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SERVIÇO SOCIAL E
MASCULINIDADES: OS DESAFIOS
DO DEBATE DE GÊNERO NA
FORMAÇÃO PROFISSIONAL

SOCIAL WORK AND MASCULINITIES: THE


CHALLENGES OF THE GENDER DEBATE IN
PROFESSIONAL QUALIFICATION

AUTORES:

Alice Alves Menezes Ponce de Leão


Doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas.
Professora do curso de graduação em Serviço Social do Instituto de Ciências Sociais, Educação
e Zootecnia de Parintins da Universidade Federal do Amazonas e da Pós-Graduação em Serviço
Social e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). E-mail:
aliceponce@ufam.edu.br

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RESUMO

A temática de Gênero reclama melhor lugar no processo de formação profissional das/dos assisten-
tes sociais enquanto debate transversal em todos os conteúdos do curso, não só pela predominância
histórica de mulheres no Serviço Social, mas em razão da necessidade de apreender os rumos que a
profissão vem assumindo no âmbito da sociabilidade capitalista a partir da divisão sexual do trabalho e,
sobretudo, pelas nuances da questão social fortemente atravessadas pelas assimetrias de gênero que
demandam desocultamento para iluminar o trabalho na perspectiva de igualdade de direitos a todas/
os as/os indivíduos independente de raça/etnia, classe social, diversidade sexual e geração. Embora
as produções feministas tenham alcançado projeção nas últimas décadas na literatura profissional,
especialmente após a constituição do Projeto Ético-Político, pouco se tem debatido sobre o campo das
masculinidades, razão pela qual não se problematiza devidamente a criminalização, os adoecimentos
e as mortes de homens. Este trabalho reflete o lugar que a temática de Gênero ocupa na formação pro-
fissional da/do assistente social a partir da reflexão de um projeto de extensão sobre masculinidades
e sexualidades realizado por alunas e alunos do curso de Serviço Social para a comunidade acadêmica
de uma universidade federal. As oficinas de formação para as/os acadêmicas/os envolvidas/os, o de-
senvolvimento das ações extensionistas, bem como os resultados alcançados discutidos neste texto
foram balizados pelo aporte metodológico da abordagem crítico-dialética que contextualiza a temática
na historicidade das relações sociais capitalistas nos levando ao entendimento de que é somente pelo
viés anticapitalista que lograremos êxito na luta antirracista e antissexista.

Palavras-chave: Serviço Social. Masculinidade Hegemônica. Formação Profissional.

ABSTRACT

The theme of Gender claims a better place in the process of professional training of social workers as a
transversal debate in all the contents of the course, not only due to the historical predominance of women
in Social Work, but due to the need to understand the directions that the profession has been assuming
in the scope of capitalist sociability from the sexual division of labor and, above all, by the nuances of the
social issue strongly crossed by gender asymmetries that demand unconcealment to illuminate work in the
perspective of equal rights for all individuals regardless of race/ethnicity, social class, sexual diversity and
generation. Although feminist productions have reached prominence in recent decades in the professional
literature, especially after the creation of the Ethical-Political Project, little has been discussed in the field
of masculinities, which is why criminalization, illnesses and deaths of men. This work reflects the place
that the theme of Gender occupies in the professional training of/of the social worker from the reflection
of an extension project on masculinities and sexualities carried out by students of the Social Work course
for the academic community of a federal university. The training workshops for the academics involved,
the development of extension actions, as well as the achieved results discussed in this text were guided
by the methodological contribution of the critical-dialectical approach that contextualizes the theme in the
historicity of capitalist social relations in the leading to the understanding that it is only through the anti-
-capitalist bias that we will succeed in the anti-racist and anti-sexist struggle.

Keywords: Social Work. Hegemonic Masculinity. Professional Qualification.

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1. INTRODUÇÃO
O Serviço Social é uma profissão que carrega no lastro de sua história a marca de ser predominante-
mente feminina. A predominância histórica de mulheres no Serviço Social está diretamente relacionada à
imagem da profissão desde a sua gênese, que traz em seu bojo os traços da filantropia, do voluntarismo e
da benemerência.

De acordo com Estevão (2013), os primeiros passos do que, atualmente, é o Serviço Social foram en-
saiados por mulheres vinculadas à Igreja Católica, conhecidas como “damas da caridade”, e, depois, quan-
do a profissão ganhou o estatuto de legitimidade pelo Estado, passou a ser protagonizada por mulheres
provenientes das camadas mais abastadas da sociedade.

Desde os primórdios da profissão, as mulheres que se engajavam nessa “missão” eram despertadas
pela vocação de servir. A pobreza era vista como um problema moral que dependia da ajuda assistencial
da Igreja e de bons conselhos, uma vez que se acreditava que os problemas sociais estavam relacionados
a castigos divinos. As moças boazinhas da Igreja estavam à frente dessa missão com o propósito paliativo
de atuar em focos da pobreza vislumbrando alcançar o objetivo cristão maior de ganhar almas para o céu.

O alvo da assistência sempre foi o pobre, desassistido, desajustado e incapaz que dependia da caridade
da Igreja e, depois, da boa vontade do Estado que passou a ser politicamente pressionado pela classe tra-
balhadora para responder os problemas sociais que se agudizavam diante do desenvolvimento do sistema
capitalista de produção.

Diante da necessidade de oferecer respostas qualificadas para o enfrentamento da pobreza que se pro-
liferava nos centros urbanos, o Estado passa a legitimar a criação da profissão de Serviço Social que, sob
bases técnico-científicas, passa a se projetar no intuito da criação de mecanismos de consenso para a
aglutinação dos conflitos sociais e garantir, assim, a reprodução do sistema capitalista (MONTAÑO, 2007).
Ocorre que a “ilusão de servir” (MARTINELLI, 2009) permanece como um ranço conservador na profissão,
sendo demandado às/aos profissionais a criação de um comportamento docilizado na classe trabalhadora
como forma de escamotear a exploração e a opressão para a manutenção do sistema (IAMAMOTO, CAR-
VALHO, 2006).

