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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES


CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA

RENAN PROBST VAZ

TEORIA DA HISTÓRIA – HISTÓRIA E REGIONALIDADES


PRESSUPOSTOS TEÓRICOS – A CONFORMAÇÃO DO PROALCOOL NA
MÍDIA IMPRESSA DOS ESTADOS CANAVIEIROS, 1973-1975

JOÃO PESSOA
2023
Introdução

O presente ensaio tem por objetivo elencar, expor e fundamentar os princípios


teóricos a guiarem a posterior pesquisa, valendo-se de aspectos apresentados e debatidos
na disciplina, em conjunto com pontos capitais da análise a ser construída na
dissertação. Desenvolver detida e claramente os pressupostos teóricos e, portanto,
ideológicos, da análise histórica é essencial para a robustez do trabalho em si, além de
facilitar os pontos de diálogo e intervenção para com o leitor-receptor, objetivo final de
toda produção textual. Aqui, buscaremos enfocar esses pressupostos, desde sua
elaboração até sua correlação para com nossa pesquisa final.

Construção teórica, o fundamento da pesquisa

Toda pesquisa científica, aqui com ênfase nas ciências humanas, possui um
porquê, um interesse, uma lógica e um fim, intrínsecos a sua escrita e principalmente, de
seu escritor. Há reiterado esforço de adornar o objeto em suposta neutralidade política e
social, como se algo da relevância de determinada intervenção na realidade, tal qual
uma pesquisa, pudesse estar à parte das problemáticas gerais da sociedade. Essa objeção
intenta dar maior relevância a sua construção, colocando-se acima das contestações e
divergências, obliterando possíveis questionamentos basilares e mirando na
universalização dos interesses de quem produz. Partimos desse apontamento e
pressuposto para melhor desenvolver o que nos move, pois toda análise e narrativa
histórica requer determinada base historiográfica, sendo essa a teoria da história, da qual
o plano político é o guia e força motriz, bem como não apenas subjaz, mas condiciona
toda a visão e o ofício do historiador.
A escrita em si ou o ofício do historiador, como aqui citada e já muito debatida
por diversos autores e âmbitos historiográficos e das humanidades, apesar de crítica
fundamental e quase um ponto comum, é por vezes esquecida de modo contumaz, ou
não observada tão atentamente. Compreender essa questão é fundamental para a crítica
e análise aqui elaborada, não apenas como dado básico e elementar da pesquisa, mas
como mote do trabalhado ensejado, visto ser o rigor teórico-metodológico parte
indispensável da fundamentação (AROSTEGUI, 2006).

Mas então, a teoria pode, ou deve enquadrar o processo histórico em análise?


