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Ana Paula Ferreira Agapito é assistente Este livro é uma coletânea de textos, os quais apresentam reflexões

QUESTÕES MANIFESTO DE LANÇAMENTO

Morais dos Santos - Questões contemporâneas e o Serviço Social em tempos de crise estrutural do capital
Ana Paula Ferreira Agapito - Liana Amaro Augusto de Carvalho - Milena da Silva Santos - Silvana Mara
social da Prefeitura Municipal de sobre temas contemporâneos, que permeiam o debate do Serviço
Parnamirim (atua com servidora no Social brasileiro inserido num contexto socioeconômico, político, Atravessamos tempos difíceis!

CONTEMPORÂNEAS
CAPS AD III 24horas) formada em Ser- cultural e ideológico. As contribuições acadêmicas científicas dos/ A tendência da crise estrutural
viço Social, na Universidade Federal de as autores/as de cada artigo agregam significado para compreender vivenciada pelo capital é de
Alagoas (UFAL), Mestra em o desencadeamento da crise estrutural do capital em suas múltiplas agravamento. Consequentemente o

E O SERVIÇO SOCIAL
Serviço Social, pela Universidade determinações. É indispensável o debate critico, reflexivo e propositivo que presenciaremos nos próximos
Estadual da Paraíba (UEPB) e sobre o trabalho e o sentido atual do pauperismo, a “questão social”, a anos será um aprofundamento das
doutoranda em Serviço Social, precarização do trabalho e o conservadorismo, a educação no contexto desumanidades próprias desta ordem

EM TEMPOS DE
na Universidade Federal do da crise estrutural do capital e do avanço do conservadorismo, a social.
Rio Grande do Norte (UFRN). formação profissional em Serviço Social alinhada ao projeto ético-
político diante de “tempos ultraconservadores”, a conjuntura brasileira A reprodução da sociedade capitalista só

CRISE ESTRUTURAL
Liana Amaro Augusto de Carvalho é pós-golpe de 2016, a eleição presidencial em 2018, e o debate é possível, hoje, na medida que
formada em Serviço Social, na feminista, de raça e sexualidade no Serviço Social. As contribuições extermina milhões de vidas humanas,
Universidade Federal da Paraíba (UFPB), teórico-críticas sobre estes temas podem possibilitar aos assistentes por fome ou em guerras sem sentido.

DO CAPITAL
Mestra em Serviço social, pela sociais, discentes, docentes, pesquisadores e outras categorias Além disso, o capital, em crise,
Universidade Federal da Paraíba (UFPB) profissionais afins, desmitificar as particularidades e singularidades das encontra meios de expulsar um
e doutoranda em Serviço Social, contradições vigentes na totalidade social capitalista e suas implicações número enorme de trabalhadores de
na Universidade Federal do concretas na realidade brasileira. seus locais de origem afastando-os
Rio Grande do Norte (UFRN). de seus meios de trabalho e
subsistência promovendo, desta
Milena da Silva Santos é formada em maneira, uma das maiores tragédias
Serviço Social, na Universidade Federal humanas de nossos tempos. Tudo isso
de Alagoas (UFAL); Mestra em Serviço
Social, pela Universidade Federal de
Ana Paula Ferreira Agapito para que estes trabalhadores sirvam
como mão de obra barata nos países
Alagoas (UFAL); e doutoranda em
Serviço Social, na Universidade Federal As obras do Coletivo Veredas podem ser adquiridas pelo preço de
Liana Amaro Augusto de Carvalho centrais a fim de garantir os lucros e a
manutenção do capitalismo.
do Rio Grande do Norte (UFRN). custo, acrescido do frete, em nosso site. Não aceite comprar as nossas
publicações com aqueles que querem obter lucro.
Milena da Silva Santos
Diante desta realidade os trabalhadores
Silvana Mara Morais dos Santos é Silvana Mara Morais dos Santos começam a se movimentar em várias

(organizadoras)
professora do Departamento e do partes do mundo. Podemos mesmo
Programa de Pós-Graduação em Serviço vendas no site: afirmar que estamos nos aproximando
Social da Universidade Federal do Rio www.coletivoveredas.com de um período histórico de acirramento
Grande do Norte e Coordenadora do e aprofundamento da luta de classes.
ISBN: 978-65-88704-04-2
Grupo de Estudos e Pesquisa em
Trabalho, Ética e Direitos Um dos aspectos mais importantes
(GEPTED-UFRN). desta luta é o combate ideológico. E é
para contribuir neste combate
(colocando-se na trincheira ao lado dos
trabalhadores) que nasce o Coletivo
Veredas.
organizadoras:

ana paula ferreira agapito


liana amaro augusto de carvalho
milena da silva santos
silvana mara morais dos santos

questões contemporâneas
e o serviço social em tempos de
crise estrutural do capital
Diagramação: Thayná Omena
Revisão: Sidney Wanderley
Capa: Laura de Bona

Catalogação na Fonte
Departamento de Tratamento Técnico Coletivo Veredas
Bibliotecária responsável: Fernanda Lins de Lima – CRB – 4/1717
____________________________________________________________
Q5 Questões contemporâneas e o serviço social em tempos de crise
estrutural do capital / (Organizadoras) Ana Paula Ferreira Agapito
... [et al.]. – Maceió : Coletivo Veredas, 2020.
217 p.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-88704-04-2

1. Serviço Social. 2. Direitos sociais. 3. Marxismo. 4. Crise estrutural


- capital. 5. Contemporaneidade. I. Agapito, Ana Paula Ferreira, org. II.
Carvalho, Liana Amaro Augusto de, org. III. Santos, Milena da Silva, org.
IV. Santos, Silvana Mara Morais dos, org.

____________________________________________________________
CDU: 364.46

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buição, e ainda, que outros remixem, adaptem, e criem a partir deste trabalho,
desde que atribuam o devido crédito ao autor(a) pela criação original.

1ª Edição 2020
Coletivo Veredas
www.coletivoveredas.com
organizadoras:

ana paula ferreira agapito


liana amaro augusto de carvalho
milena da silva santos
silvana mara morais dos santos

questões contemporâneas
e o serviço social em tempos de
crise estrutural do capital

1ª Edição
Coletivo Veredas
Maceió 2020
Sumário

Prefácio���������������������������������������������������������������������������������������������7
Silvana Mara de Morais dos Santos

Apresentação����������������������������������������������������������������������������������13
As organizadoras

Trabalho, pauperismo e serviço social no Brasil contemporâneo�15


Liana Amaro Augusto de Carvalho
Milena da Silva Santos

A “nova questão social” a partir de uma análise marxista�������������37


Jinadiene da Silva Soares Moraes

O processo de precarização do trabalho dos motoboys: o sangue


que circula pelas artérias da cidade�����������������������������������������������53
Vivian Lúcia Rodrigues de Oliveira

A arte resiste: trabalho precarizado e ofensiva conservadora no Brasil


������������������������������������������������������������������������������������������������������������73
Bruna Massud de Lima
Andréa Lima da Silva
Incidência do conservadorismo no Brasil: ofensiva às expressões
culturais no pós-golpe de 2016��������������������������������������������������������91
Bruna Massud de Lima

Desafios contemporâneos para a educação superior brasileira em


tempos de aprofundamento da mercantilização����������������������������111
Ana Paula Ferreira Agapito
Carla Montefusco

Docência no ensino superior: uma análise da formação profissional


em serviço social�����������������������������������������������������������������������������129
Milena da Silva Santos
Liana Amaro Augusto de Carvalho

O projeto ético-político do serviço social na formação profissional:


implicações éticas em tempos ultraconservadores������������������������147
Jodeylson Islony de Lima Sobrinho
Rita de Lourdes de Lima

Neofascismo no Brasil contemporâneo: aproximações entre conceito,


história e dívida pública����������������������������������������������������������������������� 169
Thaísa Simplício Matias
Leonardo Carnut
Áquilas Mendes

O serviço social em face da onda conservadora: o fortalecimento do


debate feminista, de raça e sexualidade na categoria profissional191
Larissa Souza Pinheiro
Prefácio

Esta coletânea intitulada QUESTÕES CONTEMPORÂNE-


AS E O SERVIÇO SOCIAL EM TEMPOS DE CRISE ESTRUTU-
RAL DO CAPITAL traz a público reflexões realizadas, por discentes
e docentes, no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PP-
GSS) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), por
meio do conteúdo programático dos componentes curriculares e da
dinâmica de debates dos grupos de pesquisas presentes no PPGSS-
-UFRN. Assim, no semestre 2018.2, durante a disciplina Serviço Social:
questões contemporâneas, em face das leituras profícuas e discussões calo-
rosas, emergiu “com força e com vontade” a decisão das(os) partici-
pantes de adensar, em suas pesquisas, aquelas reflexões. Desse modo,
nascia, naquele momento, a organização do livro ora publicado.
O ambiente em que se constroem as reflexões aqui socializadas
revela, por um lado, a busca incessante de jovens pesquisadoras e pes-
quisadores por conhecimento crítico da realidade, em sua densidade
histórica e desafios contemporâneos, como uma atividade fundamen-
tal para entender teórica e politicamente o tempo presente. E, tam-
bém, expressa o compromisso com o papel que a universidade deve
assumir de promover reflexão e produção do conhecimento como
um modo de resistência, com a certeza de que nenhuma dimensão
da vida social escapa às determinações societárias e, em particular,
neste momento, às iniciativas das classes dominantes em face da crise
estrutural do capital.
Por outro lado, prevalece o entendimento de que vivemos em
um tempo histórico que evidencia características muito precisas da
barbárie capitalista: desemprego estrutural; ampliação e intensificação
da precarização da força de trabalho; perda de conquistas no campo
da emancipação política, como direitos do trabalho e da seguridade
social; e exacerbação da violência, com ênfase na reprodução das rela-
ções sociais de exploração, dominação e opressão, fundadas no sistema
capitalista-racista-heteropatriarcal.
São visíveis as implicações da “decadência ideológica”; dissemi-
nação como verdade da impossibilidade de conhecimento da realidade;
negação e contraposição ideológica à perspectiva de totalidade no en-
tendimento da vida social; afirmação da fragmentação como modo de
ser e estar no mundo e de entender apenas dimensões bastante restritas
da realidade; divulgação do pragmatismo em detrimento da pesquisa
e do conhecimento teórico-histórico e, em algumas realidades, como
é o caso do Brasil, mediante a ascensão política das forças de direita,
em suas expressões mais reacionárias e deletérias, a convivência com a
defesa aberta do obscurantismo, em que a ciência, a cultura, a educação
e a produção do conhecimento são desprezadas.
Por todas essas questões assinaladas e, notadamente, pela ten-
dência, cada vez mais consolidada, de destruição da natureza, do tra-
balho e aumento, sem limite, dos obstáculos ao pleno acesso da indi-
vidualidade ao que de melhor foi produzido pela humanidade com o
desenvolvimento das forças produtivas, torna-se relevante participar de
iniciativas na Universidade que se conectam com o mundo das coisas
reais, na contramão da aceitação domesticada de flertar com um tipo
de conhecimento fragmentário, alheio às necessidades reais da maioria
da população e funcional aos interesses do capital.
As(os) autoras(es) ora apresentadas(os) empenham-se em trilhar
outro caminho que possibilite: resgatar fundamentos teórico-políticos
favoráveis à apreensão das determinações societárias que, por um con-
junto de mediações, incidem na atuação do Estado, nas características
e tendências das políticas sociais, nas expressões da questão social, na
organização da classe trabalhadora e no Serviço Social, em suas deman-
das e respostas profissionais, bem como no universo da formação e do
exercício profissional.
O fio condutor da coletânea pode ser sintetizado, desse modo,
em quatro aspectos fundamentais:

• afirmação da perspectiva de totalidade, da luta de classes e da


vitalidade do pensamento marxiano e da tradição marxista na
apreensão e análise dos temas e objetos apresentados;

• reconhecimento do caráter estrutural da crise do capital: seus


fundamentos teórico-políticos e implicações, longe de signi-
ficar o fim do capitalismo, evidenciam o caráter de barbárie,
expresso nas condições objetivas e subjetivas, o que implica a
continuidade do desenvolvimento do sistema do capital, me-

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diante a reprodução permanente de sua fúria destrutiva em
face da natureza, do trabalho e do profundo aniquilamento
da subjetividade;

• compromisso em apreender o Serviço Social na história, sem


idealizar, de forma politicista, a realidade das políticas sociais
e o papel do Estado, nem liquidar, de forma economicista,
as contradições que emanam da realidade e que descortinam
possibilidades de resistência;

• articulação, a partir dos temas abordados, entre as linhas de


pesquisa do PPGSS-UFRN, a saber: (1) Estado, Sociedade,
Políticas Sociais e Direitos; (2) Serviço Social, Trabalho e
Questão Social; e (3) Ética, Gênero, Cultura e Diversidade.

Os artigos aqui reunidos buscam, portanto, socializar ques-


tões relacionadas ao trabalho e sua precarização; à questão social e à
pertinente crítica da perspectiva de diluí-la em conceitos ideológicos
que esvaziam seu significado teórico, histórico e político; ao conser-
vadorismo e sua incidência e visibilidade mais contundente na reali-
dade brasileira; à educação e sua crescente destruição, notadamente
no Ensino Superior e nas particularidades da formação profissional
em Serviço Social. E trazem uma importante contribuição e análi-
se crítica sobre o sentido teórico e político do neofascismo nos dias
atuais, notadamente na realidade brasileira, assim como a necessidade
de aprofundamento do debate feminista, de raça e sexualidade, como
condição fundamental na apreensão da realidade em suas múltiplas
determinações e contradições.
Liana Carvalho e Milena Santos convidam-nos à reflexão sobre
o trabalho e o sentido atual do pauperismo. Jinadiene Moraes põe em
discussão, a partir da análise marxista, a crítica à noção de “nova ques-
tão social”, expressão esta tão disseminada entre movimentos sociais,
instituições que lidam com as consequências da desigualdade social e
no circuito acadêmico, sobremodo na área das Ciências Humanas e
Sociais.
A precarização do trabalho e o conservadorismo ganham visi-
bilidade como eixos aglutinadores presentes nesta coletânea. Assim, o
artigo de Viviam Oliveira percorre o “sangue que circula pelas artérias
da cidade” por meio do trabalho dos motoboys. E Bruna Massud e
Andréa Lima analisam o trabalho de artistas que se empenham em
resistir à precarização em face do aprofundamento do conservadoris-
mo no Brasil. O conservadorismo revela-se, também, como elemento

9
central das reflexões desenvolvidas por Bruna Massud, ao tematizá-lo
no universo da ofensiva às expressões culturais no pós-golpe de 2016.
A educação no contexto da crise estrutural do capital e do avan-
ço do conservadorismo unifica a análise de três artigos. Ana Paula Aga-
pito e Carla Montefusco problematizam os desafios contemporâneos
para a educação brasileira. Milena Santos e Liana Carvalho evidenciam
particularidades da formação profissional em Serviço Social no âmbito
da docência no Ensino Superior no Brasil. A formação profissional
volta ao centro da análise no artigo de Jodeylson Sobrinho e Rita de
Lourdes de Lima, que abordam, a partir dos fundamentos ontológicos,
o Serviço Social e as implicações éticas naquilo que caracterizam como
“tempos ultraconservadores”.
Thaisa Matias, Leonardo Carnut e Áquilas Mendes adentram a
polêmica contemporânea posta na conjuntura pós-golpe de 2016, no-
tadamente após a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, sobre a existência
do neofascismo entre nós. Situam a questão nas trilhas perversas de
desenvolvimento da crise estrutural do capital, para “elucidar o deba-
te sobre neofascismo na realidade brasileira, presente como resultado
da escalada de um regime político de legitimidade restrita e sua rela-
ção com o crescimento da dívida pública”. Afirmam que a domina-
ção efetivada pela burguesia a partir da vitória eleitoral das forças da
direita reacionária se desdobra na ruptura com o Estado de Direito e
na vigência de um modo contemporâneo de dominação que vai além
do neoconservadorismo e, embora incorpore elementos comuns, di-
ferencia-se, também, do fascismo em seu sentido político e em sua
existência clássica.
Encerrando a coletânea, Larissa Pinheiro promove uma impor-
tante reflexão sobre o debate feminista, de raça e sexualidade no Ser-
viço Social. Afirma a necessidade histórica, as conquistas e desafios
postos ao fortalecimento dessas questões como dimensões estratégicas
de enfrentamento e combate ao conservadorismo.
Os dez artigos movimentam, assim, análises fundadas em auto-
res clássicos e contemporâneos, notadamente no universo da tradição
marxista, que nos ajudam a decifrar aspectos das grandes armadilhas
postas pelo sistema do capital em seu processo destrutivo em face da
sua crise estrutural.
Por fim, é importante ressaltar que na convivência acadêmica
com este grupo tive a genuína oportunidade de vivenciar o potencial
emancipatório da produção do conhecimento sob a direção social
crítica, em que sobressai a vitalidade da perspectiva de totalidade na
apreensão e análise da vida social, do Serviço Social e do conjunto de
questões e desafios que temos de enfrentar, aliando a dedicação e o

10
rigor dos estudos com o afeto e o respeito, tão fundamentais para
seguirmos firmes.

Silvana Mara de Morais dos Santos1

Natal, janeiro de 2020

1  Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da


Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Coordenadora do Grupo de Estudos
e Pesquisa em Trabalho, Ética e Direitos (GEPTED-UFRN). E-mail: silufrn@gmil.com

11
Apresentação

Esta coletânea foi idealizada por discentes e docentes durante


a vivência da disciplina Serviço Social: questões contemporâneas, ofertada
no semestre 2018.2 pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social (PPGSS) da Universidade Federal do Rio Grande do Nor-
te (UFRN). Diante das reflexões propiciadas nas aulas, através do
conteúdo programático da referida disciplina, sobre discussões con-
temporâneas que perpassam a realidade social, a formação e o exer-
cício profissional do Serviço Social brasileiro, surgiu a necessidade
de organizar uma produção científica que aglutinasse as reflexões
teóricas dos artigos elaborados pelos discentes e/ou em conjunto
com os docentes do PPGSS/UFRN, objetivando contribuir não só
para a produção de conhecimento do Serviço Social brasileiro, mas
reafirmar a direção teórica crítica que norteia o Projeto Ético-Polí-
tico profissional.
Contemporaneamente, vivenciamos um processo de aprofun-
damento da crise estrutural do capital em detrimento dos direitos
sociais e trabalhistas, além do reavivamento de ideologias conser-
vadoras que disseminam valores e práticas de apologia à violência,
implicando assim reconfigurações das ações do Estado no âmbito
das políticas sociais e econômicas, para garantir as necessidades de
acumulação do capital.
Acreditamos que as reflexões teórico-críticas sobre a realida-
de social brasileira, desenvolvidas nos artigos que compõem esta co-
letânea, a partir de uma perspectiva de totalidade, possam contribuir
para compreender a dinâmica contraditória do aprofundamento da
crise estrutural do capital, bem como as implicações para o mundo
do trabalho, as políticas sociais, as lutas de classes e a diversidade de
gênero e raça que as constituem, a formação e o exercício profissio-
nal do Serviço Social brasileiro.
Neste aspecto, o livro está estruturado em artigos que abor-
dam o trabalho e a questão social numa perspectiva de totalidade;
o conservadorismo na contemporaneidade brasileira; a docência no
ensino superior brasileiro; a formação em Serviço Social; o projeto
ético-político do Serviço Social; e classes sociais, movimentos sociais
e direitos, com análises sobre os desafios, os limites e as possibili-
dades no processo de construção de uma sociedade humanamente
emancipada.
Assim sendo, convidamos todos a refletir sobre as temáticas
debatidas pelo Serviço Social na contemporaneidade e desejamos
uma boa leitura.

As organizadoras

14
Trabalho, pauperismo e serviço social no Brasil
contemporâneo

Liana Amaro Augusto de Carvalho1


Milena da Silva Santos2

Introdução

O artigo ora apresentado tem por objetivo analisar os contor-
nos do trabalho no Brasil, as suas implicações para a classe trabalha-
dora e os desafios para o serviço social brasileiro na contemporanei-
dade. A sociabilidade capitalista tem sofrido mutações substantivas,
através de um redirecionamento econômico, político e ideológico
do capitalismo, em resposta à sua crise econômica. Conforme apon-
ta Meszáros (2009), a crise estrutural do capital desenvolvida no fi-
nal dos anos 1960, se intensifica a partir da década de 1970 e traz
aspectos diferenciados das crises cíclicas, pois seu nível de alcance é
abrangente, mostrando-se longeva, sistêmica e estrutural.
Nesse sentido, as estratégias do Capital ao Estado para reto-
mada do crescimento econômico se deram através da reestruturação
produtiva, da financeirização do capital e da política neoliberal. O
Consenso de Washington de 1989, com a finalidade de conter a crise
econômica que se apresentara e fomentar o desenvolvimento dos
países considerados periféricos – principalmente os países latino-a-
1  Assistente Social. Mestre em Serviço Social – Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (PPGSS/UFRN). E-mail: lianacarvalhoss@hotmail.com
2  Assistente Social. Mestre em Serviço Social – Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (PPGSS/UFRN). E-mail: milena_sso@hotmail.com
mericanos, como é o caso do Brasil –, expressou-se através de me-
didas que priorizaram disciplina fiscal, redução dos gastos públicos,
privatização das estatais e a desregulamentação das leis econômicas
e trabalhistas, baseadas na estratégia de um Estado com mínima in-
tervenção econômica para os gastos públicos, principalmente sociais.
Diante desse contexto, a prática profissional do Assistente So-
cial no Brasil exige levar em conta as mediações que, ao tentar cap-
tar o movimento do real, indo além das aparências das demandas
cotidianas, ajusta as suas estratégias profissionais para dar respostas
contundentes à realidade, de acordo com as necessidades sociais dos
usuários dos serviços prestados. Tal movimento configura-se como
um desafio, levando em consideração as multifacetadas expressões
da “questão social”3 com as quais tal profissional lida nos diversos
espaços socio-ocupacionais que ocupa, além da defesa intransigen-
te de valores adotados pelo projeto ético- político que norteia este
exercício profissional e que vão na contracorrente dos determinantes
estruturais do capital.
Adotamos aqui a perspectiva marxiana de entendimento do
real, na qual o trabalho encontra-se na base da autocriação do ser so-
cial, sendo a mediação fundamental para apreender e captar a lógica
presente no emaranhado das relações sociais próprias desta forma de
sociabilidade, pautada pela existência de classes sociais antagônicas
entre si, representadas pelo conflito entre capital e trabalho. Daí en-
fatizamos que estes elementos se tornam compreensíveis com a uti-
lização do método crítico-dialético, que possibilita ultrapassar a apa-
rência dos fatos e alcançar sua essência, pensando-os concretamente.
A fim de analisar os desdobramentos das medidas receitadas
pelos organismos multilaterais na realidade brasileira há de se con-
siderar as particularidades da formação social do nosso capitalismo,
pois se entende que as feições assumidas pelo trabalho devem ser
apreendidas levando-se em conta, sobretudo, o lugar de dependência
e subalternidade em relação aos países de capitalismo central. Isto
aponta para um aprofundamento sempre crescente dos níveis de ex-
ploração de força de trabalho e a ampliação das cifras de riqueza
produzida, que em boa parte é destinada para fora do país. Para tanto,
abordaremos as transformações recentes pelas quais o país vem pas-
sando, materializadas numa tentativa clara de um verdadeiro desmon-
te dos direitos e garantias do trabalho formal.

3  Por “questão social” se quer indicar o conjunto das mazelas próprias da sociedade burguesa,
ou seja, “o conjunto de problemas políticos, sociais e econômicos que o surgimento da classe
operária impôs no curso da constituição da classe capitalista” (NETTO, 2011, p. 17).

16
No decorrer do texto situaremos inicialmente os contornos
que o trabalho tem assumido no Brasil a partir de uma análise ini-
ciada em 1930, evidenciando a importância deste momento para a
consolidação de uma forma econômica voltada para uma política
de produção interna a partir do modelo de substituição de impor-
tações, passando pelas décadas seguintes e demonstrando os deter-
minantes históricos das transformações que temos contemporanea-
mente. Em seguida, analisaremos as principais consequências destas
mutações, enfocando o aprofundamento do empobrecimento da
classe trabalhadora. E, por último, elencaremos os desafios postos
ao serviço social no contexto contemporâneo.

1 Os contornos assumidos pelo trabalho no Brasil

A primeira onda industrializante no mundo se deu ainda na


segunda metade do século XVIII, em alguns países europeus. Con-
tudo, é apenas nas primeiras décadas do século XX que se colocam
as bases para uma mudança estrutural, no sentido de ampliar a apro-
priação do modo de produção capitalista no Brasil pela forma fabril.
Para uma análise desta monta, é necessário considerar as transfor-
mações externas e internas que contribuíram para a instituição de
um modelo urbano-industrial no Brasil a partir de 1930, atentando
para as particularidades que o trabalho assume nesse contexto e as
suas consequências.
De acordo com Fernandes (2005), foi naquele momento que a
indústria passou a ser o setor-chave da dinâmica econômica do país,
representando uma verdadeira inflexão por demarcar a conexão en-
tre a dominação burguesa e a transformação capitalista, na transição
do capitalismo concorrencial para o monopolista. Portanto,
O elemento central da alteração foi, naturalmente, a emergên-
cia da industrialização como um processo econômico, social e
cultural básico, que modifica a organização, os dinamismos e a
posição da economia urbana dentro do sistema econômico bra-
sileiro [...]. Esse processo não modifica, apenas, os dinamismos
econômicos, socioculturais e políticos das grandes cidades com
funções metropolitanas. Ele acarreta e, em seguida, intensifica a
concentração de recursos materiais, humanos e técnicos em tais
cidades, dando origem a fenômenos típicos de metropolização
e de satelitização sobre o capitalismo dependente (FERNAN-
DES, 2005, p. 346).

17
Obviamente, esse processo se deu satisfazendo o caráter dupla-
mente articulado da nossa economia periférica, isto é, preservando as
bases imperialistas de dominação pela relação de dependência e de
subdesenvolvimento e obedecendo à apropriação dual do excedente
produzido pelos “de dentro” e os “de fora”.
Por esta ocasião, a economia mundial acabava de vivenciar um
episódio de crise cíclica, talvez a de maior envergadura da história do
capital, na qual a Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929 quebra e,
em efeito dominó, provoca um abalo na economia dos países de ca-
pitalismo avançado, relacionada à superprodução e ao subconsumo.
No Brasil, do ponto de vista econômico, esta crise provocou uma
convulsão interna, pois o café produzido, que dependia quase que
exclusivamente da exportação para os países centrais, tornou-se uma
mercadoria sem escoamento, sendo necessária uma nova estratégia
para reanimar a economia.
A partir do contexto que se desenhava no capitalismo global, o
Estado brasileiro começou a intervir na economia com o objetivo de
criar condições para a inserção do modelo urbano-industrial, pela via
da substituição de importações, retirando a centralidade do modelo
agroexportador. Nesta fase, deu o início do processo de consolidação
do mercado de trabalho brasileiro, com a expectativa do predomínio
do assalariamento formal, bem como a formação de força de traba-
lho excedente. Operou-se então uma forte intervenção do Estado
através da fixação de preços, da distribuição de ganhos e perdas en-
tre os grupos capitalistas, do gasto fiscal e até mesmo da esfera da
produção. É dessa forma que até a década de 1950 consolida-se uma
indústria pesada no Brasil (OLIVEIRA, 2003).
Se até então as atividades agrícolas estavam baseadas na explo-
ração intensa de força de trabalho, realizada por modalidades consi-
deradas “primitivas”, mediante a produção de gêneros alimentícios
que eram vendidos tendo como base o custo de reprodução da for-
ça de trabalho rural, é a modernização urbano-industrial que ela be-
neficiará, viabilizando um extraordinário crescimento da indústria e
dos serviços. Ou seja, na nossa particularidade, a relação com o que
era considerado primitivo tornou-se condizente com os objetivos da
acumulação industrial, pois além de fornecer força de trabalho rural,
que formaria um expressivo exército industrial de reserva, proveu um
excedente de alimentos que compunha a dieta do trabalho urbano-
-industrial.
Oliveira (2003) alega que nesta disparidade entre o modelo ur-
bano-industrial e o modelo agrícola é que se encontra a raiz da con-
centração de renda do país. E explica:

18
[...] o preço da oferta da força de trabalho urbana se compunha
basicamente de dois elementos: custo da alimentação – deter-
minado pelo custo da reprodução da força de trabalho rural ‒ e
o custo de bens e serviços propriamente urbanos; nestes, pon-
derava fortemente uma economia de subsistência urbana [...],
tudo forçando para baixo o preço da oferta da força de trabalho
urbana e, consequentemente, os salários reais. Do outro lado, a
produtividade industrial crescia enormemente, o que, contra-
posto ao quadro de força de trabalho e ajudado pelo tipo de
intervenção estatal descrito, deu margem à enorme acumulação
industrial nas últimas três décadas (OLIVEIRA, 2003, p. 46).

Sem dúvida, a questão do salário mínimo no Brasil constitui


um aspecto importante. Ele foi criado em 1936, no governo de Ge-
túlio Vargas, como uma tentativa de homogeneização da força de
trabalho no Brasil, nivelando-a “por baixo”. Isto porque, além de se
tornar um denominador comum, sua instituição forneceu uma base
que rebaixou o preço da força de trabalho, qualificada ou não, à sua
subsistência, isto é, considerando como base de cálculo apenas as
necessidades de reprodução biológica do trabalhador e da sua famí-
lia, sem levar em conta as suas necessidades histórico-sociais além
da sobrevivência e deixando de lado a incorporação dos ganhos de
produtividade do trabalho.
Segundo Marini (2000), as funções que os países da Améri-
ca Latina cumpriram na economia capitalista mundial contribuíram
para que o eixo da acumulação se deslocasse da produção de mais-
-valia absoluta4 para relativa5, uma vez que as economias centrais
passaram a explorar menos o trabalhador diretamente, ou seja, uti-
lizando-se menos da extensão da jornada de trabalho, e apostou-se
no aumento da capacidade produtiva do trabalho pelo uso de má-
quinas e tecnologias.
4  A mais-valia absoluta pode ser obtida através de uma redução absoluta do salário do
trabalhador, de duas formas: reduzindo o salário sem alterar o tempo da jornada de
trabalho, ou aumentando a jornada de trabalho sem aumentar o salário.
5  A mais-valia relativa pode ser obtida através da redução do valor do salário. Há duas
formas de se fazer isso, a primeira é reduzir o tempo de trabalho socialmente necessário
para produzir o salário fazendo com que reprodução da força de trabalho se torne mais
barata, em larga escala, pode-se fazer isso através do processo de industrialização (os itens
de primeira necessidade ficam mais baratos, fazendo com que o capitalista possa reduzir
o salário do trabalhador ao estritamente necessário para sua reprodução), para isso não é
necessário qualquer investimento do capitalista na unidade produtiva; a segunda forma é
o investimento em tecnologia cada vez mais avançada, conseguindo produzir mais riqueza
num tempo cada vez menor. Porém, para esta forma, é necessário um grande investimento
em capital constante.

19
Parece ser inegável que o desenvolvimento latino-americano se
assenta numa base de exploração exponenciada da força de trabalho.
No Brasil, especificamente, observamos que há, em concomitância
com a produção de mais-valia relativa, uma articulação com a pro-
dução de mais-valor absoluto, principalmente pela intensificação da
jornada de trabalho, norteando os níveis de acumulação auferidos.
Retomaremos logo mais a esse debate.
Por ora importa destacar que aos poucos, o governo brasileiro
forneceu as bases para assegurar o controle da força de trabalho pela
via do consenso. Em 1930 Getúlio Vargas criou o Ministério do Tra-
balho, Indústria e Comércio e o salário mínimo com base na cesta bá-
sica brasileira. Mais tarde, no período do Estado Novo (1937-1946),
instituiu a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) pelo decreto-lei
nº 5.452, de 1º de maio de 1943. A legislação trabalhista brasileira
promoveu estratégias de regulação da relação entre capital e trabalho,
em face das necessidades da nova forma de acumulação que se ins-
taurava no país. Assim, “a regulamentação das leis de trabalho operou
a reconversão a um denominador comum de todas as categorias, com o que,
antes de prejudicar a acumulação, beneficiou-a” (OLIVEIRA, 2003,
p. 38-39, grifos do autor).
No governo de Juscelino Kubitscheck (1956-1961), a proposta
era que o país tivesse um crescimento acelerado, de “cinquenta anos
em cinco”, mediante a implantação da indústria de base. Esta foi uma
tentativa política de forçar a aceleração da acumulação por meio da
incorporação de tecnologia, levando ao aprofundamento do endi-
vidamento com o capital externo. Obviamente, foi necessária uma
exploração expressiva da força de trabalho para se chegar a este fim.
Uma vez que o custo de reprodução do trabalhador passa a ser
o do consumo dos bens produzidos pela indústria, desruralizando-se,
ocorre um desequilíbrio entre o consumo e o valor do salário, pois
o salário real não chega a cobrir o custo da reprodução da força de
trabalho. Isto evidencia um processo de empobrecimento à medida
que se registra um aumento expressivo da taxa de exploração da for-
ça de trabalho e uma consequente queda do valor desta, mediante o
salário nominal.
Na verdade, a conjuntura mundial dos “anos dourados”6
do capitalismo alargou a produção e a expansão capitalista em nível

6  Os “anos dourados” do capitalismo, foi um período de aumento da taxa de lucratividade


em nível global, ocorrido nas décadas de 1940, 1950 e 1960. O Padrão de produção taylo-
rista/fordista, juntamente com a política keynesiana, contribuíram para aquela conjuntura
propícia a expansão da extração do trabalho excedente.

20
mundial, viabilizando uma conjuntura política interna que conciliou
a oferta de empregos com o arrocho salarial, ao gosto da hegemonia
americana e do capital externo. Enquanto os países europeus viviam
o Welfare State7, na tentativa de demonstrar que o capitalismo conse-
guia equalizar níveis de democracia com o crescimento econômico,
o Brasil, assim como outros países da América Latina, era governa-
do por regimes ditatoriais. O período é conhecido pela expansão
da produtividade, a modernização da economia e a entrada massiva
do capital estrangeiro através da facilitação do Estado, obedecendo
a tendência globalmente posta de retomada econômica pelo pacto
keynesiano fordista. Na verdade, o regime autocrático erigido a par-
tir do golpe civil-militar de 1964 resultou na perseguição e morte de
milhares de protagonistas políticos, muitos deles, desaparecidos até
os dias de hoje, pois politicamente, diante das tentativas equivoca-
das de socialismo real8, sobretudo no segundo pós-guerra, fazia-se
necessária uma ação preventiva por parte do Estado para conter a
difusão das ideias socialistas na periferia do mundo.
Nos anos que se seguiram ao esgotamento dos “anos de
ouro”, instaurou-se outra crise que assombrou o mercado petro-
lífero e expandiu-se pelo mundo. Esta crise, a partir de 1970, arre-
feceu a economia capitalista, que recorreu paulatinamente a novas
estratégias a fim de revigorá-lo, como a reestruturação produtiva e
inserção do toyotismo, em gradual substituição do pacto fordista/
keynesiano, e a inserção do neoliberalismo como ideologia política,
econômica e social, reivindicando um Estado mínimo, como disse-
mos de início.
As mudanças de cunho neoliberal, pautadas principalmen-
te pelo ajuste fiscal e a redução dos  gastos públicos, produziram
consequências desastrosas, sobretudo pela desconstrução dos direi-
tos e garantias sociais da classe trabalhadora. Conformou-se “uma
redivisão social e internacional do trabalho e uma relação centro/
periferia diferenciados do período anterior, combinada ao proces-
7  Welfere State ou Estado de bem-estar social, foi um fenômeno característico do período
dos “anos dourados” do capitalismo, no qual os governos de alguns países europeus imple-
mentaram políticas sociais mais universalizantes. O que só foi possível devido ao aumento
da taxa de lucratividade por meio da maior extração de mais-valia absoluta nos países
periféricos e de mais-valia relativa nos países centrais do capitalismo.
8  Nos referimos aqui às experiências que, tentando implementar o que Marx chama de so-
cialismo científico, esbarraram em equívocos expressivos que distorceram a ideia original,
fazendo emergir experiências equivocadas de socialismo. O “socialismo real” foi legitima-
do a partir do marxismo-leninismo, cujas similaridades com o pensamento marxiano são
apenas terminológicas.

21
so de financeirização” (BEHRING & BOSCHETTI, 2008, p. 124).
Tem-se, portanto, internamente, a partir de meados dos anos 1980,
o esgotamento do projeto de industrialização nacional massiva e
um contingente populacional de força de trabalho disponível ainda
maior.
Mesmo considerando que a Constituição Brasileira de 1988
tenha sido promulgada com base em ideais democráticos e universa-
listas, conferindo formalmente ao povo brasileiro amplos ganhos no
campo dos seus direitos civis, sociais e políticos, a articulação entre a
chamada “globalização”, com o “neoliberalismo” demonstrou que o
capital não tem nenhum compromisso com o âmbito social (NET-
TO, 2011). Nesse sentido, o que foi preconizado no texto constitu-
cional passa a padecer de efetivação diante do contexto que se ins-
taurou sobretudo na década seguinte, com os governos de Fernando
Collor (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
Desse modo, o Brasil dos anos de 1990 pode ser caracterizado
pela “[...] estagnação do crescimento econômico e a precarização e a
instabilidade do trabalho, o desemprego, o rebaixamento do valor da
renda do trabalho, com a consequente ampliação e o aprofundamen-
to da pobreza, que se estende inclusive aos setores médios da socie-
dade” (GIOVANNI; SILVA; YAZBEK, 2007, p. 23). Além disso, a
instituição do real como moeda reduziu as taxas da inflação, mas isto
não resultou em políticas distributivas. Assim, “transitou-se ‘da po-
breza da inflação’ à ‘inflação da pobreza’, do ‘fim da inflação da moe-
da’ à retomada da ‘inflação da dívida’” (IAMAMOTO, 2010, p. 150).
Em suma, compreendemos que os ajustes impostos pelo recei-
tuário de Washington, fomentando a implantação do neoliberalismo
como política macroeconômica, são expressão da relação imperia-
lista dos países capitalistas centrais para com os países periféricos.
Como já era de se esperar, o ônus destas transformações recaiu, so-
bretudo, nestes últimos. As exigências do grande capital passaram a
girar em torno da globalização da economia e do seu conjunto de
mistificações, identificadas principalmente com a emersão do capital
financeiro e com os fenômenos de flexibilização, desregulamentação
e privatização.
Outrossim, Chossudovsky (1999) afirma que o ajuste estrutural
levou centenas de pessoas ao empobrecimento, operando uma ver-
dadeira “globalização da pobreza”. Para esse autor, o debate se situa
em torno das consequências dos acordos econômicos que regem a
geopolítica global nos países do antigo terceiro mundo, sobretudo
na América Latina e nos países da antiga União Soviética, causando
a tutela da economia pelo capital financeiro, a destruição das econo-

22
mias nacionais, o enfraquecimento das moedas, a dolarização dos
preços e a distorção das causas da pobreza no mundo, assim como
à manipulação dos números sobre o fenômeno.
No ano de 2003, com o fim da gestão de Fernando Henri-
que Cardoso, iniciou-se o governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Os
governos lulistas9 se estenderam até o ano de 2016, com o quarto
mandato interrompido pelo impeachment de Dilma Rousseff, como
consequência de um golpe jurídico institucional10 por ocasião da re-
cessão econômica que se instaurara com mais força. Com a inserção
do Brasil principalmente a partir do ano de 2013 no circuito da crise
mundial deflagrada desde 2008, a estabilidade econômica – susten-
tada em geral pelo aumento do salário mínimo sensível, aumento de
empregos de até 1,5 salário mínimo e a ampliação dos programas
de transferência de renda – que em muito contribuiu para o apare-
cimento de uma suposta “nova classe média”11, cedeu lugar a uma
conjuntura difícil, perpassada por amplos retrocessos no campo dos
direitos do trabalho.
9  Termo cunhado pelo cientista político e jornalista brasileiro André Singer em tese de
livre docência sob o título Os sentidos do Lulismo (ver referências).
10  Para Mascaro (2018) é possível compreender esse debate a partir de três elementos
articulados entre si: a ordem econômica, respeitando a relação entre modo de produção
e formação social; a ordem política materializada na figura do Estado e a ordem jurídica.
Depois do ano de 2008, quando o mundo entra no processo de deflagração da última crise
conhecida, o Brasil era um mercado promissor a se conquistar e os governos do PT apa-
receram como um obstáculo para isso. Alegando uma insuficiência estatal que continuava
sendo incapaz de gerir e administrar uma estrutura interna coesa, articulando burguesia
nacional e internacional para garantir a regulação capitalista e os níveis de acumulação,
partidos de esquerda e movimentos sociais passaram a defender as instituições estatais, a
ampliação pela inclusão pelo consumo, a legalidade, a república e a democracia, utilizando
os instrumentos da sua classe opositora como armas para lutar numa conjuntura de cri-
se, revelando contradição. Por mais que a bonança dos governos lulistas tenha oferecido
um limite a crise que circundava o país, principalmente pela estratégia do fortalecimento
do mercado interno, da qual a ampliação dos programas de transferência de renda são
parte inequívoca, as jornadas de junho de 2013 acenaram a entrada definitiva do país na
conhecida crise de 2008, o que desembocou numa crise política estatal, tornando o poder
judiciário forte protagonista do processo. Essa determinação econômica encontrou esteio
na sobredeterminação jurídica reclamada pela crise, garantindo o direcionamento e a ma-
nutenção do golpe desferido em 2016, mas gestado desde 2013. Esse foi, portanto, um
golpe de classe, que promoveu não apenas um rearranjo da concorrência entre as frações
internas e externas do capital, mas, ainda, um golpe da classe burguesa contra as classes
trabalhadoras, articulando a forma política estatal e o judiciário em nome dos anseios do
grande capital, garantindo a acumulação.
11  Sobre o debate da chamada “nova classe média” ver Pochmann, 2012.

23
Com a saída de Dilma Rousseff da presidência, Michel Temer
assume o poder, eleito como vice-presidente do último mandato do
PT, apesar de ser do MDB. Temer ficou no poder até o ano de 2018,
mas a sua breve passagem pela presidência teve efeitos destrutivos
para os direitos dos trabalhadores, através do aprofundamento das
estratégias neoliberais no país. E nesse contexto recente a legislação
trabalhista brasileira, enquanto garantia jurídico-formal desses direi-
tos, vem sendo desconstruída à medida que avançam as crescentes
exigências e pressões do sistema global sobre a economia nacional.
Uma prova cabal desta última alegação foi a aprovação da
Emenda Constitucional nº 95, ainda no ano de 2016, no governo
Temer. Tal medida instituiu o congelamento dos gastos públicos por
vinte anos, com o objetivo de equilibrar as contas públicas12, afetando
principalmente a operacionalização das políticas de saúde e educação.
Para a OXFAM (2017)13, a austeridade no Brasil é uma série violação
de direitos, contradizendo a Constituição Federal, de modo que “a
EC 95, em particular, não é um plano de estabilização fiscal, mas
um ataque aos direitos humanos dos brasileiros – em especial, das
mulheres, dos negros e daqueles em maior risco de pobreza – o que
aumenta a desigualdade social e econômica” (p. 7).
Além disso, foi sancionada a lei nº 13.429, em março de 2017,
também conhecida como nova lei da terceirização, alterando os dis-
positivos da Lei no 6.019, de 1974, sobre o trabalho temporário. Pela
legislação anterior, os trabalhadores que exercessem as mesmas fun-
ções dos contratados em regime CLT deveriam receber os mesmos
benefícios. Além disso, por Jurisprudência do Tribunal Superior do
Trabalho só era possível terceirizar atividades meio, e pelo período
máximo de até noventa dias. Com a nova lei qualquer atividade pode
ser terceirizada. A empresa prestadora de serviços não tem a obriga-
ção de garantir aos seus funcionários terceirizados os mesmos benefí-
cios que os demais, mesmo em exercício do mesmo cargo14. Outros-
sim, os contratos passam a ter 180 dias e poderão ser prorrogados
por mais 90 dias. Em suma, a nova lei aumentou a precariedade dos

12  Informações disponíveis em https://www12.senado.leg.br/noticias/mate-


rias/2016/12/15/promulgada-emenda-constitucional-do-teto-de-gastos. Acesso em 10 de
outubro de 2019.
13  Informações disponíveis em: https://oxfam.org.br/projetos/direitos-humanos-em-tem-
pos-de-austeridade/. Acesso em 10 de outubro de 2019.
14  Informações disponíveis em: https://www.xerpa.com.br/blog/temer-sanciona-a-lei-
-da-terceirizacao-veja-as-mudancas-para-as-empresas-e-os-trabalhadores/. Acesso em 10 de
outubro de 2019.

24
vínculos, estendeu o tempo do contrato e possibilitou a terceiriza-
ção de atividades fim.
Para o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos
Socioeconômicos (DIEESE) a nova lei de terceirização reforça a
lógica arcaica das relações de trabalho brasileiras, relacionando-se
diretamente com uma ampliação da precarização. Assim, através da
terceirização,
[...] do ponto de vista econômico, as empresas procuram otimi-
zar seus lucros pelo crescimento da produtividade, pelo desen-
volvimento de produtos com maior valor agregado ‒ com maior
tecnologia ‒ ou ainda devido à especialização dos serviços ou
produção. Buscam, como estratégia central, otimizar seus lucros
e reduzir preços, em especial, por meio de baixíssimos salários,
altas jornadas e pouco ou nenhum investimento em melhoria
das condições de trabalho, que passam a ser de responsabilidade
da subcontratada. Do ponto de vista social, podemos afirmar
que a grande maioria dos direitos dos terceirizados é desrespei-
tada, criando a figura de um “trabalhador de segunda classe”,
com destaque para as questões relacionadas à vida dos trabalha-
dores (as), aos golpes das empresas ‒ que fecham do dia para a
noite e não pagam as verbas rescisórias aos seus trabalhadores
empregados ‒ e às altas e extenuantes jornadas de trabalho. As
empresas terceirizadas abrigam as populações mais vulneráveis
do mercado de trabalho: mulheres, negros, jovens, migrantes e
imigrantes [...]. A empresa terceira gera trabalho precário e, pior,
com jornadas maiores e ritmo de trabalho exaustivo, acaba, na
verdade, por reduzir o número de postos de trabalho [...]. A
terceirização está diretamente relacionada com a precarização
do trabalho (2014, p. 9).

Mais tarde, ainda em 2017, houve também a aprovação da Lei


13.467, que alterou a CLT em vigência desde 1943. Para justificar
a famigerada reforma trabalhista, alegou-se que o mercado de tra-
balho no Brasil apresentava disparidade com a legislação anterior,
sendo esta incompatível com os níveis de desemprego, decorrentes
da crise econômica enfrentada pelo país desde 2008.
As principais mudanças15 advindas da reforma referiram-se às
novas modalidades de trabalho, ao regime de férias e à jornada de
trabalho. As novas modalidades de trabalho foram inseridas, como
a intermitente, na qual os contratos passam a ser firmados por hora
de serviço; o parcial, com jornada semanal de até 30 horas; o autô-
nomo exclusivo, pelo qual o trabalhador poderá prestar serviço para

15  Informações disponíveis em https://www.serasaconsumidor.com.br/ensina/dicas/


reforma-trabalhista/. Acesso em 10 de outubro de 2019.

25
uma empresa de forma exclusiva e contínua sem que se configure
o vínculo empregatício; e o home office, com livre negociação entre
empregado e empregador a respeito das responsabilidades e remune-
ração. Sobre o regime de férias, o trabalhador poderá ter o período e
a respectiva remuneração fracionada em três parcelas. Em relação à
jornada de trabalho respeita-se a determinação constitucional formal
de não ultrapassar quarenta e quatro horas semanais. No entanto, o
intervalo do expediente maior de seis horas se tornou negociável,
com no mínimo trinta minutos de duração. Além disso, deixam de
ser considerados como parte da jornada de trabalho atividades como
higiene pessoal, alimentação e estudos. De modo geral, tem-se que
o negociado prevalece sobre o legislado, de maneira que os acordos
coletivos poderão ser diferentes do que estabelece a nova CLT.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IB-
GE)16, no mês de agosto de 2019, a taxa de desemprego no país teve
uma pequena queda em comparação ao trimestre anterior, passando
de 12,5% para 11,8% da população economicamente ativa. Para o
órgão, este resultado se deve principalmente à ampliação das ocupa-
ções informais. Aproximadamente dois anos depois da aprovação da
nova lei de terceirização e da reforma trabalhista podemos dizer que,
de maneira geral, ainda não se observam os efeitos previstos pelos
seus preconizadores. O que se tem são pífios efeitos nos índices de
desemprego, mediante o avanço de ocupações precárias.
Recentemente, com o governo de Jair Messias Bolsonaro, ou-
tras medidas concernentes ao trabalho têm sido adotadas. A mini
reforma trabalhista, instituída pela lei 13.874, de setembro de 2019,
preconizou a declaração dos direitos da liberdade econômica, com o
objetivo de reduzir a burocracia nas atividades econômicas, gerando
segurança jurídica ao patronato e novos empregos, aprofundando a
inserção dos ditames neoliberais no país. As principais mudanças17
instituídas foram: a liberação de horários de funcionamento dos es-
tabelecimentos, inclusive em domingos e feriados, sem que para isso
esteja sujeita a cobranças ou encargos adicionais; os registros de pon-
to passam a ser obrigatórios para empresas com mais de vinte fun-
cionários, permitindo-se o registro de ponto por exceção à jornada

16  Informações disponíveis em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/eco-


nomia/2019/08/30/internas_economia,779944/taxa-volta-a-cair-mas-desemprego-atinge-
-12-6-milhoes-de-brasileiros.shtml. Acesso em 10 de outubro de 2019.
17  Informações disponíveis em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/09/20/
entenda-o-que-muda-com-a-lei-da-liberdade-economica.ghtml. Acesso em 10 de outubro
de 2019.

26
regular de trabalho, mediante acordo individual ou coletivo com o
empregador; e dispensa do alvará de funcionamento para empresas
que oferecem baixo risco.
No mês de novembro do ano de 2019 também foi sancio-
nada a Medida Provisória nº 905, instituindo novas alterações na
legislação trabalhista, previdenciária e tributária, bem como o con-
trato verde e amarelo, como uma nova modalidade de contratação
de trabalho, voltada especificamente para brasileiros entre dezoito e
vinte e nove anos de idade, inseridos em novos postos de trabalho.
Em geral, podemos citar como principais mudanças a possibilidade
de trabalho aos domingos e feriados, inclusive para o magistério, e
a não obrigatoriedade de registro profissional para várias categorias
profissionais.
Diante do exposto, percebemos que a EC 95/2016, a nova lei
da terceirização, a reforma trabalhista de 2017, a mini reforma de
2019 e a MP 905, têm evidenciado um aprofundamento do modelo
político e econômico neoliberal no Brasil. A partir disso, constata-se
um processo paulatino de desconstrução do trabalho formal, com
a proliferação de normatizações que fomentam em larga escala as
formas terceirizadas, marcadas pelo empreendedorismo, cooperati-
vismo, livre negociação entre empregado e empregador e apelo ao
trabalho informal e desprotegido. Sem dúvida, estas transformações
levam a uma precariedade ainda maior das condições de trabalho
de milhares de trabalhadores no país, bem como à redução drástica
dos seus direitos em nome do bom andamento do mercado interno,
resguardando os interesses do Estado e do patronato, viabilizando o
seu objetivo maior: amplas e crescentes taxas de lucro.
Como avalia Pochmann (2008), dos anos 1990 até a contem-
poraneidade o trabalho no Brasil passou a se caracterizar pelo de-
sassalariamento, precariedade e desemprego. Diferente de outros
países, o Brasil não constituiu um sistema público de emprego, com
medidas para o mercado formal e informal de trabalho. As consequ-
ências desse processo são de várias ordens. Entre elas, destacamos o
aprofundamento dos níveis de pauperização dos trabalhadores bra-
sileiros, sobre o qual trataremos a seguir.

2 O pauperismo no Brasil

As concepções acerca do fenômeno da pobreza não são unívo-


cas. Tal discussão abre um leque vasto de diferentes posicionamentos e

27
conceitos, pois não existe um parâmetro único para identificar o que é ser
pobre. Internacionalmente, o que se verifica são tentativas de aproxima-
ção pela utilização de análises quantitativas, através de índices ou cálculos
que levem em conta diferentes indicadores.
Nas produções científicas, sobretudo nas de cunho liberal, parece
consensualmente aceita a visão pela qual a pobreza é entendida como
ausência de renda, na qual a linha de pobreza ou de extrema pobreza,
também denominada como linha de indigência, determinada pela renda
do indivíduo ou expressa em frações do salário mínimo vigente. No Bra-
sil, como preconiza a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) de
2004, as linhas de pobreza estabelecidas são baseadas nas frações do sa-
lário mínimo, utilizando-se o critério da renda. A linha de pobreza é de ½
salário mínimo per capita, e a de extrema pobreza, de ¼ do mesmo salário.
De acordo com a perspectiva que norteia esta exposição, a po-
breza característica do modo de produção capitalista, denominada por
Marx de pauperismo, constitui uma expressão do desenvolvimento do
próprio capital. A interpretação marxiana acerca do referido fenômeno
incorpora a luta de classes numa perspectiva de totalidade, de forma que
o pauperismo está diretamente associado ao conflito entre capital e tra-
balho e aparece como elemento resultante da relação social que se repro-
duz na acumulação capitalista. Em outros termos, através da capacidade
própria do trabalho humano de criar valor, o trabalhador começa a so-
frer um processo de pauperização ainda no âmbito da produção, pois “o
trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz [...]”
(MARX, 2001, p. 111). Assim, a pauperização da classe trabalhadora não
aparece como um fenômeno isolado, mas remete a um processo iniciado
ainda sob a lógica da produção de mercadorias, uma vez que a arquitetura
do trabalho é determinante para os níveis de empobrecimento de uma
sociedade.
Isto nos leva a analisar esta nova forma de pobreza, que é caracte-
rística da sociabilidade capitalista, como uma das primeiras expressões da
“questão social”, uma vez que esta pobreza tem uma determinação social
e não mais é resultado apenas de possibilidades produtivas. Pela primeira
vez na história da humanidade a pobreza não é mais resultante da escas-
sez e nem do baixo desenvolvimento das forças produtivas. Ao contrário,
em meio a abundância de produção, aqueles que realizam a produção
social pouco tem acesso aquilo ao que produzem (NETTO, 2011).
Como visto anteriormente, a análise acerca dos efeitos que a acu-
mulação exerce sobre o destino da classe trabalhadora aparece no edifício
teórico marxiano especificamente na Lei Geral da Acumulação Capitalis-
ta, situada no capítulo XXIII de O Capital, quando Marx discorre sobre
esta tendência sócio histórica e examina a influência que o aumento do

28
capital exerce sobre a classe trabalhadora. A referida lei afirma que
Quanto maiores forem a riqueza social, o capital em funcionamen-
to, o volume e o rigor de seu crescimento e, portanto, também a
grandeza absoluta do proletariado e a força produtiva de seu tra-
balho, tanto maior será o exército industrial de reserva. A força de
trabalho disponível se desenvolve pelas mesmas causas da força ex-
pansiva do capital. A grandeza proporcional do exército industrial
de reserva acompanha, pois, o aumento das potências da riqueza.
Mas quanto maior for esse exército de reserva em relação ao exér-
cito ativo de trabalhadores, tanto maior será a massa de superpopu-
lação consolidada, cuja miséria está na razão inversa do martírio do
seu trabalho. Por fim, quanto maior forem as camadas lazarentas
da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior
será o pauperismo oficial. Essa é a lei geral, absoluta, da acumulação
capitalista. (MARX, 2013, p. 719-720, grifos do autor).

