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Décima nona lição do Curso


Quarta-feira, 23 de maio de 2001

XIX

Introduzirei o final da apresentação de Marie-Hélène Roch - pois ainda não o ouvimos –


lembrando-lhes o ponto ao qual ela nos conduziu.
Sua apresentação é dedicada ao passe. Cabe dizer que ela é eminentemente qualificada
para nos falar sobre ele, pelo fato de ela própria ter se apresentado a essa prova no quadro
de uma instituição analítica, na Escola da Causa Freudiana, e por haver triunfado, ou seja,
ter recebido o título de Analista da Escola.
Portanto, ela pagou com sua pessoa e, como sua tentativa foi bem sucedida, ela é levada,
quase que forçada a continuar pagando com sua pessoa durante pelo menos três anos -
esta é a regra -, testemunhando, de acordo com o programa estabelecido por Lacan em
1967, sobre, eu o cito: “os problemas cruciais, nos pontos nodais mais em que se acham
eles no tocante à análise, especialmente na medida em que eles próprios estão investidos
nessa tarefa, ou, pelo menos, sempre em vias de resolvê-los”. Posso lhes dar essa
referência: Outros escritos, página 249.
Para mim, a intervenção de Marie-Hélène tem precisamente o valor de indicar – no que
eu trouxe para vocês até o momento – os pontos problemáticos que se mantêm na
expectativa e que ela soube indicar com a maior pertinência.
De saída, ela se propôs, vocês a ouviram, a estabelecer um laço entre seu trabalho e
aquele que inaugurei aqui, pois ela deu como título de sua intervenção “O passe e o laço”.
Esta palavra, laço, vem do título deste curso “O lugar e o laço”, título que, aliás, eu
apenas comecei a justificar e a ilustrar.
Esse laço nos leva a retomar o que chamei as duas versões do passe, com a intenção de ir
mais adiante elaborando uma versão número 3, versão esta que ela nos apresentará hoje.
Aliás, em seu texto, ela põe um ponto de interrogação nessa versão número 3.
Quais são as duas versões do passe? Podemos indexá-las pelas respectivas datas.
A primeira é a de 1967, é a versão inicial. É o passe tal como foi concebido por Lacan ao
terminar seu Seminário: a lógica da fantasia e antes de iniciar o Seminário: o ato
analítico. Trata-se do passe concebido por Lacan como uma experiência destinada a ser
verificada em um enquadre institucional e concebida antes que essa experiência tenha
ocorrido, como um projeto.
Chamei a versão de 1976 de segunda versão do passe. Trata-se do passe a posteriori, da
versão relato, uma vez que essa experiência apenas concebida se tornou efetiva.
Para propor a segunda versão – o que fiz em fevereiro -, tomei como referência um texto
que, até então, passava amplamente despercebido, mas que doravante será levado em
consideração, o que Marie-Hélène Roch começou a fazer. Ele certamente será levado em
consideração, tanto mais por eu ter conseguido que ele fosse colocado como o último
texto dos Outros escritos, antes dos anexos.
Esse texto tem o título anódino de “Prefácio à edição inglesa do Seminário XI”, vocês o
encontrarão nas páginas 563-569 desse volume. Cabe dizer que se trata de um texto
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muito mais discreto – não fosse pelo seu título – do que aquele no qual se apoia a
primeira versão do passe.
Como vocês sabem, o texto que serviu para lançar a experiência se chama “Proposição
de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. Lacan pôs esse texto em
evidência, o propôs à votação que, já naquela época, suscitou controvérsias, só foi
adotado por sua Escola em janeiro de 1969 e continuou a dar problemas. Desde então, é
notável ser esse o texto que serve de referência à experiência do passe, quando, como eu
disse, trata-se do texto de um projeto.
O segundo texto, o de 1976, não põe de modo algum o passe em evidência. Em primeiro
lugar, reconheçamos que Lacan tudo fez para que ele passasse despercebido, uma vez que
ele o escreveu para ser traduzido em outra língua. E, quando praticamos o francês, não
vamos olhar a edição inglesa do Seminário XI. Aliás, mesmo quando praticamos o inglês,
vale mais nos reportarmos à versão francesa.
Acrescento a isso o fato de que ele ia se abster de publicar as três paginas do texto em
francês, quando, na época, em 1977, eu me apropriei dele para publicá-lo em Ornicar?,
por certo com sua autorização, mas sob minha iniciativa. Não é evidente que ele tenha
tido a intenção de fazê-lo ser debatido em sua Escola. Aliás, ele não suscitou nenhum
debate sobre esse texto. Trata-se de um texto muito mais curto do que o primeiro e que,
além disso, diferentemente da “Proposição de 9 de outubro”, não se endereçava
explicitamente à Escola. Ademais, o texto é endereçado ao leitor de língua estrangeira,
num território onde o ensino de Lacan era, e continua sendo, embaraçante, onde o ensino
de Lacan não havia feito Escola, a saber: Inglaterra e Estados Unidos da América.
Portanto, ele de fato o endereçou a um auditório vigem de qualquer interesse institucional
a esse respeito. Além disso, esse texto parece tratar o passe apenas incidentemente.
Cabe, então, comparar o texto de 1967 com o de 1976 e deduzir que se trata de duas
versões do passe: o passe projetado e o passe efetivo do qual pode haver um relato, é uma
construção. Essa comparação é uma construção feita por mim, e não me parece infundada
já que eu a vejo retomada por uma AE, reformulada à sua maneira – nós a ouvimos na
vez passada -, e uma vez que Marie-Hélène se propõe a se inspirar nessa comparação
para tentar elaborar uma terceira versão que ela nos apresentará em seguida.
Nos termos empregados por ela, a versão de 1967 enfatiza a percepção da falha do sujeito
suposto saber, o que implica a retomada de uma fórmula do próprio Lacan em seu resumo
do Seminário: o ato analítico. Já a versão de 1976 se inscreve em um contexto “que
mostra os limites da mágica da fala, da potência do simbólico”.
A terceira versão - ponto de interrogação – é elaborada por Marie-Hélène Roch a partir
de um terceiro texto de Lacan a “Nota italiana”, de 1973, que também figura nos Outros
escritos. Temos aqui, de imediato, um pequeno problema, pois, para mim, o texto de
1976 vai mais longe do que o texto de 1973.
Em 1976, nas três páginas de “Prefácio ao Seminário XI” – o texto é datado de maio de
76 -, Lacan já se engajara no que concordamos em chamar seu último ensino, o que
parece ser o ensino dos nós. Nesse registro, ele já havia dado tanto seu Seminário: RSI
quanto o do Sinthoma, que dá um amplo lugar à sua leitura da obra de James Joyce. Foi
ao final desse Seminário que ele escreveu o “Prefácio ao Seminário XI”. Em minha
opinião, nesse texto, ele extrai as lições dessa nova elaboração concernente ao passe.
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Nada impede – esta é a tentativa de Marie-Hélène Roch – que se possa reportar a um