Esse espectro conciliador de interesses contraditórios – entre classe dominante e classe trabalhadora
–, dá o tom de subalternidade da profissão que, apesar da revisão crítica pela qual passou na década de
1980 resultando na afirmação do compromisso ético-político com as lutas sociais das classes subalter-
nas, vem sofrendo ataques neoconservadores que intentam converter as respostas profissionais no mora-
lismo, na fragmentação e na imediaticidade que “[...] demandam ao assistente social atividades de controle
e censura: avaliações de situações que envolvem os sujeitos criminalizados moralmente e julgados como
irrecuperáveis pelo poder dominante” (BARROCO, 2011, p. 213).

O ranço conservador que permeia a história da profissão está concatenado com a função que a legitima
no seio da ordem capitalista, qual seja, a criação de consenso para a reprodução social desta sociabili-
dade. Segundo Tiburtino (2015, p. 254), a profissionalização do Serviço Social incorporou a mão-de-obra
feminina, inicialmente de mulheres burguesas, “pelo fato destas serem consideradas mais adequadas e em
condições de educar os trabalhadores com base na perspectiva do controle social e reprodução da família”.

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É importante destacar que o capital ora tornou o trabalho feminino inapto ora o tornou apto, de acordo
com a mudança de seus interesses. Se inicialmente foi necessário que as mulheres estivessem restritas ao
espaço doméstico na função de reprodução sexual, o capital depois as recrutou conforme a sua necessida-
de de reprodução mercantil e controle social das massas utilizando-se do mesmo critério moral atribuído
ao papel da mulher na divisão sexual do trabalho, conforme ilustram Mesquita e Pacheco (2015, p. 116):

É por meio desta construção social que são produzidas e reproduzidas as sub-
jetividades femininas, como “um ser que nasceu para os outros”, que carrega
em si a fragilidade, a intuição, a abnegação, a docilidade, a sensibilidade, o
cuidado e, por isso, tem uma “vocação” para as profissões ditas femininas por-
que exigem tais características. E o Serviço Social surge exigindo este perfil de
“uma mãe social” – a cuidadora do povo, preocupada com os pobres, doentes,
idosos, crianças.

O lastro conservador do Serviço Social começa a ser questionado no momento em que se diversificou o
perfil das/os assistentes sociais que passou a ser composto por outros segmentos de classe social que já
tinham experenciado outros trabalhos em outros setores produtivos marcados pela flutuação dos vínculos
e afetados pelas crises no sistema fazendo com que essas pessoas fossem levadas a “necessidade de
optar por carreiras que garantissem a permanência no trabalho. E a profissão de Serviço Social se constitui
como uma dessas alternativas” (TIBURTINO, 2015, p. 255). Com esse novo perfil, passamos a perceber a
contestação das práticas conservadoras na profissão e a afinação com as lutas do movimento feminista.

A condição feminina das profissionais contribui para potencializar a subalternidade que se mostra re-
fletida nos baixos salários, no desvio de funções, nas práticas de assédio moral/sexual, em ameaças e
perseguições (VICENTE, 2015), sobretudo, capitaneadas por homens, sejam eles usuários dos serviços ou
gestores.

A pesquisa de Tiburtino (2015) revela que o percentual de 71% das/os assistentes sociais que exerciam
funções no Sistema Único de Assistência Social (SUAS) de João Pessoa – Paraíba era composto por mu-
lheres que estavam vinculadas à execução direta dos serviços com famílias, crianças e adolescentes en-
quanto uma minoria masculina encontrava-se em postos de coordenação na política de assistência social,
o que reitera a desigualdade baseada nos moldes da divisão sexual do trabalho.

Sendo assim, seja pelo caráter predominantemente feminino da profissão, seja em razão do fenômeno
da feminização da pobreza que faz com que as mulheres sejam as maiores usuárias das políticas públicas,
sobretudo da política de assistência social, é que o debate de gênero deve ganhar relevo na formação pro-
fissional.

Se esses aspectos notórios já são suficientes para destacarmos a importância do debate de gênero na
formação profissional, devemos ir além do que se mostra, ou, conforme sinaliza Pontes (2007), precisamos
superar o aspecto fenomênico da demanda para desocultarmos o seu sincretismo. Os problemas sociais
que se convertem em demandas para os assistentes sociais aparecem no formato da violência domésti-
ca, abuso e exploração sexual, adolescentes em conflito com a lei, violência na velhice, dentre outros, que
atinge mulheres com maior frequência e são provocados por homens, na maioria dos casos. Destacamos,
pois, que os homens devem ser chamados para a cena do debate como medida educativa de transformação
individual e social e, consequentemente, de redução da judicialização.

Diante dessa observação, este artigo problematiza os desafios da abordagem do debate de gênero na

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formação profissional em Serviço Social dando especial destaque ao tema das masculinidades. Para isso,
utilizamos como base de discussão uma revisão bibliográfica sobre o tema em questão, o Projeto Pe-
dagógico do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), campi Parintins, e a
experiência de um projeto de extensão realizado no primeiro semestre de 2022 realizado nesta instituição
que envolveu nove discentes do curso de Serviço Social, sendo 05 pessoas do sexo feminino e 04 do sexo
masculino, com idade entre 20 a 33 anos. As discussões travadas nos alertam para a importância da dis-
ciplina de gênero na formação profissional como um debate transversal em todas as disciplinas do curso
deslocando-a do lugar residual de disciplina optativa, cuja oferta é condicionada à manifestação de interes-
se de algum docente.

2| METODOLOGIA
As discussões que serão travadas neste trabalho são resultantes da experiência do Projeto de Extensão:
“Homens e sexualidade: o revés do aprendizado” coordenado pela autora deste artigo e desenvolvido junto
a acadêmicas/os do curso de graduação em Serviço Social do Instituto de Ciências Sociais, Educação e
Zootecnia de Parintins (ICSEZ) no primeiro semestre do ano de 2022.

