Questão Social - Fundamentos e Expressões Contemporâneas

GILMAISA MACEDO DA COSTA As formulações teóricas defendidas neste livro conduzem a pensar MANIFESTO DE LANÇAMENTO
Docente da Faculdade de Serviço Social, a questão social em seus fundamentos e expressões contempo-
da Universidade Federal de Alagoas. Atravessamos tempos difíceis!
râneas, associadas às desigualdades, ao desemprego, à pobreza,
Professora do Programa de Pós Gradu- A tendência da crise estrutural
à fome, à destruição ambiental‒ problemas agravados pela crise vivenciada pelo capital é de
ação em Serviço Social – UFAL. Doutora
estrutural do capital, que adquire um caráter mundializado. Nesse
QUESTÃO SOCIAL: FUNDAMENTOS E EXPRESSÕES CONTEMPORÂNEAS

em Serviço Social pela Universidade agravamento. Consequentemente o
passo, as autoras defendem que as formas nas quais se apresenta a que presenciaremos nos próximos
Federal de Pernambuco – UFPE. Pós
Doutora na Universidade de Buenos “questão social” mudam, mas permanecem as velhas raízes cujas anos será um aprofundamento das
Aires. UBA – Argentina. Membro do bases se encontram nos fundamentos econômico-sociais. Significa desumanidades próprias desta ordem
Grupo de Pesquisa Sobre Reprodução dizer que sem investigar as leis imanentes à ordem capitalista social.
Social – GPSRS. em seu processo de acumulação, concentração e expansão,
A reprodução da sociedade capitalista
não conseguimos ultrapassar os aspectos meramente fenomênicos só é possível, hoje, na medida que
EDLENE PIMENTEL das desumanidades produzidas pela sociabilidade na qual vivemos, extermina milhões de vidas humanas,
Docente da Faculdade de Serviço Social, com expressões facilmente perceptíveis no mundo atual. por fome ou em guerras sem sentido.
da Universidade Federal de Alagoas.
Professora do Programa de Pós Gradu-
(Norma Alcântara) QUESTÃO SOCIAL: Além disso, o capital, em crise,
encontra meios de expulsar um
ação em Serviço Social – UFAL. Doutora número enorme de trabalhadores de
em Serviço Social pela Universidade
Federal de Pernambuco – UFPE. Pós
FUNDAMENTOS E EXPRESSÕES seus locais de origem afastando-os
de seus meios de trabalho e
Doutora na Universidade de Buenos
Aires. UBA – Argentina. Lider do Grupo CONTEMPORÂNEAS subsistência promovendo, desta
maneira, uma das maiores tragédias
de Pesquisa Sobre Reprodução Social – humanas de nossos tempos. Tudo isso
GPSRS.
Gilmaisa Macedo da Costa para que estes trabalhadores sirvam
como mão de obra barata nos países
Edlene Pimentel centrais a fim de garantir os lucros e a
manutenção do capitalismo.
Organizadores: Diante desta realidade os trabalhadores

começam a se movimentar em várias
Mariana Alves de Andrade partes do mundo. Podemos mesmo
Sergio Daniel Gianna afirmar que estamos nos aproximando
de um período histórico de acirramento
e aprofundamento da luta de classes.
Um dos aspectos mais importantes
desta luta é o combate ideológico. E é
para contribuir neste combate
(colocando-se na trincheira ao lado dos
trabalhadores) que nasce o Coletivo
Veredas.
2022_CAPA-Gilmaisa-Edlene.indd All Pages 13/10/2022 21:40:03

Gilmaisa Macedo da Costa
Edlene Pimentel
QUESTÃO SOCIAL: FUNDAMENTOS

E EXPRESSÕES CONTEMPORÂNEAS
Mariana Andrade e Sergio Gianna (Orgs.)

Diagramação: Silvio Freitas Soares Gilmaisa Macedo da Costa
Revisão: Daniele da Silva Faria Edlene Pimentel
Capa: Laura De Bona
Catalogação na Fonte
Departamento de Tratamento Técnico Coletivo Veredas
____________________________________________________________
C837p Costa, Gilmaisa Macedo da

Questão social: fundamentos e expressões contemporâneas
/ Gilmaisa Macedo da Costa, Edlene Pimentel ; organização de
Mariana Alves de Andrade, Sergio Daniel Gianna. – Maceió :
Coletivo Veredas, 2022.
138 p.
QUESTÃO SOCIAL: FUNDAMENTOS
ISBN: 978-65-88704-29-5 E EXPRESSÕES CONTEMPORÂNEAS
1. Questão Social 2. Desigualdade 3. Estado 4. Pobreza 5.
Desemprego I. Pimentel, Edlene II. Andrade, Mariana Alves de
III. Gianna, Sergio Daniel IV. Título.
CDD: 305.5
____________________________________________________________
Índices para catálogo sistemático:
1. Pessoas divididas por níveis sociais e econômicos – 305.5
2. Fatores que afetam renda e prosperidade – 339.4
Bibliotecário responsável: Davi Martins de Oliveira – CRB-3 1558 Mariana Andrade e Sergio Gianna (Orgs.)
Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição
4.0 Internacional. Para ver uma cópia desta licença, visite http://creative-
commons.org/licenses/by/4.0/. Esta licença permite cópia (total ou parcial),
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trabalho, desde que atribuam o devido crédito ao autor(a) pela criação original.
1ª Edição 2022 1ª Edição 2022

Coletivo Veredas Coletivo Veredas
www.coletivoveredas.com.br Maceió 2022
Sumário
Apresentação�� 7
PARTE I - FUNDAMENTOS DA QUESTÃO SOCIAL
Questão social e desigualdade: novas formas, velhas raízes�� 13

Considerações Iniciais�� 13
As Bases da Questão Social�� 14
Expressões Recentes da Questão Social�� 20
Considerações Finais �� 28
Referências�� 30
Questão social e cidadania na contemporaneiade�� 31

Pensamento Moderno e Cidadania��31
Contemporaneidade e Questão Social�� 39
A Questão social no Pensamento de Robert Castel�� 44
A “Nova Questão social” para Castel e Rosanvallon�� 61
A título de considerações finais sobre a Questão Social�� 70
Pensamento liberal e direitos humanos��79

Comissão Editorial - Coletivo Veredas 2022 Liberalismo e declaração universal dos direitos humanos�� 82
Sergio Afrânio Lessa Filho Referências�� 87
Milena da Silva Santos
Laura De Bona
Sergio Daniel Gianna Crise mundial, Estado e políticas sociais��89
Mariana Alves de Andrade Introdução�� 89
Natureza da crise, estados nacionais e políticas sociais�� 90
Considerações Finais�� 94
PARTE II - EXPRESSÕES CONTEMPORÂNEAS DA Apresentação
QUESTÃO SOCIAL
A coletânea de artigos aqui reunidos, de autoria de Gilmaisa
Macedo da Costa e de Edlene Pimentel, pesquisadoras cuja trajetória
Pobreza mundializada e os influxos do desemprego como revela os traços de competência teórica e política no campo da ontologia
marxiana, traz um conjunto de reflexões referenciadas no trabalho
expressão contemporânea da questão social�� 99 como categoria central no processo de produção e reprodução da
Introdução��99 sociabilidade que, a convite de seus organizadores, Mariana Andrade
Desemprego e questão social...................................................................................... 100 e Sergio Gianna, tenho o prazer de apresentar ao leitor.
O binômio pobreza e desemprego na América Latina ��103 Ancoradas nos fundamentos últimos que tecem a vida em
Considerações Finais��108 sociedade, as autoras trazem um conjunto de categorias e mediações
Referências��109 cuja abordagem guarda considerável distância do pensamento liberal,
que tem como limite a impossibilidade de superação da ordem
social capitalista. Neste sentido, reafirmam a teoria marxiana como
Capitalismo, crise e destruição ambiental�� 111 imprescindível se queremos de fato desvendar as determinações
Introdução��111 mais decisivas que permitem compreender as desumanidades
Homem/natureza - uma relação ontológica ��112 engendradas pela ordem do capital.
Reflexões em torno da relação entre crise capitalista e crise ambiental �� 117 As formulações teóricas defendidas nesta coletânea conduzem
Considerações Finais��124 a pensar a “questão social” em seus fundamentos e expressões
Referências��126 contemporâneas, associada às desigualdades, ao desemprego, à
pobreza, à fome, à destruição ambiental – problemas agravados pela
crise estrutural do capital, que adquire um caráter mundializado.
Mulher e emancipação: uma abordagem ontológico- Nesse passo, as autoras defendem que as formas nas quais se
materialista�� 127 apresenta a “questão social” mudam, mas permanecem as velhas
raízes cujas bases se encontram nos fundamentos econômico-
Introdução��127 sociais. Significa dizer que sem investigar as leis imanentes à ordem
Sociedade e gênero humano��128 capitalista em seu processo de acumulação, concentração e expansão,
Mulher, emancipação e “igualdade substantiva” ��133 não conseguimos ultrapassar os aspectos meramente fenomênicos
Referências��137 das desumanidades produzidas pela sociabilidade na qual vivemos,
com expressões facilmente perceptíveis no mundo atual.
Dividida em duas partes, esta coletânea traz, na primeira delas,
reflexões centradas nos fundamentos da “questão social”, desde sua
origem às formas atuais expressas na brutal desigualdade que assume
proporções gigantescas, não obstante o desenvolvimento das forças
produtivas, em que o trabalho adquire o potencial de produzir
riqueza capaz de suprir as necessidades materiais e espirituais de
toda a humanidade. As razões da pobreza que se agrava dia a dia não
podem ter aí sua justificativa, antes decorrem do trabalho alienado
expresso contemporaneamente sob a forma de trabalho abstrato,
7
caracterizado por Marx como trabalho indiferenciado, que tem na ampliada do capital”, condição esta que implica necessariamente
produção do valor de troca seu momento predominante. uma dominação contínua da criatura sobre o criador, fato sem
Reconhecer os fundamentos socioeconômicos sobre a precedentes na história, e ameaça o futuro da humanidade. As
problemática da “questão social” não significa negar seu caráter autoras concluem ser improvável que a destruição do meio ambiente
político, embora não seja esta sua determinação fundante. Bem ao seja solucionada sob a ordem de comando do capital.
contrário de uma visão unilateral e mecanicista, as autoras identificam O último artigo deste conjunto de formulações, que ora tenho
que “a questão social emerge no decorrer da luta operária”, cujos o privilégio de apresentar, traz uma abordagem sobre a emancipação
principais protagonistas são “a classe operária, a burguesia industrial da mulher, a partir de uma “aproximação do tema às bases ontológicas
e um Estado que se recusa a intervir no problema”. A pressão do da sociedade”. Sem desprezar a perspectiva de gênero presente no
operariado europeu contra as péssimas condições de trabalho, e contra debate atual, a reflexão expressa pelas autoras neste artigo percorre
uma vida indigna, é colocada na pauta do movimento socialista. outro caminho. Centra-se na perspectiva ontológico-materialista, na
No último artigo desta primeira parte, temos um debate sobre a qual o gênero humano se encontra referido à humanidade como um
crise mundial, relacionada ao Estado e às políticas sociais. A natureza todo, pressupondo o que Mészáros chama de igualdade substantiva,
da crise é colocada a partir de duas interpretações: crise cíclica e crise condição sine qua non para a emancipação feminina. Ao contrário
estrutural. Esta última, defendida por István Mészáros, com o qual as dessa condição, vive-se uma “desigualdade substantiva”, permeada
formulações das autoras têm total concordância, diferentemente da por um conjunto de alienações que limitam o desenvolvimento
anterior, cuja natureza é “periódica ou conjuntural”, diz respeito a uma civilizatório, no sentido sociogenérico.
crise que atinge a totalidade das relações sociais. Portanto, uma crise Na esteira do pensamento de Lukács, advogam-se os limites
estrutural do capital que adquire proporções universais. A conclusão de uma humanidade para-si perpassados por alienações, cuja raiz se
a que se chega é que a “ação do Estado limitada à administração das encontra num desenvolvimento desigual e contraditório entre forças
políticas sociais sem o desvelamento do seu caráter essencial, não produtivas e indivíduos humanos, impedindo esses últimos de se
contribui para a apreensão dos reais problemas humano-sociais”. constituírem como autênticas individualidades. Evidencia-se que
Iniciando a segunda parte, denominada “Expressões a emancipação feminina não se objetivará sem a total emancipação
contemporâneas da questão social”, temos uma discussão sobre dos seres humanos do domínio do capital, uma vez que este último
a mundialização da pobreza e os influxos do desemprego como “é regido por uma hierarquia de subordinação e de dominação tanto
expressão contemporânea da questão social conforme se manifesta da classe quanto do sexo”. A relação de subordinação do trabalho
na atualidade, tomando a América Latina como lócus dessa análise ao capital traduz uma “hierarquia estrutural insuperável”, e uma
e como preocupação que se estende aos organismos internacionais. “desigualdade substantiva”, o que nos aponta que o sistema do capital
Ocorre uma íntima relação entre desemprego e pobreza, muito só permite uma igualdade formal, não uma igualdade real, efetiva.
bem analisada como inerente à reprodução do capital, cuja lógica, Por fim, a presente coletânea tem o mérito de reunir artigos
conforme asseguram as autoras, “não inclui a preocupação com os sobre temáticas que resultam de um rico debate acadêmico, mas
seres humanos”, não obstante o potencial explosivo manifesto nas não apenas isso, resultam principalmente de preocupações com
contradições de classe. os rumos da humanidade determinados prioritariamente pelas
Na sequência, temos reflexões sobre os efeitos da produção necessidades incontroláveis de reprodução do capital.
capitalista no meio ambiente, preocupação que se põe na ordem do
dia, a exemplo do encontro das maiores economias do mundo (G20), Norma Alcântara
ocorrido recentemente em Roma, no qual se discutiu a urgência Maceió, dezembro de 2021
de medidas sobre o futuro do nosso planeta, em face de sua real
destruição. Problema que tem na produção destrutiva do capital o
seu fundamento, reconhecidamente apontado pelas autoras a partir
do pensamento de Mészáros. Sob essa ordem sociometabólica, os
recursos naturais tornam-se “a condição objetiva da reprodução
8 9
PARTE I
FUNDAMENTOS DA QUESTÃO SOCIAL

Questão social e desigualdade: novas formas,
velhas raízes
O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si
mesma. Confrontados com a ausência de tudo, os homens
abstêm-se do sonho, desarmando-se do desejo de serem outros.
Existe no nada essa ilusão de plenitude que faz parar a vida e
anoitecer as vozes (Mia Couto).
Considerações Iniciais
No decorrer desta exposição, busca-se revelar aspectos