texto anterior a fim de tentar tomá-lo como apoio para se ir mais adiante. De todo modo,
esta é sua tentativa e a acompanharemos agora.

Marie-Hélène Roch – De fato, estou caminhando para um terceira versão.

Uma terceira versão?


Ela se delineia com a contribuição do último ensino de Lacan, no qual devemos
considerar a ruptura da consistência simbólica. Essa versão figura na “Nota italiana”.
Surpreendeu-me o comentário de Lacan ao final da “Nota”. Ele convida a se deixar em
suspenso a imaginação – que é curta – sobre a relação sexual e tentar, eu o cito: “ampliar
os recursos para prescindir dessa deplorável relação e fazer um amor mais digno”. Ou
seja, diz ele mais adiante: “pôr em contribuição o simbólico e o real aqui enodados pelo
imaginário”. E acrescenta em um parêntese: (“razão pela qual não podemos deixá-lo
cair”). Esta observação deve ser lida com o apoio do Seminário : Joyce o sinthoma. O
corpo (em Joyce, é a letra) se faz o terceiro na contribuição das duas outras dimensões,
que seriam apenas lógica significante pura sem sua utilização pulsional. Essa fórmula de
Lacan na “Nota italiana” é interessante porque sabemos que o corpo, nessa época, não é
mais representação superfície. É um corpo “bem aparelhado” em sua três dimensões, com
um objeto a comprimido no centro. “É o objeto do qual não se tem ideia”, dirá Lacan.
Parece-me ser o indício de um real distinto das ficções do inconsciente, do gozo fálico,
fora do corpo que aparelha a fantasia no desejo do Outro. O nó, com seu efeito de fecho
sobre uma consistência, trabalha para uma versão do passe diferente da travessia das
identificações, da fantasia, rumo a uma prática nova do ato.

O lugar e o laço/ o corpo.


Depois do passe, avancei nessa nova tópica, da qual estou apenas desemaranhando alguns
fios. Agora, graças a esse sinthoma que me nomeou, posso pôr nisso algo meu e estou
apenas começando. Em uma entrevista no rádio, em 1973, Lacan fala do ensino que
recebeu de sua experiência suficientemente definida e limitada para permitir que a
qualifiquemos com tal, e ele acrescenta: “Para falar a esse respeito, é preciso ainda ter
entrado nela, o que não exclui o fato de que, sob certas condições, seja difícil dela sair”.
Recebemos o ensino do discurso analítico. Ele é contemporâneo de uma análise e o
quotidiano de sua prática.
Na terceira conferência de Roma que se abre sobre seu último ensino, mesmo que o
corpo continue imaginário (podemos constatá-lo no esquema do nó desenhado por ele),
nessa nova topologia ele ganha em dignidade - pelo fato de suas três dimensões -, e em
opacidade - pelo fato da passagem do corpo como forma ao corpo como “enforma”,
palavra encontrada por Éric Laurent para enfatizar o para além do narcisismo. Suas
pesquisas e conferências sobre o sinthoma, a nova tópica à qual o sinthoma convida, me
esclareceram particularmente.
Nessa nova geometria, Lacan nos faz perder toda a esperança de alcançar o real pela
representação, pelo imaginário, por sua projeção em uma superfície simbólica. É preciso,
diz ele, “furar sua boudouille45”, reduzir a “pança”, “remendar” a corda. O que suporta o
corpo não é a imagem, embora ela seja pregnante, não é o sentido, é a linha de
45
N.T.: expressão do personagem de Ubu Rei, de A. de Jarry.
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consistência. “Isso só tem como aspecto ser aquilo que resiste, aquilo que consiste antes
de se dissolver”. Neste trecho de RSI (18/02/75), Lacan dá uma definição do que é a
consistência: não é o que resiste, é o que consiste. Não nos esqueçamos do “antes de se
dissolver”. Num outro trecho extraído por mim de O sinthoma (10/02/76), ele define a
consistência como “o que mantém junto”. E ele acrescenta esta frase que acho
surpreendente: “é bem por isso que é simbolizado ocasionalmente (grifo meu) pela
superfície”. Nós simbolizamos devido à nossa pobreza, pois sentimos “nosso corpo como
uma pele retendo em seu saco um monte de órgãos”.
Se analisarmos detalhadamente seu esquema, vemos que o sentido está inscrito na junção
do imaginário com o simbólico, o que faz com que o representemos, o articulemos com o
significante (a superfície é simbólica). Podemos dizer: “tenho um corpo”, ter o
sentimento desse corpo, habitá-lo com metáforas, libido. Se agora prestarmos atenção no
registro imaginário, podemos deduzir do esquema que o corpo é tocado em sua imagem,
que é muito mais do que um logro, muito mais do que uma quimera, muito mais do que
um pedaço de corpo. É uma preferência do inconsciente cuja fonte vem do medo do
medo (na junção do imaginário e bem junto ao real Lacan inscreve a angústia). Eu disse
medo do medo e não angústia. Sigo a nuance da angústia trazida por Lacan nesse
capítulo. Penso que devemos compreender em que área (topologia) estamos: é preciso
compreender que o nó (consistência) vem romper com o que estrutura o neurótico (o
significante, a paixão pelo sentido em seu sintoma para salvar o pai). Quando percebemos
a topologia que define ser não tolo da auto-estrada, como diz Lacan, isso faz com que a
imagem se separe da vida e, quanto ao corpo, não sabemos muito o que ele é, a não ser
que “ele se goza”.
Essa nova definição do corpo avançada por Lacan em Os não tolos erram introduz esse
corpo, vestindo-o até mesmo em sua opacidade e numa busca na qual é sempre preciso
outros termos para que se mantenha de pé. Trata-se de nada menos do que esse nó, diz
Lacan. (O nó borromeano é a estrutura do corpo que nós preferimos esquecer).
Este ano passamos de uma geometria euclidiana para uma consistência tórica. Cada um
pode dar sua versão do passe porque X tem um corpo e ele pertence às três dimensões.
Se falo de uma terceira versão do passe é para enfatizar o que, nele, se isolou para mim,
devido a uma aporia lógica, um impasse que se duplicou por um movimento casual, a
pressa, ultrapassando o cálculo lógico no qual a aporia estava presa. Como o introduzi na
semana passada com o acontecimento imprevisto, Kairos é uma aposta não pura no
acaso, já que há lalíngua e seus depósitos, seus aluviões. “A psicanálise, seu real (como
diz Lacan) é questão de sorte”. O segundo ensino de Lacan incide sobre a probabilidade,
poder-se-ia dizer, de ex-sistência do objeto a, o objeto de que não se tem idéia, não há
idéia do objeto. O passante não tem nenhuma idéia dele. A aporia chega a esse ponto.
Então, há que pôr algo de seu para decidir um traço, (S1), marcando a virada traumática
de sua emergência de sujeito que, assim, pôde encontrar acesso ao inconsciente. Esse S1
não passaria de sentimentalidade (uma versão da debilidade), caso esse traço com sua
constância própria não fosse formado por um acontecimento de corpo, marca do real e
marca repetida. É assim que se pode desenodar a defesa própria ao desejo, formado de
uma angústia íntima. Refiro-me ao grito de Lacan na “Terceira”: “Do que temos medo?”,
gritava ele, “de nosso corpo”. Todavia, mais adiante ele especifica: “é o sentimento que
surge da suspeita de nos reduzirmos a nosso próprio corpo. Nossa angústia, é medo do
medo.
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Assim, o que chamo a terceira versão da “Nota italiana” faz uso de novos termos que
pudemos destacar no decorrer de seu ensino como lalíngua, l’apparola, grampo,
equívoco, sessão analítica, o ser falante, a ex-sistência. A eles, podemos acrescentar
ações: a ação de torcer, de contornar, curvar, revirar a língua, fechá-la mas também
quebrar o sentido, triturá-lo, reduzi-lo e, depois, fazer ainda um jogo entre os laços,
prestar atenção ao enodamento, privilegiá-lo. Uma disciplina, o que Lacan chamava
“esmerilhar-se na prática dos nós”.

