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Morais dos Santos - Questões contemporâneas e o Serviço Social em tempos de crise estrutural do capital
Ana Paula Ferreira Agapito - Liana Amaro Augusto de Carvalho - Milena da Silva Santos - Silvana Mara
social da Prefeitura Municipal de sobre temas contemporâneos, que permeiam o debate do Serviço
Parnamirim (atua com servidora no Social brasileiro inserido num contexto socioeconômico, político, Atravessamos tempos difíceis!
CONTEMPORÂNEAS
CAPS AD III 24horas) formada em Ser- cultural e ideológico. As contribuições acadêmicas científicas dos/ A tendência da crise estrutural
viço Social, na Universidade Federal de as autores/as de cada artigo agregam significado para compreender vivenciada pelo capital é de
Alagoas (UFAL), Mestra em o desencadeamento da crise estrutural do capital em suas múltiplas agravamento. Consequentemente o
E O SERVIÇO SOCIAL
Serviço Social, pela Universidade determinações. É indispensável o debate critico, reflexivo e propositivo que presenciaremos nos próximos
Estadual da Paraíba (UEPB) e sobre o trabalho e o sentido atual do pauperismo, a “questão social”, a anos será um aprofundamento das
doutoranda em Serviço Social, precarização do trabalho e o conservadorismo, a educação no contexto desumanidades próprias desta ordem
EM TEMPOS DE
na Universidade Federal do da crise estrutural do capital e do avanço do conservadorismo, a social.
Rio Grande do Norte (UFRN). formação profissional em Serviço Social alinhada ao projeto ético-
político diante de “tempos ultraconservadores”, a conjuntura brasileira A reprodução da sociedade capitalista só
CRISE ESTRUTURAL
Liana Amaro Augusto de Carvalho é pós-golpe de 2016, a eleição presidencial em 2018, e o debate é possível, hoje, na medida que
formada em Serviço Social, na feminista, de raça e sexualidade no Serviço Social. As contribuições extermina milhões de vidas humanas,
Universidade Federal da Paraíba (UFPB), teórico-críticas sobre estes temas podem possibilitar aos assistentes por fome ou em guerras sem sentido.
DO CAPITAL
Mestra em Serviço social, pela sociais, discentes, docentes, pesquisadores e outras categorias Além disso, o capital, em crise,
Universidade Federal da Paraíba (UFPB) profissionais afins, desmitificar as particularidades e singularidades das encontra meios de expulsar um
e doutoranda em Serviço Social, contradições vigentes na totalidade social capitalista e suas implicações número enorme de trabalhadores de
na Universidade Federal do concretas na realidade brasileira. seus locais de origem afastando-os
Rio Grande do Norte (UFRN). de seus meios de trabalho e
subsistência promovendo, desta
Milena da Silva Santos é formada em maneira, uma das maiores tragédias
Serviço Social, na Universidade Federal humanas de nossos tempos. Tudo isso
de Alagoas (UFAL); Mestra em Serviço
Social, pela Universidade Federal de
Ana Paula Ferreira Agapito para que estes trabalhadores sirvam
como mão de obra barata nos países
Alagoas (UFAL); e doutoranda em
Serviço Social, na Universidade Federal As obras do Coletivo Veredas podem ser adquiridas pelo preço de
Liana Amaro Augusto de Carvalho centrais a fim de garantir os lucros e a
manutenção do capitalismo.
do Rio Grande do Norte (UFRN). custo, acrescido do frete, em nosso site. Não aceite comprar as nossas
publicações com aqueles que querem obter lucro.
Milena da Silva Santos
Diante desta realidade os trabalhadores
Silvana Mara Morais dos Santos é Silvana Mara Morais dos Santos começam a se movimentar em várias
(organizadoras)
professora do Departamento e do partes do mundo. Podemos mesmo
Programa de Pós-Graduação em Serviço vendas no site: afirmar que estamos nos aproximando
Social da Universidade Federal do Rio www.coletivoveredas.com de um período histórico de acirramento
Grande do Norte e Coordenadora do e aprofundamento da luta de classes.
ISBN: 978-65-88704-04-2
Grupo de Estudos e Pesquisa em
Trabalho, Ética e Direitos Um dos aspectos mais importantes
(GEPTED-UFRN). desta luta é o combate ideológico. E é
para contribuir neste combate
(colocando-se na trincheira ao lado dos
trabalhadores) que nasce o Coletivo
Veredas.
organizadoras:
questões contemporâneas
e o serviço social em tempos de
crise estrutural do capital
Diagramação: Thayná Omena
Revisão: Sidney Wanderley
Capa: Laura de Bona
Catalogação na Fonte
Departamento de Tratamento Técnico Coletivo Veredas
Bibliotecária responsável: Fernanda Lins de Lima – CRB – 4/1717
____________________________________________________________
Q5 Questões contemporâneas e o serviço social em tempos de crise
estrutural do capital / (Organizadoras) Ana Paula Ferreira Agapito
... [et al.]. – Maceió : Coletivo Veredas, 2020.
217 p.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-88704-04-2
____________________________________________________________
CDU: 364.46
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4.0 Internacional. Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecom-
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desde que atribuam o devido crédito ao autor(a) pela criação original.
1ª Edição 2020
Coletivo Veredas
www.coletivoveredas.com
organizadoras:
questões contemporâneas
e o serviço social em tempos de
crise estrutural do capital
1ª Edição
Coletivo Veredas
Maceió 2020
Sumário
Prefácio���������������������������������������������������������������������������������������������7
Silvana Mara de Morais dos Santos
Apresentação����������������������������������������������������������������������������������13
As organizadoras
8
diante a reprodução permanente de sua fúria destrutiva em
face da natureza, do trabalho e do profundo aniquilamento
da subjetividade;
9
central das reflexões desenvolvidas por Bruna Massud, ao tematizá-lo
no universo da ofensiva às expressões culturais no pós-golpe de 2016.
A educação no contexto da crise estrutural do capital e do avan-
ço do conservadorismo unifica a análise de três artigos. Ana Paula Aga-
pito e Carla Montefusco problematizam os desafios contemporâneos
para a educação brasileira. Milena Santos e Liana Carvalho evidenciam
particularidades da formação profissional em Serviço Social no âmbito
da docência no Ensino Superior no Brasil. A formação profissional
volta ao centro da análise no artigo de Jodeylson Sobrinho e Rita de
Lourdes de Lima, que abordam, a partir dos fundamentos ontológicos,
o Serviço Social e as implicações éticas naquilo que caracterizam como
“tempos ultraconservadores”.
Thaisa Matias, Leonardo Carnut e Áquilas Mendes adentram a
polêmica contemporânea posta na conjuntura pós-golpe de 2016, no-
tadamente após a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, sobre a existência
do neofascismo entre nós. Situam a questão nas trilhas perversas de
desenvolvimento da crise estrutural do capital, para “elucidar o deba-
te sobre neofascismo na realidade brasileira, presente como resultado
da escalada de um regime político de legitimidade restrita e sua rela-
ção com o crescimento da dívida pública”. Afirmam que a domina-
ção efetivada pela burguesia a partir da vitória eleitoral das forças da
direita reacionária se desdobra na ruptura com o Estado de Direito e
na vigência de um modo contemporâneo de dominação que vai além
do neoconservadorismo e, embora incorpore elementos comuns, di-
ferencia-se, também, do fascismo em seu sentido político e em sua
existência clássica.
Encerrando a coletânea, Larissa Pinheiro promove uma impor-
tante reflexão sobre o debate feminista, de raça e sexualidade no Ser-
viço Social. Afirma a necessidade histórica, as conquistas e desafios
postos ao fortalecimento dessas questões como dimensões estratégicas
de enfrentamento e combate ao conservadorismo.
Os dez artigos movimentam, assim, análises fundadas em auto-
res clássicos e contemporâneos, notadamente no universo da tradição
marxista, que nos ajudam a decifrar aspectos das grandes armadilhas
postas pelo sistema do capital em seu processo destrutivo em face da
sua crise estrutural.
Por fim, é importante ressaltar que na convivência acadêmica
com este grupo tive a genuína oportunidade de vivenciar o potencial
emancipatório da produção do conhecimento sob a direção social
crítica, em que sobressai a vitalidade da perspectiva de totalidade na
apreensão e análise da vida social, do Serviço Social e do conjunto de
questões e desafios que temos de enfrentar, aliando a dedicação e o
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rigor dos estudos com o afeto e o respeito, tão fundamentais para
seguirmos firmes.
11
Apresentação
As organizadoras
14
Trabalho, pauperismo e serviço social no Brasil
contemporâneo
Introdução
O artigo ora apresentado tem por objetivo analisar os contor-
nos do trabalho no Brasil, as suas implicações para a classe trabalha-
dora e os desafios para o serviço social brasileiro na contemporanei-
dade. A sociabilidade capitalista tem sofrido mutações substantivas,
através de um redirecionamento econômico, político e ideológico
do capitalismo, em resposta à sua crise econômica. Conforme apon-
ta Meszáros (2009), a crise estrutural do capital desenvolvida no fi-
nal dos anos 1960, se intensifica a partir da década de 1970 e traz
aspectos diferenciados das crises cíclicas, pois seu nível de alcance é
abrangente, mostrando-se longeva, sistêmica e estrutural.
Nesse sentido, as estratégias do Capital ao Estado para reto-
mada do crescimento econômico se deram através da reestruturação
produtiva, da financeirização do capital e da política neoliberal. O
Consenso de Washington de 1989, com a finalidade de conter a crise
econômica que se apresentara e fomentar o desenvolvimento dos
países considerados periféricos – principalmente os países latino-a-
1 Assistente Social. Mestre em Serviço Social – Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (PPGSS/UFRN). E-mail: lianacarvalhoss@hotmail.com
2 Assistente Social. Mestre em Serviço Social – Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (PPGSS/UFRN). E-mail: milena_sso@hotmail.com
mericanos, como é o caso do Brasil –, expressou-se através de me-
didas que priorizaram disciplina fiscal, redução dos gastos públicos,
privatização das estatais e a desregulamentação das leis econômicas
e trabalhistas, baseadas na estratégia de um Estado com mínima in-
tervenção econômica para os gastos públicos, principalmente sociais.
Diante desse contexto, a prática profissional do Assistente So-
cial no Brasil exige levar em conta as mediações que, ao tentar cap-
tar o movimento do real, indo além das aparências das demandas
cotidianas, ajusta as suas estratégias profissionais para dar respostas
contundentes à realidade, de acordo com as necessidades sociais dos
usuários dos serviços prestados. Tal movimento configura-se como
um desafio, levando em consideração as multifacetadas expressões
da “questão social”3 com as quais tal profissional lida nos diversos
espaços socio-ocupacionais que ocupa, além da defesa intransigen-
te de valores adotados pelo projeto ético- político que norteia este
exercício profissional e que vão na contracorrente dos determinantes
estruturais do capital.
Adotamos aqui a perspectiva marxiana de entendimento do
real, na qual o trabalho encontra-se na base da autocriação do ser so-
cial, sendo a mediação fundamental para apreender e captar a lógica
presente no emaranhado das relações sociais próprias desta forma de
sociabilidade, pautada pela existência de classes sociais antagônicas
entre si, representadas pelo conflito entre capital e trabalho. Daí en-
fatizamos que estes elementos se tornam compreensíveis com a uti-
lização do método crítico-dialético, que possibilita ultrapassar a apa-
rência dos fatos e alcançar sua essência, pensando-os concretamente.
A fim de analisar os desdobramentos das medidas receitadas
pelos organismos multilaterais na realidade brasileira há de se con-
siderar as particularidades da formação social do nosso capitalismo,
pois se entende que as feições assumidas pelo trabalho devem ser
apreendidas levando-se em conta, sobretudo, o lugar de dependência
e subalternidade em relação aos países de capitalismo central. Isto
aponta para um aprofundamento sempre crescente dos níveis de ex-
ploração de força de trabalho e a ampliação das cifras de riqueza
produzida, que em boa parte é destinada para fora do país. Para tanto,
abordaremos as transformações recentes pelas quais o país vem pas-
sando, materializadas numa tentativa clara de um verdadeiro desmon-
te dos direitos e garantias do trabalho formal.
3 Por “questão social” se quer indicar o conjunto das mazelas próprias da sociedade burguesa,
ou seja, “o conjunto de problemas políticos, sociais e econômicos que o surgimento da classe
operária impôs no curso da constituição da classe capitalista” (NETTO, 2011, p. 17).
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No decorrer do texto situaremos inicialmente os contornos
que o trabalho tem assumido no Brasil a partir de uma análise ini-
ciada em 1930, evidenciando a importância deste momento para a
consolidação de uma forma econômica voltada para uma política
de produção interna a partir do modelo de substituição de impor-
tações, passando pelas décadas seguintes e demonstrando os deter-
minantes históricos das transformações que temos contemporanea-
mente. Em seguida, analisaremos as principais consequências destas
mutações, enfocando o aprofundamento do empobrecimento da
classe trabalhadora. E, por último, elencaremos os desafios postos
ao serviço social no contexto contemporâneo.
17
Obviamente, esse processo se deu satisfazendo o caráter dupla-
mente articulado da nossa economia periférica, isto é, preservando as
bases imperialistas de dominação pela relação de dependência e de
subdesenvolvimento e obedecendo à apropriação dual do excedente
produzido pelos “de dentro” e os “de fora”.
Por esta ocasião, a economia mundial acabava de vivenciar um
episódio de crise cíclica, talvez a de maior envergadura da história do
capital, na qual a Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929 quebra e,
em efeito dominó, provoca um abalo na economia dos países de ca-
pitalismo avançado, relacionada à superprodução e ao subconsumo.
No Brasil, do ponto de vista econômico, esta crise provocou uma
convulsão interna, pois o café produzido, que dependia quase que
exclusivamente da exportação para os países centrais, tornou-se uma
mercadoria sem escoamento, sendo necessária uma nova estratégia
para reanimar a economia.
A partir do contexto que se desenhava no capitalismo global, o
Estado brasileiro começou a intervir na economia com o objetivo de
criar condições para a inserção do modelo urbano-industrial, pela via
da substituição de importações, retirando a centralidade do modelo
agroexportador. Nesta fase, deu o início do processo de consolidação
do mercado de trabalho brasileiro, com a expectativa do predomínio
do assalariamento formal, bem como a formação de força de traba-
lho excedente. Operou-se então uma forte intervenção do Estado
através da fixação de preços, da distribuição de ganhos e perdas en-
tre os grupos capitalistas, do gasto fiscal e até mesmo da esfera da
produção. É dessa forma que até a década de 1950 consolida-se uma
indústria pesada no Brasil (OLIVEIRA, 2003).
Se até então as atividades agrícolas estavam baseadas na explo-
ração intensa de força de trabalho, realizada por modalidades consi-
deradas “primitivas”, mediante a produção de gêneros alimentícios
que eram vendidos tendo como base o custo de reprodução da for-
ça de trabalho rural, é a modernização urbano-industrial que ela be-
neficiará, viabilizando um extraordinário crescimento da indústria e
dos serviços. Ou seja, na nossa particularidade, a relação com o que
era considerado primitivo tornou-se condizente com os objetivos da
acumulação industrial, pois além de fornecer força de trabalho rural,
que formaria um expressivo exército industrial de reserva, proveu um
excedente de alimentos que compunha a dieta do trabalho urbano-
-industrial.
Oliveira (2003) alega que nesta disparidade entre o modelo ur-
bano-industrial e o modelo agrícola é que se encontra a raiz da con-
centração de renda do país. E explica:
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[...] o preço da oferta da força de trabalho urbana se compunha
basicamente de dois elementos: custo da alimentação – deter-
minado pelo custo da reprodução da força de trabalho rural ‒ e
o custo de bens e serviços propriamente urbanos; nestes, pon-
derava fortemente uma economia de subsistência urbana [...],
tudo forçando para baixo o preço da oferta da força de trabalho
urbana e, consequentemente, os salários reais. Do outro lado, a
produtividade industrial crescia enormemente, o que, contra-
posto ao quadro de força de trabalho e ajudado pelo tipo de
intervenção estatal descrito, deu margem à enorme acumulação
industrial nas últimas três décadas (OLIVEIRA, 2003, p. 46).
19
Parece ser inegável que o desenvolvimento latino-americano se
assenta numa base de exploração exponenciada da força de trabalho.
No Brasil, especificamente, observamos que há, em concomitância
com a produção de mais-valia relativa, uma articulação com a pro-
dução de mais-valor absoluto, principalmente pela intensificação da
jornada de trabalho, norteando os níveis de acumulação auferidos.
Retomaremos logo mais a esse debate.
Por ora importa destacar que aos poucos, o governo brasileiro
forneceu as bases para assegurar o controle da força de trabalho pela
via do consenso. Em 1930 Getúlio Vargas criou o Ministério do Tra-
balho, Indústria e Comércio e o salário mínimo com base na cesta bá-
sica brasileira. Mais tarde, no período do Estado Novo (1937-1946),
instituiu a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) pelo decreto-lei
nº 5.452, de 1º de maio de 1943. A legislação trabalhista brasileira
promoveu estratégias de regulação da relação entre capital e trabalho,
em face das necessidades da nova forma de acumulação que se ins-
taurava no país. Assim, “a regulamentação das leis de trabalho operou
a reconversão a um denominador comum de todas as categorias, com o que,
antes de prejudicar a acumulação, beneficiou-a” (OLIVEIRA, 2003,
p. 38-39, grifos do autor).
No governo de Juscelino Kubitscheck (1956-1961), a proposta
era que o país tivesse um crescimento acelerado, de “cinquenta anos
em cinco”, mediante a implantação da indústria de base. Esta foi uma
tentativa política de forçar a aceleração da acumulação por meio da
incorporação de tecnologia, levando ao aprofundamento do endi-
vidamento com o capital externo. Obviamente, foi necessária uma
exploração expressiva da força de trabalho para se chegar a este fim.
Uma vez que o custo de reprodução do trabalhador passa a ser
o do consumo dos bens produzidos pela indústria, desruralizando-se,
ocorre um desequilíbrio entre o consumo e o valor do salário, pois
o salário real não chega a cobrir o custo da reprodução da força de
trabalho. Isto evidencia um processo de empobrecimento à medida
que se registra um aumento expressivo da taxa de exploração da for-
ça de trabalho e uma consequente queda do valor desta, mediante o
salário nominal.
Na verdade, a conjuntura mundial dos “anos dourados”6
do capitalismo alargou a produção e a expansão capitalista em nível
20
mundial, viabilizando uma conjuntura política interna que conciliou
a oferta de empregos com o arrocho salarial, ao gosto da hegemonia
americana e do capital externo. Enquanto os países europeus viviam
o Welfare State7, na tentativa de demonstrar que o capitalismo conse-
guia equalizar níveis de democracia com o crescimento econômico,
o Brasil, assim como outros países da América Latina, era governa-
do por regimes ditatoriais. O período é conhecido pela expansão
da produtividade, a modernização da economia e a entrada massiva
do capital estrangeiro através da facilitação do Estado, obedecendo
a tendência globalmente posta de retomada econômica pelo pacto
keynesiano fordista. Na verdade, o regime autocrático erigido a par-
tir do golpe civil-militar de 1964 resultou na perseguição e morte de
milhares de protagonistas políticos, muitos deles, desaparecidos até
os dias de hoje, pois politicamente, diante das tentativas equivoca-
das de socialismo real8, sobretudo no segundo pós-guerra, fazia-se
necessária uma ação preventiva por parte do Estado para conter a
difusão das ideias socialistas na periferia do mundo.
Nos anos que se seguiram ao esgotamento dos “anos de
ouro”, instaurou-se outra crise que assombrou o mercado petro-
lífero e expandiu-se pelo mundo. Esta crise, a partir de 1970, arre-
feceu a economia capitalista, que recorreu paulatinamente a novas
estratégias a fim de revigorá-lo, como a reestruturação produtiva e
inserção do toyotismo, em gradual substituição do pacto fordista/
keynesiano, e a inserção do neoliberalismo como ideologia política,
econômica e social, reivindicando um Estado mínimo, como disse-
mos de início.
As mudanças de cunho neoliberal, pautadas principalmen-
te pelo ajuste fiscal e a redução dos gastos públicos, produziram
consequências desastrosas, sobretudo pela desconstrução dos direi-
tos e garantias sociais da classe trabalhadora. Conformou-se “uma
redivisão social e internacional do trabalho e uma relação centro/
periferia diferenciados do período anterior, combinada ao proces-
7 Welfere State ou Estado de bem-estar social, foi um fenômeno característico do período
dos “anos dourados” do capitalismo, no qual os governos de alguns países europeus imple-
mentaram políticas sociais mais universalizantes. O que só foi possível devido ao aumento
da taxa de lucratividade por meio da maior extração de mais-valia absoluta nos países
periféricos e de mais-valia relativa nos países centrais do capitalismo.
8 Nos referimos aqui às experiências que, tentando implementar o que Marx chama de so-
cialismo científico, esbarraram em equívocos expressivos que distorceram a ideia original,
fazendo emergir experiências equivocadas de socialismo. O “socialismo real” foi legitima-
do a partir do marxismo-leninismo, cujas similaridades com o pensamento marxiano são
apenas terminológicas.
21
so de financeirização” (BEHRING & BOSCHETTI, 2008, p. 124).
Tem-se, portanto, internamente, a partir de meados dos anos 1980,
o esgotamento do projeto de industrialização nacional massiva e
um contingente populacional de força de trabalho disponível ainda
maior.
Mesmo considerando que a Constituição Brasileira de 1988
tenha sido promulgada com base em ideais democráticos e universa-
listas, conferindo formalmente ao povo brasileiro amplos ganhos no
campo dos seus direitos civis, sociais e políticos, a articulação entre a
chamada “globalização”, com o “neoliberalismo” demonstrou que o
capital não tem nenhum compromisso com o âmbito social (NET-
TO, 2011). Nesse sentido, o que foi preconizado no texto constitu-
cional passa a padecer de efetivação diante do contexto que se ins-
taurou sobretudo na década seguinte, com os governos de Fernando
Collor (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
Desse modo, o Brasil dos anos de 1990 pode ser caracterizado
pela “[...] estagnação do crescimento econômico e a precarização e a
instabilidade do trabalho, o desemprego, o rebaixamento do valor da
renda do trabalho, com a consequente ampliação e o aprofundamen-
to da pobreza, que se estende inclusive aos setores médios da socie-
dade” (GIOVANNI; SILVA; YAZBEK, 2007, p. 23). Além disso, a
instituição do real como moeda reduziu as taxas da inflação, mas isto
não resultou em políticas distributivas. Assim, “transitou-se ‘da po-
breza da inflação’ à ‘inflação da pobreza’, do ‘fim da inflação da moe-
da’ à retomada da ‘inflação da dívida’” (IAMAMOTO, 2010, p. 150).
Em suma, compreendemos que os ajustes impostos pelo recei-
tuário de Washington, fomentando a implantação do neoliberalismo
como política macroeconômica, são expressão da relação imperia-
lista dos países capitalistas centrais para com os países periféricos.
Como já era de se esperar, o ônus destas transformações recaiu, so-
bretudo, nestes últimos. As exigências do grande capital passaram a
girar em torno da globalização da economia e do seu conjunto de
mistificações, identificadas principalmente com a emersão do capital
financeiro e com os fenômenos de flexibilização, desregulamentação
e privatização.
Outrossim, Chossudovsky (1999) afirma que o ajuste estrutural
levou centenas de pessoas ao empobrecimento, operando uma ver-
dadeira “globalização da pobreza”. Para esse autor, o debate se situa
em torno das consequências dos acordos econômicos que regem a
geopolítica global nos países do antigo terceiro mundo, sobretudo
na América Latina e nos países da antiga União Soviética, causando
a tutela da economia pelo capital financeiro, a destruição das econo-
22
mias nacionais, o enfraquecimento das moedas, a dolarização dos
preços e a distorção das causas da pobreza no mundo, assim como
à manipulação dos números sobre o fenômeno.
No ano de 2003, com o fim da gestão de Fernando Henri-
que Cardoso, iniciou-se o governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Os
governos lulistas9 se estenderam até o ano de 2016, com o quarto
mandato interrompido pelo impeachment de Dilma Rousseff, como
consequência de um golpe jurídico institucional10 por ocasião da re-
cessão econômica que se instaurara com mais força. Com a inserção
do Brasil principalmente a partir do ano de 2013 no circuito da crise
mundial deflagrada desde 2008, a estabilidade econômica – susten-
tada em geral pelo aumento do salário mínimo sensível, aumento de
empregos de até 1,5 salário mínimo e a ampliação dos programas
de transferência de renda – que em muito contribuiu para o apare-
cimento de uma suposta “nova classe média”11, cedeu lugar a uma
conjuntura difícil, perpassada por amplos retrocessos no campo dos
direitos do trabalho.
9 Termo cunhado pelo cientista político e jornalista brasileiro André Singer em tese de
livre docência sob o título Os sentidos do Lulismo (ver referências).
10 Para Mascaro (2018) é possível compreender esse debate a partir de três elementos
articulados entre si: a ordem econômica, respeitando a relação entre modo de produção
e formação social; a ordem política materializada na figura do Estado e a ordem jurídica.
Depois do ano de 2008, quando o mundo entra no processo de deflagração da última crise
conhecida, o Brasil era um mercado promissor a se conquistar e os governos do PT apa-
receram como um obstáculo para isso. Alegando uma insuficiência estatal que continuava
sendo incapaz de gerir e administrar uma estrutura interna coesa, articulando burguesia
nacional e internacional para garantir a regulação capitalista e os níveis de acumulação,
partidos de esquerda e movimentos sociais passaram a defender as instituições estatais, a
ampliação pela inclusão pelo consumo, a legalidade, a república e a democracia, utilizando
os instrumentos da sua classe opositora como armas para lutar numa conjuntura de cri-
se, revelando contradição. Por mais que a bonança dos governos lulistas tenha oferecido
um limite a crise que circundava o país, principalmente pela estratégia do fortalecimento
do mercado interno, da qual a ampliação dos programas de transferência de renda são
parte inequívoca, as jornadas de junho de 2013 acenaram a entrada definitiva do país na
conhecida crise de 2008, o que desembocou numa crise política estatal, tornando o poder
judiciário forte protagonista do processo. Essa determinação econômica encontrou esteio
na sobredeterminação jurídica reclamada pela crise, garantindo o direcionamento e a ma-
nutenção do golpe desferido em 2016, mas gestado desde 2013. Esse foi, portanto, um
golpe de classe, que promoveu não apenas um rearranjo da concorrência entre as frações
internas e externas do capital, mas, ainda, um golpe da classe burguesa contra as classes
trabalhadoras, articulando a forma política estatal e o judiciário em nome dos anseios do
grande capital, garantindo a acumulação.
11 Sobre o debate da chamada “nova classe média” ver Pochmann, 2012.
23
Com a saída de Dilma Rousseff da presidência, Michel Temer
assume o poder, eleito como vice-presidente do último mandato do
PT, apesar de ser do MDB. Temer ficou no poder até o ano de 2018,
mas a sua breve passagem pela presidência teve efeitos destrutivos
para os direitos dos trabalhadores, através do aprofundamento das
estratégias neoliberais no país. E nesse contexto recente a legislação
trabalhista brasileira, enquanto garantia jurídico-formal desses direi-
tos, vem sendo desconstruída à medida que avançam as crescentes
exigências e pressões do sistema global sobre a economia nacional.
Uma prova cabal desta última alegação foi a aprovação da
Emenda Constitucional nº 95, ainda no ano de 2016, no governo
Temer. Tal medida instituiu o congelamento dos gastos públicos por
vinte anos, com o objetivo de equilibrar as contas públicas12, afetando
principalmente a operacionalização das políticas de saúde e educação.
Para a OXFAM (2017)13, a austeridade no Brasil é uma série violação
de direitos, contradizendo a Constituição Federal, de modo que “a
EC 95, em particular, não é um plano de estabilização fiscal, mas
um ataque aos direitos humanos dos brasileiros – em especial, das
mulheres, dos negros e daqueles em maior risco de pobreza – o que
aumenta a desigualdade social e econômica” (p. 7).
Além disso, foi sancionada a lei nº 13.429, em março de 2017,
também conhecida como nova lei da terceirização, alterando os dis-
positivos da Lei no 6.019, de 1974, sobre o trabalho temporário. Pela
legislação anterior, os trabalhadores que exercessem as mesmas fun-
ções dos contratados em regime CLT deveriam receber os mesmos
benefícios. Além disso, por Jurisprudência do Tribunal Superior do
Trabalho só era possível terceirizar atividades meio, e pelo período
máximo de até noventa dias. Com a nova lei qualquer atividade pode
ser terceirizada. A empresa prestadora de serviços não tem a obriga-
ção de garantir aos seus funcionários terceirizados os mesmos benefí-
cios que os demais, mesmo em exercício do mesmo cargo14. Outros-
sim, os contratos passam a ter 180 dias e poderão ser prorrogados
por mais 90 dias. Em suma, a nova lei aumentou a precariedade dos
24
vínculos, estendeu o tempo do contrato e possibilitou a terceiriza-
ção de atividades fim.
Para o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos
Socioeconômicos (DIEESE) a nova lei de terceirização reforça a
lógica arcaica das relações de trabalho brasileiras, relacionando-se
diretamente com uma ampliação da precarização. Assim, através da
terceirização,
[...] do ponto de vista econômico, as empresas procuram otimi-
zar seus lucros pelo crescimento da produtividade, pelo desen-
volvimento de produtos com maior valor agregado ‒ com maior
tecnologia ‒ ou ainda devido à especialização dos serviços ou
produção. Buscam, como estratégia central, otimizar seus lucros
e reduzir preços, em especial, por meio de baixíssimos salários,
altas jornadas e pouco ou nenhum investimento em melhoria
das condições de trabalho, que passam a ser de responsabilidade
da subcontratada. Do ponto de vista social, podemos afirmar
que a grande maioria dos direitos dos terceirizados é desrespei-
tada, criando a figura de um “trabalhador de segunda classe”,
com destaque para as questões relacionadas à vida dos trabalha-
dores (as), aos golpes das empresas ‒ que fecham do dia para a
noite e não pagam as verbas rescisórias aos seus trabalhadores
empregados ‒ e às altas e extenuantes jornadas de trabalho. As
empresas terceirizadas abrigam as populações mais vulneráveis
do mercado de trabalho: mulheres, negros, jovens, migrantes e
imigrantes [...]. A empresa terceira gera trabalho precário e, pior,
com jornadas maiores e ritmo de trabalho exaustivo, acaba, na
verdade, por reduzir o número de postos de trabalho [...]. A
terceirização está diretamente relacionada com a precarização
do trabalho (2014, p. 9).
25
uma empresa de forma exclusiva e contínua sem que se configure
o vínculo empregatício; e o home office, com livre negociação entre
empregado e empregador a respeito das responsabilidades e remune-
ração. Sobre o regime de férias, o trabalhador poderá ter o período e
a respectiva remuneração fracionada em três parcelas. Em relação à
jornada de trabalho respeita-se a determinação constitucional formal
de não ultrapassar quarenta e quatro horas semanais. No entanto, o
intervalo do expediente maior de seis horas se tornou negociável,
com no mínimo trinta minutos de duração. Além disso, deixam de
ser considerados como parte da jornada de trabalho atividades como
higiene pessoal, alimentação e estudos. De modo geral, tem-se que
o negociado prevalece sobre o legislado, de maneira que os acordos
coletivos poderão ser diferentes do que estabelece a nova CLT.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IB-
GE)16, no mês de agosto de 2019, a taxa de desemprego no país teve
uma pequena queda em comparação ao trimestre anterior, passando
de 12,5% para 11,8% da população economicamente ativa. Para o
órgão, este resultado se deve principalmente à ampliação das ocupa-
ções informais. Aproximadamente dois anos depois da aprovação da
nova lei de terceirização e da reforma trabalhista podemos dizer que,
de maneira geral, ainda não se observam os efeitos previstos pelos
seus preconizadores. O que se tem são pífios efeitos nos índices de
desemprego, mediante o avanço de ocupações precárias.
Recentemente, com o governo de Jair Messias Bolsonaro, ou-
tras medidas concernentes ao trabalho têm sido adotadas. A mini
reforma trabalhista, instituída pela lei 13.874, de setembro de 2019,
preconizou a declaração dos direitos da liberdade econômica, com o
objetivo de reduzir a burocracia nas atividades econômicas, gerando
segurança jurídica ao patronato e novos empregos, aprofundando a
inserção dos ditames neoliberais no país. As principais mudanças17
instituídas foram: a liberação de horários de funcionamento dos es-
tabelecimentos, inclusive em domingos e feriados, sem que para isso
esteja sujeita a cobranças ou encargos adicionais; os registros de pon-
to passam a ser obrigatórios para empresas com mais de vinte fun-
cionários, permitindo-se o registro de ponto por exceção à jornada
26
regular de trabalho, mediante acordo individual ou coletivo com o
empregador; e dispensa do alvará de funcionamento para empresas
que oferecem baixo risco.
No mês de novembro do ano de 2019 também foi sancio-
nada a Medida Provisória nº 905, instituindo novas alterações na
legislação trabalhista, previdenciária e tributária, bem como o con-
trato verde e amarelo, como uma nova modalidade de contratação
de trabalho, voltada especificamente para brasileiros entre dezoito e
vinte e nove anos de idade, inseridos em novos postos de trabalho.
Em geral, podemos citar como principais mudanças a possibilidade
de trabalho aos domingos e feriados, inclusive para o magistério, e
a não obrigatoriedade de registro profissional para várias categorias
profissionais.
Diante do exposto, percebemos que a EC 95/2016, a nova lei
da terceirização, a reforma trabalhista de 2017, a mini reforma de
2019 e a MP 905, têm evidenciado um aprofundamento do modelo
político e econômico neoliberal no Brasil. A partir disso, constata-se
um processo paulatino de desconstrução do trabalho formal, com
a proliferação de normatizações que fomentam em larga escala as
formas terceirizadas, marcadas pelo empreendedorismo, cooperati-
vismo, livre negociação entre empregado e empregador e apelo ao
trabalho informal e desprotegido. Sem dúvida, estas transformações
levam a uma precariedade ainda maior das condições de trabalho
de milhares de trabalhadores no país, bem como à redução drástica
dos seus direitos em nome do bom andamento do mercado interno,
resguardando os interesses do Estado e do patronato, viabilizando o
seu objetivo maior: amplas e crescentes taxas de lucro.
Como avalia Pochmann (2008), dos anos 1990 até a contem-
poraneidade o trabalho no Brasil passou a se caracterizar pelo de-
sassalariamento, precariedade e desemprego. Diferente de outros
países, o Brasil não constituiu um sistema público de emprego, com
medidas para o mercado formal e informal de trabalho. As consequ-
ências desse processo são de várias ordens. Entre elas, destacamos o
aprofundamento dos níveis de pauperização dos trabalhadores bra-
sileiros, sobre o qual trataremos a seguir.
2 O pauperismo no Brasil
27
conceitos, pois não existe um parâmetro único para identificar o que é ser
pobre. Internacionalmente, o que se verifica são tentativas de aproxima-
ção pela utilização de análises quantitativas, através de índices ou cálculos
que levem em conta diferentes indicadores.