essenciais de um fenômeno que historicamente tem sido denominado
questão social, e sua relação com o industrialismo e a desigualdade
social. Objetiva-se estabelecer os fundamentos econômico-sociais
do seu surgimento e de sua explicitação a partir das leis internas
do desenvolvimento capitalista em seu processo de acumulação e
expansão, apresentando traços de continuidade e de mudanças em
suas expressões na atualidade. Este texto é resultado de investigação
sobre as raízes materiais e humanas da questão social no capitalismo
e os conflitos de classe nele recorrentes, e sua interpretação por
pensadores diversos.
Por volta da década de 30, do século XIX, começa a tomar
forma, em larga escala, o pauperismo das massas trabalhadoras.
Tratava-se de algo novo na história da Europa, distinto da pobreza até
então existente, devido à sua dinâmica e caráter massivo e absoluto.
Filantropos e críticos sociais da sociedade nascente ocuparam-se em
registrar e propor intervenções nos efeitos deste fenômeno, surgindo
daí uma ampla documentação que revelava o quanto a pobreza crescia
à medida que a sociedade se tornava capaz de produzir mais bens e
serviços. Deste modo, a sua novidade consistia em que o pauperismo
não podia ser associado ao baixo desenvolvimento das forças
produtivas, nem à escassez da produção material de bens.
Tal fenômeno tornou-se incômodo para os ideólogos da
sociedade em ascensão, tendo em vista que não correspondia aos
ideais de igualdade propostos pela revolução burguesa, tornando-
se então objeto de preocupação por parte de pensadores das mais
13
variadas tendências. Quando as massas trabalhadoras começaram a A partir daí, a produção de coisas úteis realiza-se somente
reagir às condições de vida geradas pelo pauperismo, organizando-se se forem lucrativas para o capital, ou seja, os valores de uso são
como classe em torno de interesses comuns, o fenômeno adquiriu produzidos somente enquanto portadores de valores de troca. Além
conotação política, passando a ser denominado de questão social. disso, a reprodução do capital impõe produzir uma mercadoria cujo
Um termo utilizado mais comumente pelo pensamento conservador, valor seja mais alto que a soma dos valores das mercadorias exigidas
que incorporou inúmeras acepções em sua interpretação, mas sempre para produzi-la, de modo que impõe produzir não só um valor de
associado a expressões da precariedade de vida das classes populares uso, mas valor e não só valor, como também mais-valia. A fonte
e aos riscos que a luta dos trabalhadores contra a exploração desse mais-valor é efetivamente o trabalho humano, seu modo de
representava para a sociedade. extração um elemento central na constituição da desigualdade social
nos marcos da industrialização emergente. A produção capitalista
As Bases da Questão Social por si só não pode eliminar essa contradição, pois isso significaria
colocar o desenvolvimento das forças produtivas a serviço do
Entendemos inicialmente que as condições econômico-sociais homem, e não do capital.
e políticas para o surgimento da denominada questão social estão Por outro lado, Marx considera o capitalismo uma forma
intimamente vinculadas ao intenso desenvolvimento das forças inovadora de produção e expansão do mercado e da sociabilidade
produtivas, com franca expansão do industrialismo e a ampliação de humana, ao afirmar:
mercados no século XIX. Na economia, alteram-se radicalmente os Ao invés das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos
processos e as relações de produção; a incorporação das máquinas ao nacionais, surgem novas demandas, que reclamam para sua
processo produtivo gera uma nova dinâmica industrial que concentra satisfação os produtos das regiões mais longínquas e de climas os
mais diversos. No lugar do antigo isolamento de regiões e nações
mão-de-obra nas cidades, e exige uma nova disciplina na fábrica, autossuficientes, desenvolvem-se um intercâmbio nacional e uma
afetando diretamente o operariado emergente em suas condições de universal interdependência das nações. E isto se refere tanto à
vida, e de existência social em termos materiais e políticos. produção material como à produção intelectual. As criações
Marx expôs a constituição das citadas condições econômicas em intelectuais de uma nação tornam-se patrimônio comum. A
O Capital, no qual analisa o caráter revolucionário que o capital confere estreiteza e a unilateralidade nacionais e locais tornam-se cada
vez mais impossíveis; das numerosas literaturas nacionais e locais
aos processos de trabalho, em termos do desenvolvimento das forças nasce uma literatura universal (MARX & ENGELS, 1998, p. 43).
produtivas e, ao mesmo tempo, os aspectos contraditórios que este
contém, na medida em que a criação e a expansão das necessidades A dimensão positiva do capitalismo reside no revolucionamento
humanas só podem realizar-se na forma de mercadorias. Na grande constante das forças produtivas, permitindo criar uma massa
indústria, o capital eliminou as barreiras à sua plena expansão, o de bens e serviços capaz de responder a todas as necessidades
trabalhador tornou-se um apêndice da máquina, e assim “é removido da sociedade, numa dinâmica constante de universalização. Aí se
o motivo técnico da anexação do trabalhador a uma função parcial, por encontra a “grande influência civilizadora do capital; sua produção
toda a vida. Por outro lado, caem as barreiras que o mesmo princípio de um estágio social, em comparação com o qual todos os anteriores
impunha ao domínio do capital” (MARX, 1996, p. 482). Acontece aparecem como meros desenvolvimentos locais da humanidade ou
a dessubjetivação do processo de trabalho, permitindo ao capital idolatria da natureza” (MARX, 1985, p. 362).
controlar os salários, tendo em vista a possibilidade de substituição Deste modo, Marx desvenda, por um lado, o caráter
do trabalhador por máquinas, equipamentos e instalações. Neste emancipatório do capital em termos do desenvolvimento das
sentido, “o trabalho abstrato ganha uma realidade tecnicamente forças produtivas em sua capacidade de exercer o domínio sobre
tangível, na medida em que a nivelação geral das operações permite a natureza para satisfazer as necessidades sociais e seu impulso à
o deslocamento dos trabalhadores de uma máquina para outra, de expansão transnacional; por outro lado, sua contradição interna
um setor a outro, em tempo muito breve, e sem a necessidade de um compreende os limites impostos pelo próprio capital para subjugar-
adestramento especial” (TEIXEIRA, 1999, p. 11). se às necessidades humanas. Ele afirma: “O capital é destrutivo
14 15
ante tudo isso e constantemente o revoluciona, rompendo todas as tormentos que afetavam os trabalhadores, decorrentes do próprio
barreiras que impeçam o desenvolvimento das forças produtivas, trabalho e ou também da falta dele, portanto, do desemprego.
a expansão das necessidades, a diversificação do desenvolvimento A nosso ver, Marx, ao tratar da lei geral da acumulação
da produção e a exploração e o intercâmbio das forças naturais e capitalista, desvenda o fenômeno originário do pauperismo, da
espirituais” (MARX, 1985, p. 362). maneira como ele constitui uma das expressões primeiras daquilo
O capitalismo cria uma classe operária urbana com suas que se convencionou denominar questão social, considerando a
necessidades não atendidas e um imenso fosso entre as condições dimensão imanente ao conflito de classes no capitalismo, manifesta
de vida e os interesses entre o operariado e a burguesia que possui na desigualdade social. Esta adquire caráter essencialmente político,
os meios para contratá-lo. A concorrência da máquina havia gerado quando se torna uma ameaça à paz necessária à reprodução social
excedente de mão-de-obra, rebaixamento dos salários e ampliação da nos moldes dos interesses das classes dominantes. O problema do
jornada de trabalho acima da capacidade física dos trabalhadores. A operariado, com sua miséria, sua insatisfação e suas lutas urbanas
pauperização do trabalhador, de caráter absoluto na medida em que põe em pauta a questão social naquele momento. Diz respeito a
o expropria de condições materiais e espirituais de existência, gera uma pauperização da classe operária, ditada pelas necessidades de
riqueza aos expropriadores, mediante a extração da mais-valia. É um acumulação do capital, que se põe historicamente permeada pela
processo de acumulação capitalista resultante da industrialização e luta dos trabalhadores, e pelas estratégias de dominação das classes
impõe o ingresso da família do trabalhador no mercado de trabalho dominantes para contê-las, em favor da reprodução social. Desse
para ampliação da renda, em função de assegurar a reprodução social modo, a questão social emerge no decorrer da luta operária, e a sua
do trabalhador e de sua família. É essa nova pobreza que se torna explicitação para o conjunto da sociedade se verifica por intermédio
objeto de preocupação por parte de pensadores dos mais diversos das lutas sociais urbanas, que se multiplicam e têm como principais
matizes, atônitos diante da incapacidade do sistema em operacionalizar protagonistas a classe operária, a burguesia industrial e um Estado
os princípios norteadores da revolução burguesa. que se recusa a intervir no problema.
Também Marx se ocupa dessa pobreza quando diz: O movimento socialista dá o tom ao caráter reivindicatório
A fim de esclarecer plenamente as leis da acumulação, é preciso do operariado europeu, que empreende a luta contra condições
ter em vista também sua situação fora da oficina, suas condições opressivas de vida e de trabalho, tendo por suporte a demanda pela
de nutrição e moradia. Os limites deste livro levam-nos a cuidar satisfação de carências, considerada sobre seus aspectos de natureza
aqui, antes de tudo, da parte mais mal paga do proletariado material e moral. A reivindicação sobre ensino obrigatório, e sobre
industrial e dos trabalhadores agrícolas, isto é, da maioria da regulamentação do trabalho das mulheres, engrossa a pauta da pressão
classe trabalhadora (MARX, 1996b, p. 282).
dos trabalhadores. Aumenta a pressão sobre o Estado, via partidos
Ainda segundo Marx, a lista oficial de indigentes na Inglaterra políticos e sindicatos, exigindo sua intervenção na esfera econômica
tendeu a aumentar entre 1855 e 1866, obrigando-os a recorrer à e social, em termos de regulamentação do mercado de trabalho, e de
caridade pública e a submeter-se aos horrores das works-houses (MARX, medidas com significado para a melhoria de suas condições de vida. A
1996b, p. 282-3). A situação é ainda mais grave entre os trabalhadores extensão dos princípios da legislação fabril a outros espaços sociais de
no campo, sendo que: “a subnutrição entre os trabalhadores agrícolas trabalho, como as minas e a agricultura, tende a se acentuar. São criadas
recaía principalmente sobre mulheres e crianças, pois ‘o homem comissões de investigação do trabalho de crianças, de adolescentes e
precisa comer para fazer o serviço’” (MARX, 1996b, p. 284). Para de mulheres na agricultura, com resultados de grande importância.
ele, “a conexão interna entre o tormento da fome das camadas mais Desse modo, a necessidade de expansão do capital encontra resistência
laboriosas de trabalhadores e o consumo esbanjador, grosseiro ou em meio às lutas operárias e, ao mesmo tempo, requer a reprodução
refinado dos ricos, baseado na acumulação capitalista, só se desvela do trabalhador como mecanismo de desenvolvimento das forças
com o conhecimento das leis econômicas” (MARX, 1996b, p. 286). produtivas. Marx comenta:
Problema entendido numa perspectiva abrangente, tanto em termos
das diversas frações de trabalhadores e localidades, quanto dos [...] se a generalização da legislação fabril tornou-se inevitável
como meio de proteção física e espiritual da classe operária,
16 17
ela, por outro lado, generaliza e acelera, como já foi aventado, a Estado intervencionista nos moldes que se delimitaram no século
metamorfose de processos de trabalho esparsos, realizados em XX, quando são criados os mecanismos legais e institucionais de
pequena escala, em processos de trabalho combinados e em larga
escala social, portanto a concentração do capital e o domínio intervenção para a reprodução da classe trabalhadora.
exclusivo do regime de fábrica (MARX, 1996b, p. 130). Desse modo, inicialmente cabe ao catolicismo social intervir
sobre tais efeitos engajando-se totalmente na suposta melhoria e
Neste sentido, a legislação fabril regula as relações de trabalho recuperação da classe trabalhadora emergente. Assim, segundo
em termos da dominação direta do capital sobre o trabalho, ao Castel, ela atuará no espaço que se abrirá entre a recusa do Estado
mesmo tempo que “generaliza, com isso, também, a luta direta em assumi-la, e a incapacidade das chamadas “classes inferiores”
contra essa dominação” (MARX, 1996b, p. 130). Na tensão entre de decidir sobre seu destino. Nesse sentido, ela lançará mão de
os interesses conflitantes entre proprietários dos meios de produção, um conjunto de procedimentos e estratégias de forte conteúdo
que procuram tirar o maior proveito do valor de uso da mercadoria moralizador, atuando basicamente em três níveis:
“força de trabalho” que compram, e dos proprietários da força de [...] assistência aos indigentes por meio de técnicas que
trabalho, que procuram preservá-la para poder voltar a vendê-la, antecipam o trabalho social no sentido profissional do
são construídas as respostas sociais aos problemas decorrentes do termo; o desenvolvimento de instituições de poupança e de
pauperismo, e das condições de vida dos trabalhadores. A mediação previdência voluntária que apresentam as premissas de uma
sociedade segurancial; a instituição da proteção patronal,
das leis trabalhistas, naquele momento, constitui um mecanismo no garantia da organização racional do trabalho e, ao mesmo
sentido de atenuar os efeitos perversos da desigualdade gerada no tempo, da paz social (Idem, 1999, p. 319).
processo produtivo, ao mesmo tempo que assegura a reprodução
social em sentido amplo. No que diz respeito à assistência ao indigente na França,
Por sua vez, em abordagem distinta desta, Robert Castel, o barão de Gérando propõe em sua obra Le Visiteur du Pauvre
tomando o caso francês como exemplo típico, traça os delineamentos uma nova tecnologia de assistência, que consiste em distribuir
gerais da questão social sob dois ângulos: o que representou seu donativos aos indigentes, não de forma aleatória, mas examinando
enfrentamento na proposição das classes dominantes em face à cuidadosamente quais as suas necessidades, que vão desde as
ameaça à coesão social, e o que representou o ponto de vista do permanentes, como aquelas provocadas pela invalidez, até as
operariado em sua luta por melhores condições de vida e de trabalho. ocasionadas pelo desemprego, e má constituição moral. Desse
Segundo este autor, a expressão “Questão Social” aparece pela modo, exercia um controle efetivo sobre o processo de seleção
primeira vez no jornal legitimista francês La Quotidienne, em 1831, e distribuição, na medida em que utilizava a prestação da ajuda
que acusava o governo, chamando a atenção dos parlamentares, no como instrumento de recuperação moral, submetendo o serviço
sentido de que era preciso entender que, além dos limites do poder, de socorros à boa conduta do assistido. Assim, o “visitador do
isto é, fora do campo político, existia uma questão social carente pobre” realizava uma intervenção fundada numa relação pessoal,
de resposta, quando esses efeitos do processo de industrialização com acompanhamento, mediante a qual procurava fazer um
representavam um perigo à paz e à ordem econômico-social e moral diagnóstico para solucionar problemas individuais. Essa forma
estabelecida. No interior do pensamento dos reformadores sociais, de atuação, segundo Castel, deu origem ao trabalho social
defensores do sistema, a questão social passa a ser tratada como “[...] profissionalizado. Convém ressaltar que essa maneira de abordar a
questão da reabilitação das classes trabalhadoras ‘gangrenadas’ pela assistência, ou seja, a corrente da scientific charity, expandir-se-á pelos
chaga do pauperismo” (CASTEL, 1999, p. 317). países anglo-saxônicos durante a segunda metade do século XIX.
Além do mais, a questão social nessa conjuntura é encarada Nessa mesma direção, segue o case work1, que surge nos Estados
como um problema cuja resposta não se enquadra na estrutura do Unidos em sua instituição formal, no início do século XX, a partir
Estado, visto que a burguesia se inspirava nas doutrinas liberais,
avessas a qualquer intervenção do Estado nos assuntos sociais. No 1 Nos Estados Unidos o case work dá origem à primeira forma institucional do
sentido mais essencial, o capitalismo concorrencial não exigia um serviço social como profissão, base das primeiras produções teóricas sobre a
atividade profissional.
18 19
de uma necessidade de centralizar novamente a intervenção social Por sua vez, os aspectos relativos à essência geradora dos
entre o agente e os beneficiários. problemas sociais não são comumente o alvo do debate sobre a questão
Em síntese, a questão social, originalmente expressa no social. Historicamente, nele estão presentes as grandes polêmicas do
empobrecimento do trabalhador, tem suas bases reais na economia tipo: se a responsabilidade da miséria deve ser imputada aos indivíduos
capitalista. Politicamente, passa a ser reconhecida como problema na ou à sociedade, se ela é de caráter público ou de caráter privado, que o
medida em que os trabalhadores empobrecidos, de forma organizada, pensamento sociopolítico moderno, baseado na fragmentação entre
oferecem resistência às más condições de existência, decorrentes indivíduo e sociedade, de fato existente na realidade, consagrou como
de sua condição de trabalhadores para o capital. No percurso do ideal de cidadão. Hegel, em debate com seus contemporâneos liberais,
desenvolvimento capitalista atravessado por lutas sociais entre capital conforme alerta Losurdo, já punha em dúvida a responsabilização
e trabalho, constituem-se respostas sociais, após problemas daí individual do problema da pobreza: “A miséria configura-se então,
decorrentes, mediadas ora por determinadas organizações sociais, para Hegel, como uma questão social que não se explica simplesmente
ora pelo Estado, num processo impulsionado pelo movimento de com a suposta indolência ou com outras características do indivíduo
reprodução do capital. que está na miséria” (LOSURDO, 1998, p. 206). Uma posição
diferenciada de outros liberais, que simplesmente responsabilizavam
Expressões Recentes da Questão Social os indivíduos por sua condição de pobre. Se, mesmo em momento
posterior, “para Tocqueville, o indivíduo na miséria somente pode
No processo de desenvolvimento capitalista, criam-se apelar à caridade, seja privada ou pública, para Hegel ele é detentor,
condições objetivas para o surgimento do capitalismo monopolista, ao contrário, de um preciso ’direito’ ao qual corresponde uma precisa
no qual a intervenção do Estado se torna imprescindível como forma ‘obrigação da sociedade civil’” (LOSURDO, 1998, p. 208).
de atenuar a estagnação econômica. No conjunto das transformações Na atualidade, o publicismo neoliberal continua a negar a
daí decorrentes, o Estado também passa a intervir na questão social questão social: “Von Hayek não se cansa de repetir que é absurdo
como árbitro nos conflitos advindos das relações de trabalho. O falar de justiça ou injustiça ‘social’ perante um estado de coisas
Estado Social, que tem como expressão máxima o Welfare State, que não é o ‘resultado da vontade deliberada’ de alguém, diante
caracterizar-se-á pela aquisição de múltiplas funções, tornando-se, de um estado de coisas que, não tendo sido ‘deliberadamente
inclusive, permeável às demandas das classes trabalhadoras. Isso produzido pelos homens, não possui nem inteligência, nem virtude,
resultará também em direitos sociais, e mecanismos que ocultam nem justiça, nem qualquer outro atributo de valores humanos’”
contradições de classe (pela atenuação dos conflitos), e de certo (LOSURDO, 1998, p. 208). Ele entende que os homens não são os
modo, favorecem a reprodução dos trabalhadores. Entretanto, o fim autores da história, eles apenas a sofrem. De modo que, por parte
último consiste em assegurar o pleno desenvolvimento do capital do pensamento liberal, a objetividade da questão social fica presa à
monopolista. Quanto a isso, Mészáros afirma: polêmica entre a responsabilidade individual e a responsabilidade
pública de resolvê-la pela via do Estado, ou da sociedade civil. Uma
No passado, até algumas décadas atrás, foi possível extrair polêmica ainda presente nos dias atuais, principalmente em tempos de
do capital concessões aparentemente significativas – tais
como os relativos ganhos para o movimento socialista (tanto neoliberalismo, quando se trata de defender a desresponsabilização
sob a forma de medidas legislativas para a ação da classe do Estado das refrações da questão social expressas nas inúmeras
trabalhadora como sob a de melhoria gradual do padrão de formas de pobreza de grande parcela da sociedade. Deste modo,
vida que mais tarde se demonstraram reversíveis), obtidos convém perceber que a intervenção sobre o pauperismo e seus
por meio de organizações de defesa do trabalho: sindicatos e desdobramentos, em outros termos, sobre as expressões da questão
grupos parlamentares. O capital teve condições de conceder
esses ganhos, que puderam ser assimilados pelo conjunto social, esteve permeada pela expansão do próprio capitalismo e da
do sistema, e integrados a ele, e resultaram em vantagem reprodução do capital. A responsabilização/desresponsabilização
produtiva para o capital durante o seu processo de auto- do Estado pelo problema tem seguido as exigências dessa expansão.
expansão (MÉSZÁROS, 2002: 95, grifos do autor). O fenômeno do desemprego ronda o processo de reestruturação
produtiva em face da incapacidade do sistema de absorver mão-de-
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obra. Num contexto mundializado, o desemprego assume proporções explorarem os recursos econômicos, humanos e naturais, onde
internacionais. Para Chossudovsky2: “O desemprego mundial torna-se lhes for conveniente (CHESNAIS, 1996, p. 34).
uma ‘alavanca’ da acumulação de capital global que ‘regula’ os custos
do trabalho em cada economia nacional. A pobreza de massa regula os A possibilidade de explorar mão-de-obra em lugares muito
custos internacionais do trabalho” (1999, p. 70). distantes dos centros nos quais a organização dos trabalhadores
Com a diminuição dos postos de trabalho, vê-se a classe já estava sedimentada, aliada ao fenômeno do desemprego
trabalhadora heterogeneizar-se em trabalhadores permanentes, crescente, foram decisivos para o refluxo da luta do operariado na
autônomos ou temporários, com forte migração para os serviços. contemporaneidade recente. Principalmente o desemprego, que tira
O que levou alguns analistas a identificar, nesse fenômeno, o do trabalhador seu meio de sobrevivência, e o coloca, nos lugares
desaparecimento do operariado do cenário mundial. Compreendem onde existe, nas malhas da dependência da seguridade social; onde
que o trabalho assalariado já não se constitui na única fonte de não existe, condena-o à fome. O desemprego também não parece ter
sobrevivência do trabalhador; alternativas diversas compõem o resultado simplesmente das condições objetivas da reestruturação
universo da renda familiar. Como resultado das transformações produtiva: ele compôs a estratégia de superação da crise proposta
contemporâneas, surgem novas atividades e funções no campo pelas grandes potências. Segundo afirmação de Alan Budd, antigo
da produção e da circulação, que expressam uma totalidade mais assessor de Margaret Thatcher: “aumentar o desemprego foi uma
complexa se comparadas com as décadas que as antecederam, e com maneira muito conveniente de se reduzir a força da classe operária
evidente crescimento do setor de serviços. [...], o que se procurou forjar [...] foi uma crise no capitalismo, que
Um outro aspecto importante refere-se ao caráter de expansão repôs o exército industrial de reserva e permitiu aos capitalistas a
global, como momento de desenvolvimento capitalista articulando obtenção de grandes lucros daí por diante” (BUDD apud MENELAU
a reestruturação dos processos de trabalho a uma maior liberdade NETTO, 1996, p. 77). Vê-se, portanto, que a problemática do
de ação, mediante a qual adquire força o neoliberalismo. Ocorrem desemprego põe-se, para alguns, até mesmo como estratégia de
mudanças no papel do Estado com o processo de privatizações e desenvolvimento do capital.
com desregulamentação dos direitos e garantias sociais, criando- Desse modo, tem-se um quadro no qual a estratégia de
se formas mais flexíveis de contratação dos trabalhadores, sem subordinação da classe trabalhadora difere radicalmente daquela típica
vínculos permanentes. Esse modelo de acumulação já não comporta do modelo fordista-keynesiano, na qual a busca do consenso se fez
a presença do Estado nos moldes do modelo fordista-keynesiano mediada por mecanismos de reprodução do operariado com franca
operante especialmente pós-Segunda Guerra Mundial. Reclama agora permeabilidade às suas reivindicações. Como agravante, as condições
a liberdade para que as empresas possam se ajustar às exigências de desvantagem da classe operária, já existentes naquele momento,
competitivas do mercado mundial. aumentaram enormemente. Ela se encontra em franca desvantagem,
Para Chesnais, o fenômeno de mundialização do capital numa atitude defensiva que predomina sobre as manifestações políticas
comporta, ao lado da natureza intrínseca ao seu desenvolvimento isoladas. Ao mesmo tempo, se de um lado o capital alcança uma
objetivo, o impulso decisivo de governos das grandes potências potência nunca vista na história, do outro a derrocada do Leste europeu
econômicas. Diz ele: e a exposição de suas mazelas destruíram os sonhos acalentados
pelos trabalhadores de construir uma sociedade com base nos ideais
Sem a intervenção política ativa dos Governos Thatcher e Reagan, socialistas. Assim, não parece haver neste momento quaisquer condições
e também do conjunto dos governos que aceitaram não resistir a
eles, e sem a implementação de políticas de desregulamentação, necessárias aos anseios de emancipação social dos trabalhadores, ou de
de privatização e liberalização do comércio, o capital financeiro conter a tendência expansiva e desumanizadora do capital, em favor
internacional e os grandes grupos multinacionais não teriam de um autêntico desenvolvimento humano. Na história recente, as
podido destruir tão depressa e tão radicalmente os entraves soluções encontradas para os efeitos desumanizadores do capital se
e freios à liberdade deles de se expandirem à vontade e de mostraram ineficazes para atingir as raízes da questão social, visto que:
2 Professor de economia da Universidade de Ottawa, consultor da OIT, do Programa As concessões dadas ao trabalho pelo ‘Estado de bem-estar
de Desenvolvimento das Nações Unidas e da Organização Mundial de Saúde. social’ não debilitaram em absolutamente nada o capital.
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Muito pelo contrário, contribuíram significativamente para a da ‘rede de seguridade social’. Assegura-se, desse modo,
dinâmica expansionista do sistema por um período contínuo de uma precária sobrevivência para as comunidades locais, ao
duas décadas e meia após a Segunda Guerra Mundial. Nem tais mesmo tempo que se diminui o risco de sublevação social
concessões alteraram a relação de forças em favor do trabalho, (CHOSSUDOVSKY, 1999, p. 58-9).
pois, na verdade, debilitaram a sua combatividade, reforçando
as mistificações do reformismo. Naturalmente isso não significa Ao que tudo indica, a intervenção sobre o pauperismo e
que se possa deixar de defender os ganhos defensivos do
passado, especialmente quando o capital, sob a pressão de uma seus desdobramentos na reação às condições materiais de vida daí
crise estrutural que se aprofunda, é forçado a tentar revogá-los. decorrentes, com impulsos para proposições de uma sociabilidade
Significa, entretanto, que as ilusões associadas às concessões diversa do capitalismo, em outros termos, sobre as expressões da
ao longo da história da socialdemocracia reformista devem questão social, esteve permeada pela expansão do próprio capitalismo
ser expostas pelo que realmente são, e não pela fantasia sobre e da reprodução do capital em seu processo de acumulação. É
a viabilidade do trabalho a partir da ‘alternativa econômica
estratégica’ neokeynesiana. Tal alternativa não apenas é totalmente importante considerar a extensa análise feita por Mészáros sobre
irreal nas circunstâncias da crise estrutural do capital, mas, se por nexos causais de fenômenos relativos aos momentos da expansão
algum milagre pudesse ser implementada, nem mesmo chegaria a capitalista hoje e seus efeitos sobre as condições de vida das massas
construir uma alternativa (MÉSZÁROS, 2002, p. 919). populacionais. Observa-se que uma completa mudança em relação aos
termos do passado recente, no qual se tornou representativa a defesa
O pauperismo, como uma das principais expressões do caráter do “interesse de todos”, é uma tendência na atualidade. Para o autor:
desumanizador do capital, assume também proporções mundiais Esta é a tendência do ‘capitalismo avançado’, a metamorfose de
com a polarização social e a concentração da riqueza. Isto, pois: sua fase do pós-guerra caracterizada pelo ‘Estado do bem-estar’
No Sul, no Leste e no Norte uma minoria social privilegiada (com sua ideologia de ‘benefícios universais de previdência’
acumulou grande riqueza em prejuízo da grande maioria da e a concomitante rejeição da ‘avaliação da rentabilidade’), em
população. Essa nova ordem financeira internacional é nutrida sua nova realidade de ‘previdência social dirigida’: a designação
pela pobreza humana e pela destruição do meio ambiente. (...) atual da avaliação da rentabilidade, com suas cínicas pretensões
Além disso, as reformas – visto que são aplicadas simultaneamente de ‘eficiência econômica’ e ‘racionalidade’, adotadas até pelo
em mais de cem países – levam a uma globalização da pobreza, antigo adversário socialdemocrata sob o slogan de ‘novo
processo que aniquila a subsistência humana e destrói a sociedade realismo’. Naturalmente, admite-se que nem mesmo este fato
no Sul, no Leste e no Norte (CHOSSUDOVSKY, 1999, p. 27). tenha o poder de levar alguém em seu juízo perfeito a levantar
dúvidas sobre a viabilidade do próprio sistema do capital.
Mesmo assim, apesar de sua força, a mistificação ideológica não
Se nos marcos dos países centrais já se consolidaram os consegue eliminar o fato desagradável de ser a transformação
mecanismos de controle do pauperismo e a pobreza assume caráter do capitalismo avançado, que abandona uma condição em que
relativo, o problema encontra-se agora deslocado para a periferia poderia se ufanar de ser o ‘Estado do bem-estar’, para uma outra
do capitalismo, na qual pode ser encontrada até mesmo a pobreza em que mesmo os países mais ricos têm de oferecer sopões
absoluta. Tanto é que, e outros benefícios miseráveis (para os pobres merecedores),
bastante revelador da eficiência decrescente e da insuficiência
[...] desde o final dos anos 80, a ‘diminuição da pobreza’ crônica do antes inquestionável método perfeito de extração do
tornou-se uma condicionalidade dos acordos de empréstimos trabalho excedente na atual fase do desenvolvimento: fase que
do Banco Mundial. [...] O FSE (Fundo Social de Emergência) ameaça privar o sistema do capital em geral de sua raison d’être
sanciona oficialmente a retirada do Estado dos setores sociais histórica (MÉSZÁROS, 2002, p. 104, grifos do autor).
e a ‘administração da pobreza’ (no âmbito microssocial) por
meio de estruturas organizacionais separadas e paralelas. Várias Deste modo, Mészáros analisa que “o sistema do capital é
organizações não-governamentais (ONGs) financiadas por
‘programas de ajuda’ internacionais têm absorvido gradualmente orientado para a expansão e movido pela acumulação” (MÉSZÁROS, 2002,
muitas das funções do governo em cada país. Produção em p. 100, grifos do autor). Assim, a determinação mais profunda
pequena escala e projetos de produção artesanal, subcontratação desse sistema pode tornar-se, ao mesmo tempo, “um dinamismo
por firmas de exportação, treinamento com base comunitária e antes inimaginável e uma deficiência fatídica”. Nesses termos, o
programas de emprego, etc., são organizados sob os auspícios capital como sistema de controle sociometabólico “é absolutamente
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irresistível enquanto conseguir extrair e acumular trabalho excedente necessidades elementares de incontáveis milhões de famintos:
– seja na forma econômica direta, seja na forma basicamente política o lado esquecido e que sofre as consequências dos trilhões
desperdiçados (MÉSZÁROS, 2002, p. 801).
– no decurso da reprodução expandida da sociedade considerada”
(MÉSZÁROS, 2002, p. 100, grifos do autor). No entanto, havendo
qualquer entrave no interior desse processo de expansão e acumulação, O mesmo acontece em outros âmbitos da esfera humana, nos
as consequências são avassaladoras, podendo desse modo desencadear quais reinam os conflitos de gerações, a negação de oportunidade
alguns tipos de crise. de trabalho para milhões de homens, a pressão da ‘aposentadoria
Conforme afirma Mészáros, “a crise do capital que precoce’ para outros, a destruição da família, a exploração da mão-
experimentamos hoje é fundamentalmente uma crise estrutural”. de-obra feminina, o desemprego crônico, enfim, a exacerbação da
Mas “crises de intensidade e duração variadas são o modo natural de desigualdade e, consequentemente, um processo de desumanização
existência do capital: são maneiras de progredir para além de suas e pauperização cada vez mais crescentes das massas populacionais.
barreiras imediatas e, desse modo, estender com dinamismo cruel sua Conforme assinala Mészáros, “tipicamente, as soluções propostas
esfera de operação e dominação” (MÉSZÁROS, 2002, p. 795, grifo nem sequer arranham a superfície do problema, sublinhando,
do autor)3. No mundo do capital, as expressões de uma crise estrutural novamente, que estamos à frente de uma contradição interna
podem ser reconhecidas tanto em suas dimensões internas como nas insolúvel do próprio capital” (MÉSZÁROS, 2002, 802). Levando-se
instituições políticas. Neste sentido, essa crise estrutural do capital em consideração que o capital só funciona através de contradições,
“afeta a totalidade de um complexo social em todas as relações com [...] ele tanto cria como destrói a família; produz a geração
suas partes constituintes ou subcomplexos, como também a outros jovem economicamente independente com sua ‘cultura jovem’
e a arruína; gera as condições de uma velhice potencialmente
complexos aos quais é articulada” (MÉSZÁROS, 2002, p. 797). Para confortável, com reservas sociais adequadas, para sacrificá-las aos
ele, “a crise estrutural do capital se revela como uma verdadeira crise interesses de sua infernal maquinaria de guerra. Seres humanos
de dominação em geral” (MÉSZÁROS, 2002, p, 800, grifos do autor). são, ao mesmo tempo, absolutamente necessários e totalmente
Essa crise se torna tão devastadora que dificilmente qualquer esfera da supérfluos para o capital (MÉSZÁROS, 2002, p. 802).
atividade humana pode escapar aos seus efeitos. Na atualidade, pode-
se constatar um tipo de dominação do capital através do espectro Neste sentido, os homens se defrontam cotidianamente com
de destruição com que a referida crise vem afetando, de uma forma as consequências desumanizadoras do capital, advindas das suas
geral, o conjunto das relações humanas. Assim, próprias contradições, e com a crise progressiva desse sistema de
dominação. No entanto, para que o capital possa alcançar seus
[...] a devastação sistemática da natureza e a acumulação contínua
do poder de destruição – para as quais se destina globalmente uma objetivos, quais sejam, acumular e expandir-se cada vez mais, ele
quantia superior a um trilhão de dólares por ano – indicam o lado “deve afirmar seu domínio absoluto sobre todos os seres, mesmo
material amedrontador da lógica absurda do desenvolvimento na forma mais desumana, quando estes deixam de se adaptar a seus
do capital. Ao mesmo tempo, ocorre a negação completa das interesses e a seu impulso para a acumulação” (MÉSZÁROS, 2002,
p. 185). Assim, com as transformações ocorridas no decorrer do
3 Em Para Além do Capital, Mészáros faz uma exaustiva análise sobre a crise século passado, observa-se que o capital alastrou-se e dominou todos
do capital e os complexos problemas econômicos e políticos, aqui apenas os cantos da terra. Porém, apesar da riqueza material gerada pelo
limitadamente pontuados. Sobre a raison d’être do sistema do capital, encontra-se processo, foi incapaz de solucionar os problemas que os indivíduos
no autor: “o sistema do capital – cuja raison d’être é a extração máxima do trabalho enfrentam no cotidiano de suas vidas, conforme as promessas
excedente dos produtores de qualquer forma compatível dos seus limites estruturais revolucionárias da burguesia capitalista. Ao mesmo tempo, a
– possivelmente seria incapaz de preencher suas funções sociometabólicas de penetração do capital nos países subdesenvolvidos só piorou esses
qualquer outra maneira” (Idem, 2002, p. 99). “Somente quando os limites absolutos problemas. A tão propalada promessa de ‘modernização’, após
das determinações estruturais mais internas do capital vêm à tona é que se pode falar décadas de intervenção, “só ofereceu a intensificação da pobreza, a
de uma crise que emana da baixa eficiência e da assustadora insuficiência da extração do
trabalho excedente, com imensas implicações para as perspectivas de sobrevivência
dívida crônica, a inflação insolúvel e uma incapacitante dependência
do próprio sistema do capital” (MÉSZÁROS, 2002, p. 102, grifos do autor). estrutural” (MÉSZÁROS, 2002, p. 92). No entender de Mészáros:
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As coisas mudaram bastante nessas últimas décadas, em relação Do ponto de vista do capital, é hoje particularmente grave
ao passado expansionista. O deslocamento das contradições o fato de que mesmo os privilégios de poucos já não podem
internas do capital podia funcionar com facilidade relativa na ser sustentados nas costas dos muitos, em nítido contraste
fase de ascendência histórica do sistema. Sob tais condições, era com o passado. Em consequência, todo o sistema está se
possível tratar de muitos problemas varrendo-os para debaixo tornando bastante instável, ainda que leve algum tempo
do tapete das promessas não cumpridas, como a modernização antes que transpirem todas as implicações dessa instabilidade
no ‘Terceiro Mundo’ e uma prosperidade bem maior nos países sistêmica, exigindo remédios estruturais em lugar do adiamento
‘metropolitanos’, afirmada com base na expectativa de produção manipulativo (MÉSZÁROS, 2002, p. 93).
de um bolo que cresceria infinitamente. Todavia, a consumação
da ascendência histórica do capital altera radicalmente a situação Nesta perspectiva, o modelo de desenvolvimento capitalista,
(MÉSZÁROS, 2002, p. 92).
profundamente afetado pela crise estrutural do capital, encontra-se
instável. Já não são sustentáveis as formas manipulatórias do passado
Entre outras coisas, as promessas não cumpridas devem agora como saídas para os conflitos gerados pelo privilégio de poucos em
ser totalmente esquecidas e determinados “ganhos” alcançados pela detrimento de muitos, parte deles na mais completa miséria social.
classe trabalhadora em “países capitalistas avançados” precisam ser Uma maioria desprivilegiada, com escasso acesso aos bens e riqueza
negociados, de maneira que possam assegurar a manutenção da produzidos socialmente, reflete apenas um aspecto entre as várias
ordem socioeconômica e política vigentes. Seguem nessa direção consequências decorrentes do caráter destrutivo e desumanizador
as soluções negociadas entre trabalhadores e patrões, resultando do capital, requerendo soluções novas do ponto de vista estrutural
na flexibilização de direitos sociais e trabalhistas que, no período para os males que afetam a humanidade.
do Welfare State, soaram como “ganhos”, como “vitória civilizada” Diversos pensadores, sob diversas acepções, apreendem
para resolução de conflitos nas relações de trabalho. Não é por acaso expressões atuais de um aspecto fundamental do modo de produção
que “os serviços sociais mais elementares são submetidos a duros capitalista no processo de expansão e de acumulação do capital. A
cortes: uma medida verdadeira do ‘trabalho civilizador’ do capital pauperização dos trabalhadores e suas famílias, conforme detectara
hoje” (Idem, 2002, p. 801). As soluções atuais apontam ainda para a Marx, afirma-se no processo de acumulação do capital, e se atualiza
desresponsabilização do Estado com a previdência social e para uma atingindo amplas camadas populacionais em termos mundiais,
crescente privatização dos serviços sociais, impulsionando grupos deslocando para a periferia do capitalismo a pobreza mais evidente,
assalariados a buscarem algum tipo de proteção em planos de saúde, ao mesmo tempo que impulsiona a migração para polos mais
e de previdência, mantidos com seus recursos salariais diretos. desenvolvidos. Dado que o capital busca extrair mais-valia nos mais
diversos cantos do mundo, as expressões da questão social hoje
Considerações Finais não estão restritas aos grandes centros industrializados. É, também
ela, um fenômeno mundial, ainda que tenhamos de considerar as
Entende-se ser esse o quadro que se põe nos marcos da formas particulares de sua expressão em cada Estado ou Nação,
atualidade para aquilo que se denomina de “nova questão social”, desencadeando conflitos variados. As recentes rebeliões de jovens
pensada com base nos efeitos perversos do desemprego crescente, e imigrantes na França, frente ao desemprego e à ausência de
da “desfiliação”, do deslocamento da pobreza etc., que, na visão de perspectiva de vida, são emblemáticas no sentido deste fenômeno.
Castel, cria uma geração de inúteis para o mundo, sejam jovens que
buscam o primeiro emprego, sejam trabalhadores envelhecendo.
Nada mais são que novas formas de expressão de um fenômeno
cuja essência permanece a mesma, dado que se mantêm os
mecanismos fundamentais às leis da acumulação capitalista, gerando
simultaneamente a riqueza de poucos e a miséria de muitos. Contudo,
diante da crise do capital, surgem problemas quanto às possibilidades
de manutenção dos privilégios de poucos. Mészáros afirma:
28 29
Referências
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Produtiva: as novas determinações do mundo do trabalho. São Paulo: no processo de trabalho exercem um papel decisivo para que esta
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TEIXEIRA, F. J. S. O Capital e suas formas de produção de mercadorias O influxo renovador se encontra no ideário que demarca a
– Rumo ao fim da Economia Política. Fortaleza, Texto, julho de 1999. constituição da racionalidade moderna, enquanto processo que
emerge no Renascimento e culmina com o Iluminismo, passando por
Montesquieu e Kant, em escala ascendente até a contemporaneidade,
no séc. XIX. Perpassado por intensas mediações, este processo
delimita o nascimento e a constituição da razão dialética e do
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historicismo, presentes em Hegel, enquanto pensador que expressa a expressão de um tempo no qual o homem corta os laços com
síntese do movimento ascendente do pensamento iluminista. determinações externas à sua vontade, para fazer da racionalidade o
O Iluminismo, enquanto ideário da racionalidade moderna, guia de sua reinvenção do mundo. Hobbes e Locke constroem no
corresponde a uma resposta às exigências históricas de seu tempo. plano teórico a necessidade de uma instância política que permita
Aponta para a construção de um “cidadão mundial”, ou seja, para um estabelecer leis e normas universais para uma vida comunitária.
homem universal, na medida em que o intercâmbio de culturas entre Trata-se de um ideal teórico, segundo o qual a concepção de estado
povos, que se divisava no horizonte, propiciado pela base de troca de natureza oferece o substrato para que possam analisar o seu
entre mercados, impulsionava para uma apreensão do homem como tempo, e indicar os meios que os homens podem dispor, numa vida
ser no mundo. Um ser capaz de apossar-se do mundo a sua volta partilhada socialmente, para alcançar a liberdade.
de forma consciente, e inteligentemente produzir um novo sistema, O contexto coloca a preocupação com o problema da
segundo um projeto racional e previamente pensado, de maneira a desigualdade, expressos especialmente pelos enciclopedistas como
responder às necessidades de desenvolvimento humano. Um sistema Voltaire, Montesquieu e Rousseau. Rousseau expressa bem a síntese
prenhe das condições materiais para a criação de um sistema universal das inquietações que se desdobrara desde Hobbes e Locke, até
de cultura, conforme colocava Hegel. aquele momento com o seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da
O suporte para uma racionalidade moderna em Hegel se desigualdade entre os homens, no qual não atribui essa diferença nem às
encontra em três pontos essenciais: 1) o historicismo concreto a desigualdades naturais como fizera Locke, nem a uma tendência à
partir do qual define o homem como ser capaz de se desenvolver hostilidade recíproca que conduzia a uma guerra de todos contra
e se aperfeiçoar. A perfectibilidade do gênero humano advém todos, conforme Hobbes sustentara. Rousseau compreende que
do caráter ontológico e histórico da realidade, mediante a qual o o aspecto mais fundamental da desigualdade humana encontra-se
movimento crescente de aperfeiçoamento humano torna-se possível. na propriedade privada: “O verdadeiro fundador da sociedade civil
2) O humanismo – que sustenta a concepção de homem enquanto foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer:
ser que constrói coletivamente a sua história. O homem é um ser ‘isto é meu’ e encontrou pessoas bastante simples para acreditá-lo”
capaz não só de aperfeiçoar-se, mas este aperfeiçoamento se realiza (ROSSEAU, 1978 e p.259). Aqueles que não reagiram a este ato de
na relação com os outros homens, na medida em que este se torna apropriação privada de um bem natural são igualmente responsáveis
homem enquanto ente coletivo, e ao se fazer coletivo constrói sua pelo dano causado à humanidade com esta apropriação. Para ele,
própria história. 3) A razão dialética – diz respeito a uma determinada é a relação entre as coisas que determina a desigualdade entre os
racionalidade objetiva imanente ao real e, ao mesmo tempo, a um homens, e não a vida em sociedade, posto que a sociedade humana