Aplausos.

Jacques-Alain Miller
Tal como vocês, agradeço à Marie-Hélène Roch por suas contribuições e entro no que,
para mim, é o vivo do assunto, a saber, o tema das versões do passe que ela tanto
enriqueceu quanto evocou a possibilidade de enriquecê-las com uma terceira.
Para tanto, começarei dizendo porque, do meu ponto de vista, 1976 vai mais longe do que
1973, para poder entrar em uma nova perspectiva sobre o passe, a da experiência feita.
Essa experiência é para nós muito mais longa do que o era para Lacan em 1976. Ela foi
inaugurada mais ou menos no início dos anos 70, e, em 1973, Lacan ainda dizia: “Meu
passe de recente data”.
Passaram-se mais três anos para nos dar o que eu chamava um relato, do qual gostaria de
fazer circular os termos que me parecem ir mais longe do que aqueles postos a funcionar
anteriormente.
Quero, de bom grado, que haja três versões do passe. Porém, naquele momento, eu diria
que a primeira foi a de 1967; quero introduzir como segunda a de 1973, e guardarei sua
terceira para a de 1976.
Com efeito, valorizemos o ponto de vista tomado por Lacan em 73 e que, em minha
opinião, é intermediário entre as duas (lições? versões?).
Em 1973, seis anos depois do lançamento da experiência, Lacan expõe de novo o passe e,
singularmente, também desta feita, em um texto muito reservado, já que ele não o destina
à sua Escola, não mais do que o texto de 76. Em 73, ele dá algumas folhas datilografadas
a um analisante italiano para que ele as transmita a alguns outros colegas italianos. Devo
dizer que esse texto permanecerá desconhecido até sua morte e só será publicado, se não
me engano, logo depois dela. Isso quer dizer que ele suspendeu, tal como em 76, a
difusão de seus primeiros relatos da experiência e os deslocou para auditórios
estrangeiros.
Antes de tudo, ele expõe o passe como o princípio de uma refundação da Escola
Freudiana de Paris, ou seja, em 1967, com o passe, Lacan nos diz que pretendeu fazer
uma reestruturação da Escola fundada em 1964.
Ao expô-lo em 1973, ele repete a ruptura de 1967. O termo ruptura é dele, pois, diz ele
em 73: “Minha tese, inauguradora por romper – é inauguradora porque ela rompe – com a
prática através da qual pretensas sociedades fazem da análise uma agregação”.
Podemos aqui reconhecer a maneira com que, em 1973, ele evoca 1967, sua
“Proposição”, em termos de ruptura com uma prática consagrada, termo que não é
excessivo porquanto, até então, o analista era qualificado por sua própria prática como
analista.
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Portanto, algo novo na qualificação do analista, um novo que não está em continuidade
com o que até então era recebido, disso decorre o termo ruptura empregado por ele.
Essa ruptura consiste no fato de que, doravante, não será mais a título de sua prática que
se será reconhecido como analista. Isso introduz, no mínimo, uma nova via para receber
o título. E você mesma, Marie-Hélène, como AE, procede diretamente dessa ruptura, seja
qual for a prática que você tenha ou que tenha podido ter.
Então, até aquele momento, era devido à sua prática que o analista se fazia reconhecer
como analista. Esse reconhecimento fazia com que analista fosse agregado à Sociedade
dos analistas. Pode-se dizer que Lacan põe em questão simultaneamente a agregação
analítica e o estatuto de Sociedade, já que ele fala de pretensas Sociedades.
Sociedade é o termo tradicionalmente recebido na Associação Internacional para
qualificar os diversos grupos nacionais que se formaram nesse enquadre.
E vemos que Lacan substituiu simultaneamente a agregação pelo passe e a Sociedade
pela Escola. Para nós, o termo agregação tem todas as ressonâncias da prática
universitária e, de modo singular, a palavra Escola não deixa de ter ressonâncias desse
lado.
Cabe notar, aqui, que a palavra Escola, o próprio nome Escola é anterior ao passe. Lacan
propôs o nome Escola em 1964, quando o passe ainda era completamente desconhecido.
Poderíamos então interrogar esse ligeiro intervalo. Em que medida a Escola, como
conceito, estaria à altura do passe? De todo modo, ela só ficou à sua altura mediante o
viés que o próprio Lacan chamou de refundação, uma refundação da Escola.
O nome Escola faz do saber o pivô do grupo analítico. O nome Escola privilegia,
inclusive, o saber em relação ao grupo, caso levemos a sério o termo agregação utilizado,
ao mesmo tempo que recusado, por Lacan..
Podemos apreender as coisas da seguinte maneira: com efeito, o passe confirma o saber
como pivô do grupo analítico. Todavia, sob um outro ângulo, o passe poderia também
tender a infirmar essa função do saber. Podemos, talvez, nos engajar nisso com
prudência.
O passe, independentemente de sua inscrição institucional, comporta um “ex-siste”, ex-