Compreender o papel da ideologia no exercício daquele que escreve, e
principalmente na concepção elaborada no âmbito do Marxismo, nos permite conceber a
visão teórica de modo muito mais evidente e efetivo. Também possibilita fundamentar o
processo de forma mais concisa e menos enquadrada, pois incumbe estar atento a tal
desígnio e assim evitar tentar encaixar o processo em análise de modo forçoso de modo
a apagar ou silenciar sobre elementos incontornáveis e/ou escolhendo apenas os que
melhor se encaixam, pois dessa forma muito se deve perder, comprometendo a
fidedignidade e possibilidades da pesquisa em curso.
Tratando do campo ao qual nos cabe, dentro do Marxismo, é hoje devidamente
reconhecido e compreendido como diversos temas e questões históricas em diferentes
momentos do século XIX passaram por esse processo de enquadro teórico. A prática não
se restringe unicamente a nosso campo, mas nos faz ter maior clareza dos objetivos
finais, pois isso servia e muitas vezes ainda serve para que as prováveis conclusões
atendam aos fins políticos ensejados, distanciando de explanações mais coerentes e
honestas, dotadas de referenciais elaborados de modo mais condizente. Ter ciência disso
nos capacita a expor ao leitor quais nossos componentes e condicionantes, sem perder
de vista pontos capazes de ser mais bem abarcados por elaborações teóricas de outras
searas. Cabe aqui apontar, não há uma restrição de temas em prol do campo teórico, ou
algo do qual não se possa dar contribuições com base no método histórico-dialético do
marxismo, mas tendo ciência dos objetivos finais, buscar outros referenciais,
ferramentas e autores próximos, ou ao menos em diálogo, para assim se resguardar de
forjas ortodoxas e engessadas.
Sobre isso, concerne citar o processo histórico da revolução russa e da união
soviética, como engendrador dessa transversão mecanicista. O método, entendido aqui
como fundamento teórico, elaborado por Marx & Engels, com contribuições
fundamentais de diversos teóricos marxistas e revolucionários, sofreu um processo de
mecanização ao longo das décadas pós-revolução de 1917, por diversos fatores. A
tomada do estado pelos bolcheviques, partido de vanguarda visando sua destruição,
sofreu diversos revezes pela dificuldade de se colocar tal objetivo a pleno diante da
realidade material encontrada em um país fortemente agrário e ainda economicamente
pouco desenvolvido. Muitos dos ideais de pôr fim ao estado, a família e a propriedade
privada dos meios de produção, com coletivização de diversos meios, gerou problemas
ainda maiores de serem contornados, suscitando diversas reflexões e readequações.
Também vale salientar a pressão externa e sabotagens internas para derrubar a
revolução, fomentando um ‘comunismo de guerra’, onde a questão militar e de
soberania nacional acabou tomando proporções penosas e dificultando as ações
preconizadas.
Dentre os principais problemas encontrados, a necessidade de desenvolvimento
das forças produtivas e industrialização foram os mais significativos. Muitos teóricos
tratavam a contradição de riqueza, entre o que era produzido pelo trabalho e os
trabalhadores, no quanto tinham em retorno via salário e condição de vida, como um
dos elementos, senão o principal a elevar a consciência de classe e a organização
proletária contra essa ordem, e ansiavam pela revolução primeiro nos países ‘já
desenvolvidos’ econômica e industrialmente. O fato de precisar ceder em muitos dos
objetivos e desenvolver essas forças, já com o estado tomado, levou a uma nova visão
do ideal revolucionário quando no poder. Assim se consolidou a ideia da ‘revolução por
etapas’, também cunhada de etapismo, onde se buscava também ‘evoluir’ a condição
política do país através da melhora das condições produtivas (GOLDMANN, 2014).
Esse ideário servia diretamente a URSS e seus interesses na relação com os países da
periferia do capitalismo, e a sua transposição teórica, da realidade russa para a dos
diferentes países e locais, fomentava visões políticas mecanicistas no âmbito do
marxismo, sendo uma distorção tanto para o método quanto para a realidade das lutas
sociais e populares nos demais países periféricos, como no caso do Brasil (CHILCOTE,
1982).
Esse mecanicismo etapista consolidou um engessamento teórico muito difícil de
ser superado, algo só alcançado em vias da década de 1980 e da queda do muro de
Berlin, levando até a uma redução do marxismo e consequente desprezo pelo método e
campo desde então, por ser apontado e afirmada, quando em contrariedade, por outros
campos em disputa - dentre eles o do pós-modernismo - da sua incapacidade de abarcar
e tratar das diferentes questões sociais e científicas. Dos problemas mais notáveis no
marxismo em meio aos fundamentos do etapismo está o determinismo econômico, onde
a materialidade seria reduzida a essa esfera, e embora ela seja parte fundamental do
todo, restringir tudo a economia é um erro crasso e mal do próprio liberalismo, do qual
Marx e Engels tem como crítica central, e Lênin e Gramsci seguem com a linha da
mesma crítica.
Explanados os problemas e principalmente desvirtuamentos teóricos dos quais
visamos ter em propriedade e nos mantermos em alerta, seguimos para uma exposição
do objeto e das questões teóricas adjuntas.