Inicialmente, este Projeto foi aprovado no final do segundo semestre de 2019 para ser executado de for-
ma presencial junto à comunidade externa fora da Universidade. Contudo, a implementação do Projeto em
2020 sofreu interrupção antes mesmo de ele ser executado em virtude da suspensão das atividades aca-
dêmicas por ocasião do decreto da pandemia da Covid-19, sendo readaptado em 2021 para a modalidade
remota, o que comprometeu o planejamento inicial de execução junto à comunidade.

Em virtude do quadro de adoecimento físico e mental das/dos estudantes provocado pelo impacto ini-
cial da pandemia, decidimos pela não execução do Projeto naquele momento até o retorno das aulas pre-
senciais em condições seguras. Em 2022, as aulas presenciais da Universidade foram retomadas dentro da
sistematização de um calendário acadêmico com períodos curtos, de 4 meses. Mesmo com o tempo exí-
guo, a coordenadora tomou a decisão pela implementação do Projeto adaptando-o a condições possíveis
para a sua execução dentro do curto período de tempo estipulado no calendário acadêmico.

Dessa forma, as ações foram reconvertidas para a modalidade híbrida sendo projetadas para a comu-
nidade acadêmica do ICSEZ e para a sociedade em geral alcançada por meio das redes sociais vinculadas
ao Instituto.

A extensão centrou-se na realização de oficinas de formação e debates com as/os estudantes acerca da
temática das masculinidades e sexualidades que permeou todo o processo de execução do Projeto, reuni-
ões para o delineamento das duas estratégias que constituíram as ações extensionistas, organização para
a viabilização das ações e monitoramento e avaliação.

O escopo metodológico que norteou todo esse processo ancorou-se na perspectiva dialético-crítica
afinada com o Projeto Ético-Político do Serviço Social que contribuiu para provocar a reflexão historicizada
do tema no contexto das relações de poder intrínsecas a sociabilidade capitalista e articular mediações
no campo da instrumentalidade profissional para o enfrentamento das problemáticas desencadeadas pelo
modelo de masculinidade hegemônica, patriarcal, tendo como horizonte a promoção da igualdade de di-
reitos entre todos os gêneros.

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Neste trabalho, daremos relevo às duas experiências das ações desenvolvidas, sendo a primeira uma ati-
vidade teatral protagonizada pelas/os discentes no momento de concentração da comunidade acadêmica
do ICSEZ no restaurante universitário. Esta primeira atividade objetivou provocar uma reflexão acerca da
construção sócio-histórica da masculinidade hegemônica e os conflitos que ela produz sobre as relações
entre os gêneros.

A segunda experiência da ação de extensão envolveu a produção de um material audiovisual sobre a


performance da música “Masculinidades”, do cantor Tiago Iorc. Esta atividade fez uma crítica à desumani-
zação e ao sofrimento imputados aos homens pela imposição do modelo patriarcal demandando reflexão
crítica e coragem para o enfrentamento das estruturas de opressão em nome de uma vida saudável.

3| RESULTADOS E DISCUSSÕES
3.1 A discussão de Gênero na formação profissional do Serviço
Social
A temática de Gênero reclama a prioridade de sua incorporação transversal em todos os conteúdos da
formação profissional em Serviço Social. Isso não se deve a predominância histórica de mulheres no curso
de Serviço Social, embora suscite a curiosidade. Mas, se justifica, em primeiro lugar, em função do cariz
que a profissão vem assumindo no cerne da sociabilidade capitalista sob os auspícios da divisão sexual do
trabalho, e segundo, pelas nuances que encobrem a questão social que tem como pano de fundo a questão
de gênero e suas assimetrias (TIBURTINO, 2015).

Este último fator é especialmente preocupante por várias razões, uma vez que há prejuízos em relação
ao aprofundamento da explicação da questão social, que constitui a matéria-prima do trabalho das/os as-
sistentes sociais, na perda de subsídios importantes para os debates sobre as demandas provenientes do
campo de estágio supervisionado (LISBOA, 2010) que requerem estratégias de instrumentalização e, por
fim, na falta de subsídios para as/os discentes que decidem se aventurar nas temáticas de gênero em seus
trabalhos de conclusão de curso.

De acordo com Faury (2003), por durante muito tempo o Serviço Social negligenciou o debate de gênero
que passou a ser introduzido no Brasil somente no final da década de 1970 e início da década de 1980 com
maior presença a partir da década de 1990. A partir de então, o debate da formação profissional ocupou es-
paço privilegiado de discussão no âmbito da categoria profissional, que tinha como proposta a construção
de um novo projeto para a formação profissional, cujas diretrizes curriculares elaboradas pela Associação
Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), em 1996, estabeleceram dois eixos básicos
capazes de dotar os profissionais de competência para responder às demandas emergentes. Assim,

[...] foi somente durante a década de 90 que o tema passou a estar mais pre-
sente na preocupação dos profissionais, cuja maioria é composta por mulhe-
res, atendendo uma clientela formada também majoritariamente por mulheres.
De “temas emergentes em Serviço Social”, o tema adquire status próprio para

1 Os dois eixos básicos são: a) a formação profissional no contexto das transformações sociais recentes; b) formulação de diretrizes
curriculares enquanto resposta às novas exigências da formação profissional.

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consolidar-se como área de estudo e atuação de assistentes sociais (FAURY,


2003, p. 110-111).

Com o novo currículo de formação profissional, conseguimos avançar na superação da perspectiva en-
dógena que privilegiava na formação um debate sobre a evolução da prática profissional a partir de um
olhar de dentro da profissão que considerava o Serviço Social uma evolução da técnica de assistência
social à profissionalização e elegemos a questão social como a coluna vertebral da formação profissional
a partir de onde podemos pensar as políticas sociais e as perspectivas do trabalho profissional em uma
perspectiva dialético-crítica. Considera-se, assim, que a questão social é a matéria-prima do trabalho do
assistente social (IAMAMOTO, 2007).