Portanto, compreende-se que a acumulação do capital não im-


pacta a classe trabalhadora apenas pelo desemprego, ao ter sua força
de trabalho dispensada do âmbito produtivo fomentando a existência
de uma superpopulação relativa, mas também pelo pauperismo, que
pode se expressar de forma absoluta ou relativa18. Para Marx, há um
empobrecimento absoluto quando há uma queda geral das condi-
ções de vida da classe trabalhadora, advinda da baixa dos salários,
18  De acordo com Marx (2013), o empobrecimento absoluto ou relativo concer-
ne à parte do valor que cabe ao trabalhador no processo de produção de riqueza.
É, pois, pela forma de extração de mais valia, tendo em vista a delimitação entre
o tempo de trabalho necessário e o excedente da jornada de trabalho, que de-
termina a forma de empobrecimento que este trabalhador irá sofrer. O tipo de
pauperização está diretamente ligado à forma da exploração do trabalho. Para
que obtenha um volume maior de excedente, o capitalista pode fazê-lo de duas
formas: absoluta ou relativa. Segundo Netto & Braz (2008), a primeira forma se
dá pela ampliação da jornada, conservando a mesma duração do tempo de tra-
balho necessário e estendendo o tempo de trabalho excedente, sem alteração do
salário. Uma forma especial de proceder à extração de mais valia absoluta consiste
na intensificação do ritmo de trabalho sem a alteração do tempo da jornada. A
forma relativa dá-se pela redução do tempo de trabalho necessário à formação do
salário em detrimento do aumento do tempo de trabalho responsável pela for-
mação do excedente, pela via da introdução de novas tecnologias. Isso acaba por
desvalorizar a força de trabalho, fazendo com que caia também o valor dos bens
necessários à sua reprodução. Se a forma de proceder ao incremento da mais valia
for absoluta, logo se tem uma pauperização do mesmo tipo. Esta relação também
é verdadeira quanto à forma relativa. Se se procede a uma extração relativa de
mais-valor, ocorre da mesma forma um empobrecimento relativo. A diferença
entre ambas é que a forma relativa aparece com uma menor obviedade neste pro-
cesso de exploração, sobretudo por utilizar as inovações tecnológicas a seu favor.

29
dos padrões de alimentação e moradia, do aumento do desemprego,
assim como pela intensificação do ritmo de trabalho. Outrossim, a
pauperização relativa ocorre quando a parte da riqueza produzida
pelo trabalhador torna-se proporcionalmente menor em relação ao
total de valores produzidos. Este é um processo no qual se aumenta
a distância entre o montante de valores criados e a parcela de riqueza
da qual este produtor se apropria.
A partir da contribuição marxiana e pela tendência historica-
mente dada, é possível verificar que a forma predominante de ex-
tração de mais-valia no modo de produção capitalista é a relativa,
em detrimento do crescimento das organizações operárias e de seu
amadurecimento político (NETTO & BRAZ, 2008). A forma rela-
tiva tende a ser evidenciada não apenas pela incorporação de novas
tecnologias ao processo produtivo – que obviamente facilitam e po-
tencializam a extração do sobretrabalho – mas também pelas formas
de resistência do operariado, expressas pela sua organização política
e sindical, ao procedimento absoluto.
Atentemos agora especificamente ao pauperismo na realidade
brasileira. Segundo a Fundação Getúlio Vargas, a chamada Classe C
correspondia em 2010 a aproximadamente 95 milhões de brasileiros.
Isto equivalia naquele momento a 50,5% da população do país. No fi-
nal de 2015, o jornal O Estadão estampou que os 3,3 milhões de famí-
lias brasileiras que haviam ascendido à classe C voltaram a despencar
para as classes D e E. Ainda segundo a referida fonte, esta migração
ao estrato de origem deve-se ao fato do fechamento de vagas, com
uma alta impressionante do desemprego, restrições e encarecimento
do crédito, assim como ao fato de que o salário médio real que parou
de subir.
A síntese de Indicadores Sociais do ano de 201719 publicada
pelo IBGE alegou que aproximadamente 25,4% da população do
país, o equivalente a 50 milhões de brasileiros, vivia naquele momen-
to na linha de pobreza. As regiões mais atingidas eram a Norte e a
Nordeste, correspondendo a aproximadamente 43,5% da população.
Para o Banco Mundial, em 2019 a estimativa total de pessoas
na miséria no Brasil quase dobrou em relação ao período de 2014
a 2017, saindo de 5,6 para 10.1 milhões de pessoas, totalizando um
salto percentual de 15,4 para 23% de extremamente pobres20. Dados

19  Publicação disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/bibliote-


ca-catalogo?view=detalhes&id=2101459. Acesso em 10 de maio de 2019.
20  Informações disponíveis em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/04/crise-
-empurra-74-milhoes-de-brasileiros-para-pobreza-segundo-dados-do-banco-mundial.shtml.

30
do Cadastro Único do Ministério da Cidadania21 referentes ao mês
de agosto do ano de 2019 já mostram que o quantitativo em pobreza
extrema no país atinge aproximadamente 13,2 milhões de pessoas,
com um aumento de aproximadamente 500 mil pessoas na miséria
comparado aos sete últimos anos. A região nordeste aparece com a
maior incidência, principalmente nos estados do Piauí, Maranhão e
Paraíba, respectivamente.
O IBGE, através da Pesquisa Nacional por Amostra de Do-
micílios (PNAD Contínua) divulgou no mês de outubro de 2019
que a média salarial de metade das famílias brasileiras é de R$413,00
mensais, isto é, aproximadamente meio salário mínimo. Para a pes-
quisa os altos índices de desemprego e informalidade são os res-
ponsáveis por este cenário, uma vez que as ocupações informais
cresceram aproximadamente 500% de 2015 a 201822, enquanto os
trabalhadores sem carteira assinada somam o quantitativo recorde
de 11,8 milhões de trabalhadores no país23.
Ainda, de acordo com o brasileiro José Graziano, diretor geral
da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agri-
cultura (FAO), o Brasil pode ter tido na ampliação do desemprego
um motivo consistente para voltar a fazer parte do chamado Mapa
da Fome24. Acresce-se a isso o fato de que no mesmo ano, segundo
o Ministério da Saúde, 5.653 pessoas morreram de desnutrição no
Brasil, conformando uma média de mais de 17 pessoas que morrem
de fome por dia25.
Já de acordo com o Departamento Intersindical de Estatís-

Acesso em 10 de outubro de 2019.


21  Informações disponíveis em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/
brasil/2019/08/14/interna-brasil,777032/miseria-extrema-no-pais-cresce-e-atinge-
-13-2-milhoes-de-brasileiros.shtml. Acesso em 10 de outubro de 2019.
22  Informações disponíveis em: https://noticias.r7.com/economia/metade-dos-brasilei-
ros-vive-com-apenas-r-413-por-mes-mostra-ibge-16102019. Acesso em 16 de outubro de
2019.
23  Disponível em: https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noti-
cia/2019/10/31/trabalhadores-sem-carteira-somam-recorde-de-118-milhoes-aponta-ib-
ge.ghtml. Acesso em 31 de outubro de 2019.
24  Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/11/06/
desemprego-pode-recolocar-brasil-no-mapa-da-fome-diz-lider-do-orgao-da-onu-para-ali-
mentacao.htm. Acesso em 10 de outubro de 2019.
25  Informações disponíveis em https://observatorio3setor.org.br/carrossel/a-fome-ma-
ta-17-pessoas-morrem-de-desnutricao-por-dia-no-brasil/. Acesso em 10 de outubro de
2019.

31
ticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), no mês de setembro
de 2019 a disparidade entre o salário mínimo nominal e necessário26
continua gritante. Mesmo considerando que em janeiro do referido
ano o salário mínimo teve um acréscimo, passando a valer oficial-
mente R$ 998,00, o necessário para garantir a sobrevivência é de
aproximadamente R$ 3.980,0027.
Utilizando-nos do aporte marxiano para lidar com os processos
de pauperização no Brasil e diante desse contexto, parece ser evidente
que, os trabalhadores vêm apresentando uma queda no seu padrão de
vida, aqui entendido como privação do acesso a alguns bens neces-
sários a sua reprodução enquanto força de trabalho e da sua família.
Se existia uma queda das camadas ascendentes da classe C para as D
e E, observa-se que, com o passar dos anos, esse contingente passou
a voltar a fazer parte não apenas da classe pobre da sociedade, mas
principalmente da miséria. Parece consensual que, entre as regiões do
país, o Nordeste segue sendo o mais atingido, amargando um quan-
titativo alarmante. Isto representa uma maior concentração de renda
neste contexto de crise estrutural, no qual uma parcela cada vez me-
nor da classe trabalhadora consegue acessar mais riqueza socialmente
produzida, afunilando cada vez mais os setores de capitalistas que
concentram e centralizam capitais.

Considerações finais

Através desta exposição buscou-se analisar os principais pon-


tos da relação entre trabalho e pauperismo no Brasil, a partir da
compreensão da totalidade da vida social, numa perspectiva crítica e
dialética da sociedade capitalista. Ao passo que a ofensiva do capital
avança no terreno da luta de classes, avançam e se tornam cada vez
mais agudas as expressões da “questão social”, colocando-se cada vez
mais desafiadora mediante a sua capacidade de se metamorfosear e se
atualizar no presente. Entre as maiores consequências que advêm do

26  “A pesquisa da Cesta Básica de Alimentação (Ração Essencial Mínima) realizada hoje
pelo Dieese em 27 capitais do Brasil acompanha mensalmente a evolução de preços de treze
produtos de alimentação, assim como o gasto mensal que um trabalhador teria para com-
prá-los [...]. O salário mínimo necessário, também divulgado mensalmente, é calculado com
base no custo mensal com alimentação obtido na pesquisa da Cesta” (DIEESE, 2016, p. 8).
27  Dados divulgados em https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.
html. Acesso em 10 de outubro de 2019.

32
seu avanço, destaca-se o aprofundamento do pauperismo.
O quadro que vem historicamente se desenhando sobre a re-
lação entre pauperismo e trabalho é inequívoco. A arquitetura do
primeiro tem impactos diretos sobre o último. Pode-se dizer que
a história das particularidades do capitalismo brasileiro elucida as
marcas persistentes de um desenvolvimento que se fez à maneira
do imperialismo, conservando os laços de dependência, a partir da
exploração massiva de força de trabalho, e evidenciando a luta das
classes internas. O desenvolvimento desigual e combinado que se
opera na particularidade brasileira tem aprofundado estes laços de
dependência direta dos países centrais, com o objetivo de manter
um quantitativo de riqueza produzida sempre capaz de satisfazer a
esta relação e que se torna determinante para o lugar ocupado na
divisão social e técnica do trabalho no mundo.
À medida que o Estado brasileiro facilita a apropriação inter-
na do grande capital, reforça a sua condição de subalternidade. A
forma como as relações políticas são conduzidas guarda identida-
de com este processo de apropriação. Assim, a política do Estado
brasileiro expressa-se visando garantir que as relações sociais e pro-
dutivas, mantendo uma economia de agroexportação e de cunho
urbano-industrial incipiente, atendam às necessidades do capital
internacional, sem romper os laços de dependência com os países
centrais e, em última instância, reproduzindo em nível periférico as
relações sociais capitalistas.
Mesmo que o quantitativo exposto utilize o critério de renda
para definir o que vem a ser pobre ou miserável no Brasil, as péssimas
condições nas quais os trabalhadores vem se inserindo atualmente
no mercado de trabalho, principalmente na modalidade informal,
denunciam que a essência exploradora do capitalismo continuou a
mostrar-se em intensos processos de pauperização relativa da clas-
se trabalhadora em concomitância ao empobrecimento absoluto, o
que acaba por desvalorizar o valor desta força de trabalho envol-
vida na produção de rendimentos. Dada a arquitetura do trabalho
nos limites de um país de desenvolvimento desigual, combinado e
dependente, o retorno do pauperismo absoluto junto ao relativo é
uma realidade, tendo em vista que o próprio movimento do real tem
demonstrado uma queda geral no padrão de vida da classe trabalha-
dora, que atualmente se encontra em posição defensiva.
Observando-se o salário mínimo como referência para suprir
as necessidades do trabalhador inserido principalmente no traba-
lho formal e da sua família pela via de consumo, este quantitativo
aparece como insuficiente para dar conta da reprodução biológica e

33
histórico moral das suas necessidades. A lógica exploratória que tem
como expressão concreta o salário admite apenas que o trabalhador se
reproduza enquanto força de trabalho, e tenha pífio acesso aos bens
determinados como necessários diante da conjuntura desse tempo his-
tórico.
Em relação ao trabalho informal a situação se agudiza, seja pela
precariedade dos vínculos, quando eles existem, ou ainda pelas condi-
ções de trabalho e insegurança social. Outrossim, associa-se a isso o
fato de que vários trabalhadores têm garantido o seu sustento e da sua
família a partir de múltiplas iniciativas que complementam a pequena
renda familiar. Tais estratégias vão desde a realização de bicos, faxinas,
produção de pequenos lanches para venda, bem como a comercializa-
ção de itens cosméticos ou de perfumaria, transporte de passageiros ou
lanches por aplicativos e trabalhos freelancers.
Assim, o leque de necessidades que emergem da classe traba-
lhadora fica completamente aquém da ação do Estado. Para além do
processo de desresponsabilização deste último, pelas expressões que se
desenvolvem do conflito fundante desta forma de sociabilidade, o Es-
tado tem se mostrado incapaz de garantir políticas efetivas de proteção
social, revelando-se conivente aos interesses da reprodução dos níveis
de acumulação internamente, à custa da força de trabalho abundante-
mente explorada.
Portanto, nesse tempo histórico os desafios para o exercício pro-
fissional do assistente social se ampliam massivamente, pois à medida
que as expressões da “questão social” ganham novas faces, amplia-se
também a necessidade do capital num maior controle da classe traba-
lhadora que permita a sua reprodução e permanência da extração de
trabalho excedente. Conjuntamente a isto a reinvindicação pela conti-
nuação também de direitos sociais se acirra. Ou seja, a confrontação da
luta entre as classes fundamentais tende a crescer.
Contudo, como profissional também inserido na divisão social
e técnica do trabalho, a referida conjuntura chega até mesmo a atin-
gir as condições objetivas de reprodução deste profissional e da sua
família, pois o mesmo encontra-se submetido às condições adversas
de trabalho recentemente legalizadas, priorizando em última instância
a continuidade desta forma de sociabilidade, mantendo o objetivo de
assegurar taxas médias de lucro à custa da ampla exploração de força
de trabalho. Nesse sentido, o profissional do serviço social sofre du-
plamente os efeitos de tais transformações no mundo do trabalho: seja
pelo desafio de viabilizar direitos enquanto os mesmos estão sendo
gravemente ameaçados e destituídos da classe trabalhadora, seja pela
garantia da sua própria sobrevivência enquanto parte desta classe.

34
Referências

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36
A “nova questão social” a partir de uma análise
marxista

Jinadiene da Silva Soares Moraes1

Introdução

Este artigo tem como objetivo expor elementos que compro-


vam a inexistência de uma nova questão social alardeada por pensa-
dores liberais e filiados ao pensamento pós-moderno. Para basear tal
comprovação, trataremos sobre a lei geral de acumulação capitalista
que engendra a questão social, a qual se expressa de forma diferen-
ciada e multifacetada nos vários países e momentos do capitalismo.
Desse modo, apresentaremos, a partir da teoria social e crítica,
fundamentos que levam à derruição da defesa de que, em algum
momento da história do modo de produção capitalista, houve a su-
peração da questão social e, posteriormente, o surgimento de uma
nova.
Para realizar essa discussão, estruturamos o artigo em dois
momentos. Iniciaremos apresentando, sucintamente, o vínculo em-
brionário do Serviço Social com a questão social. Para isso, dialo-
garemos com autores como Marilda Iamamoto e Raul de Carvalho
(1998), José Paulo Netto (2001, 2011) e Carlos Montaño (2007),
entre outros.
Em seguida, buscaremos desvendar a relação questão social e
1  Professora da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas – UNCISAL.
Assistente Social, especialista em Gestão e Controle Social das Políticas Públicas e em
Saúde Pública. Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas. Doutoranda
em Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: jinadiene@
hotmail.com
lei geral de acumulação, demonstrando sua condição sine qua non no
modo de produção capitalista. Para tal estudo, nos fundamentaremos
nas obras de José Paulo Netto e Marcelo Braz (2012), Marilda Iama-
moto e Raul de Carvalho (1998) e, naturalmente, no Capítulo 23 ‒ A
Lei Geral da Acumulação Capitalista, do Livro I d’O Capital, o qual
“examina a influência que o aumento do capital exerce sobre o desti-
no da classe trabalhadora” (MARX, 2013, p. 835).
No segundo momento, tentaremos apresentar a origem da
“nova questão social”, utilizando como expressão dessa falácia a de-
fesa de Pierre Rosanvallon (1998) – o qual fortalece uma perspectiva
pós-moderna –, bem como sua insustentabilidade por meio da aná-
lise marxista sobre a sociedade capitalista, na crítica de Fredric Jame-
son (2007), entre outros autores que subsidiam a discussão.

1 O serviço social e a questão social

Para iniciarmos a discussão, é necessário ressaltar que o Servi-


ço Social guarda estreita relação com a questão social, haja vista que
as modificações ocorridas a partir de um determinado momento da
história – a passagem do capitalismo concorrencial ao capitalismo
monopolista – e suas repercussões na vida da classe trabalhadora fo-
ram propícias e determinantes para o surgimento do Serviço Social2.
De acordo com Montaño (2007), a profissão surge
[...] como um produto da síntese de projetos político-econômicos
que operam no desenvolvimento histórico, onde se reproduz ma-
terial e ideologicamente a fração de classe hegemônica, quando,
no contexto do capitalismo na sua idade monopolista, o Estado
toma para si as respostas à “questão social”. (2007, p. 30)3.

2  De acordo com Iamamoto (1998), diferentemente do que acontecia com os sujeitos que
desenvolviam ações caritativas tímidas e pulverizadas, o profissional de Serviço Social recebe
“um mandato diretamente das classes dominantes para atuar junto à classe trabalhadora”
(1998, p. 83), o qual “se insere numa relação de compra e venda”, constituindo-o como
trabalhador assalariado e rompendo com o voluntariado característico das atividades que
aconteciam anteriormente e que perduram até os dias atuais (p. 85).
3 O Serviço Social possui duas perspectivas que tratam sobre sua origem. A primeira
é a perspectiva endogenista, cujos defensores, embora com algumas diferenças,
situam o surgimento do Serviço Social a partir da organização da caridade e da
filantropia, por meio de ações e vontades pessoais, sejam da Igreja, sejam do
Estado. Nas palavras de Montaño (2007, p. 27), em uma “perspectiva endógena, o
tratamento teórico confere ao Serviço Social uma autonomia histórica com respeito

38
O Serviço Social é uma profissão que foi criada para “parti-
cipar na reprodução tanto da força de trabalho, das relações sociais,
quanto da ideologia dominante” (MONTAÑO, 2007, p. 31). Nessa
atuação, por meio das políticas sociais – respostas às refrações da
questão social que são determinadas socialmente por condições so-
ciais objetivas –, faz-se necessário identificar, a partir de uma infle-
xão crítica, o que, na realidade, é a questão social.

1.1 Desvendando a questão social

O termo questão social, como esclarece Iamamoto (2001),


não é originário do marxismo. Vários autores, de correntes teóricas
diversas, começam a utilizar o termo para caracterizar o pauperismo,
fenômeno novo que assolava a Europa ocidental desde o primeiro
momento de sua industrialização. A pobreza chegou a um nível tão
grave que até mesmo os liberais da época foram obrigados a reco-
nhecer que aquela situação se diferenciava das anteriores.
Para entender o que é a questão social, é necessário compre-
ender que a lei absoluta desse modo de produção capitalista baseia-
-se na extração de mais-valia e que a força de trabalho constitui-se
em mercadoria à medida que conserva os meios de produção como
capital e proporciona uma fonte de capital adicional com o trabalho
não pago. Entretanto, o processo de acumulação exige uma crescen-
te produtividade, o que exige maior incremento do capital constante
em comparação ao capital variável. Isso não impede que o proleta-
riado continue aumentando, apesar de diminuir proporcionalmente
em relação ao capital constante (MARX, 2013).
Marx (2013, p. 858) esclarece ainda que,
[...] se uma população trabalhadora excedente é um produto ne-
cessário da acumulação ou do desenvolvimento da riqueza com
base capitalista, essa superpopulação se converte, em contrapar-
tida, em alavanca da acumulação capitalista, e até mesmo numa

à sociedade, às classes e às lutas sociais”. A segunda perspectiva é a histórico-


crítica, que defende que o Serviço Social foi criado no trânsito do capitalismo
concorrencial ao monopolista, para auxiliar nas respostas do Estado às refrações
da questão social por meio das políticas sociais (IAMAMOTO E CARVALHO,
1998; NETTO, 2011; MONTAÑO, 2007). Ou seja, o desenvolvimento capitalista
exigirá um profissional com a capacidade de controlar a vida privada da classe
trabalhadora. É essa última perspectiva a adotada, por entendermos que, a partir
da apreensão do movimento da realidade social, ela explica de modo mais fiel e
condizente a gênese do Serviço Social.

39
condição de existência do modo de produção capitalista. Ela cons-
titui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao
capital de maneira tão absoluta como se ele tivesse criado por sua
própria conta. Ela fornece a suas necessidades variáveis de valori-
zação o material humano sempre pronto para ser explorado, inde-
pendentemente dos limites do verdadeiro aumento populacional.

Desse modo, cresce uma superpopulação relativa que agrava a


concorrência entre os trabalhadores e afeta a questão salarial. Aliado
a isso cresce o pauperismo, que Marx considera o “sedimento mais
baixo da superpopulação relativa” (2013, p. 874), onde se encontram
camadas miseráveis da população – que, apesar de terem aptidão para
o trabalho, estão desempregadas –: crianças, adolescentes e outros (os
incapacitados para o trabalho). Essa situação, provocada pela força
expansiva do capital, expressa a lei geral de acumulação.
A raiz material da questão social está na forma de funcionamen-
to do modo de produção capitalista; ela não é uma falha desse modo
de produção, mas uma condição indispensável para a existência dele.
A questão social ganha vulto na primeira onda de industrialização,
agravando, de modo contundente, a situação da classe trabalhadora.
De acordo com Marx (2013, p. 876):
À medida que o capital é acumulado, a situação do trabalhador,
seja sua remuneração alta ou baixa, tem de piorar. A lei que man-
tém a superpopulação relativa ou o exército industrial de reserva
em constante equilíbrio com o volume e o vigor da acumulação
prende o trabalhador ao capital [...]. Ela ocasiona uma acumulação
de miséria correspondente à acumulação de capital.

Entendemos a questão social como uma característica funda-


mental da sociedade capitalista porque – diversamente das sociedades
existentes anteriormente, nas quais a pobreza derivava da carência e
da insuficiência de recursos e bens, acarretadas pelo baixo nível de
desenvolvimento das forças produtivas materiais e sociais – na socie-
dade atual, a carência decorre da contradição existente entre as forças
produtivas e as relações de produção (NETTO, 2001, p. 46).
Esse fato mostra, de forma inequívoca, que o modo de produ-
ção capitalista, além de produzir e reproduzir mercadorias, produz e
reproduz relações sociais, mais especificamente, “produção e repro-
dução de condições de vida, de cultura e de produção da riqueza”
(BEHRING; BOSCHETTI, 2008, p. 52).
O modo de produção capitalista ainda tenta passar a mensagem
de que a possibilidade de melhoria4 da situação da classe trabalhadora
4  Netto e Braz (2012, p. 149) afirmam que na sociedade capitalista há mobilidade social

40
deve-se, exclusivamente, a esta. Já Marx afirma que “[...] a acumula-
ção de riqueza num polo é, ao mesmo tempo, a acumulação de misé-
ria, o suplício do trabalho, a escravidão, a ignorância, a brutalização
e a degradação moral no polo oposto [...]” (MARX, 2013, p. 877).
A pobreza é produzida nas engrenagens do modo de produ-
ção que se desenvolve com base na exploração da força de trabalho,
na extração e acúmulo de mais-valia, caracterizando uma “pobreza que
crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir rique-
zas” (NETTO, 2001, p. 42, grifos do autor).
Enquanto no estágio do capitalismo concorrencial a questão
social era tratada de modo pontual – por meio da ação da polícia e/
ou de ações caritativas e filantrópicas, na maioria das vezes, efetua-
das pela Igreja católica –, no capitalismo monopolista, a partir do
momento em que as expressões da questão social passam a ameaçar
a sociabilidade burguesa é que surgem as primeiras intervenções sis-
tematizadas com o intuito de controlá-las.
Como explica Iamamoto (1998, p. 77):
A questão social não é senão as expressões do processo de for-
mação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso
no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento
como classe por parte do empresariado e do Estado. É a ma-
nifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o
proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de
intervenção, mais além da caridade e repressão.

As péssimas condições reinantes no mundo do trabalho desde


o começo da industrialização e a exploração exacerbada dos operá-
rios através da ampla jornada de trabalho culminaram em reações da
classe trabalhadora, escancarando a questão social (ENGELS, 2008).
Netto esclarece (2001, p. 43):
Mantivessem-se os pauperizados na condição cordata de vítimas
do destino, revelassem eles a resignação que Comte considerava
a grande virtude cívica, e a história subsequente haveria sido ou-
tra. Lamentavelmente, para a ordem burguesa que se consolida-
va, os pauperizados não se conformaram com a situação: da pri-
meira década até a metade do século XIX, seu protesto tomou
as mais diversas formas, da violência luddista à constituição das
trade unions, configurando uma ameaça real às instituições sociais
existentes.

Para a contenção das manifestações da classe trabalhadora, a

(tanto horizontal quanto vertical), no entanto, as possibilidades reais de tal mobilidade


jamais afetam as bases da existência e da reprodução das duas classes sociais fundamentais.

41
polícia é posta como primeira medida interventiva. No entanto, o
Estado, ao passo que reprimia duramente os trabalhadores, também
iniciava a regulamentação das relações de produção com a criação de
legislações fabris, tais como a definição de uma jornada normal de
trabalho5. Estas legislações foram precursoras do papel do Estado na
relação com a classe trabalhadora e os direitos sociais no século XX.
Depois começam a efetivar as políticas sociais que, segundo
Behring e Boschetti (2008), são consideradas desdobramentos e até
respostas e uma forma de enfrentamento das refrações da questão
social. Não há precisão na data de seu surgimento, mas as políticas
sociais situam-se na trajetória da crescente intervenção do Estado, a
partir do início da Revolução Industrial.
De acordo com Netto (2011, p. 29), “[...] só a partir da concre-
tização das possibilidades econômico-sociais e políticas segregadas
na ordem monopólica [...] que a ‘questão social’ se põe como alvo de
políticas sociais”.
É importante destacar que a origem da questão social se alicer-
ça na exploração da força de trabalho, a partir da qual uma classe (a
burguesa) consegue obter lucro por meio da extração de mais-valia
de outra classe (a trabalhadora). A classe burguesa apropria-se do
trabalho não pago para seu usufruto pessoal e para o reinvestimento
em sua produção.
Desse modo, independentemente de o trabalhador estar em
pior ou em melhor condição de vida e reprodução, existindo essa de-
sigualdade, que é fundamental no conflito capital x trabalho, continua
a existir a questão social.

2 A falácia da nova questão social

Ao entendermos que o modo de produção capitalista gera a


questão social, fica fácil perceber que nunca houve um momento na
história desse modo de produção em que a questão social inexistisse.
Por isso, também não poderia haver uma “nova questão social”.
Mas, como aparece essa discussão?
Para tratar sobre o surgimento da chamada “nova questão so-
cial”, é importante fazer uma remissão ao Welfare State. Esse modelo

5  Para mais detalhamento sobre esse processo, ver Livro I, capítulo 8 d’O Capital, que mos-
tra como a regulamentação da jornada de trabalho derivou de um processo violento e pro-
longado.

42
de intervenção do Estado que, como afirmam Behring e Boschetti
(2008), foi uma experiência reduzida no tempo, durando cerca de
trinta anos (iniciando no Pós-Segunda Guerra Mundial e declinan-
do durante a década de 1970) – os chamados “anos gloriosos do
capital” –, e no espaço, haja vista que apenas em alguns países da
social-democracia localizados na Europa nórdica e na Europa Oci-
dental, além dos Estados Unidos, conforme Netto (2001), houve a
implementação de medidas que favoreceram significativamente os
trabalhadores.
Denominado por alguns como Welfare State, Estado Providên-
cia ou Estado de Bem-Estar Social6, caracterizou-se pela efetivação
dos direitos de cidadania e pleno emprego para a classe trabalha-
dora. Foi uma estratégia baseada no keynesianismo que facilitou a
expansão do capital no Pós-Segunda Guerra e propiciou momentos
interessantes à classe trabalhadora.
De acordo com Netto (2001, p. 47), devido a esse período
próspero do capitalismo, alguns teóricos chegaram a afirmar que a
questão social teria sido superada7. Essa afirmação desconsidera as
análises marxianas que revelaram a lei geral de acumulação capitalis-
ta, a pauperização absoluta e a pauperização relativa. Estas provam
que o desenvolvimento do modo de produção capitalista não está
centrado na melhoria de distribuição de riqueza, mas na crescente
concentração de capital, o que vai gerar o empobrecimento da classe
trabalhadora e o aumento da desigualdade. Assim, mesmo melho-
rando suas condições de vida, o trabalhador acessa muito menos
riqueza produzida do que o capitalista.
A partir da década de 1970, a experiência do Welfare State co-
meça a entrar em declínio; a produção fica estagnada, trazendo pre-
juízos ao modo de produção capitalista. Essa crise se caracterizou
como uma crise de superprodução (BEHRING; BOSCHETTI,
2008, p. 116), na qual houve uma diminuição das taxas de lucro, o
que levou ao fenecimento do fordismo.
A resposta à crise se deu nos campos econômico, político e
sociocultural (CANTALICE, 2013, p. 65). No que se refere ao eco-

6  Para maior detalhamento sobre os tipos de Estado de Bem-Estar Social, conferir a tese
de Camila Potyara Pereira, intitulada Proteção Social no Capitalismo: contribuições à críti-
ca de matrizes teóricas e ideológicas conflitantes, 2013.
7  Netto (2001) acrescenta que a experiência do Welfare State vivenciada em alguns paí-
ses europeus e a do New Deal americano fizeram com que os teóricos “esquecessem” a
desigualdade inerente ao conflito capital x trabalho, bem como a realidade dos países da
periferia do capital.

43
nômico, deu-se a reestruturação produtiva, substituindo o fordismo pelo
toyotismo, que se baseia na produção de acordo com a demanda. A partir
daí há o enxugamento tanto na forma de produzir – estoque zero, erros
zero, just in time, diminuição da fábrica etc. – como também na quantidade
e nos vínculos dos trabalhadores na linha de montagem. O modelo toyo-
tista traz como consequência uma exploração ainda mais intensa do que
a que vinha ocorrendo anteriormente. Há, como afirma Antunes (1995),
um aumento intensivo e extensivo da exploração da classe trabalhadora.
A reestruturação produtiva expandiu o modo de produção capita-
lista a, praticamente, todos os lugares do globo, efetuou mudanças signi-
ficativas no mundo do trabalho, iniciando a tentativa de desidentificação
da classe trabalhadora a partir da utilização de formas diferenciadas de
contratação – por meio da terceirização, por exemplo –, como a subs-
tituição do termo trabalhador por outras denominações que o confun-
dem: colaborador, cooperador etc. Tais mudanças afetam a subjetividade
da classe trabalhadora, como afirma Alves (2011, p. 111) e provocam o
esgarçamento da organização política da classe.
As medidas para a recuperação da crise de 1970 – que, segundo
Mészáros (2011), não é mais uma crise cíclica, porém uma crise estrutu-
ral do capital – evidenciam a articulação orgânica necessária ao funcio-
namento do modo de produção capitalista. Foram adotadas pelo Estado
contrarreformas no sentido de atender às demandas do capital, segundo
Behring (2003).
O neoliberalismo é adotado logo após o Consenso de Washing-
ton8, introduzindo uma agenda restritiva de direitos sociais a ser aplicada
nos vários países, inclusive nos que não viveram o Welfare State. Tais me-
didas foram impostas de modo agressivo nos países de capitalismo peri-
férico – onde não houve uma experiência alargada de proteção social –,
iniciando-se pelo Chile, nos anos 1970, que vivia sob a ditadura sangrenta
de Pinochet9.
8  O Consenso de Washington foi o produto de uma reunião, convocada por F. Hayek, na pe-
quena estação de Mont Pèlerin, na Suíça, realizada em 1947. “Hayek convocou aqueles que
compartilhavam sua orientação ideológica, enquanto as bases do Estado de bem-estar na
Europa do pós-guerra efetivamente se construíam. Entre os célebres participantes estavam
não somente adversários firmes do Estado de bem-estar europeu, mas também inimigos
férreos do New Deal norte-americano, entre os quais, Milton Friedman, Karl Popper, Lionel
Robbins, Ludwig Von Mises, Walter Eupken, Walter Lipman, Michael Polanyi e Salvador de
Madariaga. Aí se fundou a Sociedade de Mont Pèlerin, uma espécie de franco-maçonaria
neoliberal altamente dedicada e organizada, cujo objetivo era combater o keynesianismo e o
solidarismo reinantes e preparar as bases de outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras
para o futuro” (ANDERSON, 1995, p. 9-10).
9  Apesar de o Brasil também estar sob uma ditadura militar nos anos 1970, a agenda neoli-

44
Para a implantação do neoliberalismo, os governos utilizaram
a justificativa de que precisavam diminuir o tamanho do Estado, que
se tornou muito grande e, por isso, ineficiente. No que diz respeito ao
campo social, as medidas para a diminuição do Estado implicaram a
redução dos direitos sociais e trabalhistas. As políticas sociais e as demais
conquistas jurídico-legais sofreram com a adoção dos seguintes princí-
pios neoliberais: focalização, privatização, precarização, sucateamento e
flexibilização.
Entretanto, para a expansão do capital foram garantidas medidas,
com destaque para a financeirização do capital, recriando as condições de
lucratividade. É importante ressaltar que “o capital não prescinde de seu
pressuposto geral – o Estado –, que lhe assegura as condições de produ-
ção e reprodução, especialmente num ciclo de estagnação” (BEHRING,
2010, p. 9), caracterizando um Estado mínimo para os trabalhadores e
máximo para o capital.
Também no campo ideocultural o capitalismo buscou sua legiti-
mação. De acordo com Cantalice (2013), houve medidas também para
modificar o modo de pensar da sociedade. Nesse momento histórico
verifica-se o que vários autores denominam de pensamento pós-moder-
no. Sobre o pensamento pós-moderno, Jameson (2007, p. 75) afirma que
não se trata apenas de uma mera
[...] ideologia cultural ou uma fantasia, mas é uma realidade genui-
namente histórica (e socioeconômica), a terceira grande expansão
original do capitalismo pelo mundo (após as expansões anteriores
dos mercados nacionais e do antigo sistema imperialista, que tinham
suas próprias especificidades culturais e geraram novos tipos de es-
paço apropriados a suas dinâmicas).

Dentro do que se chama pensamento pós-moderno é que surge a


discussão sobre a “nova questão social”. Segundo Rosanvallon10 (1998),
a partir de 1970, na Europa e nos Estados Unidos voltam a ser identi-
ficados problemas sociais – desemprego, pobreza, exclusão –, agora, de
modo permanente.
Por considerar que esse é um novo momento na sociedade, di-
ferente da questão social existente anteriormente, Rosanvallon defende
que o Estado deve adotar medidas inovadoras, tais como a transforma-
beral só atingirá o país com vigor nos anos 1990, no governo de Fernando Collor de Mello.
10  Castel (1998) é outro autor que também se refere à “nova questão social”. Defende uma
maior intervenção do Estado, ou melhor, uma reedição do Welfare State, mas com algumas
diferenças: focalizando as ações nos que mais precisam, retirando a intervenção social das
atribuições do Estado e repassando-a para a sociedade civil, incentivando o retorno da
filantropia, o voluntariado etc.

45
ção do Estado Providência num Estado de Serviços, o qual deve se
basear em ajudas diferenciadas, solidárias e individualizadas.
A alternativa proposta por Rosanvallon (1998) constitui-se em
uma solidariedade cuja base se concentra em ajudas diferenciadas aos
sujeitos das ações enquanto indivíduos. Para isso, segundo o autor,
deve haver a recuperação dos fundamentos técnicos e operativos que
subsidiaram o Estado Providência, originalmente.
Para responder às demandas que advêm da “nova questão so-
cial” sem cair nos mesmos erros do Welfare State, Rosanvallon afirma
que “[...] nem o mercado [...], nem o Estado [...] podem criar ativida-
des sociais que ultrapassam o Estado Providência passivo, [por isso]
a noção do ‘terceiro setor’11 surge necessariamente na ordem do dia”
(ROSANVALLON, 1998, p. 137).
É importante observar que a estratégia de solução para o autor
fundamenta-se na solidariedade e na ação do terceiro setor, o que
mostra claramente que não se deve buscar a raiz do problema, mas
apenas suas expressões.
Essa proposição de Rosanvallon apresenta equívocos em dois
aspectos. O primeiro refere-se à identificação de uma “nova questão
social”, o que força o entendimento de que houve mudança estrutural
no modo de produção capitalista – por isso, teria havido uma “velha
questão social” e, posteriormente, surgido uma “nova” –, o que não
é verdadeiro.
O segundo aspecto diz respeito à forma de resolver a “nova
questão social”, haja vista que, ao tratar a questão social no período
de 1945 a 1970 como superada, tal formulação traz implicações às
respostas a serem dadas que. Ademais, ao afirmar a incapacidade do
Estado e do mercado no campo social, enaltece a sociedade civil –
entendida aqui como um espaço apartado do resto da sociedade, o
reino das virtudes – e repassa para ela a responsabilidade de resolver
a questão social (MONTAÑO, 2002).
Como consequência disso, como afirma Behring,
[...] se tem [...] uma não-política, [...], com a transferência de ações
– focalizadas – para o “terceiro setor”, processo que caminha ao
lado do crescimento da pauperização absoluta e relativa da maio-
ria da população. Esta não-política é acompanhada da mobiliza-
ção do voluntariado e de uma espécie de clientelismo moderniza-
do, na relação entre Estado e organizações da sociedade civil, que
também constitui espaço de construção de adesão e cooptação.
(2010, p. 17).

11  A crítica ao chamado terceiro setor pode ser encontrada em Montãno (2002).

46
Tal proposição desresponsabiliza o Estado de qualquer inter-
venção social, fortalece a adesão e a cooptação da sociedade civil e,
consequentemente, recrudesce a perspectiva pós-moderna, que não
considera o passado e põe o capitalismo como o fim da história12,
contrapondo-se às teorias que levam à elucidação da forma de fun-
cionamento da sociedade.
Desse modo, o pensamento pós-moderno cumpre
[...] uma função ideológica de sustentação e de legitimação do
capital, uma vez que age sobre o sistema de regulamentação
social em favor desse sistema. Ele legitima regras, comporta-
mentos, hábitos e práticas sociais funcionais à manutenção da
ordem do capital, além de demarcar como ilegítimas as ideias
e práticas que apontam à direção inversa [leia-se: o marxismo].
(CANTALICE, 2013, p. 62, acréscimos nossos).

É justamente esse campo ideopolítico que forja a chamada


“nova questão social”. Há uma evidente tentativa de defender, como
dito anteriormente, que o Welfare State extinguiu a “velha questão
social” e que, com o esgotamento da experiência, surgiu uma “nova
questão social”, uma nova pobreza, uma nova exclusão social.
Não se faz necessária uma análise muito profunda para com-
provar que a questão social faz parte do modo de produção capita-
lista, como se buscou demonstrar neste artigo, e tem relação direta
com a lei geral de acumulação capitalista. Assim, não há possibili-
dade de acabar com a questão social e suas refrações na sociedade
capitalista.
O pauperismo constitui o asilo para inválidos do exército indus-
trial de reserva. Sua produção está incluída na produção da superpopu-
lação relativa, sua necessidade na necessidade dela, e juntos eles formam
uma condição de existência da produção capitalista e do desenvolvimento da
riqueza. (MARX, 2013, p. 874. grifos nossos).

12  Tanto os chamados pós-modernos de celebração – que acreditam na “exaustão da


modernidade [e no] colapso final de suas promessas e, sendo assim, as sociedades contem-
porâneas não têm mais qualquer alternativa para além do capital”‒, quanto os de oposi-
ção – aqueles que “acreditam que a modernidade se reduziu às possibilidades do capital e
inviabilizou a efetiva realização de suas promessas [...], demandando-se, assim, uma nova
epistemologia e uma nova sociedade, capaz de construir uma alternativa à sociedade do ca-
pital – defendem que a história chegou ao fim. Destaca-se que o ‘fim da história’ não é em-
pregado em sentido apocalíptico, mas sim nos termos de ‘uma direção metodológica’: ‘Na
prática historiográfica e sua autoconsciência metodológica, a ideia de uma história como
processo unitário se dissolve’. O presente para os pós-modernos passa a ser a referência
‘material’ do vivido; abandona-se o sentido de continuidade e de história” (VATTIMO,
1989, p. 13 apud CANTALICE, 2013, p. 250).

47
O pauperismo analisado por Marx é típico de um momento
histórico – primeira onda de industrialização, ocorrida na Inglaterra,
ainda no final do século XVIII –, entretanto, é necessário ressaltar,
mais uma vez, que sua base continua a mesma.
Como afirmam Netto e Braz, estando em uma sociabilidade
capitalista e reconhecendo a dinâmica social com base em princípios
marxianos,
[...] permanece como fato e processo constitutivos e inelimináveis da
acumulação capitalista [...] a perdurabilidade do exército industrial
de reserva e a polarização [...] entre uma riqueza social que pode se
expandir exponencialmente e uma pobreza social que não para de
produzir uma enorme massa de homens e mulheres cujo acesso
aos bens necessários à vida é extremamente restrito. (2012, p. 151).

Mesmo durante o Welfare State, apesar de ter havido melhora


significativa nos âmbitos econômicos e sociais, na vida dos trabalha-
dores, a questão social não deixou de existir. Comprova-se que as di-
versas conjunturas nos vários países capitalistas provocam diferentes
refrações da questão social, e não uma “nova questão social” ou várias
questões sociais.
Contudo, é importante salientar que, mesmo antes da consti-
tuição desse pensamento pós-moderno, o trato à questão social, por
meio de políticas sociais, aparecia de modo fragmentado, a fim de
mascarar sua raiz. Acerca dessa estratégia capitalista, Netto (2011)
ressalta que a sociedade capitalista, continuamente, envida esforços
para que a questão social apareça como problemas sociais isolados,
típicos de determinados locais ou de regimes de governo. Para o autor,
reconhecer que a questão social é uma “problemática configuradora
de uma totalidade processual específica é remetê-la concretamente à
relação capital/trabalho – o que significa, liminarmente, colocar em
xeque a ordem burguesa” (NETTO, 2011, p. 32).
Daí ser conveniente e funcional ao capitalismo o pensamento
pós-moderno, que segundo Cantalice:
Apresenta os problemas dessa quadra histórica nos limites de
sua forma aparente e imediatamente conectados à “decadência
do mundo moderno”. Descarta a reconstrução da processualida-
de objetiva do concreto, pois o que se pretende é invisibilizar as
mediações que ligam o conjunto desses problemas às suas raízes
fundamentais, ou seja, às contradições insolúveis do capital. (2013,
p. 78-9).

Devido a esse fato, o alerta que Cantalice (2013, p. 230) faz é


bem importante:

48
[...] o conjunto de contradições que vivenciamos em nossa rea-
lidade e a insatisfação de muitos diante dela podem legitimar e
conferir uma hipervalorização da crítica de forma indistinta, ou
seja, sem que antes se possa reconhecer o real sentido e a nature-
za dela. É tomarmos as coisas imediatamente pela sua aparência,
sem antes conferirmos a essência que contêm.

Essa tomada imediata das aparências das coisas, sem investigar


sua essência, pode levar a análises superficiais de entendimento de
fim da história. Essa falsa conclusão de que o capitalismo é insu-
perável pode gerar a busca de seu aperfeiçoamento, de sua face hu-
manizada, o que é impossível num modo de produção pautado pela
exploração de pessoas e pela exacerbação das desigualdades sociais.
Essa concentração na superficialidade e a resposta imediata
à realidade provocam o distanciamento da perspectiva de luta pela
emancipação humana, a qual só pode ser alcançada com a superação
dos suportes da ordem capitalista.

Considerações finais

A partir da discussão aqui exposta, buscamos demonstrar que


a questão social é reconhecida como tal quando o aumento no pro-
cesso de reprodução do capital passa a ser comprometido devido à
agudização da pobreza dos operários e à reivindicação da classe tra-
balhadora por melhores condições de vida e de trabalho. Essa reação
dos trabalhadores exigiu do Estado o desenvolvimento de respostas
efetivas para o atendimento de suas demandas, como também para a
reprodução da força de trabalho.
Ao longo do tempo, o Estado, sob o comando do capitalismo
monopolista, adotou medidas sistemáticas e permanentes para con-
trolar e administrar a tensão provocada pelo movimento da classe
trabalhadora, implementando as políticas sociais. O auge da imple-
mentação dessas políticas que, efetivamente, melhoraram as condi-
ções de vida da classe trabalhadora, deu-se durante a experiência do
Welfare State, o que fez com que alguns estudiosos alardeassem o fim
da questão social.
Entretanto, a partir dos anos 1970, quando o Welfare State entra
em crise, é observado o aumento de problemas (desemprego, exclusão
etc.) que, até então, encontravam-se em níveis aceitáveis, em algumas
sociedades europeias e nos Estados Unidos. Ao agravamento desses
fenômenos alguns estudiosos denominaram de “nova questão social”.

49
Entretanto, a chamada “nova questão social” não encontra ar-
gumentos passíveis de credibilidade. Aceitar a “nova questão social”
e suas nuances – exclusão social, nova pobreza – como características
do período pós-Welfare State é camuflar a natureza do modo de pro-
dução capitalista que engendra a questão social; é não reconhecer que
todas as expressões da questão social em tempos de crise são/serão
agravadas, uma vez que o capitalismo, em nenhum momento de sua
história, resolveu a menor de suas contradições.
Na verdade, o que se deve ser feito é investigar “a emergência
de novas expressões da ‘questão social’ que é insuprimível sem a su-
peração da ordem do capital” (NETTO, 2001, p. 48). Essa investiga-
ção é imprescindível para o desenvolvimento das ações dos assisten-
tes sociais que, enquanto executores das políticas sociais e também
planejadores e gestores de tais políticas, devem se manter alertas para
não se deslocarem para a defesa da melhoria do modo de produção
capitalista, restringindo-se à garantia de direitos políticos e sociais –
emancipação política –, ou ainda, caindo na armadilha do voluntaria-
do e da solidariedade, atraídos pelo canto da sereia do terceiro setor.
A ausência de uma investigação crítica acarretará no retorno do
Serviço Social às suas origens, fortalecendo, assim, o projeto burguês
e comprometendo o seu projeto ético-político, que se contrapõe à
sociedade capitalista.
Os que aceitam a questão social como nova arriscam-se a uma
postura de isolamento e autonomização da realidade, desconsideran-
do categorias explicativas sérias como a totalidade social e a histori-
cidade, e fortalecendo uma perspectiva pautada pela aparência, sem
buscar a essência do problema, como é o caso de Rosanvallon (1998).
Na atualidade, permanecem os elementos producentes da
questão social e suas expressões, os quais devem ser analisados tendo
a totalidade social como referência, para que não se corra o risco de
dar crédito a análises superficiais e mecanicistas, alheias aos movi-
mentos da sociabilidade burguesa.
Nas palavras de Tonet (s/d, p.13-4):
[...] tomar como base as manifestações fenomênicas dessas mu-
danças [...] e, portanto, a obsolescência de todas as perspectivas
abertas pelo mundo moderno é candidatar-se a uma compreen-
são superficial dessa realidade. E, com isso, contribuir para a re-
produção dessa mesma ordem social.

Embora não tenha sido criado pelo capitalismo, não o defenda


explicitamente, e até mesmo critique a ferocidade do sistema, o pós-
-modernismo é muito funcional ao sistema, haja vista que a negação

50
das metanarrativas, a defesa do fim do trabalho e da supressão das
classes sociais favorece a consolidação do modo de produção capi-
talista como o fim da história, para o qual se deve buscar apenas seu
aperfeiçoamento ou sua “face mais humana”. A assunção do pensa-
mento pós-moderno concentra-se na luta pela emancipação política
e distancia do horizonte a perspectiva da emancipação humana e,
por isso, deve ser combatido.

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51
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52
O processo de precarização do trabalho dos
motoboys: o sangue que circula pelas artérias da
cidade

Vivian Lúcia Rodrigues de Oliveira1

Introdução

A precarização do trabalho tem sido objeto de estudo de


inúmeros(as) pesquisadores(as), cujos esforços têm alcançado as
necessárias mediações entre a lei geral da acumulação capitalista e
o processo contemporâneo de precarização, em que suas expres-
sões têm se alastrado pelo mundo do trabalho vorazmente, seja em
países centrais ou periféricos. Apresentando as reflexões de inte-
lectuais clássicos e contemporâneos, este artigo tem como objetivo
discorrer acerca da precarização do trabalho, tendo como recorte
de análise o trabalho dos motoboys no momento coevo. Para tanto,
pauta-se pelas análises marxiana e marxista para a sua construção.
Faz-se necessário resgatar algumas produções a respeito do
desenvolvimento geográfico desigual e combinado para, entre ou-
tras motivações, entender a funcionalidade da compressão espaço-
-tempo no atual contexto; logo adiante, busca-se discorrer acerca
dessa relação social que produz diversas formas de desigualdade – as
quais se intensificam perante a reestruturação produtiva –, destacan-
do as transformações no mundo do trabalho coetâneo e fazendo as
mediações com a lei geral da acumulação capitalista, cuja compreen-
são remonta à superpopulação relativa, público-alvo das ofensivas

1  Doutoranda do programa de pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal


do Rio Grande do Norte e bolsista CAPES. E-mail: vivianoliveirajp@gmail.com
mais contundentes do capital sobre o trabalho. É seguindo esta lógica
de expropriação que se situa o trabalho dos motoboys tanto como
uma estratégia do capital reestruturado, quanto como uma expressão
da precarização do trabalho e do trabalhador.
Analisando a realidade a partir da teoria marxista, entende-se
que o modo de produção capitalista pauta-se pela desigualdade das
relações sociais, cujo fundamento é a propriedade privada. Nesse as-
pecto,
O processo de formação e expansão do capital repousa sobre a
reconstituição permanente de determinadas relações sociais que
estão em sua origem e que se conservam como condição perma-
nente de sua reprodução. O capital é, antes de tudo, uma relação
social. A primeira e a mais fundamental base social para o capi-
talismo é a produção histórica de trabalhadores “livres”, a qual,
simultânea e contraditoriamente, assegura a concentração da pro-
priedade das condições de produção. (FONTES, 2005, p. 74).

Para entender o capitalismo contemporâneo é necessário


pautar-se pela teoria do desenvolvimento geográfico desigual, pois,
conforme Santos Junior (2014, p. 11), “[...] ela nos revela as espaciali-
zações do capital nas mais diferentes escalas (global, nacional, regio-
nal, local) [...]”, além de proporcionar a compreensão das expressões
da luta de classes.
Na análise de Harvey (2004),
[...] as diferenças geográficas são bem mais do que legados histó-
rico-geográficos. Elas estão sendo perpetuamente reproduzidas,
sustentadas, solapadas e reconfiguradas por meio de processos
político-econômicos e socioecológicos que ocorrem no momen-
to presente. (p. 111).

Harvey entende que uma das marcas do desenvolvimento ge-


ográfico desigual é o capitalismo monopolista e sua competitividade.
Nesse momento, a aniquilação do espaço pelo tempo constitui uma
lei da acumulação capitalista.
Nesse sentido, contribuindo para a apreensão do desenvolvi-
mento geográfico desigual que Harvey analisa brilhantemente, Smith
(1984) percorreu um caminho que lhe permitiu inferir que o desen-
volvimento desigual é uma tentativa ao nível de teoria geral, mas não
significa que deva responder a todas as questões a respeito do desen-
volvimento desigual.
Vale realçar, ainda concordando com Smith (1984), que o de-
senvolvimento desigual é um termo polissêmico, estrutural, configu-
rando-se como marca registrada da geografia no capitalismo e o pa-

54
drão concreto de produção da natureza sob o capitalismo. Portanto,
apresenta-se como expressão geográfica da contradição entre valor
de uso e valor de troca no modo de produção capitalista.
Nesse rumo, o capital produz o espaço conforme sua lógica,
ou seja, produz escalas espaciais que dão coerência ao desenvolvi-
mento desigual. Esses novos espaços – comerciais e residenciais –
financeirizados dependem de interesses políticos “[...] que imbricam
interesses locais, regionais, nacionais e internacionais, e dependem
de uma homogeneização da paisagem para seguir atraindo investi-
mentos” (VOLOCHKO, 2015, p. 115).
A reestruturação do espaço possui como determinações:
a desindustrialização e o declínio regional, a gentrificação e o
crescimento extrametropolitano, a industrialização do Terceiro
Mundo e uma nova divisão internacional do trabalho, a intensi-
ficação do nacionalismo e uma nova geopolítica de guerra são
coisas em desenvolvimento integrado, sintomas de uma trans-
formação muito mais profunda na Geografia do Capitalismo
(SMITH, 1984, p. 14).