siste o analisado. Aqui, o particípio passado tem toda a importância, uma vez que Lacan,
por outro lado, fala do analisante. Portanto, o analisado quer dizer o analisante tendo
concluído o que o qualifica como analisante.
Nesse sentido, no termo analisado está presente um valor definitivo, tanto mais que
Lacan acrescenta – e a própria ligação é problemática, é justamente essa ligação que faz
ruptura – que o analisado é o analista propriamente dito. Vê-se bem que teria sido
concebível definir o analisado, sem por isso qualificá-lo de analista, convidar uma
instituição a reconhecer o analisado como o analista propriamente dito.
(ILEGÍVEL, FALHA NA IMPRESSÃO)
Aqui se realiza a ruptura com o modo de agregação tradicional das sociedades
psicanalíticas.
Podemos dizer que essa problemática também está presente no texto de 1976, porquanto
o problema desse texto, o último no volume dos Outros escritos, é explicitamente aquele
da ex-sistência - escrita com o famoso hífen e com a grafia que vocês conhecem – do
analista.
Como fazer – esta é a questão presente nesse texto – para que esta ex-sistência não seja
apenas provável, mas também certa?
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Isso se apoia na tese explicitada desde 1973 nos seguintes termos: a análise é uma
experiência de saber. Podemos, por certo, ver aqui uma definição própria de Lacan, muito
profundamente enraizada, porém, na fundação freudiana da psicanálise que tem no
recalque um dos seus conceitos essenciais, e a respeito do qual não é exagero defini-lo
como um “não querer saber”, ainda que se lhe empreste um “não poder saber”.
Então, não é excessivo definir o final da análise, ou pelo menos ao que ela tende, como
um levantamento do recalque e, portanto, como um acesso a um saber que era recusado
ou inacessível ao sujeito. Nessa ordem, podemos até mesmo discutir se esse acesso é
completo, parcial, se ele continua interminável ou se, pelo contrário, ele pode ser
realizado de uma vez por todas.
Assim, podemos sustentar que a definição da análise como experiência de saber decorre
da definição freudiana do recalque.
Podemos mencionar o que Lacan acrescenta como ênfase, ou seja: esse saber recalcado,
inacessível, recusado, concerne à verdade do ser do sujeito como ser do desejo. De todo
modo, o texto de 67 define (ILEGÍVEL, FALHA NA IMPRESSÃO), mas, com efeito,
tudo converge para definir esse saber como concernindo à verdade do ser do sujeito como
ser de desejo. Reencontramos o eco disso na versão de 1973, quando Lacan diz que o
analisado sabe que é um rebotalho. Saber que se é alguma coisa.
Podemos dizer que, nesse caso, ele adquiriu um saber sobre o que ele é. Isso define o
analista como aquele que sabe o que é.
Desde 1967, desde o lançamento da experiência, a construção de Lacan estabelece, se
quisermos dizê-lo em termos freudianos, um laço entre o recalque e a transferência. Esse
laço se chama, precisamente, sujeito suposto saber, ao preço de um deslocamento – não
de uma ruptura – em relação a Freud, que faz com que a transferência não seja apenas
concebida como o meio de aceder ao saber recalcado, mas também como constitutiva
desse saber recalcado.
O deslocamento, o deslizamento está em formular que esse saber recalcado, não sabido,
não passa, concreta, pragmaticamente, de um saber suposto. É nesses termos que Lacan
se expressa quando fala do saber suposto presente, dos significantes no inconsciente. Já
me ocorreu enfatizar que essa centralização da experiência analítica no Sujeito-suposto-
Saber implica - sejamos mais precisos, mesmo que ao preço de um neologismo - uma
desrealização do inconsciente. Portanto, o valor a ser dado à fórmula de Lacan é: o
Sujeito-suposto-Saber não é real.
Esse não sabido posto em função no Sujeito-suposto-Saber, animado pela transferência,
libera um saber e, no final – isto é no mínimo o que a proposição do passe supõe -, há
saber. E sobre o que incide esse saber? Creio que a resposta dada por Lacan na primeira
versão do passe é a seguinte: esse saber incide sobre o desejo, sobre o sujeito como ser do
desejo.
E isso sobretudo porque ele define o desejo como um problema que tem uma solução.
Penso que devemos dar toda importância aos termos problema e solução. Dou
importância ao termo problema por ser o mesmo que encontramos no programa dos AE,
porquanto eles são convidados a testemunhar sobre os problemas cruciais precisamente
porque são supostos terem resolvido seu problema, resolvido seu desejo como sujeito,
resolvido o problema particular de seu desejo, o que os poria em condições de
testemunhar sobre os problemas cruciais da psicanálise.
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Assim, vemos que a experiência analítica é apreendida como a de um sujeito se