Nas produções científicas, sobretudo nas de cunho liberal, parece
consensualmente aceita a visão pela qual a pobreza é entendida como
ausência de renda, na qual a linha de pobreza ou de extrema pobreza,
também denominada como linha de indigência, determinada pela renda
do indivíduo ou expressa em frações do salário mínimo vigente. No Bra-
sil, como preconiza a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) de
2004, as linhas de pobreza estabelecidas são baseadas nas frações do sa-
lário mínimo, utilizando-se o critério da renda. A linha de pobreza é de ½
salário mínimo per capita, e a de extrema pobreza, de ¼ do mesmo salário.
De acordo com a perspectiva que norteia esta exposição, a po-
breza característica do modo de produção capitalista, denominada por
Marx de pauperismo, constitui uma expressão do desenvolvimento do
próprio capital. A interpretação marxiana acerca do referido fenômeno
incorpora a luta de classes numa perspectiva de totalidade, de forma que
o pauperismo está diretamente associado ao conflito entre capital e tra-
balho e aparece como elemento resultante da relação social que se repro-
duz na acumulação capitalista. Em outros termos, através da capacidade
própria do trabalho humano de criar valor, o trabalhador começa a so-
frer um processo de pauperização ainda no âmbito da produção, pois “o
trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz [...]”
(MARX, 2001, p. 111). Assim, a pauperização da classe trabalhadora não
aparece como um fenômeno isolado, mas remete a um processo iniciado
ainda sob a lógica da produção de mercadorias, uma vez que a arquitetura
do trabalho é determinante para os níveis de empobrecimento de uma
sociedade.
Isto nos leva a analisar esta nova forma de pobreza, que é caracte-
rística da sociabilidade capitalista, como uma das primeiras expressões da
“questão social”, uma vez que esta pobreza tem uma determinação social
e não mais é resultado apenas de possibilidades produtivas. Pela primeira
vez na história da humanidade a pobreza não é mais resultante da escas-
sez e nem do baixo desenvolvimento das forças produtivas. Ao contrário,
em meio a abundância de produção, aqueles que realizam a produção
social pouco tem acesso aquilo ao que produzem (NETTO, 2011).
Como visto anteriormente, a análise acerca dos efeitos que a acu-
mulação exerce sobre o destino da classe trabalhadora aparece no edifício
teórico marxiano especificamente na Lei Geral da Acumulação Capitalis-
ta, situada no capítulo XXIII de O Capital, quando Marx discorre sobre
esta tendência sócio histórica e examina a influência que o aumento do
28
capital exerce sobre a classe trabalhadora. A referida lei afirma que
Quanto maiores forem a riqueza social, o capital em funcionamen-
to, o volume e o rigor de seu crescimento e, portanto, também a
grandeza absoluta do proletariado e a força produtiva de seu tra-
balho, tanto maior será o exército industrial de reserva. A força de
trabalho disponível se desenvolve pelas mesmas causas da força ex-
pansiva do capital. A grandeza proporcional do exército industrial
de reserva acompanha, pois, o aumento das potências da riqueza.
Mas quanto maior for esse exército de reserva em relação ao exér-
cito ativo de trabalhadores, tanto maior será a massa de superpopu-
lação consolidada, cuja miséria está na razão inversa do martírio do
seu trabalho. Por fim, quanto maior forem as camadas lazarentas
da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior
será o pauperismo oficial. Essa é a lei geral, absoluta, da acumulação
capitalista. (MARX, 2013, p. 719-720, grifos do autor).
29
dos padrões de alimentação e moradia, do aumento do desemprego,
assim como pela intensificação do ritmo de trabalho. Outrossim, a
pauperização relativa ocorre quando a parte da riqueza produzida
pelo trabalhador torna-se proporcionalmente menor em relação ao
total de valores produzidos. Este é um processo no qual se aumenta
a distância entre o montante de valores criados e a parcela de riqueza
da qual este produtor se apropria.
A partir da contribuição marxiana e pela tendência historica-
mente dada, é possível verificar que a forma predominante de ex-
tração de mais-valia no modo de produção capitalista é a relativa,
em detrimento do crescimento das organizações operárias e de seu
amadurecimento político (NETTO & BRAZ, 2008). A forma rela-
tiva tende a ser evidenciada não apenas pela incorporação de novas
tecnologias ao processo produtivo – que obviamente facilitam e po-
tencializam a extração do sobretrabalho – mas também pelas formas
de resistência do operariado, expressas pela sua organização política
e sindical, ao procedimento absoluto.
Atentemos agora especificamente ao pauperismo na realidade
brasileira. Segundo a Fundação Getúlio Vargas, a chamada Classe C
correspondia em 2010 a aproximadamente 95 milhões de brasileiros.
Isto equivalia naquele momento a 50,5% da população do país. No fi-
nal de 2015, o jornal O Estadão estampou que os 3,3 milhões de famí-
lias brasileiras que haviam ascendido à classe C voltaram a despencar
para as classes D e E. Ainda segundo a referida fonte, esta migração
ao estrato de origem deve-se ao fato do fechamento de vagas, com
uma alta impressionante do desemprego, restrições e encarecimento
do crédito, assim como ao fato de que o salário médio real que parou
de subir.
A síntese de Indicadores Sociais do ano de 201719 publicada
pelo IBGE alegou que aproximadamente 25,4% da população do
país, o equivalente a 50 milhões de brasileiros, vivia naquele momen-
to na linha de pobreza. As regiões mais atingidas eram a Norte e a
Nordeste, correspondendo a aproximadamente 43,5% da população.
Para o Banco Mundial, em 2019 a estimativa total de pessoas
na miséria no Brasil quase dobrou em relação ao período de 2014
a 2017, saindo de 5,6 para 10.1 milhões de pessoas, totalizando um
salto percentual de 15,4 para 23% de extremamente pobres20. Dados
30
do Cadastro Único do Ministério da Cidadania21 referentes ao mês
de agosto do ano de 2019 já mostram que o quantitativo em pobreza
extrema no país atinge aproximadamente 13,2 milhões de pessoas,
com um aumento de aproximadamente 500 mil pessoas na miséria
comparado aos sete últimos anos. A região nordeste aparece com a
maior incidência, principalmente nos estados do Piauí, Maranhão e
Paraíba, respectivamente.
O IBGE, através da Pesquisa Nacional por Amostra de Do-
micílios (PNAD Contínua) divulgou no mês de outubro de 2019
que a média salarial de metade das famílias brasileiras é de R$413,00
mensais, isto é, aproximadamente meio salário mínimo. Para a pes-
quisa os altos índices de desemprego e informalidade são os res-
ponsáveis por este cenário, uma vez que as ocupações informais
cresceram aproximadamente 500% de 2015 a 201822, enquanto os
trabalhadores sem carteira assinada somam o quantitativo recorde
de 11,8 milhões de trabalhadores no país23.
Ainda, de acordo com o brasileiro José Graziano, diretor geral
da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agri-
cultura (FAO), o Brasil pode ter tido na ampliação do desemprego
um motivo consistente para voltar a fazer parte do chamado Mapa
da Fome24. Acresce-se a isso o fato de que no mesmo ano, segundo
o Ministério da Saúde, 5.653 pessoas morreram de desnutrição no
Brasil, conformando uma média de mais de 17 pessoas que morrem
de fome por dia25.
Já de acordo com o Departamento Intersindical de Estatís-
31
ticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), no mês de setembro
de 2019 a disparidade entre o salário mínimo nominal e necessário26
continua gritante. Mesmo considerando que em janeiro do referido
ano o salário mínimo teve um acréscimo, passando a valer oficial-
mente R$ 998,00, o necessário para garantir a sobrevivência é de
aproximadamente R$ 3.980,0027.
Utilizando-nos do aporte marxiano para lidar com os processos
de pauperização no Brasil e diante desse contexto, parece ser evidente
que, os trabalhadores vêm apresentando uma queda no seu padrão de
vida, aqui entendido como privação do acesso a alguns bens neces-
sários a sua reprodução enquanto força de trabalho e da sua família.
Se existia uma queda das camadas ascendentes da classe C para as D
e E, observa-se que, com o passar dos anos, esse contingente passou
a voltar a fazer parte não apenas da classe pobre da sociedade, mas
principalmente da miséria. Parece consensual que, entre as regiões do
país, o Nordeste segue sendo o mais atingido, amargando um quan-
titativo alarmante. Isto representa uma maior concentração de renda
neste contexto de crise estrutural, no qual uma parcela cada vez me-
nor da classe trabalhadora consegue acessar mais riqueza socialmente
produzida, afunilando cada vez mais os setores de capitalistas que
concentram e centralizam capitais.
Considerações finais
26 “A pesquisa da Cesta Básica de Alimentação (Ração Essencial Mínima) realizada hoje
pelo Dieese em 27 capitais do Brasil acompanha mensalmente a evolução de preços de treze
produtos de alimentação, assim como o gasto mensal que um trabalhador teria para com-
prá-los [...]. O salário mínimo necessário, também divulgado mensalmente, é calculado com
base no custo mensal com alimentação obtido na pesquisa da Cesta” (DIEESE, 2016, p. 8).
27 Dados divulgados em https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.
html. Acesso em 10 de outubro de 2019.
32
seu avanço, destaca-se o aprofundamento do pauperismo.
O quadro que vem historicamente se desenhando sobre a re-
lação entre pauperismo e trabalho é inequívoco. A arquitetura do
primeiro tem impactos diretos sobre o último. Pode-se dizer que
a história das particularidades do capitalismo brasileiro elucida as
marcas persistentes de um desenvolvimento que se fez à maneira
do imperialismo, conservando os laços de dependência, a partir da
exploração massiva de força de trabalho, e evidenciando a luta das
classes internas. O desenvolvimento desigual e combinado que se
opera na particularidade brasileira tem aprofundado estes laços de
dependência direta dos países centrais, com o objetivo de manter
um quantitativo de riqueza produzida sempre capaz de satisfazer a
esta relação e que se torna determinante para o lugar ocupado na
divisão social e técnica do trabalho no mundo.
À medida que o Estado brasileiro facilita a apropriação inter-
na do grande capital, reforça a sua condição de subalternidade. A
forma como as relações políticas são conduzidas guarda identida-
de com este processo de apropriação. Assim, a política do Estado
brasileiro expressa-se visando garantir que as relações sociais e pro-
dutivas, mantendo uma economia de agroexportação e de cunho
urbano-industrial incipiente, atendam às necessidades do capital
internacional, sem romper os laços de dependência com os países
centrais e, em última instância, reproduzindo em nível periférico as
relações sociais capitalistas.
Mesmo que o quantitativo exposto utilize o critério de renda
para definir o que vem a ser pobre ou miserável no Brasil, as péssimas
condições nas quais os trabalhadores vem se inserindo atualmente
no mercado de trabalho, principalmente na modalidade informal,
denunciam que a essência exploradora do capitalismo continuou a
mostrar-se em intensos processos de pauperização relativa da clas-
se trabalhadora em concomitância ao empobrecimento absoluto, o
que acaba por desvalorizar o valor desta força de trabalho envol-
vida na produção de rendimentos. Dada a arquitetura do trabalho
nos limites de um país de desenvolvimento desigual, combinado e
dependente, o retorno do pauperismo absoluto junto ao relativo é
uma realidade, tendo em vista que o próprio movimento do real tem
demonstrado uma queda geral no padrão de vida da classe trabalha-
dora, que atualmente se encontra em posição defensiva.
Observando-se o salário mínimo como referência para suprir
as necessidades do trabalhador inserido principalmente no traba-
lho formal e da sua família pela via de consumo, este quantitativo
aparece como insuficiente para dar conta da reprodução biológica e
33
histórico moral das suas necessidades. A lógica exploratória que tem
como expressão concreta o salário admite apenas que o trabalhador se
reproduza enquanto força de trabalho, e tenha pífio acesso aos bens
determinados como necessários diante da conjuntura desse tempo his-
tórico.
Em relação ao trabalho informal a situação se agudiza, seja pela
precariedade dos vínculos, quando eles existem, ou ainda pelas condi-
ções de trabalho e insegurança social. Outrossim, associa-se a isso o
fato de que vários trabalhadores têm garantido o seu sustento e da sua
família a partir de múltiplas iniciativas que complementam a pequena
renda familiar. Tais estratégias vão desde a realização de bicos, faxinas,
produção de pequenos lanches para venda, bem como a comercializa-
ção de itens cosméticos ou de perfumaria, transporte de passageiros ou
lanches por aplicativos e trabalhos freelancers.
Assim, o leque de necessidades que emergem da classe traba-
lhadora fica completamente aquém da ação do Estado. Para além do
processo de desresponsabilização deste último, pelas expressões que se
desenvolvem do conflito fundante desta forma de sociabilidade, o Es-
tado tem se mostrado incapaz de garantir políticas efetivas de proteção
social, revelando-se conivente aos interesses da reprodução dos níveis
de acumulação internamente, à custa da força de trabalho abundante-
mente explorada.
Portanto, nesse tempo histórico os desafios para o exercício pro-
fissional do assistente social se ampliam massivamente, pois à medida
que as expressões da “questão social” ganham novas faces, amplia-se
também a necessidade do capital num maior controle da classe traba-
lhadora que permita a sua reprodução e permanência da extração de
trabalho excedente. Conjuntamente a isto a reinvindicação pela conti-
nuação também de direitos sociais se acirra. Ou seja, a confrontação da
luta entre as classes fundamentais tende a crescer.
Contudo, como profissional também inserido na divisão social
e técnica do trabalho, a referida conjuntura chega até mesmo a atin-
gir as condições objetivas de reprodução deste profissional e da sua
família, pois o mesmo encontra-se submetido às condições adversas
de trabalho recentemente legalizadas, priorizando em última instância
a continuidade desta forma de sociabilidade, mantendo o objetivo de
assegurar taxas médias de lucro à custa da ampla exploração de força
de trabalho. Nesse sentido, o profissional do serviço social sofre du-
plamente os efeitos de tais transformações no mundo do trabalho: seja
pelo desafio de viabilizar direitos enquanto os mesmos estão sendo
gravemente ameaçados e destituídos da classe trabalhadora, seja pela
garantia da sua própria sobrevivência enquanto parte desta classe.
34
Referências
35
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Claret Ltda., 2001.
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Boitempo, 2003.
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ira. São Paulo: Boitempo, 2012.
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http://pierre.salama.pagesperso-orange.fr/art/pobreza_luz_no_fim_do_
tunel@br.pdf. Publicado em 2010. Acesso em janeiro de 2013.
SALAMA, Pierre & VALIER, Jacques. Pobrezas e desigualdades no 3º mun-
do. Trad. Catherine M. Mathieu. São Paulo: Nobel, 1997.
36
A “nova questão social” a partir de uma análise
marxista
Introdução
2 De acordo com Iamamoto (1998), diferentemente do que acontecia com os sujeitos que
desenvolviam ações caritativas tímidas e pulverizadas, o profissional de Serviço Social recebe
“um mandato diretamente das classes dominantes para atuar junto à classe trabalhadora”
(1998, p. 83), o qual “se insere numa relação de compra e venda”, constituindo-o como
trabalhador assalariado e rompendo com o voluntariado característico das atividades que
aconteciam anteriormente e que perduram até os dias atuais (p. 85).
3 O Serviço Social possui duas perspectivas que tratam sobre sua origem. A primeira
é a perspectiva endogenista, cujos defensores, embora com algumas diferenças,
situam o surgimento do Serviço Social a partir da organização da caridade e da
filantropia, por meio de ações e vontades pessoais, sejam da Igreja, sejam do
Estado. Nas palavras de Montaño (2007, p. 27), em uma “perspectiva endógena, o
tratamento teórico confere ao Serviço Social uma autonomia histórica com respeito
38
O Serviço Social é uma profissão que foi criada para “parti-
cipar na reprodução tanto da força de trabalho, das relações sociais,
quanto da ideologia dominante” (MONTAÑO, 2007, p. 31). Nessa
atuação, por meio das políticas sociais – respostas às refrações da
questão social que são determinadas socialmente por condições so-
ciais objetivas –, faz-se necessário identificar, a partir de uma infle-
xão crítica, o que, na realidade, é a questão social.
39
condição de existência do modo de produção capitalista. Ela cons-
titui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao
capital de maneira tão absoluta como se ele tivesse criado por sua
própria conta. Ela fornece a suas necessidades variáveis de valori-
zação o material humano sempre pronto para ser explorado, inde-
pendentemente dos limites do verdadeiro aumento populacional.
40
deve-se, exclusivamente, a esta. Já Marx afirma que “[...] a acumula-
ção de riqueza num polo é, ao mesmo tempo, a acumulação de misé-
ria, o suplício do trabalho, a escravidão, a ignorância, a brutalização
e a degradação moral no polo oposto [...]” (MARX, 2013, p. 877).
A pobreza é produzida nas engrenagens do modo de produ-
ção que se desenvolve com base na exploração da força de trabalho,
na extração e acúmulo de mais-valia, caracterizando uma “pobreza que
crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir rique-
zas” (NETTO, 2001, p. 42, grifos do autor).
Enquanto no estágio do capitalismo concorrencial a questão
social era tratada de modo pontual – por meio da ação da polícia e/
ou de ações caritativas e filantrópicas, na maioria das vezes, efetua-
das pela Igreja católica –, no capitalismo monopolista, a partir do
momento em que as expressões da questão social passam a ameaçar
a sociabilidade burguesa é que surgem as primeiras intervenções sis-
tematizadas com o intuito de controlá-las.
Como explica Iamamoto (1998, p. 77):
A questão social não é senão as expressões do processo de for-
mação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso
no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento
como classe por parte do empresariado e do Estado. É a ma-
nifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o
proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de
intervenção, mais além da caridade e repressão.
41
polícia é posta como primeira medida interventiva. No entanto, o
Estado, ao passo que reprimia duramente os trabalhadores, também
iniciava a regulamentação das relações de produção com a criação de
legislações fabris, tais como a definição de uma jornada normal de
trabalho5. Estas legislações foram precursoras do papel do Estado na
relação com a classe trabalhadora e os direitos sociais no século XX.
Depois começam a efetivar as políticas sociais que, segundo
Behring e Boschetti (2008), são consideradas desdobramentos e até
respostas e uma forma de enfrentamento das refrações da questão
social. Não há precisão na data de seu surgimento, mas as políticas
sociais situam-se na trajetória da crescente intervenção do Estado, a
partir do início da Revolução Industrial.
De acordo com Netto (2011, p. 29), “[...] só a partir da concre-
tização das possibilidades econômico-sociais e políticas segregadas
na ordem monopólica [...] que a ‘questão social’ se põe como alvo de
políticas sociais”.
É importante destacar que a origem da questão social se alicer-
ça na exploração da força de trabalho, a partir da qual uma classe (a
burguesa) consegue obter lucro por meio da extração de mais-valia
de outra classe (a trabalhadora). A classe burguesa apropria-se do
trabalho não pago para seu usufruto pessoal e para o reinvestimento
em sua produção.
Desse modo, independentemente de o trabalhador estar em
pior ou em melhor condição de vida e reprodução, existindo essa de-
sigualdade, que é fundamental no conflito capital x trabalho, continua
a existir a questão social.
5 Para mais detalhamento sobre esse processo, ver Livro I, capítulo 8 d’O Capital, que mos-
tra como a regulamentação da jornada de trabalho derivou de um processo violento e pro-
longado.
42
de intervenção do Estado que, como afirmam Behring e Boschetti
(2008), foi uma experiência reduzida no tempo, durando cerca de
trinta anos (iniciando no Pós-Segunda Guerra Mundial e declinan-
do durante a década de 1970) – os chamados “anos gloriosos do
capital” –, e no espaço, haja vista que apenas em alguns países da
social-democracia localizados na Europa nórdica e na Europa Oci-
dental, além dos Estados Unidos, conforme Netto (2001), houve a
implementação de medidas que favoreceram significativamente os
trabalhadores.
Denominado por alguns como Welfare State, Estado Providên-
cia ou Estado de Bem-Estar Social6, caracterizou-se pela efetivação
dos direitos de cidadania e pleno emprego para a classe trabalha-
dora. Foi uma estratégia baseada no keynesianismo que facilitou a
expansão do capital no Pós-Segunda Guerra e propiciou momentos
interessantes à classe trabalhadora.
De acordo com Netto (2001, p. 47), devido a esse período
próspero do capitalismo, alguns teóricos chegaram a afirmar que a
questão social teria sido superada7. Essa afirmação desconsidera as
análises marxianas que revelaram a lei geral de acumulação capitalis-
ta, a pauperização absoluta e a pauperização relativa. Estas provam
que o desenvolvimento do modo de produção capitalista não está
centrado na melhoria de distribuição de riqueza, mas na crescente
concentração de capital, o que vai gerar o empobrecimento da classe
trabalhadora e o aumento da desigualdade. Assim, mesmo melho-
rando suas condições de vida, o trabalhador acessa muito menos
riqueza produzida do que o capitalista.
A partir da década de 1970, a experiência do Welfare State co-
meça a entrar em declínio; a produção fica estagnada, trazendo pre-
juízos ao modo de produção capitalista. Essa crise se caracterizou
como uma crise de superprodução (BEHRING; BOSCHETTI,
2008, p. 116), na qual houve uma diminuição das taxas de lucro, o
que levou ao fenecimento do fordismo.
A resposta à crise se deu nos campos econômico, político e
sociocultural (CANTALICE, 2013, p. 65). No que se refere ao eco-
6 Para maior detalhamento sobre os tipos de Estado de Bem-Estar Social, conferir a tese
de Camila Potyara Pereira, intitulada Proteção Social no Capitalismo: contribuições à críti-
ca de matrizes teóricas e ideológicas conflitantes, 2013.
7 Netto (2001) acrescenta que a experiência do Welfare State vivenciada em alguns paí-
ses europeus e a do New Deal americano fizeram com que os teóricos “esquecessem” a
desigualdade inerente ao conflito capital x trabalho, bem como a realidade dos países da
periferia do capital.
43
nômico, deu-se a reestruturação produtiva, substituindo o fordismo pelo
toyotismo, que se baseia na produção de acordo com a demanda. A partir
daí há o enxugamento tanto na forma de produzir – estoque zero, erros
zero, just in time, diminuição da fábrica etc. – como também na quantidade
e nos vínculos dos trabalhadores na linha de montagem. O modelo toyo-
tista traz como consequência uma exploração ainda mais intensa do que
a que vinha ocorrendo anteriormente. Há, como afirma Antunes (1995),
um aumento intensivo e extensivo da exploração da classe trabalhadora.
A reestruturação produtiva expandiu o modo de produção capita-
lista a, praticamente, todos os lugares do globo, efetuou mudanças signi-
ficativas no mundo do trabalho, iniciando a tentativa de desidentificação
da classe trabalhadora a partir da utilização de formas diferenciadas de
contratação – por meio da terceirização, por exemplo –, como a subs-
tituição do termo trabalhador por outras denominações que o confun-
dem: colaborador, cooperador etc. Tais mudanças afetam a subjetividade
da classe trabalhadora, como afirma Alves (2011, p. 111) e provocam o
esgarçamento da organização política da classe.
As medidas para a recuperação da crise de 1970 – que, segundo
Mészáros (2011), não é mais uma crise cíclica, porém uma crise estrutu-
ral do capital – evidenciam a articulação orgânica necessária ao funcio-
namento do modo de produção capitalista. Foram adotadas pelo Estado
contrarreformas no sentido de atender às demandas do capital, segundo
Behring (2003).
O neoliberalismo é adotado logo após o Consenso de Washing-
ton8, introduzindo uma agenda restritiva de direitos sociais a ser aplicada
nos vários países, inclusive nos que não viveram o Welfare State. Tais me-
didas foram impostas de modo agressivo nos países de capitalismo peri-
férico – onde não houve uma experiência alargada de proteção social –,
iniciando-se pelo Chile, nos anos 1970, que vivia sob a ditadura sangrenta
de Pinochet9.
8 O Consenso de Washington foi o produto de uma reunião, convocada por F. Hayek, na pe-
quena estação de Mont Pèlerin, na Suíça, realizada em 1947. “Hayek convocou aqueles que
compartilhavam sua orientação ideológica, enquanto as bases do Estado de bem-estar na
Europa do pós-guerra efetivamente se construíam. Entre os célebres participantes estavam
não somente adversários firmes do Estado de bem-estar europeu, mas também inimigos
férreos do New Deal norte-americano, entre os quais, Milton Friedman, Karl Popper, Lionel
Robbins, Ludwig Von Mises, Walter Eupken, Walter Lipman, Michael Polanyi e Salvador de
Madariaga. Aí se fundou a Sociedade de Mont Pèlerin, uma espécie de franco-maçonaria
neoliberal altamente dedicada e organizada, cujo objetivo era combater o keynesianismo e o
solidarismo reinantes e preparar as bases de outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras
para o futuro” (ANDERSON, 1995, p. 9-10).
9 Apesar de o Brasil também estar sob uma ditadura militar nos anos 1970, a agenda neoli-
44
Para a implantação do neoliberalismo, os governos utilizaram
a justificativa de que precisavam diminuir o tamanho do Estado, que
se tornou muito grande e, por isso, ineficiente. No que diz respeito ao
campo social, as medidas para a diminuição do Estado implicaram a
redução dos direitos sociais e trabalhistas. As políticas sociais e as demais
conquistas jurídico-legais sofreram com a adoção dos seguintes princí-
pios neoliberais: focalização, privatização, precarização, sucateamento e
flexibilização.
Entretanto, para a expansão do capital foram garantidas medidas,
com destaque para a financeirização do capital, recriando as condições de
lucratividade. É importante ressaltar que “o capital não prescinde de seu
pressuposto geral – o Estado –, que lhe assegura as condições de produ-
ção e reprodução, especialmente num ciclo de estagnação” (BEHRING,
2010, p. 9), caracterizando um Estado mínimo para os trabalhadores e
máximo para o capital.
Também no campo ideocultural o capitalismo buscou sua legiti-
mação. De acordo com Cantalice (2013), houve medidas também para
modificar o modo de pensar da sociedade. Nesse momento histórico
verifica-se o que vários autores denominam de pensamento pós-moder-
no. Sobre o pensamento pós-moderno, Jameson (2007, p. 75) afirma que
não se trata apenas de uma mera
[...] ideologia cultural ou uma fantasia, mas é uma realidade genui-
namente histórica (e socioeconômica), a terceira grande expansão
original do capitalismo pelo mundo (após as expansões anteriores
dos mercados nacionais e do antigo sistema imperialista, que tinham
suas próprias especificidades culturais e geraram novos tipos de es-
paço apropriados a suas dinâmicas).
45
ção do Estado Providência num Estado de Serviços, o qual deve se
basear em ajudas diferenciadas, solidárias e individualizadas.
A alternativa proposta por Rosanvallon (1998) constitui-se em
uma solidariedade cuja base se concentra em ajudas diferenciadas aos
sujeitos das ações enquanto indivíduos. Para isso, segundo o autor,
deve haver a recuperação dos fundamentos técnicos e operativos que
subsidiaram o Estado Providência, originalmente.
Para responder às demandas que advêm da “nova questão so-
cial” sem cair nos mesmos erros do Welfare State, Rosanvallon afirma
que “[...] nem o mercado [...], nem o Estado [...] podem criar ativida-
des sociais que ultrapassam o Estado Providência passivo, [por isso]
a noção do ‘terceiro setor’11 surge necessariamente na ordem do dia”
(ROSANVALLON, 1998, p. 137).
É importante observar que a estratégia de solução para o autor
fundamenta-se na solidariedade e na ação do terceiro setor, o que
mostra claramente que não se deve buscar a raiz do problema, mas
apenas suas expressões.
Essa proposição de Rosanvallon apresenta equívocos em dois
aspectos. O primeiro refere-se à identificação de uma “nova questão
social”, o que força o entendimento de que houve mudança estrutural
no modo de produção capitalista – por isso, teria havido uma “velha
questão social” e, posteriormente, surgido uma “nova” –, o que não
é verdadeiro.
O segundo aspecto diz respeito à forma de resolver a “nova
questão social”, haja vista que, ao tratar a questão social no período
de 1945 a 1970 como superada, tal formulação traz implicações às
respostas a serem dadas que. Ademais, ao afirmar a incapacidade do
Estado e do mercado no campo social, enaltece a sociedade civil –
entendida aqui como um espaço apartado do resto da sociedade, o
reino das virtudes – e repassa para ela a responsabilidade de resolver
a questão social (MONTAÑO, 2002).
Como consequência disso, como afirma Behring,
[...] se tem [...] uma não-política, [...], com a transferência de ações
– focalizadas – para o “terceiro setor”, processo que caminha ao
lado do crescimento da pauperização absoluta e relativa da maio-
ria da população. Esta não-política é acompanhada da mobiliza-
ção do voluntariado e de uma espécie de clientelismo moderniza-
do, na relação entre Estado e organizações da sociedade civil, que
também constitui espaço de construção de adesão e cooptação.
(2010, p. 17).
11 A crítica ao chamado terceiro setor pode ser encontrada em Montãno (2002).
46
Tal proposição desresponsabiliza o Estado de qualquer inter-
venção social, fortalece a adesão e a cooptação da sociedade civil e,
consequentemente, recrudesce a perspectiva pós-moderna, que não
considera o passado e põe o capitalismo como o fim da história12,
contrapondo-se às teorias que levam à elucidação da forma de fun-
cionamento da sociedade.
Desse modo, o pensamento pós-moderno cumpre
[...] uma função ideológica de sustentação e de legitimação do
capital, uma vez que age sobre o sistema de regulamentação
social em favor desse sistema. Ele legitima regras, comporta-
mentos, hábitos e práticas sociais funcionais à manutenção da
ordem do capital, além de demarcar como ilegítimas as ideias
e práticas que apontam à direção inversa [leia-se: o marxismo].
(CANTALICE, 2013, p. 62, acréscimos nossos).
47
O pauperismo analisado por Marx é típico de um momento
histórico – primeira onda de industrialização, ocorrida na Inglaterra,
ainda no final do século XVIII –, entretanto, é necessário ressaltar,
mais uma vez, que sua base continua a mesma.
Como afirmam Netto e Braz, estando em uma sociabilidade
capitalista e reconhecendo a dinâmica social com base em princípios
marxianos,
[...] permanece como fato e processo constitutivos e inelimináveis da
acumulação capitalista [...] a perdurabilidade do exército industrial
de reserva e a polarização [...] entre uma riqueza social que pode se
expandir exponencialmente e uma pobreza social que não para de
produzir uma enorme massa de homens e mulheres cujo acesso
aos bens necessários à vida é extremamente restrito. (2012, p. 151).
48
[...] o conjunto de contradições que vivenciamos em nossa rea-
lidade e a insatisfação de muitos diante dela podem legitimar e
conferir uma hipervalorização da crítica de forma indistinta, ou
seja, sem que antes se possa reconhecer o real sentido e a nature-
za dela. É tomarmos as coisas imediatamente pela sua aparência,
sem antes conferirmos a essência que contêm.
Considerações finais
49
Entretanto, a chamada “nova questão social” não encontra ar-
gumentos passíveis de credibilidade. Aceitar a “nova questão social”
e suas nuances – exclusão social, nova pobreza – como características
do período pós-Welfare State é camuflar a natureza do modo de pro-
dução capitalista que engendra a questão social; é não reconhecer que
todas as expressões da questão social em tempos de crise são/serão
agravadas, uma vez que o capitalismo, em nenhum momento de sua
história, resolveu a menor de suas contradições.
Na verdade, o que se deve ser feito é investigar “a emergência
de novas expressões da ‘questão social’ que é insuprimível sem a su-
peração da ordem do capital” (NETTO, 2001, p. 48). Essa investiga-
ção é imprescindível para o desenvolvimento das ações dos assisten-
tes sociais que, enquanto executores das políticas sociais e também
planejadores e gestores de tais políticas, devem se manter alertas para
não se deslocarem para a defesa da melhoria do modo de produção
capitalista, restringindo-se à garantia de direitos políticos e sociais –
emancipação política –, ou ainda, caindo na armadilha do voluntaria-
do e da solidariedade, atraídos pelo canto da sereia do terceiro setor.
A ausência de uma investigação crítica acarretará no retorno do
Serviço Social às suas origens, fortalecendo, assim, o projeto burguês
e comprometendo o seu projeto ético-político, que se contrapõe à
sociedade capitalista.
Os que aceitam a questão social como nova arriscam-se a uma
postura de isolamento e autonomização da realidade, desconsideran-
do categorias explicativas sérias como a totalidade social e a histori-
cidade, e fortalecendo uma perspectiva pautada pela aparência, sem
buscar a essência do problema, como é o caso de Rosanvallon (1998).
Na atualidade, permanecem os elementos producentes da
questão social e suas expressões, os quais devem ser analisados tendo
a totalidade social como referência, para que não se corra o risco de
dar crédito a análises superficiais e mecanicistas, alheias aos movi-
mentos da sociabilidade burguesa.
Nas palavras de Tonet (s/d, p.13-4):
[...] tomar como base as manifestações fenomênicas dessas mu-
danças [...] e, portanto, a obsolescência de todas as perspectivas
abertas pelo mundo moderno é candidatar-se a uma compreen-
são superficial dessa realidade. E, com isso, contribuir para a re-
produção dessa mesma ordem social.
50
das metanarrativas, a defesa do fim do trabalho e da supressão das
classes sociais favorece a consolidação do modo de produção capi-
talista como o fim da história, para o qual se deve buscar apenas seu
aperfeiçoamento ou sua “face mais humana”. A assunção do pensa-
mento pós-moderno concentra-se na luta pela emancipação política
e distancia do horizonte a perspectiva da emancipação humana e,
por isso, deve ser combatido.
Referências
51
MARX, K. Cap. 23 – A lei geral de acumulação capitalista. In: O Capital: crítica
da economia política. Livro I. [trad. Rubens Enderle]. São Paulo: Boitempo,
2013.
MÉSZÁROS, I. A Crise Estrutural do Capital. [Trad.: Francisco Raul Cornejo
et al.]. São Paulo: 2011. 2. edição.
MONTAÑO, C. A Natureza do Serviço Social: um ensaio sobre sua gênese, a
“especificidade” e sua reprodução. São Paulo: Cortez, 2007.
MONTAÑO, Carlos. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emer-
gente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002. 288 p.
NETTO, J. P. Cinco Notas a Propósito da “Questão Social”. Revista Tempora-
lis. Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social. Ano 2, n.
3 (jan./jun. 2001). Brasília: ABEPSS, Grafline, 2001, p. 41-9.
_____. Capitalismo Monopolista e Serviço Social. 8. ed. São Paulo: Cortez,
2011.
_____. BRAZ, M. Economia Política: uma introdução crítica. São Paulo: Cor-
tez, 2012.
PEREIRA, C. P. Proteção Social no Capitalismo: contribuições para a crítica
de matrizes teóricas e ideológicas conflitantes 2013 Tese (Doutorado
em Política Social) ‒ Departamento de Serviço Social. Universidade de
Brasília. Brasília, 2013, 307 p.
ROSANVALLON, P. A nova questão social: repensando o Estado Providência.
[Trad.: Sérgio Bath]. Brasília: Instituto Teotônio Vilela, 1998.
TONET, I. Modernidade e Pós-modernidade e Razão. s/d. 15p. http://
ivotonet.xp3.biz/arquivos/MODERNIDADE_POS-MODERNI-
DADE_E_RAZAO.pdf Acesso: 20/8/2019.
52
O processo de precarização do trabalho dos
motoboys: o sangue que circula pelas artérias da
cidade
Introdução
54
drão concreto de produção da natureza sob o capitalismo. Portanto,
apresenta-se como expressão geográfica da contradição entre valor
de uso e valor de troca no modo de produção capitalista.