Cabe ressaltar que embora a dinâmica capitalista intensifi-


que a desigualdade social, propondo novas formas de explorar e
precarizar o trabalho para a acumulação do capital, a sua raiz en-
contra-se no trabalho assalariado, por meio do pagamento de sa-
lário2, da jornada de trabalho, do quantitativo de peças produzidas
ou da quantidade de entregas realizadas. Com isso, entende-se que
no modo de produção capitalista a condição de trabalho é sempre
precária, porém, com a reestruturação produtiva, isso se intensifica,
acarretando ainda uma maior precarização do trabalho.

1 Elementos das transformações no mundo do trabalho


contemporâneo

À vista disso, as mudanças do trabalho sob a égide do ca-


pitalismo contemporâneo produzem diversificadas e precárias con-
dições de vida e trabalho, ampliando o assalariamento no setor de

2  Concorda-se com Barros (2018, p. 52), em sua tese intitulada PREKARER: análise dos
fundamentos da precarização do trabalho a partir da crítica da economia política: “O salário não é,
nem poderia vir a ser, a representação monetária da dignidade humana, mas expressa os
interesses da própria necessidade do capital de permanentemente reproduzir a mercadoria
força de trabalho”.

55
serviços. Obtém-se, então, a tônica das formas de trabalho heteroge-
neizado, marcado pela força de trabalho migrante, inserção maciça
de mulheres, crianças e adolescentes em trabalhos degradantes, assim
como por maneiras de desespecialização e desqualificação do operá-
rio industrial e pela criação de trabalhadores multifuncionais (ANTU-
NES, 2011).
É por isso que, acompanhando o desenrolar da sociedade ca-
pitalista, o período de reestruturação produtiva, atrelado ao ideário
neoliberal, trouxe novos desafios para a classe que vive do trabalho.
Isso porque, com o avanço tecnocientífico, houve novas demandas
para os trabalhadores, a saber, a flexibilização da força de trabalho,
do processo de trabalho e dos contratos de trabalho, colocando estes
sujeitos numa condição de maior subsunção real3 ao capital.
A respeito da subsunção real do trabalho ao capital podem-se
apresentar suas implicações nas relações sociais por meio de uma
intensa exploração do trabalho ou precarização, aumento do exército
de reserva e do pauperismo, alienação do trabalho e do trabalhador, e
apropriação privada dos meios de produção.
Entretanto, é necessário observar que a lucratividade do ca-
pital mundial tornou-se uma problemática. Desse modo, a ideologia
neoliberal4 emerge como resposta da classe dominante à necessida-
de de acumulação. Nessa perspectiva, eis a contradição fundamental:
quanto maior o lucro, mais aumenta a precarização do trabalho, pois
mais trabalho e lucro não significam proporcionalmente mais empre-
go e proteção trabalhista.
Teoricamente, podemos dizer que os países periféricos só podem
acompanhar o nível de produtividade mais alto imposto pelo cen-
tro através do desgaste brutal de sua força de trabalho e de seus
recursos naturais. Por outro lado, reagindo a tais entraves para a

3  Na subsunção real ao capital [...] desenvolvem-se as forças produtivas sociais do trabalho


e, graças ao trabalho em grande escala, chega-se à aplicação da ciência e da maquinaria à pro-
dução imediata. Por um lado, o modo de produção capitalista, que agora se estrutura como
um modo de produção sui generis, origina uma forma modificada de produção material. Por
outro lado, essa modificação da forma material constitui a base para o desenvolvimento da
relação capitalista, cuja forma adequada corresponde, por consequência, a determinado grau
de desenvolvimento alcançado pelas forças produtivas do trabalho. (MARX, 1985, p. 105).
4  Surge como uma das respostas à crise da década de 1970. No entanto, este processo não
se deu de modo igualitário e concomitante entre os países, pois há particularidades nas for-
mações histórico-sociais dos países periféricos e dependentes. Concordando com Boschetti
(2012), as transformações do Estado Social capitalista desde os anos 70 têm como caracterís-
tica um processo de retirada massiva dos direitos das classes trabalhadoras, cujas expressões
de expropriação colocam os sujeitos numa maior subsunção ao capital.

56
sua valorização, o capital produtivo mundial sobe à esfera finan-
ceira e especulativa, ou passa a canibalizar patrimônios públicos
e bens comuns (terras indígenas, etc.) através de privatizações,
favorecimentos e concessões, subsídios e incentivos fiscais, ou
adentra circuitos obscuros e ilegais de valorização (paraísos
fiscais, corrupção, trabalho escravo, grilagem de terras etc.),
buscando reproduzir-se ampliadamente sem passar necessaria-
mente pelo circuito produtivo. (DUARTE, 2017, p. 1).

Portanto, embora a necessidade de lucro seja do capital glo-


bal, o processo de exploração e espoliação nos países periféricos se
dá de modo mais predatório, atingindo tanto a produção quanto a
reprodução social. Ainda assim, podem-se reconhecer característi-
cas gerais desse capitalismo predatório, a saber, o desemprego, a
migração, a xenofobia, o racismo etc.
A reestruturação produtiva e a “nova” divisão internacional
do trabalho modificaram não só as relações de trabalho, mas trou-
xeram novas demandas que requisitaram novas habilidades profis-
sionais. Nessa conjuntura, a maior presença do capital na circulação
pressiona o capital produtivo, levando à necessidade da compressão
espaço-tempo como parte do processo de mundialização do capital,
o qual se apresenta em contratendência à crise.
Nesse aspecto, a abertura para novas profissões no Brasil
se deu pelo movimento de expansão do capital5, que por meio do
capital financeiro permitiu a facilitação de crédito e o aumento do
“setor” de serviços, possibilitando abarcar trabalhadores fabris ou
desempregados no comércio, como também ofereceu uma “opor-
tunidade” do primeiro emprego.
Este processo ocorreu, em larga medida, concomitantemen-
te à expansão da cidade e à consequente migração campo-cidade, e
entre as cidades menos desenvolvidas para as mais desenvolvidas
economicamente. Logo, as regiões “mais desenvolvidas” passaram
a contemplar uma gama maior de trabalhadores, que em sua maioria
estavam imersos na superpopulação relativa.
No que concerne à precarização do trabalho, os avanços
tecnológicos têm sido um dos principais fatores para a intensifica-
ção do trabalho, assim como o aumento da superpopulação relativa
e os reflexos na saúde do trabalhador. Esta condição tanto pressiona
os trabalhadores quanto intensifica a exploração, sendo funcional à
5  Como situamos na nota de rodapé anterior, o processo de reestruturação do capital não
se deu de modo uniforme e homogêneo, mas seguiu a mesma tônica de necessidade de
expansão. No caso brasileiro, de capitalismo periférico e dependente, esta situação ganha
concretude a partir de 1990.

57
reprodução do capital e responsável pela ampliação da precarização
de outros trabalhadores. Portanto, a precarização está relacionada à
condição de existência e não apenas a relações de emprego. Por isso,
quanto mais o capital avança, mais condições de precarização são
estabelecidas e condensadas.
Note-se que os avanços supramencionados fazem parte da
mundialização do capital, cujo intento é extrair lucros cada vez mais
ostensivos, ao tempo que se dedica a reduzir riscos. O processo de
terceirização6 tem sido a forma mais utilizada de precarização do tra-
balho, a qual contempla as condições e relações de trabalho.

1.1 Lei geral da acumulação capitalista: explicando a precarização


do trabalho

É necessário partir da lei da geral da acumulação capitalista


para entender a precarização do trabalho contemporânea, pois ela
explica a existência e a relevância da superpopulação relativa. Esta
vivencia de modo mais intensificado a precarização.
Na análise de Marx:
Quanto maiores a riqueza social, o capital em funcionamento, o
volume e a energia de seu crescimento, portanto, também a gran-
deza absoluta do proletariado e a força produtiva de seu traba-
lho, tanto maior o exército industrial de reserva [...]. Mas quanto
maior esse exército industrial de reserva em relação ao exército
ativo de trabalhadores, tanto mais maciça a superpopulação con-
solidada, cuja miséria está em razão inversa do suplício de seu
trabalho. Quanto maior, finalmente, a camada lazarenta da classe
trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior o pau-
perismo oficial. Essa é a lei geral da acumulação capitalista. Como
todas as outras leis, é modificada em sua realização por variadas
circunstâncias, cuja análise não cabe aqui. (MARX, 1988, p. 200).

A lei geral da acumulação capitalista coloca em evidência o


movimento contraditório de atração e expulsão dos trabalhadores.
O aumento da produtividade do trabalho é elemento preponderante
para que o processo de acumulação do capital se dê de forma am-
pliada, o que implica uma maior quantidade de trabalho morto em
detrimento de trabalho vivo.
É este aumento da composição orgânica do capital que esta-
6  Remete não apenas à redução de custos, mas principalmente à retirada de direitos e frag-
mentação de classe e organização sindical. Amplia a insegurança e a instabilidade dos traba-
lhadores, precarizando-os em múltiplas dimensões.

58
belece o desemprego estrutural da classe trabalhadora e a torna “su-
pérflua” à valorização do valor. Esta população sobrante é funcional
à engrenagem do capital e permite que os salários sejam rebaixados,
acarretando uma maior acumulação de capital e mais empobreci-
mento e degradação da classe trabalhadora.
Escreve Barros:
Ao produzir essa massa “supérflua”, a dinâmica da acumulação
promove uma contínua oferta de força de trabalho disponível,
que estando num quantitativo superior às suas necessidades de
consumo, fornece condições mais vantajosas para a aquisição
de trabalho vivo. Existindo as bases impulsionadoras dessa
massa de desempregados e subempregados, encontram-se tam-
bém estabelecidos os alicerces para a precarização do trabalho.
(2018, p. 102).

Portanto, estas explicações dão base para discutir sobre a


precarização no mundo do trabalho, embora não sejam suficientes.
A precarização remete, necessariamente, às transformações ocorri-
das a nível mundial tanto na produção quanto na reprodução social
a partir da década de 1990 no contexto brasileiro. Nessa ambiência,
cabe ressaltar que as mudanças ocorridas no padrão de produção e
no cenário político-ideológico foram conduzidas pela reestrutura-
ção produtiva e pela mundialização do capital, fincadas no toyotis-
mo e no neoliberalismo.
É oportuno mencionar que, embora este reordenamento te-
nha começado na década de 1970, chegou ao Brasil em meados de
1990, através de privatizações, aumento do desemprego, redução
dos direitos trabalhistas e cortes no orçamento das políticas sociais.
Estas mudanças evidenciam algumas das expropriações contempo-
râneas que a classe trabalhadora tem sofrido. Fontes (2018) observa
que a expropriação refere-se às diversas formas de violência e roubo
sobre as populações e que estas não estão apenas na pré-história do
capitalismo.
Além disso, há sucessivas e intensas expropriações7 que
alienam meios de vida, pois são apropriados pelo capital. No en-
tanto, as expropriações que ganham destaque em suas análises são
as secundárias, entre as quais a expropriação contratual, aquela que

7  Fontes (2008) em Marx, expropriações e capital monetário: notas para um estudo do


imperialismo tardio. In: Revista crítica marxista, n. 26, analisa que Marx aponta três
modalidades de expropriação: a que incide sobre os pequenos proprietários que fugiam
da proletarização, outra que atinge os próprios capitalistas pela concentração de capitais, e
o momento final da propriedade privada, quando os “expropriadores são expropriados”.

59
ocorre pela destituição ou desmantelamento dos direitos trabalhistas
e sociais (BOSCHETTI, 2018). Nessa trilha, em razão da correlação
entre expropriação e alteração de regime jurídico,
ainda que a primeira possua práticas de roubo, conquistas e guer-
ras abertamente ilegais, ela sempre vai precisar de um momento
de violência jurídica: uma reforma legal, uma nova regulação ou
instituto que, ao transformar as condições jurídicas existentes,
prescreve abertamente a estrutura de desigualdade e liberdade
abstratas, mas reconhecimento jurídico explícito da assimetria.
(GONÇALVES, 2018, p. 118).

Apontam-se também as transformações do Estado desde os


anos 1970, quando a ofensiva do capital instaura um verdadeiro pro-
cesso de expropriação dos direitos, no intento de recompor as taxas de
lucro8 e remoldar as bases de reprodução da força de trabalho (BOS-
CHETTI, 2018).
É sob estas novas bases que se deve discorrer sobre a pre-
carização, porém, sem resgatar os seus fundamentos, se incorreria
no erro de esconder os processos sociais a que ela pertence. Desse
modo, entende-se que a precarização é estrutural e social porque,
[...] na era da acumulação flexível, as transformações trazidas pela
ruptura com o padrão fordista geraram outro modo de trabalho
e de vida pautado pela flexibilização e pela precarização do tra-
balho, como exigências do processo de financeirização da econo-
mia, que viabilizaram a mundialização do capital num grau nunca
antes alcançado. (DRUCK, 2009, p. 6).

É justamente diante da crise estrutural, da mundialização do


capital e da generalização da pobreza que se coloca em evidência o
desmoronamento da humanidade e, indubitavelmente, da natureza
(MÉSZÁROS, 2015). Essa crise estrutural contemporaneamente tem
acirrado a contradição capital/trabalho e permitido a emersão de no-
vas expressões da questão social.
Em conjunto com outras mediações, este fato é indicativo da re-
lação entre questão social e trabalho, dado que a relação entre de-

8  Pois o efeito dessa queda estreitou a margem de acumulação lucrativa do capital, “[...]
afetou grandemente as perspectivas do movimento dos trabalhadores até mesmo na maioria
dos países de capitalismo avançado. Não apenas piorou o padrão de vida da força de traba-
lho em emprego formal (para não mencionar as condições de milhões de pessoas desem-
pregadas e subempregadas), mas, como mencionado na última seção, também reduziu as
possibilidades da sua ação autodefensiva como resultado da legislação autoritária imposta às
classes trabalhadoras pelos seus parlamentos supostamente democráticos”. (MÉSZÁROS,
2002, p. 824).

60
semprego e superpopulação relativa (população sobrante, seja
ela latente, flutuante ou estagnada) se manifesta, tendencialmen-
te, no mundo do trabalho mediante as diversas formas de traba-
lho precarizado (trabalho informal, trabalho por peça, trabalho
em domicílio, trabalho temporário). (RAPOSO, 2O15, p. 125).

Por isso, a precarização social do trabalho deve ser entendi-


da como um processo que envolve os âmbitos econômico, social e
político, e que gera
[...] uma institucionalização da flexibilização e da precarização
moderna do trabalho, que renova e reconfigura a precarização histórica
e estrutural do trabalho no Brasil, agora justificada pela necessidade
de adaptação aos novos tempos globais [...]. O conteúdo dessa
(nova) precarização está dado pela condição de instabilidade, de
insegurança, de adaptabilidade e de fragmentação dos coletivos
de trabalhadores e da destituição do conteúdo social do traba-
lho. Essa condição se torna central e hegemônica, contrapondo-
-se a outras formas de trabalho e de direitos sociais duramente
conquistados em nosso país, que ainda permanecem e resistem.
(DRUCK, 2007, p. 19-20, grifo nosso).

Esse processo de precarização se dá tanto pelos contratos


coletivos quanto pela institucionalização da instabilidade, fazendo
com que se torne mais uma expressão da questão social. Discorren-
do sobre a precarização, Druck, Franco e Seligmann-Silva (2010)
inferem que embora ela mantenha essencialmente a relação antagô-
nica entre capital/trabalho, torna-se um movimento complexifica-
do, pois (re)cria suas formas.
Ou seja, forja mudanças epidérmicas, de superfície, através de
diferenciados estatutos de trabalhadores que camuflam a relação
essencial capital/trabalho, confundindo as figuras sociais bási-
cas representativas – empregado e empregador – que norteiam
a vigência e a aplicação das leis trabalhistas. Neutraliza e anula
a regulação social do trabalho (com a consequente perda de di-
reitos conquistados pelos movimentos sociais anteriormente),
naturalizando o trabalho precário, banalizando a injustiça social
e a violência no trabalho (principalmente a violência psicoló-
gica). Dissemina uma era de precarização social e de trabalho
socialmente desagregador, terreno fértil para o sofrimento e o
adoecimento dos indivíduos, configurando o trabalho patogêni-
co. A precarização passou a ser um atributo central do trabalho
contemporâneo e das novas relações de trabalho, apresentando
múltiplas faces e dimensões (p. 2).

De acordo com o exposto, nota-se a centralidade da fun-


ção estatal no sentido de outorgar as dimensões da precarização, a

61
exemplo da flexibilização das leis trabalhistas. Nessa trilha, como re-
sultante da crise estrutural do capital, o desemprego se alastra, assim
como o aumento da desigualdade. Portanto, almejar uma resposta
consistente do Estado capitalista para as expressões da questão social
advindas desse processo seria uma tentativa de negação da realidade
e do não reconhecimento de sua funcionalidade para a classe domi-
nante.
Corroborando com a perspectiva de Meszáros (2015), a ação
do Estado em favor do capital e o acirramento da precarização do
trabalho se fazem cruciais, uma vez que é o Estado que firma o apa-
rato jurídico e político do neoliberalismo, impulsionando as privatiza-
ções e restrições de direitos, atingindo preponderantemente a classe
trabalhadora, pois há uma tentativa de homogeneizar o modelo de
produção e reprodução do capital, com forte incidência sobre a ide-
ologia e as necessidades de bens de consumo.
Vivencia-se uma ofensiva conservadora ainda mais intensa
nos últimos anos, com a renúncia de fatores democráticos e de justiça
social, a exemplo do impeachment de Dilma Rousseff em 2016. Atre-
lado a isto, iniciou-se um verdadeiro combate aos direitos da classe
trabalhadora, materializado em cortes e congelamentos de financia-
mento das políticas sociais.
O que as situações vêm demonstrando no contexto brasileiro
é que o conservadorismo tem se alastrado pelas diversas dimensões
da vida, e na política encontra espaço “privilegiado”.
No cenário político brasileiro contemporâneo, a “hipocondria da
antipolítica” é uma possibilidade posta para as esquerdas brasi-
leiras que, junto com o Partido dos Trabalhadores, sofreram um
duro golpe advindo da direita e da extrema direita. O Partido
dos Trabalhadores, que nunca assumiu o ideal da revolução co-
munista, havia deposto quase a totalidade de seus ideais progres-
sistas no momento em que definiu a estratégia da conciliação de
classes, mediante a ampla concessão aos interesses das classes
dominantes brasileiras, agarrando-se e reduzindo seu horizonte
aos programas de transferência de renda como bastiões do de-
senvolvimento econômico com “justiça social”. Concessões tão
extensivas e intensivas que seria possível estabelecer a imagem
segundo a qual o Partido dos Trabalhadores cumpriu a função
de “gestor do capital por procuração”. (SOUZA, 2016, p. 133).

Assim, entendido como a ideologia da crise, o conservadoris-


mo tem balizado as ofensivas do capital sobre a classe trabalhadora.
As expressões da precarização do trabalho, para além da flexibiliza-
ção dos contratos, postos de trabalho e processos de trabalho, têm
se dado por meio de adoecimento físico e mental, acirramento da

62
competitividade e fragmentação da organização das categorias e de
classe, intensificação e extensão de trabalho.
A respeito da extensão de trabalho, Luce (2013) anota que
há medidas adotadas pelo Estado que facilitam a violação do va-
lor da força de trabalho, a exemplo “(1) do banco de horas; (2) da
abertura do comércio aos domingos; (3) da flexibilização da CLT,
mediante portaria do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE),
facultando negociar a redução de 50% do horário do almoço” (p.
178).
Além dos aspectos supramencionados, há ainda a falta de
condições objetivas de trabalho (escassez de instrumentos e meios
de trabalho) e a redução de direitos trabalhistas.
Em síntese, a terceirização é o fio condutor da precarização do
trabalho no Brasil e se constitui num fenômeno presente em
todos os campos e dimensões do trabalho, pois é uma prática
de gestão/organização/controle que discrimina: ao tempo que
é uma forma de contrato flexível e sem proteção trabalhista,
é também sinônimo de risco de saúde e de vida, responsável
pela fragmentação das identidades coletivas dos trabalhadores,
com a intensificação da alienação e da desvalorização humana
do trabalhador, assim como é um instrumento de pulverização
da organização sindical, que incentiva a concorrência entre os
trabalhadores e seus sindicatos. Ainda, a terceirização põe um
“manto de invisibilidade” dos trabalhadores na sua condição
social, como facilitadora do descumprimento da legislação tra-
balhista, como forma ideal para o empresariado não ter limites
(regulados pelo Estado) no uso da força de trabalho e da sua
exploração como mercadoria. (ANTUNES e DRUCK, 2013,
p. 224).

À vista disso, a terceirização tem contornado hegemonica-


mente as relações de trabalho no Brasil. Depreende-se, mediante
o exposto, que a terceirização apresenta-se como a forma mais in-
tensificada de precarização do trabalho, com o agravante de que
recentemente ela foi legalizada. Embora fosse permitido terceirizar
tanto atividades-fim quanto atividades-meio (a exemplo de seguran-
ça e limpeza) das empresas desde 2017, com a lei de reforma traba-
lhista nº 13.467, de 2017, sancionada pelo presidente Temer, quase
um ano depois, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu tornar
constitucional o emprego de terceirizado(s) em atividades-fim de
empresas.
Trata-se de mais uma atitude da correlação capital-Estado
sobre os trabalhadores, retirando destes direitos já conquistados.
Harvey (2005) ressalta que sem a relação antagônica entre capital e

63
trabalho “não poderia haver nem exploração, nem lucro, nem circu-
lação de capital” (IDEM, p. 131).
A precarização do trabalho tem conformado as relações na
contemporaneidade, seja na formalidade, seja na informalidade. A
verdade é que os trabalhadores encontram-se desprovidos de prote-
ção em sua integralidade. No entanto, aqueles que se acham na super-
população relativa vivenciam esta desproteção com mais ênfase, pois
não têm acesso às garantias constitucionais. Com a estratégia recente
do STF de tornar constitucional a terceirização, isso permitirá que
os empregados se tornem desempregados e retornem aos postos de
trabalho como terceirizados.
Esta lógica destrutiva do capital tem obrigado os trabalhado-
res a se submeter às suas ofensivas tanto sobre o tempo de trabalho
quanto sobre a vida. Estes sujeitos, vivenciando a pauperização abso-
luta ou relativa, têm revelado uma das expressões da questão social na
contemporaneidade, a saber, a imersão na precarização do trabalho,
que condensa diversas formas de desigualdade.
Sustentado na teoria social de Marx e apropriando-se princi-
palmente das considerações da Lei Geral da Acumulação Capitalista,
Marini (2005) em Dialética da Dependência atenta para a função que os
países dependentes cumpriram, sendo bem mais do que um “figu-
rante”, no que se refere especificamente à trama nascente da grande
indústria, no respectivo cenário de impulso, desenvolvimento e con-
solidação do modo de produção capitalista.
Um movimento que é guiado pela consolidação de uma divi-
são internacional do trabalho, em função da demanda do capitalismo
central, que ajustará e desenvolverá os países dependentes dinamica-
mente articulados às necessidades do capitalismo internacional. Des-
se modo, configura-se o estado de dependência em face da estrutura
da divisão internacional do trabalho, como ponto de partida que con-
solida a condição de atraso, periferia e subordinação. Essa condição
se mostra necessária e funcional à reprodução do capitalismo central.
São essas as particularidades que condicionam a situação e o
grau de exploração e subordinação a que é submetido o capitalis-
mo periférico, tardio, que se desenvolveu no Brasil. Torna-se, desse
modo, mais candente a contradição entre capital-trabalho, a concen-
trada apropriação da riqueza socialmente produzida, a alienação, a
relação de fetichismo entre o produtor e o “seu” produto.
Nesse processo,
[…] aumenta-se a intensidade do trabalho, prolonga-se a jorna-
da laboral e/ou simplesmente se rebaixa forçosamente o salário
do trabalhador, sem que essa redução salarial corresponda a um

64
barateamento real da força de trabalho. Em todos esses casos, a
força de trabalho é remunerada abaixo de seu valor e, por con-
seguinte, dá-se uma superexploração dos trabalhadores. (MA-
RINI, 2012, p. 30).

O exército industrial de reserva com sua crescente massa de


braços disponíveis para o usufruto do capital toma forma na econo-
mia dependente como fator que potencializa a condição de submis-
são dos trabalhadores “inativos” desempregados e a exploração dos
trabalhadores ativos, podendo
[...] existir sob a forma aberta, do desemprego, ou disfarçada, de
subemprego; mas, em qualquer caso, é um exército de reserva
que faz minguar a capacidade reivindicativa da classe operária e
propicia a superexploração dos trabalhadores. (IBIDEM, p. 31).

Todavia, sabe-se que o próprio contexto de restauração do


capital reafirma o desemprego estrutural, fazendo com que os tra-
balhadores passem a ter “ocupações”, tendo em vista a expansão do
capital para o âmbito dos serviços, sem, muitas vezes, retirá-los da
condição de superpopulação relativa, ou seja, tem-se a apropriação
do trabalho do trabalhador, mas não há emprego para ele.
Esta situação adquire êxito por meio, inclusive, das ações do
Estado, o qual passa a desenvolver políticas focais e minimalistas,
em detrimento de ações que privilegiam os capitalistas, empresários,
acionistas. Embora seja um aparato contraditório, o seu caráter de
classe dominante prevalece.

2 O trabalho dos motoboys: a precarização como catego-


ria explicativa

A respeito da precarização, apesar de Marx não descrevê-la,


tal fenômeno não foi ignorado em suas análises. Segundo Barros,
Ele o trata, fundamentalmente, no capítulo da Lei geral da acu-
mulação capitalista, inclusive utilizando-se do termo prekärer
(precária/precário) em três momentos desse capítulo. No final
do item 3, nas primeiras páginas do item 4 e no item 5. Nessas
partes, o autor discorre sobre como as mudanças na composição
do capital promovem para o trabalhador uma condição de vida
precária. Depois, detalha os movimentos de inserção nas formas
se superpopulação relativa; em seguida, ilustra no item 5 as con-
dições de vida dessa massa de trabalhadores (2018, p. 103).

65
Nessa vereda, considera-se que tratar da precarização como
pressuposto é necessário, mas não suficiente. Apesar de ser um fenô-
meno intensificado a partir da reestruturação produtiva, que trouxe
consigo a flexibilização e a precarização do trabalho, faz-se crucial ex-
pressar o que a particulariza como especificidade profissional inserida
no seu contexto histórico e conjuntural.
O trabalho dos motoboys é uma das respostas às necessidades
de acumulação do capital reestruturado. Sabe-se que há grande con-
tingente de trabalhadores que se utilizam da motocicleta para traba-
lhar rotineiramente em condições precarizadas, sendo o Brasil o país
que tem o maior número de motoboys9 do mundo (SINDIMOTO-
-SP, 2014)10. Em todo o país são cerca de 2 milhões de pessoas que
atuam como motoboys, mensageiros, mototaxistas etc.
No entanto, mesmo que o Brasil contemple a maioria desses
sujeitos trabalhadores, eles não fogem ao fenômeno da imigração e
por isso, muitos motoboys brasileiros têm ido exercer esta atividade
em outros países – não fugindo ao sonho dos demais cidadãos brasi-
leiros de condições de vida melhores11.
Em entrevista, em 5 de março de 2002, um motoboy brasi-
leiro no exterior disse que o diferencial dos motoboys brasileiros é
que não são preguiçosos e trabalham independentemente da con-
dição climática12. Este relato revela uma particularidade importante
a ser destacada nesse processo do objeto de estudo: o fenômeno da
imigração e a sua relação com a precarização do trabalho.
O grande incentivo tanto para a migração quanto para a imi-
gração é a faixa salarial. Um exemplo é que o pagamento de 300 libras
(cerca de R$ 1.000) a 800 libras (cerca de R$ 2.700) por semana é o
principal motivo para que busquem o trabalho em outros países, a
exemplo da Grã-Bretanha.13

9  A palavra motoboy, de origem inglesa, é um neologismo composto pela junção de duas


palavras (motorcycle = moto e boy = garoto).
10  Para mais informações, acessar o link disponível em: <https://www.motorede.com.br/
dilma-assinou-lei-de-periculosidade-para-motoboys-que-da-30-de-adicional/>
11  Os motoboys dizem que o mercado de entregas em Londres é dominado por brasileiros,
que levam vantagem por serem mais ágeis e ousados no trânsito. Não existem, contudo,
números oficiais sobre a quantidade de entregadores que nasceram no Brasil e trabalham no
Reino Unido. Informação extraída do site da BBC, disponível no link: <https://www.bbc.
com/portuguese/brasil-48662030>
12  Informação retirada do site da BBC, disponível no link <https://www.bbc.com/portu-
guese/noticias/2002/020305_motopc.shtml>
13  Mesma fonte da nota de rodapé acima.

66
Portanto, os pressupostos desta atividade são que sendo re-
quisição do movimento de restauração do capital14 e da necessidade
de comprimir o espaço-tempo, os motoboys fazem as mercadorias
circular mesmo numa cidade em que o trânsito “não anda”, a exem-
plo de São Paulo. Portanto, o trabalho desses sujeitos exprime uma
forma de existência.
Abordar o trabalho dos motoboys é tocar direta ou indire-
tamente no cotidiano da sociedade, pois seja requerendo o trabalho
deles, seja encontrando-os em meio ao trânsito caótico, é fato que
eles interferem em nossas vidas. Uma pesquisa realizada em julho de
2018 pelo IPEA revelou que os motoboys são os sujeitos que mais
sofrem acidentes, e os caminhoneiros são os que têm maior taxa de
mortalidade em estradas.
No Brasil, acompanhando a programática de golpe, houve a
perda massiva de direitos em 2016, envolvendo, inclusive, a retirada
do adicional de periculosidade, o que corroborou para a intensifi-
cação da precarização de trabalho dos motoboys. Outra estratégia
de precarização do trabalho identificada nessa aproximação ao ob-
jeto é o processo de “uberização do motoboy”, em que o sujeito
não possui vínculo formal algum, mas presta serviço para diversos
aplicativos, os quais têm relação com estabelecimentos comerciais,
alimentícios etc., além de trabalhar para os próprios consumidores
finais ao realizar a entrega.
Perante estes dados, infere-se que o trabalho dos motoboys
possui o fator comum entre as relações de trabalho na sociabilida-
de regida pelo capital: o envolvimento desigual entre trabalhador
e capitalista, que desemboca na exploração e/ou na precarização
daquele e no usufruto da riqueza produzida para este.
É, pois, necessário afirmar que sem a relação contraditória
entre capital e trabalho não haveria exploração, lucro ou circulação
de capital, a qual encontra aparato jurídico-normativo por meio do
Estado.

Considerações finais

14  Presente na obra A restauração do capital: um estudo sobre a crise contemporâ-


nea. São Paulo: Xamã, 1996, é um termo criado por Ruy Braga para analisar o movimento
de reestruturação do capital em consonância com a restauração da economia e da política
capitalista, marcadas pela hegemonia financeira e pelo ideário neoliberal.

67
O direito à vida urbana, embora seja um direito humano, está
subjugado às expressões de desigualdade e à necessidade de absorção
do capital excedente, pois a cidade está dominada por interesses pri-
vados. À vista disso, a união do capital financeiro ao imobiliário traz
uma nova lógica de (re)construção do espaço, cujo impulso vital é a
maximização do lucro. Os trabalhadores são incentivados a habitar as
periferias, tendo como consequência o distanciamento de seus locais
de trabalho, ao tempo que têm retirados os benefícios da vida urbana.
O que se pode discernir é que o capital apropria-se do am-
biente construído, da natureza, da força de trabalho e também cria
várias expressões de desigualdade nesse mesmo movimento. Os
conflitos gerados mediante essa relação perpassam tanto a produção
quanto a reprodução da vida.
Abordar os fenômenos da migração, imigração, questão sala-
rial, acidentes, adoecimento mental, desproteção trabalhista e social,
formas contemporâneas do trabalho na sociabilidade capitalista, bem
como novas estratégias de expropriação do trabalho, é fundamental
para discutir a precarização do trabalho.
Para tratar acerca da reprodução social e do trabalho dos mo-
toboys, é necessário fazer um percurso que tangencie os fundamen-
tos da precarização do trabalho e suas expressões na sociabilidade
capitalista, assim como a funcionalidade do Estado nesse processo,
perante as suas intervenções sobre as expressões da questão social.
Esta encontra solo fértil no movimento de expansão da cidade, cuja
produção de desigualdade perpassa os diversos âmbitos da vida.
E é neste âmbito que o trabalho dos motoboys se situa: como
requisição da reestruturação do capital, para dar conta das novas de-
mandas do sistema, cujo imperativo permanece sendo a redução do
tempo para a realização da mais-valia.
Este processo se agrava com a expansão do meio urbano,
lócus privilegiado da indústria, do comércio e adjacentes, locais que
requisitam o trabalho dos motoboys para inúmeras atividades. Desse
modo, entende-se que os motoboys contribuem no movimento de
valorização do capital, fazendo circular mercadorias mesmo em meio
ao trânsito caótico, agindo como “o sangue que circula pelas artérias
da cidade” ao corroborarem com o livre fluxo da produção/reprodu-
ção social.

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71
A arte resiste: trabalho precarizado e ofensiva
conservadora no Brasil

Bruna Massud de Lima1


Andréa Lima da Silva2

Introdução

A arte deve ser compreendida como produto de determina-


da construção social (TROTSKI, 2007). A arte é privilégio da bur-
guesia? A classe trabalhadora imanente ao processo de alienação e
alijada dos meios de produção e do acesso à riqueza socialmente
produzida historicamente não produz arte? Não se pode viver da
arte? São questões complexas que devemos analisar.
Para Chauí (2000, p. 293), “a natureza é o reino da repetição;
a cultura, o da transformação racional; portanto, é a relação dos hu-
manos com o tempo e no tempo”. Os elementos culturais são, pois,
constitutivos da história. Para se ter cultura deve haver um incentivo
ao aprendizado das suas manifestações em geral. Um incentivo à
arte. Mas o que é cultura?
Na concepção de Trotsky (1981), ela representa
tudo aquilo que foi criado, construído, apreendido, conquistado
pelo homem no curso de toda a sua História, em contraposição
ao que a natureza lhe deu, compreendida aí a história natural do
homem como espécie animal (...). Mas o momento em que o

1  Assistente social. Mestre em Serviço Social pela UFRN. Doutoranda em Servi-


ço social pela UFRN. E-mail: brunamassud@hotmail.com
2  Assistente Social. Doutora em Serviço Social pela UFPE. Pós-Doutora em Po-
líticas Sociais na UnB. E-mail: dealima18@gmail.com
homem se separou do reino animal – e isto aconteceu quando o
homem segurou pela primeira vez os instrumentos primitivos de
pedra e de madeira –, naquele momento começou a criação e a
acumulação de cultura, isto é, do conhecimento e da capacidade
de todos os tipos para enfrentar e subjugar a natureza (p. 51).

É a partir do advento do Iluminismo que a cultura, vinculada


a um viés político e ideológico, passa a representar “o padrão ou o
critério que mede o grau de civilização de uma sociedade”, sendo
considerada, junto com a arte e outras esferas da sociedade, parte do
conjunto de práticas “que permite avaliar e hierarquizar o valor dos
regimes políticos, segundo um critério de evolução” ou progresso
(CHAUÍ, 2008, p. 55).
Na Modernidade, com o curso de desenvolvimento das socie-
dades, não houve superação da metafísica, como lembra Costa (2012,
p. 11), mas sim a superação “do apego religioso à transcendência”,
quando o conceito de cultura se amplifica enquanto produção e cria-
ção de símbolos e signos vinculados a práticas e valores existentes
na linguagem: religião, sexualidade, trabalho, arte, vestuário, culinária,
relações sociais, entre outros (CHAUÍ, 2008). A partir desse entendi-
mento, o elemento cultural passa a ser analisado como um complexo
que abrange o conhecimento, as crenças, a lei, a moral, os costumes e
todos os hábitos e aptidões adquiridos pelo ser humano.
Desse modo, a arte, também parte constitutiva da cultura cons-
truída pelos indivíduos em determinados processos históricos, nas-
ce das necessidades da vida social para logo desembocar novamente
nesta, dialeticamente como consequência e, ao mesmo tempo, enor-
me influência que detém sobre o cotidiano (LUKÁCS, 1978). A vida
tornar-se-ia enriquecida pela arte, que é dotada, por sua vez, de uma
direção política e ideológica. A ciência não é neutra. A arte também
não é.
Com o advento do modo de produção capitalista, os bens ar-
tísticos passam a ter um “suposto valor de mercado”: desde o século
XIX, do ponto de vista teórico, já é sabido que para o mercado só se
reconhece enquanto arte aquilo que está subsumido aos seus ditames.
Tal processo se intensifica a partir da década de 1970 e, especifica-
mente no Brasil, em meados da década de 1990, período marcado
pela ascensão da reestruturação produtiva, financeirização do capital
e pelo projeto neoliberal.
O presente artigo é uma pesquisa qualitativa, construída a par-
tir de análise documental e bibliográfica, que objetiva problematizar
em um primeiro momento a condição dos/as artistas brasileiros, uma

74
vez que esses/as vivenciam processos de trabalho marcados pela
ausência de direitos trabalhistas, sociais e culturais. Artistas que na
sua relação dialética com a arte a mantêm como atividade laboral
e retiram dessa relação um processo contínuo de luta e resistência.
Nessa perspectiva, podemos afirmar que o trabalho dos ato-
res e atrizes na contemporaneidade faz parte da recomposição do
mundo do trabalho sob forte ofensiva capitalista. Esses/as repre-
sentam sujeitos precarizados como qualquer outro/a trabalhador/a
que subordina sua força de trabalho ao capital. São indivíduos des-
providos de direitos, inseridos na informalidade, sem regulação,
num complexo contraditório que une formas arcaicas e modernas
de exploração da mão de obra.
Assim, “estamos diante da tentativa de supressão radical da-
quilo que Marx chamou de ‘vitórias da economia política do traba-
lho’ e, por conseguinte, de restauração plena da economia política
do capital” (COUTINHO, 2010b, p. 37). Compele-se, portanto, à
classe trabalhadora, “custear, sob o pretexto da ‘sobrevivência da
espécie humana’, a sobrevivência de um sistema socioeconômico”
(MÉSZÁROS, 2011, p. 52), realidade que tem no Brasil sua repre-
sentação máxima a partir da aprovação da Reforma Trabalhista
ocorrida em 2017, no governo “ilegítimo” de Michel Temer (2016-
2018), instrumentalizada pela Lei nº 13.467 e que destruiu impor-
tantes direitos trabalhistas assegurados até então pela CLT.
Desse modo, propomos também, a partir das considerações
acima relacionadas, discutir a relevância estratégica da arte na con-
juntura atual do país, tendo em vista o aprofundamento do conser-
vadorismo e os ataques às produções culturais, valendo-se, sobre-
tudo, de subterfúgios morais e religiosos, com acirrado discurso de
ódio aos valores humano-genéricos, que tenta reduzir o potencial
crítico e transformador da arte e a politização dos/as artistas e da
população brasileira em geral.
É sabido que, em momentos de crise, acentuam-se as pers-
pectivas irracionalistas e reacionárias, que no Brasil ganharam eco e
têm como principal representante o atual Presidente da República,
Jair Bolsonaro, eleito para o mandato 2019-2022, que além de não
concentrar em seu plano de governo nenhuma proposta para a área,
extinguiu o Ministério da Cultura (Minc) existente desde 1985, rea-
firmando a posição do governo ante a política cultural e reforçando
a compreensão equivocada sobre as normativas de incentivo ao se-
tor, a exemplo da Lei Rouanet.
É nesse sentido, portanto, que será discutida a precarização
do trabalho de atores e atrizes sob a acirrada disputa ideológica no

75
Brasil, que coloca a arte como entrave em meio à crise social e política
do país.

1 Arte-mercadoria e o/a artista como trabalhador precari-


zado no Brasil

A classe trabalhadora contemporânea representa um setor he-


terogêneo e multifacetado que se encontra inserido num circuito eco-
nômico internacional. A mobilidade geográfica do capital implica um
domínio mundial da força de trabalho. Tal cenário exige a elaboração
de uma concepção ampliada de trabalho (ANTUNES, 2008, p. 11),
ou seja, a compreensão sobre a existência de uma multiplicidade en-
tre aqueles que atuam “tanto no mundo direto da produção, quando
da totalidade do trabalho coletivo e social”, isto é, “que participam
da produção de mercadorias, sejam elas materiais ou imateriais (direta
ou indiretamente) do processo de reprodução do capital” (IDEM, p.
12).
Para Harvey (2009), a desvalorização da força de trabalho, que
une a precarização e a informalização, sempre foi a resposta instinti-
va dos capitalistas à queda da taxa de lucro. Nota-se que essas novas
configurações do capital só vieram a reforçar essa desvalorização da
força de trabalho através do enfraquecimento de sua organização; da
cooptação dos sindicatos; do aumento da subcontratação dos traba-
lhos temporários, precários ou informais; da competição entre traba-
lhadores, causando, com o desemprego estrutural, o encolhimento
dos salários e o crescimento do exército de reserva.
Fica evidente, portanto, que a precarização e a flexibilização do
trabalho servem de mecanismo para a ampliação e a intensificação da
valorização do capital: atuam, de forma direta, no processo de acu-
mulação, sendo medida de exploração de um trabalho destituído de
proteção, que garante ao sistema a extração de mais-valia em níveis
exorbitantes. É preciso reforçar que a precarização do trabalho repre-
senta um “traço estrutural” do capitalismo, sendo transformadas as
formas de expressão ao longo da história, a depender da correlação
de forças instituída (ALVES, 2013).
Mas no que isso pode interessar ao Serviço Social? Absoluta-
mente em tudo. No contexto das crises societárias, e mais particular-
mente no que tange às suas consequências, que afetam o chamado
mundo do trabalho, a análise das condições materiais e subjetivas
da classe trabalhadora nas suas mais diversificadas atividades laborais

76
precisa da análise crítica, histórica e de totalidade do Serviço Social.
Neste sentido, uma vez que essa profissão busca entender as
consequências nefastas da exploração da força de trabalho; da com-
pleta destruição dos valores da sociabilidade do capital; da escassez
dos serviços públicos, e, sobretudo, da ineficácia da ação do Estado,
faz-se necessário debruçar-se sobre o ataque sistemático aos direitos
da classe trabalhadora nessa quadra histórica, fomentado no bojo do
processo metabólico do capital.
É ainda nesse cenário que buscamos analisar, em meio a uma
diversidade de trabalhadores que sofrem diretamente os efeitos da
crise estrutural do capital, os atores e atrizes como trabalhadores/
as precarizados/as, porquanto esses/as profissionais se encontram
inseridos/as nas relações sociais de produção e são submetidos/as à
Lei Geral da Acumulação. Profissionais cada vez mais subsumidos/
as ao desemprego estrutural e à expansão de um quadro de agrava-
mento das condições de vida e da barbárie social.
É necessário analisar o Estado brasileiro na sua ampla e exi-
tosa participação no aumento da flexibilização trabalhista e da pre-
carização do trabalho, que começa na década de 1990 e permanece
na década seguinte, com a “reorganização do capitalismo na base da
acumulação flexível”. Apesar da baixa no “desemprego, a partir de
2003, ampliou-se a mancha de precariedade laboral” (ALVES, 2015,
p. 16), com mais incidência na vida de mulheres, população negra,
jovens, migrantes e imigrantes.
Tal realidade se expressa na Reforma Trabalhista, aprovada
sob o governo Temer, com maior incidência a partir de um processo
de desregulamentação e precarização laborativa, vinculado majorita-
riamente à flexibilidade de contratos, que quer dizer: a possibilidade
de variação no volume de trabalho, salário, horários e o local de
realização, com profundos impactos na vida da classe trabalhadora.
Um exemplo disso é a forma de contratação pela modalidade de
trabalho intermitente, que expõe os níveis de flexibilização, a par-
tir do momento que o/a trabalhador/a pode ser contratado/a por
horas de exercício realizado, sem nenhum direito garantido. Anota
Marx (1994) que “tudo o que importa é tornar a fome permanente
na classe trabalhadora” (p. 750).
Desse modo, a partir da análise do trabalho do ator e da atriz,
mais especificamente, da sua ferramenta de trabalho – a arte ‒, é
possível afirmar prontamente duas coisas. A primeira é que a arte,
a partir da acumulação primitiva, torna-se empreendimento do ca-
pital, que coisifica e mercantiliza tudo o que for passível de gerar
lucro. Sob essa compreensão, Marx e Engels (1986, p. 33-34) ao

77
analisar as especificidades do trabalho produtivo e improdutivo no
âmbito da arte, esta já tomada como mercadoria e produtora de mais-
-valia, comentam:
Milton que escreveu O Paraíso Perdido era um trabalhador impro-
dutivo. Pelo contrário, o escritor que trabalha para o seu editor,
como um assalariado da indústria, é um trabalhador produtivo.
Milton fez o Paraíso Perdido como o bicho-da-seda faz seda. Era
uma manifestação da sua natureza. O poeta vendeu mais tarde o
seu trabalho por cinco libras esterlinas. Mas o escritor proletário
de Leipzig que, sob a direção do seu diretor, fabrica livros, é um
operário produtivo, visto que a sua produção está, desde o início,
subordinada ao capital e só se realiza para seu lucro (...). Um ator,
por exemplo, ou mesmo um palhaço, são, pois, operários produ-
tivos, se trabalham a serviço de um capitalista (de um empresário)
a quem dão mais em trabalho do que o que recebem em forma
de salário.

A segunda questão repousa no traço político da arte, ou seja, na


forma como ela se organiza a partir das relações de produção, bem
como as relações de trabalho entre os/as artistas, no esforço para que
seja superada a divisão entre trabalho material e trabalho espiritual
na construção do produto artístico e na sua interface com o público
espectador (CARVALHO; MARCIANO, 2009, p. 165).
Ainda pensando sobre a inserção da arte no sistema capitalista,
observa-se que essa se torna produto, “coisa” a ser comprada e co-
mercializada, consumida como mais uma mercadoria que adentra o
circuito de compra e venda, em que “o artista passa a trabalhar para
ser reconhecido como artista, gasta sua energia produtiva e econômi-
ca para aparecer nos jornais, para ser valorizado como mercadoria da
cultura” (CARVALHO, 2009, p. 166).
Ratificando essa análise, Carvalho (2009) indica, a partir da ex-
periência como diretor e dramaturgo de teatro, o entendimento do/a
artista como trabalhador/a e a sua consequente inserção no mundo
da mercadoria. Afirma que, embora participe de um dos grupos te-
atrais mais conhecidos do país, os/as integrantes da Companhia do
Latão (SP), nunca puderam viver exclusivamente do trabalho teatral,
necessitando recorrer a outros ofícios para garantir a sobrevivência.
E assim, considera que a falta de controle dos meios de produção
impossibilita a autonomia sobre o processo de trabalho.
Nessa seara, segundo os indicadores culturais apresentados
pela FIRJAN em 2016, a área cultural possui o menor número de
trabalhadores formais da chamada “indústria criativa” – em 2015, por
exemplo, a Cultura detinha 66,5 mil profissionais, ou seja, 7,8% do

78
total, em que estão incluídos os segmentos de Expressões Culturais
(26,8 mil), Patrimônio e Artes (16 mil), Música (12 mil) e, por últi-
mo, Artes Cênicas, com 11,7 mil (1,4% dos trabalhadores formais).
No âmbito da remuneração, pode-se afirmar que houve recuo
no valor dos salários pagos à Cultura, mais precisamente, -2,6% em
termos reais, mantendo a área criativa na posição de pior remune-
ração. Esse resultado negativo é, ainda de acordo com a FIRJAN
(2016), exclusivamente devido à forte queda no setor de Artes Cêni-
cas (-11,1%), contraditoriamente um dos segmentos que mais con-
tratou no período.
Essa realidade expõe o tratamento que o Estado – teorica-
mente, promotor de formas de expressão cultural – destina ao tea-
tro brasileiro e a seus/as artistas. É sintomático que uma expressão
artística tão importante e popular como o teatro conviva com uma
realidade em que seus/as profissionais e coletivos estejam em per-
manente luta para garantir a realização dos trabalhos, tendo ainda
de sofrer as determinações impostas por “um mercado onipresente
que define desde as políticas mais gerais do Estado até os menores
detalhes” (COSTA, 2007, p. 19).
Esse mercado, entretanto,
sempre dependeu do Estado, tanto no sentido estritamente eco-
nômico quanto no político. Refiro-me principalmente à lógica
ultraperversa da privatização dos lucros e socialização dos pre-
juízos que sempre pautou a economia brasileira, para não dizer
nada da verdadeira canibalização que vem sofrendo o Estado
brasileiro desde o fim da ditadura militar (COSTA, 2007, p. 19).

É necessário afirmar que essa aguda precarização que atinge


os/as profissionais da arte passa inevitavelmente pelo Estado. O
Estado é a instituição máxima das decisões que incidem em todas as
esferas da vida social; no complexo estágio das artes no Brasil, ele
pouco avançou na construção e promoção de uma política pública
cultural substanciada em seu sentido mais amplo: ao contrário, há
um aviltamento das ações culturais, com vários ataques ao setor por
meio do poder público e de alguns representantes da sociedade civil.
Se considerarmos o contexto histórico brasileiro, a arte e a
cultura sempre foram secundarizadas quando pensamos em orça-
mento público. E, quanto menor o investimento nesse setor, mais
visível será a redução dos postos de trabalho, gente que vive do
palco, das leis de incentivo, dos editais, dos minguados e pontuais
patrocínios das empresas privadas. Assim, observa-se em nosso país
que, a partir do golpe jurídico-parlamentar de 2016, há uma visível

79
decadência das políticas culturais, a exemplo da descontinuidade nos
editais para as Artes da Fundação Nacional das Artes (FUNARTE);
do encerramento do Programa Cultura Viva; e da extinção das políti-
cas voltadas à diversidade cultural.
Já em janeiro de 2019, no início da gestão de Bolsonaro, é
promulgada a extinção do Minc, sendo suas demandas fundidas ao
recém-criado Ministério da Cidadania, que engloba ainda esporte e
desenvolvimento social. O governo Bolsonaro, conforme anunciou
desde a campanha, indica que a cultura vai ser tratada como algo se-
cundário, diluído num ministério de baixíssimo orçamento e de pou-
ca importância, reduzindo ao limite a intervenção pública na área, a
exemplo do encerramento do Programa Petrobrás Cultural.
A extinção do Ministério da Cultura já vinha sendo pensada
e seus programas sendo esvaziados desde 2016, com a revogação
de leis, como a do Audiovisual; a desregulamentação do registro de
trabalho dos/as artistas brasileiros/as (DRT) e o congelamento de
recursos para a área. Desse modo, podemos afirmar que o Estado
quando não promove política de arte-cultura, desregulamenta em lar-
ga medida o que já fora conquistado, a partir do trabalho de atores
e atrizes que vivem da sua arte, do seu trabalho. O esvaziamento da
Cultura é o esvaziamento de uma sociedade pensante, é o embrute-
cimento das relações sociais de produção que reifica a alienação e
atrofia a consciência humana.
Nesse sentido, o Estado tende a reforçar os interesses do ca-
pital, garantindo “nada para o trabalhador e tudo para o mercado”,
legitimando a compreensão de que “boa arte é a que vende bem e
tem sucesso de público”, como se não fosse sua própria responsa-
bilidade a construção de ações que visam à formação desse mesmo
público, bem como à apresentação de “maneiras outras de ver e pen-
sar que não as da colonização mental da indústria cultural” (CEVAS-
CO, 2010, p. 145). Essa última, parte do conceito criado por Theo-
dor Adorno e Max Horkheimer – membros da chamada Escola de
Frankfurt –, para explicar a transformação da cultura em mercadoria,
que, em conjunto com o Estado, se concentram na reprodução da
cultura de massas.
Dessa maneira, o ente estatal assume a desresponsabilização no
fomento de políticas públicas no neoliberalismo, mantendo o com-
passo da lógica perversa na promoção da arte e cultura. Nessa pers-
pectiva, ao invés de democratizá-las, diminui o seu potencial e o seu
alcance social.
Sobre os direitos culturais previstos na Constituição Federal
de 1988, nota-se que “os recursos previstos e os efetivamente desti-

80
nados aos órgãos de cultura no Brasil, nas esferas federal, estadual
e municipal, ficam muito aquém do necessário” (CUNHA FILHO,
2002, p. 39).
De acordo com Chauí (2000):
A democratização da cultura tem como precondição a ideia
de que os bens culturais (no sentido restrito de obras de arte
e de pensamento e não no sentido antropológico amplo, que
apresentamos no estudo sobre a ideia de Cultura) são direito de
todos e não privilégio de alguns. Democracia cultural significa
direito de acesso e de fruição das obras culturais, direito à infor-
mação e à formação culturais, direito à produção cultural. Ora,
a indústria cultural acarreta o resultado oposto, ao massificar a
Cultura. (p. 422).

A quantidade de eventos culturais realizados no país poderia


sugerir ou dar indícios da existência de uma ação estatal efetiva para
a promoção da cultura, com geração de empregos para os/as traba-
lhadores/as que vivem da arte, porém, o fomento à arte encontra-se
subsumido à lógica mercantil que privilegia a cultura de massa. É a
cultura de massa que seduz, que é consumida em grande escala pela
população em geral. É a cultura do entretenimento e que não faz
“pensar” (Chauí, 2000). A cultura e arte “criadora”, a arte que edu-
ca o indivíduo e o faz transcender à fragmentação produzida pelo
fetichismo da sociedade mercantil (Lukács, 1978) não interessa ao
Estado ou à indústria cultural.

2 Crise do capital, ofensiva conservadora e resistência ar-


tística

A partir dessa análise sobre a crise do capital, da atividade la-


boral dos atores e atrizes, da sua precarização e do lugar que a cultu-
ra ocupa no Brasil na conjuntura “bolsonarista”, a arte, mais do que
nunca, precisa e deve ser compreendida “como um desdobramento
do trabalho”, que não se separa deste, e que, ausente de hierarquias,
“as duas atividades – o trabalho e a arte – inserem-se no processo
das objetivações materiais e não materiais que permitam ao homem
separar-se da natureza, transformá-la em seu objeto e moldá-la em
conformidade com os seus interesses vitais” (FREDERICO, 2013,
p. 43).
Marx, contrariamente, conferiu à atividade artística uma dimen-
são humana essencial, insubstituível, pondo fim à ambiguidade

81
hegeliana que somente concedia liberdade de expressão ao ho-
mem enquanto executante dos desígnios do Espírito. Retomando
a posição feuerbachiana, Marx valorizou os sentidos como meio
de afirmação do homem e recusou a inferioridade destes perante
a atividade teórica (FREDERICO, 2013, p. 44).