A abordagem privilegiada da “questão social” que se trava no curso é aquela que deriva de um recorte de
classe social, cujo eixo nucleador das discussões gira em torno da categoria “trabalho”. Isso posto, regis-
tramos as limitações de uma perspectiva que privilegia apenas o enfoque sobre gênero e trabalho em detri-
mento de outras perspectivas que se abrem para outras vertentes metodológicas de análise, uma vez que

Não se deve esquecer que o movimento feminista (seja este autônomo ou


ligado a outros movimentos populares), juntamente com o movimento de tra-
balhadores, e mais recentemente o movimento ecológico, visa a reconstruir
a participação humana democrática, a tolerância e a fraternidade entre as di-
ferenças em prol do objetivo comum de igualdade, numa forma de cidadania
o mais amplamente includente. Novas desconstruções e reconstruções con-
tinuaram e continuarão a ser realizadas, abordando e resgatando diferentes
dimensões de várias biografias (BORGES e CRUZ, 2017, p. 84).

A temática de gênero entrecorta várias expressões da questão social que se conectam com questões
de raça/etnia, sexualidades e geração, sendo, pois, necessário outros horizontes de análise para além da
corrente hegemônica que permeia a formação profissional e que lance olhares mais específicos para o
abuso sexual de crianças e adolescentes, para a velhice masculina e feminina, para a violência contra
mulheres, sobre os conflitos que atingem a população LGBTQIAP+, que pense as masculinidades, dentre
outras questões que tem sido assumidas por outras áreas profissionais, mas que engendram também uma
problematização por parte da categoria profissional, uma vez que são questões que permeiam o cotidiano
de trabalho dos assistentes sociais exigindo estratégias para o enfrentamento.

Mas, ultrapassar as fronteiras da epistemologia hegemônica de discussão não é tarefa fácil. Embora o
projeto ético-político do Serviço Social preconize a garantia do pluralismo por meio do respeito às corren-
tes profissionais democráticas existentes e suas expressões teóricas, e do compromisso com o constante
aprimoramento intelectual, existe um campo de tensões e conflitos sobre a admissibilidade de outras pers-
pectivas além da hegemônica. Para Bonetti et. al. (2007, p. 197), é preciso “garantir o máximo de condições
de liberdade de crítica e de discussão” de modo a evitar o enrijecimento de ideias e possibilitar o diálogo
mais ampliado.

Dessa forma, Lisboa (2010, p. 68) contribui dizendo que:

As verdades dos nossos sujeitos de intervenção, dos nossos entrevistados,


muitas vezes são diferentes das nossas. Uma verdade não está pré-definida,
ela faz parte de um contingente contextual que deve ser mediado por diferen-

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tes concepções teóricas que perpassam as questões de classe, de gênero, de


raça/etnia, que por sua vez se fundamentam em múltiplos tipos de saberes.
Procuro demonstrar que as fronteiras de gênero, da mesma forma que as de
classe se entrelaçam para servir a uma grande variedade de funções e análi-
ses políticas, econômicas, sociais e culturais. Os estudos de gênero nos con-
vidam a olhar e pensar de maneira diferente sobre nossa condição histórica
e a origem das desigualdades sociais. Convidam-nos a extrapolar fronteiras,
sermos flexíveis, deixa-nos mover, captar o cotidiano e a realidade das pes-
soas atendidas nos espaços institucionais: um cotidiano inserido em nuclea-
mentos da esfera da vida, para além da produção. Ou seja, além do trabalho,
as pessoas tem casa, família, estão envolvidas em relações de afeto, relações
de poder ou de violência, são discriminadas, possuem necessidades, desejos!

As questões de gênero, portanto, não estão apenas circunscritas à esfera da produção. O compromisso
profissional se lança na finalidade de apontar vias emancipatórias para os sujeitos sociais que se cons-
tituem como o público-alvo do Serviço Social. Sendo assim, é necessário pensarmos como os sujeitos
elaboram a construção de suas próprias vidas e as suas formas de resistência política no cotidiano, o que
ultrapassa as bases da teoria marxiana de análise. A formação profissional precisa incorporar o debate de
gênero não como uma questão acessória, eletiva, mas como um elemento transversal que deve entrecortar
todas as disciplinas do curso. Para isso, é necessário ultrapassar o terreno do genérico, da universalida-
de para adentrar aspectos mais profundos das relações sociais que se inscrevem na particularidade. Des
acordo com Lima (2014, p. 58):

Assim, as discussões nos cursos de Serviço Social no Brasil avançaram ao


se constituir em torno da “questão social” como objeto de ação profissional
do Serviço Social e, neste sentido, tem priorizado as discussões em torno das
classes sociais. Contudo, falta-nos ainda nos dedicarmos seriamente às dife-
rentes dimensões que atravessam a questão social, ou seja, falta-nos estudar
de forma mais aprofundada as demais dimensões constitutivas da questão
social, a saber gênero, raça/etnia, sexualidade. Tais discussões não podem
continuar a ser eletivas para os profissionais, como se isso não interferisse na
qualidade do trabalho profissional.

A temática de gênero tem crescido e ocupado espaço nos debates da categoria profissional. Essa evi-
dência nos alerta para a necessidade de que essa disciplina precisa avançar mais nas discussões, o que
pressupõe tirá-la do campo das disciplinas eletivas que, quando é ofertada, alcança geralmente alunos
finalistas do curso de graduação em Serviço Social, que não tiveram a oportunidade de refleti-la nas disci-
plinas teóricas e nem a partir das questões trazidas pelo campo de estágio supervisionado.