Nesse rumo, o capital produz o espaço conforme sua lógica,
ou seja, produz escalas espaciais que dão coerência ao desenvolvi-
mento desigual. Esses novos espaços – comerciais e residenciais –
financeirizados dependem de interesses políticos “[...] que imbricam
interesses locais, regionais, nacionais e internacionais, e dependem
de uma homogeneização da paisagem para seguir atraindo investi-
mentos” (VOLOCHKO, 2015, p. 115).
A reestruturação do espaço possui como determinações:
a desindustrialização e o declínio regional, a gentrificação e o
crescimento extrametropolitano, a industrialização do Terceiro
Mundo e uma nova divisão internacional do trabalho, a intensi-
ficação do nacionalismo e uma nova geopolítica de guerra são
coisas em desenvolvimento integrado, sintomas de uma trans-
formação muito mais profunda na Geografia do Capitalismo
(SMITH, 1984, p. 14).
2 Concorda-se com Barros (2018, p. 52), em sua tese intitulada PREKARER: análise dos
fundamentos da precarização do trabalho a partir da crítica da economia política: “O salário não é,
nem poderia vir a ser, a representação monetária da dignidade humana, mas expressa os
interesses da própria necessidade do capital de permanentemente reproduzir a mercadoria
força de trabalho”.
55
serviços. Obtém-se, então, a tônica das formas de trabalho heteroge-
neizado, marcado pela força de trabalho migrante, inserção maciça
de mulheres, crianças e adolescentes em trabalhos degradantes, assim
como por maneiras de desespecialização e desqualificação do operá-
rio industrial e pela criação de trabalhadores multifuncionais (ANTU-
NES, 2011).
É por isso que, acompanhando o desenrolar da sociedade ca-
pitalista, o período de reestruturação produtiva, atrelado ao ideário
neoliberal, trouxe novos desafios para a classe que vive do trabalho.
Isso porque, com o avanço tecnocientífico, houve novas demandas
para os trabalhadores, a saber, a flexibilização da força de trabalho,
do processo de trabalho e dos contratos de trabalho, colocando estes
sujeitos numa condição de maior subsunção real3 ao capital.
A respeito da subsunção real do trabalho ao capital podem-se
apresentar suas implicações nas relações sociais por meio de uma
intensa exploração do trabalho ou precarização, aumento do exército
de reserva e do pauperismo, alienação do trabalho e do trabalhador, e
apropriação privada dos meios de produção.
Entretanto, é necessário observar que a lucratividade do ca-
pital mundial tornou-se uma problemática. Desse modo, a ideologia
neoliberal4 emerge como resposta da classe dominante à necessida-
de de acumulação. Nessa perspectiva, eis a contradição fundamental:
quanto maior o lucro, mais aumenta a precarização do trabalho, pois
mais trabalho e lucro não significam proporcionalmente mais empre-
go e proteção trabalhista.
Teoricamente, podemos dizer que os países periféricos só podem
acompanhar o nível de produtividade mais alto imposto pelo cen-
tro através do desgaste brutal de sua força de trabalho e de seus
recursos naturais. Por outro lado, reagindo a tais entraves para a
56
sua valorização, o capital produtivo mundial sobe à esfera finan-
ceira e especulativa, ou passa a canibalizar patrimônios públicos
e bens comuns (terras indígenas, etc.) através de privatizações,
favorecimentos e concessões, subsídios e incentivos fiscais, ou
adentra circuitos obscuros e ilegais de valorização (paraísos
fiscais, corrupção, trabalho escravo, grilagem de terras etc.),
buscando reproduzir-se ampliadamente sem passar necessaria-
mente pelo circuito produtivo. (DUARTE, 2017, p. 1).
57
reprodução do capital e responsável pela ampliação da precarização
de outros trabalhadores. Portanto, a precarização está relacionada à
condição de existência e não apenas a relações de emprego. Por isso,
quanto mais o capital avança, mais condições de precarização são
estabelecidas e condensadas.
Note-se que os avanços supramencionados fazem parte da
mundialização do capital, cujo intento é extrair lucros cada vez mais
ostensivos, ao tempo que se dedica a reduzir riscos. O processo de
terceirização6 tem sido a forma mais utilizada de precarização do tra-
balho, a qual contempla as condições e relações de trabalho.
58
belece o desemprego estrutural da classe trabalhadora e a torna “su-
pérflua” à valorização do valor. Esta população sobrante é funcional
à engrenagem do capital e permite que os salários sejam rebaixados,
acarretando uma maior acumulação de capital e mais empobreci-
mento e degradação da classe trabalhadora.
Escreve Barros:
Ao produzir essa massa “supérflua”, a dinâmica da acumulação
promove uma contínua oferta de força de trabalho disponível,
que estando num quantitativo superior às suas necessidades de
consumo, fornece condições mais vantajosas para a aquisição
de trabalho vivo. Existindo as bases impulsionadoras dessa
massa de desempregados e subempregados, encontram-se tam-
bém estabelecidos os alicerces para a precarização do trabalho.
(2018, p. 102).
59
ocorre pela destituição ou desmantelamento dos direitos trabalhistas
e sociais (BOSCHETTI, 2018). Nessa trilha, em razão da correlação
entre expropriação e alteração de regime jurídico,
ainda que a primeira possua práticas de roubo, conquistas e guer-
ras abertamente ilegais, ela sempre vai precisar de um momento
de violência jurídica: uma reforma legal, uma nova regulação ou
instituto que, ao transformar as condições jurídicas existentes,
prescreve abertamente a estrutura de desigualdade e liberdade
abstratas, mas reconhecimento jurídico explícito da assimetria.
(GONÇALVES, 2018, p. 118).
8 Pois o efeito dessa queda estreitou a margem de acumulação lucrativa do capital, “[...]
afetou grandemente as perspectivas do movimento dos trabalhadores até mesmo na maioria
dos países de capitalismo avançado. Não apenas piorou o padrão de vida da força de traba-
lho em emprego formal (para não mencionar as condições de milhões de pessoas desem-
pregadas e subempregadas), mas, como mencionado na última seção, também reduziu as
possibilidades da sua ação autodefensiva como resultado da legislação autoritária imposta às
classes trabalhadoras pelos seus parlamentos supostamente democráticos”. (MÉSZÁROS,
2002, p. 824).
60
semprego e superpopulação relativa (população sobrante, seja
ela latente, flutuante ou estagnada) se manifesta, tendencialmen-
te, no mundo do trabalho mediante as diversas formas de traba-
lho precarizado (trabalho informal, trabalho por peça, trabalho
em domicílio, trabalho temporário). (RAPOSO, 2O15, p. 125).
61
exemplo da flexibilização das leis trabalhistas. Nessa trilha, como re-
sultante da crise estrutural do capital, o desemprego se alastra, assim
como o aumento da desigualdade. Portanto, almejar uma resposta
consistente do Estado capitalista para as expressões da questão social
advindas desse processo seria uma tentativa de negação da realidade
e do não reconhecimento de sua funcionalidade para a classe domi-
nante.
Corroborando com a perspectiva de Meszáros (2015), a ação
do Estado em favor do capital e o acirramento da precarização do
trabalho se fazem cruciais, uma vez que é o Estado que firma o apa-
rato jurídico e político do neoliberalismo, impulsionando as privatiza-
ções e restrições de direitos, atingindo preponderantemente a classe
trabalhadora, pois há uma tentativa de homogeneizar o modelo de
produção e reprodução do capital, com forte incidência sobre a ide-
ologia e as necessidades de bens de consumo.
Vivencia-se uma ofensiva conservadora ainda mais intensa
nos últimos anos, com a renúncia de fatores democráticos e de justiça
social, a exemplo do impeachment de Dilma Rousseff em 2016. Atre-
lado a isto, iniciou-se um verdadeiro combate aos direitos da classe
trabalhadora, materializado em cortes e congelamentos de financia-
mento das políticas sociais.
O que as situações vêm demonstrando no contexto brasileiro
é que o conservadorismo tem se alastrado pelas diversas dimensões
da vida, e na política encontra espaço “privilegiado”.
No cenário político brasileiro contemporâneo, a “hipocondria da
antipolítica” é uma possibilidade posta para as esquerdas brasi-
leiras que, junto com o Partido dos Trabalhadores, sofreram um
duro golpe advindo da direita e da extrema direita. O Partido
dos Trabalhadores, que nunca assumiu o ideal da revolução co-
munista, havia deposto quase a totalidade de seus ideais progres-
sistas no momento em que definiu a estratégia da conciliação de
classes, mediante a ampla concessão aos interesses das classes
dominantes brasileiras, agarrando-se e reduzindo seu horizonte
aos programas de transferência de renda como bastiões do de-
senvolvimento econômico com “justiça social”. Concessões tão
extensivas e intensivas que seria possível estabelecer a imagem
segundo a qual o Partido dos Trabalhadores cumpriu a função
de “gestor do capital por procuração”. (SOUZA, 2016, p. 133).
62
competitividade e fragmentação da organização das categorias e de
classe, intensificação e extensão de trabalho.
A respeito da extensão de trabalho, Luce (2013) anota que
há medidas adotadas pelo Estado que facilitam a violação do va-
lor da força de trabalho, a exemplo “(1) do banco de horas; (2) da
abertura do comércio aos domingos; (3) da flexibilização da CLT,
mediante portaria do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE),
facultando negociar a redução de 50% do horário do almoço” (p.
178).
Além dos aspectos supramencionados, há ainda a falta de
condições objetivas de trabalho (escassez de instrumentos e meios
de trabalho) e a redução de direitos trabalhistas.
Em síntese, a terceirização é o fio condutor da precarização do
trabalho no Brasil e se constitui num fenômeno presente em
todos os campos e dimensões do trabalho, pois é uma prática
de gestão/organização/controle que discrimina: ao tempo que
é uma forma de contrato flexível e sem proteção trabalhista,
é também sinônimo de risco de saúde e de vida, responsável
pela fragmentação das identidades coletivas dos trabalhadores,
com a intensificação da alienação e da desvalorização humana
do trabalhador, assim como é um instrumento de pulverização
da organização sindical, que incentiva a concorrência entre os
trabalhadores e seus sindicatos. Ainda, a terceirização põe um
“manto de invisibilidade” dos trabalhadores na sua condição
social, como facilitadora do descumprimento da legislação tra-
balhista, como forma ideal para o empresariado não ter limites
(regulados pelo Estado) no uso da força de trabalho e da sua
exploração como mercadoria. (ANTUNES e DRUCK, 2013,
p. 224).
63
trabalho “não poderia haver nem exploração, nem lucro, nem circu-
lação de capital” (IDEM, p. 131).
A precarização do trabalho tem conformado as relações na
contemporaneidade, seja na formalidade, seja na informalidade. A
verdade é que os trabalhadores encontram-se desprovidos de prote-
ção em sua integralidade. No entanto, aqueles que se acham na super-
população relativa vivenciam esta desproteção com mais ênfase, pois
não têm acesso às garantias constitucionais. Com a estratégia recente
do STF de tornar constitucional a terceirização, isso permitirá que
os empregados se tornem desempregados e retornem aos postos de
trabalho como terceirizados.
Esta lógica destrutiva do capital tem obrigado os trabalhado-
res a se submeter às suas ofensivas tanto sobre o tempo de trabalho
quanto sobre a vida. Estes sujeitos, vivenciando a pauperização abso-
luta ou relativa, têm revelado uma das expressões da questão social na
contemporaneidade, a saber, a imersão na precarização do trabalho,
que condensa diversas formas de desigualdade.
Sustentado na teoria social de Marx e apropriando-se princi-
palmente das considerações da Lei Geral da Acumulação Capitalista,
Marini (2005) em Dialética da Dependência atenta para a função que os
países dependentes cumpriram, sendo bem mais do que um “figu-
rante”, no que se refere especificamente à trama nascente da grande
indústria, no respectivo cenário de impulso, desenvolvimento e con-
solidação do modo de produção capitalista.
Um movimento que é guiado pela consolidação de uma divi-
são internacional do trabalho, em função da demanda do capitalismo
central, que ajustará e desenvolverá os países dependentes dinamica-
mente articulados às necessidades do capitalismo internacional. Des-
se modo, configura-se o estado de dependência em face da estrutura
da divisão internacional do trabalho, como ponto de partida que con-
solida a condição de atraso, periferia e subordinação. Essa condição
se mostra necessária e funcional à reprodução do capitalismo central.
São essas as particularidades que condicionam a situação e o
grau de exploração e subordinação a que é submetido o capitalis-
mo periférico, tardio, que se desenvolveu no Brasil. Torna-se, desse
modo, mais candente a contradição entre capital-trabalho, a concen-
trada apropriação da riqueza socialmente produzida, a alienação, a
relação de fetichismo entre o produtor e o “seu” produto.
Nesse processo,
[…] aumenta-se a intensidade do trabalho, prolonga-se a jorna-
da laboral e/ou simplesmente se rebaixa forçosamente o salário
do trabalhador, sem que essa redução salarial corresponda a um
64
barateamento real da força de trabalho. Em todos esses casos, a
força de trabalho é remunerada abaixo de seu valor e, por con-
seguinte, dá-se uma superexploração dos trabalhadores. (MA-
RINI, 2012, p. 30).
65
Nessa vereda, considera-se que tratar da precarização como
pressuposto é necessário, mas não suficiente. Apesar de ser um fenô-
meno intensificado a partir da reestruturação produtiva, que trouxe
consigo a flexibilização e a precarização do trabalho, faz-se crucial ex-
pressar o que a particulariza como especificidade profissional inserida
no seu contexto histórico e conjuntural.
O trabalho dos motoboys é uma das respostas às necessidades
de acumulação do capital reestruturado. Sabe-se que há grande con-
tingente de trabalhadores que se utilizam da motocicleta para traba-
lhar rotineiramente em condições precarizadas, sendo o Brasil o país
que tem o maior número de motoboys9 do mundo (SINDIMOTO-
-SP, 2014)10. Em todo o país são cerca de 2 milhões de pessoas que
atuam como motoboys, mensageiros, mototaxistas etc.
No entanto, mesmo que o Brasil contemple a maioria desses
sujeitos trabalhadores, eles não fogem ao fenômeno da imigração e
por isso, muitos motoboys brasileiros têm ido exercer esta atividade
em outros países – não fugindo ao sonho dos demais cidadãos brasi-
leiros de condições de vida melhores11.
Em entrevista, em 5 de março de 2002, um motoboy brasi-
leiro no exterior disse que o diferencial dos motoboys brasileiros é
que não são preguiçosos e trabalham independentemente da con-
dição climática12. Este relato revela uma particularidade importante
a ser destacada nesse processo do objeto de estudo: o fenômeno da
imigração e a sua relação com a precarização do trabalho.
O grande incentivo tanto para a migração quanto para a imi-
gração é a faixa salarial. Um exemplo é que o pagamento de 300 libras
(cerca de R$ 1.000) a 800 libras (cerca de R$ 2.700) por semana é o
principal motivo para que busquem o trabalho em outros países, a
exemplo da Grã-Bretanha.13
66
Portanto, os pressupostos desta atividade são que sendo re-
quisição do movimento de restauração do capital14 e da necessidade
de comprimir o espaço-tempo, os motoboys fazem as mercadorias
circular mesmo numa cidade em que o trânsito “não anda”, a exem-
plo de São Paulo. Portanto, o trabalho desses sujeitos exprime uma
forma de existência.
Abordar o trabalho dos motoboys é tocar direta ou indire-
tamente no cotidiano da sociedade, pois seja requerendo o trabalho
deles, seja encontrando-os em meio ao trânsito caótico, é fato que
eles interferem em nossas vidas. Uma pesquisa realizada em julho de
2018 pelo IPEA revelou que os motoboys são os sujeitos que mais
sofrem acidentes, e os caminhoneiros são os que têm maior taxa de
mortalidade em estradas.
No Brasil, acompanhando a programática de golpe, houve a
perda massiva de direitos em 2016, envolvendo, inclusive, a retirada
do adicional de periculosidade, o que corroborou para a intensifi-
cação da precarização de trabalho dos motoboys. Outra estratégia
de precarização do trabalho identificada nessa aproximação ao ob-
jeto é o processo de “uberização do motoboy”, em que o sujeito
não possui vínculo formal algum, mas presta serviço para diversos
aplicativos, os quais têm relação com estabelecimentos comerciais,
alimentícios etc., além de trabalhar para os próprios consumidores
finais ao realizar a entrega.
Perante estes dados, infere-se que o trabalho dos motoboys
possui o fator comum entre as relações de trabalho na sociabilida-
de regida pelo capital: o envolvimento desigual entre trabalhador
e capitalista, que desemboca na exploração e/ou na precarização
daquele e no usufruto da riqueza produzida para este.
É, pois, necessário afirmar que sem a relação contraditória
entre capital e trabalho não haveria exploração, lucro ou circulação
de capital, a qual encontra aparato jurídico-normativo por meio do
Estado.
Considerações finais
67
O direito à vida urbana, embora seja um direito humano, está
subjugado às expressões de desigualdade e à necessidade de absorção
do capital excedente, pois a cidade está dominada por interesses pri-
vados. À vista disso, a união do capital financeiro ao imobiliário traz
uma nova lógica de (re)construção do espaço, cujo impulso vital é a
maximização do lucro. Os trabalhadores são incentivados a habitar as
periferias, tendo como consequência o distanciamento de seus locais
de trabalho, ao tempo que têm retirados os benefícios da vida urbana.
O que se pode discernir é que o capital apropria-se do am-
biente construído, da natureza, da força de trabalho e também cria
várias expressões de desigualdade nesse mesmo movimento. Os
conflitos gerados mediante essa relação perpassam tanto a produção
quanto a reprodução da vida.
Abordar os fenômenos da migração, imigração, questão sala-
rial, acidentes, adoecimento mental, desproteção trabalhista e social,
formas contemporâneas do trabalho na sociabilidade capitalista, bem
como novas estratégias de expropriação do trabalho, é fundamental
para discutir a precarização do trabalho.
Para tratar acerca da reprodução social e do trabalho dos mo-
toboys, é necessário fazer um percurso que tangencie os fundamen-
tos da precarização do trabalho e suas expressões na sociabilidade
capitalista, assim como a funcionalidade do Estado nesse processo,
perante as suas intervenções sobre as expressões da questão social.
Esta encontra solo fértil no movimento de expansão da cidade, cuja
produção de desigualdade perpassa os diversos âmbitos da vida.
E é neste âmbito que o trabalho dos motoboys se situa: como
requisição da reestruturação do capital, para dar conta das novas de-
mandas do sistema, cujo imperativo permanece sendo a redução do
tempo para a realização da mais-valia.
Este processo se agrava com a expansão do meio urbano,
lócus privilegiado da indústria, do comércio e adjacentes, locais que
requisitam o trabalho dos motoboys para inúmeras atividades. Desse
modo, entende-se que os motoboys contribuem no movimento de
valorização do capital, fazendo circular mercadorias mesmo em meio
ao trânsito caótico, agindo como “o sangue que circula pelas artérias
da cidade” ao corroborarem com o livre fluxo da produção/reprodu-
ção social.
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71
A arte resiste: trabalho precarizado e ofensiva
conservadora no Brasil
Introdução
74
vez que esses/as vivenciam processos de trabalho marcados pela
ausência de direitos trabalhistas, sociais e culturais. Artistas que na
sua relação dialética com a arte a mantêm como atividade laboral
e retiram dessa relação um processo contínuo de luta e resistência.
Nessa perspectiva, podemos afirmar que o trabalho dos ato-
res e atrizes na contemporaneidade faz parte da recomposição do
mundo do trabalho sob forte ofensiva capitalista. Esses/as repre-
sentam sujeitos precarizados como qualquer outro/a trabalhador/a
que subordina sua força de trabalho ao capital. São indivíduos des-
providos de direitos, inseridos na informalidade, sem regulação,
num complexo contraditório que une formas arcaicas e modernas
de exploração da mão de obra.
Assim, “estamos diante da tentativa de supressão radical da-
quilo que Marx chamou de ‘vitórias da economia política do traba-
lho’ e, por conseguinte, de restauração plena da economia política
do capital” (COUTINHO, 2010b, p. 37). Compele-se, portanto, à
classe trabalhadora, “custear, sob o pretexto da ‘sobrevivência da
espécie humana’, a sobrevivência de um sistema socioeconômico”
(MÉSZÁROS, 2011, p. 52), realidade que tem no Brasil sua repre-
sentação máxima a partir da aprovação da Reforma Trabalhista
ocorrida em 2017, no governo “ilegítimo” de Michel Temer (2016-
2018), instrumentalizada pela Lei nº 13.467 e que destruiu impor-
tantes direitos trabalhistas assegurados até então pela CLT.
Desse modo, propomos também, a partir das considerações
acima relacionadas, discutir a relevância estratégica da arte na con-
juntura atual do país, tendo em vista o aprofundamento do conser-
vadorismo e os ataques às produções culturais, valendo-se, sobre-
tudo, de subterfúgios morais e religiosos, com acirrado discurso de
ódio aos valores humano-genéricos, que tenta reduzir o potencial
crítico e transformador da arte e a politização dos/as artistas e da
população brasileira em geral.
É sabido que, em momentos de crise, acentuam-se as pers-
pectivas irracionalistas e reacionárias, que no Brasil ganharam eco e
têm como principal representante o atual Presidente da República,
Jair Bolsonaro, eleito para o mandato 2019-2022, que além de não
concentrar em seu plano de governo nenhuma proposta para a área,
extinguiu o Ministério da Cultura (Minc) existente desde 1985, rea-
firmando a posição do governo ante a política cultural e reforçando
a compreensão equivocada sobre as normativas de incentivo ao se-
tor, a exemplo da Lei Rouanet.
É nesse sentido, portanto, que será discutida a precarização
do trabalho de atores e atrizes sob a acirrada disputa ideológica no
75
Brasil, que coloca a arte como entrave em meio à crise social e política
do país.
76
precisa da análise crítica, histórica e de totalidade do Serviço Social.
Neste sentido, uma vez que essa profissão busca entender as
consequências nefastas da exploração da força de trabalho; da com-
pleta destruição dos valores da sociabilidade do capital; da escassez
dos serviços públicos, e, sobretudo, da ineficácia da ação do Estado,
faz-se necessário debruçar-se sobre o ataque sistemático aos direitos
da classe trabalhadora nessa quadra histórica, fomentado no bojo do
processo metabólico do capital.
É ainda nesse cenário que buscamos analisar, em meio a uma
diversidade de trabalhadores que sofrem diretamente os efeitos da
crise estrutural do capital, os atores e atrizes como trabalhadores/
as precarizados/as, porquanto esses/as profissionais se encontram
inseridos/as nas relações sociais de produção e são submetidos/as à
Lei Geral da Acumulação. Profissionais cada vez mais subsumidos/
as ao desemprego estrutural e à expansão de um quadro de agrava-
mento das condições de vida e da barbárie social.
É necessário analisar o Estado brasileiro na sua ampla e exi-
tosa participação no aumento da flexibilização trabalhista e da pre-
carização do trabalho, que começa na década de 1990 e permanece
na década seguinte, com a “reorganização do capitalismo na base da
acumulação flexível”. Apesar da baixa no “desemprego, a partir de
2003, ampliou-se a mancha de precariedade laboral” (ALVES, 2015,
p. 16), com mais incidência na vida de mulheres, população negra,
jovens, migrantes e imigrantes.
Tal realidade se expressa na Reforma Trabalhista, aprovada
sob o governo Temer, com maior incidência a partir de um processo
de desregulamentação e precarização laborativa, vinculado majorita-
riamente à flexibilidade de contratos, que quer dizer: a possibilidade
de variação no volume de trabalho, salário, horários e o local de
realização, com profundos impactos na vida da classe trabalhadora.
Um exemplo disso é a forma de contratação pela modalidade de
trabalho intermitente, que expõe os níveis de flexibilização, a par-
tir do momento que o/a trabalhador/a pode ser contratado/a por
horas de exercício realizado, sem nenhum direito garantido. Anota
Marx (1994) que “tudo o que importa é tornar a fome permanente
na classe trabalhadora” (p. 750).
Desse modo, a partir da análise do trabalho do ator e da atriz,
mais especificamente, da sua ferramenta de trabalho – a arte ‒, é
possível afirmar prontamente duas coisas. A primeira é que a arte,
a partir da acumulação primitiva, torna-se empreendimento do ca-
pital, que coisifica e mercantiliza tudo o que for passível de gerar
lucro. Sob essa compreensão, Marx e Engels (1986, p. 33-34) ao
77
analisar as especificidades do trabalho produtivo e improdutivo no
âmbito da arte, esta já tomada como mercadoria e produtora de mais-
-valia, comentam:
Milton que escreveu O Paraíso Perdido era um trabalhador impro-
dutivo. Pelo contrário, o escritor que trabalha para o seu editor,
como um assalariado da indústria, é um trabalhador produtivo.
Milton fez o Paraíso Perdido como o bicho-da-seda faz seda. Era
uma manifestação da sua natureza. O poeta vendeu mais tarde o
seu trabalho por cinco libras esterlinas. Mas o escritor proletário
de Leipzig que, sob a direção do seu diretor, fabrica livros, é um
operário produtivo, visto que a sua produção está, desde o início,
subordinada ao capital e só se realiza para seu lucro (...). Um ator,
por exemplo, ou mesmo um palhaço, são, pois, operários produ-
tivos, se trabalham a serviço de um capitalista (de um empresário)
a quem dão mais em trabalho do que o que recebem em forma
de salário.
78
total, em que estão incluídos os segmentos de Expressões Culturais
(26,8 mil), Patrimônio e Artes (16 mil), Música (12 mil) e, por últi-
mo, Artes Cênicas, com 11,7 mil (1,4% dos trabalhadores formais).
No âmbito da remuneração, pode-se afirmar que houve recuo
no valor dos salários pagos à Cultura, mais precisamente, -2,6% em
termos reais, mantendo a área criativa na posição de pior remune-
ração. Esse resultado negativo é, ainda de acordo com a FIRJAN
(2016), exclusivamente devido à forte queda no setor de Artes Cêni-
cas (-11,1%), contraditoriamente um dos segmentos que mais con-
tratou no período.
Essa realidade expõe o tratamento que o Estado – teorica-
mente, promotor de formas de expressão cultural – destina ao tea-
tro brasileiro e a seus/as artistas. É sintomático que uma expressão
artística tão importante e popular como o teatro conviva com uma
realidade em que seus/as profissionais e coletivos estejam em per-
manente luta para garantir a realização dos trabalhos, tendo ainda
de sofrer as determinações impostas por “um mercado onipresente
que define desde as políticas mais gerais do Estado até os menores
detalhes” (COSTA, 2007, p. 19).
Esse mercado, entretanto,
sempre dependeu do Estado, tanto no sentido estritamente eco-
nômico quanto no político. Refiro-me principalmente à lógica
ultraperversa da privatização dos lucros e socialização dos pre-
juízos que sempre pautou a economia brasileira, para não dizer
nada da verdadeira canibalização que vem sofrendo o Estado
brasileiro desde o fim da ditadura militar (COSTA, 2007, p. 19).
79
decadência das políticas culturais, a exemplo da descontinuidade nos
editais para as Artes da Fundação Nacional das Artes (FUNARTE);
do encerramento do Programa Cultura Viva; e da extinção das políti-
cas voltadas à diversidade cultural.
Já em janeiro de 2019, no início da gestão de Bolsonaro, é
promulgada a extinção do Minc, sendo suas demandas fundidas ao
recém-criado Ministério da Cidadania, que engloba ainda esporte e
desenvolvimento social. O governo Bolsonaro, conforme anunciou
desde a campanha, indica que a cultura vai ser tratada como algo se-
cundário, diluído num ministério de baixíssimo orçamento e de pou-
ca importância, reduzindo ao limite a intervenção pública na área, a
exemplo do encerramento do Programa Petrobrás Cultural.
A extinção do Ministério da Cultura já vinha sendo pensada
e seus programas sendo esvaziados desde 2016, com a revogação
de leis, como a do Audiovisual; a desregulamentação do registro de
trabalho dos/as artistas brasileiros/as (DRT) e o congelamento de
recursos para a área. Desse modo, podemos afirmar que o Estado
quando não promove política de arte-cultura, desregulamenta em lar-
ga medida o que já fora conquistado, a partir do trabalho de atores
e atrizes que vivem da sua arte, do seu trabalho. O esvaziamento da
Cultura é o esvaziamento de uma sociedade pensante, é o embrute-
cimento das relações sociais de produção que reifica a alienação e
atrofia a consciência humana.
Nesse sentido, o Estado tende a reforçar os interesses do ca-
pital, garantindo “nada para o trabalhador e tudo para o mercado”,
legitimando a compreensão de que “boa arte é a que vende bem e
tem sucesso de público”, como se não fosse sua própria responsa-
bilidade a construção de ações que visam à formação desse mesmo
público, bem como à apresentação de “maneiras outras de ver e pen-
sar que não as da colonização mental da indústria cultural” (CEVAS-
CO, 2010, p. 145). Essa última, parte do conceito criado por Theo-
dor Adorno e Max Horkheimer – membros da chamada Escola de
Frankfurt –, para explicar a transformação da cultura em mercadoria,
que, em conjunto com o Estado, se concentram na reprodução da
cultura de massas.
Dessa maneira, o ente estatal assume a desresponsabilização no
fomento de políticas públicas no neoliberalismo, mantendo o com-
passo da lógica perversa na promoção da arte e cultura. Nessa pers-
pectiva, ao invés de democratizá-las, diminui o seu potencial e o seu
alcance social.
Sobre os direitos culturais previstos na Constituição Federal
de 1988, nota-se que “os recursos previstos e os efetivamente desti-
80
nados aos órgãos de cultura no Brasil, nas esferas federal, estadual
e municipal, ficam muito aquém do necessário” (CUNHA FILHO,
2002, p. 39).
De acordo com Chauí (2000):
A democratização da cultura tem como precondição a ideia
de que os bens culturais (no sentido restrito de obras de arte
e de pensamento e não no sentido antropológico amplo, que
apresentamos no estudo sobre a ideia de Cultura) são direito de
todos e não privilégio de alguns. Democracia cultural significa
direito de acesso e de fruição das obras culturais, direito à infor-
mação e à formação culturais, direito à produção cultural. Ora,
a indústria cultural acarreta o resultado oposto, ao massificar a
Cultura. (p. 422).
81
hegeliana que somente concedia liberdade de expressão ao ho-
mem enquanto executante dos desígnios do Espírito. Retomando
a posição feuerbachiana, Marx valorizou os sentidos como meio
de afirmação do homem e recusou a inferioridade destes perante
a atividade teórica (FREDERICO, 2013, p. 44).
82
de-se a se acentuar o irracionalismo e o subjetivismo, por meio do
reforço a perspectivas conservadoras, como as que estamos viven-
ciando desde o golpe de 2016.
Subsumidos aos ditames do capitalismo neoliberal, temos:
uma exacerbação do individualismo; a primazia da cultura de massa;
o desmantelamento de políticas que fomentam a arte e a cultura
“engajada”; a fragmentação dos indivíduos e da sociedade. É pos-
sível inferir que há um reforço das teorias constitutivas da pós-mo-
dernidade que, de algum modo, contribuem para a manutenção da
ordem vigente que entroniza o irracionalismo como marca histórica
e cultural. Assim:
o mundo da cultura não pode ser visto isolado ou autonomiza-
do em relação a este novo estágio do capitalismo, pelo contrá-
rio, ele se firma como uma de suas mediações. É a ordem do-
minante que se quer reinventar num outro momento histórico
para ressignificar e refuncionalizar as suas bases materiais de
produção e reprodução desigual e combinada. A tarefa ideoló-
gica fundamental do novo conceito, entretanto, deve continuar
a ser a de coordenar as formas de prática e de hábitos sociais
e mentais (...) e as novas formas de organização e de produção
econômica que vêm com a modificação do capitalismo – a nova
divisão global do trabalho – nos últimos anos. (...) uma ‘revolu-
ção cultural’ na escala do próprio modo de produção; também
aqui, a inter-relação do cultural com o econômico não é uma
rua de mão única, mas uma contínua interação recíproca, um
circuito de realimentação (JAMESON, 1996, p. 18).
83
cenário político brasileiro tiveram grande dificuldade em se manter
abertas, e diversos diretores, atores e atrizes, bem como dramaturgos
de teatro foram presos ou exilados, a exemplo do próprio Augusto
Boal e de José Celso Martinez.
Na década seguinte, em 1970, apesar da ainda presente a censu-
ra artístico-política, o teatro retorna como importante espaço de crí-
tica ao regime, alinhando-se à perspectiva do “realismo dramático”.
São de destaque nesse momento os espetáculos “Um grito parado
no ar”, de Gianfrancesco Guarnieri; “Rasga Coração, de Oduvaldo
Vianna Filho; “Gota D’Água”, de Paulo Pontes e Chico Buarque; e
“Último Carro”, de João das Neves, que propunham “uma reflexão
sobre a modernização capitalista brasileira, garantida pela repressão
política e pela exclusão das classes populares”.
Essa forma de teatro não interessava o Estado e tampouco
a indústria cultural. E de lá para cá, nada mudou. Ao contrário, no
Brasil pós-golpe de 2016, a arte criadora, a cultura e seus/suas artis-
tas são retaliados/as, perseguidos/as e postos/as na antessala dos
investimentos públicos. Em especial no campo ideopolítico, a arte,
que sempre sofreu retaliações conservadoras no Brasil, no tempo
presente vem sendo alvo de intensificada ofensiva, relacionada a um
fundamentalismo religioso, LGBTfobia, racismo, misoginia e mora-
lismo como marcas desse conservadorismo brasileiro recrudescido.
A exemplo disso, podemos citar a exposição promovida pelo
Santander Cultural em setembro de 2017, na cidade de Porto Alegre,
intitulada “Queer Museum” e cancelada após inúmeros protestos re-
alizados, sobretudo através das redes sociais de variados movimentos
de “direita” e de cunho conservador, como o Movimento Brasil Li-
vre (MLB). Sobre esse episódio, destaca-se também a ocorrência de
direcionamento pessoal dos representantes do Estado na condução
do tema, quando se posicionam político-ideologicamente a respeito
dessas questões, a exemplo do prefeito do Rio Janeiro, Marcelo Cri-
vella, pastor de uma igreja pentecostal que chamou a exposição de
pornografia, defendendo sua proibição na cidade.
Há outros inúmeros casos que demonstram o julgamento mo-
ralista e de fundamentalismo religioso sobre as atividades artísticas
que ocorrem no Brasil, reforçando esse movimento irracionalista,
como a censura ao espetáculo “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha
do Céu”, peça em que Jesus é representado pela atriz transexual Re-
nata Carvalho. O espetáculo, desde a sua estreia em 2016, vem sendo
alvo de protestos e proibições para a sua exibição em várias cidades
do país, remontando aos períodos ditatoriais vivenciados no país.
Já em 2018, o espetáculo, tendo passado por análise técnica e
84
sido aprovado por edital do Governo do Estado de Pernambuco
para participar do 28º Festival de Inverno de Garanhuns, impor-
tante festival nacional, que tinha por tema “Um viva à liberdade!”, é
retirado da programação pelo prefeito de Garanhuns, Izaías Régis,
à revelia da Secretaria de Cultura. O prefeito alegou que a supraci-
tada cidade é cristã e a peça poderia “ofender” os diversos grupos
religiosos. Houve uma verdadeira batalha judicial para garantir a
apresentação da peça, ocorrida com corte de luz e depois de muita
resistência.