sistema categorial capaz de reconstruir ideal e subjetivamente essa tem uma história composta de várias etapas, desde o estado de
processualidade imanente ao real (NETTO, 1994). natureza até o surgimento da propriedade privada, a partir da qual
Todo pensamento significativo produzido naquele momento é se constitui a sociedade civil. Ele entende que
portador dos traços fundamentais que postulam a existência de um [...] esta ideia de propriedade, dependendo de muitas ideias
homem universal, ainda que não se colocassem as condições suficientes anteriores que só poderiam ter nascido sucessivamente, não se
para a sua realização. É um ideal profundamente revolucionário, que formou repentinamente no espírito humano. Foi preciso fazer-
vislumbra o caráter renovador do capitalismo, frente às práticas do se progressos, adquirir-se muita indústria e luzes, transmiti-las e
feudalismo e do mercantilismo originário, nos quais predominavam aumentá-las de geração para geração, antes de chegar a esse último
termo do estado de natureza (ROSSEAU, 1978, p. 259-260).
empecilhos estruturais ao desenvolvimento do livre comércio em escala
mundial, e uma intensa produtividade no trabalho, enquanto produção Em Rousseau, a ideia de gênero humano está entrelaçada na
de bens materiais passíveis de troca, que somente o capitalismo foi ideia de liberdade que se faz presente já no homem em estado de
capaz de deslanchar, em termos da constituição de um mercado natureza, como característica que o distingue dos outros animais.
internacional, e dos ideais de homem enquanto universal. Essa liberdade se expressa nas escolhas que a humanidade realiza ao
A ciência política moderna é portadora de um caráter buscar superar os obstáculos que se põem à sua frente, mediante atos
instrumental com vistas a conhecer o mundo e regular seus eventos,
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de pensar, usar os sentidos, comparar, eleger preferências, elaborar de um ideal de sociedade, fundado em princípios universais, como
juízos de valor e deliberar. O contato dos homens entre si possibilitou liberdade e igualdade. Os interesses coletivos se sobreporiam aos
o desenvolvimento da linguagem e aprimorou suas faculdades interesses individuais sob a égide da vontade geral, mediante a
mentais. Ao mesmo tempo, surgiram conflitos e sentimentos de raiva qual se asseguraria uma liberdade convencional, pela qual cada
entre os homens, e dada a importância que se atribuía em termos indivíduo, segundo Rousseau (1978) poderia ser “constrangido por
proporcionais, verificou-se que os homens se tornaram cada vez mais todo um corpo” a se submeter à liberdade, enquanto “condição
vingativos, sanguinários e cruéis (ROSSEAU, 1978). Com a instituição pela qual cada cidadão, desde que a entregue à pátria, se garante
da propriedade privada surge o estado de guerra, pois é contra qualquer dependência pessoal”. Esse filósofo entendia a
[...] a relação entre as coisas e não entre os homens que gera a vontade geral como moral em si mesma, e constranger o homem
guerra e, não podendo o estado de guerra originar-se de simples a ser livre pela submissão à vontade geral seria resgatar a liberdade
relações pessoais, mas unicamente das relações reais, não pode natural do homem como gênero humano, tendo o Estado como
existir a guerra particular ou de homem para homem, nem no resultado de um pacto social entre os homens para assegurar essa
estado de natureza, no qual não há propriedade constante, nem liberdade.
no estado social, em que tudo se encontra sob a autoridade das
leis (ROUSSEAU, 1978, p. 28). O pensamento de Rousseau foi fonte de inspiração para a
formulação dos direitos do homem e do cidadão, que a revolução
Um estado de guerra constante é desvantajoso para os ricos, e francesa consagrou como portadores do princípio fundamental
por isso, segundo Rousseau (1978), estes propõem o estabelecimento do Estado Moderno. Este princípio fundamental se refere aos
da sociedade civil que procurou empregar em seu próprio favor direitos e garantias individuais, prescrevendo normas para a vida
as forças daqueles que os atacavam, ou seja, fazer com que seus do homem em sociedade e reservando aos indivíduos direitos
adversários se tornassem seus defensores para proteger a cada um e a civis, como uma esfera de liberdades negativas em relação ao
todos contra a agressão mútua. Aí reside a perda da liberdade humana, Estado, pois dizem respeito aos direitos pessoais de pensamento,
na medida em que a desigualdade natural, e a diferença entre os de religião, de atividade econômica, que reclamam por parte do
homens, tornam-se desigualdade estrutural resultante da instituição Estado uma posição de não-impedimento, de abstenção. E, direitos
e do direito de propriedade. Com isso, a origem da sociedade e políticos, como uma esfera de liberdades positivas com autonomia
das leis para Rousseau (1978) proporcionaram novos obstáculos no Estado, referentes à livre associação, direitos eleitorais, etc.,
ao fraco e novas forças ao rico aniquilando, assim, a liberdade relacionados à constituição do Estado democrático representativo,
natural. Desse modo, a propriedade privada foi para sempre fixada com participação dos cidadãos nos objetivos políticos estatais.
e fizeram de uma habilidosa usurpação um direito irrevogável. Com A burguesia francesa enriqueceu no decorrer do século
isso subordinaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão XVIII, e desejava abolir o absolutismo da dinastia dos Bourbon, que
e à miséria. O pensamento de Rousseau, ancorado na doutrina dos a impedia de alcançar o status político equivalente à sua condição
direitos naturais do jusnaturalismo, contribui com os fundamentos econômica-social. Durante o terceiro estado, a burguesia francesa
do liberalismo, fornecendo elementos para a defesa do indivíduo fez aliança com trabalhadores urbanos e camponeses, com os
contra o poder, e para o estabelecimento de limites para o exercício quais dividia as aspirações contra os privilégios da aristocracia e as
dos poderes. arbitrariedades do Estado absolutista, deflagrando o movimento
Rousseau defendia a instituição de uma comunidade política, revolucionário que culminou com a tomada da bastilha, em 14 de
baseada na soberania do povo, mediante o contrato social. A julho de 1789. Logo em seguida, no mês de agosto, a constituição
soberania inalienável do povo representaria a vontade geral, aprovou a declaração dos direitos humanos e do cidadão, sob os
subordinando a “vontade particular”, na forma individual ou na sua princípios da liberdade, igualdade e fraternidade, síntese do ideário
soma como “vontade de todos”. Para ele, somente a vontade geral iluminista. A revolução francesa exerceu, no plano político, um
representaria o interesse comum e tenderia à igualdade, e defendeu papel tão fundamental para a modernidade quanto a revolução
a ideia de um gênero humano, um “universal homem’’ sob o suporte industrial inglesa para o plano econômico.
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A declaração dos direitos do homem e do cidadão traz em si o O caso inglês estaria posto como exemplo típico, no qual
ideal de universalidade dos direitos do homem como direitos válidos os indivíduos particulares seriam capazes de melhorar sua própria
em todos os tempos, para todos os homens, em todos os países. Ou seja, condição, realizando eficazmente a boa administração do seu capital:
traz a marca da tendência de um pensamento filosófico que pensava o Foi esse esforço protegido pela lei e permitido pela liberdade
desenvolvimento humano, do ser homem, enquanto universal. Ainda de agir por si próprio de maneira mais vantajosa, que deu
que, em última instância, os direitos satisfizessem principalmente as sustentação ao avanço da Inglaterra em direção a grande riqueza
necessidades da burguesia emergente, correspondentes à constituição e ao desenvolvimento em quase todas as épocas anteriores, e
da livre iniciativa econômica, livre manifestação da vontade e que, como é de se esperar, acontecerá em tempos futuros
(SMITH, 1985, p. 296).
do pensamento, liberdade de ir e vir, liberdade política, livre mão
de obra, livre mercado, etc., eles consagram a igualdade de todos Smith ainda diz:
perante a lei, o direito à liberdade, à propriedade e à segurança, e o
direito do cidadão de lutar contra a opressão. Com isso, estabelece É evidente que cada indivíduo [...] tem muito melhores
condições do que qualquer estadista de julgar por si mesmo
as linhas mestras de uma emancipação individual concernente com qual o tipo de atividade nacional na qual pode empregar seu
a nova sociedade. Mesmo Marx, apesar de sua crítica ontológica aos capital, e cujo produto tenha probabilidade de alcançar o valor
direitos burgueses, não comporta um ideal de cidadania, mas sim sua máximo. O estadista que tentasse orientar pessoas particulares
superação, reconhecendo que “a emancipação política representa um sobre como devem empregar seu capital não somente se
grande progresso” para a humanidade, face aos limites da desigualdade sobrecarregaria com uma preocupação altamente desnecessária,
mas também assumiria uma autoridade que seguramente não
social e da exploração econômica vigentes, considerando-a mesmo pode ser confiada a alguma assembleia ou conselho, e que em
“como a derradeira etapa da emancipação humana” (1991, p. 28). lugar algum seria tão perigosa como nas mãos de uma pessoa
Pensemos também na ciência econômica clássica que, reagindo com insensatez e presunção suficiente para se imaginar capaz de
às formas ainda dominadas pela sociabilidade feudal, coloca-se como exercer tal autoridade (SMITH, 1985, p. 380).
pensamento alternativo ao processo produtivo vigente, antecipando
a tendência das novas relações que a base material estava construindo O caminho da livre iniciativa permitiria também a promoção
rumo à expansão do livre mercado em escala transnacional. A ideia dos interesses gerais da sociedade, uma vez que os indivíduos seriam
de riqueza das nações, produzida por Adam Smith, articula-se à conduzidos “por uma mão invisível” a agirem em função desses
doutrina do livre comércio, abrindo caminhos para a superação dos interesses gerais.
obstáculos ao progresso. Com a liberdade de mercado, segundo Ainda no âmbito da economia clássica, David Ricardo
Smith, estaria colocada a condição básica para solucionar o atraso e defende a ideia de um homem universal enquanto ideal de progresso
o baixo desenvolvimento das economias. Suas ideias estão ancoradas e desenvolvimento da humanidade, com base na defesa da liberdade
em crescimento econômico com desenvolvimento social. de mercado. Para Ricardo:
Apoiando-se na defesa da institucionalização de uma [...] num sistema comercial perfeitamente livre, cada país
normatividade sem interferência do Estado na liberdade de naturalmente dedica seu capital e seu trabalho à atividade que
comercialização, Smith defende o princípio da livre concorrência lhe seja mais benéfica. Essa busca de vantagem individual está
como forma de regulamentar o comércio internacional. Segundo esse admiravelmente associada ao bem universal do conjunto dos
países. Estimulando a dedicação ao trabalho, recompensando
autor, o livre comércio: a engenhosidade e propiciando o uso mais eficaz das
[...] ao abrir o mercado mais vasto para qualquer parcela de potencialidades proporcionadas pela natureza, distribui-se o
produção de sua mão de obra que possa ultrapassar o consumo trabalho de modo mais eficiente e mais econômico, enquanto,
interno [...] estimula essa mão de obra a melhorar suas forças pelo aumento geral do volume de produtos difunde-se o
produtivas e a aumentar sua produção ao máximo, aumentando benefício de modo geral e unem-se a sociedade universal de
assim, a renda e a riqueza reais da sociedade. O comércio externo todas as nações do mundo civilizado por laços comuns de
presta continuamente esses grandes e relevantes serviços a todos interesse e de intercâmbio (RICARDO, 1985, p. 104).
os países entre os quais ele é praticado (SMITH, 1985, p. 372).
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Deste modo, a economia clássica desenvolve a ideia de homem entre os tempos modernos e a Antiguidade” (HEGEL, 1967, p. 84).
universal, tendo como suporte indivíduos livres das amarras da O mercado, com suas instituições privadas, constitui, para Hegel,
regulação estatal para conduzir o crescimento do seu capital, da os momentos da verdadeira liberdade. Entretanto, a universalidade
forma mais adequada aos seus interesses. O mercado se põe como produzida pelo meio econômico é um instrumento de realização das
elo de ligação, no qual se confrontam os interesses dos indivíduos vontades particulares e, portanto, de atendimento dos fins egoístas
e o interesse geral da sociedade. Os economistas políticos clássicos dos indivíduos. Para que a verdadeira liberdade possa se realizar
buscavam elucidar as leis que regulam a distribuição da riqueza social, concretamente, a vontade necessita construir outras instâncias
tentando descobrir em que medida sua forma aparente corresponderia sociais de universalidade, representada, no caso, pelo Estado, como
ao seu fundamento como medida de valor - tempo de trabalho. princípio superior de ordenamento da sociedade civil.
A ideia de construção de um bem universal, e de um homem A filosofia iluminista e a tradição liberal representaram a expressão
universal, faz-se presente também na Filosofia deste mesmo período, das lutas da burguesia revolucionária contra o despotismo dos antigos
sob o suporte da criação de um mercado universal. Hegel, ancorado na Estados absolutistas, e em favor da constituição do Estado moderno.
“astúcia da razão”, reflete sobre a relação entre interesses particulares e O pensamento moderno, em síntese, vislumbrava a possibilidade
interesse universal. Mediante sua relação dialética, defende o mercado da criação de um cidadão mundial, membro de uma comunidade
como instância criadora de valores éticos, visto que os indivíduos, na cosmopolita que, diante das condições materiais propiciadas pelos
busca de satisfazer seus interesses nessa instância, descobrem que novos tempos, facilitaria ao homem, conscientemente, produzir a vida
a realização dos interesses particulares depende da realização dos social. Dessa forma, tendia a apreender o mundo enquanto totalidade,
interesses dos outros indivíduos. Somente a cooperação dos indivíduos posto que deviam fornecer os meios através dos quais os homens
entre si permite a realização dos fins particulares. O mercado cria uma pudessem construir um projeto societário - que eles consideravam
relação de interdependência entre os indivíduos, de tal modo que o conter a emancipação da humanidade. Neste processo, destacavam o
trabalho realizado por cada indivíduo para si se encontra articulado papel dos indivíduos na construção e participação da riqueza social,
a um sistema de interdependência universal, no qual os interesses tomando por base as habilidades e aptidões naturais dos indivíduos
particulares se realizam somente pela mediação desse sistema. Hegel - estas poderiam ser aprimoradas por uma educação qualificada.
compreende o mercado como condição essencial na interiorização Esse processo comporta a produção de teorias universalizantes
de uma ética na vida dos indivíduos e da sociedade. O mercado se que articulavam várias dimensões da vida humana. Tratava-se de
constitui o lugar do universal, pois é nele que o indivíduo busca atender pensamento de caráter revolucionário, como o próprio momento
seus impulsos e paixões imediatas, permitindo o desenvolvimento de histórico, pondo em relevo valores como liberdade e justiça social
um sistema cultural universal, enquanto condição necessária para a enquanto projetos para a humanidade.
realização dos seus interesses particulares.
O mercado impõe não só a criação de profissões, mas também Contemporaneidade e Questão Social
aproxima diversos povos e permite o intercâmbio entre as distintas
culturas. O sistema universal de interdependência entre as diversas No século XIX, a partir do qual os historiadores delimitam
atividades econômicas dos indivíduos se estabelece livremente, sem a idade contemporânea, consolidou-se o Estado Liberal, e verifica-
a imposição de uma autoridade central que lhes dite o que devem se um intenso desenvolvimento das forças produtivas, com franca
produzir, ou como produzir. Os indivíduos são livres para escolher expansão do industrialismo e da ampliação de mercados. Na
sua profissão conforme suas habilidades e destrezas naturais. A economia, alteram-se radicalmente os processos e as relações de
liberdade de escolha é condição essencial ao desenvolvimento e produção. A incorporação das máquinas ao processo produtivo
efetuação da liberdade, pois é isto que assegura ao indivíduo o direito gera uma nova dinâmica industrial que concentra mão de obra nas
de escolher o “estado social” (grupo social) do qual pretende ser cidades, e exige uma nova disciplina na fábrica.
membro. Segundo Hegel, “o direito da particularidade do sujeito de Marx identifica a constituição dessas condições econômicas
prover sua satisfação, ou o que é o mesmo, o direito da liberdade em três momentos: a cooperação, a manufatura e a grande indústria,
subjetiva constitui o ponto crítico e central que marca a diferença
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delineados nos capítulos XI, XII, do livro I e XIII do Livro II de O isto se refere tanto à produção material como à produção
Capital, nos quais analisa o caráter revolucionário que o capital confere intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornam-se
patrimônio comum. A estreiteza e a unilateralidade nacionais
aos processos de trabalho, em termos do desenvolvimento das forças e locais tornam-se cada vez mais impossíveis; das numerosas
produtivas e, ao mesmo tempo, os aspectos contraditórios que este literaturas nacionais e locais nasce uma literatura universal
contém, na medida em que a criação e a expansão das necessidades (MARX, K. & ENGELS, F., 1998, p. 43).
humanas só podem realizar-se na forma de mercadorias. Na grande
indústria, o capital eliminou as barreiras à sua plena expansão, o A dimensão positiva do capitalismo reside no revolucionamento
trabalhador se tornou apêndice da máquina, eliminando “tecnicamente constante das forças produtivas, permitindo criar uma massa
a divisão manufatureira do trabalho na qual um ser humano, com de bens e serviços capaz de responder a todas as necessidades
todas as suas faculdades e por toda a vida, fica prisioneiro de uma da sociedade, numa dinâmica constante de universalização. Aí se
tarefa parcial” (MARX, 1996, p. 549). Acontece a dessubjetivação encontra a “grande influência civilizadora do capital; sua produção
do processo de trabalho, permitindo ao capital controlar os salários, de um estágio social, em comparação com o qual todos os anteriores
tendo em vista a possibilidade de substituição do trabalhador por aparecem como meros desenvolvimentos locais da humanidade, ou
máquinas, equipamentos e instalações. Neste sentido: idolatria da natureza” (MARX, 1985, p. 362).
[...] o trabalho abstrato ganha uma realidade tecnicamente tangível, Deste modo, Marx desvenda, por um lado, o caráter
na medida em que a nivelação geral das operações permite o emancipatório do capital, em termos do desenvolvimento das forças
deslocamento dos trabalhadores de uma máquina para outra, de produtivas, em sua capacidade de exercer o domínio sobre a natureza,
um setor a outro, em tempo muito breve e sem a necessidade de para satisfazer as necessidades sociais e seu impulso à expansão
um adestramento especial (TEIXEIRA, 1999). transnacional. Por outro lado, compreende os limites impostos pelo
próprio capital para subjugar-se às necessidades humanas:
Para Marx (1985), a produção de coisas úteis realiza-se somente
se sejam lucrativas para o capital, ou seja, os valores de uso são O capital é destrutivo ante tudo isso e constantemente o
revoluciona, rompendo todas as barreiras que impeçam
produzidos somente enquanto portadores de valores de troca. Além o desenvolvimento das forças produtivas, a expansão das
disso, o capitalista: necessidades, a diversificação do desenvolvimento da produção
[...] quer produzir uma mercadoria cujo valor seja mais alto que e a exploração e o intercâmbio das forças naturais e espirituais
a soma dos valores das mercadorias exigidas para produzi-la, os (MARX, 1985, p. 362).
meios de produção e a força de trabalho, para os quais adiantou
seu bom dinheiro no mercado. Quer produzir não só um valor A grande indústria é, ao mesmo tempo, a forma mais adequada
de uso, mas uma mercadoria, não só um valor de uso, mas valor ao capital de produção de mercadorias, e a forma social onde
e não só valor, mas também mais-valia (MARX, 1985, p. 155). aparece em termos mais desenvolvidos a contradição entre capital e
trabalho. Nela, torna-se possível a efetiva subordinação do trabalho
A produção capitalista não pode eliminar essa contradição que ao capital, ao mesmo tempo em que se realiza uma expansão dos
lhe é inerente, pois isso significaria colocar o desenvolvimento das mercados em termos mundiais. A necessidade de extração da mais
forças produtivas a serviço do homem e não do capital. valia por parte do capital conduz a classe trabalhadora a se organizar,
Por outro lado, este mesmo autor considera o capital uma criando instituições de defesa dos seus interesses.
forma revolucionária de produção e distribuição da riqueza social, Segundo Teixeira:
considerando que:
Essa auto-organização da classe trabalhadora fez Marx acreditar
Ao invés das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos que a grande indústria era a última forma de produção de
nacionais, surgem novas demandas, que reclamam para sua mercadorias, considerando que ela cria, pela primeira vez na
satisfação os produtos das regiões mais longínquas e de climas história do capitalismo, as condições objetivas [transformação
os mais diversos. No lugar do antigo isolamento de regiões do mundo numa grande feira comercial] e subjetivas
e nações autossuficientes, desenvolvem-se um intercâmbio [organização política da classe trabalhadora] para a revolução
nacional e uma universal interdependência das nações. E proletária. Entretanto, ele tinha presente que a luta de classes,
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como motor da história da humanidade, não é uma questão cujos o caráter idealista dos direitos ficava evidente, na medida em que não
resultados se possam predizer da forma como as ciências da alcançava todos os cidadãos. Ainda assim, os ideais de um cidadão
natureza podem antecipar certos eventos. A luta de classes é um
fenômeno tautológico no sentido que essa luta se resolve pela universal serviam de base ao contraponto do trabalho às promessas
luta de classes; é uma questão empírica, da qual a especulação que a luta pela constituição da sociedade burguesa havia suscitado.
pode falar de suas necessidades, mas não pode predizer seus O problema do operariado, com sua miséria, sua insatisfação
resultados (TEIXEIRA, 1999, p. 11). e suas lutas urbanas põe em pauta a “questão social” naquele
momento. Diz respeito a pauperização massiva da classe operária,
O capitalismo cria uma classe operária urbana com suas ditada pelas necessidades de acumulação do capital, que se põe
necessidades não atendidas, e um imenso fosso entre as condições de historicamente permeada pela luta dos trabalhadores e pelas
vida, e os interesses entre o operariado e a burguesia que o contrata. estratégias de dominação das classes dominantes para contê-las, em
A concorrência da máquina havia gerado excedente de mão de favor da reprodução social.
obra, rebaixamento dos salários e ampliação da jornada de trabalho A questão social surge em decorrência da questão operária, e
acima da capacidade física dos trabalhadores. A pauperização do a sua explicitação para o conjunto da sociedade se verifica por
trabalhador, resultante da industrialização, impõe o ingresso de sua intermédio das lutas sociais urbanas que se multiplicam e têm
família no mercado de trabalho para ampliação da renda, em função como principais protagonistas a classe operária, a burguesia
de assegurar a reprodução social do trabalhador e sua família. industrial e o Estado liberal não intervencionista. A questão social
Marx (1996), fazendo contraponto à divisão do trabalho na e a dinâmica do processo produtivo expõem um novo perfil das
sociedades europeias do séc. XIX e dão os argumentos para a
manufatura diz que: emergente e veemente crítica aos direitos humanos formais e de
[...] a forma capitalista da grande indústria reproduz ainda caráter individualista, que norteavam essa sociedade e o Estado
mais monstruosamente aquela divisão do trabalho, na fábrica liberal (BUSSINGER, 1997, p. 31-32).
propriamente dita, por meio da transformação do trabalhador
em acessório consciente de uma máquina parcelar e, em todos os Os desdobramentos sociopolíticos, que advêm da resistência
outros lugares, em parte mediante o uso esporádico das máquinas e inconformismo da classe trabalhadora diante da miséria, originou
e do trabalho das máquinas, em parte por meio da introdução de
trabalho feminino, infantil e não qualificado como nova base da o termo “questão social”. Entretanto, sua expressão concreta,
divisão do trabalho (MARX, 1996, p. 112-113). naquele momento da gênese, encontra-se no desamparo, na fome,
Só aí começa a revelar-se a raiz da problemática da sociedade na penúria, na desigualdade social, no desemprego, nas doenças,
burguesa e sua impossibilidade de colocar-se como finalidade última etc. Problemas para os quais a sociedade burguesa reservou o
para a humanidade. A pobreza adquire uma nova qualidade. Ela não reformismo e administração, ora por parte do Estado, ora por parte
decorre mais do baixo desenvolvimento das forças produtivas, como de organizações sociais.
anteriormente na história humana, mas o desenvolvimento das forças O movimento socialista dá o tom ao caráter reivindicatório
produtivas e sua capacidade de produzir riqueza tornam-se a razão do do operariado europeu, que empreende a luta contra condições
aumento da pobreza. Põe-se objetivamente uma forma específica de opressivas de vida e de trabalho, tendo por suporte a demanda pela
estranhamento no plano da totalidade social, no sentido pensado por satisfação de carências, considerada pelos reformadores em relação
Lukács, a contradição essencial entre o desenvolvimento das forças aos aspectos de natureza material e moral. A reivindicação sobre
produtivas e o crescimento das individualidades humanas. ensino obrigatório, e sobre regulamentação do trabalho das mulheres,
A realidade da vida dos trabalhadores, colocada pelo engrossa a pauta da pressão dos trabalhadores. Aumenta a pressão
fosso existente entre as classes sociais, punha em evidência o sobre o Estado, via partidos políticos e sindicatos, reivindicando
questionamento aos princípios liberais dos direitos consagrados com sua intervenção na esfera econômica e social, em termos de
a revolução francesa. A promessa liberal de uma nova sociedade onde regulamentação do mercado de trabalho, e medidas com significado
todos fossem livres, iguais e fraternos não estava se concretizando, ao para a melhoria de suas condições de vida. A extensão dos princípios
contrário, as desigualdades sociais entre as classes fundamentais da da legislação fabril a outros espaços sociais de trabalho, como as
sociedade, burguesia e operariado, haviam aumentado. Desse modo, minas e a agricultura, tende a se acentuar. São criadas comissões
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de investigação do trabalho de crianças, adolescentes e mulheres na o ponto de vista do operariado em sua luta por melhores condições
agricultura, com resultados de grande importância. de vida e de trabalho. Segundo este autor, o termo “questão social”
Segundo Marx (1996): surge no século XIX, mais precisamente em 18305, como forma
Apesar de todos os seus defeitos, a lei de 1872 é a primeira de denominar as precárias condições de vida em que viviam as
que regula o horário de trabalho de crianças nas minas populações atingidas diretamente pelo fenômeno da revolução
e responsabiliza, até certo ponto, os exploradores e os industrial. Vítimas desse crucial processo de exploração, a classe
proprietários das minas pelo que se chama de acidente. Em face operária aviltada nos seus direitos de cidadão, e massacradas por
dessa tendência ‘A extensão das leis fabris a todos os ramos uma ordem econômica que a empurra para a miséria, transforma-se
se tornou indispensável para proteger mental e fisicamente a
classe trabalhadora’ (MARX, 1996, p. 567). em vítima, ao mesmo tempo em que se torna uma ameaça constante
para o capital, na medida em que as tensões e os conflitos, gerados
Na tensão entre os interesses conflitantes entre proprietários por esse processo de industrialização selvagem, representam um
dos meios de produção, que procuram tirar o maior proveito do perigo à paz e à ordem socioeconômica e moral estabelecida. Nesse
valor de uso da mercadoria força de trabalho que compram, e dos momento histórico, a questão social está intimamente vinculada
proprietários da força de trabalho que procuram preservá-la para ao pauperismo, que traz no seu interior as contradições inerentes
poder voltar a vendê-la, são construídas as respostas sociais aos ao modo de produção capitalista. Nesse sentido, a sociedade da
problemas decorrentes do pauperismo, e das condições de vida dos época necessitava encontrar medidas eficazes para combater esse
trabalhadores, com grande ênfase aos direitos do trabalho4. pauperismo, sob pena de ter que suportar uma desordem mundial e
suas consequências. É no interior do pensamento dos reformadores
A Questão social no Pensamento de Robert Castel sociais que a questão social passa a ser tratada como “[...] questão
da reabilitação das classes trabalhadoras ‘gangrenadas’ pela chaga do
pauperismo” (CASTEL, 1999, p. 317).
Castel, tomando o caso francês como exemplo típico, traça Diante desse temor generalizado que incomodava
os delineamentos gerais da questão social sob dois ângulos: o profundamente a burguesia dominante, a solução liberal encontrada
que representou seu enfrentamento, na proposição das classes foi a “reinvenção do social”, na tentativa de não permitir uma
dominantes em face da ameaça à coesão social, e o que representou possível desintegração da sociedade. No entender de Castel, o
“social” teria como tarefa
4 Sobre a voz do trabalhador em favor de seus direitos, encontra-se em Marx:
“A mercadoria que te vendi distingue-se da multidão das outras mercadorias pelo [...] restaurar ou estabelecer laços que não obedecem nem
fato de que seu consumo cria valor e valor maior do que ela mesma custa. Esta a uma lógica estritamente econômica nem a uma jurisdição
foi a razão por que a compraste. O que do teu lado aparece como valorização estritamente política. O ‘social’ consiste em sistemas de
regulações não mercantis, instituídas para tentar preencher esse
do capital é de minha parte dispêndio excedente de força de trabalho. Tu e eu só espaço. Em tal contexto, a questão social torna-se a questão
conhecemos, no mercado, uma lei, a do intercâmbio de mercadorias. E o consumo do lugar que as franjas mais dessocializadas dos trabalhadores
da mercadoria não pertence ao vendedor que a aliena, mas ao comprador que a podem ocupar na sociedade industrial (CASTEL, 1999, p. 31).
adquire. A ti pertence, portanto, o uso da minha força de trabalho diária. Mas por
meio de seu preço diário de venda tenho de reproduzi-la diariamente para poder Portanto, “‘realizar o social’ é trabalhar sobre a miséria
vendê-la de novo (...). A utilização de minha força de trabalho e a espoliação
dela são duas coisas totalmente diferentes (...). Eu exijo, portanto, uma jornada de
do mundo capitalista, isto é, sobre os efeitos perversos do
trabalho de duração normal e a exijo sem apelo a teu coração, pois em assunto de desenvolvimento econômico. É tentar introduzir correções às
dinheiro cessa a boa vontade. Poderás ser um cidadão modelar, talvez seja membro
da sociedade protetora de animais, podes até estar em odor de santidade, mas a 5 Segundo Castel, a expressão “questão social” aparece pela primeira vez, no
coisa que representa diante de mim é algo em cujo peito não bate nenhum coração. jornal legitimista francês La Quotidienne, em 1831, onde acusava o governo,
O que parece bater aí é a batida do meu próprio coração. Eu exijo a jornada normal chamando a atenção dos parlamentares, no sentido de que era preciso entender
de trabalho, porque eu exijo o valor de minha mercadoria, como qualquer outro que além dos limites do poder, isto é, fora do campo político, existia uma questão
vendedor” (MARX, 1996, p. 189-90). social carente de resposta.
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contrafinalidades mais desumanas da organização da sociedade, “classes inferiores” de decidir sobre seu destino. Nesse sentido,
porém sem tocar em sua estrutura” (1999, p. 316). Neste sentido, ela lançará mão de um conjunto de procedimentos e estratégias de
tratava-se a nosso ver, de aparar todas as arestas, dirimir os conflitos forte conteúdo moralizador, atuando basicamente em três níveis.
sociais, e amenizar a miséria, para garantir a reprodução e expansão do Nota-se, no entanto, que tais medidas têm como objetivo explícito,
capital. Além do mais, a questão social nessa conjuntura, é encarada a coesão social mantendo intacta a estrutura da sociedade
como um problema que não se enquadra na estrutura do Estado, [...] assistência aos indigentes por meio de técnicas que
visto que a burguesia compactuava com as doutrinas liberais, sendo antecipam o trabalho social no sentido profissional do termo; o
avessa a qualquer intervenção do Estado na economia. desenvolvimento de instituições de poupança e de previdência
Inicialmente, o catolicismo social irá intervir na questão, voluntária que apresentam as premissas de uma sociedade
engajando-se totalmente na melhoria e recuperação da classe segurancial; a instituição da proteção patronal, garantia da
organização racional do trabalho e, ao mesmo tempo, da paz
trabalhadora emergente, criando condições para a educação dos social (CASTEL, 1999, p. 319).
jovens operários, e evitando qualquer tipo de contestação sobre a sua
condição de classe explorada, fato que se tornava um grave problema No que diz respeito à assistência ao indigente, o barão de
a ser enfrentado pela sociedade. Gérando6 propõe, em sua obra Le Visiteur du Pauvre, uma nova
No ano de 1841, Villeneuve-Bargemont interveio na Câmara tecnologia da assistência que consiste em distribuir donativos aos
sobre a lei que propôs a diminuição da jornada de trabalho das indigentes, não de forma aleatória, mas examinando cuidadosamente
crianças, chamando a atenção das autoridades sobre a busca de quais as suas necessidades, que vão desde as permanentes como
uma solução no âmbito da economia social, já que esse tipo de aquelas provocadas pela invalidez, até as ocasionadas pelo desemprego
preocupação veio sendo esquecida no interior das agitações políticas. e a má constituição moral. Desse modo, exercia um controle efetivo
Essa proposta ampliou o debate em torno da questão social. Então, sobre o processo de seleção e distribuição, na medida em que utilizava
foi Armand de Melun quem colocou uma grande preocupação: “Qual a prestação da ajuda como instrumento de recuperação moral,
será o dever da sociedade em relação ao pauperismo, às suas causas submetendo o serviço de socorros à boa conduta do assistido. É
e consequências, e em que medida e através de que meios deve ela estabelecida entre o benfeitor e o indigente uma relação desigual, na
cumprir este dever? Aí está toda a questão social.” (CASTEL, 1999, qual o sentimento de gratidão, e a condição de dependência, tornam-
p. 318). Logo, na sua percepção, a sociedade precisava urgentemente se imperativos. Dessa maneira, na opinião de Castel, “o benfeitor e
buscar meios de resolver o problema do pauperismo. Em busca de seu obrigado formam uma sociedade, o vínculo moral é um vínculo
solucionar o problema na sua imediaticidade, Melun não conseguia social. O miserável é reabilitado de sua indignidade e reinserido no
perceber as contradições existentes no interior daquela sociedade - as universo de valores comuns” (CASTEL, 1999, p. 320). É importante
quais passam inevitavelmente pela relação de classe. ressaltar que, esse processo de reinserção tem limites bastante claros
Paralelo a esse movimento, nessa mesma década (1830 – 1840), uma vez que, o miserável não consegue ultrapassar as fronteiras que o
começa a se gestar um movimento diferenciado em torno da questão separa da condição de subordinação aos ricos, já que esta situação está
social, tendo a frente socialistas e operários que apregoavam a ideia posta nas próprias condições materiais de existência social. Assim, o
da criação de uma “organização alternativa de trabalho”, ou seja, “visitador do pobre” realizava uma intervenção fundada numa relação
uma associação de produtores, visando acabar com a condição de pessoal, com acompanhamento, onde procurava fazer um diagnóstico
trabalhador assalariado. Com essa proposta, os operários buscavam e solucionar os problemas individuais.
resolver o problema da questão social a partir deles mesmos, de suas Essa forma de atuação, segundo Castel, dará origem ao
organizações, buscando redimensionar a questão do trabalho, tendo trabalho social profissionalizado7. Convém ressaltar que essa
como horizonte a constituição de uma sociedade mais justa, mais
humana. 6 O barão de Gerando foi o primeiro teórico a investigar de forma “científica”
Com vistas à posição das classes dominantes sobre a “questão as necessidades do assistido, e estabelecer com ele uma relação de pessoa para
social” nessa conjuntura, ela atuará no espaço que se abrirá entre pessoa.
a recusa do Estado em assumi-la, e a incapacidade das chamadas 7 No plano do desenvolvimento histórico-social se põe uma evidente relação
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maneira de abordar a assistência, ou seja, a corrente da scientific charity, Nessa direção, duas instituições se destacaram por reunirem
expandir-se-á pelos países anglo-saxônicos durante a segunda metade as condições necessárias para possibilitar a reabilitação moral das
do século XIX. Nessa mesma direção, segue o case work.8 chamadas “classes inferiores”: as caixas econômicas e as sociedades
No tocante às técnicas de reabilitação dos pobres, observa- de socorros mútuos (grifos nossos). É importante salientar que, a
se uma tendência reformista que visa a institucionalização das base que irá sustentar suas ações será a filantropia. Nesse sentido, o
intervenções sociais. Para os representantes dessa corrente, essa é a autor ressalta que, despertar no povo o sentimento de previdência,
grande diferença que vai se colocar frente às formas tradicionais de contribuir para uma caixa:
prestar a assistência. Dessa maneira, a Sociedade de Moral Cristã se [...] é inscrever no presente a preocupação com o futuro,
constituirá no locus privilegiado de reflexão, e o ponto de partida para aprender a disciplinar os instintos e a reconhecer no dinheiro um
a criação das primeiras instituições, e assim: valor que ultrapassa a satisfação das necessidades imediatas. É
também economizar, garantir-se contra os acasos da existência
[...] sustentou as caixas de poupança e as sociedades de socorros (CASTEL, 1999, p. 323-324).
mútuos. Tinha um comitê para a recuperação moral dos presos,
um outro para encaminhamento dos órfãos, um comitê de higiene
pública, um comitê de assistência aos loucos, etc., e numerosas Não resta a menor dúvida que, na percepção dos seus
regulamentações sairão de suas deliberações (CASTEL, 1999, p. 323). idealizadores, esse conjunto de medidas tem como objetivo prevenir
os males causados pela indigência naquela sociedade, mas no nosso
Apesar das condições do Estado Social ainda não estarem entender, através dessas medidas, está muito distante a possibilidade
postas, já se verifica a tendência que José Paulo Netto coloca sobre de eliminá-la.
os traços da intervenção na questão social, correspondente ao Com base nessa iniciativa, foi criada em 1818, em Paris, a
capitalismo monopolista, de fragmentação dos problemas sociais. primeira caixa econômica, presidida pelo duque de La Rochefoucauld-
A intervenção estatal sobre a ‘questão social’ se realiza [...] Liancourt, que no período da existência do Comitê pela Extinção
fragmentando-a e parcializando-a [...]. [...] As sequelas da da Mendicância, já havia defendido essa proposta com o intuito de
‘questão social’ são recortadas como problemáticas particulares proporcionar algumas vantagens para a “classe útil e laboriosa”.
(o desemprego, a fome, a carência habitacional, o acidente de Acontece que até 1830, essas caixas irão passar por um período de
trabalho, a falta de escolas, a incapacidade física etc., e assim grande desenvolvimento, mas o impacto econômico dessa poupança
enfrentadas (NETTO, 1992, p. 28).
ainda não vai ser tão representativo. O que vai sobressair mesmo é o
valor moralizador que tem essa medida, que deveria funcionar como
entre as origens da questão social e as origens do serviço social como profissão. uma “pedagogia da previdência”.
O Serviço Social se gesta em meio às lutas sociais criadas no processo de Dentro dessa perspectiva, as sociedades de socorros mútuos
industrialização em países centrais do capitalismo mundial e as respostas do Estado
ao enfrentamento do pauperismo em sua forma capitalista. Porém, somente com
terão um alcance moralizador muito maior. Na verdade, de acordo
o modelo Fordista-Keynesiano de acumulação, o serviço social adquire o status com o modelo liberal da economia, essa “proteção patronal” irá
de profissão formalmente constituída e legalmente reconhecida para atender às alimentar as esperanças de uma condição de vida melhor para as
novas funções do Estado frente à questão social, requeridas pelo Estado de Bem- classes populares. No caso inglês, essas sociedades funcionaram como
Estar. Convém considerar que: “Enquanto intervenção do Estado burguês no modelo ao se colocar em oposição ao direito à assistência. Assim,
capitalismo monopolista a política social deve constituir-se necessariamente em para Castel (1999), o desenvolvimento das friendly societies parecia
políticas sociais: as sequelas da ‘questão social’ são recortadas como problemáticas existir um mecanismo de assegurar as variadas profissões contra
particulares (o desemprego, a fome, a carência habitacional, o acidente de trabalho, determinados riscos do tipo: doença, acidente, desemprego e velhice,
a falta de escolas, a incapacidade física, etc.) e assim enfrentadas” (NETTO, 1992, como mecanismo de combater a insegurança da condição salarial.
p. 28). Desse modo, um novo estrato de profissionais passa a compor o quadro Segundo o autor, dessa maneira, as sociedades de socorros mútuos
institucional vigente, com funções vinculadas à operacionalização de políticas puderam ser coletivizadas, porém sem perder o caráter voluntário que
sociais.
as constituem, dando uma dimensão “social” às ações filantrópicas.
8 O social case work surge em 1920, nos Estados Unidos, a partir de uma necessidade Outros aspectos levantados foram os obstáculos que a criação dessas
de centralizar novamente a intervenção social entre o agente e os beneficiários.
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sociedades podiam ocasionar: por um lado, elas corriam o risco de lento, e um aumento considerável do proletariado urbano vivendo
serem transformadas em sociedades de resistência, na medida em que em precárias condições. Este passou a ver nas ideias socialistas uma
os operários podiam se associar visando interesses reivindicatórios forma de luta contra a exploração a que estava submetido. Diante da
ou subversivos, por outro, a cotização sendo obrigatória, perderia seu corrupção, do autoritarismo e do conservadorismo instaurados no
caráter profundamente moralizador. Portanto, a previdência deveria seu governo, as forças de oposição começaram a crescer, atraindo
permanecer voluntária. Ora, essas preocupações vêm mostrar o perigo para o seu campo de luta não só os socialistas, mas republicanos,
que a classe operária representava para a burguesia dominante, visto que liberais bonapartistas e legitimistas. Por ocasião da crise econômica
esse tipo de sociedade poderia tomar proporções tal, que ameaçaria o gerada entre 1846-1848, o governo sentindo-se coagido, procurou
seu poder. Além do mais, o Estado não revelava nenhuma competência sufocar a oposição, colocando restrições à imprensa, às associações e
para enfrentar a questão social. ao parlamento, desencadeando assim a Revolução de Fevereiro, que
A partir da Restauração, as mutualidades passaram a ser terminou com a instalação de um Governo Provisório, composto
vigiadas e enquadradas podendo apenas se reunir sob a presidência do por republicanos liberais e socialistas.
prefeito ou do comissário de polícia. Com o avanço da luta operária, Como pudemos observar, os acontecimentos de 1848,
no período da Monarquia de Julho, foi criada uma lei, de 1834, que tiveram como expressão fundamental a presença marcante do
diminuía o número de associados para vinte, e estipulava uma pena proletariado ocupando o cenário político, reivindicando ao governo
de até dois anos de prisão para quem cometesse qualquer tipo de melhorias das suas condições de vida e de trabalho. Nesse sentido,
infração. Aproximadamente em 1848, elas se multiplicaram, mas o Governo Provisório não hesitou em proclamar a IIª República,
os operários passaram a ver nessas associações, um mecanismo de instaurou a liberdade de imprensa; promoveu a anistia dos presos
reorganização da ordem do trabalho. Isso incomodou profundamente políticos; iniciou as reformas socialistas incluindo em seu programa
os moderados, pois eles temiam a disseminação dessa ideia no interior a autorização dos sindicatos, o direito de greves; criou as Oficinas
das associações de socorros mútuos. Mesmo assim, a proposta do Nacionais, propostas por Louis Blanc, com a finalidade de solucionar
modelo de previdência continuou exercendo um fascínio muito o problema do desemprego e organizar as unidades socialistas de
grande sobre os reformadores sociais. produção; o sufrágio universal e o direito ao trabalho como forma
Como já vimos, na Europa, a primeira metade do século de legitimar-se perante o operariado. Nessa perspectiva, o Decreto
XIX foi marcada por Revoluções que colocavam em jogo forças de 25 de fevereiro de 1848 é revelador:
conservadoras versus as forças de transformação. As forças [...] o governo provisório da República assume o compromisso
conservadoras estavam ligadas a um feudalismo decadente, que de assegurar a existência do operário pelo trabalho. Assume
buscava a restauração do Absolutismo. Tinham como representantes o compromisso de garantir trabalho para todos os cidadãos.
