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ISSN: 2179-8192

EDUCAÇÃO FÍSICA E A TRADIÇÃO MARXISTA LUKACSIANA: UMA


ANÁLISE CRÍTICA EPISTEMOLÓGICA1

PHYSICAL EDUCATION AND THE LUKACSIANA MARXIST


TRADITION: A CRITICAL EPISTEMOLOGICAL ANALYSIS

LA EDUCACIÓN FÍSICA Y LA TRADICIÓN MARXISTA


LUKACSIANA: UN ANÁLISIS EPISTEMOLÓGICO CRÍTICO

Eldernan dos Santos Dias,


Universidade de Brasília (UnB)
Augusto César Vilela Gama,
Universidade de Brasília (UnB)
Edson Marcelo Húngaro,
Universidade de Brasília (UnB)

INTRODUÇÃO

Este trabalho propõe uma reflexão sobre a intersecção entre a tradição marxista, em
particular o pensamento de Lukács, e a educação física, com ênfase na realização da
emancipação humana. Busca-se destacar as possíveis contribuições do marxismo para a
interpretação e transformação social no campo da educação física, especialmente para os
professores inseridos nesse complexo da divisão social do trabalho.
Isto é, este texto se destina a professores de educação física que desejam compreender
as contribuições da tradição marxista para a sua área de atuação. É importante destacar que
não se tem a pretensão de esgotar todas as possibilidades que surgem do diálogo entre o

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O presente trabalho contou com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES) para sua realização.
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marxismo e a educação física, em vista disso, nossa análise se dividiu em dois grandes eixos
investigativos. No primeiro, aponta-se para qual vertente da tradição marxista se
fundamentam as proposições apresentadas neste estudo. No segundo, desenvolve-se um
conjunto de notas sobre as contribuições do marxismo lukacsiano para a educação física, de
modo a contribuir com o debate sobre o papel do marxismo, enquanto teoria crítica, no campo
da educação física.

O PORQUÊ DA TRADIÇÃO MARXISTA LUKACSIANA

Ao tratar do marxismo, é crucial evidenciar a inexistência de uma abordagem única,


mas sim de diversas correntes e interpretações do pensamento marxista. Segundo Netto
(2006), existe uma tradição marxista que engloba diferentes vertentes do pensamento
marxiano, as quais frequentemente entram em conflito.
Neste sentido, é fundamental esclarecer qual abordagem marxista está sendo adotada
no presente estudo. De acordo com Netto (2006), o enfoque ontológico é fundamental para a
compreensão do pensamento de Marx, tendo Lukács como principal exponente, com destaque
para seus estudos da ontologia do ser social (LUKÁCS, 2012, 2013).
Por sua vez, Lukács discute a possibilidade de transformação social a partir da
consciência de classe e da atividade prática dos sujeitos. O autor defende que a ontologia
marxista deva ser compreendida como uma teoria da práxis, que inclui a dimensão subjetiva
da vida social. Para Lukács, a consciência de classe pelos trabalhadores é uma forma de
compreender a realidade objetiva e subjetiva da sociedade capitalista, e, consequentemente,
transformá-la. A ontologia do ser social, enquanto teoria marxiana, procura entender a relação
entre a estrutura objetiva da sociedade e a subjetividade dos indivíduos, com o objetivo de
superar as contradições e a alienação tão inerentes ao modo de produção e reprodução
capitalista (LUKÁCS, 2012, 2013).
Para uma análise mais aprofundada da relação entre marxismo e transformação social,
se faz necessário recorrer a obra clássica O capital de Marx, por demonstrar uma rigorosa
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crítica da sociedade capitalista e uma proposta de transformação social a partir da luta de
classes e da superação da propriedade privada dos meios de produção (MARX, 2017).
O tema da relação entre marxismo e transformação social é complexo e polissêmico. A
análise da transformação social é ambígua, mesmo quando, termos específicos como
socialismo ou comunismo são utilizados. Ainda no Manifesto Comunista, Marx e Engels
dedicaram um extenso debate à análise e crítica das diferentes propostas de transformação
social socialista vigentes naquele momento. Nesse sentido, apresentaram uma concepção de
transformação social fundamentada na abolição das relações capitalistas de produção e na
construção de uma sociedade sem classes. (MARX; ENGELS, 2010).
Mais maduros, Marx e Engels (2012) fizeram uma crítica rigorosa, em Crítica do
Programa de Gotha, aos programas reformistas que propunham uma transição gradual para o
socialismo. Em vista disso, é necessário considerar a complexidade da relação entre marxismo
e transformação social, optando por uma abordagem teórica específica para analisá-la. Por
isto, este estudo adota como referência teórica para a discussão marxiana aqui pretendida a
abordagem ontológica proposta por Lukács (2012, 2013).
A ontologia marxiana foi fundamental para estabelecer novos parâmetros na análise da
vida humana, quando destaca a centralidade ontológica do trabalho. Como palestrado por
Engels durante o enterro de seu nobre amigo Marx no ano de 1883, enunciou: “[...] descobriu
Marx a lei do desenvolvimento da história humana: [...] de que os homens, antes do mais, têm
primeiro que comer, beber, abrigar-se e vestir-se, antes de se poderem entregar à política, à
ciência, à arte, à religião, etc.” (MARX; ENGELS, 1985, p. 179).
Este pensamento, de Marx e Engels, se afirma desde a obra A Ideologia alemã –
elaborada entre os anos de 1846 e 1847 – conforme o seguinte registro:

