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UnB | CDS | PPGCDS2098 | Heloisa Brenha Ribeiro | Matrícula 231118880

Foster (2013)
FOSTER, John Bellamy. Marx and the rift in the universal metabolism of nature. Monthly Review,
v. 65, n. 7, p. 1-19, 1 dez.2013. Disponível em: <https://monthlyreview.org/2013/12/01/marx-rift-
universal-metabolism-nature/>. Acesso em 12 jul.2023.

N a virada do século XX para o XXI, a teoria da fenda metabólica de Karl Marx (1818-1883)
foi redescoberta por muitos pensadores de esquerda como uma crítica poderosa à relação da
sociedade capitalista contemporânea com a natureza. O resultado dessa redescoberta,
segundo o sociólogo norte-americano John Bellamy Foster (1953-), foi o desenvolvimento de uma
visão mais unificada sobre a ecologia, que transcende as divisões entre ciências naturais e sociais. No
entanto, essa redescoberta também deu origem a perguntas e críticas dentro da própria esquerda
marxista. É a quatro delas que o professor da Universidade do Oregon se dirige em “Marx and the
rift in the universal metabolism of nature” (Marx e a fenda no metabolismo universal da natureza,
em tradução livre), retomando, passo a passo, o caminho que o filósofo alemão percorreu até
formular sua teoria da fenda metabólica. A seguir, apresentamos as quatro réplicas de Foster, que não
só nos ensinam que teoria é essa como nos persuadem de sua força para explicar a crise ecológica de
nossos tempos.

1) Como a análise de Marx sobre o metabolismo da natureza e da sociedade se relaciona com


a “dialética da natureza”, tradicionalmente considerada uma falha na teoria marxista?
Foster começa explicando por que a dialética da natureza foi vista por alguns marxistas como
uma falha na teoria de Marx. Na corrente interpretativa que ficou conhecida como “marxismo
ocidental”, a dialética se aplicava apenas à sociedade e à história humanas, e não à natureza de forma
independente. O materialismo dialético era visto como uma forma de minimizar o fator subjetivo (ou
agência humana), o que acabou reduzindo o marxismo à mera conformidade com leis naturais
objetivas, e conferindo ao materialismo um viés mecanicista ou mesmo positivista.
Muitos, porém, rejeitaram essa interpretação. É o caso, por exemplo, dos filósofos húngaros
György Lukács (1885-1971) e István Mészáros (1930-2017), dois importantes intelectuais marxistas.
De acordo com Foster, Lukács entendeu que o intercâmbio metabólico com a natureza, em Marx, era
socialmente mediado pelo trabalho e pela produção. O processo de trabalho seria, portanto, uma
forma de metabolismo entre a humanidade e a natureza, que permitiria aos seres humanos perceber
(ainda que de modo limitado pelo desenvolvimento histórico da produção) certas condições objetivas
de existência. Em outras palavras: “Os seres humanos transformam a natureza por meio de sua
produção, mas não o fazem como bem entendem; ao contrário, o fazem sob condições herdadas do
passado (da história natural e social), permanecendo dependentes da dinâmica subjacente da vida e
da existência material” (p. 8-9). Mészáros, por sua vez, identificou na teoria de Marx sobre a
alienação uma relação humanidade-produção-natureza na qual a produção faria a mediação entre a
humanidade e a natureza. Os seres humanos seriam, portanto, seres “automediadores” da natureza.
Foster considera que tanto Lukács quanto Mészáros viram no argumento metabólico de Marx
uma abordagem baseada na práxis, que integra natureza e sociedade, história social e história natural,
sem reduzir uma inteiramente à outra. E defende que: “Em nossa era ecológica atual, esse
entendimento complexo – porque abrange dialeticamente as relações entre parte e todo, sujeito e
objeto – torna-se um elemento indispensável em qualquer transição social racional” (p. 4).

2) A teoria da fenda metabólica viola a dialética, caindo em um dualismo cartesiano


simplista?