Materialidade histórica e método, o caso aqui circunscrito

Enquanto situamos os principais problemas de desvirtuamento teórico em sua


historicidade, cabe um breve adendo sobre o método em si, pois uma elaboração mais
aprofundada escaparia do espaço aqui pretendido e o debate já é devidamente
consolidado, bem como suas críticas, muito embora ainda haja resquícios e traços em
boa parte do campo dos teóricos marxistas. Aqui, cabe destacar a importância da
materialidade, enquanto centro, primazia de fundamento, compreensão e influência no
mundo, com base no real e concreto, frente as percepções humanas unicamente, bem
como do idealismo filosófico, que concebe o mundo a partir do ideal ou das ideias
primariamente. É importante compreender isso pois o método consiste em mudar a
materialidade, para além de entendê-la. Em conjunto, o peso da historicidade herdada de
tempos anteriores, como elemento incontornável da materialidade, em conjunto a
dialética, da tese, antítese e síntese.
Além desse esboço brevíssimo, ressalta-se a totalidade, sendo as diferentes
questões humanas, materiais e científicas, como apenas partes, por estarem interligadas
em uma completude indivisível, dotada de grande complexidade. Analisemos então o
como o processo aqui em pesquisa está correlacionado a todas essas questões, passando
também a destacar a chave de análise do referencial em Gramsci.
A dominação do estado por um grupo, conforme seu lugar de produção, com
determinante caráter de classe, é exposta pelo momento e modo autoritário em que é
empregada, durante a ditadura militar no Brasil de 1964-1985. Sob o contexto do
choque do petróleo de 1973 e concomitante fim do ‘milagre econômico’ brasileiro, uma
grave crise se abate na economia nacional (TEIXEIRA, 2015), por consequência do
contexto geopolítico internacional, onde combustíveis derivados de petróleo eram a
base do fomento produtivo a nível global (HOBSBAWM, 1995). Com a dependência da
matéria, a quadruplicação dos preços pela OPEP leva a possível escassez de
combustíveis, com aumento significativo da inflação e consequente piora do custo de
vida, minando o prestígio e o consenso acerca do regime vigente, onde novas fontes
energéticas passam a ser foco do debate nacional (KUCINSKI, 2001).
O Programa Nacional do Álcool (Proálcool) foi a saída implementada a partir de
1975, com a questão energética tomando as manchetes e sendo um dos temas principais
e mais recorrentes nas páginas dos jornais desde 1973. Para além do problema real,
buscava-se também a construção de um ideário em torno da solução, enquanto interesse
geral e totalizante para a sociedade brasileira (CINTRA, 2010), muito embora não fosse
a saída mais efetiva para o problema. A perspectiva de Gramsci sobre hegemonia,
mesmo escrito muito anteriormente, ainda no começo do século XX, nos permite
compreender melhor as destinações da questão em disputa, observando o como o
objetivo real do Proálcool foi muito mais atender os interesses dos grupos latifundiários,
usineiros e canavieiros enquanto grupos dominantes e fiadores do período ditatorial, em
detrimento de interesses mais viáveis e próprios às classes subordinadas.
A imponência de um projeto como o Programa Nacional do Álcool, visando
suprir, somar e melhorar as possibilidades energéticas do país, geraria efeitos diversos
para diferentes estratos e classes da sociedade, os quais devemos analisar, visando a
dominação de estado em meio a uma crise nevrálgica para a sociedade brasileira.
Interesses esses frontalmente conflitantes e inconciliáveis para as classes em oposição,
pois embora a questão tingisse a todos e fosse aspecto de um problema de ordem
generalizada, ter uma solução única significava impactos incondizentes para os
principais grupos envolvidos. Para as classes dominantes, canavieiras e usineiras, a
possibilidade de ganho direto e expansão produtiva. Para as classes médias e
dependentes de veículos automotores, uma alternativa de combustível. Já para as classes
subalternas e dominadas (a qual grande parte das camadas médias estão inseridas), dos
mais pobres, principalmente os camponeses, significou a expulsão de suas terras e
exclusão de boa parte de sua subsistência, com encarecimento geral de víveres e
alimentos básicos, devido ao avanço da cana-de-açúcar sobre terras antes voltadas para
produções de alimentos da agricultura familiar, sobretudo de tubérculos, frutas, legumes
e grãos em menor escala. Como se pode perceber, algo potencialmente positivo para
alguns poucos, a serem fortemente beneficiados, era em consequência tremendamente
penoso para muitos.
Tal quadro se dá, para além do processo de pesquisa por novas fontes energéticas
aqui enfocado, no que concerne aos efeitos no campo posteriores a implementação do
Proálcool em 1975 e principalmente por ele agudizados, por ser algo já notável e
bastante grave nas décadas anteriores do período em questão (1973-1975). Trata-se da
questão agrária e do trabalho para a produção de cana-de-açúcar, com todas suas
imanências e estruturas relativas. O aprofundamento do uso das terras para a cana-de-
açúcar, não era apenas uma solução econômica para um problema produtivo, mas
também um meio político das classes dominantes e hegemônicas no campo para conter
a mobilização dos camponeses contra essa ordem, vide as movimentações pré golpe de
1964, a culminarem nas ligas camponesas. Alijar os trabalhadores camponeses da
atuação nessas e dessas terras significava manter o quadro de dominação agrária através
e por conta do latifúndio, assim ‘resolvendo’ um ‘problema’ para as classes dominantes
e hegemônicas, usineiras e canavieiras.
No centro da abordagem avaliamos os estados de maior produção canavieira,
bem como suas interrelações, entre São Paulo, Pernambuco, Alagoas e Paraíba, estando
fortemente inseridas na busca por novas fontes energéticas, culminando no de álcool
etanol para combustível automotor, sendo assim política nacional e de estado, em
comutação com interesses regionais. Trataremos mais à frente dos meios empregados,
como dos jornais condizentes a cada estado e outros documentos, mas explicitando o
conceito de hegemonia, no exercício do convencimento através da universalização de
interesses particulares para maior parcela da população afetada.