a nobreza e o clero. Já as forças de transformação eram representadas Reconhece que os operários devem associar-se entre si
pela burguesia e pelo proletariado urbano que se desenvolveram para usufruir do fruto do seu trabalho (AGULHON apud
CASTEL, 1999, p. 347).
com o crescimento demográfico e com a revolução industrial.
Inicialmente, essas revoluções aconteceram em nome do liberalismo Logo após esse feito, cria o ministério do Trabalho ou do
e do nacionalismo; lutavam pela liberdade de falar, de pensar, de Progresso como órgão legitimador da demanda operária, cuja
comércio, enfim, liberdade política garantida pelos parlamentares e tarefa consistia em implantar essas medidas através da ‘Comissão
por governos constitucionais. de Luxemburgo’, órgão deliberativo, encarregado de registro. Até
O período da monarquia de Luís Filipe (1830-1848), sustentada esse momento, o máximo conseguido pela classe operária depois
pela burguesia financeira (os banqueiros), transformou-se num de tantas lutas.
governo controlado pela alta burguesia conservadora. Com o intuito Acontece que esses ganhos promovidos pelos socialistas
de obter o apoio popular, ampliou o direito do voto, retomou a começaram a amedrontar a burguesia que, aliando-se à Igreja e a
política de liberdade de imprensa - que mesmo assim continuou outros setores proprietários, conseguiu vencer as eleições para a
limitada em seu aspecto democrático. Nesse momento histórico, a Assembleia Constituinte. Essa derrota da maioria dos socialistas e os
conjuntura apresentava um desenvolvimento capitalista bastante
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desmantelamentos das Oficinas Nacionais provocaram uma ‘revolução àqueles que estão sem condições de trabalhar (AGULHON
na revolução’, que foi a Revolução de Junho de 1848, realizada pelos apud CASTEL, 1999, p. 352).
socialistas com o objetivo de tomar o poder, e assegurar as “conquistas”
do proletariado que estavam sendo manipuladas pela burguesia. Teve-se Na opinião de Castel, esse artigo não passa de uma reedição
como resultado, o fracasso desse movimento, seguido de um momento das medidas defendidas pelo Comitê da Extinção da Mendicância,
de grande repressão sangrenta. Logo após esse episódio, aconteceram já presentes na Constituição de 1793. Nota-se um grande retrocesso
as eleições presidenciais, tendo Luís Napoleão Bonaparte (sobrinho de se compararmos ao Decreto do Governo Provisório, na medida em
Napoleão) como o grande vencedor. que o trabalho não está inserido na esfera do direito, e a assistência
Por um lado, as consequências geradas por essa Revolução está restrita aos indigentes, aos desprotegidos pela sorte, mediante
mostraram para a burguesia a fragilidade da tutela do governo como as ações fraternas. Por outro lado, reafirma os direitos individuais,
meio de controle das ações do proletariado: os proletários reagiram tal como propunha o pensamento liberal.
e fizeram revoluções. Por outro, a derrota sofrida pelo proletariado, Quanto às associações de socorros, a Assembleia tenta mais
no tocante ao direito ao trabalho, veio demonstrar o efeito ilusório uma vez dar-lhes um estatuto legal, desde que respeitem os princípios
de acreditar que a República plena seria a forma ideal de governo, liberais. O grande defensor dessa proposta foi novamente Armand
que garantiria a todos os cidadãos a realização dos seus direitos. Eles de Melun, mas a maioria da Assembleia Legislativa rejeitou a ideia
imaginavam que a Revolução os tiraria da miséria e do desemprego, da obrigação, defendida pelos republicanos. Nesses termos, essa lei
como se resolvendo a questão política os problemas sociais estivessem só foi votada em 15 de julho de 1850, por esse motivo, a adesão
resolvidos. Assim, na percepção do proletariado, o direito ao trabalho às associações de socorros mútuos continuou sendo facultativa,
e à cidadania traria, na sua essência, a eliminação da sujeição ao e as sociedades penalizadas através de autorizações preliminares
trabalho pelo direito ao trabalho. e formas de controle tão rígidas que impediram o avanço dessas
Como já vimos, o desenvolvimento da máquina havia organizações. Paralelo a esse episódio, aproximadamente no mês
transformado o operário em complemento no processo industrial anterior, a lei de 18 de junho de 1850 criava a ‘caixa de aposentadoria
e, ao mesmo tempo, favorecia o crescimento do desemprego. No ou uma renda vitalícia para a velhice’, mas o mecanismo de adesão
entender de Castel, o movimento operário francês redimensionava continuava sendo facultativo. Na verdade, essas caixas funcionarão
a questão social sob novas bases. A sustentação de suas lutas como caixas de poupança, destinando-se apenas a alguns cotizadores
encontrava-se na luta pelo direito ao trabalho como direito de viver. de boa vontade. Como nos lembra Castel, “[...] as sociedades de
A esse respeito, Marx observa que [...] “atrás do direito ao trabalho, socorros devem combater o pauperismo pela previdência, mas com
há o poder sobre o capital, há a apropriação dos meios de produção, a condição de que permaneçam inseridas no complexo tutelar”
sua subordinação à classe operária organizada, isto é, a supressão (CASTEL, 1999, p. 327). Dessa maneira, elas sempre estariam de
da condição de assalariado, do capital e de suas relações recíprocas” alguma forma atreladas ao Estado, sob seu controle, embora tivesse
(MARX apud CASTEL, 1999, p. 350). Portanto, a classe operária via a aparência de uma família privada.
o direito ao trabalho como meio para sua emancipação. Quando Luís Napoleão Bonaparte assumiu o poder, tentou
Esta não se constitui a perspectiva consagrada logo após a recriar as sociedades de socorro, imprimindo-lhes um caráter
Insurreição de junho de 1848, quando a ordem voltou a ser mantida, obrigatório e geral, na tentativa de buscar uma forma de proteção
a Constituição da República, votada em 04 de novembro de 1848, aos trabalhadores. Nesse sentido, ele traz para o âmbito do Estado
traz no artigo 8 uma resposta sobre o direito ao trabalho: um tipo de mutualidade, que tinha como objetivo garantir aos
trabalhadores um tipo de proteção que além de resguardá-los dos
A República deve proteger o cidadão em sua pessoa, sua família, riscos sociais, desviariam-nos dos movimentos reivindicatórios.
sua religião, sua propriedade, seu trabalho, e colocar ao alcance
de cada um a instrução indispensável a todos os homens; deve, Para esse fim, Armand de Melun é convocado por Napoleão, mas
por uma assistência fraterna, assegurar a existência dos cidadãos ele o aconselha a não investir nessa forma de obrigatoriedade, no
necessitados, seja conseguindo-lhes trabalho nos limites dos sentido de evitar um possível socialismo de Estado. Assim, em
seus recursos, seja, na falta da família, prestando socorros 28 de março de 1852, Melun elabora um decreto-lei orgânico que
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incentiva a criação das sociedades de socorros ‘pelos cuidados do implementadas pelas fábricas das grandes regiões industriais de
prefeito e do pároco’, sendo que as ‘sociedades aprovadas’ pelo Paris, que colocam à disposição do operário toda uma rede de
ministro do Interior terão seu quadro composto pelos ‘membros serviços e benefícios que vai desde o serviço médico completo,
honorários’, ou seja, os ‘notáveis’. Em 1859, a Comissão Superior de até uma sociedade de previdência entre patrões e empregados. O
Estímulo e Fiscalização das Sociedades de Socorros Mútuos, através ideal dos patrões presente nessas medidas é proporcionar uma
do seu relator que é o próprio Melun, parabeniza-se em seu boletim: verdadeira simbiose entre a fábrica e a vida familiar dos operários,
[...] “Cada um deve a ideia, ao mesmo tempo cristã e política, que impulsionando desse modo o aumento da produção e do lucro. Do
soube extrair das associações operárias um elemento de ordem, de nosso ponto de vista, essas realizações tornam o operário cada vez
dignidade e de moralização” (CASTEL, 1999, p. 328). Novamente, mais dependente do trabalho para conseguir sobreviver, ficando à
podemos observar os mesmos princípios, utilizados desde o início mercê do patrão, que passa a exercer um controle ainda maior sobre
da constituição das associações de socorros mútuos, como forma de sua vida, disciplinando-o, e levando-o a submeter-se aos ditames da
enfrentamento da questão social: o investimento nos valores morais fábrica, sob a ameaça de ficar desempregado. A estabilidade pela
que perpassam a ideologia dominante para frear os impulsos dos submissão não resolve o problema do operariado, apenas mantém
operários, e o temor de perder o poder com o avanço da luta operária, a desigualdade num patamar suportável durante um certo período.
que poderia desembocar no socialismo, fantasma esse que circunda o Portanto, a instauração do sistema de proteção patronal não pode
universo burguês. Portanto, era preciso manter a ordem para garantir ser considerada como conquista do operariado, mas um mecanismo
a coesão social. Essas medidas foram tão eficazes que aumentou utilizado pela burguesia para assegurar tanto a reprodução do
significativamente o número de sociedades nesse período.9 trabalhador, como a do capital.
O enfrentamento da questão social pela IIª República redundou Na verdade, todas essas realizações, como nos diz Castel,
num programa social bastante tímido, abortando a possibilidade de se servirão para solucionar o grande problema enfrentado pela burguesia
construir um debate público em torno da questão social, no interior com o processo de industrialização: [...] “fixar a instabilidade operária
de um regime democrático. Esse debate só será retomado com a e realizar, concomitantemente, segundo a expressão de David Landes,
consolidação da República, nos anos de 1880. O que ficará como ‘a disciplina do trabalho e a disciplina para o trabalho’” (CASTEL,
herança para a IIIª República, será um movimento mutualista bastante 1999, p. 333). Assim, a proteção patronal seria o lenitivo para impedir
estruturado, implantado amplamente no interior da classe operária. a mobilidade operária, ou seja, a peregrinação dos operários de obra
Ainda sob forte influência dos reformadores sociais continuará em obra, em busca de melhores salários, ao mesmo tempo, o atrativo
mantendo o mesmo [...] “programa ‘filantrópico’ de moralização das das “vantagens sociais” diante da situação de miséria em que viviam,
classes populares” (CASTEL, 1999, p. 328). faziam com que eles se acomodassem sem oferecer muita resistência.
A turbulência gerada nos anos de 1848 levará a uma tomada Como essas medidas se expandiram nos grandes distritos industriais,
de posição dos patrões com respeito à proteção dos operários. Só ficava muito complicado introduzir tal mecanismo de controle nas
que essa proteção adquire um caráter moral, contrariando assim a pequenas oficinas. Mesmo assim, a fórmula encontrada para manter
concepção liberal contratual da relação de trabalho, ou seja, a fixação os operários sob a tutela dos patrões foi a criação de duas instituições
dos salários é determinada por leis econômicas, mas a prestação (que terão uma importância enorme do decorrer do século XIX):
dos serviços sociais pode ser assumida pelo patrão, sem entrar em a carteira operária10 e o regulamento da oficina. A carteira operária
contradição com a lógica do mercado. Como diz Castel, [...] “o patrão dará um poder extremado ao patrão, na medida em que ele disporá
se faz, assim, o organizador da seguridade do operário que, por si de todas as prerrogativas sobre a contratação do operário. Por outro
mesmo, é incapaz disso” (CASTEL, 1999, p. 330). Assim, é sob tais
bases que se desenvolverá toda uma infraestrutura de serviços sociais. 10 O surgimento da carteira operária vem desde o final do período do Antigo
O exemplo mais patente dessa iniciativa, na época, são as medidas Regime, quando foi instituída pelo Consulado. Seu maior objetivo era o controle
da mobilidade operária, para isso tornava-se imprescindível para efeito de
9 Segundo dados da época, ‘em 1869, 6.139 sociedades contam com 913.633 adeptos, admissão. Além de funcionar como passaporte frente à polícia, trazia registradas
764.473 membros participantes e 119.160 membros honorários’ (CASTEL, 1999). as dívidas contraídas pelo operário para com o antigo patrão.
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lado, exercerá um papel de polícia, respaldado nas leis de 01 de abril Estado não pode mais fechar os olhos diante dessa realidade. Se
de 1831 e de 30 de dezembro de 1834, que obrigava aos que viessem o conservadorismo da IIª República constituiu-se num empecilho
procurar trabalho em Paris, visar a carteira no comissariado no prazo para o Estado intervir na questão social, a IIIª República buscará
de até oito dias. solucioná-lo em seu aspecto político, baseando-se nos princípios
No que concerne ao regulamento da oficina, será atribuído dos direitos sociais e da democracia.
ao patrão o poder de elaborá-lo, incluindo desse modo, as sanções Como pudemos observar, o processo de constituição da
nos casos de infração, transformando-se numa verdadeira polícia sociedade industrial na França durante o século XIX, passou por
da fábrica. Como afirma Castel: [...] “do espaço privado da fábrica, embates e conflitos desencadeados pela relação entre capital x
pensada com base no modelo da família, da qual o patrão é o chefe, trabalho. A luta de classes (burgueses e proletários) se fez presente
sai, pois, um sistema de regulamentações obrigatórias com função com bastante vigor, embora as formas de organização do proletariado
moralizadora” (CASTEL, 1999, p. 333). Significa dizer que, o fossem ainda incipientes. No entanto, verifica-se de um lado, a busca
operário que não tivesse os pré-requisitos adequados aos preceitos da incessante do operariado por melhores condições de vida e de
boa moral e dos bons costumes, ou seja, ter boa conduta, ser honesto trabalho; por liberdade e direitos; do outro, as estratégias da burguesia
e trabalhador, não teria lugar nas fábricas. No entender da burguesia, para se manter no poder, favorecer o desenvolvimento capitalista e
essa seria a chave para resolver o problema do antagonismo de assegurar a reprodução do trabalhador. Os impasses gerados pela
classe, e o meio adequado de garantir a paz social. Os operários não contraditoriedade dessas relações redundaram em Revoluções que
permanecerão dóceis e submissos por muito tempo, a utopia da contribuíram tanto à construção de um movimento socialista mais
chamada “paz social” começa a se transformar em pesadelo para a combativo, quanto à reorganização do Estado sob novas bases.
burguesia, quando em 1870, decidem administrar a caixa de socorros O fortalecimento da luta operária, no final do século XIX e
da fábrica Lê Creusot, na qual trabalhavam. O patrão os ameaça e início do século XX, não foi privilégio da França, ela também se fez
eles reagem com a greve. Diante do impasse criado, e da dificuldade presente em outros países europeus, como Inglaterra e Alemanha,
de articular ‘tutela moral, eficiência técnica e paz social’, o diretor onde o processo de industrialização estava acontecendo. Cada país,
do Creusot (entre 1871 a 1874) cria algum tempo depois a figura do com as suas particularidades desenvolveram formas de se contrapor à
‘engenheiro social’, que terá como função unir a competência técnica ordem vigente, pressionando e exigindo uma “nova postura liberal”,
com a condução do operário para o caminho do bem através de de maneira que viesse possibilitar uma condição de vida mais igualitária
conselhos, com a finalidade de demovê-los do sentimento orgulhoso, aos trabalhadores. Até aquele momento, os liberais acreditavam que
e de independência que os acompanha. “[...] o desenvolvimento capitalista asseguraria também a igualdade
Tal atitude vem demonstrar como, no sistema capitalista, as e o bem-estar aos cidadãos” (SCHONS, 1999, p. 119). A partir das
relações sociais são contraditórias. Essa forma de organização do exigências postas pela realidade, a conjuntura propiciará as condições
trabalho, onde o patrão parecia exercer o total controle sobre os objetivas para o surgimento do Estado Social da Nação, quando
operários, irá produzir as condições necessárias para se gestar a este passa a intervir na “questão social” como árbitro no conflito
organização da classe operária, que terá na metade do século XX sua entre capital x trabalho, tornando-se imprescindível ao capitalismo
maior expressão. monopolista emergente, como forma de atenuar a estagnação
Durante a Iª e IIª República, a preocupação do Estado estava econômica. Desse modo, passará a administrar e regulamentar essa
dirigida ao controle moral do operariado, associado à proteção relação, articulando funções políticas e econômicas fazendo, por
patronal, como forma de conter a organização e a luta da classe vezes, algumas concessões aos trabalhadores, em nome da ordem e
operária por melhores condições de vida e de trabalho para ela e sua da paz social, para que não acarrete nenhum prejuízo à produção e
família. Era o chamado Estado-Protetor. O debate que se colocava, acumulação do capital. Na sequência, o Estado Social que tem como
era de como o Estado poderia intervir na questão social, desde que, expressão máxima o Welfare State, caracterizar-se-á pela afirmação
não ameaçasse o poder da burguesia. No final do século XIX, a dos direitos sociais aos trabalhadores, atendendo em parte às
questão social se complexifica mediante o avanço e a radicalização suas demandas, ocultando desse modo as contradições de classe e
do movimento operário. No limite do capitalismo burguês, o assegurando o pleno desenvolvimento do capitalismo monopolista.
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A nosso ver, no essencial, todo esse movimento do século XIX, dos direitos de propriedade, e à primazia dos direitos econômicos
presente nos Estados nacionais europeus, cada um com seus traços e sociais como base para todos os direitos. Contudo, a Declaração
particulares, expressa a consolidação do modelo de produção instaurado Internacional dos Direitos do Homem foi aprovada por grande
pela grande indústria, enquanto complexo básico de constituição das margem de votos.
relações sociais. A luta central gira em torno dos limites do valor da No pós-guerra, os países industrializados e centrais viveram
jornada de trabalho, pois ela gera a mais valia necessária à reprodução um ciclo de crescimento com crescente produtividade, possibilitando
do capital. Pela natureza da mercadoria força de trabalho, que impõe aumento de lucros aos capitalistas e ganhos reais de salários aos
limites de consumo, o controle do capital nunca é absoluto, torna-se trabalhadores - o que atualiza historicamente a questão social em
necessário reinventar novas formas de organização para o consumo da novas bases. Alguns autores até consideram que é somente a partir
força de trabalho. O capital, enquanto uma relação social, precisa de daí que se pode caracterizar a questão social, quando as contradições
uma correlação de forças favorável para manter sua soberania. Deste de classe passam a ser objeto de regulação estatal. A distribuição da
modo, a divisão do trabalho, constituída no século XX, colocará as riqueza social entre capitalistas e trabalhadores passa a ser mediada por
relações entre capital e trabalho nas malhas da regulação estatal. As acordos coletivos. Aliás, o Estado torna-se decisivo como autoridade
lutas urbanas, com sua ênfase nos direitos do trabalho e da melhoria das central na mediação entre o processo de acumulação, e regulação do
condições de vida do trabalhador e sua família, dão lugar à criação de consenso social. Sob o esteio de entidades representativas, partidos
um grande consenso entre trabalhadores e capitalistas, cuja realização e sindicatos, fortes e combativos, negociavam a produtividade e a
se faz com a mediação do Estado. intensidade do trabalho, com vistas a assegurar salários para uma
O que se desdobra a partir da grande indústria, a sociologia parte, e os lucros para outra. A mediação do Estado se fazia legitimar
do trabalho, a exemplo de Aglieta, denomina-se modelo fordista de por uma política de subsídios à acumulação privada de capital, e pela
regulação, ou regime de acumulação fordista, implicando grandes adoção de políticas compensatórias: seguro desemprego, transporte
mudanças no sistema capitalista de produção, a partir da organização subsidiado, educação, saúde e enfim, serviços sociais. O pensamento
do processo de trabalho e sob a regulação estatal. “Essa mediação do keynesiano é decisivo para consecução dos objetivos de revigoração
Estado é a forma engendrada pelo capital para desenvolver e realizar do capitalismo naquele momento. Alguns autores, como Ricardo
as contradições dessa forma de produção de mercadorias” (p.13). Antunes, falam que a implantação deste regime de acumulação se fez
Essa é uma forma social que repõe em novas bases a divisão social mediante um modelo baseado no binômio Fordista - Keynesiano.
e técnica do trabalho, e assegurou um período de grande expansão e Constitui-se o que se denominou de Estado de Bem Estar social,
prosperidade econômica em quase todo o mundo capitalista, após a que implicou direitos econômicos, sociais e culturais, requerendo
segunda guerra mundial. Mas o período que o antecedeu foi marcado obrigações positivas e comportamento ativo do Estado perante os
por crises internacionais intensas, dando uma face conturbada à cidadãos. Se a instituição dos direitos civis e políticos requisitara um
constituição - o que José Paulo Netto chama de “fase clássica do tipo de formulação e enunciação que requeria obrigações negativas e
capitalismo monopolista” – entre o fim do século XIX e a década abstenção do Estado para a constituição do indivíduo independente,
de 40 do século XX. A luta entre socialismo e capitalismo assume esta nova realidade requer o homem participante, seja na qualidade
proporções muito significativas no plano internacional, ao mesmo de produtor, ou de consumidor, e um Estado ativo. A reprodução da
tempo em que o mercado mundial se solidifica nas multinacionais. classe trabalhadora tem papel importante no processo de reprodução
A história indica que no decurso da Segunda guerra mundial, social, elemento decisivo para a criação do consenso que falamos
institui-se um padrão internacional comum para a promoção anteriormente. Esse momento permitiu a Marshal, como herdeiro
de direitos humanos, que se tornará normativo em 1948, com a do pensamento liberal, produzir uma concepção de cidadania como
Declaração internacional dos direitos do homem. Pela primeira vez, “participação integral na comunidade”, pela interconexão entre
é superado o marco dos direitos circunscritos às esferas nacionais. A direitos civis, políticos e sociais, estes últimos compreendidos como
normatização dos direitos internacionais do homem não se efetivou educação e serviços sociais.
de forma tranquila, ela foi permeada por lutas ideológicas entre os Parece, até o momento, a fase mais avançada de emancipação
blocos capitalistas e socialistas, especialmente em relação aos limites política experimentada nos marcos do capitalismo, visto que sua
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aplicação reclama a ação do Estado, frente à criação das condições A “Nova Questão social” para Castel e Rosanvallon
necessárias a um mínimo de segurança e bem estar econômico, com
investimento no desenvolvimento social. Além do mais, instaura uma O quadro delineado pelas transformações contemporâneas
forma democrática de negociação para a consecução de um consenso dá também os insumos para o que Castel e Rosanvallon denominam
entre trabalhadores e capitalistas que, apoiada na construção de regras de nova questão social, com suporte no desemprego e na exclusão
e de princípios baseados no reconhecimento de iguais condições social de parcela dos trabalhadores, a partir do enfraquecimento da
entre as partes, permite decidir o acordo entre elas. Isto se põe de condição salarial, constituída com o Estado Social. Castel (1999, p.
uma forma diferente daquela na qual o trabalhador é considerado 496) considera que a “característica mais perturbadora da situação
incapaz de qualquer decisão, e na qual as leis não o permite fazê- atual é, sem dúvida, o reaparecimento de um perfil de ‘trabalhadores
lo. Trata-se de uma forma democrática, mas ainda assim dentro de sem trabalho’”, criando uma categoria de ‘inúteis para o mundo’,
limites precisos, pois no processo produtivo existe uma dependência conforme colocara Hannah Arendt. Situação que põe em risco o
recíproca entre patrões e empregados, que assegura à mercadoria força frágil equilíbrio conseguido com a condição salarial que, após longo
de trabalho uma margem de possibilidade de negociação no mercado. período de sofrimento e lutas sociais havia assegurado uma ‘civilização
Entretanto, na negociação entre as partes, a classe trabalhadora entra do trabalho’ através de um leque de vantagens ‘sociais’, qualificando
em condições de desvantagem frente ao comprador, enquanto não o status constitutivo da identidade social. Ele não partilha das ideias
possuidora da riqueza material produzida socialmente. do fim da história, o momento é de preparação de um mundo melhor
Adam Smith já havia percebido isto com clareza quando afirmou: para que paulatinamente possamos nos aproximar dele. Neste caso
Não é difícil prever qual das duas partes, normalmente, leva particular, o papel do Estado Social torna-se imprescindível, pois
vantagem na disputa e no poder de forçar a outra a concordar com se faz necessário um ator central na condução dos processos de
as suas próprias cláusulas. Os patrões, por serem menos numerosos, construção das estratégias, do estabelecimento das relações entre os
podem associar-se com maior facilidade; além disso, a lei autoriza parceiros e do zelo pelo respeito aos compromissos. Assim, para o
ou pelo menos não os proíbe, ao passo que aos trabalhadores
ela proíbe. Não há leis no Parlamento que proíbam a combinar autor, se não estamos no fim da história, esse fim estaria dado na
uma redução dos salários; muitas são, porém, que proíbem as constituição de um estado social que não ultrapassa os limites da
associações para aumentar salários (SMITH, 1985, p. 93). sociedade do capital.
Defende uma social democracia como substrato ideal que
Smith reconhece, ainda, nas condições objetivas essa até hoje não se constituiu como existência concreta. Algumas
desvantagem: constelações sociais apresentam traços desse modelo de Estado
Um proprietário, um agricultor ou um comerciante, mesmo sem de forma sistemática. A sociedade salarial ainda não foi totalmente
empregar um trabalhador conseguiriam geralmente viver um ano destruída, boa parte do que produziu continua a existir. Até a
ou dois com o patrimônio que já puderam acumular. Ao contrário, década de 1970, encontrava-se sob os auspícios de um indivíduo-
muitos trabalhadores não conseguem subsistir uma semana, coletivo que mantinha um compromisso social. Hoje essa relação
poucos conseguiriam subsistir um mês e dificilmente algum
conseguiria subsistir um ano. A longo prazo, o trabalhador pode encontra-se sob a ameaça do desenvolvimento do individualismo,
ser tão necessário ao seu patrão, quanto este o é para o trabalhador, e pelo surgimento de novos modos de individualização. Se, por um
porém esta necessidade não é tão imediata (SMITH, 1985, p. 93). lado, essa individualização apresenta aspectos positivos, por outro,
ela fornece as bases para o surgimento do individualismo de massa,
Deste modo, dentro de certos limites, Smith apreende as posto em risco pela ausência da seguridade e proteção social.
contradições entre as classes sociais, e antecipa o problema central que Percebe as relações do mundo do trabalho com a sociedade
permeou a questão social desde o século XIX até a Segunda metade global, a partir de um movimento evolutivo que se caracteriza em três
deste século, sofrendo atualizações históricas em seu movimento, modalidades: a primeira é a condição proletária na qual a trabalhador
conforme as necessidades do desenvolvimento das forças produtivas. está praticamente excluído do corpo social, apesar de constituir-
se um elo essencial no processo nascente de industrialização. A
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vulnerabilidade da massa oferece os elementos para uma fratura de inseridos socialmente. Assim, Castel (1999) entende que a
central entre capital e trabalho, seguridade e propriedade que fazem sociedade encontra-se numa crise que pode levar a uma situação
da questão social uma tomada de consciência de que essa fratura cujos resultados não são exatamente previsíveis. As opções estão
pode desencadear uma desintegração social. Daí os mecanismos de dadas no cotidiano mais imediato: uma situação econômica que
intervenção que foram criados. A segunda é a condição operária, uma não seja desastrosa para todo mundo, com recursos humanos de
nova relação salarial que não representa somente uma remuneração qualidade e fortalecimento da proteção social e, ao mesmo tempo,
pontual, mas assegura alguns direitos e acesso a subvenções extra que conte com o esgarçamento do tecido social, devido a “uma força
trabalho, ampliando a participação na vida social. Caracteriza-se por de trabalho disponível condenada à inutilidade”, os desfiliados da
uma integração na subordinação. A terceira é a condição salarial sociedade salarial, aliada à tendência de crescimento da perturbação
na qual a subordinação do operário se viabiliza pelo salário, pois da ordem social. Diante da situação de incerteza, ele considera:
esta define a identidade social. Visto que todos são assalariados é “ninguém pode substituir o Estado em sua função fundamental que
isto que tanto os identifica como os distingue na escala social. “A é comandar a manobra e evitar o naufrágio” para garantir a coesão
sociedade salarial parece arrebatada por um irresistível movimento social. Neste sentido, “não há coesão social sem proteção social”.
de promoção: acumulação de bens e de riquezas, criação de novas Cabe ao Estado uma estratégia para acompanhar o processo de
posições e de oportunidade inéditas, ampliação dos direitos e das individualização de massa, eliminando as tensões sociais, mediante a
garantias, multiplicação das seguridades e das proteções” (CASTEL, inclusão daqueles que se encontram fora das malhas da integração.
1999, p. 417). Isto “não será o triunfo da condição operária”, a sua Com isso, é possível evitar a ruptura do equilíbrio adquirido com a
subordinação se dá pelo progresso e pelo bem estar que ela propicia. sociedade salarial, e retomar o progresso que permite aproximar-
Atua em vários âmbitos como educação, saúde, lazer, seguridade, nos dos fins da história.
habitação, direitos do trabalho, supressão dos bolsões de pobreza, Rosanvallon, por sua vez, debruça-se sobre a análise do Estado
maior igualdade de oportunidade, etc., fazendo parecer que a questão Providência francês, que se desenvolveu historicamente sob o suporte
social estivesse dissolvendo-se com o progresso. de um sistema de seguridade, no qual as garantias sociais, associadas a
A fragilidade dessa condição salarial se mostra a partir da seguros obrigatórios, cobriam os riscos da existência como: doenças,
década de 1970, quando, no lugar de uma trajetória ascendente, desemprego, aposentadoria, invalidez, etc. Essa forma de solidariedade,
vê-se um retrocesso com a quebra de coesão desse progresso. A segundo ele, tem origem no fluxo do pensamento moderno, que
administração do social transforma-se, promovendo o retorno às compreende o vínculo social como o resultado de uma instituição
formas de tratamento individual dos problemas, e dos recursos aos voluntária e artificial, mediante a doutrina do contrato. Perspectiva
contratos. Com isso, aproxima-se da situação da fase de formação da na qual o mercado “identificado como uma espécie de natureza
sociedade industrial, em que os indivíduos, inclusive os mais carentes, refletida, erige-se em concorrente do contrato para fundamentar o
deviam enfrentar suas dificuldades e sobressaltos com seus próprios vínculo social” (ROSANVALLON, 1998, p. 32). Sua defesa como
meios. As políticas sociais de inserção os instigam a construir as instrumento de justiça, data do séc. XVII, especialmente com Leibnitz,
alternativas para suas saídas individuais ou pela associação em grupo, mas sua introdução na gestão do social acontece progressivamente
subsidiando-os nessas iniciativas. Cabe ao agente social avaliar a até a constituição da sociedade securitária, caracterizada pelo
validade das disposições do contrato proposto pelo sujeito, para Estado Providência. Os liberais viam no seguro social uma forma
que possa acessar à subvenção financeira. Isso se diferencia daquele de espantar o “espectro do socialismo”, os socialistas o viam como
modelo de subvenção para coletivos detentores de direitos, que não uma fase primeira da construção do “Socialismo Integral”. Desse
se encontravam à mercê de uma prévia avaliação. modo, atua na resolução das lutas sociais desde os finais do século
Toda essa situação põe em risco a coesão social porque pode XIX, até a constituição do Estado como um “segurador universal”,
fragmentar a sociedade, tornando-a ingovernável, ou promover em 1945. Rosanvallon afirma: “desde que seja universalizado (pela
uma polarização entre os que podem associar individualismo com obrigação), o seguro se torna autenticamente social, exercendo o
independência, e aqueles que “carregam sua individualidade como papel de transformador moral e social. O seguro social funciona
uma cruz”, devido à falta de vínculo e proteção social para a condição como uma ‘mão invisível’, produzindo a segurança sem a intervenção
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da boa vontade dos homens. Pela construção, o seguro interessa às forma mais solidarista e sem base na administração paritária. O
populações: fazendo de cada um a parte de um todo, torna os indivíduos autor considera, porém, que estas mudanças não se dirigirão a um
interdependentes” (ROSANVALLON, 1998, p. 37), porque permite modelo do tipo Beveridge, instaurado na Inglaterra no contexto
conciliar sociedade com liberdade individual. O seguro social constitui histórico do pós-guerra, que também não resistiu à crise. Este
uma instituição do contrato social. modelo se fundamentou num sistema universalista sob os princípios
O paradigma da seguridade, enquanto o substrato tanto técnico da cidadania. Assegurava, porém, serviços ultramínimos, tendo que,
como filosófico do Estado Providência francês, com base no modelo progressivamente, criar benefícios complementares de natureza não
de Bismarck, encontra-se em crise por várias razões. Modificações da universal. Deste modo, o autor considera que o próprio princípio da
categoria unificadora do risco, posto que os fenômenos da exclusão solidariedade precisa ser renovado. Para isso, o Estado Providência
e do desemprego de longo prazo podem agora caracterizar-se por precisa retornar a uma abordagem mais filosófica e mais política,
situações estáveis, e não mais aleatórias e circunstanciais, inscritas através do enraizamento no próprio corpo do contrato social, ou
no plano dos “defeitos sociais”. Os antigos instrumentos de gestão seja, articular-se em torno da noção de cidadania e de direitos sociais.
social encontram-se ultrapassados, visto que o conceito central é O autor defende o fortalecimento do Estado-Nação, com abertura
hoje muito mais da precariedade, da vulnerabilidade, do que do risco. para o mercado internacional.
As ameaças de “catástrofes” hoje afetam mais populações inteiras Na opinião de Rosanvallon, o aumento da exclusão social
do que indivíduos isolados, inviabilizando indenizações por parte deslocou o enfoque da questão social para uma abordagem focalista
do Estado. Os riscos coletivos impõem limites aos princípios da do segmento mais vulnerável da população. Isto simplificou
seguridade social, posto que, nestes casos, substitui a ideia do direito, sensivelmente o social para uma oposição entre os que estão
ou associa a ela as noções de solidariedade e de seguro, precedidas “dentro” e os que estão “fora”. Porém, este importante fenômeno
de um procedimento público. Outro componente diz respeito ao da pobreza e da miséria no mundo não esgota a questão social. É
desenvolvimento da genética, possibilitando uma “reavaliação radical preciso levar em conta que a desestabilização da condição salarial
das análises dos riscos de saúde e a uma visão do social ao mesmo com o desemprego, vem precedida da degradação da condição do
tempo mais individualista e mais determinista” (ROSANVALLON, trabalhador. O processo de exclusão resulta na fragilização dessa
1998, p. 41). O risco agora pode ser personalizado, com base na massa central - conforme já descrevera Castel.
distinção entre o adquirido e o inato, e impõe mecanismos diferentes Em segundo lugar, põe-se a “questão da classe média”,
daqueles públicos, que fundamentaram a seguridade do Estado resultante da lógica das políticas sociais concentradas no “mundo
Providência. Deste modo, só encontra alternativa de solução no dos excluídos”, e a lógica política e fiscal, tornando a classe média
mundo do seguro privado. Essa força desagregadora do social mantenedora do funcionamento da sociedade, posto que o sistema
tende a afetar o seguro social distanciando, mediante a dinâmica da solidariedade repousa basicamente sobre sua contribuição.
da informação, a solidariedade e a liberdade e, com isso, favorece o Desse modo, ela acaba por reclamar benefícios sociais ao sentir-se
declínio da sociedade securitária. injustiçada diante daqueles que não contribuem e têm maior acesso,
O desemprego crescente, aliado ao congelamento salarial e à em número, aos benefícios sociais. Diante disso, torna-se necessário
redução do número de contribuintes, conduziu o governo a cortar a revisão dos princípios da solidariedade, sem desconhecer a forte
gastos para estimular as empresas e criar empregos, provocando pressão política e econômica que sofre. Portanto, devem ser revistos
mudanças também no sentido de estender os benefícios às categorias tanto a seletividade dos benefícios, como a estrutura das contribuições
de desempregados. A lógica da seguridade tende a ser substituída obrigatórias. Essa revisão comporta um grau de dificuldade em face
pela da solidariedade, mediante a qual uma parcela de contribuintes da contradição da qual é portadora, pois, no plano econômico, seria
assegura os benefícios daqueles que se encontram fora do sistema. Ao necessário rebaixar o teto das contribuições e, ao mesmo tempo,
mesmo tempo, com o enfraquecimento do sindicalismo, desmorona excluir boa parte da classe média dos benefícios, o que tornaria
o princípio de gestão paritária entre o patronato e as organizações politicamente difícil sua administração. As saídas estariam em dotar
sindicais, muito valorizados pelos trabalhadores desde 1945. Assim, uma seletividade moderada em parte dos benefícios, ou praticar
o Estado Providência francês está a caminho de se adaptar a uma uma assistência orientada às populações com grandes dificuldades.
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O conteúdo da solidariedade deverá modificar-se, adaptando- não classificado ou sem profissão. A abordagem da ação social
se a um novo tipo de redistribuição que contemple as diferenças e as muda diante do conceito de desempregado, visualizado sob a ideia
desigualdades entre os indivíduos, posto que as classes médias são de acidentalidade, de fenômeno passageiro que poderia se inserir
hoje muito complexas para que se possa ter uma medida única em na lógica da seguridade social (sustentada por contribuições do
relação aos contribuintes e beneficiários. Faz-se necessário reinventar próprio trabalho). Sua distinção das formas assistenciais consistia
o desconto característico da Contribuição Social Generalizada. em caracterizar-se como dever assegurado pela contrapartida
Para isso, deve-se realizar uma reforma fiscal que atinja impostos de determinadas contribuições. O direito à assistência torna-
e contribuições entre assalariados e não assalariados, para cobrir se pertinente apenas aos grupos marginais da população que
também seguro-desemprego, aposentadorias, etc. não se incluíssem na categoria desempregado. A crise do Estado
Com relação à assistência aos pobres: “uma abordagem em Providência força a redimensionar a relação entre desemprego e
termos de caridade individual deixou de ser suficiente em uma direito à assistência, viabilizando um tipo de contrato social que
sociedade democrática baseada na igualdade civil e no reconhecimento permita associar o trabalho ao direito à inserção social, abordando
do indivíduo como sujeito de direitos” (ROSANVALLON, 1998, p. de uma nova forma a “gestão social do desemprego”.
122). O autor aponta, porém, dificuldade neste sentido. A perspectiva A ideia de inserção social constitui o centro do novo contrato
liberal, colocou-se criticamente, desde o século XIX, diante da que deve ser estabelecido entre emprego e Estado Providência. Essa
possibilidade do estabelecimento do direito à assistência, tendo em relação se estabelece em várias dimensões:
consideração que o direito social à assistência era inviável, pois para a emergência de vínculos inéditos entre direitos sociais e obriga-
ser direito teria de ser aplicável a todos os cidadãos. Entretanto, na ções morais; a experimentação de novas formas de oferta públi-
discussão chegou mesmo a ser considerado um direito relativamente ca de trabalho; a tendência a juntar indenização e remuneração;
indeterminado, de natureza moral, em contraponto ao direito que a criação de um espaço intermediário entre emprego assalariado
nasce de obrigações positivas. Compreendiam-no, sem qualquer e atividade social (ROSANVALLON, 1998, p. 130).
analogia, com os direitos naturais de propriedade, ou do credor, ou
mesmo dos direitos do cidadão de ser respeitado na sua vida, seus Sua base deve pautar-se na consciência de que deve ir além
bens, sua liberdade, e sua felicidade. A natureza dos direitos sociais dos limites do aspecto jurídico na apreensão das relações de
teria um outro caráter, ao qual corresponderia a justa expectativa obrigação social - que caracterizou a noção de solidariedade do
de um serviço. Foi defendido como um dever moral da sociedade, Estado Providência.
embora sem representar uma obrigação absoluta. A redefinição do social passa pelo direito à inserção que:
Os liberais reconhecem a legitimidade dos direitos sociais [...] avança mais do que os direitos sociais clássicos, enriquecendo-
baseados em créditos, mediante uma dívida contraída pela sociedade se desde logo com um imperativo moral: além do direito à
subsistência, ele procura dar forma ao direito à utilidade social;
para com o indivíduo, objetivando distinguir entre direitos sociais considera os indivíduos como pessoas que precisam ser assistidas.
e caridade pública. Porém a dificuldade em viabilizar essa distinção A noção de inserção contribui, nesse sentido, para definir um
está em determinar a origem dos créditos numa sociedade complexa. direito da era democrática, articulando assistência econômica e
Deste modo, “juridicamente pertinente, o princípio do crédito se participação social (ROSANVALLON, 1998, p. 137).
torna cada vez mais difícil de diferenciar dos simples direitos morais,
em um contexto de socialização. Portanto, ele é, na prática, tão frágil A perspectiva que o afirma não é o indivíduo subordinado,
quanto o da distinção entre direitos morais e direitos positivos” mas o indivíduo participante do movimento de ressocialização,
(ROSANVALLON, 1998, p. 124). como membro de uma sociedade que tem o direito de descobrir um
No século XX a categoria desemprego substituiu a ideia lugar. Como tal “o que se afirma não é só o direito de viver, mas o
imprecisa de pauperismo que permeara a questão social. A noção direito de viver em sociedade” (ROSANVALLON, 1998, p. 137).
moderna de desemprego se afirma como “inatividade forçada Um novo tipo de Estado Providência deve unir obrigações
devido à falta de trabalho”, qualificada a partir de causas de natureza positivas com redefinição de direitos, coisa somente possível de
macroeconômica. Supera-se a noção de vagabundo, de indivíduo realizar pela garantia de empregos. A indicação de saída encontrada
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pelo autor reside em superar a separação entre economia e sociedade. significa a igualdade de direito a um tratamento equivalente”,
Entretanto, discorda do mecanismo de rebaixamento salarial, utilizado contém o modelo mais adequado do direito, reinventando a ideia de
pela Inglaterra e Estados Unidos nos anos 80. Considera inadequado igualdade em termos de equidade de oportunidades.
vencer o desemprego, tendo por suporte o crescimento maciço da O desenvolvimento de um direito processual corresponde,
pobreza, a partir de obediência completa a uma lógica de mercado. assim, a uma nova situação nas relações entre o indivíduo e a
A alternativa seria criar um espaço intermediário, mediante políticas sociedade. O direito subjetivo clássico, tal como reformulado
de inserção econômica, cuja técnica principal consiste no emprego- no século XVII pelos teóricos do direito natural, tinha por
solidariedade. A dispensa de encargos sociais poderia subvencionar objetivo construir o indivíduo, constituir sua autonomia. Os
direitos do homem marcam uma separação, ao delimitar uma
empregos, especialmente de pessoas qualificadas. Políticas dessa fronteira inviolável atrás da qual o indivíduo pode encontrar
natureza propiciam o desenvolvimento de uma “espécie de economia um abrigo. Embora tendo um objetivo diferente, um valor
intermediária da integração social.” (ROSANVALLON, 1998, p. de ordem econômica, os direitos sociais foram concebidos
145). Essa alternativa do terceiro setor deve ater-se às atividades adotando como modelo esse direito subjetivo. É uma forma
não mercantis, possibilitando re-socialização e reaprendizagem de abordar o direito que deixou de ser adequado quando seu
objeto se tornou no fundo a própria relação social. Ora, isto é
profissional, para o surgimento de uma nova economia de serviços. exatamente o que está em jogo no tema da inserção. O objeto
A redefinição do Estado Providência se confronta com uma do direito não é um mero benefício, mas uma relação social.
nova realidade sociológica, na qual os sujeitos também mudaram, pois Nesse caso só a perspectiva de um direito processual, permite
no lugar de grupos, classes, e de populações relativamente homogêneas pensar as coisas. Longe de se afastar do direito ele é reinventado,
deverá se aparelhar para se responsabilizar por indivíduos em situações abrindo mesmo, o caminho para reduzir a distância entre direito
formal e direito real (ROSANVALLON, 1998, p. 165).
particulares. O sistema baseado em definir populações alvo, conjunto