Devemos compreender a história da arte como “parte da histó-


ria geral da humanidade” (KONDER, 2013, p. 22), em que a relação
e as determinações entre arte e luta de classes formam um elo indi-
visível e de intensa mediação. Ao compreender corretamente o papel
da arte na esfera cultural, torna-se possível compreender radicalmen-
te o desenvolvimento das relações econômicas em determinada épo-
ca (LUKÁCS, 1978).
O elemento artístico enquanto reflexo da realidade material,
que oferece à sociedade a possibilidade de reflexão, não pode ser pen-
sado sob a perspectiva de uma “contemplação desinteressada, nem
como celebração deslumbrada da vida” (FREDERICO, 2013, p. 47;
CEVASCO, 2010, p. 145), tampouco como criação meramente in-
dividual ou abstrata, ausente de determinantes estruturais, mas sim
como produto da consciência humana e do processo histórico.
Assim, o materialismo marxista reedita a análise sobre estética,
promovendo “uma revalorização do conhecimento artístico”, vincu-
lando-a ao seu tempo histórico, embora não possa ser reduzida a ele
(IDEM, p. 42).
A partir da perspectiva analítica de Alves (2013), acredita-se
que o/a trabalhador/a artista, considerado produtor/a de trabalho
ideológico, pois se encontra imerso/a na “ação comunicativa do ca-
pitalismo”, uma vez que está implicado/a “numa ação comunicativa
sobre outros homens e inclusive sobre si mesmo, exerce uma ação
ideológica sobre outros homens e sobre si mesmo”. Isso envolve,
necessariamente, “a subjetividade do sujeito que trabalha” (ALVES,
2013, p. 244). Por essa razão é que o trabalho dos/as atores e atrizes
não passa incólume aos mecanismos ideológicos produzidos em cada
tempo histórico.
Sob esse entendimento, infere-se que a arte tem uma direção
política e, nesse sentido, é necessário analisar, também, o aspecto ide-
ológico que compõe a criação artística e que se efetiva no trabalho de
cada artista.
Nessa relação, observa-se que, se em momentos de estabilida-
de econômico-política se “prestigiam as orientações fundadas num
‘racionalismo’ formal” (COUTINHO, 2010a, p. 18), em períodos de
crise econômica, política e social, como a vivenciada atualmente, ten-

82
de-se a se acentuar o irracionalismo e o subjetivismo, por meio do
reforço a perspectivas conservadoras, como as que estamos viven-
ciando desde o golpe de 2016.
Subsumidos aos ditames do capitalismo neoliberal, temos:
uma exacerbação do individualismo; a primazia da cultura de massa;
o desmantelamento de políticas que fomentam a arte e a cultura
“engajada”; a fragmentação dos indivíduos e da sociedade. É pos-
sível inferir que há um reforço das teorias constitutivas da pós-mo-
dernidade que, de algum modo, contribuem para a manutenção da
ordem vigente que entroniza o irracionalismo como marca histórica
e cultural. Assim:
o mundo da cultura não pode ser visto isolado ou autonomiza-
do em relação a este novo estágio do capitalismo, pelo contrá-
rio, ele se firma como uma de suas mediações. É a ordem do-
minante que se quer reinventar num outro momento histórico
para ressignificar e refuncionalizar as suas bases materiais de
produção e reprodução desigual e combinada. A tarefa ideoló-
gica fundamental do novo conceito, entretanto, deve continuar
a ser a de coordenar as formas de prática e de hábitos sociais
e mentais (...) e as novas formas de organização e de produção
econômica que vêm com a modificação do capitalismo – a nova
divisão global do trabalho – nos últimos anos. (...) uma ‘revolu-
ção cultural’ na escala do próprio modo de produção; também
aqui, a inter-relação do cultural com o econômico não é uma
rua de mão única, mas uma contínua interação recíproca, um
circuito de realimentação (JAMESON, 1996, p. 18).

O conservadorismo no Brasil, como marca de sua formação


sócio-histórica particular, atualiza expressões e tende a colocar, na
atualidade, a arte no centro da disputa econômica, política e ideoló-
gica, por meio de graves ataques ao setor cultural, tanto na perspec-
tiva da política social, quanto dos elementos vinculados à liberdade
de expressão artística, sobretudo aquela que pauta discussões sobre
valores humano-genéricos numa perspectiva de transformação da
sociedade.
Durante a ditadura civil-militar no Brasil, o teatro foi um
grande instrumento de luta e resistência, com destaque para a obra
de Augusto Boal, na proposta do Teatro do Oprimido, que tem por
base os trabalhos e lutas do Teatro de Arena. Nessa perspectiva,
desafiando “os tempos de isolamento, individualismo e silêncio im-
postos pelo regime”, que tinham por vezes a arte como alvo de ope-
rações militares, a partir de 1968, com o endurecimento do regime,
sobretudo após a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5),
no governo Médici, as companhias teatrais mais envolvidas com o

83
cenário político brasileiro tiveram grande dificuldade em se manter
abertas, e diversos diretores, atores e atrizes, bem como dramaturgos
de teatro foram presos ou exilados, a exemplo do próprio Augusto
Boal e de José Celso Martinez.
Na década seguinte, em 1970, apesar da ainda presente a censu-
ra artístico-política, o teatro retorna como importante espaço de crí-
tica ao regime, alinhando-se à perspectiva do “realismo dramático”.
São de destaque nesse momento os espetáculos “Um grito parado
no ar”, de Gianfrancesco Guarnieri; “Rasga Coração, de Oduvaldo
Vianna Filho; “Gota D’Água”, de Paulo Pontes e Chico Buarque; e
“Último Carro”, de João das Neves, que propunham “uma reflexão
sobre a modernização capitalista brasileira, garantida pela repressão
política e pela exclusão das classes populares”.
Essa forma de teatro não interessava o Estado e tampouco
a indústria cultural. E de lá para cá, nada mudou. Ao contrário, no
Brasil pós-golpe de 2016, a arte criadora, a cultura e seus/suas artis-
tas são retaliados/as, perseguidos/as e postos/as na antessala dos
investimentos públicos. Em especial no campo ideopolítico, a arte,
que sempre sofreu retaliações conservadoras no Brasil, no tempo
presente vem sendo alvo de intensificada ofensiva, relacionada a um
fundamentalismo religioso, LGBTfobia, racismo, misoginia e mora-
lismo como marcas desse conservadorismo brasileiro recrudescido.
A exemplo disso, podemos citar a exposição promovida pelo
Santander Cultural em setembro de 2017, na cidade de Porto Alegre,
intitulada “Queer Museum” e cancelada após inúmeros protestos re-
alizados, sobretudo através das redes sociais de variados movimentos
de “direita” e de cunho conservador, como o Movimento Brasil Li-
vre (MLB). Sobre esse episódio, destaca-se também a ocorrência de
direcionamento pessoal dos representantes do Estado na condução
do tema, quando se posicionam político-ideologicamente a respeito
dessas questões, a exemplo do prefeito do Rio Janeiro, Marcelo Cri-
vella, pastor de uma igreja pentecostal que chamou a exposição de
pornografia, defendendo sua proibição na cidade.
Há outros inúmeros casos que demonstram o julgamento mo-
ralista e de fundamentalismo religioso sobre as atividades artísticas
que ocorrem no Brasil, reforçando esse movimento irracionalista,
como a censura ao espetáculo “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha
do Céu”, peça em que Jesus é representado pela atriz transexual Re-
nata Carvalho. O espetáculo, desde a sua estreia em 2016, vem sendo
alvo de protestos e proibições para a sua exibição em várias cidades
do país, remontando aos períodos ditatoriais vivenciados no país.
Já em 2018, o espetáculo, tendo passado por análise técnica e

84
sido aprovado por edital do Governo do Estado de Pernambuco
para participar do 28º Festival de Inverno de Garanhuns, impor-
tante festival nacional, que tinha por tema “Um viva à liberdade!”, é
retirado da programação pelo prefeito de Garanhuns, Izaías Régis,
à revelia da Secretaria de Cultura. O prefeito alegou que a supraci-
tada cidade é cristã e a peça poderia “ofender” os diversos grupos
religiosos. Houve uma verdadeira batalha judicial para garantir a
apresentação da peça, ocorrida com corte de luz e depois de muita
resistência.
Outro momento que demonstra de forma contundente como
a censura vem sendo recorrente nesses tempos sombrios e de per-
seguições ideológicas, políticas e de classe, foi a ação efetivada já
no início de 2019, pela Secretaria Estadual de Cultura do Rio de
Janeiro, que, por ordem do governador Wilson Witzel, ordenou o
encerramento da exposição “Literatura Exposta”, apresentada na
Casa França-Brasil desde dezembro de 2018 e que retratava, com
performance de nudez feminina, a tortura no período da ditadura ci-
vil-militar. É esse Brasil que ignora a importância de recuperar sua
história e memória, sob o governo Bolsonaro e a ascensão dos mi-
litares, e quer celebrar, revisando nosso passado e apresentando o
que há de mais grave no contexto de censura do Estado brasileiro
na contemporaneidade.
Por outro lado, a Lei Federal de Incentivo à Cultura de nº
8.313/1991, a chamada Lei Rouanet, em homenagem ao então se-
cretário de cultura, Sérgio Paulo Rouanet, criada ainda sob o gover-
no Collor de Melo, versa, basicamente, sobre a política de incentivos
fiscais para que as empresas e pessoas físicas possam aplicar uma
parte dos impostos que seriam arrecadados em atividades culturais.
É preciso fazer um preâmbulo aqui. A partir da criação dessa lei, as
atividades artísticas cresceram no país; isto não significa, em larga
medida, uma política orçamentária consistente para a cultura, mas
sim um mecanismo descontínuo de fomento à arte brasileira, da
geração de emprego e renda para centenas de artistas.
Assim, neste momento recente da história do país, em que re-
crudesce o conservadorismo no Brasil, a Lei Rouanet tem sido dura-
mente atacada e deturpada nas suas atribuições. Diversos setores con-
servadores, que sempre viram a arte e a cultura popular como “um
perigo” – porque elas fazem pensar ‒, acusam-na de ser garantidora de
privilégios para os/as artistas, quando, na verdade, ela representa uma
forma de financiamento público para a cultura, mas com gestão priva-
da, já que os recursos investidos pelas empresas nada mais são do que
deduções fiscais de impostos que deveriam ser retidos pelo Estado.

85
Trata-se de verba pública que o mercado é isento de repassar,
com a responsabilidade de investir na pasta cultural, tendo total auto-
nomia na gestão desse recurso. Por essa razão é que afirmamos que
cabe ao mercado, com destaque para as agências financeiras, a deci-
são sobre o rumo da arte no país, a partir de determinado objetivo
econômico, político ou ideológico.
O fundo público mais uma vez comprova sua relevância como
fonte importante para a realização do investimento capitalista. Os
recursos que poderiam ser angariados por meio das tributações e
destinadas ao orçamento público, o qual garante “concretude à ação
planejada do Estado “e espelha as prioridades das políticas públicas
que serão priorizadas pelo governo”, ficam retidos em empresas e
bancos, por meio da realização de um financiamento público indire-
to, fragilizando o fundo público, que deveria ser o real assegurador de
recursos para essas políticas (SALVADOR, 2012, p. 1).
É possível inferir que a estruturação de nossas políticas so-
ciais, também marcadas por elementos conservadores, obstaculiza
conquistas mais expressivas para os direitos culturais e proteção ao
trabalho artístico, porquanto os mecanismos previstos nas leis não
versam sobre formas de contratação segura, na perspectiva de di-
reitos trabalhistas ou previdenciários para o/a artista, nem o Estado
intervém nesse sentido.
Além de não possuir um planejamento a longo prazo em ter-
mos de política pública, baseado no atendimento aos reais interesses
coletivos, “se considerada a resposta de incentivo oficial, é um verda-
deiro milagre que essas companhias existam e tenham condições de
manter um projeto de formação intelectual, uma construção em meio
ao desmanche geral” (CEVASCO, 2010, p. 145).
Nesse sentido, é fundamental a construção de uma política
cultural estável que esteja voltada ao fortalecimento das atividades
artísticas, sobretudo considerando a precarização dos profissionais da
arte já sinalizada, com forte tendência ao subemprego e baixa remu-
neração. Se é o mercado que regula o financiamento da arte, ele não
pode controlar a capacidade criativa, a luta e a resistência da classe
trabalhadora que vive da arte. Há resistência.
E tal resistência nada mais é do que uma ação que se realiza
dentro da própria cultura de dominação, seja ela da classe trabalhado-
ra, dada a sua exploração e a opressão pelo capital, seja de uma ação
cultural-artística. Ambas representam um perigo histórico ao capi-
tal (SILVA, 2013). Na disputa evidenciada incumbe à “classe-que-
-vive-do-trabalho” pressionar por sua direção, pois os mecanismos
de contra-hegemonia se fazem “no confronto com um projeto de

86
cultura autoritário que se gesta no processo histórico e que marca o
nosso cotidiano” (IDEM, p. 8).
Nas fileiras da resistência, embora imerso no contexto de uma
sociedade classista, é possível afirmar que o trabalho artístico tem se
imposto, ao longo da história, na perspectiva de preservar, “dentro
de certos limites, as características de criatividade que são inerentes à
genuína práxis do homem” (KONDER, 2013, p. 25), vislumbrando
a possibilidade de produção de uma arte crítica que esteja na contra-
mão da forma mercadoria e do conservadorismo aprofundado pela
crise (IDEM; CARVALHO, 2009).

Considerações finais

Historicamente, parte relevante dos grupos de arte no Brasil


se dedica a uma expressão artística contra-hegemônica vinculada à
resistência crítica aos interesses mercadológicos e a uma perspectiva
de manutenção da ordem burguesa, tendo nisso a centralidade da
luta de classes e o papel que a arte ocupa na disputa ideológica de
corações e mentes, principalmente em períodos de maior cercea-
mento das liberdades coletivas, a exemplo dos períodos vinculados
ao Estado Novo (1937-1945) e à ditadura civil-militar (1964-1985),
quando importantes artistas se posicionaram individualmente ou
através dos seus coletivos e das suas obras de arte em favor da de-
mocracia e dos direitos sociais.
Na história recente, mais especificamente no pós-golpe de
2016, mas, sobretudo, desde o segundo turno das eleições presi-
denciais de 2014, quando os setores artísticos se posicionaram for-
temente a favor da candidatura de Dilma Rousseff (2011-2016),
apesar das importantes críticas feitas ao seu governo, os sujeitos
que fazem a arte no Brasil se voltam com mais incidência coletiva
à tarefa política. Houve engajamentos, posicionamentos políticos e
envolvimentos. O exemplo disto foram as movimentações do setor
popular e artístico, com ampla mobilização e ocupações de prédios
públicos ligados ao Minc, principalmente os IPHANs, a partir do
movimento chamado “#OcupaMinc”, que atingiu uma série de ca-
pitais brasileiras e fomentou um grande debate nacional sobre a te-
mática.
Nessa perspectiva, enquanto classe trabalhadora, os/as artis-
tas se colocam “em cena política”, e a partir das atividades reali-
zadas, contrapõem-se à forma do trabalho estranhado, “como de-

87
núncia das potencialidades humanas travadas pela alienação própria
da sociedade mercantil” (FREDERICO, 2013, p. 55; COSTA, 2012;
KONDER, 2013).
Corroboram o entendimento de que:
Quanto maior for o conhecimento que o artista tiver dos homens
e do mundo, quanto mais numerosas forem as mediações que ele
descobrir e (se necessário) acompanhar até a extrema universali-
dade, tanto mais acentuada será esta superação. Quanto maior for
a sua força criadora, tanto mais sensivelmente ele retransformará
as mediações descobertas numa nova imediaticidade, concen-
trando-as organicamente nela: ele formará um particular partindo
do singular. (LUKÁCS, 1978, p. 164).

E assim, partindo de sua própria consciência e mobilização,


ainda que de forma heterogênea, esses sujeitos se articulam na defesa
do próprio trabalho, de pautas centrais e coletivas para o setor, pres-
sionando o Estado a fomentar a construção do que chamamos de
arte, ao compreender que o financiamento público direto representa
a única possibilidade concreta para a manutenção da expressão artís-
tica com autonomia e proteção social ao trabalho.
Resistir é uma prerrogativa da luta de classe, dos/as trabalha-
dores/as e da sua cultura. Como afirma Chauí (1994, p.178), “a práti-
ca da cultura popular pode tornar a forma de resistência e introduzir
a ‘desordem’ na ordem, abrir brechas, caminhar pelos poros e pelos
interstícios da sociedade brasileira”.

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90
Incidência do conservadorismo no Brasil: ofensiva
às expressões culturais no pós-golpe de 2016

Bruna Massud de Lima1

Introdução

Inserida na contradição de classe, a contemporaneidade é ca-


racterizada por uma complexa dinâmica de (re)produção das rela-
ções sociais. Para o seu desvelamento, faz-se necessária uma apre-
ensão teórico-metodológica pautada pela análise de suas tendências
que, apreciadas sob uma perspectiva de totalidade, fornecem ele-
mentos fundamentais à compreensão do real.
É a partir dessa perspectiva que o interesse do presente estu-
do parte do método materialista histórico-dialético e suas categorias
constitutivas para entender as formas reificadas que se diluem no
cotidiano, explicitando os fenômenos em sua complexidade e con-
tradição como produtos da práxis social.
A presente discussão constitui-se como uma pesquisa qualita-
tiva realizada a partir de uma análise bibliográfica e tem por objetivo
central a análise da relação estabelecida entre a ascensão do conser-
vadorismo no Brasil e a ofensiva impetrada contra as expressões
culturais no país, ao considerar o elemento conservador como ca-
racterístico da formação sócio-histórica brasileira, sendo aprofunda-
do como reflexo da crise contemporânea do capital.
Tendo por marco histórico as experiências antidemocráticas
do pós-golpe jurídico-parlamentar e midiático de 2016, pretende-se
1  Assistente social. Mestre em Serviço Social pela UFRN. Doutoranda em Serviço Social
pela UFRN. E-mail: brunamassud@hotmail.com
elucidar os processos relacionados à atuação estatal no campo de de-
senvolvimento das políticas culturais no modo de produção capita-
lista contemporâneo, o que significa na realidade a gestão da cultura
pela via do mercado, que num contexto de aprofundamento de crise
do capitalismo e ascensão do conservadorismo, tende a radicalizar
práticas reacionárias contra a cultura.
Sob a égide do modo de produção capitalista, ao passo que se
evidencia seu desmonte enquanto política social, os bens culturais
produzidos socialmente são dotados de um suposto “valor de merca-
do”, realidade intensificada na década de 1970 e, especificamente no
Brasil, em meados da década de 1990, período marcado pela ascensão
da reestruturação produtiva, pela financeirização do capital, pelo neo-
liberalismo e pela pós-modernidade como respostas à crise estrutural.
Por outro lado, há também como consequência desse cenário
o recrudescimento do conservadorismo, que, no Brasil, vincula-se às
experiências antidemocráticas do pós-golpe de 2016, mas sobretudo
à eleição do atual presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL), para
o mandato 2019-2022, que além de não possuir nenhuma proposta
para a área cultural, extinguiu o Ministério da Cultura (MINC), ação
que se soma aos diversos casos de censura às expressões culturais, re-
afirmando a posição do governo atual ante a política e as expressões
culturais mais contestatórias.
Dessa forma, imerso num contexto de aguda crise econômica,
política e social, valendo-se sobretudo de um fundamentalismo mo-
ral e religioso, com acirrado discurso de ódio pautado pelo racismo,
LGBTfobia e misoginia, o avanço do conservadorismo, corporifica-
do nas forças antidemocráticas, vem contribuindo para o aprofunda-
mento de elementos reacionários em face dos valores humano-gené-
ricos, que reatualiza as principais marcas da formação sócio-histórica
do país: racismo, machismo, homofobia, clientelismo, tutela, compa-
drio, mandonismo e favor.
Reafirma-se, assim, a vitalidade da teoria social marxiana no
que se refere à realização de uma crítica ontológica do capitalismo
contemporâneo, considerando todas as suas manifestações: fenôme-
nos da maior complexidade que necessitam ser desvelados em suas
características gerais e particulares.
Tal objeto de estudo situa-se, portanto, entre as questões que
interessam diretamente ao Serviço Social, inserido na seara das ciên-
cias humanas e sociais, que tem como referência de atuação os pres-
supostos do Projeto Ético-Político. Este prevê, entre outros princí-
pios fundamentais, o reconhecimento da liberdade como valor ético
central e suas demandas políticas relacionadas.

92
Tal análise se constitui enquanto arcabouço teórico-prático
relevante de investigação da profissão, necessitando, portanto, ser
continuamente atualizada, dado o desafio de denunciar formas de
opressão que afrontam as potencialidades do ser social.

1 Incidência do conservadorismo no Brasil: ofensiva às


expressões culturais no pós-golpe de 2016

O modo de produção capitalista deve ser compreendido não


só como produção e reprodução de mercadorias, mas também
como produção e reprodução de relações sociais que se engendram
no interior da contradição capital-trabalho e refletem os antagonis-
mos de classe.
No âmbito da reprodução social, uma das categorias centrais
relacionadas aos complexos do ser social é a ideologia, que tem por
função a sistematização racional de princípios, valores e crenças
“adquiridos em uma concepção de mundo que termine por forne-
cer, no limite, uma razão para a existência humana” (LESSA, 2001,
p. 97).
O aparelho repressivo é apenas uma das formas de contro-
le existentes na sociedade capitalista. No entanto, tal controle deve
ocorrer ainda por meio do domínio ideológico, ou daquilo que
Gramsci denomina, recuperando as análises leninistas, de hegemonia2.
Escrevem Marx e Engels em A Ideologia Alemã (2001, p. 27):
Podem-se distinguir os homens dos animais pela consciência,
pela religião ou por tudo que se queira. Mas eles próprios co-
meçam a se diferenciar dos animais tão logo começam a pro-

2  Que segundo Gramsci (2002) representa “o critério metodológico sobre o qual


se deve basear o próprio exame. A supremacia de um grupo social se manifesta
de dois modos: como ‘domínio’ e como ‘direção intelectual e moral’. Um grupo
social domina os grupos adversários, que visa a ‘liquidar’ ou a submeter inclusive
com a força armada, e é quem dirige os grupos afins e aliados. Um grupo social
pode e, aliás, deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental
(esta é uma das condições principais para a própria conquista do poder); depois,
quando exerce o poder e mesmo se o mantém fortemente nas mãos, torna-se do-
minante, mas deve continuar a ser ‘dirigente’” (p. 62). Outro elemento importante
relacionado a essa análise refere-se à discussão realizada em Cadernos do Cárcere,
em que Gramsci indica a impossibilidade de a luta pela hegemonia ideológica re-
solver sozinha a disputa pelo poder, sem um enfrentamento direto, embora tenha
relevância tática.

93
duzir seus meios de vida, passo este que é condicionado por sua
organização corporal. Produzindo seus meios de vida, os homens
produzem, indiretamente, sua própria vida material. O modo pelo
qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de
tudo, da natureza dos meios de vida já encontrados e que têm de
reproduzir. Não se deve considerar tal modo de produção de um
único ponto de vista, a saber, a reprodução da existência física dos
indivíduos. Trata-se, muito mais, de uma determinada forma de ati-
vidade dos indivíduos, determinada forma de manifestar sua vida,
determinado modo de vida deles.

Para esses pensadores, a ideologia está vinculada à condição his-


tórica. Portanto, no modo de produção capitalista, estará relacionada à
questão de classe; é através dela que a burguesia elabora e difunde sua
visão de mundo, de modo a torná-la universal (IASI, 2007).
Ainda de acordo com Lessa (2015), na medida em que a so-
ciedade se complexifica, passa a exigir posições teleológicas também
complexas. No capitalismo contemporâneo, sob a égide do neolibe-
ralismo, da financeirização do capital monopolista e da reestruturação
produtiva, a reprodução das relações sociais se torna cada vez mais
diferenciada, e a burguesia torna coletivas as demandas que promove
particularmente.
Como exemplo disso, tem-se na atualidade a radicalização do
conservadorismo3, unida à entronização do irracionalismo e subjeti-
vismo, como instrumentos de opressão e reflexos ideológicos da crise
capitalista recrudescida.
Um dos elementos relevantes a se considerar, que justificam o
avanço do conservadorismo na contemporaneidade, está vinculado ao
que Coutinho (2010) analisa quando afirma que, em períodos de crise
econômica e refluxo das conquistas sociais – como a vivenciada no
cenário contemporâneo, tempo marcado pelo desmonte de sistemas
de proteção social e precarização do trabalho –, tende-se4 a se acentuar

3  Sendo esse concebido como corrente ideológica surgida no Iluminismo, juntamente com
outras duas de maior proeminência, o liberalismo e o socialismo, opondo-se ao que elas
possuem de comum: a defesa do progresso humano e a predominância da razão. Em sua
complexidade, a “plasticidade das ideologias conservadoras permite abarcar desde posições
radicais, como o neomalthusianismo e o neoliberalismo, até aquelas mais nuançadas e pre-
tensamente progressistas” (SOUZA, 2016, p. 97). O que significa dizer que não há filiação
direta nem imediata dessa corrente com a extrema direita ou o fascismo, embora tenha como
característica o seu teor reacionário e irracionalista (CASTRO, F., 2018).
4  Relevante considerar a relação existente entre a reorganização dos movimentos de extrema
direita com o processo de mundialização capitalista, e nisso, com o desemprego estrutural e
a precarização das condições de vida, tendo como base social jovens da classe trabalhadora,

94
ideologicamente traços de irracionalismo. Mas, ao contrário, quando
se vivenciam momentos de estabilidade econômico-política, são pres-
tigiadas “as orientações fundadas num ‘racionalismo’ formal” (p. 16).
A razão é considerada nesse processo como elemento que, se-
gundo Cantalice (2013), é capaz de retirar o objeto do nível do aparen-
te, “apanhando essas mediações que o recompõem como totalidade,
revelando, assim, a sua essência, que se inscreve, por sua vez, como a
síntese de múltiplas determinações e relações” (p. 81). Assim, ela “não
pode ser desprezada, mesmo que seja a sua versão mais formal, pois
sem a razão não podemos superar o nível do imediato, do aparente
e do senso comum” (IDEM). Nesse sentido, a razão sofre com os
desígnios de uma “desrazão” ou formas de irracionalismo; ao passo
que a modernidade é negada em nome de uma “pós-modernidade”5.
Favorecido, sobretudo, pela precarização do trabalho e pela fra-
gilidade da consciência política crítica – esse último elemento como
desdobramento do fim das experiências socialistas –, o conservado-
rismo tende a motivar a busca por respostas irracionais e/ou pragmá-
ticas sobre a realidade (BARROCO, 2011).
O aprofundamento do conservadorismo como reflexo da crise
econômica do capital é experienciado no Brasil de maneira particular,
com um sentido original, uma vez que a realidade brasileira não viven-
ciou uma revolução burguesa de fato, tampouco transições importan-
tes que pudessem romper com seu passado colonialista, escravocrata
e autoritário (CASTRO, 2018).
A história do Brasil teve sempre presente o fator de censu-

a exemplo dos skinheads, na Europa, e dos “Carecas do ABC”, no Brasil. Entretanto, tal re-
lação indica apenas uma tendência, pois esse aspecto, analisado isoladamente, não é capaz
de explicar, sozinho, a totalidade do fenômeno. Como Löwy exemplifica em entrevista a
Dichtchekenian (2015), alguns países como Portugal, Espanha e Grécia sofreram recente-
mente com profundas crises econômicas, mas não possuem em seu cenário político par-
tidos de extrema direita que sejam relevantes. Por outro lado, Suíça e Áustria, conhecidos
pelo histórico de estabilidade econômica, já contam com essas siglas.
5  Essa, embora tenha por característica a heterogeneidade, é, do ponto de vista dos fun-
damentos teóricos e epistemológicos, totalmente funcional à lógica ideocultural do capi-
talismo tardio, na medida em que defende o fim de todos os elementos constitutivos da
Modernidade: a razão dialética, a dimensão histórica da objetividade e a riqueza humanis-
ta da práxis. Representa, assim, uma concepção parcializada sobre a cultura, tornando-a
uma “indústria” capitalista difundida a partir de uma visão de mundo aparente, acrítica e
a-histórica, que reforça a falsa autossuficiência da cultura para com as outras esferas, sus-
tentando ideologicamente o modo de produção capitalista neoliberal (TEIXEIRA; DIAS,
2010). Ademais, na atualidade, a ideologia sofre ainda uma incidência preponderante em
decorrência do avanço do ideário conservador.

95
ra, com o apagamento das lutas sociais, referenciadas por momen-
tos históricos de resistência dos povos indígenas e negros, artistas
e trabalhadores (SANTOS JÚNIOR, 2011). Essa resistência foi, ao
longo do tempo, subsumida à defesa de um suposto sentimento de
nacionalidade, patriotismo de democracia racial, que terminou, ao esvaziar o
passado, por passivizar e elitizar o presente (CHAUÍ, 2001).
Isso quer dizer que o capital, quando incide
sobre o Brasil, refor-
ça esses elementos elitistas da “via prussiana”6 brasileira, numa ação
que ratificou a reprodução de uma ideologia apassivadora na socie-
dade, com grande impacto cultural. A forma como o país se consti-
tui atualmente é impensável sem considerar sua formação particular,
marcada, além dos elementos citados, pela atuação hegemônica de
oligarquias locais e regionais, assim como por um Estado burocrático
e estruturado numa ação autoritária, violenta, hierarquizada e clien-
telista, forjada por uma cultura da tutela, compadrio, mandonismo e
favor.
Vivencia-se assim um contexto de crise ideológica favorável a
formas de reatualização de “mitos, motivando atitudes autoritárias,
discriminatórias e irracionalistas, comportamentos e ideias valoriza-
doras da hierarquia, das normas institucionalizadas, da moral tradi-
cional, da ordem e da autoridade” (BARROCO, 2011, p. 210).
Para a realidade brasileira atual, vivenciada sob os ditames
da crise capitalista, esse cenário se relaciona a uma conjuntura de
forte tensão e polarização social, tendo por grande representação o
golpe jurídico-parlamentar e midiático7 ocorrido em 2016, consoli-

6  O conceito de “via prussiana” de Lênin é usado explicitamente pela primeira vez por João
Amazonas, dirigente comunista, na ocasião dos debates que antecederam o V Congresso
do PCB, em 1960, momento em que ele evidencia que “não há vínculo necessário entre o
desenvolvimento do capitalismo e a superação dos ‘restos feudais’ e da dependência do país
ao imperialismo” (SILVA, V., 2010, p. 621). Nesse sentido, considera, a exemplo da questão
agrária, que o capitalismo, “seguindo o caminho prussiano, pode se desenvolver no campo,
conservando o latifúndio” (SILVA, V., 2010, p. 621), ou seja, “ao curso reformista que con-
siste nas transformações burguesas que se realizam sem alterar as bases do antigo regime”
(IDEM, p. 622). Ainda de acordo com V. Silva, em referência a Coutinho, “o caminho do
povo brasileiro para o progresso social – um caminho lento e irregular – ocorreu sempre no
quadro de uma conciliação com o atraso, seguindo aquilo que Lênin chamou de ‘via prussia-
na’ para o capitalismo”, e assim, no Brasil, o capitalismo se desenvolve sem necessariamente
garantir a existência de um modelo político-econômico democrático e independente (SIL-
VA, V., 2010, p. 623).
7  Como indica Lima (2015, p. 94), formada majoritariamente por grupos empresariais ou
políticos “amparados pela ausência de regulação da ‘propriedade cruzada”’, que passaram
a controlar também as concessões do serviço público de rádio e televisão. Representa as-

96
dado com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), e que
colocou em xeque a política de conciliação de classes dos governos
petistas e a própria democracia que se pensava preservada, mas que
findou reduzida ao texto frio das leis.
Tem-se assim a necessidade de reflexão em torno dos motivos
que levaram o grande capital, que tanto se beneficiou pela política
econômica dos governos petistas Lula e Dilma, a não mais aderir
ao pacto de conciliação existente até então e desenvolver uma ação
ostensiva, com o principal objetivo de levar ao limite o aumento nos
índices de lucratividade, aderindo, portanto, de forma sistemática
à derrubada do governo, com influência significativa da imprensa
e respaldo do Judiciário, substituindo-o por uma gestão ilegítima e
impopular representada por Michel Temer (MDB).
Esse processo teve início a partir de 2013, em meio a um mo-
mento em que a crise econômica iniciada em 2007-2008 começou a
reverberar de modo mais efetivo no Brasil. Vincula-se assim às cha-
madas Jornadas de Junho8, quando se evidencia o início de grandes
manifestações populares que expressaram a dificuldade do governo
Dilma em garantir o controle sobre o atendimento às demandas
sociais mais amplas.
Somada à aversão elitista que não aceitou dividir espaços nun-
ca antes ocupados pelas classes populares, houve incisiva quebra
no consenso construído, na medida em que esse era baseado no
atendimento das pautas contrarreformistas, assim como vinha sen-
do realizado nos governos anteriores; balanceando-as com a ofer-
ta de políticas sociais focalizadas e compensatórias; e ainda com a
expansão do consumo, ainda que significasse o endividamento da
população mais pobre.
Representando o “3º turno” das eleições presidenciais de
sim, a partir de um discurso pautado por suposta “neutralidade”, mais um mecanismo de
controle e difusão do pensamento da classe dominante, por meio de posições consensualmente
identificadas como direitistas (IDEM).
8  As jornadas de junho ocorridas no Brasil em 2013 revelaram insatisfações generalizadas
em relação à vida nas cidades e expuseram uma demanda relacionada às necessidades ra-
dicais da classe trabalhadora urbana brasileira – tendo o tema do transporte público como
estopim das manifestações; e a relação entre a urbanização e o sistema político-econômico
do país, a legitimidade das formas representativas e de participação popular (HARVEY,
2013; ROLNIK, 2013). As manifestações explicitaram que o direito à cidade, como afirma
Rolnik (2013, p. 9), não se compra em concessionárias de automóveis e no “Feirão da Cai-
xa”, ou seja, o aumento da renda, estimulador do crescimento do consumo, não é capaz de
resolver a ausência de urbanidade e a precariedade dos serviços públicos, dada a fragilidade
das políticas públicas urbanas.

97
2014, encerra-se de maneira autoritária um ciclo de 13 anos do go-
verno conduzido pelo Partido dos Trabalhadores, que alerta para os
reflexos de uma direção dada pelo partido, através de um projeto de
poder que fomentou a perda de radicalidade política, devida, entre
outras formas, ao apassivamento dos conflitos e à blindagem do regime
democrático-liberal brasileiro às pressões populares. Sem aprofundar
um projeto de Reforma Política, impossibilitou o cumprimento das
tarefas que a classe trabalhadora imprimiu nesse projeto desde a dé-
cada de 1980.
Esse momento da história brasileira tem como principal con-
sequência a eleição do atual Presidente da República, Jair Bolsonaro,
para o mandato 2019/2022, cuja propaganda governamental é o slo-
gan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, endossando um
projeto de total entrega das riquezas nacionais ao capital estrangeiro,
que se une ao fim do controle social9 e à forte regulação10 moral via
apelo à “família tradicional”11 e ao fundamentalismo religioso.
Eleito a partir de uma grande campanha pela desinformação,
com forte investimento privado e baseada majoritariamente na pro-
pagação de fake news, ampliada através das novas tecnologias de co-
municação (sobretudo Facebook e WhatsApp), representa a ascensão
de todos os elementos conservadores, em que a direção da ação es-
tatal para o maior cargo do país passa a seguir princípios de extrema
direita. O setor cultural não escapa a esse paradigma e às suas conse-
quências inerentes.
Tem-se nisso a efetivação de um modelo recrudescido em rela-
ção às políticas culturais. O presidente Bolsonaro, além de não trazer
em seu plano de governo nenhuma proposta para a área, extinguiu o
MINC, existente desde 1985, tornando-o uma Secretaria Especial e
reafirmando a posição do governo ante o setor. Sob a falácia de “eco-
nomia de gastos” públicos, que na prática não ocorreu, fundiu a pasta

9  O decreto nº 9.759/19 extingue todos os conselhos, comitês, comissões, grupos, juntas,


equipes, mesas, fóruns, salas ou qualquer outra denominação que venha a possuir a condição
de colegiado do Poder Executivo federal, sendo meta do governo extinguir um quantitativo
de pelo menos 700 espaços de controle e participação social.
10  Aqui cabe a defesa do Estado laico, fundamentado sob um ethos democrático e que age
sob uma perspectiva dos direitos humanos como pressuposto da organização pública.
11  Ocorrido por meio do reforço aos papéis de gênero estereotipados e da moral sexual
repressiva, somado ao familismo neoliberal como processo de retirada do Estado do âmbito
da garantia de direitos e da defesa de uma solução familiar para as problemáticas vivenciadas,
mesmo que essa seja buscada através do mercado ou filantropia (MIGUEL, 2018; MIOTO,
2008).

98
com as de Esporte e Assistência Social, no recém-criado Ministério
da Cidadania.
Somam-se assim outros elementos, e exemplo da ação im-
petrada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, representante
dos interesses das instituições financeiras, que passa a indicar cortes
no “Sistema S” e realiza enxugamento nos bancos públicos (Banco
do Brasil12, BNDES e Caixa Econômica Federal) e entidades pú-
blicas (como Petrobras13 e Correios) responsáveis pela maior parte
da agenda cultural, sem que isso signifique uma ampliação da ação
estatal no setor. Sabe-se que é decisiva a participação desses entes
no desenvolvimento e na manutenção de companhias culturais e
no acesso para a população a diversos eventos, como os festivais de
cinema, teatro e dança.
Entre as ações desarticuladas estão as realizadas através do
Serviço Social do Comércio (SESC), responsável por diversas ativi-
dades em esferas regionais e nacional, com destaque para o maior
circuito de artes cênicas do país, o “Palco Giratório”. Luiz Galina,
diretor estadual em exercício pelo SESC de São Paulo, sobre o tema,
afirma em reportagem realizada para o Jornal El Pais: “Se houver
redução dos recursos, não há outras entidades que possam cumprir
o papel que o SESC tem hoje”.14

12  Com destaque ao Centro Cultural Banco do Brasil, caracterizado pela associação entre
a empresa bancária, suas marcas e instalações culturais. O referido centro não se caracte-
riza como agência estatal de cultura, mas é financiado por meio de incentivo fiscal via Lei
Rouanet, sendo a primeira no Brasil em “patrocínio proprietário”. Destina 80% de suas
deduções fiscais para o financiamento de suas próprias instalações culturais. Pertence ao
banco a escolha da programação, que ocorre via equipe de marketing, ficando reservado o
papel de executor de diretrizes e normas elaborados pelo banco. Assim, além de se encon-
trar subsumida a uma estratégia mercadológica, a contratação de artistas ocorre por meio
de edital, e o contrato não se realiza diretamente com esses/as, mas sim por meio dos/as
produtores/as, realidade que tende a recrudescer com a extinção do Minc (GOULART;
FARIAS, 2012).
13  Se o orçamento do Ministério da Cultura representava menos de 1% dos recursos
públicos federais anuais, o Petrobras Cultural condensava em contratos ativos de governos
anteriores o valor de R$ 450 milhões, investimentos que deram outra dimensão para a
produção cultural do Brasil. Vale ressaltar que a retirada da instituição dos incentivos ao
setor cultural significa parte da política de desinvestimentos e venda de ativos realizados
pelo atual governo, vinculada aos parques de refinarias que geram lucro para a estatal (FIO-
RATTI; BARSANELLI; GREGORIO, 2019).
14  JUCÁ, B. Chico Buarque: “Com esses ministros, é preferível que Cultura não tenha
ministério”. El País, 10 de janeiro de 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/bra-
sil/2019/01/08/politica/1546987601_960842.html. Acesso em: 12 fev. 2019.

99
Nessa perspectiva, os ataques do capital vivenciados atualmente
no Brasil, com importantes consequências políticas e sociais, coloca a
cultura no centro da crise econômica, no que tange às parcas conquis-
tas na área, dada a acentuada fragilização em que se encontram seus/
suas profissionais, expostos/as ao trabalho desprovido de proteção,
somada à previsão de fechamento de companhias e ao crescimento
no desemprego para o setor – não só de artistas, mas de toda a cadeia
de trabalho, que engloba desde motoristas e cozinheiros/as, a maquia-
dores/as, porteiros/as, administradores/as, técnicos/as de luz e som,
entre outros/as.
Para justificar a total retirada do Estado da política cultural, no
plano ideológico, o governo Bolsonaro vem praticando uma ação “re-
vanchista” que tenta criar um impasse moral entre a classe artística e a
sociedade, minando as expressões mais progressistas do campo artís-
tico, uma vez que este representa um setor que historicamente oferece
resistência a regimes conservadores15.
Esse entendimento de representantes do Estado, que traz di-
reção na ação política, acarreta profunda incidência na cultura, tendo
em vista os contínuos ataques às produções culturais e, também, aos
elementos vinculados à liberdade de expressão, sobretudo aquela que
pauta discussões numa perspectiva de transformação da sociedade,
movimento que acusa, por outro lado, o potencial crítico e transfor-
mador da cultura e a politização dos artistas nessa conjuntura.
Dessa afirmativa, destacam-se elementos importantes reprodu-
zidos do senso comum que necessitam ser debatidos: a) a acusação que
imprime ao/à artista a condição de pessoa ociosa, que não trabalha; b)
a ideia de que a ação estatal na cultura representa “despesa” e não in-
vestimento, inclusive com importante retorno financeiro à sociedade,
bem como geração de emprego e renda; c) o desconhecimento sobre

15  A cultura de resistência é um componente indispensável para forjar consciência crítica,


para tecer o passo para a emancipação, a transformação, para a vigência de uma sociabilidade
em que a igualdade e a liberdade assumam realmente centralidade na vida social. Para que
possa subverter a cultura do medo, da coerção, da subalternidade, da violência, da repressão
e da criminalização, entronizada pela cultura dominante. Faz-se necessário afirmar, porém,
que a cultura não pode ser unívoca, foge a sua “criação”, mas podemos dar a direção e
dizer que cultura queremos ter, construir e viver (SILVA, A., 2013, p. 8). Assim, ela é uma
prática que se realiza no interior da luta de classes, dentro da própria cultura de dominação,
enquanto reação histórico-cultural surgida num processo amplo de mediações (SILVA, A.,
2013). Essa cultura, quando vivenciada sob um viés critico, libertador ou revolucionário, é
tida como um perigo histórico ao capital. “Através da crítica à civilização capitalista é que se
forma a consciência unitária do proletariado, e crítica quer dizer cultura, e não uma evolução
espontânea e natural” (GRAMSCI, 2004, p. 56).

100
o funcionamento das leis de incentivo, tidas como “garantidoras de
privilégios” aos/às artistas, mas que na verdade beneficiam em maior
grau as instituições financeiras, grandes produtores e institutos pri-
vados (IPEA, 2018).
Reforça, nesse sentido, uma compreensão equivocada sobre
as normativas de financiamento ao setor, sendo a principal, a Lei nº
8.313/1991, a Lei Rouanet16, duramente atacada e deturpada nas suas
atribuições. A referida lei, que implica um financiamento público in-
direto para a cultura, tornou-se um instrumento de disputa ideológica
e, apesar de representar uma política estritamente neoliberal, acabou
assumindo, na conjuntura de ofensiva conservadora e patrulhamento
ideológico, um caráter de vínculo direto com a luta pela democracia.
Assim, a cultura se torna, nessa perspectiva e em um contex-
to autoritário, alvo de interdição17, mesmo que isso acarrete perdas
econômicas para a sociedade. Tal empreitada contra a liberdade ar-
tística visa assim à materialização de um projeto que promove graves
ofensivas aos/às trabalhadores/as do setor cultural e suas garantias
democráticas, a partir de forte controle moral.
No Brasil pós-golpe de 2016, a arte criadora, a cultura e seus/
suas artistas também são perseguidos/as e postos/as na antessala
dos investimentos públicos. Em especial no campo ideopolítico, a
cultura, que historicamente sofre retaliações conservadoras, no tem-
po presente é alvo de intensa ofensiva, relacionada ao fundamenta-
lismo religioso e ao moralismo, características do conservadorismo
brasileiro recrudescido.

16  A Lei Rouanet possui como finalidade primária a captação e a canalização de recursos
para o setor de modo a, segundo seu texto, contribuir no acesso às fontes de cultura, suas
manifestações, bem como no pleno exercício dos direitos culturais; estimular a regionaliza-
ção e a valorização da produção cultural local; proteger as expressões culturais de grupos
tradicionais, os bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e histórico brasileiro;
entre outros. Entretanto, na prática, materializaram-se fortes desproporções na alocação
de recursos para os segmentos artístico-culturais. Nesse patamar, ao possuir como centra-
lidade a forma de financiamento pautada por incentivos oriundos de deduções fiscais, as
verbas, que poderiam ser angariadas por meio das tributações e destinadas ao orçamento
público, o qual garante a concretização de uma ação planejada por parte do Estado e es-
pelha prioridades sociais, ficam retidas em empresas e bancos, por meio da realização de
um financiamento público indireto, medida que fragiliza o fundo público, que deveria ser
o assegurador direto desses recursos (SALVADOR, 2012).
17  Mais um exemplo disso foi a demissão do diretor de comunicação e marketing do Ban-
co do Brasil, Delano Valentim, ocorrida logo depois Bolsonaro ter vetado propaganda
do referido banco, que envolvia a participação de jovens negros/as vestidos/as de modo
“alternativo”.

101
Por essa razão é que essa atividade não passa incólume aos me-
canismos produzidos em cada tempo histórico e que são reforçados
pela ausência de reconhecimento e regulamentação do trabalho rea-
lizado. Avançar na perspectiva de construção da política cultural no
país torna-se não apenas improvável, mas também inviável, tendo em
vista a existência de um governo que traz como elemento ideológico,
político e econômico a negação desse espaço.
O projeto empreendido pelo governo Bolsonaro tem por base
o que Medeiros (2019) indica por neomacarthismo18: um Estado com
intencionalidade expressamente caracterizada pelo interesse de perse-
guir e retirar do espaço político à crítica, ao tempo que empreende es-
forço para aproximar apoios acríticos à sua administração, reativando
o chamado balcão de favores existente na era Sarney (MEDEIROS,
2019).
Como afirma Ivana Bentes, ex-secretária da Cidadania e da
Diversidade Cultural do Ministério da Cultura (SCDC/MINC), “um
Estado ressentido, que luta contra o próprio povo, está doente”19. E
relaciona o “ódio à cultura” ao horror à diversidade, uma vez que ela
não é compreendida como um campo de sociabilidade humana. A
ação estatal não afeta apenas os/as adversários/as políticos do gover-
no federal, mas toda uma sociedade e sua história.
Trata-se de uma agenda extremamente moralista, direcionada
ao campo dos valores conservadores e irracionais. Pode-se citar como
exemplo dessa ofensiva contra o setor cultural a proibição da exposi-
ção promovida pelo Santander Cultural em 2017 na cidade de Porto
Alegre (RS), intitulada de “Queer Museum: Cartografias da diferença
na arte brasileira”, cancelada após inúmeros protestos realizados pelo
MBL nas redes sociais, acusando a atividade de práticas apologéticas
à zoofilia e à pedofilia.
Mas a censura não ocorre apenas em centros privados. Des-
taca-se também a ocorrência de direcionamento pessoal de repre-
sentantes do Estado sobre a ação pública, quando se posicionam
político-ideologicamente a respeito dessas questões, a exemplo do
prefeito do Rio Janeiro, Marcelo Crivella (PRB/RJ), pastor de uma

18  Como exemplo tácito, pode-se citar a medida tomada pelo presidente Bolsonaro, que
em uma transmissão realizada pela internet, afirmou ter demitido Teté Bezerra, diretora da
Embratur, por ela ter contratado o cantor Alceu Valença, crítico de seu governo, para cantar
num jantar patrocinado pela autarquia (MEDEIROS, 2019).
19  VALERY, G. Ivana Bentes: Bolsonaro não vai conseguir matar a cultura. RádioCom, 21
de abr. de 2019. Disponível em: http://www.radiocom.org.br/ivana-bentes-bolsonaro-nao-
-vai-conseguir-matar-a-cultura/. Acesso em: 4 de mai. 2019.

102
igreja pentecostal que chamou a referida exposição de “pornogra-
fia”, defendendo sua proibição nos museus da cidade. Já em 2019,
esse prefeito determinou o recolhimento de material com temática
LGBTQI+ da Bienal do Livro que ocorria na cidade, sob a alegação
de que representava “material impróprio”.
Houve também a censura em Brasília a Maikon K por sua
performance em frente ao Museu Nacional da República, intitulada
“DNA de DAN”, na qual o artista aparecia nu dentro de uma bolha
de plástico; assim como o Museu de Arte de São Paulo (MASP), que
proibiu a entrada de menores de 18 anos, mesmo acompanhados
dos pais, na exposição “História das Sexualidades”. Em São Paulo,
também se destaca a interdição da performance “La Bête”, de Wagner
Schwartz, na abertura do 35º Panorama da Arte Brasileira, no Mu-
seu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), em que o então prefeito
João Dória (PSDB/SP) considerou-a “libidinosa” e “absolutamente
imprópria”, e que era preciso “respeitar aqueles que frequentam os
espaços públicos” (NASER; BITENCOURT; MACHADO, 2017).
Guardadas as diferenças, mas remontando aos períodos dita-
toriais vivenciados no país, há outros inúmeros casos que demons-
tram e reforçam o julgamento que tem como fundamento princípios
morais e religiosos, sobre as atividades culturais que acontecem no
Brasil, como a censura ao espetáculo “O Evangelho Segundo Jesus,
Rainha do Céu”, peça em que Jesus é representado pela atriz transe-
xual Renata Carvalho. O espetáculo, desde a sua estreia em 2016, vem
sendo alvo de protestos e proibições judiciais em várias cidades do
país, a exemplo da que ocorreria no SESC da cidade de Jundiaí (SP).
Já em 2018, o mesmo espetáculo, tendo passado por análise
técnica e sido aprovado por edital do Governo do Estado de Per-
nambuco para participar do 28º Festival de Inverno de Garanhuns
(PE), importante festival nacional, que tinha por tema “Um viva
à liberdade!”, foi retirado da programação pelo prefeito da cidade,
Izaías Régis (PTB/PE). O prefeito alegou que a supracitada cidade
é “cristã” e que a peça poderia “ofender” os diversos grupos reli-
giosos. Houve uma verdadeira batalha judicial para garantir a apre-
sentação, ocorrida com corte de luz e em meio a muita resistência
do público.
Mais um momento que demonstra de forma contundente
como a repressão vem sendo recorrente nestes tempos de persegui-
ções ideológicas, políticas e de classe, foi a ação em 2019 realizada
pela Secretaria Estadual de Cultura do Rio de Janeiro (RJ) que, por
ordem do governador Wilson Witzel, ordenou o encerramento da
exposição “Literatura Exposta”, apresentada na Casa França-Brasil

103
desde dezembro de 2018 e que retratava, com performance de nudez
feminina, a tortura no período da ditadura civil-militar.
Também no ano de 2019, já sob a gestão do governo Bolsona-
ro, o filme “Marighella”, cinebiografia do guerrilheiro revolucionário
Carlos Marighella, previsto para estreia em 20 de novembro no Brasil,
teve a verba pública para distribuição negada pela Agência Nacional
de Cinema (ANCINE), ficando sem data para lançamento. Tal can-
celamento tem ordem burocrática, mas ocorre num cenário de cortes
orçamentários e maior controle do governo federal sobre a Agência,
sobretudo a respeito de produções culturais ditas de esquerda e, por-
tanto, contrárias aos anseios ultraconservadores da presidência.
Antes disso, Bolsonaro explanou o desejo de extinguir a AN-
CINE caso não pudesse realizar um “filtro de conteúdo”, clara me-
dida de censura que se soma a outras, a exemplo de ter criticado
publicamente o edital destinado a canais televisivos públicos para fi-
nanciamento de filmes, pois entre esses estavam presentes alguns re-
lacionados à temática LGBT+, que logo foi suspenso pelo Ministério
da Cidadania; como também a orientação da Embaixada do Brasil em
Montevidéu para a não exibição de um filme sobre Chico Buarque,
artista crítico ao ente federal, em um festival que ocorreria com o
apoio do governo brasileiro (OLIVEIRA, 2019).
Soma-se também a isso outro caso de obscurantismo ocorrido
em 2019, vinculado à rescisão de contrato da Caixa Cultural de Recife
(PE) com o Espetáculo “Abrazo”, da companhia teatral Clowns de
Shakespeare (RN), peça infantil baseada em obra do escritor uru-
guaio Eduardo Galeano, cancelando a segunda das três apresentações
que se dariam no local. Desde então, o referido Centro alegou apenas
uma infração ao inciso contratual que prevê que a contratada seja
obrigada a zelar pela “boa imagem dos patrocinadores”, sendo proi-
bido o uso de referências públicas de caráter negativo ou pejorativo,
e que isso teria ocorrido no bate-papo realizado após a primeira ses-
são da peça (NUNOMURA, 2019). Já o grupo teatral não reconhece
nada que pudesse ter gerado essa situação e, diante da ausência de
informações adicionais, vincula essa decisão à censura ao trabalho e
ao livre pensamento dos indivíduos envolvidos.