Outro momento que demonstra de forma contundente como
a censura vem sendo recorrente nesses tempos sombrios e de per-
seguições ideológicas, políticas e de classe, foi a ação efetivada já
no início de 2019, pela Secretaria Estadual de Cultura do Rio de
Janeiro, que, por ordem do governador Wilson Witzel, ordenou o
encerramento da exposição “Literatura Exposta”, apresentada na
Casa França-Brasil desde dezembro de 2018 e que retratava, com
performance de nudez feminina, a tortura no período da ditadura ci-
vil-militar. É esse Brasil que ignora a importância de recuperar sua
história e memória, sob o governo Bolsonaro e a ascensão dos mi-
litares, e quer celebrar, revisando nosso passado e apresentando o
que há de mais grave no contexto de censura do Estado brasileiro
na contemporaneidade.
Por outro lado, a Lei Federal de Incentivo à Cultura de nº
8.313/1991, a chamada Lei Rouanet, em homenagem ao então se-
cretário de cultura, Sérgio Paulo Rouanet, criada ainda sob o gover-
no Collor de Melo, versa, basicamente, sobre a política de incentivos
fiscais para que as empresas e pessoas físicas possam aplicar uma
parte dos impostos que seriam arrecadados em atividades culturais.
É preciso fazer um preâmbulo aqui. A partir da criação dessa lei, as
atividades artísticas cresceram no país; isto não significa, em larga
medida, uma política orçamentária consistente para a cultura, mas
sim um mecanismo descontínuo de fomento à arte brasileira, da
geração de emprego e renda para centenas de artistas.
Assim, neste momento recente da história do país, em que re-
crudesce o conservadorismo no Brasil, a Lei Rouanet tem sido dura-
mente atacada e deturpada nas suas atribuições. Diversos setores con-
servadores, que sempre viram a arte e a cultura popular como “um
perigo” – porque elas fazem pensar ‒, acusam-na de ser garantidora de
privilégios para os/as artistas, quando, na verdade, ela representa uma
forma de financiamento público para a cultura, mas com gestão priva-
da, já que os recursos investidos pelas empresas nada mais são do que
deduções fiscais de impostos que deveriam ser retidos pelo Estado.
85
Trata-se de verba pública que o mercado é isento de repassar,
com a responsabilidade de investir na pasta cultural, tendo total auto-
nomia na gestão desse recurso. Por essa razão é que afirmamos que
cabe ao mercado, com destaque para as agências financeiras, a deci-
são sobre o rumo da arte no país, a partir de determinado objetivo
econômico, político ou ideológico.
O fundo público mais uma vez comprova sua relevância como
fonte importante para a realização do investimento capitalista. Os
recursos que poderiam ser angariados por meio das tributações e
destinadas ao orçamento público, o qual garante “concretude à ação
planejada do Estado “e espelha as prioridades das políticas públicas
que serão priorizadas pelo governo”, ficam retidos em empresas e
bancos, por meio da realização de um financiamento público indire-
to, fragilizando o fundo público, que deveria ser o real assegurador de
recursos para essas políticas (SALVADOR, 2012, p. 1).
É possível inferir que a estruturação de nossas políticas so-
ciais, também marcadas por elementos conservadores, obstaculiza
conquistas mais expressivas para os direitos culturais e proteção ao
trabalho artístico, porquanto os mecanismos previstos nas leis não
versam sobre formas de contratação segura, na perspectiva de di-
reitos trabalhistas ou previdenciários para o/a artista, nem o Estado
intervém nesse sentido.
Além de não possuir um planejamento a longo prazo em ter-
mos de política pública, baseado no atendimento aos reais interesses
coletivos, “se considerada a resposta de incentivo oficial, é um verda-
deiro milagre que essas companhias existam e tenham condições de
manter um projeto de formação intelectual, uma construção em meio
ao desmanche geral” (CEVASCO, 2010, p. 145).
Nesse sentido, é fundamental a construção de uma política
cultural estável que esteja voltada ao fortalecimento das atividades
artísticas, sobretudo considerando a precarização dos profissionais da
arte já sinalizada, com forte tendência ao subemprego e baixa remu-
neração. Se é o mercado que regula o financiamento da arte, ele não
pode controlar a capacidade criativa, a luta e a resistência da classe
trabalhadora que vive da arte. Há resistência.
E tal resistência nada mais é do que uma ação que se realiza
dentro da própria cultura de dominação, seja ela da classe trabalhado-
ra, dada a sua exploração e a opressão pelo capital, seja de uma ação
cultural-artística. Ambas representam um perigo histórico ao capi-
tal (SILVA, 2013). Na disputa evidenciada incumbe à “classe-que-
-vive-do-trabalho” pressionar por sua direção, pois os mecanismos
de contra-hegemonia se fazem “no confronto com um projeto de
86
cultura autoritário que se gesta no processo histórico e que marca o
nosso cotidiano” (IDEM, p. 8).
Nas fileiras da resistência, embora imerso no contexto de uma
sociedade classista, é possível afirmar que o trabalho artístico tem se
imposto, ao longo da história, na perspectiva de preservar, “dentro
de certos limites, as características de criatividade que são inerentes à
genuína práxis do homem” (KONDER, 2013, p. 25), vislumbrando
a possibilidade de produção de uma arte crítica que esteja na contra-
mão da forma mercadoria e do conservadorismo aprofundado pela
crise (IDEM; CARVALHO, 2009).
Considerações finais
87
núncia das potencialidades humanas travadas pela alienação própria
da sociedade mercantil” (FREDERICO, 2013, p. 55; COSTA, 2012;
KONDER, 2013).
Corroboram o entendimento de que:
Quanto maior for o conhecimento que o artista tiver dos homens
e do mundo, quanto mais numerosas forem as mediações que ele
descobrir e (se necessário) acompanhar até a extrema universali-
dade, tanto mais acentuada será esta superação. Quanto maior for
a sua força criadora, tanto mais sensivelmente ele retransformará
as mediações descobertas numa nova imediaticidade, concen-
trando-as organicamente nela: ele formará um particular partindo
do singular. (LUKÁCS, 1978, p. 164).
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88
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90
Incidência do conservadorismo no Brasil: ofensiva
às expressões culturais no pós-golpe de 2016
Introdução
92
Tal análise se constitui enquanto arcabouço teórico-prático
relevante de investigação da profissão, necessitando, portanto, ser
continuamente atualizada, dado o desafio de denunciar formas de
opressão que afrontam as potencialidades do ser social.
93
duzir seus meios de vida, passo este que é condicionado por sua
organização corporal. Produzindo seus meios de vida, os homens
produzem, indiretamente, sua própria vida material. O modo pelo
qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de
tudo, da natureza dos meios de vida já encontrados e que têm de
reproduzir. Não se deve considerar tal modo de produção de um
único ponto de vista, a saber, a reprodução da existência física dos
indivíduos. Trata-se, muito mais, de uma determinada forma de ati-
vidade dos indivíduos, determinada forma de manifestar sua vida,
determinado modo de vida deles.
3 Sendo esse concebido como corrente ideológica surgida no Iluminismo, juntamente com
outras duas de maior proeminência, o liberalismo e o socialismo, opondo-se ao que elas
possuem de comum: a defesa do progresso humano e a predominância da razão. Em sua
complexidade, a “plasticidade das ideologias conservadoras permite abarcar desde posições
radicais, como o neomalthusianismo e o neoliberalismo, até aquelas mais nuançadas e pre-
tensamente progressistas” (SOUZA, 2016, p. 97). O que significa dizer que não há filiação
direta nem imediata dessa corrente com a extrema direita ou o fascismo, embora tenha como
característica o seu teor reacionário e irracionalista (CASTRO, F., 2018).
4 Relevante considerar a relação existente entre a reorganização dos movimentos de extrema
direita com o processo de mundialização capitalista, e nisso, com o desemprego estrutural e
a precarização das condições de vida, tendo como base social jovens da classe trabalhadora,
94
ideologicamente traços de irracionalismo. Mas, ao contrário, quando
se vivenciam momentos de estabilidade econômico-política, são pres-
tigiadas “as orientações fundadas num ‘racionalismo’ formal” (p. 16).
A razão é considerada nesse processo como elemento que, se-
gundo Cantalice (2013), é capaz de retirar o objeto do nível do aparen-
te, “apanhando essas mediações que o recompõem como totalidade,
revelando, assim, a sua essência, que se inscreve, por sua vez, como a
síntese de múltiplas determinações e relações” (p. 81). Assim, ela “não
pode ser desprezada, mesmo que seja a sua versão mais formal, pois
sem a razão não podemos superar o nível do imediato, do aparente
e do senso comum” (IDEM). Nesse sentido, a razão sofre com os
desígnios de uma “desrazão” ou formas de irracionalismo; ao passo
que a modernidade é negada em nome de uma “pós-modernidade”5.
Favorecido, sobretudo, pela precarização do trabalho e pela fra-
gilidade da consciência política crítica – esse último elemento como
desdobramento do fim das experiências socialistas –, o conservado-
rismo tende a motivar a busca por respostas irracionais e/ou pragmá-
ticas sobre a realidade (BARROCO, 2011).
O aprofundamento do conservadorismo como reflexo da crise
econômica do capital é experienciado no Brasil de maneira particular,
com um sentido original, uma vez que a realidade brasileira não viven-
ciou uma revolução burguesa de fato, tampouco transições importan-
tes que pudessem romper com seu passado colonialista, escravocrata
e autoritário (CASTRO, 2018).
A história do Brasil teve sempre presente o fator de censu-
a exemplo dos skinheads, na Europa, e dos “Carecas do ABC”, no Brasil. Entretanto, tal re-
lação indica apenas uma tendência, pois esse aspecto, analisado isoladamente, não é capaz
de explicar, sozinho, a totalidade do fenômeno. Como Löwy exemplifica em entrevista a
Dichtchekenian (2015), alguns países como Portugal, Espanha e Grécia sofreram recente-
mente com profundas crises econômicas, mas não possuem em seu cenário político par-
tidos de extrema direita que sejam relevantes. Por outro lado, Suíça e Áustria, conhecidos
pelo histórico de estabilidade econômica, já contam com essas siglas.
5 Essa, embora tenha por característica a heterogeneidade, é, do ponto de vista dos fun-
damentos teóricos e epistemológicos, totalmente funcional à lógica ideocultural do capi-
talismo tardio, na medida em que defende o fim de todos os elementos constitutivos da
Modernidade: a razão dialética, a dimensão histórica da objetividade e a riqueza humanis-
ta da práxis. Representa, assim, uma concepção parcializada sobre a cultura, tornando-a
uma “indústria” capitalista difundida a partir de uma visão de mundo aparente, acrítica e
a-histórica, que reforça a falsa autossuficiência da cultura para com as outras esferas, sus-
tentando ideologicamente o modo de produção capitalista neoliberal (TEIXEIRA; DIAS,
2010). Ademais, na atualidade, a ideologia sofre ainda uma incidência preponderante em
decorrência do avanço do ideário conservador.
95
ra, com o apagamento das lutas sociais, referenciadas por momen-
tos históricos de resistência dos povos indígenas e negros, artistas
e trabalhadores (SANTOS JÚNIOR, 2011). Essa resistência foi, ao
longo do tempo, subsumida à defesa de um suposto sentimento de
nacionalidade, patriotismo de democracia racial, que terminou, ao esvaziar o
passado, por passivizar e elitizar o presente (CHAUÍ, 2001).
Isso quer dizer que o capital, quando incide
sobre o Brasil, refor-
ça esses elementos elitistas da “via prussiana”6 brasileira, numa ação
que ratificou a reprodução de uma ideologia apassivadora na socie-
dade, com grande impacto cultural. A forma como o país se consti-
tui atualmente é impensável sem considerar sua formação particular,
marcada, além dos elementos citados, pela atuação hegemônica de
oligarquias locais e regionais, assim como por um Estado burocrático
e estruturado numa ação autoritária, violenta, hierarquizada e clien-
telista, forjada por uma cultura da tutela, compadrio, mandonismo e
favor.
Vivencia-se assim um contexto de crise ideológica favorável a
formas de reatualização de “mitos, motivando atitudes autoritárias,
discriminatórias e irracionalistas, comportamentos e ideias valoriza-
doras da hierarquia, das normas institucionalizadas, da moral tradi-
cional, da ordem e da autoridade” (BARROCO, 2011, p. 210).
Para a realidade brasileira atual, vivenciada sob os ditames
da crise capitalista, esse cenário se relaciona a uma conjuntura de
forte tensão e polarização social, tendo por grande representação o
golpe jurídico-parlamentar e midiático7 ocorrido em 2016, consoli-
6 O conceito de “via prussiana” de Lênin é usado explicitamente pela primeira vez por João
Amazonas, dirigente comunista, na ocasião dos debates que antecederam o V Congresso
do PCB, em 1960, momento em que ele evidencia que “não há vínculo necessário entre o
desenvolvimento do capitalismo e a superação dos ‘restos feudais’ e da dependência do país
ao imperialismo” (SILVA, V., 2010, p. 621). Nesse sentido, considera, a exemplo da questão
agrária, que o capitalismo, “seguindo o caminho prussiano, pode se desenvolver no campo,
conservando o latifúndio” (SILVA, V., 2010, p. 621), ou seja, “ao curso reformista que con-
siste nas transformações burguesas que se realizam sem alterar as bases do antigo regime”
(IDEM, p. 622). Ainda de acordo com V. Silva, em referência a Coutinho, “o caminho do
povo brasileiro para o progresso social – um caminho lento e irregular – ocorreu sempre no
quadro de uma conciliação com o atraso, seguindo aquilo que Lênin chamou de ‘via prussia-
na’ para o capitalismo”, e assim, no Brasil, o capitalismo se desenvolve sem necessariamente
garantir a existência de um modelo político-econômico democrático e independente (SIL-
VA, V., 2010, p. 623).
7 Como indica Lima (2015, p. 94), formada majoritariamente por grupos empresariais ou
políticos “amparados pela ausência de regulação da ‘propriedade cruzada”’, que passaram
a controlar também as concessões do serviço público de rádio e televisão. Representa as-
96
dado com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), e que
colocou em xeque a política de conciliação de classes dos governos
petistas e a própria democracia que se pensava preservada, mas que
findou reduzida ao texto frio das leis.
Tem-se assim a necessidade de reflexão em torno dos motivos
que levaram o grande capital, que tanto se beneficiou pela política
econômica dos governos petistas Lula e Dilma, a não mais aderir
ao pacto de conciliação existente até então e desenvolver uma ação
ostensiva, com o principal objetivo de levar ao limite o aumento nos
índices de lucratividade, aderindo, portanto, de forma sistemática
à derrubada do governo, com influência significativa da imprensa
e respaldo do Judiciário, substituindo-o por uma gestão ilegítima e
impopular representada por Michel Temer (MDB).
Esse processo teve início a partir de 2013, em meio a um mo-
mento em que a crise econômica iniciada em 2007-2008 começou a
reverberar de modo mais efetivo no Brasil. Vincula-se assim às cha-
madas Jornadas de Junho8, quando se evidencia o início de grandes
manifestações populares que expressaram a dificuldade do governo
Dilma em garantir o controle sobre o atendimento às demandas
sociais mais amplas.
Somada à aversão elitista que não aceitou dividir espaços nun-
ca antes ocupados pelas classes populares, houve incisiva quebra
no consenso construído, na medida em que esse era baseado no
atendimento das pautas contrarreformistas, assim como vinha sen-
do realizado nos governos anteriores; balanceando-as com a ofer-
ta de políticas sociais focalizadas e compensatórias; e ainda com a
expansão do consumo, ainda que significasse o endividamento da
população mais pobre.
Representando o “3º turno” das eleições presidenciais de
sim, a partir de um discurso pautado por suposta “neutralidade”, mais um mecanismo de
controle e difusão do pensamento da classe dominante, por meio de posições consensualmente
identificadas como direitistas (IDEM).
8 As jornadas de junho ocorridas no Brasil em 2013 revelaram insatisfações generalizadas
em relação à vida nas cidades e expuseram uma demanda relacionada às necessidades ra-
dicais da classe trabalhadora urbana brasileira – tendo o tema do transporte público como
estopim das manifestações; e a relação entre a urbanização e o sistema político-econômico
do país, a legitimidade das formas representativas e de participação popular (HARVEY,
2013; ROLNIK, 2013). As manifestações explicitaram que o direito à cidade, como afirma
Rolnik (2013, p. 9), não se compra em concessionárias de automóveis e no “Feirão da Cai-
xa”, ou seja, o aumento da renda, estimulador do crescimento do consumo, não é capaz de
resolver a ausência de urbanidade e a precariedade dos serviços públicos, dada a fragilidade
das políticas públicas urbanas.
97
2014, encerra-se de maneira autoritária um ciclo de 13 anos do go-
verno conduzido pelo Partido dos Trabalhadores, que alerta para os
reflexos de uma direção dada pelo partido, através de um projeto de
poder que fomentou a perda de radicalidade política, devida, entre
outras formas, ao apassivamento dos conflitos e à blindagem do regime
democrático-liberal brasileiro às pressões populares. Sem aprofundar
um projeto de Reforma Política, impossibilitou o cumprimento das
tarefas que a classe trabalhadora imprimiu nesse projeto desde a dé-
cada de 1980.
Esse momento da história brasileira tem como principal con-
sequência a eleição do atual Presidente da República, Jair Bolsonaro,
para o mandato 2019/2022, cuja propaganda governamental é o slo-
gan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, endossando um
projeto de total entrega das riquezas nacionais ao capital estrangeiro,
que se une ao fim do controle social9 e à forte regulação10 moral via
apelo à “família tradicional”11 e ao fundamentalismo religioso.
Eleito a partir de uma grande campanha pela desinformação,
com forte investimento privado e baseada majoritariamente na pro-
pagação de fake news, ampliada através das novas tecnologias de co-
municação (sobretudo Facebook e WhatsApp), representa a ascensão
de todos os elementos conservadores, em que a direção da ação es-
tatal para o maior cargo do país passa a seguir princípios de extrema
direita. O setor cultural não escapa a esse paradigma e às suas conse-
quências inerentes.
Tem-se nisso a efetivação de um modelo recrudescido em rela-
ção às políticas culturais. O presidente Bolsonaro, além de não trazer
em seu plano de governo nenhuma proposta para a área, extinguiu o
MINC, existente desde 1985, tornando-o uma Secretaria Especial e
reafirmando a posição do governo ante o setor. Sob a falácia de “eco-
nomia de gastos” públicos, que na prática não ocorreu, fundiu a pasta
98
com as de Esporte e Assistência Social, no recém-criado Ministério
da Cidadania.
Somam-se assim outros elementos, e exemplo da ação im-
petrada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, representante
dos interesses das instituições financeiras, que passa a indicar cortes
no “Sistema S” e realiza enxugamento nos bancos públicos (Banco
do Brasil12, BNDES e Caixa Econômica Federal) e entidades pú-
blicas (como Petrobras13 e Correios) responsáveis pela maior parte
da agenda cultural, sem que isso signifique uma ampliação da ação
estatal no setor. Sabe-se que é decisiva a participação desses entes
no desenvolvimento e na manutenção de companhias culturais e
no acesso para a população a diversos eventos, como os festivais de
cinema, teatro e dança.
Entre as ações desarticuladas estão as realizadas através do
Serviço Social do Comércio (SESC), responsável por diversas ativi-
dades em esferas regionais e nacional, com destaque para o maior
circuito de artes cênicas do país, o “Palco Giratório”. Luiz Galina,
diretor estadual em exercício pelo SESC de São Paulo, sobre o tema,
afirma em reportagem realizada para o Jornal El Pais: “Se houver
redução dos recursos, não há outras entidades que possam cumprir
o papel que o SESC tem hoje”.14
12 Com destaque ao Centro Cultural Banco do Brasil, caracterizado pela associação entre
a empresa bancária, suas marcas e instalações culturais. O referido centro não se caracte-
riza como agência estatal de cultura, mas é financiado por meio de incentivo fiscal via Lei
Rouanet, sendo a primeira no Brasil em “patrocínio proprietário”. Destina 80% de suas
deduções fiscais para o financiamento de suas próprias instalações culturais. Pertence ao
banco a escolha da programação, que ocorre via equipe de marketing, ficando reservado o
papel de executor de diretrizes e normas elaborados pelo banco. Assim, além de se encon-
trar subsumida a uma estratégia mercadológica, a contratação de artistas ocorre por meio
de edital, e o contrato não se realiza diretamente com esses/as, mas sim por meio dos/as
produtores/as, realidade que tende a recrudescer com a extinção do Minc (GOULART;
FARIAS, 2012).
13 Se o orçamento do Ministério da Cultura representava menos de 1% dos recursos
públicos federais anuais, o Petrobras Cultural condensava em contratos ativos de governos
anteriores o valor de R$ 450 milhões, investimentos que deram outra dimensão para a
produção cultural do Brasil. Vale ressaltar que a retirada da instituição dos incentivos ao
setor cultural significa parte da política de desinvestimentos e venda de ativos realizados
pelo atual governo, vinculada aos parques de refinarias que geram lucro para a estatal (FIO-
RATTI; BARSANELLI; GREGORIO, 2019).
14 JUCÁ, B. Chico Buarque: “Com esses ministros, é preferível que Cultura não tenha
ministério”. El País, 10 de janeiro de 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/bra-
sil/2019/01/08/politica/1546987601_960842.html. Acesso em: 12 fev. 2019.
99
Nessa perspectiva, os ataques do capital vivenciados atualmente
no Brasil, com importantes consequências políticas e sociais, coloca a
cultura no centro da crise econômica, no que tange às parcas conquis-
tas na área, dada a acentuada fragilização em que se encontram seus/
suas profissionais, expostos/as ao trabalho desprovido de proteção,
somada à previsão de fechamento de companhias e ao crescimento
no desemprego para o setor – não só de artistas, mas de toda a cadeia
de trabalho, que engloba desde motoristas e cozinheiros/as, a maquia-
dores/as, porteiros/as, administradores/as, técnicos/as de luz e som,
entre outros/as.
Para justificar a total retirada do Estado da política cultural, no
plano ideológico, o governo Bolsonaro vem praticando uma ação “re-
vanchista” que tenta criar um impasse moral entre a classe artística e a
sociedade, minando as expressões mais progressistas do campo artís-
tico, uma vez que este representa um setor que historicamente oferece
resistência a regimes conservadores15.
Esse entendimento de representantes do Estado, que traz di-
reção na ação política, acarreta profunda incidência na cultura, tendo
em vista os contínuos ataques às produções culturais e, também, aos
elementos vinculados à liberdade de expressão, sobretudo aquela que
pauta discussões numa perspectiva de transformação da sociedade,
movimento que acusa, por outro lado, o potencial crítico e transfor-
mador da cultura e a politização dos artistas nessa conjuntura.
Dessa afirmativa, destacam-se elementos importantes reprodu-
zidos do senso comum que necessitam ser debatidos: a) a acusação que
imprime ao/à artista a condição de pessoa ociosa, que não trabalha; b)
a ideia de que a ação estatal na cultura representa “despesa” e não in-
vestimento, inclusive com importante retorno financeiro à sociedade,
bem como geração de emprego e renda; c) o desconhecimento sobre
100
o funcionamento das leis de incentivo, tidas como “garantidoras de
privilégios” aos/às artistas, mas que na verdade beneficiam em maior
grau as instituições financeiras, grandes produtores e institutos pri-
vados (IPEA, 2018).
Reforça, nesse sentido, uma compreensão equivocada sobre
as normativas de financiamento ao setor, sendo a principal, a Lei nº
8.313/1991, a Lei Rouanet16, duramente atacada e deturpada nas suas
atribuições. A referida lei, que implica um financiamento público in-
direto para a cultura, tornou-se um instrumento de disputa ideológica
e, apesar de representar uma política estritamente neoliberal, acabou
assumindo, na conjuntura de ofensiva conservadora e patrulhamento
ideológico, um caráter de vínculo direto com a luta pela democracia.
Assim, a cultura se torna, nessa perspectiva e em um contex-
to autoritário, alvo de interdição17, mesmo que isso acarrete perdas
econômicas para a sociedade. Tal empreitada contra a liberdade ar-
tística visa assim à materialização de um projeto que promove graves
ofensivas aos/às trabalhadores/as do setor cultural e suas garantias
democráticas, a partir de forte controle moral.
No Brasil pós-golpe de 2016, a arte criadora, a cultura e seus/
suas artistas também são perseguidos/as e postos/as na antessala
dos investimentos públicos. Em especial no campo ideopolítico, a
cultura, que historicamente sofre retaliações conservadoras, no tem-
po presente é alvo de intensa ofensiva, relacionada ao fundamenta-
lismo religioso e ao moralismo, características do conservadorismo
brasileiro recrudescido.
16 A Lei Rouanet possui como finalidade primária a captação e a canalização de recursos
para o setor de modo a, segundo seu texto, contribuir no acesso às fontes de cultura, suas
manifestações, bem como no pleno exercício dos direitos culturais; estimular a regionaliza-
ção e a valorização da produção cultural local; proteger as expressões culturais de grupos
tradicionais, os bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e histórico brasileiro;
entre outros. Entretanto, na prática, materializaram-se fortes desproporções na alocação
de recursos para os segmentos artístico-culturais. Nesse patamar, ao possuir como centra-
lidade a forma de financiamento pautada por incentivos oriundos de deduções fiscais, as
verbas, que poderiam ser angariadas por meio das tributações e destinadas ao orçamento
público, o qual garante a concretização de uma ação planejada por parte do Estado e es-
pelha prioridades sociais, ficam retidas em empresas e bancos, por meio da realização de
um financiamento público indireto, medida que fragiliza o fundo público, que deveria ser
o assegurador direto desses recursos (SALVADOR, 2012).
17 Mais um exemplo disso foi a demissão do diretor de comunicação e marketing do Ban-
co do Brasil, Delano Valentim, ocorrida logo depois Bolsonaro ter vetado propaganda
do referido banco, que envolvia a participação de jovens negros/as vestidos/as de modo
“alternativo”.
101
Por essa razão é que essa atividade não passa incólume aos me-
canismos produzidos em cada tempo histórico e que são reforçados
pela ausência de reconhecimento e regulamentação do trabalho rea-
lizado. Avançar na perspectiva de construção da política cultural no
país torna-se não apenas improvável, mas também inviável, tendo em
vista a existência de um governo que traz como elemento ideológico,
político e econômico a negação desse espaço.
O projeto empreendido pelo governo Bolsonaro tem por base
o que Medeiros (2019) indica por neomacarthismo18: um Estado com
intencionalidade expressamente caracterizada pelo interesse de perse-
guir e retirar do espaço político à crítica, ao tempo que empreende es-
forço para aproximar apoios acríticos à sua administração, reativando
o chamado balcão de favores existente na era Sarney (MEDEIROS,
2019).
Como afirma Ivana Bentes, ex-secretária da Cidadania e da
Diversidade Cultural do Ministério da Cultura (SCDC/MINC), “um
Estado ressentido, que luta contra o próprio povo, está doente”19. E
relaciona o “ódio à cultura” ao horror à diversidade, uma vez que ela
não é compreendida como um campo de sociabilidade humana. A
ação estatal não afeta apenas os/as adversários/as políticos do gover-
no federal, mas toda uma sociedade e sua história.
Trata-se de uma agenda extremamente moralista, direcionada
ao campo dos valores conservadores e irracionais. Pode-se citar como
exemplo dessa ofensiva contra o setor cultural a proibição da exposi-
ção promovida pelo Santander Cultural em 2017 na cidade de Porto
Alegre (RS), intitulada de “Queer Museum: Cartografias da diferença
na arte brasileira”, cancelada após inúmeros protestos realizados pelo
MBL nas redes sociais, acusando a atividade de práticas apologéticas
à zoofilia e à pedofilia.
Mas a censura não ocorre apenas em centros privados. Des-
taca-se também a ocorrência de direcionamento pessoal de repre-
sentantes do Estado sobre a ação pública, quando se posicionam
político-ideologicamente a respeito dessas questões, a exemplo do
prefeito do Rio Janeiro, Marcelo Crivella (PRB/RJ), pastor de uma
18 Como exemplo tácito, pode-se citar a medida tomada pelo presidente Bolsonaro, que
em uma transmissão realizada pela internet, afirmou ter demitido Teté Bezerra, diretora da
Embratur, por ela ter contratado o cantor Alceu Valença, crítico de seu governo, para cantar
num jantar patrocinado pela autarquia (MEDEIROS, 2019).
19 VALERY, G. Ivana Bentes: Bolsonaro não vai conseguir matar a cultura. RádioCom, 21
de abr. de 2019. Disponível em: http://www.radiocom.org.br/ivana-bentes-bolsonaro-nao-
-vai-conseguir-matar-a-cultura/. Acesso em: 4 de mai. 2019.
102
igreja pentecostal que chamou a referida exposição de “pornogra-
fia”, defendendo sua proibição nos museus da cidade. Já em 2019,
esse prefeito determinou o recolhimento de material com temática
LGBTQI+ da Bienal do Livro que ocorria na cidade, sob a alegação
de que representava “material impróprio”.
Houve também a censura em Brasília a Maikon K por sua
performance em frente ao Museu Nacional da República, intitulada
“DNA de DAN”, na qual o artista aparecia nu dentro de uma bolha
de plástico; assim como o Museu de Arte de São Paulo (MASP), que
proibiu a entrada de menores de 18 anos, mesmo acompanhados
dos pais, na exposição “História das Sexualidades”. Em São Paulo,
também se destaca a interdição da performance “La Bête”, de Wagner
Schwartz, na abertura do 35º Panorama da Arte Brasileira, no Mu-
seu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), em que o então prefeito
João Dória (PSDB/SP) considerou-a “libidinosa” e “absolutamente
imprópria”, e que era preciso “respeitar aqueles que frequentam os
espaços públicos” (NASER; BITENCOURT; MACHADO, 2017).
Guardadas as diferenças, mas remontando aos períodos dita-
toriais vivenciados no país, há outros inúmeros casos que demons-
tram e reforçam o julgamento que tem como fundamento princípios
morais e religiosos, sobre as atividades culturais que acontecem no
Brasil, como a censura ao espetáculo “O Evangelho Segundo Jesus,
Rainha do Céu”, peça em que Jesus é representado pela atriz transe-
xual Renata Carvalho. O espetáculo, desde a sua estreia em 2016, vem
sendo alvo de protestos e proibições judiciais em várias cidades do
país, a exemplo da que ocorreria no SESC da cidade de Jundiaí (SP).
Já em 2018, o mesmo espetáculo, tendo passado por análise
técnica e sido aprovado por edital do Governo do Estado de Per-
nambuco para participar do 28º Festival de Inverno de Garanhuns
(PE), importante festival nacional, que tinha por tema “Um viva
à liberdade!”, foi retirado da programação pelo prefeito da cidade,
Izaías Régis (PTB/PE). O prefeito alegou que a supracitada cidade
é “cristã” e que a peça poderia “ofender” os diversos grupos reli-
giosos. Houve uma verdadeira batalha judicial para garantir a apre-
sentação, ocorrida com corte de luz e em meio a muita resistência
do público.
Mais um momento que demonstra de forma contundente
como a repressão vem sendo recorrente nestes tempos de persegui-
ções ideológicas, políticas e de classe, foi a ação em 2019 realizada
pela Secretaria Estadual de Cultura do Rio de Janeiro (RJ) que, por
ordem do governador Wilson Witzel, ordenou o encerramento da
exposição “Literatura Exposta”, apresentada na Casa França-Brasil
103
desde dezembro de 2018 e que retratava, com performance de nudez
feminina, a tortura no período da ditadura civil-militar.
Também no ano de 2019, já sob a gestão do governo Bolsona-
ro, o filme “Marighella”, cinebiografia do guerrilheiro revolucionário
Carlos Marighella, previsto para estreia em 20 de novembro no Brasil,
teve a verba pública para distribuição negada pela Agência Nacional
de Cinema (ANCINE), ficando sem data para lançamento. Tal can-
celamento tem ordem burocrática, mas ocorre num cenário de cortes
orçamentários e maior controle do governo federal sobre a Agência,
sobretudo a respeito de produções culturais ditas de esquerda e, por-
tanto, contrárias aos anseios ultraconservadores da presidência.
Antes disso, Bolsonaro explanou o desejo de extinguir a AN-
CINE caso não pudesse realizar um “filtro de conteúdo”, clara me-
dida de censura que se soma a outras, a exemplo de ter criticado
publicamente o edital destinado a canais televisivos públicos para fi-
nanciamento de filmes, pois entre esses estavam presentes alguns re-
lacionados à temática LGBT+, que logo foi suspenso pelo Ministério
da Cidadania; como também a orientação da Embaixada do Brasil em
Montevidéu para a não exibição de um filme sobre Chico Buarque,
artista crítico ao ente federal, em um festival que ocorreria com o
apoio do governo brasileiro (OLIVEIRA, 2019).
Soma-se também a isso outro caso de obscurantismo ocorrido
em 2019, vinculado à rescisão de contrato da Caixa Cultural de Recife
(PE) com o Espetáculo “Abrazo”, da companhia teatral Clowns de
Shakespeare (RN), peça infantil baseada em obra do escritor uru-
guaio Eduardo Galeano, cancelando a segunda das três apresentações
que se dariam no local. Desde então, o referido Centro alegou apenas
uma infração ao inciso contratual que prevê que a contratada seja
obrigada a zelar pela “boa imagem dos patrocinadores”, sendo proi-
bido o uso de referências públicas de caráter negativo ou pejorativo,
e que isso teria ocorrido no bate-papo realizado após a primeira ses-
são da peça (NUNOMURA, 2019). Já o grupo teatral não reconhece
nada que pudesse ter gerado essa situação e, diante da ausência de
informações adicionais, vincula essa decisão à censura ao trabalho e
ao livre pensamento dos indivíduos envolvidos.
Considerações finais
104
prioridade dada ao setor às agendas governamentais. As medidas de
renúncia fiscal representaram a “solução” para todas as problemá-
ticas vivenciadas na referida seara, em detrimento da ação pautada
por medidas que sejam protagonizadas pela esfera estatal.
Sem diretrizes claras sobre os limites da sua intervenção na
área cultural, o Estado termina por garantir de maneira irrestrita o
atendimento dos interesses capitalistas, legitimando a compreensão
de que “boa arte é a que vende bem e tem sucesso de público” (CE-
VASCO, 2010, p. 145), como se não fosse de sua própria responsa-
bilidade a construção de ações que visem à formação desse público.
Na atualidade, soma-se o esvaziamento das parcas ações, a
partir da desestruturação da já incipiente política, aos cortes de ver-
bas destinadas aos entes privados, que historicamente garantiam a
promoção das ações em cultura. Ao que parece, além do total aban-
dono que vêm sofrendo, resta apenas aos sujeitos que fazem cultura
no país o autofinanciamento de suas atividades.
É preciso ressaltar a situação desfavorável em que se encontra
a cultura no momento atual do país, sobretudo no pós-golpe de 2016
e com a ascensão de um governo de extrema direita, representado
com a eleição do presidente Jair Bolsonaro. Nesse momento, a cul-
tura sofre com o patrulhamento ideológico posto pelo aprofunda-
mento do conservadorismo e com o desmonte das frágeis políticas
socioculturais gestadas historicamente pelo Estado brasileiro. Isso
representa um profundo ataque às perspectivas democráticas de li-
vre expressão construídas desde o período pós-ditadura de 1964.