de regras e benefícios, e trabalhadores sociais especializados, a partir Uma gestão do social no âmbito mais individualizado que
do qual foram instituídos direitos e alocações específicas, geridos por expresse uma judicialização do social impõe garantias concedidas aos
agentes públicos e trabalhadores sociais, encontra-se inadequado para sujeitos que devem possibilitar, de forma simples, a contestação de
o tratamento dos problemas sociais. Trata-se agora, de administrar certas decisões. Portanto, o autor defende a criação de mecanismos
situações particulares, e não de selecionar indivíduos. Desempregados de representação dos “usuários do social”, e tornar público
de longo prazo e famílias oneradas por dívidas, configuram o rapidamente “os princípios de intervenção dos organismos sociais
surgimento de “sujeitos sociais” de um novo tipo. A análise do ou de recursos”, com a presença institucional de certos mediadores.
social precisa recorrer cada vez mais à história individual do que à Com isso, estaria afastado o risco de retorno ao paternalismo.
sociologia. Os sujeitos sociais de novo tipo não podem se enquadrar Em suma, o autor compreende que tudo deve ser refeito para
na condição de novos proletários da sociedade de desemprego, posto assegurar o futuro da democracia, que se confunde com o futuro
que não têm propriamente um interesse comum. Formam uma “não- do Estado Providência. A reavaliação da questão social, em termos
classe” resultante da decomposição e dessocialização. São excluídos radicais, implica redefinição de valores e métodos do progresso
– “sombra das disfunções da sociedade” – resultantes do processo social, aliados a uma reinvenção do Estado Providência. A visão da
de desagregação provocado pelo não trabalho, constituídos por uma igualdade precisa incorporar outros fatores de diferenciação entre
falha no tecido social. Conhecer essa categoria implica redefinição, homens e mulheres. São significativos “o perfil das gerações, os
inclusive metodológica, na qual o “homem médio”, de Quételet, e o defeitos impostos pela natureza, as trajetórias pessoais”, compondo
“fato sociológico”, de Durkheim, já não são adequados, pois tornariam uma abordagem ampliada da equidade.
ininteligível a sociedade. O Estado Providência e sua reforma devem A prática da justiça com sua discussão pública “deve substituir a
passar por uma revolução também no plano cognitivo. visão estreitamente jurídica da igualdade de direitos ou uma concepção
Para ser justo, um Estado Providência deve se tornar um puramente mecânica da distribuição” (ROSANVALLON, 1998, p.
“Estado-serviço”, e propiciar a cada um os meios particulares para 167). As medidas globais de competência do Estado, identificadas
mudar o curso de sua vida. Neste sentido, o direito processual, espontaneamente com os avanços coletivos, já não podem ditar os
pensado em termos de equidade de tratamento, no qual “a equidade
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rumos do progresso social. A universalidade não pode se basear na regra o surgimento do homem como cidadão no mundo, do universal
geral e na assistência uniforme, “é preciso escolher de fato entre pessoas homem. Um pensamento que pretendia explicar a realidade de seu
concretas, levar em conta comportamentos e situações precisas”, que tempo, buscando antecipar um horizonte possível para uma práxis
se apoiariam no reformismo do indivíduo, face à compreensão de transformadora do mundo que, neste sentido, nasce e constitui-se
que o Estado não pode fazer tudo “e é preciso restaurar uma maior como razão crítica de sua época. Não parece ser esta a perspectiva
continuidade entre ação individual e a ação coletiva”. Com isso, se pode contemporânea, não existe indicação de um pensamento transformador
associar a moral individual ao imperativo político, e colocar em foco uma que não seja basicamente residual, frente ao conjunto das formulações
nova cultura política, que deve corresponder a uma nova era do social. teóricas da atualidade. Predomina o pensamento pragmático, a
Castel e Rosanvallon, a despeito das diferenças que os faticidade do mundo existente, a análise das singularidades, do caso,
caracterizam, assentam suas reflexões no trabalho como categoria sem projeção de futuro, estes são os imperativos do pensamento do
sociológica central na formação de uma sociedade assalariada. A presente. Observa-se a rejeição dos clássicos da universalização por
questão social, expressa no confronto entre as manifestações da parte dos teóricos da globalização, que tratam agora de substituir as
desigualdade e da pobreza, e nas lutas sociais pelos direitos e garantias ideias de transformação do mundo, pelo interesse de fazer ver que
sociais, constituiu o cerne do percurso histórico para a consolidação trata-se de aceitar os valores e representações da atualidade como
da coesão social no Estado Social. A contemporaneidade recente evidências do fim da história. Não parecem vislumbrar qualquer
se encontra frente a um novo desafio: reinventar o Estado para se horizonte possível para além do que está dado.
adequar às transformações sociais com sua complexidade, em termos Nesta perspectiva, o pensamento clássico aparece hoje como
do social e da individuação, evitando a desintegração provocada coisa superada, primeiro por seus ideais de homem universal,
pelo esgarçamento de uma sociedade sustentada no salário como segundo por conter no seu interior a luta de classes. Aquilo que até
constitutivo da identidade social e, no direito processual, com suporte algum tempo foi considerado progressista passa a ser tido como
na universalização dos direitos sociais, com base num coletivo (grupos reacionário. Para a grande maioria dos pensadores da atualidade
ou classes sociais). A ação para garantia dos direitos precisa se apoiar não cabe mais um pensamento que se ocupe das contradições
na realidade dos novos sujeitos sociais, e seu caráter particular de geradas pela exploração do homem pelo homem. Drucker, por
indivíduos desfiliados ou excluídos das malhas da integração social. exemplo, considera: “o fator de produção mais importante não é
Não obstante o reconhecimento da pertinente exposição o capital, a terra ou a mão de obra. É conhecimento, em vez de
histórica e crítica propiciada pelo pensamento dos autores sobre a capitalistas e proletários, as classes da sociedade pós-capitalista são
questão social, e a rigorosa apreensão de seus traços fenomênicos, os trabalhadores do conhecimento e os trabalhadores em serviços”
queremos ressaltar dois aspectos que caracterizam essas produções. (1985, p. XV). Desse modo, numa sociedade do conhecimento, não
A preocupação frequentemente recorrente quanto aos riscos que a há mais lugar para a luta de classes.
questão social representa para a coesão, para o equilíbrio da sociedade Em vez da busca de apreender os fundamentos do sistema, o
e defesa do Estado, com proposta de sua reforma, no sentido de pensamento pragmático prioriza as estatísticas dos negócios da vida
conter os possíveis conflitos gerados pela existência de excluídos cotidiana. Não se trata mais de construir um novo mundo, é momento
ou desfiliados sociais. Neste sentido, são produções circunscritas de aceitar, de organizar, de administrar, porque o homem chegou
ao círculo do pensamento liberal que não apontam para qualquer a um impasse que a luta significaria a autodestruição. Vive-se num
perspectiva de superação da ordem do capital, condição sem a qual a mundo globalizado, dizem eles, o mercado mundial já se realizou. O
supressão da questão social torna-se impossível. fenômeno da globalização comporta a ideia de um mundo solidário,
de harmonia, de cooperação, deixando para trás a ideia das relações
A título de considerações finais sobre a Questão Social antagônicas entre capital e trabalho, substituindo-as pela parceria,
pela troca entre iguais, mediante a qual trabalhadores e empresas
As bases do pensamento na contemporaneidade recente devem dar-se as mãos para fabricarem os melhores produtos, com os
parecem distanciar-se fundamentalmente daquele moderno, louvando melhores preços do mercado. Portanto, trata-se de um mundo sem
fronteiras, e sem luta de classes, que agora só precisa ser melhorado.
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Além disso: entre as distintas fases do processo produtivo. Ao mesmo tempo
[...] contra a concepção de Estado, enquanto instituição universal, lançam mão da atualização tecnológica e do mecanismo de tornar
exalta-se e busca-se fragmentar e privatizar as funções públicas, ao obsoletos os produtos em curto espaço de tempo, para superar a
mesmo tempo que também se louva a erosão da ordem constitucional saturação dos mercados. A conquista de novos mercados impõe a
universal e geral, que se vê questionada pela emergência de uma produção em massa de produtos padronizados pela produção de
hierarquia de poderes micrológicos, estabelecidos pelas grandes bens diferenciados e qualificados que, sob intensa campanha de
corporações, organizações, companhia, sindicatos, corporações
profissionais, etc. Contra a concepção de Estado autônomo e marketing, devem responder aos desejos de consumo.
regulador, aceita-se sua submissão à irracionalidade dos mercados O fenômeno do desemprego ronda o processo de reestruturação
financeiros, que obriga os Estados-Nações a leiloar o patrimônio produtiva face à incapacidade do sistema de absorver mão de obra11.
público em troca de alguns investimentos. A economia deixa de ser Num contexto mundializado o desemprego assume proporções
vista como uma dimensão mediadora para a construção de uma internacionais. Como diz Chossudovsky: “O desemprego mundial
vida ética, e passa a ser reinterpretada como o reino do consumo,
do prazer, do dinheiro (TEIXEIRA, 1999, p. 10). torna-se uma ‘alavanca’ da acumulação de capital global que ‘regula’
os custos do trabalho em cada economia nacional. A pobreza de
Dificilmente se poderia admitir que o surgimento desta forma massa regula os custos internacionais do trabalho” (1999, p. 70).
de pensar constitua um fenômeno puramente subjetivo. Ele se faz Com a diminuição dos postos de trabalho vê-se a classe trabalhadora
presente em meio a um conjunto de transformações na realidade heterogeneizar-se em trabalhadores permanentes, autônomos ou
social que compreende dimensões várias. Uma delas diz respeito temporários, com forte migração para os serviços. O que levou
ao processo de renovação, por que passa a produção capitalista e se alguns analistas a identificar nesse fenômeno o desaparecimento da
torna mais seguramente visível nas duas últimas décadas. A velocidade classe trabalhadora do cenário mundial. O trabalho assalariado já não
com que este processo vem se efetivando deixa atônitos capitalistas, se constitui na única fonte de sobrevivência do trabalhador, outras
que precisam adaptar-se ao movimento contínuo de novas regras alternativas compõem o universo da renda familiar. Como resultado
do mercado mundializado, e trabalhadores, que precisam preservar das transformações contemporâneas, surgem novas atividades
sua fonte de sobrevivência. A reinvenção do consumo da força de e funções no campo da produção e da circulação, que expressam
trabalho se realiza no interior do que se denomina “reestruturação uma totalidade mais complexa que nas décadas que as antecederam,
produtiva”, à qual os modelos orientais oferecem uma referência com evidente crescimento do setor de serviços. Entretanto, se a
decisiva. Assiste-se à crise do modelo de acumulação que havia se classe trabalhadora tende a desaparecer não é pela diversificação das
consolidado no pós-guerra, tornando necessárias inúmeras inovações atividades de trabalho, pois
dos processos de trabalho, e das relações de produção. Teóricos da [...] a existência de uma classe trabalhadora como tal não
Escola da Regulação, como Aglieta e outros tantos como Chesnais, depende das diversas formas concretas de trabalho que lhe
ocupam-se das razões da crise e do processo interno que engendram cabe desempenhar, mas, isto sim, de sua forma social. O
trabalho posto em ação na produção de bens não está por
a reestruturação do processo produtivo, em face do movimento de isso nitidamente separado do trabalho aplicado à produção
mundialização do capital. de serviços, visto que ambos são formas de produção de
Têm lugar programas como qualidade total, reengenharia e mercadorias, e produção em base capitalista, cujo objetivo é a
produção enxuta, enquanto momentos de viabilização do processo produção não apenas de valor de troca, mas de valor excedente
de transformar o trabalhador, apto a desempenhar uma única tarefa, para o capitalista. A variedade de determinadas formas de
em trabalhador coletivo flexível, passível de desempenhar inúmeras 11 Marx já havia antecipado “Na medida [...] em que a grande indústria se
atividades. Em tal contexto: “onde antes havia a concorrência é desenvolve, a criação da riqueza efetiva se torna menos dependente do tempo
preciso introduzir a parceria; onde havia o monopólio e o segredo de trabalho e do quantum de trabalho empregados, que do poder dos agentes
da produção, é preciso haver troca; onde havia intrigas, é preciso postos em movimento durante o tempo de trabalho que por sua vez – sua powerful
haver colaboradores” (TEIXEIRA, 1995, p. 25). As empresas effectiveness – não guarda relação alguma com o tempo de trabalho imediato que
revisam os seus métodos de trabalho, tornando fluidas as fronteiras custa sua produção, senão que depende mais do estado geral da ciência e do
progresso da tecnologia, ou da aplicação desta ciência à produção” (1985, p. 227).
72 73
trabalho pode influir na consciência, coesão ou atividade a presença do Estado, nos moldes do modelo Fordista-Keynesiano.
política da classe trabalhadora, mas não afeta a existência dela Reclama agora a liberdade para que as Empresas possam se ajustar às
como classe (BRAVERMAN, 1987, p. 347).
exigências competitivas do mercado mundial.
Para Chesnais o fenômeno de mundialização do capital
Do resultado das transformações contemporâneas, Gorz comporta, ao lado da natureza intrínseca ao seu desenvolvimento
deriva sua tese da autonomia operária, segundo a qual, a partir da objetivo, o impulso decisivo de governos das grandes potências
“reapropriação do trabalho por parte dos trabalhadores”, estes se econômicas. Diz ele:
tornariam patrões de si mesmos por vontade própria, pela recusa
do salário ou pela demissão voluntária, como forma de quebrar a Sem a intervenção política ativa dos Governos Thatcher e Reagan,
relação capital-trabalho. Estes se constituiriam, segundo o autor, “os e também do conjunto dos governos que aceitaram não resistir a
eles, e sem a implementação de políticas de desregulamentação,
teóricos da intelectualidade de massa”, trabalhadores desempregados de privatização e liberalização do comércio, o capital financeiro
e precários criados pela crise do fordismo, para os quais a autonomia internacional e os grandes grupos multinacionais não teriam
já seria uma realidade. podido destruir tão depressa e tão radicalmente os entraves
Resultam também desse momento as teses sobre trabalho e freios à liberdade deles de se expandirem à vontade e de
imaterial, uma categoria do trabalho que não se ocupa com a explorarem os recursos econômicos, humanos e naturais, onde
lhes for conveniente (CHESNAIS, 1996, p. 34)
transformação imediata da natureza. Nessa categoria, encontrariam-se
as atividades como publicidade, moda, marketing, telecomunicações, A possibilidade de explorar mão-de-obra em lugares muito
informática, produção audiovisual, etc. distantes dos centros onde esta era mais organizada, aliada ao
O trabalho imaterial se encontra no entrecruzamento (na fenômeno do desemprego crescente, foram fatores decisivos
interface) desta nova relação produção/consumo. É o trabalho para o refluxo da luta do operariado na contemporaneidade
imaterial que ativa e organiza a relação de produção/consumo
[...] A especificidade da mercadoria produzida pelo trabalho recente. Principalmente o desemprego que tira do trabalhador sua
imaterial (seu valor de uso encontra-se essencialmente em seu sobrevivência e o coloca, nos lugares onde existe, nas malhas da
conteúdo informacional e cultural) consiste no fato de que ela dependência da seguridade social, e onde não existe condena-o à
não é destruída no ato de consumo, mas se alarga, transforma, fome. O desemprego também não parece ser resultado simplesmente
cria o envolvimento ideológico e cultural do consumidor. ‘Ela das condições objetivas da reestruturação produtiva, ele compôs a
não reproduz a capacidade psíquica da formação de trabalho,
ela transforma seu utilizador que se gera no pós-fordismo, estratégia de superação da crise proposta pelas grandes potências.
integrando a comunicação ao ciclo de reprodução do capital’ Desse modo, tem-se um quadro no qual a estratégia de
(LAZZARATO, 1993, p. 114). subordinação da classe trabalhadora difere radicalmente daquela
anterior, na qual a busca do consenso se fez mediada por mecanismos
As teses suscitadas pelo pós-fordismo expressam as dificuldades de reprodução do operariado com uma negociação entre as partes
que a complexificação do trabalho assume na contemporaneidade - com o agravante de que as condições de desvantagem da classe
recente, em sua recorrente exigência ao conhecimento, cujos operária, já existentes naquele momento, aumentaram enormemente
delineamentos ainda não estão nítidos, e constituem, no momento, na atualidade. Ela se encontra em franca desvantagem, numa atitude
objeto de intenso debate por parte das ciências sociais. defensiva que predomina sobre as manifestações políticas isoladas.
Um outro aspecto importante se refere ao caráter da globalização, Ao mesmo tempo, se de um lado o capital alcança uma potência
como momento de desenvolvimento capitalista, que reúne a nunca vista na história, do outro a derrocada do leste europeu, e
reestruturação dos processos de trabalho a uma maior liberdade de a exposição de suas mazelas, destruiu os sonhos acalentados pelos
ação, mediante a qual adquire sentido o denominado neoliberalismo. trabalhadores de construir uma sociedade com base nos ideais
Ocorrem mudanças no papel do Estado com o processo de socialistas. Assim, não parece haver, neste momento, quaisquer
privatizações, e com desregulamentação dos direitos e garantias sociais, condições necessárias aos anseios de emancipação social dos
criando-se formas mais flexíveis de contratação dos trabalhadores, sem trabalhadores, ou de conter a tendência expansiva do capital e
vínculos permanentes. Esse modelo de acumulação já não comporta revertê-la em favor do desenvolvimento humano-social.
74 75
A atualização histórica da questão social se põe, portanto, na existência. Para contê-las, são criadas respostas sociais sejam na
recente configuração que adquire num contexto de desemprego, forma de políticas, seja de serviços, a serem realizados pelo Estado
gerando pobreza, no refluxo da luta dos trabalhadores em sua ou organismos da sociedade civil. O fato de sua manifestação
subordinação ao capital, na retração dos direitos e garantias sociais, ou contemporânea apresentar características distintas daquelas originais,
na sua reformulação para adaptar-se à nova conjuntura. A tendência em decorrência das transformações atuais, não muda a sua natureza
de redução das funções do Estado na reprodução da força de trabalho essencial como manifestação do confronto de interesses de classe,
desloca parte de suas atribuições anteriores para setores da sociedade mediante apropriação particular e desigual do produto social. Do
civil, convocando à parceria, à solidariedade e ao trabalho voluntário mesmo modo, se as respostas à questão social se expressam como
no combate aos efeitos do pauperismo. direitos, ou como atos solidários, significa que entre elas existem
No nosso entendimento, esses traços das mudanças no mundo diferenças qualitativas, mas não quanto ao seu significado essencial,
contemporâneo são decisivos para a compreensão da questão ou seja, constituir mecanismos de conter os riscos de sublevação,
social na atualidade. Neles estão contidas as bases dos elementos contidos na miséria social.
caracterizadores da questão social tais como o fenômeno da pobreza Ao nosso entender, não existe efetivamente uma “nova
e o histórico movimento de afirmação ou de negação por parte do questão social”, mas novas expressões da mesma questão, na qual
Estado, permeado pela problemática da luta de classes sob a égide se faz presente a apropriação privada dos meios de produção e do
das necessidades de reprodução do capital. No fundo do debate da produto do trabalho por parte das classes dominantes, como limite
questão social estão presentes as grandes polêmicas do tipo: se a fundamental à plena explicitação do gênero humano, pois a liberdade
responsabilidade da miséria deve ser imputada aos indivíduos ou à de desenvolvimento de cada indivíduo é condição essencial para o
sociedade, se ela é de caráter público ou privado - que o pensamento livre desenvolvimento de todos.
sócio-político moderno, baseado na fragmentação entre indivíduo e
sociedade existente na realidade, consagrou como ideal de cidadão. Referências
Na atualidade, o publicismo neoliberal continua a negar a questão
social. Entende-se que os homens não são os autores da história, eles
AQUINO, R. S. Leão de et al. História das Sociedades – Das Sociedades
apenas a sofrem, portanto, não compete à coisa pública interferir na
sua solução. Novamente, por um lado, trata-se de responsabilizar Modernas às Sociedades Atuais. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999.
o indivíduo, e de criar mecanismos na sociedade civil, por outro, de BRAVERMAN, H. Trabalho e Capital Monopolista – A Degradação do
conter qualquer resistência. Daí o apelo à solidariedade social. Trabalho no Século XX. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.
Desse modo, por parte do pensamento liberal, a objetividade da BUSSINGER, V. Fundamentos dos direitos humanos. In: Revista Serviço So-
questão social fica presa à polêmica entre responsabilidade individual e cial e Sociedade. São Paulo: nº 53, março de 1997.
responsabilidade pública de resolvê-la pela via do Estado, ou da sociedade
CASTEL, R. As metamorfoses da questão social – Uma crônica do salário.
civil. Ou seja, no âmbito político, não há possibilidade de buscar a
base econômica geradora do fenômeno, e assim encontrar no próprio Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
Estado capitalista a fonte do problema. Esta é uma polêmica ainda CHESNAIS, F. A Mundialização do Capital. São Paulo: Xamã, 1996.
presente nos dias atuais, principalmente em tempos de neoliberalismo, CHOSSUDOVSKY, M. A globalização da Pobreza – impactos das reformas do
quando se trata de defender a desresponsabilização do Estado das FMI e do Banco Mundial. São Paulo: Editora Moderna Ltda, 1999.
sequelas da questão social, deslocando-a para a sociedade civil, através DRUCKER, P. Sociedade pós capitalista. São Paulo: Pioneira, 1985.
de formas solidárias ou mediante parcerias entre Estado e organizações
HEGEL, G. W. F. Hegel’s Philosophy Of Right. London: Oxford University
da sociedade, reduzindo a questão a um problema administrativo.
Em suma, a questão social é um fenômeno histórico-social Press, 1967.
tipicamente capitalista, gerado na base econômica da sociedade, LOSURDO, D. Hegel, Marx e a Tradição Liberal: liberdade, igualdade,
e que se expressa no cotidiano da vida social, possibilitando a Estado. São Paulo: UNESP, 1998.
reação das classes trabalhadoras às más condições materiais de sua
76 77
MARX, Carl. Elementos fundamentales para la crítica de la economía
política. Grundrisse – 1857 – 1858. México: Siglo XVII, 1985.
MARX K. O capital – Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cul- Pensamento liberal e direitos humanos
tural, 1985.
_______. O capital – Crítica da Economia Política – Livro I Tomo II. São A modernidade constituiu um período decisivamente
Paulo: Abril Cultural, 1996. revolucionário em termos socioeconômicos e políticos, pois tratava-
________ A Questão Judaica. São Paulo: Moraes, 1991. se de destruir as velhas formas, predominantes na idade média,
MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 1998.
referentes aos processos de trabalho, e às relações entre os homens,
e consequentemente, construir novas relações, ou seja, produzir os
NETTO, J. P. Capitalismo Monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, marcos dos novos padrões de organização da vida social, que irão
1992. ganhar concretude e visibilidade no séc. XIX, no modo de produção
RICARDO, D. Princípios de economia política e tributação. São Paulo: N. capitalista. Isto impunha, por sua vez, o influxo de um pensamento
Cultural, 1985. renovador, enquanto sustentáculo, para interpretação do mundo
ROSANVALLON, P. A Nova Questão Social. Brasília: Instituto Teotônio Vile- dos homens. Esse influxo renovador se deu com a produção da
la, 1988.
Ciência Política, da Economia Política e do pensamento Iluminista.
São sintomáticos deste fenômeno a luta dos liberais pelo
ROUSSEAU, J. J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1978. livre mercado e sua expansão que marcou o liberalismo clássico,
SCHONS, S. Assistência Social entre a ordem e a “des-ordem”: mistificação associada aos ideais de liberdade e de defesa da constituição do
dos direitos sociais e da cidadania. São Paulo: Cortez, 1999. Estado Moderno. Por liberalismo compreendemos o conjunto
SMITH, A. A riqueza das nações: investigações sobre sua natureza e suas de formulações teóricas de natureza ética, política e econômica
causas. São Paulo: Nova Cultural, 1985. que incidirão decisivamente nos processos de transformação da
TEIXEIRA, F. J. S. O Capital e suas formas de produção de mercadorias –
sociedade para a constituição da cidadania liberal. O liberalismo tem
uma crescente preocupação com a individualidade. O indivíduo é a
Rumo ao fim da Economia Política. Fortaleza, julho de 1999. origem e o destinatário do poder público, nascido de um contrato
TEIXEIRA, F. J. S. O Capital e suas formas de produção de mercadorias, social voluntário, no qual os contratantes cedem poderes, mas não
enquanto momentos atualizadores de O Capital. Fortaleza, s.d. cedem sua individualidade quanto à vida, à liberdade e à propriedade.
TEIXEIRA, F. J. S. Globalização, Ideologia e Luta de Classes. Fortaleza, no- No campo jurídico e político, o jusnaturalismo é a grande fonte
vembro de 1999. de inspiração do liberalismo. Hobbes (1588-1679) é o verdadeiro
e rigoroso criador do modelo jusnaturalista, no qual o Estado
constitui um corpo artificial que nasce em contraposição ao estado
natural. Ele parte do suposto de que a natureza fez todos os homens
iguais em corpo e espírito, e dessa igualdade de capacidade deriva
a igualdade quanto à esperança de atingir determinados fins. Em
aspectos subjetivos e morais dos indivíduos em estado de natureza,
Hobbes identifica as razões para o comportamento dos homens
em sociedade. Desse modo, articula traços da personalidade dos
indivíduos, direitos naturais e necessidade de paz entre os homens,
como base que sedimenta a constituição do Estado. Porém, é Locke
(1632-1704) quem vai expressar as forças liberais que conduziam
o movimento revolucionário da burguesia inglesa no parlamento,
opondo-se ao poder absoluto do rei. Assim como Hobbes, também
78 79
Locke parte de um suposto estado de natureza. Entretanto, suas consciência da dignidade do homem em geral, e não a afirmação
concepções não são idênticas, ao contrário de Hobbes, Locke distingue pura e simples do individualismo, caracterizando uma postura social.
entre estado de natureza e estado de guerra, definindo que “a força, ou No seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
um desígnio declarado de força, quanto a pessoa de outrem, quando entre os homens, Rousseau debate o problema da desigualdade
não existe qualquer superior comum sobre a terra para quem apelar, e do direito natural. Para ele, o aspecto mais fundamental da
constitui o estado de guerra” (LOCKE, 1978, p. 41). O que conduz desigualdade humana, criada com a vida em sociedade, encontra-
para diferentes concepções quanto à natureza do pacto social, e da se na propriedade privada. O direito de propriedade é, portanto,
estrutura do poder político, entre os dois pensadores. Locke considera um direito distinto daqueles resultantes da lei natural, como o
que a origem da sociedade deriva da natureza humana livre, igualitária direito à vida e à liberdade. Aí estaria a origem da dominação e da
e dotada de racionalidade, a partir da qual os homens desenvolveriam servidão, ou da violência e do roubo, resultante das relações entre
obrigações de amor mútuo, de justiça e de caridade para com os outros. os homens - geradas pelas condições existentes. Rousseau diz: “O
Diferente de Hobbes, Locke afirma que os homens não verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo
renunciam aos direitos naturais em favor do poder do governante. Ao cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou
contrário, tornam o soberano um agente e executor da soberania do pessoas suficientemente simples para acreditá-lo” (ROUSSEAU,
povo, este último a fonte a partir da qual se estabelecem os poderes 1999, p. 87). Aqueles que não reagiram a este ato de apropriação
legislativo, executivo e judiciário. Assim, compreende que a primeira privada de um bem natural são igualmente responsáveis pelo dano
lei positiva e fundamental de todas as comunidades consiste em causado à humanidade com esta apropriação.
estabelecer o poder legislativo enquanto poder supremo, cuja função O pensamento de Rousseau tornou-se fonte de inspiração para
precípua é preservar a sociedade e qualquer um dos seus membros, a formulação dos direitos do homem e do cidadão, que a revolução
até o ponto em que seja compatível com o bem público. Pelo francesa consagrou, como portadores do princípio fundamental do
contrato social, cria-se a comunidade e, num processo subsequente, a Estado Moderno. Princípio que se refere aos direitos e garantias
comunidade confia o poder político a um governo. individuais, prescrevendo normas para a vida do homem em
As ideias políticas de Locke exerceram profunda influência sobre sociedade e reservando aos indivíduos direitos civis, como uma
a revolução burguesa na Inglaterra, serviram de base às democracias esfera de liberdades negativas em relação ao Estado, pois dizem
liberais, e fizeram-se presentes entre Iluministas, como Montesquieu respeito aos direitos pessoais de pensamento, de religião, de atividade
e Rousseau, responsáveis por ideais da Revolução Francesa. Sua econômica, que reclamam por parte do Estado uma posição de não-
influência se estendeu a pensadores americanos que colaboraram para impedimento, de abstenção. E direitos políticos, como uma esfera
a independência dos Estados Unidos, em 1776. Rousseau (1712-1776) de liberdades positivas com autonomia no Estado, referentes à livre
expressa bem a síntese das inquietações que se desdobraram, desde associação, direitos eleitorais, etc., relacionados à constituição do
Hobbes e Locke, até aquele momento. Tal como Locke, Rousseau Estado democrático representativo, com participação dos cidadãos
parte da teoria do estado de natureza como condição da liberdade e da nos objetivos políticos do Estado.
igualdade do homem, como afirmação da pessoa humana enquanto Assim, para o pensamento liberal em seus primórdios,
sujeito de todo direito e, portanto, como fonte e norma de toda lei. os homens nascem com certos direitos, como o direito à vida, à
Compreende que os homens ao renunciarem ao estado de natureza liberdade e à felicidade, imanentes à sua própria natureza humana.
em nome de uma liberdade formal, constituem o Estado, como eu Esses direitos, independentemente da existência de qualquer
comum unificador da sociedade, enquanto um todo composto pelo comunidade política, nascem com eles e não podem ser violados
conjunto dos indivíduos, particularmente denominados “cidadãos”. pelo Estado, mesmo enquanto instância detentora do poder legítimo
A sociedade seria decorrente da natureza do gênero humano que de exercer a força para obtenção da obediência dos indivíduos,
tende ao progresso. O princípio de liberdade constitui-se como quando necessário. Assim, os direitos naturais aos quais é acrescido
norma, afirmação de um dever de realização das aptidões espirituais, o direito à propriedade como direito natural, mas não inato, devem
ao qual é impossível renunciar, porque seria renunciar aos direitos ser reconhecidos e respeitados pelo poder estatal. Entre o Estado e
da humanidade enquanto gênero humano. Reivindica, com isso, a o indivíduo, intercala-se uma esfera, a sociedade civil, sobre a qual o
80 81
Estado não tem poder instituinte, exercendo a função de garantidor Que os seres humanos nascem livres e iguais significa, na
e de árbitro dos conflitos nela existentes, quando por meio da lei e verdade, que os seres humanos devem ser tratados como se
fossem livres e iguais. A expressão não é uma descrição de um
da força pode intervir nos conflitos da sociedade civil. Por sua vez, fato, mas a prescrição de um dever [...] poderíamos dizer que a
o Estado tem todos os poderes quanto à esfera da vida pública, mas liberdade e a igualdade das quais se fala nesse artigo não são um
não pode interferir na consciência dos governados. Deve garantir a fato mas um direito, mais precisamente o direito que deriva do
liberdade de pensamento e de consciência, sendo-lhe cabível intervir ser humano – antes mesmo que de uma constituição positiva
somente quando as opiniões põem em risco o próprio Estado. - , da constituição mesma da sua personalidade, uma vez
mais, da sua natureza ideal. Também por esse caminho somos
reconduzidos, como se vê, à doutrina dos direitos naturais
Liberalismo e declaração universal dos direitos humanos (BOBBIO, 2000, p. 486).
A influência do pensamento liberal sobre as declarações dos A doutrina dos direitos naturais, base das declarações dos
direitos humanos encontra-se presente desde a doutrina jusnaturalista, direitos do homem, como já vimos, é uma doutrina essencialmente
que marca a concepção de direitos naturais do homem. John Locke moderna, e surge com o jusnaturalismo quando Hobbes distingue
coloca que entre lex, como fonte de obrigações, e jus, como liberdade de
[...] para bem compreender o poder político e derivá-lo de sua
obrigações. Vale considerar também que se as palavras, ou conceitos
origem, devemos considerar em que estado se acham todos sobre direitos naturais, presentes na produção dos jusnaturalistas,
os homens naturalmente, sendo este um estado de perfeita correspondiam a enunciados filosóficos, éticos ou políticos, nas
liberdade para ordenar-lhes as ações e regular-lhes as posses e as declarações de direitos do homem, elas adquirem o caráter de
pessoas, conforme acharem conveniente dentro dos limites da afirmação de pretensões juridicamente reconhecidas e protegidas
lei de natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de contra eventuais violações, por parte dos cidadãos e dos poderes
qualquer outro homem. Estado também de igualdade, no qual é
recíproco cada poder e jurisdição, ninguém tendo mais do que públicos. Isto significa a transformação progressiva de uma aspiração
qualquer outro (LOCKE, 1978, p. 35). ideal secular em direito público subjetivo, originalmente, a partir
da inserção dos direitos naturais como direitos constitucionais,
A aproximação com as palavras das declarações dos direitos do nas constituições liberais e democráticas durante os dois últimos
homem e do cidadão é evidente, demonstrando que o seu conteúdo séculos, tornando os direitos naturais, direitos positivos.
não é uma novidade, apoia-se na concepção de indivíduo portador de Não se realizou a pretensão inicial, apregoada pelos liberais.
direitos naturais. que postulava uma sociedade de livres e iguais, e nem poderia.
Se analisarmos a declaração de Independência dos Estados Considerando o contexto do capitalismo, verificou-se a expansão de
Americanos de 1776 encontramos: Consideramos incontestáveis e evidentes em direitos e prerrogativas dos indivíduos num processo permeado por
si mesmas as seguintes verdades: que todos os homens foram criados iguais, que eles conflitos e limitações. Nesse processo, tiveram lugar a expansão de
foram dotados pelo criador de certos direitos inalienáveis, que entre esses direitos estão, direitos civis, políticos e sociais extensivos, e as questões de grupos
em primeiro lugar a vida, a liberdade e a felicidade. A Declaração dos Direitos específicos, como crianças, mulheres e outras chamadas minorias,
do Homem e do Cidadão de 1789, na França, começa por colocar: os em termos de proteção no interior dos estados nacionais. Neste
homens nascem livres e permanecem livres e iguais nos direitos. Por sua vez, a sentido, várias etapas foram percorridas até que a declaração dos
recente Declaração Universal dos Direitos do Homem inicia por: Todas direitos do homem adquirisse o caráter universal que hoje postula.
as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotadas de razão e Os conceitos de liberdade e igualdade sofreram, ao longo do
consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade. (art. tempo, modificações substanciais no interior da própria perspectiva
1) Enunciados expressando prescrições jurídicas válidas que precedem liberal. A mais recente Declaração Universal dos Direitos do Homem
algumas constituições dos Estados liberais e liberais democráticos comporta um significado conceitual de liberdade e igualdade, mais
modernos. Segundo Norberto Bobbio, o enunciado os homens nascem livres amplo que aquele de Hobbes e Locke, presentes nas declarações
e iguais não deve ser levada ao pé da letra, é necessário interpretá-la, pois: originárias, sem que lhes seja modificado o essencial. Essa distinção
82 83
se faz no sentido de que o conteúdo adquiriu maior riqueza e passou a ter ao mesmo tempo eficácia jurídica e valor universal. E o
densidade. A imagem do homem livre está associada ao homem indivíduo, de sujeito de uma comunidade estatal passou a ser também
que não deve tudo ao estado, por considerar a organização estatal sujeito da comunidade internacional, potencialmente universal”
como instrumento, e não como fim, e por isso, portador de liberdade (2000, p. 486). Porém, este mesmo autor faz considerações sobre
negativa, com referência aos direitos pessoais, e direitos tradicionais a dificuldade de realizar tais pretensões mesmo quando justificadas
de liberdade perante a lei. (art. 7-20). Este é um homem que participa pelos melhores argumentos, dizendo:
direta ou indiretamente da vida do Estado, como representante da Os direitos sociais são mais difíceis de proteger do que os
vontade geral, enquanto detentor da liberdade política, pela qual direitos de liberdade; a proteção internacional é mais difícil do
todo indivíduo tem o direito de participar do governo do seu próprio país, seja que a proteção no interior do Estado. Poderíamos multiplicar
diretamente, seja através de representantes livremente escolhidos (art. 21 § 1), e os exemplos do conflito entre o ideal e o real, entre as solenes
mais: a vontade popular é o fundamento da autoridade do governo; tal vontade declarações e a sua aplicação, entre a grandiosidade das
promessas e a miséria das realizações (BOBBIO, 2000, p. 486).
deve ser expressa através de eleições periódicas e legítimas, efetuadas com sufrágio
universal e igual e com voto secreto, ou segundo um procedimento equivalente de A Declaração Universal dos Direitos contém em si o ideal
livre votação (§ 3). Um homem livre é detentor de poder econômico de universalidade dos direitos humanos, com a pretensão de sua
que satisfaz as exigências da vida material e espiritual, correspondente validade em todos os tempos, para todos os homens, em todos os
à liberdade positiva em relação aos direitos à segurança social, direitos países, colocado originariamente pelo pensamento liberal, ou seja,
econômicos, culturais e sociais, enquanto indispensáveis para a sua traz a marca de uma tendência que pensava em desenvolvimento
dignidade e para o livre desenvolvimento da personalidade (art. 22-27). A isso do ser homem enquanto universal, através da mediação do mercado
se acrescenta o enunciado de que os seres humanos são iguais em como espaço determinante da sociabilidade. Neste sentido, em última
dignidade e direitos, estabelecendo uma íntima ligação entre o princípio instância, os direitos satisfizeram principalmente as necessidades
de igualdade, e o princípio de liberdade. Assim, atribui-se aos cidadãos da burguesia emergente, correspondentes à constituição da livre
liberdade negativa e política, acrescida da liberdade positiva, com o iniciativa econômica, livre manifestação da vontade e do pensamento,
reconhecimento dos direitos sociais. liberdade de ir e vir, liberdade política, livre mão de obra, livre
Sob outro aspecto, a Declaração Universal dos Direitos mercado, consagrando a igualdade de todos perante a lei, o direito à
do Homem propicia o debate acerca da transposição da proteção liberdade, à propriedade, à segurança, e o direito do cidadão de lutar
individual do sistema interno dos Estados, para o sistema internacional, contra a opressão. Com isso, são estabelecidas as linhas mestras
colocando, pela primeira vez, o indivíduo como sujeito de direito de uma emancipação política individual, concernente à sociedade
internacional. Os direitos naturais são reconhecidos pela Assembleia capitalista até a atualidade, na qual a vigência dos direitos humanos
Geral das Nações Unidas, órgão representativo da comunidade (sem ultrapassar os limites da concepção do indivíduo voltado para
internacional. Conforme aparece na Declaração: si mesmo, e longe de reconhecer praticamente o homem como ser
considerando que os Estados-Membros se comprometeram a genérico) assume uma face universalizante, ainda que se coloque o
promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito fosso existente entre a própria Declaração e sua aplicabilidade.
universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a
observância desses direitos e liberdades. Através da adoção de Em suma, neste nosso percurso pelo pensamento liberal,
medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por convém atentar para o fato de que a formulação original dos direitos
assegurar o seu reconhecimento e sua observância universais e naturais no jusnaturalismo decorre de uma concepção individualista
efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, da sociedade, cujo ponto de partida é um estado de natureza onde
quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição (1998). só há indivíduos, fechados na sua própria esfera de interesses, e a
representação do Estado como instância artificial. Ou seja, uma
Com isso, surge hipoteticamente, a possibilidade do indivíduo concepção na qual o indivíduo vem antes do Estado, não é a
ter proteção no âmbito do Estado, e também pleitear justiça contra o sociedade que cria o indivíduo, mas o contrário. Da mesma maneira,
próprio Estado em uma instância superior. Norberto Bobbio afirma: os direitos individuais vêm antes dos deveres dos indivíduos para
“Depois da Declaração Universal, a proteção dos direitos naturais
84 85
com a sociedade. Portanto, justifica-se que cada indivíduo seja tratado Referências
de modo a alcançar seus próprios fins - caracterizados, por excelência,
como felicidade enquanto finalidade individual. Constituindo a BOBBIO, N. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos
concepção ideal de um indivíduo ontologicamente autônomo, em
clássicos, Rio de Janeiro: Campus, 2000.
relação a todos os outros, e portador de igual dignidade em relação
a cada um, presente em formulações liberais e, mais recentemente, CHAUI, M. Convite à Filosofia, São Paulo: Ática, 1999.
entre as neoliberais. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Publicação
Compreende-se tal fenômeno de forma explícita, se da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos. Brasília, 1998.
considerarmos que, com o capitalismo, cria-se uma situação em que HOBBES, T. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiásti-
a polaridade entre indivíduo e sociedade aparece pela primeira vez co e Civil. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
na consciência dos homens. Essa nova situação social, em termos
LOCKE, J. Segundo Tratado Sobre o Governo. Os Pensadores. São Paulo:
objetivos e também nos aspectos fenomênicos que se desdobram
no plano da consciência, é um efeito necessário do nascimento Abril Cultural, 1978.
do capitalismo, e do processo que leva este último ao poder. Essa LUKÁCS, G. Per una Ontologia dell’Essere Sociale, Roma: Riuniti, 1981.
nova situação social pode ser traduzida em realidade somente pela MARX, K. A Questão Judaica, São Paulo: Moraes, 1991.
revolução francesa. Essa revolução não só põe em movimento as OLIVEIRA, M. A. de. Ética e Sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993.
forças sociais necessárias ao desenvolvimento da economia na nova ROUSSEAU, J. J. Do Contrato Social. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
sociabilidade, como também “proclama a unidade do homem como
_____________. Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigual-
homo economicus, já existente na teoria e na prática” (LUKÁCS, 1981,
p. CLII). Segundo Lukács, a revolução política francesa “rompeu dade Entre os Homens. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
a sociedade civil nas suas simples partes constitutivas, de um lado TEIXEIRA, F. J. S. O neoliberalismo em debate. Neoliberalismo e Reestru-
os indivíduos, de outro, os elementos materiais e espirituais que turação Produtiva: as novas determinações do mundo do trabalho.
constituem o conteúdo da vida, a situação civil destes indivíduos” São Paulo: Cortez, 1998.
(LUKÁCS, 1981, p. CLII).
Na vida social o particular efetivamente se sobrepõe ao
universal, e a inter-relação “individualidade e sociedade” aparece
fracionada na consciência dos homens como “dualismo entre citoyen
e homme (bourgeois) presente em cada membro da nova sociedade”
(Lukács, 1981, CLII). As teses do jovem Marx já contêm uma crítica à
forma pela qual a esfera do citoyen é degradada em relação ao bourgeois,
expressa na consciência filosófica pela concepção do indivíduo como
mônada, descolado da sociedade na qual vive e age (cf. Marx, 1991).
De modo que, essa concepção do indivíduo desligado da totalidade
reflete o fracionamento do homem, e expressa a alienação humana na
sociedade capitalista. Assim sendo, não obstante a imensa importância
da Declaração dos Direitos Humanos, em termos da emancipação
política nos marcos da ordem capitalista, é necessário atentar para o
fato que, de modo nenhum, ela pode representar o horizonte do fim
da história para a humanidade.
86 87
Crise mundial, Estado e políticas sociais
Introdução
O tema “mundialização” tem sido objeto de reflexão e de