Considerações finais

O modelo de investimento público empreendido historica-


mente pelo Estado brasileiro em torno das políticas culturais expõe a

104
prioridade dada ao setor às agendas governamentais. As medidas de
renúncia fiscal representaram a “solução” para todas as problemá-
ticas vivenciadas na referida seara, em detrimento da ação pautada
por medidas que sejam protagonizadas pela esfera estatal.
Sem diretrizes claras sobre os limites da sua intervenção na
área cultural, o Estado termina por garantir de maneira irrestrita o
atendimento dos interesses capitalistas, legitimando a compreensão
de que “boa arte é a que vende bem e tem sucesso de público” (CE-
VASCO, 2010, p. 145), como se não fosse de sua própria responsa-
bilidade a construção de ações que visem à formação desse público.
Na atualidade, soma-se o esvaziamento das parcas ações, a
partir da desestruturação da já incipiente política, aos cortes de ver-
bas destinadas aos entes privados, que historicamente garantiam a
promoção das ações em cultura. Ao que parece, além do total aban-
dono que vêm sofrendo, resta apenas aos sujeitos que fazem cultura
no país o autofinanciamento de suas atividades.
É preciso ressaltar a situação desfavorável em que se encontra
a cultura no momento atual do país, sobretudo no pós-golpe de 2016
e com a ascensão de um governo de extrema direita, representado
com a eleição do presidente Jair Bolsonaro. Nesse momento, a cul-
tura sofre com o patrulhamento ideológico posto pelo aprofunda-
mento do conservadorismo e com o desmonte das frágeis políticas
socioculturais gestadas historicamente pelo Estado brasileiro. Isso
representa um profundo ataque às perspectivas democráticas de li-
vre expressão construídas desde o período pós-ditadura de 1964.
Mas não há fatalismo. Considerando as contradições ineren-
tes da realidade e, por mais vigorosas que sejam as forças conserva-
doras em determinadas conjunturas, permanecem vivas as respostas
dadas pelo e para o povo.
Numa sociedade doutrinadora dos sentidos humanos, na pers-
pectiva de alienação e de imposição dos ditames capitalistas a que o
Brasil é submetido, a cultura, mesmo nos contextos mais desfavorá-
veis, conseguiu trabalhar à revelia do Estado e, dotada de certa auto-
nomia, representa a produção humana que caracteriza a sociedade.
Embora seja possível enfraquecê-la política e economicamente, não
é possível aniquilá-la (VALERY, 2019).
E assim, embora imerso no contexto de contradição, há im-
portantes forças do campo cultural que resistem aos ataques do ca-
pitalismo financeiro e que se vinculam ao conjunto de movimentos
sociais que constituem a história da resistência no Brasil e neces-
sitam, mais do que nunca, se unificar nesse cenário de aprofunda-
mento do neoliberalismo, tornando real a máxima que compreende

105
a necessidade de “que à ontologia do presente acrescentemos uma
arqueologia do futuro, um modelo de pensar que ajuda a evitar a
colonização total do que virá pelo eterno presente da forma merca-
doria” (CEVASCO, 2010, p. 139).
Dessa forma, unindo a forte censura e o ataque à liberdade
criativa, que não se confunde com “liberdade de opressão e discrimi-
nação”, aos processos de especialização, particularização e fragmen-
tação existentes nos campos da produção cultural, que levam a uma
crescente autonomização dos diversos espaços de criação e, ainda,
à mercadorização da cultura, pode-se discordar veementemente da
afirmação de que “a cultura não está quieta” (PERLATTO, 2018).
Ao contrário, é possível afirmar que a cultura nunca deixou de
se expressar criticamente. Há nela uma histórica força contra-hege-
mônica. Na conjuntura recente, mais especificamente no pós-golpe
de 2016, mas, sobretudo, desde o segundo turno das eleições presi-
denciais de 2014, quando setores culturais se posicionaram fortemen-
te a favor da candidatura de Dilma Rousseff, apesar das importantes
críticas feitas ao seu governo, os sujeitos que trabalham com cultura
no Brasil se voltam com mais incidência coletiva à tarefa política, em
resposta ao “recorrente insulto à cultura” (IPEA, 2018).
Tendo esse recorte histórico como marca de análise, é possível
atestar o profundo engajamento político, com movimentações do se-
tor popular e cultural, a partir de ampla mobilização e ocupações de
prédios públicos ligados ao MINC, principalmente os IPHANs, num
movimento conhecido como “#OcupaMinc”, ocorrido nos anos de
2015 e 2016, que atingiu uma série de capitais brasileiras e protagoni-
zou um grande debate nacional sobre o tema, relacionando a questão
cultural com o processo de golpe e a consequente tentativa de fecha-
mento do MINC.
A partir desse movimento foram constituídos vários outros co-
letivos e grupos político-culturais, como o “Movimento 342 Agora”,
bem como a interlocução com as lutas pelo “Fora Temer” e “Lula Li-
vre”, fazendo desse último um grande festival de cultura. Reverberou
assim em milhares de falas ocorridas em prêmios e apresentações por
todas as esferas culturais. Tal protagonismo possui, sem dúvida, um
papel relevante no sentido de reforçar e consolidar a cultura enquan-
to força política crítica à ofensiva conservadora (PERLATTO, 2018).
Resistem assim como determinação social e histórica da luta de
classes, enquanto trabalhadores/as da cultura, a partir de uma intensa
mobilização, mesmo diante de situações de explícita repressão e de
desmanche do trabalho e da política cultural.
A partir de sua própria consciência e mobilização, mesmo se

106
constituindo de forma heterogênea, é que se articula a força em tor-
no de pautas centrais e coletivas, nas quais se percebe que a disputa
objetiva e subjetiva não traz consequências apenas para quem tra-
balha diretamente com cultura, mas sim o livre pensamento como
um todo, perspectiva que incide sobre as medidas políticas adotadas
no país (NASER, L.; BITENCOURT, G.; MACHADO, G., 2017).
Como também, busca questionar a fragmentação e a mercantiliza-
ção do trabalho e da política social no mundo contemporâneo, pres-
cindindo, portanto, de medidas que não sejam apenas do movimen-
to cultural, mas que digam respeito a toda a sociedade.

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110
Desafios contemporâneos para a educação supe-
rior brasileira em tempos de aprofundamento da
mercantilização

Ana Paula Ferreira Agapito1


Carla Montefusco2

Introdução

O presente artigo consiste em reflexões sobre a educação


superior brasileira, com ênfase nas nuances contemporâneas, nor-
teadas por ideologias dominantes que visam atingir níveis de qua-
lidade e excelência, principalmente a partir da instauração da crise
estrutural do capital nos anos de 1970 e, consequentemente, do seu
processo de reestruturação produtiva e das mudanças para o mundo
do trabalho. Assim, objetivamos discutir sobre a educação, enquan-
to política social inserida no aprofundamento do processo mercan-
tilização, que se contrapõe contrapor à noção de educação como
direito social necessário para a formação humana.
Este artigo está estruturado em dois pontos de discussão. Na
primeira subseção ‒ Educação no Brasil: direito social ou mercado-
ria? ‒, fazemos uma breve reflexão sobre a educação como direito
social reconhecido na Constituição Federal de 1988 e, em seguida,

1  Doutoranda em Serviço Social do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PP-


GSS) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Bolsista de demanda
social CAPES. E-mail: anaagapto@hotmail.com
2  Docente do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Ser-
viço Social (PPGSS) da UFRN. Doutora em Ciências Sociais. E-mail: carlamontefusco1@
gmail.com
apresentamos outros elementos analíticos a partir do avanço do ne-
oliberalismo já nos anos de 1990. Na segunda subseção ‒ Ensino su-
perior: formação com qualidade para a emancipação humana ou para
o mercado? ‒, refletimos sobre as determinações do capital para uma
formação profissionalizante, tendo o Estado como seu mediador e
representante. Para tanto, baseamo-nos em Karl Marx (2010); Tonet
(2014); Lowy; Duménil; Renault (2015); Freitas (2018) e Rossi (2018).
Também consultamos as fontes nacionais oficiais do Ministério
da Educação (MEC) e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP), tendo em vista que os objetos
de análise no campo das ciências humanas e sociais são tratados em
historicidade, ou seja, no campo das contradições, mediações e de-
terminações que o constituem, o que “(...) implica necessariamente
tomá-lo na relação inseparável entre o estrutural e o conjuntural”
(FRIGOTTO, 2011, p. 236).
O capital vem traçando estratégias para recuperar suas taxas
de lucro; entre estas está o ataque às políticas sociais que, em seus
processos contraditórios de avanços e retrocessos, são funcionais ao
controle da força de trabalho e conduzidas por uma lógica mercado-
lógica que tanto garante a acumulação do capital quanto se apresen-
tam de forma fetichizada como direito social.
O processo de mercantilização das políticas sociais, em especial
a educação no caso brasileiro e outros países latino-americanos, já se
faz presente desde os anos 1980, quando a perspectiva moderniza-
dora/conservadora imperava na definição de estratégias econômicas,
políticas e sociais. Estas estratégias seguiam3 as diretrizes dos paí-
ses internacionais, particularmente dos Estados Unidos da América
(E.U.A.), com o objetivo de inserir o Brasil no movimento mundial
de expansão industrial. Os organismos internacionais como o Fun-
do Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organiza-
ção para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) são
cruciais para a consolidação de estratégias como a reestruturação do
sistema produtivo e o desenvolvimento econômico.
Um dos pilares da retomada das taxas de crescimento e lucra-
tividade empresarial, diante da crise do capital iniciada nos anos de
1960, é a passagem da lógica produtiva fordista de produção e de
consumo em massa para uma lógica toyotista, centrada na acumu-
lação flexível. Tal alteração nos modos de organizar a produção traz

3  Entendemos que ainda são determinadas condicionalidades pelos organismos internacio-


nais para os países latino-americanos, levando-os a processos de mercantilização, privatiza-
ções de órgãos estatais e realização de políticas sociais focalizadas e seletivas.

112
para a classe trabalhadora a exigência da apropriação de processos
de trabalhos mais fortemente centrados na inovação tecnológica,
bem como de qualificação contínua.
Neste cenário, torna-se crescente a busca por cursos, das mais
diversas naturezas, que possam “garantir” a sobrevivência no mer-
cado de trabalho. Crescem as ofertas de serviços educacionais priva-
dos que prometem a qualificação profissional necessária, no tempo
disponível do trabalhador.
Os desafios postos para o ensino superior brasileiro, em tem-
pos de financeirização do capital, incluem: o estabelecimento de leis
que favorecem a entrada do capital privado especulativo, a formação
de oligopólios das empresas educacionais, o atendimento às condi-
cionalidades impostas pelos organismos internacionais e o sucatea-
mento das instituições públicas de ensino.
A educação superior brasileira vem trilhando caminhos sinu-
osos para atingir os níveis de qualidade propagados através do dis-
curso hegemônico dominante, e que infelizmente torna-se parte dos
anseios e necessidades da classe trabalhadora. Quando salientamos
que a ideologia dominante é absorvida por parcelas de sujeitos que
constituem a classe trabalhadora, estamos chamando atenção para o
processo de estranhamento entre o que se necessita para reproduzir
a força de trabalho e o que se coloca como indispensável para ser
competitivo no mercado de trabalho, ou seja, que o importante é ter
a qualificação técnica profissional demandada para ser empregável.

1 Educação no Brasil: direito social ou mercadoria?

Desde a promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988,


momento de concretização da democratização no Brasil, a educação
faz parte de um conjunto de direitos sociais que devem ser garanti-
dos pelo Estado. No artigo 205, reconhece-se que “a educação, di-
reito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno de-
senvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania
e sua qualificação para o trabalho”.
O Estado deve ser o garantidor da política de educação; ao
mesmo tempo, a família e a sociedade também são responsáveis por
viabilizar o acesso a este direito social. No entanto, cabe enfatizar
dois aspectos cruciais: o primeiro é que cabe ao Estado a função de
legislador da política de educação e, portanto, decidir como se dará

113
a participação da família e da sociedade na execução desta política. O
segundo aspecto é que na sociedade capitalista o Estado legitimará os
interesses da classe dominante (burguesia), a fim de mantê-la como
classe hegemônica.
Historicamente, desde meados do século XIX, a classe tra-
balhadora vem lutando e resistindo à exploração do capital; como
resposta, o Estado cria e executa políticas sociais para estabelecer
momentos de consenso. Conforme Behring (2009, p. 302), a política
social corresponde à “[...] mediação entre economia e política, como
resultado de contradições estruturais engendradas pela luta de classes
e delimitadas pelos processos de valorização do capital”. Isto signi-
fica que mesmo havendo conquista de direitos sociais e trabalhistas
não ocorrerá a superação das desigualdades sociais e das formas de
opressão do capital sobre o trabalho.
Uma legislação fundamental que norteia a política de educação
brasileira é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), nº 9.394,
de 1996, que antes de sua promulgação e considerando o contexto de
ofensiva neoliberal, enfrentou a resistência dos profissionais da edu-
cação, movimentos sociais, partidos políticos e sindicatos em defesa
da educação pública gratuita e de qualidade, para que realmente re-
presentasse uma política educacional condizente com as necessidades
da população brasileira.
Com a promulgação da LDB/1996 foram definidas diretrizes
gerais para os cursos das instituições de ensino superior públicas e
privadas, estabelecendo um patamar comum e assegurando flexibili-
dade, descentralização e pluralidade no ensino. Neste período, con-
dizente com a estratégia neoliberal, o Estado brasileiro iniciou o pro-
cesso de reformas para intervir minimante na área social, abrindo
assim possiblidades legais de inserção do capital privado na oferta de
serviços educacionais.
Segundo Lima (2013), a expansão da educação superior no final
do governo Fernando Henrique Cardoso (período de 1995 a 2002)
pode ser observada por dois mecanismos importantes. O primeiro
refere-se aos dados do Censo da Educação Superior (2002), no qual
fica evidente que o número de ingressantes no ensino superior foi
predominante nas instituições privadas (1.090.540) em relação às ins-
tituições públicas (320.354). No tocante ao segundo mecanismo, des-
taca-se a privatização das universidades públicas federais, por meio
do estabelecimento de parcerias com empresas (realização de cursos,
consultorias e assessorias), oferta de mestrados profissionalizantes,
bem como de cursos de curta duração provenientes dos programas
de extensão.

114
Na transição dos anos 2000, as reformas educacionais conti-
nuaram nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT)4 e também
favoreceram a ampliação da iniciativa privada na área da educação.
Porém, ao mesmo tempo, os governos petistas desenvolveram ações
governamentais que propiciaram a expansão da educação pública,
principalmente no nível do ensino superior, através do programa de
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI),
com o objetivo de ampliar o acesso e a permanência na educação
superior; e do Sistema Informatizado do Ministério da Educação
(Sisu), que oferece vagas nas instituições públicas de ensino superior
para estudantes que participaram do Exame Nacional do Ensino
Médio (ENEM).
Por outro lado, houve a implementação de programas que fo-
ram mais favoráveis para a parceria público-privada, como: o Pro-
grama Universidade para Todos (Prouni), que objetiva conceder
bolsas de estudo integrais e parciais de 50% em instituições públicas
e privadas (presenciais ou EaD) de educação superior; e o Fundo
de Financiamento Estudantil (FIES), que financia a graduação na
educação superior em instituições privadas.
No contexto dos anos 2000 emerge também como promessa
de qualificação profissional moderna, tecnológica, rápida e adequa-
da às demandas do mercado o ensino na modalidade a distância
(EaD) ‒ na graduação, pós-graduação stricto sensu e em cursos téc-
nicos profissionalizantes. O EaD caracteriza-se como uma modali-
dade atrativa porque apresenta relativo baixo custo das matrículas e
mensalidades, curta duração para conclusão e uma dinâmica flexível
para estudos em virtude de os momentos presenciais serem cada
vez menores e/ou ausentes. Vale destacar que as instituições de en-
sino superior públicas também fazem parte desta oferta de ensino
EaD em ambos os níveis de ensino citados acima.
A meta nº 11 do Plano Nacional de Educação (PNE) para o
decênio 2014-2024 visa aumentar em 50% o número de matrículas
nas instituições públicas de educação profissional técnica de nível
médio. Em relação à meta nº 12, pretende-se elevar a taxa bruta de
matrículas na educação superior para 50% e a taxa líquida para 33%,
da população de 18 a 24 anos, assegurando a qualidade da oferta e a
expansão para, pelo menos, 40% das novas matrículas nas institui-
ções públicas; 60% dessas matrículas serão destinadas às instituições
privadas.

4  Governo de Luiz Inácio Lula da Silva (período de 2003 a 2011) e governo de Dilma
Rousseff (período de 2011 a 2016).

115
Com base no exposto, observa-se que o PNE vigente cumpre
as exigências dos organismos internacionais, reafirmando a abertura
para investimentos do capital privado e transferindo para os indivídu-
os a responsabilidade pela busca por serviços de educação ofertados
pelo mercado, principalmente a formação técnico-profissionalizante
e superior.
Desde a implementação dos programas sociais para a educação,
citados anteriormente, houve crescimento no número de brasileiros
que concluíram o ensino superior, conforme demonstram os dados
do censo do Ministério da Educação (MEC): em 2017, aproxima-
damente um milhão e duzentos mil concluíram curso de graduação.
Porém, “no período de 2007 a 2017, a variação percentual do número
de concluintes em cursos de graduação é maior na rede privada, com
60,8%; enquanto na pública esse crescimento é de 27,8% no mesmo
período”.
Outro dado importante é que “após queda ocorrida em 2016, o
número de concluintes da modalidade a distância teve uma oscilação
positiva em 2017, aumentando a sua participação de 19,7% em 2016
para 21% em 2017”. Estes dados confirmam nossas análises de que
as estratégias adotadas pelo Estado brasileiro atendem à lógica de
expansão e, principalmente, de aprofundamento da mercantilização
da educação superior.
No ano de 2016, após o golpe contra a democracia, no perí-
odo do governo de Michel Temer (mandato presidencial de 2016 a
2018), inicia-se a implementação da Base Nacional Comum Curricu-
lar (BNCC)5, vislumbrando sintonizar-se com o movimento global de
reforma da educação presente em vários países desenvolvidos: Japão,
Cingapura, Finlândia e Alemanha. Naquele momento, o ministro da
Educação, José Mendonça Filho (mandato no período de maio de
2016 a abril de 2018), filiado ao Partido Democratas (DEM), retoma
a discussão sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais, que já havia
surgido desde os anos de 1990 como um movimento pelas referên-
cias nacionais curriculares liderado pelo próprio DEM, que resultou
em 1997 na implementação do Sistema de Avaliação da Educação
Básica (SAEB)6 (FREITAS, 2018).
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) propõe a utili-
zação de conteúdos comuns aos estudantes dos níveis básico, fun-

5  Informações sobre o BNCC. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.


gov.br/>. Acesso em: 19 de set. de 2019.
6  Informações sobre o SAEB. Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/educa-
cao-basica/saeb>. Acesso em: 19 de set. de 2019.

116
damental e médio das escolas públicas e privadas, considerando a
autonomia destas para acrescentar conteúdos específicos de acordo
com a sua localidade/região. Por outro lado, é contraditório à reali-
zação dos sistemas avaliativos nacionais (provas padronizadas) que
dão prioridade aos conteúdos das matérias de português, matemáti-
ca e ciências sociais; os resultados alcançados repercutem na nota do
estudante e consequentemente da escola. A depender da nota alcan-
çada, estas escolas públicas podem sofrer penalidades por parte do
Estado, como a redução do repasse de recursos financeiros. Assim,
se as escolas públicas não traçarem um planejamento estratégico de
ensino para alcançar melhores notas, serão consideradas sem quali-
dade no ensino ofertado.
Esta visão de avaliação da educação também atinge o ensino
superior (através do Exame Nacional de Desempenho dos Estudan-
tes – ENADE7) e coloca as universidades públicas no mesmo nível
de avaliação que as instituições de ensino superior privadas (presen-
ciais e EaD). Isto é, as instituições de ensino superior públicas são
avaliadas igualmente às instituições de ensino superior privadas, e
ainda sofrem retaliações por parte do próprio Estado por não ofe-
recerem um ensino de qualidade. Na lógica capitalista, o conceito de
qualidade significa saber desenvolver e utilizar as habilidades com
competência profissional para atender às necessidades de produção
e reprodução das relações sociais capitalistas.
É indispensável compreender que a lógica competitiva ineren-
te ao capitalismo determina a forma como as políticas sociais deve-
rão ser executadas, e entre estas políticas a educação ocupa uma cen-
tralidade para a formação e o disciplinamento da força de trabalho.
A educação pública é conduzida por sistemas de avaliação que
priorizam os indicadores quantitativos e a construção de rankings de
escolas ou universidades com supostos maiores índices de qualidade
do ensino ofertado. Neste processo, alguns elementos de suma rele-
vância para uma avaliação mais ampla são comumente secundarizados,
como: o processo de ensino e aprendizagem, o trabalho dos docentes,
o investimento dos recursos públicos na manutenção das estruturas
físicas, as diretrizes dos projetos pedagógicos e a relação entre os es-
tudantes, a família e os professores. Estes sistemas de avaliação con-
tribuem para a fragilização das instituições de ensino públicas que não
atendem aos critérios quantitativos privilegiados, bem como culpabi-
lizam os sujeitos envolvidos nesses espaços pelos fracassos escolares.

7  Informações sobre o ENADE. Disponível em: <http://inep.gov.br/enade>.


Acesso em: 23 de set. de 2019.

117
Em julho de 2019 iniciou-se um processo de contingenciamen-
to de 30% dos recursos federais para as universidades públicas. De
acordo com informações oficiais do MEC8, trata-se de um bloqueio
de dotação orçamentária de caráter preventivo, “operacional, técnico e
isonômico para todas as universidades e institutos, em decorrência da
restrição orçamentária imposta a toda Administração Pública Federal
por meio do Decreto nº 9.741, de 28 de março de 2019, e da Porta-
ria nº 144, de 2 de maio de 2019”. Este contingenciamento9 resultou
em muitos danos para o seu funcionamento, como: cortes das novas
bolsas de iniciação científica e também dos programas de mestrado e
doutorado, recursos financeiros insuficientes para o pagamento das
despesas com energia, água, material de expediente e limpeza em geral.
Segundo Freitas (2018), existem três denominações que repre-
sentam as propostas de reformulações da política de educação numa
perspectiva empresarial e/ou mercadológica: reforma empresarial,
movimento global de reforma educacional e nova gestão pública. Es-
tas reformas implementadas na educação brasileira e em outros países
atingem todos os níveis de ensino e visam ofertar um ensino adequa-
do à formação da futura mão de obra demandada pelo mercado de
trabalho em âmbito nacional e internacional.
Entendemos que as propostas governamentais não se amoldam
à realidade da população brasileira, em particular da classe trabalhado-
ra que vivencia a informalidade do trabalho ou o desemprego. Não se
trata apenas de uma questão de direito baseado na escolha de quem
pode ou não pagar pelo acesso ao ensino superior; o que está em dis-
puta no cenário político da educação brasileira são os interesses cor-
porativos das multinacionais da educação em detrimento da educação
pública, gratuita e de qualidade.
De acordo como Rossi (2018), é crucial a oferta de uma educa-
8  O contingenciamento é uma ação governamental em curso no ano de 2019 e ainda não há
uma resolução definitiva. Informações sobre o contingenciamento. Disponível em: <http://
portal.mec.gov.br/component/content/article?id=75781>. Acesso em: 4 de out. de 2019.
Ressaltamos que também existem informações disponíveis sobre o descontingenciamento.
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=80801:univer-
sidades-e-institutos-federais-vao-receber-quase-60-da-verba-descontingenciada-pelo-mec>.
Acesso em: 4 de out. de 2019.
9  É indispensável registrar que houve várias mobilizações em defesa da educação pública,
em âmbito nacional, organizadas pelas instituições públicas de ensino (representadas por
estudantes, professores, técnicos administrativos, movimentos sociais e sindicatos de tra-
balhadores da educação e sindicatos de trabalhadores em geral) contrárias a este processo
de contingenciamento e principalmente ao desmonte que vem acometendo a política de
educação brasileira, sobretudo a educação superior.

118
ção voltada à formação de um perfil de trabalhador que responda aos
interesses do capital.
Não importa ao capital que os indivíduos se apropriem de toda
a cultura humana ‒ em sentido amplo ‒, construída histórica e
socialmente pela humanidade. Interessa ao capital que os indiví-
duos possam se apropriar dos conhecimentos, habilidades, com-
portamentos e visões de mundo que possibilitem garantir a sua
própria reprodução de modo cada vez mais intenso e extenso.
(ROSSI, 2018, p. 49).

Freitas (2018) assevera que a ideia de tratar a educação como


mercadoria é própria da nova direita vigente no mundo, em particu-
lar nos E.U.A. e no Brasil, que representam o liberalismo econômico
em sua face neoliberal, alicerçados na vertente política e econômica
dos ideólogos neoliberais James Buchanan (1962), Milton Friedman
(1955), Friedrich Hayek (2010) e Ludwig Mises (2009; 2010), que
defendem essencialmente a liberdade de mercado, os direitos indivi-
duais e a propriedade privada acima do Estado, dos direitos sociais e
dos processos revolucionários da classe trabalhadora voltados para a
transformação social.
É indispensável questionarmos: a educação ainda pode ser
considerada um direito social? Ou estamos diante de uma fase da
crise estrutural do capital em que todas as necessidades sociais con-
vergem para garantir a acumulação das suas taxas de lucro?
Na próxima subseção apontaremos mais elementos de análi-
ses, na perspectiva de nos aproximarmos dos determinantes que re-
percutem na configuração da política de educação na especificidade
do ensino superior.

2 Ensino superior: formação com qualidade para a eman-


cipação humana ou para o mercado?

No Relatório da Comissão Internacional de Educação para o


século XXI, da UNESCO (DELORS et al., 1998), está posto que a
universidade deve ocupar o centro do sistema educativo, sendo suas
funções essenciais: preparar para a pesquisa e para o ensino; for-
mar de maneira altamente especializada e adaptada às necessidades
da vida econômica e social; estar aberta a todos para responder aos
múltiplos aspectos da chamada educação permanente, em sentido
lato; e cooperar no plano internacional.

119
Observa-se, portanto, que além de atender às necessidades
econômicas, a universidade deve estar voltada à lógica da qualificação
contínua, que também serve à imposição de adaptabilidade e poliva-
lência do mercado de trabalho neoliberal. Como parte de um mesmo
processo, ainda de acordo com Freitas (2018), o “conceito de quali-
dade da educação” passa a estar associado ao afastamento do Estado
da gestão política da educação e ao discurso/estratégia política go-
vernamental que visa à abertura para as empresas privadas gerirem
esta política, utilizando assim algumas estratégias de privatização das
instituições públicas de ensino independentemente do nível escolar.
Diante destas reflexões desenvolvidas por Freitas (2018) so-
bre a lógica do capital para a educação no Brasil, enfatizamos que
as propostas contemporâneas para a educação superior10 ressaltam
a necessidade das instituições federais de ensino superior e também
dos institutos federais tecnológicos de realizarem parcerias com em-
presas privadas para propiciar o financiamento e o desenvolvimento
de pesquisas com a finalidade de promoção do desenvolvimento da
ciência e da tecnologia.
Esta visão mercadológica entende que a ciência e a tecnologia
devem ser norteadas por uma dinâmica empreendedora alinhada às
necessidades do mercado, bem como o desempenho dos docentes e
discentes pesquisadores será avaliado pelo desenvolvimento de habi-
lidades e competências, adotando-se os critérios de eficiência e eficá-
cia. Caso não correspondam aos critérios de desempenho esperado,
tanto docentes e discentes pesquisadores como as instituições públi-
cas (universidades e institutos) serão penalizados em decorrência da
redução dos recursos públicos para a manutenção do funcionamento
da estrutura física/administrativa e principalmente dos projetos de
pesquisa.

10  Podemos citar como exemplo o Programa FUTURE-SE, que objetiva o fortalecimento
da autonomia administrativa, financeira e da gestão das universidades e institutos federais. O
MEC submeteu a proposta do programa para consulta pública com prazo prorrogado até
29/8/2019, e ainda não houve a divulgação oficial dos resultados. Portanto, não foi enviado
para a aprovação do Congresso Nacional. De acordo com o MEC, a adesão ao programa é
opcional para as universidades e institutos federais. É imprescindível destacar que compre-
endemos este programa como uma representação do processo de mercantilização da edu-
cação pública, expressando claramente uma das estratégias de privatizações por dentro das
universidades e institutos federais, camufladas através do discurso ideológico modernizante
e conservador de cunho neoliberal. Mais informações disponíveis em: <http://portal.mec.
gov.br/busca-geral/12-noticias/acoes-programas-e-projetos-637152388/78351-perguntas-
-e-respostas-do-future-se-programa-de-autonomia-financeira-do-ensino-superior>. Acesso
em: 4 de out. de 2019.

120
De acordo com Chauí (1999), o que se consolida são estra-
tégias para transformar a educação de serviço público estatal em
serviço privado, torná-lo cada vez mais operacional, garantindo a
formação de profissionais para as demandas do mercado. A preo-
cupação primordial é essencialmente com a gestão, o planejamento,
a previsão, o controle e o desempenho da estrutura organizacional
das universidades públicas, resultando na desvalorização do traba-
lho docente e no aceleramento da produção do conhecimento cien-
tífico. Dessa forma, a função da “universidade operacional” é ga-
rantir o desenvolvimento de uma formação que legitime uma visão
conformista das contradições da sociedade capitalista.
As estratégias utilizadas em tempos de capital financeiro/es-
peculativo conduzem ao sucateamento das instituições públicas de
ensino superior e à fragilização/interrupção dos projetos de pesqui-
sas desenvolvidos. Essa lógica mercadológica para a educação brasi-
leira omite os ganhos obtidos pelos trabalhos científicos (resultados
das pesquisas desenvolvidas) realizados por docentes e discentes nas
universidades e institutos federais.
Um levantamento publicado pelo jornal da USP (5/4) aponta
o Brasil como o 14º maior produtor de trabalhos científicos
do mundo. Apesar dos cortes nos últimos cinco anos, das 50
instituições que mais publicaram trabalhos científicos no país,
44 são universidades (36 federais, sete estatais e um particular)
e cinco são institutos de pesquisa ligados ao governo federal
(Embrapa, FioCruz, CBPF, Inpa e Inpe), também mantidos
com recursos públicos, além de um instituto federal de ensino
técnico. (RADIS nº 203, 2019, p. 15-16).

A citação acima permite apreender que as pesquisas nas ins-


tituições públicas de ensino superior brasileira, de maneira geral,
possuem qualidade e comprometimento com o desenvolvimento
do país. Entretanto, um aspecto preocupante que vem inquietando
a comunidade acadêmica é a lógica produtivista na produção do
conhecimento cientifico, que é fomentada pelo próprio Estado a
partir do estabelecimento de avaliações realizadas pela Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)11 sobre
a qualidade do trabalho de pesquisa das universidades públicas, de
seus programas lato sensu (mestrado e doutorado) e, especialmente,
do trabalho docente. Estas avaliações resultam em níveis de concei-

11  Informações sobre a CAPES disponíveis em <https://www.capes.gov.br/acessoain-


formacao/perguntas-frequentes/avaliacao-da-pos-graduacao/9815-avaliacao-quadrie-
nal>. Acesso em: 27 de set. de 2019.

121
tos para definir os melhores programas e, consequentemente, as me-
lhores universidades do país, implicando também processos de aligei-
ramento da formação dos pesquisadores nos programas de mestrado
e doutorado e comprometendo o desenvolvimento das pesquisas.
Acreditamos que em meio às contradições vigentes na socie-
dade capitalista, a formação acadêmica profissional nas instituições
públicas de ensino superior é comprometida com a garantia do tripé
ensino, pesquisa e extensão, numa perspectiva de formação humana
crítica e propositiva voltada para a construção de uma sociedade justa
e igualitária.
Os próprios relatórios técnicos do censo da educação superior,
elaborados pelo Ministério da Educação (MEC), evidenciam que a
partir de 2006 houve crescimento do número de universidades públi-
cas e institutos federais em virtude da meta governamental (período
de gestão do Partido dos Trabalhadores – PT) de ampliar o acesso ao
ensino superior e técnico profissional.
Reconhecemos que esse processo de expansão foi realizado
com avanços e retrocessos, considerando principalmente a forma
como o programa Reestruturação e Expansão das Universidades Fe-
derais (REUNI) foi implementado, em meio ao sucateamento pelo
qual as universidades já vinham passando desde os governos anterio-
res ao PT, em especial no período de Fernando Henrique Cardoso,
em plena efervescência da ofensiva neoliberal no Brasil.
É necessário reafirmar que tal expansão demandou a respon-
sabilização do Estado na manutenção destas instituições públicas de
ensino superior e tecnológico, além de proporcionar impactos quan-
titativos e qualitativos significativos na vida dos trabalhadores em re-
giões do país que não possuíam oferta de ensino superior público.
Diante das reflexões desenvolvidas acima, consideramos im-
portante apresentar o que compreendemos por um processo educa-
tivo que contribui para a formação humana. Para tanto, respaldamo-
-nos na perspectiva marxiana e evocamos o pensamento de Tonet
(2014):
Entendo, então, por emancipação humana uma forma de so-
ciabilidade, situada para além do capital, na qual os homens são
plenamente livres, isto é, na qual eles controlarão, de maneira li-
vre, consciente, coletiva e universal o processo de produção de
riqueza material (o processo de trabalho sob a forma de trabalho
associado) e, a partir disso, o conjunto da vida social (TONET,
2014, p. 11).

A fim de pensarmos sobre uma educação para a formação hu-

122
mana é crucial entendermos que o ser humano é constituído por
necessidades inerentes à sua natureza. Quando nos referimos à na-
tureza humana estamos partindo de uma perspectiva ontológica, na
qual não é possível separar o ser humano do mundo natural. A on-
tologia marxiana permite apreender que a existência da humanidade
depende de sua relação com a natureza, por ser esta parte de sua
composição; a forma como o ser humano consegue responder a
suas necessidades tem a mediação da atividade primária, o trabalho.
Segundo Rossi (2018):
O trabalho é uma categoria ontológica do ser social. Para que a
humanidade continue a existir, é necessário que exista trabalho
para transformar a natureza e atender às necessidades humanas.
Os atos de trabalho irão da origem a uma série de outros com-
plexos sociais como a educação (que é, assim como os demais,
um complexo fundado), pois, neste caso, os conhecimentos e as
habilidades que se originaram pelo trabalho precisam ser trans-
mitidos e apropriados pelos seres humanos (ROSSI, 2018, p.
42).

Nessa perspectiva, o trabalho é a categoria fundante do ser


social (ser humano), totalmente diferente do conceito de trabalho
vigente na sociedade capitalista, ou seja, trabalho em troca de sa-
lário. A educação enquanto parte dos complexos sociais fundados
pelo trabalho tem um papel importante na formação do ser humano
que está para além das determinações produtivas e reprodutivas do
capitalismo.
A educação para a formação humana deve conduzir para a
emancipação humana, permitir o desenvolvimento das potenciali-
dades, buscando a realização plena do ser humano. Uma educação
que possibilite ao ser humano se entender/agir como parte orgânica
da natureza, almejando desenvolver suas capacidades para respon-
der às suas necessidades de desenvolvimento (enquanto ser vivo)
e sobrevivência. Para isso não deve estabelecer como parâmetros
e/ou metas o individualismo, a competitividade, a tecnificação e a
lucratividade, que são inalienáveis das relações sociais capitalistas.
Para Tonet (2014), na sociabilidade burguesa não há uma di-
nâmica estrutural possível para o desenvolvimento de uma “educa-
ção emancipadora” utilizando os mesmos programas e conteúdos
vigentes, mas é viável a realização de “atividades educativas eman-
cipadoras” que podem ser efetivadas para além dos espaços escola-
res tradicionais. Tampouco existe um roteiro de intervenção destas.
Para promover tais atividades é necessário usar a criatividade, mes-
mo em tempos de crise estrutural do capital.

123
O autor elenca cinco requisitos importantes para realizá-las:
São eles: 1) conhecimento acerca do fim a ser atingido (a eman-
cipação humana); 2) apropriação do conhecimento acerca do
processo histórico e, especificamente, da sociedade capitalista;
3) conhecimento da natureza específica da educação; 4) domínio
dos conteúdos específicos a serem analisados; 5) articulação das
atividades educativas com as lutas, tanto especificas como gerais,
de todos os trabalhadores (TONET, 2014, p. 10).

O desenvolvimento da práxis educativa objetiva o fortaleci-


mento da formação de indivíduos críticos e conscientes do seu papel
político no processo de transformação social do status quo, visando
atingir realmente uma emancipação humana em outra forma de so-
ciabilidade. No entanto, com o aprofundamento do processo de mer-
cantilização, a educação perde sua função de práxis, resumindo-se à
adequação às necessidades do capital.
Na sociedade capitalista, as estratégias para garantir a subsun-
ção do trabalho ao capital são próprias desta sociabilidade cuja classe
burguesa é sua representação real. No entanto, torna-se necessário e
urgente à classe trabalhadora vislumbrar uma educação que possibili-
te a emancipação humana.

Considerações finais

Vivenciamos na contemporaneidade a expansão e a intensifica-


ção de um sistema educacional, no Brasil, alicerçado na fragmentação
do conhecimento científico e alinhado à reprodução da ideologia do-
minante e ao disciplinamento da classe trabalhadora. Tem, assim, um
papel fulcral para atender às necessidades do modo de produção capi-
talista.
Mesmo com a intervenção política de luta e a resistência dos
movimentos sociais e dos sindicatos, visando à organização política
da classe trabalhadora, as determinações do capital incidem agres-
sivamente nas configurações dos programas educacionais indepen-
dentemente dos níveis de ensino, legitimando as bases teórico-meto-
dológicas modernizantes, tecnicistas e conservadoras, cruciais para a
manutenção do status quo.
A mercantilização da política de educação brasileira legiti-
ma uma lógica de consumo dos serviços educacionais privados que
utiliza o discurso da qualidade, facilidade e praticidade na oferta dos

124
cursos tecnológicos e superiores. Os serviços ofertados no ensino
superior, em sua maioria privados, são voltados a uma formação
profissional em curto prazo que irá compor o exército industrial de
reserva.
Concluímos que o contexto do século XXI demarca o acir-
ramento das contradições do capital visualizadas na barbarização da
vida em sociedade, no qual todas as estratégias de recuperação da
taxa de lucro que incidem sobre as políticas educacionais resultam
em formas de aprofundamento da desigualdade de classe, raça e
gênero. São os trabalhadores a classe afetada pelas determinações
do capital.
É necessário continuar na luta por outra forma de socia-
bilidade. Para isso, torna-se imprescindível a realização de ativida-
des educativas emancipadoras que propiciem o desenvolvimento de
uma consciência realmente crítica sobre a história da humanidade,
as contradições do modo de produção capitalista, a relação de supe-
rexploração da força de trabalho, o papel que a classe social cumpre,
as lutas de classes e suas contradições e, particularmente, a necessi-
dade de construir caminhos para a superação da ordem do capital.

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Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Disponível em:
<http://portal.inep.gov.br/educacao-basica/saeb>. Acesso em: 19 de
set. de 2019.
Sistema Informatizado do Ministério da Educação (Sisu). Ministério da
educação. Disponível em: <http://sisu.mec.gov.br/> Acesso em: 23 de
set. de 2019.
TONET, Ivo. Atividades educativas emancipadoras. In: Práxis Educativa.
Ponta Grossa, v. 9, n. 1, p. 9-23, jan./jun. 2014. Disponível em: <http://
www.revistas2.uepg.br/index.php/praxiseducativa>. Acesso em: 20 de
set. de 2019.
Universidades e Institutos Federais vão receber quase 60% da verba de-
scontigenciada pelo MEC. Ministério da Educação. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=80801:uni-
versidades-e-institutos-federais-vao-receber-quase-60-da-verba-descon-
tingenciada-pelo-mec>. Acesso em: 4 de out. de 2019.

127
Docência no ensino superior: uma análise da
formação profissional em serviço social

Milena da Silva Santos1


Liana Amaro Augusto de Carvalho2

Introdução

A formação em Serviço Social no Brasil se faz através do


ensino superior, atribuindo a titulação de bacharel em Serviço So-
cial àquele que conclui o curso. Desde os primórdios da formação
em Serviço Social no Brasil, em meados da década de 1930, houve
preocupação com a apreensão de um conhecimento generalista com
vistas à atuação profissional. No entanto, a prática educativa3 do
processo de formação não se colocava como foco de análises; tal
preocupação limitava-se apenas à atividade prática da profissão.
Historicamente, a capacitação para a docência em Serviço So-
cial, além da formação em graduação, é complementada pela titula-

1  Assistente social. Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas


(UFAL). Doutoranda em Serviço Social, no Programa de pós-graduação em Serviço So-
cial, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: mielna_sso@hotmail.
com
2  Assistente social. Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (PPGSS/UFRN). E-mail: lianacarvalhoss@hotmail.com
3  Aqui nos referimos à possibilidade do bacharel em Serviço Social trabalhar a prática
educativa de futuros profissionais, tendo em vista que a obtenção do título também pos-
sibilita a atuação profissional do Assistente Social na prática docente em instituições de
ensino superior com cursos de Serviço Social, conforme preconiza o projeto ético político
profissional.
ção em pós-graduação em níveis lato sensu e stricto sensu, principalmen-
te com os programas de pós-graduação, mediante cursos de mestrado
e doutorado acadêmicos.
Com o processo de renovação da profissão no Brasil, nas dé-
cadas de 1960 a 80, deu-se a ampliação dos programas de pós-gra-
duação nas universidades federais, o que potencializa a produção de
conhecimento científico por parte da categoria, com o aprofunda-
mento da dimensão da pesquisa acadêmica e o aumento do número
de profissionais capacitados para a atuação como docentes em cursos
de bacharelado em Serviço Social.
Nas últimas décadas, a partir dos anos 2000, houve o cresci-
mento exponencial dos cursos de Serviço Social em todo o território
nacional, em instituições públicas e privadas, sobremodo na moda-
lidade de Educação a Distância (EAD), resultando na ampliação de
profissionais formados e aptos a atuar no mercado. Trata-se de um
alargamento do chamado exército industrial de reserva nesta catego-
ria, com algumas consequências que devem ser consideradas, o que
impõe a análise do processo de movimento da política educacional
brasileira sob a égide neoliberal e das implicações para a formação
profissional em Serviço Social e para a atuação docente.
Diante deste contexto e destacando a formação dos 25 anos
das Diretrizes Curriculares do Serviço Social, apresentamos este ar-
tigo com o objetivo de analisar o processo de formação em Serviço
Social no Brasil, no tocante aos desafios à docência no ensino supe-
rior, diante da conjuntura atual, de inegável precarização da política
educacional. Por meio de pesquisa bibliográfica, apresenta uma breve
análise acerca do debate contemporâneo da docência no ensino supe-
rior e sobre as perspectivas e desafios da formação em Serviço Social
na contemporaneidade, numa perspectiva teórica crítico-dialética.

1 Docência no ensino superior: debates contemporâneos

De acordo com Chauí (2013), a docência no ensino superior


realiza-se numa instituição social, a universidade4. Tal instituição não
está desconectada da realidade social, pois faz parte e é influenciada
por esta. De acordo com Chauí (2003), a universidade, como a socie-
dade, “[...] exprime de maneira determinada a estrutura e o modo de

4  Aqui também acrescentamos as Faculdades, Centros Universitários e Institutos Federais


de educação superior

130
funcionamento da sociedade como um todo” (CHAUÍ, 2013, p. 5).
As relações sociais que constituem nossa sociabilidade são
construídas através do modo de produção capitalista, um sistema
social que está assentado na propriedade privada dos meios de pro-
dução pela classe burguesa e tem como objetivo a geração de lucro
e como base, a exploração da força de trabalho humana (trabalho
abstrato). Divide os indivíduos em classes sociais distintas, com in-
teresses sociais divergentes, entre dominados e dominantes. Esta
hierarquia social se faz presente em todos os aspectos da vida social,
porquanto o capital a tudo domina.
A universidade, que compõe o sistema educacional de nível
superior, também é imbuída das relações sociais, econômicas, políti-
cas e culturais do sistema capitalista. O direcionamento desta insti-
tuição social, primariamente, objetiva a educação como ferramenta
para o desenvolvimento social e a produção e reprodução do conhe-
cimento científico, em busca de contribuir para uma “vida melhor”.
Porém, o que se realiza sob a égide do capital é a priorização de
uma formação técnica e profissional de indivíduos capacitados para
exercer atividades que gerem lucratividade às grandes empresas. As
exigências de maior capacitação profissional fazem com que a edu-
cação desenvolvida sob esta relação social “deixe de ser preparação
para a vida e se torne educação durante toda a vida” (CHAUÍ, 2003,
p. 11).
Analisar o ensino superior por este viés não é algo simples,
pois envolve um conjunto de categorias e mediações a serem con-
sideradas. Pensar a docência nesta perspectiva coloca a necessidade
de um posicionamento de um projeto societário: reproduzir a lógica
formal do conhecimento científico, a formação técnica e profissio-
nal voltada para o mercado de trabalho; ou buscar um processo
educativo capaz de permitir ao indivíduo o desenvolvimento de ha-
bilidade e capacidades próprias para contribuir com as reais neces-
sidades sociais.
Ao se indagar sobre a questão da educação para o mercado ou
para a vida, busca-se apresentar a análise de alguns teóricos, abaixo
referidos. Não se intenta aprofundar esta questão, mas apenas trazer
à cena alguns debates que podem fornecer subsídios para exames
futuros.
Com relação à educação institucionalizada no modo de pro-
dução capitalista, Amourim et al. (2017) afirmam que a educação
para a classe trabalhadora se expandiu progressivamente. Assim, a
educação no sentido estrito de forma específica tem prevalência so-
bre a educação no sentido amplo. É com o advento do capitalismo e

131
com o desenvolvimento industrial “[...] que são requeridas novas for-
mas de apropriação de conhecimentos e habilidades para o trabalho
[...]” (AMOURIM et al., 2017, p. 81). Nesta perspectiva, os processos
educacionais visam adequar a força de trabalho às necessidades do
modo de produção burguês.
Ao tratar da universidade e seu caráter de instituição social,
Chauí (2003) esclarece que esta é diferenciada e definida por sua au-
tonomia intelectual. A relação sociedade x Estado na universidade
aparece de maneira conflituosa, “[...] dividindo-se internamente entre
os que são favoráveis e os que são contrários à maneira como a so-
ciedade de classes e o Estado reforçam a divisão e a exclusão sociais
[...]” (CHAUÍ, 2013, p. 6), o que impede o desenvolvimento das pos-
sibilidades democráticas da instituição universitária.
Com as mudanças políticas ocorridas nas últimas décadas, par-
ticularmente com as reformas políticas e econômicas mediadas pelo
neoliberalismo, o sistema educacional sofreu consequências conside-
ráveis. Para a autora supracitada, isto definiu a educação como setor
não exclusivo do Estado, constituindo-se não mais num direito em
âmbito público, mas num serviço que pode ser adquirido em âmbito
privado, ou seja, através do mercado. Esta reforma não considera a
universidade como uma instituição social, mas como uma organiza-
ção social. Isso implica:
a) que a educação deixou de ser concebida como um direito e
passou a ser considerada um serviço; b) que a educação deixou
de ser considerada um serviço público e passou a ser considerada
um serviço que pode ser privado ou privatizado (CHAUÍ, 2013,
p. 6).

Encarada como organização social, a universidade resta vul-


nerável à lógica da eficiência e eficácia, derivada da organização da
empresa capitalista. A fragmentação das esferas da vida social apare-
ce neste processo com a “[...] fragmentação da produção, da disper-
são espacial e temporal do trabalho, da destruição dos referenciais
que balizavam a identidade de classe e as formas de luta de classes”
(CHAUÍ, 2013, p. 7). Esta visão organizacional da universidade pro-
duziu o termo universidade operacional5, voltada à gestão, produtividade,
flexibilidade, estratégias, particularidade e instabilidade de meios e
objetivos. Tal como uma empresa.
De acordo com Santos (2017), é a partir da década de 1990 que
no Brasil o sistema educativo passa a assumir configuração metódica

5  Termo de Freitag (Le naufrage de l’université) citado por (CHAUÍ, 2013, p. 7).

132
acerca da concepção empresarial de gestão e de financiamento para
a política de educação pública. Nesta direção, o Estado prioriza as
diretrizes educacionais orientadas pelos organismos financeiros in-
ternacionais, a exemplo do Banco Mundial (BM) e do Fundo Mone-
tário Internacional (FMI), aproximando cada vez mais as escolas e
universidades ao mercado.
As normas e padrões estruturados atualmente para as univer-
sidades são desconexos da produção do conhecimento científico e
da formação intelectual. Impõem-se as exigências de uma formação
mais acelerada, uma avaliação por quantidade, sem consideração
para com a qualidade. Chauí (2003) destaca o aumento das horas/
aula; a diminuição do tempo das pós-graduações mestrado e dou-
torado; a avaliação por quantidade de produção publicada, eventos
ministrados ou frequentados etc.
Diante dessa realidade, a docência é encarada como uma mera
transmissão de conhecimentos de forma aligeirada. O objetivo edu-
cador fica relegado ao aspecto conteudista, para dar conta de um
programa de disciplina, sem a necessária articulação com a totalida-
de, seja da formação profissional, seja da vida social. Pois o profes-
sor, como trabalhador assalariado, sofre também com o processo de
precarização, mediante a maior exploração da sua força de trabalho
(maior tempo de especialização, baixos salários, flexibilidade de con-
tratos, entre outros aspectos).
Conforme Chauí:
A docência é pensada como habilitação rápida para graduados,
que precisam entrar rapidamente num mercado de trabalho do
qual serão expulsos em poucos anos, pois se tornam, em pou-
co tempo, jovens obsoletos e descartáveis; ou como correia de
transmissão entre pesquisadores e treino para novos pesquisa-
dores. Transmissão e adestramento. Desapareceu, portanto, a
marca essencial da docência: a formação (CHAUÍ, 2003, p. 7).

Com relação à atuação docente, esta é encarada como prática


educativa, pois, como tantas outras profissões, “[...] é uma forma de
intervir na realidade social; no caso, mediante a educação. Portanto,
é uma prática social” (PIMENTA e ANASTASIOU, 2002, p. 178).
Assim, a prática educativa envolve um complexo de relações, desde
os saberes tradicionais até o desenvolvimento de ações criativas que
estimulem a pesquisa e a produção de novos conhecimentos.
Já para Bertoldo et al. (2012), a educação é considerada como

133
práxis social6 fundada pelo trabalho7 (categoria fundante do ser so-
cial), que tem como função essencial influenciar as consciências; já a
práxis docente busca “[...] mediar a relação entre os próprios homens;
trata-se de uma consciência que atua sobre a outra, buscando contri-
buir na formação da personalidade dos alunos, nos seus comporta-
mentos e valores” (BERTOLDO et al., 2012, p. 113).
Portanto, a docência é uma prática social basilar no conjunto
de mediações que compõem a formação do ser humano em socie-
dade. “O ensino é um fenômeno complexo; enquanto prática social
realizada por seres humanos com seres humanos, é modificada pela
ação e relação destes sujeitos, que, por sua vez, são modificados neste
processo” (PIMENTA e ANASTASIOU, 2002, p. 189). Por isto, a
docência exige o domínio do método de ensino, o que requer investi-
mentos acadêmicos do professor, na busca de uma atuação que per-
mita a instauração de práticas democráticas e participativas, de com-
preensão e de crítica, que visem dotar o ensino de melhor qualidade.
Freire (1996) afirma que “ensinar não é transferir conhecimen-
to, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua constru-
ção” (FREIRE, 1996, p. 12). Isto leva a refletir a prática social docen-
te de forma menos superficial. Pois quando se tem a compreensão da
profissão docente, não enquanto mero professor que transfere conhe-
cimento, mas com consciência da determinação social da prática, a
perspectiva de educador ganha uma dimensão transformadora.
O referido teórico destaca que o ensinar exige uma série de con-
dições, que vão desde a rigorosidade metódica, a pesquisa, o respeito aos
saberes dos discentes, até a criticidade, a ética, entre outras. Para Freire, “a
reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/
Prática, sem a qual a teoria pode ir virando blá-blá-blá e a prática, ativismo”
(FREIRE, 1996, p. 11). Outro aspecto relevante é a relação educador e
educando, já que “não há docência sem discência [...]. Quem ensina apren-
de ao ensinar, e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 1996, p. 12).

6  Práxis social está relacionada à ação humana concreta com a natureza na vida em socie-
dade. “Toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é práxis. [...] Por atividade em geral
entendemos o uso ou conjunto de atos em virtude dos quais um sujeito ativo (agente) mo-
difica uma matéria-prima dada. [...] O resultado da atividade, ou seja, seu produto, também
se dá em diversos níveis: pode ser uma nova partícula, um conceito, um instrumento, uma
obra artística ou um novo sistema social. [...] A atividade humana é portanto atividade que se
orienta conforme fins, e esses só existem através do homem, como produtos de sua consci-
ência” (VÁSQUEZ, 2011, p. 221-223).
7  Sobre a categoria trabalho e sua relação com a docência, ver Bertoldo et al., 2012, p. 111-
113.

134
Esses aspectos devem ser levados em consideração em todos
os níveis de ensino, inclusive no ensino superior. A questão especí-
fica do nível superior é a dimensão pedagógica e a relação aprendi-
zagem, que na maioria dos cursos universitários e não universitários
(técnicos e profissionalizantes) não formam para a docência. Exis-
te a “[...] prevalência de uma formação voltada ao saber fazer ou
ao saber técnico na formação de educadores da Educação Básica,
deixando evidente que o docente universitário não tem formação
pedagógica para atuar na formação profissional de outros sujeitos”
(BOLZAN e ISAIA, 2010, p. 23).
Com a preocupação constante de formações específicas para
o mercado de trabalho (prática das profissões), os cursos que não se
caracterizam como licenciaturas não formam seus futuros profissio-
nais para a formação de outros profissionais. E mesmo os cursos de
mestrados e doutorados acadêmicos não têm a obrigatoriedade de
oferta de disciplinas pedagógicas8, o que gera certos entraves para a
garantia de formação profissional de qualidade.
Com relação ao ensino superior, Bolzan e Isaia (2010) desta-
cam o conceito de pedagogia universitária,
entendida como um campo de aprendizagem da docência que
envolve a apropriação de conhecimentos, saberes e fazeres pró-
prios ao magistério superior, estando vinculados à realidade
concreta da atividade de ser professor em seus diversos campos
de atuação e em seus respectivos domínios (BOLZAN e ISAIA,
2010, p. 16).

Esta análise também envolve a dinâmica de construção do


conhecimento na relação docente e discente, no processo de apren-
dizagem. Levando em consideração a interpretação e a percepção
crítica da própria prática docente, com o objetivo de revisão e trans-
formações permanentes da ação pedagógica. A docência no ensino
superior deve ser entendida como um espaço em movimento, no
qual a atuação pode ser constantemente reconstruída.
Assim sendo,
a universidade deve ser entendida como lugar de formação no
qual a organização pedagógica precisa ser articulada de manei-
ra criativa, constituindo-se num centro de inovação no qual o
protagonismo pedagógico é reconhecido como caminho para a
emancipação dos processos formativos e da aprendizagem do-
cente [...] (BOLZAN e ISAIA, 2010, p. 23).

8  Disciplinas que possam preparar o aluno para uma futura atuação na docência.

135
Diante das considerações apresentadas até o momento, torna-
-se possível refletir sobre a formação profissional no ensino superior
de forma articulada à prática docente no Serviço Social.