Da estrutura, no latifúndio e na preconizada ‘semifeudalidade’

Em termos marxistas, a estrutura é a base produtiva, os meios de produção em si,


e a superestrutura são as relações dadas para além do imediato material, a sustentar a
exploração, alienação e manutenção dessa ordem de dominação. Um dos maiores erros
gerados pelo etapismo na transposição mecânica, ocorreu na análise da realidade do
campo brasileiro ao longo do século, na questão agrária e do latifúndio, algo a inferir
diretamente nas construções e lutas políticas, políticas em todo período. A realidade
ainda hoje não é distante, mas conceber esse erro permitiu uma nova forma de avaliação
dos meios empregados. Quanto ao que nos cabe, avaliemos as similaridades e
problemas nessa fundamentação.
É fundamental partirmos do mais básico e elementar, pela centralidade da
questão. Sobre as bases do campo, a forma do latifúndio é uma das bases condicionantes
mais imponentes, de grande parte das raízes sociais e estruturais mais fundamentais
desde seus primórdios. O setor canavieiro, nosso maior interesse, é um dos mais antigos
e mote da colonização, e que por toda dinâmica própria, manteve práticas arraigadas de
sua formação, resguardando elementos dos mais retrógrados nas relações de trabalho, se
estendendo e abarcando questões culturais, da qual afere a infraestrutura. As mudanças
do status e organização do sistema político, no centro e fora do país, foram incapazes de
afetar essa ordem ou de reformar essas relações, tendo ação direta dessas classes
dominantes regionais, prioritariamente do campo, visando a manutenção e perpetuação
dessa ordem, com no máximo modernizações conservadoras.
A dependência do trabalhador camponês ao dono das terras onde trabalha é uma
das maiores marcas desse processo, pois raramente possui pagamento na forma de
salário, mora com sua família em casa situada nos apêndices das fazendas produtoras, e
é tratado como um favor por parte do proprietário, que em troca lhe exige total
fidelidade e dedicação prioritária. As formas de vínculo ao trabalho variam e tem
diferentes denominações, mas em geral o camponês trabalha determinados dias da
semana ou da colheita nas terras do proprietário e nos demais em uma pequena
produção própria de forma a suplementar e até garantir sua subsistência familiar.
Tal configuração se dá em boa medida por precisar seguir e se adequar aos
distintos períodos da agricultura, alguns com trabalho mais intenso e frequente e outros
mais moderados e espaçados por depender da lavoura e das questões ambientais, de
muita incerteza e imprevisibilidade, o que dificulta o planejamento e a administração
devida da mão de obra. Por si, isso não implica impossibilidade de trabalho por contrato
ou dia de serviço, mas para além do lucro e melhor rendimento agrário, o sistema visa
também a manutenção da dominação, com disputas militares e coronelistas de diferentes
famílias por terras, conflagrando elementos para além das relações já tensas entre
capital e trabalho.
Essa configuração expõe possível servidão, e por ser algo bastante característico
do feudalismo europeu, foi assim compreendido por muito tempo, como de um sistema
semifeudal, visando uma ‘evolução’ para o sistema capitalista onde esse não havia ainda
sido desenvolvido, do qual possibilitaria relações mais modernas e justas no campo.
Essa análise perdurou por décadas e orientou as estratégias políticas nacionais, mas era
algo bastante equivocado, pois partia de uma concepção idealizada e limitada tanto do
capitalismo, por um lado como do campo, por outro (MARTINS, 1984).
Teoricamente o equívoco, mesmo não consciente e intencional, era consequência
das análises de estrutura e superestrutura, e mesmo tendo guiado objetivamente uma
luta a qual quase cumpriu seu fim, deixou um rescaldo da necessidade de reformular e
avançar em sua concepção, pois incorria tanto em incompreensões, do capitalismo como
forma de avanço produtivo e algo que já era constituído, do feudalismo europeu como
servidão e retrato do campo, e do próprio campo como lugar de atraso a buscar sua
superação em outros lugares e momentos históricos.