intensos debates entre estudiosos das ciências sociais, pelo menos
nos últimos 20 anos. Seu tratamento é frequentemente associado
ao contexto de expansão do desenvolvimento capitalista com
modificações no modelo produtivo, e à crise instaurada desde
meados da década de 1970. É inegável que o capitalismo passou
por mudanças significativas nos últimos tempos, especialmente
em termos do peso que o capital financeiro, como bem pensou
Chesnais (1996), adquiriu no contexto de aprofundamento da
crise no campo produtivo e industrial. Abre-se um campo de
reflexões a respeito do predomínio do denominado “capital
fictício’’, movimentando-se entre inúmeros mercados financeiros,
sem um aparente lastro no campo produtivo. Entretanto, algo não
pode ser inventado pelos capitalistas: um modo de criar coisas
materiais, mercadorias e, consequentemente, a produção material
da riqueza sem dispor do trabalho humano. Certamente, esse
capital financeiro não surge do nada e precisa ser realimentado,
tendo por fonte a exploração do trabalho, ainda que pela via de
inúmeras mediações.
O período mais recente do capitalismo mundializado tem
particularidades interessantes e bastante complexas, principalmente
pelo intenso desenvolvimento das forças produtivas, aliadas à
avançada expansão do capital, e seus efeitos para a vida humana.
Constitui-se uma ordem financeira nutrida pela pobreza e pela
destruição do meio ambiente, relacionada ao agravamento da
fome e do trabalho supérfluo que, sob o influxo do desemprego,
gera inquietação por parte do capital e do trabalho. A consciência
a respeito da crise contemporânea em processo começa a merecer
interpretações dentro e fora da tendência marxista com relação
a aspectos sociais, econômicos e também políticos, conforme
indicamos neste texto.
89
Natureza da crise, estados nacionais e políticas sociais e “antimonopolista” no plano interno, permitindo reajustes e
reordenamentos das posições dos Estados nacionais sempre que
Ao que tudo indica, estamos hoje efetivamente diante de uma as exigências do capital se fizerem necessárias. Uma contradição
crise econômico-social. Informações sobre números, situações, entre interesses nacionais e internacionais dificulta a condução do
falências de grandes empresas aéreas e de outros conglomerados processo, no sentido da constituição de um governo mundial.
produtivos e financeiros, não saem dos meios de comunicação, sem A natureza da crise é vista de modos distintos e as respostas não
falar que os países desenvolvidos se encontram à volta com problemas são unívocas. Duas das tendências de interpretação são detectáveis
de toda natureza, que vão desde o desemprego e suas consequências entre os autores atuais. A primeira entende que estamos diante de
até dificuldades no âmbito do consumo de bens e de serviços. A uma crise decorrente de uma intensa reestruturação produtiva, com
eleição do presidente da maior potência mundial é recebida sob uma repercussões sobre a vida dos trabalhadores, e sobre a forma de atuação
intensa expectativa com relação à crise. No Brasil, contudo, todo dia do Estado. Seu impulso ao afastamento do Estado da economia, e de
se divulga que este será o país da América Latina menos atingido outros aspectos da vida social, seria conduzido pelo neoliberalismo.
por ela. No entanto, o IBGE divulgou recentemente que no Brasil,. Mais uma crise como aquela de 1929, cuja resolução ocorreria com
“o número de desempregados (desocupados) no primeiro trimestre a intervenção do Estado na economia, representando o retorno aos
de 2022 chegou a 11,9 milhões de pessoas; a taxa de desemprego direitos e garantias sociais, assim como durante o período em que
(desocupação) 11,1% e o número de desalentados ficou em 4,6 predominou o denominado “Estado de bem-estar social”.
milhões. Isso não é pouca coisa, ainda mais com os atuais índices A segunda tendência tem István Mészáros como um defensor,
de desigualdade social. Veem-se algumas tentativas governamentais e entende que a crise é de uma modalidade distinta da anterior.
de conter o desemprego em massa em empresas como a Embraer, A anterior seria uma crise cíclica, periódica ou conjuntural, cuja
por exemplo, e a evidente preocupação com a queda do crescimento característica central é que “evolui e é mais ou menos resolvida com
interno. Nos países centrais, trilhões de dólares são investidos no êxito num determinado enquadramento político” (MÉSZÁROS,
salvamento de empresas, bancos e em outros investimentos menores, 2006).12 Nesta modalidade, estaria incluída a crise econômico-social
para a dinamização da economia, numa tentativa de evitar a bancarrota. de 1929-1933, que deveria ser vista como uma crise dramaticamente
As estratégias de momentos anteriores para a resolução de crises muito severa, e que encontrou sua solução dentro dos parâmetros
como as guerras mundiais parecem não constituir alternativas na do sistema vigente, porque “uma crise não-estrutural afecta apenas
atualidade, e as guerras localizadas não têm surtido o efeito esperado algumas partes do complexo em questão e, portanto, não importa
para os planos do capital. quão severa possa ser relativamente às partes afectadas, não pode
A crise atinge particularmente o exercício das funções do colocar em perigo a sobrevivência continuada da estrutura global”
Estado, enquanto sistema de controle e comando político do capital. (MÉSZÁROS, 2006, p. 9).
Expressam-se contradições entre a necessária ação do Estado em A crise atual, ao contrário, é, na visão do autor, do tipo
nível global, quanto ao padrão de produção e circulação, enquanto fundamental, porque afeta o enquadramento político em si mesmo
uma exigência do próprio sistema mundializado, por exemplo, e na sua totalidade. Essa crise, que se manifesta também na política
a organização das estruturas corretivas em Estados nacionais. A como um dos seus momentos integrantes, é uma crise estrutural
expansão capitalista criou um padrão de vida mais elevado para do sistema capitalista, ou seja, “a crise do capital que estamos a
a classe trabalhadora nos países centrais, e menos elevado nos experimentar – pelo menos desde o início da década de 1970 – é
países periféricos, a partir do duplo padrão de atuação do Estado, uma crise estrutural universal” (MÉSZÁROS, 2006). Assim, significa
no centro e na periferia. Uma consequência da hierarquia entre os uma crise com vários caracteres fundamentais. Primeiro, ela atinge
Estados que administram as potências econômicas internacionais o capital de forma “universal”, não só a produtiva, mas todas as
mais poderosas, e que subordina outros Estados nacionais. Decorre unidades socioeconômicas são afetadas. Segundo, possui um
daí diferentes formas de encaminhamento das políticas econômicas
estatais que tenderão ao caráter monopolista no sentido internacional 12 Discurso de abertura do 13º Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça
do Trabalho, em Maceió, em 4 de maio de 2006.
90 91
alcance global, pois seus impactos alcançam todos os países. Terceiro, inclusive, pela experiência das tentativas de superação do capitalismo
sua temporalidade é “contínua” e não conjuntural. Por último, o no Leste europeu. Além disso, o desenvolvimento capitalista não foi
seu modo de evolução é “rastejante”, não se manifesta com grande capaz, e certamente não poderia sê-lo, considerando a contradição de
alarde. Neste sentido, constitui uma crise estrutural de um complexo classe a ele inerente, de eliminar a desigualdade social, nem mesmo
social em sua totalidade, que penetra todos os espaços, todos os em níveis adequados à manutenção do sistema. Fenômeno que não
subcomplexos e todas as partes constituintes. pode ser associado ao baixo desenvolvimento das forças produtivas,
Os modos diferenciados com que os Estados nacionais, nem à escassez da produção material de bens ou de alimentos. O
historicamente, interferiram nas contradições e desigualdades desenvolvimento das forças produtivas torna possível produzir
sociais são uma decorrência do processo de expansão do capital. muitas vezes mais do que a humanidade necessita. O real problema
Por exemplo, em tempos de capitalismo concorrencial, quando está no fato de que a produção tem por função predominante a
predominava o pensamento liberal, em linhas gerais, pregava-se reprodução do capital; a preocupação com a humanidade não
o ideal do Estado-força contra a reação, e a luta dos trabalhadores representa verdadeiramente essa função.
contra o capital. Aliado a isso, apregoava-se a desresponsabilização Diante da situação, boa parte dos analistas apela à ação do
do Estado, e a responsabilização dos indivíduos pelas refrações da Estado. Uma espécie de reedição do Estado de bem-estar social
questão social, como a pobreza, as consequências do desemprego, a foi pensada por Robert Castel (1998), como uma resposta à “nova
fragmentação familiar mediante o abandono de crianças e idosos, etc. questão social” resultante da criação de grupos de indivíduos
Essa função deveria ser realizada por outros complexos, a exemplo “inúteis para o mundo”, com a desfiliação dos trabalhadores
das organizações sociais, tendo principalmente a Igreja no comando, desempregados da “sociedade salarial”. Outros apelam ainda a um
uma prerrogativa que, com algumas modificações, é conservada até modelo de desenvolvimento socialista, cuja tomada de poder se
mesmo no capitalismo avançado. efetive no interior do Estado pela via democrática e parlamentar. A
No período que se seguiu, sob a influência do keynesianismo crise recente, no momento inicial, apontava para uma tendência de
em resposta à crise capitalista instaurada, o Estado interferiu desresponsabilização do Estado, em relação às refrações da questão
decisivamente na economia e incorporou reivindicações dos social nos moldes neoliberais, e mediante a criação de políticas
trabalhadores, inclusive agindo sobre as refrações da questão social focalizadas. Especialmente, sob a influência de Von Hayek (1994),
com políticas sociais públicas. Foi um período áureo para a aquisição em defesa do liberalismo, representantes do capital transferiram
de direitos, sob forte pressão dos trabalhadores, especialmente nos novamente essa função ao agora chamado “terceiro setor”,
países desenvolvidos. Certamente, não se trata de uma ação inocente composto por organizações sociais não estatais, ainda que realizada
para os ganhos do capital. Como diz Mészáros: com seu apoio, e destinação de recursos do Estado. Os últimos
No passado, até algumas décadas atrás, foi possível extrair do acontecimentos, revelando os maciços meios financeiros para salvar
capital concessões aparentemente significativas – tais como os o sistema nos Estados Unidos e Europa, podem ser indicativos
relativos ganhos para o movimento socialista (tanto sob a forma de outra tendência que a história deverá mostrar proximamente.
de medidas legislativas para a ação da classe trabalhadora como Certamente, se boa parte dos recursos estatais fosse destinada
sob a de melhoria gradual do padrão de vida, que mais tarde se a melhorar as condições de vida da população trabalhadora, os
demonstraram reversíveis), obtidos por meio de organizações de
defesa do trabalho: sindicatos e grupos parlamentares. O capital teve modos de manifestação das condições de vida das classes populares
condições de conceder esses ganhos, que puderam ser assimilados seriam outros. Ainda assim, o questionamento estaria no limite de
pelo conjunto do sistema, e integrados a ele, e resultaram em determinada forma de Estado, e não de sua superação - esta última
vantagem produtiva para o capital durante o seu processo de auto é a questão central.
expansão (MÉSZÁROS, 2002, p. 95, grifos do autor). Em nosso entendimento, as medidas estatais, não obstante o
potencial minimizador sobre os efeitos da desigualdade social, não
A crise que se instaura em meados da década de 1970 põe fim têm a capacidade de eliminá-los, pois a sua eliminação significaria,
a esse momento em meio à denominada reestruturação produtiva, conforme já fora visto por Marx, a eliminação do próprio Estado,
encontrando uma classe trabalhadora subsumida ao capital e abalada, e das relações a ele constitutivas enquanto uma totalidade social.
92 93
Ou seja, “O Estado não pode eliminar a contradição entre a função função conservadora no conjunto da totalidade social.
e a boa vontade da administração de um lado, e os seus meios bem Ante o fato historicamente identificável, de que as respostas do
como as suas possibilidades de outro, sem eliminar a si mesmo, uma Estado variam no tempo segundo as exigências do desenvolvimento
vez que ele repousa sobre tal contradição” (MARX, 1995, p. 80). Se capitalista, e da reprodução do capital, a crítica à ação do Estado,
resta alguma dúvida de quem é esse Estado, basta observar os trilhões limitada à administração das políticas sociais sem o desvelamento
de dólares destinados a salvar bancos que, de repente, apareceram no do seu caráter essencial, não contribui para a apreensão dos reais
cenário mundial. problemas humano-sociais. A questão decisiva é que a superação
Em sua essência, o Estado moderno é portador de limites reais; do sistema do capital só pode ser realizada por dentro, e a partir
não tem fins próprios, devendo atender e assegurar os fins da sociedade. da base econômico-social que o sustenta; não basta tomar o seu
A boa administração dos recursos públicos, a justa formulação das Estado para minar essa base. Uma consciência crítica deve perceber
políticas, o controle da população sobre os serviços públicos, por mais a necessidade de tomar nas mãos o destino do homem, e as
relevância que tais elementos assumem na contenção dos aspectos condições atuais, na certa, não diminuem em nada a importância
perversos da desigualdade social, não permitem atribuir ao Estado fundamental da ação política dos homens na condução dos destinos
a inteira resolução de tais situações. A afirmação da autonomia do da humanidade. A solidariedade internacional entre trabalhadores
Estado, ante sua base sociogenética, significa uma inversão do seu e o apoio aos movimentos internos de luta contra o capital, e seu
caráter essencial, e essa inversão na captura da essência do Estado, e da caráter destrutivo, continua a ser um ponto fundamental para a
política, vela o caráter alienado (no sentido de Entfremdung) das formas criação de uma humanidade verdadeiramente humana.
sociais de poder. Por isso mesmo, na esteira de Marx, compreendemos
que a problemática da causa e resolução da desigualdade social, Referências
enquanto desigualdade de classe, não se inscreve simplesmente no
âmbito dos complexos particulares, como a política, mas dizem respeito
CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário.
à práxis humana em sua totalidade. Sua resolutividade torna-se possível
mediante a tarefa teórico-prática dos homens, na luta pela superação Petrópolis, Vozes, 1998.
da sociedade em sua inerente desigualdade social. Impõe, conforme CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo, Xamã, 1996.
pensa Mészáros, a busca pela igualdade substantiva, igualdade entre HAYEK, F. O Caminho da Servidão. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército,
pessoas sem a imposição das exigências da ordem sociometabólica que 1994.
imperam sobre elas. MARX, K. Glosas críticas marginais ao artigo O Rei da Prússia e a Refor-
ma Social. De um prussiano. Belo Horizonte, Práxis, n. 5, 1995.
Considerações Finais
MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria de transição. São
Paulo, Boitempo, UNICAMP, 2002.
Com a crise estrutural, a desigualdade social ganha novos
contornos mediante a contradição entre a tendência à mundialização MÉSZÁROS, I. A crise estrutural da política. Disponível em http://resistir.
do capital, e as exigências de sua reprodução no plano dos Estados info/. Acesso julho 2006.
nacionais. Além de diferentes níveis de condições de vida das classes SANTOS. E. P., COSTA, G.M. Questão Social e Desigualdade: Novas formas,
trabalhadoras entre os Estados centrais e periféricos, a existência de velhas raízes. Revista Ágora, n.4, (on line), 2006. Disponível em: https://
trabalhadores redundantes, resultante do desemprego, contribui para ibge.gov.br/explica/desemprego.php Acesso em 13/05/2022.
gerar problemas sociais e econômicos graves, não só nos países mais
pobres, mas também nos mais poderosos, dificultando o papel de coesão
social desempenhado pelo Estado. A tendência das políticas sociais é
de focalização nos problemas peculiares a cada Estado em particular,
e nos níveis mais gritantes da pobreza, mediante a reafirmação de sua
94 95
PARTE II
EXPRESSÕES CONTEMPORÂNEAS DA
QUESTÃO SOCIAL
Pobreza mundializada e os influxos do
desemprego como expressão contemporânea da
questão social
Introdução
O texto aqui apresentado tem por objetivos articular os influxos