2 Formação em serviço social na contemporaneidade:


perspectivas e desafios

O Serviço Social é uma profissão que tem espaço na divisão


social e técnica do trabalho, e que apenas se gesta na sociabilidade
capitalista. É somente no processo de desenvolvimento do capita-
lismo, em sua fase monopolista9, que são expostas as condições his-
tórico-sociais para que, na divisão social do trabalho, se forme um
espaço em que se possam desenvolver práticas profissionais como as
do assistente social.
A profissão surgiu “[...] em resposta a demandas histórico-so-
ciais macroscópicas, particularizadas pela realidade específica das
formações sociais em que se consolidou” (VIEIRA, 2000, p. 125).
Desse modo, deve-se entender a profissão a partir de uma dinâmica
de caráter histórico-social.
Iamamoto e Carvalho (2009) também corroboram a perspectiva
de que o Serviço Social se desenvolve como profissão no capitalismo e
com a expansão urbana, envolvendo, portanto, as mudanças engendra-
das por esses processos. É nesse âmbito que se desenvolve, de forma
mais latente, as expressões da chamada “questão social”10, tornando-se
a base de justificação da prática profissional do Serviço Social.

9  Segundo Netto (2006), o sistema capitalista, a partir de 1860, passou por profundas mo-
dificações no seu ordenamento e na sua dinâmica econômica. É nesse período que o capi-
talismo passa da sua fase concorrencial para a monopólica. A partir deste período houve
alterações significantes na dinâmica da sociedade burguesa: ela acirrou as contradições fun-
damentais do capitalismo, que já estavam expostas no capitalismo concorrencial, e as com-
binou com novas contradições e antagonismos.
10  Pelo termo “questão social” queremos indicar o complexo de problemas sociais, eco-
nômicos, políticos e culturais, derivados da relação contraditória entre capital e trabalho no
modo de produção capitalista (NETTO, 2006). Significa o conjunto das mazelas próprias
desta sociedade que emergem do cenário da primeira onda industrializante na Inglaterra,
por ocasião do século XVIII, quando a classe operária posicionou-se diante das péssimas
condições de vida que vinham enfrentando com a emergência do modelo fabril de produ-
ção, fazendo surgir não apenas o pauperismo, sua expressão mais flagrante, mas a fome, as
péssimas condições de trabalho e de habitação, bem como a formação de um excedente de
força de trabalho não absorvido pela nova dinâmica que se estabelecia.

136
O Serviço Social tem sua base nas políticas sociais, através das
quais o Estado burguês procura responder às expressões da “ques-
tão social”, de forma fragmentada e superficial. Nesse sentido, as
políticas sociais se constituem também como um conjunto de pro-
cedimentos técnico-operativos que requerem agentes técnicos no
plano da sua formulação, implementação e avaliação.
A formação profissional em Serviço Social teve início no Bra-
sil na década de 1930, com a criação das primeiras escolas de Ser-
viço Social ‒ em São Paulo, em 1936, e no Rio de Janeiro, em 1937.
A base teórico-metodológica da formação era eminentemente in-
fluenciada pela doutrina social católica, voltada a um ideário huma-
nista cristão baseado no Neotomismo11, que defendia o ajustamento
moral e religioso dos indivíduos-alvo da intervenção profissional,
evidenciando assim um caráter estritamente conservador da ordem
societária.
De acordo com Iamamoto e Carvalho (2009), durante as dé-
cadas de 1940 e 1950, houve o processo de institucionalização da
profissão, com o crescimento das contratações em instituições pú-
blicas e privadas, devido ao acirramento das expressões da “questão
social” em decorrência do processo de industrialização nacional. A
formação e a atuação passaram a ter forte influência da ideologia
desenvolvimentista12, com bases teóricas no positivismo13.

11  Neotomismo é a releitura das concepções teológicas de São Tomás de Aquino, funda-
mentada no humanismo cristão e na ideia de caridade, através dos princípios da dignidade
humana e do bem comum. Estes princípios estiveram presentes na formação e na prática
do Serviço Social da década de 1930 a 1960, aproximadamente.
12  A ideologia desenvolvimentista foi um movimento ideopolítico que afirmava a ne-
cessidade de ações voltadas ao desenvolvimento econômico e social do Brasil, com forte
investimento do Estado em setores da produção industrial e infraestrutura. O processo de
institucionalização, ocorrido nas décadas de 1940-50, foi permeado por novas demandas
sociais e institucionais de caráter desenvolvimentista e aproximou o Serviço Social das
teorizações positivistas de influência americana, com a ampliação de referenciais técni-
cos de análise de dados e fatos sociais com uma visão teórica no âmbito verificável e
da experimentação e fragmentação, voltando-se para o ajuste e a conservação da ordem
estabelecida. Um evento que marcou este movimento foi o II Congresso Brasileiro de Ser-
viço Social (Rio de Janeiro, 1962). Este congresso aproximou o Serviço Social da política
“desenvolvimentista” e efetivou a abordagem do desenvolvimento de comunidade, sob o
tema “desenvolvimentismo nacional para o bem-estar social”.
13 O positivismo é uma corrente filosófica e sociológica que tem por base a exaltação dos
fatos. Esta vertente se baseia nos dados da experiência como a única filosofia verdadeira.
Para o positivismo, o método experimental permite comprovar a verdade e é o caminho
para o pensamento científico.

137
Devido às necessidades próprias da atualização profissional
– em face das novas demandas postas pelo Estado, principalmente
na mediação das políticas sociais, como também devido a uma nova
conjuntura político-social brasileira –, a partir da década de 1960 a
categoria passa por um processo de revisão de suas bases teórico-
-metodológicas, ético-políticas e técnico-operativas. De acordo com
Netto (2007), o processo de renovação14 da profissão foi marcado por
uma forte crítica às práticas tradicionais e conservadoras, com o flo-
rescer de vertentes teóricas com embasamentos diferenciados quanto
às mudanças demandadas à profissão.
Ainda, de acordo com este estudioso, naquela década, a Pers-
pectiva Modernizadora destacou-se com sua proposta estrutural-funcio-
nalista; na década de 1970, evidencia-se a vertente da Reatualização
do Conservadorismo, de cariz fenomenológico; já na década de 1980, a
proposta de Intenção de Ruptura aproxima a formação profissional das
teorias marxistas, de base crítico-dialética – que embora se inicie de
maneira enviesada (com base em autores secundários, e não direta-
mente dos escritos do próprio Marx), influencia na formação de uma
nova direção social para a profissão.
Os efeitos desse processo de renovação foi uma transformação
na formação e atuação profissional do Serviço Social no Brasil, o
que permitiu o debate e a construção de um Projeto Ético-Político
direcionado à defesa do projeto societário da classe trabalhadora; a
hegemonia da teoria marxista; a criação do Código de Ética (1993);
da Lei de Regulamentação da Profissão (1993); das Diretrizes Cur-
riculares Nacionais do Serviço Social (1996), além da ampliação da
pesquisa social desenvolvida pela categoria, através da inserção do
Serviço Social no âmbito da pós-graduação (mestrado e doutorado).
Apesar dos avanços conquistados pela categoria em seu per-
curso histórico, a partir dos anos 2000 verifica-se o crescimento de
matrizes teóricas pós-modernas, aprofundando as críticas às bases
marxistas da formação profissional. Evidenciam-se traços crescentes
de práticas neoconservadoras, derivadas das ações e políticas neoli-
berais.
Com este breve resumo da formação profissional no Brasil,
busca-se demonstrar seu caráter histórico-social. As mudanças e

14  O processo de renovação profissional do Serviço Social no Brasil, inicialmente, deu-


-se em conjunção com o Movimento de Reconceituação (NETTO, 2007), que ocorreu em
vários países da América Latina. Nesse momento a categoria profissional passa a analisar
criticamente suas bases tradicionais e conservadoras de formação e atuação profissional,
entre as décadas de 1960 e 1980.

138
transformações societárias influenciam diretamente nas demandas
profissionais do Serviço Social, bem como na necessária compreen-
são, análise e resposta a este processo, exigindo uma constante revi-
são e a permanente adequação da formação e da prática profissional
à realidade social.
De acordo com a Associação Brasileira de Pesquisadores em
Serviço Social (ABEPSS):
A partir da produção teórica, qualificada e acumulada nas últi-
mas décadas, traçou-se um forte embate com o conservadoris-
mo no que se refere à interpretação teórico-metodológica do
Serviço Social, buscando adequar criticamente a profissão às
exigências do seu tempo. Os processos societários contemporâ-
neos vêm exigindo alterações tanto nos processos de formação
profissional como nos enfoques políticos e éticos relativos aos
mesmos (ABEPSS, 2004, p. 73).

Indaga-se: como acompanhar este processo social, cons-


truindo práticas pedagógicas eficientes no ensino superior diante
do contexto atual, oriundo do processo de “reforma” da educação,
com precarização do trabalho docente e precarização da política de
educação no país?
Em 2015, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Edu-
cacionais Anísio Teixeira (INEP) divulgou que o curso de Serviço
Social ocupava a 9ª posição na lista dos 20 maiores cursos do Brasil
em número de matriculados, com 172.569 alunos. De acordo com o
último relatório do Exame Nacional de Desempenho de estudantes
(ENADE), do ano de 2016, feito pelo INEP, são 328 cursos de gra-
duação em Serviço Social em todo o Brasil: 62 em universidades pú-
blicas e 266 em privadas; 312 presenciais e 16 na modalidade EAD.
O estado da federação que mantém o maior número de cursos de
Serviço Social é São Paulo, com 70, e o menor, o Amapá, com ape-
nas um curso. O quantitativo de cursos aumentou consideravelmen-
te, pois eram 134 em 2004. Um aumento de 144,77% em 12 anos.
Isso é um dos resultados da reforma do sistema educacional
brasileiro das últimas décadas. Por um lado, há o crescimento da
oferta de cursos no ensino superior em geral; por outro, as condi-
ções para a implementação de um ensino de qualidade e sustentável
não se efetivam. Nas universidades públicas, o quadro de docentes
não cresce na mesma proporção que a oferta de vagas para discen-
tes, e os cortes de financiamento impõem o desafio da gestão uni-
versitária. Isso também contribui para a precarização desta política
pública, que se somando a outros fatores, abre mais espaços para
investimentos da iniciativa privada.

139
A disparidade entre os números de cursos de Serviço Social
ofertados em instituições públicas e privadas é outro item a ser des-
tacado, já que reflete a política de oferta de crédito estudantil pelo
Governo Federal com o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES),
assim como a concessão de bolsas em faculdades privadas, através do
Programa Universidade Para Todos (ProUni).
Diante desta realidade do crescimento do número de cursos de
Serviço Social no país, advindo não apenas das exigências do campo
de atuação profissional, mas também da política de geração de vagas
no ensino superior, que objetiva a quantidade em detrimento da qua-
lidade, põem-se diversos desafios à formação profissional do Serviço
Social, que perpassa a atuação docente.
Uma das preocupações neste âmbito é o fortalecimento das
Diretrizes Curriculares Nacionais da ABEPSS para o curso de Servi-
ço Social. Nela se destacam o objetivo do curso, o perfil do egresso e
os núcleos de fundamentação que compõem a organização curricular.
Sobre as diretrizes, Iamamoto (2014) informa:
As diretrizes curriculares para o curso de Serviço Social são fruto
de amplo e diversificado debate acadêmico em oficinas locais,
regionais e nacionais. Eles permitiram dar forma à proposta do
“currículo mínimo” em 1996 (ABESS-CEDEPSS, 1996, 1997a,
1997b), que também contou com o protagonismo de parcela ex-
pressiva da intelectualidade da área de Serviço Social na assesso-
ria à então ABESS (IAMAMOTO, 2014, p. 615).

O texto base da proposta do currículo mínimo não foi homo-


logado na íntegra pelo Ministério da Educação (MEC), o qual, de
acordo com a autora supracitada, sofreu descaracterização no que se
refere à direção social da formação profissional e aos conhecimentos
e habilidades consideradas essenciais ao desempenho do assistente
social. Isto reflete o processo de reforma da educação, com a forma-
ção de currículos mínimos mais flexíveis, substituição de emendas de
disciplinas e definição de competências e habilidades mais voltadas
para a matriz técnico-operativa.
Importa ressaltar a necessidade de fortalecimento da direção
social da profissão, com a defesa do projeto ético-político voltado
para o projeto societário da classe trabalhadora. Pois, diante do pro-
cesso de mercantilização do ensino superior no país, pouco espaço
se tem para a manutenção da matriz norteadora da profissão numa
perspectiva histórico-crítica, de base dialética.
As Diretrizes Curriculares da ABEPSS explicitam que o conte-
údo da formação está sustentado em três núcleos temáticos, são eles:

140
a) Núcleo dos fundamentos teórico-metodológicos e ético-políticos da vida social;
b) Núcleo dos fundamentos da formação sócio-histórica da sociedade brasileira
e do significado do Serviço Social no seu âmbito; c) Núcleo dos fundamentos do
trabalho profissional. Tais núcleos subsidiam a formação, “[...] abran-
gendo elementos constitutivos do Serviço Social enquanto especia-
lização do trabalho: trajetória histórica, teórica, metodológica e téc-
nica, os componentes éticos que envolvem o exercício profissional,
a pesquisa, o planejamento e a administração em Serviço Social e o
estágio supervisionado” (IAMAMOTO, 2014, p. 620).
Ainda de acordo com Iamamoto (2014), a formação acadê-
mico-profissional em Serviço Social no Brasil vem sofrendo as mu-
tações da realidade devido à expansão acelerada da oferta de vagas,
como já mencionado; a hegemonia das instituições de ensino priva-
das; a precarização das condições de trabalho docente, a contratação
por tempo ou por tarefa, baixos salários, trabalho intensificado, ele-
vação da relação numérico professor/aluno; a redução da autono-
mia docente na elaboração de programas de disciplinas e avaliações;
e a mudança no perfil socioeconômico dos estudantes, com o acesso
da juventude trabalhadora ao ensino superior, através das políticas
de créditos estudantis.
Acrescenta-se a isso uma forte tendência de exigência da for-
mação tecnicista, para a geração de um exército industrial de re-
serva profissional, com vistas a baratear os salários desta profissão,
que ainda não tem piso definido. Como também uma categoria
profissional cada vez mais fragilizada para atender às demandas do
mercado de trabalho e das políticas públicas estatais, cada vez mais
precarizadas, o que acaba por diminuir a resistência profissional
subsidiada por uma matriz ideológica anticapitalista. Embora haja o
esforço das entidades da categoria em destacar a defesa dos espaços
sócio ocupacionais, as atribuições privativas e a valorização da pro-
fissão (seja em âmbito público, privado ou em movimentos sociais).
As transformações do ensino superior vêm trazendo “[...] im-
plicações na qualidade acadêmica da formação, no aligeiramento do
trato da teoria, na ênfase no treinamento e menos na descoberta
científica” (IAMAMOTO, 2014, p. 629). Devido a esta massificação
do ensino, ocorre a perda de qualidade da formação universitária,
resultando na “[...] submissão dos profissionais às demandas e ‘normas do
mercado’, tendentes a um processo de politização à direita da categoria”
(IAMAMOTO, 2014, p. 629, grifos da autora).
Apesar de tudo isso, deve-se levar em consideração, também,
as perspectivas da formação profissional em Serviço Social. Há a
ampliação dos programas de pós-graduação em todo o país, contri-

141
buindo para a formação de uma nova massa de pesquisadores, o que
evidencia a importância da pesquisa social para a formação e atuação
profissional. Isto potencializa a produção de conhecimento científico
na área das ciências sociais aplicadas numa perspectiva crítica hege-
mônica. Outra perspectiva é a do fortalecimento das entidades da
categoria profissional, tais como a Associação Brasileira de Ensino e
Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), o Conselho Federal de Servi-
ço Social (CFESS), os Conselhos Regionais e a Executiva Nacional de
Estudantes de Serviço Social (ENESSSO).
Diante da realidade do ensino superior brasileiro, constituem
desafios: enfrentar os liames que barram a educação formadora de
qualidade; barrar os processos de desqualificação das universidades
públicas, através da resistência às políticas contrarreformistas neo-
liberais; não reproduzir a lógica burocratizante da vida acadêmica,
priorizando a perspectiva de ensino-aprendizagem do processo de
formação; saber lidar com os processos de adoecimento docente e
discente, devido à perversidade das cobranças da universidade opera-
cional, evitando sobrecarga de trabalho de âmbito acadêmico e bus-
cando ações de prevenção de doenças psíquicas.
Concordamos com Iamamoto (2014) quando ela afirma a ne-
cessidade de criar subsídios teórico-metodológicos para a resistência
à onda cultural conservadora, como também estabelecer bases para
um diálogo crítico com o Serviço Social internacional, além da conti-
nuidade nos estudos sobre o processo de trabalho do Serviço Social
na definição de estratégias de efetivação de suas competências e atri-
buições profissionais.

Considerações finais

Diante da conjuntura atual da esfera do ensino superior no


país, é importante refletir sobre a prática educativa docente neste pro-
cesso de massificação, tecnificação e precarização do ensino superior
e compreender os fundamentos da realidade social em sua totalidade,
principalmente as relações entre economia e política, essenciais para
a análise deste processo.
Longe de esgotar o debate, trouxemos aqui algumas conside-
rações acerca da temática ‒ a atuação docente neste contexto ‒, bem
como questionamentos e preocupações com a formação em Serviço
Social, dos quais ainda é necessário um maior aprofundamento por
parte dos pesquisadores da categoria.

142
O modo de produção capitalista tem como característica ima-
nente a geração de crises econômicas decorrentes do seu impulso
para a expansão e a acumulação de capitais. Atualmente vivencia-se
um processo de crise estrutural (MÉSZÁROS, 2009) sem prece-
dentes, que evidencia os limites absolutos do sistema do capital. Na
tentativa de minimizar os efeitos desta crise, o capital e o Estado de-
senvolvem estratégias para a manutenção da lógica capitalista. Entre
elas, as políticas neoliberais, que impactam fortemente nas políticas
sociais públicas, sendo a política de educação parte delas. O objetivo
é tornar este serviço mais rentável ao capital, ainda que para isso se
precarizem os serviços públicos, acarretando prejuízos para a socie-
dade, para assim abrir espaço à iniciativa privada.
Nesta lógica o processo educacional desenvolvido é para uma
formação de profissionais aptos a ter sua força de trabalho explora-
da pelo capital, e não para o desenvolvimento de habilidades e ca-
pacidades individuais que visem suprir o conjunto de necessidades
sociais. Trata-se de uma educação voltada para a geração de lucrati-
vidade, e não para a emancipação humana.
A educação pode ser instrumento para a formação de indiví-
duos com capacidade de análise da realidade social de forma crítica,
preparados teórica e praticamente para não apenas reproduzir as
condições objetivas atuais, mas sim para provocar transformações
materiais, de forma a garantir a emancipação humana plena. Com-
preender minimamente esta lógica possibilita ter um panorama do
processo da educação no ensino superior em que se identifiquem
possibilidades e limites, perspectivas e desafios.

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145
O projeto ético-político do serviço social na for-
mação profissional: implicações éticas em tem-
pos ultraconservadores

Jodeylson Islony de Lima Sobrinho1


Rita de Lourdes de Lima2

Introdução

O tempo atual parece impetrado por uma cultura apologética


às ações políticas eticamente orientadas para uma revitalização de
valores e costumes morais de cunho conservadores, ao tempo que,
paralelamente, esses valores se apresentam difusos na realidade so-
cial.
Segundo Tonet (2002, p. 1):
Em todas as dimensões da vida social, valores que antes eram
considerados sólidos e estáveis sofreram profundos abalos. Há
uma sensação geral de desnorteamento e de insegurança. Parece

1  Assistente Social pela Faculdade Adelmar Rosado (FAR), especialista em Instrumenta-


lidade do Serviço Social pela Faculdade Adelmar Rosado (FAR), mestre e doutorando em
Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Coordenador
e Professor da Pós-Graduação lato sensu da Faculdade Adelmar Rosado (FAR). Assistente
Social da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), campus de Ponta Porã.
E-mail: isllony@hotmail.com
2  Assistente Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), mestre e
doutora em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Pós-Doutora
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente do Programa de Pós-Gradu-
ação (mestrado e doutorado) em Serviço Social da UFRN. Vice-Coordenadora do Grupo
de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Ética e Direitos (GEPTED)/UFRN. E-mail: rita.
pires2@gmail.com
que, de uma hora para a outra, a sociedade se transformou num
vale-tudo, onde não se tem mais certeza do que é bom ou mau,
correto ou incorreto. E, sobretudo, parece que os valores que
mais se impõem são os de caráter, individualista, imediatista e
utilitário, chegando, muitas vezes, ao cinismo mais aberto. Aspi-
ra-se a um mundo justo, solidário e humano, mas parece que estes
valores se tornam cada vez mais distantes.

Acentua-se um processo de distanciamento entre a realidade


objetiva e o discurso ético-político moralizante, pois, segundo To-
net (2002, p. 8), “quanto mais a realidade objetiva evolui no sentido
da desumanização, mais o universo dos valores ganha um estridente
caráter de discurso vazio e até mesmo de moralismo barato”. Isso é
claramente visível pela não realização de mudanças efetivas na reali-
dade social.
Instala-se uma fratura entre o ser e o dever ser: enquanto aque-
le se mostra cada vez mais individualista, competitivo, egoísta, com
os sujeitos convertidos em coisas/mercadorias, obedecendo à lógi-
ca privatista de expansão do capitalismo contemporâneo, o dever ser
se pauta por uma concepção abstrata de solidariedade, de defesa da
vida, da família, da moral, num discurso que aponta para iniciativas de
ações individuais de “bons corações” que amam o próximo, mas que
não se comprometem com perspectivas coletivas e não se baseiam na
identidade de classe.
Essa perturbação de valores e de caracteres no campo da vida
social invade a realidade profissional do Serviço Social, pois este não
se encontra imune ao contexto histórico-conjuntural da sociedade.
Dessa forma, a profissão tem vivenciado anseios e dilemas éticos e
morais presentes na relação objetividade e subjetividade, que se es-
praiam no processo de formação profissional e no exercício profis-
sional.
Este trabalho objetiva discutir a dimensão ético-moral na so-
ciedade contemporânea, particularmente no Brasil, com base numa
perspectiva crítico-ontológica, ressaltando os reflexos desse momen-
to conjuntural no Serviço Social brasileiro, no processo de formação
profissional.
De início, abordamos a discussão acerca dos valores e seus
fundamentos objetivos, avançando até o surgimento da sociedade de
classes e do surgimento da sociedade capitalista, discutindo a moral
e a ética no seio da sociedade contemporânea e na particularidade da
sociedade brasileira. Prosseguimos ainda discutindo as implicações
das medidas neoliberais no âmbito da universidade brasileira e parti-
cularmente as inflexões desses determinantes no campo da formação

148
e do exercício profissional do Serviço Social. E, por último, apresen-
tamos nossas considerações finais acerca do tema aqui proposto, re-
afirmando a centralidade do projeto ético-político (PEP) do Serviço
Social no processo de formação profissional.

1 Algumas reflexões ontológicas no campo da ética

Numa primeira aproximação ao campo da ética, tendemos a


considerar que a arena dos valores se dá no terreno da subjetividade
e que os sujeitos, a partir de decisões internas, escolhem seus valo-
res, por meio dos quais nortearão as suas decisões. Tal percepção é
em parte verdadeira, uma vez que cada ser humano faz suas escolhas
ético-políticas “individualmente”. Contudo, nada existe na “pura in-
dividualidade”, pois o ser humano é o conjunto das relações sociais
(MARX; ENGELS, 1991, p. 13) e, ao mesmo tempo, responde so-
cialmente por suas escolhas individuais. Assim, a liberdade humana
de escolher seus valores encontra-se condicionada pela estrutura
social da qual faz parte e pela conjuntura histórica vivida em deter-
minado período, o que não significa que não tenhamos liberdade e
que sejamos absolutamente determinados pela realidade vivida. Na
verdade, os seres humanos têm, sempre, liberdade relativa e condi-
cionada.
O que estamos assinalando é que as escolhas ético-políticas
“individuais” do ser humano não se dão desvinculadas da objetivi-
dade estrutural da qual faz parte e do período histórico no qual vive.
Na verdade, a ética e a moral têm suas raízes na forma como os se-
res humanos produzem os meios para satisfazer suas necessidades.
Dito de outra forma, a dimensão ético-moral dos indivíduos numa
dada sociedade e num determinado período histórico não pode ser
seriamente analisada sem considerar como os indivíduos se organi-
zam para produzir seus meios de existência, ou seja, não há como
desvincular a ética da produção material da existência humana. Isso
significa que, ontologicamente, a produção material da vida precede
todos os demais elementos.
O pressuposto de toda existência humana e, portanto, de toda
história é que os homens devem estar em condições de viver
para poder fazer história. Mas, para viver, é preciso antes de tudo
comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais... O
primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios que
permitam a satisfação destas necessidades, a produção da pró-

149
pria vida material, e de fato este é um ato histórico, uma condição
fundamental de toda a história. (MARX; ENGELS, 1991, p. 39).

Os seres humanos precisam, antes de tudo, permanecer vivos


e, para isso, necessitam se alimentar, beber e atender a suas condi-
ções elementares de sobrevivência. Por meio do trabalho, os seres
humanos passam a produzir seus próprios meios de existência. Essa
forma de produzir os meios de vida se dá a partir da relação dos seres
humanos com a natureza e deles entre si; é feita por meio do trabalho,
fundamento ontológico da vida social. É por meio do trabalho que se
dá a relação entre os seres humanos e a natureza, com o objetivo de
satisfazer as necessidades básicas da vida humana.
[...] devemos ter sempre em mente que a reprodução se dá num
entorno, cuja base é a natureza, a qual, contudo, é modificada
de modo crescente pelo trabalho, pela atividade humana. Desse
modo, também a sociedade, na qual o processo de reprodução do
homem transcorre realmente, cada vez mais deixa de encontrar as
condições de sua reprodução “prontas” na natureza, criando-as
ela própria através da práxis social humana (LUKÁCS, 2013, p.
171).

Desse modo, pelo e no trabalho, ao transformar a natureza,


os seres humanos transformam o mundo e também se transformam
nesse processo, em uma crescente complexificação, na qual surgem
novas necessidades, novas respostas, novas mediações e novas possi-
bilidades. Contudo, para que o trabalho atinja determinado objetivo
são necessárias escolhas prévias. Assim, o trabalho supõe escolhas
entre alternativas possíveis e essas são feitas baseadas em juízos de
valor que avaliam as escolhas a partir de critérios baseados no certo,
errado, justo, injusto, útil, inútil etc. (BARROCO, 1996; LUKÁCS,
2013). Por conseguinte, o trabalho, a práxis, é a fonte do comporta-
mento ético humano.
Nessa perspectiva, a moral e o comportamento ético humano
têm fundamento objetivo no trabalho, contudo, a complexificação
social estabelece uma importância crescente às escolhas subjetivas,
o que, à primeira vista, pode obscurecer o fundamento objetivo das
escolhas éticas.
A importância crescente, que aqui se revela, das decisões subje-
tivas nas alternativas, é em primeiro lugar, um fenômeno social
[...]. O próprio processo objetivo, como consequência de seu de-
senvolvimento superior, sugere tarefas que só podem ser pos-
tas e mantidas em marcha através da crescente importância das
decisões subjetivas. No entanto, estão ancoradas na objetividade
social dos valores, na importância destes para o desenvolvimento

150
objetivo do gênero humano, e [...] são, em última análise, resul-
tados desse processo social objetivo (LUKÁCS, 2013, p. 154).

O trabalho é cheio de sentido e significação e contribui para


que os seres humanos construam sua história, modifiquem a natu-
reza, modifiquem-se, transformem o mundo à sua volta. É atividade
ineliminável e condição ontológica eterna da vida humana, funda-
mento do ser social e da emancipação humana. Por meio dele dá-se
o processo de complexificação crescente da vida.
O fundamento ontológico objetivo dessas mudanças, com a
sua tendência muitas vezes desigual, mas no todo, progressi-
va, consiste em que o trabalho posto de modo teologicamente
consciente desde o princípio comporta em si a possibilidade
(dýnamis) de produzir mais que o necessário para a simples re-
produção da vida daquele que efetua o processo de trabalho [...].
Os valores que surgem nesse processo, como conhecimento
humano, arte da persuasão, destreza, sagacidade etc., ampliam
o círculo dos valores e das valorações – cada vez mais sociais.
(LUKÁCS, 2013, p. 160; 163).

A vida cotidiana é o terreno no qual se dá a história humana;


é nele que se realiza o trabalho cotidianamente. O cotidiano, por sua
vez, tem características inelimináveis: a imediaticidade, a heteroge-
neidade, a superficialidade extensiva, a repetição e a ultragenerização.
“São traços característicos da vida cotidiana: o caráter momentâneo
dos efeitos, a natureza efêmera das motivações e a fixação repetitiva
do ritmo, a rigidez do modo de vida” (HELLER, 2004, p. 43).
A vida cotidiana é o terreno do irrefletido. Nela, as ações se
dão por força do hábito, da repetição, na imediaticidade e na neces-
sidade de respostas rápidas, sem grandes reflexões. Essas caracte-
rísticas do cotidiano tornam-no o lugar por excelência de formação
dos preconceitos. Os preconceitos surgem das ultragenerizações,
que tornam possível a vida cotidiana. As ultragenerizações nascem
do pragmatismo e o do empirismo – necessários ao cotidiano ‒, no
qual nossa experiência pessoal se torna critério de verdade. O coti-
diano da vida não é o campo das mediações e reflexões sobre o agir
humano. Através de analogias, esquemas e estereótipos, assumimos
“verdades” brotadas de nossa experiência cotidiana e as generali-
zamos. Desse modo, na vida cotidiana o que parece “ser correto,
útil, o que oferece ao homem uma base de orientação e de ação do
mundo, o que conduz ao êxito, é também verdadeiro” (HELLER,
2004, p. 45). Os preconceitos são obra da própria vida cotidiana. É
no cotidiano da vida que se processa a história humana.

151
A vida cotidiana posta na sua insuprimibilidade ontológica não se
mantém como numa relação seccionada da história. O cotidiano
não se descola do histórico – antes é um dos seus níveis constitu-
tivos: o nível em que a reprodução social se realiza na reprodução
dos indivíduos enquanto tais (NETTO & FALCAO, 1987, p. 65).

Isso significa que, na vida cotidiana, o indivíduo se reproduz


enquanto tal, como ser singular e, ao mesmo tempo, reproduz direta-
mente a sociedade da qual faz parte e sua moral dominante. De fato,
a moral, como conjunto de normas e regras do convívio social, surge
da necessidade prática do convívio social desde as sociedades primi-
tivas, orientando a conduta dos indivíduos, em termos de normas e
deveres. Tais normas e deveres inicialmente visavam regular o conví-
vio social e tinham como base o bem da coletividade. Contudo, com
o processo de complexificação da sociedade, mais especificamente,
a partir do surgimento da sociedade de classes e da divisão social do
trabalho, o trabalho torna-se cada vez mais e somente, meio de vida
e de sustento. De elemento propiciador da liberdade e satisfação hu-
mana, converte-se em instrumento de exploração e opressão de uma
classe sobre a outra. No campo da moral são estabelecidas as normas
e condutas que interessam às classes dominantes e é nele que se im-
põem também a base para os preconceitos.
Nestas condições, o trabalho inverte sua finalidade criadora; ao
invés de liberar as capacidades essenciais do trabalhador, as aliena;
ao invés de objetivar-se como um fim em si mesmo, torna-se um
meio para a garantia da sobrevivência física; ao invés de ampliar a
criatividade e diversificar as possibilidades de escolha, reproduz a
unilateralidade, a fragmentação, ou seja, reproduz condições que
desumanizam o ser social (BARROCO, 1996, p. 63).

Na forma atual da sociedade de classes, a sociedade capitalista,


o trabalho alienado e alienante, torna-se sofrimento, opressão, dor,
dispêndio de energia sem sentido, no qual as pessoas permanecem
somente por necessitarem sobreviver. Esse trabalho alienado e alie-
nante é também a fonte objetiva dos valores da sociedade capitalista.
Com a complexificação da sociedade e o surgimento da sociedade de
classe, a moral também se torna fonte de opressão, uma vez que se
ancora em valores que refletem uma sociedade cindida, nas palavras
de Heller, em (des)valores3.
3  Partindo da concepção ontológico-histórica, na qual os valores têm seu fundamento no
trabalho humano, adotaremos a perspectiva segundo a qual os valores necessariamente con-
tribuem para a liberdade e a emancipação humana, enquanto os (des)valores são todos aque-
les que oprimem e obstaculizam o pleno desenvolvimento e a liberdade humana. Ver, a esse

152
Assim, os seres humanos incorporarão na sua vida e no seu
cotidiano, em maior ou menor medida, o ethos capitalista. Tem-se,
portanto, uma moral alienada: aquela que se apresenta de manei-
ra autônoma, sem vincular-se à humanidade como um todo, sem
vincular-se à essência do gênero humano. Desse modo, o campo
da moral diz respeito à prática do indivíduo em sua singularidade,
quando, sem mediações, não avança para a dimensão humano-ge-
nérica.
Nesse contexto, deve-se assinalar que
[...] a classe burguesa produz preconceitos em muito maior
medida que todas as classes sociais conhecidas até hoje. Isso
não é apenas consequência de suas maiores possibilidades téc-
nicas, mas também de seus esforços ideológicos hegemônicos:
a classe burguesa aspira a universalizar sua ideologia (HELLER,
2004, p. 54).

Na luta cotidiana pela sobrevivência na sociedade, homens e


mulheres, ao responderem às suas necessidades imediatas, incorpo-
ram, irrefletidamente, costumes, normas e condutas de comporta-
mento. É no solo do cotidiano que se reproduzem os preconceitos,
os (des)valores, as condutas irrefletidas. No caso da sociabilidade
capitalista, a organização da produção baseada no lucro, na compe-
titividade, no egoísmo e no individualismo exacerbado termina, em
larga medida, por formar indivíduos à sua imagem e semelhança.
Contudo, há dimensões da vida humana que permitem a sus-
pensão do cotidiano e das suas generalizações. A ética é uma delas,
quando permite ultrapassar o terreno dos preconceitos, visto que
consiste na reflexão teórica sobre a moral e em uma ação livre vol-
tada ao ser humano-genérico. Desse modo, o refletir e o agir ético
elevam o indivíduo para além do eu ensimesmado e “possibilita a ele
agir com consciência das alternativas, com autonomia e liberdade”
(BARROCO, 2000, p. 126). Assim sendo, é possível aos seres huma-
nos superar o terreno dos preconceitos.
Pois, ao tempo que o preconceito surge das generalizações
cotidianas, também surge e é alimentado por interesses específicos
de grupos dominantes que desejam assegurar o status quo. Segundo
Heller (op. cit.), os preconceitos poderiam deixar de existir se desa-
parecesse o modo de ser singular que funciona com inteira indepen-
dência do humano-genérico, ou seja, se cada indivíduo particular se
visse como participante do ser humano-genérico.
respeito, Heller (2004).

153
O indivíduo pode superar a singularidade, quando ascende ao
comportamento no qual joga todas as suas forças, mas toda a sua
força numa objetivação duradoura (menos instrumental, menos
imediata); trata-se então de uma mobilização anímica que suspen-
de a heterogeneidade da vida cotidiana – que homogeneíza todas as
faculdades do indivíduo e as direciona num projeto em que ele
transcende a sua singularidade numa objetivação na qual se re-
conhece como portador da consciência humano-genérica. Nesta
suspensão (da heterogeneidade) da cotidianidade, o indivíduo se
instaura como particularidade, espaço de mediação entre o singular
e o universal, e comporta-se como inteiramente homem. (NETTO &
FALCAO, 1987, p. 65, grifos do autor).

Nessa ótica, a reflexão ético-política deve pautar-se pelo forta-


lecimento da busca da essência humana e pela efetiva humanização
global da vida, expressa na superação da dimensão puramente singu-
lar, na busca da particularidade ‒ mediação entre o singular e o uni-
versal. Tais dimensões caracterizam-se como uma das bases da ética
em Marx e da superação da moral alienada.
Contudo, a construção de uma nova moral, baseada no huma-
no-genérico, só é possível plenamente a partir de uma nova forma de
organização de sociedade que coloque a satisfação das necessidades
dos seres humanos como objetivo central da produção. Em Marx, a
construção de uma nova moral não é uma tarefa teórica, mas prática,
e significa derrubar
[...] todas as relações em que o homem é um ser humilhado, sub-
jugado, abandonado e desprezível, relações que nada poderia ilus-
trar melhor do que aquela exclamação de um francês ao tomar
conhecimento da existência de um projeto de criação do imposto
sobre cães: ‒ Pobres cães! Querem tratá-los como se fossem pes-
soas! (MARX, 1844, s/p).

Prossegue Marx (ibidem, s/p):


Sem dúvida, a arma da crítica não pode substituir a crítica das
armas; a força material tem de ser deposta por força material,
mas a teoria também se converte em força material, uma vez que
se apossa dos homens. A teoria é capaz de prender os homens
desde que demonstre sua verdade ante o homem, desde que se
torne radical. Ser radical é atacar o problema em suas raízes. Para
o homem, porém, a raiz é o próprio homem.

Cumpre reconhecer a importância da reflexão ético-política


e de uma educação que promova a reflexão crítica em todas as di-
mensões, e que permita aos indivíduos refletir sobre o seu agir ético
(TONET, 2002), conscientes de que toda escolha realizada no coti-

154
diano da vida tem uma dimensão ético-política. Isso não implica a
imposição de uma forma de pensar, significa tão só a liberdade de
escolher um projeto de vida diverso do proposto pelo sistema capi-
talista (LIMA, 2007).
O desenvolvimento científico e tecnológico que se processa
não tem contribuído para melhorar a vida de toda a humanidade,
pelo contrário, tem sido fator de degradação da vida humana e do
agravamento dos problemas sociais. As pessoas, na sociedade do
capital, são transformadas em objetos descartáveis, em seres indi-
vidualistas preocupados somente com sua sobrevivência cotidiana
(TONET, 2002). O individualismo exacerbado afasta os sujeitos da
luta coletiva, da busca por interesses humano-genéricos.
No caso da sociedade brasileira, além dos valores intrínsecos
à sociedade capitalista, há também os valores próprios da formação
sócio-histórica brasileira4. O Brasil tem uma formação sócio-históri-
ca baseada na exploração, na escravidão, nos grandes latifúndios, em
ditaduras e “revoluções pelo alto”, com uma elite profundamente
conservadora, acostumada a exercer o poder pelas vias do populis-
mo, do clientelismo e do patrimonialismo. Todos esses elementos
criam uma sociedade profundamente verticalizada e hierarquizada,
com relações pautadas pelo mando, pela obediência, pelo favor e
pela tutela (CHAUÍ, 1994)5. Esses são os valores hegemônicos da
burguesia brasileira que, associada ao capital transnacional, busca
assegurar seus interesses à revelia dos interesses da classe trabalha-
dora.
No âmbito do Serviço Social brasileiro, a partir de meados
do século XX, inicia-se um processo de construção do denominado
PEP (Projeto Ético-Político), o qual busca romper com esse con-
junto de valores hegemônicos da sociedade capitalista. Trataremos
disso a seguir.

2 Algumas mediações presentes entre o código de ética


profissional e as diretrizes curriculares

4  As escolhas ético-morais se dão na confluência de muitos determinantes. O


sujeito na sua particularidade realiza escolhas baseado em valores nos quais se
mesclam elementos conjunturais, estruturais, geográficos, culturais, históricos,
sempre englobando universalidade, singularidade e particularidade.
5  Para aprofundamento sobre a formação sócio-histórico brasileira, ver especial-
mente, Fernandes (2005).

155
O Projeto Ético-Político do Serviço Social brasileiro é uma
conquista da categoria profissional ao longo de um processo históri-
co de maturação teórico-metodológico, ético-político e técnico-ope-
rativo anterior, sobretudo sob a perspectiva da crítica marxista. Essa
maturação se constitui como síntese da expressão das lutas e resistên-
cias dessa categoria, bem como da classe trabalhadora, em face das
ideologias políticas, econômicas e culturais conservadoras6.
As bases teórico-políticas do amadurecimento da profissão,
que desemboca na construção do Projeto Ético-Político Profissional,
encontram-se na configuração dada pelo processo, iniciado nos anos
1960, de recusa ao conservadorismo presente na categoria desde suas
origens. Contudo, é nos anos de 1980 que essa categoria adquire ma-
turidade intelectual e política para objetivar uma avaliação qualitativa
dessas tendências que permearam o Serviço Social em seu processo
de renovação, na qual se hegemoniza a tendência de intenção de rup-
tura7.
Barroco (2010, p. 166-167) afirma que:
As formas de incorporação do marxismo pelo Serviço Social só
adquirem condições de ser reavaliadas na segunda metade dos
anos 70, no âmbito da crítica superadora do movimento de re-
conceituação. Aí são apontados seu ecletismo teórico-metodo-
lógico, sua ideologização em detrimento da compreensão ético-
-política, sua remissão a manuais simplificadores do marxismo,
sua reprodução do economicismo e do determinismo histórico.
Em termos políticos, questiona-se o basismo, o voluntarismo, o
messianismo, o militantismo, o revolucionarismo.

Nesse período, ainda é bastante restrita a reflexão teórico-me-


todológica sobre a ética inspirada na tradição marxista, embora tal
ética já se encontrasse presente nas configurações históricas da pro-
fissão, como, por exemplo, no III Congresso Brasileiro de Assisten-
tes Sociais (CBAS), em 19798, que segundo Barroco (2010, p. 168) é
um marco no compromisso político da categoria dos/as assistentes
sociais com os campos populares da sociedade brasileira, pois “os

6  Acerca do pensamento conservador, ver Escorsim Netto (2011) e Martins (1981).


7  Sobre este assunto, ver Netto (2011).
8  No III CBAS (Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais), os/as assistentes sociais pre-
sentes questionaram a direção adotada pela organização do congresso e substituíram os
convidados especiais, representados por autoridades da ditadura civil-militar, por dirigentes
de organizações populares. Essa atitude constituiu um marco no seio da categoria profissio-
nal e representou a vontade dos/as profissionais de Serviço Social para colocar sua prática
profissional a favor dos setores populares.

156
valores ético-políticos inscritos no projeto profissional de ruptura
adquirem materialidade, o que se evidencia na organização política
da categoria, na explicitação da ruptura com o tradicionalismo pro-
fissional”.
O processo de maturação teórico-política ocorrido na década
de 1980 é marcado pela aproximação com o pensamento marxista,
que na realidade brasileira tem como centralidade a obra Relações
Sociais e Serviço Social no Brasil, de Iamamoto e Carvalho (2014), as-
sinalando a superação dos equívocos arrolados às primeiras aproxi-
mações da profissão ao marxismo.
Junto a essa obra, adquirem destaque as discussões e apro-
fundamentos – a partir da tradição marxista – de algumas categorias
elementares para o Serviço Social, tais como: “questão social”, po-
lítica social, trabalho, sociedade civil e Estado. Tais discussões sus-
tentaram as bases de reorganização da categoria, tanto no campo da
formação quanto no exercício profissional. Essa nova compreensão
dos fundamentos que compõem o Serviço Social é que possibilita a
objetivação de uma dimensão, até então tida como “neutra” no seio
da profissão, que é a dimensão ético-política.
A nova dimensão política objetivada nas ações da categoria,
expressa pelos posicionamentos erigidos pelos/as profissionais,
leva a repensar os posicionamentos éticos dos/as assistentes sociais,
bem como os pressupostos teóricos que fundamentam e balizam a
ética profissional, consolidando assim a emersão de um novo ethos
profissional, vinculado às demandas mais democráticas da socieda-
de brasileira.
Em 1986 é instituído no âmbito da categoria o seu novo Có-
digo de Ética, que em contraposição aos Códigos anteriores (1947,
1965, 1975)9 demarca sua vinculação a uma ética transformadora
no campo do Serviço Social brasileiro, pois seus pressupostos teóri-
co-políticos assumem uma direção social conformada à conjuntura
ideopolítica da década de 1980, embora ainda marcado por certos
limites.
Nesse sentido, Barroco (2010, p. 176-177) afirma:
Aponta-se para a necessidade de uma nova ética profissional
que “reflita uma vontade coletiva, superando a visão acrítica,
onde os valores são tidos como universais e acima dos inte-
resses de classe”. A nova ética é então definida como “resulta-
do da inserção da categoria nas lutas da classe trabalhadora e,
consequentemente, de uma nova visão da sociedade brasileira”.

9  Para maior aprofundamento sobre os Códigos de Ética do/a assistente social anteriores
ao de 1986, ver BRASIL, CFESS (2012).

157
Assim, apresenta-se o princípio da nova ética, o “compromisso
com a classe trabalhadora”, desta vez explicitado: “A categoria,
através de suas organizações, faz uma opção clara por uma práti-
ca profissional vinculada aos interesses desta classe”. [Contudo,]
O código expressa uma concepção ética mecanicista; ao derivar,
imediatamente, a moral da produção econômica e dos interesses
de classe, não apreende as mediações, peculiares e dinâmicas, da
ética. Ao vincular, mecanicamente, o compromisso profissional
com a classe trabalhadora, sem estabelecer a mediação dos valo-
res próprios à ética, reproduz uma visão tão abstrata como a que
pretende negar.

Até aquele momento, ainda se percebe uma insuficiência na


apreensão da ética nos processos de objetivação das relações sociais,
o que não equivale a uma ausência de mudanças ético-morais no con-
texto da profissão. A superação das fragilidades do Código de 1986,
segundo Barroco (2010, p. 178), “é objetivada em 1993, quando o
Código é reelaborado, o que deixa claro que houve um avanço teóri-
co, proporcionado pelo acúmulo anterior”.
O contexto de amadurecimento da ética no Serviço Social é
tido como uma expressão coletiva da categoria, protagonizada pela
articulação de suas entidades representativas – a partir de congressos,
oficinas, seminários, espaços de diálogo e debate, entre outros –, que,
ainda de acordo com Barroco (idem, p. 179), esteve consubstancia-
do a um período em que “o país ingressa no ‘mundo global’ reatu-
alizando as velhas estratégias de equacionamento moral da ‘questão
social’”. Esse período é tomado por um avanço do conservadorismo
burguês, construído no âmago das relações sociais vigentes10.
Mesmo com essa configuração adversa à objetivação de uma
ética baseada nos fundamentos teórico-políticos do ser social, o Có-
digo de Ética de 1993 mostra uma ampliação mais sólida das bases te-
órico-filosóficas em Marx, essencialmente por meio da expansão in-
telectual dessa tradição nos anos 1980, no âmbito do Serviço Social.
É nos anos 1980 que o Serviço Social brasileiro dá seus primeiros
passos no âmbito da pós-graduação stricto sensu e se aproxima, grada-
tivamente e com profundidade, de autores(as), conceitos e categorias
(LUKÁCS, 2013; MÉSZÁROS, 2011; HELLER, 2004, entre outros)
antes apreendidos superficialmente no Serviço Social.

10  No Brasil, os anos 80 do século XX foi o momento de reorganização das forças e mo-
vimentos populares na luta contra a ditadura civil-militar (1964-1985) e trouxeram enormes
conquistas para a classe trabalhadora, expressos, em parte, na Constituição de 1988. Já os
anos 90 representaram a chegada do neoliberalismo e o início do desmonte dos direitos
sociais, conquistados na Constituição a duras penas.

158
Os anos 1990 e os seguintes possibilitam um acúmulo teó-
rico-metodológico e ético-político, o qual fortalece as discussões
acerca dos instrumentos que expressam esse Projeto Ético-Político.
Com isso, o PEP se expressará no novo Código de Ética Profissio-
nal (Resolução CFESS 273/93, de 13 de março de 1993), na nova
Lei de Regulamentação da Profissão (Lei 8.662/93, de 7 de junho de
1993), bem como na elaboração das Diretrizes Gerais Curriculares
para o Curso de Serviço Social, de 1996, aprovadas pelo Conse-
lho Nacional de Educação (CNE/MEC) em 2001 (BRASIL, 2012
e ABEPSS, 1996).
O Código de Ética Profissional estabelece o reconhecimen-
to da liberdade como valor ético central, a defesa intransigente dos
direitos humanos, a recusa ao arbítrio e ao autoritarismo, a amplia-
ção e a consolidação da cidadania e a defesa e o aprofundamento
da democracia, enquanto socialização da participação política e da
riqueza socialmente produzida. A formação profissional por meio
das Diretrizes Gerais Curriculares para o Curso de Serviço Social
alinha-se aos princípios éticos humano-genéricos que se entranham
no Projeto Ético-Político, fincando-se como lócus privilegiado de
formação da consciência profissional.
O Código de Ética do(a) assistente social, aprovado em 1993
(BRASIL, CFESS, 2012, p. 21-22), expõe a compreensão de que
[...] a ética deve ter como suporte uma ontologia do ser social:
os valores são determinações da prática social, resultantes da
atividade criadora tipificada no processo de trabalho. É me-
diante o processo de trabalho que o ser social se constitui, se
instaura como distinto do ser natural, dispondo de capacidade
teleológica, projetiva, consciente; é por esta socialização que ele
se põe como ser capaz de liberdade. Esta concepção já contém,
em si mesma, uma projeção de sociedade ‒ aquela em que se
propicie aos/às trabalhadores/as um pleno desenvolvimento
para a invenção e vivência de novos valores, o que, evidente-
mente, supõe a erradicação de todos os processos de explora-
ção, opressão e alienação. É ao projeto social aí implicado que
se conecta o projeto profissional do Serviço Social ‒ e cabe
pensar a ética como pressuposto teórico-político que remete ao
enfrentamento das contradições postas à profissão, a partir de
uma visão crítica, e fundamentada teoricamente, das derivações
ético-políticas do agir profissional.

Tais projeções vêm sendo construídas no processo de for-


mação profissional; é perceptível a interlocução entre o Código de
Ética, as Diretrizes Curriculares e a Lei de Regulamentação da Pro-
fissão na insurgência do Projeto Ético-Político profissional. Tais ele-

159
mentos são incorporados ao processo de formação profissional, pro-
porcionando ao discente um referencial teórico-filosófico que busca
uma apropriação e compreensão do ser social em sua totalidade, para
que se posicione ante as demandas da profissão. É urgente que essa
ética humano-profissional se consolide nos meandros da formação
como categoria transversal.
Se os indivíduos no cotidiano da sociabilidade capitalista in-
corporam seus (des)valores e tendem a reproduzi-los, qual a possibi-
lidade de rompimento com tais (des)valores? Como se dá o processo
de desconstrução/reconstrução de novos valores no sujeito? Qual
a importância de assegurar um processo de formação profissional
alicerçado no PEP?
Segundo Iasi (2011), o processo de formação da consciência
de pertencimento de classe e de compromisso com a perspectiva de
classe se dá na intersecção entre o genérico e o particular, onde o in-
divíduo, na sua particularidade, se vê como participante de um todo
maior e encontra um ponto de fusão, reconhecendo-se como ser que,
na sua serialidade, faz parte de algo maior (ser genérico). Nesse sen-
tido, a formação profissional é um dos elementos importantes no
processo de formação da consciência, contudo, não podemos nos
ater somente a ele, apesar de reconhecermos sua importância.
A formação da consciência envolve inúmeros determinantes
objetivos e subjetivos11, desde condições de vida, acesso à educação,
pertencimento objetivo e subjetivo de classe, disposição interna para
a mudança, participação em atividades de organização e participação
política, até vários determinantes sociais que se imbricam na particu-
laridade e no momento específico de vida de cada sujeito.
O processo de formação profissional do Serviço Social brasi-
leiro apresenta outra lógica, outra forma de análise, que pode encon-
trar “eco” (ou não) na particularidade da vida dos(as) discentes. Ao
tempo que avaliamos a dificuldade de, durante o processo de for-
mação – que leva em torno de quatro a seis anos ‒, os(as) discentes
11  Aqui não nos deteremos no processo original de formação da consciência ou na discus-
são do surgimento da educação na história humana, como forma de agir sobre a consciência
de outros homens. Contudo, é importante assinalar que toda nossa reflexão parte de seu
fundamento ontológico, portanto, também o processo educativo/formativo tem sua base no
processo de trabalho, conforme acentua Lukács: “Nas formas ulteriores e mais desenvolvi-
das da práxis social, destaca-se em primeiro plano a ação sobre outros homens [...]. Também
nesse caso o fundamento ontológico-estrutural é constituído de pores teleológicos e pelas
cadeias causais que eles põem em movimento. No entanto, o conteúdo essencial do pôr te-
leológico nesse momento – falando em termos inteiramente gerais e abstratos – é a tentativa
de induzir outra pessoa (ou grupo de pessoas) [...]”. (LUKÁCS, 2013, p. 83).

160
romperem/reverem os (des)valores que, por vezes, chegam já ali-
cerçados, é inegável a contribuição do processo de formação e da
vida acadêmica na reavaliação/reformulação de tais (des)valores. É
sempre mais outra possibilidade, outra forma de olhar a sociedade
e os processos sociais, de forma crítico-reflexiva, apontando para a
busca de um agir ético-político mais voltado à coletividade, à liber-
dade e à dimensão humano-genérica.
Na conjuntura atual e na realidade brasileira presente, tal pro-
cesso de rompimento com os valores dominantes se faz com muito
maior dificuldade, pois vivemos num contexto que, cada vez mais,
substitui o saber crítico-reflexivo, que exige tempo, constância e de-
terminação para apreender o real, por um saber técnico-instrumental
pragmático, que tem como objetivo final apenas os resultados mais
imediatos. Todo esse processo vem contribuindo para a formação
de gerações nas quais predomina a racionalidade abstrata-formal e
instrumental, que afasta os sujeitos da convivência social e da parti-
cipação política, oferecendo um simples aprendizado instrumental/
técnico12. Exemplo disso é a ênfase e o incentivo aos cursos de curta
duração; as graduações tecnológicas; a ampliação dos cursos a dis-
tância; e o aligeiramento dos cursos de graduação e pós-graduação. 
Esse processo tem início no Brasil nos anos 90 do século XX,
a partir das recomendações do Banco Mundial e do Fundo Mone-
tário Internacional (FMI) para a educação, que consistem, simplifi-
cadamente, na redução de gastos públicos com as políticas sociais,
na crescente valorização da “parceria” público-privada na prestação
dos serviços sociais e no aligeiramento dos processos de formação.
Nesse processo de aligeiramento, o mais importante é o resultado
final e a economia no tempo de formação; por isso, os serviços
públicos são cada vez mais sucateados e o atendimento à popula-
ção é transferido ao setor privado ‒ apresentado como sinônimo
de eficiência e competitividade ‒, por meio de repasse de recursos,
subsídios públicos e isenção de impostos.
No caso específico do sistema universitário público, este
processo começou já no governo de Fernando Collor de Melo
(1990-1992), atravessando os governos Fernando Henrique Car-
doso (1995-1998/1999-2002), Luís Inácio “Lula” da Silva (2003-
2006/2007-2010), Dilma Rousseff (2011-2014/2015-2016)13 e

12  Ver, a esse respeito, Guerra (2011).


13  Para aprofundamento sobre essa discussão e as especificidades de cada período histó-
rico, ver, entre outros, Lima (2007). Acerca da proposta neoliberal, conferir, entre outros,
Sader & Gentili (1995).