defrontando com um problema. O termo problema convoca o termo solução. E foi essa
solução que Lacan chamou passe, termo que em si mesmo é antônimo de impasse. O
impasse só se sustenta em relação à noção de problema no qual encontramos impasses e,
ao explorar os impasses, somos supostos encontrar a solução do problema, a qual Lacan
chamou passe.
Portanto, ele apreende a experiência analítica em termos de problema e solução. Estamos
tão acostumados a isso que é preciso um pequeno esforço para nos descolarmos desses
termos. É uma perspectiva. Mas seria a única? É a única a apreender o sujeito analisante
se defrontando com um problema?
Um problema que é o desejo. Isso já é um deslocamento do que se formularia como uma
questão inicial, um “quem sou eu?” – que retorna ao sujeito sob a forma de um “o que
queres?”. Na passagem do “quem sou eu?” ao “o que queres?” há um deslocamento
indicando que a questão do ser não encontra resposta no nível da identificação, mas sim
no nível do desejo. De todo modo, esta é a tese sustentada por Lacan na primeira versão
do passe: ela se assenta nos termos de problema e solução, assim como na noção de que a
questão do ser encontra sua resposta no nível do desejo.
Cabe lembrar que Lacan chega a distinguir as duas soluções encontradas pelo sujeito
referentes ao problema do desejo: uma solução negativa e uma solução positiva que são
correlatas. A solução negativa é notada como menos phi e indexada como a hiância do
complexo de castração; a solução positiva é notada como pequeno a designando o objeto
causa do desejo. No texto, Lacan diz: “causa da fantasia”.
A dupla solução deve ser inscrita assim:
a_
(-)

A hiância é a da função fálica no complexo de castração, e o pequeno a, o objeto


obturador. As duas soluções são correlativas. No nível de menos phi o sujeito descobre,
ou a ele se revela, que o desejo (ILEGÍVEL) apenas um desser e, quanto ao ser, este se
encontra não no nível da visada do desejo, mas sim no nível de sua causa.
É com esses termos, bastante conhecidos de alguns, que Lacan antecipa, a partir de sua
experiência, o que será a experiência do passe. Essa saída é uma solução em termos
epistêmicos, implicando, porém, o que Lacan chama de uma virada, uma metamorfose no
nível do ser do sujeito.
Essa aquisição de um saber – este saber que soluciona – se repercute no nível do ser,
introduz uma transformação do ser. Portanto, não é uma simples aprendizagem que se
acrescenta ao que se é, pois supõe uma mutação, uma metamorfose do ser.
Antes, o sujeito era um ser que não sabia a causa; depois, ele se torna o ser que sabe a
causa. Para Lacan, isso constitui uma rejeição do ser anterior. Ele rejeita seu ser anterior,
implicando, então, a noção de emergência do sujeito para um ser novo. A isso, segue-se o
seguinte paradoxo situado por Lacan em seu devido lugar: o sujeito analisado sabe o que
ele é, mais precisamente, ele sabe o que ele não é mais.
Disso decorre a fórmula romântica para qualificar este desejo último: “O saber vão de um
ser que se afasta”. Disso também decorre a ideia – que encontra intuições formuladas
antes de Lacan a respeito da cessação da experiência – de que, nesse sentido, o passe é
um luto, o luto do ser anterior que não sabia a causa de seu desejo.
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Portanto, essa ligação entre o saber e o ser implica esta consequência paradoxal: sabe-se
perfeitamente o que não mais se é. Então, para que serve isso? Saber para quem? Saber
de que?
O passe é um luto em que, conforme aos velhos modelos da conversão ou da iniciação,
“esfola-se o velho homem” 46, faz parte da tradição expressar-se assim.
Por isso, o passe como procedimento institucional é suposto apreender essa virada, essa
metamorfose, esse luto, no momento em que ele acaba de se produzir, isto é, sobre o fio
da navalha. Justo no momento em que esse saber de um ser que se afasta e que, por isso
mesmo, se tornará vão, quando esse saber está ainda justo no ponto de desaparecer, de
esvaziar-se como vaidade e de ser então recuperado nas bordas de seu desaparecimento.
Há, em Lacan, um valor a ser dado a este frescor, uma vez que os valores que ele atribui
em seguida à experiência do analista no decorrer dos anos aparecem, todos eles,
negativos, como se marcados pela rotina e introduzindo o esquecimento.
Em 1973 – se o introduzo como segunda versão, estimulado por sua terceira – podemos
reconhecer essa problemática retraduzida em termos de ex-sistência. Diria que no texto
de 1973, o da “Nota italiana”, encontramos duas expressões em que figura a famosa ex-
sistência correspondendo muito bem às duas soluções, positiva e negativa, extraídas,
assinaladas no texto de 1967 do seguinte modo: a ex-sistência do objeto a e,
correlativamente em um outro local do texto, a inex-sistência da relação sexual.