Os indivíduos e suas ações frente a estrutura

As teorias pós-modernas e pós estruturalistas ganharam muito espaço e adesão


na academia de modo concomitante ao avanço do neoliberalismo, e uma pontuação
sobre essa questão, frente a nosso campo, é interessante. Se criticamos os
engessamentos gerados na teoria pelas questões políticas ao qual o campo estava
envolto, passemos então a expor como vemos esse embate em nosso trabalho.
Destacar a influência da estrutura para a materialidade e assim ter um caminho
para superá-la é para nós um ponto fundamental. As teorias pós-estruturalistas tendem a
considerar a construção do ideário dessas estruturas como algo inócuo e pouco
significativo, para assim dar maior ênfase a ação dos sujeitos e principalmente do como
agem e reagem frente as diferentes explorações e opressões. Em se tratando de algo
maior, envolvendo as categorias de estado e hegemonia, iremos expor esse papel,
evidenciando do como apesar da estrutura condicionar muito dessas ações, as escolhas e
ações individuais também tem grande peso e influência, evitando recair em análises por
demais condicionantes.
Há um mantra liberal que diz que toda crise é uma oportunidade. Coloco como
liberal não por ter intrinsecamente tal essência, mas por ter sido apropriado pelos
círculos dominantes economicamente, exatamente por sua capacidade de impor seus
interesses. Dentre os conceitos abordados nos escritos de Gramsci, diante das crises
políticas advindas de questões variadas, para análise de conjuntura sobre as relações de
força, há um destaque crítico sobre o ‘economicismo’ como determinante das
conflagrações políticas. Esse embate entre economicismo x ideologismo como abarcado
pelo autor, embora antigo, reverbera mesmo no meio acadêmico e nos debates políticos
e historiográficos recentes, entre econômico x cultural, por exemplo, embora
ultimamente se perceba como os dois não estejam tão distantes como se pensava.
Destaco o ponto pela contingência dos fatores aqui expostos e do como se
encaixam nesse processo, não cabendo reduzir tudo a algo unicamente econômico, mas
expondo as demais questões interligadas, em como algo produtivo acabou servindo para
manutenção e fortalecimento da estrutura latifundiária e da questão agrária, pois a
implementação de um programa com tamanha vastidão exigia de muita articulação e
empenho por parte dos principais interessados, considerando-se o já exposto, de não ser
a melhor saída nem mesmo ter a melhor viabilidade econômica.
Em meio a ditadura, logo após o milagre econômico e os anos de chumbo,
período de maior recrudescimento autoritário, com a ação determinante da força e
ferrenha repressão a qualquer visão política dissonante da do governo, os grupos
hegemônicos terminam por impor seus interesses aos desígnios governamentais do
estado, se valendo de um momento de choque e tensão na sociedade para expandir seus
ganhos em uma mecânica de aprofundamento da hegemonia, ainda que com alguma
sofisticação, pois embora ausência de debate amplo e democrático, age pela via do
capital e do convencimento com exterioridade de anseio nacional, buscando evitar
parecer arbitrário ou agir unicamente através da violência física direta no conflitos,
principalmente os do campo.
Os escritos do marxista sardo, no contexto de encarceramento durante a
ascensão e recrudescimento do fascismo objetivam a organização dos trabalhadores, a
formarem partidos, visando a conquista do estado, tendo a experiência de visitas a união
soviética como determinante. Para isso, Gramsci aponta diversos elementos para uma
análise mais acurada da realidade política, e ainda que seu enfoque fosse o contexto da
Itália nos séculos XVIII e XIX, sua construção teórico-metodológica serve para as
disputas e conjunturas mais diversas e distantes. Dessa forma, a passagem seguinte nos
ajuda a compreender um dos principais objetivos aqui já elencado:

