Você está na página 1de 4

UnB | CDS | PPGCDS2098 | Heloisa Brenha Ribeiro | Matrícula 231118880

Altieri e Toledo (2011)


ALTIERI, Miguel A.; TOLEDO, Victor Manuel. The agroecological revolution in Latin America:
rescuing nature, ensuring food sovereignty and empowering peasants. Journal of Peasant Studies,
v. 38, n. 3, p. 587-612, 2011. https://doi.org/10.1080/03066150.2011.582947

H á uma revolução em curso na América Latina. Uma tripla revolução – epistemológica,


técnica e social – que vem introduzindo na região formas novas e inesperadas de
autossuficiência local, de conservação e de regeneração da agrobiodiversidade, e de
produção de alimentos saudáveis com poucos recursos externos e com a participação ativa de
organizações camponesas. Essa revolução está sendo gestada pelo menos desde os anos 1980 e vem
ganhando força como alternativa sustentável ao paradigma agroexportador e produtor de
biocombustíveis do continente, que só faz ameaçar sua sobernania alimentar e aquecer o planeta.
Trata-se da “revolução agroecológica”, que vem sendo liderada por uma série de movimentos
camponeses locais, regionais e nacionais, e recebendo a adesão e o apoio crescente de ONGs, de
instituições acadêmicas e também governamentais.
Essa é a tese central defendida pelo agrônomo chileno Miguel Altieri (1950-), professor
emérito da Universidade da Califórnia Berkeley, e pelo biólogo mexicano Victor Manuel Toledo
(1945-), secretário de Meio Ambiente e Recursos Naturais do México em 2019-2020, no artigo “The
agroecological revolution in Latin America: rescuing nature, ensuring food sovereignty and
empowering peasants” (A revolução agroecológica na América Latina: resgatando a natureza,
garantindo a soberania alimentar e empoderando os camponeses, em tradução livre). Nele, os autores
mostram que a agroecologia, longe de ser uma quimera hippie ou “coisa de comunista”, já é uma
realidade objetiva e pujante em pelo menos cinco áreas do continente (Brasil, Cuba, América
Cental, Andes e México), que podem se tornar polos mundiais de inovação tecnológica, cognitiva
e/ou social.
Nas seções a seguir, resumiremos os principais achados de Altieri e Toledo sobre cada uma
delas, comentando finalmente de que maneira essas evidências e análises podem contribuir para
novos itinerários de pesquisa e para pensar uma agenda ecoagrária alinhada aos desafios de nosso
século.

Brasil
“Talvez nenhum outro país tenha experimentado uma expansão mais dramática da
agroecologia do que o Brasil”, afirmam Altieri e Toledo (p. 589). Além de seu rápido avanço, a
expansão agroecológica brasileira se distingue por seu caráter simultaneamente ativista e
institucional. Discussões sobre agroecologia aparecem no meio acadêmico do país desde os anos
1980, com destaque para o trabalho dos agronômos José Antonio Lutzenberger (1926-2002) e Anna
Maria Primavesi (1920-2020). Em 1983, surge a Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura
Alternativa (AS-PTA), que, de acordo com os autores, desempenhou um papel importante na
disseminação de informações agroecológicas entre ONGs, organizações de agricultores e estudantes
de agricultura em todo o país.
Nas décadas seguintes, ainda segundo Altieri e Toledo, os avanços da agroecologia no Brasil
estiveram ligados a três processos principais: 1) à formação de uma nova geração de agroecologistas
brasileiros, muitos dos quais se tornaram professores e pesquisadores em universidades públicas e
centros de pesquisa e extensão; 2) à reorientação do movimento da agricultura familiar para a
agroecologia; e 3) à chegada de agroecologistas a cargos-chave dos governos estaduais e federal.
Esses processos resultaram na implementação de centenas iniciativas agroecológicas pelo país.

1
UnB | CDS | PPGCDS2098 | Heloisa Brenha Ribeiro | Matrícula 231118880

A partir de então, os autores elencam uma série de avanços institucionais da agenda