O curso de Serviço Social da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) situado no Instituto de Ciências
Sociais, Educação e Zootecnia de Parintins (ICSEZ) apresenta em seu Projeto Político Pedagógico (PPC),
aprovado em 2012, a disciplina de “Gênero e Família no Brasil” como disciplina eletiva, cuja ementa preco-
niza “As teorias sobre gênero. Serviço Social e Gênero. Relações de Gênero e família no Brasil contemporâ-
neo e expressões da questão social”. Destaca-se que o PPC não sugere objetivos e nem referências norte-
adoras para a abordagem dessa disciplina ficando a cargo do professor responsável a construção desses
aspectos a partir do direcionamento que o docente pretende conduzir. Embora a ementa seja abrangente, o
enfoque de abordagem privilegia a “família”.

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As temáticas trazidas pelos discentes nos trabalhos de conclusão de curso e a partir do estágio super-
visionado se referem à maternidade, à violência, à sexualidade, à geração, à questão indígena, às masculi-
nidades e ao trabalho profissional, nos levando a pensar na defasagem desta ementa a partir das questões
do tempo contemporâneo delineadas a partir das idiossincrasias locais de uma cidade que se insere no
interior da Amazônia.

Um aspecto positivo que merece destaque no PPC do curso de Serviço Social do ICSEZ/UFAM é a possi-
bilidade de o enfoque de Gênero ser trabalhado em mais uma disciplina além da eletiva propriamente dita.
A disciplina “Tópicos Especiais”, ofertada no oitavo período do curso, “tem como característica a ausência
de uma prévia definição de seu conteúdo, podendo assim variar de acordo com as oportunidades e os
interesses de professores e alunos, assim como com a emergência de questões de interesse profissional
e acadêmico” (PPC do curso de Serviço Social do ICSEZ/UFAM, 2012, p. 62). Dentre os temas sugeridos,
se vê “Gênero, raça e etnia”, que oferece uma possibilidade de abordagem diferente da disciplina eletiva
específica. Embora apresente um recorte mais ampliado e atualizado, a carga horária de trinta horas da
disciplina não consegue dar conta de oferecer um debate profícuo dos temas inseridos no escopo dessa
discussão em um curso de graduação ficando apenas em um sobrevoo, isso quando este tema é acolhido
por algum professor que se dispõe a ministrar essa disciplina.

Embora consideremos as limitações relacionadas a necessidade de atualização do PPC do curso, é no-


tório considerar a possibilidade citada de os alunos demandarem do colegiado de Serviço Social a oferta
pelas disciplinas que contemplem a discussão de gênero, bem como é necessário que mais professores
se afinem com essa temática para que possam assumir a empreitada das discussões, seja nas discipli-
nas propriamente nomeadas, como, também, na articulação transversal desse tema nas outras disciplinas
obrigatórias.

Com vistas a oferecer um lugar de destaque desse tema na formação profissional, os apontamentos
tecidos nessas problematizações vão de encontro com as seguintes sugestões propostas por Lima (2014,
p. 65):

- A temática de gênero deve se dar em forma de disciplina obrigatória e no


momento de ingresso dos discentes no estágio probatório.

- A temática de gênero deve incorporar mais efetivamente discussões relacio-


nadas à etnia/raça, diversidade sexual e questões éticas.

- A temática de gênero deve se dar também transversalmente nas diversas


disciplinas do curso relacionando tal temática com as demais.

Esses redirecionamentos na formação profissional poderão contribuir não só para subsidiar os debates
e as pesquisas em andamento, mas, fundamentalmente, no fomento de novas pesquisas, na superação de
distorções de que gênero se refere apenas ao estudo de mulheres e no posicionamento político dos es-
tudantes do curso que, pela falta de conhecimento mais aprofundado sobre a temática de gênero, muitas
vezes reproduzem o patriarcado a partir de discursos e posicionamentos que se afinam com um feminismo
liberal incentivador da pornografia e deslocado dos marcadores de diferenças que nos permitem expandir
os horizontes para enfoques de raça/etnia e de geração. Afinal de contas, o feminismo não se circunscreve
apenas a mulheres brancas, em idade produtiva/reprodutiva que gritem “meu corpo, minhas regras”. Pre-
cisamos pensar o feminismo dentro de uma perspectiva decolonial e limpa do glitter do patriarcado que
mascara a opressão/exploração dos corpos femininos.

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O debate de gênero precisa também ultrapassar o ensino e avançar rumo à pesquisa e à extensão. No
âmbito da extensão universitária, as/os estudantes do curso têm a possibilidade não só de refletir o tema,
mas, também, de articular ações de intervenção junto à comunidade para o enfrentamento de situações
cotidianas que se inscrevem nas relações de poder. Sendo o Serviço Social uma profissão eminentemente
interventiva, a formação profissional não pode prescindir de oferecer o enfoque de Gênero na extensão
universitária para que os estudantes reflitam estratégias de enfrentamento para a desconstrução do ma-
chismo e a construção de relações saudáveis entre homens e mulheres e outras identidades de gênero.

3.2 O debate das masculinidades no Serviço Social: a experi-


ência de um projeto de extensão

Os estudos desenvolvidos sobre o tema das masculinidades são escassos nas produções do Serviço
Social. Talvez isso se dê ao fato da crença ainda arraigada de que mulheres devem estudar sobre mulheres
e homens devem estudar sobre homens. Mas, Gênero não é um estudo de mulheres, é um estudo sobre as
relações sociais construídas entre os gêneros, masculino e feminino, que se perfazem no campo das rela-
ções de poder (SCOTT, 1991). Sendo assim, Gênero é relacional.

Embora desde a década de 1980, com o amadurecimento teórico-político, a profissão seja orientada
a ultrapassar as fronteiras do aparente para chegar na essência da investigação dos fenômenos, o que
vemos, ainda, é a dificuldade de romper com a superficialidade da investigação, que faz com que os pro-
fissionais privilegiem a atenção sobre a imediaticidade do fenômeno apresentado em detrimento de uma
investigação mais aprofundada sobre os aspectos sincréticos que pressupõe situar na trama todos os
aspectos e sujeitos envolvidos.