§ 2. Critérios metodológicos. A história dos grupos sociais subalternos é


necessariamente desagregada e episódica. É indubitável que, na atividade
histórica destes grupos, existe tendência à unificação, ainda que em termos
provisórios, mas esta tendência é continuamente rompida pela iniciativa dos
grupos dominantes e, portanto, só pode ser demonstrada com o ciclo histórico
encerrado, se este se encerra com sucesso. Os grupos subalternos sofrem
sempre a iniciativa dos grupos dominantes, mesmo quando se rebelam e
insurgem: só a vitória "permanente" rompe e não imediatamente, a
subordinação. Na realidade, mesmo quando parecem vitoriosos, os grupos
subalternos estão apenas em estado de defesa, sob alerta (pode-se demonstrar
esta verdade com a história da Revolução Francesa, pelo menos até 1830).
Por isto, todo traço de iniciativa autônoma por parte dos grupos subalternos
deve ser de valor inestimável para o historiador integral; daí decorre que uma
tal história só pode ser tratada através de monografias e que cada monografia
demanda um acúmulo muito grande de materiais frequentemente difíceis de
recolher. (Gramsci, 2002, CC 25 § 2 p. 135-136)
A afirmação aqui inserida é possível pois são notórios os efeitos sequentes a
implementação do Proálcool já em 1975/1976 com diversos levantes e conflitos agrários
nos estados canavieiros. A expansão da produção canavieira, de modo cada vez mais
mecanizado, incrementava o fomento da terra para a cana-de-açúcar, e diminuía a
necessidade de trabalhadores braçais, avançando sobre espaços até então referentes a
outros cultivos, como nas casas de muitos desses trabalhadores dependentes. Esse
processo, mesmo anterior ao programa, é aprofundado e agudizado ao longo das
décadas de 1950 e 1960. Com a implementação do programa, esse processo avançaria
implacavelmente, cunhado por Christine Dabat como ‘Absolutização da propriedade
fundiária e da monocultura’ e tratava-se de um processo de modernização que, apesar de
prometer melhores condições de vida ao conjunto da população, acaba por concentrar
ainda mais a riqueza do uso das terras, provendo a manutenção e fortalecimento do
poder decisório após os levantes camponeses contra a ordem (DABAT, 2016).
A década de 1980, com a reabertura do regime democrático, também é marcada
por uma reorganização dos trabalhadores rurais, agora sob outro contexto, com uma
itinerância e um vínculo a terra menos preponderante, o que indica o êxito das classes
hegemônicas com seus principais intentos.
Tratar dos interesses dos indivíduos em grupos, se não tratamos diretamente de
nomes, ao falarmos de suas ações conscientes, compreendemos sua atuação ativa como
parte central do processo, entendendo como para além da estrutura, as escolhas são que
determinam os fatos e mudanças históricas, não recaindo em mecanicismos simplistas,
ou ao menos buscando atentamente evitar cair nesse engodo utilitário.