a_  ex-sistência de (a)
(-) inex-sistência da RS

Nessas duas expressões podemos reconhecer uma nova versão da oposição introduzida
por Lacan entre a negatividade do falo, a negatividade castradora do falo, e a positividade
da causa do desejo. Esses dois termos, expressos de outro modo, aí se encontram.
E o saber que ali está em jogo – razão pela qual se justifica dizer que se trata de uma
segunda versão do passe – não é mais apenas o saber do ser que não sabia a causa de seu
desejo, como em 67. É o saber que não há relação sexual. Trata-se de um saber que vai
muito além da verdade do ser do desejo. É um saber colocado por Lacan no registro do
real. A consequência disso – e está patente no texto de 73 – é o começo da grande
desvalorização da verdade, o que abrirá o último ensino de Lacan. Em 67, podemos dizer
que não é nada disso e que se trata, pelo contrário, da verdade de um saber sobre o ser do
sujeito.
Uma desvalorização da verdade da qual Lacan não faz um tratado, ele faz com que isso
seja apreendido, inicialmente, através do contra-exemplo de Freud, debochando de Freud
ao dizer: “O romance de Freud são seus amores com a verdade”. E Lacan diz
precisamente que o analista é justamente a queda, o rebotalho, a recusa dos amores com a
verdade.

46
NT: no orig.:on dépouille le vieil homme, expressão pertencente ao vocabulário bíblico, em que o velho
homem é o pecador antes de sua regeneração através da graça; sua melhor tradução seria “desfazer-se de
velhos hábitos, ou de hábitos nefastos”. Optamos por uma tradução ao pé da letra. Cf. Le Robert
Dictionnaire des expressions et locutions, por A. Ray e S. Chantreau, Col. “Les usuels”, dirigida por H.
Mitterand e A Ray, 1995
226

Lacan então define o analista – na época em que ainda se podia considerar Freud como o
analista por excelência – tomando Freud como contra-exemplo de um analista, definido
como aquele que acabou com os amores com a verdade.
Cabe notar o lado divertido da expressão “seus amores com a verdade”. Não é o amor
pela verdade que seria partilhado entre a análise e a filosofia. São os amores com a
verdade e sentimos imediatamente que isso implica dificuldades, que são amores difíceis
com uma parceira renitente, fazendo com que tenhamos um romance a ser feito. Além do
mais, isto é o que ele também faz apreender em 73 através de um exemplo positivo,
quando se preocupa em igualar a psicanálise à ciência e diz: “A ciência prescinde muito
bem de ser verdadeira”. A ciência nada tem a fazer com a verdade, ela tem de se haver
com o real e o que a ocupa é um saber sobre o real.
Em outras palavras, o que já se esboça em 73 – com efeito, você tem razão, isso é
consoante com o último ensino de Lacan – é a noção de que o final de análise poderia
consistir em desembaraçar-se da verdade e que o fato de se acreditar na verdade faz
obstáculo ao acesso do saber sobre o real.

verdade // real

Já podemos observar esboçada a ruptura entre, empreguemos o termo, verdade e real que
Lacan, em seu último ensino, levará ao máximo, não sem alguma consequência no que
concerne ao passe, chegando até a formular - desta feita em 1977, depois do texto de 76
que tomei como referência - que não há verdade sobre o real, porque o real se delineia
excluindo o sentido. Vocês observarão que Lacan preferiu dizer “se delineia” a dizer “se
define”, precisamente pelas razões melhor fundamentadas, a saber: tentar retirar o real
para fora do campo em que há a definição, já que este é um campo semântico.
Em outras palavras, esse deslizamento implica renunciar ao saber sobre a verdade para
visar um saber sobre o real, o único saber sobre a verdade consistindo em saber
desembaraçar-se dela. Isso significa fazer da verdade um ídolo. É o que dá valor à noção
demasiado comprometida de invenção do saber. Não haveria nenhum sentido falar de
invenção do saber se continuássemos a acreditar na verdade. A única coisa que dá sentido
à invenção do saber, à noção de um saber que se inventa, é que cessemos de ser
apanhados nas armadilhas da verdade pois, se há verdade, então se trata de a descobrir.
Quando se trata de inventar o saber, é porque não mais estamos no regime da descoberta
da verdade. É preciso, então, já ter reduzido a verdade e não mais sonhar de seus amores
com a verdade.
Se reconstituirmos passo a passo essas coisas muito simples – é preciso fazê-lo passo a
passo para não ficarmos presos no visco lacaniano, este visco presente na repetição
desses mesmos termos e fórmulas, por vezes essenciais, que deslizaram em um inciso e
que fazem um grande burburinho –, podemos então dar à terceira versão, a de 76, todo o
valor de uma ironia, quando Lacan enfatiza que o passe é uma prova de verdade.
Podemos dizer: “mas claro! Sempre soubemos disso!”. Sim, mas quando isso é dito em
1976 e quando se reconstituiu a suspeita sobre a verdade, nos damos conta do que quer
dizer: o passe é uma prova de verdade.
Lacan diz exatamente: “Ele consiste em submeter a profissão analítica à prova da
verdade”. Pois bem, o que podemos pescar no texto de 76 é que, nele, Lacan não mais
227