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Na visão de Foster, o uso que Marx fez do conceito de metabolismo não foi simplesmente uma
tentativa de resolver um problema filosófico, mas sim um esforço para fundamentar materialmente
sua crítica da economia política na compreensão sobre as relações homem-natureza que emanava das
ciências naturais de sua época. A fenda metabólica seria a “fenda irreparável no processo
interdependente do metabolismo social, um metabolismo prescrito pelas leis naturais da própria
vida” (MARX, 1981, p. 949 apud FOSTER, 2013, p. 5)1. Essa definição reverberava as contradições
da agricultura industrial do século XIX. À época, a Inglaterra enfrentava dificuldades agrícolas cada
vez maiores devido ao esgotamento de nutrientes do solo, e passou a liderar uma corrida global por
fertilizantes naturais. É nesse contexto que Marx, já a partir dos Grundrisse (1857-1858) , passa a dar
“[...] ao conceito de metabolismo (Stoffwechsel) – desenvolvido pela primeira vez na década de 1830
por cientistas envolvidos nas novas descobertas da biologia e fisiologia celular e depois aplicado à
química [...] e à física – um lugar central em sua descrição da interação entre a natureza e a sociedade
por meio da produção. Ele definiu o processo de trabalho como a relação metabólica entre a
humanidade e a natureza. Para os seres humanos, esse metabolismo necessariamente assumiria uma
forma socialmente mediada, abrangendo as condições orgânicas comuns a toda a vida mas também
assumindo um caráter histórico-humano distinto por meio da produção” (p. 6).
Foster enfatiza que “a teoria da fenda metabólica de Marx, como geralmente é exposta, é uma
teoria da crise ecológica – de ruptura do que Marx via como a eterna dependência da sociedade
humana das condições da existência orgânica. Isso representava, em sua opinião, uma contradição
insuperável associada à produção capitalista de mercadorias, cujas implicações totais, porém, só
poderiam ser compreendidas dentro de uma teoria mais ampla do metabolismo natureza-sociedade”
(p. 8).
É no esforço de elaborar essa teoria mais ampla que Marx introduz o conceito de “metabolismo
universal da natureza”, construindo-o, segundo Foster, da seguinte forma: A sociedade e a produção
sempre foram internas e dependentes de um metabolismo terrestre maior, que precedeu o surgimento
da vida humana e é condição natural de sua existência. A humanidade, por meio da produção, extrai
seus valores de uso desse metabolismo, dando-lhes uma “vida nova”, uma espécie de segunda
natureza (social). Contudo, em uma economia capitalista, essa segunda natureza assume uma forma
alienada, dominada pelo valor de troca em vez do valor de uso, gerando uma fenda nesse
metabolismo.
Para Foster, essa passagem deixa claro que a análise do metabolismo da natureza e da sociedade
feita por Marx: “Longe de representar uma abordagem dualista ou não reflexiva do mundo [...] era
eminentemente dialética, com o objetivo de compreender a totalidade concreta mais ampla” (p. 9). E
afirma que a principal razão pela qual “um punhado de críticos de esquerda, lutando com essa
estrutura conceitual, caracterizou a teoria da fenda metabólica como uma forma de dualismo
cartesiano deve-se à incapacidade de perceber que, dentro de uma perspectiva materialista-dialética,
é impossível analisar o mundo de forma significativa, exceto pelo uso da abstração que isola
temporariamente, para fins de análise, um ‘momento’ (ou mediação) dentro de uma totalidade” (p.
9).

3) Marx, escrevendo no século XIX, poderia contribuir para nossa compreensão da ecologia e
da relação entre seres humanos e ecossistemas, com a complexidade que elas têm de hoje?
Subjacentes a essa pergunta, há duas objeções comuns dirigidas à teoria da fenda ecológica: a de
que ela seria ultrapassada para descrever rupturas em processos naturais, e a de que ela precisaria ser
atualizada para conseguir abordar os ecossistemas e suas interações com o processo de trabalho.
Foster, porém, argumenta que a síntese ecossistema-trabalho é um ponto forte da teoria da fenda
metabólica de Marx, a qual, desde o início “se baseava explicitamente em uma compreensão do
processo de trabalho como a troca metabólica entre os seres humanos e a natureza e, portanto,
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MARX, Karl. Capital, vol. 3. Londres: Penguin, 1981.

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apontava para a importância da sociedade humana em relação aos ciclos biogeoquímicos e às trocas
de matéria e energia em geral” (p. 10). Ele destaca que a abordagem metabólica de Marx tem sido
amplamente adotada tanto pelo pensamento ambiental, por exemplo, em pesquisas que abordam os
fluxos de materiais associados às áreas urbanas (o chamado “metabolismo industrial”) como pelas
ciências sociais (por exemplo, em trabalhos que problematizam a industrialização da relação
humano-metabólica com a natureza, às custas dos ecossistemas) e pela economia ecológica (em
noções como “regimes sociometabólicos” e “limites planetários”, por exemplo).