Pelo próprio caráter humanista da profissão, a tendência de inclinação dos assistentes sociais é de pro-
teção à vítima e de punição ao agressor. Não está errado priorizar a atenção à vítima, mas isso não pode
se converter em uma redução sob o risco de incorrermos em uma visão unilateral do problema quando
sabemos que os problemas sociais são engendrados no cerne da história que é socialmente construída.

Nas questões de gênero, geralmente, privilegia-se a atenção sobre a mulher ou a vítima que sofreu a
violação de direitos e destina-se ao homem (geralmente o agressor) as medidas penais que pouco contri-
buem efetivamente para a superação do problema, uma vez que não faz o sujeito refletir criticamente sobre
o seu comportamento buscando alternativas de redimissão da masculinidade violenta. Os esforços empre-
endidos por assistentes sociais se concentram mais na articulação em prol do empoderamento feminino e
menos ou nada na reeducação de homens para o exercício de uma masculinidade saudável.

Embora masculinidades seja um termo a ser pronunciado no plural, uma vez que não existe somente
uma única forma de ser homem, pois diferentes marcadores dão o tom de polissemia ao conceito (PONCE
DE LEÃO, 2018), o tronco do patriarcado ainda é hegemônico nos vários modelos. O modelo patriarcal pre-
coniza que não basta nascer com o sexo masculino, é necessário merecer o pênis. Para isso, o indivíduo
deve assumir um modo de ser masculino construído socialmente. Sendo assim, “ser um homem ou uma
mulher, então, não é um estado predeterminado. É um tornar-se; é uma condição ativamente em constru-
ção” (CONNELL, PEARSE, 2015, p. 38).

A masculinidade hegemônica ou patriarcal gravita em torno do falo enquanto símbolo de poder e de


dominação dos homens sobre as mulheres. De acordo com Bourdieu (2016), o masculino se constrói em

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oposição à ideia do feminino, sendo este associado à debilidade, fraqueza e submissão. A masculinidade é
testificada, então, a partir de comportamentos agressivos e autoritários.

No cotidiano de trabalho da/do assistente social, são várias as demandas que trazem o pano de fundo
da masculinidade hegemônica, como a recusa do homem em se submeter ao procedimento de vasectomia
nos programas de planejamento familiar, bem como a recusa do uso do preservativo sexual, o cumprimento
de medidas socioeducativas para homens apenados pelo crime de violência contra a mulher e feminicídio, a
velhice masculina, assédio moral e sexual provocado por homens no ambiente de trabalho, violência contra
a pessoa idosa cometida por filhos homens, dentre outras, que carecem de uma instrumentalização que to-
que no cerne da questão para promover mudanças na perspectiva de superação do problema e não apenas
de uma resolutividade imediata nos cânones do direito penal.

Com a proposição de provocar a reflexão sobre o aprendizado socialmente construído da masculinidade


hegemônica de modo a despertar o mal-estar desse modelo e provocar discussões sobre perspectivas de
vivências saudáveis não só para os homens em si, mas para os homens em suas relações sociais com ou-
tras pessoas do mesmo gênero e com outros gêneros, que o projeto de extensão “Homens e sexualidade:
o revés do aprendizado” coordenado pela autora deste trabalho e desenvolvido junto a/para estudantes do
curso de Serviço Social da UFAM se lançou como um desafio que impôs aos alunos e às alunas o movimen-
to de olharem para si através do espelho.

Os assuntos relacionados à questão de gênero tocam nas estruturas de poder, por isso confrontam, in-
comodam e são tensionados por conflitos. A experiência deste projeto de extensão provocou o desoculta-
mento daquilo que está posto nas relações sociais de forma naturalizada e que é perpetrado pelos próprios
sujeitos que fizeram parte desse projeto, mas que também são vítimas de um modelo desumanizado de
masculinidade.

O primeiro momento de execução das ações foi de formação a respeito da temática da masculinidade
hegemônica. Os alunos tiveram contato com textos que situaram este tema no campo dos estudos de
gênero e de outros que refletiram sobre as características desse modelo de masculinidade enraizada no
tronco do patriarcado.

Ao se defrontarem com as discussões, vimos que o primeiro confronto se localizou dentro deles próprios
ao perceberem as suas práticas sociais a partir do aprendizado que receberam em suas células de forma-
ção social, a família, a escola, a igreja. A problematização dessas questões exige questionamento no ter-
reno do até então inquestionável. As angústias nos levam ao desmoronamento das estruturas arraigadas.
A discussão de gênero é transgressora e tão desconfortável a ponto de um aluno solicitar a sua saída do
projeto por se sentir incomodado.

Gênero é um tema contemporâneo no Serviço Social. A tradição da pesquisa na profissão tem se de-
bruçado sobre questões relativas à prática profissional e as políticas públicas. Mas, a própria realidade,
sendo dinâmica, impele questões às quais os profissionais não podem se abster de conhecer para delinear
uma instrumentalidade própria. Iamamoto (2007) chama a atenção para que os assistentes sociais sejam
contemporâneos de seu tempo. Segundo Agamben (2009, p. 71), “supõe trazer às luzes do tempo presente
aquilo que se esconde, mas que existe”. Para isso, é necessário romper com o conformismo para avançar.

O tempo contemporâneo é fecundo para o surgimento de questões que até então viviam nas sombras,
mas que sempre existiram e que, agora, pulsam e reivindicam reconhecimento e atenção. Os movimentos
sociais ganham um novo cariz, se afinam com causas identitárias, cujo protagonismo de gênero é expressi-

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vo merecendo destaque o movimento de mulheres e o de pessoas LGBTQIAP+.