Mas não há fatalismo. Considerando as contradições ineren-
tes da realidade e, por mais vigorosas que sejam as forças conserva-
doras em determinadas conjunturas, permanecem vivas as respostas
dadas pelo e para o povo.
Numa sociedade doutrinadora dos sentidos humanos, na pers-
pectiva de alienação e de imposição dos ditames capitalistas a que o
Brasil é submetido, a cultura, mesmo nos contextos mais desfavorá-
veis, conseguiu trabalhar à revelia do Estado e, dotada de certa auto-
nomia, representa a produção humana que caracteriza a sociedade.
Embora seja possível enfraquecê-la política e economicamente, não
é possível aniquilá-la (VALERY, 2019).
E assim, embora imerso no contexto de contradição, há im-
portantes forças do campo cultural que resistem aos ataques do ca-
pitalismo financeiro e que se vinculam ao conjunto de movimentos
sociais que constituem a história da resistência no Brasil e neces-
sitam, mais do que nunca, se unificar nesse cenário de aprofunda-
mento do neoliberalismo, tornando real a máxima que compreende
105
a necessidade de “que à ontologia do presente acrescentemos uma
arqueologia do futuro, um modelo de pensar que ajuda a evitar a
colonização total do que virá pelo eterno presente da forma merca-
doria” (CEVASCO, 2010, p. 139).
Dessa forma, unindo a forte censura e o ataque à liberdade
criativa, que não se confunde com “liberdade de opressão e discrimi-
nação”, aos processos de especialização, particularização e fragmen-
tação existentes nos campos da produção cultural, que levam a uma
crescente autonomização dos diversos espaços de criação e, ainda,
à mercadorização da cultura, pode-se discordar veementemente da
afirmação de que “a cultura não está quieta” (PERLATTO, 2018).
Ao contrário, é possível afirmar que a cultura nunca deixou de
se expressar criticamente. Há nela uma histórica força contra-hege-
mônica. Na conjuntura recente, mais especificamente no pós-golpe
de 2016, mas, sobretudo, desde o segundo turno das eleições presi-
denciais de 2014, quando setores culturais se posicionaram fortemen-
te a favor da candidatura de Dilma Rousseff, apesar das importantes
críticas feitas ao seu governo, os sujeitos que trabalham com cultura
no Brasil se voltam com mais incidência coletiva à tarefa política, em
resposta ao “recorrente insulto à cultura” (IPEA, 2018).
Tendo esse recorte histórico como marca de análise, é possível
atestar o profundo engajamento político, com movimentações do se-
tor popular e cultural, a partir de ampla mobilização e ocupações de
prédios públicos ligados ao MINC, principalmente os IPHANs, num
movimento conhecido como “#OcupaMinc”, ocorrido nos anos de
2015 e 2016, que atingiu uma série de capitais brasileiras e protagoni-
zou um grande debate nacional sobre o tema, relacionando a questão
cultural com o processo de golpe e a consequente tentativa de fecha-
mento do MINC.
A partir desse movimento foram constituídos vários outros co-
letivos e grupos político-culturais, como o “Movimento 342 Agora”,
bem como a interlocução com as lutas pelo “Fora Temer” e “Lula Li-
vre”, fazendo desse último um grande festival de cultura. Reverberou
assim em milhares de falas ocorridas em prêmios e apresentações por
todas as esferas culturais. Tal protagonismo possui, sem dúvida, um
papel relevante no sentido de reforçar e consolidar a cultura enquan-
to força política crítica à ofensiva conservadora (PERLATTO, 2018).
Resistem assim como determinação social e histórica da luta de
classes, enquanto trabalhadores/as da cultura, a partir de uma intensa
mobilização, mesmo diante de situações de explícita repressão e de
desmanche do trabalho e da política cultural.
A partir de sua própria consciência e mobilização, mesmo se
106
constituindo de forma heterogênea, é que se articula a força em tor-
no de pautas centrais e coletivas, nas quais se percebe que a disputa
objetiva e subjetiva não traz consequências apenas para quem tra-
balha diretamente com cultura, mas sim o livre pensamento como
um todo, perspectiva que incide sobre as medidas políticas adotadas
no país (NASER, L.; BITENCOURT, G.; MACHADO, G., 2017).
Como também, busca questionar a fragmentação e a mercantiliza-
ção do trabalho e da política social no mundo contemporâneo, pres-
cindindo, portanto, de medidas que não sejam apenas do movimen-
to cultural, mas que digam respeito a toda a sociedade.
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107
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110
Desafios contemporâneos para a educação supe-
rior brasileira em tempos de aprofundamento da
mercantilização
Introdução
112
para a classe trabalhadora a exigência da apropriação de processos
de trabalhos mais fortemente centrados na inovação tecnológica,
bem como de qualificação contínua.
Neste cenário, torna-se crescente a busca por cursos, das mais
diversas naturezas, que possam “garantir” a sobrevivência no mer-
cado de trabalho. Crescem as ofertas de serviços educacionais priva-
dos que prometem a qualificação profissional necessária, no tempo
disponível do trabalhador.
Os desafios postos para o ensino superior brasileiro, em tem-
pos de financeirização do capital, incluem: o estabelecimento de leis
que favorecem a entrada do capital privado especulativo, a formação
de oligopólios das empresas educacionais, o atendimento às condi-
cionalidades impostas pelos organismos internacionais e o sucatea-
mento das instituições públicas de ensino.
A educação superior brasileira vem trilhando caminhos sinu-
osos para atingir os níveis de qualidade propagados através do dis-
curso hegemônico dominante, e que infelizmente torna-se parte dos
anseios e necessidades da classe trabalhadora. Quando salientamos
que a ideologia dominante é absorvida por parcelas de sujeitos que
constituem a classe trabalhadora, estamos chamando atenção para o
processo de estranhamento entre o que se necessita para reproduzir
a força de trabalho e o que se coloca como indispensável para ser
competitivo no mercado de trabalho, ou seja, que o importante é ter
a qualificação técnica profissional demandada para ser empregável.
113
a participação da família e da sociedade na execução desta política. O
segundo aspecto é que na sociedade capitalista o Estado legitimará os
interesses da classe dominante (burguesia), a fim de mantê-la como
classe hegemônica.
Historicamente, desde meados do século XIX, a classe tra-
balhadora vem lutando e resistindo à exploração do capital; como
resposta, o Estado cria e executa políticas sociais para estabelecer
momentos de consenso. Conforme Behring (2009, p. 302), a política
social corresponde à “[...] mediação entre economia e política, como
resultado de contradições estruturais engendradas pela luta de classes
e delimitadas pelos processos de valorização do capital”. Isto signi-
fica que mesmo havendo conquista de direitos sociais e trabalhistas
não ocorrerá a superação das desigualdades sociais e das formas de
opressão do capital sobre o trabalho.
Uma legislação fundamental que norteia a política de educação
brasileira é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), nº 9.394,
de 1996, que antes de sua promulgação e considerando o contexto de
ofensiva neoliberal, enfrentou a resistência dos profissionais da edu-
cação, movimentos sociais, partidos políticos e sindicatos em defesa
da educação pública gratuita e de qualidade, para que realmente re-
presentasse uma política educacional condizente com as necessidades
da população brasileira.
Com a promulgação da LDB/1996 foram definidas diretrizes
gerais para os cursos das instituições de ensino superior públicas e
privadas, estabelecendo um patamar comum e assegurando flexibili-
dade, descentralização e pluralidade no ensino. Neste período, con-
dizente com a estratégia neoliberal, o Estado brasileiro iniciou o pro-
cesso de reformas para intervir minimante na área social, abrindo
assim possiblidades legais de inserção do capital privado na oferta de
serviços educacionais.
Segundo Lima (2013), a expansão da educação superior no final
do governo Fernando Henrique Cardoso (período de 1995 a 2002)
pode ser observada por dois mecanismos importantes. O primeiro
refere-se aos dados do Censo da Educação Superior (2002), no qual
fica evidente que o número de ingressantes no ensino superior foi
predominante nas instituições privadas (1.090.540) em relação às ins-
tituições públicas (320.354). No tocante ao segundo mecanismo, des-
taca-se a privatização das universidades públicas federais, por meio
do estabelecimento de parcerias com empresas (realização de cursos,
consultorias e assessorias), oferta de mestrados profissionalizantes,
bem como de cursos de curta duração provenientes dos programas
de extensão.
114
Na transição dos anos 2000, as reformas educacionais conti-
nuaram nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT)4 e também
favoreceram a ampliação da iniciativa privada na área da educação.
Porém, ao mesmo tempo, os governos petistas desenvolveram ações
governamentais que propiciaram a expansão da educação pública,
principalmente no nível do ensino superior, através do programa de
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI),
com o objetivo de ampliar o acesso e a permanência na educação
superior; e do Sistema Informatizado do Ministério da Educação
(Sisu), que oferece vagas nas instituições públicas de ensino superior
para estudantes que participaram do Exame Nacional do Ensino
Médio (ENEM).
Por outro lado, houve a implementação de programas que fo-
ram mais favoráveis para a parceria público-privada, como: o Pro-
grama Universidade para Todos (Prouni), que objetiva conceder
bolsas de estudo integrais e parciais de 50% em instituições públicas
e privadas (presenciais ou EaD) de educação superior; e o Fundo
de Financiamento Estudantil (FIES), que financia a graduação na
educação superior em instituições privadas.
No contexto dos anos 2000 emerge também como promessa
de qualificação profissional moderna, tecnológica, rápida e adequa-
da às demandas do mercado o ensino na modalidade a distância
(EaD) ‒ na graduação, pós-graduação stricto sensu e em cursos téc-
nicos profissionalizantes. O EaD caracteriza-se como uma modali-
dade atrativa porque apresenta relativo baixo custo das matrículas e
mensalidades, curta duração para conclusão e uma dinâmica flexível
para estudos em virtude de os momentos presenciais serem cada
vez menores e/ou ausentes. Vale destacar que as instituições de en-
sino superior públicas também fazem parte desta oferta de ensino
EaD em ambos os níveis de ensino citados acima.
A meta nº 11 do Plano Nacional de Educação (PNE) para o
decênio 2014-2024 visa aumentar em 50% o número de matrículas
nas instituições públicas de educação profissional técnica de nível
médio. Em relação à meta nº 12, pretende-se elevar a taxa bruta de
matrículas na educação superior para 50% e a taxa líquida para 33%,
da população de 18 a 24 anos, assegurando a qualidade da oferta e a
expansão para, pelo menos, 40% das novas matrículas nas institui-
ções públicas; 60% dessas matrículas serão destinadas às instituições
privadas.
4 Governo de Luiz Inácio Lula da Silva (período de 2003 a 2011) e governo de Dilma
Rousseff (período de 2011 a 2016).
115
Com base no exposto, observa-se que o PNE vigente cumpre
as exigências dos organismos internacionais, reafirmando a abertura
para investimentos do capital privado e transferindo para os indivídu-
os a responsabilidade pela busca por serviços de educação ofertados
pelo mercado, principalmente a formação técnico-profissionalizante
e superior.
Desde a implementação dos programas sociais para a educação,
citados anteriormente, houve crescimento no número de brasileiros
que concluíram o ensino superior, conforme demonstram os dados
do censo do Ministério da Educação (MEC): em 2017, aproxima-
damente um milhão e duzentos mil concluíram curso de graduação.
Porém, “no período de 2007 a 2017, a variação percentual do número
de concluintes em cursos de graduação é maior na rede privada, com
60,8%; enquanto na pública esse crescimento é de 27,8% no mesmo
período”.
Outro dado importante é que “após queda ocorrida em 2016, o
número de concluintes da modalidade a distância teve uma oscilação
positiva em 2017, aumentando a sua participação de 19,7% em 2016
para 21% em 2017”. Estes dados confirmam nossas análises de que
as estratégias adotadas pelo Estado brasileiro atendem à lógica de
expansão e, principalmente, de aprofundamento da mercantilização
da educação superior.
No ano de 2016, após o golpe contra a democracia, no perí-
odo do governo de Michel Temer (mandato presidencial de 2016 a
2018), inicia-se a implementação da Base Nacional Comum Curricu-
lar (BNCC)5, vislumbrando sintonizar-se com o movimento global de
reforma da educação presente em vários países desenvolvidos: Japão,
Cingapura, Finlândia e Alemanha. Naquele momento, o ministro da
Educação, José Mendonça Filho (mandato no período de maio de
2016 a abril de 2018), filiado ao Partido Democratas (DEM), retoma
a discussão sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais, que já havia
surgido desde os anos de 1990 como um movimento pelas referên-
cias nacionais curriculares liderado pelo próprio DEM, que resultou
em 1997 na implementação do Sistema de Avaliação da Educação
Básica (SAEB)6 (FREITAS, 2018).
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) propõe a utili-
zação de conteúdos comuns aos estudantes dos níveis básico, fun-
116
damental e médio das escolas públicas e privadas, considerando a
autonomia destas para acrescentar conteúdos específicos de acordo
com a sua localidade/região. Por outro lado, é contraditório à reali-
zação dos sistemas avaliativos nacionais (provas padronizadas) que
dão prioridade aos conteúdos das matérias de português, matemáti-
ca e ciências sociais; os resultados alcançados repercutem na nota do
estudante e consequentemente da escola. A depender da nota alcan-
çada, estas escolas públicas podem sofrer penalidades por parte do
Estado, como a redução do repasse de recursos financeiros. Assim,
se as escolas públicas não traçarem um planejamento estratégico de
ensino para alcançar melhores notas, serão consideradas sem quali-
dade no ensino ofertado.
Esta visão de avaliação da educação também atinge o ensino
superior (através do Exame Nacional de Desempenho dos Estudan-
tes – ENADE7) e coloca as universidades públicas no mesmo nível
de avaliação que as instituições de ensino superior privadas (presen-
ciais e EaD). Isto é, as instituições de ensino superior públicas são
avaliadas igualmente às instituições de ensino superior privadas, e
ainda sofrem retaliações por parte do próprio Estado por não ofe-
recerem um ensino de qualidade. Na lógica capitalista, o conceito de
qualidade significa saber desenvolver e utilizar as habilidades com
competência profissional para atender às necessidades de produção
e reprodução das relações sociais capitalistas.
É indispensável compreender que a lógica competitiva ineren-
te ao capitalismo determina a forma como as políticas sociais deve-
rão ser executadas, e entre estas políticas a educação ocupa uma cen-
tralidade para a formação e o disciplinamento da força de trabalho.
A educação pública é conduzida por sistemas de avaliação que
priorizam os indicadores quantitativos e a construção de rankings de
escolas ou universidades com supostos maiores índices de qualidade
do ensino ofertado. Neste processo, alguns elementos de suma rele-
vância para uma avaliação mais ampla são comumente secundarizados,
como: o processo de ensino e aprendizagem, o trabalho dos docentes,
o investimento dos recursos públicos na manutenção das estruturas
físicas, as diretrizes dos projetos pedagógicos e a relação entre os es-
tudantes, a família e os professores. Estes sistemas de avaliação con-
tribuem para a fragilização das instituições de ensino públicas que não
atendem aos critérios quantitativos privilegiados, bem como culpabi-
lizam os sujeitos envolvidos nesses espaços pelos fracassos escolares.
117
Em julho de 2019 iniciou-se um processo de contingenciamen-
to de 30% dos recursos federais para as universidades públicas. De
acordo com informações oficiais do MEC8, trata-se de um bloqueio
de dotação orçamentária de caráter preventivo, “operacional, técnico e
isonômico para todas as universidades e institutos, em decorrência da
restrição orçamentária imposta a toda Administração Pública Federal
por meio do Decreto nº 9.741, de 28 de março de 2019, e da Porta-
ria nº 144, de 2 de maio de 2019”. Este contingenciamento9 resultou
em muitos danos para o seu funcionamento, como: cortes das novas
bolsas de iniciação científica e também dos programas de mestrado e
doutorado, recursos financeiros insuficientes para o pagamento das
despesas com energia, água, material de expediente e limpeza em geral.
Segundo Freitas (2018), existem três denominações que repre-
sentam as propostas de reformulações da política de educação numa
perspectiva empresarial e/ou mercadológica: reforma empresarial,
movimento global de reforma educacional e nova gestão pública. Es-
tas reformas implementadas na educação brasileira e em outros países
atingem todos os níveis de ensino e visam ofertar um ensino adequa-
do à formação da futura mão de obra demandada pelo mercado de
trabalho em âmbito nacional e internacional.
Entendemos que as propostas governamentais não se amoldam
à realidade da população brasileira, em particular da classe trabalhado-
ra que vivencia a informalidade do trabalho ou o desemprego. Não se
trata apenas de uma questão de direito baseado na escolha de quem
pode ou não pagar pelo acesso ao ensino superior; o que está em dis-
puta no cenário político da educação brasileira são os interesses cor-
porativos das multinacionais da educação em detrimento da educação
pública, gratuita e de qualidade.
De acordo como Rossi (2018), é crucial a oferta de uma educa-
8 O contingenciamento é uma ação governamental em curso no ano de 2019 e ainda não há
uma resolução definitiva. Informações sobre o contingenciamento. Disponível em: <http://
portal.mec.gov.br/component/content/article?id=75781>. Acesso em: 4 de out. de 2019.
Ressaltamos que também existem informações disponíveis sobre o descontingenciamento.
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=80801:univer-
sidades-e-institutos-federais-vao-receber-quase-60-da-verba-descontingenciada-pelo-mec>.
Acesso em: 4 de out. de 2019.
9 É indispensável registrar que houve várias mobilizações em defesa da educação pública,
em âmbito nacional, organizadas pelas instituições públicas de ensino (representadas por
estudantes, professores, técnicos administrativos, movimentos sociais e sindicatos de tra-
balhadores da educação e sindicatos de trabalhadores em geral) contrárias a este processo
de contingenciamento e principalmente ao desmonte que vem acometendo a política de
educação brasileira, sobretudo a educação superior.
118
ção voltada à formação de um perfil de trabalhador que responda aos
interesses do capital.
Não importa ao capital que os indivíduos se apropriem de toda
a cultura humana ‒ em sentido amplo ‒, construída histórica e
socialmente pela humanidade. Interessa ao capital que os indiví-
duos possam se apropriar dos conhecimentos, habilidades, com-
portamentos e visões de mundo que possibilitem garantir a sua
própria reprodução de modo cada vez mais intenso e extenso.
(ROSSI, 2018, p. 49).
119
Observa-se, portanto, que além de atender às necessidades
econômicas, a universidade deve estar voltada à lógica da qualificação
contínua, que também serve à imposição de adaptabilidade e poliva-
lência do mercado de trabalho neoliberal. Como parte de um mesmo
processo, ainda de acordo com Freitas (2018), o “conceito de quali-
dade da educação” passa a estar associado ao afastamento do Estado
da gestão política da educação e ao discurso/estratégia política go-
vernamental que visa à abertura para as empresas privadas gerirem
esta política, utilizando assim algumas estratégias de privatização das
instituições públicas de ensino independentemente do nível escolar.
Diante destas reflexões desenvolvidas por Freitas (2018) so-
bre a lógica do capital para a educação no Brasil, enfatizamos que
as propostas contemporâneas para a educação superior10 ressaltam
a necessidade das instituições federais de ensino superior e também
dos institutos federais tecnológicos de realizarem parcerias com em-
presas privadas para propiciar o financiamento e o desenvolvimento
de pesquisas com a finalidade de promoção do desenvolvimento da
ciência e da tecnologia.
Esta visão mercadológica entende que a ciência e a tecnologia
devem ser norteadas por uma dinâmica empreendedora alinhada às
necessidades do mercado, bem como o desempenho dos docentes e
discentes pesquisadores será avaliado pelo desenvolvimento de habi-
lidades e competências, adotando-se os critérios de eficiência e eficá-
cia. Caso não correspondam aos critérios de desempenho esperado,
tanto docentes e discentes pesquisadores como as instituições públi-
cas (universidades e institutos) serão penalizados em decorrência da
redução dos recursos públicos para a manutenção do funcionamento
da estrutura física/administrativa e principalmente dos projetos de
pesquisa.
10 Podemos citar como exemplo o Programa FUTURE-SE, que objetiva o fortalecimento
da autonomia administrativa, financeira e da gestão das universidades e institutos federais. O
MEC submeteu a proposta do programa para consulta pública com prazo prorrogado até
29/8/2019, e ainda não houve a divulgação oficial dos resultados. Portanto, não foi enviado
para a aprovação do Congresso Nacional. De acordo com o MEC, a adesão ao programa é
opcional para as universidades e institutos federais. É imprescindível destacar que compre-
endemos este programa como uma representação do processo de mercantilização da edu-
cação pública, expressando claramente uma das estratégias de privatizações por dentro das
universidades e institutos federais, camufladas através do discurso ideológico modernizante
e conservador de cunho neoliberal. Mais informações disponíveis em: <http://portal.mec.
gov.br/busca-geral/12-noticias/acoes-programas-e-projetos-637152388/78351-perguntas-
-e-respostas-do-future-se-programa-de-autonomia-financeira-do-ensino-superior>. Acesso
em: 4 de out. de 2019.
120
De acordo com Chauí (1999), o que se consolida são estra-
tégias para transformar a educação de serviço público estatal em
serviço privado, torná-lo cada vez mais operacional, garantindo a
formação de profissionais para as demandas do mercado. A preo-
cupação primordial é essencialmente com a gestão, o planejamento,
a previsão, o controle e o desempenho da estrutura organizacional
das universidades públicas, resultando na desvalorização do traba-
lho docente e no aceleramento da produção do conhecimento cien-
tífico. Dessa forma, a função da “universidade operacional” é ga-
rantir o desenvolvimento de uma formação que legitime uma visão
conformista das contradições da sociedade capitalista.
As estratégias utilizadas em tempos de capital financeiro/es-
peculativo conduzem ao sucateamento das instituições públicas de
ensino superior e à fragilização/interrupção dos projetos de pesqui-
sas desenvolvidos. Essa lógica mercadológica para a educação brasi-
leira omite os ganhos obtidos pelos trabalhos científicos (resultados
das pesquisas desenvolvidas) realizados por docentes e discentes nas
universidades e institutos federais.
Um levantamento publicado pelo jornal da USP (5/4) aponta
o Brasil como o 14º maior produtor de trabalhos científicos
do mundo. Apesar dos cortes nos últimos cinco anos, das 50
instituições que mais publicaram trabalhos científicos no país,
44 são universidades (36 federais, sete estatais e um particular)
e cinco são institutos de pesquisa ligados ao governo federal
(Embrapa, FioCruz, CBPF, Inpa e Inpe), também mantidos
com recursos públicos, além de um instituto federal de ensino
técnico. (RADIS nº 203, 2019, p. 15-16).
121
tos para definir os melhores programas e, consequentemente, as me-
lhores universidades do país, implicando também processos de aligei-
ramento da formação dos pesquisadores nos programas de mestrado
e doutorado e comprometendo o desenvolvimento das pesquisas.
Acreditamos que em meio às contradições vigentes na socie-
dade capitalista, a formação acadêmica profissional nas instituições
públicas de ensino superior é comprometida com a garantia do tripé
ensino, pesquisa e extensão, numa perspectiva de formação humana
crítica e propositiva voltada para a construção de uma sociedade justa
e igualitária.
Os próprios relatórios técnicos do censo da educação superior,
elaborados pelo Ministério da Educação (MEC), evidenciam que a
partir de 2006 houve crescimento do número de universidades públi-
cas e institutos federais em virtude da meta governamental (período
de gestão do Partido dos Trabalhadores – PT) de ampliar o acesso ao
ensino superior e técnico profissional.
Reconhecemos que esse processo de expansão foi realizado
com avanços e retrocessos, considerando principalmente a forma
como o programa Reestruturação e Expansão das Universidades Fe-
derais (REUNI) foi implementado, em meio ao sucateamento pelo
qual as universidades já vinham passando desde os governos anterio-
res ao PT, em especial no período de Fernando Henrique Cardoso,
em plena efervescência da ofensiva neoliberal no Brasil.
É necessário reafirmar que tal expansão demandou a respon-
sabilização do Estado na manutenção destas instituições públicas de
ensino superior e tecnológico, além de proporcionar impactos quan-
titativos e qualitativos significativos na vida dos trabalhadores em re-
giões do país que não possuíam oferta de ensino superior público.
Diante das reflexões desenvolvidas acima, consideramos im-
portante apresentar o que compreendemos por um processo educa-
tivo que contribui para a formação humana. Para tanto, respaldamo-
-nos na perspectiva marxiana e evocamos o pensamento de Tonet
(2014):
Entendo, então, por emancipação humana uma forma de so-
ciabilidade, situada para além do capital, na qual os homens são
plenamente livres, isto é, na qual eles controlarão, de maneira li-
vre, consciente, coletiva e universal o processo de produção de
riqueza material (o processo de trabalho sob a forma de trabalho
associado) e, a partir disso, o conjunto da vida social (TONET,
2014, p. 11).
122
mana é crucial entendermos que o ser humano é constituído por
necessidades inerentes à sua natureza. Quando nos referimos à na-
tureza humana estamos partindo de uma perspectiva ontológica, na
qual não é possível separar o ser humano do mundo natural. A on-
tologia marxiana permite apreender que a existência da humanidade
depende de sua relação com a natureza, por ser esta parte de sua
composição; a forma como o ser humano consegue responder a
suas necessidades tem a mediação da atividade primária, o trabalho.
Segundo Rossi (2018):
O trabalho é uma categoria ontológica do ser social. Para que a
humanidade continue a existir, é necessário que exista trabalho
para transformar a natureza e atender às necessidades humanas.
Os atos de trabalho irão da origem a uma série de outros com-
plexos sociais como a educação (que é, assim como os demais,
um complexo fundado), pois, neste caso, os conhecimentos e as
habilidades que se originaram pelo trabalho precisam ser trans-
mitidos e apropriados pelos seres humanos (ROSSI, 2018, p.
42).
123
O autor elenca cinco requisitos importantes para realizá-las:
São eles: 1) conhecimento acerca do fim a ser atingido (a eman-
cipação humana); 2) apropriação do conhecimento acerca do
processo histórico e, especificamente, da sociedade capitalista;
3) conhecimento da natureza específica da educação; 4) domínio
dos conteúdos específicos a serem analisados; 5) articulação das
atividades educativas com as lutas, tanto especificas como gerais,
de todos os trabalhadores (TONET, 2014, p. 10).
Considerações finais
124
cursos tecnológicos e superiores. Os serviços ofertados no ensino
superior, em sua maioria privados, são voltados a uma formação
profissional em curto prazo que irá compor o exército industrial de
reserva.
Concluímos que o contexto do século XXI demarca o acir-
ramento das contradições do capital visualizadas na barbarização da
vida em sociedade, no qual todas as estratégias de recuperação da
taxa de lucro que incidem sobre as políticas educacionais resultam
em formas de aprofundamento da desigualdade de classe, raça e
gênero. São os trabalhadores a classe afetada pelas determinações
do capital.
É necessário continuar na luta por outra forma de socia-
bilidade. Para isso, torna-se imprescindível a realização de ativida-
des educativas emancipadoras que propiciem o desenvolvimento de
uma consciência realmente crítica sobre a história da humanidade,
as contradições do modo de produção capitalista, a relação de supe-
rexploração da força de trabalho, o papel que a classe social cumpre,
as lutas de classes e suas contradições e, particularmente, a necessi-
dade de construir caminhos para a superação da ordem do capital.
Referências
125
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versidades-e-institutos-federais-vao-receber-quase-60-da-verba-descon-
tingenciada-pelo-mec>. Acesso em: 4 de out. de 2019.
127
Docência no ensino superior: uma análise da
formação profissional em serviço social
Introdução
130
funcionamento da sociedade como um todo” (CHAUÍ, 2013, p. 5).
As relações sociais que constituem nossa sociabilidade são
construídas através do modo de produção capitalista, um sistema
social que está assentado na propriedade privada dos meios de pro-
dução pela classe burguesa e tem como objetivo a geração de lucro
e como base, a exploração da força de trabalho humana (trabalho
abstrato). Divide os indivíduos em classes sociais distintas, com in-
teresses sociais divergentes, entre dominados e dominantes. Esta
hierarquia social se faz presente em todos os aspectos da vida social,
porquanto o capital a tudo domina.
A universidade, que compõe o sistema educacional de nível
superior, também é imbuída das relações sociais, econômicas, políti-
cas e culturais do sistema capitalista. O direcionamento desta insti-
tuição social, primariamente, objetiva a educação como ferramenta
para o desenvolvimento social e a produção e reprodução do conhe-
cimento científico, em busca de contribuir para uma “vida melhor”.
Porém, o que se realiza sob a égide do capital é a priorização de
uma formação técnica e profissional de indivíduos capacitados para
exercer atividades que gerem lucratividade às grandes empresas. As
exigências de maior capacitação profissional fazem com que a edu-
cação desenvolvida sob esta relação social “deixe de ser preparação
para a vida e se torne educação durante toda a vida” (CHAUÍ, 2003,
p. 11).
Analisar o ensino superior por este viés não é algo simples,
pois envolve um conjunto de categorias e mediações a serem con-
sideradas. Pensar a docência nesta perspectiva coloca a necessidade
de um posicionamento de um projeto societário: reproduzir a lógica
formal do conhecimento científico, a formação técnica e profissio-
nal voltada para o mercado de trabalho; ou buscar um processo
educativo capaz de permitir ao indivíduo o desenvolvimento de ha-
bilidade e capacidades próprias para contribuir com as reais neces-
sidades sociais.
Ao se indagar sobre a questão da educação para o mercado ou
para a vida, busca-se apresentar a análise de alguns teóricos, abaixo
referidos. Não se intenta aprofundar esta questão, mas apenas trazer
à cena alguns debates que podem fornecer subsídios para exames
futuros.
Com relação à educação institucionalizada no modo de pro-
dução capitalista, Amourim et al. (2017) afirmam que a educação
para a classe trabalhadora se expandiu progressivamente. Assim, a
educação no sentido estrito de forma específica tem prevalência so-
bre a educação no sentido amplo. É com o advento do capitalismo e
131
com o desenvolvimento industrial “[...] que são requeridas novas for-
mas de apropriação de conhecimentos e habilidades para o trabalho
[...]” (AMOURIM et al., 2017, p. 81). Nesta perspectiva, os processos
educacionais visam adequar a força de trabalho às necessidades do
modo de produção burguês.
Ao tratar da universidade e seu caráter de instituição social,
Chauí (2003) esclarece que esta é diferenciada e definida por sua au-
tonomia intelectual. A relação sociedade x Estado na universidade
aparece de maneira conflituosa, “[...] dividindo-se internamente entre
os que são favoráveis e os que são contrários à maneira como a so-
ciedade de classes e o Estado reforçam a divisão e a exclusão sociais
[...]” (CHAUÍ, 2013, p. 6), o que impede o desenvolvimento das pos-
sibilidades democráticas da instituição universitária.
Com as mudanças políticas ocorridas nas últimas décadas, par-
ticularmente com as reformas políticas e econômicas mediadas pelo
neoliberalismo, o sistema educacional sofreu consequências conside-
ráveis. Para a autora supracitada, isto definiu a educação como setor
não exclusivo do Estado, constituindo-se não mais num direito em
âmbito público, mas num serviço que pode ser adquirido em âmbito
privado, ou seja, através do mercado. Esta reforma não considera a
universidade como uma instituição social, mas como uma organiza-
ção social. Isso implica:
a) que a educação deixou de ser concebida como um direito e
passou a ser considerada um serviço; b) que a educação deixou
de ser considerada um serviço público e passou a ser considerada
um serviço que pode ser privado ou privatizado (CHAUÍ, 2013,
p. 6).
5 Termo de Freitag (Le naufrage de l’université) citado por (CHAUÍ, 2013, p. 7).
132
acerca da concepção empresarial de gestão e de financiamento para
a política de educação pública. Nesta direção, o Estado prioriza as
diretrizes educacionais orientadas pelos organismos financeiros in-
ternacionais, a exemplo do Banco Mundial (BM) e do Fundo Mone-
tário Internacional (FMI), aproximando cada vez mais as escolas e
universidades ao mercado.
As normas e padrões estruturados atualmente para as univer-
sidades são desconexos da produção do conhecimento científico e
da formação intelectual. Impõem-se as exigências de uma formação
mais acelerada, uma avaliação por quantidade, sem consideração
para com a qualidade. Chauí (2003) destaca o aumento das horas/
aula; a diminuição do tempo das pós-graduações mestrado e dou-
torado; a avaliação por quantidade de produção publicada, eventos
ministrados ou frequentados etc.
Diante dessa realidade, a docência é encarada como uma mera
transmissão de conhecimentos de forma aligeirada. O objetivo edu-
cador fica relegado ao aspecto conteudista, para dar conta de um
programa de disciplina, sem a necessária articulação com a totalida-
de, seja da formação profissional, seja da vida social. Pois o profes-
sor, como trabalhador assalariado, sofre também com o processo de
precarização, mediante a maior exploração da sua força de trabalho
(maior tempo de especialização, baixos salários, flexibilidade de con-
tratos, entre outros aspectos).
Conforme Chauí:
A docência é pensada como habilitação rápida para graduados,
que precisam entrar rapidamente num mercado de trabalho do
qual serão expulsos em poucos anos, pois se tornam, em pou-
co tempo, jovens obsoletos e descartáveis; ou como correia de
transmissão entre pesquisadores e treino para novos pesquisa-
dores. Transmissão e adestramento. Desapareceu, portanto, a
marca essencial da docência: a formação (CHAUÍ, 2003, p. 7).
133
práxis social6 fundada pelo trabalho7 (categoria fundante do ser so-
cial), que tem como função essencial influenciar as consciências; já a
práxis docente busca “[...] mediar a relação entre os próprios homens;
trata-se de uma consciência que atua sobre a outra, buscando contri-
buir na formação da personalidade dos alunos, nos seus comporta-
mentos e valores” (BERTOLDO et al., 2012, p. 113).
Portanto, a docência é uma prática social basilar no conjunto
de mediações que compõem a formação do ser humano em socie-
dade. “O ensino é um fenômeno complexo; enquanto prática social
realizada por seres humanos com seres humanos, é modificada pela
ação e relação destes sujeitos, que, por sua vez, são modificados neste
processo” (PIMENTA e ANASTASIOU, 2002, p. 189). Por isto, a
docência exige o domínio do método de ensino, o que requer investi-
mentos acadêmicos do professor, na busca de uma atuação que per-
mita a instauração de práticas democráticas e participativas, de com-
preensão e de crítica, que visem dotar o ensino de melhor qualidade.
Freire (1996) afirma que “ensinar não é transferir conhecimen-
to, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua constru-
ção” (FREIRE, 1996, p. 12). Isto leva a refletir a prática social docen-
te de forma menos superficial. Pois quando se tem a compreensão da
profissão docente, não enquanto mero professor que transfere conhe-
cimento, mas com consciência da determinação social da prática, a
perspectiva de educador ganha uma dimensão transformadora.
O referido teórico destaca que o ensinar exige uma série de con-
dições, que vão desde a rigorosidade metódica, a pesquisa, o respeito aos
saberes dos discentes, até a criticidade, a ética, entre outras. Para Freire, “a
reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/
Prática, sem a qual a teoria pode ir virando blá-blá-blá e a prática, ativismo”
(FREIRE, 1996, p. 11). Outro aspecto relevante é a relação educador e
educando, já que “não há docência sem discência [...]. Quem ensina apren-
de ao ensinar, e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 1996, p. 12).