4) As reflexões feitas por Marx no século XIX sobre o metabolismo da natureza e da sociedade
não estariam ultrapassadas hoje, em nossa era tecnológica e científica mais desenvolvida?
Muito pelo contrário, argumenta Foster: “É exatamente neste momento, quando confrontamos a
enormidade da Grande Fenda no metabolismo da Terra, que a abordagem de Marx ao metabolismo
da natureza e da sociedade se torna mais indispensável” (p. 15). De acordo com o autor, a análise
metabólica de Marx é única no sentido de apontar, para além das forças de acumulação e tecnologia
(produção), para a questão das necessidades humanas e de sua satisfação. “O valor de uso natural e
material do trabalho humano, na teoria de Marx, residia em sua produtividade real em termos da
satisfação genuína das necessidades humanas. No capitalismo, argumentou ele, esse potencial
criativo foi tão distorcido que a força de trabalho era vista como ‘útil’ (sob a perspectiva do valor de
troca capitalista) apenas na medida em que gerava mais-valia para o capitalista” (p. 15).
Evidentemente, diz Foster, Marx não acompanhou todos os desdobramentos dessa distorção
do valor de uso e da própria utilidade do trabalho. No contexto capitalista de meados do século XIX,
ainda se presumia que os valores de uso produzidos tinham lastro em necessidades humanas
genuínas. O autor argumenta que isso mudou sob o capitalismo monopolista desenvolvido a partir do
último quarto do século XIX e sob a fase atual do capitalismo monopolista-financeiro globalizado.
“O sistema exige cada vez mais, simplesmente para se manter em condições de superacumulação
crônica, a produção de valores de uso negativos e a não satisfação das necessidades humanas”, o que
“implica a alienação absoluta do processo de trabalho, ou seja, da relação metabólica entre os seres
humanos e a natureza, transformando-a predominantemente em uma forma de desperdício” (p. 15-
16).
Esse desperdício é central à ideia da “destruição criativa” do capitalismo, introduzida
originalmente por Marx nos Grundrisse, e posteriormente desenvolvida por intelectuais como
Schumpeter (1961), Mészáros e Harvey.2 Marx dizia que a busca incessante do capitalismo pelo
lucro leva o trabalho para além dos limites naturais, resultando tanto em progresso técnico como na
desvalorização do valor da natureza e do trabalho. De um lado, empresas mais produtivas e
inovadoras surgem das cinzas de empresas antigas, excluídas do mercado pelo acirramento da
competição. Essas empresas novas podem então adquirir o maquinário e as instalações das antigas
por um preço muito mais baixo do que o do mercado, de modo que “a lucratividade do capital [novo]
é restaurada por meio da destruição do capital antigo” (SINN, 2017, p. 235-236). Tal processo, ao
mesmo tempo em que facilita a formação de monopólios, também desvaloriza o valor da natureza e
do trabalho. De um lado, a natureza “deixa de ser reconhecida como um poder para si mesma” e
“torna-se puramente um objeto para a humanidade” (MARX, 1973, p. 410 apud ELLIOT, 1978, p.
150)3. Do outro, os ganhos de produtividade gerados pelo avanço tecnológico diminuem a
quantidade de trabalho embutida em cada mercadoria – e, portanto, o valor dela mesma. Ou seja,
embora busque acumular incessantemente valor, o capitalismo mesmo retira o valor daquilo que
produz. Historicamente, como bem aponta Kurtz (2005), essa “autocontradição lógica” do sistema
capitalista só pôde ser compensada por sua expansão. Só que essa expansão é justamente a causa
primeira da crise social e ecológica que enfrentamos hoje.
2
Para uma introdução comparada às abordagens de “destruição criativa” em Mészáros e Harvey, ver Cardoso (2018).
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MARX, Karl. The Grundrisse: introduction to the critique of political economy. Tradução e prefácio de Martin
Nicolaus. Nova York: Vintage, 1973.

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Em “Marx and the rift”, Foster sugere que é na politização do debate sobre a destruição
criativa do capitalismo que a teoria marxiana da fenda metabólica atinge sua maior potência.
Associadas, essas duas noções levantam questões cruciais para repensarmos a economia e lidarmos
com as crises atuais, como a da necessidade de planejar e de definir coletivamente quais são as
necessidades humanas efetivamente genuínas e qual o custo socioambiental queremos/podemos
assumir para satisfazê-las.

Referências:
CARDOSO, F. S. Formas alienadas da produção: destruição criativa e produção destrutiva. Geousp: Espaço e
Tempo, v. 22, n. 3, p. 572-590, dez.2018.
http://dx.doi.org/10.11606/issn.21790892.geousp.2018.138601

ELLIOTT, John E. Marx and Schumpeter on capitalism's creative destruction: A comparative restatement.
The Quarterly Journal of Economics, v. 95, n. 1, p. 45-68, 1980. https://doi.org/10.2307/1885348

ELLIOTT, John E. Marx’s Grundrisse: vision of capitalism’s creative destruction. Journal of Post
Keynesian Economics, v. 1, n. 2, p. 148-169, 1978.
https://doi.org/10.1080/01603477.1978.11489107

KURTZ, Robert. A desvalorização do valor. Tradução de Fernando Araújo. marxists.org, 10 jun.2005.


Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/kurz/2005/06/10.htm>. Acesso em 15 jul.2023.

SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, socialismo e democracia. Edição de George Allen e Unwin Ltd.
Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1961.

SINN, Hans‐Werner. What Marx means today. Economic Affairs, v. 37, n. 2, p. 229-239, 2017.
https://doi.org/10.1111/ecaf.12243

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