agroecológica no Brasil. A agroecologia é incorporada a currículos e a projetos de ensino e pesquisa,
sobretudo nas universidades públicas. O Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura
Familiar (MDA) passa a desempenhar um papel importante não só no apoio a projetos de educação e
pesquisa mas principalmente na criação de instrumentos que facilitam o acesso de agricultores
familiares a conhecimentos, crédito, mercados etc. Em 2004, é criada a Associação Brasileira de
Agroecologia (ABA), que reúne pequenos agricultores, pesquisadores e técnicos de ONGs em
centenas encontros periódicos, nacionais e estaduais, para debater e promover a agroecologia no
Brasil. Em 2006, é lançada a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), estratégica para
coordenar esforços entre organizações de agricultores, instituições acadêmicas e terceiro setor. Até
mesmo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), aparato público de pesquisa
bastante ligado ao agronegócio, desenvolveu programas de agroecologia junto à ABA, à ANA e a
movimentos sociais.
Sobre estes últimos, Altieri e Toledo ressaltam a convergência ideológica em torno da
agroecologia que vem ocorrendo, pelo menos desde os anos 2000, entre organizações que lutam
contra as enormes injustiças agrárias no Brasil, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores
Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (CONTAG), a Federação dos Trabalhadores e
Trabalhadoras na Agricultura Familiar (FETRAF) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST).
É interessante notar que, no ano 2000, a agroecologia assume papel de destaque na orientação
das ações estratégicas do MST (SILVA, 2011, p. 55). Desde então, ela foi articulada à luta do
movimento pela terra, incorporada a seu projeto de Reforma Agrária Popular, implementada em seus
assentamentos e acampamentos, inserida na matriz curricular de suas escolas rurais, e tematizada em
novos cursos (técnicos, tecnológicos, de graduação ou de pós-graduação), bem como em incontáveis
seminários e eventos de formação política na área, organizados pelo MST país afora (MST, 2022).
Para Altieri e Toledo, há quatro razões principais pelas quais a agroecologia foi adotada pelos
movimentos sociais rurais: (a) a agroecologia é socialmente mobilizadora, uma vez que sua difusão
requer a participação constante dos agricultores; (b) é uma abordagem culturalmente aceitável, uma
vez que se baseia no conhecimento tradicional, dialogando também com abordagens científicas
ocidentalizadas; (c) promove técnicas economicamente viáveis, privilegiando a utilização dos
conhecimentos indígenas, da agrobiodiversidade e dos recursos locais, evitando assim a dependência
de produtos externos; e (d) é ecologicamente correta, uma vez que não tenta modificar os sistemas de
produção existentes, mas sim otimizar seu desempenho, promovendo diversidade, sinergia e
eficiência.

Cuba
O sistema alimentar cubano vem passando por um processo de transformação em resposta à
crise que se instalou no país com o fim da União Soviética. Essa crise, marcada pelo embargo
comercial dos EUA e pelo colapso das importações de petróleo, agroquímicos e maquinaria agrícola
do bloco soviético, limitou a capacidade de Cuba de importar alimentos e materiais necessários para
a agricultura convencional. O país voltou-se então para a autossuficiência, e o movimento
agroecológico cresceu vigorosamente. Parte significativa das cerca de 100.000 famílias de pequenos
agricultores idependentes de Cuba hoje fazem parte do movimento Campesino a Campesino (CAC).
Elas introduziram métodos de diversificação agroecológica e de agricultura urbana no sistema
alimentar cubano, e vem produzindo atualmente muito mais alimentos por hectare do que os
sistemas industriais da ilha. Da experiência cubana, Altieri e Toledo ressaltam que a
agroecologia, tal como é promovida pelo movimento Campesino a Campesino, tem se revelado
“a forma mais eficiente, barata e estável de produzir alimentos por unidade de terra, insumos e
mão de obra” (p. 601).

2
UnB | CDS | PPGCDS2098 | Heloisa Brenha Ribeiro | Matrícula 231118880

América Central
De um intercâmbio entre camponeses guatelmatecas e mexicanos no fim dos anos 1980,
nasce o movimento Campesino a Campesino, que floresceria nas décadas seguintes no sul do
México e na América Central, regiões há muito deflagradas por conflitos armados. Um elemento-
chave na metodologia do CAC é o papel do promotor campesino (promotor camponês): um
agricultor que, após introduzir com sucesso uma nova tecnologia de produção, passa estimular outros
agricultores a testar sua experiência. Desenrola-se, assim, um processo autônomo de difusão do
conhecimento agroecológico, que dispensa a presença de pesquisadores ou extensionistas. Estima-se
que cerca de 10.000 famílias na Nicarágua, em Honduras e na Guatemala hoje pratiquem o método
CAC, multiplicando com ele seus rendimentos – em até 4 vezes, de acordo com alguns casos
documentados.