6 Práxis social está relacionada à ação humana concreta com a natureza na vida em socie-
dade. “Toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é práxis. [...] Por atividade em geral
entendemos o uso ou conjunto de atos em virtude dos quais um sujeito ativo (agente) mo-
difica uma matéria-prima dada. [...] O resultado da atividade, ou seja, seu produto, também
se dá em diversos níveis: pode ser uma nova partícula, um conceito, um instrumento, uma
obra artística ou um novo sistema social. [...] A atividade humana é portanto atividade que se
orienta conforme fins, e esses só existem através do homem, como produtos de sua consci-
ência” (VÁSQUEZ, 2011, p. 221-223).
7 Sobre a categoria trabalho e sua relação com a docência, ver Bertoldo et al., 2012, p. 111-
113.
134
Esses aspectos devem ser levados em consideração em todos
os níveis de ensino, inclusive no ensino superior. A questão especí-
fica do nível superior é a dimensão pedagógica e a relação aprendi-
zagem, que na maioria dos cursos universitários e não universitários
(técnicos e profissionalizantes) não formam para a docência. Exis-
te a “[...] prevalência de uma formação voltada ao saber fazer ou
ao saber técnico na formação de educadores da Educação Básica,
deixando evidente que o docente universitário não tem formação
pedagógica para atuar na formação profissional de outros sujeitos”
(BOLZAN e ISAIA, 2010, p. 23).
Com a preocupação constante de formações específicas para
o mercado de trabalho (prática das profissões), os cursos que não se
caracterizam como licenciaturas não formam seus futuros profissio-
nais para a formação de outros profissionais. E mesmo os cursos de
mestrados e doutorados acadêmicos não têm a obrigatoriedade de
oferta de disciplinas pedagógicas8, o que gera certos entraves para a
garantia de formação profissional de qualidade.
Com relação ao ensino superior, Bolzan e Isaia (2010) desta-
cam o conceito de pedagogia universitária,
entendida como um campo de aprendizagem da docência que
envolve a apropriação de conhecimentos, saberes e fazeres pró-
prios ao magistério superior, estando vinculados à realidade
concreta da atividade de ser professor em seus diversos campos
de atuação e em seus respectivos domínios (BOLZAN e ISAIA,
2010, p. 16).
8 Disciplinas que possam preparar o aluno para uma futura atuação na docência.
135
Diante das considerações apresentadas até o momento, torna-
-se possível refletir sobre a formação profissional no ensino superior
de forma articulada à prática docente no Serviço Social.
9 Segundo Netto (2006), o sistema capitalista, a partir de 1860, passou por profundas mo-
dificações no seu ordenamento e na sua dinâmica econômica. É nesse período que o capi-
talismo passa da sua fase concorrencial para a monopólica. A partir deste período houve
alterações significantes na dinâmica da sociedade burguesa: ela acirrou as contradições fun-
damentais do capitalismo, que já estavam expostas no capitalismo concorrencial, e as com-
binou com novas contradições e antagonismos.
10 Pelo termo “questão social” queremos indicar o complexo de problemas sociais, eco-
nômicos, políticos e culturais, derivados da relação contraditória entre capital e trabalho no
modo de produção capitalista (NETTO, 2006). Significa o conjunto das mazelas próprias
desta sociedade que emergem do cenário da primeira onda industrializante na Inglaterra,
por ocasião do século XVIII, quando a classe operária posicionou-se diante das péssimas
condições de vida que vinham enfrentando com a emergência do modelo fabril de produ-
ção, fazendo surgir não apenas o pauperismo, sua expressão mais flagrante, mas a fome, as
péssimas condições de trabalho e de habitação, bem como a formação de um excedente de
força de trabalho não absorvido pela nova dinâmica que se estabelecia.
136
O Serviço Social tem sua base nas políticas sociais, através das
quais o Estado burguês procura responder às expressões da “ques-
tão social”, de forma fragmentada e superficial. Nesse sentido, as
políticas sociais se constituem também como um conjunto de pro-
cedimentos técnico-operativos que requerem agentes técnicos no
plano da sua formulação, implementação e avaliação.
A formação profissional em Serviço Social teve início no Bra-
sil na década de 1930, com a criação das primeiras escolas de Ser-
viço Social ‒ em São Paulo, em 1936, e no Rio de Janeiro, em 1937.
A base teórico-metodológica da formação era eminentemente in-
fluenciada pela doutrina social católica, voltada a um ideário huma-
nista cristão baseado no Neotomismo11, que defendia o ajustamento
moral e religioso dos indivíduos-alvo da intervenção profissional,
evidenciando assim um caráter estritamente conservador da ordem
societária.
De acordo com Iamamoto e Carvalho (2009), durante as dé-
cadas de 1940 e 1950, houve o processo de institucionalização da
profissão, com o crescimento das contratações em instituições pú-
blicas e privadas, devido ao acirramento das expressões da “questão
social” em decorrência do processo de industrialização nacional. A
formação e a atuação passaram a ter forte influência da ideologia
desenvolvimentista12, com bases teóricas no positivismo13.
11 Neotomismo é a releitura das concepções teológicas de São Tomás de Aquino, funda-
mentada no humanismo cristão e na ideia de caridade, através dos princípios da dignidade
humana e do bem comum. Estes princípios estiveram presentes na formação e na prática
do Serviço Social da década de 1930 a 1960, aproximadamente.
12 A ideologia desenvolvimentista foi um movimento ideopolítico que afirmava a ne-
cessidade de ações voltadas ao desenvolvimento econômico e social do Brasil, com forte
investimento do Estado em setores da produção industrial e infraestrutura. O processo de
institucionalização, ocorrido nas décadas de 1940-50, foi permeado por novas demandas
sociais e institucionais de caráter desenvolvimentista e aproximou o Serviço Social das
teorizações positivistas de influência americana, com a ampliação de referenciais técni-
cos de análise de dados e fatos sociais com uma visão teórica no âmbito verificável e
da experimentação e fragmentação, voltando-se para o ajuste e a conservação da ordem
estabelecida. Um evento que marcou este movimento foi o II Congresso Brasileiro de Ser-
viço Social (Rio de Janeiro, 1962). Este congresso aproximou o Serviço Social da política
“desenvolvimentista” e efetivou a abordagem do desenvolvimento de comunidade, sob o
tema “desenvolvimentismo nacional para o bem-estar social”.
13 O positivismo é uma corrente filosófica e sociológica que tem por base a exaltação dos
fatos. Esta vertente se baseia nos dados da experiência como a única filosofia verdadeira.
Para o positivismo, o método experimental permite comprovar a verdade e é o caminho
para o pensamento científico.
137
Devido às necessidades próprias da atualização profissional
– em face das novas demandas postas pelo Estado, principalmente
na mediação das políticas sociais, como também devido a uma nova
conjuntura político-social brasileira –, a partir da década de 1960 a
categoria passa por um processo de revisão de suas bases teórico-
-metodológicas, ético-políticas e técnico-operativas. De acordo com
Netto (2007), o processo de renovação14 da profissão foi marcado por
uma forte crítica às práticas tradicionais e conservadoras, com o flo-
rescer de vertentes teóricas com embasamentos diferenciados quanto
às mudanças demandadas à profissão.
Ainda, de acordo com este estudioso, naquela década, a Pers-
pectiva Modernizadora destacou-se com sua proposta estrutural-funcio-
nalista; na década de 1970, evidencia-se a vertente da Reatualização
do Conservadorismo, de cariz fenomenológico; já na década de 1980, a
proposta de Intenção de Ruptura aproxima a formação profissional das
teorias marxistas, de base crítico-dialética – que embora se inicie de
maneira enviesada (com base em autores secundários, e não direta-
mente dos escritos do próprio Marx), influencia na formação de uma
nova direção social para a profissão.
Os efeitos desse processo de renovação foi uma transformação
na formação e atuação profissional do Serviço Social no Brasil, o
que permitiu o debate e a construção de um Projeto Ético-Político
direcionado à defesa do projeto societário da classe trabalhadora; a
hegemonia da teoria marxista; a criação do Código de Ética (1993);
da Lei de Regulamentação da Profissão (1993); das Diretrizes Cur-
riculares Nacionais do Serviço Social (1996), além da ampliação da
pesquisa social desenvolvida pela categoria, através da inserção do
Serviço Social no âmbito da pós-graduação (mestrado e doutorado).
Apesar dos avanços conquistados pela categoria em seu per-
curso histórico, a partir dos anos 2000 verifica-se o crescimento de
matrizes teóricas pós-modernas, aprofundando as críticas às bases
marxistas da formação profissional. Evidenciam-se traços crescentes
de práticas neoconservadoras, derivadas das ações e políticas neoli-
berais.
Com este breve resumo da formação profissional no Brasil,
busca-se demonstrar seu caráter histórico-social. As mudanças e
138
transformações societárias influenciam diretamente nas demandas
profissionais do Serviço Social, bem como na necessária compreen-
são, análise e resposta a este processo, exigindo uma constante revi-
são e a permanente adequação da formação e da prática profissional
à realidade social.
De acordo com a Associação Brasileira de Pesquisadores em
Serviço Social (ABEPSS):
A partir da produção teórica, qualificada e acumulada nas últi-
mas décadas, traçou-se um forte embate com o conservadoris-
mo no que se refere à interpretação teórico-metodológica do
Serviço Social, buscando adequar criticamente a profissão às
exigências do seu tempo. Os processos societários contemporâ-
neos vêm exigindo alterações tanto nos processos de formação
profissional como nos enfoques políticos e éticos relativos aos
mesmos (ABEPSS, 2004, p. 73).
139
A disparidade entre os números de cursos de Serviço Social
ofertados em instituições públicas e privadas é outro item a ser des-
tacado, já que reflete a política de oferta de crédito estudantil pelo
Governo Federal com o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES),
assim como a concessão de bolsas em faculdades privadas, através do
Programa Universidade Para Todos (ProUni).
Diante desta realidade do crescimento do número de cursos de
Serviço Social no país, advindo não apenas das exigências do campo
de atuação profissional, mas também da política de geração de vagas
no ensino superior, que objetiva a quantidade em detrimento da qua-
lidade, põem-se diversos desafios à formação profissional do Serviço
Social, que perpassa a atuação docente.
Uma das preocupações neste âmbito é o fortalecimento das
Diretrizes Curriculares Nacionais da ABEPSS para o curso de Servi-
ço Social. Nela se destacam o objetivo do curso, o perfil do egresso e
os núcleos de fundamentação que compõem a organização curricular.
Sobre as diretrizes, Iamamoto (2014) informa:
As diretrizes curriculares para o curso de Serviço Social são fruto
de amplo e diversificado debate acadêmico em oficinas locais,
regionais e nacionais. Eles permitiram dar forma à proposta do
“currículo mínimo” em 1996 (ABESS-CEDEPSS, 1996, 1997a,
1997b), que também contou com o protagonismo de parcela ex-
pressiva da intelectualidade da área de Serviço Social na assesso-
ria à então ABESS (IAMAMOTO, 2014, p. 615).
140
a) Núcleo dos fundamentos teórico-metodológicos e ético-políticos da vida social;
b) Núcleo dos fundamentos da formação sócio-histórica da sociedade brasileira
e do significado do Serviço Social no seu âmbito; c) Núcleo dos fundamentos do
trabalho profissional. Tais núcleos subsidiam a formação, “[...] abran-
gendo elementos constitutivos do Serviço Social enquanto especia-
lização do trabalho: trajetória histórica, teórica, metodológica e téc-
nica, os componentes éticos que envolvem o exercício profissional,
a pesquisa, o planejamento e a administração em Serviço Social e o
estágio supervisionado” (IAMAMOTO, 2014, p. 620).
Ainda de acordo com Iamamoto (2014), a formação acadê-
mico-profissional em Serviço Social no Brasil vem sofrendo as mu-
tações da realidade devido à expansão acelerada da oferta de vagas,
como já mencionado; a hegemonia das instituições de ensino priva-
das; a precarização das condições de trabalho docente, a contratação
por tempo ou por tarefa, baixos salários, trabalho intensificado, ele-
vação da relação numérico professor/aluno; a redução da autono-
mia docente na elaboração de programas de disciplinas e avaliações;
e a mudança no perfil socioeconômico dos estudantes, com o acesso
da juventude trabalhadora ao ensino superior, através das políticas
de créditos estudantis.
Acrescenta-se a isso uma forte tendência de exigência da for-
mação tecnicista, para a geração de um exército industrial de re-
serva profissional, com vistas a baratear os salários desta profissão,
que ainda não tem piso definido. Como também uma categoria
profissional cada vez mais fragilizada para atender às demandas do
mercado de trabalho e das políticas públicas estatais, cada vez mais
precarizadas, o que acaba por diminuir a resistência profissional
subsidiada por uma matriz ideológica anticapitalista. Embora haja o
esforço das entidades da categoria em destacar a defesa dos espaços
sócio ocupacionais, as atribuições privativas e a valorização da pro-
fissão (seja em âmbito público, privado ou em movimentos sociais).
As transformações do ensino superior vêm trazendo “[...] im-
plicações na qualidade acadêmica da formação, no aligeiramento do
trato da teoria, na ênfase no treinamento e menos na descoberta
científica” (IAMAMOTO, 2014, p. 629). Devido a esta massificação
do ensino, ocorre a perda de qualidade da formação universitária,
resultando na “[...] submissão dos profissionais às demandas e ‘normas do
mercado’, tendentes a um processo de politização à direita da categoria”
(IAMAMOTO, 2014, p. 629, grifos da autora).
Apesar de tudo isso, deve-se levar em consideração, também,
as perspectivas da formação profissional em Serviço Social. Há a
ampliação dos programas de pós-graduação em todo o país, contri-
141
buindo para a formação de uma nova massa de pesquisadores, o que
evidencia a importância da pesquisa social para a formação e atuação
profissional. Isto potencializa a produção de conhecimento científico
na área das ciências sociais aplicadas numa perspectiva crítica hege-
mônica. Outra perspectiva é a do fortalecimento das entidades da
categoria profissional, tais como a Associação Brasileira de Ensino e
Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), o Conselho Federal de Servi-
ço Social (CFESS), os Conselhos Regionais e a Executiva Nacional de
Estudantes de Serviço Social (ENESSSO).
Diante da realidade do ensino superior brasileiro, constituem
desafios: enfrentar os liames que barram a educação formadora de
qualidade; barrar os processos de desqualificação das universidades
públicas, através da resistência às políticas contrarreformistas neo-
liberais; não reproduzir a lógica burocratizante da vida acadêmica,
priorizando a perspectiva de ensino-aprendizagem do processo de
formação; saber lidar com os processos de adoecimento docente e
discente, devido à perversidade das cobranças da universidade opera-
cional, evitando sobrecarga de trabalho de âmbito acadêmico e bus-
cando ações de prevenção de doenças psíquicas.
Concordamos com Iamamoto (2014) quando ela afirma a ne-
cessidade de criar subsídios teórico-metodológicos para a resistência
à onda cultural conservadora, como também estabelecer bases para
um diálogo crítico com o Serviço Social internacional, além da conti-
nuidade nos estudos sobre o processo de trabalho do Serviço Social
na definição de estratégias de efetivação de suas competências e atri-
buições profissionais.
Considerações finais
142
O modo de produção capitalista tem como característica ima-
nente a geração de crises econômicas decorrentes do seu impulso
para a expansão e a acumulação de capitais. Atualmente vivencia-se
um processo de crise estrutural (MÉSZÁROS, 2009) sem prece-
dentes, que evidencia os limites absolutos do sistema do capital. Na
tentativa de minimizar os efeitos desta crise, o capital e o Estado de-
senvolvem estratégias para a manutenção da lógica capitalista. Entre
elas, as políticas neoliberais, que impactam fortemente nas políticas
sociais públicas, sendo a política de educação parte delas. O objetivo
é tornar este serviço mais rentável ao capital, ainda que para isso se
precarizem os serviços públicos, acarretando prejuízos para a socie-
dade, para assim abrir espaço à iniciativa privada.
Nesta lógica o processo educacional desenvolvido é para uma
formação de profissionais aptos a ter sua força de trabalho explora-
da pelo capital, e não para o desenvolvimento de habilidades e ca-
pacidades individuais que visem suprir o conjunto de necessidades
sociais. Trata-se de uma educação voltada para a geração de lucrati-
vidade, e não para a emancipação humana.
A educação pode ser instrumento para a formação de indiví-
duos com capacidade de análise da realidade social de forma crítica,
preparados teórica e praticamente para não apenas reproduzir as
condições objetivas atuais, mas sim para provocar transformações
materiais, de forma a garantir a emancipação humana plena. Com-
preender minimamente esta lógica possibilita ter um panorama do
processo da educação no ensino superior em que se identifiquem
possibilidades e limites, perspectivas e desafios.
Referências
143
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Caridade, Solidariedade e Cidadania: história comparativa do Serviço
Social Brasil/Alemanha. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000 (p. 123-132).
145
O projeto ético-político do serviço social na for-
mação profissional: implicações éticas em tem-
pos ultraconservadores
Introdução
148
e do exercício profissional do Serviço Social. E, por último, apresen-
tamos nossas considerações finais acerca do tema aqui proposto, re-
afirmando a centralidade do projeto ético-político (PEP) do Serviço
Social no processo de formação profissional.
149
pria vida material, e de fato este é um ato histórico, uma condição
fundamental de toda a história. (MARX; ENGELS, 1991, p. 39).
150
objetivo do gênero humano, e [...] são, em última análise, resul-
tados desse processo social objetivo (LUKÁCS, 2013, p. 154).
151
A vida cotidiana posta na sua insuprimibilidade ontológica não se
mantém como numa relação seccionada da história. O cotidiano
não se descola do histórico – antes é um dos seus níveis constitu-
tivos: o nível em que a reprodução social se realiza na reprodução
dos indivíduos enquanto tais (NETTO & FALCAO, 1987, p. 65).
152
Assim, os seres humanos incorporarão na sua vida e no seu
cotidiano, em maior ou menor medida, o ethos capitalista. Tem-se,
portanto, uma moral alienada: aquela que se apresenta de manei-
ra autônoma, sem vincular-se à humanidade como um todo, sem
vincular-se à essência do gênero humano. Desse modo, o campo
da moral diz respeito à prática do indivíduo em sua singularidade,
quando, sem mediações, não avança para a dimensão humano-ge-
nérica.
Nesse contexto, deve-se assinalar que
[...] a classe burguesa produz preconceitos em muito maior
medida que todas as classes sociais conhecidas até hoje. Isso
não é apenas consequência de suas maiores possibilidades téc-
nicas, mas também de seus esforços ideológicos hegemônicos:
a classe burguesa aspira a universalizar sua ideologia (HELLER,
2004, p. 54).
153
O indivíduo pode superar a singularidade, quando ascende ao
comportamento no qual joga todas as suas forças, mas toda a sua
força numa objetivação duradoura (menos instrumental, menos
imediata); trata-se então de uma mobilização anímica que suspen-
de a heterogeneidade da vida cotidiana – que homogeneíza todas as
faculdades do indivíduo e as direciona num projeto em que ele
transcende a sua singularidade numa objetivação na qual se re-
conhece como portador da consciência humano-genérica. Nesta
suspensão (da heterogeneidade) da cotidianidade, o indivíduo se
instaura como particularidade, espaço de mediação entre o singular
e o universal, e comporta-se como inteiramente homem. (NETTO &
FALCAO, 1987, p. 65, grifos do autor).
154
diano da vida tem uma dimensão ético-política. Isso não implica a
imposição de uma forma de pensar, significa tão só a liberdade de
escolher um projeto de vida diverso do proposto pelo sistema capi-
talista (LIMA, 2007).
O desenvolvimento científico e tecnológico que se processa
não tem contribuído para melhorar a vida de toda a humanidade,
pelo contrário, tem sido fator de degradação da vida humana e do
agravamento dos problemas sociais. As pessoas, na sociedade do
capital, são transformadas em objetos descartáveis, em seres indi-
vidualistas preocupados somente com sua sobrevivência cotidiana
(TONET, 2002). O individualismo exacerbado afasta os sujeitos da
luta coletiva, da busca por interesses humano-genéricos.
No caso da sociedade brasileira, além dos valores intrínsecos
à sociedade capitalista, há também os valores próprios da formação
sócio-histórica brasileira4. O Brasil tem uma formação sócio-históri-
ca baseada na exploração, na escravidão, nos grandes latifúndios, em
ditaduras e “revoluções pelo alto”, com uma elite profundamente
conservadora, acostumada a exercer o poder pelas vias do populis-
mo, do clientelismo e do patrimonialismo. Todos esses elementos
criam uma sociedade profundamente verticalizada e hierarquizada,
com relações pautadas pelo mando, pela obediência, pelo favor e
pela tutela (CHAUÍ, 1994)5. Esses são os valores hegemônicos da
burguesia brasileira que, associada ao capital transnacional, busca
assegurar seus interesses à revelia dos interesses da classe trabalha-
dora.
No âmbito do Serviço Social brasileiro, a partir de meados
do século XX, inicia-se um processo de construção do denominado
PEP (Projeto Ético-Político), o qual busca romper com esse con-
junto de valores hegemônicos da sociedade capitalista. Trataremos
disso a seguir.
155
O Projeto Ético-Político do Serviço Social brasileiro é uma
conquista da categoria profissional ao longo de um processo históri-
co de maturação teórico-metodológico, ético-político e técnico-ope-
rativo anterior, sobretudo sob a perspectiva da crítica marxista. Essa
maturação se constitui como síntese da expressão das lutas e resistên-
cias dessa categoria, bem como da classe trabalhadora, em face das
ideologias políticas, econômicas e culturais conservadoras6.
As bases teórico-políticas do amadurecimento da profissão,
que desemboca na construção do Projeto Ético-Político Profissional,
encontram-se na configuração dada pelo processo, iniciado nos anos
1960, de recusa ao conservadorismo presente na categoria desde suas
origens. Contudo, é nos anos de 1980 que essa categoria adquire ma-
turidade intelectual e política para objetivar uma avaliação qualitativa
dessas tendências que permearam o Serviço Social em seu processo
de renovação, na qual se hegemoniza a tendência de intenção de rup-
tura7.
Barroco (2010, p. 166-167) afirma que:
As formas de incorporação do marxismo pelo Serviço Social só
adquirem condições de ser reavaliadas na segunda metade dos
anos 70, no âmbito da crítica superadora do movimento de re-
conceituação. Aí são apontados seu ecletismo teórico-metodo-
lógico, sua ideologização em detrimento da compreensão ético-
-política, sua remissão a manuais simplificadores do marxismo,
sua reprodução do economicismo e do determinismo histórico.
Em termos políticos, questiona-se o basismo, o voluntarismo, o
messianismo, o militantismo, o revolucionarismo.
156
valores ético-políticos inscritos no projeto profissional de ruptura
adquirem materialidade, o que se evidencia na organização política
da categoria, na explicitação da ruptura com o tradicionalismo pro-
fissional”.
O processo de maturação teórico-política ocorrido na década
de 1980 é marcado pela aproximação com o pensamento marxista,
que na realidade brasileira tem como centralidade a obra Relações
Sociais e Serviço Social no Brasil, de Iamamoto e Carvalho (2014), as-
sinalando a superação dos equívocos arrolados às primeiras aproxi-
mações da profissão ao marxismo.
Junto a essa obra, adquirem destaque as discussões e apro-
fundamentos – a partir da tradição marxista – de algumas categorias
elementares para o Serviço Social, tais como: “questão social”, po-
lítica social, trabalho, sociedade civil e Estado. Tais discussões sus-
tentaram as bases de reorganização da categoria, tanto no campo da
formação quanto no exercício profissional. Essa nova compreensão
dos fundamentos que compõem o Serviço Social é que possibilita a
objetivação de uma dimensão, até então tida como “neutra” no seio
da profissão, que é a dimensão ético-política.
A nova dimensão política objetivada nas ações da categoria,
expressa pelos posicionamentos erigidos pelos/as profissionais,
leva a repensar os posicionamentos éticos dos/as assistentes sociais,
bem como os pressupostos teóricos que fundamentam e balizam a
ética profissional, consolidando assim a emersão de um novo ethos
profissional, vinculado às demandas mais democráticas da socieda-
de brasileira.
Em 1986 é instituído no âmbito da categoria o seu novo Có-
digo de Ética, que em contraposição aos Códigos anteriores (1947,
1965, 1975)9 demarca sua vinculação a uma ética transformadora
no campo do Serviço Social brasileiro, pois seus pressupostos teóri-
co-políticos assumem uma direção social conformada à conjuntura
ideopolítica da década de 1980, embora ainda marcado por certos
limites.
Nesse sentido, Barroco (2010, p. 176-177) afirma:
Aponta-se para a necessidade de uma nova ética profissional
que “reflita uma vontade coletiva, superando a visão acrítica,
onde os valores são tidos como universais e acima dos inte-
resses de classe”. A nova ética é então definida como “resulta-
do da inserção da categoria nas lutas da classe trabalhadora e,
consequentemente, de uma nova visão da sociedade brasileira”.
9 Para maior aprofundamento sobre os Códigos de Ética do/a assistente social anteriores
ao de 1986, ver BRASIL, CFESS (2012).
157
Assim, apresenta-se o princípio da nova ética, o “compromisso
com a classe trabalhadora”, desta vez explicitado: “A categoria,
através de suas organizações, faz uma opção clara por uma práti-
ca profissional vinculada aos interesses desta classe”. [Contudo,]
O código expressa uma concepção ética mecanicista; ao derivar,
imediatamente, a moral da produção econômica e dos interesses
de classe, não apreende as mediações, peculiares e dinâmicas, da
ética. Ao vincular, mecanicamente, o compromisso profissional
com a classe trabalhadora, sem estabelecer a mediação dos valo-
res próprios à ética, reproduz uma visão tão abstrata como a que
pretende negar.
10 No Brasil, os anos 80 do século XX foi o momento de reorganização das forças e mo-
vimentos populares na luta contra a ditadura civil-militar (1964-1985) e trouxeram enormes
conquistas para a classe trabalhadora, expressos, em parte, na Constituição de 1988. Já os
anos 90 representaram a chegada do neoliberalismo e o início do desmonte dos direitos
sociais, conquistados na Constituição a duras penas.
158
Os anos 1990 e os seguintes possibilitam um acúmulo teó-
rico-metodológico e ético-político, o qual fortalece as discussões
acerca dos instrumentos que expressam esse Projeto Ético-Político.
Com isso, o PEP se expressará no novo Código de Ética Profissio-
nal (Resolução CFESS 273/93, de 13 de março de 1993), na nova
Lei de Regulamentação da Profissão (Lei 8.662/93, de 7 de junho de
1993), bem como na elaboração das Diretrizes Gerais Curriculares
para o Curso de Serviço Social, de 1996, aprovadas pelo Conse-
lho Nacional de Educação (CNE/MEC) em 2001 (BRASIL, 2012
e ABEPSS, 1996).
O Código de Ética Profissional estabelece o reconhecimen-
to da liberdade como valor ético central, a defesa intransigente dos
direitos humanos, a recusa ao arbítrio e ao autoritarismo, a amplia-
ção e a consolidação da cidadania e a defesa e o aprofundamento
da democracia, enquanto socialização da participação política e da
riqueza socialmente produzida. A formação profissional por meio
das Diretrizes Gerais Curriculares para o Curso de Serviço Social
alinha-se aos princípios éticos humano-genéricos que se entranham
no Projeto Ético-Político, fincando-se como lócus privilegiado de
formação da consciência profissional.
O Código de Ética do(a) assistente social, aprovado em 1993
(BRASIL, CFESS, 2012, p. 21-22), expõe a compreensão de que
[...] a ética deve ter como suporte uma ontologia do ser social:
os valores são determinações da prática social, resultantes da
atividade criadora tipificada no processo de trabalho. É me-
diante o processo de trabalho que o ser social se constitui, se
instaura como distinto do ser natural, dispondo de capacidade
teleológica, projetiva, consciente; é por esta socialização que ele
se põe como ser capaz de liberdade. Esta concepção já contém,
em si mesma, uma projeção de sociedade ‒ aquela em que se
propicie aos/às trabalhadores/as um pleno desenvolvimento
para a invenção e vivência de novos valores, o que, evidente-
mente, supõe a erradicação de todos os processos de explora-
ção, opressão e alienação. É ao projeto social aí implicado que
se conecta o projeto profissional do Serviço Social ‒ e cabe
pensar a ética como pressuposto teórico-político que remete ao
enfrentamento das contradições postas à profissão, a partir de
uma visão crítica, e fundamentada teoricamente, das derivações
ético-políticas do agir profissional.
159
mentos são incorporados ao processo de formação profissional, pro-
porcionando ao discente um referencial teórico-filosófico que busca
uma apropriação e compreensão do ser social em sua totalidade, para
que se posicione ante as demandas da profissão. É urgente que essa
ética humano-profissional se consolide nos meandros da formação
como categoria transversal.
Se os indivíduos no cotidiano da sociabilidade capitalista in-
corporam seus (des)valores e tendem a reproduzi-los, qual a possibi-
lidade de rompimento com tais (des)valores? Como se dá o processo
de desconstrução/reconstrução de novos valores no sujeito? Qual
a importância de assegurar um processo de formação profissional
alicerçado no PEP?
Segundo Iasi (2011), o processo de formação da consciência
de pertencimento de classe e de compromisso com a perspectiva de
classe se dá na intersecção entre o genérico e o particular, onde o in-
divíduo, na sua particularidade, se vê como participante de um todo
maior e encontra um ponto de fusão, reconhecendo-se como ser que,
na sua serialidade, faz parte de algo maior (ser genérico). Nesse sen-
tido, a formação profissional é um dos elementos importantes no
processo de formação da consciência, contudo, não podemos nos
ater somente a ele, apesar de reconhecermos sua importância.
A formação da consciência envolve inúmeros determinantes
objetivos e subjetivos11, desde condições de vida, acesso à educação,
pertencimento objetivo e subjetivo de classe, disposição interna para
a mudança, participação em atividades de organização e participação
política, até vários determinantes sociais que se imbricam na particu-
laridade e no momento específico de vida de cada sujeito.
O processo de formação profissional do Serviço Social brasi-
leiro apresenta outra lógica, outra forma de análise, que pode encon-
trar “eco” (ou não) na particularidade da vida dos(as) discentes. Ao
tempo que avaliamos a dificuldade de, durante o processo de for-
mação – que leva em torno de quatro a seis anos ‒, os(as) discentes
11 Aqui não nos deteremos no processo original de formação da consciência ou na discus-
são do surgimento da educação na história humana, como forma de agir sobre a consciência
de outros homens. Contudo, é importante assinalar que toda nossa reflexão parte de seu
fundamento ontológico, portanto, também o processo educativo/formativo tem sua base no
processo de trabalho, conforme acentua Lukács: “Nas formas ulteriores e mais desenvolvi-
das da práxis social, destaca-se em primeiro plano a ação sobre outros homens [...]. Também
nesse caso o fundamento ontológico-estrutural é constituído de pores teleológicos e pelas
cadeias causais que eles põem em movimento. No entanto, o conteúdo essencial do pôr te-
leológico nesse momento – falando em termos inteiramente gerais e abstratos – é a tentativa
de induzir outra pessoa (ou grupo de pessoas) [...]”. (LUKÁCS, 2013, p. 83).
160
romperem/reverem os (des)valores que, por vezes, chegam já ali-
cerçados, é inegável a contribuição do processo de formação e da
vida acadêmica na reavaliação/reformulação de tais (des)valores. É
sempre mais outra possibilidade, outra forma de olhar a sociedade
e os processos sociais, de forma crítico-reflexiva, apontando para a
busca de um agir ético-político mais voltado à coletividade, à liber-
dade e à dimensão humano-genérica.
Na conjuntura atual e na realidade brasileira presente, tal pro-
cesso de rompimento com os valores dominantes se faz com muito
maior dificuldade, pois vivemos num contexto que, cada vez mais,
substitui o saber crítico-reflexivo, que exige tempo, constância e de-
terminação para apreender o real, por um saber técnico-instrumental
pragmático, que tem como objetivo final apenas os resultados mais
imediatos. Todo esse processo vem contribuindo para a formação
de gerações nas quais predomina a racionalidade abstrata-formal e
instrumental, que afasta os sujeitos da convivência social e da parti-
cipação política, oferecendo um simples aprendizado instrumental/
técnico12. Exemplo disso é a ênfase e o incentivo aos cursos de curta
duração; as graduações tecnológicas; a ampliação dos cursos a dis-
tância; e o aligeiramento dos cursos de graduação e pós-graduação.
Esse processo tem início no Brasil nos anos 90 do século XX,
a partir das recomendações do Banco Mundial e do Fundo Mone-
tário Internacional (FMI) para a educação, que consistem, simplifi-
cadamente, na redução de gastos públicos com as políticas sociais,
na crescente valorização da “parceria” público-privada na prestação
dos serviços sociais e no aligeiramento dos processos de formação.
Nesse processo de aligeiramento, o mais importante é o resultado
final e a economia no tempo de formação; por isso, os serviços
públicos são cada vez mais sucateados e o atendimento à popula-
ção é transferido ao setor privado ‒ apresentado como sinônimo
de eficiência e competitividade ‒, por meio de repasse de recursos,
subsídios públicos e isenção de impostos.
No caso específico do sistema universitário público, este
processo começou já no governo de Fernando Collor de Melo
(1990-1992), atravessando os governos Fernando Henrique Car-
doso (1995-1998/1999-2002), Luís Inácio “Lula” da Silva (2003-
2006/2007-2010), Dilma Rousseff (2011-2014/2015-2016)13 e
161
ampliando-se e aprofundando-se nos Governos de Michel Temer
(2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-).
Do nosso ponto de vista, o ensino deve ultrapassar o saber
instrumental, preparando os sujeitos para o mercado profissional e
para a vida. Um ensino que construa autonomia e liberdade de ação e
pensamento, que possibilite a apreensão do real, escondido sob o véu
da aparência, enxergando a formação sócio-histórica da sociedade;
seus limites e desafios; que aponte a superação do preconceito e dos
(des)valores. É essa a proposta defendida pelo Projeto Ético-Político
do Serviço Social brasileiro, construído a partir dos anos 80 do século
XX e hoje hegemônico na profissão.
No que tange às contribuições da proposta contida nas Di-
retrizes Curriculares para o processo de formação profissional em
Serviço Social, Aquino (2008: 119-120) afirma:
[...] pode-se destacar o fato de priorizarem a formação de pro-
fissionais críticos, propositivos e comprometidos com o Projeto
Ético-Político da categoria, através da construção de conheci-
mento teórico-prático e da aquisição de atitudes, habilidades e
competências embasadas em valores e princípios coletivos que
os capacitem para o desempenho de suas funções e o exercício
de ações conscientes [...]. É relevante destacar que a formação
profissional integra, necessariamente, tanto o conhecimento teó-
rico, os valores e modelos acumulados pela própria profissão, ao
longo de sua trajetória histórica, quanto é composto pela vivência
pessoal e social de formadores e formandos.
162
mento do capitalismo e do Serviço Social no país;
14 Já assinalamos a conjuntura adversa mundial que se coloca para a educação pública,
gratuita e de qualidade. Ao que se assiste mundialmente é a educação transformada em
mercadoria.