recua de dizer que essa verdade não passa de um sonho. E se a verdade não passa de um
sonho, podemos lhe dar seu nome: mentira, mensonge.
Trata-se de uma palavra francesa na qual há sonho, songe. Isso não está no texto, mas, em
minha opinião, bem que poderia estar.
Essa verdade que não passa de um sonho, uma vez definido o passe como prova de
verdade devemos juntar essas coisas. Lacan diz exatamente que “a verdade é aquilo com
que a função dita inconsciente sonha”.
Enfatizemos, na frase acima, o termo “dita”. É que a tese de que a verdade não passa de
um sonho não deixa intacto o conceito de inconsciente, pois inconsciente quer dizer: “tu
não sabes a verdade” e, em termos precisos, saber a verdade se tornou completamente
duvidoso. Por isso, Lacan pôde falar de miragem da verdade. Mas a miragem da verdade
não é nada mais do que o sujeito suposto saber. Por essa razão, para definir o final da
análise, não é mais em termos de saber ou em termos de verdade que Lacan o referirá
nesse pequeno texto alusivo, feito exatamente para não olharmos essa questão de perto.
Todavia, é isso o que fazemos com certo recuo. É por isso também que Lacan não pôde
atribuir outro termo ao final de análise a não ser, eu o cito, a satisfação que marca esse
final. Basta ver que, desde então, não é mais em termos de verdade, mas sim em termos
de satisfação que ele abordará o final da análise.
Digamos que no termo satisfação podemos reconhecer, sob uma forma de algum modo
atenuada, a palavra gozo e, o que Lacan esboça aqui, é de fato o final da análise definida
pelo gozo e não mais pelo desejo.
Disso decorre a questão de saber se podemos sair da miragem da verdade. Será que
saímos da mentira? Será que o passe é sair da mentira?
Pois bem, é preciso dizer que a proposta de Lacan é muito mais moderada. No que
concerne ao passe, ele fala de testemunhar o melhor possível sobre a verdade mentirosa.
Testemunhar o melhor possível já é relativizar o de que se trata. De fato, é relativo, já que
se trata de obter a satisfação dos colegas.
Disso decorre o que levo muito a sério e enfatizo no texto de 76, extraindo dele a seguinte
fórmula: o passe consiste em historisterizar47 a si mesmo, em uma auto-histoeria48.
É preciso ouvir aqui as duas palavras condensadas: história e histeria. Aliás, podemos
dizer que isso não é feito para desmenti-la. Você mesma, Marie-Hélène Roch, o enfatizou
na última parte de seu texto lida hoje: a contingência do passe, a captura do kairos. Se há
kairos é porque se deve apreender o bom momento e, você o disse, há que se pôr algo de
seu nisso.
Até onde vai esse “pôr algo de seu nisso”? É preciso pôr algo de seu para dispor a
análise sob a forma de histoeria, para lhe dar a forma de histoeria, ou seja, a forma de
relato, de epopéia. Histoeria descreve muito bem o de que se trata. No passe, contam-nos
histórias que são relatos, epopéias de um sujeito se confrontando com o sujeito suposto
saber. Além disso, devemos, sem dúvida, dar valor à histeria como um componente da
palavra histoeria.
Já em seu texto de 73, “Nota italiana”, na página 313, quando Lacan questiona Freud
fazendo dele o contra-exemplo do analista, ele relembra, para afastá-lo, o que a ciência

47
NT: s’ hystoriser, no orig., neologismo de Lacan formado pela junção de histeria e história, não possível
de reproduzirmos em português; cf. também “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”, Outros escritos,
Rio de Janeiro, JZE, 2003.
48
NT: uma auto-hystoire, no orig. Cf nota 42.
228

deve à estrutura histérica, diz ele: “Freud escreveu o romance de seus amores com a
verdade”. Aqui, ele evoca algo da posição histérica de Freud. Portanto, valorizo a histeria
e as afinidades do passe com a histeria dado que, para haver passe, é preciso haver, estar
presente de modo insistente, para o sujeito, o desejo do Outro. É preciso que ele aceite a
Escola e, eventualmente, que ele tenha substituído seus amores com a verdade pelo que
devemos supor ser um amor pela Escola, o que explicaria, nesse sentido, a maneira como
nos empenhamos a fim de obter a satisfação dos colegas.
Então, nessa terceira versão o passe é uma historisterização49 da análise. É certamente a
passagem da análise ao status de material para uma histoeria, mas, ao mesmo tempo, é
uma historisterização posta à prova.
Portanto, de um lado – retomemos o termo que Lacan colava de Freud –, é um romance,
uma lenda, o romance dos amores do sujeito com a verdade e, paradoxalmente, deveria
ser um “como cessei de amar a verdade”, como cessei de discutir com ela, de ser
atormentado por ela a fim de tentar inventar um saber, ou, em vez de ficar fascinado pela
maneira como Lacan o inventava.
Aqui, poderíamos propor – eu lhes proponho – comparar histerização e historisterização.
Há muito tempo apontamos, com Lacan, a histerização do sujeito como uma condição da
análise.
Trata-se de, através do dispositivo analítico, histerizar o sujeito e impeli-lo a buscar a
verdade de seu ser de desejo. O termo historização responderia muito bem a isso, quero
dizer que ele me parece bem fundamentado. A historisterização seria precisamente fazer
dessa busca da verdade uma história que se conta. Se aceitarmos esses termos, abrir-se-á
a questão de cingir, apreender, distinguir o mais exatamente possível histerização e
historisterização. A diferença poderia ser – cheguemos até lá – uma ponta de cinismo que
traduziria a virada do ser para o real. Como então, sem uma ponta de cinismo, romancear
a análise?
Se eu quisesse ir noutra direção, diria que os mais honestos não conseguem fazer o passe.
Os mais honestos, os que permanecem mais cativos de seus amores com a verdade, não
têm a distância que lhes permitiria fazer a análise de uma história.
Portanto, a diferença deveria ser buscada numa ponta, num toque de cinismo. Isso seria
de bom augúrio? Não, isso explicaria também algumas decepções dadas pelos AE, mas
permitiria pensar que, de fato, eles tiveram acesso suficiente ao fora-do-sentido do real
para poderem ter algumas liberdades no passe e voltar a dar, nele, um sentido. Aliás,
desde 67, Lacan diz que algumas liberdades podem ser obtidas na conclusão de uma
experiência. Pois bem, no registro dessa liberdade haveria precisamente um certo savoir-
faire com os destroços, com os resíduos de sua vida apaixonada.
Chegar a isso - e é preciso ainda ir além – não deixa incólume uma crença ingênua no
inconsciente. Aqui, podemos apreciar todo o valor da maneira como Lacan começa esse
pequeno texto de 1976. Temos certeza de estar no inconsciente, diz ele, quando há o fora-
de-sentido, mas, desde que prestemos atenção, saímos disso. Decorre daí a fórmula: não
há verdade que, ao passar pela atenção, não minta. Prestar atenção evidentemente dá
sentido. Essa fórmula de maio de 76, que contém ‘atenção à atenção!’, além de dar um
novo lugar a essa função, a da atenção - que parece psicológica, embora figure em Freud
e se encontre em sua obra “O Witz” - é nela, em termos precisos, que vemos engajar-se o
que será a busca limite de Lacan em sua elaboração do L’insu que sait de l’une-bévue, a
49
NT: hystorisation, no orig. CF. nota 42.
229

saber: uma nova definição do inconsciente, um questionamento da definição freudiana do


inconsciente o que, para nós, é uma convocação. Tentarei abordar essa questão no nosso
próximo encontro.
Não sei se posso lhe pedir, de imediato, Marie-Hélène, uma reação às minhas
formulações que preferi fazer tendo ao meu lado uma AE. Você poderia dizer alguma
coisa, mesmo que seja breve?