Andes
A região andina do Peru, do Equador e da Bolívia constitui um cenário privilegiado para o
desenvolvimento da agroecologia, dada a presença de um enorme campesinato de origem indígena,
altamente resistente e mobilizado politicamente, inclusive em defesa do legado agrícola pré-
hispânico. Nas últimas décadas, essas populações encontraram na agroecologia um novo paradigma
para sua agricultura nativa. Operando por meio de redes descentralizadas de comunidades,
cooperativas e associações de agricultores, e recentemente vêm crescendo, com o apoio da sociedade
civil, elas vêm estabelecendo um diálogo crescente com pesquisadores, técnicos, ONGs, instituições
acadêmicas e redes de consumidores urbanos. Essas parcerias propiciam uma troca intensa de
conhecimentos, e vêm se desdobrando em diversos projetos (de agroecologia, de conservação da
natureza etc.), bem como em pressão política sobre os governos, em favor das populações indígenas
e camponesas desses países.

México
A Revolução Mexicana (1910-1917) deu origem à primeira reforma agrária do continente,
deixando nas mãos de comunidades camponesas e indígenas grande parte das terras, florestas e dos
recursos genéticos nativos do México. Alcaçaram-se, assim, dois imensos avanços no país: a
recampezinação do meio rural (resultado do desmantelamento do latifúndio e da revalorização da
pequena propriedade agrícola, de 9-25 hectares) e a reinvenção da matriz mesoamericana (que
garantiu aos povos indígenas acesso à terra, por meio do reconhecimento de seus territórios
ancestrais).
Com isso, a agroecologia no México não se reduz à agricultura mas envolve sistemas
socioecológicos de gestão dos recursos naturais, incluindo as florestas, a recuperação de terras
degradadas e a conservação da agrobiodiversidade. Numerosas comunidades que recuperaram
controle sobre suas terras florestais estão empenhadas na produção de uma variedade de
produtos madeireiros e não madeireiros, por exemplo. É também digna de nota a imensa
produção de café do país, que é em sua maior parte feita por povos indígenas que mantêm
agroflorestas complexas, diferindo drasticamente das plantações industriais (subsidiadas por
agroquímicos e propensas à erosão do solo). Grande parte desses produtores é filiada a cooperativas
organizadas regional e nacionalmente, fazendo do México um dos maiores exportadores de café
orgânico certificado do mundo.

Considerações finais
Para Altieri e Toledo, “a promoção de um paradigma agroecológico baseado na revitalização
de pequenas propriedades e processos sociais que valorizam o envolvimento e o empoderamento das
comunidades é a única opção viável para atender às necessidades alimentares”, na América Latina,
“nesta era de aumento dos preços do petróleo e de mudanças climáticas globais” (p. 589). Os autores
apontam que, contrariando as previsões acadêmicas de desaparecimento do campesinato, os

3
UnB | CDS | PPGCDS2098 | Heloisa Brenha Ribeiro | Matrícula 231118880

camponeses latino-americanos aumentaram sua presença cultural, social e política na região,


assumindo um novo papel na resistência contra a agricultura industrial e o neoliberalismo (p. 606).
Expressão disso é a emergência, em 1993, da Via Campesina. Essa articulação internacional
de movimentos sociais rurais agrupa numerosas organizações latino-americanas, e tem sido
fundamental para o avanço da agenda da soberania alimentar na região e no mundo. Ela também foi
chave para a aprovação, em 2018, da Declaração Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses,
das Camponesas e de Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais (VIA CAMPESINA BRASIL,
2021). Estudar como esses movimentos – em que pese sua heterogeneidade marcante em termos de
membros e contextos de origem – vêm conseguindo avançar política e institucionalmente e colocar
as pautas da fome e da agroecologia na ordem do dia pode ser um caminho para compreender e
conceber as estratégias de resiliência e de enfrentamento ao capitalismo de que hoje tanto
necessitamos.

Referências:
MST. 3 elementos chave sobre Educação em Agroecologia do Dicionário Agroecologia e Educação.
mst.org.br, 6 mai.2022. Disponível em: <https://mst.org.br/2022/05/06/3-elementos-chave-sobre-
educacao-em-agroecologia-do-dicionario-agroecologia-e-educacao/>. Acesso em 13 jul.2023.

SILVA, Priscilla Gomes da. A incorporação da agroecologia pelo MST: reflexões sobre o novo discurso e
experiência prática. 2011. 177f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2011. Disponível em: <https://app.uff.br/riuff/handle/1/16339>. Acesso em 13
jul.2023.

VIA CAMPESINA BRASIL. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses, das
Camponesas e de Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais. Tradução e Revisão: Rafael
Bastos, Tairí Felipe Zambenedetti, Tchenna Maso, Marina dos Santos e Marciano Toledo. Secretaria
da Via Campesina Brasil, 2021. Disponível em:
<https://mab.org.br/wp-content/uploads/2021/02/DECLARA%C3%87%C3%83O-DOS-DIREITOS-
DOS-CAMPONESES-E-DAS-CAMPONESAS-.pdf>. Acesso em 13 jul.2023.

Você também pode gostar