As pautas reivindicativas e as demandas dessas camadas da população impõem aos assistentes sociais
a ruptura com o conservadorismo e o estreitamento com o seu projeto profissional, primeiro, reconhecendo
a legitimidade das novas pautas políticas, depois, contribuindo para a profusão de conhecimentos e, com
isso, a visibilidade dessas pessoas e, por fim, articulando estratégias no campo da efetivação dos direitos
humanos e sociais.

Mesquita e Monteiro (2015) chamam a atenção para o fato de que o Projeto Ético-Político do Serviço
Social não pode comprometer-se com o projeto de cidadania liberal instituída nos moldes burgueses, uma
vez que este modelo é excludente do segmento majoritário da população que não se molda ao arquétipo
viril. O arquétipo viril é a alegoria do modelo de inclusão social personalizado no indivíduo do sexo mascu-
lino, branco, jovem e heterossexual. Dessa forma,

O patriarcado dissemina esta visão androcêntrica que produz e é produzida a


partir de uma perspectiva desse modelo viril, valorizando tudo que está rela-
cionado a este homem e o transforma em protagonista principal e exclusivo
da história, da política e das relações sociais. Ele aciona um conjunto de valo-
res que formam este homem viril e o transformam em perfeito, ideal. São eles:
a natureza, o hábito (construções sociais e educacionais) e a razão. Separa
o espaço público – supervalorizando-o – do espaço privado, qualificando-o
como espaço da reprodução, o que reduz a participação das mulheres na so-
ciedade ao âmbito puramente biológico, da natureza, deixando-as à margem
da história, da cultura da política. [...] (MESQUISA, MONTEIRO, 2015, p. 123-
124).

É importante entender que no âmbito dos projetos societários os conflitos não são apenas de classe
social, mas envolvem os gêneros, não apenas no binômio homem-mulher expandindo-se no cerne das as-
simetrias que envolvem raça/etnia, diversidade sexual, geração. Dessa forma, as lutas protagonizadas pelo
Projeto Ético-Político do Serviço Social contra o machismo, contra a dominação, a opressão e a exploração
são lutas anticapitalistas, antissexistas e antirracistas. É em favor dos direitos restritos dos cidadãos de
segunda categoria, como mulheres, homens, pessoas LGBTQIAP+ negros, pardos, indígenas e de orienta-
ção sexual diferente da heteronormatividade.

O primeiro passo para o comprometimento com os direitos sociais nessa perspectiva é a desnatura-
lização das estruturas de poder. Nesse sentido, a primeira atividade prática do projeto de extensão “Ho-
mens e sexualidade: o revés do aprendizado” consistiu na realização de uma peça teatral que encenasse
o aprendizado da masculinidade patriarcal, os conflitos em razão de sua desumanização e as alternativas
de ressignificação. O cerne da encenação consistiu no conflito de um homem jovem que era pressionado
pela família e pelo círculo social para testificar a sua masculinidade nos cânones da virilidade, o que lhe
desencadeava conflitos internos que violavam a sua integridade emocional, uma vez que colocava em risco
o seu relacionamento afetivo.

A trama mostrou o quanto o homem é pressionado socialmente para se enquadrar nos cânones da
masculinidade patriarcal, uma vez que não basta nascer com o sexo masculino, é necessário provar que é
merecedor do falo (PONCE DE LEÃO, 2018). Para isso, a masculinidade é constantemente submetida a pro-
vas que violam a integridade física (porque exige comportamentos de risco) e emocional (contra a vontade
própria) do homem ao passo que tenta desumanizá-lo.

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O desfecho da trama encenada culminou com a dissolução do vínculo afetivo do homem levando-lhe ao
sofrimento, ao questionamento da pressão social que sofreu e da ressignificação de sua vida a partir da
ruptura com relações sociais não-saudáveis.

Embora o protagonismo tenha sido projetado sobre os homens que encenaram a peça, as mulheres tam-
bém merecem destaque à luz dos avanços dos movimentos feministas. No primeiro momento da trama, a
testificação da masculinidade patriarcal imposta sobre o filho não se dá somente pela pressão por parte do
pai, mas, é, também, reiterada pela mãe que endossa o posicionamento machista. As mulheres da geração
dos anos 1950 tiveram o aprendizado conformado nos cânones do patriarcado, por isso, naturalizaram o
entendimento de que homens deveriam ter comportamento libertino para testificar a masculinidade por
meio de provas da virilidade. Sem o acesso a uma educação questionadora, elas reproduziam o sistema de
dominação masculina.

Por outro lado, as mulheres do tempo contemporâneo demonstram outro entendimento desnaturalizan-
do o machismo, como vimos na segunda parte da peça em que a companheira do protagonista decide rom-
per o relacionamento mesmo após a confissão do rapaz e o pedido de perdão dele. A peça não seguiu um
roteiro fabricado, ela foi desenhada a partir do amadurecimento do tema pelos alunos. As aulas rejeitaram a
possibilidade de perdão e continuidade do relacionamento optando pelo posicionamento de a companheira
perdoar e prosseguir a vida buscando investir em si na perspectiva do empoderamento feminino por meio
dos estudos e da inserção no mercado de trabalho. A cena encerra com o encontro dela com um novo amor.

A investidura da mulher em si, na busca de oportunidades de emancipação por meio da educação e da


inserção no mercado de trabalho representa um avanço a partir dos movimentos sociais. De acordo com
Giddens (1993), as mudanças produzidas no campo da sexualidade contemporânea transformaram a ideia
de amor romântico em um vínculo que se perdura somente enquanto os indivíduos lograrem de satisfação
na troca conjugal.

A segunda atividade prática do projeto de extensão consistiu na produção de uma performance muda a
partir da canção “Masculinidade”, de Tiago Iorc. A cada estrofe da música, um grupo de alunos encenava o
sofrimento dos homens por meio da expressão corporal. Um jogo de movimentos envolvendo expressões
faciais, mãos na cabeça em sinal de desespero, posição fetal eram acionadas para demonstrar o descon-
forto, a dor e o sofrimento que a letra da canção exprimia. Ao final, a masculinidade redimida representou
uma cena de liberdade de homens e mulheres das prisões aprendidas do patriarcado e a possibilidade de
construção de relações saudáveis a partir de um olhar mais humanizado para si e para o outro.

