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PROJETO MEMÓRIAS DO COMÉRCIO EM SÃO PAULO: NOVOS OLHARES

ORIGENS: A EMIGRAÇÃO EM MASSA PARA SÃO PAULO

Boris Fausto1

Eles vieram de longe, da Europa ocidental, atravessando o Atlântico em busca


de um sonho dourado: “fazer a América”.

Eram homens que chegavam sós ou acompanhados de uma numerosa família,


mulheres, crianças, jovens e idosos. Eram artesãos, trabalhadores braçais, pequenos
comerciantes, serviçais domésticos e, ainda, malandros, caftens e prostitutas. Se não
sabiam bem como a América os trataria, chegavam com a esperança encarnada nas
expressões “Velho Mundo” e “Novo Mundo”.

Para explicar a migração em massa dos anos 1880-1930, os historiadores anglo-


saxões costumam falar em “push and pull”, ou seja, fatores de expulsão e fatores de
atração. Os primeiros dizem respeito ao agravamento das condições de vida no meio
rural, em países como a Itália e a Espanha, em particular. Em consequência do
acelerado crescimento populacional e da urbanização, as terras se tornaram muito
valiosas e escassas para os mais pobres. Muitos camponeses se viram forçados a
abandoná-las e tentar novos caminhos, do outro lado do Atlântico. Os fatores de
atração referem-se a um quadro de oportunidades nas Américas, não só de país a país,
como em certos casos, de região a região, ou de cidade a cidade. Pull e push tiveram
também um considerável incentivo, decorrente do encurtamento das viagens de
travessia do Atlântico, em navios cada vez mais velozes.

Alguns países e algumas cidades – Nova York, Buenos Aires, São Paulo −
destacaram-se pelas imensas transformações ocorridas no período da imigração em
massa. São Paulo viveu tais transformações, evidenciadas pelo incremento
populacional, pela formação de um mercado significativo, pela mudança de costumes,
hábitos e gostos.

O grande ciclo migratório de estrangeiros para o Estado de São Paulo, que


abrangeu os anos 1880-1930, teve uma sensível diminuição durante a Primeira Guerra
Mundial (1914-1918). Do ponto de vista quantitativo, os anos anteriores ao conflito
concentraram o maior número de imigrantes, pois o retorno das entradas na década
de 1920 nunca superou os anos de pré-guerra. Os anos 1891-1900 merecem destaque
especial. Naquele decênio, a população da capital, em torno de 65 mil habitantes em
1890, chegou a cerca de 240 mil habitantes em 1900 − um crescimento de quase
quatro vezes, em dez anos.

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Historiador, Membro da Academia Brasileira de Ciências

Este texto integra o livro Comércio em São Paulo: imagens e histórias da cidade, produzido pelo Projeto
Memórias do Comércio, idealizado pelo Sesc São Paulo e executado pelo Museu da Pessoa, em 2012
PROJETO MEMÓRIAS DO COMÉRCIO EM SÃO PAULO: NOVOS OLHARES

Houve variações no fluxo migratório, resultantes de fatores internos e externos.


Os fatores internos dizem respeito, principalmente, às oscilações da produção e dos
negócios ligados ao café. Os últimos relacionam-se a decisões governamentais, tanto
nos países de proveniência, quanto nos países de recepção. Exemplo de um país de
recepção é o dos Estados Unidos, em que medidas muito seletivas para o ingresso de
emigrantes, a partir de 1921, favoreceram a opção por outras áreas, como o Canadá, a
Argentina e o Brasil.

Por sua vez, o comportamento governamental nos países de origem resultou


no declínio temporário do ingresso de certas nacionalidades, como foi o caso dos
italianos em São Paulo, entre março de 1899 e julho de 1891. Nesses anos, o governo
da Itália suspendeu a imigração subsidiada, diante das constantes queixas de
tratamento inadequado na chegada ao Porto de Santos e nas fazendas do interior.

Na década de 1920, a ascensão de Mussolini ao poder resultou na queda da


entrada de emigrantes em nosso país. Embora a retórica do fascismo exaltasse a “Itália
das pátrias”, na prática, o Duce não estimulou o fluxo emigratório, convencido de que
o crescimento de uma população sadia era um fator básico para que o país se
convertesse numa grande potência.

A chegada de grandes levas de emigrantes a São Paulo deu origem a um forte


sentimento de “estranheza”, não só entre a população paulistana, como entre
estrangeiros já assentados em pequeno número na cidade. Muitos atribuíam o
aumento dos furtos e roubos à vinda para São Paulo de indivíduos “sem eira nem
beira”, que estavam tirando o sossego de cidadãos honestos. Outra razão da
animosidade era a agressiva concorrência que os imigrantes impunham, na área do
comércio e dos serviços, em detrimento dos brasileiros. Além disso, dizia-se que a
massa de recém-chegados perturbava a vida recatada dos paulistanos com seus “maus
modos”, sua gritaria, suas frequentes brigas.