Do universal ao particular e seu retorno, o âmbito e aparato de análise

Tentar enquadrar um objeto histórico em uma escala de análise, quando está não
diretamente situada em algum dos polos é algo um pouco difícil, mas pela importância
dos avanços da micro-análise e a correlação de autores dessa seara com autores daqui,
destacamos algumas questões relevantes.
Carlo Ginzburg, em ‘O queijo e os vermes’, expôs o como um caso
aparentemente fora da curva ou excepcional, em termos documentais, como do moleiro
Menochio, era capaz de elucidar todo um período histórico, no caso da inquisição na
Itália. Isso só é possível pelo amplo domínio do tema, bem como da sua historiografia.
Ao trazer um enfoque tão aprofundado, foi capaz de lançar novas questões e percepções
ao debate da produção historiográfica. Sua formação intelectual tem boas bases em
Gramsci, e por isso trazemos essa correlação. Situar nosso objeto numa premente macro
história ou algo que a abranja, é um referencial válido, por conter elementos da
geopolítica internacional e nacional, até o âmbito regional, e daí também em retorno,
por todos os seus efeitos. Ter consciência desse processo, para enfocar a ação dos de
cima, nos ajuda a elaborar melhor sobre questões atinentes, das quais analisemos.
As classes dominantes, aqui concebidas na ótica Gramsciana, enquanto grupos
políticos em disputa pelo estado visando a hegemonização de seus interesses -
configurando partidos, sejam eles formais ou não - mesmo na condição de dominantes,
possuem diversas contendas em seu interior, bem como acordos e divergências, algo
dado em qualquer âmbito e configuração da política, em especial na da sociedade de
classes aqui compreendida. Não se trata de aplicar mecanicamente um ‘pressuposto de
esquema’ construído pelo marxista sardo, por ter ele tratado principalmente do papel
dos intelectuais na formação do ideário de determinada classe ou grupo, mas de elucidar
a questão aqui presente, através do ferramental concedido por esses escritos, ainda que
no período de unificação italiana.
Em meio a tais disputas e questões, as classes dominantes regionais do Nordeste,
aqui em especial o referente ao açucareiro, no conjunto das relações de força, elencamos
sua correlação com as do centro do país, se tratando principalmente de São Paulo, por
estar o oeste paulista em forte expansão canavieira no período supracitado, e na
atualidade ser o maior produtor nacional de cana-de-açúcar (FURTADO, 1981). Se entre
as classes há a distinção entre grupos hegemônicos e subalternos, dominantes e
dominados, é cabível a colocação de ‘subalternidade consentida’ das classes dominantes
do Nordeste para com as do centro do país, e essas por sua vez, embora dominantes no
Brasil, se colocam como subalternas das classes dos países ditos desenvolvidos e
colonizadores, em especial no quadro do imperialismo ocidental, onde imperam os
Estados Unidos da América e os países centrais do capitalismo europeu.
Vale destacar o papel de alinhamento e concomitância de interesses dessas
classes, para manter o quadro de produção e divisão econômica, onde o Brasil se insere
como exportador de riquezas agrícolas e minerais, e o Nordeste canavieiro se insere ao
fornecer a produção e os derivados da cana-de-açúcar. Essa configuração é fundamental
para compreendermos os interesses correlacionados e inerentes a toda questão aqui
abordada.
Se aqui prevalecem os grupos, não apenas os indivíduos, é por uma escolha
consciente de escrita, tanto em termos teóricos quanto metodológicos. A possibilidade
de analisar o período em uma fonte documental primária, com a dos jornais, nos permite
essa avaliação mais direcionada, pelo enfoque no âmbito macro do estado.