163
2018, Jair Bolsonaro assumiu a presidência do Brasil em 1º de ja-
neiro de 2019, vencendo com uma campanha nacionalista, religiosa,
racista, LGBTfóbica, entre outras determinações ultraconservadores.
Em suas propostas de campanha e de seus aliados políticos estão a
“Escola sem partido” e a defesa dos “valores tradicionais da família
brasileira”. Segundo essa concepção, a sociedade brasileira é conser-
vadora, religiosa, capitalista, deseja a ordem e a segurança acima de
tudo15. Serão anos difíceis para todas as forças progressistas da socie-
dade brasileira16, e o Serviço Social construiu sua história, nas últimas
décadas, somando-se às forças progressistas.
Iamamoto (1998) sugere resistirmos e balizar, por meio do co-
nhecimento crítico acerca da História e do pensamento progressista,
as particularidades e singularidades do Serviço Social como profissão,
que se realiza e serve como meio de reprodução da vida no mercado
de trabalho, tendo o desafio de romper com uma formação estéril
que acaba por caracterizar os futuros profissionais como operadores
de uma prática mecanicista e burocrática (expressões do pensamen-
to conservador), descompromissada com o Projeto Ético-Político da
profissão.
Assim, torna-se imprescindível a discussão da ética de caráter
emancipatório em todo o processo de formação profissional dos(as)
assistentes sociais, sendo necessária a constante análise das mais di-
versas concepções ético-políticas em disputa na sociedade e a com-
preensão dos fundamentos ontológicos da ética, propiciando ao su-
jeito a apreensão da sua condição de ser humano-genérico em busca
da liberdade.
Considerações finais
15 O lema de Jair Bolsonaro na campanha era “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
16 Acerca da onda conservadora no Brasil, ver Demier & Hoeveler (2016).
164
se conformem – efetivamente – como um dos núcleos essenciais da
formação profissional em Serviço Social, tendo como pressuposto
a concepção ontológica do ser social. Caso contrário, essa realidade
pode se converter numa perspectiva moralizante e/ou fundamenta-
lista do ser social, enviesando o processo de apreensão da realidade
e recaindo naquela velha questão dicotômica, como bem afirma Ia-
mamoto (1998), entre ser fatalista ou messiânico, ou vindo a forta-
lecer o conjunto dos valores conservadores, em suas mais variadas
expressões, e no limite, amparando-se no irracionalismo para o em-
basamento da prática profissional.
Não basta somente tal realidade estar impressa nas Diretrizes
Curriculares para que venha a se materializar. É necessário, cada vez
mais, aprofundar a radicalidade da reflexão ética na formação pro-
fissional, cabendo, também, aos assistentes sociais, no cotidiano do
exercício profissional, o compromisso ético-político que se expressa
em ações que se direcionam para o desenvolvimento e a liberdade
humana.
A ética marxista é uma práxis, não pode existir sem uma rea-
lização prática, sem se realizar na prática de algum modo [...].
Por isso, a ética marxista não depende só da compreensão e da
aplicação correta dos textos de Marx: ela depende muito mais
do desenvolvimento do movimento que a adote como moral
[...] [o que, na verdade significa] um reencontro do movimento
revolucionário, de seus homens, de suas massas (da atividade
que humaniza e transforma o mundo) com a teoria de Marx.
(HELLER, 2004, p. 121).
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165
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167
Neofascismo no Brasil contemporâneo: aproximações
entre conceito, história e dívida pública1
Introdução
170
extremados desta forma. Daí se justifica a delimitação deste fenôme-
no social que, ao se considerar como uma nova forma de fascismo,
não pode ser encarado como o mesmo fascismo do “entreguerras”,
mas, sem dúvidas, remete a elementos forjados naquele período, re-
vivendo-os de forma reatualizada.
Assim, procurando uma delimitação precisa da categoria ne-
ofascismo, alguns autores brasileiros nos ajudam nesta questão. É
o caso dos estudos de Tatiana Poggi e Odilon Caldeira-Neto. Para
Poggi (2012), a grande preocupação reside na compreensão sobre o
que o fascismo e o neofascismo (ou como chamados, fascismo de
“novo” tipo) têm de semelhantes. Para a autora, a semelhança entre
fascismo e neofascismo está em seu caráter antidemocrático, na li-
derança carismático-populista, no unipartidarismo, no emprego da
violência e na busca da resolução de conflitos por meio da guerra.
Assim como no fascismo do entreguerras, “o neofascismo é uma
resposta à crise profunda no capitalismo e uma resposta à exacer-
bação das contradições inerentes ao sistema capitalista” (POGGI,
2012, p. 82).
Poggi (2012) ainda ressalta que há uma diferença na organi-
zação social do neofascismo entre países de diferentes inserções na
dinâmica do capitalismo. Em países de capitalismo central, o ne-
ofascismo deve ser considerado como um dos possíveis produtos
da sociedade capitalista contemporânea, já que sua emergência, en-
quanto fenômeno social, ocorre em Estados de conformação polí-
tico-econômica neoliberal (ou seja, em estados avançados de neo-
liberalismo). Assim, prolifera-se de modo espetacular, justamente
engrossando suas fileiras de adeptos à retórica neofascista, por meio
da adesão dos desesperançados e dos setores subordinados ao capi-
tal em decorrência da crise (POGGI, 2012). Trata-se, em última ins-
tância, de uma readaptação ou reinterpretação das políticas fascistas
tradicionais às novas circunstâncias.
Para a autora, o desenvolvimento espetacular das Organiza-
ções Neofascistas5, assim como a origem do neoliberalismo nor-
5 É prudente esclarecer a diferença analítica entre uma Organização Neofascista e um
Aparelho Privado de Hegemonia, que, em alguns casos, podem se assemelhar se não se
tiver em mente a diferença essencial entre eles. Um caso de Aparelho Privado de Hegemo-
nia (APH) é o do “Conselho das Américas (AS-COA)” conforme descrito por Hoeveler
(2019). Este conselho foi fundado em 1965 reunindo as 200 corporações estadunidenses
com atuação mais intensa na América Latina. Como um caso clássico de APH, este reúne
e organiza frações do capital que opera em escala hemisférica, desenvolvendo uma ação
política de classe, enquanto as Organizações Neofascistas são movimentos contrarrevo-
lucionários (geralmente a uma ameaça concreta e não a uma paranoia!). Agem de forma
171
te-americano, por exemplo, é fruto de alguns fatores conjugados, a
saber: a reorganização política e intelectual do conservadorismo em
meio ao reformismo, a crise deste último como padrão de dominação
e relação social, a reação às conquistas dos movimentos civis demo-
cráticos a partir da década de 1950 e o avanço gradativo do processo
de precarização da qualidade de vida (POGGI, 2012). Isto reforça a
tese de que o neofascismo (e seu surgimento) pode ser um fenôme-
no associado à transição da reestruturação produtiva e ao avanço do
neoliberalismo exacerbado.
A autora, de filiação marxista6, critica as interpretações do ne-
ofascismo que são consideradas de “fundo positivista”. Ela própria
observa que estas intepretações
[...] obscurecem o fato de que a intolerância, assim como a cria-
ção de “bodes expiatórios”, está profundamente enraizada na so-
ciedade e nos sistemas políticos (POGGI apud BERLET, 2012,
p. 67) [como se fosse um] grito fútil às mudanças sociais inexoráveis,
uma resposta emocional transitória ao deslocamento social. (PO-
GGI apud HIMMELSTEIN, 2012, p. 18).
extralegal, divulgam mensagens com alguma característica fascista, cultuam práticas fascisti-
zantes como atacar verbal ou fisicamente (este último geralmente em bando) e até assassinar
lideranças dos movimentos sociais. No caso do Conselho das Américas, este se preocupou
em atuar na conjuntura eleitoral de 2018 no Brasil, promovendo ou incentivando iniciativas
diretamente voltadas para as eleições, como o RENOVABR, e promoveu debates organiza-
dos com grandes empresários e intelectuais para pensar ideologicamente a economia e os
costumes com a ascensão de Jair Bolsonaro (HOEVELER, 2019).
6 Concordamos com Poggi (2012) ao usar o materialismo histórico-dialético, conforme
Mendonça (2004). Ela aponta que este método “desenclausura” as disciplinas humanas,
ajudando na visão de totalidade.
172
nativa política que conduz ao aumento da discriminação, da desi-
gualdade e da opressão, dificultando ainda mais o diálogo”.
Já Odilon Caldeira-Neto apresenta outras perspectivas so-
bre o neofascismo enquanto categoria. Para ele, a expressão neofas-
cismo já consta no léxico político desde o momento de reordenação
das forças mundiais após a Segunda Grande Guerra, inclusive em
organizações fascistas ou “ex-fascistas” do pós-guerra. “[...] [O] ne-
ofascismo se encara e “encerra” de modo mais fluido e descentrali-
zado, isto é, um grande amálgama diversificado, fragmentado e por
vezes divergente em essência ou representação” (CALDEIRA-NE-
TO, 2016, p. 28).
Caldeira-Neto (2016) busca referências em Laqueur para
orientar uma aproximação ao que “pode ser”/“vir a ser” o “neo-
fascismo”, assinalando que estes fenômenos podem estar presentes
em uma grande diversidade de grupos e que devemos estar atentos
aos possíveis grupos que aderem (ou podem aderir) facilmente ao
discurso neofascista7. Para o autor, isso incluiria um amplo espectro
que possibilidades de grupos, identitários ou não, tais quais: pagãos,
cristãos, ateus, “democratas”, autoritários, antifeministas, ecologis-
tas transcendentais, partidos políticos, o fenômeno new age etc. Os
princípios básicos do neofascismo (e destes neofascistas) residiriam
naqueles comuns ao fascismo histórico, como: o darwinismo social,
o racialismo, a busca por uma liderança inconteste e de uma nova
aristocracia, o princípio da obediência e a negação dos ideais do
Iluminismo8.
O autor presume que o neofascismo, no que diz respeito ao
seu “nacionalismo raivoso”9, faz a aposta em uma crença na ordem10
7 Melo (2019) aponta que o discurso bolsonarista apresenta características ideológicas que
podem situá-lo no campo do neofascismo. É possível encontrar nele um discurso que,
diante de uma crise de tamanha envergadura, promete um “processo de renascimento
nacional” de um passado glorioso (palingênese).
8 No neofascismo brasileiro, a negação das ideias iluministas advém do senso comum
baseado em um sentimento “anticiência” que encontrou terreno fértil em pautas conserva-
doras sobre os avanços científicos (como o movimento antivacina) (SAITA, PINA, 2019)
até se expressar na negação absoluta da razão com o “terraplanismo” (ALVIM, 2017).
9 Barbosa (2018) descreve como as políticas educacionais foram essenciais na edificação
do “nacionalismo” no Brasil através de duas chaves de interpretação: a primeira foi a ideia
de pátria unificada e harmoniosa, para que não sofra periodicamente convulsões, cultuando-se
a aversão ao externo; e a segunda, pela insistência na reedição da ideia de “república forte”.
10 No Brasil, a questão da ordem e a estabilidade reemergem como elemento ideológico
conservador que tem como terreno fecundo a comunidade integralista. Não é à toa que
173
e no poder do Estado, no desprezo ao parlamentarismo liberal e na
oposição ao comunismo e ao capitalismo de modo concomitante.
Assim, o tipo neofascista encarna por vezes um estilo/modo de vida
alternativo11, no qual os membros buscam rejeitar a cultura12 e os
meios de comunicação de massa, preterindo-os em face dos clássicos
escritos patrióticos de seus respectivos países.
No entanto, é preciso tomar cuidado com as características
supracitadas. Devido a essa amplitude, seria um grande equívoco
atribuir o título de neofascista a quaisquer dessas características iso-
ladamente. Este seria o problema causado pela distensão e dilata-
ção do termo “neofascismo”, que pouco ajuda na compreensão do
fenômeno e que, certamente, é um indicativo do seu esvaziamento.
A crítica ao esvaziamento conceitual e o rigor analítico do neofascis-
mo estão assentados respectivamente: primeiro, na busca por uma
conceituação de “fascismo” (e no apreço categórico a essa definição)
e, segundo, na compreensão de que no neofascismo reside algo que
remeteria, ideológica e historicamente, ao fascismo em seu primeiro
estágio, o que não é a mesma coisa do ponto de vista histórico.
Em concordância com Poggi (2012), Caldeira-Neto (2016)
afirma que o neofascismo não seria uma questão restrita aos centros
tal temor reaparece também em muitos discursos neofascistas. Trata-se de uma reação à
insegurança e à instabilidade trazidas pela vida pós-moderna (CRUZ, 2016). A geração atual
(os neointegralistas) é marcada pela decepção com o modelo capitalista ocidental e sente-se
traída com a abertura política que depôs o regime militar.
11 Por vezes este “estilo de vida alternativo” pode encontrar acolhida “nos rastros de uma
crise do eu, a partir do desfalecimento dos pilares instituídos acerca de um sujeito universal,
unificado, intrapsíquico, ‘individualizado’ e em uma atmosfera de unificação e totalização”
(SALES; ROCHA, 2019, p. 254) em busca da demarcação/acentuação das diferenças como
forma de garantir “estabilidade” do ponto de vista político-social.
12 Este é um ponto nodal que caracteriza o neofascismo brasileiro. Instituiu-se
uma guerra cultural profunda que tem repercussões especialmente no que se refere
às políticas do campo da educação. Além dos drásticos cortes no orçamento, agora
justificado legalmente pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016, o Movimen-
to Escola Sem Partido, constitutivo do bolsonarismo, tem notadas características
fascistas. “Primeiro, mobiliza-se a partir de uma reacionária teoria da conspiração
obscurantista e que objetiva um ‘movimento popular’ contra a escola pública e em
favor do fundamentalismo religioso. Segundo, tem como método procedimentos
que solapam o Estado de direito, no que contam com a ajuda das parcelas fascis-
tizadas do Judiciário e na leniência do Supremo Tribunal Federal, que adiou uma
decisão que possa pôr fim a esse movimento que visa criminalizar os educadores
brasileiros” (MELO, 2019, p. 10-11).
174
europeus irradiantes. O autor auxilia a problematizar a constituição
autoritária de ditaduras civis e militares também no Cone Sul, por
isso suas manifestações devem ser lidas em “chaves” distintas, espe-
cialmente tendo assento na dinâmica “imperialismo-dependência’.
Assim, nas nações do capitalismo dependente restariam basi-
camente duas grandes opções: um nacionalismo desenvolvimentista
e populista, ou uma expressão contraditória de “nacionalismo pró-
-imperialista”, o que o autor prefere chamar de neofascismo (CAL-
DEIRA-NETO, 2016). Esse conflito e essa contradição se dariam
principalmente nos países da América Latina, justamente pela exis-
tência de relações de dependência estreitas e bem definidas para
com os países imperialistas (e, em especial, com os EUA). Nessa
perspectiva analítica, o neofascismo nos países dependentes seria
caracterizado pela dubiedade de uma premissa nacionalista, visando
aos ganhos do imperialismo capitalista internacional.
Para a manutenção desta ordem neofascista, métodos auto-
ritários e repressivos de controle social se fazem necessários, co-
adunados com um tipo de “histeria anticomunista”. Todavia, por
se tratar de uma formação “fascista em condições de capitalismo
dependente”, isto é, sem o caráter de mobilização de massas, que
se organiza partidariamente ou mesmo pela não constituição de um
regime autenticamente nacionalista (dada a abertura “total e irres-
trita” ao capital estrangeiro), o autor optou pela denominação de
“neofascismo”.
A construção de um terreno fértil neofascista no continente
seria, a saber, no Brasil, no Chile e na Argentina, uma possibilidade
futura, já que na possibilidade e “entrave” da acumulação capitalista,
haveria alguma maneira para retomar o processo de acumulação.
Restariam nesse contexto apenas duas variáveis para o desenvol-
vimento latino-americano de uma nova ordem de dominação im-
perialista: a via subimperialista (neofascista) e aquela que buscaria
romper com esses determinantes (ou seja, um modelo socialista)
(CALDEIRA-NETO, 2016).
175
nifestação do Estado na América Latina, isto é, um regime político
de legitimidade restrita que começa a emergir no Brasil após o Golpe
de 2016 com avanços no governo Bolsonaro. O entendimento desse
tipo de regime merece reflexões históricas mais amplas sobre o que
Trotsky nos brindou acerca do bonapartismo e sua relação com o
fascismo em seu tempo de vida.
Antes, porém, de passarmos à discussão do bonapartismo,
convém termos claro que vivemos atualmente em uma crise eco-
nômica, uma crise capitalista de “longa depressão”, como nos apre-
senta Roberts (2016). Essa situação de declínio da lucratividade do
capital industrial vem direcionando a acumulação do capital ao agi-
gantamento do capital fictício. Para se contrapor a esse quadro, a
classe dominante intensifica a barbárie, com alargamento da expro-
priação, inclusive dos direitos da classe trabalhadora no mundo, e
com muita intensidade no Brasil (BOSCHETTI, 2018) neofascista.
Sabe-se que no modo de produção capitalista, a sucessão das
categorias “mercadoria/valor/dinheiro” não pode se encerrar na
categoria “capital”. Isto porque, limitada à categoria “capital”, essa
dedução lógica não permite apreender em sua totalidade as causas
do movimento real da sociabilidade capitalista. Trata-se de perceber
o Estado (suas leis, por exemplo) como constitutivo da relação de
troca e, ainda mais, da relação de produção. O capital não pode ser
concebido se se omite a categoria “Estado”. A categoria “capital”
ultrapassa a si mesma e o Estado não pode ser compreendido sem
se recorrer às categorias que o antecedem. Sem a categoria Estado,
a categoria capital não pode ser concebida. O Estado é deduzido,
isto é, derivado da lógica do movimento do capital (PACHUKANIS,
2017).
Após ter sido feita uma caracterização mais geral do Estado
capitalista, podemos refletir de forma mais direta sobre o Estado
no Brasil. Sugere-se que a análise do nosso país se circunscreva à
natureza do Estado nos países latino-americanos de capitalismo de-
pendente. Neste sentido, não é possível apenas deduzir o Estado
nesses países à sucessão das categorias (mercadoria/valor/dinheiro/
capital) (MATHIAS; SALAMA, 1983). Considera-se fundamental
entender esses países na totalidade da lógica da acumulação capita-
lista, isto é, seu papel na divisão internacional do trabalho em relação
ao próprio processo de reprodução do capital e na base das suas for-
mações sociais, em que a questão da nação não pode ser esquecida.
Mathias e Salama (1983) avançam na análise para além das
categorias constitutivas da sociabilidade capitalista, introduzindo a
categoria “mercado mundial”; em suas palavras, a inserção dos paí-
176
ses subdesenvolvidos na “economia mundial constituída”, de for-
ma a enriquecer ainda mais a perspectiva da lógica de derivação
do Estado do movimento do capital. A maior intensidade da luta
de classes nesses países, diante de uma relação imperialista entre
nações, necessita de regimes políticos de “legitimidades restritas”
para que se garanta a manutenção da condição subordinada dentro
da divisão internacional do trabalho e, consequentemente, uma re-
lação de dependência.
De forma geral, Mathias e Salama advertem que:
Nos países capitalistas desenvolvidos, o estado de exceção é a
ditadura, enquanto o estado normal é a democracia. Nos países
subdesenvolvidos, o estado de exceção é a democracia, ao passo que
o estado normal são os regimes políticos de legitimidade restrita. O Es-
tado desempenha um papel particular na difusão das relações
mercantis nos países subdesenvolvidos [...]. A distinção entre
o Estado e sua forma – o regime político – permite evitar, por um
lado, as teorizações mecanicistas, até mesmo deterministas, e
idealistas; e, por outro lado, impede que se reduza o Estado a
um sujeito ou a um objeto. (MATHIAS; SALAMA, 1983, p.
10, grifos nossos).
177
Entendemos por bonapartismo o regime no qual a classe econo-
micamente dominante, ainda que conte com os meios necessários
para governar com métodos democráticos, se vê obrigada a tole-
rar – para preservar sua propriedade – a dominação incontrolada
do governo por um aparato militar e policial, por um “salvador”
coroado. Esse tipo de situação se cria quando as contradições
de classe se tornam particularmente agudas; o objetivo do bo-
napartismo é prevenir as explosões [...]. A decadência atual do capi-
talismo não somente retirou definitivamente toda base de apoio
à democracia, como também revelou que o velho bonapartismo se
mostra totalmente inadequado: o fascismo o substituiu. Sem dúvida, como
ponte entre a democracia e o fascismo [...], aparece um “regime
pessoal” que se eleva acima da democracia e concilia com ambos
os bandos, enquanto, ao mesmo tempo, protege os interesses da
classe dominante; basta essa definição para que o termo bonapar-
tismo fique totalmente esclarecido (TROTSKY, 1935, tradução e
grifo nosso).
178
proletária (sindicatos e partidos políticos), como também com a
democracia parlamentar, em cujos quadros se formaram as orga-
nizações operárias. Daí a campanha contra o “marxismo”, de um
lado, e contra o parlamentarismo democrático, de outro. (TROT-
SKY, 1932, p. 1, tradução nossa).
179
à sociedade burguesa manter-se inatingível às possíveis convulsões
internas.
Trotsky, simultaneamente à sua tentativa de apresentar teorica-
mente as diferenças entre fascismo e bonapartismo, procurou tam-
bém evitar uma perspectiva que concebesse os dois regimes de um
modo antagônico. Lembrando as semelhanças e pontos em comum
entre esses regimes de crise, Trotsky destacou a possibilidade de que
o fascismo, muitas vezes decorrente de um regime bonapartista, ve-
nha a se transformar numa modalidade mais estável deste último.
O que temos dito demonstra suficientemente a importância de
distinguir entre a forma bonapartista e a forma fascista de po-
der. Não obstante, seria imperdoável cair no extremo oposto,
convertendo o bonapartismo e o fascismo em duas categorias
logicamente incompatíveis. Assim como o bonapartismo começa
combinando o regime parlamentar com o fascismo, o fascismo
triunfante se vê obrigado a constituir um bloco com os bonapar-
tistas e, o que é mais importante, a aproximar-se cada vez mais,
por suas características internas, de um regime bonapartista.
(TROTSKY, 1932, tradução nossa).
180
urgente: a constituição de uma Frente Única Operária, acirrando a
luta de classes. Contudo, a luta contra o fascismo não significa subor-
dinar-se politicamente aos reformistas. Trotsky argumenta que não
deveria existir nenhuma plataforma comum com a social-democracia
ou com os líderes dos sindicatos alemães, nenhuma publicação, ne-
nhuma bandeira, nenhum sinal comum! Marchar separados, golpear
juntos, ou seja, se porem de acordo apenas em como golpear, em
quem golpear e quando golpear! (TROTSKY, 1933, tradução nossa).
Trotsky argumenta que “cada fábrica deve ser transformada em uma
fortaleza, um mapa dos quartéis e todos os outros redutos fascistas
em cada cidade, em cada distrito. Os fascistas tentarão sitiar os bas-
tiões revolucionários. O sitiante deve ser sitiado” (TROTSKY, 1933,
tradução nossa). Ele insiste na ideia: “somente uma luta unitária com
os trabalhadores social-democratas pode alcançar a vitória. Depres-
sa, trabalhadores comunistas, porque há pouco tempo de sobra para
vocês!” (Ibidem).
Os ensinamentos históricos trazidos por Trotsky podem ilu-
minar a esquerda revolucionária para refletir sobre a ação tático-es-
tratégica do presente. Em que pesem as diferenças dos contextos
sócio-históricos, o neofascismo na atual conjuntura brasileira apre-
senta as reminiscências de sua expressão do passado, contudo deve
ser relida com suas atualizações. A Frente Única dos trabalhadores,
proposta por Trotsky, é uma ação necessária da classe trabalhadora
hodierna para enfrentar o quadro de escalada neofascista no Brasil.
181
de compreender a dialética do processo do capital portador de juros e
do capital fictício, na análise da crise contemporânea do capitalismo,
já que o capital portador de juros e o capital fictício estão no centro
das relações econômicas e sociais do capitalismo atual.
O avanço do processo de financeirização possibilitou que o ca-
pital fictício se configurasse como a principal forma de ser do capital
portador de juros, ou seja, este é consequência do primeiro, apesar
de serem coisas distintas. Segundo Carcanholo e Sabadini (2009, p.
42), no capitalismo, a existência generalizada do capital a juros, em
que seu significado aparente é o fato de que toda soma considerável
de dinheiro gera uma remuneração, imprime uma ilusão contrária, a
de que toda remuneração regular deve ter como princípio a existência
de um capital.
Uma das primeiras funções do capital fictício consiste na mobi-
lização de recursos capazes de financiar o “capital fixo” da economia
e do que aqui estamos denominando de “fundo patrimonial público”.
Sobre a base objetiva (valor de uso) do financiamento dessas duas
formas de imobilização de riqueza, uma produtiva e outra impro-
dutiva, desenvolvem-se as principais formas de capital fictício (capi-
tal acionário e dívida pública), conforme observa Trindade (2017, p.
117).
Partimos da premissa de que a dívida pública diz respeito a
uma das formas tradicionais assumidas pelo capital fictício e adqui-
re centralidade em Marx já no capítulo da acumulação primitiva. A
relevância da dívida pública configura-se desde o período da conso-
lidação do capitalismo, devido às suas características (com aparên-
cias “mágicas”), que funcionam como um importante veículo à sua
alavancagem. A dívida pública vai aos poucos “transformando-se
em instrumento de uma ‘fada madrinha da acumulação’, dotando o
dinheiro de capacidade criadora, como se fosse uma ‘varinha de con-
dão’” (BRETTAS, 2013, p. 35).
Segundo Marx, tal recurso já foi despendido pelo Estado, ao
tempo que o próprio capital já teria sido consumido e a soma ori-
ginalmente emprestada ao Estado não mais existe. Assim, o Estado
assume relevância substancial em todas as transações (fictícias) dos
mercados financeiros, pois estes precisam de dinheiro (em suas várias
funções). É o aparato estatal que deve garantir esta mercadoria espe-
cial. Exatamente por isso a autoridade monetária (bancos centrais),
um componente de atuação do Estado, é responsável pelo emprésti-
mo em última instância.
No contexto neoliberal de mundialização financeira do capital,
muito distante da, e contrariamente à falácia de um Estado mínimo,
182
o que a realidade elucida é a participação crescente do Estado na
economia de modo a acelerar e facilitar a transferência do fundo
público para assegurar a reprodução ampliada do capital. O modo
como este processo ocorre remete ao debate sobre as finanças.
É neste ponto da discussão sobre a relação entre o capital
fictício expresso na dívida pública e sua relação com o Estado que
trazemos outra questão: a disputa pelo fundo público constitui uma
necessidade (do ponto de vista do capital) para alimentar o sistema
da dívida. Mais que isso, de acordo com Marx (2017), são os títulos
da dívida que asseguram ao credor direitos sobre as receitas do Es-
tado, sobretudo de impostos.
A rigor, a forma como o Estado paga aos seus credores é
via orçamento público, de modo que o moderno sistema tributário
constitui um complemento necessário do sistema de empréstimos,
do sistema de crédito. A dívida pública permite ao Estado financiar
gastos extraordinários, mediante elevação dos impostos. No caso de
os impostos serem insuficientes, o Estado passa a acumular mais dí-
vidas junto ao setor privado, culminando no aumento do pagamen-
to de seu serviço (juros mais amortização do principal da dívida)
com o passar do tempo. Destarte, “o regime fiscal moderno tende a
se assentar na cobrança de impostos sobre os meios de subsistência
necessários, tornando-os mais caros, constituindo o que Marx cha-
mou de supertributação” (CARCANHOLO, 2018, p. 42).
O sistema da dívida complexifica a estrutura das classes no
capitalismo contemporâneo, já que a dívida pública permite ao seu
possuidor (credor) a participação no orçamento público e suas prio-
ridades mediante políticas sociais públicas.
Em se tratando especificamente da arrecadação de impostos,
a qual constitui o orçamento público, quando esta não é suficiente
para o pagamento do serviço da dívida pública, o Estado se obriga
a emitir nova dívida. Trata-se de um aumento do estoque da dívida
pública que implicará a elevação do serviço da dívida. Isso viabiliza
a manutenção da estrutura das classes no capitalismo.
Decorre dessa lógica a advertência de Behring (2010, p. 20)
sobre a exploração do trabalho na produção, que é complementa-
da por uma exploração tributária crescente nesses tempos de intensa
crise, a onerar sobremaneira a classe trabalhadora. Em decorrência
da correlação de forças desfavorável, esta fica com menor poder
de pressão nas disputas pelo fundo público. A exploração a que se
refere a autora advém do fato de que a burguesia encontra formas
cada vez mais sofisticadas de se apropriar do valor gerado pela clas-
se trabalhadora.
183
Na crise econômica contemporânea, o discurso hegemônico
culpabiliza a dívida pública por um suposto gasto irresponsável do
Estado e sem controle de suas despesas, gerando descontrole nas
contas públicas, aumentando as taxas de juros e reduzindo investi-
mentos, crescimento e emprego. A disseminação desta falácia é re-
futada por vários autores, como Montoro (2016), cujo estudo escla-
rece que a dívida esteve elevada e se manteve crescente inclusive nos
contextos de relativo auge da economia mundial (entre 2002 e 2007).
A ruptura de limites anteriormente existentes para a mobilida-
de de capitais financeirizados constitui uma alternativa para contor-
nar a tendência decrescente da taxa de lucro, enfrentada nos países de
capitalismo avançado. Aos Estados dependentes, cabia uma reconfi-
guração que passava pelo aumento da dívida pública como forma de
alimentar a rentabilidade financeira e, ao mesmo tempo, “de justificar
sucessivos ajustes fiscais, os quais legitimaram a canalização de recur-
sos para o capital, a condução de ‘reformas’ na administração pública
e a contenção de gastos sociais” (BRETTAS, 2013, p. 156).
No conjunto das medidas “recomendadas” pelos organismos
internacionais, destacamos o processo de privatizações, que contribui
para alavancar o estoque de ativos financeiros (ações, debêntures, tí-
tulos da dívida, tanto pública quanto privada etc.) (BRETTAS, 2013,
p. 183). A esse respeito, destacamos como documento norteador o
Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, desde a gestão de
FHC e reafirmado nos governos posteriores.
Conforme Behring (2018), a política social consiste num pro-
duto da sociabilidade burguesa, situada na esfera da emancipação
política (atreladas às amarras do valor, do dinheiro e, portanto, da
propriedade privada), que ainda lhes dá sustentação, através da repro-
dução e das condições de oferta da força de trabalho, embora tam-
bém ocorra por meio da constituição e da alocação do fundo público,
com o que participa do movimento do capital.
Nas condições atuais (de capitalismo em crise e decadente),
de contrarreformas e de destruição dos direitos sociais, achamo-nos
num contexto de escalada destrutiva de pessoas e de posições fascis-
toides, no qual a perspectiva limitada da emancipação política impõe
à agenda da emancipação humana a incorporação de elementos de
transição, numa perspectiva de revolução permanente, incluindo di-
reitos e políticas sociais financiadas pelo fundo público (o que requer
também uma vigorosa disputa pelos trabalhadores que o financiam
mediante tributação) e que respondem às necessidades comuns de
todas e de todos, como saúde, educação, alimentação, terra, moradia,
proteção a idosos, crianças, mulheres, povo negro e povos originários.
184
Compartilhamos da formulação de Behring (2018) ao afirmar
que a trajetória da social-democracia contribuiu posteriormente para
se afastar cada vez mais da tradição marxista e das lutas operárias,
reforçando o campo das lutas por um projeto eleitoral, o qual ope-
rou no limite da “dialética das conquistas parciais” das burocracias
partidárias e sindicais, culminando por se tornar um braço burguês
que, em nome da busca por universalização, diluiu as fronteiras en-
tre esquerda e direita.
Por meio da análise da composição do fundo público e de
sua relação com a política social, é possível identificar que esses re-
cursos assumem uma função cada vez mais relevante no sentido de
assegurar a acumulação capitalista (em termos de sua valorização
fictícia). Segundo Brettas (2012), se, por um lado, a participação dos
trabalhadores é cada vez maior na apropriação de seus recursos pelo
Estado, por outro, o retorno à burguesia também cresce, através
de subsídios fiscais, de mecanismos da dívida pública, entre outras
medidas a fim de garantir a lucratividade do capital.
Na aparência, esse discurso tem como objetivo acabar com a
“farra” com os recursos públicos e evitar o seu uso sem res-
ponsabilidade fiscal, tornando o Estado austero e não onerando
os contribuintes indevidamente. Na prática, o objetivo é exata-
mente o contrário: colocar em marcha toda uma série de me-
canismos operacionais e legais que mantenham e consolidem
o processo de financeirização das economias, de espoliação
da classe trabalhadora, não apenas pela extração da mais-valia
(relativa/absoluta) de maneira direta na exploração da força de
trabalho, mas também através de mecanismos mais sofisticados
e difíceis de serem identificados, como o uso do fundo público
para atender aos interesses da fração rentista do capital, através
do pagamento dos serviços da dívida e da emissão de papéis
que servem unicamente para a sua ampliação, sem que haja ne-
nhuma contrapartida em termos de entrada de recursos nesses
países. (SANTANA, 2018, p. 20).
185
ser o argumento de defesa neoliberal ao corte de gastos sociais, ocul-
tando as intenções de diminuição dos custos com a força de trabalho
e o redirecionamento do fundo público para atender em maior escala
às demandas do grande capital. Nesta disputa pelo fundo público
(cujo maior beneficiário é o capital), o corte de gastos estatais ocorre
sob o argumento de escassez de recursos, da necessidade de conter
o déficit público ou, conforme o caso brasileiro, de evitar a volta da
inflação, acarretando o sucateamento das diversas políticas sociais,
por meio da introdução da Emenda Constitucional nº 95/2016, que
congelou o gasto público por vinte anos.
Considerações finais
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189
O serviço social em face da onda conservadora:
o fortalecimento do debate feminista, de raça e
sexualidade na categoria profissional
Introdução
192
cordamos com Quinalha (2016) que esse golpe tem três principais
objetivos: o primeiro, livrar parte da direita clássica de investigações
criminais em torno do envolvimento com corrupção; o segundo, o
desmonte sistemático da proteção social, coisa que Temer fez par-
cialmente; o terceiro, e que talvez recebeu menos visibilidade e im-
portância entre os analistas políticos do golpe, a restrição de direitos
civis e políticos dos setores mais vulneráveis da sociedade, aumen-
tando o poder de intervenção de setores fundamentalistas sobre a
agenda de Direitos Humanos e diversidade, tendo impacto direto
sobre mulheres, LGBTTs2 e negros(as).
Priorizaremos aqui a análise do caráter conservador do golpe
em sua face patriarcal e racista, que se inicia ainda no processo de
impeachment e que marcou a forma de ataques conferidos a Dilma
Rousseff. Diferentemente de qualquer outro líder político homem,
Dilma foi atacada como só uma mulher poderia ser. Quando agia de
forma mais dura era questionada quanto à sua orientação sexual ou
estampavam capas de revista em que a acusavam de histeria e des-
controle; adesivos com Dilma de pernas abertas foram colados nos
tanques de gasolina de carros, nos quais a bomba de abastecimento
simulava uma penetração. Não temos dúvidas, o golpe também foi
um golpe patriarcal ‒ a derrubada de uma mulher da presidência
não poderia ter sido mais revelador para o que viria depois.