Nem só os recém-chegados eram malvistos na cidade. No livro Formação


histórica de São Paulo, Richard Morse transcreveu um trecho do Diário Popular, de 30
de abril de 1892, no qual se repelia veementemente a afirmação de que eram os
pretos – recém-libertos – os responsáveis pela proliferação de mendigos na cidade.
Isso se devia, segundo o jornal – aos estrangeiros inutilizados no exterior que para cá
vinham exibir suas mazelas, atraídos pela generosidade de nossa gente.

Aos estereótipos negativos forjados contra os imigrantes, estes reagiram com


estereótipos opostos. Os brasileiros, segundo eles, não faziam esforços para progredir
e preferiam instalar-se nos cargos públicos, se possível com a ajuda de um padrinho.

Um exemplo das tensões que redundaram em conflito, em São Paulo, é o caso


do “Protocolo Italiano”, ocorrido em 1893. O estopim foi a assinatura de um protocolo,
firmado entre os governos do Brasil e da Itália, visando indenizar cidadãos italianos por

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danos sofridos na Revolução Federalista, que ocorrera no Rio Grande do Sul.


Estudantes da Faculdade de Direito realizaram comícios inflamados, em que
condenavam a “subserviência” do governo brasileiro, diante das pressões de um país
estrangeiro. Mais graves foram os choques no centro da cidade e nos bairros do Brás e
do Bom Retiro, deixando um saldo de mortos e feridos.

Navegando em águas mais calmas, lembro que alguns grupos ganharam, em


São Paulo, características profissionais específicas. É o caso de sírios, libaneses e
judeus – as “etnias comerciantes”, na feliz expressão do sociólogo Oswaldo Truzzi.
Observe-se, de passagem, que o termo “etnia” é aqui utilizado em sentido genérico,
despido do rigor de uma definição antropológica.

Os sírios e libaneses eram provenientes do Império Otomano até ocorrer a


desagregação deste, em 1922. Na época, os vencedores da Primeira Guerra Mundial
promoveram a criação da Síria e do Líbano como dois países distintos. No Brasil, sírios
e libaneses foram englobados numa só rubrica de sírio-libaneses, embora a princípio
essa identificação suscitasse muitas restrições no âmbito da colônia. Os libaneses se
tinham por gente de melhor posição social, de melhor cultura – o conhecimento de
línguas, principalmente o francês, era sempre lembrado − em contraste com os sírios,
tidos como gente grosseira e ignorante.

Ao traçar um paralelo entre as etnias comerciantes, as coincidências são tão


relevantes quanto as diferenças. A temporalidade dos primeiros contingentes que
chegaram a São Paulo foi diversa. Os sírio-libaneses começaram a migrar em maior
número, a partir do último decênio do século XIX, antecipando-se aos judeus em cerca
de 30 anos. De tal forma que, quando os judeus começaram uma nova vida em São
Paulo, os sírio-libaneses já estavam instalados, e quase sempre bem instalados, na
cidade.

Um padrão comum caracterizou as duas etnias, no que diz respeito às primeiras


atividades comerciais. Em ambos os casos, o comércio ambulante foi o primeiro
degrau de uma escalada feita com enorme esforço, na busca incessante de obter
espaços e enfrentar a concorrência. Penetrar no comércio atacadista, por exemplo,
significou para os sírios-libaneses concorrer com os portugueses, solidamente
implantados na cidade, pelos lados da Rua Florêncio de Abreu e adjacências. Como
exemplo expressivo, dentre os muitos mascates que subiram na vida em São Paulo,
destacam-se os cinco irmãos da família Jafet. Eles emigraram do Oriente Médio, entre
1887 e 1893, e se tornaram, ao longo dos anos, uma das famílias mais ricas de São
Paulo, com investimentos na mineração, na indústria têxtil e na metalurgia.

Sempre presente nas ruas paulistanas, o mascate caminhava sob o sol ou sob a
chuva, em passos lentos, batendo de porta em porta, oferecendo tecidos, armarinho,
bijuterias reluzentes e baratas, sabonetes e perfumes. Não era, é claro, uma atividade
fácil. Em anos passados, conheci judeus idosos, encurvados, que atribuíam a
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deformação das costas não a uma herança genética, e sim ao peso das mercadorias
que tinham carregado, por anos e anos.

Mascates e pequenos comerciantes introduziram o crédito como um elemento


facilitador das transações, baseado na confiança. Tanto os mascates quanto os
comerciantes estabelecidos nos bairros forneciam à clientela gêneros de subsistência,
anotavam numa caderneta o preço e a data dos fornecimentos, para afinal fazerem o
acerto de contas no fim de cada mês. Entre parêntesis, creio que daí surgiu, em outro
contexto, a expressão “freguês de caderneta”, na gíria do torcedor de futebol.

