociedade “cristã” gerada pelo
catolicismo.
O caráter desse fenótipo é a neurose. O caráter funda-se, em sua maior parte, na
resolução do complexo edipiano, que organiza a família patriarcal e caracteriza a repres-
são sexual da moral teológica, além do uso mercatório da mulher na economia política
católica.
A pedagogia essencialista que serve aos interesses políticos pontifícios deveria ser
abandonada pela Teologia da Libertação, juntamente com a moral sexual repressora. A
Teologia da Libertação, para reformular a sociedade desde a estrutura familiar, deveria
pensar em deixar aos próprios indivíduos a regulação da sua sexualidade, porque a
necessidade estabelece com eficácia o limite da realidade. A moral essencialista tradi-
cional, ao criar cinturões de castidade psicológicos nas pessoas pela couraça muscular,
aumenta a realidade interna do indivíduo e o faz viver no imaginário todos os fenô-
menos descritos nos catecismos religiosos, abstraindo-os da especificidade dos fatos.
A religiosidade supersticiosa popular é o cultivo de vivências imaginárias amplamente
incentivadas pela igreja, que não as criou totalmente, mas as desenvolveu. São estas
crendices e superstições que causam o desencanto e a decepção das classes mais cultas e,
finalmente, com o avanço científico nos currículos escolares e meios de comunicação
de massa, da grande maioria das classes de cultura mediana.
Enquanto a antiga geração morre desenganada das suas ilusões sobre o céu, o inferno
e os santos, a Teologia da Libertação vem resgatar o imaginário das jovens gerações que
passam a criar novas ilusões inimagináveis, alimentando suas esperanças principalmente
da ficção científica e da doutrina espírita. Semelhantemente a esta crise atual, uma
próxima crise religiosa, gerada nos rumos da Teologia da Libertação guiada pelo próprio
papa, poderá ser retardada no tempo, mas será inevitável.
Todo este trabalho da igreja tradicional, possibilitado pelos teólogos da libertação que
estão resgatando à teologia clássica seu empanado brilho, somente torna-se possível
pela omissão da clareza e objetividade que torna os antigos signos linguísticos em verda-
deiros símbolos aptos á nova estrutura signífica do homem moderno.
No entanto, para que a realidade interior seja maior que a realidade externa, para que
haja uma quantidade suficiente de energia psíquica pronta para preencher as formas de
pensamento religioso específico da política supercapitalista ultramontana, desta política
mais que maquiavélica, desta política papal; para ultrapassar o limite da realidade,
somente a repressão sexual e o estímulo da vontade de poder viabilizará o “amor do
Cristo”, conforme a “solicitude amorosa” expressa nas bulas papais.

26
A vontade de poder é o caminho (o caráter) da dominação que se traduz, muito
comumente, como expressão do amor.
A dominação romana e a vontade de poder dos súditos infortunados deste reino
estão tão distantes do verdadeiro Amor e do verdadeiro Reino quanto é grande a dis-
tância entre o verdadeiro anúncio da proposta jesuânica, de práticas xamanistas extáticas
em oposição às práticas espíritas populares de goétia e magia negra, e a escritura neo-
testamentária, permeada pela estrutura mental humana dos hagiógrafos.
A Teologia da Libertação, abandonando a repressão sexual e o essencialismo pedagó-
gico, estaria abandonando, também, o tabu do incesto, o Matrimônio e a estrutura
familiar capitalista, isto é, católica.
Caminho único para as verdadeiras consequências do Evangelho, distorcido pelas
traduções para a linguagem comum aos hagiógrafos que nos legaram os textos
sinópticos e, principalmente, a parenética epistolar.
O Reino de Deus não será mais que a “vida do tempo presente” (zwh, aivw/noj), como o
foi dado a entender ao Amado do Senhor.
A eternidade é um conceito demonista, tal a mediunidade espírita.
O verdadeiro Reino de Deus, que não é o reino do papa e da sua hierarquia, do
modelo político aristotélico ultrapassado, ao invés da submissão característica do
consenso natural, a dominação hierárquica, necessita da deliberação racional que nasce
da liberdade do homem. E uma pedagogia libertadora é muito mais eficaz escatolo-
gicamente do que todos os princípios morais reunidos.
Além da submissão, só existe uma alternativa para o convívio social fora da anomia: a
cooperação.
A cooperação nasce expontâneamente no coração dos meninos, como compulsão ao
espelhamento.
A cooperação é uma simbiose que nasce da liberdade verdadeira, como conflito da
rebeldia contra a dominação e nasce do total reconhecimento de si mesmo, do outro,
num processo de comunicação com a vida, através da valoração do amor: a extinção da
dicotomia certo e errado, cujo pressuposto e requisito básico é a erotização mútua dos
corpos para se atrairem quimicamente.
A cooperação madura deve surgir pela deliberação que abandona os critérios univer-
sais de certo e errado, porque cumprir a deliberação é seguir a própria vontade e não
obedecer. Deliberar é fazer a vontade própria e a do outro que junto deliberou.
A máxima efraimita: “Amarás a teu próximo como a ti mesmo!” fala expressamente
da função da Redenção nas tribos bíblicas e da relação entre os meninos em seus
processos de construção identitária.
A filosofia platônica já percebera a importância fundamental da sexualidade para a
existência humana. Em Platão o amor sexual é visto como caminho para a perfeição,
para a contemplação e fruição da Beleza e Bondade supremas. Segundo uma passagem
espúria, mas canonizada, de um evangelho, Jesus interpela um discípulo traidor e pede-
lhe somente amor. Incapaz de um amor maior, o discípulo traidor protesta um amor
mais humano.