do desemprego, como expressão da questão social, aos processos de
expansão capitalista em suas manifestações na atualidade, e analisar
o caráter do binômio “pobreza e desemprego” na América Latina,
como objeto de preocupação por parte de organismos internacionais.
Consideramos que a pobreza é hoje um fenômeno de alcance
mundial, atingindo níveis muito altos na sociedade contemporânea,
que permanece desafiando as propostas de intervenção estatal,
mediante políticas de âmbito nacional ou internacional. Um
fenômeno presente atualmente em países desenvolvidos e periféricos
ante a crise contemporânea do capital é que o desemprego adquiriu
expressivo crescimento, configurando uma situação de proporções
preocupantes pelo seu caráter crônico e ascendente, contribuindo
para o agravamento da pobreza no mundo.
A expansão econômica mundial significou também a
mundialização da pobreza, ou pelo menos de sua apreensão como
um problema humano geral, de modo que a estimativa, contida no
relatório do Banco Mundial de 1990, apontava que “1 bilhão de
pessoas viviam na pobreza naquele ano” (ROCHA, 2005, p. 10).
Configura-se uma situação na qual alguns organismos internacionais
mostram preocupação com o pauperismo, e propõem ações políticas
no sentido de sua redução. Entretanto, a avaliação dos resultados por
parte de organizações diversas contra a pobreza é de que as estratégias
de crescimento conduzidas pelo Banco Mundial “nem sempre são
suficientes para melhorar as oportunidades de trabalho e as condições
de vida dos pobres” (Correspondente da IPS, 11/12/2006).
Percepção análoga à de Mészáros quando diz que “a intervenção do
FMI, organização dos Estados Unidos que dita ordens pretendendo
melhorar as condições econômicas dos países ‘em desenvolvimento’
mais afetados pela crise, tem, na verdade, piorado as condições dos
99
desempregados” (MÉSZÁROS, 2006, p. 30). Não existe consenso de direcionar o desenvolvimento econômico-social para a resolução
quanto às formas de intervenção na pobreza por parte de organismos dos problemas humanos. Atinge não somente a periferia, mas afeta
estatais ou não estatais sobre o problema; além disso, sua percepção e o mundo capitalista mais desenvolvido, configurando a denominada
ação estão limitadas aos seus aspectos fenomênicos. globalização do desemprego. Sua tônica é a precarização do
Se alguns Estados particulares conseguiram eliminar a miséria trabalho ou trabalho temporário, que se constitui em uma ameaça
absoluta, em especial nos países centrais europeus, fizeram-no à aos trabalhadores empregados, gerando incertezas e inseguranças
custa de outros menos privilegiados, mas a eliminação não significou quanto ao futuro. Este problema do desemprego ascende na esteira
o desaparecimento da pobreza, nem mesmo nos Estados Unidos, da crise estrutural do capital, desde a década de 1970, e atinge
como mostra o editorial do The Nation: “A taxa de pobreza no não só trabalhadores não qualificados, mas também os altamente
último ano – 13,7% – era mais elevada do que em 1989, apesar dos qualificados, expressando-se mesmo em países como Grã Bretanha,
sete anos de crescimento quase ininterrupto. Aproximadamente 50 Japão e Estados Unidos. Analisando o problema Mészáros pontua:
milhões de americanos – 19% da população – vivem abaixo da linha Como ainda hoje isso permanece, de acordo com os números
da pobreza. Aí se inclui uma em cada quatro crianças abaixo dos oficiais – grosseiramente subestimados –, há mais de 40
dezoito anos, um em cada cinco cidadãos adultos e três em cada milhões de desempregados nos países industrialmente mais
cinco famílias” (The Nation, 1998a, p. 3). desenvolvidos. Desse número, a Europa conta com mais de
O crescimento econômico no país mais desenvolvido do planeta, 20 milhões e a Alemanha – outrora elogiada por produzir o
‘milagre alemão’ – ultrapassou a marca dos 5 milhões. Em um
ainda que visto de forma otimista por seus analistas, não contribuiu país como a Índia – reverenciado pelos organismos econômicos
sequer para a diminuição da pobreza instalada, uma demonstração tradicionais por suas realizações na direção do desenvolvimento
de que o metabolismo social engendrado pelo desenvolvimento –, há não menos do que 336 milhões de pessoas desempregadas
capitalista favorece o crescimento do capital, mas não implica, e outros milhões sob condições inadequadas de trabalho, cujos
nem ontem nem hoje, a eliminação das desigualdades sociais. Ao dados não foram registrados (MÉSZÁROS, 2006, p. 30).
contrário, gera concomitantemente a riqueza e a miséria, que em
suas expressões fenomênicas não são por si mesmas reveladoras, Dados divulgados atualmente por UOL Dinheiro 27/05/2009
pois “a conexão interna entre o tormento da fome das camadas mais trazem informações que a “taxa de desemprego registrada em abril
laboriosas de trabalhadores e o consumo esbanjador, grosseiro ou na zona do euro – grupo de países da UE (União Europeia) que
refinado dos ricos, baseado na acumulação capitalista, só se desvela adota o euro como moeda única, integrada por 16 países – ficou
com o conhecimento das leis econômicas” (MARX, 1996, p. 286). A em 9,2%, um nível recorde desde setembro de 1999 - informou
lei geral da acumulação capitalista expressa como o capital se apropria o Eurostat (órgão estatístico da UE)”. E ainda que “o número
da força de trabalho através dos diversos mecanismos de exploração de desempregados nos 16 países da zona do euro chegou a 14,5
e dominação, com a finalidade de assegurar reprodução e acumulação milhões de pessoas. Em março, o índice registrado foi de 8,9%”.
da riqueza por parte dos capitalistas e, contraditoriamente, produz a A economia norte-americana, em recessão desde 2007, já perdeu 6
acumulação da miséria da classe que de fato gera valor para o capital. milhões de empregos, requerendo medidas diretas de intervenção
Se as formas de manifestação dessa lei geral modificaram-se ao longo estatal para salvar bancos e empresas.
do desenvolvimento capitalista, a concomitante geração de riqueza e Em junho de 2021, a Organização Internacional do Trabalho
miséria tem sido uma constante no tempo. (OIT) aponta que
os impactos da pandemia de covid-19 colocaram 108 milhões
de trabalhadores na pobreza no mundo inteiro e a recuperação
Desemprego e questão social do nível de emprego no patamar anterior ao da crise sanitária
deve acontecer somente em 2023. Com a redução de postos de
O desemprego é um componente das transformações trabalho, o relatório da entidade estima que o desemprego deve
societárias contemporâneas e caracteriza a desumanidade presente no atingir 220 milhões de pessoas ainda neste ano.
capitalismo, tendo em vista que resulta da incapacidade do sistema
100 101
Na estimativa da OIT, em 2022, 205 milhões de pessoas estarão em que emerge uma consciência do proletariado antagônica ao
desempregadas em todo o mundo, acima dos 187 milhões capital, pressionando pela regulamentação das horas trabalhadas,
nesta situação em 2019. O diretor técnico do Dieese, Fausto
Augusto Junior, lembra que, para promover a recuperação dos contra a exploração do trabalho infantil e feminino - da qual
postos de trabalho, é necessário que o crescimento econômico resulta o estabelecimento de legislação pelo Estado. Desse modo,
seja retomado primeiro. Por outro lado, destaca também que a entendemos que se pode configurar a questão social a partir da
pandemia acentuou os problemas de desigualdade e os países que articulação entre os determinantes essenciais da acumulação
não controlaram a pandemia de covid-19 vão sofrer ainda mais. capitalista, da reação dos trabalhadores através da luta de classes
contra a exploração, das respostas do Estado no sentido de
O desenvolvimento capitalista, ainda que seja o mais dinâmico conservação da sociedade, e na contenção de conflitos entre
da história, acaba por gerar um número cada vez maior de seres classes sociais.
humanos supérfluos para o seu processo produtivo. Uma necessidade O desemprego se torna crônico e se apresenta diferente das
ditada pelo antagonismo interno do capital, cujo objetivo de reduzir formas anteriores de sua manifestação, porque “as contradições
ao mínimo o tempo de trabalho, com vistas à otimização do lucro, ocorridas em qualquer uma de suas partes específicas complicam
apresenta-se como uma tendência desumanizadora, transformando em e agravam os problemas de outras partes e, consequentemente,
toda parte a população trabalhadora numa força de trabalho supérflua. da sua totalidade” (MÉSZÁROS, 2006, p. 32). Por isso mesmo,
O desemprego atinge toda uma população, inclusive as classes médias. organismos internacionais buscam intervir propondo políticas de
A multiplicação dessa força de trabalho representa, segundo Mészáros: desenvolvimento para os países afetados pela crise, evidenciando
“uma carga potencialmente explosiva e extremamente instável” (2002, que o desemprego se torna uma ameaça ao próprio sistema do
p. 342), trazendo como tendência a produção de uma “dinamite social” capital, com tendência a se agravar cada vez mais, sem que haja
na própria estrutura do sistema do capital, pois ele mina a estabilidade nenhuma solução à vista até o momento.
social desencadeando sérias consequências, que vão desde a alta taxa
de criminalidade entre os jovens, até o perigo das graves agitações
sociais. Potencializa a denominada questão social, uma clássica forma O binômio pobreza e desemprego na América Latina
de resistência dos trabalhadores às condições de vida e de trabalho, sob
novas bases, caracterizando um limite ao controle sociometabólico do A diversidade das características geográficas, culturais,
próprio capital. linguísticas e étnicas da América Latina é uma realidade, ainda que se
Desde sua forma clássica no século XIX, a questão social não deva considerar uma herança colonialista, comum aos diversos países,
pode ser reduzida simplesmente a um conceito referido ao campo da conforme afirma Donghi (1976), cuja expansão secular lhe assegura
política, embora essa dimensão implícita na resistência do proletariado alguma unidade histórica, e uma posição no plano econômico e
à exploração tenha sido o impulso originário para sua apreensão teórica. político-social no mundo moderno. Seguindo um processo sempre
Trata-se da expressão de algo efetivamente existente: a necessária e permeado pela relação entre o continente latino-americano e uma
conflituosa contradição entre capital e trabalho, a extração da mais- metrópole, originalmente, a Espanha para a maioria dos países,
valia como fonte de acumulação do capital, seu influxo na redução da e Portugal para o Brasil, submeteu povos com variados níveis
necessidade de força de trabalho, e a apropriação privada dos meios culturais e de conhecimento ao modelo de colonização, destruindo-
e do produto do trabalho. Marx percebeu que quando a produção os quando necessário, e minando suas formas de resistência sempre
capitalista precisa de mais força-de-trabalho, ela contrata mão-de-obra, que desafiaram o status quo. Na sequência do desenvolvimento, o
quando não precisa, lança os trabalhadores no desemprego - isso é um cerne dessa relação se desloca para os Estados Unidos, uma vez que
componente da reprodução do capital. Sua tendência é produzir mais este último se torna o mais avançado polo central do capitalismo em
com menos trabalhadores, de modo que sua requisição está sujeita a expansão. No fundamental, a riqueza da terra contribuiu de modo
fortes flutuações (ver O Capital, cap. V). decisivo para a prosperidade das metrópoles capitalistas, gerando
A reação dos trabalhadores em tal momento é típica da luta concomitantemente uma dependência que se acentua gradualmente,
de classes contra essa condição de exploração, num momento e permanece na atualidade.
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Como diz Eduardo Galeano: “Desde o descobrimento até os sobressaem dados do PNUD - União Europeia, 1999 como:
nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, São pobres 75% dos guatemaltecos, 73% dos hondurenhos,
norte-americano, e como tal tem-se acumulado e se acumula até hoje 68% dos nicaraguenses e 53% dos salvadorenhos. Nos
nos distantes centros do poder” (GALEANO, 1984, p. 14). A teia setores indígenas os índices podem ser ainda piores. Assim,
de relações e da produção aí constituída envolve recursos materiais na Guatemala, 86% da população indígena é pobre, enquanto
e capacidades humanas, incorporando-as à engrenagem capitalista que dos não-indígenas apenas 54% o são. Na Venezuela, as
estimativas oficiais assinalam que 80% da população é pobre.
mundial, de modo que “nossa riqueza gerou sempre a nossa pobreza para No Equador calcula-se que 62% da população está abaixo do
alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos” (idem, limite da pobreza. No Brasil, 43,5% da população ganha menos
p. 14. Grifos na obra). Essa tem sido historicamente a posição da de dois dólares por dia e 40 milhões de pessoas vivem em
América Latina no contexto internacional, uma posição periférica estado de pobreza absoluta. Na Argentina, a taxa de pobreza
que transfere riqueza aos centros capitalistas, acumulando riqueza e das províncias do nordeste é de 48,8% e, a das províncias do
noroeste, 46% (KLIKSBERG, 2002, p. 16).
pobreza em maior ou menor grau em seus países, sempre expressas
em profundas desigualdades sociais, como convém ao contraditório Na atualidade, com o aprofundamento da crise estrutural do
progresso do sistema do capital e seu modelo societário. capital e da crise sanitária ocasionada pela COVID-19 no mundo
O fluxo da exploração capitalista na América Latina foi observamos que:
deslocado do continente europeu para os Estados Unidos, desde a
Segunda Guerra Mundial. Neste processo, medidas próprias à sua O número de pessoas vivendo em extrema pobreza na América
expansão repercutem muito fortemente nos países latino-americanos Latina e Caribe atingiu a marca de 86 milhões. O dado
foi divulgado nesta quinta-feira (27) pela Comissão Econômica
e na tentativa de adaptação às exigências de crescimento, ou mesmo para a América Latina e o Caribe (CEPAL), através do Relatório
de solução de crises. Os efeitos negativos sempre recaem sobre os anual Panorama Social da América Latina 2021. A comissão
trabalhadores, especialmente agravando as condições de pobreza. estima que a taxa de extrema pobreza na região aumentou de
Exemplo palmar desta situação em década recente é que, com o 13,1% da população em 2020 (cerca de 81 milhões de pessoas)
ajuste do México mediante a liberalização e desregulamentação para 138% em 2021, um retrocesso de 27 anos nesse índice.
Esse aumento na extrema pobreza coloca os territórios da
do seu mercado monetário e financeiro, sob forte pressão política América Latina e Caribe como mais vulneráveis do mundo
interna e externa: “O desemprego alcançou 25% da população diante da crise sanitária e econômica atual, segundo a avaliação
ativa, enquanto os salários sofreram uma perda de poder aquisitivo da CEPAL.
da ordem de 55%, e mais dois milhões e meio de pessoas caíram
abaixo do limite da ‘pobreza extrema’. Foi esse o preço que os Mas o que faz com que esse quadro apareça como inquietante
mexicanos pagaram por terem se ‘adaptado’ ao jogo dos mercados aos organismos internacionais, e a região latino-americana como
financeiros” (CHESNAIS, 1996, p. 31-32). uma região de risco, devido à pobreza e à desigualdade social?
O aumento da pobreza e seus impactos sobre as populações Atualmente, a pobreza e o desemprego são reconhecidamente
latino-americanas constituem tema de atenção inclusive para fenômenos de proporções internacionais, quando a absorção
organismos internacionais, diante do quadro traçado por Bernardo de mão-de-obra industrial passa a constituir uma ameaça à
Kliksberg.13 Quadro este considerado inquietante pelo Diretor da reprodução do sistema. Na percepção de Chossudovsky, professor
UNESCO no Brasil, ao comentar que “a questão social se apresenta de economia da Universidade de Ottawa, e consultor da OIT, o
hoje no centro do cenário histórico da região” (2002, p. 7). Aí “desemprego mundial torna-se uma ‘alavanca’ da acumulação de
capital global que ‘regula’ os custos do trabalho em cada economia
nacional. A pobreza de massa regula os custos internacionais do
13 Autor de livros traduzidos para diversas línguas, prestou assessoria a mais de 30
trabalho” (1999, p. 70). Neste sentido, é funcional à continuidade
países em gestão pública, desenvolvimento e gerenciamento social. Assessor, entre
outros, da ONU, OIT, OEA, UNICEF, UNESCO, diretor do projeto Regional para
da reprodução do capital.
a América Latina de Modernização Estatal da ONU. É Coordenador do Instituto Por outro lado, o binômio pobreza e desemprego contém
Interamericano para o Desenvolvimento Social do BID (Washington). potencialmente um caráter explosivo, presente já no surgimento da
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questão social quando o desenvolvimento industrial e a ampliação no ‘desemprego oculto’, nem sempre captado pelas estatísticas
dos mercados no século XIX, em sua dinâmica interna, afetavam oficiais) (01/02/2009, grifos do autor).
diretamente as condições de vida e de existência social do operariado
emergente, em termos materiais e políticos. Por isso mesmo, No Brasil, ressalvadas as características particulares do seu
expressões da questão social, originalmente manifesta em problemas desenvolvimento interno, a reestruturação produtiva alcança a sua
sociais, como precariedade de moradia, saúde, mendicância, trabalho forma mais intensa, nos anos de 1990. O modelo da acumulação
infantil, entre outros, na verdade decorrentes do empobrecimento do flexível e do ideário japonês associados, entre outras coisas, à
trabalhador pela desigualdade de classes, são geradores de instabilidade subcontratação, terceirização da força de trabalho, e transferência
social que não interessa ao sistema, porque vem acompanhado de de plantas de unidades produtivas, conduz ao desemprego e à
consequências sociais (desde o aumento da criminalidade entre precarização da força de trabalho. As práticas toyotistas se mesclam
jovens, até o perigo de agitações sociais desestabilizadoras). Daí a com o modelo fordista, denominado por Ricardo Antunes como
preocupação dos ideólogos do capital. “fordismo periférico e subordinado” (2006, p. 19). Aliado às
Em relação ao chamado Terceiro Mundo, no qual a América condições político-sociais, em que ocorre a flexibilização e a
Latina é incluída, as soluções apresentadas pelo capitalismo, e seus desregulamentação dos direitos sociais, o modelo impõe a baixa
analistas para a crise hoje instaurada, têm se limitado a promessas remuneração da força de trabalho como atrativo para o capital
de que a indústria de serviços, e o impacto econômico positivo da estrangeiro. Neste processo de reestruturação produtiva, a destruição
geração de todo tipo de emprego nas indústrias de base (indústrias dos postos de trabalho põe o Brasil no caminho da tendência
de chaminés), cujo valor criado seria transferido no intercâmbio com mundial do desemprego em massa, quando ocupa em 2002 a quarta
o Terceiro Mundo, constituiriam formas utilizadas para compensar o posição, perdendo somente para Índia, Indonésia e Rússia. Tanto
desaparecimento dos empregos na indústria. Porém, sem encontrar que Márcio Pochmann comenta:
uma saída econômica adequada, o remédio para dar continuidade às O desemprego vem aumentando continuadamente no Brasil
deficiências, e disfunções ocasionadas pelo desemprego crônico em desde 1990 e atinge atualmente níveis jamais vistos anteriormente.
todos os países que estão sob o domínio do capital, é promover uma Além da crescente taxa de desempregados, constatam-se
alterações substanciais também na composição do conjunto
maior disciplina do trabalho com maior eficiência. O resultado dessas de trabalhadores que não têm emprego, sobretudo quando
medidas verifica-se na redução dos níveis salariais, na precarização se consideram as variáveis de classes de rendimentos familiar,
da força de trabalho cada vez mais crescente, atingindo até os países gênero, raça e escolaridade (POCHMANN, 2006, p. 60).
de capitalismo avançado, e na tendência ao aumento generalizado do
desemprego. Em artigo sobre a crise, Antunes comenta: A partir daí, o desemprego no Brasil adquire relevância
No meio do caminho, uma massa monumental de assalariados em relação a momentos anteriores, tendendo à ampliação, o que
vivenciando uma precarização estrutural do trabalho em escala contribui para o agravamento da pobreza e da desigualdade social no
continental. Crianças, negros, índios, homens e mulheres país. Informações de UOL Economia em 08/06/2009, sobre dados
trabalhando no fio da navalha. Conforme recordou Mike Davis, do IBGE, dão conta de que o emprego da indústria cai ao menor
em seu ‘Planeta Favela’ [ed. Boitempo], ‘não é raro encontrar [na nível desde 2001, apresentando-se como uma espécie de gangorra,
América Central] empregadas domésticas de sete ou oito anos
com jornadas semanais de 90 horas e um dia de folga por mês’ em que ocorrem momentos de recuperação e de queda nos últimos
(‘Child Domestics’, Domésticas Infantis, relatório da Human anos. Uma configuração que se aproxima da tendência mundial,
Rights Watch de 10/6/2004). Com a crise, o quadro se agrava: vista aqui como desemprego crônico, pois as medidas para contê-lo
no recentíssimo ‘Panorama Laboral para América Latina e Caribe somente se revelam paliativas, diante das condições estruturais do
– 2008’ (Organização Internacional do Trabalho, 27/1), o cenário modelo societário capitalista atual.
social apresentado é de tal gravidade que beira a devastação. Se
o desemprego diminuiu nos últimos cinco anos, o relatório da A redução dos índices de pobreza aqui relatada está sujeita à
OIT antecipa que, ‘devido à crise, até 2,4 milhões de pessoas vulnerabilidade das ações estatais, que sofrem variações conforme
poderão entrar nas filas do desemprego regional em 2009’, os projetos governamentais. Ao mesmo tempo, atuam somente
somando-se aos quase 16 milhões já desempregados (sem falar sobre os efeitos do pauperismo, sem atingirem os aspectos essenciais
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que compõem a causalidade das relações sociais capitalistas, em na história, considerando o momento em que o desenvolvimento
suas leis de expansão e de acumulação, criadoras das desigualdades das forças produtivas alcança níveis altíssimos, capaz de sanar
sociais e de seu caráter de classe. Portanto, é preciso reconhecer que problemas básicos do conjunto dos homens nos mais diversos
as medidas estatais, não obstante o potencial minimizador sobre os aspectos, ninguém, em sã consciência, pode discordar.
efeitos do pauperismo, não têm a capacidade de eliminá-lo, pois a Resta pensar, entretanto, se a lógica acumulativa e expansionista
sua eliminação significaria, conforme visto por Marx, a eliminação do capital permite uma saída dessa natureza, visto que esta
do próprio Estado, e das relações a ele constitutivas enquanto uma comporta em sua estrutura básica as causalidades da questão social,
totalidade social: “O Estado não pode eliminar a contradição entre a um fenômeno permeado pelo impulso alienador, ontologicamente
função e a boa vontade da administração de um lado, e os seus meios presente no capitalismo, expresso no empobrecimento dos
bem como as suas possibilidades de outro, sem eliminar a si mesmo, indivíduos, em contraposição ao intenso desenvolvimento das forças
uma vez que ele repousa sobre tal contradição” (MARX, 1995, p. 80). produtivas. Na expansão capitalista, é impossível desconhecer,
Em sua essência, o Estado moderno é portador de limites reais, até mesmo para organismos internacionais, que o desemprego
não tem fins próprios, devendo atender e assegurar os fins da sociedade. “alavanca” a acumulação global do capital, e a pobreza ”regula”
A boa administração dos recursos públicos, a justa formulação das os custos do trabalho, favorecendo a manutenção das disparidades
políticas, o controle da população sobre os serviços públicos, por regionais e entre países. A América Latina carrega os efeitos da
mais verdade que tais elementos representem na contenção dos expansão capitalista, e da reestruturação sob diferentes formas
aspectos perversos da pobreza, não permitem atribuir ao Estado a de adaptação e de resistência às exigências internacionais, com
resolução do pauperismo, pois essa forma de apreendê-lo significaria respostas econômicas e políticas diversas por cada estado nacional,
uma inversão na essência do Estado, afirmando a autonomia deste mas sua posição no cenário mundial não sofreu até agora mudanças
complexo ante a sua base sociogenética. A inversão na captura da substanciais. Por isso mesmo, na esteira de Marx, compreendemos
essência do Estado e da política vela o caráter alienado (no sentido que a problemática da causa e resolução do binômio pobreza e
de Entfremdung) das formas sociais de poder, ainda que suas formas desemprego não se inscreve simplesmente no âmbito do Estado.
históricas variem no tempo e assim devam ser consideradas. Sua resolutividade torna-se possível mediante tarefa teórico-prática
e sociopolítica dos homens, na luta pela superação dessa sociedade
Considerações Finais em sua inerente desigualdade social.
Dois elementos, desemprego e pobreza, estão imbricados Referências