161
ampliando-se e aprofundando-se nos Governos de Michel Temer
(2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-).
Do nosso ponto de vista, o ensino deve ultrapassar o saber
instrumental, preparando os sujeitos para o mercado profissional e
para a vida. Um ensino que construa autonomia e liberdade de ação e
pensamento, que possibilite a apreensão do real, escondido sob o véu
da aparência, enxergando a formação sócio-histórica da sociedade;
seus limites e desafios; que aponte a superação do preconceito e dos
(des)valores. É essa a proposta defendida pelo Projeto Ético-Político
do Serviço Social brasileiro, construído a partir dos anos 80 do século
XX e hoje hegemônico na profissão.
No que tange às contribuições da proposta contida nas Di-
retrizes Curriculares para o processo de formação profissional em
Serviço Social, Aquino (2008: 119-120) afirma:
[...] pode-se destacar o fato de priorizarem a formação de pro-
fissionais críticos, propositivos e comprometidos com o Projeto
Ético-Político da categoria, através da construção de conheci-
mento teórico-prático e da aquisição de atitudes, habilidades e
competências embasadas em valores e princípios coletivos que
os capacitem para o desempenho de suas funções e o exercício
de ações conscientes [...]. É relevante destacar que a formação
profissional integra, necessariamente, tanto o conhecimento teó-
rico, os valores e modelos acumulados pela própria profissão, ao
longo de sua trajetória histórica, quanto é composto pela vivência
pessoal e social de formadores e formandos.

São muitos os avanços alcançados com a consolidação das Di-


retrizes Curriculares (DCs) para o curso de Serviço Social no sentido
de resgatar, por meio dessa nova proposta de formação profissional,
a unidade teórico-prática – a práxis –, objetivando alcançar o perfil
do(a) profissional a ser formado(a), visando ao rompimento da con-
cepção “dicotômica” entre teoria e prática, a exemplo da separação
entre disciplinas teóricas/analíticas e técnicas/práticas. Nesse senti-
do, as DCs se fundamentam num processo de contínua revisitação
teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa, em busca
do desvelamento da realidade social, para que venha a possibilitar,
durante a formação profissional em Serviço Social, a capacidade de
apreender um aporte teórico que busque uma:
1. Apreensão crítica do processo histórico como totalidade;

2. Investigação sobre a formação histórica e os processos sociais


contemporâneos que conformam a sociedade brasileira, no senti-
do de apreender as particularidades da constituição e desenvolvi-

162
mento do capitalismo e do Serviço Social no país;

3. Apreensão do significado social da profissão, desvelando as


possibilidades de ação contidas na realidade;

4. Apreensão das demandas ‒ consolidadas e emergentes ‒ pos-


tas ao Serviço Social via mercado de trabalho, visando formu-
lar respostas profissionais que potenciem o enfrentamento da
questão social, considerando as novas articulações entre público
e privado;

5. Exercício profissional cumprindo as competências e atribui-


ções previstas na Legislação Profissional em vigor. (ABEPSS,
Diretrizes Curriculares para o curso de Serviço Social, 1996,
p. 7).

Essa proposta traz à tona um processo que deve ser fortaleci-


do em todos os campos que permeiam o Serviço Social, tendo a aca-
demia como seu campo privilegiado, pois o papel desse espaço é a
formação das gerações futuras. Assim, o Serviço Social tem buscado
tornar o processo de formação profissional uma força motriz para
a sedimentação do Projeto Ético-Político da profissão. As DCs têm
um significado sócio-histórico essencial na (re)afirmação do ethos
presente na formação profissional, que, a depender de suas deter-
minações socioinstitucionais, pode possibilitar a construção de ethos
antagonicamente diferentes e que se sustentam em matrizes teóricas
também antagônicas. No momento presente, esse é um grande ris-
co, pois vivemos numa conjuntura extremamente desfavorável ao
PEP.
Ao tempo que o Serviço Social se compromete com a cons-
trução de outra sociedade que tenha a satisfação das necessidades
dos seres humanos como objetivo final, vive-se no momento atual
uma conjuntura extremamente adversa. As Diretrizes Curriculares
do coletivo profissional – expressão de todo o diálogo teórico-me-
todológico construído até então ‒, enfrentam cotidianamente im-
passes impostos tanto pela Lei de Diretrizes e Bases para o ensino
superior (BRASIL, 1996) quanto por decretos institucionais14.
Na conjuntura brasileira atual, o Serviço Social enfrenta e en-
frentará duras batalhas. Com a vitória nas eleições presidenciais de

14  Já assinalamos a conjuntura adversa mundial que se coloca para a educação pública,
gratuita e de qualidade. Ao que se assiste mundialmente é a educação transformada em
mercadoria.

163
2018, Jair Bolsonaro assumiu a presidência do Brasil em 1º de ja-
neiro de 2019, vencendo com uma campanha nacionalista, religiosa,
racista, LGBTfóbica, entre outras determinações ultraconservadores.
Em suas propostas de campanha e de seus aliados políticos estão a
“Escola sem partido” e a defesa dos “valores tradicionais da família
brasileira”. Segundo essa concepção, a sociedade brasileira é conser-
vadora, religiosa, capitalista, deseja a ordem e a segurança acima de
tudo15. Serão anos difíceis para todas as forças progressistas da socie-
dade brasileira16, e o Serviço Social construiu sua história, nas últimas
décadas, somando-se às forças progressistas.
Iamamoto (1998) sugere resistirmos e balizar, por meio do co-
nhecimento crítico acerca da História e do pensamento progressista,
as particularidades e singularidades do Serviço Social como profissão,
que se realiza e serve como meio de reprodução da vida no mercado
de trabalho, tendo o desafio de romper com uma formação estéril
que acaba por caracterizar os futuros profissionais como operadores
de uma prática mecanicista e burocrática (expressões do pensamen-
to conservador), descompromissada com o Projeto Ético-Político da
profissão.
Assim, torna-se imprescindível a discussão da ética de caráter
emancipatório em todo o processo de formação profissional dos(as)
assistentes sociais, sendo necessária a constante análise das mais di-
versas concepções ético-políticas em disputa na sociedade e a com-
preensão dos fundamentos ontológicos da ética, propiciando ao su-
jeito a apreensão da sua condição de ser humano-genérico em busca
da liberdade.

Considerações finais

A ética como processo canalizador da autoconstrução está tam-


bém presente nos diferentes espaços de socialização do ser humano,
incluindo o processo de formação profissional, espaço de (des)cons-
trução do conhecimento; deste emana a necessidade de fortalecimen-
to da ética, a partir da direção social adotada.
Dessa maneira, a ética vai se configurando como um elemento
intrínseco às relações sociais vigentes, permeada por rupturas e con-
tinuidades, sendo necessário que seus fundamentos teórico-políticos

15  O lema de Jair Bolsonaro na campanha era “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
16  Acerca da onda conservadora no Brasil, ver Demier & Hoeveler (2016).

164
se conformem – efetivamente – como um dos núcleos essenciais da
formação profissional em Serviço Social, tendo como pressuposto
a concepção ontológica do ser social. Caso contrário, essa realidade
pode se converter numa perspectiva moralizante e/ou fundamenta-
lista do ser social, enviesando o processo de apreensão da realidade
e recaindo naquela velha questão dicotômica, como bem afirma Ia-
mamoto (1998), entre ser fatalista ou messiânico, ou vindo a forta-
lecer o conjunto dos valores conservadores, em suas mais variadas
expressões, e no limite, amparando-se no irracionalismo para o em-
basamento da prática profissional.
Não basta somente tal realidade estar impressa nas Diretrizes
Curriculares para que venha a se materializar. É necessário, cada vez
mais, aprofundar a radicalidade da reflexão ética na formação pro-
fissional, cabendo, também, aos assistentes sociais, no cotidiano do
exercício profissional, o compromisso ético-político que se expressa
em ações que se direcionam para o desenvolvimento e a liberdade
humana.
A ética marxista é uma práxis, não pode existir sem uma rea-
lização prática, sem se realizar na prática de algum modo [...].
Por isso, a ética marxista não depende só da compreensão e da
aplicação correta dos textos de Marx: ela depende muito mais
do desenvolvimento do movimento que a adote como moral
[...] [o que, na verdade significa] um reencontro do movimento
revolucionário, de seus homens, de suas massas (da atividade
que humaniza e transforma o mundo) com a teoria de Marx.
(HELLER, 2004, p. 121).

Em tempos de recrudescimento do conservadorismo e suas


expressões, é necessário e urgente fortalecer essa cultura profissio-
nal crítica alinhada aos valores humano-genéricos e ultrapassar a
formalidade da ética profissional. Cumpre apreendê-la como cate-
goria ontológica e ético-política, e superar a mera adesão formal e
legalista do Projeto Ético-Político profissional, na luta pela supera-
ção de uma sociedade que instrumentaliza e coisifica o ser humano,
tendo sempre como horizonte a emancipação humana.

Referências

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<http://abepss.hospedagemdesites.ws/WP-content/uploads/2012/07/

165
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167
Neofascismo no Brasil contemporâneo: aproximações
entre conceito, história e dívida pública1

Thaísa Simplício Matias2


Leonardo Carnut3
Áquilas Mendes4

Introdução

A situação mundial tem sido atravessada por muitas contradi-


ções e rivalidades internacionais. O crescimento dos nacionalismos
de direita e da xenofobia, assim como a intensidade de instalação de
um regime de legitimidade restrita no Brasil, após o Golpe de 2016,
fez com que a categoria “neofascismo” emergisse no cenário teórico
social.
Advogamos que a categoria neofascismo é essencial para se
1  Este artigo foi escrito a partir das reflexões dos autores na Mesa-Redonda do VIII
Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde da Associação Brasileira de
Saúde Coletiva (Abrasco), realizado em João Pessoa (PB), no dia 29 de setembro de 2019.
2  Professora Substituta do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual da
Paraíba (UEPB). Doutoranda em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN). E-mail: thaisasimplicio@hotmail.com
3  Professor Adjunto da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) no Centro de
Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde (CEDESS). Pós-doutor em Saúde Pública
(Ciências Sociais e Humanas em Saúde) pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade
de São Paulo (FSP-USP). E-mail: leonardo.carnut@unifesp.br
4  Professor Livre-Docente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo
(FSP-USP). Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutor
em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: aquilasmen-
des@gmail.com
reconhecer o fenômeno vivido no Brasil recente. Trata-se de um fe-
nômeno que significa um avanço nas estruturas da forma de domina-
ção burguesa tradicional, buscando estabelecer usos mais violentos.
Um dos aspectos dessa violência neofascista refere-se à forma
de utilização do fundo público por parte do capital financeiro con-
temporâneo. Observa-se que o orçamento federal tem ficado cada
vez mais comprometido com o pagamento de encargos e juros da
dívida e com o aumento significativo do sistema da dívida pública.
Dessa forma, assiste-se à intensificação das contrarreformas pelo go-
verno Bolsonaro, com expressão recente da contrarreforma da previ-
dência e da trabalhista.
O sistema da dívida pública se coloca mais como um compo-
nente estrutural do que conjuntural, entretanto pode-se afirmar que,
especialmente neste contexto de ameaças ao regime democrático-
-blindado brasileiro (DEMIER, 2017), seu componente conjuntural
se manifesta de forma mais intensa, sob as justificativas de adoção
inconteste de medidas de austeridade.
O presente ensaio objetiva elucidar o debate sobre neofascis-
mo na realidade brasileira, presente como resultado da escalada de
um regime político de legitimidade restrita, e sua relação com o cres-
cimento da dívida pública. Para tanto, está estruturado em três partes.
A primeira parte discute as características conceituais da categoria
“neofascismo”. A segunda aborda a relação entre crise capitalista,
Estado e regime de legitimidade restrita, bem como resgata as contri-
buições históricas de Trotsky que ajudam a delimitar a diferença entre
o bonapartismo e o fascismo. A última parte apresenta a centralidade
do sistema da dívida pública como expressão da forma neofascista
em uma perspectiva autodestrutiva de países capitalistas dependentes
como o Brasil, quando se pensa na economia mundial constituída.

1 O que há de “neo” no fascismo em que vivemos hoje?

A categoria “neofascismo” tem sido um desafio para os analis-


tas sociais de plantão, especialmente na conjuntura latino-americana e
brasileira. Advoga-se que a categoria neofascismo é essencial para se
reconhecer o fenômeno vivido no Brasil gestado no pré-golpe (2013-
2016) e consolidado com a eleição de Jair Messias Bolsonaro (2018).
Este fenômeno, que ultrapassa as fronteiras de um “neoconservado-
rismo”, extrapola os limites da forma de dominação burguesa tradi-
cional, estabelecendo usos mais forçosos e, por que não dizer, mais

170
extremados desta forma. Daí se justifica a delimitação deste fenôme-
no social que, ao se considerar como uma nova forma de fascismo,
não pode ser encarado como o mesmo fascismo do “entreguerras”,
mas, sem dúvidas, remete a elementos forjados naquele período, re-
vivendo-os de forma reatualizada.
Assim, procurando uma delimitação precisa da categoria ne-
ofascismo, alguns autores brasileiros nos ajudam nesta questão. É
o caso dos estudos de Tatiana Poggi e Odilon Caldeira-Neto. Para
Poggi (2012), a grande preocupação reside na compreensão sobre o
que o fascismo e o neofascismo (ou como chamados, fascismo de
“novo” tipo) têm de semelhantes. Para a autora, a semelhança entre
fascismo e neofascismo está em seu caráter antidemocrático, na li-
derança carismático-populista, no unipartidarismo, no emprego da
violência e na busca da resolução de conflitos por meio da guerra.
Assim como no fascismo do entreguerras, “o neofascismo é uma
resposta à crise profunda no capitalismo e uma resposta à exacer-
bação das contradições inerentes ao sistema capitalista” (POGGI,
2012, p. 82).
Poggi (2012) ainda ressalta que há uma diferença na organi-
zação social do neofascismo entre países de diferentes inserções na
dinâmica do capitalismo. Em países de capitalismo central, o ne-
ofascismo deve ser considerado como um dos possíveis produtos
da sociedade capitalista contemporânea, já que sua emergência, en-
quanto fenômeno social, ocorre em Estados de conformação polí-
tico-econômica neoliberal (ou seja, em estados avançados de neo-
liberalismo). Assim, prolifera-se de modo espetacular, justamente
engrossando suas fileiras de adeptos à retórica neofascista, por meio
da adesão dos desesperançados e dos setores subordinados ao capi-
tal em decorrência da crise (POGGI, 2012). Trata-se, em última ins-
tância, de uma readaptação ou reinterpretação das políticas fascistas
tradicionais às novas circunstâncias.
Para a autora, o desenvolvimento espetacular das Organiza-
ções Neofascistas5, assim como a origem do neoliberalismo nor-
5  É prudente esclarecer a diferença analítica entre uma Organização Neofascista e um
Aparelho Privado de Hegemonia, que, em alguns casos, podem se assemelhar se não se
tiver em mente a diferença essencial entre eles. Um caso de Aparelho Privado de Hegemo-
nia (APH) é o do “Conselho das Américas (AS-COA)” conforme descrito por Hoeveler
(2019). Este conselho foi fundado em 1965 reunindo as 200 corporações estadunidenses
com atuação mais intensa na América Latina. Como um caso clássico de APH, este reúne
e organiza frações do capital que opera em escala hemisférica, desenvolvendo uma ação
política de classe, enquanto as Organizações Neofascistas são movimentos contrarrevo-
lucionários (geralmente a uma ameaça concreta e não a uma paranoia!). Agem de forma

171
te-americano, por exemplo, é fruto de alguns fatores conjugados, a
saber: a reorganização política e intelectual do conservadorismo em
meio ao reformismo, a crise deste último como padrão de dominação
e relação social, a reação às conquistas dos movimentos civis demo-
cráticos a partir da década de 1950 e o avanço gradativo do processo
de precarização da qualidade de vida (POGGI, 2012). Isto reforça a
tese de que o neofascismo (e seu surgimento) pode ser um fenôme-
no associado à transição da reestruturação produtiva e ao avanço do
neoliberalismo exacerbado.
A autora, de filiação marxista6, critica as interpretações do ne-
ofascismo que são consideradas de “fundo positivista”. Ela própria
observa que estas intepretações
[...] obscurecem o fato de que a intolerância, assim como a cria-
ção de “bodes expiatórios”, está profundamente enraizada na so-
ciedade e nos sistemas políticos (POGGI apud BERLET, 2012,
p. 67) [como se fosse um] grito fútil às mudanças sociais inexoráveis,
uma resposta emocional transitória ao deslocamento social. (PO-
GGI apud HIMMELSTEIN, 2012, p. 18).

Em busca de rigor analítico, a autora cita alguns problemas im-


portantes no campo de estudo do neofascismo: a falta de discussão
conceitual sobre os termos usados; o porquê da preferência de tantos
autores por conceitos largos como o binômio “esquerda/direita” e,
consequentemente, a recusa por parte deles em usar “neofascismo”,
assim como a urgência em admitirmos que o fascismo não ficou no
passado, mas bate à nossa porta e precisa ser reconceituado.
Poggi (2012, p. 150) aponta o neofascismo como um fenôme-
no complexo e perigoso. Segundo a autora, é complexo porque “ex-
pressa por trás da sua visão autoritária e discriminatória de mundo,
descontentamentos legítimos acerca da queda da qualidade de vida
no capitalismo contemporâneo”. Torna-se perigoso porque “canaliza
os medos e as esperanças de certo grupo de pessoas para uma alter-

extralegal, divulgam mensagens com alguma característica fascista, cultuam práticas fascisti-
zantes como atacar verbal ou fisicamente (este último geralmente em bando) e até assassinar
lideranças dos movimentos sociais. No caso do Conselho das Américas, este se preocupou
em atuar na conjuntura eleitoral de 2018 no Brasil, promovendo ou incentivando iniciativas
diretamente voltadas para as eleições, como o RENOVABR, e promoveu debates organiza-
dos com grandes empresários e intelectuais para pensar ideologicamente a economia e os
costumes com a ascensão de Jair Bolsonaro (HOEVELER, 2019).
6  Concordamos com Poggi (2012) ao usar o materialismo histórico-dialético, conforme
Mendonça (2004). Ela aponta que este método “desenclausura” as disciplinas humanas,
ajudando na visão de totalidade.

172
nativa política que conduz ao aumento da discriminação, da desi-
gualdade e da opressão, dificultando ainda mais o diálogo”.
Já Odilon Caldeira-Neto apresenta outras perspectivas so-
bre o neofascismo enquanto categoria. Para ele, a expressão neofas-
cismo já consta no léxico político desde o momento de reordenação
das forças mundiais após a Segunda Grande Guerra, inclusive em
organizações fascistas ou “ex-fascistas” do pós-guerra. “[...] [O] ne-
ofascismo se encara e “encerra” de modo mais fluido e descentrali-
zado, isto é, um grande amálgama diversificado, fragmentado e por
vezes divergente em essência ou representação” (CALDEIRA-NE-
TO, 2016, p. 28).
Caldeira-Neto (2016) busca referências em Laqueur para
orientar uma aproximação ao que “pode ser”/“vir a ser” o “neo-
fascismo”, assinalando que estes fenômenos podem estar presentes
em uma grande diversidade de grupos e que devemos estar atentos
aos possíveis grupos que aderem (ou podem aderir) facilmente ao
discurso neofascista7. Para o autor, isso incluiria um amplo espectro
que possibilidades de grupos, identitários ou não, tais quais: pagãos,
cristãos, ateus, “democratas”, autoritários, antifeministas, ecologis-
tas transcendentais, partidos políticos, o fenômeno new age etc. Os
princípios básicos do neofascismo (e destes neofascistas) residiriam
naqueles comuns ao fascismo histórico, como: o darwinismo social,
o racialismo, a busca por uma liderança inconteste e de uma nova
aristocracia, o princípio da obediência e a negação dos ideais do
Iluminismo8.
O autor presume que o neofascismo, no que diz respeito ao
seu “nacionalismo raivoso”9, faz a aposta em uma crença na ordem10

7  Melo (2019) aponta que o discurso bolsonarista apresenta características ideológicas que
podem situá-lo no campo do neofascismo. É possível encontrar nele um discurso que,
diante de uma crise de tamanha envergadura, promete um “processo de renascimento
nacional” de um passado glorioso (palingênese).
8  No neofascismo brasileiro, a negação das ideias iluministas advém do senso comum
baseado em um sentimento “anticiência” que encontrou terreno fértil em pautas conserva-
doras sobre os avanços científicos (como o movimento antivacina) (SAITA, PINA, 2019)
até se expressar na negação absoluta da razão com o “terraplanismo” (ALVIM, 2017).
9  Barbosa (2018) descreve como as políticas educacionais foram essenciais na edificação
do “nacionalismo” no Brasil através de duas chaves de interpretação: a primeira foi a ideia
de pátria unificada e harmoniosa, para que não sofra periodicamente convulsões, cultuando-se
a aversão ao externo; e a segunda, pela insistência na reedição da ideia de “república forte”.
10  No Brasil, a questão da ordem e a estabilidade reemergem como elemento ideológico
conservador que tem como terreno fecundo a comunidade integralista. Não é à toa que

173
e no poder do Estado, no desprezo ao parlamentarismo liberal e na
oposição ao comunismo e ao capitalismo de modo concomitante.
Assim, o tipo neofascista encarna por vezes um estilo/modo de vida
alternativo11, no qual os membros buscam rejeitar a cultura12 e os
meios de comunicação de massa, preterindo-os em face dos clássicos
escritos patrióticos de seus respectivos países.
No entanto, é preciso tomar cuidado com as características
supracitadas. Devido a essa amplitude, seria um grande equívoco
atribuir o título de neofascista a quaisquer dessas características iso-
ladamente. Este seria o problema causado pela distensão e dilata-
ção do termo “neofascismo”, que pouco ajuda na compreensão do
fenômeno e que, certamente, é um indicativo do seu esvaziamento.
A crítica ao esvaziamento conceitual e o rigor analítico do neofascis-
mo estão assentados respectivamente: primeiro, na busca por uma
conceituação de “fascismo” (e no apreço categórico a essa definição)
e, segundo, na compreensão de que no neofascismo reside algo que
remeteria, ideológica e historicamente, ao fascismo em seu primeiro
estágio, o que não é a mesma coisa do ponto de vista histórico.
Em concordância com Poggi (2012), Caldeira-Neto (2016)
afirma que o neofascismo não seria uma questão restrita aos centros

tal temor reaparece também em muitos discursos neofascistas. Trata-se de uma reação à
insegurança e à instabilidade trazidas pela vida pós-moderna (CRUZ, 2016). A geração atual
(os neointegralistas) é marcada pela decepção com o modelo capitalista ocidental e sente-se
traída com a abertura política que depôs o regime militar.
11  Por vezes este “estilo de vida alternativo” pode encontrar acolhida “nos rastros de uma
crise do eu, a partir do desfalecimento dos pilares instituídos acerca de um sujeito universal,
unificado, intrapsíquico, ‘individualizado’ e em uma atmosfera de unificação e totalização”
(SALES; ROCHA, 2019, p. 254) em busca da demarcação/acentuação das diferenças como
forma de garantir “estabilidade” do ponto de vista político-social.
12  Este é um ponto nodal que caracteriza o neofascismo brasileiro. Instituiu-se
uma guerra cultural profunda que tem repercussões especialmente no que se refere
às políticas do campo da educação. Além dos drásticos cortes no orçamento, agora
justificado legalmente pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016, o Movimen-
to Escola Sem Partido, constitutivo do bolsonarismo, tem notadas características
fascistas. “Primeiro, mobiliza-se a partir de uma reacionária teoria da conspiração
obscurantista e que objetiva um ‘movimento popular’ contra a escola pública e em
favor do fundamentalismo religioso. Segundo, tem como método procedimentos
que solapam o Estado de direito, no que contam com a ajuda das parcelas fascis-
tizadas do Judiciário e na leniência do Supremo Tribunal Federal, que adiou uma
decisão que possa pôr fim a esse movimento que visa criminalizar os educadores
brasileiros” (MELO, 2019, p. 10-11).

174
europeus irradiantes. O autor auxilia a problematizar a constituição
autoritária de ditaduras civis e militares também no Cone Sul, por
isso suas manifestações devem ser lidas em “chaves” distintas, espe-
cialmente tendo assento na dinâmica “imperialismo-dependência’.
Assim, nas nações do capitalismo dependente restariam basi-
camente duas grandes opções: um nacionalismo desenvolvimentista
e populista, ou uma expressão contraditória de “nacionalismo pró-
-imperialista”, o que o autor prefere chamar de neofascismo (CAL-
DEIRA-NETO, 2016). Esse conflito e essa contradição se dariam
principalmente nos países da América Latina, justamente pela exis-
tência de relações de dependência estreitas e bem definidas para
com os países imperialistas (e, em especial, com os EUA). Nessa
perspectiva analítica, o neofascismo nos países dependentes seria
caracterizado pela dubiedade de uma premissa nacionalista, visando
aos ganhos do imperialismo capitalista internacional.
Para a manutenção desta ordem neofascista, métodos auto-
ritários e repressivos de controle social se fazem necessários, co-
adunados com um tipo de “histeria anticomunista”. Todavia, por
se tratar de uma formação “fascista em condições de capitalismo
dependente”, isto é, sem o caráter de mobilização de massas, que
se organiza partidariamente ou mesmo pela não constituição de um
regime autenticamente nacionalista (dada a abertura “total e irres-
trita” ao capital estrangeiro), o autor optou pela denominação de
“neofascismo”.
A construção de um terreno fértil neofascista no continente
seria, a saber, no Brasil, no Chile e na Argentina, uma possibilidade
futura, já que na possibilidade e “entrave” da acumulação capitalista,
haveria alguma maneira para retomar o processo de acumulação.
Restariam nesse contexto apenas duas variáveis para o desenvol-
vimento latino-americano de uma nova ordem de dominação im-
perialista: a via subimperialista (neofascista) e aquela que buscaria
romper com esses determinantes (ou seja, um modelo socialista)
(CALDEIRA-NETO, 2016).

2 Crise, Estado, regime político de legitimidade restrita:


a contribuição de Trotsky sobre o bonapartismo no poder e o
fascismo que “bate à porta”

A análise do neofascismo pode ser mais bem compreendida a
partir da fase atual do capitalismo em crise e seus efeitos sobre a ma-

175
nifestação do Estado na América Latina, isto é, um regime político
de legitimidade restrita que começa a emergir no Brasil após o Golpe
de 2016 com avanços no governo Bolsonaro. O entendimento desse
tipo de regime merece reflexões históricas mais amplas sobre o que
Trotsky nos brindou acerca do bonapartismo e sua relação com o
fascismo em seu tempo de vida.
Antes, porém, de passarmos à discussão do bonapartismo,
convém termos claro que vivemos atualmente em uma crise eco-
nômica, uma crise capitalista de “longa depressão”, como nos apre-
senta Roberts (2016). Essa situação de declínio da lucratividade do
capital industrial vem direcionando a acumulação do capital ao agi-
gantamento do capital fictício. Para se contrapor a esse quadro, a
classe dominante intensifica a barbárie, com alargamento da expro-
priação, inclusive dos direitos da classe trabalhadora no mundo, e
com muita intensidade no Brasil (BOSCHETTI, 2018) neofascista.
Sabe-se que no modo de produção capitalista, a sucessão das
categorias “mercadoria/valor/dinheiro” não pode se encerrar na
categoria “capital”. Isto porque, limitada à categoria “capital”, essa
dedução lógica não permite apreender em sua totalidade as causas
do movimento real da sociabilidade capitalista. Trata-se de perceber
o Estado (suas leis, por exemplo) como constitutivo da relação de
troca e, ainda mais, da relação de produção. O capital não pode ser
concebido se se omite a categoria “Estado”. A categoria “capital”
ultrapassa a si mesma e o Estado não pode ser compreendido sem
se recorrer às categorias que o antecedem. Sem a categoria Estado,
a categoria capital não pode ser concebida. O Estado é deduzido,
isto é, derivado da lógica do movimento do capital (PACHUKANIS,
2017).
Após ter sido feita uma caracterização mais geral do Estado
capitalista, podemos refletir de forma mais direta sobre o Estado
no Brasil. Sugere-se que a análise do nosso país se circunscreva à
natureza do Estado nos países latino-americanos de capitalismo de-
pendente. Neste sentido, não é possível apenas deduzir o Estado
nesses países à sucessão das categorias (mercadoria/valor/dinheiro/
capital) (MATHIAS; SALAMA, 1983). Considera-se fundamental
entender esses países na totalidade da lógica da acumulação capita-
lista, isto é, seu papel na divisão internacional do trabalho em relação
ao próprio processo de reprodução do capital e na base das suas for-
mações sociais, em que a questão da nação não pode ser esquecida.
Mathias e Salama (1983) avançam na análise para além das
categorias constitutivas da sociabilidade capitalista, introduzindo a
categoria “mercado mundial”; em suas palavras, a inserção dos paí-

176
ses subdesenvolvidos na “economia mundial constituída”, de for-
ma a enriquecer ainda mais a perspectiva da lógica de derivação
do Estado do movimento do capital. A maior intensidade da luta
de classes nesses países, diante de uma relação imperialista entre
nações, necessita de regimes políticos de “legitimidades restritas”
para que se garanta a manutenção da condição subordinada dentro
da divisão internacional do trabalho e, consequentemente, uma re-
lação de dependência.
De forma geral, Mathias e Salama advertem que:
Nos países capitalistas desenvolvidos, o estado de exceção é a
ditadura, enquanto o estado normal é a democracia. Nos países
subdesenvolvidos, o estado de exceção é a democracia, ao passo que
o estado normal são os regimes políticos de legitimidade restrita. O Es-
tado desempenha um papel particular na difusão das relações
mercantis nos países subdesenvolvidos [...]. A distinção entre
o Estado e sua forma – o regime político – permite evitar, por um
lado, as teorizações mecanicistas, até mesmo deterministas, e
idealistas; e, por outro lado, impede que se reduza o Estado a
um sujeito ou a um objeto. (MATHIAS; SALAMA, 1983, p.
10, grifos nossos).

Na reflexão sobre o Brasil, seu posicionamento subordina-


do na economia mundial acaba por forçar seu Estado capitalista a
se manifestar, de forma muito frequente, por meio de um regime
político de legitimidade restrita, numa relação entre crise de hege-
monia, bonapartismo e democracia blindada aos setores populares,
conforme adverte Demier (2017). Sob essa perspectiva, para esse
autor, pode-se admitir que, a partir da segunda metade dos anos
1980, a construção de uma democracia liberal no nosso país, que
contou com o apoio da ditadura militar bonapartista, presente no
período anterior, constituía um regime de dominação político-so-
cial de caráter largamente restrito (blindado às reivindicações popu-
lares) e com execução de contrarreformas (DEMIER, 2017)
Para ampliar a reflexão desse regime de legitimidade restrita
que se implantou no país e que vem ganhando contornos cada vez
mais intensos a partir do Golpe de 2016, é fundamental compre-
ender o caráter clássico de um regime bonapartista que tem à sua
espreita, conforme as evidências históricas, o fascismo. Para essa
incursão intelectual, convocamos as reflexões de Trotsky ao elabo-
rar aproximações acerca de fenômeno do bonapartismo13.

13 As nossas reflexões de Trotsky sobre o bonapartismo e fascismo se apoiam também na


contribuição de Demier (2017, 2018 e 2018a).

177
Entendemos por bonapartismo o regime no qual a classe econo-
micamente dominante, ainda que conte com os meios necessários
para governar com métodos democráticos, se vê obrigada a tole-
rar – para preservar sua propriedade – a dominação incontrolada
do governo por um aparato militar e policial, por um “salvador”
coroado. Esse tipo de situação se cria quando as contradições
de classe se tornam particularmente agudas; o objetivo do bo-
napartismo é prevenir as explosões [...]. A decadência atual do capi-
talismo não somente retirou definitivamente toda base de apoio
à democracia, como também revelou que o velho bonapartismo se
mostra totalmente inadequado: o fascismo o substituiu. Sem dúvida, como
ponte entre a democracia e o fascismo [...], aparece um “regime
pessoal” que se eleva acima da democracia e concilia com ambos
os bandos, enquanto, ao mesmo tempo, protege os interesses da
classe dominante; basta essa definição para que o termo bonapar-
tismo fique totalmente esclarecido (TROTSKY, 1935, tradução e
grifo nosso).

O interessante para a nossa particular atenção, na reflexão so-


bre o bonapartismo de Trotsky, é a sua associação entre o capitalismo
em crise, o bonapartismo e o fascismo que se coloca à espreita.
Trotsky, ao analisar a decisiva luta política alemã do contur-
bado início dos anos 1930, segue nas suas reflexões acerca da teoria
do bonapartismo, caracterizando com precisão a situação da luta de
classes na agitada Alemanha pré-hitlerista e, dessa forma, lança luz
sobre o que ele denominou de o “complicado bonapartismo alemão”
(TROTSKY, 1932). Poucos anos depois, ao analisar o contexto po-
lítico francês, marcado pelo avanço do fascismo e pelo surgimento
da frente popular, Trotsky descreveu o regime político do país como
um bonapartismo de tipo “semiparlamentar”, no qual declinantes
elementos democráticos conviviam com um poder discricionário do
chefe governamental. Ao reeditar a mesma perspectiva interpretativa
utilizada para a Alemanha de poucos anos atrás, Trotsky tomou o
bonapartismo francês como uma etapa da transição (não inexorável)
entre a democracia burguesa e o regime fascista.
O que se pode extrair dos escritos de Trotsky é que bonapartis-
mo e fascismo são definidos como regimes políticos correspondentes
ao declínio histórico do sistema capitalista (fase que, em certa medi-
da, vivenciamos no tempo histórico do capitalismo contemporâneo).
Para tanto, Trotsky adverte:
É exatamente com a guerra que se torna clara a decadência do
capitalismo e, sobretudo, de suas formas de dominação demo-
cráticas. Já não se trata, agora, de novas reformas e escolas, mas
de cortar e suprimir as antigas. O domínio político da burguesia
cai, assim, em contradição não só com as instituições da democracia

178
proletária (sindicatos e partidos políticos), como também com a
democracia parlamentar, em cujos quadros se formaram as orga-
nizações operárias. Daí a campanha contra o “marxismo”, de um
lado, e contra o parlamentarismo democrático, de outro. (TROT-
SKY, 1932, p. 1, tradução nossa).

Trotsky observa que “[…] a decadência da sociedade capita-


lista põe na ordem do dia o bonapartismo, ao lado do fascismo e em
ligação com este” (TROTSKY, 1932a, p. 1, tradução nossa).
Nas elaborações de Trotsky, as classes dominantes, ao opta-
rem por um ou por outro desses dois regimes de crise, dependeria
do caráter de ameaça da revolução proletária, considerando a capa-
cidade de organização, de iniciativa e de direção dessa classe. Sob
o comando do grande capital, o fascismo constituiria a forte ex-
pressão de uma guerra civil contra o proletariado (DEMIER, 2017;
2018). O projeto fascista adotado pelo capital seria a última tentativa
para barrar qualquer possibilidade de vitória da classe trabalhadora.
Trotsky nos apresenta claramente essa ideia:
A burguesia em declínio é incapaz de se manter no poder pelos
meios e métodos do Estado parlamentar que criou. Recorre ao
fascismo como arma de autodefesa, pelo menos nos momentos
mais críticos. (TROTSKY, 1932, p. 3, tradução nossa).

Nessa perspectiva, Trotsky assevera:


A grande burguesia gosta tanto do fascismo quanto um homem
com o maxilar dolorido pode gostar de arrancar um dente […].
E é quando a crise começa a adquirir uma intensidade insupor-
tável que entra em cena um partido especial, cujo objetivo é
trazer a pequena burguesia a um ponto candente e dirigir o seu
ódio e o seu desespero contra o proletariado. Esta função histó-
rica desempenha hoje na Alemanha o nacional-socialismo, uma
ampla corrente cuja ideologia se compõe de todas as exalações
pútridas da sociedade burguesa em decomposição. (TROTSKY,
1932, p. 3, tradução nossa).

Trotsky anota que, de forma diferenciada do fascismo, um


“regime de guerra civil aberta contra o proletariado”, o bonapartis-
mo, constituiria essencialmente um “regime da paz civil” assentado
“sobre uma ditadura policial-militar” (TROTSKY, 1932). Tendo
como objetivo proteger a propriedade capitalista diante da ameaça
dos trabalhadores (e de forma mais geral se equivale tanto ao fas-
cismo como à democracia burguesa), seu procedimento político
seria o de, por meio de um forte aparelho de Estado, impedir a
emergência da guerra civil defendida pelo fascismo, assegurando

179
à sociedade burguesa manter-se inatingível às possíveis convulsões
internas.
Trotsky, simultaneamente à sua tentativa de apresentar teorica-
mente as diferenças entre fascismo e bonapartismo, procurou tam-
bém evitar uma perspectiva que concebesse os dois regimes de um
modo antagônico. Lembrando as semelhanças e pontos em comum
entre esses regimes de crise, Trotsky destacou a possibilidade de que
o fascismo, muitas vezes decorrente de um regime bonapartista, ve-
nha a se transformar numa modalidade mais estável deste último.
O que temos dito demonstra suficientemente a importância de
distinguir entre a forma bonapartista e a forma fascista de po-
der. Não obstante, seria imperdoável cair no extremo oposto,
convertendo o bonapartismo e o fascismo em duas categorias
logicamente incompatíveis. Assim como o bonapartismo começa
combinando o regime parlamentar com o fascismo, o fascismo
triunfante se vê obrigado a constituir um bloco com os bonapar-
tistas e, o que é mais importante, a aproximar-se cada vez mais,
por suas características internas, de um regime bonapartista.
(TROTSKY, 1932, tradução nossa).

As palavras de Trotsky, situadas historicamente, devem servir


de reflexão para o quadro que se instalou no capitalismo contempo-
râneo, sobretudo no contexto brasileiro.
Demier (2018) nos lembra que, após a vitória eleitoral de Hi-
tler e a consequente instauração do regime nazista na Alemanha, a
direção da Internacional Comunista (IC) buscou rever a política es-
tratégica que até então adotava diante do avanço do fascismo. A nova
linha política orientava os Partidos Comunistas a realizarem “frentes
antifascistas” juntamente com os partidos social-democratas de seus
países e os setores “democráticos” de suas burguesias, formando as-
sim “frentes populares” (DEMIER, 2018a).
Em consonância com a estratégia da IC, mas de forma muito
mais dura e efusiva, Trotsky também conclamava uma Frente Única
para lutar contra o fascismo. Para ele, seria importante ter a compre-
ensão do significado desse regime.
O fascismo não é apenas um sistema de repressão, violência e
terror policial. O fascismo é um sistema estatal particular baseado
na extirpação de todos os elementos da democracia proletária na
sociedade burguesa. A tarefa do fascismo não é apenas destruir
a vanguarda comunista, mas também manter toda a classe em
uma situação de atomização forçada. (TROTSKY, 1932, tradução
nossa).

Para Trotsky, era fundamental dispor de uma missão histórica

180
urgente: a constituição de uma Frente Única Operária, acirrando a
luta de classes. Contudo, a luta contra o fascismo não significa subor-
dinar-se politicamente aos reformistas. Trotsky argumenta que não
deveria existir nenhuma plataforma comum com a social-democracia
ou com os líderes dos sindicatos alemães, nenhuma publicação, ne-
nhuma bandeira, nenhum sinal comum! Marchar separados, golpear
juntos, ou seja, se porem de acordo apenas em como golpear, em
quem golpear e quando golpear! (TROTSKY, 1933, tradução nossa).
Trotsky argumenta que “cada fábrica deve ser transformada em uma
fortaleza, um mapa dos quartéis e todos os outros redutos fascistas
em cada cidade, em cada distrito. Os fascistas tentarão sitiar os bas-
tiões revolucionários. O sitiante deve ser sitiado” (TROTSKY, 1933,
tradução nossa). Ele insiste na ideia: “somente uma luta unitária com
os trabalhadores social-democratas pode alcançar a vitória. Depres-
sa, trabalhadores comunistas, porque há pouco tempo de sobra para
vocês!” (Ibidem).
Os ensinamentos históricos trazidos por Trotsky podem ilu-
minar a esquerda revolucionária para refletir sobre a ação tático-es-
tratégica do presente. Em que pesem as diferenças dos contextos
sócio-históricos, o neofascismo na atual conjuntura brasileira apre-
senta as reminiscências de sua expressão do passado, contudo deve
ser relida com suas atualizações. A Frente Única dos trabalhadores,
proposta por Trotsky, é uma ação necessária da classe trabalhadora
hodierna para enfrentar o quadro de escalada neofascista no Brasil.

3 O sistema da dívida e sua manifestação intensa no con-


texto neofascista

Neste contexto de ameaças neofascistas no Brasil, o sistema


da dívida pública se expressa de forma cada vez mais intensa, con-
tribuindo para o aniquilamento das políticas de direitos sociais. Na
realidade, esse quadro de crescimento da dívida pública é perceptí-
vel mesmo antes desse conturbado momento. Com a dinâmica do
capitalismo contemporâneo sob a dominância financeira, assistimos
a mudanças no fundo público, especialmente nas políticas sociais,
no tocante a cortes de recursos. Nakatani e Gomes (2015) argumen-
tam que essas alterações decorrem do processo de reorganização
do modo de produção capitalista, desencadeadas desde a década de
1970, com formas cada vez mais complexas e de “fuga às finanças”.
Carcanholo (2017) adensa esse debate ao destacar a relevância

181
de compreender a dialética do processo do capital portador de juros e
do capital fictício, na análise da crise contemporânea do capitalismo,
já que o capital portador de juros e o capital fictício estão no centro
das relações econômicas e sociais do capitalismo atual.
O avanço do processo de financeirização possibilitou que o ca-
pital fictício se configurasse como a principal forma de ser do capital
portador de juros, ou seja, este é consequência do primeiro, apesar
de serem coisas distintas. Segundo Carcanholo e Sabadini (2009, p.
42), no capitalismo, a existência generalizada do capital a juros, em
que seu significado aparente é o fato de que toda soma considerável
de dinheiro gera uma remuneração, imprime uma ilusão contrária, a
de que toda remuneração regular deve ter como princípio a existência
de um capital.
Uma das primeiras funções do capital fictício consiste na mobi-
lização de recursos capazes de financiar o “capital fixo” da economia
e do que aqui estamos denominando de “fundo patrimonial público”.
Sobre a base objetiva (valor de uso) do financiamento dessas duas
formas de imobilização de riqueza, uma produtiva e outra impro-
dutiva, desenvolvem-se as principais formas de capital fictício (capi-
tal acionário e dívida pública), conforme observa Trindade (2017, p.
117).
Partimos da premissa de que a dívida pública diz respeito a
uma das formas tradicionais assumidas pelo capital fictício e adqui-
re centralidade em Marx já no capítulo da acumulação primitiva. A
relevância da dívida pública configura-se desde o período da conso-
lidação do capitalismo, devido às suas características (com aparên-
cias “mágicas”), que funcionam como um importante veículo à sua
alavancagem. A dívida pública vai aos poucos “transformando-se
em instrumento de uma ‘fada madrinha da acumulação’, dotando o
dinheiro de capacidade criadora, como se fosse uma ‘varinha de con-
dão’” (BRETTAS, 2013, p. 35).
Segundo Marx, tal recurso já foi despendido pelo Estado, ao
tempo que o próprio capital já teria sido consumido e a soma ori-
ginalmente emprestada ao Estado não mais existe. Assim, o Estado
assume relevância substancial em todas as transações (fictícias) dos
mercados financeiros, pois estes precisam de dinheiro (em suas várias
funções). É o aparato estatal que deve garantir esta mercadoria espe-
cial. Exatamente por isso a autoridade monetária (bancos centrais),
um componente de atuação do Estado, é responsável pelo emprésti-
mo em última instância.
No contexto neoliberal de mundialização financeira do capital,
muito distante da, e contrariamente à falácia de um Estado mínimo,

182
o que a realidade elucida é a participação crescente do Estado na
economia de modo a acelerar e facilitar a transferência do fundo
público para assegurar a reprodução ampliada do capital. O modo
como este processo ocorre remete ao debate sobre as finanças.
É neste ponto da discussão sobre a relação entre o capital
fictício expresso na dívida pública e sua relação com o Estado que
trazemos outra questão: a disputa pelo fundo público constitui uma
necessidade (do ponto de vista do capital) para alimentar o sistema
da dívida. Mais que isso, de acordo com Marx (2017), são os títulos
da dívida que asseguram ao credor direitos sobre as receitas do Es-
tado, sobretudo de impostos.
A rigor, a forma como o Estado paga aos seus credores é
via orçamento público, de modo que o moderno sistema tributário
constitui um complemento necessário do sistema de empréstimos,
do sistema de crédito. A dívida pública permite ao Estado financiar
gastos extraordinários, mediante elevação dos impostos. No caso de
os impostos serem insuficientes, o Estado passa a acumular mais dí-
vidas junto ao setor privado, culminando no aumento do pagamen-
to de seu serviço (juros mais amortização do principal da dívida)
com o passar do tempo. Destarte, “o regime fiscal moderno tende a
se assentar na cobrança de impostos sobre os meios de subsistência
necessários, tornando-os mais caros, constituindo o que Marx cha-
mou de supertributação” (CARCANHOLO, 2018, p. 42).
O sistema da dívida complexifica a estrutura das classes no
capitalismo contemporâneo, já que a dívida pública permite ao seu
possuidor (credor) a participação no orçamento público e suas prio-
ridades mediante políticas sociais públicas.
Em se tratando especificamente da arrecadação de impostos,
a qual constitui o orçamento público, quando esta não é suficiente
para o pagamento do serviço da dívida pública, o Estado se obriga
a emitir nova dívida. Trata-se de um aumento do estoque da dívida
pública que implicará a elevação do serviço da dívida. Isso viabiliza
a manutenção da estrutura das classes no capitalismo.
Decorre dessa lógica a advertência de Behring (2010, p. 20)
sobre a exploração do trabalho na produção, que é complementa-
da por uma exploração tributária crescente nesses tempos de intensa
crise, a onerar sobremaneira a classe trabalhadora. Em decorrência
da correlação de forças desfavorável, esta fica com menor poder
de pressão nas disputas pelo fundo público. A exploração a que se
refere a autora advém do fato de que a burguesia encontra formas
cada vez mais sofisticadas de se apropriar do valor gerado pela clas-
se trabalhadora.

183
Na crise econômica contemporânea, o discurso hegemônico
culpabiliza a dívida pública por um suposto gasto irresponsável do
Estado e sem controle de suas despesas, gerando descontrole nas
contas públicas, aumentando as taxas de juros e reduzindo investi-
mentos, crescimento e emprego. A disseminação desta falácia é re-
futada por vários autores, como Montoro (2016), cujo estudo escla-
rece que a dívida esteve elevada e se manteve crescente inclusive nos
contextos de relativo auge da economia mundial (entre 2002 e 2007).
A ruptura de limites anteriormente existentes para a mobilida-
de de capitais financeirizados constitui uma alternativa para contor-
nar a tendência decrescente da taxa de lucro, enfrentada nos países de
capitalismo avançado. Aos Estados dependentes, cabia uma reconfi-
guração que passava pelo aumento da dívida pública como forma de
alimentar a rentabilidade financeira e, ao mesmo tempo, “de justificar
sucessivos ajustes fiscais, os quais legitimaram a canalização de recur-
sos para o capital, a condução de ‘reformas’ na administração pública
e a contenção de gastos sociais” (BRETTAS, 2013, p. 156).
No conjunto das medidas “recomendadas” pelos organismos
internacionais, destacamos o processo de privatizações, que contribui
para alavancar o estoque de ativos financeiros (ações, debêntures, tí-
tulos da dívida, tanto pública quanto privada etc.) (BRETTAS, 2013,
p. 183). A esse respeito, destacamos como documento norteador o
Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, desde a gestão de
FHC e reafirmado nos governos posteriores.
Conforme Behring (2018), a política social consiste num pro-
duto da sociabilidade burguesa, situada na esfera da emancipação
política (atreladas às amarras do valor, do dinheiro e, portanto, da
propriedade privada), que ainda lhes dá sustentação, através da repro-
dução e das condições de oferta da força de trabalho, embora tam-
bém ocorra por meio da constituição e da alocação do fundo público,
com o que participa do movimento do capital.
Nas condições atuais (de capitalismo em crise e decadente),
de contrarreformas e de destruição dos direitos sociais, achamo-nos
num contexto de escalada destrutiva de pessoas e de posições fascis-
toides, no qual a perspectiva limitada da emancipação política impõe
à agenda da emancipação humana a incorporação de elementos de
transição, numa perspectiva de revolução permanente, incluindo di-
reitos e políticas sociais financiadas pelo fundo público (o que requer
também uma vigorosa disputa pelos trabalhadores que o financiam
mediante tributação) e que respondem às necessidades comuns de
todas e de todos, como saúde, educação, alimentação, terra, moradia,
proteção a idosos, crianças, mulheres, povo negro e povos originários.

184
Compartilhamos da formulação de Behring (2018) ao afirmar
que a trajetória da social-democracia contribuiu posteriormente para
se afastar cada vez mais da tradição marxista e das lutas operárias,
reforçando o campo das lutas por um projeto eleitoral, o qual ope-
rou no limite da “dialética das conquistas parciais” das burocracias
partidárias e sindicais, culminando por se tornar um braço burguês
que, em nome da busca por universalização, diluiu as fronteiras en-
tre esquerda e direita.
Por meio da análise da composição do fundo público e de
sua relação com a política social, é possível identificar que esses re-
cursos assumem uma função cada vez mais relevante no sentido de
assegurar a acumulação capitalista (em termos de sua valorização
fictícia). Segundo Brettas (2012), se, por um lado, a participação dos
trabalhadores é cada vez maior na apropriação de seus recursos pelo
Estado, por outro, o retorno à burguesia também cresce, através
de subsídios fiscais, de mecanismos da dívida pública, entre outras
medidas a fim de garantir a lucratividade do capital.
Na aparência, esse discurso tem como objetivo acabar com a
“farra” com os recursos públicos e evitar o seu uso sem res-
ponsabilidade fiscal, tornando o Estado austero e não onerando
os contribuintes indevidamente. Na prática, o objetivo é exata-
mente o contrário: colocar em marcha toda uma série de me-
canismos operacionais e legais que mantenham e consolidem
o processo de financeirização das economias, de espoliação
da classe trabalhadora, não apenas pela extração da mais-valia
(relativa/absoluta) de maneira direta na exploração da força de
trabalho, mas também através de mecanismos mais sofisticados
e difíceis de serem identificados, como o uso do fundo público
para atender aos interesses da fração rentista do capital, através
do pagamento dos serviços da dívida e da emissão de papéis
que servem unicamente para a sua ampliação, sem que haja ne-
nhuma contrapartida em termos de entrada de recursos nesses
países. (SANTANA, 2018, p. 20).

Neste processo de desmonte das políticas sociais destinadas


à reprodução social dos subalternizados ao capital, alarga-se a apro-
priação privada de parte do fundo público pelos rentistas, donos do
capital que porta juros, ao passo que há uma transferência crescente
de recursos sociais para a esfera financeira: de um lado, por meio
das contrarreformas das políticas sociais e do repasse de recursos
do fundo público para o pagamento da dívida; e, de outro, pelos
programas de transferência de renda que alimentam o capital e en-
fatizam a focalização das políticas sociais (SILVA, 2012).
Segundo Silva (2012), a suposta crise fiscal do Estado passou a

185
ser o argumento de defesa neoliberal ao corte de gastos sociais, ocul-
tando as intenções de diminuição dos custos com a força de trabalho
e o redirecionamento do fundo público para atender em maior escala
às demandas do grande capital. Nesta disputa pelo fundo público
(cujo maior beneficiário é o capital), o corte de gastos estatais ocorre
sob o argumento de escassez de recursos, da necessidade de conter
o déficit público ou, conforme o caso brasileiro, de evitar a volta da
inflação, acarretando o sucateamento das diversas políticas sociais,
por meio da introdução da Emenda Constitucional nº 95/2016, que
congelou o gasto público por vinte anos.

Considerações finais

O ensaio ora apresentado buscou elucidar as características do


fascismo e as tendências do regime político brasileiro após o golpe
de 2016, especialmente com a eleição de Bolsonaro. Neste caminho,
buscou trazer as contribuições do pensamento de Trotsky no que se
refere à distinção entre bonapartismo e fascismo, com reflexões em
torno do Estado neste contexto de agravamento da crise capitalista.
A centralidade do sistema da dívida pública configurou-se
como uma expressão da forma neofascista e autodestrutiva de países
capitalistas dependentes como o Brasil. Sem dúvida, a manutenção e
o acirramento desse quadro adquirem maior ritmo com o governo
neofascista de Bolsonaro. O contexto de violência se acirra, intensifi-
cando a expropriação dos diretos da classe trabalhadora.
Procurar entender a escalada do regime político de legitimidade
restrita no Brasil atual e sua relação com o crescimento da dívida pú-
blica constitui um aspecto-chave do exercício desenvolvido neste en-
saio. A aproximação com a compreensão desse ambiente de barbárie
fortalece a possibilidade de enfrentá-lo, especialmente o neofascismo
vigente.