27
O Cristo não exige a divisão interna no homem, mas, ao contrário, a sua totalidade.
Os progressos das ciências biológicas e das ciências humanas provam com toda
certeza que a sexualidade não é somente uma função como comer e cagar, mas uma
dimensão essencial do ser humano, de forma tal que é impossível compreender o
homem sem compreender sua sexualidade.
Já no movimento reformista foram formuladas, com espontânea força, questões
sobre educação absolutamente opostas às essencialistas, trazidas pelo tomismo. O
amadurecimento antropológico do problema da individuação factível. Esta época de
ataque contra a ordem hierárquica eclesiástica e feudal, estabelecida na prática e na
ideologia, renovou o pensamento pedagógico inspirando-se nos direitos e necessidades
da criança e criticando a escola medieval e a pedagogia essencialista.
A partir dessa época histórica, o renascimento, a criança passa a ser valorizada pelo
próprio desenvolvimento médico da puericultura e passa a existir socialmente como
criança; começam a aparecer representações artísticas de crianças, prenunciando esta
nossa época em que surge toda uma indústria e produção especificamente dirigidas ao
consumo infantil. Como, também, após o renascimento, a par do surgimento dos vocá-
bulos bebê e nenê, que se apresentam como neologismos, a igreja troca o discurso ater-
rorizante do Javéh vingativo pelo do Bom Jesus: neologismo em seu discurso pedagó-
gico.
Naquela época histórica em que a bruxa Genebra Pereira percorria o Val de
Cavalinhos, em Lisboa, o período clássico de Portugal trazia para a língua portuguesa o
período pseudo-etimológico, assinalando o divórcio total entre a língua falada e a
escrita, colocando em risco a unidade semiológica da língua. Apareceram, então, várias
ortografias, porque a etimologia era incipiente e acientífica, deixando muitas dúvidas.
No vocabulário da língua portuguesa desta época, não somente se mudou a morfologia,
mudando até o gênero de alguns vocábulos, mas também, a fonética; a sintaxe
distanciou-se do uso popular, tornando-se mais rígida. A influência do latim se tornaria
preponderante no vocabulário e, por meio dele, o grego, caracterizando o uso de letras
desnecessárias. Então, com o advento do romantismo, o modismo etimológico passou
inadvertidamente a copiar modelos do francês, ao invés do latim. Assim, o caos trazido
ao século XX levou à busca, no atual período que se designou período simplificado, por
uma democratização ortográfica com sucessivas revisões.
O século XX assistiu a afirmação da pedagogia existencialista, como reação ao
essencialismo promovido pelo humanismo. Mas a pedagogia existencialista vem a
tornar-se frequentemente artificial e autoritária, assumindo especificamente a forma
fascista e perdendo-se de seu princípio pedocêntrico, no qual a criança deve ser o sujeito
e não o objeto da educação.
A pedagogia existencialista, com sua educação centrada na criança, apoiando-se na
psicolinguística e na epistemologia genética, nos colocaria numa situação de
aistoricismo em face da cibernética social, se considerássemos “absurdo liberalismo
desordenado” deixar que a língua seja aprendida na linguagem viva. Não podemos
concordar, portanto, com o companheiro Antônio Gramsci naquela sua declaração,

28
porque não nos podem dizer que excluimos do aprendizado da língua culta a massa
popular, uma vez que valorizamos justamente a cultura e os costumes populares. Além
de que, a língua supostamente culta da classe dirigente se transmite de geração em
geração, tradicionalmente, como um preconceito anacrônico.
Pensamos que a escrita fonética deve ser estudada na escola, mesmo que se adote no
ensino da lecto-escrita o método analítico, excluindo a intervenção unitariamente
organizada no aprendizado escolar. A gramática é mais que inútil, ela atrapalha o
desenvolvimento da criança e deve ser retirada da escola e ensinada em um grau superior
da educação. O próprio Gramsci pensava que deve ser ensinada a lógica formal junto
com a gramática “por causa da semelhança da natureza e porque, junto da gramática, a
lógica formal é relativamente vivificada e facilitada”.
Enfim, a palavra alienada e alienadora deverá ter seu resgate na apofasia barthesiana,
porque a palavra abstraída da literatura torna-se mero elemento de história da cultura. A
discriminação sutil, mas preconceituosa, entre palavra poética e não poética (ou antipoé-
tica), língua bela e língua feia, língua civilizada e bárbara, língua culta e popular (inculta),
exige o resgate apofático da palavra. E este é um trabalho artístico.
A literatura é, além do tecido de significantes do complexo gráfico, a força evolutiva
que exerce trabalho sobre a língua.