Os indícios de verdade e seus paradigmas

Há hoje um sério debate e até retomada das elaborações sobre a verdade, o que é
em si, quais seus sentidos e construções. Algo aparentemente simplório e até obvio,
como deveria ser, conquanto desde nossos primórdios seja algo crucial para o convívio
em sociedade e mesmo manutenção da vida humana, em prol da razão, vem sendo
fortemente combalida, considerando o momento histórico do qual estamos inseridos, de
um avanço da extrema direita e mobilização negacionista de forças fascistas através da
mentira, em larga escala, por meio das ‘fake news’, fomentando na história um novo e
piorado revisionismo por outros meios, da relativização e enquadro de interesses em
prol do senso comum e da dominação pela ordem.
Se há uma verdade única e inquebrantável é difícil afirmar, mas podemos
deliberar que tal verdade visa servir a alguém, e depende prioritariamente das perguntas
feitas em sua elaboração para se alcançar um consenso voltado a fins positivos e
contrapostos aos do negacionismo, guiado também por valores contrários dos que
mobilizam essa ferramenta. Não nos cabe adentrar em debates iluministas ou filosóficos
acerca do tema, nem mesmo recair em relativizações ou utilitarismos sobre o que pode
ser tal verdade, muito embora tudo isso seja concernente. Nos cabe aqui,
compreendendo sua incumbência para o trabalho e as questões que pretendemos
abarcar, dar um melhor direcionamento, meio e forma do qual buscamos aclarar nessa
pesquisa.
A busca por essa verdade e quais elementos a engendram, é vista para além da
formalizada pela ideologia da ordem, pela formulação da qual estamos construindo, e
seus indícios estão presentes nas fontes históricas, sendo parte fundamental dos
caminhos trilhados e lugares aos quais nos direcionamos. Permitida uma breve
referência visual, estamos ilhados e precisamos construir a ponte para chegar a algum
lugar no horizonte, e para isso precisamos definir e direção e o material dessa ponte. No
entanto, só conseguimos a bussola, algum mapa e material rodando não só pela ilha,
mas como pelo próprio mar. Caminhar, nadar e remar é preciso. As vezes contra a maré
e em outras crendo num horizonte distante. Avaliemos então o que permeia aqui esse
caminho.
A dominação política e de classe sobre o estado, como elucidado por Gramsci e
elencado por Glucksman, não se dá apenas e tão somente pela força, mesmo em um
período ditatorial onde os mandatários impunham seus anseios com mínimo pudor. Para
performar o consenso, atingindo a ordem preconizada, é preciso observar atentamente o
os aparelhos de estado, como as instituições, e os aparelhos privados de hegemonia,
como a mídia, onde os intelectuais orgânicos, concebidos na função de organizadores de
classe, exercem protagonismo para o convencimento e coesão ideológica. A mediação
entre os interesses hegemônicos e o consenso ante os subalternos é dado através e
principalmente dos noticiários de mídia, em especial os de maior circulação a época,
nesse caso, dos jornais.
No período aqui abordado, é marcante a restrição da liberdade política e de
imprensa, dificultando em muito o acesso a informações e análises destoantes das
governamentais, nas quais se formulariam os interesses dos grupos dominados, e
embora ainda existissem, tinham limitada veiculação e circulação. Os jornais ligados
aos grupos dominantes, tem correlação e função direta a ordem estabelecida, buscando
conformar o restante da sociedade, publicizando esses interesses como universais
(BUCI-GLUCKSMANN, 1980). Um dito popular capaz de exprimir isso é o de que
‘uma mentira contada mil vezes torna-se realidade’. Embora os interesses sejam
incompatíveis e inconciliáveis, a força de sua repetição no cotidiano leva a aceitação e,
portanto, algum consenso (ALIAGA, DA SILVA, 2017). Quando falamos dos
intelectuais, poderíamos também destacar os responsáveis por esses jornais, mas aí
tenderíamos a um trabalho bibliográfico, o qual não nos compete.
As mídias desses jornais estão diretamente ligadas as matrizes agrárias e estatais
e eram um meio de interação também para os grupos hegemônicos, sendo possível
filtrar os interesses na forma como as informações eram veiculadas, na quantidade de
vezes conforme os temas aparecem e em como são apresentados, inclusive nos artigos
de opinião, em que raramente eram expostos de modo direto e simples, mas
evidentemente arranjados nas ‘entre linhas’, de forma velada para apresentar seus reais
intentos, quando se direcionavam não aos leitores mais comuns e desavisados dos
jornais, mas aos pares dos articulistas e também possíveis interessados. Nesse meio é
possível vislumbrar as determinações e disputas em seu interior.
A verdade aqui descrita, imiscuída da totalidade de interesses em um debate
democrático, sem confrontações, já a época teve determinados fins. Nos cabe nesse
trabalho não apenas expor isso e seus desígnios, mas também quais outras
possibilidades eram viáveis e foram diretamente ignoradas ou sabotadas, permitindo
visualizar um horizonte de resolução e contemplação de interesses muito distintos.

Considerações finais

Nesse breve esboço, apontei quais principais pressupostos teóricos estão nos
balizando, do campo teórico, em quais equívocos pretendemos evitar e do como melhor
produzir essa pesquisa por meio da própria teoria, tendo-a como uma aliada e
ferramenta necessária, por todo acúmulo da qual nos pode sedimentar. Se é ainda um
breve esboço a ser (e deverá ser), amplamente melhorada, já nos traz pontos
fundamentais a serem observados.
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