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JOÃO PESSOA
2023
Introdução
Toda pesquisa científica, aqui com ênfase nas ciências humanas, possui um
porquê, um interesse, uma lógica e um fim, intrínsecos a sua escrita e principalmente, de
seu escritor. Há reiterado esforço de adornar o objeto em suposta neutralidade política e
social, como se algo da relevância de determinada intervenção na realidade, tal qual
uma pesquisa, pudesse estar à parte das problemáticas gerais da sociedade. Essa objeção
intenta dar maior relevância a sua construção, colocando-se acima das contestações e
divergências, obliterando possíveis questionamentos basilares e mirando na
universalização dos interesses de quem produz. Partimos desse apontamento e
pressuposto para melhor desenvolver o que nos move, pois toda análise e narrativa
histórica requer determinada base historiográfica, sendo essa a teoria da história, da qual
o plano político é o guia e força motriz, bem como não apenas subjaz, mas condiciona
toda a visão e o ofício do historiador.
A escrita em si ou o ofício do historiador, como aqui citada e já muito debatida
por diversos autores e âmbitos historiográficos e das humanidades, apesar de crítica
fundamental e quase um ponto comum, é por vezes esquecida de modo contumaz, ou
não observada tão atentamente. Compreender essa questão é fundamental para a crítica
e análise aqui elaborada, não apenas como dado básico e elementar da pesquisa, mas
como mote do trabalhado ensejado, visto ser o rigor teórico-metodológico parte
indispensável da fundamentação (AROSTEGUI, 2006).
Tentar enquadrar um objeto histórico em uma escala de análise, quando está não
diretamente situada em algum dos polos é algo um pouco difícil, mas pela importância
dos avanços da micro-análise e a correlação de autores dessa seara com autores daqui,
destacamos algumas questões relevantes.
Carlo Ginzburg, em ‘O queijo e os vermes’, expôs o como um caso
aparentemente fora da curva ou excepcional, em termos documentais, como do moleiro
Menochio, era capaz de elucidar todo um período histórico, no caso da inquisição na
Itália. Isso só é possível pelo amplo domínio do tema, bem como da sua historiografia.
Ao trazer um enfoque tão aprofundado, foi capaz de lançar novas questões e percepções
ao debate da produção historiográfica. Sua formação intelectual tem boas bases em
Gramsci, e por isso trazemos essa correlação. Situar nosso objeto numa premente macro
história ou algo que a abranja, é um referencial válido, por conter elementos da
geopolítica internacional e nacional, até o âmbito regional, e daí também em retorno,
por todos os seus efeitos. Ter consciência desse processo, para enfocar a ação dos de
cima, nos ajuda a elaborar melhor sobre questões atinentes, das quais analisemos.
As classes dominantes, aqui concebidas na ótica Gramsciana, enquanto grupos
políticos em disputa pelo estado visando a hegemonização de seus interesses -
configurando partidos, sejam eles formais ou não - mesmo na condição de dominantes,
possuem diversas contendas em seu interior, bem como acordos e divergências, algo
dado em qualquer âmbito e configuração da política, em especial na da sociedade de
classes aqui compreendida. Não se trata de aplicar mecanicamente um ‘pressuposto de
esquema’ construído pelo marxista sardo, por ter ele tratado principalmente do papel
dos intelectuais na formação do ideário de determinada classe ou grupo, mas de elucidar
a questão aqui presente, através do ferramental concedido por esses escritos, ainda que
no período de unificação italiana.
Em meio a tais disputas e questões, as classes dominantes regionais do Nordeste,
aqui em especial o referente ao açucareiro, no conjunto das relações de força, elencamos
sua correlação com as do centro do país, se tratando principalmente de São Paulo, por
estar o oeste paulista em forte expansão canavieira no período supracitado, e na
atualidade ser o maior produtor nacional de cana-de-açúcar (FURTADO, 1981). Se entre
as classes há a distinção entre grupos hegemônicos e subalternos, dominantes e
dominados, é cabível a colocação de ‘subalternidade consentida’ das classes dominantes
do Nordeste para com as do centro do país, e essas por sua vez, embora dominantes no
Brasil, se colocam como subalternas das classes dos países ditos desenvolvidos e
colonizadores, em especial no quadro do imperialismo ocidental, onde imperam os
Estados Unidos da América e os países centrais do capitalismo europeu.
Vale destacar o papel de alinhamento e concomitância de interesses dessas
classes, para manter o quadro de produção e divisão econômica, onde o Brasil se insere
como exportador de riquezas agrícolas e minerais, e o Nordeste canavieiro se insere ao
fornecer a produção e os derivados da cana-de-açúcar. Essa configuração é fundamental
para compreendermos os interesses correlacionados e inerentes a toda questão aqui
abordada.
Se aqui prevalecem os grupos, não apenas os indivíduos, é por uma escolha
consciente de escrita, tanto em termos teóricos quanto metodológicos. A possibilidade
de analisar o período em uma fonte documental primária, com a dos jornais, nos permite
essa avaliação mais direcionada, pelo enfoque no âmbito macro do estado.
Há hoje um sério debate e até retomada das elaborações sobre a verdade, o que é
em si, quais seus sentidos e construções. Algo aparentemente simplório e até obvio,
como deveria ser, conquanto desde nossos primórdios seja algo crucial para o convívio
em sociedade e mesmo manutenção da vida humana, em prol da razão, vem sendo
fortemente combalida, considerando o momento histórico do qual estamos inseridos, de
um avanço da extrema direita e mobilização negacionista de forças fascistas através da
mentira, em larga escala, por meio das ‘fake news’, fomentando na história um novo e
piorado revisionismo por outros meios, da relativização e enquadro de interesses em
prol do senso comum e da dominação pela ordem.