29
CONCLUSÃO: s ISTEMA NATURALISTA VERSUS SISTEMA CIENTIFICISTA

A liberdade de consciência reside na pluralidade dos discursos humanos, expressos nas


diversas formas literárias. Por ser a literatura este tecido de significantes do discurso, que
se inscreve como uma forma de poder em nosso inconsciente, devemos nos cons-
cientizar das várias correntes literárias como expressões do pensamento. Enquanto traz a
Verdade libertadora, a literatura necessita sustentar um discurso sem impor. E o método
do desapossamento deve ser a racionalização. A racionalização pode ser vista como uma
forma de socialização do saber, por ser, a estruturalização do saber.
O intelectual deve investigar, em vez de julgar, em vez de submeter-se a um saber
prescrito. Para impedir a submissão ao discurso universal trabalha-se sobre as diferenças:
Uma linguagem não deve reprimir outra, deve coexistir num pluralismo de línguas, com
o convívio dos mais diferentes discursos em seus momentos e circunstâncias diferentes.
Coisa muito diversa do que ocorre nos seminários teológicos, onde jovens são
entupidos com uma literatura própria para mantê-los ocupados dentro dos estreitos
limites de uma realidade específica.
Entretanto, assim como a escola libertária deve conduzir o aluno ao crescimento
linguístico, a moralidade verdadeiramente cristã deve propiciar a expansão existencial do
educando fora da estrutura do poder, como parte de um crescimento global.
Ficaríamos felizes ao contemplar a atuação da Igreja Popular, dos cristãos para o
socialismo, se não soubéssemos que, antes da solução simplista da cruzada de alfabeti-
zação, a verdadeira elevação do nível de vida intelectual somente virá a se dar através da
reformulação das relações de significação das categorias do pensamento. No entanto, o
movimento comunista libertário, que hoje chamamos movimento anarquista, passou a
enfrentar um perigo a mais, desde a revolução sandinista, na Nicarágua, com o concurso
dos cristãos.
O movimento comunista é um movimento político que nasceu no seio da sociedade
burguesa e, por isso, não pôde deixar de ser um movimento de política burguesa.
Contudo, ampliando em escala continental a experiência da Comuna de Paris, os soviets
demonstraram, durante o processo de outubro, que é possível existir democracia de fato
e que poderá ser possível desconstruir o poder. Ora, se aos anarquistas se tenta imputar
que causem o desinteresse da política, a anomia, por outro lado, é sabido que o Partido
leva à dependência em relação à autoridade constituida na estrutura do poder. O Partido
tem sido comparado com a Igreja, por muitos comunistas. Evidentemente, tanto a
submissão ao Partido quanto a negação do político são frutos da política burguesa e da
dominação sobre o movimento comunista pelas relações da estrutura do poder.

30
A função da Igreja é somente a de anunciar a verdade e orientar o povo. À
semelhança da Igreja, a função do Partido é a de orientar os soviets. A liderança do
Partido sobre o proletariado deverá ser espiritual e, apenas, ajudar as massas dos traba-
lhadores a tomar o poder soviético; uma vanguarda meramente intelectual, orientadora
do processo soviético como filósofos guardiões ou juizes carismáticos. O objetivo já está
dado, marcha-se na direção da política científica. Cabe, então, reconhecer cada passo do
caminho.
O sistema racionalista somente poderá atingir o seu objetivo socialista pelo desapos-
samento do poder individual, pela desapropriação das forças produtivas, que são poder
em todas as suas formas: econômica, intelectual, moral...
Agora, que a igreja da Nicarágua mostrou-se eficaz como aparelho ideológico rea-
cionário, principalmente agora, o Partido deve manter presente para si, enquanto van-
guarda, os ideais de liberdade científica que motivaram sua organização.
O interesse natural que a igreja tem no sistema capitalista é coerente com a sua
posição política aristotélica, que é, também, o sistema natural na política; assim como
defende a sua específica forma de família e pedagogia, como sistemas naturais: o
capitalismo é o sistema econômico natural.
A verdadeira causa de toda a fortuna dos papas, que frequentemente nos surpre-
endem com escândalos financeiros, entre outros, não são, sem dúvida, tão somente os
seus crimes, as suas guerras ou as suas manobras políticas, hoje, quando seu poder
político quase se restringe ao monte Vaticano. O imenso império econômico que
guarda sua imensa fortuna, não apenas em espécie de ouro, mas, principalmente sob a
forma de ações de valores... uma fortuna frequentemente dissipada; sua verdadeira causa
são as relações sociais que forem alteradas ao longo da Idade Média e que permite, na
economia capitalista, a assombrosa acumulação de propriedade privada.

Fim

31
SABE LÁ O QUE É ISSO? foi publicado pela primeira vez em 1989
como pesquisa complementar ao nosso Projeto de Lei:
PELA PROIBIÇÃO DAS MANIFESTAÇÕES RELIGIOSAS PÚBLICAS, de 1986.

32

Você também pode gostar