Do ponto de vista espacial, desde os primeiros anos do século XX, os sírio-


libaneses fixaram-se na Rua 25 de Março e adjacências. Embora a Rua 25 não exibisse
a variedade do comércio, nem as ruidosas multidões que a percorrem nos dias de hoje,
já era identificada como um centro de venda de tecidos a bom preço. A princípio, os
comerciantes sírio-libaneses costumavam ocupar sobrados com destinação mista: loja
no térreo e residência familiar. Ao subirem na vida, foram se transferindo para bairros
residenciais da cidade e alguns chegaram à Avenida Paulista, já por volta de 1910. Ao
historiador paulista Alfredo Ellis Jr., impressionaram os palacetes que lembravam
“bolos de casamento”, com suas abundantes colunas, seus arcos, seus arabescos, seus
terraços, seus mirantes em forma de minaretes.

Os judeus do ramo asquenaze estabeleceram-se no bairro do Bom Retiro. O


bairro é um excelente exemplo da sucessão das ondas migratórias para São Paulo. Nas
últimas décadas do século XIX, aí se concentravam os palacetes da classe alta, quando
ocorreu a “invasão” de levas e levas de italianos, que desembarcavam na Estação da
Luz. A gente rica, com seus palacetes, migraram para os Campos Elíseos, e os italianos
pobres se tornaram dominantes no bairro, até a chegada dos judeus, a partir de 1920.
Estes implantaram, na região, uma expressiva comunidade, com suas sinagogas,
centros de cultura, jornais publicados em iídiche, restaurantes de comida kasher.

Mas muitos judeus também enriqueceram e, pouco a pouco, foram se


deslocando para outras áreas da cidade, como é o caso de Higienópolis e das alamedas
transversais à Rua da Consolação e à Rua Bela Cintra. Mais recentemente, o Bom
Retiro mudou de novo sua fisionomia, com a chegada de emigrantes asiáticos,
especialmente vindos da Coreia. Entretanto, em meio a essas sucessivas mudanças de
fisionomia, o ramo de atividades do bairro se manteve, pois a vocação comercial
resistiu à passagem do tempo.

A ênfase na Rua 25 de Março e no Bom Retiro não significa que as etnias


comerciantes tenham se concentrado apenas nessas áreas. Na verdade, elas
espalharam-se pela Lapa, pela Mooca, por onde houvesse uma clientela à vista. Só

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tiveram muita dificuldade em se estabelecerem no Centro, que não era o Centro


Velho, pois o Centro Novo ainda não existia.

Graças ao livro A cidade-exposição: comércio e cosmopolitismo em São Paulo


(1860-1914), da historiadora Heloisa Barbuy, é possível mergulhar no passado, ainda
que brevemente, e percorrer as casas comerciais instaladas no Triângulo, formado
pelas Ruas 15 de novembro, Direita e São Bento. Já em meados do século XIX, ali se
fixaram joalheiros e profissionais de relojoaria, em sua maioria judeus franceses, com
uma sólida rede de relações na Europa, que lhes permitia importar artigos finos, sem o
risco das falsificações. Anos depois, as ruas do Triângulo se converteram num polo
comercial, a que acorriam as jovens da sociedade, os senhores elegantes, em busca de
artigos de luxo; ou simples curiosos, atraídos pela beleza das vitrines. Surgiram então
as grandes lojas cuja existência se prolongou até os anos 1940-1950. É o caso da Casa
Sloper, da Casa Alemã, do Mappin Stores, da Casa Kosmos, cuja liquidação anual era
um acontecimento aguardado pelas famílias de classe média. Exemplo excepcional é o
da Casa Fretin, fundada em 1895, por Louis Albert Fretin – um brasileiro, filho de pais
franceses. A Casa Fretin especializou-se no campo da óptica e como fornecedora de
instrumentos de cirurgia, existindo até os dias de hoje.

Num salto, volto com pesar das ruas do Centro Velho, para terminar com
algumas palavras finais.

Em várias passagens deste texto, realcei o preconceito, os estereótipos, os


atritos que marcaram as relações entre estrangeiros e nacionais, nos tempos idos de
São Paulo. Optei por essa abordagem para evidenciar o fato de que a integração das
diferentes etnias na cidade, visível a nossos olhos, resultou de um processo complexo,
marcado por vicissitudes e tensões. Quando mais não fosse, os obstáculos surgidos ao
longo desse processo valorizam, em muito, o final feliz desta história.

Este texto integra o livro Comércio em São Paulo: imagens e histórias da cidade, produzido pelo Projeto
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