[...] devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda a


existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o
pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder
‘fazer história’. Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida,
bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais (MARX; ENGELS,
2007, pp. 32-33).
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Destarte, a ontologia marxiana defende a historicidade da essência humana, conforme
nos aponta Lukács (2012). A obra Manuscritos econômico-filosóficos, de Marx (2004), inova
ao fundar uma ontologia histórico-materialista que estabelece a historicidade como traço
essencial de todo o ser. A categoria de substância, em si, reconhece a historicidade como um
princípio ontológico fundamental. Deste modo, a substância não se opõe à historicidade ou ao
movimento da matéria, mas sim, indica a continuidade na persistência como princípio de ser
dos complexos em movimento. Este indício aponta para a tendência ontológica à historicidade
como princípio do próprio ser (LUKÁCS, 2012).
Ao defender a radical historicidade de todo ser, Marx (2004) rejeita qualquer pesquisa
que não seja realizada a partir de uma perspectiva histórico-genética. Assim, qualquer análise
sobre um fenômeno do ser social só pode ser considerada uma análise da história humana.
Segundo o autor, não devemos recorrer a um estado primitivo imaginário para buscar
explicações, uma vez que isso desloca a questão para uma região nebulosa e cinzenta, por
exemplo, teólogos que explicam a origem do mal pelo pecado, supondo-a como uma situação
dada e acabada de uma determinação social que sempre requer ser explicada aos seus fiéis
religiosos, negando, distintamente, a ontologia histórico-materialista do ser social.
Para a contingência da emancipação humana, se faz fundamental analisar o mundo
social, demolindo as barreiras que impedem o livre desenvolvimento consciente do indivíduo
em relação à humanidade. A crítica marxiana, ao lutar pela emancipação humana, analisa os
fundamentos da sociedade burguesa e nos revela que os humanos são os principais criadores
de sua própria história. Neste momento histórico que a sociedade se encontra, as únicas
barreiras ao livre desenvolvimento humano são aquelas que foram socialmente impostas e
historicamente específicas. Por esta razão, é importante questionar como esses fundamentos
podem contribuir para o campo da educação física e suas práticas pedagógicas, considerando
as limitações e possibilidades que a ordem vigente impõe à formação humana.