Marie-Hélène Roch – Quanto à “Nota italiana”, concordo com você. Afinal, é para
enfatizar “A Terceira”. Na historisterização, com efeito, a “Nota italiana” vem antes,
digamos, da homenagem enfatizada por você, mas me parece que a questão da nova
topologia efetivamente estava ali.

Jacques-Alain Miller – O texto de 73, o da “Nota italiana” como é chamado, segue o fio
da “Proposição de 67”, pois ele propõe a um grupo que ainda não existe, o Grupo
Italiano, acreditar totalmente no passe para se recrutar. Isso é o máximo da confiança
feita ao passe, pelo menos em sua visada principal. Já o texto de 76 - ainda que muito
brevemente, mas em algumas fórmulas fundamentadas pelo resto do ensino de Lacan –
questiona o passe de maneira absolutamente surpreendente. Penso ter sido por isso que
Lacan falou muito pouco sobre ele, o deixou prosseguir de uma forma tão discreta.
Foi o momento em que Lacan pôde dizer que a verdade não passa de um sonho do
inconsciente, um sonho do qual o próprio inconsciente participa. Evidentemente, ele não
questiona de modo algum o fato de haver um final de análise, nem que haja o analisado,
mas relativiza o passe à satisfação por ter, ele próprio, ouvido passes. Para ele, a
diferença entre o que ele disse no começo e o que escreveu em 76 está no fato de ele ter
sido um tanto mais rápido que nós que ouvimos bem mais passes. Ele foi mais rápido em
apreender, no passe, a dimensão de relato, de epopeia heroica, ainda que preservando a
ingenuidade e a humildade. Ele foi mais rápido do que nós em apreender o caráter de
artifício do relato do passe. Sem isso, dizemos: “mas as pessoas não dizem tudo. É claro,
elas enfatizam isto, deixam aquilo na sobra, insistem sobre tal ponto e não insistem sobre
um outro”. Podemos fazer disso uma sátira. Por vezes isso alimenta, em um certo número
de aficionados, a desconfiança, a suspeita ou a hostilidade para com os passantes,
sobretudo com os AE.
Aqui, entrar em contenda com o outro, esse tipo de rivalidade imaginária apenas
dissimula, como via de regra, o efeito de estrutura. E Lacan apreendeu muito rápido, me
parece, precisamente que, no próprio passe, no seu procedimento, há um empuxe-ao-
romance.
Dito isso, é ao mesmo tempo nos pontos em que falha o romance que o passe pode
melhor ser apreendido, mas é ao contar seus amores com a verdade, ou antes, é quando o
sujeito consegue atestar como ele se desembaraçou da verdade, como a verdade não mais
o importuna que isso pode ser mais bem observado. Parece-me que o texto de 73 pode,
contudo, ser tido como uma reafirmação das teses essenciais de 67, ao passo que o texto
de 76 é, de fato, uma virada, um passe do passe. Uma vez que o estudamos – e cabe
estudá-lo em seus pequenos detalhes -, podemos ver o que o prepara em 73, ou seja, já
em “Nota italiana”, ele desloca e rejeita os termos desejo e verdade.
Parece-me, todavia, que absorvida pelos nós ou pela convocação do último ensino de
Lacan , ao mesmo tempo que fazendo referência ao texto de 76, você contornou, de certo
230

modo, seu ponto mais difícil, aquele no qual se gostaria que os AE expressassem, de
algum modo, a metodologia do testemunho.
Penso que a revolução do testemunho feita ali por Lacan, a saber, testemunhar o melhor
possível sobre o que só pode ser uma verdade mentirosa, é algo que, por certo, impede
de acreditar no despertar. Isto é o que Lacan assinala em seu último ensino. Ele renuncia
à ideia, ainda iniciática, do despertar, o que implica situar algo de não superável na
mentira, e – chega inclusive até aqui – do qual a ciência não constitui o despertar.
Você (ILEGÍVEL, FALHA DE IMPRESSÃO) de me acompanhar nessa via?

Marie-HélèneRoch – Simplesmente, de fato, poderíamos dizer que a verdade se pulveriza


no ato de estar em situação de passe. Acho que o termo situação tem a ver porque, de
todo modo, não é mais [...] mentira.

Jacques-Alain Miller – Eu lhe agradeço.


Não posso marcar nosso novo encontro na semana que vem porque haverá exames nesta
sala. Então, dia 6 de junho vou continuar, aproveitando a abertura feita em companhia de
Marie-Hélène Roch.

Vigésima lição do Curso


Quarta-feira, 6 de junho de 2001

XX

Há, portanto, alguma coisa que é chamada o último ensino de Lacan. Tem esse nome
desde que eu assim o chamei e isolei com esse significante, mediante o qual eu dei ex-
sistência ao último ensino de Lacan.
Ex-sistência quer dizer que algo se mantém fora de. O último ensino de Lacan se mantém
fora do ensino de Lacan, que não é o último.
Isso supõe então que eu marque um corte individualizando, assim, o último ensino de
Lacan.
Destacar o último ensino de Lacan é uma construção. Como então qualificar esse corte?
Só podemos qualificá-lo a partir de sua construção, uma vez que não o vemos por ele
estar submerso na continuidade. Destaquemos a oposição entre o corte e a continuidade.

corte  continuidade

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