Se há uma verdade única e inquebrantável é difícil afirmar, mas podemos
deliberar que tal verdade visa servir a alguém, e depende prioritariamente das perguntas
feitas em sua elaboração para se alcançar um consenso voltado a fins positivos e
contrapostos aos do negacionismo, guiado também por valores contrários dos que
mobilizam essa ferramenta. Não nos cabe adentrar em debates iluministas ou filosóficos
acerca do tema, nem mesmo recair em relativizações ou utilitarismos sobre o que pode
ser tal verdade, muito embora tudo isso seja concernente. Nos cabe aqui,
compreendendo sua incumbência para o trabalho e as questões que pretendemos
abarcar, dar um melhor direcionamento, meio e forma do qual buscamos aclarar nessa
pesquisa.
A busca por essa verdade e quais elementos a engendram, é vista para além da
formalizada pela ideologia da ordem, pela formulação da qual estamos construindo, e
seus indícios estão presentes nas fontes históricas, sendo parte fundamental dos
caminhos trilhados e lugares aos quais nos direcionamos. Permitida uma breve
referência visual, estamos ilhados e precisamos construir a ponte para chegar a algum
lugar no horizonte, e para isso precisamos definir e direção e o material dessa ponte. No
entanto, só conseguimos a bussola, algum mapa e material rodando não só pela ilha,
mas como pelo próprio mar. Caminhar, nadar e remar é preciso. As vezes contra a maré
e em outras crendo num horizonte distante. Avaliemos então o que permeia aqui esse
caminho.
A dominação política e de classe sobre o estado, como elucidado por Gramsci e
elencado por Glucksman, não se dá apenas e tão somente pela força, mesmo em um
período ditatorial onde os mandatários impunham seus anseios com mínimo pudor. Para
performar o consenso, atingindo a ordem preconizada, é preciso observar atentamente o
os aparelhos de estado, como as instituições, e os aparelhos privados de hegemonia,
como a mídia, onde os intelectuais orgânicos, concebidos na função de organizadores de
classe, exercem protagonismo para o convencimento e coesão ideológica. A mediação
entre os interesses hegemônicos e o consenso ante os subalternos é dado através e
principalmente dos noticiários de mídia, em especial os de maior circulação a época,
nesse caso, dos jornais.
No período aqui abordado, é marcante a restrição da liberdade política e de
imprensa, dificultando em muito o acesso a informações e análises destoantes das
governamentais, nas quais se formulariam os interesses dos grupos dominados, e
embora ainda existissem, tinham limitada veiculação e circulação. Os jornais ligados
aos grupos dominantes, tem correlação e função direta a ordem estabelecida, buscando
conformar o restante da sociedade, publicizando esses interesses como universais
(BUCI-GLUCKSMANN, 1980). Um dito popular capaz de exprimir isso é o de que
‘uma mentira contada mil vezes torna-se realidade’. Embora os interesses sejam
incompatíveis e inconciliáveis, a força de sua repetição no cotidiano leva a aceitação e,
portanto, algum consenso (ALIAGA, DA SILVA, 2017). Quando falamos dos
intelectuais, poderíamos também destacar os responsáveis por esses jornais, mas aí
tenderíamos a um trabalho bibliográfico, o qual não nos compete.
As mídias desses jornais estão diretamente ligadas as matrizes agrárias e estatais
e eram um meio de interação também para os grupos hegemônicos, sendo possível
filtrar os interesses na forma como as informações eram veiculadas, na quantidade de
vezes conforme os temas aparecem e em como são apresentados, inclusive nos artigos
de opinião, em que raramente eram expostos de modo direto e simples, mas
evidentemente arranjados nas ‘entre linhas’, de forma velada para apresentar seus reais
intentos, quando se direcionavam não aos leitores mais comuns e desavisados dos
jornais, mas aos pares dos articulistas e também possíveis interessados. Nesse meio é
possível vislumbrar as determinações e disputas em seu interior.
A verdade aqui descrita, imiscuída da totalidade de interesses em um debate
democrático, sem confrontações, já a época teve determinados fins. Nos cabe nesse
trabalho não apenas expor isso e seus desígnios, mas também quais outras
possibilidades eram viáveis e foram diretamente ignoradas ou sabotadas, permitindo
visualizar um horizonte de resolução e contemplação de interesses muito distintos.
Considerações finais
Nesse breve esboço, apontei quais principais pressupostos teóricos estão nos
balizando, do campo teórico, em quais equívocos pretendemos evitar e do como melhor
produzir essa pesquisa por meio da própria teoria, tendo-a como uma aliada e
ferramenta necessária, por todo acúmulo da qual nos pode sedimentar. Se é ainda um
breve esboço a ser (e deverá ser), amplamente melhorada, já nos traz pontos
fundamentais a serem observados.
ALIAGA, Luciana, DA SILVA, Andressa. “Opinião Pública, Hegemonia E Cultura
Nos cadernos Do Cárcere de A. Gramsci.” 2017,
www.revistasisifo.com/2017/05/opiniao-publica-hegemonia-e-cultura-nos.html. Acesso
em 30 agosto. 2023.
FURTADO, Celso. O Brasil pós milagre. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
KUCINSKI, Bernardo. O fim da ditadura militar. São Paulo: Contexto, 2001.