EDUCAÇÃO FÍSICA & MARXISMO LUKACSIANO


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A relação da educação física com o marxismo tem se destacado desde as décadas
finais do século anterior, resultando em diversos desdobramentos na área (CASTELLANI
FILHO, 2020). Os diálogos com o marxismo possibilitaram novos marcos para criticar e
problematizar ideias e práticas dominantes. Isto envolve salientar as determinações sociais
que se relacionam com o campo da educação física, descortinando a ideologia dominante
presente e as contradições causadas pelos processos de reificação, bem como, contribuindo
para reflexões e críticas sobre a função social da educação física.
Com base em evidências históricas, é possível afirmar que uma das contribuições mais
significativas do marxismo para a educação física foi a problematização de determinações
sociais, permitindo que o conhecimento da área fosse entendido como um conceito referente e
intrínseco as influências das condições sociais, econômicas, culturais e políticas sobre a sua
produção, distribuição e uso na sociedade. Em outras palavras, o conhecimento não é uma
entidade separada das condições sociais que o produzem e o utilizam, mas é moldado e
influenciado por essas condições. Esta compreensão permitiu a crítica de ideias e práticas
dominantes presentes na área, destacando a presença de uma ideologia dominante e as
contradições causadas pelos processos de reificação (SOUSA, 2020).
Isto é, os diálogos com o marxismo possibilitaram reflexões críticas sobre a função
social da educação física, tais como, Castellani Filho et al. (2012) ao destacarem a
necessidade de se pensar a educação física como uma prática social e política capaz de
intervir nos processos de transformação da sociedade. O marxismo também contribuiu para o
desenvolvimento de novos referenciais teóricos na área, com visibilidade para os trabalhos de
Sousa (2020) e Barros Júnior (2023), alicerçados pelo pensamento lukacsiano e propositivos
em questionarem a concepção positivista, biologizante e alienada de corpo, enfatizando a
dimensão coletiva e histórica da corporalidade humana.
Um dos temas mais explorados pelos estudiosos que dialogam com o marxismo na
educação física é a dimensão epistemológica da área, que envolve problematizar a forma
como o conhecimento é produzido e quais são seus juízos teóricos e metodológicos
(BARROS JÚNIOR, 2023). A crítica marxista à ideologia burguesa permitiu questionar os
pressupostos individualistas e naturalistas da educação física e enfatizou a importância da
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dimensão histórica e social na formação integral dos seres humanos, formação esta,
impossível de se desenvolver em uma sociedade regida pelo modo de produção e reprodução
capitalista (MÉSZÁROS, 2008).
Desta forma, a tradição marxista lukacsiana coloca novos desafios para a investigação
dos problemas epistemológicos da educação física, pelo fato de que, anterior ao debate sobre
os princípios epistemológicos, é fundamental analisar ontologicamente o objeto abordado pela
educação física, tal qual, as condições histórico-sociais que possibilitem novos diálogos sobre
as insuficiências científicas da referida área (BARROS JÚNIOR et al., 2022).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A perspectiva teórico-metodológica marxista, em particular a compreensão de Lukács,


oferece importantes contribuições para diversos campos do conhecimento, inclusive para a
educação física. Por meio da tradição marxista lukacsiana, considerada crítica e
emancipatória, tem-se potencial para entender a origem e o desenvolvimento do ser social em
sua historicidade, viabilizando uma transformação social mais ampla, cujo intuito seja
alcançar a tão imprescindível emancipação humana.

REFERÊNCIAS

BARROS JÚNIOR, Bartolomeu Lins de. Crise do capital e a negação da corporalidade:


uma contribuição crítico ontológica para os estudos do corpo na educação física. Tese
(Doutorado em Educação Física) - Faculdade de Educação Física, Brasília: Universidade de
Brasília, 2023.

BARROS JÚNIOR, Bartolomeu Lins de et al. Aspectos controversos de uma interpretação do


giro linguístico sobre a ontologia de Lukács como referência crítica na Educação Física.
Movimento, v. 28, p. e28034, 2022. Disponível em: <https://doi.org/10.22456/1982-
8918.122538>. Acesso em: 3 mai. 2023.

CASTELLANI FILHO, Lino. Às voltas com o futuro: minhas incursões na educação física
escolar. Poiésis, v. 14, n. 25, p. 19–51, 2020. Disponível em:
<https://doi.org/10.19177/prppge.v14e25202019-51>. Acesso em: 3 mai. 2023.
ISSN: 2179-8192
CASTELLANI FILHO, Lino et al. Metodologia do ensino de educação física. 2. ed. São
Paulo: Cortez, 2012.

LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012.

LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do


capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas: volume III. Lisboa: Avante, 1985.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2010.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo,
2012.

MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2008.

NETTO, José. Paulo. O que é marxismo. 9. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006.

SOUSA, Marcel Farias de. Trabalho e alienação-estranhamento: contribuições da


ontologia do ser social para o debate sobre o corpo na educação física brasileira. Tese
(Doutorado em Educação Física) - Faculdade de Educação Física, Brasília: Universidade de
Brasília, 2020.

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