Outro aspecto da face patriarcal do golpe que merece análise
foram as frases proferidas pelos deputados que votavam a favor do
impeachment na Câmara dos Deputados: “em nome de Deus e da
família”, diziam quase todos eles. A família patriarcal cristã esta-
va sendo ali exaltada, “defendida”; a frase representou, ao mesmo
tempo, duas instituições que historicamente colocam as mulheres
em situação de subalternidade, que não aceitam a diversidade e que
são alicerces indispensáveis ao funcionamento pleno do capital: a
religião cristã e a família monogâmica burguesa. O golpe foi ultra-
conservador, além de neoliberal.
Os votos em nome de Deus e da família ficaram longe de
passar só pelo campo do discurso, foram cobrados na realidade con-
creta. Logo no início do governo ilegítimo de Michel Temer, verifi-
caram-se retrocessos no campo dos direitos das mulheres, LGBTTs,
negros e negras.
Quinalha (2016, p. 132) sistematiza algumas das primeiras
mudanças realizadas no governo Temer:
2 Sigla usada para se referir às orientações sexuais de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis
e Transgêneros.
193
Fim do Ministério de Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Huma-
nos; Secretaria de Direitos Humanos dissolvida na enorme estrutura
do Ministério da Justiça, que tem outras prioridades e diversas outras
atribuições; nomeação para a secretaria de mulheres, agora subordina-
da também ao Ministério da Justiça, de uma deputada que já presidiu
a Frente Parlamentar Evangélica e é abertamente contrária ao direito
ao aborto; [...] escolha de ministros exclusivamente homens e bran-
cos para todos os postos do primeiro escalão do governo; encontro
de Temer com o pastor Silas Malafaia para “receber bênção” e seu
discurso oficial de posse enquanto presidente interino prometendo
fazer um “ato religioso” com o Brasil: “Quando você é religioso você
está fazendo uma religação. O que queremos fazer agora com o Brasil
é um ato religioso, um ato de religação de toda a sociedade brasileira
com os valores fundamentais do nosso país”.
194
Temer governou por dois anos, aprovando todas as medidas im-
populares possíveis no seu curto tempo de mandato, entre elas a Emen-
da Constitucional 95, conhecida como “PEC do fim do mundo”, que
congela os gastos públicos do governo por vinte anos, impactando de
forma drástica o financiamento das políticas de Educação, Saúde e As-
sistência Social, um dos objetivos centrais do seu governo. Além disso,
aprovou a Lei 13.429 em março de 2017, que permite a terceirização de
todas as atividades de uma empresa, e também aprovou a reforma traba-
lhista, que alterou em mais de cem pontos a CLT.
Temer cumpriu parte da agenda neoliberal que seu governo tinha
por intenção realizar, porém não logrou êxito em aprovar a reforma da
previdência. Conseguiu o cargo de presidente com o maior índice de
reprovação de todos os tempos, ficando com apenas 3% de aprovação
no final do seu mandato. Durante o seu governo enfrentou três graves
denúncias de corrupção4, inclusive um áudio vazado de uma conver-
sa entre o senador Romero Jucá (Movimento Democrático Brasileiro
‒ MDB), um dos principais articuladores do impeachment, e o ex-pre-
sidente da Transpetro, Sérgio Machado, em conversas sobre a Lava Jato
que diziam ter de tirar Dilma do poder para “estancar a sangria” das
investigações sobre corrupção.
Temer, apesar de ter sido útil num primeiro momento, não con-
seguiu apoio popular para viabilizar outras contrarreformas, nem para
fazer com que direita tradicional do país voltasse a ser vista com bons
olhos pela população brasileira. Com as denúncias e os áudios vazados
contra ele e também contra Aécio Neves, do Partido da Social Democra-
cia Brasileira (PSDB), a direita brasileira ficou sem um novo nome para
disputar as eleições de 2018.
Com isso, Temer não conseguiu cumprir o que, como já mencio-
namos, são os três principais objetivos do golpe de 2016, deixando assim
um vácuo político pela direita mais tradicional e pela esquerda, que ainda
anestesiada com as consequências do transformismo do PT, teve pouca
4 Em maio de 2017 foi divulgado um áudio de Joesley Batista, envolvido em casos de
corrupção, descoberto pela operação Lava Jato, em que ele diz estar pagando Eduardo
Cunha na cadeia para ficar calado. Ouve-se Temer sugerindo manter o pagamento. No
mesmo mês, o assessor especial de Temer, Rodrigo Rocha Loures, é visto com uma mala
de dinheiro, a sair de um restaurante. Desconfia-se que a mala era para Temer. Em junho de
2017, Temer é oficialmente denunciado por corrupção passiva. Em setembro do mesmo
ano, ele é denunciado pela segunda vez, agora por obstrução da Justiça. E em dezembro
de 2018 ele sofre a terceira denúncia, dessa vez por corrupção ativa e passiva e lavagem de
dinheiro, no inquérito que apurou um esquema criminoso que envolvia o setor de portos.
Temer foi preso em 21 de março de 2019, em decorrência da última denúncia citada aqui,
porém só ficou quatro dias detido, sendo solto no dia 25 de março.
195
força para uma oposição5 massiva e forte ao golpe. Somado a isso, temos
um processo intenso de decadência intelectual e ideológica posto em mo-
vimento pela classe dominante, na tentativa de tornar aceitável o pacote
proposto pela pauta neoliberal.
Sobre isso, diz Damier (2017, p. 99):
A classe dominante pôs em movimento forças destrutivas, reavivan-
do alguns dos preconceitos e opressões ancestrais da formação social
brasileira – mas não só dela, por suposto ‒, como o machismo, o
racismo, a homofobia, o militarismo e o apoliticismo tecnocrático,
tudo isso coadunado, como não poderia deixar de ser por aqui, com
o secular ódio de classe destilado por uma burguesia umbilicalmente
divorciada do povo. Por meio de todos os poderes do Estado, os di-
reitos democráticos são atacados, evidenciando um amálgama entre
uma plataforma economicamente neoliberal, politicamente reacioná-
ria, e profundamente conservadora no âmbito comportamental.
5 Duas importantes frentes de resistência foram criadas: a “Frente Povo Sem Medo” e a
“Frente Brasil Popular”; além disso, atos também foram organizados no intuito de barrar o
golpe, mas não conseguiram aglutinar forças suficientes para mudar o cenário que se instau-
rou em 2015. As frentes de articulação de esquerda continuam tendo um papel importante
no processo de organização e unificação das pautas progressistas.
196
conservadora da direita brasileira por ser abertamente6 homofóbico, ma-
chista e racista. Apresentava como um representante “fora do sistema”,
mas que iria jogar pelo sistema, o que se encaixava perfeitamente na
ideologia anticorrupção.
Bolsonaro chegou em 2018 como um dos nomes mais fortes para
a disputa presidencial, deixando para trás velhos nomes da direita, como
Geraldo Alckmin, do tradicional PSDB. Embora tenha subido nas pes-
quisas como um foguete, ele ainda ficava atrás de Lula, que foi lançado
como candidato pelo PT, e que mesmo com todo o desgaste em torno
do partido, ainda se achava em primeiro lugar em todas as pesquisas.
Mais uma vez entrou em movimento a face golpista e corrupta da
burguesia brasileira, numa rede de mentiras, as chamadas fake news7, em
articulação com o Judiciário brasileiro, hoje relevada por vazamentos de
conversas no aplicativo Telegram, entre o juiz Sérgio Moro e os procura-
dores da operação Lava Jato, prenderam Lula8 e o tiraram da campanha
6 Em um discurso na Câmara em 2003, Bolsonaro disse que não estupraria a deputada
Maria do Rosário (PT) porque ela não merecia: “Ela não merece (ser estuprada) porque
ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não
sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar porque não merece”. Em um programa
na Rede Câmara, em 2010, Bolsonaro declarou que homossexualidade pode ser resolvida
com agressão: “O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro, ele muda o
comportamento dele. Tá certo? Já ouvi de alguns aqui, olha, ainda bem que levei umas
palmadas, meu pai me ensinou a ser homem”. Em palestra no Clube Hebraica, em abril
de 2017, Bolsonaro declarou que quilombolas de Eldorado Paulista não serviam nem para
procriação; na mesma palestra, se referiu ao fato de ter tido uma filha mulher como uma
“fraquejada”. Em uma entrevista na rádio Jovem Pan, em junho de 2016, afirmou que o
erro da ditadura foi torturar e não matar. Anteriormente, em 1999, já tinha declarado em
programa de TV que era a favor da tortura.
7 As fake news são informações falsas, geralmente com conteúdo político, publicadas por
meios de comunicação como se fossem verdade; são preparadas para ter um forte poder
viral. Popularizaram-se com esse termo a partir das eleições de 2016 nos EUA, quando
concorriam à presidência a candidata Hillary Clinton e o atual presidente, Donald Trump.
Na ocasião, as notícias falsas foram usadas contra Hillary e foram decisivas para o resultado
eleitoral, popularizando o debate em torno delas no mundo todo.
8 Lula foi condenado em segunda instância no caso do tríplex em Guarujá (SP) no dia 24
de janeiro de 2018, pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro ‒ com início em regi-
me fechado. Porém conversas vazadas pelo site Intercept Brasil revelaram que os procurado-
res responsáveis pela acusação de Lula, principalmente Deltan Dallagnol, foram orientados
pelo juiz que julgou o caso, Sérgio Moro, hoje ministro da Justiça e da Segurança Pública do
governo Bolsonaro. As conversas também apontam as fragilidades das provas contra Lula:
os delatores da operação Lava Jato eram incentivados a falar dele e a acusá-lo; havia uma
articulação entre imprensa e a operação Lava Jato para a manipulação da opinião pública
em torno do caso. Disponível em: https://theintercept.com/2019/08/29/lava-jato-vaza-
197
presidencial. Assumiram a disputa, no lugar de Lula, numa coalizão
PT/PCdoB, Fernando Haddad (PT) e Manuela d’Ávila (PCdoB),
como vice.
A campanha presidencial foi marcada pelas chamadas fake news,
com disparos ilegais de mensagens no WhatsApp e mentiras que en-
volviam, principalmente, assuntos da pauta conservadora. Como, por
exemplo, a acusação de que os governos do PT distribuíram o cha-
mado “kit gay”9 nas escolas para incentivar crianças e adolescentes
a serem homossexuais. Fotos com montagens de Manuela d’Ávila
também foram espalhadas, sempre vinculando-a com feminismo, na
intenção de a desqualificarem.
Mascaro (2018, p. 25), faz uma síntese do que representou a
eleição de Bolsonaro na continuidade do golpe iniciado em 2015:
A dinâmica do golpe e da regressão social capitalista brasileira
então envereda, ao final de 2018, pelas quadras do reacionaris-
mo. Com o ativo bloqueio judicial de Lula mediante sua prisão
e o impedimento da sua candidatura, Bolsonaro, por condução
da burguesia nacional e internacional e por segmentos populares
instigados ao conservadorismo, é eleito à presidência da Repú-
blica. O golpe estabelece um relativo ajuste: até então nas mãos
de setores de direita neoliberal, já tradicionalmente assentados
na política (MDB, PSDB, DEM), nos meios de comunicação em
massa e economia financeira, agora alarga as suas margens de
forma a conduzir o imediato da política por meio de lideranças de
perfil populista reacionário ou semifascistas e partidos artificiais,
como o PSL, e interfere nos meios de comunicação de massa
através das redes sociais digitais. O núcleo econômico – este sim
o único inexorável e comandante central do golpe – segue nas
mesmas mãos financistas.
198
violência e ameaças, oriundas das próprias falas públicas de Jair Bol-
sonaro, que em setembro 2018, durante campanha no Acre, simulou
uma arma com o tripé do microfone e convocou a plateia a “fuzilar
a petralhada”. Vários casos envolvendo violência e agressões, dos
seguidores de Bolsonaro contra LGBTTs e eleitores do PT, se es-
palharam pelo Brasil. O caso mais emblemático foi o assassinato do
mestre de capoeira, conhecido como Moa do Katende, em Salvador,
após ele ter declarado seu voto em Haddad. Ele foi assassinado com
12 facadas em uma discussão política após o resultado do primeiro
turno das eleições.
Outros casos também chamaram atenção. Em 9 de outubro
de 2018, um estudante da Universidade Federal do Paraná (UFPR),
que estava com o boné do MST, foi agredido, ficando gravemente
ferido, aos gritos de “aqui é Bolsonaro”. Também em outubro de
2018, um jogo para celular chamado “bolsomito 2018” foi lançado
pela BS Studio: o objetivo principal do jogo era fazer Bolsonaro
matar baianos, gays, negros, militantes do MST, petistas e feministas
para “livrar uma nação da miséria. Esteja preparado para enfrentar
os mais diferentes tipos de inimigos que pretendem instaurar uma
ditadura ideológica criminosa no país”, como constava da descrição
do jogo na plataforma em que era vendido.
No dia 3 de outubro de 2018, em Curitiba, José Carlos Olivei-
ra, homossexual de 57 anos, foi encontrado morto dentro do armá-
rio, com os pés e mãos amarrados. Os vizinhos ouviram o assassino
gritar “viva Bolsonaro” ao sair do apartamento. Ele ainda ficou com
o celular da vítima, enviando mensagens de apoio a Bolsonaro nos
grupos do WhatsApp de que José Carlos fazia parte.
Mascaro (2018, p. 31) nos fala sobre como essa pulsão pela
violência e repressão é característica dos momentos de crise do ca-
pital:
A organização da subjetividade pela libido repressora, típica nos
períodos de crise estrutural capitalista como a que explodiu em
1929 e a atual, decorrente de 2008, enseja por decorrência lide-
ranças do tipo também repressor que, em vez de postularem
uma ação política investida na libido amorosa (promessas de
melhoria das condições de vida, cuidado, proteção), organizam
e aglutinam as pulsões individuais e sociais mediante desejo de
submissão à autoridade e sua força ameaçadora. Reclamos de
segurança, ordem e unidade nacional se sobrepõem aos de em-
prego, bem-estar social e dignidade.
199
futuro governo, hoje ministro da Economia, foi o discurso conserva-
dor nas pautas que envolviam as mulheres, os LGBTTs e as popula-
ções tradicionais que levaram Bolsonaro à ascensão e à vitória sobre
o PT com 55,13% dos votos nas eleições de 2018. Em seu discurso
de posse, comprometeu-se a acabar com o que a direita chama de
“ideologia de gênero”10. Quando a homofobia foi considerada crime
pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em maio de 2019, ele afirmou
que o Brasil era um país cristão e não laico, e que o STF merece um
“ministro terrivelmente evangélico”.
A violência contra um grupo bem definido estava sendo auto-
rizada e incentivada: feministas, negros, LGBTTs e militantes sociais
eram alvo da ascensão da face reacionária, conservadora e violenta do
golpe. A oposição a esses grupos saiu da campanha e virou plano de
governo. Hoje assistimos a uma perseguição orquestrada pelo bolso-
narismo11, chamada de “combate à ideologia”.
É importante dizer também que as mulheres foram o segmen-
to que mais se organizou em torno do avanço do conservadorismo
neoliberal desde 2015. Desde a preparação do que viria a ser o golpe
de 2016, as mulheres seguem se organizando, como protagonistas de
grandes mobilizações e atos em nível nacional. Como exemplo disso,
temos em 2015 as mobilizações em torno do “Fora, Cunha”, que
tinham como mote central a saída do então presidente da Câmara
dos Deputados, Eduardo Cunha (MDB – RJ), que fazia avançar um
projeto de lei (PL 478/2007), o Estatuto do Nascituro12, que preten-
10 Esse termo foi criado pela ala conservadora, ligada principalmente a igrejas neopente-
costais, para designar tudo o que diz respeito ao debate sobre educação sexual e reprodutiva,
orientação sexual e igualdade entre homens e mulheres, feito de forma progressista, princi-
palmente no campo educacional, mas também na mídia, na cultura e na política.
11 Compreendemos o bolsonarismo como uma ideologia formulada a partir da visão políti-
ca do então presidente Jair Bolsonaro, que se fortaleceu nas eleições de 2018, mas que ultra-
passa o período eleitoral e a sua figura central, configurando-se como um plano ideológico
defendido pela “nova direita” que é, sobretudo, construído e propagado via mídias sociais e
pelas chamadas fake news. Tem como apelo central a oposição aos direitos humanos. Nas pa-
lavras de Silva (2019, p. 147), o termo direitos humanos se refere, na ideologia bolsonarista,
“a um conjunto de práticas que defenderia marginais, bandidos, invasores de terras, pedófi-
los e presidiários, atacando policiais, por um lado; por outro, incentivariam a homossexuali-
zação precoce das crianças, por meio do famigerado “kit gay”; por fim, legariam privilégios
inaceitáveis às “minorias”, entre as quais os negros assistidos por políticas de ações afirma-
tivas e os índios. A tudo isso, pois, haveria de opor-se, especialmente em nome da defesa
dos cidadãos de bem (sobretudo policiais), das famílias tradicionais e da meritocracia. Essas
seriam, pois, as bandeiras constituintes do bolsonarismo como forma de expressão política”.
12 O Estatuto do Nascituro atribui personalidade jurídica ao feto e criminaliza o abor-
200
dia retroceder com acesso ao direito legal ao aborto em casos de
estupro e anencefalia no Brasil. Essa série de atos que aconteceram
em todo o Brasil ficou conhecida como “primavera feminista”.
Um estupro coletivo que aconteceu contra uma adolescente13
no Rio de Janeiro em 2016 voltou a colocar milhares de mulheres
nas ruas do Brasil inteiro; a “cultura do estupro” foi questionada e
debatida pelo movimento feminista. As mulheres também foram
linha de frente contra o golpe que aconteceu no mesmo ano, de-
nunciando o machismo e a misoginia que, como já dissemos, foram
parte essencial na legitimação do impeachment da presidenta Dilma
Rousseff.
Em 2017, os atos do Dia Internacional das Mulheres segui-
ram denunciando o golpe e os seus retrocessos, tendo como pauta
central a reforma da previdência e a denúncia do governo ilegítimo
de Temer. No início de 2018, o assassinato da vereadora do Rio de
Janeiro, Marielle Franco ‒ que representava tudo o que o golpe que
avançava no Brasil odiava: era uma mulher negra, da favela da Maré
e LGBTT, que tinha uma participação política expressiva e denun-
ciava os abusos policiais e a atuação das milícias nas favelas do Rio
de Janeiro ‒ colocou milhares de mulheres nas ruas clamando por
justiça, mas também levantando pautas como a participação das mu-
lheres na política e questionando a atuação do Estado militarizado
que atua no massacre contra jovens negros em todo o Brasil.
Ainda em 2018, na campanha presidencial, dois grandes atos
aconteceram no Brasil e tiveram como mote central o “ele não”, fa-
zendo referência a Jair Bolsonaro. Foram protagonizados principal-
mente por mulheres jovens, coletivos antirracistas e LGBTTs. Nes-
ses primeiros meses de 2019, é nesses grupos que mais resistiram à
eleição de Bolsonaro onde mais cresce a desaprovação do governo.
Em pesquisa nacional realizada pelo Datafolha em agosto de 2019,
44% das mulheres e 51% das pessoas negras avaliam o governo
como ruim ou péssimo.
As mulheres incomodaram, e a ascensão do conservadorismo
a que assistimos também deu a sua resposta, fortalecendo o patriar-
201
cado como um pilar estrutural do golpe em curso. Os primeiros seis
meses do governo Bolsonaro mostram que um dos alvos de ataque é
o movimento feminista e suas pautas. É preciso frisar que a classe tra-
balhadora tem sexo e raça, e os impactos econômicos que penalizam
a vida das pessoas mais pobres do Brasil impactam ainda com mais
força as mulheres negras e pobres.
O primeiro ataque do governo Bolsonaro contra as mulheres
dá-se com a configuração do Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos, sob a direção de Damares Alves, que é pastora
da igreja batista da Lagoinha, em Belo Horizonte. A ministra é pu-
blicamente contra a legalização do aborto, contra o que ela chama de
“ideologia de gênero” nas escolas, e compõe a Associação Nacional
de Juristas Evangélicos, uma das principais organizações a defender
o projeto “escola sem partido”14.
Damares é responsável por vários posicionamentos conserva-
dores e que revelam em nome de quem está a serviço, como, por
exemplo, quando disse numa congregação evangélica em que pales-
trava em 2016: “Está na hora de a igreja dizer à nação a que viemos…
É hora de a igreja governar”. Ainda, declarou que considera a trami-
tação do Estatuto do Nascituro uma prioridade e comemorou a vitó-
ria de Bolsonaro com um vídeo, em que dizia: “A nova era começou,
e agora menino veste azul e menina veste rosa”. Reafirmou seu posi-
cionamento conservador nas pautas que dizem respeito à diversidade
sexual e à igualdade de sexo.
Damares já declarou a descontinuidade do Programa Casa da
Mulher Brasileira, durante uma audiência da Comissão de Defesa dos
Direitos da Mulher na Câmara dos Deputados, no dia 16 de abril de
2019, programa criado por Dilma Rousseff em 2013 e que ofereceria
atendimento integral, às mulheres vítimas de violência em todos os
estados.
Como reflexo da política conservadora desse governo, em uma
votação do Conselho de Direitos Humanos da União das Nações
Unidas (ONU), em julho de 2019, o Brasil votou junto com países
islâmicos, como a Arábia Saudita, contra os direitos reprodutivos e
sexuais das mulheres15. Ainda em relação a essa pauta, o vereador de
202
São Paulo, Fernando Holiday, do Democratas (DEM), apoiador do
Governo Bolsonaro, propôs o projeto de lei 352/2019, que prevê
internação psiquiátrica para mulheres grávidas que sejam identifica-
das “com propensão ao abortamento ilegal”, e acompanhamento
psiquiátrico e espiritual compulsório para as que queiram ter acesso
ao aborto em casos legais (casos de estupro, fetos anencefálicos e
em caso de risco de vida para a mãe).
O que ocorre no Brasil é o avanço de um tipo de cruzada
religiosa em torno das pautas que versam sobre os direitos das mu-
lheres, com uma intensidade ainda maior sobre os direitos sexuais e
reprodutivos, tão caros à bancada evangélica que apoia o bolsona-
rismo. Ainda que essa cruzada já esteja há anos em curso, ela nunca
tinha se dado de forma aberta, comandada pelo próprio presidente
e por seus ministros.
É importante dizer que consideramos a face conservadora do
golpe tão importante quanto a face neoliberal; elas são complemen-
tares e não podem ser analisadas de forma isolada. O conservado-
rismo não é uma mera cortina de fumaça para as pautas econômicas,
pois as faces do golpe formam partes do mesmo projeto capitalista
de sociedade, que destrói vidas e que avança sobre os direitos das
mulheres, principalmente sobre mulheres negras e pobres.
Nas palavras de Ferreira (2017, p. 11):
São mulheres dos setores mais pauperizados da classe trabalha-
dora aquelas que carregam o ônus da precariedade dos serviços
públicos no Estado neoliberal e mobilizam mecanismos formais
e informais de enfrentamento da desigualdade que estão na base
das expressões da questão social. Essa imagem, que poderia ser
tomada pelo pensamento conservador como expressão de uma
“natureza” feminina orientada para o cuidado, evoca um dado
material concreto. O tempo, energia e saberes de um determi-
nado grupo social ‒ as mulheres ‒ de uma determinada classe
social ‒ a classe trabalhadora ‒ ancora as expressões mais dra-
máticas da exploração e do desapossamento produzidos pelo
capitalismo hoje.
de uma emenda apresentada pelo Egito e Iraque contra a menção ao “direito à saúde
sexual e reprodutiva” no tema que versava sobre casamento infantil e forçado. Também
se posicionou a favor de propostas do Bahrein e Arábia Saudita sobre educação sexual,
que remete à família a decisão de tratar a questão. Ainda sobre educação sexual, o Brasil
também votou a favor da proposta feita pelo Paquistão de excluir a menção a “garantir o
acesso universal à educação abrangente sobre sexualidade baseada em evidências”.
203
do e o capitalismo incidem de forma direta na organização da vida,
fazendo com que as mulheres negras experienciem as mais diversas
formas de exploração, violência e violação. Como exemplo disso, a
pesquisa do IBGE revela que, em 2002, o rendimento das mulheres
era equivalente a 70% do rendimento dos homens. Treze anos de-
pois, em 2015, a relação passou para 74,5%. No grupo com 12 anos
ou mais de estudo, o rendimento feminino cai para 66% da renda
masculina, mostrando assim a desigualdade salarial entre homens e
mulheres e a desvalorização do trabalho feminino, mesmo com maior
escolaridade. Se a comparação for feita entre homens brancos e mu-
lheres negras, a desigualdade será ainda maior: elas ganham apenas
38,5% do rendimento deles.
Além disso, a violência atinge as mulheres negras de forma di-
ferenciada. Enquanto os números de violência doméstica caem entre
mulheres brancas, eles têm aumentado entre mulheres negras, che-
gando a 60% dos 2,4 milhões de mulheres violentadas em 2017, se-
gundo dados do IBGE do mesmo ano.
A ofensiva conservadora intenta fortalecer o patriarcado e au-
mentar o domínio e o controle sobre os corpos, vidas e trabalho das
mulheres a partir do fortalecimento e da defesa do modelo patriar-
cal de família, da naturalização da violência doméstica e sexual, do
aumento da responsabilização sobre as mulheres dos trabalhos de
reprodução da vida, que envolvem os cuidados sobre as crianças, do-
entes, idosos, a gestão da pobreza em tempos neoliberais e o trabalho
doméstico e emocional não pago que as mulheres realizam.
O fortalecimento do patriarcado impacta também de forma
central o campo da diversidade sexual, marcando, junto com o racis-
mo e a classe social, um alvo do bolsonarismo sobre um grupo espe-
cífico da classe trabalhadora: mulheres, negros e negras e LGBTTs. O
Serviço Social, além de ser formado majoritariamente por mulheres,
sendo marcado pela divisão sociotécnica e sexual do trabalho, tam-
bém tem como público usuário das políticas em que atua as mulheres,
principalmente as negras.
Ademais, o Serviço Social guarda, desde o seu processo de rup-
tura com o conservadorismo, iniciado no final da década de 1970,
uma vinculação com a teoria social crítica e com um projeto societá-
rio que não seja marcado pelas desigualdades de sexo, raça e classe,
onde homens e mulheres sejam livres e emancipados.
Por isso, debateremos a seguir como a categoria profissional e
suas entidades representativas ‒ Conjunto CFESS/CRESS, ABEPSS
e ENESSO – remam na contramão da onda conservadora, demons-
trando um significativo avanço no que tange aos debates e ações po-
204
líticas que entendem classe, raça, sexo e sexualidade de forma con-
substancial e coextensiva.
205
quais trabalhamos. Desta forma, correspondemos à perspectiva
feminista materialista e de totalidade. Desconsiderar as relações
sócias de sexo e/ou raça seria uma ruptura com a perspectiva de
totalidade.
206
de 1996 reforçam a importância desses debates para a formação
profissional.
Porém, para a efetivação desses princípios, é necessário que
a formação profissional em Serviço Social contemple o desvelar
dessas relações. No entanto, só 21 anos depois da formulação do
nosso Código de Ética, no Encontro Nacional de Pesquisadoras(es)
em Serviço Social (ENPESS) de 2014, impulsionado pelos traba-
lhos do Grupo Temático de Pesquisa (GTP) em Serviço Social, re-
lações de exploração/opressão de gênero, raça/etnia, sexualidades
da ABEPSS, é que se criou um documento orientando os cursos de
Serviço Social para a criação de ao menos um componente curricu-
lar obrigatório abordando essas temáticas.
Compreendendo a importância desses temas diante da con-
juntura, da noção de totalidade defendida em nossa formação e da
forma como as relações sociais são conformadas na realidade, o
documento orienta não só a inclusão de um componente curricular
obrigatório, mas a discussão das relações de exploração e opressão
de sexo, raça, sexualidade e classe de forma transversal em toda a
formação profissional:
Essa análise ganha maior importância em uma conjuntura mar-
cada não apenas por conservadorismos, mas reacionarismos e
fundamentalismos racistas, misóginos, homofóbicos, crimina-
lizantes e genocidas da juventude negra e dos povos indígenas
no Brasil. Acreditamos que a formação profissional de Serviço
Social deve estar associada a uma consciência de classe antirra-
cista, antipatriarcal e anti-heterossexista, assim como vinculada
às lutas dos movimentos sociais (negras/os, indígena, feminista,
LGBT e outros). Nessa perspectiva, é possível continuar avan-
çando na renovação profissional, afirmando a liberdade como
valor ético central, ampliando direitos e nos contrapondo a to-
das as formas de discriminação, opressão e exploração em de-
fesa da emancipação humana. Para tanto, entendemos que essas
temáticas não devem estar presentes em apenas um componen-
te obrigatório, mas em toda a formação profissional. (ABEPSS,
2014, p. 2).
207
antes da inserção da(o) estudante no campo de estágio. Aqui, res-
saltamos, ainda, as Leis 10.639/03 e 11.645/2008, assim como
a Resolução nº 1 do Conselho Nacional de Educação ‒ CNE/
MEC, no que diz respeito à incorporação obrigatória do tema
sobre relações étnico- raciais nos currículos.
208
Mais uma vez, a perspectiva da totalidade entra em evidência
e reforça a necessidade de compreensão da nossa realidade sócio-
-histórica, entendendo as particularidades da nossa formação social,
que tem mais de três séculos de escravidão dos povos negros e in-
dígenas no seu passado; a abolição se deu de forma incompleta e
não garantiu o acesso a direitos e à reparação histórica desses povos.
O racismo no Brasil pode ser considerado um dos principais
determinantes das expressões da questão social; é o país que mata
um jovem negro a cada 23 minutos16, onde as mulheres negras têm
um risco 71% maior de serem assassinadas (vítimas de feminicídio)
que as mulheres brancas17 e ainda são as que mais morrem vítimas
de abortos clandestinos e as que mais são vulneráveis a estupros e
violência obstétrica18.
Por compreender essas determinações, o documento aponta
a importância da apreensão das categorias de raça e etnia para o
Serviço Social:
A apropriação das categorias raça e etnia para as análises e refle-
xões nas ciências sociais é fundamental, sobretudo no Serviço
Social, que atua no âmbito das expressões da questão social,
que, por sua vez, atingem prioritariamente, na realidade brasi-
leira, as populações negras e indígenas. Nesse sentido, sob a
perspectiva da totalidade social, o debate acerca das opressões
e exploração de classe não deve ocorrer descolado das deter-
minações étnico-raciais, que são estruturais e estruturantes das
relações sociais em todas as esferas da vida social. Compreensão
que é fundamental para a articulação com o debate da formação
em Serviço Social.
209
das lutas do conjunto CFESS/CRESS na sua atual gestão (2017-2020).
O documento sobre as cotas na pós-graduação revela que 80%
dos estudantes de mestrado e doutorado no Brasil são brancos, e ape-
nas 17% negros, expressando as desigualdades raciais presentes nesse
espaço. Por isso, compreende que a “aprovação de ações afirmativas no
âmbito da pós-graduação é uma medida importante, de caráter repa-
ratório às atrocidades cometidas contra a população negra” (ABEPSS,
2018). Os resultados do debate levantado pela ABEPSS foram rápidos;
até setembro de 2019, menos de um ano depois do lançamento do do-
cumento, 22 dos 34 programas de Pós-Graduação em Serviço Social
tinham aderido às cotas étnico-raciais, constituindo uma importante
conquista para os negros e negras que formam a nossa categoria pro-
fissional.
A campanha do conjunto CFESS/CRESS ainda está em anda-
mento19, mas já mobilizou vários debates no Brasil sobre o combate
ao racismo. Foram semanas comemorativas ao dia da(o) assistente so-
cial, o 2º Seminário Nacional de Direitos Humanos e Serviço Social,
semanas acadêmicas, os próprios espaços de lançamento da campanha
promovidos pelos CRESS de todos os Estados, além de uma grande
quantidade de material audiovisual produzido pelo conjunto e divulga-
dos de forma digital e impressa.
Para o conjunto, dar centralidade a esse debate significa incenti-
var a promoção de ações de combate ao racismo no cotidiano profis-
sional. Além disso, para nós, significa o posicionamento da categoria
profissional em face dos processos de barbárie que as expressões do
racismo causam nas vidas de milhares de pessoas, bem como dar vi-
sibilidade à produção de conhecimento e às pesquisadoras negras que
compõem a nossa profissão. Sem dúvida, essa campanha foi um marco
importante no fortalecimento do debate em torno da raça na nossa
profissão.
O lançamento de mais um livro para a biblioteca básica do Ser-
viço Social também foi um marco importantíssimo no que tange às
discussões de sexo, raça e diversidade sexual na categoria profissional.
O livro intitulado Feminismo, diversidade sexual e Serviço Social, de autoria
das professoras Mirla Cisne e Silvana Mara do Santos, trouxe essas
temáticas de forma sistematizada e didática, realçando as particulari-
dades da formação social brasileira com base na teoria social crítica.
Nas palavras de Ferreira (2018, p. 11), o principal mérito dessa
obra:
210
Consiste em sua sintonia com o projeto ético-político do Serviço
Social, e na coerência e no rigor com que se vincula à perspecti-
va materialista histórica. As autoras questionam a falsa ideia, ali-
mentada pelas perspectivas pós-modernas, de que não é possível
apreender tais questões a partir do marxismo, sem, entretanto,
deixar de apontar, como crítica necessária, que a lacuna histórica
da elaboração crítica sobre tais dimensões, e a pouca relevância
a elas conferidas, abriu o flanco para o grassar das perspectivas
pós-modernas e de uma certa teoria de identidades desvinculada
da crítica das relações sociais.
Considerações finais
211
congresso da virada, seja no golpe parlamentar, jurídico, midiático e
conservador em que estamos imersos atualmente.
Essa conjuntura nos ataca de todas as formas possíveis, no
desmonte das políticas públicas e sociais nas quais trabalhamos e de
que somos usuárias, na violência que autoriza, incentiva e produz
contra mulheres, negros e negras e LGBTTs, pois além de serem a
maioria do público que atendemos, também somos nós mesmas os
alvos. Além disso, abre espaço para uma onda conservadora dentro
da profissão, e os ratos que estavam escondidos saltam para fora de
seus lugares confortáveis, confrontando-nos e mostrando, como bem
sabemos, que nunca deixaram de existir, só aguardavam o momento
oportuno para atacar.
Consideramos que esse avanço e amadurecimento teórico em
torno das discussões de sexo, raça, sexualidade e classe, de forma con-
substancial, materialista e marxista, se configura como uma resposta
de resistência para dentro e fora da categoria profissional. Seguimos
na tarefa de desvelar a realidade a partir da teoria crítica, fundada na
totalidade da realidade concreta, a fim de reafirmar o nosso compro-
misso ético-político com a construção de um projeto societário no
qual homens e mulheres sejam livres das desigualdades, explorações
e opressões de raça, classe, sexo e sexualidade.
Ao concluir, reafirmamos que a apreensão das relações sociais
de sexo, raça, classe e sexualidade só qualifica a nossa compreensão
acerca da questão social e das suas expressões, bem como consis-
te numa estratégia de enfrentamento ao conservadorismo dentro e
fora da profissão. Por isso, reafirmamos ainda a necessidade de seguir
dialogando e se somando à luta dos movimentos sociais feministas,
antirracistas e pela diversidade sexual, para que a nossa produção de
conhecimento siga alinhada à luta da classe trabalhadora.
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