ao processo contemporâneo de reprodução do capital, cuja lógica
não inclui a preocupação com os seres humanos. Os representantes ANTUNES, R. A era da informatização e a época da informalização: riqueza e
do capital não estão desatentos ao problema de que o potencial miséria do trabalho no Brasil. Riqueza e miséria do trabalho no Brasil.
explosivo aí contido expressa contradições de classe, pondo em risco São Paulo: Boitempo, 2006.
o sistema. Por isso mesmo, a situação da América Latina é percebida
como inquietante por alguns ideólogos do capital, que apontam para ____________. Trabalho de Luto. Especial para a Folha, 01/02/2009.
a necessidade de uma institucionalidade, conforme propõe Kliksberg, CHESNAIS, F. A Mundialização do Capital. S. Paulo: Xamã, 1996.
mediante a criação de um modelo de política social agressivo e CHOSSUDOVSKY, M. A Globalização da Pobreza: impactos das refor-
ativo administrado pelo Estado, sob a perspectiva de que: “O tema mas do FMI e do Banco Mundial. São Paulo: Moderna, 1999.
não admite adiamentos. É um ‘escândalo moral’ existirem no final DONGHI, H. História da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
do século XX, milhões e milhões de latino-americanos que vivem GALEANO, E. As Veias Abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e
com suas famílias no meio de privações que cerceiam seus direitos
humanos mais essenciais” (2002, p. 70. Grifos do autor). Que do Terra, 1983.
ponto de vista ético se trata de uma desumanização sem precedentes KLIKSBERG, B. América Latina: uma região de risco – pobreza, desigual-
108 109
dade e institucionalidade social. UNESCO, 2002.
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. Economia, Política e
Filosofia. Rio de Janeiro: Melso, 1963. Capitalismo, crise e destruição ambiental
________. Glosas críticas marginais ao artigo O Rei da Prússia e a Reforma So-
cial. De um prussiano. Práxis, Belo Horizonte, n. 5, 1995.
________. O Capital, tomo I, livro 1. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Introdução
MÉSZÁROS, I. Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2002.
POCHMANN, M. O desemprego na globalização: a nova divisão interna- Na atualidade, a problemática do meio ambiente tem ocupado
cional do trabalho e os caminhos que o Brasil escolheu. São Paulo: um espaço sempre mais relevante nas relações internacionais. As
Boitempo, 2001. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.
tentativas de tratados, acordos, convenções e outros encontros
internacionais com amplas agendas, particularmente desde a década
br/trabalho/2021/06/desemprego-oit-mundo-dieese/ Acesso em de 1980, configuram a existência de pautas de negociação imersas em
13/05/2022. conflitos e contradições de interesses entre países. Parece instaurar-
se uma reorientação da geopolítica com contornos mundiais, a qual
ressalta temas ambientais relacionados à devastação da natureza, e
até mesmo ao esgotamento de fontes naturais e seus efeitos para a
vida na Terra. Assim, o próprio uso das fontes naturais, por Estados
particulares, aparece como ponto de debate político internacional,
extrapolando questões de autonomia nacional. Não é ocasional que
a preservação da Amazônia tenha adquirido o status de interesse
mundial. Por outro ângulo, emergem formas de resistência política
à devastação do meio ambiente, e em defesa da vida na Terra,
as quais adquirem destaque na mídia, como o aparecimento de
movimentos sociais e de partidos políticos antenados com questões
ambientais. Na certa, uma expressão de que a problemática do meio
ambiente adquiriu uma significação importante nas relações sociais,
requerendo atenção no plano político, e suscitando interpretações,
enquanto fenômeno de caráter natural e social.
A dependência do homem em relação à natureza é, de fato,
algo inquestionável. Trata-se de uma evidência que se expressa,
conscientemente, na realidade mais imediata, no sentido de que
a natureza é a fonte da vida humana. Desse modo, a eliminação
dessa fonte de vida pode significar o próprio desaparecimento da
vida no planeta Terra. Tanto que a destruição do meio ambiente, a
poluição das águas e do ar, provocando a mortandade de diversas
espécies animais, dificultando a vida humana com o aparecimento
de doenças, e tornando mais complexos os processos produtivos,
têm suscitado debates os mais diversos, povoando os noticiários
com muita frequência. Na realidade, nos marcos da produção
capitalista, o problema da relação homem/natureza tem se agravado
em matéria de devastação do meio ambiente, avaliado como um
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risco à continuidade do processo de desenvolvimento humano. Resta György Lukács em sua Para a ontologia do ser social (1981), na
pensar, porém, se este problema real pode ser enfrentado de modo esteira de Marx, entendeu a relação homem/natureza com toda
resolutivo em uma sociedade regida pelos interesses do capital. lucidez: o ser social depende do natural para existir como indivíduo,
Embora tenha se constituído como objeto de preocupação, o e como sociedade ele é, ao mesmo tempo, natural e social. Pelo ato
problema da devastação do meio ambiente não tem sido enfrentado, do trabalho ocorre o salto ontológico do homem: de mero exemplar
em seus aspectos essenciais, por parte dos Organismos Internacionais natural para ser social; e o trabalho, nesse sentido, significa uma
dinamizadores da geopolítica mundial, pois há de se considerar que síntese na qual se tem “uma existência concreta, real e necessária,
nas relações sociais vigentes sob o sistema do capital, os fins a serem entre causalidade e teleologia”, entendido como um “processo real
alcançados não estão orientados para a preservação da humanidade, unitário, cuja mobilidade é fundada na interação destes opostos”
mas sim para a acumulação e a expansão capitalista. O mais provável, (LUKÁCS, 1981, p. 24). Ou seja, o trabalho é interação entre
em matéria dos interesses capitalistas, é que a devastação dos recursos causalidade (natureza) e teleologia (sociedade), mediante o qual se
naturais seja uma ameaça à realização do processo produtivo e realiza o processo de objetivação social. O homem, “como membro
reprodutivo, com seus ciclos de produção, distribuição, circulação trabalhador de um grupo social, não mais está em relação imediata
e consumo, sendo assim, ameaçador à lucratividade do capital e com a natureza orgânica e inorgânica que o circunda” (1981, p. 181),
seu processo de acumulação. Nosso propósito aqui é refletir sobre pois as suas interações com a natureza são mediadas pela sociedade.
aspectos essenciais do tema quanto ao significado da relação homem/ Sem deixar de ser natureza, o homem se constitui como ser
natureza e ao espectro da destruição ambiental na atualidade. social justamente ao agir sobre a natureza externa a ele para produzir
coisas novas, em resposta às suas necessidades reprodutivas. No
Homem/natureza - uma relação ontológica processo de desenvolvimento humano, realiza-se o que Marx
denominou de recuo das barreiras naturais, em que os momentos
Do ponto de vista de uma ontologia materialista marxiana, sociais predominam sobre os naturais. Mas esse recuo não significa
a consciência da interação homem/natureza ganha um caráter de sua eliminação; por mais avançada que seja a produção, por mais
conhecimento filosófico/científico. Essa interação é precisamente o avançado que seja o desenvolvimento humano-social, o elemento
nexo central, e decisivo, que dá origem ao ser social. A relação homem/ natural vai estar presente, já que eliminar a natureza significa eliminar
natureza é uma relação visceral e ontologicamente ineliminável, pois o próprio homem como ser genérico, porquanto, como afirma Marx:
“o homem é diretamente um ser da natureza [...]. Mas o homem não é A natureza é o corpo inorgânico do homem, ou seja, a natureza
exclusivamente um ser natural; é um ser natural humano; ou melhor, na medida em que não é o próprio corpo humano. O homem
um ser para si mesmo; por consequência, um ser genérico, e como tal vive da natureza, ou também, a natureza é o seu corpo com o
qual tem de manter-se em permanente intercâmbio para não
tem de legitimar-se e expressar-se tanto no ser como no pensamento” morrer. Afirmar que a vida física e espiritual do homem e a
(MARX, 2002, p. 182-183, grifos na obra). O homem constitui-se natureza são interdependentes significa apenas que a natureza
homem justamente nessa relação, tendo por fundamento o trabalho. No se inter-relaciona consigo mesma, já que o homem é uma parte
ato do trabalho, o homem interage com a natureza produzindo novas da natureza (MARX, 2002, p. 116, grifos na obra).
realidades, e este ato, conscientemente orientado para a realização de
uma finalidade, retroage sobre este ser, dando início à constituição de um O intercâmbio orgânico entre homem e natureza é permanente
gênero, o gênero humano. Este gênero é portador de uma consciência e necessário, na medida em que a natureza externa ao homem é
não mais epifenomênica, como aquela própria de espécies naturais, expressão de que este ser, que se tornou social justamente pela ação
pois, enquanto ser ativo, torna-se capaz de desencadear no mundo consciente sobre ela, tem ali a sua base ontológica essencial. Mas
natural um processo de incessante produção de novas realidades. Tal não é possível postular uma completa identidade entre homem e
processo criador desenvolve nos homens novas capacidades e novas natureza externa, o homem é o ser social e a natureza é o corpo
habilidades, retroagindo sobre a própria consciência, no sentido de inorgânico do homem enquanto não é o próprio corpo humano; porém,
tornar-se uma consciência humano-genérica. precisa manter com ela um permanente intercâmbio para não morrer.
Aparece aí a diferença entre o caráter biológico do homem e o seu
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caráter social que, com o salto ontológico a partir do trabalho, marca mediadas pela sociedade, a ligação com a natureza é entendida
o momento novo no qual predominam as categorias sociais sobre como um fato em desvanecimento. (Até um jardim, um
parque, na cidade é uma estrutura predominantemente social)
as naturais, tornando o homem concomitantemente natural e social. (LUKÁCS, 1981, p. 157).
Assim, unidade e separação entre homem e natureza externa estão
postos logo que este emerge como ser social, de modo que formam Assim, é também ela expressão da socialidade e da separação
uma unidade, mas sujeito e objeto jamais são idênticos. homem/natureza operada no recuo das barreiras naturais, no qual
A evolução do ser social é um longo processo em que o surge a propriedade privada sob o domínio do capital. De outro
desenvolvimento das forças produtivas alcançam o mais alto nível ângulo, Marx, ao analisar o que ocorre com o trabalhador, observa
de crescimento até hoje, com o capitalismo. Entretanto, o modo que primeiramente as coisas produzidas aparecem aos homens
de produção capitalista é também a primeira formação humana como objetos externos; as forças físicas e espirituais do seu ser
inteiramente social, em que o recuo das barreiras naturais é tão intenso ali empregadas já não lhes pertencem. Revela-se aí a alienação do
que cria um metabolismo social constituído pela mais completa trabalhador em relação ao produto do trabalho, com o qual se
separação entre homem e natureza, rompendo com a unidade confronta como um mundo hostil, de coisas estranhas, existindo para
originária de propriedade, em que predominavam as categorias satisfação de outros. Em segundo lugar, essa alienação se manifesta
naturais na produção. Diz Marx: como autoalienação, a negação da própria atividade na produção,
Em todas as formas em que domina a propriedade fundiária, ou seja, a “atividade como sofrimento (passividade), a força como
a relação com a natureza é ainda preponderante. Naquelas em impotência, a criação como emasculação, a própria energia física e
que domina o capital, o que prevalece é o elemento produzido mental do trabalhador, a sua vida pessoal” (MARX, 2002, p. 115).
social e historicamente. Não se compreende a terra sem o capital,
entretanto compreende-se o capital sem a renda da terra. O capital Desses dois aspectos decorre que a relação homem/natureza
é a potência econômica da sociedade burguesa, que domina tudo se torna uma relação alienada, pois transforma a “vida genérica do
(MARX, 1983 p. 18-19). homem, e também a característica enquanto sua propriedade genérica
espiritual, em ser estranho, em meio da sua existência individual. Aliena
Criam-se relações sociais em que a interação entre homem/ do homem o próprio corpo, assim como a característica externa, a
natureza é intensamente mediada pelo valor de troca, expresso em sua vida intelectual, a sua vida humana” (MARX, 2002, p. 117-118).
mercadorias, entre as quais a própria força de trabalho humana é elevada A própria consciência do homem como gênero se altera quando ele
a uma condição abstrata. Nessas relações, predomina o princípio do é separado do seu corpo inorgânico; a natureza transformada por
ter, estendendo a propriedade privada a todas as dimensões objetivas e ele como atividade específica de gênero humano lhe aparece como
subjetivas da sociedade. O homem é também separado do produto do algo estranho, como simples meio da existência física. A força de
trabalho, que lhe aparece como uma coisa externa ao sujeito, e separado trabalho, as capacidades e habilidades contidas na sua pessoa, são
da sua própria natureza: o produto de suas forças enquanto gênero. abstraídas assumindo a forma de valor de troca, e assim, destacada,
No plano objetivo mais geral, essa separação se dá principalmente torna-se objeto de comercialização como ser estranho ao sujeito.
pela ruptura sociedade/natureza externa, manifesta na divisão entre A interação homem/natureza não é dirigida para a satisfação das
cidade e campo, na divisão do trabalho e na instituição da propriedade necessidades humanas, senão para a acumulação do capital, sob os
privada. Isso é uma ruptura do metabolismo homem/natureza que o desígnios dos interesses lucrativos.
capitalismo vai impulsionar pela concentração na cidade dos elementos É assim que, contraditoriamente, o homem se encontra
do processo produtivo − desde a mão de obra até máquinas, matéria- separado da natureza, tanto no sentido objetivo, quanto subjetivo,
prima, insumos, meios de trabalho, etc. Com isso, por exemplo, afastará pressupondo um intenso desenvolvimento da indústria, do comércio,
o ecossistema, do qual se origina a matéria-prima, da destinação final da ciência, enfim, das forças produtivas. O desenvolvimento das forças
até o aparato industrial na cidade. Para Lukács: produtivas segue um curso histórico, apoderando-se da natureza
A cidade é um complexo que não tem analogia alguma nos graus para a produção de coisas que se transformam em mercadorias,
inferiores de ser: nela até as funções mais simples da vida são e o tem feito de forma destrutiva. Originalmente, em sociedades
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precedentes, a interação do homem com o ambiente é orientada para entendem que a crise instaurada, desde a década de 1970, trouxe no
a satisfação de suas necessidades imediatas. Certamente, ocorrem aí seu interior a evidência de fenômenos relativos a graves problemas
mudanças ambientais com um peso talvez pouco significativo para o ambientais. Mas por que o problema atingiu tal ponto? Nos marcos
planeta, mudanças que se referem à adaptação ativa dos homens ao do capitalismo, existe possibilidade de fato de resolvê-los?
ambiente natural. Como diz Guillermo Foladori (2001, p. 172): “Nas
sociedades pré-capitalistas, o escasso desenvolvimento das forças produtivas Reflexões em torno da relação entre crise capitalista e crise
levava à produção depredadora (como o sistema de roça e queima ambiental
da agricultura, ou a extinção dos grandes mamíferos)”. Essa relação
predatória não é algo novo no processo de desenvolvimento humano. O desenvolvimento capitalista tem evidenciado, ao longo
Entretanto, existem diferenças entre a depredação e a poluição pré- dos anos, que, desde a consolidação do comando da produção pelo
capitalista, e as que ocorrem no mundo atual. capital, ocorreu uma sequência de crises econômicas. Tais crises
O desenvolvimento das forças produtivas provoca uma relação trouxeram instabilidade, oscilando com períodos de crescimento e
predatória do homem com a natureza, que se evidencia com força na de expansão da produção, perpassados por depressões, falências de
atualidade, sem falar que mesmo o alto desenvolvimento das forças empresas, etc., além de penalizar os trabalhadores com o desemprego
produtivas, nem sequer eliminou os sistemas de queima preexistentes e a miséria. A esses elementos, acrescem-se mais recentemente
ao capitalismo. Ele persiste em amplas áreas, como na Amazônia, e, os efeitos sobre o meio ambiente, vistos, por alguns, como crise
até o momento, o seu combate não alcançou resultados plenamente ambiental em decorrência de mudança climática.
satisfatórios, mesmo aos olhos dos órgãos competentes. Na fase Crises econômicas aconteceram também nas sociedades pré-
capitalista propriamente dita, marcada pela Revolução Industrial capitalistas, nas quais as alterações na produção desencadearam
no século XVIII, “é o tremendo desenvolvimento das forças produtivas que o empobrecimento e a miséria de ampla parcela da população.
tem permitido uma pilhagem da natureza em grande escala; o ritmo, José Paulo Netto e Marcelo Braz (2006, p. 157) afirmam que
ou velocidade, é, por certo, muito maior no sistema capitalista, já em períodos precedentes da história, as crises tinham como
que a tendência a produzir sempre mais é [...] intrínseca à dinâmica
econômica” (Idem, p. 172). Nesse sentido, o impulso crescente a
produzir sempre mais, e no ritmo acelerado da economia capitalista, à área destruída em 2006.” A informação é do jornal O Globo. Amazônia sofre
é um aspecto central na reflexão sobre o caráter destrutivo da ação devastação em áreas protegidas, 11/7/2008. Disponível em: www.remade.
com.br/pt/noticia.php?num=4617− Acesso em 26/07/2008.
humana sobre a natureza. Não é de agora que o aumento no desmatamento tem preocupado. Comparado
É ilustrativo da atual fase de desenvolvimento capitalista, o ao mesmo mês em 2021, janeiro registrou um aumento de mais de 400% na
tão propalado aquecimento global, e a consequente diminuição da devastação da floresta amazônica - (crédito: Fábio Nascimento/Greenpeace)
camada de ozônio, que têm fundamentado a ideia de crise ambiental. 22,5% da área com alertas de devastação entre 1º e 21 de janeiro de 2022 se
Até que ponto mudanças ambientais como as que afetam o clima ou concentraram nas florestas públicas não destinadas, que são o principal alvo de
a camada de ozônio, por exemplo, são provocadas pela ação humana, de grilagem de terras.
ou por fenômenos naturais, é um problema que a ciência ainda tem Após bater recorde histórico no último mês de janeiro, o desmatamento na
de delimitar com precisão, mas muitos desses problemas, como a Amazônia registrou, em fevereiro, mais um aumento em comparação ao mesmo
poluição dos mares e rios, ou a má qualidade do ar nas cidades, são, período em 2021. Segundo o balanço parcial do sistema Deter, do Instituto
em grande medida, resultado de processos industriais. O fato é que a Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o percentual de devastação no último
devastação ambiental é visível e divulgada pela mídia.14 Alguns autores mês é 22% maior do que o de fevereiro do último ano.
O INPE mostra que, até 25 de fevereiro de 2022, o desmatamento da Amazônia
já somava 149,88 km². A extensão é a segunda maior para um mês de fevereiro
14 “Levantamento inédito do IBAMA, usando dados do Prodes, o sistema que mede desde 2016, perdendo apenas para os alertas de 2020. Disponível em: https://
por satélite a devastação anual da floresta amazônica, mostra que [...] a devastação www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/03/4991964-desmatamento-na-
das reservas voltou a crescer no ano de 2007, quando 2,3 mil quilômetros quadrados amazonia-segue-aumentando-e-cresce-22-em-fevereiro-diz-inpe.html Acesso em
de áreas de reservas ambientais foram ao chão − um aumento de 6,4% em relação 13/05/2022.
116 117
característica principal “a destruição dos produtores diretos ou O acontecimento deflagrador na precipitação das crises de
dos meios de produção ocasionados por desastres naturais (por superprodução difere das suas formas de aparição. Pode ser “um
exemplo, grandes epidemias – como a peste negra – dizimando os escândalo financeiro, um brusco pânico bancário, a bancarrota de
produtores), ou por catástrofes sociais (por exemplo, guerras uma grande empresa, como pode ser simplesmente a mudança da
destruindo meios de produção e forças produtivas)”. A carência conjuntura (venda insuficiente generalizada) em um setor chave
dos bens indispensáveis à vida em sociedade foi o efeito imediato do mercado mundial” (1990, p. 212). Assim, qualquer um desses
dessas crises, denominadas de crises de subprodução de valores de uso. elementos poderá resultar numa crise. Ainda para Mandel:
Trata-se, portanto, da existência de crises fundadas na escassez, nas Toda crise de superprodução implica forçosamente um aumento
quais se verifica a redução da produção de mercadorias. Porém, considerável de falências e ruínas de empresas. Quando os
na crise capitalista propriamente dita, o processo se dá de maneira pequenos e médios empresários são mais atingidos do que os
inversa: a redução da produção faz com que diminua a força de poderosos trustes, a recessão é mais grave e superior o número
trabalho, gerando o desemprego. Salientam, os referidos autores, de trustes envolvidos na tormenta. A função objetiva da crise
é justamente a de fazer com que caiam os ‘ramos mortos’, isto
que “entre uma crise e outra decorre o ciclo econômico, e nele é, as empresas menos rentáveis, quer sejam grandes, quer sejam
podem distinguir-se quatro fases: a crise, a depressão, a retomada e pequenas (MANDEL, 1990, p. 65).
o auge” (Idem, p. 159). Eles entendem que as crises econômicas que
atingem o modo de produção capitalista – MPC – “não têm uma Na verdade, a crise tem como função objetiva “constituir o
única causa: elas são o resultado da dinâmica contraditória do MPC – mecanismo através do qual a lei do valor se impõe, apesar da concorrência (ou
as múltiplas contradições que constituem o MPC convergem nas da ação dos monopólios) capitalistas” (1990, p. 212). Nesses termos,
crises” (Idem, p. 160). Seus efeitos tornam-se visíveis socialmente, verifica-se que a crise da indústria da construção civil, juntamente
em particular para os trabalhadores. com a crise da indústria automobilística, é o elemento detonador da
Por sua vez, Ernest Mandel (1990, p. 23) expressa que a recessão recessão de 1974-75. Seguem-se a partir daí efeitos em cadeia, tais
econômica generalizada, acontecida em 1973-74, corresponde a como a falência da indústria têxtil, dos eletrodomésticos, o siderúrgico,
uma crise clássica de superprodução, produto direto e indireto da o petroquímico, o de madeira e móveis, etc. Além desses setores da
recessão, e de uma política de exportação que resultou em ganhos produção, o sistema bancário foi duramente atingido quando “uma
para determinados países imperialistas. Essa crise, a vigésima crise série de bancarrota em cascata se produziu no domínio dos bancos
de superprodução que atingiu o mercado mundial capitalista, “é a e das sociedades de financiamento...”, além da “ruína dos ‘bancos
conclusão de uma fase típica de queda da taxa média de lucros”. Essa queda secundários’ e de vários grupos financeiros britânicos” (MANDEL,
está articulada à redução na taxa do lucro, dos investimentos, do 1990, p. 67). Acrescenta ainda que essa crise desdobrada na recessão
emprego, da renda e da crise de superprodução. A superprodução de 1974/75 trouxe graves consequências para os trabalhadores, pois:
resulta do excesso de mercadorias produzidas no capitalismo, Toda crise de superprodução constitui uma agressão massiva do
inviabilizando o poder de compra, disponível para adquiri-las ao capital ao trabalho assalariado. Aumentando o desemprego e o
preço médio de produção. Com isso, o preço cobrado não fornece aos medo do emprego, a crise tende a fazer com que os trabalhadores
seus proprietários o lucro médio esperado, provocando uma ruptura aceitem as reduções (ou estagnações) dos salários reais, a
brutal do equilíbrio normal entre a oferta e a procura de mercadorias. aceleração dos ritmos de produção, as perdas de conquistas
em matéria de condições de trabalho e de seguridade social, a
Dessa forma, a oferta torna-se maior do que a demanda que se pode redução das proteções construídas na fase de prosperidade contra
pagar, o que gera uma diminuição das encomendas e uma redução a pobreza e a injustiça mais flagrantes (MANDEL, 1990, p. 231).
significativa da produção corrente. A articulação desses elementos
resulta no movimento cumulativo da crise: “redução do emprego e das Entre as consequências da crise, apontadas por Mandel, estão
rendas, dos investimentos, da produção das encomendas; nova espiral o retorno da fome em tempos de abundância e de superprodução,
da redução do emprego, das rendas, dos investimentos, da produção, “em grande parte pré-fabricada pela política deliberada de sustentação
etc., no interior dos setores decisivos da produção, o de bens de de preços através de uma redução artificial das áreas plantadas e da produção,
produção e o de bens de consumo” (MANDEL, 1990, p. 212).
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ou seja, através da lógica infernal do mercado” (1990, p. 115, grifos Por tudo isso, além de vários outros elementos analíticos,
na obra). “A chamada ‘revolução verde’ agravou profundamente tal que desvelam aspectos destrutivos ao ambiente, considera o
situação, em consequência da acentuada polarização social que ela sistema capitalista como inimigo da natureza e conclui que o que está
provocou nos campos de uma série de nações do Terceiro Mundo acontecendo na Ásia, particularmente na China, é uma reedição
− isso sem considerar os efeitos negativos que ela pode provocar no do processo de ruptura do metabolismo da sociedade humana
plano ecológico” (MANDEL, 1990, p. 115-116). com a natureza externa, conforme havia pensado Marx sobre a
Fica evidenciado que a produção capitalista é movida economia capitalista.
pelo interesse lucrativo, e este está intimamente articulado às Diferentemente de outros autores, István Mészáros (2002)
leis econômicas que condicionam a acumulação de capital. No entende a crise capitalista atual como uma crise estrutural do capital.
decurso dessas leis, pode ser levado à falência um sem-número Ele estabelece a diferença entre crises cíclicas, como aquelas que
de empresas e empresários individuais, sem falar nos efeitos para podem ser resolvidas no interior do capitalismo, e crise estrutural,
os trabalhadores. Em relação ao meio ambiente, Foladori (2001, porque esta última se expressa tanto em dimensões socioeconômicas
p. 164) sustenta a ideia de que “as leis econômicas que regulam internas, quanto nas instituições políticas. Na percepção do autor,
a produção capitalista não são alheias à relação do ser humano a crise estrutural resulta das dimensões internas do capital como
com seu ambiente, mas a condicionam”. Assim, a relação homem/ produção, consumo e circulação/distribuição/realização. Dessa
natureza estaria submetida aos influxos das leis econômicas que maneira, tais dimensões “tendem a se fortalecer e a se ampliar por
impulsionam a acumulação do capital. Por isso mesmo, na sua algum tempo, provendo também a motivação interna necessária
concepção, “é impossível entender os problemas de depredação para a sua reprodução dinâmica recíproca em escala cada vez
e poluição sem prestar atenção às tendências econômicas”. Nesse mais ampliada” (MÉSZÁROS, 2002, p. 798). Mas, por seu caráter
sentido, tem por referência a produção mercantil, no seu sentido universalizador, cuja penetração se dá em escala mundial, ela ameaça
mais geral, e a busca do lucro como objetivo da produção capitalista. a sobrevivência não só do próprio capital, mas da humanidade. A
Ela remete à intrínseca relação entre propriedade privada, mercado crise capitalista hoje, articulada a outras características, traz em seu
e lucro, segundo os interesses de reprodução do capital, que desdobramento o espectro da destruição. Intimamente relacionado
inviabiliza a condução do processo produtivo, conscientemente à ativação dos limites absolutos do capital, tem um caráter destrutivo
orientado, com a preservação da natureza e da vida humana. Em vinculado à crise estrutural do capital que a humanidade experimenta
outro momento, o autor, ao analisar o desenvolvimento asiático desde a década de 1970.
nos últimos tempos, afirma: A problemática da devastação do meio ambiente assume, na
O sistema capitalista simplesmente produz sem considerar a sua percepção, um caráter ainda mais dramático, ao pôr em risco a
capacidade dos ecossistemas de reproduzir as matérias-primas sobrevivência da humanidade. Ele a vê como uma das principais
que são extraídas deles. De outro lado, também não produz características da ativação dos limites absolutos do capital. Por
considerando a satisfação das necessidades humanas. Produz guiado, limites absolutos, ele entende aqueles cujos determinantes estão
exclusivamente, pelo lucro. Para isso tem que produzir sempre no modo de controle sociometabólico do capital. As principais
mais, vender sempre mais, criar no consumidor a necessidade de
mais mercadorias, fazer com que as mercadorias durem o menos características desses limites absolutos são: o antagonismo estrutural
possível, para ter que reproduzi-las. Chega um momento em que a entre o capital transnacional em expansão e os Estados nacionais;
produção excede a demanda, excede as possibilidades de compra, a destruição e a devastação do meio ambiente; a liberação das
e ocorre uma crise. Existe maior atentado contra a natureza que mulheres; o desemprego crônico. Tais limites seriam absolutos
extrair matéria prima de todo tipo, que depois vai ser desperdiçada, somente para o capital, e não implicam a impossibilidade de sua
que não vai ser consumida, que não vai satisfazer necessidade ou que
vai fazê-lo só em parte? Mas o sistema capitalista não possui meios transcendência. Em seu entendimento, haveria alternativa a esses
capazes de evitar os ciclos econômicos e com isso o desperdício é limites desde que a alternativa não estivesse inscrita no âmbito do
a subutilização da natureza transformada. [...] Consequentemente, capital, como defendem seus apologistas.
é necessário dizer que o sistema capitalista é inimigo da natureza. A exigência do capital é impulsionada pela tendência ilimitada
(FOLADORI, 2008, p. 193-194). de superar barreiras à sua expansão, tais como obstáculos naturais
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ou fronteiras culturais e nacionais. Estabelece-se a contradição entre hoje é impossível pensar em qualquer coisa associada às
os valores humanos, e o impulso ao expansionismo, que não encontra condições elementares da reprodução sócio metabólica que
não esteja letalmente ameaçada pela forma como o capital
eco ante os mecanismos sociometabólicos do capital. Dessa maneira, se relaciona com elas: a única que ele conhece. Isto não vale
“a degradação da natureza ou a dor da devastação social não têm apenas para as exigências de energia da humanidade ou para a
qualquer significado para seu sistema de controle sociometabólico, administração dos recursos naturais e dos potenciais químicos
em relação ao imperativo absoluto de sua auto-reprodução numa do planeta, mas para todas as facetas da agricultura global,
escala cada vez maior” (MÉSZÁROS, 2002, p. 253). O que Mészáros inclusive a devastação em grande escala das florestas e a maneira
irresponsável de tratar o elemento sem o qual nenhum ser vivo
ressalta aí é que a universalização do capital em seu caráter destrutivo pode sobreviver: a água (MÉSZÁROS, 2002, p. 253).
não é um problema moral, ou mesmo algo controlável pela simples
vontade humana, mas um processo de expansão objetivo, que alcança A produção hoje é, portanto, uma produção destrutiva, devido
as mais distintas fronteiras, independentemente dos obstáculos que à invasão do capital em todos os níveis dessa ordem sociometabólica.
tendem a limitá-la, sejam eles de ordem objetiva ou subjetiva. Porém, com a ativação dos limites absolutos, e a efetivação da
Como vimos, suas determinações são apoiadas em questões ascendência histórica do capital, as coisas pioraram bastante. Fica
objetivas ligadas à reprodução ampliada do capital e de seu controle. evidente que quando a destruição “dos recursos naturais e da
A destruição se faz presente não somente nas “questões ambientais riqueza social se torna a condição objetiva da reprodução ampliada
apregoadas em altos brados, mas convenientemente limitadas” do capital, a ‘dominação contínua da riqueza sobre a sociedade’ já
(MÉSZÁROS, 2002, p. 222), quando se trata da preocupação dos não pode fazer sentido do ponto de vista da reprodução societária
círculos oficiais, como o “buraco de ozônio”, ocultando o fato sustentável” (MÉSZÁROS, 2002, p. 940). De fato, quanto maior for
de que isso tem proporcionado grandes lucros para as indústrias o impulso do capital, na direção da reprodução ampliada, o capital,
transnacionais da química. Quanto às determinações, alcançam como causa sui, não permite nenhuma alternativa ao seu modo de ser
os mais diversos aspectos das condições de reprodução,“desde a orientado para a expansão. Esse modo de ser do capital garante a
alocação perdulária de recursos (renováveis ou não renováveis), ao viabilização da lógica expansionista em seu processo de reprodução
veneno que se acumula em todos os campos, em detrimento das ampliada de caráter destrutivo.
muitas gerações futuras”, deixando rastros “não apenas sob a forma Assim, aqueles que defendem que ciência e tecnologia irão
do irresponsável legado atômico para o futuro (tanto armamentos solucionar o problema da destruição, ignoram que elas só poderão ser
como usinas de energia), mas também no que diz respeito à poluição úteis se estiverem a serviço do desenvolvimento produtivo, como meio
química de todo tipo, inclusive a da agricultura” (MÉSZÁROS, 2002, de assegurar o processo de expansão e de acumulação do capital, com
p. 222). No campo da produção agrícola, trilhões de pessoas estão vistas a deslocar para longe seus antagonismos internos. Mesmo com
submetidas à fome no mundo, sob o manto protetor das políticas a existência de descobertas científicas, que até poderiam contribuir de
agrícolas comuns, de caráter protecionista, que são criadas com a algum modo para minimizar a degradação do ambiente natural, elas
finalidade de provocar o desperdício institucionalizado gerador de não podem se realizar, porque interfeririam diretamente na expansão
lucros, sem se preocupar com as consequências imediatas e futuras. da ordem em curso. O limite continua sendo aquele que “o capital
O controle dos problemas tratados mediante leis e proibições compartilha com as formas antagônicas anteriores de reprodução
se insere no sistema “confinado ao horizonte muito estreito das sociometabólica, ou seja, a dominação do trabalho e a compulsão para a
expectativas do lucro imediato. Ao mesmo tempo, a dimensão exploração que devem necessariamente ser exercidas para extrair o trabalho
causal das condições mais essenciais da sobrevivência humana é excedente” (MÉSZÁROS, 2002, p. 941).
perigosamente desconsiderada” (MÉSZÁROS, 2002, p. 223). Os Nesse sentido, as medidas adotadas visando o interesse da
“obstáculos externos” nunca conseguiram frear o impulso ilimitado expansão e da acumulação capitalista, só pioram a situação dos
do capital de ir além dos limites encontrados; para atender à sua povos submetidos à fome e à desnutrição, em especial nos países
lógica autoexpansionista, ele só pode considerar os seres humanos do Terceiro Mundo. Por outro lado, suas consequências destrutivas
e a natureza como meros “fatores de produção”. devem também atingir o resto do mundo. No campo da agricultura,
Sob essas condições, Mészáros afirma que
122 123
as práticas do capital no âmbito da produção e distribuição não o alto desenvolvimento das forças produtivas, alcançou um intenso
garantem para ninguém um bom futuro. Isso se deve à utilização poder destrutivo. A relação predatória impulsionada pela satisfação do
lucrativa de “produtos químicos que se acumulam como venenos lucro para superar os próprios limites, inerente ao sistema do capital,
residuais no solo, da deterioração das águas subterrâneas, da tremenda tornou-se um dos caracteres dos limites absolutos à sua reprodução,
interferência nos ciclos do clima global em regiões vitais para o criando uma situação em que expressões da devastação ambiental são
planeta, da exploração e da destruição dos recursos das florestas visíveis em todos os aspectos vitais da reprodução social.
tropicais, etc.” (MÉSZÁROS, 2002, p. 255). Diante da “subserviência Em meio à crise do capital emergem indícios de uma crise
alienada da ciência e da tecnologia às estratégias lucrativas do ambiental manifesta em aspectos climáticos naturais, atribuídos
marketing global”, o avanço tecnológico em termos “dos métodos de às consequências da ação humana, e cuja incidência sobre a vida
produção já coloca em risco o escasso alimento básico dos que estão na Terra gera preocupação. Abordada em dimensões diversas, sua
compelidos a trabalhar para as ‘safras de exportação’ e passam fome ameaça, entre outras coisas, à produção alimentar, revela o caráter
para manter a saúde de uma economia ‘globalizada’ paralisante”. devastador sobre a natureza externa ao homem. Nos marcos do
A explicação para esse fenômeno, hoje, reside no fato de que “a sistema do capital, a sobrevivência humana não tem um peso decisivo,
interferência irresponsável na causalidade da natureza é a norma; a pois, para que o capital possa garantir sua lógica autoexpansionista,
pesquisa de projetos de produção realmente emancipadores, a rara tanto a natureza quanto os seres humanos constituem meros
exceção” (MÉSZÁROS, 2002, p. 257). fatores de produção. É tanto que hoje, não existe nada vinculado
Assim sendo, se não conseguir “romper em termos qualitativos às condições elementares da reprodução social que não esteja
com as práticas dominantes da reprodução e, entre elas, com as que ameaçado de destruição. Desse modo, o problema da destruição
prevalecem na ciência e na tecnologia”, muito distantes da projetada do meio ambiente, que ameaça a sobrevivência da humanidade, não
fartura assegurada por elas, no futuro, a humanidade não pode esperar pode ter resolutividade no limite da ordem regida pelo capital.
nada mais do que “o domínio permanente de algum tipo de escassez Mesmo aqueles que defendem que ciência e tecnologia
artificialmente criada e imposta” (MÉSZÁROS, 2002, p. 266). O irão solucionar o problema da destruição ambiental ignoram que
futuro da humanidade está, assim, ameaçado, porque “o sistema do sua utilização é posta a serviço do desenvolvimento produtivo,
capital deverá sempre seguir seu rumo de atuação dentro da mais contribuindo para o processo de expansão e de acumulação do
estreita escala de tempo, desprezando as consequências, mesmo que capital, ajudando a deslocar para longe os antagonismos internos.
estas apontem a destruição completa das condições elementares Nesse sentido, as consequências destrutivas do sistema do capital, na
da reprodução sociometabólica” (MÉSZÁROS, 2002, p. 256). visão de Mészáros, inevitavelmente atingirão o mundo por inteiro,
Nessas circunstâncias, essa forma de ser do capital, em sua natureza a exemplo daqueles que estão condenados à fome e à desnutrição,
antagônica, é inimiga da natureza, e põe em xeque a existência do principalmente nos países do Terceiro Mundo, nos quais os pobres
complexo global, requerendo assim, uma alternativa para além do pagam a conta da destruição ambiental. Assim, a forma alienada de o
capital. capital se relacionar com a necessidade humana individual, dá-se pela
utilização predatória dos recursos humanos, e pelo correspondente
Considerações Finais desperdício em escala gigantesca. Afastando o terreno natural das
fundações de qualquer indústria, permite que se imponha de forma
A relação homem/natureza tem o caráter de um metabolismo cruel e difundida universalmente, numa escala mais ampla, um novo
orgânico que a torna indissociável. A natureza é o corpo inorgânico tipo de necessidade, colocando em risco tanto o sistema ampliado
do homem, e todo o processo de desenvolvimento humano implica do capital, quanto a sobrevivência da própria humanidade.
o recuo das barreiras naturais, pelo qual o homem se torna cada vez mais A impossibilidade de solucionar os problemas da destruição da
social, porém sem jamais poder eliminá-las inteiramente. Ainda que natureza através da ciência e da tecnologia reside no fato de que estas
fundamentalmente social, o homem é e será sempre um ser da natureza. estão profundamente arraigadas às determinações prevalecentes na
Por outro lado, a interação homem/natureza, particularmente ante produção, através da qual o capital impõe à sociedade as condições
fundamentais para sua existência instável. Na sua forma de articulação
124 125
e funcionamento, está totalmente implicado um determinado tipo de
progresso concomitantemente produtivo e destrutivo. Desse modo,
nas reflexões expostas neste texto, evidencia-se a importância da Mulher e emancipação: uma abordagem
preservação ambiental, conscientemente orientada para a conservação
da humanidade, mas constata-se ser improvável que o problema da ontológico-materialista
devastação do meio ambiente, pondo em risco a sobrevivência da
humanidade, seja solucionado no limite dessa ordem estabelecida, se
o homem não tomar em suas mãos o rumo de um novo horizonte Introdução
possível, libertando-se das determinações do capital.
A terminologia “gênero”, relacionada a uma tendência
Referências peculiar do feminismo, passou a ser usada desde a década de 1960
e se acentua a partir da década de 1970, quando então se define que
FOLADORI, G. Limites do Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: Edito- falar de relações de gênero é falar das características e atribuições
ra da Unicamp, 2001.
de cada sexo, definidas culturalmente pela sociedade. Neste sentido,
gênero seria uma construção social e histórica própria à questão
_____________. A reedição capitalista das crises ambientais. Outubro, São Pau- da mulher. Esse conceito serviu para fazer a crítica à tradição
lo, n° 17, Alameda, 2008. intelectual androcêntrica, de que a posição da mulher na sociedade
LUKÁCS, G. Per l’Ontologia dell’Essere Sociale. Roma: Riuniti, 1981. seria definida pela anatomia, visto que homens e mulheres seriam
MANDEL, E. A Crise do Capital: os fatos e a sua interpretação marxista. fisicamente distintos, e isso definia sua posição na sociedade,
São Paulo, Ensaio, Unicamp, 1990. bem como suas atribuições. Nessa perspectiva androcêntrica,
MARX, K. O Capital. Vol. I. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
tradicionalmente, diz a crítica, a mulher foi considerada incapaz de
realizar determinadas atividades ditas masculinas, devido à anatomia
_________. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, frágil, inclusive definindo suas funções, e seus direitos políticos e
2002. sociais, em posição inferior à do homem.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São A perspectiva de gênero serviu também para estabelecer
Paulo: Editora da Unicamp/Boitempo Editorial, 2002. as diferenças entre homens e mulheres, e o direito à diferença,
NETTO, J. P., BRAZ, M. Economia Política: uma introdução crítica. São desmistificando o problema da desigualdade social entre os sexos,
Paulo: Cortez, 2006.
ou da condição de inferioridade feminina. No centro do debate está
a luta contra a alienação no trabalho e na vida social, assim como a
Amazônia sofre devastação em áreas protegidas. 11/07/2008 Disponível reivindicação do papel do trabalho criador para a mulher, tal como
em: www.remade.com.br/pt/noticia.php?num=4617− Acesso em para o homem, no sentido de possibilitar a ambos encontrarem-se
26/07/2008. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com. e se reconhecerem como seres humanos. Esse debate incorpora,
br/brasil/2022/03/4991964-desmatamento-na-amazonia-segue- inclusive, a defesa da cidadania, do direito de frequentar a escola, de
aumentando-e-cresce-22-em-fevereiro-diz-inpe.html Acesso em possuir propriedades, de trabalhar sem autorização do marido ou
13/05/2022.
pai; em outras palavras, compreende a luta por direitos femininos,
como espaço legítimo de posicionamento da mulher na vida social,
entretanto, não inclui a aproximação do tema às bases ontológicas
da sociedade.
Essa perspectiva defende que, historicamente, a estrutura
familiar contribuiu para barrar uma maior participação da mulher
na vida social, porque a própria estrutura social necessitava das
126 127
mulheres na esfera privada, cuidando dos filhos e da casa. Esta função ou nações. Desse modo, é a consciência de uma generidade particular.
reprodutiva definiu a posição social da mulher por longo tempo, sendo A superação da mudez natural do gênero implica um longo processo
posta em xeque desde que o trabalho feminino se tornou necessário em direção ao para-si, assim expresso por Lukács:
à produção, requerendo sua força de trabalho em outros campos de o verdadeiro ser-para-si do gênero humano, a superação total
atuação, movimento este impulsionado pela luta das mulheres em do seu mutismo, não é ainda uma realidade. Por outra parte,
diferentes campos sociais e políticos. Reconhece-se que, sob a pressão é igualmente certo que o simples ato do trabalho significa que
feminista, têm ocorrido mudanças significativas em questões como a o homem põe a si mesmo, se torna homem e que, portanto,
participação efetiva da mulher na sociedade, mas ainda apresenta muita se realizou o salto para além do gênero mudo da animalidade
(LUKÁCS, 1981, p. 183).
discriminação ligada ao gênero. Sem minimizar a importância de tal
tendência, a perspectiva expressa neste artigo é pensar o gênero sob a Se, por um lado, se trata de um processo objetivo, realizado
perspectiva ontológico-materialista referida à humanidade, como um mediante a evolução das forças produtivas, por outro lado, a
todo, em cujo processo de desenvolvimento emerge a problemática superação do mutismo só pode acontecer se houver uma consciência
da relação homem/mulher, enquanto medida do grau de civilização no ser social do em-si, que surge no processo de reprodução. Mas
do gênero humano. Ressalta-se o tema da igualdade substantiva para a o ser para-si do gênero somente pode se explicitar inteiramente na
superação de alienações presentes nessa relação. história da humanidade de forma consciente.
A história mostra que a vida social tem início em pequenas
Sociedade e gênero humano comunidades primordiais, em que o trabalho envolvia todos os
membros, independentemente do sexo, e cada indivíduo exercia suas
O gênero é definido, em sentido ontológico, como conjunto atividades de modo a não pôr em risco a sobrevivência do grupo,
de todos os indivíduos que formam um gênero constituído a cuja reprodução dependia inteiramente da interação com a natureza.
partir do trabalho, enquanto categoria do ser social, com a qual Sua base tem caráter objetivo, sem traço algum de determinação
têm início a gênese e o processo de desenvolvimento humano- moral que possa estabelecer as relações entre os indivíduos como
genérico. Originalmente, este gênero é ainda mudo porque não se boas ou más, em relação às de hoje. A vida só seria possível em
encontra inteiramente explicitado em seu caráter social, exposto comunidade, já que o baixo desenvolvimento das forças produtivas
ainda à intensa influência da natureza. O trabalho impulsiona a impossibilitava a sobrevivência individual, e isso permitiu, inclusive,
produção de coisas novas, e essa produção retroage sobre o gênero, o desenvolvimento da linguagem. As primeiras formas de sociedade
desenvolvendo, nos indivíduos que o compõem, novas capacidades não se diferenciavam muito dos bandos em que indivíduos viviam
e novas habilidades. Assim, ocorre um processo de afastamento das da caça e da coleta, sendo este tipo de intercâmbio orgânico com a
barreiras naturais, conforme visto por Marx e por Lukács, no qual o natureza, que fundava as relações então estabelecidas. Mais tarde,
caráter social predomina sobre o natural e constitui, em sua expansão, o conhecimento da natureza, possibilitando a produção de forma
a humanidade, um gênero predominantemente social que, até hoje, mais eficiente, vai permitir a evolução dos grupos humanos, e o
não superou inteiramente o seu mutismo. estabelecimento de relações sociais novas e menos dependentes do
O gênero humano se forma sob o peso integral da influência desenvolvimento biológico. Como afirma Lessa: “a humanidade está
da totalidade das relações vigentes em grupos sociais, sejam tribos, em marcha, mesmo que se trate, ainda, de seus primeiros passos”
pequenas comunidades, nações, sociedades onde os indivíduos vivem (2008, p. 5). Diferentes sociedades floresceram em vários continentes
e agem, e no interior dos quais é produzida a consciência do próprio e se desenvolveram à medida em que os homens produziam
gênero. O desenvolvimento historicamente contraditório do gênero instrumentos de trabalho, e se tornavam capazes de reconhecer os
humano tende à superação de uma humanidade consciente apenas caracteres naturais que lhes permitiam viver e produzir alimentos.
em-si, pois a consciência dessa humanidade se forma e se dissemina As atividades desenvolvidas coletivamente, em cooperação,
socialmente na subjetividade individual, sempre como consciência de eram realizadas por ambos os sexos, conforme as possibilidades de
pertencer a um grupo específico, excluindo outros grupos, indivíduos cada um, cabendo aos mais fortes tarefas mais arriscadas. Nesse
128 129
processo de longa data existe uma divisão do trabalho, segundo Lukács modo que o matriarcado, mas está longe de ser natural, ou comum, ao
“baseada originalmente nas diferenças biológicas entre as pessoas que conjunto das sociedades, podendo, portanto, ser superada.
formam o grupo humano” (1981, p. 138). É evidente que a divisão do A opressão da mulher surge decisivamente como expressão
trabalho entre homens e mulheres era influenciada pelos caracteres do seu lugar social em sociedades de classe. A Grécia antiga, cuja
biológicos, como idade, sexo e força física, ligados à reprodução marca é o escravismo, conheceu formas diversas de alienação da
natural, no sentido de assegurar a continuidade do gênero, mas aí mulher. O fato de somente os homens das classes dominantes
não operavam juízos de valor, em termos de gradação hierárquica de terem o status de cidadãos plenos, com participação nos institutos
poder. Ante a inexistência de classes sociais, Leacock observa que a do poder, é bem evidente dessa relação desigual entre os sexos.
“relação direta entre produção e consumo era intimamente articulada A instituição política formal ali existente compõe o conjunto dos
com a dispersão da autoridade” (LEACOCK, 1981, p. 139), não fenômenos articulados às relações de dominação do homem pelo
havendo organismos regulamentadores para controlar essa relação. homem, e às relações de classe originadas da base econômica -
Eram sociedades completamente distintas das que se conhecem que definia a posição dos indivíduos sociais segundo suas posses.
hoje, porquanto o baixo desenvolvimento das forças produtivas Em sociedades assim, o intercâmbio orgânico com a natureza se
não requisitava mecanismos institucionais ordenadores, uma vez realiza mediante a exploração do homem pelo homem. Nelas,
que não havia tempo para vigiar a atividade do outro, e elas eram as contradições sociais já não podem ser reguladas apenas pelos
reguladas pela autonomia efetiva dos indivíduos na execução de suas costumes e tradições, requisitando instituições, complexos sociais
tarefas. Por isso, a produção econômica prescindia de organismos com relativa autonomia. Daí Lukács afirmar que:
superestruturais, de tal modo que na visão de Lukács: Tão somente num grau superior de construção social, quando
[...] os problemas da cooperação e da convivência social dos homens intervêm as diferenciações de classe e o antagonismo entre as
são essencialmente ordenados segundo os costumes; enquanto os classes, é que surge a necessidade de criar órgãos e instituições
homens são capazes de regular por si mesmos seus carecimentos, específicos, a fim de cumprir determinadas regulamentações
espontâneos e facilmente identificáveis, sem necessidade de um do relacionamento econômico, social, etc., dos homens entre si
aparelho particular (família, escravos domésticos, a jurisdição nas (LUKÁCS, 1981, p. 129).
democracias diretas) [...] (LUKÁCS, 1981, p. 129).
Evidente que se vive hoje em sociedades muito diferentes, tanto
A valorização dos indivíduos se encontrava na capacidade das sociedades primordiais, quanto das antigas sociedades de classe. A
que tinham de contribuir para aumentar a alimentação e assegurar a dinâmica evolutiva, ainda que constituída por momentos de involuções
preservação do grupo, intimamente relacionada ao conhecimento da e diferentes socialidades, criou mundialmente um gênero humano em
natureza. Operavam aí as necessidades do grupo, e as necessidades si, provocando mudanças nas funções sexuais, estabelecidas sob novas
de reprodução estabeleciam o valor dos indivíduos masculinos ou bases de relações sociais, a propósito das quais diz Lukács:
femininos. A fertilidade definia muito desse processo em relação Com ela mudam socialmente as funções na relação entre
à mulher, pelo fato de nesta residir a possibilidade da reprodução homem e mulher, as quais como momentos da divisão social
biológica da espécie, mas a atribuição de criar e cuidar dos filhos era do trabalho causam – independentemente das intenções e
responsabilidade de todo o grupo humano. propósitos das pessoas – novas relações sociais de grande peso,
Assim, as formas de opressão do homem sobre a mulher, mas sem por isto produzir obrigatoriamente, no imediato,
mudanças profundas na relação humana entre homem e mulher,
atualmente conhecidas, não existiam nessas sociedades, o que conduziu mesmo tendo sido criados continuamente novos campos de
Leacock (1981), após longa pesquisa, a questionar os mitos da possibilidades para tais mudanças (LUKÁCS, 1981, p. 577).
dominação masculina como falsos; é que pensadores, ao negligenciarem
a particularidade histórica de determinadas sociedades, e a raiz material Sob o inteiro domínio do capital, constituiu-se o operariado
da opressão, atribuem a esta dominação um caráter universal. Sua industrial, como classe explorada, mediante a extração da mais-
investigação antropológica leva à conclusão de que a dominação valia, fonte básica de enriquecimento pessoal para uma parte da
masculina se fez e se faz presente em sociedades particulares, do mesmo sociedade. A trajetória feminina nesta sociedade particular adquire
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novos contornos, a depender da situação de classe da mulher, mas para os homens, em termos da emancipação política, e nos limites
formas específicas de alienação são nela gestadas. A entrada em estritos da ordem burguesa.
massa da mulher no mercado de trabalho significou o aumento da A existência real da cidadania supõe a mediação do Estado e
exploração de sua mão de obra, com parte das mulheres engrossando a propriedade privada como base. A sociedade regida pelo capital é
as fileiras do operariado. Sob a aparente liberdade que a condição de uma totalidade na qual o indivíduo é reduzido à condição abstrata
operária lhes proporcionava, a opressão e a subordinação não foram de cidadão, mediante a separação entre citoyen e bourgeois. Para Marx:
eliminadas. Muitas vezes tiveram de abandonar seus filhos à própria “o limite da emancipação política manifesta-se imediatamente no
sorte, e enfrentar uma dupla jornada de trabalho, com afazeres fato de que o Estado pode livrar-se de um limite sem que o homem
domésticos historicamente herdados. Sob essa condição, passaram dele se liberte realmente, pois o Estado pode ser um Estado livre sem
a se organizar e lutar não somente por melhores condições de vida que o homem seja um homem livre” (MARX, 1969, p. 23). Não
e de trabalho, bem como pela igualdade em relação aos homens, por se pretende diminuir a relevância de todas essas lutas e aquisições
direitos e pela emancipação feminina. Tanto que para Toledo “se a históricas, pelo contrário, não se deve abrir mão de nenhuma delas.
opressão da mulher não surgiu com o capitalismo, mas nas sociedades Mas superar a opressão feminina sob qualquer forma de alienação
escravistas, foi seu advento e, sobretudo, a Revolução Industrial que na relação homem/mulher constitui algo decisivo para o alcance de
transformaram radicalmente as condições de vida de milhões de uma humanidade para-si. O que se busca é enfatizar que a luta pela
mulheres ao inseri-las no seio da classe trabalhadora” (2005, p. 90). emancipação feminina requer algo mais: a igualdade substantiva, já
Assim, foi o próprio sistema do capital que possibilitou a criação das que sem ela não há como vislumbrar a emancipação humana.
condições objetivas para que a luta das mulheres por sua emancipação
se tornasse uma meta a ser alcançada. Mulher, emancipação e “igualdade substantiva”
A presença das mulheres nas lutas sociais se efetiva desde
momentos revolucionários dos séculos XVIII e XIX, que vão da O avanço das relações entre os sexos é um elemento básico
revolução burguesa de 1789, perpassando as revoluções de 1848, da civilização, representando o grau de afastamento das barreiras
na França, até a Comuna de Paris, em 1871. Nesse processo, as naturais. Quanto a isso, Mészáros recorre a Marx para afirmar que:
mulheres criaram associações que tinham como objetivo a defesa
dos seus direitos. Exemplar neste sentido foi a criação da Sociedade O relacionamento direto, natural e necessário de pessoa a
pessoa é a relação do homem com a mulher. Portanto, desse
Republicana de Mulheres Revolucionárias – SMRR em 1793. Elas relacionamento se pode avaliar o nível de desenvolvimento do
chegaram ao século XX dando continuidade à sua luta por direitos, homem. Nesse relacionamento também se revela a extensão em
pela igualdade e emancipação, ampliando, cada vez mais, a pauta das que a necessidade do homem se tornou uma necessidade humana;
suas reivindicações. portanto, a outra pessoa tornou-se para ele uma necessidade – a
Na atualidade, a luta das mulheres pela cidadania e emancipação extensão em que, em sua existência individual, ele é ao mesmo
tempo um ser social (MÉSZÁROS, 2002, p. 268).
econômica continua na ordem do dia em diferentes países: direito
de votar e ser votada, direito à herança, direito a salário igual ao As relações dos homens entre si, indissociáveis das relações
dos homens, direito a exercer cargos políticos, direito à saúde, à entre os sexos, constituem medida do grau de civilização do
educação, à cultura, entre outros. Em termos mundiais, de acordo desenvolvimento sociogenérico, mas os impulsos alienantes
com as peculiaridades de cada país ou região, esses direitos foram nessas relações compreendem uma diversidade de aspectos e de
legalmente se constituindo, mas são frequentemente desrespeitados interações que se caracterizam como limites ao desenvolvimento
em diferentes países e culturas. Observa-se que a incorporação de uma humanidade para-si. O caráter essencial da alienação
dos direitos políticos foi importante para “alavancar também a se acha no desigual desenvolvimento entre forças produtivas e
participação da mulher trabalhadora nas lutas sindicais de sua classe” indivíduos humanos, em que estes últimos encontram limites
(COSTA, 2001, p. 93). No entanto, sem minimizar a importância para se expressar e se constituir como individualidades autênticas.
dessas lutas, as denominadas “conquistas” dos direitos adquiridos Neste aspecto, a relação entre os sexos adquire um significado
pelas mulheres ao longo dos séculos, caracterizaram-se, tal como
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importante justamente porque, ao expressar o grau de civilização para que a luta das mulheres caminhe na direção de “uma ordem
atingido pela humanidade, retrata os próprios limites à generidade, social justificável sem a imposição dos ditames socioeconômicos da
quando tais relações são mediadas pela opressão de um ser ordem sociometabólica” sobre ela (MÉSZÁROS, 2002, p. 305).
humano sobre o outro, impedindo o desenvolvimento pleno de No processo de luta pela emancipação das mulheres, é visível
sua individualidade. a ausência da prática da igualdade substantiva. Como esclarece
A exigência de emancipação feminina está intrinsecamente Mészáros: “a entrada em massa das mulheres na força de trabalho
associada à emancipação de todos os seres humanos do domínio durante o século XX, em extensão tão significativa que hoje elas
do capital, pois este último é regido por uma hierarquia de já chegam a constituir maioria nos países de capitalismo avançado,
subordinação e de dominação, tanto de classe quanto de sexo. não resultou em sua emancipação” (2002, p. 272). Entretanto, a
Mészáros assevera que em “sua própria natureza o relacionamento tendência preponderante consiste em impor salários mais baixos ao
entre capital e trabalho é a manifestação tangível da hierarquia conjunto da força de trabalho constituída pelas mulheres. Encontra-
estrutural insuperável e da desigualdade substantiva” (2002, p. se aí presente a extração do trabalho excedente assegurada na
306). Até hoje, todos os ganhos adquiridos no relacionamento economia por uma divisão social do trabalho bem peculiar, bem
interpessoal e sexual não ultrapassaram os limites da igualdade como o correspondente modo de tomada de decisão política, sob
formal, pois o “microcosmo” do sistema do capital jamais poderá a ordem sociometabólica de reprodução do capital. Seria necessária
ser regido pelo princípio da igualdade real. Em outro momento, a reestruturação radical de todo o quadro estrutural do sistema
Mészáros afirma: estabelecido no conjunto e nos detalhes como condição fundamental
a emancipação feminina comprova ser o ‘calcanhar de Aquiles’ do à expectativa de uma verdadeira igualdade.
capital: ao demonstrar a total incompatibilidade de uma verdadeira Mas isso não ocorreu até hoje, nem no sistema do capitalismo
igualdade com o sistema do capital nas situações históricas em que privado, nem nas experiências pós-capitalistas. Como afirma Randall:
essa questão não desaparece, não pode ser reprimida com violência “Na verdade, nem as sociedades capitalistas que tão falsamente
(ao contrário do que acontecia com a militância de classes no prometem igualdade nem as sociedades socialistas que prometeram
passado) nem esvaziada do seu conteúdo e ‘realizada’ na forma de
critérios formais vazios (MÉSZÁROS, 2002, p. 224). igualdade, e até mais, adotaram a bandeira do feminismo” (1992, p.
37). A ascensão a cargos políticos por parte das mulheres não tem
Essas assertivas do autor emergem como algo a ser pensado significado mudanças substanciais neste sentido, ainda que a questão
em seu significado mais fundamental. Aparentemente, o uso da da mulher se expresse diferentemente nesses dois modelos societários,
violência contra a mulher, nos moldes da militância de classe do regidos ambos pelo sistema do capital. O próprio sistema da divisão
passado, seria incompatível com o sistema, portanto, seu “calcanhar do trabalho contém os elementos valorativos de continuidade, que
de Aquiles”, porque a mulher representa um polo ineliminável no asseguram a reprodução dos indivíduos e da sociedade. Nele se insere
processo de reprodução do próprio capital. Entretanto, isso não uma distribuição quantitativa e qualitativamente desigual de poder,
significa igualdade substantiva, pois as mulheres foram obrigadas a articulada aos mecanismos reprodutivos dos valores de dominação, e
partilhar uma posição subordinada em todas as classes sociais, até subserviência, necessários ao seu funcionamento.
mesmo porque elas não formam uma classe particular como a do Como se pode observar, há ausência da prática da igualdade
trabalho, mas integram todas as classes. Sua condição subordinada substantiva, porquanto, no processo de luta das mulheres, a sua
tornou claro que o poder nas mãos das mulheres, em qualquer inserção em massa na força de trabalho, no século XX, não resultou
sentido, não podia ser concebido se a dominação e a hierarquia em sua emancipação, muito embora elas hoje constituam a maioria
estrutural de classes continuassem como princípio organizador da nos países avançados. O que Mészáros verifica na atualidade é que
ordem sociometabólica. Não há maneira de se realizar uma efetiva as conquistas obtidas no passado, “possibilitadas pela expansão
emancipação feminina se esta não for acompanhada da modificação dinâmica do capital no momento de sua ascensão histórica” (2002,
substantiva das relações de desigualdade social estabelecidas. Segundo p. 273), sofrem um retrocesso, precisamente quando o processo de
o mesmo autor, a igualdade substantiva é uma condição essencial acumulação encontra maiores dificuldades com a crise contemporânea.
A igualdade das mulheres se expressa na sua entrada como membros
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iguais da força de trabalho consciente, ampliada em alguns lugares que só dirigida contra os impulsos alienantes que derivam do homem, mas
lhe eram anteriormente interditos. Entretanto, elas não encontram deve também apontar em direção à própria autolibertação interior”
espaço para questionar a divisão de trabalho vigente e o seu papel na (1981, p. 592). A mulher não pode tornar-se livre das amarras sociais
estrutura familiar herdada, ou seja, o denominado “segundo turno” das que asseguram ao homem o poder sobre ela, se não promover também
mulheres. interiormente sua liberdade neste campo. Certamente, a capacidade
Outra dimensão essencial do problema é a piora da posição de gerir a própria vida de modo economicamente autônomo trouxe,
das mulheres por causa das mudanças ocorridas na estrutura familiar, dentro de certos limites, mudanças qualitativas nessas relações, e na
resultantes dos ditames do capital, e intimamente associadas à visão da sociedade sobre a mulher, e isso lhe valeu alguma dose de
ampliação do “círculo consumidor”. Os problemas e complicações liberdade, especialmente quanto ao casamento, à sua posição dentro
daí decorrentes são colocados sob a responsabilidade das mulheres, dele, e em relação às alternativas disponíveis para que a mulher pudesse
tornando cada vez mais pesada a carga imposta pelo capital sobre elas viver sem depender do homem.
para conseguir manter a família nuclear. Para Mészáros, o espectro O movimento feminista moderno contém o germe do
da pobreza passa a rondar o universo feminino, piorando a cada dia, progresso nessa direção, pois incide sobre a ideologia do ter, da posse
“em vez de ser aliviada, como pretenderia a retórica da ‘oportunidade do homem sobre o homem, e da posse do homem sobre as coisas
igual para as mulheres’ e da ‘eliminação de qualquer discriminação como fim último de sua vida – aí incluída a posse sobre o corpo e
de gênero’” (2002, p. 302-303). Portanto, a tendência é, no futuro a vida da mulher. Mas a relevância da superação de alienações neste
previsível, o aumento dos níveis de pobreza das mulheres no mundo. campo do desenvolvimento humano jamais deve obscurecer que se
Se a liberação das mulheres tem como eixo central a questão da trata apenas de um momento “da libertação global real”. Este aspecto
igualdade substantiva, essa grande causa histórica lutará por outra que decisivo não pode ser esquecido sem comprometer todo um avanço
jamais poderá se realizar no interior dos limites do sistema capitalista. em direção à generidade autenticamente humano-social. A luta pela
É por essa razão que, nas palavras de Mészáros: “os princípios libertação feminina, apoiada somente na reação às alienações entre
fundamentais constitutivos e as relações efetivas de poder material desta homens e mulheres, corre o risco de representar a mera substituição
última teriam de ser diretamente enfrentados para que a causa histórica de certa alienação por outra, correspondendo, muitas vezes, às
da emancipação das mulheres pudesse chegar a ir além da frustrante formas com as quais os homens alienam a si mesmos alienando as
mentira da ‘igualdade de oportunidades’, que não leva absolutamente mulheres. Ao que tudo indica, os movimentos de libertação da mulher
a lugar nenhum” (2002, p. 290). Isso porque a relação entre capital ainda não alcançaram realmente um alto nível de enfrentamento das
e trabalho é, por sua própria natureza: “a manifestação tangível da contradições no terreno da alienação entre os sexos. Neste particular,
hierarquia estrutural insuperável e da desigualdade substantiva” (2002, a análise crítica de Cecília Toledo (2005), a respeito das tendências do
p. 306). Portanto, o sistema do capital, por sua própria natureza e pensamento feminista contemporâneo, revela como certas tendências
constituição, nada mais é do que a perpetuação da injustiça fundamental. têm permanecido no limite da emancipação política, e o quanto ainda
Assim, um sistema de reprodução sociometabólico de natureza é preciso avançar.
perversa, fundado na divisão hierárquica do trabalho, é estruturalmente
incapaz de conceder oportunidades iguais para as mulheres, ou para os Referências
trabalhadores.
Enfim, a subalternidade sexual da mulher compõe o conjunto das
COSTA, S. A Comuna de Paris e as Mulheres Revolucionárias. Revista Presença
relações de subjugação de humanos sobre outros humanos, constituindo
um empecilho no processo de emancipação do gênero humano. da Mulher, Julho/setembro de 2001, nº 39, ano XIII. Disponível em: http://
Incorporada à vida social, a subalternidade sexual da mulher integra www.ubmulheres.org.br/telas/revista/presen_39.asp. Acesso em junho de
solidamente o comportamento social e afetivo do homem, e impressa 2013.
no comportamento das mulheres, fincou raízes na psicologia feminina LEACOCK, E. Myths of male dominance. Chicago: Haymarket Books, 1981.
ao longo de milênios. Deste modo, para Lukács, a “luta pela libertação LESSA, S. Abaixo o casamento monogâmico! Texto não publicado, 2008.
da mulher contra essa sua alienação, porém, no plano ontológico não é
136 137
LUKÁCS, G. Per l’Ontologia dell’Essere Sociale. Roma, Riuniti, 1981.
MARX, K. A Questão Judaica. Rio de Janeiro: Lambert, 1969.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital: Rumo a uma teoria da transição. São Paulo:
Unicamp/Boitempo, 2002.
RANDALL, M. Gathering Rage: The failure of twentieth century revolution to
develop a feminist agenda. Nova York: Monthly Review Press, 1992.
TOLEDO, C. Mulheres: o gênero nos une, a classe nos divide. São Paulo: Instituto
José Luís e Rosa Sundermann, 2005.

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GILMAISA MACEDO DA COSTA As formulações teóricas defendidas neste livro conduzem a pensar MANIFESTO DE LANÇAMENTO