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De um lado, não se entende como as centenas de milhões desviados que aparecem todos os
dias no noticiário podem não causar indignação e revolta —e infere-se que se a pessoa não se
importa com o saque aos recursos públicos é porque deve estar levando a sua parte do butim.
Do outro lado, impera a convicção de que tudo não passa de um jogo de cena: que sob o
disfarce da luta contra a corrupção conduzida por um Judiciário parcial e seletivo, encontra-se
a defesa dos privilégios de classe que o governo do ex-presidente metalúrgico combateu.
Enfrentar o discurso anticorrupção seria assim tomar partido na luta de classes, na luta contra
o golpe e, em última instância, impedir o advento do fascismo.
Um estrangeiro poderia achar que a descrição acima é uma caricatura, mas infelizmente, é um
retrato fiel do debate político no Brasil.
Cineastas inscritos num festival em Pernambuco resolveram boicotar o evento, retirando seus
filmes da competição quando tomaram "conhecimento da grade completa dos filmes
selecionados" e descobriram que, entre eles, havia também filmes "de direita", o que
favoreceria "um discurso partidário" alinhado aos "grupos que compactuaram e financiaram o
golpe". O festival teve que ser adiado e talvez venha a ser cancelado.
Tudo isso parece surpreendente porque os fatos não justificam posições tão apaixonadas. O
impeachment da presidente Dilma, celebrado pelos antipetistas, levou ao poder um grupo
político que, ao que tudo indica, está ainda mais envolvido com corrupção. Além disso, as
chances hoje de um acordão para salvar a classe política, com anistia ao caixa dois e
introdução do voto em lista fechada, parecem maiores do que nunca.
Também não parece razoável ver como bastião da luta de classes o ex-presidente que
concedeu desonerações bilionárias às grandes empresas, que se aliou com José Sarney e que
teve Henrique Meirelles como ministro, que jogou para debaixo do tapete a agenda dos
impostos progressivos e que voou para Curitiba para depor num processo sobre relações
espúrias com empreiteiras num jatinho do maior conglomerado privado de educação.
Nenhum desses poréns parece suficientes para amenizar a acalorada disputa retórica que
mesmeriza aqueles que querem arrastar o país para o apocalipse, um confronto final e
decisivo entre os puros que acreditam combater a corrupção e os justos que acreditam
defender a classe trabalhadora.