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189
O serviço social em face da onda conservadora:
o fortalecimento do debate feminista, de raça e
sexualidade na categoria profissional

Larissa Souza Pinheiro1

Introdução

O Brasil vive nos últimos quatro anos sob impacto de um


golpe parlamentar, jurídico, midiático e conservador que tirou a pre-
sidenta Dilma Rousseff (Partido do Trabalhadores – PT) do poder
e que, em nome da agenda ultra neoliberal, segue com um projeto
de barbarização da vida. A guinada conservadora, que emergiu com
o golpe, recupera características do processo de formação sócio-
-histórica brasileira e reforça traços que nos acompanham desde a
colonização até os dias atuais, tais como o racismo, o patriarcado e
o caráter antidemocrático da burguesia nacional, com seus acordos
de cúpula e seus processos contrarrevolucionários. Os impactos do
golpe em curso atingem toda a classe trabalhadora, porém essa clas-
se tem cor, sexo e sexualidade: as mulheres negras e pobres são as
mais atingidas nesse processo.
Tendo em vista essa compreensão, faremos uma reflexão so-
bre as relações sociais de sexo, raça, sexualidade e classe dentro do
Serviço Social, levando em consideração os avanços e conquistas
relacionados a essas temáticas no âmbito político e organizativo,
e principalmente acerca da sua inserção na formação profissional.
Partiremos da análise do atual quadro político do Brasil, em que essa

1  Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal


do Rio Grande do Norte. E-mail: larissa_2607@hotmail.com
onda conservadora tem como um dos seus principais alvos o feminis-
mo e a perseguição à chamada “ideologia de gênero”, ao pensamento
crítico marxista e que opera um ataque orquestrado contra LGBTTs
e a vida do povo negro e pobre no país.
Para tentarmos dar conta do tema aqui proposto, utilizaremos
o método materialista histórico-dialético de Marx, visando à compre-
ensão da realidade de forma histórica e crítica no tocante ás relações
sociais em seus antagonismos, contradições e correlações de forças.
Compreender a dinâmica da realidade, para Marx, implica
transgredir a mera aparência e avançar no conjunto de determinações
e de relações que a constitui, processo esse que só ocorre por meio
da análise das condições materiais em que homens e mulheres vivem.
É nessa característica do seu pensamento que se encontra a dimensão
da totalidade, uma categoria que compreende não a soma das partes
de um todo, mas o modo pelo qual as partes se articulam nas suas
relações e processualidades.
É nessa perspectiva que buscaremos analisar o tema aqui pro-
posto, ou seja, na sua relação com as determinações que formam
relações sociais mais amplas, e nas contradições, mediações, possibi-
lidades e expressões na realidade concreta.
Para isso, longe de esgotar o debate, dividimos o artigo em
duas seções. Na primeira, analisaremos o caráter patriarcal, racista e
conservador do golpe de 2015 e como essas características têm to-
mado corpo na ascensão bolsonarista a partir das eleições de 2018,
ressaltando como a face ultraneoliberal do golpe e sua face conserva-
dora integram um mesmo projeto de barbarização da vida comanda-
da pelo grande capital em sua crise estrutural. Na segunda, pensare-
mos o Serviço Social nessa conjuntura e abordaremos os avanços em
torno das discussões de sexo, raça, sexualidade e classe na categoria
profissional. Para nós, esses avanços representam a resposta da pro-
fissão à ascensão conservadora que nos cerca por dentro e por fora
do Serviço Social.

1 O caráter patriarcal, racista e conservador do golpe para


a ascensão bolsonarista

Vivemos sob um golpe parlamentar, jurídico, midiático e con-


servador, ainda em andamento, que tirou do cargo a primeira mulher
eleita como presidente do Brasil, Dilma Rousseff, e que levou à elei-
ção de Jair Bolsonaro (Partido Social Liberal ‒ PSL) em 2018. Con-

192
cordamos com Quinalha (2016) que esse golpe tem três principais
objetivos: o primeiro, livrar parte da direita clássica de investigações
criminais em torno do envolvimento com corrupção; o segundo, o
desmonte sistemático da proteção social, coisa que Temer fez par-
cialmente; o terceiro, e que talvez recebeu menos visibilidade e im-
portância entre os analistas políticos do golpe, a restrição de direitos
civis e políticos dos setores mais vulneráveis da sociedade, aumen-
tando o poder de intervenção de setores fundamentalistas sobre a
agenda de Direitos Humanos e diversidade, tendo impacto direto
sobre mulheres, LGBTTs2 e negros(as).
Priorizaremos aqui a análise do caráter conservador do golpe
em sua face patriarcal e racista, que se inicia ainda no processo de
impeachment e que marcou a forma de ataques conferidos a Dilma
Rousseff. Diferentemente de qualquer outro líder político homem,
Dilma foi atacada como só uma mulher poderia ser. Quando agia de
forma mais dura era questionada quanto à sua orientação sexual ou
estampavam capas de revista em que a acusavam de histeria e des-
controle; adesivos com Dilma de pernas abertas foram colados nos
tanques de gasolina de carros, nos quais a bomba de abastecimento
simulava uma penetração. Não temos dúvidas, o golpe também foi
um golpe patriarcal ‒ a derrubada de uma mulher da presidência
não poderia ter sido mais revelador para o que viria depois.
Outro aspecto da face patriarcal do golpe que merece análise
foram as frases proferidas pelos deputados que votavam a favor do
impeachment na Câmara dos Deputados: “em nome de Deus e da
família”, diziam quase todos eles. A família patriarcal cristã esta-
va sendo ali exaltada, “defendida”; a frase representou, ao mesmo
tempo, duas instituições que historicamente colocam as mulheres
em situação de subalternidade, que não aceitam a diversidade e que
são alicerces indispensáveis ao funcionamento pleno do capital: a
religião cristã e a família monogâmica burguesa. O golpe foi ultra-
conservador, além de neoliberal.
Os votos em nome de Deus e da família ficaram longe de
passar só pelo campo do discurso, foram cobrados na realidade con-
creta. Logo no início do governo ilegítimo de Michel Temer, verifi-
caram-se retrocessos no campo dos direitos das mulheres, LGBTTs,
negros e negras.
Quinalha (2016, p. 132) sistematiza algumas das primeiras
mudanças realizadas no governo Temer:

2  Sigla usada para se referir às orientações sexuais de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis
e Transgêneros.

193
Fim do Ministério de Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Huma-
nos; Secretaria de Direitos Humanos dissolvida na enorme estrutura
do Ministério da Justiça, que tem outras prioridades e diversas outras
atribuições; nomeação para a secretaria de mulheres, agora subordina-
da também ao Ministério da Justiça, de uma deputada que já presidiu
a Frente Parlamentar Evangélica e é abertamente contrária ao direito
ao aborto; [...] escolha de ministros exclusivamente homens e bran-
cos para todos os postos do primeiro escalão do governo; encontro
de Temer com o pastor Silas Malafaia para “receber bênção” e seu
discurso oficial de posse enquanto presidente interino prometendo
fazer um “ato religioso” com o Brasil: “Quando você é religioso você
está fazendo uma religação. O que queremos fazer agora com o Brasil
é um ato religioso, um ato de religação de toda a sociedade brasileira
com os valores fundamentais do nosso país”.

Michel Temer realmente promoveu o uma religação da sociedade


brasileira: uma religação com o conservadorismo e com os retrocessos
sociais e civilizatórios arraigados na nossa sociedade. Pagou a conta com
quem o tinha colocado na presidência e seguiu à risca a agenda neoliberal
e conservadora comandada pela Bancada BBB3 no Congresso.
Temer não tinha de se preocupar nem com um passado progres-
sista de ligação com algum movimento social e sindical, como o PT, nem
com a perda de popularidade e com os votos depositados nele, afinal não
chegou à presidência por via eleitoral. Cumpriu a toda a velocidade o pa-
cote de austeridade exigido pelo capital, visando acabar com as políticas
sociais e os avanços dos governos conciliatórios, mas sobretudo com os
direitos trabalhistas e sociais conquistados na Constituição de 1988, conti-
nuando assim o desmonte neoliberal clássico iniciado na década de 1990
no Brasil.
Nas palavras de Demier (2017, p. 98):
Agora, livre dos inaptos representantes bastardos, a classe dominante
simplesmente deseja que, por meio da democracia autossaneada, seus
desejos nada secretos sejam realizados. O tempo é de contrarrefor-
mas e de ajuste fiscal, e o tempo urge [...]. O governo Temer, ca-
pitaneado pelo onipresente Partido do Movimento Democrático do
Brasil, se mostra como uma máquina que, de seu início até o fim,
dure o tempo que durar, só saberá contrarreformar. Convicto de suas
razões, o governo parece só querer ter razão perante Deus, só que o deus
para Temer e os seus já não é senão o deus mundano, ao qual se deve
temer ainda mais que o Deus celeste: o Mercado.

3  A bancada BBB é o que denominam de a bancada do Boi, da Bala e da Bíblia. Refere-se


aos representantes dos ruralistas, empresários da indústria bélica e de segurança privada e
líderes religiosos nos espaços de poder estatal brasileiro. Estes conformam um bloco que
representa algumas das faces mais violentas na história do nosso país.

194
Temer governou por dois anos, aprovando todas as medidas im-
populares possíveis no seu curto tempo de mandato, entre elas a Emen-
da Constitucional 95, conhecida como “PEC do fim do mundo”, que
congela os gastos públicos do governo por vinte anos, impactando de
forma drástica o financiamento das políticas de Educação, Saúde e As-
sistência Social, um dos objetivos centrais do seu governo. Além disso,
aprovou a Lei 13.429 em março de 2017, que permite a terceirização de
todas as atividades de uma empresa, e também aprovou a reforma traba-
lhista, que alterou em mais de cem pontos a CLT.
Temer cumpriu parte da agenda neoliberal que seu governo tinha
por intenção realizar, porém não logrou êxito em aprovar a reforma da
previdência. Conseguiu o cargo de presidente com o maior índice de
reprovação de todos os tempos, ficando com apenas 3% de aprovação
no final do seu mandato. Durante o seu governo enfrentou três graves
denúncias de corrupção4, inclusive um áudio vazado de uma conver-
sa entre o senador Romero Jucá (Movimento Democrático Brasileiro
‒ MDB), um dos principais articuladores do impeachment, e o ex-pre-
sidente da Transpetro, Sérgio Machado, em conversas sobre a Lava Jato
que diziam ter de tirar Dilma do poder para “estancar a sangria” das
investigações sobre corrupção.
Temer, apesar de ter sido útil num primeiro momento, não con-
seguiu apoio popular para viabilizar outras contrarreformas, nem para
fazer com que direita tradicional do país voltasse a ser vista com bons
olhos pela população brasileira. Com as denúncias e os áudios vazados
contra ele e também contra Aécio Neves, do Partido da Social Democra-
cia Brasileira (PSDB), a direita brasileira ficou sem um novo nome para
disputar as eleições de 2018.
Com isso, Temer não conseguiu cumprir o que, como já mencio-
namos, são os três principais objetivos do golpe de 2016, deixando assim
um vácuo político pela direita mais tradicional e pela esquerda, que ainda
anestesiada com as consequências do transformismo do PT, teve pouca
4  Em maio de 2017 foi divulgado um áudio de Joesley Batista, envolvido em casos de
corrupção, descoberto pela operação Lava Jato, em que ele diz estar pagando Eduardo
Cunha na cadeia para ficar calado. Ouve-se Temer sugerindo manter o pagamento. No
mesmo mês, o assessor especial de Temer, Rodrigo Rocha Loures, é visto com uma mala
de dinheiro, a sair de um restaurante. Desconfia-se que a mala era para Temer. Em junho de
2017, Temer é oficialmente denunciado por corrupção passiva. Em setembro do mesmo
ano, ele é denunciado pela segunda vez, agora por obstrução da Justiça. E em dezembro
de 2018 ele sofre a terceira denúncia, dessa vez por corrupção ativa e passiva e lavagem de
dinheiro, no inquérito que apurou um esquema criminoso que envolvia o setor de portos.
Temer foi preso em 21 de março de 2019, em decorrência da última denúncia citada aqui,
porém só ficou quatro dias detido, sendo solto no dia 25 de março.

195
força para uma oposição5 massiva e forte ao golpe. Somado a isso, temos
um processo intenso de decadência intelectual e ideológica posto em mo-
vimento pela classe dominante, na tentativa de tornar aceitável o pacote
proposto pela pauta neoliberal.
Sobre isso, diz Damier (2017, p. 99):
A classe dominante pôs em movimento forças destrutivas, reavivan-
do alguns dos preconceitos e opressões ancestrais da formação social
brasileira – mas não só dela, por suposto ‒, como o machismo, o
racismo, a homofobia, o militarismo e o apoliticismo tecnocrático,
tudo isso coadunado, como não poderia deixar de ser por aqui, com
o secular ódio de classe destilado por uma burguesia umbilicalmente
divorciada do povo. Por meio de todos os poderes do Estado, os di-
reitos democráticos são atacados, evidenciando um amálgama entre
uma plataforma economicamente neoliberal, politicamente reacioná-
ria, e profundamente conservadora no âmbito comportamental.

Foi diante desse contexto que “surgiu” a figura de Jair Bolsonaro.


Ele já figurava na política brasileira há mais de 28 anos como deputado,
sem grande visibilidade política nesses anos, nem com algum projeto im-
portante aprovado. Contava apenas com algumas manchetes em torno
dos seus depoimentos polêmicos, conservadores e saudosistas do golpe
civil-militar que instaurou uma ditadura que durou de 1964 a 1985 e que
assassinou, exilou e torturou milhares de pessoas no país, em nome de um
falso nacionalismo conservador que tinha como objetivo servir aos inte-
resses políticos e econômicos norte-americanos no contexto da Guerra
Fria.
Foi principalmente no processo de impeachment de Dilma Rousseff
que ele ganhou alguma visibilidade nacional, depois de ter homenageado
em seu voto Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-coronel do Exército bra-
sileiro e que foi chefe do DOI-CODI, responsável por torturar centenas
de pessoas na ditadura civil-militar, inclusive Dilma. Jair Bolsonaro viu-se
cotado como possível candidato à presidência em 2018 entre os grupos
da “nova direita” da internet, que promoviam as grandes manifestações
ocorridas em 2015.
Com isso, Bolsonaro parece ter condensado todos os desejos e ne-
cessidades que giravam em torno do Golpe de 2016: atenderia à agenda
neoliberal do capital com apoio popular para isso. Agradava à parte mais

5  Duas importantes frentes de resistência foram criadas: a “Frente Povo Sem Medo” e a
“Frente Brasil Popular”; além disso, atos também foram organizados no intuito de barrar o
golpe, mas não conseguiram aglutinar forças suficientes para mudar o cenário que se instau-
rou em 2015. As frentes de articulação de esquerda continuam tendo um papel importante
no processo de organização e unificação das pautas progressistas.

196
conservadora da direita brasileira por ser abertamente6 homofóbico, ma-
chista e racista. Apresentava como um representante “fora do sistema”,
mas que iria jogar pelo sistema, o que se encaixava perfeitamente na
ideologia anticorrupção.
Bolsonaro chegou em 2018 como um dos nomes mais fortes para
a disputa presidencial, deixando para trás velhos nomes da direita, como
Geraldo Alckmin, do tradicional PSDB. Embora tenha subido nas pes-
quisas como um foguete, ele ainda ficava atrás de Lula, que foi lançado
como candidato pelo PT, e que mesmo com todo o desgaste em torno
do partido, ainda se achava em primeiro lugar em todas as pesquisas.
Mais uma vez entrou em movimento a face golpista e corrupta da
burguesia brasileira, numa rede de mentiras, as chamadas fake news7, em
articulação com o Judiciário brasileiro, hoje relevada por vazamentos de
conversas no aplicativo Telegram, entre o juiz Sérgio Moro e os procura-
dores da operação Lava Jato, prenderam Lula8 e o tiraram da campanha
6  Em um discurso na Câmara em 2003, Bolsonaro disse que não estupraria a deputada
Maria do Rosário (PT) porque ela não merecia: “Ela não merece (ser estuprada) porque
ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não
sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar porque não merece”. Em um programa
na Rede Câmara, em 2010, Bolsonaro declarou que homossexualidade pode ser resolvida
com agressão: “O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro, ele muda o
comportamento dele. Tá certo? Já ouvi de alguns aqui, olha, ainda bem que levei umas
palmadas, meu pai me ensinou a ser homem”. Em palestra no Clube Hebraica, em abril
de 2017, Bolsonaro declarou que quilombolas de Eldorado Paulista não serviam nem para
procriação; na mesma palestra, se referiu ao fato de ter tido uma filha mulher como uma
“fraquejada”. Em uma entrevista na rádio Jovem Pan, em junho de 2016, afirmou que o
erro da ditadura foi torturar e não matar. Anteriormente, em 1999, já tinha declarado em
programa de TV que era a favor da tortura.
7  As fake news são informações falsas, geralmente com conteúdo político, publicadas por
meios de comunicação como se fossem verdade; são preparadas para ter um forte poder
viral. Popularizaram-se com esse termo a partir das eleições de 2016 nos EUA, quando
concorriam à presidência a candidata Hillary Clinton e o atual presidente, Donald Trump.
Na ocasião, as notícias falsas foram usadas contra Hillary e foram decisivas para o resultado
eleitoral, popularizando o debate em torno delas no mundo todo.
8  Lula foi condenado em segunda instância no caso do tríplex em Guarujá (SP) no dia 24
de janeiro de 2018, pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro ‒ com início em regi-
me fechado. Porém conversas vazadas pelo site Intercept Brasil revelaram que os procurado-
res responsáveis pela acusação de Lula, principalmente Deltan Dallagnol, foram orientados
pelo juiz que julgou o caso, Sérgio Moro, hoje ministro da Justiça e da Segurança Pública do
governo Bolsonaro. As conversas também apontam as fragilidades das provas contra Lula:
os delatores da operação Lava Jato eram incentivados a falar dele e a acusá-lo; havia uma
articulação entre imprensa e a operação Lava Jato para a manipulação da opinião pública
em torno do caso. Disponível em: https://theintercept.com/2019/08/29/lava-jato-vaza-

197
presidencial. Assumiram a disputa, no lugar de Lula, numa coalizão
PT/PCdoB, Fernando Haddad (PT) e Manuela d’Ávila (PCdoB),
como vice.
A campanha presidencial foi marcada pelas chamadas fake news,
com disparos ilegais de mensagens no WhatsApp e mentiras que en-
volviam, principalmente, assuntos da pauta conservadora. Como, por
exemplo, a acusação de que os governos do PT distribuíram o cha-
mado “kit gay”9 nas escolas para incentivar crianças e adolescentes
a serem homossexuais. Fotos com montagens de Manuela d’Ávila
também foram espalhadas, sempre vinculando-a com feminismo, na
intenção de a desqualificarem.
Mascaro (2018, p. 25), faz uma síntese do que representou a
eleição de Bolsonaro na continuidade do golpe iniciado em 2015:
A dinâmica do golpe e da regressão social capitalista brasileira
então envereda, ao final de 2018, pelas quadras do reacionaris-
mo. Com o ativo bloqueio judicial de Lula mediante sua prisão
e o impedimento da sua candidatura, Bolsonaro, por condução
da burguesia nacional e internacional e por segmentos populares
instigados ao conservadorismo, é eleito à presidência da Repú-
blica. O golpe estabelece um relativo ajuste: até então nas mãos
de setores de direita neoliberal, já tradicionalmente assentados
na política (MDB, PSDB, DEM), nos meios de comunicação em
massa e economia financeira, agora alarga as suas margens de
forma a conduzir o imediato da política por meio de lideranças de
perfil populista reacionário ou semifascistas e partidos artificiais,
como o PSL, e interfere nos meios de comunicação de massa
através das redes sociais digitais. O núcleo econômico – este sim
o único inexorável e comandante central do golpe – segue nas
mesmas mãos financistas.

A campanha feita por Bolsonaro marcou a ascensão do caráter


conservador e reacionário do golpe. Foi baseada, sobretudo, no ata-
que aberto aos LGBTTs e ao movimento feminista, sendo também
frequente o ataque a movimentos sociais mais tradicionais como o
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), os movimentos in-
dígena e quilombola.
Durante a campanha eleitoral acirrou-se também o clima de
mentos-imprensa/. Acesso em 3/9/2019.
9  O chamado “kit gay” fazia parte do projeto Escola sem Homofobia, que, por sua vez,
estava no programa Brasil sem Homofobia, do governo federal, em 2004. Ele era voltado
à formação de educadores e não tinha previsão de distribuição do material para alunos. O
programa não chegou a ser colocado em prática, pois foi suspenso por Dilma em 2011, após
grande pressão da Bancada Evangélica.

198
violência e ameaças, oriundas das próprias falas públicas de Jair Bol-
sonaro, que em setembro 2018, durante campanha no Acre, simulou
uma arma com o tripé do microfone e convocou a plateia a “fuzilar
a petralhada”. Vários casos envolvendo violência e agressões, dos
seguidores de Bolsonaro contra LGBTTs e eleitores do PT, se es-
palharam pelo Brasil. O caso mais emblemático foi o assassinato do
mestre de capoeira, conhecido como Moa do Katende, em Salvador,
após ele ter declarado seu voto em Haddad. Ele foi assassinado com
12 facadas em uma discussão política após o resultado do primeiro
turno das eleições.
Outros casos também chamaram atenção. Em 9 de outubro
de 2018, um estudante da Universidade Federal do Paraná (UFPR),
que estava com o boné do MST, foi agredido, ficando gravemente
ferido, aos gritos de “aqui é Bolsonaro”. Também em outubro de
2018, um jogo para celular chamado “bolsomito 2018” foi lançado
pela BS Studio: o objetivo principal do jogo era fazer Bolsonaro
matar baianos, gays, negros, militantes do MST, petistas e feministas
para “livrar uma nação da miséria. Esteja preparado para enfrentar
os mais diferentes tipos de inimigos que pretendem instaurar uma
ditadura ideológica criminosa no país”, como constava da descrição
do jogo na plataforma em que era vendido.
No dia 3 de outubro de 2018, em Curitiba, José Carlos Olivei-
ra, homossexual de 57 anos, foi encontrado morto dentro do armá-
rio, com os pés e mãos amarrados. Os vizinhos ouviram o assassino
gritar “viva Bolsonaro” ao sair do apartamento. Ele ainda ficou com
o celular da vítima, enviando mensagens de apoio a Bolsonaro nos
grupos do WhatsApp de que José Carlos fazia parte.
Mascaro (2018, p. 31) nos fala sobre como essa pulsão pela
violência e repressão é característica dos momentos de crise do ca-
pital:
A organização da subjetividade pela libido repressora, típica nos
períodos de crise estrutural capitalista como a que explodiu em
1929 e a atual, decorrente de 2008, enseja por decorrência lide-
ranças do tipo também repressor que, em vez de postularem
uma ação política investida na libido amorosa (promessas de
melhoria das condições de vida, cuidado, proteção), organizam
e aglutinam as pulsões individuais e sociais mediante desejo de
submissão à autoridade e sua força ameaçadora. Reclamos de
segurança, ordem e unidade nacional se sobrepõem aos de em-
prego, bem-estar social e dignidade.

Apesar do claro caráter neoliberal da chapa, que tinha Paulo


Guedes como o responsável por pensar as medidas econômicas do

199
futuro governo, hoje ministro da Economia, foi o discurso conserva-
dor nas pautas que envolviam as mulheres, os LGBTTs e as popula-
ções tradicionais que levaram Bolsonaro à ascensão e à vitória sobre
o PT com 55,13% dos votos nas eleições de 2018. Em seu discurso
de posse, comprometeu-se a acabar com o que a direita chama de
“ideologia de gênero”10. Quando a homofobia foi considerada crime
pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em maio de 2019, ele afirmou
que o Brasil era um país cristão e não laico, e que o STF merece um
“ministro terrivelmente evangélico”.
A violência contra um grupo bem definido estava sendo auto-
rizada e incentivada: feministas, negros, LGBTTs e militantes sociais
eram alvo da ascensão da face reacionária, conservadora e violenta do
golpe. A oposição a esses grupos saiu da campanha e virou plano de
governo. Hoje assistimos a uma perseguição orquestrada pelo bolso-
narismo11, chamada de “combate à ideologia”.
É importante dizer também que as mulheres foram o segmen-
to que mais se organizou em torno do avanço do conservadorismo
neoliberal desde 2015. Desde a preparação do que viria a ser o golpe
de 2016, as mulheres seguem se organizando, como protagonistas de
grandes mobilizações e atos em nível nacional. Como exemplo disso,
temos em 2015 as mobilizações em torno do “Fora, Cunha”, que
tinham como mote central a saída do então presidente da Câmara
dos Deputados, Eduardo Cunha (MDB – RJ), que fazia avançar um
projeto de lei (PL 478/2007), o Estatuto do Nascituro12, que preten-

10  Esse termo foi criado pela ala conservadora, ligada principalmente a igrejas neopente-
costais, para designar tudo o que diz respeito ao debate sobre educação sexual e reprodutiva,
orientação sexual e igualdade entre homens e mulheres, feito de forma progressista, princi-
palmente no campo educacional, mas também na mídia, na cultura e na política.
11  Compreendemos o bolsonarismo como uma ideologia formulada a partir da visão políti-
ca do então presidente Jair Bolsonaro, que se fortaleceu nas eleições de 2018, mas que ultra-
passa o período eleitoral e a sua figura central, configurando-se como um plano ideológico
defendido pela “nova direita” que é, sobretudo, construído e propagado via mídias sociais e
pelas chamadas fake news. Tem como apelo central a oposição aos direitos humanos. Nas pa-
lavras de Silva (2019, p. 147), o termo direitos humanos se refere, na ideologia bolsonarista,
“a um conjunto de práticas que defenderia marginais, bandidos, invasores de terras, pedófi-
los e presidiários, atacando policiais, por um lado; por outro, incentivariam a homossexuali-
zação precoce das crianças, por meio do famigerado “kit gay”; por fim, legariam privilégios
inaceitáveis às “minorias”, entre as quais os negros assistidos por políticas de ações afirma-
tivas e os índios. A tudo isso, pois, haveria de opor-se, especialmente em nome da defesa
dos cidadãos de bem (sobretudo policiais), das famílias tradicionais e da meritocracia. Essas
seriam, pois, as bandeiras constituintes do bolsonarismo como forma de expressão política”.
12  O Estatuto do Nascituro atribui personalidade jurídica ao feto e criminaliza o abor-

200
dia retroceder com acesso ao direito legal ao aborto em casos de
estupro e anencefalia no Brasil. Essa série de atos que aconteceram
em todo o Brasil ficou conhecida como “primavera feminista”.
Um estupro coletivo que aconteceu contra uma adolescente13
no Rio de Janeiro em 2016 voltou a colocar milhares de mulheres
nas ruas do Brasil inteiro; a “cultura do estupro” foi questionada e
debatida pelo movimento feminista. As mulheres também foram
linha de frente contra o golpe que aconteceu no mesmo ano, de-
nunciando o machismo e a misoginia que, como já dissemos, foram
parte essencial na legitimação do impeachment da presidenta Dilma
Rousseff.
Em 2017, os atos do Dia Internacional das Mulheres segui-
ram denunciando o golpe e os seus retrocessos, tendo como pauta
central a reforma da previdência e a denúncia do governo ilegítimo
de Temer. No início de 2018, o assassinato da vereadora do Rio de
Janeiro, Marielle Franco ‒ que representava tudo o que o golpe que
avançava no Brasil odiava: era uma mulher negra, da favela da Maré
e LGBTT, que tinha uma participação política expressiva e denun-
ciava os abusos policiais e a atuação das milícias nas favelas do Rio
de Janeiro ‒ colocou milhares de mulheres nas ruas clamando por
justiça, mas também levantando pautas como a participação das mu-
lheres na política e questionando a atuação do Estado militarizado
que atua no massacre contra jovens negros em todo o Brasil.
Ainda em 2018, na campanha presidencial, dois grandes atos
aconteceram no Brasil e tiveram como mote central o “ele não”, fa-
zendo referência a Jair Bolsonaro. Foram protagonizados principal-
mente por mulheres jovens, coletivos antirracistas e LGBTTs. Nes-
ses primeiros meses de 2019, é nesses grupos que mais resistiram à
eleição de Bolsonaro onde mais cresce a desaprovação do governo.
Em pesquisa nacional realizada pelo Datafolha em agosto de 2019,
44% das mulheres e 51% das pessoas negras avaliam o governo
como ruim ou péssimo.
As mulheres incomodaram, e a ascensão do conservadorismo
a que assistimos também deu a sua resposta, fortalecendo o patriar-

to (atualmente, considerado como contravenção, segundo as leis brasileiras). O projeto


também prevê a concessão de pensão alimentícia, equivalente a um salário mínimo, ao
“nascituro concebido em um ato de violência sexual, até que complete dezoito anos”.
Representa um total retrocesso aos direitos reprodutivos e sexuais de mulheres no Brasil.
13  Uma adolescente de 16 anos foi dopada e estuprada, em uma comunidade da zona
Oeste do Rio de Janeiro, por um grupo de, mais ou menos, trinta homens, que filmaram e
divulgaram as imagens na internet. O fato ganhou repercussão nacional.

201
cado como um pilar estrutural do golpe em curso. Os primeiros seis
meses do governo Bolsonaro mostram que um dos alvos de ataque é
o movimento feminista e suas pautas. É preciso frisar que a classe tra-
balhadora tem sexo e raça, e os impactos econômicos que penalizam
a vida das pessoas mais pobres do Brasil impactam ainda com mais
força as mulheres negras e pobres.
O primeiro ataque do governo Bolsonaro contra as mulheres
dá-se com a configuração do Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos, sob a direção de Damares Alves, que é pastora
da igreja batista da Lagoinha, em Belo Horizonte. A ministra é pu-
blicamente contra a legalização do aborto, contra o que ela chama de
“ideologia de gênero” nas escolas, e compõe a Associação Nacional
de Juristas Evangélicos, uma das principais organizações a defender
o projeto “escola sem partido”14.
Damares é responsável por vários posicionamentos conserva-
dores e que revelam em nome de quem está a serviço, como, por
exemplo, quando disse numa congregação evangélica em que pales-
trava em 2016: “Está na hora de a igreja dizer à nação a que viemos…
É hora de a igreja governar”. Ainda, declarou que considera a trami-
tação do Estatuto do Nascituro uma prioridade e comemorou a vitó-
ria de Bolsonaro com um vídeo, em que dizia: “A nova era começou,
e agora menino veste azul e menina veste rosa”. Reafirmou seu posi-
cionamento conservador nas pautas que dizem respeito à diversidade
sexual e à igualdade de sexo.
Damares já declarou a descontinuidade do Programa Casa da
Mulher Brasileira, durante uma audiência da Comissão de Defesa dos
Direitos da Mulher na Câmara dos Deputados, no dia 16 de abril de
2019, programa criado por Dilma Rousseff em 2013 e que ofereceria
atendimento integral, às mulheres vítimas de violência em todos os
estados.
Como reflexo da política conservadora desse governo, em uma
votação do Conselho de Direitos Humanos da União das Nações
Unidas (ONU), em julho de 2019, o Brasil votou junto com países
islâmicos, como a Arábia Saudita, contra os direitos reprodutivos e
sexuais das mulheres15. Ainda em relação a essa pauta, o vereador de

14  Escola sem Partido é um movimento político criado em 2004 no Brasil e divulgado


em todo o país pelo advogado Miguel Nagib. Ele e os defensores do movimento afirmam
representar pais e estudantes contrários ao que chamam de “doutrinação ideológica” da
esquerda nas escolas. O projeto ganhou mais força e notoriedade nacional no contexto de
ascensão do conservadorismo em 2015.
15  O Brasil, representado pela embaixadora Maria Nazareth Farani Azevêdo, votou a favor

202
São Paulo, Fernando Holiday, do Democratas (DEM), apoiador do
Governo Bolsonaro, propôs o projeto de lei 352/2019, que prevê
internação psiquiátrica para mulheres grávidas que sejam identifica-
das “com propensão ao abortamento ilegal”, e acompanhamento
psiquiátrico e espiritual compulsório para as que queiram ter acesso
ao aborto em casos legais (casos de estupro, fetos anencefálicos e
em caso de risco de vida para a mãe).
O que ocorre no Brasil é o avanço de um tipo de cruzada
religiosa em torno das pautas que versam sobre os direitos das mu-
lheres, com uma intensidade ainda maior sobre os direitos sexuais e
reprodutivos, tão caros à bancada evangélica que apoia o bolsona-
rismo. Ainda que essa cruzada já esteja há anos em curso, ela nunca
tinha se dado de forma aberta, comandada pelo próprio presidente
e por seus ministros.
É importante dizer que consideramos a face conservadora do
golpe tão importante quanto a face neoliberal; elas são complemen-
tares e não podem ser analisadas de forma isolada. O conservado-
rismo não é uma mera cortina de fumaça para as pautas econômicas,
pois as faces do golpe formam partes do mesmo projeto capitalista
de sociedade, que destrói vidas e que avança sobre os direitos das
mulheres, principalmente sobre mulheres negras e pobres.
Nas palavras de Ferreira (2017, p. 11):
São mulheres dos setores mais pauperizados da classe trabalha-
dora aquelas que carregam o ônus da precariedade dos serviços
públicos no Estado neoliberal e mobilizam mecanismos formais
e informais de enfrentamento da desigualdade que estão na base
das expressões da questão social. Essa imagem, que poderia ser
tomada pelo pensamento conservador como expressão de uma
“natureza” feminina orientada para o cuidado, evoca um dado
material concreto. O tempo, energia e saberes de um determi-
nado grupo social ‒ as mulheres ‒ de uma determinada classe
social ‒ a classe trabalhadora ‒ ancora as expressões mais dra-
máticas da exploração e do desapossamento produzidos pelo
capitalismo hoje.

Essas relações não são naturais e espontâneas, mas se consti-


tuem a partir de relações sociais concretas. O racismo, o patriarca-

de uma emenda apresentada pelo Egito e Iraque contra a menção ao “direito à saúde
sexual e reprodutiva” no tema que versava sobre casamento infantil e forçado. Também
se posicionou a favor de propostas do Bahrein e Arábia Saudita sobre educação sexual,
que remete à família a decisão de tratar a questão. Ainda sobre educação sexual, o Brasil
também votou a favor da proposta feita pelo Paquistão de excluir a menção a “garantir o
acesso universal à educação abrangente sobre sexualidade baseada em evidências”.

203
do e o capitalismo incidem de forma direta na organização da vida,
fazendo com que as mulheres negras experienciem as mais diversas
formas de exploração, violência e violação. Como exemplo disso, a
pesquisa do IBGE revela que, em 2002, o rendimento das mulheres
era equivalente a 70% do rendimento dos homens. Treze anos de-
pois, em 2015, a relação passou para 74,5%. No grupo com 12 anos
ou mais de estudo, o rendimento feminino cai para 66% da renda
masculina, mostrando assim a desigualdade salarial entre homens e
mulheres e a desvalorização do trabalho feminino, mesmo com maior
escolaridade. Se a comparação for feita entre homens brancos e mu-
lheres negras, a desigualdade será ainda maior: elas ganham apenas
38,5% do rendimento deles.
Além disso, a violência atinge as mulheres negras de forma di-
ferenciada. Enquanto os números de violência doméstica caem entre
mulheres brancas, eles têm aumentado entre mulheres negras, che-
gando a 60% dos 2,4 milhões de mulheres violentadas em 2017, se-
gundo dados do IBGE do mesmo ano.
A ofensiva conservadora intenta fortalecer o patriarcado e au-
mentar o domínio e o controle sobre os corpos, vidas e trabalho das
mulheres a partir do fortalecimento e da defesa do modelo patriar-
cal de família, da naturalização da violência doméstica e sexual, do
aumento da responsabilização sobre as mulheres dos trabalhos de
reprodução da vida, que envolvem os cuidados sobre as crianças, do-
entes, idosos, a gestão da pobreza em tempos neoliberais e o trabalho
doméstico e emocional não pago que as mulheres realizam.
O fortalecimento do patriarcado impacta também de forma
central o campo da diversidade sexual, marcando, junto com o racis-
mo e a classe social, um alvo do bolsonarismo sobre um grupo espe-
cífico da classe trabalhadora: mulheres, negros e negras e LGBTTs. O
Serviço Social, além de ser formado majoritariamente por mulheres,
sendo marcado pela divisão sociotécnica e sexual do trabalho, tam-
bém tem como público usuário das políticas em que atua as mulheres,
principalmente as negras.
Ademais, o Serviço Social guarda, desde o seu processo de rup-
tura com o conservadorismo, iniciado no final da década de 1970,
uma vinculação com a teoria social crítica e com um projeto societá-
rio que não seja marcado pelas desigualdades de sexo, raça e classe,
onde homens e mulheres sejam livres e emancipados.
Por isso, debateremos a seguir como a categoria profissional e
suas entidades representativas ‒ Conjunto CFESS/CRESS, ABEPSS
e ENESSO – remam na contramão da onda conservadora, demons-
trando um significativo avanço no que tange aos debates e ações po-

204
líticas que entendem classe, raça, sexo e sexualidade de forma con-
substancial e coextensiva.

2 O serviço social como resistência à onda conservadora:


o fortalecimento do debate feminista, de raça e sexualidade na
categoria profissional

O Serviço Social segue de maneira sintonizada o movimen-


to da luta de classes desde o seu processo de renovação e ruptura
com o conservadorismo, tendo como marco o congresso da virada,
de 1979. Desde então, vincula-se às lutas e aos movimentos sociais
de forma crítica nos mais diversos momentos conjunturais, sem-
pre pautando a defesa intransigente dos Direitos Humanos e tendo
como valor ético central a liberdade.
Não seria diferente diante da atual onda conservadora, ultra-
neoliberal e violenta que varre o país. Em uma conjuntura onde a
perseguição ao pensamento crítico e aos debates em torno da di-
versidade sexual e feminista, onde o racismo e o genocídio do povo
negro e indígena avançam nas mãos do Estado, o Serviço Social re-
conhece uma lacuna histórica no seu processo de formação profis-
sional, dando um salto no que tange à compreensão das relações pa-
triarcais, racistas e de classe de forma consubstancial e coextensiva.
Essa compreensão acontece em um movimento dialético em
que se olha para dentro da própria profissão, das mulheres diversas
que a formam, da subalternidade que nos marca como um “trabalho
de mulher” pela divisão sexual do trabalho e do público que atende-
mos nos mais diversos campos de atuação profissional. Ao mesmo
tempo, olha para fora e reconhece que a classe trabalhadora é diver-
sa, que tem sexo, sexualidade e cor, e que para acompanharmos o
movimento do real e darmos conta de intervir nele, como profissão
interventiva que somos, precisamos compreender as mediações e
determinações que partem dessas relações sociais.
De acordo com Cisne (2015, p. 60):
Dentro do Serviço Social, hegemonicamente, nos propomos a
ter uma perspectiva teórica e metodológica fundamentada no
materialismo histórico e dialético que, fundamentalmente, preza
pela perspectiva da totalidade. Então, um dos primeiros passos
para corresponder a essa perspectiva é considerar a importân-
cia das análises pautadas pela consubstancialidade e pela coex-
tensividade das relações sociais de classe, “raça”/etnia e sexo.
Dimensões essas que estruturam as relações sociais com as

205
quais trabalhamos. Desta forma, correspondemos à perspectiva
feminista materialista e de totalidade. Desconsiderar as relações
sócias de sexo e/ou raça seria uma ruptura com a perspectiva de
totalidade.

Assim, a partir da perspectiva de totalidade e de um esforço,


reivindicação e produção teórica de gerações de pesquisadoras, mi-
litantes dos movimentos feministas, dos movimentos LGBTT e dos
movimentos antirracistas que compõem a categoria profissional, o
Serviço Social tem se forjado como um campo de conhecimento crí-
tico em torno dos debates das relações patriarcais, de raça, sexuali-
dade e classe. O atual quadro que vivemos no Brasil, em que a face
conservadora e patriarcal do golpe em curso se mostra tão central e
necessária aos interesses do capital, só reforça o quão urgente e ne-
cessária era a inclusão desse debate em nossa formação profissional,
nos nossos encontros e fóruns acadêmico-políticos, em nossas lutas
e em nossa atuação como assistentes sociais.
Antes de seguirmos o debate e fazermos uma análise sobre
últimos acontecimentos que marcam a adesão do Serviço Social a
essas pautas, precisamos fazer duas ressalvas. A primeira é que o não
reconhecimento das pautas feministas, antirracistas e em torno da di-
versidade sexual decorre de um longo processo histórico dentro dos
próprios partidos e movimentos sociais de esquerda, que muitas ve-
zes, seguindo um viés economicista do marxismo, tinham tais pautas
como menores ou burguesas. Os ranços dessa perspectiva economi-
cista ainda sobrevivem no Serviço Social e por um tempo foram he-
gemônicos nas nossas produções e formulações teóricas e políticas.
A segunda é que esse movimento de compreensão das relações
sociais de sexo, raça e classe de forma consubstancial não aconteceu
de forma endógena ao Serviço Social; seguiu o movimento real da
luta de classes, a partir da vinculação da categoria profissional aos
movimentos sociais, principalmente o movimento feminista antir-
racista, que também questionava a hierarquização das pautas e que
reivindicava a compreensão ampla e diversa da classe trabalhadora.
Já em 1993, no Código de Ética da nossa profissão, reconhe-
cemos que as desigualdades de raça, sexo e orientação sexual são im-
portantes e que o combate a essas desigualdades precisam guiar a
nossa atuação profissional. Ele traz como um dos seus princípios
“o exercício do serviço social sem ser discriminado/a, nem discrimi-
nar, por questões de inserção de classe social, gênero, etnia, religião,
nacionalidade, orientação sexual, identidade de gênero, idade e con-
dição física” (CFESS, 1993). As diretrizes curriculares da ABEPSS

206
de 1996 reforçam a importância desses debates para a formação
profissional.
Porém, para a efetivação desses princípios, é necessário que
a formação profissional em Serviço Social contemple o desvelar
dessas relações. No entanto, só 21 anos depois da formulação do
nosso Código de Ética, no Encontro Nacional de Pesquisadoras(es)
em Serviço Social (ENPESS) de 2014, impulsionado pelos traba-
lhos do Grupo Temático de Pesquisa (GTP) em Serviço Social, re-
lações de exploração/opressão de gênero, raça/etnia, sexualidades
da ABEPSS, é que se criou um documento orientando os cursos de
Serviço Social para a criação de ao menos um componente curricu-
lar obrigatório abordando essas temáticas.
Compreendendo a importância desses temas diante da con-
juntura, da noção de totalidade defendida em nossa formação e da
forma como as relações sociais são conformadas na realidade, o
documento orienta não só a inclusão de um componente curricular
obrigatório, mas a discussão das relações de exploração e opressão
de sexo, raça, sexualidade e classe de forma transversal em toda a
formação profissional:
Essa análise ganha maior importância em uma conjuntura mar-
cada não apenas por conservadorismos, mas reacionarismos e
fundamentalismos racistas, misóginos, homofóbicos, crimina-
lizantes e genocidas da juventude negra e dos povos indígenas
no Brasil. Acreditamos que a formação profissional de Serviço
Social deve estar associada a uma consciência de classe antirra-
cista, antipatriarcal e anti-heterossexista, assim como vinculada
às lutas dos movimentos sociais (negras/os, indígena, feminista,
LGBT e outros). Nessa perspectiva, é possível continuar avan-
çando na renovação profissional, afirmando a liberdade como
valor ético central, ampliando direitos e nos contrapondo a to-
das as formas de discriminação, opressão e exploração em de-
fesa da emancipação humana. Para tanto, entendemos que essas
temáticas não devem estar presentes em apenas um componen-
te obrigatório, mas em toda a formação profissional. (ABEPSS,
2014, p. 2).

Assim, o documento orienta:


‒ A inclusão, nos conteúdos curriculares obrigatórios, do deba-
te sobre as relações sociais de classe, sexo/gênero, etnia/raça,
sexualidade e geração de forma correlacional e transversal.

‒ A realização de, no mínimo, uma disciplina que tematize o


Serviço Social e as relações de exploração/opressão de sexo/
gênero, raça/etnia, geração e sexualidades, preferencialmente,

207
antes da inserção da(o) estudante no campo de estágio. Aqui, res-
saltamos, ainda, as Leis 10.639/03 e 11.645/2008, assim como
a Resolução nº 1 do Conselho Nacional de Educação ‒ CNE/
MEC, no que diz respeito à incorporação obrigatória do tema
sobre relações étnico- raciais nos currículos.

‒ O estímulo à realização de debates, eventos, oficinas e seminá-


rios temáticos sobre as relações de exploração/opressão de sexo/
gênero, raça/etnia, geração e sexualidades.

‒ Apoio aos movimentos sociais e espaços de lutas anticapitalis-


tas, antirracista, antipatriarcal e anti-heterossexista, por meio de
parcerias, projetos de extensão, pesquisa, entre outros.

‒ A promoção de espaços de estudos e pesquisas sobre o sis-


tema capitalista-patriarcal-racista-heterossexista e adultocêntrico.
(ABEPSS, 2014, p. 2).

Seguindo o caminho de fortalecimento dessas temáticas no


Serviço Social, a ABEPSS também lançou, em 2018, os subsídios
para orientar a inclusão do debate ético-racial na formação e no tra-
balho profissional, no qual reconhece os desafios postos à nossa pro-
fissão em seu percurso de amadurecimento teórico e político, sendo
“o debate sobre a questão étnico-racial e sua inserção nos currículos
um deles. A proposta deste subsídio é justamente assumir a tarefa
coletiva de construir o avanço do debate entre a categoria” (ABEPSS,
2018).
A partir disso, os subsídios construídos pela ABEPSS têm
como objetivos:
‒ Evidenciar a necessidade sócio-histórica do debate acerca da ques-
tão étnico-racial na formação em Serviço Social, na perspectiva de
totalidade;

‒ Subsidiar conteúdos programáticos aos currículos de Serviço So-


cial para implementação de disciplinas obrigatórias, optativas, labo-
ratórios e oficinas na graduação e linhas de pesquisa e disciplinas na
pós-graduação;

‒ Direcionar e fomentar atividades de educação permanente aos


profissionais, docentes e discentes, articulando trabalho e formação;

‒ Estimular a criação de grupos de pesquisa e de produção de conhe-


cimento na formação graduada e pós-graduada.

208
Mais uma vez, a perspectiva da totalidade entra em evidência
e reforça a necessidade de compreensão da nossa realidade sócio-
-histórica, entendendo as particularidades da nossa formação social,
que tem mais de três séculos de escravidão dos povos negros e in-
dígenas no seu passado; a abolição se deu de forma incompleta e
não garantiu o acesso a direitos e à reparação histórica desses povos.
O racismo no Brasil pode ser considerado um dos principais
determinantes das expressões da questão social; é o país que mata
um jovem negro a cada 23 minutos16, onde as mulheres negras têm
um risco 71% maior de serem assassinadas (vítimas de feminicídio)
que as mulheres brancas17 e ainda são as que mais morrem vítimas
de abortos clandestinos e as que mais são vulneráveis a estupros e
violência obstétrica18.
Por compreender essas determinações, o documento aponta
a importância da apreensão das categorias de raça e etnia para o
Serviço Social:
A apropriação das categorias raça e etnia para as análises e refle-
xões nas ciências sociais é fundamental, sobretudo no Serviço
Social, que atua no âmbito das expressões da questão social,
que, por sua vez, atingem prioritariamente, na realidade brasi-
leira, as populações negras e indígenas. Nesse sentido, sob a
perspectiva da totalidade social, o debate acerca das opressões
e exploração de classe não deve ocorrer descolado das deter-
minações étnico-raciais, que são estruturais e estruturantes das
relações sociais em todas as esferas da vida social. Compreensão
que é fundamental para a articulação com o debate da formação
em Serviço Social.

Ainda no que diz respeito ao debate de raça e etnia no Serviço


Social, temos duas ações políticas muito importantes: o documento
também formulado pela ABEPSS em 2018, “As cotas na Pós-Gra-
duação: orientações da ABEPSS para o avanço do debate”, que esti-
mula e indica que os programas de pós-graduação em Serviço Social
façam a adesão às cotas étnico-raciais em seus editais; e a campanha
“Assistentes Sociais no combate ao racismo”, que foi mote central

16  Segundo dados do Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências


Sociais. Disponível em: http://flacso.org.br/?project=mapa-da-violencia Acesso em:
24/9/2019.
17  Dados do atlas da violência de 2018. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.
br/publicacoes/atlas-da-violencia-2018/. Acesso em: 24/9/2019.
18  Dados do dossiê das mulheres negras de 2013. Disponível em: http://ipea.gov.br/
portal/index.php?option=com_content&id=20978. Acesso em: 15/4/2018.

209
das lutas do conjunto CFESS/CRESS na sua atual gestão (2017-2020).
O documento sobre as cotas na pós-graduação revela que 80%
dos estudantes de mestrado e doutorado no Brasil são brancos, e ape-
nas 17% negros, expressando as desigualdades raciais presentes nesse
espaço. Por isso, compreende que a “aprovação de ações afirmativas no
âmbito da pós-graduação é uma medida importante, de caráter repa-
ratório às atrocidades cometidas contra a população negra” (ABEPSS,
2018). Os resultados do debate levantado pela ABEPSS foram rápidos;
até setembro de 2019, menos de um ano depois do lançamento do do-
cumento, 22 dos 34 programas de Pós-Graduação em Serviço Social
tinham aderido às cotas étnico-raciais, constituindo uma importante
conquista para os negros e negras que formam a nossa categoria pro-
fissional.
A campanha do conjunto CFESS/CRESS ainda está em anda-
mento19, mas já mobilizou vários debates no Brasil sobre o combate
ao racismo. Foram semanas comemorativas ao dia da(o) assistente so-
cial, o 2º Seminário Nacional de Direitos Humanos e Serviço Social,
semanas acadêmicas, os próprios espaços de lançamento da campanha
promovidos pelos CRESS de todos os Estados, além de uma grande
quantidade de material audiovisual produzido pelo conjunto e divulga-
dos de forma digital e impressa.
Para o conjunto, dar centralidade a esse debate significa incenti-
var a promoção de ações de combate ao racismo no cotidiano profis-
sional. Além disso, para nós, significa o posicionamento da categoria
profissional em face dos processos de barbárie que as expressões do
racismo causam nas vidas de milhares de pessoas, bem como dar vi-
sibilidade à produção de conhecimento e às pesquisadoras negras que
compõem a nossa profissão. Sem dúvida, essa campanha foi um marco
importante no fortalecimento do debate em torno da raça na nossa
profissão.
O lançamento de mais um livro para a biblioteca básica do Ser-
viço Social também foi um marco importantíssimo no que tange às
discussões de sexo, raça e diversidade sexual na categoria profissional.
O livro intitulado Feminismo, diversidade sexual e Serviço Social, de autoria
das professoras Mirla Cisne e Silvana Mara do Santos, trouxe essas
temáticas de forma sistematizada e didática, realçando as particulari-
dades da formação social brasileira com base na teoria social crítica.
Nas palavras de Ferreira (2018, p. 11), o principal mérito dessa
obra:

19  Para acompanhar e ter mais informações sobre a campanha: http://servicosocialcontra-


racismo.com.br/

210
Consiste em sua sintonia com o projeto ético-político do Serviço
Social, e na coerência e no rigor com que se vincula à perspecti-
va materialista histórica. As autoras questionam a falsa ideia, ali-
mentada pelas perspectivas pós-modernas, de que não é possível
apreender tais questões a partir do marxismo, sem, entretanto,
deixar de apontar, como crítica necessária, que a lacuna histórica
da elaboração crítica sobre tais dimensões, e a pouca relevância
a elas conferidas, abriu o flanco para o grassar das perspectivas
pós-modernas e de uma certa teoria de identidades desvinculada
da crítica das relações sociais.

Não só o livro, mas todas as medidas e avanços que apontamos


neste trabalho seguem o que preconiza a dimensão da totalidade que
é central para o marxismo, e mais, fortalecem o nosso compromisso
com um projeto societário emancipatório construído e defendido por
esta categoria profissional.
Produzir no campo da teoria crítica, a trazer novas possibili-
dades e que fuja do fatalismo paralisante e do idealismo descolado
da realidade concreta, faz-se uma tarefa indispensável para alargar os
horizontes do possível e para construir um conhecimento aliado à
prática política emancipadora, configurando-se nessa conjuntura de
ascensão do conservadorismo como um processo de resistência.
Esse livro, abordando essa temática de forma crítica, em uma
das coleções mais importantes e de maior visibilidade do Serviço
Social, representa uma importante conquista para nossa categoria
profissional. Legitima e demarca nosso posicionamento ante a onda
conservadora, pós-moderna, e também em face do economicismo,
mostrando que além de possível, é necessário que se façam análises
sobre a diversidade da classe trabalhadora.
Com isso, o Serviço Social mostra, mais uma vez, que é possí-
vel se renovar e avançar mesmo em tempos tão difíceis e tenebrosos.
Que se o avanço da decadência ideológica da burguesia, em sua face
conservadora e violenta, nos ataca, nos munimos da teoria crítica e
da articulação com os movimentos sociais da classe trabalhadora para
resistir e renovar a esperança.

Considerações finais

O Serviço Social tem demonstrado desde a sua virada teóri-


co-metodológica que é capaz de se renovar e resistir mesmo quando
o projeto anticivilizatório do capital desvela sua face mais violenta,
seja na ditadura civil-militar que vivíamos há quarenta anos, no nosso

211
congresso da virada, seja no golpe parlamentar, jurídico, midiático e
conservador em que estamos imersos atualmente.
Essa conjuntura nos ataca de todas as formas possíveis, no
desmonte das políticas públicas e sociais nas quais trabalhamos e de
que somos usuárias, na violência que autoriza, incentiva e produz
contra mulheres, negros e negras e LGBTTs, pois além de serem a
maioria do público que atendemos, também somos nós mesmas os
alvos. Além disso, abre espaço para uma onda conservadora dentro
da profissão, e os ratos que estavam escondidos saltam para fora de
seus lugares confortáveis, confrontando-nos e mostrando, como bem
sabemos, que nunca deixaram de existir, só aguardavam o momento
oportuno para atacar.
Consideramos que esse avanço e amadurecimento teórico em
torno das discussões de sexo, raça, sexualidade e classe, de forma con-
substancial, materialista e marxista, se configura como uma resposta
de resistência para dentro e fora da categoria profissional. Seguimos
na tarefa de desvelar a realidade a partir da teoria crítica, fundada na
totalidade da realidade concreta, a fim de reafirmar o nosso compro-
misso ético-político com a construção de um projeto societário no
qual homens e mulheres sejam livres das desigualdades, explorações
e opressões de raça, classe, sexo e sexualidade.
Ao concluir, reafirmamos que a apreensão das relações sociais
de sexo, raça, classe e sexualidade só qualifica a nossa compreensão
acerca da questão social e das suas expressões, bem como consis-
te numa estratégia de enfrentamento ao conservadorismo dentro e
fora da profissão. Por isso, reafirmamos ainda a necessidade de seguir
dialogando e se somando à luta dos movimentos sociais feministas,
antirracistas e pela diversidade sexual, para que a nossa produção de
conhecimento siga alinhada à luta da classe trabalhadora.

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ANOTAÇÕES

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