Inicialmente, as/os alunos ficaram tímidas/os na encenação das estrofes. A timidez não foi apenas uma
questão de inibição pessoal, mas de desconforto pessoal pelo confronto que a música produz. Retomamos
o processo de formação em várias idas e vindas deixando-os à vontade para ouvir a música, senti-la em
sua produção de sofrimento para que houvesse a identificação e o senso de deslocamento. Com isso, eles
permitiriam que os conflitos internos fossem extravasados, as feridas expostas, a consciência de si como
aceno para a busca de acolhimento. O acolhimento permite a volta da humanização, da autorização de
poder sentir medo, fraqueza, de poder ser simplesmente humano sem ser desqualificado. Esse senso de
identificação nos permitiu lograr êxito na produção técnica.

A masculinidade patriarcal não é só violenta, é auto-violentadora porque é desumanizada. Quem agride,


quem mata, quem estupra o outro foi, antes, vilipendiado de sua própria humanidade, foi expropriado de si.
Não é apenas a vítima que sofre, mas que agrediu também porque o comportamento foi aprendido e positi-

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vado como testificador da masculinidade. A todo o momento os homens precisam dar provas aos outros de
que são homens. Ser homem é necessariamente não ser mulher, ou seja, é ser destemido, um super-heroi,
não humano.

O encerramento desta extensão levou à reflexão da necessidade de expansão desse debate primor-
dialmente nas células-mater da sociedade, a família, a escola, a igreja. A sensação do encerramento foi
de desconforto, da vontade de furar a bolha da academia que privilegia esses debates para democratizar
esse aprendizado para toda a sociedade. A desconstrução do modelo vigente de masculinidade não é uma
necessidade que se impele somente aos homens, mas a todos os gêneros em razão do tronco da nossa
formação sócio-histórica.

As/Os futuros assistentes sociais encerraram esta extensão reafirmando o comprometimento ético-
-político de se empenhar na eliminação das estruturas de opressão/exploração de gênero entendendo
que, para isso, precisam romper com o conservadorismo saindo da caixinha do conhecimento disciplinar
e legitimando o reconhecimento das pautas políticas que se inscrevem no solo movediço do tempo con-
temporâneo.

4| CONSIDERAÇÕES FINAIS
A temática de Gênero vem sendo incorporada de forma recente no Serviço Social. As demandas de vio-
lação de direitos das mulheres que chegam nos serviços socioassistenciais bem como as pautas políticas
de gênero que insurgem nos movimentos sociais se colocam na ordem do dia exigindo dos assistentes
sociais o comprometimento ético-político de dar visibilidade ao conhecimento sobre as questões relativas
ao gênero e na construção de estratégias de enfrentamento no campo dos direitos humanos e sociais.

As masculinidades se põem como parte dos debates nos estudos feministas, mas ganham pouca ex-
pressividade no âmbito do Serviço Social embora as/os profissionais recebam várias configurações de de-
mandas de homens às quais inscrevem-se no plano do invisível, do sincrético e que pulsam para vir à luz.

Os homens ainda são vistos como algozes e às mulheres são dedicadas a integralidade da proteção as-
sistencial. Ainda que a punição represente um avanço no campo dos direitos das mulheres, ela não é uma
medida suficiente para a reabilitação dos homens e a superação do machismo. Envidam-se esforços na
promoção do empoderamento feminino e deixa-se sob a responsabilidade do direito penal a justiça sobre
os homens. Sem um trabalho de reflexão, desconstrução e ressignificação, as práticas sociais são reitera-
das em conformidade ao sistema dominante de opressão/exploração de gênero.

Ser assistente social requer coragem para enfrentar os desafios dos novos tempos, já assevera Iama-
moto (2007). Coragem, sobretudo, para descortinar o que está escondido, explorá-lo e enfrentá-lo. O con-
servadorismo no Serviço Social ainda é um ranço que está em transitividade de superação. Uma das vias
para a superação é por meio do pluralismo assegurado no projeto ético-político da profissão. Os meandros
da vida são tecidos sob múltiplos processos que requerem olhar ampliado para fora das certezas. Os estu-
dos de gênero se inscrevem no campo das transgressões exigindo dos assistentes sociais olhar sensível,
coragem e comprometimento ético-político.

A formação profissional, embora generalista, precisa elevar os estudos de gênero a uma perspectiva

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transversal em todas as disciplinas e não apenas tratar a temática de gênero como uma disciplina asses-
sória e facultativa no curso. Para além do ensino, a temática de gênero precisa ser incorporada na pesquisa
e nos projetos de extensão. A extensão universitária oportuniza aos futuros assistentes sociais não apenas
a reflexão sobre a temática nas reuniões de formação, mas lança os discentes a pensarem teleologicamen-
te estratégias de enfrentamento aos problemas produzidos no âmbito dos conflitos das relações de gênero.

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CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES

As/Os discentes M.Y.D.S.M., K.B.F., C.S.P., E.D.S.A.F., A.T.M.M., B.M.C.R., I.M.D.S., I.B.D.S. e K.V.B. contribuí-
ram de forma significativa para o desenvolvimento das ações de extensão desde o planejamento, execução
e monitoramento e avaliação dos resultados. As/Os autores concordam com o conteúdo do que foi exposto
neste trabalho assumindo a responsabilidade pelas análises que foram expostas.

AGRADECIMENTOS

O desenvolvimento das ações da extensão que serviu para a construção desse trabalho contou com o
apoio da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Amazonas (PROEXT/UFAM) e do Instituto de
Ciências Sociais, Educação e Zootecnia da Universidade Federal do Amazonas (ICSEZ/UFAM).

Recebido em: 16/07/22 Aceito em: 09/01/23

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